As Sete Palavras de Cristo Na Cruz São Roberto Belarmino

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As Sete Palavras de Cristo na Cruz

Cardeal São Roberto Belarmino (1542-1621)

Salve Maria!

Estimados irmãos e irmãs na fé, é com muita alegria que vos


apresento, em tempo muito oportuno, esta piedosa obra escrita pelo
grande São Roberto Belarmino, Doutor da Igreja, exemplar filho de
Nosso Senhor Jesus Cristo e de Sua Santa Igreja. Trata-se de um
livreto no qual nos enriquece com belíssimas palavras acerca da
profundidade a nós ensinadas por estas últimas palavras de Cristo
na Cruz. Certamente será um bálsamo à nossa alma cada capítulo e
nos permitirá a nos unir ainda mais a Cristo, contemplando Sua
dolorosa Paixão e praticando as virtudes aí nos ensinadas. É um
livro bem raro, esta versão em português é datado de 1886 e pela
graça de Deus também já se encontra reeditado pela editora
Realeza, dos nossos amigos do Obras Católicas.

ÍNDICE

Resumo da vida do Cardeal Belarmino


A Venerável Congregação dos Celestinos, Monges da Ordem de
São Bento
Prefácio

LIVRO I: Das primeiras três palavras proferidas por Cristo na


Cruz

Capítulo I. “Meu Pai, perdoa-lhes; pois não sabem o que fazem”.


Explica-se literalmente a primeira palavra
Capítulo II. Do primeiro fruto da primeira palavra proferida na Cruz
Capítulo III. Do segundo fruto da mesma palavra proferida por
Cristo na Cruz
Capítulo IV. “Amém. Em verdade te digo: hoje estarás comigo no
paraíso”. Explica-se literalmente a segunda palavra
Capítulo V. Do Primeiro fruto da segunda palavra
Capítulo VI. Do Segundo fruto da segunda palavra
Capítulo VII. Do terceiro fruto da segunda palavra
Capítulo VIII. “Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”. Explica-se
literalmente a terceira palavra
Capítulo IX. Do primeiro fruto da terceira palavra
Capítulo X. Do segundo fruto da terceira palavra
Capítulo XI. Do terceiro fruto da terceira palavra
Capítulo XII. Do quarto fruto da terceira palavra

LIVRO II: Das quatro restantes palavras, proferidas por Cristo


na Cruz

Capítulo XIII. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”.


Explica-se literalmente a quarta palavra
Capítulo XIV. Do primeiro fruto da quarta palavra
Capítulo XV. Do segundo fruto da quarta palavra
Capítulo XVI. Do terceiro fruto da quarta palavra
Capítulo XVII. Do quarto fruto da quarta palavra
Capítulo XVIII. Do quinto fruto da quarta palavra
Capítulo IX. “Tenho sede”. Explica-se literalmente a quinta palavra
Capítulo XX. Do primeiro fruto da quinta palavra
Capítulo XXI. Do segundo fruto da quinta palavra
Capítulo XXII. Do terceiro fruto da quinta palavra
Capítulo XXIII. Do quarto fruto da quinta palavra
Capítulo XXIV. “Tudo está consumado”. Explica-se literalmente a
sexta palavra
Capítulo XXV. Do primeiro fruto da sexta palavra
Capítulo XXVI. Do segundo fruto da sexta palavra
Capítulo XXVII. Do terceiro fruto da sexta palavra
Capítulo XXVIII. Do quarto fruto da sexta palavra
Capítulo XXIX. Do quinto fruto da sexta palavra
Capítulo XXX. Do sexto fruto da sexta palavra
Capítulo XXXI. “Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espirito”.
Explica-se literalmente a sétima palavra
Capítulo XXXII. Do primeiro fruto da sétima palavra
Capítulo XXXIII. Do segundo fruto da sétima palavra
Capítulo XXXIV. Do terceiro fruto da sétima palavra
Capítulo XXXV. Do quarto fruto da última palavra
Capítulo XXXVI. Do último fruto da última palavra

___________________________________________________________

Resumo da vida do Cardeal Belarmino


Roberto Belarmino, nascido para bem da República Cristã em 4 de
outubro de 1542, em Policiano, cidade da Toscana, foi nobre, por
ambos os seus progenitores, que foram Vicente Belarmino, pessoa
muito considerada, Cintia Cervina, senhora de primeira nobreza e
virtuosíssima, e irmã do Papa, Marcelo II. Depois de ter estudado
diligentemente Gramática, Literatura e Retórica, aprendeu com
incrível rapidez o Grego nas escolas dos Jesuítas, e pelo gosto que
tinha pela poesia, não tendo ainda dezesseis anos, escreveu em
latim com correção e elegância o poema da Virgindade; uma Écloga
à morte do cardeal Roberto Nobilio, na qual mostra descrição de
homem já feito; um poema sáfico do Espirito Santo, que
começa Spiritus, celsi Dominator axis; e o elegantíssimo hino de
Santa Maria Madalena Pater Superni luminis, o qual Clemente VIII
mandou incluir no Breviário Romano entre os da festa daquela
Santa.
Chegado à adolescência, foi cursar os estudos superiores na
Academia de Pádua, e lá se resolveu a meter-se frade da
Companhia. Seus pais, porque desejavam que a sua casa se não
extinguisse, e não tendo outro filho, fizeram conjuntamente com os
seus amigos tudo quanto era possível, para o dissuadirem; porém
não puderam consegui-lo; porque os seus argumentos, fundados
em futuras grandezas humanas, nada podia com Belarmino, que as
aborrecia.

Entrou, pois naquela religião aos dezoito anos, e, depois de


concluído o seu noviciado no colégio de Roma, e de ter estudado
três anos Filosofia, foi com geral aplauso nomeado mestre em artes,
e mandado pouco depois para Florença, reger as cadeiras públicas
de Retórica e Astronomia.

Por ordem do Reitor do Colégio daquela cidade pregou em dias


determinados (além dos discursos, que em fazia na Sé) quase ainda
não tendo barba, e sem ainda ter ordens nenhumas, e tão lógica e
eloquentemente, que um indivíduo erudito, e, que não era qualquer,
tendo-o ouvido, disse no fim do sermão em voz alta:

«Ainda assim não falou homem nenhum»


Em Pádua defendeu teses de Filosofia e Teologia dois dias inteiros
com tanta dignidade, saber, e
erudição, que não só ganhou a afeição de todos, mas até mereceu,
que dele dissessem que era um homem incomparável; sendo ainda
um rapaz.

Recebeu a ordem de subdiácono em Liége, e em Gaud as de


diácono e presbítero; e celebrou a primeira vez em Lovaina em
1570.

Depois, tendo feito a profissão dos quatro votos da Companhia, deu-


se de tal modo ao estudo do Hebraico, que dentro em pouco o
aprendeu, e ensinou com aplauso.

Foi onze anos Mestre de Casos no Colégio Romano, aonde


concorria a ouvi-lo muita gente, que muito aproveitava com as suas
lições.
Xisto V mandou-o para França com o Legado Pontifício, Henrique
Caetano, e lá sofreu muitos e grandes trabalhos pelo nome de
Cristo no cerco de Paris. Escreveu então em nome do Legado uma
notável carta em latim a todos os Prelados franceses, para eles não
caírem no cisma.

Inocêncio IX, apenas subido ao Pontificado, quis fazê-lo Cardeal,


para lhe remunerar os seus grandes serviços à Igreja: não pode
porém realizar a sua vontade, porque morreu, não tendo ainda, dois
meses de Pontificado.

Gregório XIV, mandando, aconselhado por Belarmino, corrigir a


Bíblia de Xisto V, nomeou-o membro da respectiva junta.

Em 1597 foi, por falecimento do cardeal de Toledo, nomeado


Teólogo Pontífice e conselheiro da Suprema Inquisição por
Clemente VIII, depois examinador dos que haviam de serem bispos,
e Prepósito da Penitenciária do Vaticano, e pelo seu distinto
desempenho de ambos estes lugares promovido a Cardeal pelo
mesmo Pontífice, que lhe fez, quando o nomeou, o seguinte elogio:

“Nomeá-lo Cardeal, porque em sabedoria não tem a Igreja de Deus


outro como ele; e porque é sobrinho de um ótimo e santíssimo
Pontífice”
Em 1602 foi feito Arcebispo de Cápua, para onde partiu logo depois
da sua consagração; e tendo ido a Roma ao Conclave por
falecimento de Clemente VIII, Paulo V, sucedendo a Leão XI, que só
foi Pontífice vinte e sete dias, não o deixou voltar para Cápua,
dizendo, que de um homem assim não precisava uma Igreja, mas
precisava todo o orbe católico. Por pouco não saiu Pontífice no
Conclave, que elegeu Paulo V, e muito grande foi o seu
contentamento, quando viu, que não era ele o eleito.

Conhecendo que a morte se lhe avizinhava, obteve do Pontífice


Gregório XV, permissão para deixar os cargos públicos, que
ocupava, e retirar-se à sua religião, onde escreveu a sua última
obra, a Arte de bem morrer.

Foi muito devoto, de muita caridade, severo só consigo, e muito


afável com todos, não consentindo mesmo, que os pobres, quando
lhe pediam esmola, estivessem com o chapéu na mão, era inimigo
dos vícios; bem como do luxo, das grandezas mundanas e das
delícias.

Escreveu muitas obras nos gêneros polêmico, exegético e pio. A


este pertencem – As Sete Palavras de Cristo na Cruz.

Morreu santissimamente, de 79 anos, a 17 de setembro de 1621.

A Venerável Congregação dos Celestinos,


Monges da Ordem de São Bento, faz os seus
cumprimentos o Cardeal, Roberto Belarmino,
Protetor da mesma Congregação
Tão sabiamente como podia ser, julgou o abade Pynuphio, segundo
diz Cassiano, que o perfeito monge se deve comparar com Cristo
crucificado; pois as virtudes que no perfeito monge se requerem,
são as três seguintes: pobreza, que exclua quanto for
domínio; castidade, que nunca saiba os prazeres carnais;
e obediência, absolutamente subordinada a um aceno do seu
superior; às quais virtudes costuma andar anexa na regra de São
Bento a estabilidade do lugar.

Se alguém, pois, quiser ver um exemplar de voluntária pobreza até


a completa nudez e indigência, repare em Cristo crucificado, que,
assim como em vida não teve onde reclinar a cabeça, assim
também, estando para morrer, deixou que os seus algozes entre si
dividissem os seus próprios vestidos, únicos objetos que possuía.
Se alguém quiser achar um modelo da mortificação da carne, que
conserve a castidade em toda a sua perfeição, sem dúvida o
encontrará em Cristo crucificado; pois desde as plantas dos pés até
o alto da cabeça estava sofrendo uma dor contínua.

Se alguém quiser finalmente procurar um tipo de perfeita


obediência, em ninguém o poderá descobrir mais completo do que
nAquele, que, obediente, se sujeitou à morte, e morte de cruz. Nem
só achará em Cristo crucificado, protótipo incomparável de todas as
virtudes, a virtude da obediência, mas também as suas inseparáveis
companheiras, sofrimento e humildade, e desta o seu princípio e
fim, caridade ardentíssima, e em todas elas perseverança até final,
a qual é significada pela estabilidade do lugar.

Certamente não só Cristo na Cruz é o mais completo modelo da


perfeição monástica; mas também o perfeito monge representa
perfeitíssimamente o Senhor crucificado. Esta representação ou
semelhança de Cristo crucificado parece tê-la expressada ao vivo
principalmente São Pedro Celestino; pois a sua vida, quase desde a
infância até á última velhice, e morte, nada mais foi do que uma
continuada meditação da Cruz, e não interrompida imitação do
Crucificado; e; para com propriedade se dar a conhecer, que assim
fora, se viu, quando ele estava para morrer, desde sexta-feira até às
três horas do sábado, em que felicissimamente entregou o seu
espírito ao Criador, uma Cruz d’ouro, milagrosamente suspensa no
ar, defronte da sua cela. Aquela Cruz, conta Pedro d’Aliaco, Cardeal
Cameracense (Lib. 2, c. 19 vitae S. Petri Caelestini), que por muita
gente fora visto com assombro; e isto mesmo é mencionado, como
indubitável sinal do Céu no documento da sua canonização. Em
vista disto parece-me, que bastante razão tem, para oferecer e
dedicar especialmente aos meus Celestinos os meus livros das Sete
palavras proferidas por Cristo na Cruz, pois neles diligenciei
explicar as principais virtudes do Crucificado; às quais sendo sem
dúvida nenhuma, muito úteis a todos os fiéis, são absolutamente
necessárias a quem por própria vocação abraçou a mortificação da
Cruz. Aqueles, pois, que com Cristo se crucificaram, e para o mundo
morreram, pela observância externa da sua regra, e não imitam as
virtudes do Crucificado sofrem, como o infeliz ladrão, a ignomínia do
patíbulo e os seus tormentos; porém não conseguirão nem a glória,
nem o prêmio de Cristo; e melhor lhes fora, como diz São Pedro –
não terem conhecido o caminho da justiça, do que depois de o
terem conhecido, tornarem para traz, deixando àquele mandamento
santo, que lhes foi dado (2 Pd 2). Pelo, que exorto todos os monges,
e, particularmente os meus Celestinos, a que, se quiser ser o que
diz o nome de monges, leiam assiduamente o Livro da cruz de
Cristo, e o tenham como um comentário fiel e claro, para explicar os
lugares escuros, que leiam repetidas vezes as vidas de São Pedro
Celestino, e dos outros santos, e se desvelem na prática das
virtudes, que deles aprenderem; pois assim se realizará, que de dia
para dia a Cruz se lhes torne suave, e tão amável, que, sem custo
desprezem os Escribas e Fariseus, isto é, a carne e o sangue, que,
gritando, lhes estão dizendo — descem da Cruz. Assim faziam
antigamente os discípulos de São Francisco, quando ainda não
tinham os livros da sua reza: olhando continuamente para o livro da
Cruz de Cristo, de dia e de noite o liam e reliam como diz São
Boaventura (In vita S. Francisci, c.4), ensinados pelo exemplo e
discursos do seu Patriarca, que continuamente lhes fazia prédicas a
respeito da Cruz.
Aceitai, pois, veneráveis Padres, esta dadivazinha, que vos oferece
o vosso Protetor, e, que será mesmo depois que ele morrer, uma
prova do entranhável afeto, que sempre vos consagrou, e do desejo,
que sempre teve de, que vós sejais herdeiros das virtudes de São
Pedro Celestino, e verdadeiros discípulos e imitadores de Cristo
Crucificado.

Prefácio
Vão já correndo quatro anos desde que eu, preparando-me para
deixar este mundo, estou retirado do seu bulício, tendo abandonado
as coisas do século, porém não a meditação da Sagrada Escritura
nem deixando de escrever o que a este respeito me ocorre, porque,
se já não posso ser útil aos meus irmãos pela palavra ou por longos
escritos, ao menos não deixe de o ser por livrinhos de piedade.
Quando eu estava pensando a respeito do assunto que devia
escolher, e, que não só pudesse dispor-me para morrer cristãmente,
mas também servir ao meu próximo, para bem viver; ocorreu-me a
ideia da morte do Redentor, e daquele último sermão que, de sete
curtíssimas palavras, porém de poderosíssimos pensamentos, Ele
do alto da Cruz, como de um elevadíssimo púlpito pregou a todo o
gênero humano: pois naquele sermão ou naquelas sete palavras se
contém tudo aquilo de que o mesmo Senhor diz:

“Eis que subimos a Jerusalém. Tudo o que foi escrito pelos profetas
a respeito do Filho do Homem será cumprido” (Lc 18, 31)
O que eles predisseram a respeito de Cristo, reduz-se a quatro
artigos: Discursos ao povo; oração a seu Eterno Pai; seus
gravíssimos sofrimentos; e suas sublimes e admiráveis ações; e
tudo isto maravilhosamente se realizou na Sua vida, pois o Senhor
pregava frequentíssimamente no Templo, nas Sinagogas, nos
campos, nos desertos, nas casas particulares; finalmente, até de
uma barca as turbas que estavam na praia. As noites passavam
ordinariamente em oração a Deus; pois diz o Evangelista: e passou
toda a noite em oração a Deus (Lc 6 , 12). As suas ações
admiráveis em expulsar demônios, em curar enfermos, em
multiplicar pães, em serenar tempestades, lêem-se a cada passo
nos Evangelistas (Mt 8; Mc 4; Lc 6; Jo 6). Finalmente os malefícios,
com que lhe pagavam os benefícios, eram muitos; não só injúrias
verbais, porém também pedradas, e vontade de O precipitarem (Jo
8; Lc 4). Tudo isto, porém, se consumou sem a menor dúvida na
Cruz. De tal modo, pois, dela pregou que muito dali voltaram
arrependidos (Lc 23): não só se rasgaram corações humanos, mas
também pedras se partiram. De tal modo orou na Cruz, que
oferecendo com um grande brado e com lágrimas, preces e rogos
ao que O podia salvar da morte, foi atendido pela Sua reverencia,
como diz o Apóstolo aos Hebreus (Hb 5). Os tormentos que na Cruz
padeceu, são tão superiores aos sofrimentos das outras épocas da
Sua vida, que propriamente se pode dizer que, aqueles constituem a
Sua paixão. Nunca operou maiores prodígios do que, quando na
Cruz parecia estar no maior desamparo e sem poder algum, pois foi
então, que não só fez que aparecessem provas celestes da sua
Divindade (Mt 27) que os judeus Lhe tinham importunamente
exigido, mas também pouco depois deu disto a maior de todas,
quando depois de morto e sepultado, por Seu próprio poder
ressurgiu dos mortos, fazendo voltar o Seu corpo à vida e vida
imortal. Verdadeiramente, pois na Cruz se consumou tudo quanto os
Profetas escreveram do Filho do Homem.
Antes, porém que eu comece a escrever das palavras do Senhor
parece-me de utilidade dizer alguma coisa a respeito da Cruz, que
foi o púlpito daquele Pregador, o altar daquele Sacrificador, o
estádio daquele Combatente, e a oficina daquele Operador de
milagres. Quanto à estrutura da Cruz é opinião mais seguida dos
antigos, que era formada por três peças; uma ao alto, em que foi
estendido o corpo do Crucificado, outra atravessada, na qual foram
cravadas as mãos, e a terceira pregada na parte inferior daquela,
servindo como de apoio aos pés, que nela foram cravados. Assim o
dizem, os antiquíssimos Padres, São Justino e Santo Irineu (In dial.
cum Triphon. Lib. 15 advers. haeres. Valentin), que bem claramente,
mostram que ambos os pés estavam sobre um escabelo, e não um
sobre o outro. Daqui se segue que os cravos foram quatro, e não
três, como muitos cuidam, representando por isto Cristo crucificado
com um pé sobre o outro; porém à opinião destes é inteiramente
oposta, como muito bem se vê, a de Gregório Turonense (Láb. de
glor. Martyr., cap. 6) a qual é fundada em antigas pinturas:
“Vi em Paris, diz ele, na biblioteca do Rei antiquíssimos, livros dos
Evangelhos, manuscritos, repetidas pinturas do Crucificado, e
sempre com quatro cravos”
Que a haste da Cruz excedia algum tanto a travessa, dizem-no
Santo Agostinho e São Gregório Nazianzeno (Epist. 12. Serm. 1 de
Resur.); e isto mesmo se pode coligir do apóstolo, que, dizendo aos
Efésios (Ef 3): Para que possais compreender com todos os Santos,
qual seja a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, bem
claramente descreve a figura da Cruz, que tem quatro extremidades;
largura na travessa, comprimento na haste, altura na parte da haste,
que excede a travessa, e profundidade na parte, que ficava oculta,
cravada na terra. Naquele patíbulo sofreu Nosso Senhor não por
casualidade, nem violentado; pois desde a mesma eternidade O
tinha escolhido, como diz Santo Agostinho (Epist. 120) fundado na
passagem dos Atos dos Apóstolos (At 2): A este, depois de vos ser
entregue pelo decretado conselho e presciência de Deus,
crucificando-o por mãos de iníquos, lhe tirastes a mesma vida: e por
isto mesmo Cristo no começo da Sua pregação disse a Nicodemos
(Jo 3):
“E Moisés no Deserto levantou a serpente; assim importa que seja
levantado o Filho do Homem para que todo o que crê nele, não
pereça, mas tenha a vida eterna”
E falando muitas vezes aos Apóstolos a respeito da sua Cruz, lhes
dizia, exortando-os (Mt 16):

“Se algum quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, e tome a


sua Cruz, e siga-me”
A razão, por que Cristo escolheu este suplício, só Ele sabe: não
faltam, porém razões místicas, que os Santos Padres excogitaram,
e nos deixaram escritas. Santo Irineu diz (Lib. 5, advers. haers.
Valentin.), que os dois braços da Cruz estavam como ligados um ao
outro debaixo do mesmo título — JESUS NAZARENO, REI DOS
JUDEUS – para disso entendermos que os dois povos, hebreu e
gentio, em algum tempo se hão de reunir num corpo, de que Cristo
há de ser a cabeça; tendo antes estado dividido. São Gregório
Nazianzeno, no discurso da ressurreição de Cristo (Orat. 1) diz que,
a parte da Cruz, que olha para o Céu, significa que ele é aberto pela
Cruz, como sendo ela a sua chave; que a parte, que estava cravada
na terra, significa que o inferno havia de ser vencido por Cristo,
quando a ele descesse; que os dois braços da Cruz, em direção um
ao Oriente outro ao Ocidente, significam a reparação de todo o
gênero humano pelo sangue de Cristo. São Jerônimo na Epístola
aos Efésios, Santo Agostinho a Honorato, e São Bernardo
no Tratado da Consideração (Lib. 5), dizem que o principal mistério
da Cruz é brevemente expressado pelo Apóstolo naquelas palavras
(Ef 3): qual seja a largura e o comprimento e a altura e a
profundidade. Dão aquelas palavras a entender, primeiramente os
atributos de Deus:
na altura o Seu poder;
na profundidade a Sua sabedoria;
na largura a Sua bondade,
no comprimento a Sua eternidade.
Em segundo lugar as virtudes de Cristo nos tormentos:

na largura a Sua caridade;


no comprimento a Sua resignação;
na altura a Sua obediência;
na profundidade a Sua humildade.
E finalmente as virtudes neste tempo necessárias para conseguir a
salvação por Cristo:

na profundidade da Cruz a fé;


na sua altura a esperança;
na sua largura a caridade;
no seu comprimento a perseverança.
Disso entendemos que só a caridade que é chamada a Rainha das
virtudes, em todos tem lugar, em Deus, em Cristo, e em nós; e, que
das outras virtudes pertencem umas a Deus, outras a Cristo, outras
a nós. Não haja, pois, quem estranhe, que nas últimas palavras de
Cristo, as quais vamos explicar, demos o primeiro lugar à caridade.
Explicaremos, pois, primeiramente as três primeiras palavras que
Cristo proferiu perto da hora sexta, antes que a Terra fosse toda
envolvida em trevas pelo obscurecimento do Sol. Depois trataremos
do motivo da falta da luz solar; e em seguida explicaremos as outras
palavras, que Cristo proferiu perto da hora nona, como diz São
Mateus (27), isto é, quando as trevas iam acabando, e se
avizinhava, ou antes, estava iminente a Sua morte.

Capítulo I
“Meu Pai, perdoa-lhes; pois não sabem o
que fazem”

Explica-se literalmente a primeira palavra de


Cristo na Cruz
“Meu Pai perdoa-lhes; não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)
Cristo, Jesus, Verbo do Pai Eterno, e de quem seu mesmo Pai disse
claramente: Ouvi-o (Mt 17), e, que de Si mesmo disse também
claramente: Um só é o vosso Mestre, o Cristo (Mt 23), para
desempenhar cabalmente a Sua missão, não só nunca deixou de
ensinar, enquanto viveu; porém, mesmo da cadeira da Cruz fez uma
pregação curta, mas ardente, proveitosíssima, de muita eficácia e
inteiramente digníssima de ser recolhida pelos cristãos no íntimo do
coração, de lá ser guardada, meditada e posta em prática. A
primeira sentença é esta: Jesus então dizia: Meu Pai perdoa-lhes,
pois não sabem o que fazem (Lc 23, 34), a qual quis o Espírito
Santo, que como nova e insólita fosse profetizada por Isaías
naquelas palavras:
“E rogou pelos transgressores” (Is 53, 12)
Com quanta verdade o Apóstolo São Paulo, disse (1Cor 13, 5): A
caridade não busca os seus próprios interesses, pode facilmente
conhecer-se da ordem daquelas sentenças; pois delas, três dizem
respeito ao bem dos outros, três ao bem próprio, e uma é comum, o
Senhor, porém, teve primeiramente cuidado dos outros, e em último
lugar de Si. Das primeiras três sentenças que dizem respeito aos
outros, a primeira diz respeito aos inimigos, a segunda aos amigos,
a última aos parentes. A razão desta ordem é a seguinte: a caridade
socorre em primeiro lugar os mais necessitados, e estes eram então
os inimigos; e nós também discípulos de tal Mestre, mais
precisávamos de, que Ele nós instruísse a amarmos os nossos
inimigos, o que é mais difícil e mais raro, do que amarmos os
nossos amigos e parentes; amor, que de certo modo nasce
conosco, conosco se desenvolve, e não poucas vezes se robustece
mais do que deve ser. Diz, pois, o Evangelista: Jesus então dizia:
aquele então designa o tempo e ocasião de orar pelos seus
inimigos, e opõem palavras a palavras, e obras a obras, como se o
Evangelista dissesse:
Eles crucificavam o Senhor, e à sua vista repartia os Seus vestidos;
outros O escarneciam e insultavam-nO como perturbador do povo e
mentiroso, e Ele, vendo e, ouvindo isto, e sofrendo dores,
atrocíssimas de Suas mãos e pés, recentemente transpassados,
retribuindo o mal com bem, dizia: Meu Pai perdoa-lhes
Chama-lhe Pai e não Deus, ou Senhor, porque bem sabia, que para
isto mais se precisava do amor de pai, do que da severidade de juiz;
e que, para comover Deus, certamente irado por tão grandes
atentados era necessário empregar o carinhoso nome de pai. Assim
aquele Pai parece significar isto:
«Eu, teu Filho no meio dos tormentos que estou sofrendo, perdoo;
perdoa tu também, meu Pai, em atenção a mim, teu Filho; concede
este perdão, que para eles peço, apesar de que o não merecem,
lembra-te que também deles és Pai, tendo-os criado à Tua imagem
e semelhança: não os excluas pois do Teu amor paternal, porque,
ainda que filhos indignos, são Teus filhos»
Perdoa: esta expressão encerra a suma do pedido, que o Filho de
Deus, como advogado dos Seus inimigos, dirige a seu Pai, e pode
aquele termo perdoa referir-se tanto à pena como à culpa.
Referindo-se à pena, foi esta súplica ouvida, pois merecendo os
judeus por esta maldade ser gravissimamente punidos ou com fogo,
que descesse do Céu e os consumisse; ou com um dilúvio, em que
morressem afogados, ou com ferro e fome, que os exterminasse;
passaram-se quarenta anos, sem serem castigados, e, se,
entretanto aquela nação fizesse penitência, ficaria salva e livre: mas
porque a não fez, determinou Deus, que imperando Vespasiano
contra ela marchasse o exército romano, que destruiu a mais
famosa cidade, fez morrer parte dos judeus à fome no cerco, passou
à espada outros depois de tomada, outros os vendeu, outros fê-los
escravos, e disseminou os outros por várias terras e países. Tudo
isto tinha o Senhor predito; primeiramente pela parábola da vinha, e
do rei, que preparava as bodas do seu filho; e depois bem
manifestamente no dia das Palmas, chorando e lamentando (Mt 20
e 22; Lc 13 e 19). Quanto à culpa foi a sua súplica atendida, pois
muitos, por merecimento dela, conseguiram de Deus a graça do
arrependimento. Fazem parte deste número os que do Calvário se
retiravam, batendo nos peitos (Lc 23); o Centurião, que dizia: Na
verdade este Homem era Filho de Deus (Mt 27, 54) e muitos outros,
que depois, ouvindo as pregações dos Apóstolos se convertiam,
confessando quem tinham negado, e adorando quem tinham tratado
com desprezo.
A razão, por que nem a todos foi concedida a graça do
arrependimento, é, porque a súplica de Cristo era, conforme à
sabedoria e vontade de Deus: o que por outras palavras diz São
Lucas nos Atos dos Apóstolos:

“Creram todos os que haviam sido predestinados à vida eterna” (At


13, 48)
Lhes. Esta palavra designa aqueles para quem Cristo pediu
indulgência; e parece serem os primeiros os que O crucificaram e
entre si repartiram os Seus vestidos; e depois destes os que foram
causa da Sua crucifixão; Pilatos, que O sentenciou; o povo, que
gritou: Tira-O, tira-O, crucifica-O; os príncipes dos sacerdotes, e
escribas que falsamente O acusaram; e, para subirmos mais alto, o
primeiro homem, e toda a sua posteridade, que com os seus
pecados originaram a paixão de Cristo, e assim o Senhor na Cruz
pediu perdão para todos os Seus inimigos, e no número destes
éramos incluídos também nós, segundo o dizer do Apóstolo:
“Sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de
seu Filho” (Rm 5, 10)
Por isso todos nós, mesmo antes de virmos, a este mundo, somos
incluídos naquele sacratíssimo Memento, com que, por assim dizer,
Cristo, Sumo Pontífice, orou naquela sacrossantíssima Missa, que
celebrou no altar da Cruz.
«Como retribuirás, minha alma, ao Senhor por tantas mercês que
Lhe deves mesmo antes da tua existência? Viu o Senhor de
piedade, que em algum tempo tu farias parte dos Seus inimigos; e
sem tu O buscares, nem Lhe pedires, por ti pediu a seu Pai, para
que te não fosse imputada a astúcia. Não seria justo que por isto tu
te não esquecesses nunca de tão amável protetor, e que fizesses,
quanto as tuas forças permitissem, para que nem uma só ocasião
passasse, sem deixares de O servir? Não devias também em vista
de um tão sublime exemplo aprender não só a perdoar de boa
mente aos teus inimigos e orar por eles, mas também a incentivar
os outros, quanto te for possível, a fazerem o mesmo?»
Não há dúvida de que assim deve ser, e isto, desejo eu e professo
cumprir dando-me para tamanha empresa os auxílios da sua
piedade aquele que tão heroico exemplo me deu.

Não sabem o que fazem. Para que a Sua intercessão parecesse


razoável, atenua ou desculpa Cristo do modo, por que pode o delito
dos seus inimigos. Não podia certamente desculpar nem a injustiça
em Pilatos, nem a crueldade nos soldados, nem a inveja nos
príncipes dos sacerdotes, nem astúcia e ingratidão no povo, nem os
falsos testemunhos nos perjuros; e por isso só restava dar desculpa
a todos pela ignorância; certamente, pois, como diz o Apóstolo
(1Cor 2), se eles O conheceram, nunca crucificariam o Senhor da
Glória: mas, posto que nem Pilatos, nem os príncipes dos
sacerdotes, nem o povo, nem os executores, conhecessem que
Cristo era o Rei da Glória; conheceu Pilatos, que Ele era um homem
justo e santo, e, que por isso lhe tinha sido entregue por inveja pelos
príncipes dos sacerdotes; e sabiam os príncipes dos sacerdotes,
que Ele era sem dúvida o Cristo, prometido na lei, como diz Santo
Tomás (1), pois nem podiam negar, nem negavam, que Ele fazia
muitos milagres, que os Profetas tinham anunciado que o Messias
havia de fazer. Conheceu finalmente o povo, que Cristo era
inocentemente condenado, pois bem claramente lhe disse Pilatos
em alta voz:
“Não acho nele crime algum. (…) Eu sou inocente do sangue deste
justo” (Lc 23; Mt 27)
Não obstante, pois, não terem conhecido nem os judeus, nem os
príncipes, nem a gente do povo que Cristo era o Senhor da Glória,
contudo, se a malícia lhes não tivesse obcecado os corações,
podiam conhecê-lO. Assim o diz São João:

“Mas, sendo tantos os milagres que fizera em sua presença, não


criam nEle, porque Isaías disse: Obceca o coração deste povo, e
ensurdece-lhe os ouvidos, para que, tendo olhos, não veja, e tendo
orelhas, não ouça, e se converta, e eu o sare” (Jo 12, 37-40)
Nem aquela cegueira desculpa o cego, porque é voluntária, e
concomitante, e não precedente: assim todos aqueles que pecam
por malícia, laboram sempre em alguma ignorância, que os não
desculpamos, porque não é precedente, mas concomitante. Bem,
pois diz o sábio: Erram os que obram mal (Pr 24), e bem diz
também o filósofo: Todo o mal é ignorante, e de todos os pecadores
bem se pode dizer: Não sabem o que fazem, porque ninguém pode
querer o mal, encarando-o como mal, pois o objeto da vontade não
é coisa boa ou má, mas somente boa, e por isso, os que preferem o
mal, sempre o preferem o mal, sempre o preferem debaixo da vista
do bem, que se lhes representa, mais ainda: debaixo da aparência
do maior bem, que então se possa conseguir. Isto é originado da
perturbação da parte mais fraca, que obscurece a razão, e faz com
que ela não veja senão aquele pequeno bem, que está no objeto do
apetite; pois, quem delibera-se a cometer um adultério, ou a fazer
um furto, nunca tal faria se não atendesse ao bem ou do deleite, ou
da injustiça, e não fechasse os olhos da alma ao mal da torpeza
daquele ou da injustiça deste. Por isso, todo o que peca se
assemelha aquele, que desejando precipitar-se num rio, fecha os
olhos antes de se atirar a ele, e só depois deles fechados se
arremessa.
Do mesmo modo todo o que obra mal, aborrece o esclarecimento da
razão, e labora em ignorância voluntária, que não desculpa, por isso
mesmo que é voluntária. Mas, se tal ignorância não desculpa, como
é que o Senhor diz: Perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem? A
isto se responde, que aquelas palavras podem entender-se em
primeiro lugar a respeito dos crucificantes, os quais são prováveis
que ignorassem completamente, não só a divindade de Cristo, mas
também a Sua inocência; e que só fizeram o que fizeram em
cumprimento do seu ofício: e a favor destes com toda a verdade
disse o Senhor:
“Meu Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”
Em segundo lugar, se elas se entenderem a respeito de nós, que
ainda não existíamos, ou a muitos pecadores ausentes, que
certamente ignoravam o que então se estava passando em
Jerusalém, com a mesma verdade disse também o Senhor:

“Não sabem o que fazem”


Se finalmente se entenderem em relação ao que presenciavam
aquele ato, e sabiam que Cristo era o Messias, ou não ignoravam
que era um homem inocente, há-se confessar-se, que a caridade de
Cristo foi tão intensa, que quis atenuar do modo, porque pôde, o
malefício dos seus inimigos, pois, ainda que aquela ignorância por si
só não possa ter desculpa, com tudo algum motivo parece ter, posto
que não de muito peso, pois muito mais grave seria o seu malefício,
se neles se não dessem absolutamente ignorância nenhuma, e
ainda que o Senhor não ignorava que aquela desculpa não era
senão uma sombra dela, quis apesar disso empregá-la, para nós
ficarmos conhecendo a Sua benevolência para com os pecadores, e
quão gostosamente, mesmo a favor de Caifás e Pilatos, de melhor
desculpa se aproveitaria se melhor e mais conveniente se pudesse
excogitar-se.

Referências:

(1) In Coment. ad 2. c. prioris ad Corinthios

Capítulo II.

