Vergonha Como Complexo

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VERGONHA COMO COMPLEXO

Recentemente a TV Globo apresentou o tema da timidez no programa Globo


Repórter, onde apareceram algumas pessoas que fizeram um esforço grande
para superar esse quadro. Segundo a reportagem, 1 em cada 4 brasileiros
sofre de timidez em estágio avançado ou fobia social, o que perfaz cerca de
52 milhões de pessoas com esse transtorno.
No documentário as pessoas relatam medo de chamar a atenção, de ser
julgado, de ter vergonha ao ser olhado. Ser olhado por quem? Ser julgado por
quem? Quem é esse Outro que julga? Geralmente a queixa na clínica é que a
pessoa gostaria de "ser como os outros" e se expor, mas não consegue. E a percepção de que não
consegue ser "igual" aos outros, reforça o sentimento de inadequação e sobrevém a vergonha. Vergonha
de que? Parece que há uma vergonha de ser como é, pois não consegue atender a um ideal que é
valorizado socialmente. O indivíduo esforça-se para atender, mas falha e o sentimento de vergonha e
inadequação cada vez mais se aprofunda e confirma que ele é "diferente".
O tema da vergonha despertou interesse por parecer estar presente nos sintomas da depressão,
ansiedade, pânico, timidez, fobia social, por exemplo. E, aparece associada a sentimentos de
inferioridade, de inadequação, medo do julgamento alheio, menos valia, intensa preocupação com o olhar
do outro, de não "ter seu lugar", etc.
A palavra vergonha vem do latim verecundia e esta deriva de revereri, que significa reverenciar.
Reverenciar está ligado à hipótese de "um outro" a quem se reverencia. Há assim, uma atitude de "voltar-
se para o outro" com admiração, atribuindo a este "outro" um valor. Formada por re (para trás, de novo)
e vereri (respeito), sugere uma imagem de respeito, de reverência, de colocar-se em lugar "menor" em
relação a esse "outro".

