Defesa Da Fé Católica Edição Compilada Francisco Suárez

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Francisco Suárez

Defesa da
Fé Católica
Edição compilada

Tradução:
Luiz Astorga &
Tiago Gadotti

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Defesa da Fé Católica (edição compilada), Francisco Suárez
© Editora Concreta, 2015

Título original:
Defensio Fidei Catholicae et Apostolicae adversus Anglicanae Sectae errores

Os direitos desta edição pertencem à

EDITORA CONCRETA
Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330
Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br

EDITOR:
Renan Martins dos Santos

COORDENADOR EDITORIAL:
Marcus Boeira

TRADUÇÃO:
Luiz Astorga e Tiago Gadotti

REVISÃO:
Emílio Costaguá

CAPA & DIAGRAMAÇÃO:


Hugo de Santa Cruz

PINTURA DE CAPA:
O encontro de Papa Leão e Átila (séc. XVIII),
de Francesco Solimena (1657-1747)

DESENVOLVIMENTO DE EBOOK
Loope – design e publicações digitais
www.loope.com.br

FICHA CATALOGRÁFICA

Suárez, Francisco, 1548-1617


S9393d Defesa da Fé Católica (edição compilada) [livro eletrônico] / tradução de Luiz Astorga, edição de
Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2015.

ISBN 978-85-68962-09-1
1. Filosofia política. 2. Teologia. 3. Filosofia moderna. 4. Catolicismo 5. Contra-Reforma. 6. Pensadores
jesuítas. I. Título.

CDD-261.7
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer
reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica
ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

www.editoraconcreta.com.br

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COLEÇÃO SALAMANCA

omposta de intelectuais que povoaram o cenário das universidades da

C Península Ibérica, a Escola de Salamanca foi predominantemente um


movimento teológico caracterizado pela ampla produção em vários campos
do espírito humano como a filosofia, a economia, o direito e a moral. Os
salmanticensis, como são chamados os membros da Escola de Salamanca,
representam a continuação da escolástica nos tempos modernos.
Podemos levantar quatro aporias que inquietaram os escolásticos ibéricos: os
descobrimentos do Novo Mundo, a Reforma Protestante, a formação do incipiente
Estado moderno e a propagação do direito internacional. Essas áreas abriram novos
horizontes para a pesquisa racional e exigiram um tratamento sofisticado, que partisse
dos cânones teológicos e mergulhasse na raiz mesma das transformações pelas quais
o mundo da época – e a Europa em particular – passava.
O resultado foi um gigantesco arcabouço teórico, notabilizado pela profundidade
filosófica e forte sintonia com a produção escolástica da geração anterior. Francisco
de Vitória, Domingo de Soto, Bartolomé Medina, Martim de Azpilcueta Navarro,
Domingo Bañez, Melchior Cano, Luís de Molina, Francisco Suárez, para citar apenas
alguns dos membros da escolástica ibérica, emergiram no cenário cultural europeu
como autênticos porta-vozes do magistério eclesiástico em meio a um continente
marcado por mudanças em todos os fronts. Não resumiram suas respectivas
atividades intelectuais apenas ao reduto salamantino, mas atuaram como catedráticos
e professores em outras universidades peninsulares, chegando até mesmo aos confins
de Portugal, como é o caso das Universidade de Évora e Coimbra.
A produção assombrosa do período permite afirmar que os salmanticensis
ocuparam o posto de soldados intelectuais da Contra-Reforma, não só pela erudição
que demonstraram, senão pela exímia capacidade de esmiuçar os dilemas teológicos
que eram suscitados pelas questões práticas então correntes. Exemplo claro disso é o
tratamento conferido por muitos dos pensadores do período à justiça econômica dos
preços e à complexidade teológica do livre-mercado, temática importantíssima para a
era moderna. Ou ainda a questão do tiranicídio e da desobediência civil, em atenção
ao contingente político das monarquias absolutistas. Enfim, são muitos os impasses
que surgem nesse período.
Os séculos XVI e XVII, assim, radicalizaram a metamorfose pela qual passou a
sociedade ocidental, encurtando as distâncias entre o antigo e o hodierno. Disso,
irrompem novos institutos nas diversas áreas do conhecimento e da existência
humana, dando vazão a novas formas de vida e novos desafios no campo social. O
Estado e o direito internacional, respectivamente, legaram ao homem moderno

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modalidades de vida talhadas dentro de um horizonte burocratizado, condicionado
pelas correntes institucionais do período e com maior amplitude em seus paradigmas,
já que agora o Novo Mundo passava a ser um destino possível para o europeu.
A proliferação de novas formas de existência humana dentro de um cenário mais
vasto reclamou a urgência de novas instituições, capazes de dar conta das
dificuldades nascentes. Não somente o Estado e o Direito das Gentes, como também
o aprimoramento missionário da Igreja e a crescente relevância do comércio entre os
povos advieram para satisfazer tais necessidades. A análise rigorosa desses institutos
pelos pensadores europeus abriu diversas concepções teóricas sobre o direito, a
política e a sociedade. Na Península Ibérica, a escolástica renascia como movimento
teológico, mas igualmente como escola apta a conferir a cada uma dessas aporias
respostas refinadas pela profundidade e pelo método herdado da geração de outrora.
Dentro disso, a Escola de Salamanca promoveu uma verdadeira conciliação entre
a teologia medieval e os institutos da era moderna, ocupando o epicentro cultural do
Siglo de Oro espanhol como mensageira da tradição católica em meio à revolução
cultural pela qual perpassou a sociedade ocidental no período em questão.
MARCUS BOEIRA
Coordenador da Coleção Salamanca

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AGRADECIMENTO AOS COLABORADORES

Através de campanha no website da Concreta para financiar a Defesa da Fé Católica,


348 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse realidade, um gesto pelo
qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir, listamos aquelas que colaboraram
para ter seus nomes divulgados nesta seção:
Adalberto Salvador Perillo Kühl Jr.
Adilmar Antonio Mota de Camargo
Adriano Giacomelli da Silva
Adriel Akário
Alberto de Paula
Alex Catharino
Alexandre de Luca
Alexandre Petersen
Alexandre Varela
Alvaro Cesar Pestana
Ana Silveira
Andre Arthur Costa
Andre Assi Barreto
André Caniné de Oliveira Machado
André Cassilha
Andre Couto
André Florcovski
André Luiz Ecker Costa
Andrey Gomez Kopper
Antonio Afonso Ribeiro
Arthur Dutra
Aruan J. Freitas
Augusto Carlos Pola Jr.
Bernardo Brandão
Bernardo Cunha de Miranda
Bruce Carneiro
Bruno Diniz
Bruno Dornelles de Castro
Bruno José Queiroz Ceretta
Caio Moysés de Lima
Carla Andrade

8
Carlos A. Crusius
Carlos Alberto Leite de Moura
Carlos Alexander de Souza Castro
Carlos Eduardo C. Ribeiro Machado
Carlos Guilherme Silveira
Cezar Martins Fiorio
Chirlei Matos Santos
Cláudio Araújo
Daniel Cerviglieri
Daniel Henrique Cavalcante
Daniel Palma
Davi Lemos
Davide Lanfranchi
Delania Gomes Vieira
Diego Gomes Ferreira
Diogo de Almeida Fontana
Diogo Ferreira Ribeiro Laurentino
Dionisio Pedro de Alcântara Lisbôa
Douglas Castro
Dyêgo Martins
Ederson Lima Oliveira
Eduardo Fernandes
Eduardo Gabriel
Eduardo Gomes
Eduardo Jardim
Eduardo Mohallem
Elaine Cristina Moreira Batista
Elaine Egidio
Elaine Rizzato
Elpídio Fonseca
Érick Luiz Wutke Ribeiro
Erico de Almeida Console Simões
Érico Raoni Santos da Silva
Evandro Cássio Maraschin
Fábio Augusto Leal da Costa
Fabio Nascimento
Fábio Salgado de Carvalho
Fábio Tomkowski
Felipe Aguiar
Felipe Corte Lima
Felipe Mazzarollo
Felipe Santos
Felipe Zarpelon
Fernando Pio de Almeida Fleck
Flavia Silva Barros Ximenes

9
Flávio Montenegro
Francisco de Paula Fischer Ferraz
Francisco Escorsim
Francisco Igor de Souza e Silva
Gabriel Pereira Bueno
Gabriel Schaf
Geciel Rangel Costa
Gilberto Luna
Gilmar Siqueira
Gio Fabiano Voltolini Jr.
Giordano Bruno Meireles de Andrade
Giselle Alexandrino S. Franco
Grazielli Pozzi
Guilder da Costa Studart
Guilherme Batista Afonso Ferreira
Guilherme Meirelles de Paula Botelho
Guilherme Pöttker
Guilherme Stein
Gustavo Bertoche Guimarães
Gustavo Cesquim
Gustavo Costa
Haberlandt Pereira Duarte
Hélcio Madeira
Helder Madeira
Henrique Montagner Fernandes
Henrique Simões
Héres Drian de Oliveira Freitas
Hermano Zanotta
Hilário da Silva
Iara Lisboa
Igor Silveira Santos
Ivanor Bochi
Jaime Fidalgo Ferrà Filho
João Marcelo Silva Zigurate
Joel Arosi
Joel Gracioso
Jonas Henrique Pereira Macêdo
Jorge Ferraz
José Antonio Donizetti da Silva
José Arthur Oliveira Silva
José Francisco Lemos Oliveira
José Maurício Nogueira Leite
Julieta Antônia Brito Arrais
Julio Cesar Amorim de Albuquerque
Julius Lima

10
Karlos Guedes
Ken Bansho Neto
Laércio Dias
Larissa Maria Guedes
Laura Stein
Lenon Sabino
Leonardo Ferreira Boaski
Lucas Cardoso da Silva
Lucas Ferreira Pinheiro
Lucas Lagasse Corrêa
Lucas Monachesi
Luciana Antoniolli
Lucio Medeiros
Luiz Cezar de Araujo
Luiz Vergilio Dalla Rosa
Lysandro Sandoval
Manoel Valquer Oliveira Melo
Marcelo Assiz
Marcelo Ferreira Conde
Marcelo Luis Rossa
Marcelo O. Souza
Marcio Antonio de Castro Campos
Márcio Cenci
Marcos Conceição
Marcos P. V. Zurita
Marcos Rangel Caetano
Marcus Matos Michiles
Maria Rita Sulzbach de Aguiar
Mário Gentil
Mário Jorge Freire
Mateus Colombo
Mateus de Paula
Mateus Messinger
Matheus Ferrari Hering
Matheus Hainzenreder Schaf
Matheus Ruff
Matheus Todeschini Lopes
Mauri Benedito de Paula
Maykon Motta Marins
Odair Silva
Paulo de Tarso Irizaga
Paulo Eduardo Galindo
Paulo Henrique Brasil Ribeiro
Paulo Renato Ghetti Frade
Pedro Henrique Folchito Mendes

11
Pedro Theil Melcop de Castro
Priscilla Silva
Rafael de Almeida Martin
Rafael de Brito
Rafael Henrique Pereira
Rafael José Diegoli
Rayane Sonda Cassel
Raylson Aquino
Renato Emydio da Silva Jr.
Ricardo Fazolini
Ricardo Gonçalves Silva
Ricardo Popien
Roberto Cajaraville
Rodrigo de Menezes
Rodrigo Descalzo
Rodrigo Dubal
Rodrigo Fernandez Peret Diniz
Rodrigo Lacroix
Rodrigo Naimayer dos Santos
Rodrigo Santana Silveira
Roger Assunpção
Roger S. Eger
Ronaldo Lucas da Silva
Roney Silva
Rosele Martins dos Santos
Sandro de Freitas Ferreira
Sideval Ramos de Paula
Suellen Caprara
Tácito Garcia Scorza
Tarcio Sotte
Tatiana Ramos Prado
Tharsis Madeira
Thiago Palacio L. Frazão
Tiago Arno Saldanha Kloeckner
Tiago Toledo
Ulysses Pereira de Siqueira
Vanessa Reis
Vicente Do Prado Tolezano
Victor Alves Fernandes
Vinícius Krupp
Vinicius Scortegagna
Vitor Colivati
Vitor Fonseca de Melo
Vitor Montenegro
Vitor Parodi

12
Vítor Sampaio
Wagner Marchiori
Wanderson Pereira
Weber Soares
Wendell Ramos Maia
William Torquato
Wilson de Paula Ramiro
Wilson Junior
Xavier Peixoto