Do primeiro fruto da primeira palavra proferida na Cruz


Explicamos, qual seja a inteligência da primeira palavra, que Cristo
proferiu na Cruz. Agora, meditando, faremos por colher daquela
palavra alguns frutos, e estes preciosos, e de muita utilidade para
nós e para todos. Primeiro que tudo desta primeira parte do sermão,
que Cristo pregou na cadeira da Cruz, aprendemos que a Sua
caridade é muito mais ardente, do que nós podemos conhecer, ou
imaginar, e é por isto, que o Apóstolo escrevendo aos Efésios, lhe
diz:

“E conhecer também a caridade de Cristo, que excede todo o


entendimento” (Ef 3, 19)
Com esta passagem da sua epístola dá ao Apóstolo a conhecer,
que nós pelo mistério da Cruz podemos saber que a grandeza da
caridade de Cristo é tamanha, que excede todo o saber humano,
por ser maior do que a força da nossa inteligência pode
compreender, pois nós, quando sofremos alguma grande dor, ou
dos olhos, ou dos dentes, ou da cabeça, ou de outra alguma parte,
tanto dela nos deixamos dominar, que a mais nada damos atenção;
e por isso nem recebemos amigos, que venham visitar-nos, nem
outros indivíduos, que por diversos motivos nos queiram
falar. Cristo, crucificado, tinha na cabeça uma coroa de espinhos,
como bem claramente dizem os antiquíssimos escritores, Tertuliano,
latino, no seu livro contra os Judeus (1) e Orígenes, grego, no seu
Tratado sobre Mateus (2) não podia por isso nem encostar, nem
chegar a cabeça à Cruz, sem ter de sofrer. Suas mãos e pés
estavam traspassados de cravos, que faziam sofrer ao Senhor
acerbíssimas e contínuas dores. Seu corpo, nu e fatigado de
prolongada flagelação, e muito andar, exposto à ignomínia e ao frio,
e dilatando com o Seu peso as chagas das mãos e dos pés com
desmedido e perpétuo tormento, causava ao piedoso Senhor muitas
dores e quase muitas cruzes ao mesmo tempo; e não obstante tudo
isto,ó caridade sem dúvida incompreensível! Despregando todos
aqueles tormentos como se nada sofresse, e dando-Lhe só cuidado
a salvação dos Seus inimigos, e com o desejo de desviar deles o
perigo eminente clama a seu Pai:

“Meu Pai perdoa-lhes”


Que faria Cristo, se aqueles malvados sofressem uma perseguição
injusta, e não a exercessem? Se fossem Seus amigos, Seus
parentes, Seus filhos; não inimigos, não traidores, não
perversíssimos parricidas? Sim, Benigníssimo Jesus, a Tua caridade
é incompreensível ao saber do homem; pois vejo o Teu coração no
meio de tamanha tempestade de injúrias e sofrimentos, como um
rochedo no meio do mar, continuamente batido de todos os lados
pelas ondas, e apesar disto imóvel e tranqüilo. Estás vendo os Teus
cruéis inimigos que, depois de te fazerem tantos ferimentos mortais,
insultam Tua resignação, e se alegram pelo mal que Te fizeram;
estás vendo, torno a dizer, não como inimigos, os Teus ferozes
inimigos, mas como um pai os seus filhinhos a chorarem, ou como
um médico os seus doentes em delírio pela gravidade da moléstia,
por isso não Te iras, mas compadeceste, e a Teu Onipotente Pai, os
recomendas para serem medicados e salvos. Tal é, pois a força da
verdadeira caridade, estar em paz com todos; não julgar ninguém
inimigo; e até viver em paz com aqueles, que nos odeiam; e é por
isto, que no Cântico do amor se diz do poder da perfeita caridade:

“A água, posto que em grande abundância, não pôde extinguir a


caridade; e nem mesmo rios poderão submergi-la” (Ct 8, 7)
A água em grande abundância são as muitas paixões, que as
maldades espirituais, como tempestades do inferno, fizeram chover
sobre Cristo por meio dos judeus e gentios, que representam
nuvens carregadas de ódios: porém este diluvio d’águas, isto é, de
tormentos, não pôde extinguir o incêndio da caridade que estava
ateado no peito de Cristo: por isso a sua caridade sobressaía
naquele dilúvio de muitas águas, e, apesar delas, ardia, dizendo:

“Meu Pai, perdoa-lhes”


Nem somente aquela muita água não pôde extinguir a caridade de
Cristo; mas nem mesmo depois rios de perseguições puderam
apagar a caridade dos membros de Cristo. Por isso passado pouco
tempo, a caridade verdadeiramente cristã, que ardia no peito de
Santo Estevão, não pôde ser extinta pela chuva de pedras, mas
mais ainda brilhou, e, clamando disse:

“Senhor não lhes impute este pecado” (At 7, 60)


Depois a perfeita e invencível caridade de Cristo, propagando-se em
muitos milhares de santos Mártires e Confessores, de tal modo
combateu contra rios de perseguidores, tanto invisíveis, como
visíveis, que em verdade se pôde dizer, que nem rios tormentos
terão consumação dos séculos a força de a extinguirem. Agora;
subindo da humanidade de Cristo, a Sua divindade, grande foi a
Sua caridade para com os que O crucificaram; porém maior, foi para
com eles, e depois, será até o fim do mundo a caridade de Cristo
Deus, de seu Pai, e do Espírito Santo, para com os homens, que
são inimigos do mesmo Deus, e que, se pudessem, do Céu O
expulsariam, crucificariam, e fariam morrer. Quem poderá
compreender a caridade de Deus para com os homens, ingratos e
maus? (2Pd 2). Aos anjos, que pecaram, nem perdoou, nem
concedeu o arrependimento; e sofre muitas vezes com paciência os
homens, pecadores, e blasfemos, e que desertam para o diabo,
inimigo de Deus: faz ainda mais do que isto; alimenta-os, sustenta-
os, protege-os, e como que os traz nos braços: pois nEle vivemos,
nEle nos movemos, e nEle estamos como diz o Apóstolo: e não só
os bons e justos, mas também os ingratos e perversos como o
Senhor diz em São Lucas (Lc 6 ): e não lhes faz só isto o nosso
Bom Deus; muitas vezes os enche de benefícios, dá-lhes o talento,
concede-lhes a riqueza, sobe-os aos cargos honoríficos, exalta-os
até o trono; entretanto, pacientemente está a espera, que voltem do
caminho da iniquidade e da perdição.

Pondo de parte o mais, que exigiria um discurso interminável, se


quiséssemos mencionar tudo quanto pode dizer-se da caridade de
Deus para com os maus, e inimigos da Majestade Divina,
consideremos somente o benefício de Cristo, de que agora
tratamos. Não amou porventura Deus o Mundo até lhe dar O seu
Filho unigênito? (Jo 3, 16). O Mundo é inimigo de Deus; pois está
posto no maligno, como diz São João (1Jo 5). E se alguém ama o
mundo não há nele o amor do Pai, como ele também diz (1Jo 2). A
amizade deste Mundo, é inimiga de Deus; e todo aquele que quiser
ser amigo deste século, se constitui inimigo de Deus, como escreve
São Tiago (Tg 4, 4). Deus, pois amando o mundo, amou o Seu
inimigo, mas para torná-lo Seu amigo; pois para isso lhe enviou o
seu Filho, que é o Príncipe da paz (Is 9), para por Ele o mundo ser
reconciliado com Deus; e foi por isso, que se no nascimento de
Cristo os Anjos cantaram Glória a Deus nas alturas e paz na
terra (Lc 2). Amou Deus o mundo, Seu inimigo, para por meio de
Cristo lhe oferecer reconciliação, e para que, reconciliado, ele
evitasse o castigo que merecia. O mundo não recebeu Cristo; fez
maior a sua culpa; insurgiu-se contra o Medianeiro, a quem Deus
inspirou que pagasse malefícios com benefícios, e rogasse pelos
seus perseguidores: rogou, e foi atendido pela sua reverência (Hb
5). A paciência de Deus esteve à espera que o mundo fizesse
penitência em virtude da pregação dos Apóstolos, os que a fizeram,
obtiveram o perdão; porém os outros foram exterminados por justo
juízo de Deus, depois de muito tempo lhes ter esperado pelo seu
arrependimento.
Sem dúvida, pois, desta primeira palavra de Cristo aprendemos,
que a Sua caridade excede a compreensão humana, e que
também a excede a caridade do Pai, que assim amou o mundo,
que lhe deu o seu Filho unigênito, para que todo o que crê nEle,
não pereça; mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16).

Referências:

(1) Cap. 13

(2) Tract. 35
Capítulo III.

Do segundo fruto da mesma palavra proferida por Cristo na Cruz

O segundo fruto, e na verdade muito salutífero para quantos dele


provarem, será aprendermos a perdoar facilmente as injúrias, e
a fazermos assim de inimigos amigos. Para disto nos
convencermos, deveria ser razão bastante o exemplo de Cristo e de
Deus: pois se Cristo perdoou aos que O crucificaram, e pediu por
eles, por que não há de fazê-lo o cristão? Se Deus, Criador, que
podia, como Senhor e Juiz, castigar imediatamente os pecadores,
espera que eles se arrependam, e os convida para a reconciliação,
pronto a perdoar a quem Lhe ofendeu Sua Majestade; porque não
há de perdoar a criatura? A isto se há de acrescentar que o perdão
de uma injúria nunca fica sem grande prêmio. Na história da vida e
morte de Santo Engelberto, Arcebispo de Colônia, se lê, que, tendo-
o os seus inimigos assassinado numa jornada, e ele em seu
coração dissesse: Meu Pai, perdoa-lhes, dele se revelara, que só
por aquela sua rogativa, de que Deus sumamente se agradou, não
só a sua alma foi imediatamente levada ao Céu pelos Anjos, mas
até colocada entre os coros dos Mártires, recebeu a palma e coroa
do martírio, e foi assinalada por muitos milagres (1).
Oh! Se os cristãos soubessem, quão facilmente podiam, se
quisessem conseguir a riqueza de tesouros incomparáveis; e
quão ilustres títulos de honra e glória podiam alcançar,
resolvendo-se a serem senhores das suas paixões, e a
desprezarem generosamente pequenas ofensas; não seriam
certamente tão desumanos e duros no perdão e sofrimento às
injúrias. Mas, dir-se-á, parece diametralmente oposto ao Direito
natural deixar-se alguém deprimir injustamente, e ofender por
palavras ou por obras; pois vemos que os brutos, unicamente
levados pelo instinto, acometem as feras, suas inimigas, logo que as
vêem e a dente ou a coices as matam; e em nós mesmos nós
experimentamos, quando casualmente nos encontramos com algum
nosso inimigo, que o sangue começa logo a ferver-nos,
desenvolvendo-se imediatamente o desejo da vingança. Engana-se
completamente, quem assim raciocina, confundindo a justa defesa
com a injusta vingança. A justa defesa não pode ser censurada; e é
esta a que a mesma natureza ensina repelir a força com a força;
mas já assim não é a vingança de uma injúria que se nos faz.
Ninguém pode proibir-nos de não querermos ser injuriados; porém,
que nos vinguemos das injúrias, proíbe-o a lei de Deus.

O castigo das injúrias não pertence a particulares, mas aos


magistrados; e, porque Deus é o Rei dos Reis, é que Ele diz,
clamando:

“A mim pertence à vingança: eu retribuirei” (Dt 32; Rm 12)


A causa porque as feras atacam naturalmente as suas inimigas
provêm de que são feras, e não podem por isso mesmo discernir
entre natureza e vício da natureza; porém os homens, dotados de
razão, devem distinguir a natureza ou pessoa, que Deus criou boa,
do vício ou pecado, que é mau, e não provém de Deus. Por isto,
quem é injuriado, tem obrigação de amar a pessoa, e aborrecer a
injúria; de se compadecer mais de quem o injuriou do que de lhe
ficar com má vontade, imitando os médicos, que amam os seus
doentes, e por isso com todo o desvelo os curam, aborrecendo só a
moléstia, e empregando, para a debelarem, todos os recursos da
sua arte. É por isto, que Cristo, o Mestre e Médico das almas,
ensinou, dizendo:

“Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos tem ódio; e orai
pelos que vos perseguem, e caluniam” (Mt 5, 44)
Cristo, nosso Mestre, não se pareceu com os Escribas e Fariseus,
que, sentados na cadeira de Moisés, ensinavam o que não
praticavam (Mt 23); mas, sentado na cadeira da Santa Cruz,
praticou o que ensinava; pois amou os Seus inimigos e orou por
eles, dizendo:
“Meu Pai, perdoa-lhes; pois não sabem o que fazem”
A causa, por que também aos homens começa a ferver o sangue,
quando vêem as pessoas que alguma injúria lhes fizeram, é porque
não aprendeu a sujeitar à razão o ímpeto da parte mais fraca, em
que nós não diferimos dos brutos. Os que são espirituais e já sabem
dominar a rebelião do corpo, não se mostram coléricos com os seus
inimigos, mas compadecem-se deles e diligenciam por meio de
obséquios atraí-los à paz e concórdia.

Mas isto se dirá, é demasiadamente difícil, principalmente para,


quem teve nascimento nobre e quer conservar a nobreza do seu
berço. É o contrário, é fácil, porque o jugo, de Cristo, que impôs este
preceito aos seus sectários, é suave e leve, como testificam os
Evangelhos (Mt 11), e os seus mandados não são custosos, como
diz São João (1Jo 5). O parecerem-nos custosos e duros provêm de
que a caridade de Deus em nós é pouca, ou nenhuma; pois para a
caridade não há dificuldades, como diz o Apóstolo:

“A caridade é paciente; é benigna, tudo tolera, tudo crê, tudo espera


e tudo sofre” (1Cor 13)
Não foi só Cristo, quem amou os Seus inimigos; apesar de que
neste particular é superior a todos, pois na lei da natureza o Santo
Patriarca José mostrou extremoso amor aos que o tinham vendido
(Gn 45), e na lei escrita Davi sofreu com a maior paciência Saul, seu
inimigo, que muito tempo procurou mata-lo (1Rs 4), e podendo por
muitas vezes tirar-lhes a vida, nunca o quis fazer. Na lei da graça
segui o exemplo de Cristo o Protomártir Santo Estevão, que quando
o estavam apedrejando, orava, dizia: Senhor, não lhes imputes este
pecado (At 7); e São Tiago Apóstolo, Bispo de Jerusalém, tendo-o
os judeus precipitado de uma altura, e quase a expirar,
exclamava: Senhor, perdoai-lhes, porque não sabem o que
fazem (2); e o Apóstolo São Paulo de si e dos seus coapóstolos, diz:
“Amaldiçoam-nos, e bendizemos; perseguem-nos, e sofremos;
somos blasfemados, e rogamos” (1Cor 4, 12)
Além disto muitos mártires, e inumeráveis outros, seguindo o
exemplo de Cristo, cumpriram facilmente este preceito; mas ainda
hoje alguém diz — não nego, que se deve perdoar aos inimigos,
mas há seu tempo, quando a impressão da injúria já tiver
desaparecido, e a alma tiver voltado a si da agitação em que se
achava. — Mas se, entretanto, que não perdoas for deste para o
outro Mundo, e achando-te lá sem a veste da caridade, ouvires:

“Como entraste aqui, não tendo vestido nupcial?” (Mt 22, 12)
Não ficará então, sem poderes articular nem uma só palavra, e não
ouvirás a sentença do Senhor:

“Atai-o de pés e mãos e lançai-o nas trevas exteriores: aí haverá


choro e ranger de dentes?”
Porque te não resolves antes a imitar desveladamente o exemplo do
teu Senhor, que no mesmo tempo em que estava sendo injuriado, e
em que de Suas mãos e pés corria o sangue tépido, e todo o Seu
corpo era atormentado com dores atrocíssimas, dizia a seu Pai:

“Meu Pai perdoe-lhes?”


É este o verdadeiro e único Mestre, de quem deve aprender quem
não quiser errar. Dele, disse do Céu seu Pai:

“Ouvi-o” (Mt 17, 5)


Nele acham-se todos os tesouros da sapiência e sabedoria de
Deus. Se tivesses consultado Salomão, sem dúvida teria seguido
bem confiadamente o seu conselho: pois mais sábio, do que
Salomão é Cristo (Mt 12, 42). Estou, porém ouvindo, não sei quem,
replicando-me, a dizer: — Se pagamos o mal com o bem, a injúria
com o benefício, o ultraje com a caridade, tornar-se-ão os maus
mais insolentes, os facinorosos mais audazes; serão oprimidos os
justos, e a verdade será espezinhada. Não, é assim; pois, como diz
o Sábio, boas palavras desarmam a ira (Pr 15); e não poucas vezes
a paciência do justo maravilhou o seu perseguidor, e de inimigo que
até ali era, o tornou amicíssimo: nem faltam no mundo magistrados,
nem reis, nem príncipes, a quem está incumbido o castigar os
delinquentes pela forma que as leis prescrevem, e providenciar para
que os bons não sejam inquietados no seu viver sossegado e
pacífico e, quando alguma vez em alguma parte a justiça dos
homens deixasse de cumprir o seu dever, está sempre vigilante a
Providência de Deus, que não deixará nunca nem o mau sem
castigo, nem o bom sem prêmio, e, que por um modo admirável faz
com que os maus, quando julgam que deprimem os justos os
exaltem e engrandeçam. Assim o diz São Leão no sermão de São
Lourenço:

“Cevaste perseguidor, a tua crueldade, contra o Mártir, cevaste,


engrandeceste o seu triunfo, agravando o seu tormento. Quanto não
concorreu, pois para glória do vencedor o teu talento,
transformando-se em aplauso seu triunfo os instrumentos do seu
suplício?
Isto mesmo pode dizer de todos os mártires, e também dos antigos
santos: nenhuma outra coisa, pois mais ilustrou e engrandeceu o
Patriarca José, do que a perseguição de seus irmãos, que o
vendendo aos Madianitas pela inveja que lhe tinham foram à causa
dele vir a ser o principal de todo o Egito, e deles mesmos (Gn 37).
Deixando porém isto, digamos em suma, a quão grandes danos se
sujeitam os que, para fugirem a uma sombra de desonra entre os
homens, pretendem obstinadamente vingar as injúrias, que seus
inimigos lhes fizeram.

Primeiramente fazem o papel de néscios, querendo evitar um


mal menor com um maior; pois é princípio sabido de todos, e
declarado pelo Apóstolo, que diz: Não se deve praticar o mal, para
dele vir o bem (Rm 8): e do mesmo modo também não se deve
fazer um mal maior, para com ele evitar um menor. Quem recebe
a injúria, sofre: quem se vinga, peca; e é, sem comparação, maior o
mal da culpa, do que o do sofrimento; pois o sofrimento torna o
homem digno de compaixão, mas não o torna mal; a culpa torna-o
digno de compaixão e mau juntamente: o sofrimento priva-o de um
bem temporal; a culpa priva-o de um bem temporal e do eterno.
Assim, o que, querendo remediar o mal do sofrimento, cai no mal da
culpa, assemelha-se àquele que, para calçar um sapato,
demasiadamente apertado, cortasse parte do pé: o que seria
manifesta loucura.
Não há, porém, quem nas coisas temporais leve a demência a tal
ponto; mas encontra-se, quem, completamente obcecado, não
receia ofender gravissimamente a Deus, para evitar, como já disse,
uma sombra de desonra mundana, ou para conservar um fumo de
honra entre os homens. Quem assim faz cai na ira e no ódio de
Deus; e por isso, se não emendar sem perda de tempo, fazendo
sincera penitência, será condenado a perpétua infâmia, e suplício,
perdendo para sempre a glória e a honra.

Em segundo lugar faz, quem se vinga um dos maiores serviços ao


diabo e aos seus anjos, que incitaram os inimigos dos vingativos, a
fazerem-lhes injúrias com o fim de se originarem entre eles
rixas e inimizades. Quão ignominioso, porém seja fazer antes a
vontade, ao ferocíssimo inimigo do gênero humano, do que a Cristo,
deixo-o ao juízo e consideração dos piedosos. Além dás razões que
ficam expostas acontece não raras vezes, que, quem pretende
vingar-se de uma injúria, ou fere gravemente ou mata o seu inimigo,
e ou por sentença do imperante é justiçado, sendo-lhe confiscados
os seus bens ou se vê obrigado a expatriar-se, ficando ele, seus
filhos, e toda a sua família reduzidos a passarem uma vida
amargurada. Assim o diabo folga e ilude os que preferem serem
escravos da falsa honra a ser servos de Cristo, o melhor dos reis, e
co-herdeiros do Seu ditosíssimo reino. Por isto, sendo tão grande e
tão grave o dano, que espera os néscios, que contra o preceito do
Senhor recusam reconciliar-se com os seus inimigos; todos os que
não são néscios ouçam e sigam Cristo, Mestre de todos, que na
Cruz praticou o que tinha ensinado no Evangelho (Mt 5; Lc 23).

Referências:
(1) Apud. Sur. die 7 Novembris.

(2) Euseb. Hist. lib. 2. Cap. 22

Capítulo IV.
“Amém. Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”.
Explica-se literalmente a segunda palavra

Explica-se literalmente a segunda palavra de


Cristo na Cruz
A segunda palavra ou sentença proferida por Cristo na Cruz,
segundo, testifica São Lucas foi à magnifica promessa a um dos
dois ladrões também com Ele crucificados:

“Amém. Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 39)


Foi a origem desta segunda palavra haverem sido dois ladrões
condenados ao mesmo suplício da Cruz, e estar cada um pendente
na sua, um à direita, outro à esquerda de Cristo, e agravar um deles
os seus passados crimes, injuriando o Redentor, dizendo-Lhe,
arguindo-o de nada poder:

“Se és Cristo livra-te dos tormentos, e a nós também”


Ora São Marcos e São Mateus dizem (Mt 27; Mc 15), que os
ladrões, crucificados com Cristo lhe exprobravam o seu pouco
poder, porém o que se deve entender, é, que aqueles Evangelistas
empregaram o número plural por singular; o que é freqüente na
Sagrada Escritura, como observou Santo Agostinho nos Livros da
uniformidade dos Evangelistas (1): pois o Apóstolo escrevendo aos
hebreus a respeito dos profetas, diz (Hb 11, 33-37): Açaimaram as
bocas dos leões; foram apedrejados, foram serrados, e apesar disto,
quem açaimou as bocas dos leões, foi só Daniel; só Jeremias foi
apedrejado; e serrado só Isaías. A isto se deve acrescentar, que
São Mateus e São Marcos não dizem tão claramente que ambos os
ladrões insultaram Cristo, como São Lucas explicitamente escreve
(Lc 23, 39): Um dos ladrões que com ele foram crucificados, lhe
dirigia impropérios; acrescendo mais, que não há motivo nenhum
para o mesmo ladrão ora O insultasse, ora O louvasse. O dizerem
alguns, que o ladrão, que antes tinha blasfemado de Cristo; depois
arrependido, quando lhe ouviu dizer: Meu Pai perdoa-lhes, pois não
sabem o que fazem, O louvara, repugna manifestamente ao
Evangelho; pois São Lucas diz, que Cristo rogara a seu Pai pelos
seus perseguidores antes das blasfêmias do mau ladrão. Deve-se
por isto mesmo seguir a opinião de Santo Ambrósio (2), e de Santo
Agostinho (3), que entendem que dos dois ladroes só um
blasfemara, e que o outro louvara e defendera Cristo; pois ao
blasfemo disse o que o não era:
“Nem ainda tu temes a Deus, estando no mesmo suplício”
Este ladrão, pelo consórcio da Cruz de Cristo, e pela luz Divina, que
começava a alumiá-lo, procura com empenho corrigir seu irmão e
fazê-lo voltar ao verdadeiro caminho: e deve ser este o sentido das
suas palavras:

“Tu quiseste imitar os judeus nas suas blasfêmias; porém eles ainda
não tiveram lição, que os ensinasse a temerem o julgamento de
Deus; pois estão persuadidos que venceram, e exultam com a sua
vitória, vendo Cristo cravado na Cruz, e julgando-se por isto livre e
desassombrado; e tu que pelos crimes que cometestes, estás
suspenso de uma cruz, e perto do termo da vida, não temes a
Deus? Para que amontoas culpas sobre culpas?”
Depois, recebendo o prêmio daquela boa ação, e ajudado da graça
de Deus, confessa os seus pecados, e proclama a inocência de
Cristo, dizendo:

“Quanto a nós o castigo que na cruz estamos sofrendo, é justo;


porque pagamos o que devíamos: porém este não fez mal nenhum”
Ultimamente aumentando-se-lhe a luz da graça, acrescenta:
“Senhor, lembra-te de mim, quando estiveres no Teu reino”
Admirável sem dúvida foi a graça do Espírito Santo, que alumiou o
coração deste ladrão. Pedro, Apóstolo, nega; o ladrão, cravado na
Cruz, confessa (Jo 18): os discípulos, indo para Emaús, dizem: “Ora
nós esperávamos” (Lc 24); este confiadamente falta,
dizendo: Lembra-te de mim quando estiver no teu reino (Jo 20);
Tomé, Apóstolo, diz, que só acreditará que Cristo ressuscitou,
quando O vir, ressuscitado; o ladrão, pendente da Cruz, vendo
Cristo também crucificado, não duvida de que Ele há de reinar
depois de morrer. Quem tinha ensinado a este ladrão tão altos
mistérios? Chama Senhor a quem ele via nu, ferido, sofrendo,
exposto à irrisão e desprezo de todos, e pendente como ele da
Cruz; e dEle diz sem duvidar, que depois de morrer, havia de ir para
o seu reino.
Disto entendemos que ele não imaginava que o reino de Cristo
havia de ser temporal, como os judeus esperam; mas sim, que havia
de ser Rei eterno no Céu, depois de Sua morte. De onde teria ele
aprendido estes tão sublimes sacramentos? De ninguém
certamente, senão do Espírito da verdade, que nas bênçãos de
doçura o predestinou (Sl 20). Cristo disse depois da Sua
ressurreição aos Apóstolos: Assim está escrito e assim convém que
Cristo sofresse, e assim entrasse na sua gloria (Lc 24); porém o
ladrão antecipou-se de um modo admirável neste conhecimento, e
O declarou, quando em, Cristo não havia semelhança nenhuma de
Rei; pois os reis reinam, enquanto vivem; e com a vida se lhes
acaba o reinado; e o ladrão claramente disse, que Cristo depois da
Sua morte havia de ir para o Seu reino, o que o Senhor expôs numa
parábola, quando disse:
“Um homem de grande nascimento foi a um país distante, a tomar
posse de um reino, para depois voltar” (Lc 19)
Isto disse o Senhor nas vésperas da Sua paixão, dando a entender,
que pela morte iria a uma remota região, isto é à outra vida, ou ao
Céu, que fica distantíssimo da terra: e que ia a tomar posse do
maior dos reinos, do reino sempiterno; e que depois voltaria no dia
do Juízo, a dar a cada um o que nesta vida tivesse merecido: ou
prêmio ou castigo.
Deste reino de Cristo, de que depois da Sua morte Ele havia de
tomar posse imediatamente, diz o sensato ladrão:

“Lembra-te de mim quando estiveres no Teu reino”


Não era, porém Cristo, Nosso Senhor, já Rei antes da Sua morte?
Era sem dúvida, pois era por isto que os Magos clamavam: Onde
está o que nasceu Rei dos Judeus? (Mt 2) e o mesmo Cristo disse a
Pilatos: Tu o dizes que eu sou Rei, eu para isso nasci, e ao que vim
ao mundo, foi para dar testemunho da verdade (Jo 18); porém,
aprazer disso era Rei nesse Mundo, como um estrangeiro entre
inimigos; e por isso não era reconhecido como tal senão por poucos,
sendo desprezado e maltratado por muitos, é por isso disse na
parábola supracitada, que havia de ir a um país remoto, tomar
posse do seu reino, e não disse, adquiri-lo, granjeá-lo, como se dele
não fosse; mas tomar posse do que lhe pertencia, e voltar depois; e
o ladrão sensato disse: — quando estiveres no teu reino.
Certamente o reino de Cristo nesta passagem não se entende ser o
poder real ou senhorio; pois este o teve Ele sempre desde o
princípio, segundo aquilo do salmo: Eu fui por ele constituído Rei
sobre o seu santo monte Sião (Sl 2); e em outra parte: Dominará de
mar a mar, e desde o rio até aos confins da terra (Sl 71); e Isaías
diz: Foi-nos dado um menino, nasceu-nos um filho, e o seu
principado foi colocado sobre um dos seus ombros (Is 9); e
Jeremias: Eu suscitarei a raça justa de Davi, e reinará um Rei, e
será sábio, administrará no Mundo justiça reta (Jr 23); e Zacarias:
“Exulta muito, filha de Sião: enche-te de jubilo, filha de Jerusalém:
está a chegar o teu Rei justo, o teu Salvador, virá pobre e montado
sobre uma jumenta e sobre um jumentinho, filho dela” (Zc 9)
Não fala, pois, Cristo deste reino na parábola ao reino de que ia
tomar posse, nem dEle fala o bom ladrão, quando diz: Lembra-te de
mim quando estiveres no Teu reino, mas falam ambos da perfeita
felicidade, pela qual o homem é eximido de toda a servidão e
sujeição dos seres criados, e só fica sujeito a Deus ao qual
estar sujeito é reinar, e pelo mesmo Deus é constituído superior
a todas as Suas obras. Este reino, no que diz respeito à felicidade
espiritual possui-o sempre Cristo desde o instante de Sua
conceição: mas quanto ao corpo não o possui de fato, mas só de
direito antes da Sua ressurreição. Enquanto peregrinou no Mundo,
estava sujeito ao cansaço, à fome, à sede, às injúrias, aos
ferimentos e a mesma morte, porém, porque lhe era devida a glória
do corpo, por isso depois da morte entrou na Sua glória, porque sem
dúvida a ela tinha direito. Assim o diz o mesmo Senhor depois da
Sua ressurreição:
“Porventura não importava que Cristo sofresse estas coisas, e que
assim entrasse na sua gloria?” (Lc 24)
Esta glória com verdade se diz que é Sua, porque pode dá-la aos
outros; e por isto é também chamado Rei da Glória, Senhor da
Glória, e Rei dos Reis (Sl 21; 1Cor 2; Ap 19); e Ele mesmo diz aos
Apóstolos: Eu preparo o reino para vós outros (Lc 22), pois nós
podemos receber a glória e o reino, mas não dá-lo; e é por isso que
se nos diz: Entra no gozo do teu Senhor (Mt 25) e não no teu gozo.
É este o reino de que o bom ladrão diz: quando estiveres no Teu
reino. Não se deve passar em silêncio exímias virtudes que brilham
na oração deste santo ladrão, para não nos admirarmos tanto,
quando ouvirmos a resposta, que lhe deu Cristo Nosso
Senhor: Senhor, diz ele, lembrai-Vos de mim quando estiverdes no
Vosso reino. Chama-lhe Senhor, e por este título se confessa servo,
ou antes, escravo compradiço, e reconhece em Cristo o seu
Redentor: diz: Lembrai-Vos de mim, que é uma expressão cheia de
fé, de esperança, de amor, de devoção, de humildade: não diz se
puderes, porque acredita que Ele tudo pode; não diz se for do Teu
agrado, porque tem uma plena confiança na Sua caridade e
piedade; não diz desejo o consórcio do Teu reino, porque a sua
humildade tal não permitia. Finalmente, não pede nada em
particular; mas só diz: Lembrai-Vos de mim, como querendo dizer:
“Se tão somente de mim te dignares lembrar, se para mim quiseres
lançar um olhar da Tua benignidade, isso só me basta, porque
nenhuma dúvida tenho do Teu poder e sabedoria, e deposito
absoluta confiança na Tua compaixão e caridade”
Por último diz: Quando estiveres no Teu reino, para mostrar que não
pedia nenhum dos bens frágeis ou caducos, mas que só desejava
os sempiternos.
Ouçamos agora a resposta de Cristo:

“Amém, te digo que estarás hoje comigo no Paraíso”


Aquele Amém é uma expressão solene, de que Cristo se servia,
quando queria dar à Sua afirmação um cunho de verdade
indubitável. Santo Agostinho (4) não receou dizer, que aquela
palavra é como um juramento, mas não é propriamente juramento:
pois tendo o Senhor dito em São Mateus: Eu, porém vos digo que
absolutamente não jureis, e pouco depois: Mas seja o vosso falar,
sim, não; porque tudo o que d’aqui passa procede do mal (Mt 5),
não é de modo nenhum crível, que o Senhor tenha jurado tantas
vezes, quantas pronunciou Amém, tendo-O empregado muito
freqüentemente: e em São João não só Amém, mas Amém, Amém.
Bem disse, pois, Santo Agostinho, que Amém não é um juramento,
mas como um juramento. Aquela palavra significa – em verdade–; e,
quando alguém diz Em verdade te digo, afirma com seriedade
própria do juramento, por isso Cristo muito bem disse ao ladrão: Em
verdade te digo, isto é, somente afirmo e não juro: pois por três
motivos poderia o ladrão duvidar da promessa de Cristo, se a Sua
afirmativa não fosse tão enérgica; primeiramente em razão da
própria pessoa; que não parecia de maneira nenhuma digna de
tamanha recompensa: quem poderia, pois suspeitar, que um
ladrão, pudesse imediatamente passar de uma cruz para a Bem-
aventurança? Em segundo lugar em relação à pessoa de Cristo,
que fazia a promessa, e, que então parecia reduzido à extrema
pobreza, desvalimento e desgraça, pois poderia o ladrão
raciocinar assim “se este não pôde enquanto vivo prestar alguns
serviços aos seus amigos, como se há poder fazer depois de
morto”; por último em relação à coisa prometida, pois lhe era
prometido o Paraíso, e o Paraíso, segundo a ideia desta palavra
naquele tempo, referia-se não às almas, mas aos corpos, pois por
este nome se entendia entre os hebreus o Paraíso terrestre. Mais
facilmente acreditaria o ladrão, se o Senhor lhe dissesse:
“Hoje estarás comigo no lugar de refrigério com Abraão, Isaac e
Jacó”
Por estes motivos, pois, começou o Senhor por aquelas
palavras “Em verdade te digo”.
Hoje, não lhe disse: — No dia do Juízo, te colocarei a minha direita
com os Justos; — nem — Depois de alguns meses de purgatório te
levarei à consolação; — nem também: — Passados alguns meses
ou dias, te consolarei, — mas disse-lhe: — Hoje, antes que o sol se
ponha, comigo passarás do patíbulo da Cruz para as delícias do
Paraíso. Admirável liberalidade de Cristo; admirável felicidade de
um pecador. Não sem motivo Santo Agostinho no livro da Origem da
Alma (5), seguindo São Cipriano, julga que aquele ladrão pôde
entrar no catálogo dos mártires; e, que por isso sem as penas do
Purgatório passar deste Mundo à Pátria; e, que se pôde dizer mártir;
porque publicamente reconheceu Cristo, quando nem os mesmos
Apóstolos se atreviam a falar nEle; e que por esta sua espontânea
confissão Deus lhe levara em conta de ser martirizado por Cristo a
morte, que com Cristo padeceu.
Aquele “estarás comigo” apesar de lhe não ser prometido mais
nada, seria já para o ladrão um grande prêmio, pois, segundo
escreve Santo Agostinho, onde poderia ele estar mal com Cristo, e
onde bem sem Cristo? (6). Não é, pois pequeno o prêmio, que Ele
prometeu aos que O seguirem, quando disse: Se alguém me serve,
siga-me, e, onde eu estiver, estará também o que me serve (Jo 12),
mas não prometeu ao ladrão unicamente a Sua companhia; pois
acrescentou no Paraíso.
O que aqui significa a palavra Paraíso parece não poder admitir
questão não obstante a dúvida de alguns; pois é certo, que Cristo
naquele dia, depois de morrer, esteve com o corpo no sepulcro, com
a alma nos infernos, assim o diz bem explicitamente o Símbolo da
fé, e é fora de dúvida, que nem ao sepulcro nem aos infernos se
pode dar o nome de Paraíso celeste, nem de Paraíso terrestre. Ao
sepulcro não, porque era ele um lugar estreitíssimo, e só destinado
para receber cadáveres, para não dizer que nele foi só metido o
corpo de Cristo e não o do ladrão, por isto, se ao sepulcro se
pudesse dar o nome de Paraíso, não teria sido cumprida a
promessa: Hoje estarás comigo. Aos infernos não pode também
acomodar-se de modo nenhum o nome de Paraíso, pois ele
significa jardim de delícias, e na verdade no Paraíso terrestre havia
árvores que davam flores e produziam frutos, havia águas
limpíssimas, e era a sua temperatura a mais amena. No Paraíso
celeste havia, e há delícias imortais, dia interminável, habitação dos
bem-aventurados. Nos infernos, mesmo naquela parte onde se
achavam as almas dos Santos Patriarcas, não havia nem luz, nem
amenidade, nem delícias, as almas que lá estavam, não sofriam
tormentos; antes pelo contrário tinham a consolação e a alegria da
esperança da redenção que haviam de ter, e da visita de Cristo, que
lá havia de ir, mas, apesar disso, estavam detidos como escravos
num obscuro cárcere. Assim diz o Apóstolo, expondo o
Profeta: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro (Ef 4; Sl 67); e
Zacarias diz: Tu no sangue, do teu testamento libertaste os teus
prisioneiros do lago, em que não há água (Zc 9); onde aquelas
palavras — os teus prisioneiros — e — do lago em que não há
água, não significam a amenidade do Paraíso, mas um cárcere
obscuro. Por isso o termo Paraíso aqui não significa senão a
felicidade da alma, que consiste, em estar vendo a Deus; pois é
isto verdadeiramente o Paraíso das delícias, não corporal ou local,
porém espiritual e celeste, e é este o motivo, porque ao ladrão que
suplicava, dizendo: Lembra-Te de mim, quando estiveres no Teu
reino, Cristo não respondeu Hoje estarás comigo no meu reino,
mas no Paraíso; porque naquele dia não havia Cristo de estar no
Seu reino, isto é, em perfeita felicidade do corpo e da alma; porém
no dia da ressurreição em que havia de ter um corpo imortal,
impassível, glorioso, e absolutamente livre de toda a escravidão ou
sujeição: nem neste reino havia de ter por companheiro o bom
ladrão até à ressurreição geral do gênero humano e dia de Juízo
final. Pôr isso com toda a verdade e propriedade lhe disse: Hoje
estarás comigo no Paraíso, porque naquele mesmo dia havia de
comunicar não só à alma do bom ladrão, mas também às de todos
os santos, que nos infernos se achavam, glória da visão de Deus,
que Ele tinha recebido desde a Sua conceição; esta é pois a glória
ou felicidade essencial, e o bem principal no Paraíso celeste.
É sem dúvida para admirar a propriedade das palavras de Cristo,
pois não disse: estaremos hoje no Paraíso, ou iremos hoje ao
Paraíso, mas comigo estarás hoje no Paraíso, como se quisesse
dizer —tu estas hoje comigo na Cruz, mas não no Paraíso, onde eu
estou quanto à parte superior da alma, porém daqui a pouco, hoje
mesmo, estarás não só fora da Cruz, mas até dentro do Paraíso.

Referências:

(1) Lib. 3, Cap. 26


(2) In Luc. 23
(3) Lib. 3, do consensu Evang.
(4) Tract. 41 in Joan.
(5) Lib. 1, cap. 9
(6) Tract. 51 in Joan.