 
Entendendo que os mitos retratam temas arquetípicos, podemos pensar a partir desse mito que a
vergonha é arquetípica, ou seja, todos os indivíduos são atravessados por essa experiência durante a
vida. Mas parece que no caso das pessoas denominadas como tímidas e envergonhadas, o sujeito é
tomado por essa experiência e se enxerga unicamente por esse prisma, ele mesmo se autodenominando
tímido e envergonhado e não conseguindo perceber que ele tem, também, outras formas de experiência e
de estar no mundo.
A vergonha também pode ser vista como um sentimento que auxilia o processo de socialização, da
aquisição de normas que ajudam a vida em sociedade. Neste caso, é a vergonha decorrente da
consciência de que algum comportamento feriu os princípios e valores sociais. A criança não sente
vergonha de seus atos até que adquira a consciência de que é um ser social e está inserida dentro de um
contexto que valoriza alguns preceitos e condena outros. A partir dessa consciência a criança passa a ter
o sentimento de vergonha a cada vez que infringe alguma norma e, aos poucos, passa a desenvolver um
comportamento bem adaptado à sociedade em que está inserida. O indivíduo que se envergonha por
algum ato que cometeu pode pagar uma pena, pode fazer algo para reparar sua atitude. Nesse sentido, o
sentimento de vergonha é importante para a cultura e a sociedade.
Diferentemente, há o sentimento de vergonha de ser visto, de se expor; que vai ao encontro do que
muitas pessoas relatam. Nesse caso, não há a possibilidade de reparar algo para atenuar a vergonha.
Parece que há a sensação de sentir-se pequeno diante desse Outro a quem se reverencia, sugerindo que
há uma sobrevalorização desse olhar; o sujeito entende que não está à altura daquele que representa o
ideal que ele próprio espera de si. Ou seja, o sujeito vê aspectos nesse Outro, que valoriza e acredita que
não os tem e se sente inadequado por não tê-los. E, sente que o Outro enxerga suas limitações e
insuficiências e, pior, o julga por isso e ele se sente envergonhado por ser como é. 
Nesse contexto a vergonha não é por algo que se "fez", mas por aquilo que se "é". A vergonha recai
sobre a pessoa inteira e não por algo que ela fez, confundindo-se com a própria identidade. O sujeito
sente vergonha até mesmo quando está só, sem nenhum olhar por perto, como algumas pessoas dizem.
Sob a ótica das ideias de Jung, podemos entender a invasão desse sentimento na consciência como um
complexo constelado. Todo complexo tem uma base arquetípica, ou seja, é algo que diz respeito à
experiência humana, não é algo unicamente pessoal. Lembremos do mito de Adão e Eva. A forma como
o complexo vai se manifestar tem o tom do que é pessoal naquela individualidade, mas a base é
arquetípica.
Para Jung: "(...) o complexo e seu material associativo gozam de uma autonomia incomum na hierarquia
da psique, de forma que se poderia compará-los a vassalos rebeldes. Pesquisas mostraram que esta
autonomia se baseia na forte carga emocional, ou seja, no valor emocional do complexo, pois a emoção
ocupa um lugar muito independente na constituição hierárquica da psique e pode facilmente quebrar o
autocontrole e a autoconsciência do indivíduo. (...) Para designar esta peculiaridade do complexo usei o
termo autonomia e imagino o complexo como um conjunto de representações, relativamente inde-
pendente (exatamente por causa de sua autonomia) do controle central da consciência e que está em
condições de a cada momento, por assim dizer, dobrar ou atravessar as intenções do indivíduo. (...)
vemos que um complexo forte possui em si todas as características de uma personalidade separada.
Estamos autorizados, portanto, a considerar um complexo como uma espécie de pequena psique
secundária que de alguma forma deliberada (mas desconhecida do indivíduo) tem certas intenções que
atravessam as do indivíduo. (...) todas as neuroses contêm complexos autônomos, cujo efeito perturbador
faz com que as pessoas adoeçam. (C.G. JUNG, Estudos Experimentais, §. 1352)
No caso do sujeito que sente vergonha pelo que é, podemos dizer que esta "personalidade" vai
crescendo a ponto de adquirir autonomia e dominar o campo da consciência quando constelada. E, essa
identificação com o complexo não permite ao sujeito enxergar-se por outros ângulos.
Possivelmente o olhar que julga a vergonha é o da consciência que condena as manifestações do
complexo. A consciência, que almeja atingir os ideais sociais preconizados, entra em embate com o
complexo, pois não consegue aceitar que pode sentir vergonha e não queira se expor. Acha que é
"errado" sentir vergonha. Diz Jung: "A consciência está invariavelmente convencida de que os complexos
são inconvenientes e, por isso, devem ser eliminados de um modo ou de outro" (C.G. JUNG, A natureza
da Pisque, §.211) E, também "Os complexos parecem de tal banalidade e, mesmo, de futilidade tão
ridícula, que nos causam vergonha e, tudo fazemos para ocultá-los". (C.G. JUNG , A natureza da psique, 
§.207 (grifo meu)). Vemos aqui a menção de Jung sobre a vergonha que os complexos podem causar e o
embate que a consciência trava para suprimi-los.
Podemos nos perguntar quão efetiva é essa forma de lidar com um complexo, já que ele goza de
autonomia e dificilmente irá se subordinar aos desejos da consciência. Por outro lado, também
poderíamos nos perguntar se, necessariamente, podemos classificar o complexo como ruim, ainda que
provoque sofrimentos. Será que o complexo teria algo a dizer? Poderia ser ouvido? Será que existe algo
que o alimenta? Este tema será aprofundado no próximo artigo.
Teresa Vieira Gama
Psicóloga, Membro Analista em formação pelo IJEP
Especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, membro analista em formação
Tel: (11) 99857-2680 - Atende na Granja Viana - SP
e-mail: tvgama@terra.com.br

 
 
Referências:
BILENKY, Marina Kon. Vergonha - Série O que fazer? - Blucher: 2016
HOPCKE, Robert H. Guia para a Obra Completa de C. G. Jung - Petrópolis: Vozes, 2012
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Vol. VIII/2 - Petrópolis: Vozes, 1998
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Vol. VII/2 - Petrópolis: Vozes, 2000
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. IX/1 - Petrópolis: Vozes, 2002
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Vol.VI - Petrópolis: Vozes, 2013
JUNG, Carl Gustav. Estudos Experimentais. Vol. II - Petrópolis: Vozes, 1997
SAMUELS, Andrew. Dicionário crítico de análise junguiana - Imago Editora - Rio de Janeiro, 1988 -
Edição Eletrônica © 2003 Andrew Samuels/Rubedo

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