Richard Schechner - O Que É Performance
Richard Schechner - O Que É Performance
Richard Schechner - O Que É Performance
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No contexto dos negócios, do esporte ou do sexo, dizer que alguém fez uma boa
performance é afirmar que tal pessoa realizou aquela coisa conforme um alto padrão, que
foi bem sucedida, que superou a si mesma e aos demais. Na arte, o performer é aquele
que atua num show, num espetáculo de teatro, dança, música. Na vida cotidiana,
performar é ser exibido ao extremo, sublinhando uma ação para aqueles que a assistem.
No século XXI, as pessoas têm vivido, como nunca antes, através da performance. Fazer
performance é um ato que pode também ser entendido em relação a:
Ser
Fazer
Mostrar-se fazendo
É muito importante que distingamos estas noções umas das outras. Ser pode ser ativo ou
estático, linear ou circular, expandido ou contraído, material ou espiritual. Ser é uma
categoria filosófica apontando para qualquer coisa que as pessoas teorizem como
realidade última. Fazer e mostrar-se fazendo são ações. Fazer e mostrar estão sempre
num continuum, sempre mudando o universo pré-socrático de Heráclito (535-475 AC) que
disse que "Ninguém pode pisar duas vezes o mesmo rio, nem tocar uma substância
mortal duas vezes na mesma condição" (fragmento 41). O quarto termo, explicar ações
demonstradas, é um esforço reflexivo para compreender o mundo da performance e o
mundo como performance. Esse tipo de compreensão é o trabalho dos críticos e
acadêmicos. Todavia, no teatro Brechtiano, em que o ator se afasta do personagem para
comentar suas ações, e nas performances construídas através de uma perspectiva crítica,
como Couple in a Cage (1992), de Guillermo de la Peña (1955), e Coco Fusco (1960) – a
performance se dá de forma reflexiva.
Performances
O que dizer das ações que são, aparentemente, exercidas apenas uma única vez – os
happenings de Allan Kaprow (1927), por exemplo, ou uma ocorrência corriqueira como
cozinhar, vestir-se, caminhar, conversar com um amigo? Até mesmo estas são
construídas a partir de comportamentos préviamente exercidos. De fato, a própria
redundância das ações cotidianas é precisamente o que constitui a sua familiaridade, a
sua qualidade de ação construída a partir de pedaços de comportamentos, rearranjados e
modelados de modo a produzir um efeito determinado. A arte cotidiana – como Kaprow
denomina várias de suas obras – é próxima da vida diária. A arte de Kaprow sublinha e
destaca comportamentos ordinários com sutileza – conduzindo a atenção para o modo
como uma refeição é preparada, ou observando as pegadas deixadas por alguém ao
caminhar no deserto. Prestar atenção em ações simples, performadas no momento
presente, é desenvolver uma consciência Zen em relação ao que é comum e honrar o que
é ordinário. Honrar o que é ordinário é observar quão ritualística é a vida diária, e o
quanto esta é constituída de repetições. Não há nenhuma ação humana que possa ser
classificada como um comportamente exercido uma única vez.
Essas reflexões nos levam às seguintes questões: Onde ocorre a performance? Uma
pintura ocorre num objeto físico, uma novela ocorre em palavras. Mas uma performance
(mesmo quando partindo de uma pintura ou de um romance) ocorre apenas em ação,
interação e relação. A performance não está em nada, mas entre. Deixem-me explicar.