Capítulo V.
Do Primeiro fruto da segunda palavra

Da segunda palavra proferida na Cruz, podemos colher alguns


frutos, e frutos excelentes. O primeiro é a consideração da imensa
misericórdia, e liberalidade de Cristo; e quão agradável e
proveitoso seja servi-lO. Cristo, macerado pelas dores, poderia não
atender a súplica do ladrão, porém a Sua caridade antes quis
esquecer-Se dos acerbíssimos tormentos, que estava sofrendo, do
que deixar de prestar atenção àquele miserável pecador, que nEle
confiava. O mesmo Senhor, nem uma só palavra proferiu aos
insultos e injúrias dos sacerdotes e soldados, mas ao clamor
daquele pobre penitente, que o confessava a sua caridade não pode
ficar silenciosa. Às injúrias emudeceu ela, porque é sofredora; à
confissão não, porque é benigna.

Mas que diremos da liberalidade de Cristo? Os que servem os


senhores deste Mundo, muitas vezes, não obstante, os muitos
serviços que lhe prestam, pouco proveito tiram, pois não são poucos
os que, todos os dias estamos vendo, voltarem para suas casas
velhos e quase a pedir, depois de terem passado toda a sua vida
nos palácios dos Príncipes. Cristo, Príncipe, verdadeiramente
generoso e magnífico, nenhuns serviços recebeu deste ladrão
senão algumas boas palavras e bons desejos de O servir, e eis aí
como o remunerou. No mesmo dia primeiramente lhe são
perdoados os seus muitos pecados, que tinha cometido com os
crimes de uma vida inteira, depois é admitido à companhia dos
Príncipes do seu povo, isto é, à companhia dos Patriarcas e
Profetas, finalmente é feito participante da Sua mesa, da Sua
dignidade, da Sua glória, e por isso todos os seus bens. Hoje, lhe
diz o Senhor, estarás comigo no Paraíso; e fez o que disse, sem
demorar a recompensa para o outro dia, pois naquele mesmo, em
que fez a promessa, lhe lançou no regaço remuneração plena,
avantajada, de cogulo, a transbordar (Lc 6). Nem só com este ladrão
foi Cristo tão generoso: dos Apóstolos uns deixaram para O
servirem, os seus barquinhos, outros os seus telônios, outros as
suas casinhas; Ele constituiu-os Príncipes sobre toda Terra,
sujeitando ao seu poder os demônios, as serpentes, e toda a
qualidade de enfermidades (Sl 44; Mt 10). O que por amor de Cristo
der de comer ao pobre ou o vestir, ouvirá no dia do Juízo:
“Tive fome e deste-me de comer, estava nu, e cobriste-me: entra por
isso na posse do reino sempre eterno” (Mt 25)
Finalmente aí tens uma prova da liberalidade do Senhor, (não
falando em outras) e quase incrível, se não fosse uma promessa
feita por Deus:

“Todo aquele que deixar a sua casa, ou seus irmãos, ou suas irmãs,
ou seu pai, ou sua mãe, ou sua mulher, ou seus filhos, ou seus
bens, por causa do meu nome, receberá centuplicado, e possuirá a
vida eterna” (Mt 29)
São Jerônimo (1) e outros sagrados doutores explicam esta
passagem de modo que a significação daquelas palavras é a que
segue — Aquele, que nesta vida deixar por Cristo algum objeto
temporal, receberá remuneração duplicada, e ambas estas
incomparavelmente de maior valor, que a do objeto, que por Cristo
for deixado. Primeiramente receberá nesta vida o gosto espiritual,
ou o espiritual galardão centuplicadamente maior, e de mais preço
do que o do objeto que por Cristo deixar: de sorte que em bom
raciocínio antes quererá quem assim fizer, conservar-se na posse
daquele bem espiritual, do que trocá-lo por bem propriedades
rústicas ou urbanas, ou coisas semelhantes: além disto, como se
aquela paga ou remuneração fosse pequena, ou nenhuma, receberá
aquele feliz mercador no futuro século a vida eterna, ou o conjunto
de todos os bens. Tal é sem dúvida a liberalidade de Cristo, o maior
dos Reis para com aqueles, que deveras se resolveram a segui-lO.
E não são loucos, os que, abandonando Cristo, querem antes fazer-
se escravos das riquezas, da gula, e da luxúria? Dizem, porém os
que não sabem avaliar os tesouros com que Cristo remunera:

«Isso são palavras; porque nós vemos os servos de Cristo


ordinariamente pobres, sujos, desprezados, e tristes; e nunca vimos
o cêntuplo, que tu tanto engrandeces»
É assim; o homem carnal nunca viu o cêntuplo, que Cristo
prometeu, porque não tem os olhos, com que ele se pôde ver, nem
gozou nunca aquele gosto completo, que nasce de uma consciência
pura e do verdadeiro amor de Deus. Vou apresentar um exemplo
pelo qual o espírito carnal possa de algum modo fazer ideia das
delícias e riquezas espirituais. Lê-se no Livro dos homens ilustres da
Ordem de Cister (2), que Arnulfo, pessoa nobre e rica, abandonando
tudo isto, se metera monge naquela Ordem, sendo seu abade São
Bernardo. Deus deu-lhe exercício à sua paciência, principalmente,
pelos fins da vida, com duríssimos flagelos de várias doenças, mas,
quanto mais as dores o atormentavam, mais dizia ele,
gritando: “verdade é tudo quanto disseste, Senhor Jesus”; e
perguntando-lhe os circunstantes porque dizia isto, respondeu:
“O Senhor diz no seu Evangelho, que todo aquele, que deixar as
riquezas e todos os seus bens por amor dEle, receberá nesta vida o
cêntuplo e na outra a bem-aventurança”
É agora que eu compreendo a força desta promessa, e confesso
que estou recebendo o cêntuplo de tudo quanto deixei, pois tão
agradável se me torna a imensa acerbidade desta dor pela
esperança da misericórdia divina, que por ela tenho que não
quereria ver-me livre dela ainda mesmo pelo valor cem vezes
dobrado dos bens terrenos, que deixei; pois sem dúvida o
contentamento espiritual, que ainda não passa de esperança, vale
cem mil vezes mais do que o temporal que atualmente é uma
realidade.

Medite o leitor nestas palavras, e julgue depois quanto vale a


esperança indubitável, divinamente comunicada, da vida eterna, que
dentro em mui pouco tempo se vai gozar.

Referências:

(1) In Comment, ad cap. 29. Mat.


(2) Dist. 3. Exempl. 26

Capítulo VI.
Do Segundo fruto da segunda palavra

É outro fruto da mesma segunda palavra a o conhecimento do


poder da graça de Deus, e da fraqueza da vontade humana, do
qual poderemos aprender que nada há tão proveitoso como ter
muita confiança no auxílio de Deus e desconfiar muito das
próprias forças.

Deseja saber qual é o poder da Sua divina graça? Põe os olhos no


bom ladrão. Tinha ele sido um notável pecador, e neste malíssimo
estado tinha permanecido até o suplício da Cruz, isto é, pouco
menos do que até a morte; e, no perigo iminente de condenação
eterna, não havia ao menos uma pessoa que o aconselhasse, ou o
socorresse; pois, apesar de estar tão próximo do Salvador, contudo
estava ouvindo os Pontífices e os Fariseus que afirmavam que Ele
era um revolucionário, e um ambicioso, que pretendia assenhorear-
se de um reino, que não era Seu; estava ouvindo ao outro ladrão,
seu companheiro, os mesmos impropérios que ele dirigia a Cristo,
não havia ninguém, que a favor de Cristo dissesse nenhuma
palavra, e nem Ele mesmo refutava aquelas blasfêmias e injúrias, e,
não obstante isto, quando aquele ladrão parecia de todo
abandonado para a sua salvação, muito próximo das penas eternas,
e o mais distante, que era possível, da eterna bem-aventurança,
instantaneamente iluminado e convertido pela divina graça,
confessa que Cristo é inocente, é Rei da vida futura, e, como
pregador repreende o seu companheiro, exorta-o a penitência, e
diante de todos se encomenda devota e humildemente a
Cristo. Finalmente opera-se nele tal mudança, que, o que lhe
restava de castigo na Cruz, se lhe converteu em pena de purgatório,
e imediatamente depois da sua morte entrou no gozo do seu
Senhor. Disto ficamos sabendo, que ninguém deve perder a
esperança de se salvar, quando este, que foi trabalhar na vinha
quase à duodécima hora, recebeu paga igual à daqueles que foram
para o trabalho na hora primeira.

Pelo contrário o outro ladrão, para se provar a fraqueza humana,


não se aproveitou nem da tão notável caridade de Cristo, que tão
afetuosamente orava pelos Seus algozes, nem do seu próprio
suplício, nem admoestação e exemplo do seu cúmplice, nem das
trevas extraordinárias, nem do fendimento das pedras, nem do
exemplo daqueles, que, depois de Cristo expirar, se arrependiam.
Tudo isto aconteceu depois do arrependimento do bom ladrão (Lc
23), para ficarmos sabendo, que este sem aqueles auxílios pôde
converter-se; e, que o outro, com todos eles, ou não pôde ou não
quis.

Mas, perguntarás tu, porque inspirou Deus a um a graça da


conversão, e não a inspirou ao outro? Respondo que a graça
suficiente não faltou a nenhum deles; e, que, se um deles se perdeu
se perdeu por sua culpa; e, que se o outro se converteu, se
converteu pela graça de Deus, cooperando, porém o livre arbítrio.
Mas porque não deu Deus a ambos a graça eficaz, a que nenhum
coração resiste apesar da sua dureza? Replicarás tu. Isso é dos
segredos de Deus, os quais nós devemos admirar, sem
pretendermos inquiri-lo, bastando-nos saber, que Ele não falta à
justiça, como diz o Apóstolo (Rm 9) e, que os seus juízos podem ser
ocultos, mas nunca injustos, como diz o Doutor Santo Agostinho (1).
O que mais nos interessa é aprendermos de tais exemplos a não
diferirmos a conversação para o fim da vida; pois se a um aconteceu
achar a graça de Deus na sua última hora, a outro sucedeu
encontrar o seu julgamento. Se alguém, ler a historia, ou observar o
que todos os dias estão acontecendo, saberá, que mui raros tem
sido os que felizmente deste Mundo partiram, tendo passado toda a
sua vida em perdição; e, que, pelo contrário, muitos tem sido, os
que de uma vida tíbia tem sido arrebatados para as penas eternas;
assim como também, que bem pequeno é o numero dos que tendo
vivido bem e santamente, tenham acabado mal; e, que, pelo
contrário, muitos se contam, que depois de uma vida santa e
piedosa dela passaram para a Bem-aventurança. Demasiada é sem
dúvida a audácia e cegueira daqueles, que num objeto de tanta
importância, pois é ou da vida sempiterna ou de sempiternos
suplícios, se atrevem a conservarem-se, mesmo um só dia, em
pecado mortal, quando a cada momento pode acontecer, que
partamos desta vida, depois da qual já não pode haver
arrependimento, nem no Inferno redenção nenhuma.

Referências:

(1) Ep. 105

Capítulo VII.
Do terceiro fruto da segunda palavra
Um terceiro fruto se poderá colher da mesma palavra do Senhor,
advertindo-se, que três foram os Crucificados, no mesmo lugar e na
mesma hora; um inocente, Cristo, outro penitente, o bom ladrão; o
terceiro obstinado, o mau ladrão: ou, se antes quiserem assim, que
foram três os crucificados ao mesmo tempo; Cristo, sempre e
excelentemente santo; um ladrão, sempre e excessivamente mau;
outro ladrão mau numa época da sua vida, e santo na outra. Disto
podemos entender, que não há neste Mundo ninguém, que possa
viver sem cruz; e que baldados são os esforços dos que
confiam, que podem absolutamente escapar-se a ela; e, que
sensatos são os que aceitam a sua cruz da mão do Senhor, e,
que até o fim da vida a levam não só com paciência, mas até
com gosto. Que todos os bons tem a sua cruz, se entende das
palavras do Senhor: “Se alguém quer viver após de mim, negue-se
a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (Mt 16); e em outra
passagem: “O que não leva a sua cruz, e vem em meu seguimento,
não pode ser meu discípulo” (Lc 14). Isto mesmo claramente, o diz o
Apóstolo: “Todos os que querem viver piamente em Jesus Cristo,
padecerão perseguição” (2Tm 3), com o qual concordam os Santos
Padres, gregos e latinos, dos quais por brevidade só citarei dois,
Santo Agostinho no comentário dos salmos (1) diz:
“Esta vida de curta duração é tribulação: se não é tribulação não é
peregrinação: se, porém é peregrinação, ou pouco amas a pátria, ou
sem dúvida te vês em tribulação”
E em outra parte (2):

“Se julgas que ainda não sofres tribulações, ainda não começaste a
ser cristão”
São João Crisóstomo numa homilia aos Antioquenos (3) exprime-se
assim:

“A tribulação é laço indissolúvel da vida do cristão”


O mesmo Doutor (4) diz:
“Não podes dizer, que seja justo, quem viver sem tribulação”
Finalmente a razão prova isto mesmo de modo, que não deixa
dúvida: coisa de natureza contraria não podem existir juntas. O fogo
e a água, enquanto estão separados, estão em sossego: quando se
juntam no mesmo ponto, começa logo a água a lançar fumo, agitar-
se, a fazer ruído até que ou se consome, ou o fogo se apaga.
Contra um mal há um bem, diz o Eclesiástico (33), e contra a morte
a vida. Assim também contra o justo há o pecador. Os justos são
semelhantes ao fogo; brilham, ardem, tendem para o alto, estão
sempre em ação, e tudo quanto fazem, é sempre com eficácia. Os
injustos, pelo contrário, são semelhantes á água, frios, arrastados, e
fazendo lodo em toda a parte. Que admira, pois, que todos os bons
sejam perseguidos pelos maus? Até o fim do Mundo há de estar o
joio misturado com o trigo no mesmo campo, a palha e o grão na
mesma eira, os bons peixes e os que não prestam, na mesma rede;
isto é, os bons e os maus não só no mesmo Mundo, mas até na
mesma igreja; por isso não podem os bons e santos deixar de sofrer
tribulações dos maus e perversos. Mas nem mesmo os maus vivem
neste Mundo sem cruz, porque, ainda que não sofram perseguição
dos bons, sofrem-na de outros como eles, sofrem-na dos próprios
vícios, sofrem-na dos remorsos.

Mesmo Salomão, sapientíssimo, e que foi reputado o mais feliz dos


homens, não pode deixar de confessar, que também tinha sua cruz,
dizendo: “Em tudo achei vaidade e aflição de espírito”, e pouco mais
abaixo:
“E aborreceu-me a vida, ao ver, que debaixo do Sol tudo são
infortúnios, tudo vaidades e magoas” (Ecl 2)
E o Eclesiástico, homem também de muito saber, apresenta a
seguinte máxima geral (Eclo 40, 1):

“Grandes trabalhos foram criados para todos os homens, e pesado


é o jugo, que oprime os filhos de Adão”
Santo Agostinho, sobre os salmos (5) diz:
“De todas as tribulações não há nenhuma maior que o remorso”
São João Crisóstomo, na homilia de Lázaro (6), diz largamente, que
os maus não podem passar sem a sua cruz; pois, se é pobre, a
pobreza lhe é cruz; se não é pobre é ambicioso, o que é ainda maior
cruz; se está doente de cama, está na cruz; se não está doente, é
acometido da ira, que também é cruz. São Cipriano demonstra
mesmo do nascer do homem, que ele nasce para a cruz e
tribulação, e que naturalmente o prognostica com o seu choro.

“Cada um de nós, quando nasce, diz ele (7), e é recebido na


hospedaria deste Mundo, começa a sua vida com lágrimas e, não
obstante ser então de uma ignorância absoluta, já no ato do seu
nascimento sabe chorar; por natural providência lamenta as aflições
e os trabalhos; e logo, ao começar da existência protesta, chorando
e gemendo, contra os trabalhos do Mundo, em que entra”
Em vista disto ninguém pode duvidar de que todos, bons e maus,
têm a sua cruz.

Resta-nos provar, que a dos primeiros é de pequena duração,


pouco pesada, e frutífera; e que, pelo contrário, a dos maus é de
grande duração, muito pesada, e estéril.

Que a cruz dos bons é de pequena duração, não admite dúvida; não
pode prolongar-se além da vida neste Mundo, pois, quando os
justos estão para morrer, já o espírito lhes está dizendo, que vão
descansar dos seus trabalhos, e que Deus lhes vai enxugar as suas
lágrimas (Ap 14; 21). Que esta vida é curtíssima apesar de parecer
dilatada, enquanto vai correndo, claramente o diz a divina Escritura:

“Curtos são os dias do homem: O homem nascido da mulher,


vivendo pouco tempo, e que é a nossa vida? Um vapor de pequena
duração, e que logo desaparece” (Jó 14)
O Apóstolo não obstante ter tido cruz pesadíssima, e por muito
tempo, pois foi desde a adolescência até a velhice, diz na Epístola
aos Coríntios — “Esta tribulação, momentânea e ligeira, produz em
nós de um modo todo maravilhoso no mais alto grau um peso eterno
de glória” (2Cor 4): onde compara a um momento indivisível mais de
trinta anos de tribulação, que ele chama leve, tendo passado fome,
sede, nudez, bofetadas, contínuas perseguições, tendo sido três
vezes varado pelos Romanos, cinco vezes flagelado pelos Judeus,
apedrejado uma vez, e ter três vezes naufragado; tendo-se
finalmente visto em muitos trabalhos, muitas vezes encarcerado,
excessivamente espancado, e freqüentes vezes às portas da morte
(1Cor 4; 2Cor 11). Que tribulações haverá então que possam dizer-
se pesadas, se estas com verdades se chamam, e são leves? E que
se me dirá, se eu acrescentar, que a cruz dos justos não só é leve,
mas até agradável e aprazível pelo superabundante conforto do
Espírito Santo? O mesmo Cristo declara a respeito do Seu jugo, que
também se pode chamar cruz:
“O meu jugo é suave, e o meu peso leve” (Mt 11)
E em outra parte:

“Chorareis e gemereis, e o mundo se há de alegrar; haveis de estar


tristes, porém a vossa tristeza se há de converter em gozo” (Jo 16)
E o Apóstolo:

“Cheio estou de consolação, exubero de gozo em toda a nossa


tribulação” (2Cor 7)
Finalmente, que a cruz dos justos não só é pequena e leve, mas até
frutífera, proveitosíssima em deliciosíssimos frutos, não pode negar-
se; pois Nosso Senhor clarissimamente o diz em São Mateus:

“Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor de


justiça; porque deles é o Reino do Céu” (Mt 5)
E o Apostolo, na sua Epístola aos Romanos, clama:

“As penalidades da presente vida não tem proporção alguma com a


glória vindoura, que se manifestará em nós” (Rm 8)
E com ele concorda o seu co-Apóstolo Pedro:

“Folgai de serdes participantes das penalidades de Cristo, para que


folgueis também com júbilo na aparição da sua glória” (1Pd 4)
Ora, que a cruz dos maus é grandíssima, mortificantíssima, e sem
proveito nem utilidade nenhuma muito facilmente se prova. A cruz
do mau ladrão com certeza não acabou com esta vida, como a
do bom, mas ainda hoje dura no inferno, e durará por toda a
eternidade. O verme dos ímpios não morrerá no inferno, nem se
apagará o fogo que os devora (Is 66): A cruz do Rico avarento, isto
é, a sede de amontoar riquezas, que o Senhor proprissimamente
comparou com os espinhos, que não podem tocar-se, nem ter-se na
mão, sem magoarem (Lc 16; Mt 13), não terminou com a morte,
como a do mendigo Lázaro; mas, acompanhando-o ao Inferno, com
ele dura eternamente, atormentando-o, e obrigando-o a dizer:

“Quem me dera uma gota d’água, para refrigerar a minha língua


neste fogo, que me abrasa!”
Assim, a cruz dos maus não há de ter acabamento; e o peso e
mortificação, que ela causa neste Mundo, certificam-no as vozes
daqueles, em cujas bocas o livro da Sapiência põem estes
queixumes:

“Cansamo-nos no caminho da iniquidade e da perdição, e andamos


maus caminhos” (Sb 5)
Pois então? Não são maus caminhos a ambição, a avareza, a
luxúria? Não são maus caminhos as conseqüências, que nascem
destes vícios, as traições, as injúrias, as difamações, os ferimentos,
os homicídios? São sem dúvida estes vícios e os seus resultados,
que não raras vezes levam o homem a suicidar-se desesperado, e a
fazer cair sobre seus ombros uma cruz mais pesada, pretendendo
livrar-se de uma, que já o oprimia. Qual é, porém a utilidade da cruz
dos maus? Que vantagem tiram eles dela? Nenhuma certamente:
porque nem os espinhos produzem uvas, nem figos os abrolhos. O
jugo do Senhor produz a tranqüilidade, Ele mesmo o diz:

“Tomai sobre vós meu jugo, e achareis descanso para vossas


almas” (Mt 11)
Que pode produzir senão cuidados e aflições o jugo do Diabo, que é
contrário ao jugo de Cristo? De todas as provas a de mais peso é
que a Cruz de Cristo é degrau para se subir à eterna felicidade.

“Convém, que Cristo sofra, e assim entre na Sua glória” (Lc 14)
Eque a cruz do Diabo é grau para descer aos eternos suplícios,
pois no dia do Juízo dirá o Senhor:

“Ide para o fogo eterno, que está preparado para o Diabo e para os
seus anjos” (Mt 25)
Por isso, os que são sensatos, não busquem descer da sua
cruz, se nela estão crucificados com Cristo: não façam, como
loucamente fez o mau ladrão, mas antes, seguindo o exemplo do
bom, gostosamente se apeguem ao lado de Cristo, e peçam a Deus
paciência, para poderem suportá-la, e não que Ele dela os livre;
pois, sofrendo juntamente com Cristo, com Ele também terão parte
na Sua glória, como diz o Apóstolo:

“Se com Ele padecemos, com Ele seremos glorificados” (Rm 8)


Os que estão sendo vítimas da cruz do Diabo, se não querem
ser néscios, tratem de trocá-la sem perda de tempo: deixem, se
não são cegos de todo, cinco cangas de bois pelo jugo de Cristo (Lc
24). As cinco cangas de bois nada mais parece significar do que os
trabalhos e penas a que os homens se sujeitam, tornando-se
escravos dos cinco sentidos corporais e trocam-se por um jugo,
suave e leve, de Cristo, as cinco cangas de bois, empregando o
homem os trabalhos que sofria, pecando em exercícios de
penitência, ajudado de Deus. Feliz a alma, que sabe mortificar os
vícios e a concupiscência da sua carne, e, que se acostuma a
exercer a caridade, fazendo esmolas com o dinheiro que gastava
em satisfazer os seus apetites, e, que emprega as horas, que,
escravizado da incomodantíssima ambição, perdia em acompanhar
e visitar os grandes do Mundo, na oração, ou na leitura devota,
forcejando por ganhar a graça de Deus e dos Príncipes da corte do
Céu; pois assim se troca a Cruz do mau ladrão pela cruz de Cristo,
isto é, a cruz pesada e estéril pela cruz leve e frutífera. Avisado é
sem dúvida o modo por que um soldado honrado se dirigia a um seu
camarada, falando-lhe a respeito da troca da cruz; e se lê em Santo
Agostinho (8):
“Não me dirá, onde nós pretendemos chegar à custa de todos estes
nossos trabalhos? Que nos ambicionamos? Porque motivo
militamos? Que maior esperança pode ter no Palácio além de
sermos amigos do Imperador? E a que acidentes e perigos não
andam expostos os cortesões? E porque perigos se não caminha
para um perigo maior? E suponhamos mesmo, que chegamos a ser
áulicos; quando o chegaremos a ser? Ora, se eu quiser ser amigo
de Deus, sou-o desde este instante”
Assim discorria quem prudentissimamente julgou que muito mais útil
era, sem comparação, trocar trabalhos pesadíssimos, e por muito
tempo, e muitas vezes sem resultado nenhum, para conseguir a
graça do Imperador, pelos mais suaves, menos duradouros, e sem
dúvida mais proveitosos para alcançar a amizade de Deus. Foram o
que fizeram aqueles felizes soldados, pois deixando a milícia do
século, dedicaram-se ao serviço de Deus; e duplicou-lhes o seu
contentamento a resolução das suas desposadas, que mui
gostosamente depois de saberem a deliberação, que eles tomaram,
consagraram a Deus a sua virgindade.

Referências:

(1) Ad. Psalm. 137


(2) Ad. Psalm. 11
(3) Hom. 67 ad pop.
(4) Hom. 29 in epist. ad . Hebr.
(5) In Psalm. 45
(6) Hom. 3
(7) Serm. de patientia
(8) Lib. 8. Confess. c. 6

Capítulo VIII.
“Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”. Explica-se literalmente a terceira
palavra

Explica-se literalmente a terceira palavra de Cristo


na Cruz

A última sentença das três, que particularmente dizem respeito à


caridade do próximo, foi aquela:

“Eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”


Antes, porém de tratarmos dela, temos de explicar as palavras do
Evangelista, que as precedem. Diz São João (Jo 19):

“Estava junto da cruz de Jesus sua Mãe, Maria mulher de Cléofas, e


Maria Madalena: e vendo Jesus sua mãe, que estava em pé, e o
seu discípulo predileto, diz para sua Mãe: Eis aí o teu filho, e depois
diz para o discípulo: Eis aí tua Mãe; — e desde aquela hora o
discípulo a tomou naquela conta”
Das três mulheres, que em grupo estavam junto da cruz do Senhor,
duas são conhecidíssimas, Maria, sua Mãe, e Maria Madalena. A
respeito de quem fosse Maria, mulher de Cléofas, não há certeza:
geralmente, porém se diz que era irmã germana da Bem-aventurada
Virgem, Mãe de Deus, filha de Ana, sua Mãe, que, dizem, também
tivera uma terceira filha, chamada Maria Salomé, porém esta
opinião não se pode admitir de modo nenhum, porque nem é crível,
que três irmãs tivessem o mesmo nome, e tem fundamento o juízo
de eruditos e pios, que dizem, que Santa Ana nenhuma filha mais
tivera além da Virgem Maria, nem nos Evangelhos se faz menção
de alguma Maria Salomé.

Na passagem de São Marcos (cap. 16): “Maria Madalena, et Maria


Jacobi et Salome emerunt aromata” Salomé não é genitivo para
significar — Maria de Salomé —, como pouco atrás aquele
Evangelista disse —Maria, mãe de Tiago — mas é nominativo, do
gênero feminino, como bem se vê do texto grego. Finalmente
Salomé era mulher de Zebedeu e mãe de Tiago e João, Apóstolos,
como se pode entender de São Mateus no cap. 27 e de São Marcos
no cap. 15, assim, como Maria de Tiago ou de Cléofas era mulher
de Cléofas e mãe de Tiago Menor, ou Tadeu. Por isto a verdadeira
opinião é que Maria de Cléofas foi chamada irmã da Virgem Mãe de
Deus, porque Cléofas era irmão de São José, esposo da Virgem
Maria: pois, as esposas de dois irmãos bem se podem entre si
chamar irmãs. Por igual razão também Tiago Menor foi chamado
irmão do Senhor, sendo primo, porque era filho de Cléofas, irmão de
José. Assim o diz Euzébio de Cesárea na História Eclesiástica (1),
apoiando-se no verídico escritor, Egezippo, que foi contemporâneo
dos Apóstolos, e confirma Santo Agostinho no seu livro contra
Helvidio.
Deve também resolver-se aqui outra questão literal, que consiste em
dizer São João, que estas três mulheres estiveram junto da cruz de
Cristo, dizendo São Marcos no cap. 15, e São Lucas no cap. 28, que
elas estiveram longe. Santo Agostinho no livro 3.° da Concordância
dos Evangelistas harmoniza estas afirmativas, dizendo, que destas
santas mulheres se pode afirmar, que estiveram longe da cruz, e
que dela estiveram próximas: longe em relação aos soldados e
oficiais de justiça, que tão perto estavam da cruz, que a tocavam:
perto, porque podiam ouvir as palavras de Cristo, pela distância em
que se achavam, às quais já não podiam ser ouvidas pelas turbas,
que estavam em muita distância da cruz. Poderia também dizer-se,
que aquelas santas mulheres, em quanto se fez a crucificação,
estiveram muito distantes, pelas não deixarem aproximar nem a
turba nem os soldados, mas, que pouco depois dela, e tendo-se já
retirado muita gente, elas com São João se chegaram para junto da
cruz. Por esta questão, assim resolvida, se resolve outra, como
puderam a Santa Virgem e São João tomar como ditas a si, as
palavras de Cristo: Este é o teu filho, esta é a sua mãe, estando ali
grande multidão de povo e não tendo Cristo proferido nem o nome
da Virgem nem o do discípulo, pois a ela respondemos que aquelas
três mulheres e São João tão perto estiveram da cruz, que
facilmente podia o Senhor indicar com os olhos as pessoas a quem
se dirigia, principalmente sendo certo, que falava aos Seus e não a
estranhos, e, que no número daqueles nenhum outro homem se
achava, sendo São João, a quem se pudesse dizer: Esta é tua mãe,
e nenhuma outra mulher, a quem a morte privasse de seu filho
senão a Virgem Mãe. Disse, pois à Mãe: Eis aí o teu filho, e ao
discípulo: Eis aí tua mãe; sendo o sentido destas palavras:
“Eu estou a passar deste Mundo, para ir para meu Pai; e porque sei,
que tu, minha Mãe, és órfã, e já não tens marido, nem tens irmãos,
nem irmãs, te recomendo ao meu caríssimo discípulo João, para te
não deixar abandonada dê todo o auxílio dos homens; tê-lo as na
conta do filho, e ele te tratará como sua mãe”
Foi este saudável conselho, ou preceito de Cristo muito do agrado
de ambos e ambos anuíram, como é crível, inclinando a cabeça; e
de si diz São João:

“E desde aquela hora o discípulo a aceitou como pessoa da sua


família”
Isto é, logo Lhe obedeceu, e a contou no número das pessoas por
quem devia desveladamente olhar, como eram seus pais, já velhos,
Zebedeu e Salomé.

Ocorre, porém neste lugar uma nova questão de sentido literal; pois
São João era um daqueles que tinham dito:

“Eis aqui estamos nós, que deixamos tudo, e te seguimos; que


galardão pois será o nosso?” (Mt 19)
E entre o que tinham deixado o mesmo Senhor enumera pai, mãe,
irmãos, irmãs, casa e fazenda; e deste mesmo São João, e de seu
irmão São Tiago, São Mateus escreveu:

“E eles no mesmo ponto, deixando as redes e o pai, foram em seu


seguimento” (Mt 4)
Como é então, que, quem tinha deixado uma mãe, toma outra? A
isto facilmente se responde. Os Apóstolos, para seguirem Cristo,
deixaram seus pais e suas mães só, como sendo-lhes eles estorvo,
para pregarem o Evangelho, e só porque, de os não deixarem, lhes
provinha comodidade ou gozo, não espiritual; mas não deixaram de
cumprir os deveres de justiça, a que estavam obrigados para com
seus pais ou filhos, quanto à educação ou socorros, de que
precisassem (2); motivo, pelo qual, como dizem os doutores, não
pode entrar em religião um filho, cujo pai seja tão velho, ou tão
pobre, que não possa prescindir do seu arrimo. Deixou, pois São
João seu pai e sua mãe, quando eles não precisavam dele, e
encarregou-se do cuidado e amparo da Virgem Mãe por
determinação de Cristo, para ela não ficar sem arrimo nenhum.
Podia Deus sem dúvida por ministério dos Anjos, e sem nenhum
dos homens, subministrar a Sua Mãe o que para a conservação da
sua vida lhe fosse necessário; pois também a Cristo os Anjos
serviam alimento no deserto (Mt 4), quis, porém que o fizesse São
João para não só providenciar a respeito da Virgem, mas também
para honrá-lo e ajudar. Para casa da viúva mandou Deus Elias, para
ela o sustentar; não por ele não poder fazê-lo por meio de Corvos,
como já tinha feito; mas, para abençoar a viúva, como advertiu
Santo Agostinho (3). Assim também foi da vontade do Senhor
incumbir o Seu discípulo de cuidar de Sua Mãe, para com isto lhe
fazer a maior mercê, e lhe mostrar, que na verdade ele era o Seu
predileto (Mt 19). Certamente naquela mudança de Mãe se
realizou “o que deixa seu pai ou sua mãe, etc., receberá
centuplicado, e possuirá a vida eterna”: pois centuplicado recebeu o
que deixou uma mãe, mulher de um pescador, e recebeu para mãe
a Mãe do Criador, a Senhora do Mundo, cheia de graça, bendita
entre as mulheres, e, que pouco depois havia de ser exaltada sobre
os coros dos Anjos no Reino dos Céus.

Referências:

(1) Lib. 2, cap. I, e lib. 9, cap. XI


(2) Suma Teológica 2. 2.q. 189 art. 6
(3) Serm. 26 de verb. Domini

Capítulo IX.
Do primeiro fruto da terceira palavra

Desta terceira palavra muitos frutos pode colher, quem atentamente


a ponderar. O primeiro será o conhecimento do infinito desejo,
que Cristo teve de padecer, para nos salvar, a fim de que a
redenção fosse pleníssima e copiosíssima. Enquanto os outros
homens providenciam, que na sua morte, e principalmente na morte
violenta, desonrosa e infamante, lhes não assistam os seus
parentes, para que não tenham de sentir dobrado sofrimento e
tristeza, por eles estarem presentes; Cristo, não satisfeito com o
próprio sofrimento atrocíssimo, cheio de dores e de desonra, quis
além disso que Sua mesma Mãe, e Seu amado discípulo
assistissem, e em pé permanecessem junto da Cruz, para que a dor
da compaixão de pessoas que Lhe eram caras Lhe duplicasse o
Seu sofrimento. Estava Cristo na Cruz, e o Seu sangue corria em
grande abundância como de quatro fontes; quis que junto dEle
estivesse Sua Mãe, o Seu discípulo, e também Maria, irmã de Sua
Mãe, e Madalena, as quais, além de outras santas mulheres, Lhe
consagravam a mais extremosa afeição, para que delas
rebentassem quatro fontes de lágrimas, a fim de que Ele quase não
padecesse maior tormento do sangue que derramava, do que da
grande chuva de lágrimas, que a pena dos que Lhe assistiam,
exprimia dos seus corações. Parece-me que estou ouvindo Cristo a
dizer:

Cercaram-me as agonias da morte (Sl 17); mas não menos me


rasga o coração a espada que Simeão profetizou (Lc 2), a qual
transpassou com uma dor incrível a alma da minha inocentíssima
Mãe. Assim separas cruel morte, não só a alma do corpo; mas
também uma Mãe, e tal mãe, de um filho, e de tal filho?!
Foi este o motivo porque o amor Lhe não deixou dizer Minha Mãe,
mas sim Mulher, eis aí o teu filho. De tal modo amou Deus os
homens, que para sua redenção sacrificou o seu unigênito Filho; e
de tal modo seu unigênito Filho amou seu Pai, que para sua
honorificação derramou em abundância o Seu próprio sangue, e não
satisfeito com os tormentos que padecia lhes acrescentou a dor da
compaixão, para que a satisfação dos pecados fosse copiosíssima.
Por isso o Pai e o Filho recomendam-nos por uma razão, e modo
inefável, a Sua caridade para não nos perdermos e conseguirmos a
vida eterna: e apesar disto o coração humano ainda resiste à
tamanha caridade, e antes quer expor-se à ira do Onipotente, do
que saborear a doçura da Sua misericórdia e ceder à caridade do
amor divino. Não podemos, sem dúvida, ser mais ingratos nem
deixar, de merecer todos os suplícios; pois, amando-nos Cristo
tanto, que quis por nós padecer muito mais do que seria necessário;
e, quando para a nossa redenção bastaria apenas uma gota do Seu
sangue, Ele quis derramá-lo todo e sofrer tormentos inumeráveis;
nós nem por Seu amor, nem para a nossa salvação, queremos
sofrer o bastante para a conseguirmos. À causa deste tão grande
desmazelo e loucura não é outra senão não considerarmos séria e
atentamente, como devemos, na paixão e amor de Cristo, nem
escolhermos ocasiões e lugares acomodados para objeto de tanta
importância, pois em pouco tempo, e como a correr, lemos ou
ouvimos ler a Sua paixão. Por isso o santo profeta nos exorta:
“Atendei e vede se há dor igual á minha dor” (Lm 1)
Eo Apostolo:
“Considerai, pois atentamente aquele que sofreu tal contradição dos
pecadores contra a sua pessoa, para que não vos fadigueis,
desfalecendo em vossos ânimos” (Hb 12)
Tempo, porém virá em que debalde nos arrependamos desta nossa
tão grande ingratidão para com Deus, e desmazelo da nossa
salvação. Muitos são, pois os que no último dia mostrarão
arrependimento, e dirão, quando angustiados:

“Erramos; não há dúvida; e não brilhou para nós o Sol da justiça”


(Sb 5)
Nem dirão assim pela primeira vez naquele dia, mas mesmo antes
do dia do Juízo, logo que a morte lhes fechar os olhos do corpo, se
lhes abrirão os da alma, e então verão o que não quiseram ver
enquanto era tempo.