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SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Coleção Salamanca
Agradecimento aos colaboradores
Apresentação
I. A posição de Francisco Suárez ante a modernidade e o contexto
histórico da Defensio Fidei
II. A controvérsia sobre o juramento de fidelidade e a Defensio Fidei
III. O problema da origem e da natureza do poder: excursus sobre o
Principatus Politicus (Livro III da Defensio Fidei)
IV. Apontamentos sobre a presente edição
Nota do coordenador editorial
Defesa da Fé Católica
Abertura
Proêmio
Parte I - A soberania civil (Livro III - caps. I-IX)
Da excelência e poder do Sumo Pontífice sobre os reis temporais
Capítulo I — Se o principado político é legítimo, e se procede de Deus
Capítulo II — Se o principado político provém imediatamente de Deus,
isto é, se procede por instituição divina
Capítulo III — Resposta aos fundamentos e objeções do rei da
Inglaterra contra a doutrina do capítulo anterior
Capítulo IV — Se entre os cristãos há um legítimo poder civil ao qual
estejam obrigados a obedecer
Capítulo V — Se os reis cristãos têm soberania nas coisas civis e
temporais, e por que direito
Capítulo VI — Se há na Igreja de Cristo um poder espiritual de
jurisdição externa, como que político, distinto do temporal
Capítulo VII — Prova-se por autoridade que não há nos reis ou
príncipes o poder de reger a Igreja em assuntos espirituais ou

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eclesiásticos
Capítulo VIII — Confirma-se a mesma verdade por argumentos de
razão
Capítulo IX — Refutam-se algumas objeções contra a verdade provada
nos capítulos anteriores
Parte II - O juramento de fidelidade (Livro VI - caps. I-X e XII)
Do juramento de fidelidade do rei da Inglaterra
Capítulo I — O escopo da presente controvérsia, o estado desta causa e
o método de disputa que nela se deve observar
Capítulo II — Se na primeira parte da fórmula do juramento se propõe
algo para além da obediência civil e contrário à obediência eclesiástica
Capítulo III — Na segunda parte do juramento se apresenta também
algo para além da obediência civil e contrário à eclesiástica
Capítulo IV — Se a terceira parte do juramento contém algo para além
da obediência civil e contra a doutrina católica
Capítulo V — Da última parte do juramento e dos erros nela contidos
Capítulo VI — Consideram-se as razões por que o juramento é
defendido
Capítulo VII — O Sumo Pontífice não só podia, mas também devia
afastar com seu aviso os católicos ingleses da profissão do referido
juramento
Capítulo VIII — Podem os ingleses que admitem o juramento escusar-
se de culpa por alguma razão ou de algum modo?
Capítulo IX — Se é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos
hereges e comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de
cooperação com eles, apenas para evitar as penas temporais
Capítulo X — Se o acossamento que os católicos padecem na Inglaterra
é uma verdadeira perseguição da religião cristã
Capítulo XII – Resposta ao que o rei objeta contra o segundo breve
pontifício e contra a epístola do cardeal Belarmino
Conclusão da obra
Bibliografia citada
Francisci Suarez Opera Omnia

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APRESENTAÇÃO
Suárez e os problemas
políticos da modernidade
MARCUS BOEIRA[ i]

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I.
A posição de Francisco Suárez ante a modernidade
e o contexto histórico da Defensio Fidei
literatura política dos séculos XVI e XVII é caracterizada pela diversidade

A de perspectivas sobre o sentido e a finalidade do poder político. As


tendências teóricas predominantes, a saber, o contratualismo, o realismo
político, a teoria protestante e a doutrina católica sobre a justificação da autoridade
buscavam oferecer, cada qual, teorias axiológicas sobre a origem e a constituição[ ii ]
do poder. Nesse intento, cada uma dessas filosofias se apresentava como a ultima
ratio em matéria política, influenciando a formulação de narrativas atinentes a
realidades sociais diversas, marcadas por figuras e classes políticas que, embora
ocupassem postos diferentes em contextos sociais específicos, brotavam como forças
sociais hegemônicas em todo o continente, tal como o rei, o príncipe, a nobreza, a
assembléia, as cortes, as magistraturas, a burguesia e o campesinato. Uma
investigação rigorosa sobre o campo político no período, portanto, deve levar em
consideração que os esquemas teóricos elegidos como explicativos sejam flexíveis e
transitivos, capazes de percorrer cenários sociais plurais, ainda que unificados por
identidade de gênero social. Os aspectos particulares das sociedades do ciclo em
questão, assim, se articulam em uma visão mais abrangente, sublinhada pela religião,
pela cultura e por instituições sóciopolíticas. A expansão do horizonte de consciência
sobre a Europa do período para além do âmbito local das comunidades torna possível
que temáticas como o direito e a política sejam alocadas para o interior de um marco
mais amplo, englobando áreas específicas dentro de uma cosmovisão assinalada pelo
humanismo. Muitos são os matizes do período. No campo das artes, destaca-se o
barroco, primando pela superlativização de formas e desenhos, denotando intensidade
e profundidade. Na literatura, livros biográficos e espirituais transitam em meio à
produção do épico e do drama modernos, destacando-se a composição heróica. Na
filosofia, a metafísica e o nominalismo roubam a cena. No campo jurídico, o direito
consuetudinário e o direito civil se desenvolvem gradualmente, sobretudo após a
articulação entre as fontes do direito romano e canônico. Em suma, o tempo em
questão é sinal de transformações.
Na política, são os Estados modernos que despontam como grande novidade. As
antigas comunidades políticas – reinado, república ou império – assistiam à erupção
de uma nova modalidade de organização do poder, distinta em pressupostos e
mecanismos institucionais. O Estado, novo edifício político da modernidade, figurava
como espaço limítrofe da jurisdição soberana, unificando a nação dentro de um
território específico, concentrando institucionalmente o monopólio da decisão e
reivindicando a summa potestas, qualidade política até então pertinente às cortes e à
personalidade do monarca. O sedimento da burocracia estatal, contudo, não ocorreu
de imediato. O longo caminho da transferência do poder local para o poder nacional
foi lento e gradativo. Nessa transição entre modelos de dominação, da autoridade
tradicional para a autoridade racional-legal, para usar a classificação de Weber,[ iii ]
diversas obras políticas foram publicadas e divulgadas por toda a Europa.

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Na Espanha, a formação do tipo particularíssimo de unidade política que estava a
nascer rivalizou com a persistente tradição hereditária. A força do antigo regime, da
monarquia e das dinastias nobiliárquicas serviu de contrapeso para o
desenvolvimento de uma forma mecanicista de institucionalização do poder. Não se
pode afirmar que o Estado era a modalidade par excellence de organização do poder
nas Espanhas do período. A presença da autoridade real e das Cortes sempre
imprimiu o caráter pessoal nas relações políticas internas. No que tange à ação
política típica em um ambiente assim caracterizado, doses de realismo político de
caráter maquiavélico sofriam os anticorpos homeopáticos da tradição das cortes, da
força social na participação das decisões reais, da fortíssima classe guerreira e nobre
que fazia frente à Coroa nas Cortes. É possível afirmar que a formação do Estado na
Espanha foi um processo sui generis em comparação com o restante da Europa, dado
o equilíbrio entre forças sociais diversas que contrabalanceavam as atitudes e
decisões propriamente políticas.[ iv ]
Na órbita internacional, o entrechoque entre reinos católicos e reinos protestantes,
como também a presença de populações católicas em terras reformadas e vice-versa,
ocasionou conflitos de todos os tipos entre a população minoritária adepta de uma
linha teológica e a respectiva autoridade real aderente da perspectiva diversa. Foi
nesse contexto que se sucedeu a redação da Defensio Fidei, tratado o qual temos a
honra de apresentar.
Em nenhuma das áreas afetadas pelas transformações do período o impacto foi tão
profundo quanto na religião. A Reforma Protestante, em meio ao ardor do
humanismo, trazia a perda da unidade religiosa até então existente no ocidente
europeu. Frente a isso, a justificação da autoridade política perdia os laços com a
tradição católica e com as teorias medievais do direito das Cortes reais. Em razão da
sola scriptura, princípio teológico-hermenêutico fundamental para o Luteranismo e,
mais tarde, para praticamente todas as confissões protestantes, a busca pela
fundamentação do poder encontraria vazão no Antigo Testamento, notadamente nos
livros históricos de Samuel, Reis e Crônicas, em que os reis são ungidos por Deus. A
tese aqui presente aduz ser o próprio Deus – Iavé – quem transmite o poder
diretamente aos reis e monarcas, com a intermediação meramente simbólica do
sacerdote espiritual. Assim, a resposta da Reforma para o problema da
fundamentação do poder estava em assumir a interpretação literal dos livros citados,
reivindicando que reis e monarcas dos novos Estados europeus adeptos da Reforma
não necessitariam da chancela papal, nem tampouco do consentimento social para sua
designação ao posto real. A tese, em outros termos, prezava pela transmissão direta
do poder divino para os monarcas, sem a intermediação da sociedade e da autoridade
espiritual do Sumo Pontífice. Dentre os resultados dessa tese, residia a chamada
teoria do direito divino dos reis. Segundo esta tese, a soberania da autoridade política
justificava-se não na delegação ou transmissão social do poder, mas na aceitação
pacífica e azafamada de que a autoridade secular é constituída por Deus diretamente e
que seus atos, independentemente dos efeitos que possam produzir, são reconhecidos
como válidos espiritual e temporalmente. O legitimismo presente no escopo dessa
teoria política, assim, torna irrelevante qualquer indagação acerca do modo de
designação do soberano, desde que cumpridas as exigências jurídicas formais.

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Apropriando-se dessa tese, alguns dos soberanos do período ascendiam ao posto
monárquico sem qualquer mediação com as demais camadas sociais, como a nobreza,
a classe produtiva ou mesmo o clero, em alguns casos.
Na Inglaterra, com a morte de Elizabete I assumia o trono o então rei da Escócia
Jaime VI, recebendo o título de Jaime I. Na regência da Escócia desde 1567, o
monarca ascendia ao trono inglês em 1603, permanecendo até sua morte, em 1625.
Foi por ocasião do reinado de Jaime I e no contexto cultural em questão que Suárez
redigiu a Defensio Fidei.
Francisco Suárez nasceu em Granada em 1548 e foi professor de Teologia em
Valladolid, Roma e Salamanca, tendo ingressado na Companhia de Jesus quando
ainda estudava nesta última cidade, no ano de 1561. Após destacado período em
Segóvia entre os anos de 1571 e 1574,[ v ] onde se notabilizou como professor de
Filosofia[ vi ] residiu em Valladolid, Alcalá, Salamanca e Roma, desempenhando
diversas atividades intelectuais e eclesiásticas nessas localidades.
Foi requisitado pela Universidade de Coimbra em 1597, onde permaneceu como
professor até 1616, quando transferiu-se para a casa da Companhia de Jesus em
Lisboa, local de seu falecimento, em 1617. No período conimbricense, regeu durante
quase vinte anos a cátedra-prima de teologia e redatou boa parte de suas opera omnia,
destacando-se a composição dos tratados jus-políticos. Foi, portanto, um pensador
original em muitos campos, tendo grande destaque nas áreas da teologia, filosofia,
direito e política. Além das obras teológicas e filosóficas, que preenchem a maior
parte de seus escritos, Suárez confeccionou inúmeros pareceres nas áreas de ciências
canônico-eclesiásticas e jurídicas durante o tempo em que lecionou em terras
lusitanas.
Antonio de Vasconcelos, um de seus principais biógrafos, nos diz que
“(...) todos os autores, que tem escrito sobre história da Filosofia e da Teologia, ao ocuparem-se do
período moderno, que se segue à explosão da Reforma, nos apontam Suárez como um dos mais notáveis,
entre os que promoveram e realizaram o movimento, que, iniciado na península, e tendo por principais
centros as Universidades de Salamanca, Alcalá e Coimbra, elevou as ciências teológico-filosóficas ao
mais subido grau de desenvolvimento e esplendor.”[ vii ]

E complementa:
“A Coimbra tinha chegado a fama dos talentos de Suárez. O seu nome tornara-se conhecido por toda a
Europa desde o seu professorado em Roma; além disso, a Universidade de Salamanca admirava-o, e esta
admiração forçosamente havia de transmitir-se desde logo à de Coimbra, porque as relações entre as duas
eram estreitas, e muito freqüentes as suas comunicações.”[ viii ]

No que diz respeito à sua obra jurídico-política, figuram com amplo destaque os
tratados De Legibus ac Deo Legislatore (1612)[ ix ] e Defensio Fidei Catholicae et
Apostolicae adversus Anglicanae sectae errores (1613), ambos publicados
originalmente em Coimbra, o segundo ora traduzido na presente edição compilada.
É indubitável que as doutrinas políticas de Suárez fizeram escola e deixaram um
extraordinário legado em Portugal, nas Espanhas e em todo o resto da Europa.
Eventos marcantes como a Restauração de 1640 e a formatação dos regimes políticos
no Novo Mundo a partir dos movimentos de emancipação no século XIX foram
amplamente devedores do pensamento político suarista.[ x ]