Um performer do dia-a-dia, num ritual, num jogo ou nas artes performáticas propriamente
ditas, faz/mostra algo – performa uma ação. Por exemplo: uma mãe leva a colher até sua
própria boca e então à do bêbe, para ensiná-lo a comer mingau. Aí, a performance é o ato
de levar a colher à própria boca, e depois à boca do bebê. O bebê é, de início, espectador
da performance da mãe. Num dado momento ele se torna um co-performer, à medida em
que pega a colher e repete a ação, de início errando a direção da boca e besuntando o
rosto com o alimento. Papai filma todo o evento. Mais tarde, talvez anos depois, o bebê
seja uma mulher adulta, mostrando à sua filha um vídeo do dia em que sua mamãe
aprendeu a usar a colher. Assistir a esse vídeo é uma outra performance, existindo na
complexa relação entre o evento original, a memória dos avós (velhos ou até mortos), e a
fruição do momento presente, em que a mãe aponta para a tela dizendo: "Aquela é a
mamãe quando tinha sua idade!" A primeira performance ocorre entre a ação de mostrar
à criança como usar a colher e a reação desta à ação da mãe. A segunda performance
ocorre entre o vídeo da primeira e a recepção desta por ambas – a mãe (então bebê) e
sua própria filha. O que é verdadeiro, para esta performance de home-video, vale para
todas as outras performances. Tratar qualquer objeto, obra ou produto como performance
– uma pintura, um romance, um sapato, ou qualquer outra coisa – significa investigar o
que esta coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com
outros objetos e seres. Performances existem apenas como ações, interações e
relacionamentos.
O que dizer das muitas performances da vida diária? Desempenhar papéis profissionais,
papéis relacionados ao gênero ou raça que modelam a identidade de cada um de nós não
são ações de faz-de-conta, pelo menos não do modo como seria a repesentação de
papéis num filme ou palco. As performances do cotidiano fazem crenças – criando a
própria realidade social que é encenada. Nas performances que fazem crer, a distinção
entre o que é real e o que é faz-de-conta é sempre clara. Crianças brincando de médico
sabem muito bem que estão apenas fazendo-de-conta. No palco, várias convenções,
incluindo o próprio espaço cîenico como um domínio diferenciado, o abrir e fechar de
cortinas, as três chamadas antes do início do espetáculo… demarcam os limites entre a
vida e a arte. Quando as pessoas vão ao cinema, sabem que os universos sociais e
pessoais apresentados não são aqueles dos atores, mas dos personagens. Naturalmente,
este é o primeiro limite que a vanguarda e depois a mídia e a internet têm sabotado com
grande sucesso. Personalidades públicas costumam fazer crenças com relativa
freqüência – encenando efeitos que desejam que o público de suas performances aceitem
como reais. Quando o Presidente Americano assina um documento importante, seus
assessores encenam o ato no Salão Oval da Casa Branca, onde o Presidente pode
performar sua autoridade. Atrás dele uma platéia seleta de VIPs, incluindo o Vice-
Presidente. Um escudo presidencial de grandes proporções imprime no ambiente o
necessário patriotismo. Noutros momentos porém, o chefe da nação pode desejar ser
visto como um amigo, ou um vizinho camarada, conversando informalmente com os seus
concidadãos. Hoje em dia, todo mundo sabe que esses tipos de situações são planejadas
em seus mínimos detalhes. A presidência norte-americana hoje é – pelo menos na sua
face pública, uma performance totalmente roteirizada. As palavras do Presidente são
escritas por redatores profissionais de discursos, as bandeiras e objetos cênicos,
cuidadosamente confeccionados para obter o máximo efeito, o Chefe do Executivo deve
estar sempre bem ensaiado. O teleprompter irá garantir que o Presidente pareça estar
falando de improviso quando, na verdade, está lendo cada palavra. Cada detalhe é
coreografado, desde o modo como o Presidente olha para a câmera ou para a sua
audiência VIP num evento ao ar livre, até seu modo de gesticular com as mãos, vestir-se
e a própria maquiagem. O objetivo disso é fazer crenças – primeiro, construindo as bases
para a fé pública no Presidente e, segundo, sustentando a fé do Presidente em si mesmo.