Capítulo X.
Do segundo fruto da terceira palavra

O segundo fruto desta terceira palavra colhe-se do mistério das três


mulheres, que estavam junto da Cruz do Senhor; pois Maria
Madalena representa os penitentes e os que começam a sê-lo;
Maria de Cléofas os proficientes; Maria, Mãe de Cristo e
Virgem, os perfeitos; e com ela podemos também reunir São João,
virgem, e que dentro em pouco tempo havia de ser perfeito, se
ainda não o era. São aqueles os únicos que se acham junto da Cruz
do Senhor; porque os que vivem em pecado e não tratam de fazer
penitência, afastam-se da Cruz que é a escada do Céu. Além disto
todos os que estão junto da Cruz, tem motivo para lá estarem; pois
precisam do auxílio do Crucificado, os penitentes ou incipientes
estão em guerra aberta com os vícios e apetites desordenados,
e muito precisam do auxílio de Cristo, nosso General, para se
animarem a combater, vendo-o a lutar contra o Dragão, e não
querendo descer da Cruz, sem dele obter completo triunfo, assim o
diz o Apóstolo na sua Epístola aos Colossenses:

“Despojou os Principados e Potestades, e os trouxe confiadamente


publicamente deles em si mesmo, e pouco antes Encravando na
Cruz a cédula do decreto, que havia contra nós” (Col 2)
Os proficientes, representados por Maria de Cleofas, casada e
mãe de filhos, que eram tidos em conta de irmãos do
Senhor, precisam também do auxílio da Cruz, para que os
cuidados e inquietações deste Mundo, em que necessariamente
se acham envolvidos, não lhes afoguem a boa semente, nem
deixem de pescar, trabalhando toda a noite. Devem por isso fazer
por aproveitar e pôr os olhos em Cristo crucificado, que não
satisfeito com as boas obras, muitas e grandes, que já tinha
praticado, quis por meio da Cruz avançar a mais e não descer dela
senão depois de vencido e derrotado o inimigo; pois nada há que
mais prejudique aos que querem aproveitar no caminho da
virtude, do que cansarem nele e pararem; porque neste caminho
não progredir é andar para traz, como bem diz São Bernardo (1),
escrevendo a Garino, e pondo-lhe para exemplo a Escada de Jacó,
na qual todos sobem ou descem e ninguém está parado.

Finalmente até os mesmos perfeitos, que vivem no estado de


solteiros, e principalmente se são virgens, como eram a Virgem Mãe
de Cristo e o discípulo São João, por este motivo mais amado que
os outros, até estes, digo, muito, carecem da proteção do
Crucificado, pois os que estão em posição mais elevada, muito
receio devem ter do vento da soberba, se não estiverem bem
arrimados e enraizados em profundíssima humildade. Cristo,
não obstante ter-se apresentado sempre o Mestre da humildade,
como quando disse:

“Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11)


E quando de outra vez disse:
“Toma o último lugar” (Lc 14; Mt 11)
E tantas vezes repetiu:

“Todo o que se exalta será humilhado, e todo o que se humilha será


exaltado” (Lc 18)
Contudo nunca se mostrou maior Mestre da humildade do que na
cadeira da Cruz, o que o Apóstolo declarou, dizendo:

“Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte, e morte da


Cruz” (Fl 2)
Que maior humildade, pois pode imaginar-se do que deixar-se
prender e crucificar, quem é Onipotente; e consentir quem em si tem
encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência de Deus
(Col 2); em ser reputado louco por Herodes e pelos seus soldados,
e em ser zombado, vestido com uma vestidura branca, e permitir
quem se senta acima dos Querubins (Sl 98) ser crucificado entre
ladrões? Certamente não terá docilidade nenhuma, quem, depois de
se ver com atenção no espelho da Cruz, não confessar que está
ainda muito longe da verdadeira humildade, por muitos que sejam
os progressos que nela tenha feito.

Referências:

(1) Ep. 253

Capítulo XI.
Do terceiro fruto da terceira palavra

Em terceiro lugar aprendemos da cadeira da Cruz, e das palavras


por Cristo dirigidas a sua Mãe e ao discípulo, quais são as
obrigações dos bons pais para com seus filhos, e os deveres
dos bons filhos para com seus pais. Comecemos por aquelas.

Devem os bons pais amar seus filhos; de modo, porém, que


este amor não se oponha ao amor de Deus: e é por isto, que o
Senhor diz no Evangelho:

“Quem ama seu filho ou filha mais do que a mim, não é digno de
mim” (Mt 10)
Isto cumpriu com todo o rigor possível a Bem-aventurada Virgem;
pois estava junto da Cruz, sofrendo a maior dor com a maior
constância. Aquela dor era a prova do sumo amor a seu Filho,
pendente da Cruz; aquela constância asseverava a sua muito
submissa obediência a Deus: doía-se de que seu Filho inocente,
que afetuosissimamente amava, fosse atormentado de cruelíssimas
dores; mas nem por isso a elas obstaria por palavras ou por obras,
ainda que pudesse, porque sabia que Ele padecia aqueles martírios
por determinação e presciência de Deus Pai (At 2). O amor é a
medida da dor; por isso Maria sofria muito, vendo seu Filho em
tamanhos tormentos, porque O amava muito. E como não amaria
extremosamente seu Filho a Virgem Mãe, sabendo como ninguém
sabia que aquele Filho se avantajava em todos os predicados a
todos os filhos dos homens, e que lhe pertencia mais do que a suas
mães pertencem quaisquer outros filhos? Por dois motivos amam as
mulheres seus filhos, por os terem gerado; e por eles
sobressaírem em merecimento por alguma excelente qualidade;
pois não sendo assim, não faltam mães que ou pouco amor tenham
a seus filhos, e que até os aborreçam, ou por serem muito feios, ou
por serem maus, desobedientes e ingratos a seus pais.

Por ambos aqueles motivos a Virgem Mãe amava seu Filho mais do
que nenhuma outra mãe; primeiramente porque as outras mulheres
não geram os seus filhos, sem cooperação de marido, a Virgem
Bem-aventurada na geração do seu, não teve cooperador; pois
Virgem gerou, e Virgem pariu; e assim como Cristo Senhor na
geração divina teve Pai sem ter Mãe, do mesmo modo na geração
humana, teve Mãe sem ter Pai, e, ainda que com verdade se diga,
que Cristo foi concebido do Espírito Santo, com tudo o Esprito Santo
não é Paí de Cristo, mas o formador do corpo de Cristo; nem o
Espírito Santo formou da Sua própria substância o corpo de Cristo;
o que propriamente pertence ao pai; mas formou-O das puríssimas
entranhas da mesma Virgem. Em verdade, pois, a Virgem
Santíssima só de por si, e sem cooperação do pai, gerou seu Filho,
e por isso mesmo ela podia reclamá-lO, porque só a ela pertencia; e
assim mais O amava, do que outra alguma mãe amou seus filhos.
Quanto ao outro motivo, o Filho da nossa Virgem não só foi, e é o
mais formoso, que todos os filhos dos homens (Sl 44); mas até se
avantaja em todos os predicados aos homens e aos Anjos; e assim
a Virgem Bem-aventurada, que amou seu Filho, como nenhuma
outra mãe ama os seus, também sentiu mais que todos os seus
sofrimentos e morte, e é isto tão verdade, que São Bernardo num
sermão (1) não dúvida afirmar, que a angústia da Bem-aventurada
Virgem na paixão de seu Filho, se pode chamar martírio do coração,
segundo o que Simeão tinha profetizado: “E a tua mesma alma será
traspassada de uma espada de dor” (Lc 2), e, porque o martírio do
espírito parece ser mais doloroso do que o do corpo, Santo Anselmo
no seu livro das excelências da Virgem (2) diz, que a sua pena fôra
mais atormentadora do que de qualquer martírio corporal. Nosso
Senhor, quando orava no horto de Getsêmani, sofria sem dúvida o
tormento do espírito, meditando atentamente em todas as dores e
martírios, que havia de sofrer no dia seguinte, e, largando de certo
modo as rédeas à tristeza e ao pavor, em tal aflição se viu, que de
todo o corpo derramou suor de sangue; coisa, que não se lê que lhe
acontecesse nos tormentos de que Seu corpo foi vítima. Assim a
Virgem Santíssima sofreu indubitavelmente daquela espada de dor,
que lhe traspassou a alma, uma dor intensíssima e acerbíssimo
tormento; e, não obstante, porque preferia a honra e glória de Deus
aos martírios de seu Filho, estava junto da Cruz, cheia de
resignação e tranquila, vendo-O nas torturas do patíbulo.
Não caiu desfalecida, e quase morta, como alguns imaginam; não
arrancou o cabelo; não fez o pranto que as mulheres costumam
fazer, mas suportou com a firmeza com que devia a execução dos
decretos de Deus. Amava muito seu Filho; mas aquele amor era
subordinado à honra do Pai e à salvação do Mundo: e estas
duas circunstâncias eram também de mais peso para o Filho, do
que os tormentos que tinha de sofrer. Além disto a fé, em que a
Virgem nunca vacilou, de que seu Filho havia de ressuscitar no
terceiro dia, dava força à sua grande constância, para não
precisar de consolação de ninguém: pois sabia, que a morte de seu
Filho havia de ser como um sono curtíssimo, segundo dissera o
profeta:

“Adormeci e dormi; e acordei, porque o Senhor foi comigo” (Sl 3)


A exemplo da Virgem deviam imitá-la todos os fiéis, para
amarem seus filhos, sem preferirem o amor que lhes tenham,
ao amor de Deus, que é Pai de todos, e que os ama muito mais
e melhor, do que nós sabemos amá-los. Os cristãos devem amar
seus filhos com amor discreto e prudente, não sendo indulgentes
com eles, quando eles faltam aos seus deveres: mas educando-os
no temor de Deus, repreendendo-os, e castigando-os, quando o
ofenderem, ou não cumprirem as suas obrigações literárias. É está
a vontade de Deus, a qual Ele declarou nas Santas Escrituras, pois
diz o Eclesiástico:

“Educa teus filhos, e faze-os dóceis desde tenra idade” (Ecl 7)


E de Tobias se lê, que educou seu filho desde a infância no temor
de Deus e na abstenção de todo o pecado (Tb 1); e o Apóstolo (Col
3) exorta os pais, a não provocarem seus filhos à indignação, para
se não tornarem pusilânimes, recomendando-lhes, que os, eduquem
em disciplina e correção do Senhor, isto é, que tratem como filhos, e
não como escravos.

Os pais que são demasiadamente austeros com seus filhos, e que


os estão sempre repreendendo e castigando por qualquer falta,
mesmo das mais desculpáveis, tratam-nos como escravos, e não
como filhos, e fazem que eles se tornem tímidos e lhes fujam. Os
excessivamente indulgentes tornam os filhos viciosos, e criam nos
não para o Reino do Céu, mas sim para o fogo do inferno.

A boa educação dos filhos consiste em instruí-los a respeito da


obediência que eles devem a seus pais e mestres, e em castigá-
los paternalmente, quando eles delinquirem, para que conheçam
que seus pais os castigam por amizade, e não por cólera. Se
Deus der a algum a vocação de se ordenar, ou de ser frade, não lhe
impeça o pai esta vocação para que não pareça que quer contrariar
à vontade de Deus, que é pai mais respeitável; mas diga com o
Santo Jó:

“O Senhor o deu, o Senhor o levou, bendito seja o nome do Senhor”


(Jó 1)
Finalmente se morte prematura levar os filhos, como aconteceu
principalmente a Bem-aventuradíssima Virgem, considere seus pais
nos juízos de Deus, que muitas vezes chama para si alguns, para
que a malícia lhes não perverta o seu bom natural e para livrá-los da
eterna condenação (Sb 4). Certamente se os pais algumas vezes
soubessem o fim com que Deus assim faz, não só não chorariam,
mas teriam muito contentamento, e se a fé na ressurreição velasse
tanto em nós, como na Santíssima Virgem, não teríamos mais
sentimento por alguém, cujo dias terminem antes da velhice, do que
temos por quem comece a dormir antes de anoitecer, pois a morte
do fiel é um sono, como diz o Apóstolo na sua primeira epístola aos
de Tessalonicense:

“Não queremos irmãos, que vós ignoreis coisa alguma a cerca dos
que dormem, para que vos não entristeçais como os outros que não
tem esperança” (1Ts 4)
Menciona primeiramente a esperança, do que a fé, porque não se
refere a qualquer ressurreição, mas sim a feliz e gloriosa, que é a
vida eterna, como foi à ressurreição de Cristo: pois, quem
firmemente crê na ressurreição da carne, e tem a esperança de que
seu filho, arrebatado por morte prematura, há de ressuscitar
gloriosamente, não tem motivo nenhum para se, entristecer, mas
sim para se alegrar, pela certeza que tem da sua salvação.

Vou agora tratar dos deveres dos filhos para com seus pais;
deveres, que Cristo cumpriu sobejamente. Tem os filhos obrigação
de retribuírem a seus pais, como ensina o Apóstolo (2Tm 5), e
cumprem-na, se subministrarem o necessário a seus pais já velhos,
assim como seus pais lhes fizeram, quando eles, ainda pequenos,
não podiam granjear nem alimento nem vestido. Por isso, Cristo
vendo que sua Mãe ia entrando na idade, e que não tinha ninguém
que depois dele morrer, cuidasse dela, encarregou-a a São João,
para tratá-la como Mãe, dizendo à Virgem: Eis aí o teu filho, e ao
Discípulo: Eis aí tua Mãe. Cumpriu o Senhor perfeitamente para
com sua Mãe as obrigações de filho por muitos modos:
primeiramente nomeando, para ficar em lugar do filho de sua Mãe,
São João, que era da mesma idade de Cristo, ou antes, mais novo
um ano, e por este motivo, em muito boas condições para amparar
a Mãe do Senhor; em segundo lugar designando dentre os seus
doze discípulos, aquele que mais amava (Jo 13), e de quem sabia
que era correspondido; podendo assim confiar, que ele
desempenharia com pontualidade e desvelo o encargo de cuidar de
Sua mãe, além disto nomeou aquele que sabia que havia de chegar
à idade muito avançada, e que por isto lhe havia de sobreviver.
Finalmente não deixou Cristo de cumprir os Seus deveres para com
sua Mãe, posto que fosse obrigado a fazê-lo em ocasião tão pouco
própria, porque estava sofrendo tais dores em todo o corpo, e
recebendo tais injúrias dos Seus inimigos, e quase esgotando o
amargosíssimo cálice da morte, que parecia que não poderia prestar
atenção a mais nada, apesar, porém de tudo isto, o amor a sua Mãe
foi superior, e não se importando de Si, só tratou de lhe procurar
consolação e arrimo; e não se enganou na confiança, que pôs na
boa vontade e desvelo de São João, pois desde àquela hora ele se
encarregou da Virgem como de pessoa que lhe pertencesse (Jo 19).
O cuidado que Cristo teve de sua Mãe, com maior razão o devem
ter de seus pais os outros filhos; porque Cristo não lhe devia tanto
como os outros homens devem aos seus progenitores. Os outros
lhes devem tantas obrigações, que nunca lhas podem pagar; pois
lhes devem a vida, que não pode ser recompensada.

“Lembra-te, diz o Eclesiástico, de que, se não fossem eles nunca


virias ao Mundo” (Ecl 7)
Cristo e só Cristo, é excetuado desta regra, pois da Virgem, sua
Mãe, recebeu uma vida, a humana; mas deu-lhe três vidas; a
humana, quando a criou com o Pai e Espírito Santo; a da graça
quando antecipando-a nas bênçãos de doçura, a criou, santificando-
a, e a santificou, criando-a; a vida da glória, quando a criou para a
glória eterna, e exaltou sobre os coros dos Anjos. Pelo que, se
Cristo, que a sua Bem-aventurada Mãe deu mais do que a vida, que
dela recebeu, nascendo; quis cumprir a lei, retribuindo-lhe como
filho; quanto maior não é a obrigação que os outros homens têm de
retribuírem a seus pais? A isto acresce, que, ainda que nós,
honrando os nossos pais, nada mais fazemos do que cumprir uma
obrigação; contudo a benignidade de Deus nos promete prêmio,
dizendo-nos na Lei:

“Honra teus pais, para viver largo tempo sobre a terra” (Ex 20)
E pelo Eclesiástico o Espírito Santo acrescentou:

“Quem honrar seus pais, ter alegria em seus filhos, e será ouvido no
dia da sua oração” (Ecl 3)
Nem somente Deus prometeu prêmio aos filhos que honrarem seus
pais, também impôs pena a quem assim não fizer; pois diz o
Senhor:

“Deus diz — O que desatender seu pai, ou sua mãe, morra


irremissivelmente” (Mt 15)
E o Eclesiástico acrescenta:

“O que fizer irar sua mãe, seja maldito de Deus” (Ecl 3)


Disto aprendemos que a maldição dos pais tem uma grande força,
porque Deus a confirma.

Não poucos são os exemplos que a história nos apresenta em prova


do que digo, e um bem notável conta Santo Agostinho nos Livros da
Cidade de Deus. Em suma é assim: em Cesárea da Capadócia dez
filhos, sete machos e três fêmeas, amaldiçoados por sua mãe,
foram imediatamente castigados por Deus com um tremor horrível
de todos os membros; e, não podendo suportar as vistas de seus
concidadãos, por se verem neste terribilíssimo estado, andavam
vagabundeando por quase todo o orbe Romano, cada um por onde
lhe parecia, dois deles foram finalmente curados na presença de
Santo Agostinho pelas relíquias de Santo Estêvão, Protomártir (3).

Referências:

(1) Serm. in illud., Signum magnum


(2) Cap. 15
(3) Liv. 21, cap. 8
Capítulo XII.
Do quarto fruto da terceira palavra

O encargo e jugo, imposto por Deus a São João de tomar a seu


cuidado a Virgem Mãe, foi certamente encargo suave e jugo leve.
Quem, pois não conviveria da mais boa vontade com aquela Mãe,
que em seu ventre trouxe nove meses o Verbo Encarnado, e, que
com Ele conviveu trinta anos inteiros com a maior dedicação e
afeto? Quem não terá inveja ao Predileto do Senhor, que na falta do
Filho de Deus mereceu a companhia da Mãe de Deus? Mas, se não
me engano, também podemos nós com os nossos rogos alcançar
da benignidade do Verbo, por amor de nós encarnado, e do
extremoso amor de quem pelo mesmo motivo Se sujeitou ao
tormento da cruz, que Ele também nos diga: Eis aí vossa Mãe; e à
sua Mãe diga: Eis aí os teus filhos.
O piedoso Senhor não é avarento de graças, com tanto que
nós com fé e confiança, e com o coração sincero, nos
aproximemos do seu Trono de Misericórdia. Quem quis que nós
fossemos cordeiros do Reino de seu Pai, não se recusará
certamente a querer que sejamos cordeiros do amor de sua
Mãe; e nem a mesma Virgem Benigníssima se enfadará com a
multidão de seus filhos, pois tem um amplíssimo regaço e
muito desejo de que se não perca nenhum dos que seu Filho
remiu com tão precioso sangue e com tão preciosa morte.
Recorramos, pois, confiadamente ao Trono da graça de Cristo, e
peçamos-Lhe com orações e lágrimas que a respeito de cada um de
nós diga a sua Mãe: Eis aí o teu filho e a respeito de sua Mãe a
cada um de nós diga: Eis aí tua Mãe. Quão bem não estaremos nós
com a proteção de tal Mãe! Quem se atreverá a arrancar-nos do seu
regaço?! Que tentação, que tribulação haverá que possa vencer a
nossa confiança na Mãe de Deus e nossa Mãe?! Nem nós seremos
os primeiros, que consigamos tamanho benefício. Muitos nos
precederam já, muitos, torno a dizer, tem recorrido ao especial e
maternalíssimo patrocínio de tão poderosa Virgem; e ainda nenhum
voltou envergonhado ou triste; mas todos alegres e contentes e
confiados no valimento de uma Mãe, que tanto pode, esperam
naquela de quem está escrito: “Ela esmagará, a tua cabeça” (Gn 2),
que também eles hão de impunemente passear sobre o Áspide e
Basilisco, e hão de pisar o Leão e o Dragão (Sl 50). Ouçamos de
entre muitos alguns, porém especialmente aqueles, que certificam
que na proteção da Virgem depositavam singular confiança; para se
poder acreditar que eles são do número daqueles, a quem o Senhor
tenha dito: Eis aí tua Mãe, e de quem sua Mãe tinha dito: Eis aí o
teu filho.
Seja o primeiro Santo Efrém Sírio, Padre antigo, e tão Célebre, que,
segundo testifica São Jerônimo (2), eram os seus livros
publicamente lidos nas Igrejas depois das Sagradas Escrituras. Este
num panegírico da Mãe de Deus diz:

«Imaculada e puríssima Virgem Mãe de Deus, Rainha de todas as


criaturas, Esperança dos desanimados»
E abaixo:

«Tu és o porto dos que estão quase a soçobrar na tempestade, a


consolação do Mundo, a libertadora dos encarcerados, o abrigo dos
órfãos, a redentora dos cativos, o alívio dos enfermos, a salvação de
todos»
E abaixo:

«Abriga-me debaixo das tuas azas, e protege-me; compadece-te de


mim, que estou manchado de lodo»
E abaixo:

«Ninguém mais tenho em quem possa confiar. Ave, Paz, Alegria e


Salvação do Mundo»
Ajuntemos a Santo Efrém, São João Damasceno, que foi dos que
mais devoção tiveram à Virgem Santíssima, e mais confiaram no
seu patrocínio. Diz ele num discurso da Natividade da Virgem:

«Ó filha e Senhora de Joaquim e Ana, ouve a oração deste pecador


que, apesar de o ser, te ama, venera ardentemente, e, que em ti só
confia, que sejas a diretora da sua vida, a sua reconciliadora com
teu Filho, o penhor seguro da sua salvação, alivia-me da carga de
pecados que me oprimem; sufoca as tentações, que me querem
arrastar e governar a minha vida pelo caminho da piedade e
santidade, para que, por ti conduzido, eu consiga a celeste bem-
aventurança»
A este acrescentarei dois padres latinos. Santo Anselmo no livro das
excelências da Virgem (1) diz numa parte:

“Por isso conjecturo, que aquele que ao menos merecer lembrar-se


afetuosamente da Santíssima Virgem, esse tem já uma grande
prova a favor da sua salvação”
E abaixo (2):
«Mais depressa se consegue algumas vezes a salvação,
recorrendo-se ao seu nome (o da Virgem Mãe) do que invocando o
do Senhor Jesus, seu único Filho, e não porque ela seja nem
superior a seu Filho, nem mais poderosa do que Ele; pois a
preeminência e poder do Filho não lhe procede de sua Mãe, mas
sim a desta de seu Filho. Porque é então, que muitas vezes a
salvação se consegue mais prontamente, recorrendo antes à Mãe,
do que ao Filho? Vou dizer a minha opinião a este respeito. O Filho
é Senhor e Juiz de todos, e toma conhecimento do mérito de cada
um; por isso, quando deixa de ouvir sem demora a invocação do
Seu nome, procede sem dúvida com justiça, e invocando o nome de
Sua Mãe, a sua meritória intercessão faz com que o invocante seja
ouvido, ainda que para isso não tenha merecimentos»
É, porém São Bernardo, quem admiravelmente descreve o pio e
inteiramente maternal afeto da Virgem Santíssima aos seus
devotos, e correspondentemente a exímia e filial piedade dos que
reconhecem por sua Mãe e Bem-aventurada Virgem. No segundo
sermão sobre a embaixada do Anjo, diz ele:

«O quem quer que sejas que conheces que no mar deste Mundo
mais flutuas entre tormentos e temporais, do que pisas terra firme,
não desvies os olhos do fulgor deste astro (de Maria, Estrela do
mar) se não queres ser engolido pelas ondas. Se soprarem os
ventos das tentações, se te vires nos escolhidos da tribulação olha
para a Estrela, chama por Maria. Se te vires batido das ondas da
soberba, da ambição, da maledicência, da inveja, volta-te para a
Estrela, chama por Maria. Se agitado pela perversidade de algum
crime, confundido pelo remorso, aterrado pela severidade do Juiz,
começares a ser devorado pelo inferno da tristeza e pelo abismo da
desesperação, lembra-te de Maria, nos perigos, nas aflições, nas
más circunstâncias, lembra-te de Maria, pede proteção a Maria,
seguindo-a, não te perdes no caminho, rogando-lhe o seu valimento,
não desesperas, tendo-a no pensamento, não erras»
No sermão da Natividade da Virgem Bem-aventurada, ou do
Aqueduto, diz:
«Vede, com que afetuosa devoção quis que honrássemos Maria,
Aquele que em Maria depositou complemento de todo o bem, para
por isso mesmo conhecermos, que, se alguma esperança tem, se
alguma graça recebeu, se a salvação conseguiu tudo dela nos
dimana»
E baixo:

«Por isso sejamos devotíssimos de Maria com toda a afeição dos


nossos corações, com toda a força da nossa vontade, porque assim
o quer Aquele que tudo quer que obtenhamos por sua intercessão»
E segunda vez:

«Meus filhinhos, Maria é a escada dos pecadores; é em quem tenho


uma confiança, que não pode ser maior; é toda a minha esperança»
A estes dois Santíssimos Padres acrescentarei mais dois, também
da escola dos Teólogos, e tão santos como aqueles. Santo Tomás
no seu opúsculo da Saudação Angélica (3) diz assim: “Bendita entre
as mulheres”, porque foi ela a única que aniquilou a maldição,
trouxe a bonança, e abriu a porta do Paraíso, e por isso lhe compete
o nome de Maria, que significa Estrela do mar, pois assim como por
aquela estrela os navegantes se dirigem ao porto, assim também os
cristãos, guiados por Maria, se encaminham à Glória. São
Boaventura na sua aljava (4) diz:
“Assim como ó Bem-aventuradíssima, todo aquele que te despreza
e é por ti desprotegido, não pode deixar de se perder, também é
impossível que não se salvem os teus devotos e teus protegidos”
O mesmo Santo na Vida de São Francisco, falando da confiança,
que este tinha na Bem-aventurada Virgem (5) diz:
“Tinha um afeto indizível à Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, por
ser ela a quem devemos ser irmãos do Senhor da Majestade, e por
nos ter conseguido misericórdia. Confiado nela abaixo de Cristo
tomou-a para sua Protetora e dos seus, e em sua honra jejuava
devotíssimamente desde a Festa dos Apóstolos, São Pedro e São
Paulo, até a Ascensão”
A todos estes faço gosto de acrescentar o Papa Inocêncio III, que foi
singular devoto da Virgem Mãe de Deus, e; não só lhe fez
magníficos elogios em sermões, mas até construiu em sua honra
um mosteiro, e o que é mais de admirar, excitando o povo à
confiança na Santíssima Mãe de Deus, quase profetizando, disse
coisas, que depois comprovou com feliz resultado em si mesmo. Diz
ele no 2.º Sermão da Assunção:

«Quem está na noite da culpa, ponha os olhos na Lua, dirija às suas


súplicas a Maria, para que ela, intercedendo por ele a seu Filho, lhe
alumie 0 seu coração para a penitência. Pois que pecador ela
recorreu, que não fosse ouvido?»
Consulte o leitor o que escrevemos do Papa Inocêncio III, livro 2.°,
cap. IX do Gemido da Pompa. De tudo isto claramente se corrige,
que dos sinais de eleição para a Bem-aventurança não é dos
últimos a singular devoção da Mãe de Deus; pois parece, que não é
possível, que se perca aquele a respeito de quem Cristo disse a
Virgem: Eis aí teu filho, com tanto que ele ouça atentamente o que
Cristo lhe disse: Eis aí tua mãe.

Referências:

(1) Cap. 3.
(2) Cap. 6.
(3) Opusc. 8.
(4) Liv. 1 cap. 5.
(5) Cap. 9.

LIVRO II: Das quatro restantes palavras, proferidas por Cristo


na Cruz

Capítulo XIII.
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”. Explica-se
literalmente a quarta palavra

Explica-se literalmente a quarta palavra


Expusemos no livro antecedente as três primeiras palavras, que
Nosso Senhor pronunciou da cadeira da Cruz perto da hora sexta
pouco depois de crucificado. Neste exporemos as quatro, que
depois das trevas e silêncio de três horas o mesmo Senhor, e da
mesma cadeira, próximo a morrer, pronunciou bradando. Parece-
me, porém necessário dizer antes, que trevas foram aquelas de que
foram produzidas, e para que fim; trevas que separam as primeiras
três palavras das quatro últimas; pois diz São Mateus (27, 46):

“Desde à sexta hora toda a terra se cobriu de trevas até à hora


nona, e perto desta, Jesus clamou: Eli Eli lammá sabactáni: isto é —
meu Deus, meu Deus, porque me desamparaste”
Que aquelas trevas foram causadas pela falta da luz solar, declara-o
expressamente São Lucas (23, 45): E o Sol escureceu-se, diz ele.
Tem, porém de desatar-se nesta passagem três nós de dificuldades,
pois os eclipses do Sol acontecem na Lua nova, quando ela se mete
de permeio entre ele e a Terra, mas isto não pode acontecer na
ocasião da morte de Cristo, por não haver então conjunção da Lua
com o Sol, como sucede na Lua nova, a Lua estava então oposta ao
Sol, como sucede na Lua cheia, pois era então a Páscoa dos
Judeus, que segundo a Lei começava no dia 14 do primeiro mês.
Além disto, ainda quando houvesse conjunção da Lua com o Sol
durante a Paixão de Cristo, não podiam as trevas durar três horas,
isto é, desde a sexta até a nona; pois não pode um eclipse do Sol
durar tanto tempo, principalmente sendo total, que obscureça toda a
sua luz, é esta obscuridade se possa chamar trevas; pois a Lua tem
mais celeridade de movimento que o Sol, e por isso não lhe pode
interceptar toda a luz senão por curtíssimo espaço, porque
começando a retirar-se logo, deixa ao Sol alumiar a Terra com o seu
costumado fulgor. Demais, não pode nunca acontecer que o Sol
pela sua conjunção com a Lua, deixe em escuridão toda a Terra,
porque a Lua é menor que o Sol e mesmo do que a Terra, não
podendo por isso com a sua interposição eclipsar o Sol de modo
que toda a Terra fique às escuras. Se, porém alguém disser que os
Evangelistas disseram que a eclipse escureceu toda a Terra, se
referem a toda a terra da Palestina, e não a toda a Terra em geral;
essa opinião refutasse facilmente, com o testemunho de São
Dionísio Areopagita, que, escrevendo a São Policarpo, afirma que
viu aquele eclipse do Sol e trevas horríveis em Heliópolis no Egito.
Faz também menção do mesmo eclipse o historiador Flegon, grego
e gentio, dizendo:
«No quarto ano da Olimpíada de centésima segunda aconteceu um
grande eclipse do Sol, como ainda não tinha havido, à hora sexta o
dia tornou-se tão escuro, que se viam as estrelas»
Este historiador não escreveu na Judeia: citam-no Orígenes contra
Celso (1) e Euzébio na Crônica do ano de Cristo 33. O mesmo
certifica Luciano mártir, dizendo:

«Procurai nos vossos anais, e neles achareis que no tempo de


Pilatos um dia se converteu em trevas, fugindo o Sol»
Refere estas palavras de São Luciano Rufino na História
Eclesiástica de Euzébio, que ele traduziu em latim (2). Também
Tertuliano no Apologético e Paulo Orozio na sua História (3), e todos
dizem que aquele eclipse fora visto em outras partes do mundo, e
não somente na Judeia. Estas controvérsias, porém tem uma
explicação fácil, pois o que no princípio se dizia do eclipse do Sol,
que costuma ser não na Lua cheia, mas na Lua nova, é verdade,
quando o eclipse é natural, porém o eclipse na morte de Cristo foi
singular, e prodigioso, porque só pode ser produzido por Aquele que
criou o Sol e a Lua, o Céu e a Terra, pois diz São Dionísio no lugar
citado, que ele e Apolophanes viram perto do meio dia a Lua
correndo para o Sol com um movimento extraordinário e
velocíssimo, e colocar-se abaixo dele, conservando-se assim até à
hora nona; e que depois pelo mesmo caminho voltará para o seu
lugar ao Oriente.
Quanto à outra objeção que se fazia, que um eclipse do Sol não
podia durar três horas, de modo que toda ela estivesse o mundo em
trevas, responde-se que assim é verdade no eclipse natural e
ordinário; mas que aquele eclipse não foi efeito das leis da natureza,
porém da vontade do Onipotente, que assim como pôde fazer ir a
Lua, extraordinariamente com uma velocíssima carreira do Oriente
para o Sol, e voltar à sua posição passadas três horas; também
pôde fazer que ela se conservasse aquele tempo abaixo do Sol,
quase sem movimento, não andando nem mais nem menos do que
ele.
Finalmente a outra objeção, que não pôde ser visível em todo o
Mundo aquele eclipse, porque a Lua é muito menor que a Terra, e
muito menor também que o Sol, admitimo-la, por ser muito verdade
que assim não pode ser só pela interposição da Lua entre o Sol e a
Terra, mas o que a Lua não pôde fazer, fê-lo o Criador do Sol e da
Lua, deixando de cooperar com o Sol na alumiação da Terra; pois
nada podem fazer os objetos da criação sem o poder e cooperação
do Criador; não se podendo admitir, que aquelas trevas, que
escureceram todo o Mundo, fossem produzidas por negras e densas
nuvens, como alguns dizem; constando por testemunho dos antigos
que, durante aquele eclipse e aquelas trevas, se viram as estrelas
no Céu, visto que as nuvens condensadas não só podem escurecer
e escurecem o Sol, mas mesmo a Lua e as estrelas.
Costumam apresentar-se várias causas, porque Deus quis que na
Paixão de Cristo houvesse aquelas significativas trevas: mas são
duas as principais. A primeira, para significarem a maior possível
cegueira do novo Judaico (é de São Leão no discurso décimo
quarto da Paixão do Senhor), que ainda dura e durará, segundo o
vaticínio de Isaías (60), que, falando do princípio da Igreja,
diz: «Levanta-te, esclarece-te, Jerusalém, porque chegou a tua luz,
e a glória do Senhor nasceu sobre ti; porque as trevas cobrirão a
Terra, e a cerração os povos»: quer dizer, densíssimas trevas
envolverão a terra Judaica; e a cerração, que não é tão densa, e
que facilmente se dissipa, envolverá os gentios. A segunda, para
mostrar a grandeza do delito dos Judeus, como diz São Jerônimo
(4): pois até ali os maus perseguiam, vexavam, e matavam os bons;
então o atrevimento dos ímpios chegou a perseguir o mesmo Deus,
feito homem, e a cravá-lO numa cruz: até ali os concidadãos tinham
questões uns com os outros; destas passavam a desordens; das
desordens aos ferimentos; dos ferimentos aos assassínios; então,
porém, os servos e escravos insurrecionados contra o Rei dos
homens e dos anjos, e com uma audácia incrível O crucificaram. Por
isso todo o mundo se horrorizou, e o Sol, protestando contra tal
atentado, ocultou os seus raios, encobriu toda a atmosfera de trevas
horríveis.
Passemos às palavras do Senhor: Eli Eli lammá sabactáni. São
estas palavras tiradas do princípio do Salmo 21:
“Meu Deus, meu Deus, valei-me, porque me abandonaste?”
Mas aquele valei-me, que está no meio do verso, foi acrescento dos
setenta interpretes, e no texto Hebreu não estão senão as palavras,
que o Senhor disse; só com a diferença de que as palavras do
Salmo são todas hebraicas; e as proferidas por Cristo são alguma
siríaca, língua de que os Hebreus usavam freqüentemente, pois os
termos Talitha cumi (em português — Ergue-te, menina)
e Epheta (em português — Sê atento, ou atenta) e algumas mais,
que nos Evangelhos apareçam, são da língua Siríaca, e não da
Hebraica. Queixa-Se, pois, o Senhor e queixa-Se bradando, de ter
sido desamparado por Deus. Tanto uma como outra coisa deve ser
brevemente explicada. O abandono de Cristo por seu Pai pode
entender-se de cinco modos, dos quais um só é verdadeiro, pois
havia no Filho de Deus cinco uniões, uma a natural e eterna da
pessoa do Pai com a pessoa do Filho em essência; outra, nova, da
natureza divina com a natureza humana na pessoa do Filho, ou, o
que é o mesmo, da pessoa divina do Filho com a natureza humana.
A terceira foi a união da graça e da vontade; pois Cristo foi cheio de
graça e de verdade, e fazia sempre o que era do agrado de Deus,
como Ele mesmo diz em São João (1 e 8); e a seu respeito não foi
só uma vez, que seu Pai disse:
“Este é aquele meu querido Filho, em quem tenho posto toda a
minha complacência” (Mt 3 e 17)
A quarta foi a união da glória, pois a alma de Cristo viu Deus desde
a sua conceição. A quinta foi a união de proteção, da qual Ele
mesmo diz:

“Quem me enviou está comigo, e não me deixou só” (Jo 8)


A primeira união é absolutamente inseparável e perpétua, porque é
união em essência divina, da qual Ele mesmo diz: Eu e meu Pai
somos um (Jo 8); e por isso não disse Cristo: Meu Pai, porque me
abandonaste? Mas: Meu Deus porque me abandonaste? Porque
o Pai não se pode dizer Deus do Filho senão depois da encarnação,
e em razão dela. A segunda união também nunca se dissolveu, nem
se pode dissolver, por que, o que uma vez tomou, nunca mais
deixou; pois diz o Apóstolo:
“Não perdoou ao próprio filho; mas por nós todos o sacrificou” (Rm
8)
E o Apóstolo São Pedro:

“Cristo sofreu por nós, o havendo Cristo padecido na carne” (1Pd 2;


4)
O que tudo prova que Cristo, que foi crucificado, não era somente
homem, mas verdadeiro Filho de Deus e Senhor. A terceira união
igualmente se conserva, e conservará, pois morreu o Justo pelos
injustos como diz São Pedro (1Pd 2); e nada nos teria aproveitado a
morte de Cristo, se a união da graça se tivesse dissolvido. A quarta
união não podia dissolver-se, porque não pode perder-se a bem-
aventurança da alma, por ser o agregado de todos os bens. Era,
pois a alma de Cristo, em virtude da sua parte superior,
verdadeiramente bem-aventurada. Veja-se Santo Tomás, 3.a parte,
questão 46, nº 8.
Resta por isto só a união da proteção que por pouco tempo se
interrompeu, para poder ter lugar a oferenda do sacrifício cruento
pela redenção do gênero humano, pois de muitos modos podia
Deus Pai proteger Cristo, e não consentir na Sua paixão, assim o
disse Cristo, quando no Horto estava fazendo oração:
“Meu, Pai, tudo te é possível, aparta de mim este cálice, mas não se
faça o que eu quero, e cumpra-se a tua vontade” (Mc 14)
E, quando se dirigiu a Pedro:

“Acaso cuidas tu, que eu não posso rogar a meu Pai, e que ele me
não auxiliará com mais de doze legiões de Anjos?” (Mt 26)
Podia mesmo Cristo, como Deus, livrar o Seu corpo das dores dos
tormentos; por isso Ele diz:

“Ninguém me tira a minha vida: sacrifico-a eu” (Jo 10)


O que muito antes Isaías tinha profetizado, dizendo:

“Foi sacrificado, porque assim o quis” (Is 53)


A alma bem-aventura de Cristo podia finalmente comunicar ao corpo
o dom da impassibilidade e da incorruptibilidade, mas foi da vontade
do Pai, foi da vontade do Verbo, foi da vontade do Espírito Santo,
permitir, para ser cumprido o decreto de todos três, que a força
humana prevalecesse contra Cristo no tempo determinado: esta,
pois, foi aquela hora da qual o Senhor disse aos que O iam prender:

“Esta é a vossa hora e o poder das trevas”(Lc 22)


Assim, pois, Deus abandonou seu Filho, quando permitiu, que a sua
carne humana sofresse, sem consolação nenhuma, acerbíssimas
dores. Cristo, bradando, deu conhecer este abandono; sem dúvida,
para dar a conhecer a todos o avultado preço da redenção, pois até
àquela hora tinha sofrido tudo com tanta paciência e resignação,
que poderia acreditar-se, que se Lhe tinha paralisado a
sensibilidade. Não se queixou dos Judeus, que O tinham acusado;
nem de Pilatos, que O sentenciou à morte, nem dos algozes, que O
crucificaram; não gemeu; não deu um grito; não deu a conhecer por
sinal nenhum o martírio que sofria, estando, porém próximo à morte
quis, que para o gênero humano pudesse avaliar o preço da
redenção, e principalmente para que nós, seus servos, não
fôssemos ingratos a tamanho benefício, fazer conhecer
publicamente os tormentos da Sua paixão, e assim aquelas
palavras:
“Meu Deus, porque me abandonaste?”
Não mostram em Cristo nem acusação, nem indignação, nem
queixume, mas, como eu já disse, exprimem com a mais justificada
razão, e na ocasião mais própria, a medida do quanto sofreu na sua
Paixão.