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II.
A controvérsia sobre o juramento de fidelidade e a Defensio Fidei
O Siglo de Oro ibérico é marcado pela assombrosa produção filosófica nas mais
variadas áreas do conhecimento. São inúmeros os tratados teológicos, filosóficos e
políticos, em disputa contra as posições adotadas pela Reforma quanto aos temas da
formação do Estado e da legitimação da autoridade. A profusão de esforços
intelectuais voltava-se para a análise detalhada da origem do poder político e suas
conseqüências institucionais, frente à tendência irresistível de alguns reinos para a
monarquia absolutista.
É nesse cenário que Suárez figura como o maior filósofo político católico da
Contra-Reforma. Do ponto de vista político, sua importância pode ser entendida sob
dois vetores: por um lado, pelo aprimoramento que promoveu na noção de lei.
Baseando-se em S. Tomás de Aquino, adaptou a teoria da lei natural para enquadrá-la
no contexto moderno, no qual o Estado e o Ius Gentium já eram realidades em
desenvolvimento, focalizando o papel da vontade na promulgação do direito positivo;
em segundo lugar, aperfeiçoou a concepção já pré-existente na tradição romana de
corpus mysticum politicum, em frontal oposição às demais teorias políticas modernas.
A composição da Defensio Fidei adveio mediante um convite para que Suárez
oferecesse uma resposta aos dilemas enfrentados pelos católicos da Inglaterra frente
às perseguições levadas a termo pela Coroa.
Concretamente, os séculos XVI e XVII foram marcantes para a história da Igreja
Católica naquele país. Desde a promulgação pelo Parlamento da Ata de Supremacia
de 3 de novembro de 1534, documento que firmava a autonomia da Igreja Anglicana
frente à Romana, as relações entre a monarquia inglesa e a Santa Sé restaram cada
vez mais conturbadas. Dentre as medidas tomadas pela Coroa da Inglaterra estavam o
livro de Oração Comum, imposto aos súditos em 1549 tendo em vista a uniformidade
da profissão de fé anglicana, as variadas fórmulas de juramento de fidelidade à Coroa
em detrimento da autoridade espiritual da Igreja de Roma, amplamente exigidas nos
reinados de Elizabete e Jaime I, bem como o fortalecimento do poder monárquico,
notadamente pela posição anti-católica adotada por Elizabete ante a excomunhão
decretada pelo Papa Pio V, através da Bula Regnans in Excelsis de 25 de fevereiro de
1570.[ xi ]
No longo reinado de Elizabete, os católicos ingleses enfrentaram problemas de
perseguição e obrigação de consciência. O próprio Suárez expõe com clareza no
prólogo ao livro VI da Defensio Fidei (De Iuramento Fidelitatis) a fórmula exigida
por Elizabete aos súditos da Inglaterra, requerendo-lhes fidúcia em assuntos
espirituais: “Eu, N.N., inteiramente testifico e declaro em minha consciência que a
rainha é a única soberana governadora tanto deste reino da Inglaterra quanto de todos
os outros domínios e regiões de Sua Majestade, não menos em todas as coisas e
causas espirituais e eclesiásticas do que nas temporais, e que nenhum príncipe,
pessoa, prelado, estado ou potentado externos têm, de facto ou de jure, alguma
jurisdição, poder, superioridade, preeminência ou autoridade eclesiástica ou espiritual
neste reino. E por isso renuncio e repudio todas as jurisdições, poderes,
superioridades e autoridades externas”.[ xii ] Obviamente, a exigência em questão

20
implicava na renúncia de qualquer outra autoridade espiritual em favor da rainha,[
xiii ] auto-intitulada suprema governadora e fiel signatária do reino de Henrique VIII.
A tese central da legitimação da autoridade segundo a versão anglicana centrava-
se no ideário de que o monarca reunia em si a autoridade espiritual e o poder
temporal sobre toda a sociedade, obrigando a consciência dos súditos mediante a
assinatura de uma confissão juramentada. Para os católicos da Inglaterra, a subscrição
do pacto juramentado implicava em reconhecer a supremacia real sobre a papal nos
assuntos atinentes aos bens espirituais. Em ouras palavras, o juramento de fidelidade
ao rei simbolizaria o rompimento dos católicos com a Santa Sé e adesão à Igreja
Anglicana. Com a morte de Elizabete e a ascensão de Jaime I, a perseguição se
intensificou e a fórmula do juramento de fidelidade foi ampliada.
Jaime VI da Escócia, filho de Maria Stuart (católica), foi erigido ao trono com o
título de Jaime I, após longa expectativa dos católicos ingleses, desejosos de que o
reinado de Elizabete terminasse. A esperança dos fiéis de Roma se justificava ante as
promessas feitas pelo monarca em carta endereçada a Henry Howard, conde de
Northampton, importante personagem do período e defensor da casa dos Stuart, onde
prometia “atuar em conformidade com o direito e respeitando todos aqueles que lhe
obedecessem e aceitassem estar ao seu serviço”. Acrescentava-se a isso o fato de que
Robert Cecil era o principal articulador e defensor dos direitos hereditários de Jaime
VI ao trono, tendo negociado amplamente com os católicos ingleses, particularmente
com os jesuítas, a ascensão pacífica do monarca escocês ao reinado, em troca de
liberdade de consciência e tolerância religiosa.[ xiv ]
A subida ao posto real, todavia, frustrou a expectativa dos católicos. Por trás da
imagem de rex pacificus, ocultava-se um monarca com pretensões absolutistas,
posição antes mesmo assumida em seu The trew law of free monarchies, texto
publicado em 1598, onde expunha sua preferência pela doutrina do direito divino dos
reis e um ataque à tese da divisão entre os bens espirituais e temporais. Para o rei, a
autoridade política deveria cumular a jurisdição espiritual e civil, tendo sua
legitimidade justificada por delegação divina direta, sem o intermédio da comunidade
civil na designação do poder político.
Acreditando que a submissão dos católicos da Inglaterra à autoridade espiritual do
Papa representaria a obediência a um poder externo, Jaime I viu nisso um risco à sua
autoridade. No plano teórico, sua adesão à teoria do direito divino mostrava-se
ameaçada pela força tradicional da teoria católica da autoridade política, segundo a
qual o poder temporal dos reis e príncipes não é constituído diretamente por Deus,
senão pela intermediação do corpo social. De acordo com isso, o rei estaria limitado
por direito natural ao pacto que estabeleceu com a sociedade, por direito comum e
das gentes.
Acrescente-se a isso a popularização da teoria do tiranicídio exposta por Juan de
Mariana em seu De Rege et Regis Institutione (1598), coincidentemente publicado no
mesmo ano da obra do monarca escocês. Segundo essa tese, os monarcas podem ser
depostos por violações aos direitos da república, como ensina o próprio Mariana:
“A dignidade real tem sua origem na vontade da república. Se assim o exigem as circunstâncias, não só há
meios de chamar o rei à jurisdição como também despojar-lhe o cetro e a Coroa caso se negue a corrigir
suas faltas. Os povos lhe transmitiram seu poder, mas conservaram outro ainda maior para impor tributos,
e para ditar leis fundamentais é indispensável o seu consentimento. Não disputaremos agora como isso se

21
deva ocorrer, mas que fique consignado que os povos podem levantar novos impostos e estabelecer leis
que revoguem as antigas. Conste, e isso é o mais importante, que os direitos reais, ainda que hereditários,
só restam confirmados no sucessor pelo juramento desses mesmos povos. É preciso ter em conta que
mereceram aplausos aqueles que atentaram contra a vida de tiranos em todos os tempos (...) tanto os
filósofos quanto os teólogos estão de acordo que se um príncipe se apoderou da república à força de
armas, sem razão, sem direito algum, sem o consentimento do povo, pode ser despojado por qualquer um
da coroa, do governo, da vida; que, sendo um inimigo público e provocando todo gênero de maldade à
pátria, tornando-se poderoso e notoriamente tirano, não só pode ser destronado, senão que pode sê-lo com
a mesma violência com que tratou os súditos, arrebatando para si um poder que não lhe pertence, mas que
é da sociedade que ele oprime e escraviza”.[ xv ]

Frente a esse prognóstico adverso e convicto de seu direito divino de reinar sem
acidentes e independentemente de seus atos, Jaime I empreendeu uma campanha de
perseguição aos católicos da Ilha, principalmente aos jesuítas, considerados
conspiradores e traidores. Não nos ocuparemos aqui dos eventos históricos que se
sucederam à subida de Jaime I ao trono da Inglaterra. Apenas salientamos que os
acontecimentos convergiram para fortalecer o poder político e religioso do monarca,
levando-o a revigorar a perseguição aos católicos, por meio dos mais variados
expedientes, como penas e castigos. Um desses expedientes foi a ampliação do
juramento de fidelidade anteriormente prescrito por Elizabete. Em sua Apologia pro
Iuramento Fidelitatis (1609), Jaime I transcreve uma fórmula de juramento de
fidelidade que, em princípio, não comprometia a autoridade espiritual do Sumo
Pontífice. O texto apenas salientava a exigência de se guardar fidelidade à Majestade
real, bem como a seus herdeiros e sucessores. Todavia, mais adiante, por ocasião dos
acontecimentos que marcaram a conspiração da pólvora, requereu o rei que Richard
Bancroft, primaz de Canterbury e defensor da doutrina do direito divino, redigisse
uma terceira fórmula de juramento, ainda mais ampla que a anterior e que visava
fortalecer a posição do monarca frente aos súditos.
Eis o texto do terceiro juramento:
“Eu, N.N., verdadeira e sinceramente reconheço, professo, testifico e declaro em minha consciência
perante Deus e o mundo, que nosso soberano senhor, o rei Jaime, é rei soberano e verdadeiro deste reino e
de todos os outros domínios e terras de Sua Majestade, e que o papa, nem por si mesmo, nem por outra
autoridade qualquer da Igreja, ou da Sé Romana, nem por qualquer intermédio com quaisquer outros, não
tem poder nem autoridade para depor o rei, ou para dispor dos domínios ou dos reinos de Sua Majestade,
ou para conceder a algum príncipe estrangeiro autoridade para danificá-lo ou para invadir suas terras, ou
para exonerar nenhum de seus súditos da obediência e sujeição à Sua Majestade, ou para dar licença a
nenhum deles para portar armas contra ele, semear o tumulto, ou causar qualquer violência ou dano à
pessoa de Sua Majestade, ao Estado, ao regime, ou a quaisquer de seus súditos sob os seus domínios.
Igualmente juro de coração que, não obstante qualquer declaração ou sentença de excomunhão ou
privação, feita ou concedida – ou que haja de ser feita ou concedida – pelo papa ou por seus sucessores,
ou por qualquer autoridade derivada, ou que alega ser derivada dele ou de sua Sé, contra o dito rei, seus
herdeiros ou sucessores, e não obstante qualquer absolvição dos ditos súditos com relação à sua
obediência, ainda assim prestarei fidelidade e verdadeira obediência à Sua Majestade, aos seus herdeiros e
sucessores, (...) creio, e resolvo em minha consciência, que nem o papa, nem outro qualquer, tem poder de
isentar-me deste juramento ou de qualquer parte sua. Juramento que reconheço ter sido legitimamente
apresentado a mim por uma autoridade justa e plena (...)”.[ xvi ]

Os católicos ingleses divergiram quanto à adesão ao juramento, cada qual


interpretando o texto à sua maneira. A situação de dúvida foi compensada quando o
Papa Paulo V emitiu o Primum Breve Pontificium, documento voltado para explicitar
aos fiéis romanos da Inglaterra sobre as condições, os critérios e os limites que
deveriam seguir perante a situação em questão. No breve, o Papa assevera, dentre