Suas performances convencem a ele próprio na medida em que ele luta para convencer a
outros. É possível argumentar que o Presidente é um homem importante em virtude de
sua posição e autoridade. Mas dado o crescimento exponencial da mídia, hordas de
cidadãos comuns têm entrado no negócio de fazer crenças. Alguns são verdadeiros
camelôs midiáticos, vendendo de utensílios culinários e ginástica do bumbum durinho, até
a salvação eterna pelo poder inquestionável do sangue de Jesus. Outros são os famosos
âncoras de telejornais, cujos rostos e vozes familiares seguram a audiência através das
notícias que se sucedem. Outros ainda são experts – economistas, juristas, generais da
reserva – cuja autoridade se deve somente à freqüência de suas aparições. Há também
os mestres do marketing, contratados por políticos e corporações para transformar más
notícias em boas. Como produtores agindo nos bastidores, seu trabalho é garantir que, o
que quer que aconteça, seja dramatizado o bastante para atrair espectadores. Quanto
maior a audiência, mais alto o investimento dos anunciantes. Algumas notícias são
dramáticas por si sós – como desastres, guerras, crimes e julgamentos. Mas, os mestres
da mídia aprenderam a dramatizar até mesmo o mercado de ações e a meterorologia.
Como construir um angulo de interesse humano em cada história? Os produtores sabem
que as mesmas notícias estão disponíveis em vários veículos, então seu trabalho é
desenvolver atrações paralelas instigantes. Paradoxalmente, o resultado disso é um
público cada vez mais difícil de enganar. Com tantas performances à vista, o espectador
vira um astucioso e sofisticado desconstrutor das técnicas teatrais que são empregadas
para seduzi-lo. Fronteiras rarefeitas
Nós abordamos o que é performance e o que pode ser estudado como performance. Mas,
o que a performance consegue realizar? É difícil estipular as funções da performance.
Através do tempo, e em diferentes culturas, têm havido várias propostas. Uma das mais
inclusivas é aquela do sábio indiano Baharata Muni (século II AC), que sentiu que a
performance é um importante repositório de conhecimentos e um veículo poderoso para a
expressão de emoções (ver Baharata box). O poeta e intelectual romano Horácio (65-08
AC) argumentou, em sua obra intitulada Arte Poética, que o teatro tem que entreter e
educar – idéia essa adotada por muitos na Renascença e mais tarde pelo dramaturgo e
diretor alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). Juntando idéias obtidas de diversas fontes,
encontrei 7 funções para a performance:
entreter; fazer alguma coisa que é bela; marcar ou mudar a identidade; fazer ou estimular
uma comunidade; curar; ensinar, persuadir ou convencer; lidar com o sagrado e com o
demoníaco.
Estas funções não estão listadas em ordem de importância. Para algumas pessoas, uma
ou algumas dessas funções serão mais importantes que as outras. Mas essa hierarquia
mudará de acordo com quem você é e com o que quer fazer. Nenhuma performance
exerce todas esssas funções, mas muitas enfatizam mais de uma. Muito raramente uma
performance focaliza uma única função, ou mesmo duas. Uma demonstração de rua ou
uma peça propagandística pode ser prioritariamente voltada para ensinar-persuadir-
convencer, mas também tem que entreter e pode, igualmente, estimular a comunidade.
Xamãs curam, mas também entretém, estimulam a comunidade e lidam com a esfera do
sagrado/demoníaco. A postura de um médico ao lado da cama do paciente é uma
performance de encorajamento, ensino e cura. As missas de uma igreja Cristã
Carismática curam, entretém, mantêm a comunidade solidária, invocam a ambos, Deus e
o demônio e, se o sermão for tolerável, às vezes ensinam também. Se alguém durante a
missa declara ter se encontrado com Jesus e renascido, sua identidade é, então, marcada
e modificada. O presidente falando à nação, quer convencer e estimular a comunidade –
mas é melhor que entretenha o público se quiser que o ouça. Rituais tendem a ter o
máximo número de funções, enquanto as produções comerciais têm o mínimo. Um
musical da Broadway vai entretê-lo, e pouco mais do que isso. Essas sete funções são
melhor representadas como esferas que interagem e se sobrepõe como numa network.