Referências:

(1) Lib. 2.
(2) Lib. 9. cap. 6,
(3) Apolog. Oros. Lib. 7. cap. 4.
(4) Comment. in Mat.

Capítulo XIV.
Do primeiro fruto da quarta palavra

Explicamos brevemente o que, quanto à Historia, diz respeito à


quarta palavra. Agora a primeira consideração, que se nos oferece,
para da árvore da cruz colhermos alguns frutos, é a de ter Cristo
querido esgotar o cálice da Paixão completamente todo até a
última gota. Tinha de estar na Cruz três horas, da 6ª até à 9ª, nela
esteve três horas inteiras completas e mais que completas; pois foi
crucificado antes da 6ª e expirou depois da 9ª, como se prova com o
seguinte argumento: O eclipse começou à hora 6ª, como dizem três
Evangelistas, São Mateus, São Marcos, e São Lucas; e
expressamente São Marcos:

“E chegada a hora de Sexta, se cobriu toda a Terra de trevas até a


hora de Nona” (Mc 15)
E três das sete palavras do Senhor, proferidas na cruz, foram-no
antes de começarem as trevas, e antes da hora sexta; e as quatro
últimas, depois das trevas e por isso mesmo depois da hora 9ª. São
Marcos, porém, ainda com mais clareza explica tudo, dizendo:

“Era a hora de Terça, quando o crucificaram”


E depois acrescenta:

“E chegada a hora de Sexta converteu-se o dia em trevas”


Quando diz que o Senhor foi crucificado na hora de terça, quer
dizer, que esta hora ainda não estava completa, e por isso, que
ainda não tinha começado a de sexta; pois São Marcos exprime-se
pelas horas principais, e cada uma delas contém três horas
ordinárias, e é segundo este modo de contar o tempo (Mt 20), que o
Pai de família convidou trabalhadores para a vinha na hora 1ª, 3ª,
6ª, 9ª e 11ª; é, que nós designamos as horas Canônicas por Prima,
Terça, Nona e Vésperas, que é a undécima. Por isto em São Marcos
se lê, que o Senhor foi crucificado na hora de Terça, porque ainda
não tinha começado a de Sexta.

Quis o Senhor beber o cálice da Paixão, completamente cheio,


a transbordar, para nós aprendermos a gostar do cálice amargo
da penitência e dos trabalhos; e a não nos deleitarmos com o
cálice dos prazeres e delícias do mundo. Nós, segundo os
apetites da carne, e do século, desejamos pequenas penitências e
grandes indulgências, pouco trabalho e muito regalo, pequena reza
e muita palestra, mas na verdade não sabemos o que havemos de
pedir; pois segundo a exortação do Apóstolo aos Coríntios:

“Cada um receberá a sua recompensa segundo o seu trabalho, e


não será coroado senão o que combater conforme a Lei” (1Cor 3)
A felicidade sempiterna mereceria sem dúvida um trabalho
sempiterno para ela se conseguir; porém, porque, se fosse
necessário um trabalho assim nunca chegaria a consegui-la;
satisfez-se o Senhor de piedade com que somente nesta vida que
foge como sombra, cada um de nós segundo as suas forças, se
empenhe na prática de boas obras e em seu serviço, por isso
não tem coração, não pensam, não raciocinam, não são moços,
mas crianças, os que passam esta curta vida no ócio, e o que muito
pior, é ainda, pecando gravemente e provocando a ira de Deus.
Pois, se convém que Cristo padecesse e assim entrasse na Sua
glória (Lc 24, 26), como havemos nós, passando a vida em
divertimentos e estragando o tempo nos deleites da carne, ser
participantes da glória que não é nossa? Se o Evangelho fosse
muito escuro e não pudesse interpretar-se ou entender-se sem
grande dificuldade, talvez tivéssemos alguma desculpa, mas ele
está tão explicado pelo seu Autor com o exemplo da Sua própria
vida, que até para os cegos é claro; e não só o temos explicado por
Cristo, mas são tantos os comentários que explanam o seu sentido,
quantos são os Apóstolos, Mártires, Confessores, Virgens, e
finalmente os Santos, cujos louvores e triunfos todos os dias
celebramos. Todos eles, clamando, nos estão dizendo que as portas
do Céu não se abrem com a chave de muitos deleites, mas como a
de muitas tribulações (At 14).

Capítulo XV.
Do segundo fruto da quarta palavra

Outro fruto, e muito precioso, se pode colher da consideração do


silêncio de Cristo nas três horas que decorreram da sexta até a
nona. Que fez então o teu Senhor, dize-me, minha alma, naquelas
três horas? Estava o universo envolvido em horror e trevas e o teu
Deus não descansava deitado em brando leito, mas estava
pendente da Cruz, nu, cheio de dores e sem consolação nenhuma.

Tu, Senhor, que és o único que sabes os horríveis tormentos que


padeceste, ensina os teus servozinhos a avaliarem quanto Te
devem e a que, ao menos com piedosas lagrimas de Ti se
compadeçam, e saibam algumas vezes privar-se neste desterro por
amor de Ti de tudo quanto for regalo, se assim for da Tua vontade.
Eu, filho, em toda a minha vida mortal, que toda foi trabalho e
mortificação, nunca sofri tormentos maiores do que naquelas três
horas; nem também sofri nunca de melhor vontade do que naquele
espaço de tempo. Então, pelo cansaço do corpo cada vez mais se
me rasgavam as chagas e se aumentava a violência das dores.
Então por falta do calor do Sol, o frio subindo de intensidade,
agravava o meu sofrimento por estar de toda parte desagasalhado.
Então as trevas, que me tiravam a vista do Céu e da Terra, e de
todos os objetos da criação, obrigavam-me de certo modo a não
pensar senão nos meus tormentos. Assim aquelas três horas
consideradas por este lado, pareciam-me três anos; porém o desejo
em que meu peito ardia da honra de meu Pai, de cumprir a Sua
vontade e da salvação das vossas almas, era tal, que quanto mais
as dores se exasperavam, mais aquele desejo crescia, fazendo com
que aquelas três horas me parecesse três minutos pelo grande
gosto com que eu sofria.

Ó piedosíssimo Senhor, em vista disso muito ingratos somos nós, a


quem é custoso empregar uma horazinha na meditação dos teus
tormentos, quando Tu de boa vontade sofreste para nos salvares,
estar cravado na Cruz três horas inteiras, no horror das trevas, ao
frio, nu, padecendo uma sede ardentíssima, e horrivelmente
martirizado! Ora dize-me, Amigo dos homens, eu te peço, se a
veemência das dores naquele tão dilatado espaço de três horas
pode desviar a tua alma da oração, porque nós, quando estamos
atribulados, principalmente se sofremos alguma dor forte, não
podemos sem grande custo rezar com atenção. Não fazia eu assim,
filho, mas na carne enferma tinha o espírito pronto para a oração.
Todas aquelas três horas em que nem uma palavra pronunciei,
foram por mim empregadas em orar por vós a meu Pai com a boca
do coração, mas também com a das chagas e do sangue. Eram
tantas as bocas com que eu, clamando, pedia por vós a meu Pai,
quantas eram as chagas em meu corpo; e muitas eram elas; e
quantas eram as gotas do sangue que eu derramava, tantas eram
as línguas que a meu Pai e também vosso, para vós pediam e
rogavam misericórdia. Confundiste completamente, Senhor, a
impaciência do Teu servo, que se for orar para rogar por si, ou
fatigado de algum trabalho, ou incomodado por alguma dor, apenas
pode elevar o pensamento a Deus; ou se por graça Tua o eleva, não
pode assim continuar por muito tempo sem se ressentir do
incômodo, do cansaço ou da dor. Compadece-Te, pois do Teu servo,
Senhor, pela Tua grande misericórdia, para que à vista de tamanho
exemplo que lhe dás, de paciência, ele aprenda a seguir os Teus
passos e a desprezar, ao menos quando estiverem rezando, os
seus pequeníssimos padecimentos.

Capítulo XVI.
Do terceiro fruto da quarta palavra

Quando o Senhor na Cruz disse bradando: Meu Pai, porque me


abandonaste, não o disse por ignorar a razão por que seu Pai o
abandonou. Como poderia, pois ignorá-lo Àquele, que tudo sabe? E
nesta conformidade respondeu o Apóstolo Pedro ao Senhor, quando
este lhe perguntou se ele O amava:
“Senhor, tu bem sabes, bem conheces que te amo” (Jo 21)
E o Apóstolo Paulo falando de Cristo, diz (Col 2): “Em que se acham
todos os tesouros da sabedoria e da ciência”, por isso não fez
aquela pergunta, para saber; mas a fim de nos exortar a
perguntarmos, para das respostas ficarmos sabendo muitas coisas
que nos são úteis, e mesmo necessárias. Mas porque abandonou
Deus seu Filho na Sua tribulação e no sofrimento das dores
atrocíssimas? Ocorrem-me cinco motivos que vou expor, para dar,
aos sábios ocasião de fazerem melhores e mais úteis indagações.
O primeiro me parece ser a grandeza e número das ofensas do
gênero humano contra Deus, às quais seu Filho se encarregou
de expiar à custa do seu sofrimento. O qual foi o mesmo que
levou os nossos pecados em Seu corpo sobre o madeiro, para que
mortos para os pecados vivam para a justiça, por cujas chagas
fostes vós curados, diz São Pedro (1Pd 2). A grandeza da ofensa,
que Cristo tomou ao Se aniquilar na Cruz, é na verdade de algum
modo infinita, em razão da pessoa infinita, da infinita dignidade, da
infinita excelência, que foi ofendida; mas também a pessoa do
satisfaciente, que o Filho de Deus, é de infinita dignidade e
excelência; e por isso qualquer pena a que Ele espontaneamente se
sujeitasse, ainda que fosse só o derramamento de uma gota de
sangue, seria bastante para expiação. Isto não admite dúvida, mas
para que a redenção fosse copiosa, e porque não era só uma
ofensa, mas eram quase inumeráveis, e porque o Cordeiro de Deus,
que tira os pecados do mundo, não se incumbiu só de expiar o
primeiro pecado de Adão, mas o pecado de todos os homens foi da
vontade de Deus que seu Filho sofresse penas inumeráveis e
atrocíssimas e é isto o que quer dizer aquele abandono, a respeito
do qual o filho diz a seu Pai:

“Porque me abandonaste?”
O segundo motivo foi a multidão e grandeza das penas do
inferno, às quais o Filho de Deus, para que nós pudéssemos
conhecê-las, quis apagar com tão forte aguaceiro dos Seus
tormentos. A intensidade do fogo do inferno mostra-a o profeta
Isaías, dizendo que é absolutamente intolerável, pois se expressa
assim:

“Quem de vós poderá habitar com o fogo devorador? Quem habitará


com as sempiternas chamas?” (Is 33)
Graças por isso demos de todo o coração a Deus, que quis
abandonar o seu Unigênito nos mais cruéis martírios, para nos livrar
dos ardores sempiternos. Graças demos também, e do íntimo dos
nossos corações, ao Cordeiro de Deus, que antes quis ser de Deus
abandonado, debaixo do cutelo degolador, do que abandonar-nos
Ele aos dentes da besta infernal, que sempre rói e nunca se farta de
roer.
O terceiro motivo é a grandeza do preço da graça divina, que é
aquela pedra preciosa (Mt 13), que Cristo, negociante
sapientíssimo, vendendo tudo quanto tinha, comprou para no-la dar.
A graça de Deus, que nos tinha sido dada em Adão, e que pelo
pecado de Adão nós perdemos, era uma pedra preciosa de tanto
valor, que nos adereçava de um modo admirável, tornando-nos
agradabilíssimos a Deus, e sendo o penhor da eterna felicidade.
Esta pedra preciosa que era toda a nossa riqueza, e que a astúcia
da serpente nos roubou, ninguém a podia reaver senão o Filho de
Deus, que com a Sua sabedoria venceu a malícia do Diabo, mas
com gravíssimo incômodo seu, expondo-Se a muitos trabalhos e a
muitos sofrimentos; venceu-a a piedade do Filho, que Se sujeitou a
uma jornada custosíssima e a uma enfadonhíssima peregrinação,
para nos recuperar aquela pedra preciosa.

O quarto motivo foi à grandeza eminentíssima do reino dos Céus,


cujas portas nos abriram à custa de imensos trabalhos e
sofrimentos por que passou o Filho de Deus, de quem a Igreja
canta com o maior reconhecimento:

“Tu, desarmando a morte, abriste aos crentes o reino dos Céus”


E para vencer o império da morte, foi-lhe preciso lutar com ela em
renhidíssimo combate, no qual seu Pai não O socorreu, para que o
Seu triunfo fosse mais glorioso.

O quinto motivo foi o grande amor que o Filho tinha a seu Pai,
pois desejava que a redenção do mundo, e aniquilação do
pecado, ficasse copiosíssima e superabundantíssimamente
satisfeita à honra do Pai Eterno; e isto não podia realizar-se não
abandonando o Pai seu Filho, isto é, sem consentir que Ele sofresse
todos os tormentos que o Diabo pode excogitar e de que o homem
pode ser vítima.

Se alguém perguntar por que abandonou Deus seu Filho, quando


cravado na Cruz, estava sofrendo os tormentos mais atrozes,
poderá responder-se-lhe que assim fez para se patentear a
grandeza do pecado, a das penas do inferno, a da graça divina,
a da vida eterna, e a do amor do Filho de Deus a seu Pai. Daqui
se resolve também outra questão (1); porque quis Deus misturar no
cálice dos sofrimentos de muitos mártires grande quantidade de
consolações espirituais de modo que eles antes queriam aquele
cálice com aquela mistura de consolações do que prescindir do
cálice sem elas; e permitiu que seu queridíssimo Filho, sem
consolação alguma esgotasse o Seu amargosíssimo cálice até às
fezes por assim dizer: pois a razão disto é que nos Santos Mártires
não se dava nenhum daqueles motivos que enumeramos na paixão
de Cristo.

Referências:

(1) Vide Rufinum, Hist. Ecles. Cap. 36

Capítulo XVII.
Do quarto fruto da quarta palavra

Pode adicionar-se aos frutos antecedentes um quarto fruto, nascido


não tanto da quarta palavra, quanto da circunstância da ocasião em
que ela foi proferida; quero dizer, das horrendas trevas, que sem
muito intervalo a antecederam, pois são elas muito apropriadas
para esclarecerem os Hebreus e para conservarem os Cristãos
na verdadeira fé se quiserem prestar séria atenção à força do
raciocínio que vamos propor, deduzido daquelas mesmas trevas.
Esta demonstração pode coligir-se sem dificuldade nenhuma de
quatro verdades.

A primeira é que estando Cristo na Cruz, o Sol se obscureceu


completamente todo, de modo que no Céu se viram as estrelas,
como se vêem de noite. Esta verdade resulta do dito de cinco
testemunhas, merecedoras de todo o crédito, de diversas
nacionalidades, e, que escreveram em diversos tempos e lugares, e
por isso não podiam escrever coisas que entre si tivessem
combinado, para as fazerem passar por fatos.

É a primeira de São Matheus (27), hebreu que escreveu na Judeia,


e um dos que viram o obscurecimento do Sol; e decerto um homem,
como ele era, sisudo e circunspecto, nunca escreveria na Judeia, e
dentro de Jerusalém, como é crível, coisas que não fossem
verdade; pois, fazendo-o assim, podia ser censurado e incorrer no
desprezo dos habitantes daquela cidade e território, escrevendo
como verdadeiras coisas, que todos sabiam que eram falsíssimas.

A segunda é de São Marcos (15), que escreveu em Roma, e viu


também aquele eclipse, por que estava então na Judeia com os
outros discípulos de Cristo.

A terceira é de São Lucas (23), que era grego, e escreveu na


Grécia, e que presenciou também o eclipse em Antioquia, sua
pátria, pois, tendo-o presenciado São Dionísio Areopagita em
Heliópolis, no Egito, mais facilmente podia presencia-lo São Lucas
em Antioquia, que fica mais próxima de Jerusalém do que
Heliópolis.

A quarta e quinta são de São Dionísio e Apolofanes, que eram


gregos, e ainda gentios, e que muito explicitamente dizem, que
viram o eclipse, e sobre ele pensaram sumamente admirados.

São estas as cinco testemunhas, que depõem de vista às quais


acrescem os anais dos antigos Romanos, e Flegon, cronógrafo do
imperador Adriano, como dissemos no capítulo primeiro. Por isso a
primeira verdade de modo nenhum pode ser negada sem louca
ousadia nem pelos Judeus, nem pelos pagãos, pois entre os
cristãos ela é de fé católica.

A outra verdade é que o mencionado eclipse não podia


acontecer senão pela Onipotência de Deus e por isto não podia
ser produzido de modo nenhum nem pelos demônios, nem pelos
homens, auxiliados por eles; mas sim só por especial providência e
vontade de Deus, Criador e Conservador do mundo. Esta verdade
demonstra-se da maneira seguinte. O Sol não pode eclipsar-se
senão por uma de três causas, ou interpondo-se a Lua entre ele e a
Terra, ou por alguma grande e densíssima nuvem; ou pela retração
e extinção dos seus raios. Quanto a primeira não podia
naturalmente ter lugar aquela interposição, porque sendo então a
Páscoa dos Judeus, achava-se a Lua oposta ao Sol, sendo por isso
necessário, que ou houvesse o eclipse sem interposição da Lua, ou,
que por um extraordinário e grandíssimo milagre, a Lua fizesse em
poucas horas o curso, que havia de completar em quatorze dias; e
que depois por outro milagre, como o primeiro, retrocedesse com
tanta velocidade, que no espaço de três horas fizesse outra vez o
caminho de quatorze dias. Ora no que respeita aos orbes celestes é
inquestionável, que ninguém tem poder senão Deus; pois os
demônios não tem poder senão no mundo sublunar; e é este o
motivo por que o Apóstolo (Ef 2) chama ao demônio príncipe do
poder desta atmosfera. Pela segunda causa não podia acontecer o
eclipse, porque, como já deixamos dito, uma nuvem densa e crassa
não pode ocultar-nos o Sol, sem também nos ocultar as estrelas; e
consta pelo testemunho de Flegon, que no eclipse que sucedeu na
Paixão de Cristo, se viram no Céu as estrelas, como se fôra noite.
Pela terceira causa não podia ele ter lugar, como todos sabem,
senão sendo retraídos ou extintos os raios do Sol por Deus, que o
criou. Por isso a segunda verdade não é menos certa, do que a
primeira; e não é preciso menos indiscrição; para negar esta, do que
para negar aquela.

A terceira verdade é, que as trevas, de que agora tratamos,


tiveram lugar por causa da crucificação de Cristo, e que foi
efeito da Divina Providência: verdade, que se demonstra de que
elas se conservaram o tempo, que Cristo, Senhor Nosso, esteve
vivo na Cruz; isto é desde a hora de sexta até à de nona, como
atestam todos os que daquele eclipse fizeram menção; e não podia
suceder por acasos que umas trevas, cheias de milagres,
coincidissem com a Paixão de Cristo, pois os fatos milagrosos não
sucedem casualmente, mas sim pela providência de Deus, e nem a
autor algum, de quem eu tenha conhecimento, que a outra causa
atribua aquele tão admirável eclipse. Os que conheciam Cristo
declararam que a Sua morte causara o eclipse, os que O não
conheceram, confessaram admirados a sua ignorância.

A quarta verdade é, que aquelas trevas, tão prodigiosas, nada


mais podiam significar senão, que a sentença de Caifás e
Pilatos foi tão injusta, quanto podia sê-lo, e que Jesus é
verdadeiro e próprio Filho de Deus, e o verdadeiro Messias, que
os Judeus foi prometido. Foi esta a principalíssima causa pela
qual eles exigiram a Sua morte, pois no conselho dos Pontífices,
dos Sacerdotes, dos escribas, e dos fariseus, vendo o Pontífice, que
os depoimentos produzidos contra Cristo, nada provavam,
ergueram-se, e disse:

“Eu te conjuro pelo Deus vivo, que nos digas, se tu és Cristo, Filho
de Deus” (Mt 26)
E declarando-lhe o Senhor, que O era, ele rasgou as Suas
vestiduras, dizendo:

“Blasfemou; que necessidade tem já de testemunhas, eis aí acabais


de ouvir agora uma blasfêmia. Que vos parece?”
Ao que eles responderam:

“É réu de morte”
Depois em presença de Pilatos, que desejava livrar o Senhor,
disseram os pontífices e ministros:

“Nós temos lei, e, segundo ela, deve morrer, porque se fez Filho de
Deus” (Jo 19)
Foi, pois esta, como fica dito, principalíssima causa por que o
Senhor foi condenado à morte, como tinha predito o profeta Daniel,
dizendo:
“Cristo será morto, e não tornará a ser o seu povo o povo que há de
negar” (Dn 9)
E foi este motivo, porque Deus na Paixão do Senhor envolveu o
mundo naquelas horrendas trevas, para mostrar com a maior
evidência, que erraram os pontífices, que errou o povo, que errou
Pilatos, que errou Herodes, e que o que estava pendente na Cruz,
era o Seu verdadeiro Filho, e o Messias prometido. Que Ele o era,
disse-o o Centurião em bem alta voz à vista dos sinais celestes:

“Na verdade este era o filho de Deus” (Mt 27)


E de outro modo: “Sem dúvida este homem era justo” (Lc 23), pois
conheceu que aqueles sinais eram como a voz de Deus, que
reprovava a sentença de Caifás e Pilatos, e que afirmava, que
aquele homem fôra contra todo o direito condenado e executado,
sendo Ele o autor da vida, o verdadeiro Filho de Deus e o Cristo,
prometido na Lei. Pois que outra coisa quereria Deus dar a
conhecer com aquelas trevas, às quais acresceu fenderem-se as
pedras e rasgar-se o véu do Santuário, senão que Ele virará as
costas ao Povo, que em outro tempo era Seu, e que estava contra
ele encolerizadíssimo, por ele não ter conhecido o tempo da Sua
vinda, que o Senhor claramente lhe predisse, segundo São Lucas?
(19).
Se os Judeus considerassem nisto e ao mesmo tempo notassem
que eles desde então foram dispersos entre as nações; que não
tornaram a ter nem Rei, nem Pontífices, nem altar, nem sacrifícios,
nem milagres, nem respostas de profetas; certamente conheceriam,
que Deus os abandonara, e o que muito mais miserável é ainda,
que ficaram réprobos, e que neles se está verificando à profecia de
Isaías, quando apresenta o Senhor a falar-lhe, dizendo:

“Vai e dize a esse povo: ‘Ouvi bem claramente, e não quereis


entender, vede perfeitamente, e não quereis conhecer’. Cega o
coração deste povo, tapa-lhe os ouvidos, fecha-lhe os olhos, para
que ele não veja com seus olhos, não ouça com seus ouvidos, nem
entenda, para que se não converta e eu o salve” (Is 6)
Capítulo XVIII.
Do quinto fruto da quarta palavra

Nas primeiras palavras nos recomendou Cristo, nosso Mestre, três


excelentes virtudes: caridade com os nossos inimigos, compaixão
com os infelizes, e acatamento a nossos pais. Nas quatro seguintes
nos recomenda quatro não mais excelentes que aquelas, mas não
menos necessárias para nosso bem: a humildade, a paciência, a
perseverança , a obediência. A humildade que propriamente se
pode dizer virtude de Cristo, pois nenhuma ideia dela nos dão os
escritos dos sábios deste mundo, não só Ele a praticou em todo o
decurso da Sua vida; mas, além disto, se declarou por termos, nada
equívocos, mestre desta virtude, dizendo:

“Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11)


Nunca tão declaradamente, porém nos recomendou esta virtude, e
juntamente a da paciência, que dela é inseparável, como, quando
disse:

“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”


Pois com esta expressão nos mostra o Senhor, que por permissão
de Deus toda a Sua glória e primazia se tinha obscurecido na
presença dos homens, o que também queriam dizer aquelas trevas,
nem o Senhor pôde, sem a mais rendida humildade e paciência
sujeitar-Se aquele abatimento.

A glória de Cristo, da qual fala São João no princípio do seu


Evangelho, dizendo:

“E nós vimos a sua glória, glória como de Filho unigênito do Pai,


cheio de graça e de verdade” (Jo 1)
Consistia no poder, na sabedoria, na probidade, na majestade de
Rei, na beatitude da alma, e na dignidade divina, que Ele teve como
verdadeiro e natural Filho de Deus. Todas estas excelências
obscureceu a sua Paixão, e este obscurecimento dizem-no aquelas
palavras:

“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”


A Paixão obscureceu-Lhe o poder, porque cravado na Cruz
parecia, que nenhum poder tinha; e por isso os príncipes, os
soldados, e até o mesmo mau ladrão, O insultavam, dizendo-Lhe,
que Ele nada podia:

“Se tu és Cristo, desce da Cruz, Salvou os outros e não pode salvar-


Se a Si!” (Mt 27)
Quanta paciência e quanta humildade não foram necessárias, para
nenhuma resposta dar a estes insultos Aquele que era
verdadeiramente onipotente?

A Paixão obscureceu-Lhe a sabedoria; pois em presença dos


príncipes, sacerdotes de Herodes e de Pilatos não responderam a
muitas perguntas, que Lhe foram feitas, parecendo, que não sabia o
que havia de responder, sendo por isto, depois de vestido de branco
por ordem de Herodes, escarnecido por ele, e pelos seus soldados
(Lc 23). Quanta paciência, quanta humildade, não precisou para tal
suportar, quem não só era mais sábio que Salomão, mas era a
mesma sabedoria de Deus?!

A Paixão obscureceu-Lhe a probidade da sua vida, quando


estava cravado na Cruz entre dois ladrões, como se fosse um
revolucionário e usurpador de um reino, que Lhe não pertencia, e
esta glória da Sua inocência mais parecia ainda obscurecer-Lhe
aquele abandono de Deus, que Ele mesmo confessava, dizendo:

“Porque me abandonaste?”
Pois Deus não desampara os bons, mas sim os maus. Todos os
orgulhosos tem muita cautela, para não dizerem coisa nenhuma da
qual, quem a ouvisse, pudesse suspeitar que eles mesmos
confessassem a sua indignidade; mas os humildes, os sofredores,
de quem Cristo foi o Rei, de boa vontade aproveitam qualquer
ocasião de mostrarem a sua humildade e paciência, com tanto que
não faltem à verdade. Quanta humildade, pois, quanta paciência,
não mostrou em sofrer isto, Aquele de quem e Apóstolo, diz:

“Porque tal Pontífice convinha que nós tivéssemos, santo, inocente,


imaculado, segredado dos pecadores, e mais elevado que os Céus”
(Hb 7)
A régia majestade de tal modo lh’a obscureceu a Paixão, que
Lhe trocou o áureo diadema por uma corôa de espinhos, o cetro por
uma cana, o trono pelo patíbulo, o cortejo real por dois ladrões. Que
humildade, que paciência, não devia ser a do Rei dos reis, do
Senhor dos senhores, do Príncipe dos reis da Terra?! (Ap 1).

Que direi da beatitude, da alma de Cristo logo depois da Sua


conceição, beatitude, que Ele, se quisesse, podia comunicar ao Seu
corpo? Quão fortemente Lhe não obscureceu esta glória a sua
Paixão, tornando-O sujeito às dores, conhecedor da Sua fraqueza,
desprezado, e tido como o último dos homens, segundo Isaías (53),
e sendo Ele mesmo, quem pela intensidade dos tormentos, gritava:

“Meu Deus, porque me abandonaste?!”


Finalmente a Sua elevadíssima dignidade de Pessoa Divina
obscureceu-Lhe de tal modo a sua Paixão, que Aquele que se
senta não só acima de todos os homens, mas também acima de
todos os anjos, chegou a dizer por causa dela:

“Sou um verme e não um homem; sou o opróbrio dos homens, e o


desprezo da plebe” (Sl 21)
A tão grande humilhação desceu finalmente Cristo, porém não ficou
ela sem grande exaltamento, pois o que Deus mesmo muitas vezes
prometeu, dizendo:

“Todo aquele que se humilhar será será exaltado” (Mt 23; Lc 14 e


18)
Se cumpriu na pessoa de Cristo. Assim o certifica o Apóstolo,
dizendo:

“Humilhou-Se, obedecendo, até sacrificar a Sua própria vida


morrendo numa Cruz; pelo que não só Deus O exaltou, mas até Lhe
deu um nome, cuja excelência é superior à de todos os nomes; pois
ao nome de Jesus tudo dobra o joelho, no Céu, na Terra, e no
Inferno” (Fl 2)
Assim o que foi o último, foi elevado à primazia; a Sua humilhação
foi brevíssima e, quase momentânea; porém o Seu exaltamento é
sempiterno. O mesmo vemos que tem acontecido aos Apóstolos, e
a todos os Santos, pois São Paulo nos diz (1Cor 4), que aqueles
foram tidos em conta de lixo e lama dos sapatos, isto é, das coisas
mais desprezíveis que se deitam à rua e são calcadas pelos
transeuntes, tal foi, a humildade dos Apóstolos. Qual foi, porém a
sua elevação? São João Crisóstomo (1) no-la declara dizendo, que
eles agora no Céu estão próximos do trono de Deus, onde os
Querubins o glorificam, onde voam os Serafins; isto é, que tem o
mesmo lugar que os príncipes do Reino do Céu, o qual nunca
perderá. Certamente, se os homens atentamente considerassem
quão honrosos seja imitar no mundo, a humildade do Filho de Deus,
e pudesse ao mesmo tempo de algum modo imaginar, a quão
grande primazia se sobe pela escada da humildade; poucos seriam
sem dúvida os soberbos, porém, porque a maior parte deles mede
tudo pelos estímulos da carne, e pelas considerações, mundanas,
não admira que tão rara seja no mundo aquela virtude, e infinito o
número dos soberbos.

Referências:
(1) Hom. 32, In Epist. ad Roman.

Capítulo IX.
“Tenho sede”. Explica-se literalmente a quinta palavra

Explica-se literalmente a quinta palavra


Segue-se a quinta palavra mencionada por São João, e para
inteligência da qual é preciso acrescentar as outras, pelas quais se
exprime o Evangelista, assim os antecedentes como as
consequentes. Diz São João:

“Depois sabendo Jesus, que tudo estava comprido, disse, para se


cumprir uma palavra, que ainda restava da Escritura — Tenho sede
— Tinha-se ali posto um vaso, cheio vinagre, e eles, molhando nele
uma esponja, que depois pulverizaram com hissopo, chegaram-lhe
à boca” (Jo 19)
Estas palavras querem dizer o seguinte: Nosso Senhor quis cumprir
tudo o que da Sua vida e morte tinham antecipadamente sabido e
predito os profetas inspirados pelo Espírito Santo; e porque estando
cumprido tudo o mais só restava, estando sequioso, beber o
vinagre, segundo o versículo do Salmo 68: Tendo eu sede, deram-
me a beber vinagre, disse claramente, Tenho sede; e os que ali
estavam, chegaram-Lhe à boca uma esponja ensopada em vinagre,
e posta numa cana. Nosso Senhor disse: Tenho sede, para se
cumprir a Escritura. Mas porque o disse somente para cumprimento
da Escritura, e não porque na realidade tivesse sede e quisesse
apagá-la? Pois o Profeta não o predisse, para se realizar a predição;
predisse-o, porque tinha previsto o futuro, e disse que havia de
acontecer, porque se havia de realizar, ainda que não fosse previsto.
Por isso a previsão ou a predição não é a causa do que futuramente
há de acontecer; mas o fato, que há de suceder, é a causa dele
poder ser previsto ou predito. Descobre-se nisto um grande mistério.
O Senhor padeceu, sem dúvida, ardentíssima sede desde o começo
da Sua crucificação e esta sede foi sempre aumentando cada vez
mais, de modo que foi um dos maiores tormentos, que o Senhor
passou na Cruz; pois a perda de sangue em grande quantidade
seca, e origina por isso a sede.
Conheci um sujeito, que tendo perdido muito sangue por muitos
ferimentos, nada mais apetecia senão água como se nada mais
sofresse além da sede no maior auge. O mesmo se lê na vida do
mártir São Emeramo (1) que, amarrado a um poste, e muito ferido,
só de sede se queixava. Como não havia então Cristo de padecer
uma sede de abrasar, tendo derramado muito sangue na flagelação
depois de tão fatigado, e tendo depois de cravado na Cruz, quatro
fontes abertas a vertê-lo já há tanto tempo e em tanta abundância?!
E, apesar disto, tinha silenciosamente suportado três horas tão
acerbo sofrimento, e poderia assim continuar até à morte, que já
estava próxima. Porque razão, pois sofreu em silêncio e por tanto
tempo tamanho martírio, e só quase a morrer o patenteou,
dizendo: Tenho sede, senão porque era vontade de Deus, que todos
nós soubéssemos que Cristo foi vítima desta nova espécie de
tormento? Foi por isto que o mesmo Pai celeste quis que o profeta
predissesse que Ele se havia de dar na pessoa de Cristo, e ao
mesmo Jesus Cristo, Senhor Nosso, inspirou que, para exemplo de
paciência para os Seus fiéis, declarasse que sofria este novo e
insuportável martírio. Por isso disse:
«Tenho sede, isto é, falta já no meu corpo toda a umidade; secaram
as minhas veias; secou a minha língua; secou o meu paladar; secou
a minha garganta; estou todo seco por dentro, se alguém quer
regalar-me dê-me de beber»
Saibamos agora a bebida que lhe deram os que estavam próximos
da Cruz:

“Estava ali um vaso cheio de vinagre, e eles ensopando nele uma


esponja, e tendo-a pulverizado com hissopo, chegaram-lhe à boca”
Ó consolação, ó refrigério! Estava ali um vaso cheio de vinagre, que
é nocivo às feridas, e acelera a morte; e por este motivo ali o tinham
para mais depressa fazerem morrer os crucificados.
São Cirilo (2) escreve a respeito desta passagem da Paixão o
seguinte:

«Em lugar de uma bebida refrigerante e agradável deram-lhe uma


prejudicial e azeda»
E isto torna-se mais crível em vista do que São Lucas escreveu no
Evangelho

“Escarneciam-nO os soldados, chegando-se a Ele, e oferecendo-


Lhe vinagre” (Lc 23)
E posto que São Lucas diga que eles assim fizeram pouco depois
que Cristo foi cravado na Cruz, é de crer que eles, quando Lhe
ouviram dizer Tenho sede, Lhe deram por uma esponja posta numa
cana, o vinagre, que até então por zombaria Lhe tinham oferecido.
Em suma, assim como no princípio, pouco antes da crucificação,
Lhe ofereceram vinho, misturado com fel (Mt 27), assim também no
fim da vida Lhe ofereceu vinagre (Jo 19) nocivo às feridas, para que
desde o princípio até o fim, toda a Paixão de Cristo fosse pura e
verdadeira paixão sem refrigério nenhum.

Referências:

(1) Vide Surium ad diem 22 septembr.