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outras questões, que os católicos não poderiam assinar o juramento “sem detrimento
do culto divino e da própria salvação”, razão pela qual os admoestava a que se
abstivessem em absoluto de prestar aquele juramento e outros semelhantes.[ xvii ]
Ainda receosos de que o documento em questão não fosse autêntico, alguns católicos
da Ilha relutaram em reconhecer sua autoria, o que levou o Papa a formular um
Secundum Breve, onde atestava a posição adotada no primeiro, ratificando a
proibição do juramento e a fidelidade à Santa Sé.
Em paralelo, o cardeal Roberto Belarmino redigia uma resposta a Jaime I
intitulada Apologia Bellarmini pro responsione sua ad librum Jacobi Magnae
Britanniae Regis, onde contestava a tese ventilada pelo monarca sobre a legitimidade
do juramento, afirmando tratar-se de um juramento de infidelidade e uma profissão
de negação do poder pontifício, a despeito da obediência ao poder civil ali presente.[
xviii ]
Em tréplica, o rei alegou que o cardeal não tocava o ponto central da questão, pois
na Apologia apenas defendia um juramento de fidelidade que aludia tão-somente ao
âmbito da obediência civil e política, o que estaria em sintonia com a tradição romana
e que, por direito natural, seria compromisso devido de todos os súditos aos seus
soberanos. E dizia, para arrematar, que tal potestade civil fora usurpada injustamente
pelos pontífices. Ante esse episódio, uma verdadeira guerra apologética se instaurava
entre a Coroa inglesa e a Santa Sé. No terreno intelectual, as posições de Jaime I e do
cardeal Belarmino ecoavam por toda a Europa, em um clima de franca oposição e
polêmica.
Foi nesse contexto, diz Hubeñák, que o núncio apostólico da Espanha, Decio
Caraffa, em nome do Papa Paulo V, pediu ao renomado Padre Francisco Suárez para
que fizesse uma crítica às teses de Jaime I, refutando seus argumentos quanto à teoria
política do direito divino dos reis e ao juramento de fidelidade. O granadino, embora
enfraquecido pela saúde comprometida e com pouco entusiasmo, levou adiante o
pedido, de modo que já no fim de 1611 a primeira parte da obra estava nas mãos do
Sumo Pontífice. Como gratidão, o Papa Paulo V envia-lhe uma carta agradecendo-lhe
pela incessante defesa da fé católica em seus escritos, demonstrando afeto por sua
pessoa. Já em 20 de junho de 1612, a segunda e última parte do tratado era recebida
em Roma, com o título Defensio Fidei Catholicae et Apostolicae adversus
Anglicanae sectae errores cum responsione ad Apologiam pro Iuramento Fidelitatis
et Praefationem Monitoriam Serenissimi Iacobi Magnae Britanniae Regis (“Defesa
da Fé Católica e apostólica contra os erros da seita anglicana, com uma resposta à
Apologia ao Juramento de Fidelidade e à Carta dirigida aos príncipes cristãos pelo
sereníssimo Jaime, Rei da Inglaterra”).[ xix ]
Curiosamente, por toda a Europa a publicação da Defensio Fidei foi amplamente
acatada. Na Universidade de Coimbra e em toda a Península Ibérica os elogios e
estimas não foram poupados. Vasconcelos, em seus Escritos vários sobre as fontes
documentais da Universidade de Coimbra, expõe uma carta endereçada a Suárez pelo
rei Filipe III de Espanha, em setembro de 1613, onde tece elogios ao granadino:
“Presentóseme por vuestra parte el Libro que imprimisteys en respuesta de el del Rey
de Inglaterra: y porque en èl defendeys tan doctamente la libertad, y pureza de
nuestra Santa Fé Catholica, y autoridad de la Iglesia Romana, le he estimado

23
mucho: y me pareció por esto daros las debidas gracias, y deziros, que podeys tener
por bien empleado el trabajo, y tiempo, que pusisteys en esta obra, de que se deve
tener por cierto resultará mucho servicio a Dios”.[ xx ]
Em estilo apologético, Suárez confecciona a Defensio Fidei, onde expõe a tese já
assentada na tradição política católica, dentre outras tantas, do livre consentimento da
comunidade acerca da legitimidade do rei, em contraste com a tese de Jaime I, para
quem o rei era soberano e absoluto, posto diretamente por Deus, sem a necessidade
de responder por seus atos à sociedade. Tal obra veio a complementar o que já havia
sido exposto, em linhas gerais, pelo próprio Suárez no De Legibus, onde já estavam
contidas luzes sobre a teoria da origem popular do poder político. Todavia, é na
Defensio Fidei que a tese aparece de forma mais contundente, sobretudo no livro III,
como veremos a seguir. Na acepção de Suárez, o soberano recebe seu poder
indiretamente de Deus, por referência ao que ensina São Paulo na Carta aos
Romanos, cap. 13, e diretamente do povo, de quem recebe parcialmente a
legitimidade para exercer o governo civil para a utilidade pública, dentro dos limites
traçados no pactum subjectionis,[ xxi ] documento fundacional da constituição
política da república, bem como na lei natural (participação da lei eterna na criatura
racional), que move o agente político ao bem comum.
No principatus politicus, assim, o príncipe só poderia exigir dos cidadãos
fidelidade sobre os temas políticos, acordados no pacto de fundação da cidade e
dentro dos limites do direito natural. Os assuntos espirituais, por outro lado, não
poderiam ser exigidos pela autoridade política, vez que transcenderiam o espaço de
sua competência.
Nesse sentido, os católicos ingleses poderiam jurar fidelidade ao rei apenas quanto
aos temas atinentes aos assuntos políticos e de natureza temporal, dentro dos limites
reconhecidos pelo direito natural e pelo direito civil. A autoridade espiritual,
reservada ao Papa, jamais poderia ser reconhecida ao rei, devendo os católicos negar
o juramento nesses termos.
Primoroso produto do barroco católico, a Defensio Fidei foi recebida com fervor
pelo Papa Paulo V e serviu como instrumento apologético formidável na luta contra o
absolutismo dominante nas nações reformistas, particularmente na Inglaterra de
Jaime I.
No Livro VI, Suárez demonstra que a fórmula obscura do juramento exigido pelo
monarca escondia heresias e ataques camuflados à jurisdição eclesiástica do Sumo
Pontífice sobre os católicos, como se aduz: “A não ser que creiam que o rei, só com
seus ministros, tenha maior autoridade para confirmar seu erro, e para exigir
fidelidade a ele, do que a Igreja Romana e universal, com os Sumos Pontífices que
ensinaram este tema com uma tradição e um consenso tão constantes.Pois, se é isto
que tenciona o rei, e se obriga seus súditos a esta fidelidade, é necessário que
reconheça que neste juramento ele não contende apenas pela jurisdição temporal, mas
pelo primado espiritual.”[ xxii ]
A pretensão oculta de Jaime I ao invocar a jurisdição espiritual estava na raiz de
sua teoria do direito divino. De acordo com isso, os reis e monarcas são instituidos
por Deus, sem qualquer intermediação civil ou social na constituição de sua

24
autoridade. Contrapondo essa tese, Suárez expõe no livro III posição contrária, como
veremos a seguir.

25
III.
O problema da origem e da natureza do poder: excursus sobre
o Principatus Politicus (Livro III da Defensio Fidei)
O livro III do Tratado visa apresentar argumentos que atestam o direito e o
primado do Sumo Pontífice sobre matérias atinentes à jurisdição espiritual e
eclesiástica, segundo o magistério apostólico da tradição católica. Pretende-se, com
isso, invalidar o argumento de Jaime I sobre a suposta usurpação do Sumo Pontífice
quanto ao âmbito da jurisdição civil e política, como também demonstrar a
ilegitimidade da teoria do direito divino dos reis no que diz respeito ao fundamento
do poder político. Dentro disso, o livro em questão toca, dentre outros pontos, no
tema central da filosofia política e jurídica de Suárez, qual seja a origem e a natureza
do poder político.
Para tal, começa por reconhecer que a origem do poder está em Deus, em
conformidade com o que ensina São Paulo na Carta aos Romanos, capítulo 13,
versículo 1: “Cada um se submeta às autoridade constituídas, pois não há autoridade
que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus”.[ xxiii ]
Todavia, Deus não constitui diretamente a autoridade política, como se
transferisse diretamente a ela o poder soberano sobre a cidade. Na realidade, é na
Criação que se manifesta a primeira transferência de poder à humanidade. Ao
imprimir no ser humano (criatura racional) a vontade, Deus constituiu no homem a
primeira modalidade de poder: o domínio sobre os próprios atos. Na sociedade,
porém, o exercício do próprio domínio exige a existência de uma instância detentora
do poder de jurisdição, para os casos em que os conflitos não possam ser resolvidos
pela via pacífica. Por isso, Deus constituiu as cidades dando à comunidade o poder
soberano e direto sobre sua própria organização. Em outras palavras, a transferência
do poder à sociedade manifesta-se naquilo que é comum a todos os seres humanos
envolvidos na cidade: a natural sociabilidade. Assim, o primeiro ato de transferência
do poder divino não se deu ao soberano, mas à cidade.
Era comum no mundo antigo e medieval a utilização do termo república para
designar não uma forma específica de governo, mas a própria comunidade política
tomada pelos fundamentos de sua ordem. Uma das expressões designadas para
explicitar o espírito da república era principatus politicus. Suárez emprega esse termo
composto para simbolizar a ordem política nos seus fundamentos originários.
Corresponde ao corpo místico político, isto é, aos elementos constitutivos do
nascimento da comunidade política. Por isso, principatus politicus pode significar
tanto cidade como república, naquilo que diz respeito aos seus rudimentos
primordiais.
Para Suárez, Deus transfere diretamente seu poder às repúblicas. Ora, sendo a
república um corpo político formado pela unidade existente entre a comunidade civil
e sua autoridade, tem-se que a comunidade transfere ao soberano o poder por
pactuação, limitando-o às condições exaradas no acordo. Por essa razão, é só
indiretamente que o soberano recebe seu poder de Deus. Na realidade, seu poder
direto advém por um ato de designação da cidade, ou nas palavras do próprio
granadino, por translação. O poder constituído na autoridade – seja um rei, um órgão

26
deliberativo ou uma assembléia – tem em Deus sua fonte indireta, e na comunidade,
sua fonte direta.
No terceiro livro, assim, o granadino começa por expor a origem divina da
autoridade, tal como demonstramos acima: “Além da razão proveniente do fim e da
necessidade de tal poder, devemos mostrar sua justiça a partir de sua origem. Por este
motivo, aduza-se que o príncipe político recebe seu poder do próprio Deus.”[ xxiv ]
Mais adiante, começa por perscrutar a origem concreta da autoridade política,
especulando sobre a obra criativa de Deus. Sendo Deus a origem do poder, cabe à
razão investir sobre a obra do Criador para extrair certezas quanto aos fundamentos
da política e da sociedade. Conclui ser o poder político um atributo do ser humano e
pertinente à sua natureza social, imposto às repúblicas como exigência de direito
natural, conforme a seguir: “Primeiro: todas as coisas que pertencem ao direito
natural provêm de Deus como autor da natureza. Ora, o principado político pertence
ao direito natural. Logo, provém de Deus como autor da natureza”.[ xxv ]
Suárez, assim, encontra o nexo de justificação para o poder político: se é ele
necessário para a conservação da sociedade humana, bem como legítimo e justo, não
há dúvida de sua relação com o direito natural, do qual Deus é fonte. Sendo Deus o
autor do direito natural, é também autor originário do poder soberano, de onde se
infere a existência da relação constitutiva entre o direito natural e o poder político.
A formulação dessa tese teve três objetivos: primeiramente, expor de forma
organizada e sistematizada o entendimento da tradição católica a respeito da origem e
da natureza da autoridade política, oferecendo, assim, a autêntica exegese da
passagem supracitada da Carta aos Romanos; em segundo lugar, fortalecer o
entendimento sobre a separação entre a jurisdição espiritual e eclesiástica e a
autoridade civil e política, já presente na tradição católica, simbolizada na figura
medieval das duas espadas; por fim, responder aos problemas da Reforma Protestante
quanto aos excessos de jurisdição, particularmente no caso da Inglaterra.
Nesse caso específico, como já aludimos acima, Suárez pretendeu, no livro III,
combater os excessos contidos na teoria do direito divino dos reis exposta por Jaime
I, segundo a qual a autoridade política recebe seu poder diretamente de Deus,
cabendo às repúblicas a mera obediência civil pacífica, independentemente dos atos
do soberano. O monarca pretendia, como restou provado por Suárez, alargar seu
próprio poder temporal em detrimento da autoridade espiritual, em particular através
da obrigação de consciência produzida contra os católicos ingleses, dos quais exigiu
o já citado juramento de fidelidade, em combate à autoridade espiritual do Papa sobre
os fiéis da Ilha. Assim, defende a idéia de que o soberano recebe seu poder não da
comunidade civil, mas diretamente de Deus, do que se deduz não existir qualquer
relação entre o povo e a causalidade do político.[ xxvi ] Com isso, Jaime I atacava a
tradição da Igreja e assumia uma nova posição frente à teoria da origem do poder
político, entendendo-a como uma doutrina radicalmente contrária à jurisdição
eclesiástica separada do monarca e voltada, no plano concreto, a abolir a autoridade
espiritual do Papa sobre os católicos ingleses.[ xxvii ]
No livro III, Suárez chama a atenção para o caso, com a citação do cardeal
Belarmino de que “a autoridade não é concedida por Deus aos reis imediatamente, à
maneira como o é aos pontífices”[ xxviii ] e afirmando que “tal poder não se diz

