GOMES - Direito Ao Lazer de Crianças e Adolescentes - 2015
GOMES - Direito Ao Lazer de Crianças e Adolescentes - 2015
GOMES - Direito Ao Lazer de Crianças e Adolescentes - 2015
Como foi discutido neste texto, torna-se fundamental refletir sobre as premissas a
serem consideradas quando proclamamos a necessidade de garantir o direito ao lazer na
vida de todas as pessoas, zelando para que sua concretização aconteça dos primeiros
anos de vida até a velhice apesar das diferenças/desigualdades que persistem em nosso
país: de gênero, classe social, raça/etnia, crença, orientação sexual, etc.
Dessa maneira, o direito ao lazer precisa emancipar-se – isto é, no sentido de não
estar subjugado ao trabalho e à lógica da produtividade porque ele detém valor em si
mesmo e papel fundamental na vida de cada ser humano. Como visto, esses aspectos
estão presentes de modo explícito, ou não, no artigo XXIV da DUDH, entre outros marcos
legais vigentes em nosso país. Seguramente, os responsáveis pela elaboração da DUDH
num contexto de pós-guerra mundial vislumbraram um tipo de sujeito, um modelo de
sociedade e determinadas formas de estabelecimento das relações sociais que, muitas
vezes, reforçam a dicotomia trabalho-lazer.
Buscando ampliar nossos olhares sobre o lazer, ele foi aqui concebido como
necessidade humana e dimensão da cultura que se concretiza na vida das pessoas por
meio de três elementos fundamentais: a ludicidade, as manifestações culturais e o
tempo/espaço social. Essa necessidade pode ser satisfeita de múltiplas formas, segundo
os valores e interesses dos sujeitos, grupos e instituições em cada contexto histórico,
social e cultural. Nessa linha de interpretação, além de ser um direito, o lazer é uma prática
social complexa que abarca uma multiplicidade de vivências culturais lúdicas que precisam
ser contextualizadas e historicamente situadas.
Você compreende os limites e possibilidades dessa concepção de lazer? Já parou
para pensar sobre as implicações desse entendimento na realidade em que você vive e
atua, e, particularmente, os desafios que ela abre para crianças e adolescentes em nosso
país?
Como lembram Candau et al (1996), não é uma simples convicção teórica que faz
com que um direito se torne realidade se, na prática, isso não for traduzido em atitudes e
comportamentos que expressem o pensar, o sentir, o agir e o modo de viver de cada
pessoa. Como é no cotidiano que se dá a luta pelos direitos humanos e isso afeta
substancialmente a vida de cada pessoa e de cada grupo social, reflita: o que pode ser
feito para ampliar o acesso e a apropriação do direito ao lazer nas infâncias e nas
adolescências que marcam o cotidiano brasileiro?
A concretização do direito ao lazer pode contribuir, de um lado, com a superação da
passividade e do conformismo e, de outro, com a efetivação de iniciativas voltadas para a
mobilização e o engajamento social e político. Com isso, delineia-se uma perspectiva
contra-hegemônica e transformacional para o lazer (Gomes; Elizalde, 2012; 2014).
Conforme destaca Santos (2001), uma perspectiva contra-hegemônica precisa
envolver um amplo conjunto de redes, iniciativas, estratégias educativas e movimentos
populares engajados na compreensão e no enfrentamento das consequências
econômicas, sociais e políticas do capitalismo neoliberal. Dessa forma, é essencial termos
uma percepção crítica da realidade, com vistas a uma ação transformadora.
A transformação da realidade nessa direção requer uma análise e compreensão
crítica do ser humano sobre si mesmo e sobre o seu contexto, como existentes no mundo
e com o mundo, deixando gravadas as suas marcas distintivas, o seu pensar, o seu criar, o
seu agir e os seus valores (Freire, 1978). Tudo isso interfere nos conhecimentos que
(re)produzimos e nos lazeres que vivenciamos: seja contribuindo com a manutenção da
lógica hegemônica ou, contrariamente, gerando tempos e espaços contra-hegemônicos.