(2) Lib. 22, cap. 35, in Joan

Capítulo XX.
Do primeiro fruto da quinta palavra
O Antigo Testamento explica-se a maior parte das vezes pelo Novo,
porém neste mistério da sede do Senhor as palavras do Salmo 68
podem ter-se como comentário do Evangelho; pois nele não se diz
claramente, se os que ofereceram vinagre ao Senhor, na Sua sede,
o fizeram por obséquio, se para mais O atormentarem; isto é, se por
amor, se por ódio. Nós com São Cirilo tomamos a má parte aquele
oferecimento do vinagre: são, porém, tão claras as palavras do
Salmo, que não carecem de explicação; e delas colheremos o
fruto de aprendermos de Cristo a termos a sede que devemos
ter: a sede da salvação. As palavras do profeta são as seguintes:

“Esperei por quem tomasse parte na minha tristeza; e ninguém a


tomou; esperei que alguém me consolasse; e ninguém me deu
consolação, na minha fome deram-me fel, e vinagre na minha sede”
Por isso os que a Cristo, Senhor Nosso, deram pouco antes de ser
crucificado, vinho misturado com fel, e os que depois de crucificado,
Lhe ofereceram vinagre, eram daqueles de quem Ele se queixa,
dizendo: Esperei por quem tomasse parte, etc.
Mas, poderia alguém perguntar, se nem a Beatíssima Virgem, Mãe
do Senhor, nem sua irmã, Maria de Cléofas, nem Maria Madalena,
que com o Apóstolo São João, estavam em pé junto da Cruz, se
achavam profundamente contristados, se também não tomavam
parte na tristeza de Cristo aquelas mulheres, que, chorando,
acompanharam o Senhor ao Calvário; se, finalmente não estavam
tristes todos os Apóstolos, a quem o mesmo Cristo tinha dito antes
da sua Paixão:

“O mundo se alegrará; vós, porém vos entristecereis” (Jo 16)


Estavam sem dúvida triste e bem tristes todas estas pessoas; porém
não tanto, como Cristo, porque não era o mesmo o motivo da
tristeza. Elas estavam tristes pela Paixão e morte do corpo de
Cristo, a tristeza dEle não provinha desta causa, que só por curto
espaço de tempo nEle atuou no Horto, para mostrar que era
homem, pelo contrário dizia:
“Não pode ser maior o desejo que tenho de comer convosco esta
Páscoa antes da minha Paixão” (Lc 22)
E em outra parte:

“Se me amásseis certamente estareis contentes, porque vou para


meu Pai” (Jo 14)
Qual era então a causa da tristeza do Senhor, na qual Ele não
achou quem se entristecesse como Ele? A perda das almas, pelas
quais ia padecer. E qual era a causa da consolação, em que Ele não
achou quem O consolasse, senão a salvação das almas, que era a
sede, que O devorava? Era esta a única consolação, que Ele
almejava, a única que apetecia; era esta a Sua fome, era esta a Sua
sede; aquela satisfizeram-Lhe com fel, esta mitigaram-Lhe com
vinagre. O amargor do fel indica os pecados, que os quais nada
há mais amargoso para quem não tem o paladar estragado; o
azedo do vinagre significa a obstinação do pecado e por isto
com razão Cristo se entristecia, vendo que por um ladrão convertido
não só ficava obstinado o outro, mas obstinados ficavam outros
muitos, e que dos próprios Apóstolos quase todos se tinham
escandalizado; que Pedro O negara; e que Judas tinha desesperado
da sua salvação.

Se alguém, pois quiser consolar e aliviar Cristo crucificado, sofrendo


fome e sede, e por isto muito triste e aflito, ofereça-se-Lhe primeiro
verdadeiramente arrependido e detestando os seus pecados; e
depois se entristeça muito com Ele, por ser tamanho o número
das almas, que todos os dias se perdem, podendo tão
facilmente salvar-se todos os homens, se quisessem aproveitar-
se do preço da redenção. Era sem dúvida um dos que com Cristo se
entristeciam por esta causa o Apóstolo São Paulo, dizendo na
Epístola aos Romanos:

“Eu digo a verdade em Cristo, não minto, dando-me testemunho a


minha consciência, no Espírito Santo, que tenho grande tristeza e
contínua dor no meu coração porque eu mesmo desejara ser
anátema de Cristo por amor de meus irmãos, que são do mesmo
sangue que eu, segundo a carne, que são os Israelitas, dos quais é
a adoção dos filhos, etc.” (Rm 9)
Não podia ele expressar melhor o seu desejo da salvação das
almas do que se servindo da exageração— desejava ser anátema
por Cristo. — Segundo São João Crisóstomo no seu livro da
compunção do coração (1) e na Epístola aos Romanos, quer o
Apóstolo dizer, que era tamanha a sua tristeza pela condenação dos
Judeus, que se fosse possível, desejaria ele separar-se de Cristo
por amor de Cristo; não desejando, porém separar-se do amor de
Cristo, a respeito do qual pouco antes tinha dito:

“Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8)


Mas sim da Glória de Cristo, querendo antes ser privado da gloria
do Céu, do que ser Cristo privado de tão grande fruto da sua
Paixão, quanto era o da conversão de muitos mil Judeus, se ela se
realizasse. Este com certeza se entristecia com Cristo, e Lhe
consolava a sua mágoa, mas poucos são hoje os que o imitem, pois
não são poucos os pastores de almas, que mais se entristecem pela
diminuição ou acabamento dos rendimentos das suas Igrejas, do
que pelo muito número de almas, que se perca, ou por eles
abandonarem o seu rebanho ou pelo pouco cuidado com que dele
tratam.

«Menos nos incomoda, diz São Bernardo falando dos Bispos (2), o
prejuízo de Cristo, do que o nosso. Todos os dias tratamos de
averiguar com toda a miudeza as despesas diárias, e ignoramos as
contínuas perdas do rebanho do Senhor»
Não cuide o prelado, que satisfaz à sua obrigação só por viver
piamente, e por fazer diligências em seguir, como particular, as
virtudes de Cristo, sem tornar piedosos também os seus
súditos, ou, melhor, seus filhos, e sem os guiar pelos vestígios
de Cristo para a vida eterna, por isso, se quer sofrer com Ele, com
Ele entristecer-se, e consolá-lO na sua mágoa, vigie assiduamente
sobre o seu rebanho, não desampare as suas ovelhinhas; dirija-as
com a palavra; e caminhe adiante delas como exemplo.

Dos particulares pode também Cristo queixar-se com razão, por


eles se não contristarem, nem Lhe darem lenitivo à sua pena; e, se
na Cruz Ele se queixava justamente na perfídia e obstinação dos
Judeus, que Ele estava vendo, que desprezavam tantos trabalhos
seus e tantos martírios, e que, com frenéticos, rejeitavam o tão
precioso remédio do seu sangue; quanto se não poderá Ele
queixar agora, vendo, não na Cruz, mas no Céu, que os seus
crentes, ou que se fingem sê-lo, nenhum caso fazem da sua
Paixão, calcam o seu sagrado sangue, e que nada, mais Lhe
oferecem senão fel e vinagre, isto é, que, sem considerarem no
julgamento de Deus, e sem temor das penas eternas,
multiplicam os seus pecados? Há festa no Céu, quando um
pecador se arrepende (Lc 15), mas, se pouco depois o que pela fé e
batismo parecia nascido em Cristo, e que pela penitência parecia ter
voltado da vida à morte, torna a morrer, pecando, não se converte a
alegria em tristeza, o leite em fel, o vinho em vinagre? Sem dúvida a
mulher, que no parto se vê angustiada, esquece-se logo da aflição
que sofreu, se o menino veio vivo, porque nasceu um homem ao
mundo (Jo 16), mas, se ele nasceu morto, ou morreu pouco depois
de nascer, não será dobrada a sua dor? Assim também muitos
passam o trabalho de confessarem os seus pecados, e talvez de
jejuarem e darem esmolas; mas porque por uma consciência
errônea ou ignorância, que não tem desculpa, não conseguiram o
perdão dos seus pecados, não sofrem eles também neste parto, e
não se reduz ele a um aborto, e não é duplicada a pena que assim
causam a si mesmos e aos seus pastores? São estes homens
semelhantes ao enfermo, que morre mais depressa, por ter tomado
um medicamento amargosíssimo, com que esperava curar-se; ou ao
lavrador, que depois de muito trabalhar na cultura da vinha, ou do
campo, perde toda a produção, fruto da sua fadiga, porque o
destruiu uma saraivada, que se não esperava. Bem lástima com
razão merece isto; e quem o lastima, e se entristece esse se
contrista com Cristo na Cruz: e quando para evitá-lo, faz quanto
pode, esse suaviza admiravelmente os sofrimentos de Cristo
crucificado, e compartilhará da sua alegria no Céu, e lá reinará com
Ele.

Referências:

(1) Liv. 8, hom. 18


(2) Liv. 4 de Consid., cap. 9

Capítulo XXI.
Do segundo fruto da quinta palavra

Ocorre-me outra consideração, e não de pequena utilidade, quando


medito na sede de Cristo crucificado. Parece-me, pois que o Senhor
disse: Tenho sede, no mesmo sentido em que disse à
samaritana: Dá-me de beber; porque pouco depois, explicando o
mistério do que lhe dissera, acrescentou:
“Se conhecesses o dom de Deus, e quem é que te pede, que lhe
dês de beber, talvez tu lhe pedisses, que te desse água viva”
Como poderá, porém ter sede, quem é fonte de água viva? Não
falava Cristo de si, quando no Evangelho: Se alguém tem sede,
venha a mim e beba? (Jo 7) e não é Ele mesmo aquela pedra, de
que fala o Apóstolo aos Coríntios (1Cor 10): Bebiam da pedra, que
os seguia, e a pedra era Cristo? Não é Ele aquele mesmo que diz
aos Judeus por Jeremias (Jer 2): Abandonaram-me, sendo eu a
fonte d’água viva; e para si cavarem cisternas, cisternas rotas, que
não podem conter a água. Parece-me, pois que estou vendo Cristo
na Cruz, como numa elevada atalaia, vendo todo o mundo cheio de
gente sequiosa, e desfalecida pela sede, e que o mesmo Senhor,
compadecido, quando sofria a Sua sede corporal, daquela sede
geral do gênero humano, gritara: Tenho sede, isto é, estou sem
dúvida sequioso, porque se esgotou já o humor do meu corpo: esta
sede, porém breve terminará, mas a minha maior sede é de que os
homens conheçam pela fé que eu sou a verdadeira fonte de
água viva, e de que venham a mim e bebam, e não tornem a ter
mais sede.
Ó felizes nós, se com toda a atenção possível ouvíssemos este
sermão do Verbo encarnado! Pois não padecem quase todos os
homens a sede ardentíssima e insaciável de beberem as águas
nocivas e enlodadas dos objetos transitórios e caducos que
vulgarmente se chamam bens, dinheiro, honras e prazeres? E
quem, bebendo desta água, não tornou a ter sede? E quem foi que,
seguindo a doutrina de Cristo, nosso Mestre, bebendo da água da
sabedoria celeste e da caridade divina, não sentiu logo extinguir-se-
lhe a sede dos objetos mundanos e começar a desejar a vida
eterna, e apetecer os bens do Céu, abandonando os importunos
cuidados, de adquirir e acumular bens terrenos? Esta água corrente,
que não sobe da terra, mas que desce do Céu, e que o Senhor que
dela é fonte, nos concederá, se a pedirmos com fervorosas súplicas,
e com fontes de lágrimas, não só nos apagará a sede das coisas,
terrenas, mas também nos será comida e bebida, que nunca nos há
de faltar durante toda a nossa peregrinação. Diz Isaías:

“Todos os que têm sede, venham ás águas” (Is 55)


E, para que não cuides que é simples água, ou então água que te
custará muito caro, acrescenta:

“Apressai-vos, vinde, e comprai sem dinheiro, e sem permutação


alguma, vinho e leite”
Diz Isaías, desta água comprai, porque ela não se adquire sem
algum trabalho, isto é, sem a própria disposição: consegue-se,
porém, sem por ela se dar dinheiro ou coisa que o valha, porque se
dá de graça, nem podia achar-se preço algum que lhe
correspondesse; e ao que pouco antes chamara água, chama agora
vinho e leite, por ser uma coisa preciosíssima, que juntamente
compreende a virtude, ou perfeição da água, do vinho, e do leite.
A verdadeira sabedoria e caridade é representada pela água,
porque refrigera os ardores da concupiscência; pelo vinho, porque
aquenta e embriaga a alma com a mais sobriedade; pelo leite,
porque nutre com um agradável alimento, principalmente os
meninos em Cristo, segundo diz o Apóstolo São Pedro:

“Como meninos recém-nascidos, desejai o leite” (1Pd 2)


Esta mesma verdadeira sabedoria e caridade, oposta à
concupiscência carnal, é aquele jugo suave e peso leve (Mt 11), ao
qual, aqueles que de boa vontade se submetem, acham para as
suas almas o verdadeiro e perdurável descanso, de modo que não
tornam a sofrer sede, nem precisam de tornar a tirar água dos poços
terrenos. Este dulcíssimo descanso das almas abriu as solidões,
encheu os mosteiros, reformou o clero, e até levou os casados a
não pequena moderação. O palácio do imperador Teodósio Junior
parecia-se certamente com um grande mosteiro (1), e a casa do
conde Elzeario, representava um mosteiro pequeno (2): nem
naquele palácio, nem naquela casa havia questões ou ralhos; mas
ressoavam freqüentíssimamente os salmos e cânticos sagrados.
Isto tudo devemos nós a Cristo, que com a Sua sede apagou a
nossa sede, e como fonte perene de tal sorte regou com as águas
que incessantemente dela correm os campos dos nossos corações,
que eles não receiam secar, só se por instigação do demônio (o que
Deus não permita) se apartar da mesma fonte.

Referências:

(1) Soc. liv. 7, cap. 22


(2) Vide Sur. tom. 5 dic 27 Septembris

Capítulo XXII.
Do terceiro fruto da quinta palavra

O terceiro fruto que pode colher-se da quinta palavra é a imitação


da paciência do Filho de Deus; pois não obstante, que na quarta
tenha sobressaído a humildade com a paciência; com tudo na quinta
parece ter brilhado, como em lugar próprio, no seu maior esplendor,
e só a paciência de Cristo. Na verdade a paciência não só é uma
das grandes virtudes, mas até muito mais necessária que as outras:
a respeito dela diz São Cipriano (1):

«Não acho entre os outros caminhos que levam à sabedoria do Céu,


algum, que seja ou mais útil para a vida, ou mais espaçoso para a
glória, do que a paciência, a qual deve com todo o empenho fazer
por conseguir, quem quiser firmar-se bem nos preceitos do Senhor
por obséquio de temor e de devoção»
Antes, porém de dizermos alguma coisa da necessidade da
paciência, é preciso distinguir a verdadeira da falsa. A verdadeira é
a que nos manda sofrer o mal do prejuízo, para não nos vermos
obrigados a cometer atos culpáveis (2). Tal foi à paciência dos
mártires, que antes quiseram sujeitar-se aos tormentos dos algozes
do que negar a fé de Cristo; e preferiam perder tudo quanto tinham
a prestar culto aos falsos deuses. A falsa paciência é a que nos
leva a sofrermos todos os males, para obedecermos às leis do
apetite, e a perdermos os bens sempiternos, para
conservarmos os temporais. Tal é a paciência dos mártires do
diabo, que suportam facilmente a fome, a sede, o frio, o calor, a
perda da boa reputação, e, o que mais admira, a do Reino do Céu,
para acumularem riquezas, satisfazerem a luxúria, e subirem a
cargos honoríficos.

Além disto, a paciência tem a propriedade de aperfeiçoar e


conservar todas as virtudes; e é isto o que São Tiago exalta nos
louvores desta virtude, dizendo: A paciência tem a perfeição das
virtudes para serdes consumados e completos, e sem defeito em
nenhuma delas (Tg 1), pois as outras virtudes não podem subsistir
por muito tempo sem a paciência pelas dificuldades que se
encontram na prática delas, quando, porém, ela as acompanha,
vencem facilmente todas aquelas dificuldades, porque ela converte
em ordem a desordem, e torna plano o escabroso, e é isto tão
assim, que São Cipriano (3) diz da mesma rainha das virtudes, a
caridade:
«A caridade é o vínculo da fraternidade, o fundamento da paz, a
consolidação e firmeza da unidade; é mais excelente que a fé, e que
a esperança; é de mais merecimento que o martírio, ela, que há de
permanecer sempre conosco eterna junto a Deus no reino do Céu,
tira-lhe a paciência, e verás que ela não pode durar; tira-lhe a força
de sofrer e suportar e verás, que fica como uma árvore sem raízes e
sem vigor»
Isto ainda mais facilmente o mesmo Santo o prova em relação à
castidade, à justiça e à paz com o próximo, dizendo:

«Seja forte e permanente no teu coração a paciência; e nem o corpo


santificado, o templo de Deus, é poluído pelo adultério; nem a
justiça, que deve ser a protetora da inocência, é inficionada do
contágio da traição, nem depois de recebida a Eucaristia, a mão é
manchada com a espada e com o sangue, que ela faz derramar»
Isto diz São Cipriano, querendo dizer com isto, que nem a
castidade, desacompanhada da paciência, pode resistir ao adultério,
nem a justiça sem ela estar livre de traição, nem também sem ela a
comunhão livrar de homicídio.

O que São Tiago escreve da virtude da paciência, ensinam-no por


outras palavras o profeta Davi, o próprio Senhor e o seu Apóstolo.
Davi, diz (Salmo 9): «A paciência do pobre não será perdida»,
porque sem dúvida a obra de perfeição, e não perderá nunca o seu
merecimento, devido aos frutos que produz. Neste mesmo sentido
costumamos dizer, que se perdeu o trabalho do lavrador, quando
não produz fruto; e que se não perdeu quando o produz. Entra
naquele versículo a expressão do pobre que neste lugar significa o
humilde, que se reconhece pobre, o que nada pode fazer, nem
sofrer, sem o auxílio de Deus. Assim explica Santo Agostinho no
Livro da Paciência (4): pois não só os pobres, mas também os ricos
podem ter a verdadeira paciência, contanto que não confiem em si
mesmos, mas em Deus, a quem devem como realmente pobres das
graças divinas, pedir a paciência. Isto mesmo quis o Senhor fazer
conhecer, dizendo-nos no Evangelho (Lc 21): Na vossa paciência
possuireis as vossas almas: pois só terão vida, e vida como
propriedade, de que ninguém possa privá-los, os que com
paciência sofrem todas as aflições, e até mesmo a morte, para
não ofenderem a Deus, pois ainda que parecesse que perdem a
vida, morrendo; contudo não a perdem; mas conservam-na
eternamente; pois a morte do justo não é morte; é um sono, e um
sono curtíssimo. Os impacientes que para não perderem a vida
do corpo, não se importam de pecar, ou abjurando Cristo, ou
prestando culto aos ídolos, ou sucumbindo à luxúria, ou cometendo
outro qualquer pecado, parece que conservam a vida temporal;
mas perdem para sempre a vida do corpo e da alma, e, assim
como aos verdadeiros pacientes se diz com justiça:
«Não se perderá um cabelo da vossa cabeça» (Lc 21)
Do mesmo modo aos impacientes se deve dizer:

«Nem um só membro do vosso corpo será livre das chamas do


inferno»
Isto finalmente confirma o Apóstolo dizendo:

“A paciência vos é necessária, para que fazendo a vontade de


Deus, alcanceis a promessa” (Hb 10)
Palavras porque ele mostra que a paciência não só é útil, mas
absolutamente necessária, para que façamos sempre a vontade
de Deus, e fazendo-a, consigamos a promessa, isto é, a coroa da
glória que o Senhor prometeu aos que O amarem, e cumprirem os
seus preceitos (Zc 1):
“Se alguém me ama, guardará a minha palavra; o que me não ama
não guarda a minha palavra” (Jo 14)
Vemos assim toda a Escritura, sem discrepância, pregar aos fiéis a
necessidade de paciência, e é esta a causa porque Cristo, ao
terminar esta vida, quis certificar-nos todos de um Seu tormento
invisível, acerbíssimo, e muito demorado: a sede; para em vista de
um tão grande exemplo nos resolver a termos paciência em todas
as nossas aflições. Que a sede de Cristo foi um tormento
atrocíssimo, já antecedentemente o provamos na explicação da
palavra: Tenho sede, que foi prolongadíssimo, prova-se muito
facilmente.
Principiando pela flagelação, diremos que estava Cristo quando a
sofreu, já fatigado da prolongada oração e agonia, e derramamento
de sangue no Horto; e além disto, do muito caminhar naquela noite
e no dia seguinte do Horto para casa de Anás, desta para a casa de
Caifás, da de Caifás para a de Pilatos, desta para a de Herodes, e
desta outra vez para a de Pilatos; no que o Senhor andou muitas
milhas sem ter tomado alimento algum desde a ceia do dia
antecedente, e sem ter dormido; demais tinha sofrido em casa de
Caifás muitos e cruelíssimos maus tratos, aos quais acresceu a
cruelíssima flagelação, acompanhada de intensa sede, que, depois
de flagelado, não cessou, mas progrediu. Seguiram-se a isto a
coroação, o escárnio, e novos maus tratamentos, também
acompanhados da sede; e acabada a coroação a sede aumentou.
Depois, carregado com o patíbulo da Cruz, caminhou para o
Calvário, apesar de cansado de tanto andar e tantos sofrimentos,
dos quais era uma sede ardentíssima ao chegar ao Calvário
ofereceram-Lhe vinho misturado com fel, que Ele, provando, não
quis beber. Acabou o andar; porém a sede, que em todo Ele tinha
atormentado o piedoso Senhor, exacerbou-se sem dúvida. Seguia-
se a crucificação; e correndo-Lhe o sangue de quatro feridas, como
de quatro fontes, cada um pode imaginar a que ponto ela chegaria.
Finalmente quase se não acreditará a intensidade da sede, com que
aquele sacratíssimo corpo foi atormentado nas três horas seguintes,
da 6ª à 9ª, durante as horríveis trevas, e, posto que os algozes Lhe
chegassem vinagre à boca, contudo, porque não foi vinho com
água, mas uma bebida azeda e desagradável, e em pequena
quantidade, porque tinha de sorver gotas da esponja, e estava
quase a expirar; com toda a verdade se pode dizer que o nosso
Redentor sofreu do princípio da sua Paixão até à sua morte, e com
a maior paciência, aquele ansiosíssimo tormento, que entre nós é
pouco conhecido porque a cada passo se encontra água, porém os
que muitos dias caminham por desertos em que não há, esses
sabem que tormento é a sede.

Diz Quinto Cúrcio na vida de Alexandre Magno (5), que, marchando


ele com o seu exército por um deserto, encontraram um rio depois
de uma longa marcha, em que sofreram muita sede; e que fora tal a
avidez com que os soldados beberam, que muitos ali morreram logo
asfixiados, perdendo ele ali mais gente do que em nenhuma batalha
tinha perdido; pois o ardor da sede era tão intolerável, que não
podiam os soldados ter força sobre si mesmos, para tomarem fôlego
quando estavam a beber, assim morreu uma parte do exército de
Alexandre. Tem também havido quem por causa de grande sede
tenha achado saborosa água enlodada, azeite, ou sangue, e outra
coisas ainda mais imundas e repugnantes, às quais ninguém
beberia se não fosse obrigado por extrema necessidade. Disto
devemos aprender quão tormentosa foi a Paixão de Cristo, e quão
acrisolada nela foi a virtude da Sua paciência, ao qual por vontade
de Deus nos foi dada a conhecer para imitarmos, sofrendo também
com Cristo, a fim de sermos com Ele glorificados.

Parece-me que estou ouvindo algumas almas piedosas a dizerem,


que de boa vontade aprenderiam a imitar a paciência de Cristo, e a
puderem dizer com o Apóstolo:

“Estou cravado com Cristo na Cruz” (Gl 2)


E com o mártir Santo Inácio:

“O meu amor está crucificado” (6)


Isto não é tão difícil, como a muitos parece; pois não é preciso que
todos durmam no chão, que se disciplinem até correr sangue, que
jejuem todos os dias a pão e água, que tragam todos os dias
ásperos cilicio, ou cadeia de ferro sobre a carne, nem que façam
outras coisas assim, para domarem a carne, e crucificá-la
juntamente com os seus vícios e desordenados apetites. São
louváveis e proveitosas àquelas penitências, quando feitas por
quem pode, e aconselhadas por diretor espiritual, mas eu quero
mostrar aos meus piedosos leitores um modo de exercer a
paciência, imitando a de Cristo; um modo, porém, que a todos
convenha, sem extraordinários nem inovações; sem nada daquilo de
onde possa suspeitar-se, que se faz para armar à popularidade.

Em primeiro lugar digo que, quem quiser conseguir a virtude da


paciência, se deve, sem constrangimento, exercer naqueles
trabalhos e macerações, de que não haja dúvida, que são do
agrado de Deus, segundo o que diz o Apóstolo:

“A paciência é-vos necessária, para que, fazendo o que é da


vontade de Deus consigais as suas promessas” (Hb 10)
Ora os trabalhos, a que Deus quer, que nós pacientemente nos
sujeitemos, não são difíceis nem de ensinar, nem de aprender.
Primeiramente como certo tenhamos que, o que nos determina a
Igreja, nossa Mãe, se deve cumprir com obediência e paciência,
ainda que seja custoso e difícil. Os jejuns da quaresma, das quatro
têmporas, e das vigílias, que a Igreja nos prescreve, para serem
satisfeitos, como deve ser, não podem dispensar a paciência. Se,
porém o que em dia de jejum tiver na sua mesa delicadas iguarias, e
numa ceia ou num jantar comer tanto, como costuma comer ao
jantar e à ceia; e, antecipando a hora da refeição, comer, logo ao
anoitecer uma consoada, que se possa chamar ceia; esse
certamente nem terá fome nem sede; nem, por isso mesmo,
precisará de paciência. Aquele que não tomar a refeição antes da
hora prescrita, exceto por motivo de doença ou por algum outro
justificado; que usar de comida porca e ordinária, própria para a
penitência e, além disto, em quantidade que não exceda a que deve
ser, e der aos pobres o que havia de comer na outra refeição, se
não fosse dia de jejum, para, assim, como diz São Leão (7), a
abstinência do que jejua se tornar alimento do pobre; e em outra
parte:

“Fiquemos com alguma fome, meus muito amados; e tiremos da


nossa ordinária comida alguma coisinha que sirva para remediar os
pobres” (8)
E se finalmente ao anoitecer, a consoada, que muitos costumam
tomar, for rigorosamente consoada; aquele, digo, precisa sem
dúvida de paciência, para suportar a fome e a sede; e, jejuando
assim, de alguma sorte imitará a paciência de Cristo, e com Ele
estará também na Cruz ao menos em parte. Mas isto não é tudo
preciso. Seja assim, porém para imitar a Paixão de Cristo, tudo isto
é necessário. Manda, além disto, a Santa Mãe Igreja, que os
eclesiásticos e regulares, rezem ou cantem, às sete horas
canônicas, e que todos os fiéis rezem ao menos o Pai Nosso e Ave
Maria. Esta sagrada lição e oração há de sem dúvida precisar do
auxílio da paciência, para se fizer do modo, porque podia e devia
fazer- se, mas não são poucos os que, para escusarem aquele
auxílio, se esforçam em remover todas as dificuldades, primeiro,
como tendo de cumprir alguma rigorosa obrigação, a que não
possam faltar, corre com toda a velocidade, só para se livrarem o
mais breve possível daquele peso; além disto, lêem as horas
canônicas não direitos e em pé, ou de joelhos, porém sentados, ou
passeando, para que o tédio da lição ou da oração se diminua com
o descanso, ou se suavize com o passeio. Falo dos que lêem as
horas em particular, e não dos que cantam os salmos em coro. Além
disto, para não interromperem o sono, rezam não só as diurnas,
mas também as noturnas quando ainda é sol. Não digo nada a
respeito da atenção e elevação da alma, quando a Deus se dão
louvores, ou se fazem súplicas; porque a maior parte em nada
menos pensa do que naquilo, que, estão cantando ou lendo; e por
isso tirada a dificuldade de consumir longo tempo na leitura ou na
oração, e também a de deixar a cama, para ir à reza das horas
noturnas; e pondo de parte o trabalho de estar em pé e de ajoelhar,
e de reprimir a atenção, para não andar divagando de uma para
outra parte, mas estar toda no que está lendo; não é de admirar que
pareça que são muitos os que carecem do auxílio da paciência.
Ouçam estes tais, com que devoção São Francisco lia as horas
canônicas, e ficarão sabendo que esta piedosa obrigação não pode
satisfazer-se sem que a paciência auxilie. São Boaventura na vida
de São Francisco, diz assim:
«Costumava aquele Santo homem rezar as horas canônicas com
grande respeito e devoção; pois, ainda que padecesse dos olhos, do
estômago, do braço e do fígado, não se encostava, apesar disto,
nem a muro, nem a parede, enquanto salmeava; mas rezava
sempre as horas em pé, sem o capuz, e com os olhos nelas, e sem
interrupção. Se alguma vez ia de jornada, parava, para rezar, não
deixando de conservar este costume reverente e sagrado, posto que
a chuva caísse a torrentes. Julgava que cometia um pecado grave
se estando a rezar, estivesse interiormente distraído com vãs
imaginações; e, quando tal lhe acontecia, confessava-se logo, para
expiar aquela culpa. Salmeava com tanta atenção, como se
estivesse na presença de Deus, e quando na reza tinha de
pronunciar o nome do Senhor, lambia os beiços pela suavidade da
sua doçura» (9)
Se alguém quiser rezar assim as horas canônicas e levantar-se
também de noite, para rezar as noturnas, conhecerá sem dúvida,
que sem trabalho e sem paciência não pode satisfazer-se ao ofício
divino. Muitas outras coisas manda a Igreja, nossa Mãe, em
conformidade com a vontade de Deus, às quais ela aprendeu dos
Livros Sagrados, e que, sem paciência, não podem devidamente
cumprir-se: tais são, dar aos pobres o supérfluo, perdoar a quem
nos ofende, dar satisfação às pessoas que ofendermos, receber
a sacrossanta Eucaristia, para o que é preciso grande
preparação, e nenhuma destas coisas se pode cumprir, faltando à
paciência. Não é isto tudo que a Igreja manda, mas este pouco quis
eu apresentá-lo como exemplo.
Outra coisa, em que se reconhece a vontade de Deus, e que
sem paciência não pode conseguir-se, é suportar quanto, ou os
demônios, ou os homens, fazem para nos inquietarem, pois,
ainda, que os maus, e os demônios, piores ainda, nenhum bom
pensamento tem quando assim fazem; Deus, sem cuja permissão
eles nada podem fazer, não permitiria o mal que nos fazem se não
julgasse que assim nos é conveniente, por isso todo o mal que deles
nos vier, se deve tomar, como vindo das mãos de Deus, e sofrer-se
com paciência e boa vontade. Por isto, Jó, sincero e reto, não
duvidando que da inveja do Diabo lhe proviera à calamidade de que
foi vítima, perdendo num dia toda a sua riqueza, todos os seus
filhos, e, além disto, a saúde de todo o corpo, dizia:

«O Senhor o deu, o Senhor o levou, seja bendito o nome do


Senhor»
Porque conhecia que lhe não aconteceria àquela desgraça, se o
Senhor não quisesse. Não quero com isto dizer que as pessoas a
quem os seus semelhantes, ou os demônios tenham causado
prejuízos, não tenham direito a ressarci-los, e não devam fazê-lo,
nem medicar-se nas suas doenças, nem defender suas pessoas e
bens, mas somente advirto que ninguém deve vingar-se, nem
fazer mal por mal; porém sofrer com paciência o que Deus
quiser que se sofra, para que se fazendo a Sua vontade, se
alcancem as Suas promessas.

Devemos finalmente convencer-nos de que tudo aquilo, que


parece acontecer imprevista ou casualmente, como excessiva
cegueira, demasiada chuva, peste, fome, e outras coisas assim,
não acontecem sem a vontade de Deus; e não devemos por
isso queixar-nos nem dos elementos nem dEle; mas
reconhecer nisto o castigo dos nossos pecados, e
submissamente sofrê-lo com verdadeira humildade; pois,
fazendo nós assim, Deus, aplacado, deixará atrás de si a Sua
benção, castigando-nos como Seus filhos, com piedade de pai, e
não nos privando, como adulterinos, da herança do Céu.
Apresentarei um exemplo de São Gregório, do qual possa conhecer-
se quão grande seja a, remuneração da paciência. Na homilia 35ª
sobre os Evangelhos, diz ele, que houvera um indivíduo chamado
Estevão, tão sofredor, que tinha por seus maiores amigos os que
algum mal lhe fazia, e correspondia com agradecimentos às injúrias
que recebia; que tinha em conta dos maiores lucros os prejuízos
que lhe causavam, e reputava seus protetores e benfeitores todos
os seus inimigos. O Mundo sem dúvida o julgaria, parvo e demente,
porém ele tinha ouvido, e com atenção, o que diz o Apóstolo de
Cristo (1Cor 3): Se algum de vós se tem por sábio neste mundo,
faça-se insensato, para ser sábio, pois, como no mesmo lugar diz
São Gregório, à hora da sua morte assistiram-lhe muitos Anjos, e
levaram a sua alma direita ao Céu; e o mesmo Santo Doutor não
teve dúvida de incluir o seu nome no martirológio pela sua
assombrosa paciência.