27
proceder imediatamente de Deus simpliciter, mas apenas secundum quid. Pois é
concedido proximamente pelo homem, e dele depende”.[ xxix ] De acordo com isso,
a causa eficiente do poder político é Deus, mas a causa próxima reside no homem e
decorre do mesmo. Sim, pois se o homem é um animal social e político, sua dimensão
sociológica acarreta a necessidade de que haja uma conservação do agrupamento dos
homens, o que é realizado pela autoridade política. Daí, o poder decorre,
proximamente, da natureza social do ser humano.
Uma autêntica teoria da translação, portanto, está em assumir que o poder
somente pode ser transferido imediatamente por Deus em alguns casos excepcionais;
porém, em nenhum deles o poder originado em Deus é diretamente conferido a um
homem ou grupo social. Apoiado em Belarmino, Suárez aduz que “o principado
político de fato procede imediatamente de Deus, mas não é dado aos reis e senados
supremos imediatamente por Ele, e sim pelos homens”.[ xxx ]
E, se o foi por homens, é forçoso reconhecer que “a soberania civil, vista em si
mesma, é dada imediatamente por Deus aos homens congregados numa comunidade
ou sociedade política perfeita”,[ xxxi ] no ato de sua fundação. O poder não pode
residir em uma pessoa única, como pretendeu Jaime I, mas habita na totalidade de
todos os homens, reunidos na comunidade civil em vista de um fim comum. É no
corpo político da comunidade que reside o poder, e não em uma isolada parte desse
mesmo corpo. Para a conservação da própria comunidade, o poder político se faz
necessário. As repúblicas são constituídas por Deus, que lhes transmite o direito
natural e com ele a tendência inexorável para a convivência comum de seus
membros. É o poder, então, derivado de Deus, mas manifesto a partir da natureza
social de cada homem reunido na comunidade política, à qual o próprio autor da
Criação o transfere, sem qualquer espécie de intermediação, para que, unificada por
laços constitutivos de ordem eleja o melhor regime para a cidade, a melhor forma de
organização social.
Como prova o próprio Suárez, não apenas em Belarmino como em toda a tradição
da Igreja está claramente exposto que o poder tem origem em Deus, mas que Ele o
transfere ao corpo político, do qual participam todos os homens, enquanto partes
constitutivas da comunidade política. Combatendo, assim, a tese do direito divino dos
reis ao trono por instituição direta do Criador levantada por Jaime I, adere à tese, já
levantada por Belarmino na Responsio ao texto da Apologia, de que é a partir da
república que o rei recebe seu poder de Deus, e não por via “direta”.[ xxxii ] Sim,
pois o poder político como tal é inferido da comunidade civil para sua conservação,
finalidade que representa a própria pretensão do autor da Criação no ato de fundação
da própria comunidade de homens. Em outras palavras, é por direito natural que as
cidades tendem à própria conservação. E, para tal, é atributo do mesmo direito natural
que tenham um governo civil, apto a isso.
É por razão natural,[ xxxiii ] afirma Suárez, que o poder, por corresponder a cada
homem concreto dentro da comunidade, não se encontra imantado em uma só pessoa,
ou em um grupo de pessoas dentro da comunidade, senão em todo e qualquer
membro dela. A ninguém é permitido, per si, reputar-se superior a qualquer outra
pessoa na sociedade, de forma que, se todos são politicamente iguais, depreende-se
que o poder reside na comunidade, procedendo de Deus.

28
A razão se projeta sobre a comunidade política perfeita in abstrato, conduzindo a
partir daí à uma racionalidade política segundo a qual a autoridade concreta, em si, é
investigada com base em suas causas originárias e teleológicas, algo que Francisco de
Vitória já havia traçado em sua Relectio de Potestate Civili[ xxxiv ] e que foi
amplamente investigado por Suárez. O granadino vale-se dos escritos de Vitória e da
tradição como um todo[ xxxv ] para explanar uma análise ontológica do poder a partir
de seus primeiros princípios, concluindo que a comunidade perfeita[ xxxvi ] – in
abstrato – pressupõe que o poder encontre-se na comunidade – in concreto –, por
origem divina. Porém, no que tange ao plano concreto não há um regime político
perfeito e universal. É tarefa da razão prática inferir qual o melhor regime para cada
principatus politicus em particular. Cada comunidade no tempo e na história e
segundo o direito consuetudinário possui a plenitudo potestatis para deliberar e
decidir sobre sua modalidade particular de organização política, ainda que possua,
como as outras, o mesmo princípio de origem e a mesma natureza criada.
Suárez insiste que não há uma forma política universal capaz de representar a
forma de governo própria da comunidade perfeita. Sustenta que a eleição quanto à
forma de governo corresponde ao plano concreto, segundo a particularidade de cada
comunidade política.[ xxxvii ] Por isso, se é de direito natural que a soberania política
é – in abstracto – uma soberania popular, enquanto poder que pertence à totalidade
da comunidade civil, também é mister reconhecer, segundo a mesma razão natural,
que a forma concreta de organização do poder seja definida pela comunidade mesma.
Resgatando os regimes tradicionais, Suárez demonstra que a monarquia, a
aristocracia e/ou a democracia são igualmente aceitáveis enquanto formas políticas da
república. Todas podem ser eleitas individual ou sincreticamente, constituindo,
assim, um sistema ora unitário ora misto de governo. A institucionalização de uma
forma política pela república simboliza o fato evidente de que a soberania reside na
própria comunidade política, que a recebe do próprio Deus.
A teoria suareziana do principatus politicus representa o ponto culminante da tese
católica sobre a origem e a natureza da autoridade política. Não é fruto único e
exclusivo do gênio teórico de Suárez, mas de uma longa tradição herdada dos
pensadores gregos, romanos e medievais que desemboca em Salamanca e contamina
a produção intelectual dos salmanticenses. Em Suárez, entretanto, ganha um escopo
doutrinário formidável em comparação com os antigos mestres dessa universidade. A
grande marca do granadino está em sistematizar todo o arcabouço notável da tradição
e conferir-lhe um sentido atual, aproximando as investigações teológicas e filosóficas
dos temas práticos da vida política e social de seu tempo. Rompe não só com a teoria
do direito divino, como também com qualquer resquício do que viria a ser pouco
tempo mais tarde o contratualismo de tipo hobbesiano.[ xxxviii ] Nesses dois tipos de
justificação do poder político a autoridade civil é originada no “contrato social” ou
por instituição divina direta. Enquanto a tese contratualista nega-se a aceitar a natural
sociabilidade da pessoa como condição para a vida política,[ xxxix ] a teoria do
direito divino se recusa a reconhecer a inclusão do povo como sujeito jurídico e
natural do poder. Assim, a base teórica do Estado de natureza adotada pelo
contratualismo leva a anarquia como premissa prévia ao principatus politicus, ao

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passo que a teoria do direito divino funda um sistema teo-autocrático de poder,
sustentado à moda das religiões políticas[ xl ] da antiguidade.[ xli ]
Para Suárez, a autoridade política tem no povo seu personagem central. Quem
quer que tenha recebido legitimamente o poder, o recebeu por direito humano e
político, isto é, por consentimento popular. A teoria da translação, exposta no livro
III do tratado, busca referendar a convicção de que a transferência direta do poder
para a autoridade é realizada pela comunidade civil; e a transferência indireta, por
Deus. Se o contratualismo nega a dimensão social da pessoa em sua antropologia
filosófica, a teoria do direito divino ignora o povo enquanto fonte do poder. Suárez
introduz o povo como categoria de direito natural, para invalidar qualquer uma dessas
correntes. A primeira, posterior ao próprio Suárez. A segunda, contemporânea e
atuante na vida e obra do autor.
Para ele, o povo é elemento fundamental de direito natural, sendo indispensável
para a ordenação constitutiva das relações sociais e políticas.[ xlii ]A teoria política
de Suárez se centra basicamente na compreensão de que a raiz da autoridade civil
reside naquele que detém o poder de decidir ou transferir, por direito natural, segundo
sua necessidade de conservação. Não há dúvida de que o poder procede de Deus.
Porém, apenas sob o ponto de vista do direito natural negativo. Sim, pois o próprio
Deus transfere o poder para a comunidade civil e esta, enquanto detentora do poder
civil, pode transferi-lo a outrem, seja uma pessoa, ou grupo, ou mesmo uma
instituição, a fim de estabelecer a autoridade política, necessária para sua própria
conservação, de acordo com o direito positivo. Como afirma Rommen,
“o poder do Estado enquanto tal procede imediatamente de Deus. Seu sujeito jurídico-natural é a
comunidade civil em sua totalidade; mas unicamente segundo o direito natural negativo. Por conseguinte,
pode ser cedido voluntariamente pela comunidade e transferido a um indivíduo ou a um senado, e
também pode ser quitado por um motivo legítimo. Mas, em qualquer desses casos, o novo portador do
poder o possui por direito humano, e só indiretamente o recebeu de Deus. Indiretamente, porque,
diretamente, o poder havia sido dado por Deus a toda comunidade, a qual, por sua parte, o delegou para
uma só pessoa (monarca) ou um grupo (aristocracia). Indiretamente, por outra razão ainda; porque Deus
aprova essa translação por parte do povo e, como causa primeira e universal, coopera a mesma e, em
virtude da natureza da comunidade civil, a sanciona e quer ser respeitado. Assim, pois, a teoria da
translação se segue necessariamente da teoria que considera toda a comunidade como sujeito jurídico-
natural do poder do Estado.”[ xliii ]

O novo delegatário[ xliv ] do poder é legitimo portador enquanto recebe o poder


da comunidade, e serve a ela no cumprimento dos fins dados para sua conservação. É
por virtude do direito político que a autoridade se assenta institucionalmente na
atividade de mando. Não um mando ilimitado, mas exercido dentro do conjunto das
condições necessárias para a manutenção da comunidade civil. Suárez diz que “o
poder civil, sempre que se encontre em um indivíduo ou príncipe em virtude de um
direito legítimo e ordenado, procede do povo e da comunidade, e não pode, se sua
possessão for justa, adquirir-se de outro modo. (...) A razão é que esse poder, por sua
mesma natureza, radica diretamente na comunidade; por conseguinte, para que
alguma pessoa possa começar a exercê-lo como príncipe soberano, é necessário que o
poder lhe seja transferido pelo consentimento da comunidade”.[ xlv ]
Outro ponto central da teoria da translação reside na noção de pacto de sujeição. A
legitimidade da autoridade política, nesses termos, está na constatação de que o poder
reside na comunidade, e que o exercício do poder está limitado pelos parâmetros

30
sedimentados no pactum subjectionis. É salutar afirmar que Deus aprova a delegação
popular, sendo o delegatário – rei, imperador, senado, ou qualquer que seja a
autoridade política – sustentado legitimamente em seu cargo tanto por direito humano
como também por direito natural negativo ou indireto. A translação impõe que o
portador do poder não é livre para mandar, mas vinculado ao pacto originário
firmado, segundo o qual exerce o poder nos limites traçados pela própria comunidade
no ato da transferência, governando com a cooperação divina e social na missão de
favorecer a distribuição e coordenação do conjunto de condições para a realização do
bem comum da república.
No ato de translação, forma-se o corpo político, integrado pela comunidade e sua
autoridade, unidos com o objetivo de conservar o bem comum. O pactum subjectionis
dispõe o conjunto dos limites e fins do governo político. Nesse pacto, subsume-se não
apenas a cristalização de um contrato entre as partes do corpo político, senão também
os limites da autoridade, em vista da conservação da própria comunidade política. É
nesse sentido, portanto, que o pacto é a revelação da translação, sua constituição
escrita fundamental. É sub conditione firmata que o governo exerce o poder e não por
instituição divina direta.
Como se viu, há dois momentos na constituição da sociedade política:
primeiramente, a comunidade civil; depois, a translação e a correspondente
constituição da autoridade política. No primeiro caso, há um pacto de associação,
segundo o qual se forma a unidade comum entre os seres humanos. Por fim, o pacto
de sujeição, em que a autoridade vincula-se aos limites traçados pela comunidade
soberana.
A limitação ocorre, em primeiro lugar, pelo respeito devido aos preceitos do
direito natural. Aqui, a dimensão política do direito natural aparece sob a forma do
bem devido à comunidade, ou melhor, do conjunto de bens relativos ao
aperfeiçoamento da natureza social dos seres humanos ali envolvidos. Apoiado no
magistério da Igreja, Suárez utiliza termos como bem comum e utilidade pública[ xlvi
] para designar o compromisso da autoridade quanto ao cumprimento desses bens.
Filosoficamente, o bem comum representa o bem particular de cada pessoa naquilo
que possui de universal, de maneira a corresponder aos valores partilhados pelos
membros da comunidade política. É aquela fração presente na natureza humana,
condizente com a sociabilidade e politicidade de nossa natureza animal.
Além do aspecto social, o bem comum também alude ao plano espiritual,
assumindo a feição de conjunto das condições espirituais que favorecem a salvação
das almas. Por isso, simboliza o bem da comunidade naquilo que condiz com o
aperfeiçoamento coletivo dos seres humanos e ao bem de cada alma em particular,
enquanto participante de uma comunidade mais ampla denominada Igreja. A dupla
face do bem comum tem o condão de articular a ordem social à ordem celeste,
mantendo cada esfera dentro de um âmbito autônomo e particular, mas assumindo
que a ordem espiritual é tributária da ordem política na medida em que esta é
condição para que os seres humanos possam, através da vida social, alcançar a vida
espiritual.
Para costurar essa idéia, Suárez evoca a separação escolástica das duas ordens de
representação: a Igreja, a quem cabe a jurisdição sobre os assuntos espirituais, e o