Esses fundamentos político-pedagógicos instigam mais algumas reflexões: Quais
ações concretas de lazer para crianças e adolescentes foram desenvolvidas em cada
município brasileiro a partir do ECA, em parceria com os estados e o governo federal? Elas
dialogam com uma perspectiva crítica/criativa do lazer? Como, quando, porque e por quem
elas são concebidas, executadas, monitoradas, avaliadas e fiscalizadas? Quais políticas
públicas e sociais comprometidas com o direito ao lazer de crianças e adolescentes vêm
sendo delineadas em nosso país? Qual percentual do orçamento o poder público
municipal, estadual e federal é investido nessas políticas? O setor privado e a sociedade
como um todo vêm colaborando com isso? De que maneira?
Há, ainda, outros aspectos relevantes a serem considerados. Em uma pesquisa
realizada por Silva (2014) sobre “lazer e juventude encarcerada”, foi constatado que a
instituição estudada não contava com uma proposta político-pedagógica encarregada de
organizar os processos educativos naquele contexto. Os variados conteúdos culturais do
lazer (físico-esportivos, sociais, artísticos, manuais, intelectuais, turísticos e virtuais)
poderiam enriquecer sobremaneira esses processos educativos. Segundo o autor, ao invés
de restringir o lazer daquele grupo social à TV, deviam ser realizadas atividades culturais
mais relevantes e mais reflexivas, que pudessem instigar o desenvolvimento crítico dos
sujeitos. Porém, na percepção dos gestores, as práticas de lazer ali desenvolvidas eram
utilizadas simplesmente como uma espécie de “prêmio” por bom comportamento, ficando
esvaziadas de seu potencial lúdico, educativo e reflexivo.
Considerando essa realidade, o que poderia ser dito do lazer dos adolescentes que,
por terem transgredido a lei, requerem medidas socioeducativas? Existem propostas
político-pedagógicas organizadas para eles? O lazer integra os processos educativos
desenvolvidos nesse âmbito? Quando ele é vivenciado, é tratado como um prêmio ou
como um direito daqueles adolescentes? Essa questão é necessária porque muitos
adolescentes que cometem atos infracionais são confinados e esquecidos em instituições
frequentemente precárias. Assim, são privados não somente de liberdade, mas dos direitos
fundamentais previstos no próprio ECA. Será que a vivência crítica/criativa do direito ao
lazer não poderia contribuir com o processo de humanização, educação e ressocialização
desses meninos e meninas, rapazes e moças que ainda estão em desenvolvimento? Até
que ponto?
Santos (2000) enfatiza que muitas práticas culturais constituem autênticas formas
de lazer popular, representativas do povo fazendo cultura e, especialmente por isso,
fazendo política. Fazer política nesta direção implica enfrentar as causas de situações
complexas como as desigualdades sociais, os conflitos armados, a marginalização, a
destituição dos direitos sociais, a precarização do trabalho, o racismo, o sexismo e as
distintas formas de discriminação, preconceito e violência que também se fazem presentes
em nossos lazeres. Assim, lazer também é política, podendo constituir uma ferramenta
mobilizadora de mudanças sociais e pessoais – o que, com orientação e engajamento
político-pedagógico, é possível de ocorrer desde os primeiros anos de vida.
Tal desafio salienta a relevância de concretizarmos experiências de lazer coerentes
com os fundamentos político-pedagógicos adotados: uma meta que precisa ser, cada vez
mais, almejada por todas as pessoas interessadas em ampliar os olhares e a percepção
crítica sobre esse direito no Brasil, visando a sua efetiva concretização na vida cotidiana de
nossas crianças e adolescentes.
Concluindo essa discussão sobre o direito ao lazer, ressalto: o ECA é admirável,
mas, será uma conquista ainda mais grandiosa quando se tornar “letra viva” para todas as
meninas, todos os meninos, todas as moças e todos os rapazes em nosso país.
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