Obras inteiras, e até gêneros de obras performáticas, podem ser moldados para funções
bem específicas. Há exemplos de performances políticas ou propagandísticas em todo o
mundo. O Teatro Campesino da Califórnia, criado nos anos 1960 para apoiar imigrantes
mexicanos que trabalhavam em fazendas no calor de uma greve bastante conflituada,
estimulou a solidariedade entre os grevistas, educou-os a respeito das questões
implicadas no movimento, atacou seus patrões e também os entreteve. Grupos como o
Greenpeace e o Actup usam a performance como parte de sua militância por uma
ecologia humana mais saudável ou para angariar fundos para pesquisa e tratamento da
AIDS. "Teatro para o desenvolvimento", como praticado na África, Ásia e América Latina,
educam pessoas sobre uma vasta gama de temas, do planejamento familiar e prevenção
de doenças, até a irrigação de plantios e a proteção de espécies ameaçadas. O Teatro do
Oprimido de Augusto Boal (1931), fortalece os espectadores, estimulando-os a encenar,
analizar e mudas suas situações de vida. O Teatro do Oprimido de Boal é, de certo modo,
baseado na obra de Brecht, especialmente na sua Lehrstucke (Espetáculos de
Aprendizado) que ele produziu nos anos 1930, tais como As medidas tomadas ou A
exceção e a regra. Durante a Revolução Cultural Chinesa, que ela mesma ajudou a
orquestrar, Jiang Qing (1914 – 1991) produziu uma série de "óperas modelo",
cuidadosamente forjadas para educar, entreter e estimular o crescimento de um tipo de
comunidade baseada nos valores do comunismo chinês, do modo como Jiang os
interpretava. Essas peças de teatro e ballet, empregavam tanto elementos tradicionais da
performance chinesa (adaptados às propostas da Revolução Cultural), quanto elementos
da música e encenação ocidentais. A visão utópica das óperas modelo contrastava com o
terrível fato de que milhões foram mortos, torturados e exilados pela Revolução Cultural.
Mas na virada do século XXI, esses espetáculos foram novamente performados,
estudados e apreciados por sua capacidade de entreter, sua excelência técnica e
inovações artísticas. Entretenimento significa alguma coisa produzida para agradar o
público. Mas o que agrada uma audiência, pode não agradar à outra. Portanto, ninguém
pode especificar o que, exatamente, constitui o entretenimento – exceto para dizer que
quase todas as performances lutam, de uma maneira ou de outra, para entreter. Eu incluo
nesta observação, tanto as performances populares, quanto as mais sofisticadas, além
dos rituais e das performances do dia-a-dia. O que dizer das performances de vanguarda
ou das performances políticas, criadas para ofender? Eventos de Teatro de Guerrilha
provocam rupturas e até destruição. Esses efeitos não são entretenimento. Porém, a arte
ofensiva é dirigida a dois públicos simultaneamente – aqueles que não acham a obra
agradável e aqueles que se sentem entretidos pelo desconforto que a obra causou aos
primeiros. O belo é difícil de definir. O sentido do belo não é ser bonito. Os eventos
medonhos e aterradores do teatro kabuki, da tragédia grega, do teatro elizabetano e de
algumas formas de arte performática não são bonitos. Tampouco poderíamos dizê-lo dos
demônios evocados pelos xamãs. Mas a habilidosa encenação de horrores pode ser bela
e proporcionar prazer estético. Seria isto verdadeiro para flagelos humanos como a
escravidão negra ou o extermínio dos povos nativos da América? Francisco de Goya
Luciente (1746 – 1828), em Os Desastres da Guerra, mostra que nessas ocasiões, nada
é visto sob o espectro purificador do tratamento artístico. A filósofa Suzane K. Langer
(1895 – 1985) argumentou que na vida as pessoas podem passar por terríveis
experiências, mas que na arte essas experiências são transformadas em "forma
expressiva". Uma das diferenças entre a vida e a arte é que na arte nós não
experimentamos os eventos em si mesmos, mas as suas representações. Esta noção
estética clássica é desafiada nessa época de dissimulação, virtualização, artistas
performáticos e atores de webcam, que exercem comportamentos da vida real diante dos
nossos olhos. Uma considerável quantidade de obras de arte pós-moderna não oferece
aos observadores objetos ou ato para a contemplação. Conclusão