31
corpo político, cristalizado na autoridade, a quem corresponde o cuidado quanto aos
assuntos temporais. Não cabe à Igreja intervir em assuntos temporais, senão
indiretamente, quando a autoridade política não for capaz de perseguir o bem comum
político. Por isso, tal ingerência só é possível, de acordo com a perspectiva suarista,
quando determinado bem temporal tocar de forma direta os bens espirituais. A
ingerência se justifica em virtude do bem comum, conforme se deduz da passagem do
tratado De Legibus exposta a seguir:
“Com efeito, o poder do governo que reside nos homens procede diretamente de Deus, como ocorre com
a potestade espiritual, ou nasce imediatamente dos próprios homens, como sucede com o poder puramente
temporal. Em ambos casos, contudo, essa potestade tomou assento em ordem ao bem comum da
sociedade. Portanto, no outorgamento das leis terá sempre que buscá-lo. A premissa menor, em sua
primeira parte referente à potestade espiritual, resulta evidente pela Sagrada Escritura. Porque os prelados
se chamam pastores em razão a que precisam dar a vida por suas ovelhas; e, administradores, não donos;
e ministros de Deus, não causas primeiras. Logo, no exercício do poder, estão obrigados a acomodar-se
aos propósitos divinos. Por outra parte, Deus busca fundamentalmente o bem comum dos homens
mesmos. Logo, também seus ministros têm o dever de servir a esse fim. Por isso na Sagrada Escritura
recebem as mais severas repreensões aqueles que abusam desse poder em proveito próprio. Quando os
homens outorgam diretamente a potestade, não cabe a menor dúvida de que não é para o benefício do
príncipe, senão do bem comum daqueles que a conferiram; daí que os reis se denominem ministros da
comunidade. São, ademais, por adição, ministros de Deus. (...) Hão de usar, portanto, esse poder em vista
do bem da comunidade do qual e para qual o receberam”.[ xlvii ]

Para Suárez a sociedade é um organismo vivo[ xlviii ] cuja existência se organiza


a partir de níveis estruturados em conformidade com os fins. Diversas esferas e
competências se coordenam em direção a um fim excelente. Não obstante, há também
fins específicos, relativos aos níveis mais inferiores e intermediários, que por sua
própria natureza são subordinados ao fim mais excelente. Toda a sociedade humana
existe em razão de um fim. Todos os níveis intermediários possuem bens específicos,
que se subordinam a um fim último mais perfeito e cuja preservação é tarefa da
Igreja. Porém, a Igreja não mantém com as demais instituições sociais e políticas uma
relação de submissão, senão de harmonia, coordenação e inter-relação.[ xlix ] Então,
se o corpo político cuida diretamente da esfera temporal e, assim, do bem comum
político, cabe por outro lado à Igreja a curatela da salvação das almas, objetivo eterno
e, por isso, mais excelente em comparação ao desenvolvimento da pessoa na história.
[l]
Explicando o que é a potestade indireta da Igreja sobre bens temporais, Moliá
esclarece que “a potestade indireta é a mesma potestade espiritual da Igreja quando se
exerce sobre as coisas temporais por sua conexão com o fim espiritual. É o poder que
assiste a potestade superior (o Papa) para dirigir, apoiar e corrigir o poder inferior
(príncipes e reis) em ordem aos fins espirituais. Ou de outra forma: é a superioridade
da potestade que intenta um fim de ordem mais excelente sobre a potestade que
persegue um fim de ordem inferior, menos excelente e diverso, em virtude da
conexão e subordinação de fins”.[ li ]
Para Suárez, o corpo político não é subordinado ao Papa, mas uma unidade
representativa da ordem temporal, com natureza e autonomia derivadas da natureza
social e política do homem. A potestade da autoridade procede de Deus pela
comunidade civil – “sed potestas prelatorum non est a Deo mediante papa sed
immediate, et a populo eligente vel consentiente”,[ lii ] e não do Papa, diferentemente

32
do que pretenderam muitos teocratas na história da Igreja, argüindo sobre a potestade
temporal direta dos Papas.[ liii ]
O corpo político mantém uma autonomia frente à Igreja, constituindo-se em
autêntico organismo vivo e dinâmico na consecução do bem comum. Em razão dessa
persecução, a autoridade portadora do poder delegado não pode tiranizar, mas
governar política e socialmente a comunidade civil, ofertando o conjunto das
condições para que seus membros possam se realizar como seres humanos.
Percebe-se, assim, que em Suárez já há o esboço de um regime jurídico-político
das liberdades. A autoridade política é limitada por todos os lados, vinculada ao pacto
de sujeição, ao consentimento do povo, ao direito natural e, no terreno espiritual, aos
limites dados pela jurisdição eclesiástica. No livro III, Suárez apresenta as fronteiras
da soberania política, promovendo uma teoria incipiente das liberdades civis e
políticas e antecipando o que pouco mais tarde viria a ser o coração do
constitucionalismo moderno.[ liv ]
O principatus politicus, assim, apresenta um prelúdio do que viria a ser a
representação política moderna, sustentada pela gênese institucional do Estado de
Direito e pela defesa e promoção das liberdades fundamentais. Não foi outra a
finalidade de Suárez senão contrapor-se às pretensões absolutistas de Jaime I quanto
ao tratamento dispensado aos católicos ingleses. Buscando tratar de um problema
específico, todavia, o autor acabou por oferecer à civilização um dos principais
edifícios teóricos de promoção da paz e defesa dos direitos humanos, formulando
uma teoria jurídica promotora dos direitos políticos e das liberdades fundamentais.

33
IV.
Apontamentos sobre a presente edição
A presente edição oferece a tradução de partes selecionadas da Defensio Fidei.
Apresenta apenas os capítulos dos livros III e VI que tratam, respectivamente, dos
fundamentos do direito político e eclesiástico das repúblicas e do primado do Sumo
Pontífice, bem como dos aspectos teológicos e civis do juramento de fidelidade.
Ambos os temas ocupam o posto de maior relevância na estrutura do tratado, pois
tangenciam os dois argumentos centrais da disputa entre a Santa Sé e o rei da
Inglaterra. Os livros em questão visam mostrar a ilegitimidade do tratamento
conferido por Jaime I aos católicos britânicos, particularmente quanto ao abusivo
juramento de fidelidade exigido pelo monarca em âmbitos que excediam sua
jurisdição real, atitude sustentada por uma teoria política cuja premissa estava em
defender a instituição divina direta da autoridade sem a intermediação da sociedade e
usurpando a jurisdição eclesiástica do Sumo Pontífice.
A Defensio Fidei, contudo, não se resume aos dois livros selecionados. Como já
mencionamos, é um tratado. Originalmente dividido em seis livros, expõe temas
teológicos e disputas eclesiásticas destinadas a provar a autenticidade da Igreja
Católica e de sua tradição. Suárez admite, já no proêmio, que não abandona o estilo
escolástico de exposição, preferindo o método da disputa para demonstrar os erros
teológicos e filosóficos do rei Jaime I expostos no Prefácio Admonitório e na
Apologia.
Na estruturação da obra, o granadino preferiu iniciar pela apresentação dos erros
anglicanos e descer, a partir daí, aos problemas suscitados no caso inglês, terminando
pela análise do juramento de fidelidade. Seguindo a tendência de seu tempo, Suárez
submete os temas concretos ao recurso teológico, tomando a teologia como o fecho
axiomático da abóbada analítica. Na Defensio Fidei, a teologia é o ponto de partida,
de onde se deduzem argumentos filosóficos, políticos e jurídicos, destinados a
robustecer o conjunto de provas e afirmações, tendo em vista a solução da disputa.
No primeiro livro,[ lv ] Suárez demonstra que o cisma anglicano não pode ser
escusado de heresia e infidelidade à fé católica. Afirma que o rei usurpou o título de
defensor da fé, mostrando que tal ato carece de fundamento jurídico e teológico.
Disso, conclui não ser a seita anglicana fundada na verdadeira fé de Cristo.
No segundo livro, expõe que os artigos impugnados pelo rei Jaime I são antigos e
católicos, o que o torna praticante de heresia segundo esta confissão de fé.
No terceiro, argúi sobre o direito e o primado do Pontífice, provando que não
praticou a usurpação de jurisdição alegada pelo monarca. Ademais, tece argumentos
que comprovam a ilegitimidade da doutrina do direito divino, contrária à teoria
católica sobre a origem e a natureza do poder político.
No quarto, trata do direito de imunidade das pessoas eclesiásticas contra a
indevida ingerência dos reis temporais no âmbito dos assuntos atinentes à Igreja.
No quinto, expõe razões sobre o combate espiritual do Anticristo contra a Sede
Apostólica, bem como as leviandades de seu oficio.
Por fim, no sexto e último livro discorre acerca das vicissitudes do juramento de
fidelidade e de sua fundamentação jurídica e eclesiástica.

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Optamos pela seleção dos livros III e VI por serem suficientes para o correto
entendimento dos problemas cruciais levantados na disputa. Ambos focalizam as
teses centrais dos ataques de Jaime I contra a Igreja Católica e a defesa da Santa Sé
contra os erros anglicanos. Tal opção não inutiliza os demais livros do tratado. Pelo
contrário. A riqueza de detalhes em cada um deles é notável. Porém, frente aos
impeditivos de patrocinar a tradução completa, fomos impelidos a selecionar as partes
mais relevantes da obra, oferecendo ao leitor as considerações mais importantes sobre
a disputa.
A tradução que ora se almeja para a língua portuguesa introduz em nossa cultura
calejada de modernismos um dos monumentos de nossa civilização, permitindo ao
público gaúcho e brasileiro o acesso a um dos tratados de apologética mais eficazes
da história da Igreja católica. E, como toda obra do século XVII, o espírito político
predominante permite-nos dizer, sem pestanejar, que trata-se de um autêntico tratado
de teologia política.
Agradecemos imensamente ao editor-chefe da Editora Concreta, Renan Martins
dos Santos, que aceitou tornar o sonho deste humilde coordenador editorial uma
realidade, topando buscar patrocínio para a publicação deste monumento da
civilização ocidental. Agradecemos também aos mais de 300 colaboradores-
patrocinadores que possibilitaram a concretização do projeto, e que têm por isso a
honra de serem os primeiros leitores a colocar as mãos neste livro. Igualmente, somos
gratos ao tradutor Luiz Astorga pela exímia competência no trato de um autor tão
profícuo e erudito, realocando o sentido e o espírito da obra diretamente do latim para
o português, conservando o espírito apologético e cirúrgico do granadino.
Finalmente, agradecemos ainda ao co-tradutor Tiago Gadotti, cujo esforço e
dedicação foram de vital auxílio na produção desta obra.