Referências:

(1) Serm. de bono paticutiae


(2) Vid. Sanct. August. lib. de patientiae, cap. 1, 2 e 3
(3) Serm. de patientia
(4) Cap. 15
(5) Lib. 7
(6) Epist. ad Rom.
(7) Serm. 11, de jejum. 10 mensis
(8) Serm. 9, de jejum. 7 mensis
(9) Cap. 10

Capítulo XXIII.
Do quarto fruto da quinta palavra
Resta ainda um fruto, e docíssimo, para colher da palavra: Tenho
sede. Santo Agostinho, explanando o Salmo 68, diz, relativamente a
esta palavra, que ela mostrara não só o desejo de bebida corporal,
mas também o ardente desejo de Cristo pela conversão e salvação
dos Seus inimigos, nós, porém, pela ocasião que nos oferece a
explanação de Santo Agostinho, podemos subir mais alto e dizer
que a sede de Cristo era a sede da glória de Deus e da salvação
dos homens; e que a nossa deve ser da glória de Deus, da
honra de Cristo, da nossa salvação e da salvação do nosso
próximo. Que Cristo teve sede da glória de seu Pai e da salvação
das almas, não pode duvidar-se, pois isto o diz, clamando, todas as
Suas obras, todas as Suas pregações, todos os martírios que
sofreu, todos os Seus milagres. Devemos pensar de preferência a
tudo, para não sermos ingratos a tamanho benefício, sobre o modo
porque possamos de tal sorte inflamar-nos, que tenhamos
verdadeira sede da honra de Deus, que amou os homens até
sacrificar por eles o seu Unigênito (Jo 3); e termo-lO, juntamente e
do mesmo modo da glória de Cristo, que nos amou e Se entregou a
Si, mesmo por nós, oferenda e hóstia a Deus em perfume de
suavidade (Ef 5), e para também nos compadecermos dos nossos
irmãos de sorte que tenhamos ardentíssima sede da sua
salvação. O que, porém nos é, sobretudo necessário, é tratarmos da
nossa salvação tão sincera e resolutamente, que a sede dela nos
obrigue a pensarmos, a dizermos, a fazermos quanto couber em
nossas forças, e que para ela seja conducente, pois se nós não
tivermos sede nem da honra de Deus, nem da glória de Cristo, nem
da salvação do nosso próximo, nem por isso Deus ficará sem a
honra que Lhe é devida, nem Cristo será privado da Sua glória, nem
o nosso próximo deixará de conseguir a sua salvação; nós, porém
pereceremos para sempre se da nossa parte não tivermos a sede
que devemos ter. Não posso por isso deixar de me admirar, e muito,
de que sabendo nós quão ardente foi a sede que Cristo teve, de que
nos salvemos, e acreditando indubitavelmente que Ele é a
sabedoria de Deus, não nos resolvemos a imitar o Seu exemplo
numa coisa que nos é tão necessária, como nenhuma outra o é
mais, e não menos me admiro de que sendo tão grande a nossa
sede dos bens temporais, como se eles fossem os sempiternos, tão
negligentemente cuidemos da eterna salvação, que não só dela não
mostramos sede, mais nem mesmo é grande o desejo que dela
temos; como se ela fosse uma coisa momentânea e de pouca
importância. A isto se deve acrescentar a consideração de que os
bens temporais não são puros bens, mas misturados com muitos
males, e não obstante isto é solícita e desveladamente apetecidos,
e que a salvação eterna, sendo um bem estreme, é tão descurada,
tão frouxamente apetecida, como se não houvesse vantagem
nenhuma em consegui-la. Ilumina-me, Senhor, os olhos da minha
alma, para que eu possa chegar a conhecer a causa de tão
perniciosa ignorância.
O amor produz sem dúvida o desejo; e este, quando é veemente,
chama-se sede. Mas quem pode deixar de querer a própria
felicidade, principalmente a eterna, e em que não há senão bens,
sem mal nenhum? E se não pode deixar de ser amada coisa de
tamanho valor, porque não é ardentemente apetecida? Porque não
há dela uma sede intensa? Porque se não empregam todos os
meios para consegui-la? Talvez seja a razão disto não ser a
felicidade eterna objeto dos sentidos, e não podermos por isso
avaliá-la como avaliamos a saúde, por este motivo tem sede desta e
daquela um frio desejo. Mas se isto é assim, como é que Davi,
homem como os outros, tão ardente sede teve da vista de Deus, na
qual consiste a salvação eterna, que gritando, dizia:

«Assim como o veado deseja encontrar água em que sacie a sua


sede; assim a minha alma deseja saciar-se em Ti, meu Deus. A
minha alma tem sede de Deus, forte, vivo, quando irei eu
apresentar-me à vista de Deus?» (Sl 42)
Palavras das quais se depreende que o profeta, ainda no mundo,
tinha uma sede ardentíssima da vista de Deus, na qual consiste a
eterna bem-aventurança. Não foi só Davi que teve esta sede,
tiveram-na também muitos outros de assinalada santidade que
reputavam desprezíveis e insípidas todas as coisas terrenas, e para
quem somente era saborosíssima e de muita doçura a lembrança ou
recordação de Deus. Não é, pois a causa de nós não termos uma
ardente sede da sempiterna bem-aventurança, não ser ela objeto
dos sentidos; mas sim não pensarmos nela com atenção e
assiduidade, e cheios de fé; e a razão porque assim se não pensa
nela é sermos nós animais e não espirituais, pois o homem animal
não percebe aquelas coisas, que são do espírito de Deus (1Cor 2).
Pelo que, se tu, alma, desejas a sede da tua salvação, da salvação
do próximo, e muito mais ainda a sede da honra de Deus e da glória
de Cristo, ouve o que te diz o Apóstolo São Tiago: Se algum de vós
necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente,
e não impropera; e ser-lhe-á dada (Tg 1), pois esta tão sublime
sabedoria não se encontra nas escolas do mundo, mas unicamente
na do Espírito de Deus, que converte em espiritual o homem animal;
não basta, porém pedi-la uma só vez, e friamente: é preciso que
haja perseverança em pedir, e gritar aos ouvidos do Pai com um
gemido, para cuja expressão não há palavras, pois se um pai, que
não é o do Céu, não recusa o pão a um filhinho, que lh’o peça,
chorando.
“Quanto mais o vosso Pai celestial dará espírito bom aos que lhe o
pedirem?” (Lc 11)

Capítulo XXIV.
“Tudo está consumado”. Explica-se literalmente a sexta palavra

Explica-se literalmente a sexta palavra


A sexta palavra que Cristo proferiu na Cruz, é referida por São João
como quase junta com a quinta. Logo que o Senhor disse: Tenho
sede e bebeu do vinagre que Lhe ofereceram, acrescenta São João:
“Jesus, porém tendo tomado o vinagre, disse: Tudo está
consumado” (Jo 19)
E sem dúvida aquele — tudo está consumado — à letra não quer
dizer mais nada senão a obra da redenção está concluída,
rematada; pois dois serviços tinha o Pai imposto ao Filho: pregar o
Evangelho, e sofrer pelo gênero humano. Da primeira disse o
Senhor em São João:
“Eu acabei a obra que tu me encarregaste que fizesse, manifestei o
teu nome aos homens” (Jo 17)
Isto disse o Senhor depois do último e extensíssimo sermão que
pregou aos Seus discípulos depois da ceia, por isso mesmo
concluiu a primeira obra, de que seu Pai o encarregara. O outro
serviço era beber o cálice da Paixão, e a respeito deste, diz o
Senhor:

“Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber?” (Mt 20)


E em outra parte:

“Meu Pai, se é da tua vontade transfere de mim este cálice” (Lc 22)
E em outra parte:

“Não queres que eu beba o cálice que meu Pai me deu?” (Jo 18)
Deste cálice pois diz o Senhor, próximo à morte. Tudo está
consumado; pois esgotei até às fezes o cálice, nada mais resta
senão deixar esta vida e, abaixando a cabeça, rendeu o espírito.
Porém, porque nem o mesmo Senhor nem São João explicaram,
para não serem difusos, que era o que estava terminado, temos nós
ocasião de o aplicarmos racional e frutuosamente a muitos
mistérios. Primeiramente Santo Agostinho, no seu comentário a esta
passagem diz, que o Está tudo concluído se refere ao
cumprimento das profecias, que rezavam de Cristo.
“Sabendo, pois, que tudo estava cumprido, para se cumprir uma
palavra que ainda restava da Escritura, disse — Tenho sede — diz o
Evangelista“
E pouco depois:

“Havendo tomado o vinagre, disse — Tudo está consumado”


Isto é, completou-se o que estava para completar, do que
entendemos que Ele mesmo quis dizer que estava terminado e,
completado tudo o que os profetas teriam predito da Sua vida e
morte. Tudo tinha sido predito, é verdade:

A Sua conceição: A Virgem conceberá (Is 7)


O seu nascimento em Belém: E tu, Belém, terra da Judeia, etc., de
ti sairá o chefe, que há de governar o meu povo de Israel (Mq 2)
O aparecimento de uma nova estrela: Nascerá uma estrela de
Jacó (Nm 23)
A adoração dos Reis: Os Reis do mar e as ilhas ofertarão
dádivas (Sl 71)
A pregação do Evangelho: O espírito do Senhor, que está sobre
mim, me enviou a evangelizar aos pobres (Is 61)
Os milagres: Vira o próprio Deus, e salvar-nos-á, hão de então
abrir-se os olhos dos cegos e ouvidos dos surdos, saltará então o
coxo, como um veado, e desembaraçar-se-á, a língua dos mudos (Is
35)
O montar sobre uma jumenta e o jumento, filho dela: virá sem
dúvida o teu Rei justo, e o teu Salvador; virá pobremente, e montado
sobre uma jumenta e um jumentinho filho dela (Zc 9)
Finalmente toda a Paixão foi por partes descritas por Davi nos
Salmos, e por Isaías, Jeremias, Zacarias, (Sl 21 e 68; Is 53; Jer
11; Zc 12) e outros; e é esta a causa porque o Senhor, quando
estava para ir para ela, dizia:

“Eis aqui vamos para Jerusalém, e tudo quanto está escrito pelos
profetas a respeito do Filho do Homem será cumprida” (Lc 18)
Daquilo, pois, que restava, para ser tudo cumprido, diz agora: Tudo
está consumado; tudo o que se devia terminar e concluir, para se
mostrar, que os Profetas tinham dito a verdade.
Além disto, o Tudo está consumado significa, segundo São João
Crisóstomo, que com a morte de Cristo acabou o poder; que contra
Ele foi dado aos homens e aos demônios; do qual poder o mesmo
Cristo disse aos príncipes dos sacerdotes, aos magistrados do
templo, e aos anciões:
“Esta é a vossa hora, e o poder das trevas”
Por isso esta hora e todo este tempo, em que, por permissão de
Deus, os ímpios tiveram poder sobre Cristo, terminou, quando o
Senhor disse: Tudo está consumado, pois terminou então a
peregrinação do Filho, de Deus entre os homens, a qual foi
profetizada por Baruc nas seguintes palavras:
“Este é o nosso Deus, e não haverá outro que se lhe oponha. Este
descobriu todos os caminhos da sabedoria, e os ensinou a Jacó,
seu servo, e a Israel, seu escolhido, depois do que foi visto no
mundo, e habitou com os homens” (Br 23)
Juntamente com a peregrinação terminou também o estado da
vida mortal, durante o qual precisava comer, de beber, de dormir, e
estava sujeito ao cansaço, às injurias, à flagelação, aos ferimentos,
e à morte. Assim, quando o Senhor disse na Cruz: Tudo está
consumado, e, abaixando a cabeça, rendeu o espírito, concluiu-se a
Sua jornada, da qual Ele tinha dito:
“Saí de meu Pai, e vim ao mundo, de onde volto para meu Pai” (Jo
16)
Terminou- se a trabalhosa peregrinação, a cujo respeito Jeremias
tinha dito:

“Quem anima Israel na sua tribulação, é a esperança do seu


Salvador, porque hás de tu ser como um colono na Terra, e como
um que se encosta, para aí ficar?” (Jer 16)
Terminou-se a condição mortal da Sua humanidade, e terminou-se o
poder de todos os inimigos sobre Ele. Concluiu-se em terceiro
lugar o sacrifício dos sacrifícios, e ao qual se encaminhavam
como ao verdadeiro e real sacrifício, todos os sacrifícios da antiga
lei, que dEle eram figuras e sombras; assim diz São Leão:

«Atraíste tudo a Ti, Senhor, pois, rasgando o véu do templo,


o Sancto Sanctorum abandonou os indignos pontífices, para que a
figura se converta em verdade, as profecias em realização, e a Lei
em Evangelho» (1)
E pouco abaixo:
«Agora também tendo acabado a variedade dos sacrifícios carnais,
uma só oblação do Teu corpo e do Teu sangue contém em si todas
as diferentes vítimas»
Pois neste sacrifício o Sacerdote é o Homem-Deus; o altar a
Cruz; a vítima o Cordeiro de Deus, o fogo do holocausto a
caridade, o fruto do sacrifício a redenção do Mundo.

O Sacerdote, torno a dizer, foi o Homem-Deus, superior ao qual


nenhum outro pôde imaginar-se:

“Tu és um eterno Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque”


(Sl 109)
E na verdade segundo a ordem de Melquisedeque, porque ele não
tem na Escritura nem pai, nem mãe, nem genealogia, e Cristo no
Mundo não tem pai, no Céu não tem mãe, nem tem genealogia, pois
quem poderá historiá-la? Ainda não brilhava no firmamento a estrela
de d’alva, e já Ele tinha sido gerado, e a Sua existência data da
Eternidade (Is 53; Sl 109; Mq 5).

O altar foi a Cruz, que quanto mais desonrosa era, antes de nela
ser crucificado Cristo, tanto mais ilustre e enobrecida ficou depois, e
no último dia aparecerá no Céu mais brilhante que o sol, pois dela
entende a Igreja a passagem do Evangelho:

“Então aparecerá no Céu o sinal do Filho do Homem, e dela cantam:


Este sinal estará no Céu, quando o Senhor vier a julgar o mundo”
(Mt 24)
E o confirma São João Crisóstomo (2), observando também que
quando o Sol se obscurecer e a Lua não alumiar, aparecerá no Céu
a Cruz mais fulgurante que o Sol.

O sacrifício foi o Cordeiro de Deus, absolutamente puro e


imaculado, de quem disseram Isaías:

“Será levado ao patíbulo manso como uma ovelha; e, como um


Cordeiro em presença de quem o tosquia se fará mudo, e não abrirá
a sua boca” (Is 53)
O Precursor do Senhor:

“Eis o Cordeiro de Deus; eis o que tira os pecados do mundo” (Jo 1)


E o Apóstolo São Pedro:

“Não foram reunidos por ouro, ou prata, objetos deterioráveis; mas


pelo precioso sangue de Cristo, Cordeiro puro e sem mancha” (1Pd
1)
Também no Apocalipse, Cristo é chamado Cordeiro sacrificado
desde o começo do mundo (Ap 13), porque o seu preço, previsto
por Deus, aproveitava também aos que tinham existido antes de
Cristo.
O fogo que queimou o holocausto, e que completa o sacrifício,
é a caridade imensa, que, como uma fornalha muito acesa, ardia
no coração do Filho de Deus, e que os grandes aguaceiros dos
Seus tormentos não poderão apagar.

Finalmente o fruto do sacrifício foi à expiação de todos os filhos


de Adão (Ct 8) ou a reconciliação de todo o mundo. Assim o diz
São João na sua primeira Epístola:

“Ele é a propiciação pelos nossos pecados, somente pelos nossos,


mas também pelos de todo o mundo” (1Jo 2)
O mesmo dizem as palavras de São João Batista:

“Eis o Cordeiro de Deus: eis o que tira os pecados do mundo” (Jo 1)


Resta uma só questão, como pôde o mesmo Cristo ser Sacerdote e
vítima: a obrigação do Sacerdote é sacrificar a vítima; e Cristo não
se sacrificou, nem podia sacrificar-Se, porque o fazendo, cometia
um sacrilégio, e não oferecia um sacrifício, porém Cristo não se
matou, e apesar disto ofereceu realmente um sacrifício, porque de
Sua livre e espontânea vontade Se ofereceu a ser sacrificado para a
glória de Deus, e expiação do pecado; pois nem os soldados nem
os beleguins poderiam prendê-lO, ou segurá-lO, nem os cravos
transpassar-Lhe as mãos e os pés, nem a morte por-Lhe termo à
vida, mesmo ainda que Ele estivesse crucificado, se Ele assim o
não quisesse. Por isto com toda a verdade disse Isaías:

“Foi sacrificado, porque assim o quis” (Is 53)


E diz o mesmo Senhor:

” Eu ponho a minha vida, ninguém a tira de mim; mas eu de mim


mesmo a ponho” (Jo 10)
E tão claramente, que mais não pode ser, o diz o Apóstolo São
Paulo:

“Cristo amou-nos; e a Si mesmo se entregou por nós, oblação a


hóstia a Deus em perfume de santidade” (Ef 3)
Assim, por modo admirável, o mal, ou pecado, ou crime, que houve
na Paixão de Cristo, é todo dos Judeus, de Judas, de Pilatos, e dos
soldados; e estes não ofereceram sacrifício, mas cometeram um
sacrilégio; não mereceram ser chamados Sacerdotes, mas
sacrílegos, o que na mesma Paixão houve de bom, de religioso e de
pio, isso é tudo de Cristo, que pela Sua exuberantíssima caridade
Se ofereceu como vítima a Deus, não se matando, porém sofrendo
pacientíssimamente a morte, e morte de Cruz, para aplacar a ira de
Deus, para reconciliar com Deus o mundo, para satisfazer a justiça
divina, e para não perecer o gênero humano, o que em muito
poucas palavras exprimiu São Leão (3), dizendo:

«Consentiu, que contra Si empregassem suas ímpias mãos os


furiosos, que cometendo um crime, de que só eles são
responsáveis, prestaram serviços ao Redentor»
Em quarto lugar, na morte de Cristo decidiu-se a grande batalha
entre Ele e o Príncipe deste Mundo, da qual fala o mesmo Senhor
em São João, dizendo:

“Agora é o juízo do mundo, agora será lançado fora o príncipe deste


mundo, e eu, quando for levantado da terra, todas as coisas
atribuirei a mim mesmo” (Jo 12)
Esta batalha foi judicial, não militar, foi como demandas dos
litigantes, não como combates dos soldados; pois litigava o Diabo
com o Filho de Deus a respeito da posse do Mundo, isto é, do
gênero humano. Aquele se tinha desde longo tempo intrujado
naquela posse, porque vencera o primeiro homem, e o fez seu
escravo com toda a sua descendência, e por isso São Paulo (Ef 6)
chama aos demônios Príncipes e Potestades e Governadores
destas trevas do mundo; e o mesmo Cristo, como ainda há pouco
dissemos, chama ao Diabo Príncipe deste Mundo, e não queria o
Diabo ser só Príncipe; queria também ser Deus, e daqui vem dizer
Davi no Salmo 95:

“Os deuses dos gentios são os demônios, porém o Senhor fez os


Céus”
Pois adoravam os gentios o Diabo em figuras, que o representavam,
e lhe faziam sacrifícios de carneiros e novilhos (Hb 1). De outra
parte o Filho de Deus, como único e universal herdeiro; reclamava o
principado do Mundo. Esta contenda terminou na Cruz, e a sentença
deu-se a favor de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque na Cruz
satisfez pleníssimamente à justiça divina pela culpa do primeiro
homem e de todos os seus descendentes; pois foi prestada pelo
Filho ao Pai a obediência em maior grau ainda, do que tinha sido a
desobediência do servo ao Senhor; maior foi à humildade do Filho
de Deus, até por ela morrer em honra de seu Pai, do que foi a
soberba, com que o servo se atreveu a injuriar Deus. Por isso Deus,
reconciliado, em obséquio a seu Filho, com o gênero humano livrou-
o do poder do Diabo, e transferiu-o para o Reino de seu Filho, muito
amado (Col 1).

Há também outro motivo, abduzido por São Leão (4), e que nós
apresentamos pelas suas mesmas palavras:

«Se o cruel e soberbo inimigo tivesse podido aventar o plano da


misericórdia de Deus, antes trataria de converter em brandura a
animosidade dos Judeus, do que de irritá-los com um ódio injusto,
para não perder todos os seus escravos, perseguindo a liberdade de
quem nada lhe devia»
Excelente razão na verdade; justo foi, pois, que o Diabo perdesse o
seu império sobre todos aqueles que pelo pecado tinha feito seus
escravos, pois teve o atrevimento de levantar as suas mãos contra
Cristo, e de persegui-lO até á morte, não sendo Ele seu servo e não
tendo nunca o Diabo podido obrigá-lO a penar.

Mas, sendo isto assim, se a contenda terminou, se o Filho de Deus


ficou vitorioso, e, se Ele quer que todos os homens se salvem (1Tm
2), como é que são ainda tantos os escravos do Diabo nesta vida, e
na outra são arrastados para os tormentos do inferno? Respondo
em muito poucas palavras — porque assim o querem: — pois
Cristo, voltando vitorioso do combate, fez ao gênero humano dois
grandes benefícios: um abrir aos justos as portas do Paraíso, às
quais desde a queda do primeiro homem tinham sido fechadas até
então, e no mesmo dia da Sua vitória disse: Hoje serás comigo no
Paraíso, ao ladrão, que em virtude do sangue do mesmo Cristo
tinha sido justificado pela fé, esperança e caridade; pelo que a Igreja
canta cheia de júbilo:
«Tu, aniquilado o aguilhão da morte, abriste aos crentes os Reinos
dos Céus»
Outro foi instituir os Sacramentos, que tivessem poder de
transmitir os pecados e conferir a graça; e enviar a toda a parte do
mundo, quem em alta voz pregasse:

“A quem crer, e for batizado, será salvo” (Mc 16)


Assim o Senhor, vencendo a batalha, abriu a todos o caminho para
a glória de filhos de Deus; e se muitos não querem caminhar por
Ele, perdem-se por sua culpa, e não porque o Redentor não
pudesse abrir-lhes o caminho, ou fosse negligente em abri-lo.

Em quinto lugar finalmente o Tudo está consumado pode muito bem


entender-se da conclusão do edifício da Igreja, pois ensinam, que
ela começada no batismo de Cristo, foi concluída na sua Paixão, os
Santos Padres, Epifânio no livro 3.° contra os hereges (5) e Santo
Agostinho no livro da cidade de Deus (6); os quais dizem que Eva,
edificada de uma costela de Adão, enquanto ele dormia, fôra o tipo
da Igreja, que foi formada do lado de Cristo, enquanto Ele dormia o
seu sono depois da Sua morte; e notam eles que não sem mistério a
Escritura diz que Eva foi edificada, e não formada. Que o edifício da
Igreja começou do batismo de Cristo prova-o Santo Agostinho (7) do
Salmo 71:
“Dominará de mar a mar, e do rio até os confins da terra”
O reino de Cristo, que é a Igreja, começou do batismo de Cristo, no
qual Ele, sendo batizado por São João, consagrou as águas e
instituiu o batismo, que é a porta da Igreja, e foi manifestamente
proclamado por voz de seu Pai, baixada do Céu:

“Este é o meu amado Filho, no qual tenho posto toda a


complacência: dai atenção ao que ele disser” (Mt 3)
E desde então começou a pregar e reunir discípulos, que foram os
primeiros que entraram na Igreja. Posto que, porém o lado de Cristo
fosse aberto depois da Sua morte, e então corresse sangue e água,
que significam os dois principais Sacramentos da Igreja, o Batismo e
a Eucaristia; contudo da Paixão de Cristo recebem todos os
Sacramentos a sua virtude; e o sangue e água, que assim correu,
foi declaração dos mistérios e não instituição. Muito bem, pois se diz
que o edifício da Igreja ficou concluído quando Cristo disse: Tudo
está consumado; pois então nada mais restava senão a morte, que
imediatamente se seguiu e pôs o remate ao preço da redenção.

Referências:

(1) Serm. 8 de passione Domini


(2) Hom. 77 in cap. 24, Mat.
(3) Serm. 10 de Pass.
(4) Serm. 10 de Pass.
(5) Haeres. 78
(6) Cap. 17
(7) Liv. 27 de Civit. cap. 8
Capítulo XXV.
Do primeiro fruto da sexta palavra

Bastantes são os frutos que da sexta palavra pode colher quem


atentamente considerar a sua fecundidade; e em primeiro lugar
do: Tudo está consumado, que dissemos que se deve entender do
cumprimento dos vaticínios, deduz Santo Agostinho (1) uma
utilíssima prova. Pois, assim como temos a certeza, pelo que
sabemos, que se realizou, que foi verdade o que os profetas
predisseram tanto tempo antes, também, não devemos duvidar de
que há de realizar-se o que os mesmos profetas predisseram
que há de acontecer, posto que isso ainda não aconteceu; pois;
que os profetas não o disseram por si mesmos mas inspirados pelo
Espírito Santo (2 Pd 1); e, porque o Espírito Santo é Deus, e Deus
de modo nenhum se pode enganar nem faltar à verdade,
devemos com toda a certeza acreditar que sem falta nenhuma
se há de cumprir que está profetizado, e que ainda se não
realizou.
«Assim como até hoje tudo, se verificou, diz Santo Agostinho,
também se há de verificar o que resta: temamos o dia do juízo: há
de vir o Senhor; o que veio humilde virá exaltado»
Pois nós temos argumentos de mais força do que os antigos tiveram
para não vacilarmos em acreditar no que há de acontecer: os que
existiram antes da vinda de Cristo, eram obrigados a acreditar
muitas coisas sem terem visto a realização de nenhuma; nós, pelo
que já sabemos que se realizou, sem violência nenhuma podemos
crer que há de verificar-se o que resta das profecias. Os que no
tempo de Noé ouviam dizer que, estava para vir um dilúvio
universal, anunciando-o Noé profeta do Senhor, não só por palavra,
mas também pelo grande trabalho com que desveladamente
construía a Arca, não se inclinavam a acreditá-lo, porque não tinham
ainda presenciado um dilúvio como aquele foi; e por isso a ira do
Senhor caiu repentinamente sobre eles. Nós, porém, que sabemos
que houve aquele dilúvio, porque havemos de duvidar que tenha de
haver um de fogo que há de consumir tudo aquilo que
presentemente tanto estimamos? E, apesar disto, poucos são
aqueles que tal creia, de modo que deixem de apetecer os gozos
transitórios e se desvelem pelo conseguimento dos verdadeiros e
sempiternos júbilos.

Isto, porém foi predito mesmo pelo Senhor, para não terem desculpa
os que, depois do cumprimento do que já se realizou, ainda tem
dúvida em acreditar que há de realizar-se o que as profecias dizem
que há de acontecer:

“Assim como foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do
Filho do Homem; porque, assim como nos dias antes do dilúvio
estavam comendo e bebendo, casando-se, e dando-se em
casamento até o dia em que Noé entrou na Arca, e não o
entenderam enquanto não veio o dilúvio e os levou a todos; assim
será também a vinda do Filho do Homem. Velai, pois, porque não
sabeis a que hora há de vir o Filho do Homem, diz o Senhor” (Mt 24)
E o Apóstolo São Pedro:

“Virá, pois, como ladrão, o dia do Senhor, no qual passarão os Céus


com grande ímpeto, e os elementos com o calor se dissolverão e a
terra se abrasará com todas as obras que há nela” (2Pd 3)
Isso está longe, dizem alguns. Seja assim, esteja longe se longe
está, mas não está longe a tua morte e é incerta a sua hora; e não
há dúvida de que no juízo particular, que não está longe, se há de
dar conta das palavras ociosas (Mt 12): e se destas tem de se dar
conta, qual não será ela das prejudiciais, das blasfêmias, que muitos
proferem tão vastas? E se das palavras se há de tirar conta, que
conta não será a das ações? Dos furtos, dos adultérios, das fraudes
no comprar e no vender, dos homicídios, dos incêndios e de outros
pecados mais graves ainda? Por isso as predições tornar-nos-ão
indesculpáveis, se não acreditarmos com toda a certeza que há de
sem dúvida nenhuma realizar-se o que ainda resta para se cumprir;
e não é bastante o acreditar, se não tivermos uma fé que nos dê a
eficácia precisa para praticarmos ou evitarmos o que ela nos ensina
que se deve fazer ou omitir. Se a um arquiteto, que, avisar os
moradores de uma casa de que ela está ameaçando ruína, eles
disserem que acreditam o que ele lhes disse, mas não saírem
abandonando a casa, e se deixarem esmagar no seu desabamento;
que se julgará do crédito que eles diziam que davam ao arquiteto?
O mesmo que o Apóstolo diz de outros assim:

“Confessam que conhecem Deus, mas negam-no com as obras” (Tt


1)
E que diremos do doente que, entendendo que o médico lhe proibiu
com razão o vinho por entender que ele lhe é nocivo, o exige e se
encoleriza, por lh’o não darem? Diremos sem dúvida que o doente
ou está delirado ou não tem fé no médico. Oxalá que não houvesse
muitos cristãos, que dizem que acreditam no julgamento de Deus e
noutros pontos de crença; e que pelo modo por que procedem,
mostram o contrário.

Referências:

(1) In Psalm 76

Capítulo XXVI.
Do segundo fruto da sexta palavra

Pode colher-se outro fruto da segunda explicação da palavra de


Cristo: “Tudo está consumado”, pois dissemos com São João
Crisóstomo que se concluiu com a morte de Cristo a sua
trabalhosa peregrinação que não pode negar-se que foi
excessivamente custosa, mas que também foi recompensada
pelo pouco tempo da sua duração e pela glória e honra que
dela lhe resultou. Foi de trinta e três anos: que é, porém o trabalho
de trinta e três anos comparado com o descanso da eternidade.
Sofreu o Senhor fome, sede, muitas dores e injúrias sem número,
pancadas, ferimentos e até a morte, mas agora bebe torrentes de
prazer, de prazer interminável. Humilhou-Se, é verdade, tornado o
opróbrio dos homens, rebotalho da plebe (Sl 21) por pouco tempo.
Deus, porém exaltou-O, e deu-Lhe um nome como não há outro;
pois ao nome de Jesus dobrasse todo o joelho no Céu, na Terra, e
no inferno (Fl 2). Pelo contrario, os pérfidos judeus pouco tempo
exultaram com a Paixão de Cristo; Judas, escravo da avareza,
pouco se gozou com o lucro de algumas moedas; o gosto que
Pilatos teve de não perder a amizade de Augusto e de tornar a
ganhar a do rei Herodes, de pouca duração foi também; e há quase
mil e seiscentos anos desde que sofrem os tormentos do inferno, e
o fumo das chamas que os abrasam subirá por séculos de séculos
(Ap 19).
Disto aprendam todos os servos da Cruz, humildes, pacíficos,
sofredores, que fortuna não é a de tomarem a sua cruz nesta vida e
seguirem o caminho de Cristo, e nenhuma inveja tenham aos que
neste mundo são reputados felizes, pois a vida de Cristo e dos
Santos Apóstolos e Mártires é o comentário tão verdadeiro, quanto é
possível, das palavras do Mestre de todos os mestres:

“Bem-aventurados os pobres, bem-aventurados os pacíficos, bem-


aventurados os que choram, bem-aventurados os que padecem
perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino do Céu, e
pelo contrário ai de vós que sois ricos, porque tendes a vossa
consolação, ai de vós que estais fartos, porque vireis a ter fome, ai
de vós que agora ris, porque gemereis e chorareis” (Mt 5; Lc 6)
E posto que não só às palavras de Cristo mas até à Sua vida e
morte, isto é, não só ao texto mas ao comentário, poucos prestam
atenção nas escolhas deste mundo; contudo o que quiser sair dele,
entrar no seu coração meditando seriamente, e dizer a si
próprio: «Ouvirei o que me diz o Senhor Deus» (Sl 84), e ao mesmo
tempo com humilde preces e gemido de pomba, se dirigir aos
ouvidos do Mestre de quem é o livro e o comentário, facilmente
conhecerá a verdade; e ela o livrará de todos os erros tornando-lhe
fácil o que até então lhe parecia impossível.

Capítulo XXVII.
Do terceiro fruto da sexta palavra

Além daqueles frutos, há um terceiro que podemos colher da sexta


palavra; aprendermos a oferecer nós mesmos, como sacerdotes
espirituais, espirituais sacrifícios, como diz São Pedro (1Pd 2);
ou como o Apóstolo São Paulo nos ensina (Rm 12) a oferecermos
os nossos corpos como uma hóstia viva, santa, agradável a Deus;
que é o culto racional que Lhe devemos. Pois se aquelas
expressões: Tudo está consumado, significa que se concluiu na cruz
o sacrifício do Sumo Sacerdote; justo é que os discípulos do
Crucificado, desejando imitar o seu Mestre, ofereçam também a
Deus sacrifício do modo porque podem, isto é, segundo o seu pouco
e a sua pobreza. Ensina-nos o Apóstolo São Pedro que todos os
cristãos são sacerdotes, não propriamente ditos, como os que são
ordenados pelos bispos na Igreja Católica, para oferecerem o
sacrifício do Corpo de Cristo; mas sacerdotes espirituais, isto é,
como ele mesmo declara, para oferecerem sacrifícios espirituais,
não vítimas propriamente ditas, como eram no Antigo Testamento,
ovelhas, bois, rolas e pombas, e no Novo o Corpo de Cristo na
Eucaristia; porém vítimas místicas que todos podem oferecer,
como orações, louvores e boas obras, jejuns e esmolas, das
quais diz o Apóstolo São Paulo:
“Ofereçamos, pois por ele a Deus, sem cessar, sacrifícios de louvor,
isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome” (Hb 13)
O mesmo Apóstolo na Epístola aos romanos (Rm 12) muito
desveladamente nos ensina a oferecermos a Deus o sacrifício
místico dos nossos corpos à semelhança dos antigos sacrifícios da
antiga lei. Eram quatro os requisitos dos sacrifícios: o primeiro haver
vítima, isto é, coisa consagrada a Deus, à qual era vedado converter
em uso profano; segundo ser coisa viva como ovelha, cabra,
novilho; terceiro ser santa, isto é, pura, porque entre os hebreus
havia animais puros e impuros, eram puros ovelhas, bois, cabras,
rolas, pardais e pombas; quarto ser a vítima queimada e exalar
cheiro de suavidade. Todos estes requisitos enumera o Apóstolo,
quando diz:

“Rogo-vos ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa,


agradável a Deus, e acrescenta: que é o culto racional que lhe
deveis”
Para disto entendermos que ele não nos exorta ao sacrifício
propriamente dito, como querendo que os nossos corpos sejam
como os das ovelhas sacrificados, mortos e queimados, mas sim
ao sacrifício místico e racional, assemelhado e não tal, sacrifício
do espírito e não do corpo. Exorta-nos, pois o Apóstolo a que, assim
como Cristo na cruz ofereceu para nosso bem o sacrifício do Seu
corpo por meio da morte, também nós ofereçamos em Sua honra os
nossos corpos como vítima, e esta viva, santa e perfeita e por isto
bem do agrado de Deus, a qual de certo modo seja espiritualmente
sacrificada e queimada.

Expliquemos por sua ordem cada uma destas condições:

Em primeiro lugar devem os nossos corpos ser hóstias, isto é,


coisas consagradas a Deus, das quais devemos servir-nos para
honrar a Deus, não como de coisas que são nossas, mas que são
dEle, pois Lhe fomos consagrados pelo batismo, e Ele nos comprou
por grande preço, como diz o mesmo Apóstolo aos Coríntios (1Cor
6); e nem só devemos ser hóstia viva de Deus, mas sim hóstia, que
viva a vida da graça e do Espírito Santo, pois os que estão
mortos pelo pecado, não são hóstias de Deus, mas do Diabo, que
mortifica as almas, e nisto se deleita admiravelmente. O nosso bom
Deus, que sempre vive, e é a fonte da vida, não quer sacrifícios de
cadáveres fétidos e que para mais nada prestam senão para ser
lançado às feras. É por isso necessário haver o maior cuidado,
em conservarmos a vida da alma, para assim oferecermos a
Deus o culto racional que lhe devemos.

Não é também só bastante, que a hóstia seja viva é preciso que,


além disto, seja santa: Hóstia viva e santa diz o Apóstolo. Santa se
diz ela, quando é de animais puros. Eram puros dentre os
quadrúpedes, como dissemos acima, ovelhas, cabras e bois, das
aves, rolas, pardais e pombas: os primeiros significam a vida ativa,
os segundos a contemplativa; por isso os que entre os fiéis passam
vida ativa, se querem oferecer-se a Deus em hóstia santa, devem
imitar a inocência e mansidão da ovelha, que não sabe o que é
prejudicar o próximo; devem imitar também o trabalho e a
constância do boi, que não passa a vida ociosa, andando duma
para outra parte, mas, trazendo o seu jugo, move o arado, servindo
à agricultura; devem finalmente imitar a velocidade da cabra em
subir aos montes, e a agudeza da sua vista em descobrir os
objetos distantes, pois os que na Igreja de Deus passam vida
ativa, não se devem contentar só com a mansidão e boas obras,
mas deve também por freqüentes orações subir ao alto, e ver
mentalmente o que está acima. Como os modelarão as suas obras
pela glória de Deus, e farão subir ao alto o incenso do sacrifício, se
nunca, ou raras vezes, pensarem em Deus; se se não abrasarem no
Seu amor por meio da contemplação? Pois não deve a vida ativa
dos cristãos ser absolutamente separada da contemplativa,
nem esta daquela, como depois dirá. Assim os que não imitam as
ovelhas, os bois e as cabras, que a seu dono servem contínua e
utilmente, mas procuram o que é seu, isto é, andam procurando só
as comodidades temporais, esses não oferecem a Deus uma hóstia
santa, porém é semelhante às feras arrebatadoras e carnívoras, aos
lobos, aos cães, aos ursos, aos milhafres, aos abutres, aos corvos,
que só tratam de satisfazer à barriga, o seguem o leão, que rugindo,
anda sempre procurando preza que possa devorar (1Pd 5).
Além disto os cristãos, que escolheram a vida contemplativa e
desejam oferecer-se a Deus, como hóstia viva e santa, devem
imitar a solidão da rola, a pureza da pomba, e a prudência do
pardal. A solidão da rola pertence mais aos monges e eremitas, que
se dedicam todos à contemplação e louvores de Deus, sem nada se
importarem com as coisas do século. À pureza da pomba, unida
com a sua fecundidade é necessária aos bispos e clérigos, que
convivem com os homens e devem gerar e criar filhos espirituais
segundo a sua própria obrigação, se, porém não voarem repetidas
vezes, e contemplativamente à pátria celeste a não descerem pela
caridade a valer às necessidades do próximo, mal poderá reunir a
pureza com a fecundidade, porque, dados só à contemplação, hão
de ser estéreis; só à citação de filhos hão de manchar-se com o pó
da terra, e querendo ganhar os outros, talvez eles mesmos (o que
Deus não permita) se perderão. A uns e outros, pois, assim aos que
se dão à vida ativa, como aos que à contemplativa se dedicam,
pode sem dúvida aproveitar muito a prudência do pardal. Há pardais
do monte e pardais domésticos. Os do monte escapam-se com
incrível sagacidade dos laços e redes dos caçadores; os domésticos
habitam nas cidades, fazem os seus ninhos nos telhados das casas,
porém convivem com o homem de maneira que não se familiarizam
com ele, nem facilmente se deixam apanhar. Por isso aí todos os
cristãos, mas especialmente aos clérigos e monges, é necessária a
prudência dos pardais, para se acautelarem aos laços do demônio,
para viverem com os homens em proveito destes, evitando, porém a
sua convivência, especialmente a das mulheres, fugindo de
conversações, não tomando parte em comezanas, e não
aparecendo em divertimentos nem em espetáculos, senão quiserem
ser apanhados nos laços com que os demônios caçam as almas.

Resta à última condição dos sacrifícios, que a vitima seja não só


viva e santa, mas, além disto, bem agradável, isto é, que ao alto
envie cheiro suavíssimo, o que a Escritura quer significar na
passagem:

“Sentiu o Senhor o cheiro de suavidade” (Gn 8)


E quando a respeito mesmo do Senhor diz:
“Entregou-se a si mesmo como oferenda e hóstia a Deus em cheiro
de suavidade” (Ef 5)
Para que, porém, a vítima exale cheiro agradabilíssimo a Deus, é
necessário que seja sacrificada e queimada, Isto se faz no sacrifício
místico e racional, do qual dizemos com o Apóstolo, quando a
concupiscência carnal é verdadeiramente mortificada, e queimada
no fogo da caridade, pois não há nada, que mais eficaz, breve e
completamente, reprima a concupiscência da carne, do que o
sincero amor de Deus, porque é ele o Rei e Senhor de todos os
afetos do coração; todos por ele são regidos, dele depende todo o
temor, a esperança, o desejo, o ódio, a ira, ou qualquer outra paixão
violenta da alma. Ora o amor não cede senão a outro amor mais
forte; e por isso, quando o amor divino se assenhoria com toda a
sua força do coração humano, e o incendeia, a concupiscência da
carne cede, e, reprimida, perde toda a sua ação; depois se erguem
a Deus desejos ardentes, e preces puríssimas, como aromas, em
perfume de suavidade. É este o sacrifício que Deus nos exige, e a
cujo prontíssimo cumprimento o Apóstolo nos exorta, mas, porque
esta oblação é árdua, pesada e dificultosíssima, como mais não
pode ser por isso o Apóstolo São Paulo emprega, para vo-la
persuadir, um eficacíssimo argumento daquelas palavras:

“Rogo-vos pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos


corpos, etc.” (Rm 12)
No Códice grego lê-se no plural: Rogo-vos pelas misericórdias de
Deus; e quais e quantas são as misericórdias de Deus, pelas quais
o Apóstolo nos pede?
A primeira é a criação, pela qual fez que nós fossemos alguma
coisa, quando nada éramos.

A segunda é ter-nos feito Seus servos, não precisando de nós para


coisa nenhuma, mas, para ter, a quem fizesse benefícios.

A terceira é ter-nos feito à Sua imagem, e por isso dotados da


capacidade de o podermos conhecer e amar.
A quarta é ter-nos feito por Cristo seus filhos adotivos, e co-
herdeiros do Unigênito.

A quinta é ter-nos feito membros da sua Esposa e do seu corpo, do


qual Ele é cabeça.

A sexta, finalmente, é ter-Se oferecido na Cruz em oblação e hóstia


a Deus em perfume de suavidade, para nos remir da escravidão e
lavar das máculas, e tornar gloriosa a sua Igreja sem mancha nem
ruga.

São estas as misericórdias do Senhor, pelas quais o Apóstolo nos


pede e roga como se dissesse:

«Tantos benefícios vos fez o Senhor, sem vós os merecerdes, e sem


lh’os pedirdes, porque vos deverá então parecer custoso
oferecerdes-lhe uma hóstia viva, santa, e bem do seu agrado?»
Sem dúvida, se alguém sobre isto quiser meditar atentamente, não
só lhe não parecerá pesado, mas até leve, fácil, agradável, e suave,
servir a tão bom Senhor de todo o coração, e por toda a vida, e,
imitando o Seu exemplo, ofereceres-Lhe todo em hóstia e oblação,
e por isso holocausto em cheiro de suavidade.

Capítulo XXVIII.
Do quarto fruto da sexta palavra

Pode colher-se um quarto fruto da explicação da quarta


palavra: Tudo está consumado. Sendo verdade, como não pode
deixar de o ser, que por justo juízo de Deus Cristo, livrando-nos
da escravidão do Diabo, nos passou para o reino do Filho da
sua predileção; indaguemos diligentemente, e não nos cansemos
de indagar a causa, enquanto não a descobrirmos, porque tamanho
número de gente antes queria tornar-se escravo do inimigo do
gênero humano, para com ele arder eternamente nas chamas do
inferno, do que servir a Cristo, Príncipe benigníssimo; e, mais ainda
do que isto reinar felicíssima e certissimamente com Ele. Eu não
acho outra senão que no serviço de Cristo se deve começar pela
cruz, e que é necessário crucificar a carne com todos os seus
vícios e apetites. Esta amarga bebida, este cálice de absinto,
nauseia o homem, fraco por natureza; e é muitas vezes o motivo
porque ele antes quer continuar na enfermidade, do que curar-se,
tomando aquele remédio. Se o homem não fosse homem, mas
bruto, ou homem em delírio e privado da razão, ainda poderia
conceder-lhe que se governasse pelas sensações e apetites; porém,
sendo o homem um ser racional, conhece certamente, ou pode
conhecer que, quem mandou que a carne fosse crucificada com os
seus vícios e apetites, não só quer o comprimento deste seu
preceito, mas até ajuda, mais ainda, previne com o auxílio da sua
graça do mesmo modo, como um médico prudente sabe preparar
um copo de remédio amargoso, de sorte que não custo a tomar. De
mais, se cada um de nós fosse o primeiro a quem se
dissesse: Toma a tua cruz, e segue-me; talvez pudesse ficar
indeciso, e desconfiar das suas forças, não se atrevendo nem
mesmo a chegar-lhe as mãos, por acreditar, que não tinha forças de
poder com ela; porém, tendo sido tantos antes de nós, não só
homens, mas até meninos e meninas, os que esforçada e
valentemente tem levado a sua cruz atrás de Cristo, e tem
crucificado a carne com os seus apetites, que receio podemos nós
ter? Porque vacilamos? Santo Agostinho (1), convencido por este
argumento, venceu a concupiscência carnal que por muito tempo
tinha julgado invencível, pois apresentou aos olhos da sua alma por
meio de um resumo de memória muitos e muitas, que ofendiam a
castidade, muitos e muitas que se conservaram virgens, e dizia a si
mesmo:
«Porque não hás de tu poder, como estes e estas puderam? Nem
eles nem elas puderam por força sua, mas por força do Senhor seu
Deus»
E o que dizemos da concupiscência da carne, pode também dizer-
se da concupiscência dos olhos, que é a avareza, e da soberba da
vida, pois não há vício nenhum, que com o auxílio de Deus não
possa ser crucificado; nem há o perigo de que Deus não queira
auxiliar-nos, porque São Leão nos diz:

«Justamente de nós exige o cumprimento dos seus preceitos,


porque se antecipa com o auxílio» (2)
São por isso dignos de compaixão, para não dizer mentecaptos e
astutos, os que podendo sujeitar-se ao jugo suave e leve de Cristo
(Mt 11), e conseguir nesta vida a tranqüilidade das suas almas, e na
futura reinar com o mesmo Cristo, querem antes trazer, em
obediência ao Diabo, cinco cangas de bois, e servir aos estímulos
da carne com trabalhos e dores (Lc 14), e por fim sofrer com seu
senhor, o Diabo, os perpétuos tormentos do inferno.

Referência:

(1) Liv. 8, Confiss. cap. 11


(2) Serm. 16, de Pass.

Capítulo XXIX.
Do quinto fruto da sexta palavra

Um quinto fruto se há de colher daquela palavra, por ela significar


também, que o edifício da Igreja se concluiu na Cruz, e que a
mesma Igreja saiu do lado de Cristo moribundo, assim como Eva
saíra da costela de Adão, quando este dormia. Este mistério nos
ensina que amemos a cruz, que a honremos, e que
dedicadamente nos afeiçoemos a ela. Quem há, pois, que não
tenha afeição ao lugar da naturalidade de sua mãe? Admirável é
sem dúvida a que todos os fiéis consagram à sacratíssima casa do
Loreto, por nela ter nascido a Virgem Mãe de Deus, pois o Anjo diz
a José:
“O que nela se gerou, é obra do Espírito Santo” (Mt 1)
Daqui vem, que a Igreja, não se esquecendo da sua origem, em
toda a parte representa a Cruz, em toda a parte a põe: na testa, nos
templos, nas casas, não faz sacramento nenhum sem Cruz; nada
santifica, benzendo, sem cruz, dedicamos, porém uma especial
afeição à Cruz, quando alguma adversidade suportamos por amor
do Crucificado, pois é gloriar-se na Cruz fazer o que os Apóstolos
faziam quando, jubilosos, saíram do conselho, por terem sido
achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus (At 5), e o
Apóstolo São Paulo, explica o que é gloriar-se na Cruz, dizendo:

“Gloriamo-nos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a


paciência, a paciência a experiência e a experiência a esperança, e
que a esperança não traz confusão porque a caridade de Deus está
derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi
dado” (Rm 5)
De onde conclui, escrevendo aos Gálatas:

“Nunca Deus permita que eu me glorie senão na cruz de Nosso


Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim,
e eu para o mundo” (Gl 6)
O triunfo verdadeiro da Cruz consiste em que o Mundo com as suas
pompas e deleites morra para a alma cristã, e amante de Cristo
crucificado, ela morra para o Mundo, amando a tribulação e o
desprezo, que o Mundo aborrece, e odiando os prazeres carnais e a
glória temporal que o Mundo ama: deste modo perfeiçoa-se e
completa-se o servo de Deus, para também dele se poder dizer:
— Está consumado.

Capítulo XXX.
Do sexto fruto da sexta palavra
Resta o último fruto, que se deve colher com o maior proveito, da
perseverança de Cristo na Cruz, pois daquela palavra: Tudo está
consumado, entendemos que o Senhor concluiu a obra da sua
Paixão do princípio ao fim, de sorte que nada Lhe pudesse
faltar. «As obras de Deus são perfeitas» diz Moisés (Dt 33), e assim
como o Pai no sexto dia concluiu a obra da Criação, e descansou no
sétimo, assim também o Filho terminou no sexto a obra da
Redenção, e no sétimo descansou. Debalde clamavam os judeus,
em frente da Cruz:
“Se é Rei de Israel, desça da Cruz, e acreditamo-lo” (Mt 26)
Melhor diz São Bernardo (1):

«Antes, porque é Rei de Israel, não abdique o seu título»


E pouco abaixo:

«Não te dará ocasião de nos ser roubada a perseverança, a qual só


é coroada. Não fará emudecer as línguas dos pregadores, que
consolam os pusilânimes, e que a cada um estão dizendo: “Não
abandones o teu lugar”, o que sem dúvida aconteceria, se eles lhes
pudessem responder que Cristo abandonará o seu»
Cristo perseverou na Cruz até o fim da vida, para concluir a Sua
obra tão perfeitamente, que nada faltasse-Lhe; e para nos deixar
um exemplo verdadeiramente admirável de constância; porque
nenhuma dificuldade tem a permanência em sítios amenos, e em
atos que produzam prazer, porém a continuação num estado
trabalhoso e de sofrimento é dificílima. Se conhecermos o que fez
que Cristo perseverasse na Cruz, talvez aprenderemos a levar
também a nossa com a constância, e a pendermos nela com
perseverança até morrer, se tanto for preciso. Se alguém lançar os
olhos só à Cruz, não poderia deixar de horrorizar-se à vista do
funesto instrumento de morte, mas, se erguer os olhos não só os do
corpo, mas também os da alma, Àquele que nos manda, que
levemos a nossa cruz até o lugar aonde ela guia, e até o fruto que
dela nasce, então não será difícil nem custoso, mas fácil e aprazível,
levar a Cruz, ainda que ela seja pesada, ou perseverar, pendente
dela.

Que foi o que fez que Cristo nela pendente tanta perseverança
tivesse até à morte, sem Se queixar? A primeira causa foi amor a
seu Pai:

“Não queres que eu beba o cálice que meu Pai me deu?” (Jo 18)
O amor de Cristo a seu Pai, é inteiramente indizível; e tal era
também o do Pai a seu Filho; e vendo que aquele cálice Lhe era
dado por um Pai, o melhor de todos, e amantíssimo, de sorte que
não podia suspeitar de modo nenhum, que Ele Lhe era dado para
um fim que não fosse ótimo, e gloriosíssimo para Si mesmo, que há
que admirar tê-lo Ele bebido da melhor vontade até à última gota?
Além disto, o Pai desposou seu Filho com a Igreja, esposa que não
tinha asseio, e tinha rugas; mas que Ele querendo cuidadosamente
lavá-la num banho quente do Seu sangue, facilmente tornaria
gloriosa, sem mácula nem ruga (Ef 5). Amou Cristo a esposa, que
seu Pai Lhe deu, e não Lhe foi custoso lavá-la no Seu sangue, para
torná-la formosa e gloriosa, pois se Jacó pelo amor que tinha a
Raquel, serviu sete anos Labão, pastoreando-lhe o seu gado,
sofrendo calmos e frios, e fugindo-lhe o sono dos olhos; e aqueles
anos, tantos, lho pareceram poucos dias pelo amor que ele tinha
(Gn 29); se, torno a dizer, por uma Raquel, Jacó se não enfadou
com sete anos de serviço, e ainda de outros sete, que admira que o
Filho de Deus quisesse aturar na Cruz três horas por amor da Igreja,
sua Esposa, que havia de ser Mãe de muitos mil santos, filhos de
Deus? Finalmente, Cristo quando estava para beber o cálice da
Paixão, não atendia só ao amor de seu Pai e da sua Esposa,
atendia também aquela elevadíssima glória, e grande e
interminável alegria, a que havia de subir pela escada do patíbulo
da Cruz, pois diz o Apóstolo:

“Humilhou-Se Se fazendo obediente até à morte, e morte da Cruz;


pelo que Deus não só O exaltou, mas Lhe deu um nome, como não
há outro; pois ao nome de Jesus tudo dobra o joelho, no Céu, na
Terça e no inferno” (Fl 2)
Acrescentamos ao exemplo de Cristo o exemplo dos Apóstolos. São
Paulo, fazendo a enumeração, das suas cruzes, e das dos outros
Apóstolos, na sua Epístola aos Romanos, diz:

“Quem nos separará, pois do amor de Cristo? A tribulação, ou a


angustia, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a perseguição, ou
a espada?” (Rm 8)
Assim como também esta escrito:

«Porque por amor de ti somos sempre mortificados, e tidos em


conta das ovelhas destinadas ao matadouro, tudo isto, porém
suportamos por amor daquele que nos amou» (Sl 43)
Para sofrerem os tormentos e perseverarem neles, não lhes davam
atenção, prestando-a ao amor de Deus, que por nós deu seu Filho;
ou também consideravam no mesmo Cristo que nos amou, e se
sacrificou por nós. O mesmo Apóstolo, escrevendo aos Coríntios,
lhes diz:

“Estou cheio de contentamento, exubero de gozo em toda a nossa


tribulação” (2Cor 7)
De onde virá tamanho contentamento, tão grande consolação, que
quase se não sintam as tribulações? Dí-lo, ele em outra parte:

“Porque o que aqui é para nós de uma tribulação momentânea, e


ligeira, produz em nós de um modo todo maravilhoso no mais alto
grau um eterno de glória” (2Cor 4)
Por isso a contemplação da glória sempiterna, que ele trazia antes
os olhos da alma, era a causa, porque a tribulação lhe parecia
momentânea e leve.

«Contemplações assim, que perseguição poderá perturba-las? Que


tormentos poderão vencê-las?» Diz São Cipriano (1)
A estas pode acrescentar-se o exemplo de Santo André, que olhou
não como tormento, mas como amiga, a Cruz, em que esteve
pendente dois dias, e querendo o povo tirá-lo dela, de modo
nenhum o consentiu, mas quis nela permanecer até à morte, e não
era aquele santo um imprudente, pois era muito sábio e cheio de
Espírito Santo.

Destes exemplos de Cristo e dos seus Apóstolos podem os cristãos


aprender como devem orar, quando não possam descer da Cruz,
isto é, livrarem-se da tribulação, sem por este fato pecarem. Neste
caso estão principalmente todos os regulares, cuja vida, sujeita aos
votos de pobreza, castidade, e obediência,
é reputada uma semelhança de martírio; os casados, quando por
divina providência o marido tem uma esposa impertinente,
desmazelada, colérica, e quase insuportável; ou a mulher um
marido não menos custoso de aturar, como o de Santa Mônica, mãe
de Santo Agostinho, conforme este Santo diz nas suas Confissões
(2); os escravos que perderam a sua liberdade; os condenados a
cárcere perpétuo; os sentenciados às galés; os doentes de moléstia
incurável; finalmente, os que só furtando, ou roubando, podem
enriquecer. Todos estes, e alguns mais que haja, se desejam ter
perseverança, em levarem a sua cruz com gozo espiritual e grande
merecimento, não ponham os olhos nela, mas nAquele que lh’a pôs
aos ombros, pois foi sem dúvida Deus, que é nosso Pai
amantíssimo, e sem cuja providência nada se faz neste Mundo. O
que é do agrado de Deus é sem dúvida nenhuma o melhor que
pode ser; e deve ser para nós do maior agrado possível, porque
deve todos dizer com Cristo:

“Não queres que eu beba o cálice que meu Pai me deu?” (Jo 18)
E com o Apóstolo:

“Em todas estas coisas saímos vencedores por aquele que nos
amou” (Rm 8)
Além disto, podem também e devem todos àqueles que só pecando
possam abandonar a sua cruz, considerar não tanto o trabalho
presente, quanto a futura recompensa, que sem dúvida nenhuma é
superior a todas as penalidades e sofrimentos desta vida, como diz
o Apóstolo:

“As penalidades desta vida não tem proporção com a glória vindoura
que em nós se há de manifestar” (Rm 8)
E em outra parte falando de Moisés:

“Tendo por maiores riquezas o opróbrio de Cristo, de que os


tesouros dos Egípcios; porque olhava a recompensa” (Hb 11)
Podemos finalmente acrescentar para consolação daqueles que são
obrigados a levar por muito tempo uma pesada cruz, o exemplo de
dois indivíduos, que perderam a constância com que levavam a sua,
e por isto se sujeitaram a outra, sem comparação mais pesada.

Judas, o traidor, que entregou Cristo, caindo em si, e detestando o


crime que cometera, e não podendo suportar a vergonha a que
necessariamente se expunha, se quisesse aparecer diante dos
Apóstolos ou dos outros discípulos, enforcou-se; mudou, porém, não
evitou a cruz da vergonha a que queria fugir, pois maior vergonha
será a sua no dia do Juízo, quando for à presença dos anjos e dos
homens declarado não só traidor de Cristo, mas homicida de si
mesmo. E quão grande não foi a sua cegueira, pretendendo evitar
uma pequena vergonha na presença do pequenino e manso
rebanho dos discípulos de Cristo, que todos o havia de animar a ter
confiança na misericórdia do Salvador, e não ter cuidado nenhum
em evitar a vergonha e infâmia, que há de sofrer no teatro de todos
os homens e anjos da traição que fez a Cristo, e de se ter
enforcado?

O outro exemplo pode tomar-se da oração de São Basílio sobre os


quarenta Mártires, em suma é assim. Na perseguição do imperador
Licínio quarenta soldados, que não quiseram deixar a lei de Cristo,
foram condenados a passar uma noite inteira nus, expostos ao
sereno, na quadra do inverno, e num lugar em que o frio era
intensíssimo, para assim morrerem no cruelíssimo e
prolongadíssimo martírio da congelação. Estava pronto próximo
deles um banho morno, para nele entrarem os que quisessem
renegar da fé. Trinta e nove, olhando com os olhos da alma não
tanto para o tormento, presente da congelação, que brevemente
havia de ter fim, como para a coroa da glória sempiterna, sem custo
perseveraram na fé, e mereceram da mão do Senhor
brilhantíssimas coroas. O que só prestava atenção ao tormento,
considerando todo nele, não pôde perseverar, e saltou para o banho
tépido, porém morreu imediatamente, esfacelando-se-lhe as carnes,
já congeladas, e foi, por ter negado Cristo, sofrer no inferno os
tormentos eternos. Assim, fugindo da morte, encontrou a morte, e
trocou uma cruz leve e de pouca duração, por outra pesadíssima, e
que nunca há de ter fim. Imitam estes infelizes todos aqueles que
desertam da ordem religiosa; todos os que arremessam de si o jugo
suave e a carne leve e, quando menos o pensam, acham-se
amarrados ao jugo muito mais pesado de vários apetites, que nunca
poderão satisfazer, e as cargas pesadíssimas de pecados, que nem
os deixarão respirar. O mesmo é a respeito de todos os outros, que
resistem a levar com Cristo a sua Cruz, e pelos pecados, que
cometem, se vêem obrigados a carregar com a cruz do Diabo.

Referências:

(1) Lib. de exhort. Mart.


(2) Lib. 9, cap. 9
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Resumo da vida do Cardeal Belarmino


Roberto Belarmino, nascido para bem da República Cristã em 4 de
outubro de 1542, em Policiano, cidade da Toscana, foi nobre, por
ambos os seus progenitores, que foram Vicente Belarmino, pessoa
muito considerada, Cintia Cervina, senhora de primeira nobreza e
virtuosíssima, e irmã do Papa, Marcelo II. Depois de ter estudado
diligentemente Gramática, Literatura e Retórica, aprendeu com
incrível rapidez o Grego nas escolas dos Jesuítas, e pelo gosto que
tinha pela poesia, não tendo ainda dezesseis anos, escreveu em
latim com correção e elegância o poema da Virgindade; uma Écloga
à morte do cardeal Roberto Nobilio, na qual mostra descrição de
homem já feito; um poema sáfico do Espirito Santo, que
começa Spiritus, celsi Dominator axis; e o elegantíssimo hino de
Santa Maria Madalena Pater Superni luminis, o qual Clemente VIII
mandou incluir no Breviário Romano entre os da festa daquela
Santa.
Chegado à adolescência, foi cursar os estudos superiores na
Academia de Pádua, e lá se resolveu a meter-se frade da
Companhia. Seus pais, porque desejavam que a sua casa se não
extinguisse, e não tendo outro filho, fizeram conjuntamente com os
seus amigos tudo quanto era possível, para o dissuadirem; porém
não puderam consegui-lo; porque os seus argumentos, fundados
em futuras grandezas humanas, nada podia com Belarmino, que as
aborrecia.

Entrou, pois naquela religião aos dezoito anos, e, depois de


concluído o seu noviciado no colégio de Roma, e de ter estudado
três anos Filosofia, foi com geral aplauso nomeado mestre em artes,
e mandado pouco depois para Florença, reger as cadeiras públicas
de Retórica e Astronomia.

Por ordem do Reitor do Colégio daquela cidade pregou em dias


determinados (além dos discursos, que em fazia na Sé) quase ainda
não tendo barba, e sem ainda ter ordens nenhumas, e tão lógica e
eloquentemente, que um indivíduo erudito, e, que não era qualquer,
tendo-o ouvido, disse no fim do sermão em voz alta:

«Ainda assim não falou homem nenhum»


Em Pádua defendeu teses de Filosofia e Teologia dois dias inteiros
com tanta dignidade, saber, e
erudição, que não só ganhou a afeição de todos, mas até mereceu,
que dele dissessem que era um homem incomparável; sendo ainda
um rapaz.

Recebeu a ordem de subdiácono em Liége, e em Gaud as de


diácono e presbítero; e celebrou a primeira vez em Lovaina em
1570.

Depois, tendo feito a profissão dos quatro votos da Companhia, deu-


se de tal modo ao estudo do Hebraico, que dentro em pouco o
aprendeu, e ensinou com aplauso.

Foi onze anos Mestre de Casos no Colégio Romano, aonde


concorria a ouvi-lo muita gente, que muito aproveitava com as suas
lições.

Xisto V mandou-o para França com o Legado Pontifício, Henrique


Caetano, e lá sofreu muitos e grandes trabalhos pelo nome de
Cristo no cerco de Paris. Escreveu então em nome do Legado uma
notável carta em latim a todos os Prelados franceses, para eles não
caírem no cisma.

Inocêncio IX, apenas subido ao Pontificado, quis fazê-lo Cardeal,


para lhe remunerar os seus grandes serviços à Igreja: não pode
porém realizar a sua vontade, porque morreu, não tendo ainda, dois
meses de Pontificado.

Gregório XIV, mandando, aconselhado por Belarmino, corrigir a


Bíblia de Xisto V, nomeou-o membro da respectiva junta.
Em 1597 foi, por falecimento do cardeal de Toledo, nomeado
Teólogo Pontífice e conselheiro da Suprema Inquisição por
Clemente VIII, depois examinador dos que haviam de serem bispos,
e Prepósito da Penitenciária do Vaticano, e pelo seu distinto
desempenho de ambos estes lugares promovido a Cardeal pelo
mesmo Pontífice, que lhe fez, quando o nomeou, o seguinte elogio:

“Nomeá-lo Cardeal, porque em sabedoria não tem a Igreja de Deus


outro como ele; e porque é sobrinho de um ótimo e santíssimo
Pontífice”
Em 1602 foi feito Arcebispo de Cápua, para onde partiu logo depois
da sua consagração; e tendo ido a Roma ao Conclave por
falecimento de Clemente VIII, Paulo V, sucedendo a Leão XI, que só
foi Pontífice vinte e sete dias, não o deixou voltar para Cápua,
dizendo, que de um homem assim não precisava uma Igreja, mas
precisava todo o orbe católico. Por pouco não saiu Pontífice no
Conclave, que elegeu Paulo V, e muito grande foi o seu
contentamento, quando viu, que não era ele o eleito.

Conhecendo que a morte se lhe avizinhava, obteve do Pontífice


Gregório XV, permissão para deixar os cargos públicos, que
ocupava, e retirar-se à sua religião, onde escreveu a sua última
obra, a Arte de bem morrer.

Foi muito devoto, de muita caridade, severo só consigo, e muito


afável com todos, não consentindo mesmo, que os pobres, quando
lhe pediam esmola, estivessem com o chapéu na mão, era inimigo
dos vícios; bem como do luxo, das grandezas mundanas e das
delícias.

Escreveu muitas obras nos gêneros polêmico, exegético e pio. A


este pertencem – As Sete Palavras de Cristo na Cruz.

Morreu santissimamente, de 79 anos, a 17 de setembro de 1621.


A Venerável Congregação dos Celestinos,
Monges da Ordem de São Bento, faz os seus
cumprimentos o Cardeal, Roberto Belarmino,
Protetor da mesma Congregação
Tão sabiamente como podia ser, julgou o abade Pynuphio, segundo
diz Cassiano, que o perfeito monge se deve comparar com Cristo
crucificado; pois as virtudes que no perfeito monge se requerem,
são as três seguintes: pobreza, que exclua quanto for
domínio; castidade, que nunca saiba os prazeres carnais;
e obediência, absolutamente subordinada a um aceno do seu
superior; às quais virtudes costuma andar anexa na regra de São
Bento a estabilidade do lugar.

Se alguém, pois, quiser ver um exemplar de voluntária pobreza até


a completa nudez e indigência, repare em Cristo crucificado, que,
assim como em vida não teve onde reclinar a cabeça, assim
também, estando para morrer, deixou que os seus algozes entre si
dividissem os seus próprios vestidos, únicos objetos que possuía.

Se alguém quiser achar um modelo da mortificação da carne, que


conserve a castidade em toda a sua perfeição, sem dúvida o
encontrará em Cristo crucificado; pois desde as plantas dos pés até
o alto da cabeça estava sofrendo uma dor contínua.

Se alguém quiser finalmente procurar um tipo de perfeita


obediência, em ninguém o poderá descobrir mais completo do que
nAquele, que, obediente, se sujeitou à morte, e morte de cruz. Nem
só achará em Cristo crucificado, protótipo incomparável de todas as
virtudes, a virtude da obediência, mas também as suas inseparáveis
companheiras, sofrimento e humildade, e desta o seu princípio e
fim, caridade ardentíssima, e em todas elas perseverança até final,
a qual é significada pela estabilidade do lugar.
Certamente não só Cristo na Cruz é o mais completo modelo da
perfeição monástica; mas também o perfeito monge representa
perfeitíssimamente o Senhor crucificado. Esta representação ou
semelhança de Cristo crucificado parece tê-la expressada ao vivo
principalmente São Pedro Celestino; pois a sua vida, quase desde a
infância até á última velhice, e morte, nada mais foi do que uma
continuada meditação da Cruz, e não interrompida imitação do
Crucificado; e; para com propriedade se dar a conhecer, que assim
fora, se viu, quando ele estava para morrer, desde sexta-feira até às
três horas do sábado, em que felicissimamente entregou o seu
espírito ao Criador, uma Cruz d’ouro, milagrosamente suspensa no
ar, defronte da sua cela. Aquela Cruz, conta Pedro d’Aliaco, Cardeal
Cameracense (Lib. 2, c. 19 vitae S. Petri Caelestini), que por muita
gente fora visto com assombro; e isto mesmo é mencionado, como
indubitável sinal do Céu no documento da sua canonização. Em
vista disto parece-me, que bastante razão tem, para oferecer e
dedicar especialmente aos meus Celestinos os meus livros das Sete
palavras proferidas por Cristo na Cruz, pois neles diligenciei
explicar as principais virtudes do Crucificado; às quais sendo sem
dúvida nenhuma, muito úteis a todos os fiéis, são absolutamente
necessárias a quem por própria vocação abraçou a mortificação da
Cruz. Aqueles, pois, que com Cristo se crucificaram, e para o mundo
morreram, pela observância externa da sua regra, e não imitam as
virtudes do Crucificado sofrem, como o infeliz ladrão, a ignomínia do
patíbulo e os seus tormentos; porém não conseguirão nem a glória,
nem o prêmio de Cristo; e melhor lhes fora, como diz São Pedro –
não terem conhecido o caminho da justiça, do que depois de o
terem conhecido, tornarem para traz, deixando àquele mandamento
santo, que lhes foi dado (2 Pd 2). Pelo, que exorto todos os monges,
e, particularmente os meus Celestinos, a que, se quiser ser o que
diz o nome de monges, leiam assiduamente o Livro da cruz de
Cristo, e o tenham como um comentário fiel e claro, para explicar os
lugares escuros, que leiam repetidas vezes as vidas de São Pedro
Celestino, e dos outros santos, e se desvelem na prática das
virtudes, que deles aprenderem; pois assim se realizará, que de dia
para dia a Cruz se lhes torne suave, e tão amável, que, sem custo
desprezem os Escribas e Fariseus, isto é, a carne e o sangue, que,
gritando, lhes estão dizendo — descem da Cruz. Assim faziam
antigamente os discípulos de São Francisco, quando ainda não
tinham os livros da sua reza: olhando continuamente para o livro da
Cruz de Cristo, de dia e de noite o liam e reliam como diz São
Boaventura (In vita S. Francisci, c.4), ensinados pelo exemplo e
discursos do seu Patriarca, que continuamente lhes fazia prédicas a
respeito da Cruz.
Aceitai, pois, veneráveis Padres, esta dadivazinha, que vos oferece
o vosso Protetor, e, que será mesmo depois que ele morrer, uma
prova do entranhável afeto, que sempre vos consagrou, e do desejo,
que sempre teve de, que vós sejais herdeiros das virtudes de São
Pedro Celestino, e verdadeiros discípulos e imitadores de Cristo
Crucificado.

Prefácio
Vão já correndo quatro anos desde que eu, preparando-me para
deixar este mundo, estou retirado do seu bulício, tendo abandonado
as coisas do século, porém não a meditação da Sagrada Escritura
nem deixando de escrever o que a este respeito me ocorre, porque,
se já não posso ser útil aos meus irmãos pela palavra ou por longos
escritos, ao menos não deixe de o ser por livrinhos de piedade.
Quando eu estava pensando a respeito do assunto que devia
escolher, e, que não só pudesse dispor-me para morrer cristãmente,
mas também servir ao meu próximo, para bem viver; ocorreu-me a
ideia da morte do Redentor, e daquele último sermão que, de sete
curtíssimas palavras, porém de poderosíssimos pensamentos, Ele
do alto da Cruz, como de um elevadíssimo púlpito pregou a todo o
gênero humano: pois naquele sermão ou naquelas sete palavras se
contém tudo aquilo de que o mesmo Senhor diz:

“Eis que subimos a Jerusalém. Tudo o que foi escrito pelos profetas
a respeito do Filho do Homem será cumprido” (Lc 18, 31)
O que eles predisseram a respeito de Cristo, reduz-se a quatro
artigos: Discursos ao povo; oração a seu Eterno Pai; seus
gravíssimos sofrimentos; e suas sublimes e admiráveis ações; e
tudo isto maravilhosamente se realizou na Sua vida, pois o Senhor
pregava frequentíssimamente no Templo, nas Sinagogas, nos
campos, nos desertos, nas casas particulares; finalmente, até de
uma barca as turbas que estavam na praia. As noites passavam
ordinariamente em oração a Deus; pois diz o Evangelista: e passou
toda a noite em oração a Deus (Lc 6 , 12). As suas ações
admiráveis em expulsar demônios, em curar enfermos, em
multiplicar pães, em serenar tempestades, lêem-se a cada passo
nos Evangelistas (Mt 8; Mc 4; Lc 6; Jo 6). Finalmente os malefícios,
com que lhe pagavam os benefícios, eram muitos; não só injúrias
verbais, porém também pedradas, e vontade de O precipitarem (Jo
8; Lc 4). Tudo isto, porém, se consumou sem a menor dúvida na
Cruz. De tal modo, pois, dela pregou que muito dali voltaram
arrependidos (Lc 23): não só se rasgaram corações humanos, mas
também pedras se partiram. De tal modo orou na Cruz, que
oferecendo com um grande brado e com lágrimas, preces e rogos
ao que O podia salvar da morte, foi atendido pela Sua reverencia,
como diz o Apóstolo aos Hebreus (Hb 5). Os tormentos que na Cruz
padeceu, são tão superiores aos sofrimentos das outras épocas da
Sua vida, que propriamente se pode dizer que, aqueles constituem a
Sua paixão. Nunca operou maiores prodígios do que, quando na
Cruz parecia estar no maior desamparo e sem poder algum, pois foi
então, que não só fez que aparecessem provas celestes da sua
Divindade (Mt 27) que os judeus Lhe tinham importunamente
exigido, mas também pouco depois deu disto a maior de todas,
quando depois de morto e sepultado, por Seu próprio poder
ressurgiu dos mortos, fazendo voltar o Seu corpo à vida e vida
imortal. Verdadeiramente, pois na Cruz se consumou tudo quanto os
Profetas escreveram do Filho do Homem.
Antes, porém que eu comece a escrever das palavras do Senhor
parece-me de utilidade dizer alguma coisa a respeito da Cruz, que
foi o púlpito daquele Pregador, o altar daquele Sacrificador, o
estádio daquele Combatente, e a oficina daquele Operador de
milagres. Quanto à estrutura da Cruz é opinião mais seguida dos
antigos, que era formada por três peças; uma ao alto, em que foi
estendido o corpo do Crucificado, outra atravessada, na qual foram
cravadas as mãos, e a terceira pregada na parte inferior daquela,
servindo como de apoio aos pés, que nela foram cravados. Assim o
dizem, os antiquíssimos Padres, São Justino e Santo Irineu (In dial.
cum Triphon. Lib. 15 advers. haeres. Valentin), que bem claramente,
mostram que ambos os pés estavam sobre um escabelo, e não um
sobre o outro. Daqui se segue que os cravos foram quatro, e não
três, como muitos cuidam, representando por isto Cristo crucificado
com um pé sobre o outro; porém à opinião destes é inteiramente
oposta, como muito bem se vê, a de Gregório Turonense (Láb. de
glor. Martyr., cap. 6) a qual é fundada em antigas pinturas:
“Vi em Paris, diz ele, na biblioteca do Rei antiquíssimos, livros dos
Evangelhos, manuscritos, repetidas pinturas do Crucificado, e
sempre com quatro cravos”
Que a haste da Cruz excedia algum tanto a travessa, dizem-no
Santo Agostinho e São Gregório Nazianzeno (Epist. 12. Serm. 1 de
Resur.); e isto mesmo se pode coligir do apóstolo, que, dizendo aos
Efésios (Ef 3): Para que possais compreender com todos os Santos,
qual seja a largura e o comprimento, a altura e a profundidade, bem
claramente descreve a figura da Cruz, que tem quatro extremidades;
largura na travessa, comprimento na haste, altura na parte da haste,
que excede a travessa, e profundidade na parte, que ficava oculta,
cravada na terra. Naquele patíbulo sofreu Nosso Senhor não por
casualidade, nem violentado; pois desde a mesma eternidade O
tinha escolhido, como diz Santo Agostinho (Epist. 120) fundado na
passagem dos Atos dos Apóstolos (At 2): A este, depois de vos ser
entregue pelo decretado conselho e presciência de Deus,
crucificando-o por mãos de iníquos, lhe tirastes a mesma vida: e por
isto mesmo Cristo no começo da Sua pregação disse a Nicodemos
(Jo 3):
“E Moisés no Deserto levantou a serpente; assim importa que seja
levantado o Filho do Homem para que todo o que crê nele, não
pereça, mas tenha a vida eterna”
E falando muitas vezes aos Apóstolos a respeito da sua Cruz, lhes
dizia, exortando-os (Mt 16):

“Se algum quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, e tome a


sua Cruz, e siga-me”
A razão, por que Cristo escolheu este suplício, só Ele sabe: não
faltam, porém razões místicas, que os Santos Padres excogitaram,
e nos deixaram escritas. Santo Irineu diz (Lib. 5, advers. haers.
Valentin.), que os dois braços da Cruz estavam como ligados um ao
outro debaixo do mesmo título — JESUS NAZARENO, REI DOS
JUDEUS – para disso entendermos que os dois povos, hebreu e
gentio, em algum tempo se hão de reunir num corpo, de que Cristo
há de ser a cabeça; tendo antes estado dividido. São Gregório
Nazianzeno, no discurso da ressurreição de Cristo (Orat. 1) diz que,
a parte da Cruz, que olha para o Céu, significa que ele é aberto pela
Cruz, como sendo ela a sua chave; que a parte, que estava cravada
na terra, significa que o inferno havia de ser vencido por Cristo,
quando a ele descesse; que os dois braços da Cruz, em direção um
ao Oriente outro ao Ocidente, significam a reparação de todo o
gênero humano pelo sangue de Cristo. São Jerônimo na Epístola
aos Efésios, Santo Agostinho a Honorato, e São Bernardo
no Tratado da Consideração (Lib. 5), dizem que o principal mistério
da Cruz é brevemente expressado pelo Apóstolo naquelas palavras
(Ef 3): qual seja a largura e o comprimento e a altura e a
profundidade. Dão aquelas palavras a entender, primeiramente os
atributos de Deus:
na altura o Seu poder;
na profundidade a Sua sabedoria;
na largura a Sua bondade,
no comprimento a Sua eternidade.
Em segundo lugar as virtudes de Cristo nos tormentos:

na largura a Sua caridade;


no comprimento a Sua resignação;
na altura a Sua obediência;
na profundidade a Sua humildade.
E finalmente as virtudes neste tempo necessárias para conseguir a
salvação por Cristo:

na profundidade da Cruz a fé;


na sua altura a esperança;
na sua largura a caridade;
no seu comprimento a perseverança.
Disso entendemos que só a caridade que é chamada a Rainha das
virtudes, em todos tem lugar, em Deus, em Cristo, e em nós; e, que
das outras virtudes pertencem umas a Deus, outras a Cristo, outras
a nós. Não haja, pois, quem estranhe, que nas últimas palavras de
Cristo, as quais vamos explicar, demos o primeiro lugar à caridade.
Explicaremos, pois, primeiramente as três primeiras palavras que
Cristo proferiu perto da hora sexta, antes que a Terra fosse toda
envolvida em trevas pelo obscurecimento do Sol. Depois trataremos
do motivo da falta da luz solar; e em seguida explicaremos as outras
palavras, que Cristo proferiu perto da hora nona, como diz São
Mateus (27), isto é, quando as trevas iam acabando, e se
avizinhava, ou antes, estava iminente a Sua morte.

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