[ i ] Coordenador editorial do selo Salamanca da Editora Concreta, professor de Filosofia do Direito da


UFRGS, Doutor e Mestre em Direito pela USP, e membro do Conselho editorial da revista Communio.
[ ii ] Empregamos o termo "constituição" no sentido latino – constitutio –, buscando significar a fundação da
ordem política concreta. A partir do século XVIII o termo "Constituição", com inicial maiúscula, passou a
designar a Carta Política fundamental dos Estados Liberais, isto é, um texto normativo dispondo sobre direitos
e garantias individuais e separação de poderes. A utilização da palavra "constituição", com inicial minúscula,
tem como objetivo simbolizar que as doutrinas políticas aludidas pretendiam ofertar explicações sobre a
origem da sociedade e do poder político, a saber, teorias sobre a formação originária da sociedade política.
[ iii ] MAX WEBER, Economia y Sociedad, 2ª ed., México, Fondo de Cultura, 1964, p. 170 e seguintes.
[ iv ] Sobre isso, é interessante observar o que diz Maravall: “La forma política del Estado moderno que no en
balde tiene en España una de sus más tempranas manifestaciones, llevaba a esta difusión de la idea de la
razón de Estado, en cuanto se produjera un primer enfrentamiento del Estado con sus necesidades operativas.
Esto es lo que había visto Maquiavelo, sin acertar a darle nombre, y de ahí que la naturaleza conflictiva del
poder político quede claramente revelada en él. Todos tienen que practicar, en medio de las tensiones que la
nueva forma política del Estado provoca – y que se manifestarán en el fenómeno nuevo de las constantes
guerras interestatales –, esa especie de maquiavelismo de receta, que se hace común en la época y que se
integra en el cuerpo de doctrina de la razón de Estado”. JOSE ANTONIO MARAVALL, Estudios de historia del
pensamiento español – serie tercera, 2ª ed., Madrid, Cultura Hispanica, 1984, p. 61.
[ v ] ANTÓNIO DE VASCONCELOS, Escritos Vários – Volume II, 1ª ed., Coimbra, arquivo da Universidade,
1988, p. 169. Diz Vasconcelos que “foi na regência dos cursos de Segóvia que a fama de Suárez começou a
dilatar-se por toda a Espanha. Tratava os altos problemas da filosofia com tal largueza e sublimidade de vistas,
e encarava-os sob aspectos tão cheios de novidade, que os cadernos de seus discípulos, onde se continham as
lições por ele ditadas, foram procurados com empenho: deles se extraíram cópias, que em breve se difundiram
por toda a parte. Além disso, a sua aula era freqüentada por numerosos ouvintes, entre os quais se contavam os
mais notáveis religiosos de todos os Conventos e Colégios de Segóvia. Não admira pois, que a inveja

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aguilhoasse os ânimos de alguns, até então apontados como abalizados mestres; misérias da vaidade humana!
A novidade das idéias e opiniões sustentadas por Suárez foi o pretexto que se tomou para o ataque”.
[ vi ] Em uma época de transição entre a primeira e a segunda escolástica, mergulhado na atmosfera do
barroco espanhol e amplamente influenciado por mestres de Salamanca como Domingo de Soto e Francisco
de Vitória, Suárez foi injustamente acusado de simpatia por filosofias reativas ao escolasticismo tomista,
como o pensamento de John Duns Scotus e Guilherme de Ockham. O próprio Suárez em diversas passagens
de suas opera omnia esclarece ser um fiel discípulo de S. Tomás de Aquino, ainda que com ele não
compartilhe alguns pontos específicos.
[ vii ] Op. cit., p. 162.
[ viii ] Op. cit., p. 182.
[ ix ] No diário de Vasconcelos, consta que entre 1601 e 1602, na regência da cadeira de Direito, “Suárez
cumpriu pontualmente, não dando falta nenhuma. As suas lições este ano versaram sobre as matérias de
legibus. Na escolha deste assunto influíra o Reitor da Universidade, Afonso Furtado de Mendonça, que, sendo
doutor canonista e reconhecendo a conveniência de ser aquele assunto estudado e explorado pelo grande
talento de Suárez, lhe pediu que para ele dirigisse as suas atenções e publicasse depois um livro sobre a
matéria. Assim se fez. O tratado De Legibus foi o objeto das preleções de Suárez durante este ano e o
seguinte; o livro, que é uma verdadeira obra-prima, saiu do prelo em 1612 apenas”. Op. cit., p. 245.
[ x ] Sobre isto, sugerimos três obras: 1) LUIS REIS DE TORGAL, Ideologia política e teoria do Estado na
restauração, 1ª ed., Coimbra, Universidade, 1981, vol. 1; 2) CARLOS STOETZER, Las raíces escolásticas de la
emancipación de la América Española, 1ª ed., Madrid, CEPC, 1982; e, por fim, o nosso trabalho: 3) MARCUS
PAULO RYCEMBEL BOEIRA, A Legitimação do Imperador segundo a Constituição do Império de 1824:
fundamentos e translação, tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, em maio de 2012, disponível na Biblioteca da FADUSP.
[ xi ] Hubeñak nos diz que “Isabel [Elizabete] publicou em 15 de julho de 1580 um edito pelo qual todos (...)
os jesuítas que se encontrassem livres – ou ocultos – no reino deviam abandoná-lo dentro de 40 dias, exceto se
jurassem a obediência anti-romana. Pouco mais tarde, por outro edito, proibia o ingresso na Ilha aos jesuítas
alegando que ‘somente iam à Inglaterra para instigar ao povo contra seu soberano’, advertindo que ‘qualquer
que desse ouvidos aos jesuítas, seminaristas e curas católicos devia considerar-se como faltante e cúmplice de
traidores, e castigado como tal’”. FLORENCIO HUBEÑAK, "La Defensio Fidei en el contexto histórico-
ideológico de su época", in La Gravitación de la Ley según Francisco Suarez, 1ª ed., Navarra, Eunsa, 2009, p.
149.
[ xii ] V. prólogo do livro VI nesta edição, p. 181.
[ xiii ] Com base em Sanders, o próprio Suárez aduz que “ela, sendo mulher, ou tinha temor ou pudor de
usurpar o nome de cabeça da Igreja, que Henrique arrogara a si, e por isso mudou o nome para soberana
governadora. Porém na realidade não havia diferença senão no nome", conforme p. 181.
[ xiv ] FLORENCIO HUBEÑAK, op. cit., p. 150.
[ xv ] JUAN DE MARIANA, De Rege et Regis Institutione, in Obras completas do Padre Juan de Mariana
(Biblioteca de Autores Españoles), 1ª ed., Madrid, Rivadeneyra, 1854, pp. 481-2. Tradução livre do
coordenador editorial.
[ xvi ] V. prólogo do livro VI nesta edição, pp. 182-3.
[ xvii ] V. prólogo do livro VI nesta edição, p. 185.
[ xviii ] O próprio Suárez ensina que “em nenhum dos dois breves pontifícios encontra-se uma repreensão de
tal juramento, nem pode o rei alegar algum autor católico que julgasse que tal tipo de juramento não condiz
com a fé católica. Por isso, é em vão que se esforça o rei, em sua Apologia, para provar pelas Escrituras,
concílios e Padres que se deve aos reis obediência civil em consciência, e que é lícito o juramento pelo qual se
a promete, porque todos confessamos que isto é não apenas verdadeiro, mas também dogma católico.” V. cap.
I do livro VI desta edição, p. 190.
[ xix ] P. 47 desta edição.
[ xx ] Carta do rei Filipe III de Espanha ao professor Francisco Suárez S.J., lente de Leis e Cânones da
Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra. Publicada por ANTONIO DE VASCONCELOS, Escritos
Vários, p. 274. Note-se que a redação exarada acima foi mantida na língua castelhana tal como conhecida ao
tempo do reinado de Filipe III.
[ xxi ] A doutrina pactista tem origem medieval. O tipo de representação política característico do período era
o mandato, ou seja, um acordo entre o titular do poder e seu mandatário, que o exercia em seu nome. Todavia,
na era moderna, a transição do mandato particular e bilateral para o terreno da filosofia política se tornou
comum. O pacto passou a ser usado para explicar a origem da sociedade e os limites da soberania, ampliando
o raio de abrangência do pacto, como também sua importância para a narrativa social. Pacto, nesse sentido,
simboliza o acordo fundamental entre os membros de uma comunidade e, assim, a origem do convívio
humano. Suárez emprega o termo com esse significado, embora não reduza a origem da sociedade política ao
pacto em si, senão que o submete ao direito natural e à criação da humanidade segundo a teologia católica.

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[ xxii ] P. 234 desta edição.
[ xxiii ] O texto original da Bíblia Nova Vulgata diz: “Omnis anima potestatibus sublimioribus subdita sit.
Non est enim potestas nisi a Deo; quae autem sunt, a Deo ordinatae sunt”.
[ xxiv ] P. 65 desta edição. A redação original dispõe: “Praeter rationem sumptam ex fine et ex necessitate
huius potestatis, iustitiam eius ex illius origine ostendere necesse est. Propter quod addimus principem
politicum potestatem suam a Deo ipso recipere”.
[ xxv ] P. 66 desta edição. Redação original a seguir: “Primo, quia omnia quae sunt de iure naturae, sunt a
Deo ut auctore naturae; sed principatus politicus est de iure naturae; ergo est a Deo ut auctore naturae”.
[ xxvi ] Como se viu anteriormente, foi em sua The trew law of free monarchies que Jaime I sustentou sua tese
sobre a origem do poder segundo instituição divina direta – origem de direito divino –, contra a posição da
Igreja Católica – em especial àquela sustentada pelo cardeal Belarmino – segundo a qual o poder é de direito
natural, tendo sua origem em Deus, mas sua origem próxima na comunidade civil, de onde procede
diretamente, sendo apenas indiretamente derivado do Criador.
[ xxvii ] A posição de Jaime I intensifica o conhecido conflito entre a autoridade papal e o poder real. Segundo
uma interpretação contrária à posição católica, a atitude protestante de ruptura com a autoridade papal deve-se
à invasão operada por alguns Papas na esfera temporal. Assim, os dois reinos reduziam-se à espada temporal,
no sentido de preservar a esfera dos assuntos políticos da interferência indevida do papado. Nesse sentido, ver
EVELYNE PISIER, História das idéias políticas, 1ª ed., São Paulo, Manole, 2004, p. 42 e seguintes.
[ xxviii ] P. 69 desta edição.
[ xxix ] P. 70 desta edição.
[ xxx ] P. 72. A redação original tem o seguinte teor: “principatus politicus sit immediate a Deo, et
nihilominus regibus et senatibus supremis non a Deo immediate, sed ab hominibus commendatus sit”.
[ xxxi ] Ibidem. O texto latino diz: “suprema potestas civilis, per se spectata, immediate quidem data est a
Deo hominibus in civitatem seu perfectam communitatem politicam congregatis”.
[ xxxii ] P. 74. Afirma Suárez que: “quia non inter populum et Deum medium posuit, sed inter regem et Deum
voluit populum esse medium, per quod rex talem accipit potestatem” [“pois não postulou nenhum
intermediário entre Deus e o povo; ao contrário, quis que entre o rei e Deus fosse o povo o intermediário pelo
qual o rei recebe tal poder”].
[ xxxiii ] Suárez, apoiado na tradição e concordando com Santo Tomás de Aquino e Domingo de Soto, como
ele mesmo cita, define a razão natural como uma faculdade da natureza racional para “discernir entre as obras
que são convenientes ou não para a natureza”. E completa dizendo que a natureza racional é a “mesma lei
natural que ordena ou proíbe a vontade humana quanto ao que deve fazer por direito natural”. FRANCISCO
SUÁREZ, De Legibus ac Deo legislatore, 1ª ed., Madrid, CSIC – Corpus Hispanorum de Pace, 1974, Vol. II,
V, caps. 8-9, p. 66. A redação original é exposta a seguir: “Est ergo secunda sententia, quae in natura
rationali duo distinguit: unum est natura ipsa, quatenus est veluti fundamentum convenientiae vel
disconvenientiae actionum humanarum ad ipsam; aliud est vis quaedam illius naturae, quam habet ad
discernendum inter operationes convenientes et disconvenientes illi naturae, quam rationem naturalem
appelamus. Priori modo dicitur haec natura esse fundamentum honestatis naturalis. Posteriori autem modo
dicitur Lex ipsa naturalis, quae humanae voluntati praecipit vel prohibet quod agendum est ex naturali iure”.
[ xxxiv ] FRANCISCO DE VITÓRIA, Relectio de Potestate Civili, 1ª ed., Madrid, 1765, p. 119 e seguintes, trecho
citado por Suárez na edição aqui cotejada, na nota 62, p. 77.
[ xxxv ] Dentre os autores citados por Suárez, figuram, além do próprio Vitória, Alfonso de Castro, cardeal
Tomás Caetano, Domingo de Soto, João Driedo de Turnhout, Aristóteles, S. Agostinho, Tertuliano, S. Irineu,
S. João Crisóstomo, Orígenes, S. Gregório Nazianzeno, dentre outros.
[ xxxvi ] Suárez defende que a comunidade perfeita é aquela que se constitui em um verdadeiro corpo político
governado através de uma autêntica jurisdição, com força coativa, oriunda de sua capacidade de estabelecer
leis. Portanto, é aquela comunidade capaz de se autogovernar politicamente, sendo auto-suficiente dentro
desses propósitos. Cf. De Legibus ac Deo legislatore, 1ª ed., Madrid, CSIC – Corpus Hispanorum de Pace,
1971, vol. I, VI, c. 21, p. 123. A redação original é exposta a seguir: “quia omnis communitas perfecta est
proprium corpus politicum et gubernatum per propriam iurisdictionem habentem vim coactivam, quae est
legum lativa”. Cf. também nota 55, p. 72.
[ xxxvii ] “(...) a razão natural não determina como necessária a monarquia ou a aristocracia, tampouco o faz
quanto à democracia”, p. 75.
[ xxxviii ] THOMAS HOBBES, Leviatã: ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, 3ª ed.,
São Paulo, Ícone, 2008, p. 123 e seguintes. Sobre o contratualismo, diz Hobbes que enquanto a
institucionalização da comunidade entre os animais “é natural, entre os homens surge apenas através do pacto,
isto é, artificialmente. Não causa espanto saber que se requer algo mais, além de um pacto, para tornar
constante e duradouro seu acordo, isto é, o poder comum capaz de fazê-los respeitar e dirigir ações para o bem
comum”. E termina: “O Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua,
que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a

37
pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele
como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de
homens, como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem
protegidos dos restantes homens”.
[ xxxix ] HANNAH ARENDT, A condição humana, 10ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 61 e
seguintes.
[ xl ] A expressão é de Voegelin, que afirma que as teocracias da antiguidade eram verdadeiras “religiões
políticas”. Nesse sentido, ver ERIC VOEGELIN, La politica: dai simboli alle esperienze, 1ª ed., Milão, Giuffrè,
1993, p. 25 e seguintes.
[ xli ] Não se nega, nesse caso, que alguns sistemas políticos teoricamente baseados na tradição não tenham
caído em práticas absolutistas em suas experiências concretas. O que afirma-se aqui é, antes, o necessário
vínculo entre a experiência real das formas políticas e suas correspondentes filosofias subjacentes. Nesse
sentido, argumenta-se o quão influentes são as bases teóricas sobre os sistemas políticos a elas vinculados.
[ xlii ] Interessante notar que a idealização de uma comunidade política perfeita, sedimentada na noção de que
a comunidade política é – no plano abstrato – detentora da soberania em razão de uma vocação universal e
transcendental, já estava presente na obra tanto de Aristóteles – na figura da politeia – como também em
Cícero – no mito da patrios politeia. Cf. ARISTÓTELES, A Constituição de Atenas, 1ª ed., São Paulo, Hucitec,
1995, p. 23 e seguintes. A esse respeito, como exemplo, Aristóteles expõe com clareza sobre a legitimidade de
Sólon enquanto mediador e Arconte da pólis para a conservação da eudaimonia – da vida boa da comunidade
política grega. O Estagirita demonstra que Sólon veio a ser o líder do povo em seu tempo, e que, “com o
acirramento do conflito, e como se enfrentassem há já longo tempo, elegeram em comum Sólon como
mediador e Arconte, confiando-lhe o governo após ele ter composto aquela elegia” (p. 21). E mais adiante,
quanto à possibilidade de Sólon se tornar um tirano frente às duas agremiações políticas de Atenas, sustenta
que ele “contrapôs-se a ambos, e estando em seu alcance tornar-se tirano compondo-se com o lado por que
optasse, preferiu incorrer na hostilidade de ambos mas salvar a pátria e promulgar a melhor legislação” (p.
31). Dentro do quadro indicado, percebe-se que Aristóteles buscava, nesse particular, dizer que em Sólon
verificou-se – na história de Atenas – uma atualização da comunidade política perfeita – ordem transcendente
da boa pólis – no plano material da comunidade política imperfeita – dos homens concretos; e que o fim dessa
última é o de “ser a primeira”.
[ xliii ] HEINRICH ROMMEN, La teoria del estado y de la comunidad internacional en Francisco Suarez, 1ª ed.,
Madrid, CSIC – Instituto Francisco de Vitória, 1951, vol. I, p. 299. Tradução livre do espanhol pelo
coordenador editorial.
[ xliv ] Posição contrária à qual sustentamos pode ser encontrada em ANDRÉ DE MURALT, La estructura de la
filosofia política moderna: sus orígenes medievales en Escoto, Ockam y Suarez, 1ª ed., Madrid, Istmo, 2002,
p. 155. Muralt entende que em Suárez não há, na translação, uma “delegação” de poder, mas uma “quase-
alienação”, em que o povo perde sua capacidade política ativa. Datamaxima venia, discordamos dessa
posição. Entendemos que em Suárez há uma autêntica “delegação”, conforme exposto aqui.
[ xlv ] FRANCISCO SUÁREZ, Opera Omnia – Tomus Quintus Complectens, De Legibus III, 1ª ed., Paris, Editio
Nova, 1856, cap. IV, nota 2, p. 184. A redação original é a seguinte: “potestatem civilem, quoties in uno
homine vel principe reperitur legitimo et ordinario iure a populo et communitate manasse vel proxime vel
remote, nec posse aliter haberi ut iusta sit. (...) Ratio est quia haec potestas ex natura rei est immediate in
communitate; ergo, ut ista incipiat esse in aliqua persona tanquam in supremo principe, necesse est ut ex
consensu communitatis illi tribuatur”.
[ xlvi ] O termo utilidade pública foi amplamente utilizado pelos escolásticos de Salamanca anteriores a
Suárez. Francisco de Vitória utiliza o termo em profusão em suas Relectiones. A substituição da expressão
bem comum por utilidade pública é uma amostra da flexibilidade etimológica corrente ante o predomínio da
cultura moderna.
[ xlvii ] FRANCISCO SUÁREZ, De Legibus I: de natura legis, 1ªed., Madrid, CSIC – Corpus Hispanorum de
Pace, 1971, VII, c. 5, p. 133. A redação original é exposta a seguir: “quia potestas gubernativa, quae est in
hominibus vel est immediate a Deo, ut contingit in potestate spirituali, vel est immediate ab ipsis hominibus,
ut in potestate purê temporali, utroque autem modo talis potestas est praecipue data propter commune bonum
communitatis. Ergo hoc bonum debet intendi in legibus ferendis. Minor quoad priorem partem de spirituali
potestate est evidens in Scriptura. Nam propterea praelati vocantur pastores, quia animam suam debent
ponere pro ovibus suis, et dispensatores, non domini, et ministri Dei, non causae primariae. Ergo tenentur
divinae intentioni conformari in usu talis potestatis. Deus autem commune bonum ipsorum hominum
principaliter intendit; ergo etiam ministri ad hoc tenentur. Et ideo gravissime in Scriptura reprehenduntur qui
hac potestate in suum privatum commodum abutuntur. Quando vero potestas data est immediate ab ipsis
hominibus, evidentissimum est non esse propter principis utilitatem, sed propter commune bonum eorum qui
illam contulerunt, et ideo reges ministri reipublicae appellantur. Adde etiam esse ministros Dei (...) Debent
ergo ea potestate uti in bonum reipublicae a qua et propter quam illam acceperunt”.

38
[ xlviii ] Inúmeros autores sustentam que Suárez tinha uma visão organicista do corpo político. Dentre esses,
podemos destacar: Elías de Tejada, Antonio Molina Meliá, Antonio-Enrique Perez Luño e Luciano Pereña
Vicente.
[ xlix ] É inegável que até o século IX não havia nas relações entre a Igreja e os sistemas políticos uma
definição clara acerca das jurisdições, ainda que já existisse desde os primórdios da era cristã uma divisão
institucional entre autoridade espiritual e poder temporal.
[ l ] S. TOMÁS DE AQUINO, Do governo dos príncipes, 1ª ed., São Paulo, Anchieta, 1946, p. 101 e seguintes.
[ li ] ANTONIO MOLINA MOLIÁ, Iglesia y Estado en el siglo de oro español: el pensamiento de Francisco
Suarez, 1ª ed., Valencia, Universidad, 1977, p. 205.
[ lii ] "Ora, o poder dos prelados não procede de Deus por intermédio do Papa, mas de forma imediata, e do
povo enquanto elege ou consente", citação de JOÃO DE PARIS in De potestate regia et papali, apud JEAN
LECLERCQ, Jean de Paris et l'ecclésiologie du XIIIe siècle, Paris, 1942, p. 235.
[ liii ] Trata-se do cesaropapismo. Nesse sentido, ver NICOLAS BOÉR, Relação entre a Igreja e o Estado no fim
do século XIII e no início do século XIV nos escritos de filósofos de Estado e de canonistas, São Paulo, Tese
(Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, 1972, pp. 2 e 3.
[ liv ] Diz Pereña que “a união política tem seu fundamento em um contrato humano”, contrato esse segundo o
qual os direitos dos membros da comunidade são mantidos, ainda que restringidos, frente à eleição de uma
autoridade, vinculada ao pacto constitutivo. E, assim, completa: “os direitos e deveres do cidadão voltam a
juntar-se com os direitos e deveres dos governantes. Liberdade da pessoa e soberania do Estado se conciliam
na concepção democrática do poder político que se personaliza através de um pacto constitucional (...). Sujeito
natural da soberania, a comunidade política entregou seu poder ao rei ou governante para garantia e proteção
dos direitos dos cidadãos. Essa defesa e proteção dos direitos pessoais e comunitários definem os limites do
abuso do poder. Os cidadãos têm direito a rebelar-se contra o tirano (...). Porque o governante, como qualquer
cidadão, tem o dever de respeitar e não violar o direito dos demais. Os direitos individuais se convertem em
direitos civis e políticos porquanto conservam o próprio direito dos outros. A concepção patrimonial do poder
político (...) dá passo a uma concepção essencialmente democrática (...)”. LUCIANO PEREÑA VICENTE, Estudio
preliminar y edición critica bilíngüe ao De Legibus III – De civile potestate, Madrid, Instituto Francisco de
Vitoria, 1974, p. xxii.
[ lv ] Para um brevíssimo resumo dos livros pelo próprio Suárez, v. o Proêmio desta edição, pp. 53-54.

39
NOTA DO COORDENADOR EDITORIAL

Na presente edição da Defensio Fidei procuramos conservar com a máxima


acuidade o texto original, cotejando-o com as edições de Nápoles e com as traduções
para o inglês, francês e espanhol.
Igualmente, inserimos algumas notas explicativas em passagens controversas da
obra, como também em temáticas que pudessem despertar no leitor dúvidas sobre
problemas de teologia política, procurando esclarecê-las com base em posições
ratificadas entre os comentaristas, como também apoiadas nos preambula fidei.
Quanto às notas do próprio Pe. Suárez, seguimos as referências da Patrologia
Graeca e da Patrologia Latina, ambas editadas por J. P. Migne, como também as
publicações de editoras antigas de Lyon, Veneza, Roma, bem como edições do
Corpus Hispanorum de Pace, Taurinorum, Vivès, Iurisconsultorum, dentre outras.
Além disso, também utilizamos em profusão as Decretales de Graciano e Gregório
IX, bem como as Institutas de Justiniano. Por fim, pinçamos passagens da Suma
Teológica de Santo Tomás quando citadas no texto original e documentos conciliares
em geral, além de sumistas, juristas e comentaristas antigos, a fim de manter
integralmente o propósito do autor.

40
Defesa da Fé
Católica e Apostólica
contra os erros da seita anglicana

com uma resposta à Apologia ao Juramento de


Fidelidade e à Carta aos Príncipes Cristãos, do
sereníssimo Jaime, rei da Inglaterra[ 1 ]
[ 1 ] Por tal nome também se fez conhecer a Praefatio Monitoria (literalmente, Prefácio Admonitório)
publicada por Jaime I juntamente com a Apologia ao Juramento. [Nota do tradutor; doravante, N. T.]

41
Aos sereníssimos reis e príncipes, filhos
e defensores da Igreja Romana e Católica,
felicidade temporal e eterna
FRANCISCO SUÁREZ, DA COMPANHIA DE JESUS

m livro editado recentemente, Jaime, rei da Grã-Bretanha, quase como ao

E toque de um clarim amigo, convocou os reis e príncipes católicos a comungar


de sua religião. Fê-lo no intuito de que, mediante o comunicado de tal
conselho, aqueles que Cristo, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, armou com
soberania para defender a Igreja Romana – a qual Ele adquiriu com seu sangue –
fossem incitados a atacá-la.
Mas com sua pluma o sereníssimo rei executou vã tentativa. Pois as portas do
inferno não prevalecerão contra ela, nem poderá a gelada tormenta do Aquilão
remover aqueles que o Cristo, pedra angular, fixou na rocha romana com o
firmíssimo elo da verdadeira piedade.
Antes ele conspirasse – seguindo convosco as pegadas de seus antepassados, os
mais invictos dos reis – para adornar a majestade da Igreja Católica! Assim não seria,
em zelo pela piedade verdadeira, inferior àqueles de quem é par em poder e comando.
Mais ele desejaria contar-se entre os que a divina autoridade constituiu como seus
alentadores, do que entre aqueles que contra o Senhor e o Cristo foram inflamados
pela loucura de sua própria impiedade.
Visto que, quando publicou seu livro, o índice de sua religião, não moveu guerra
contra a Igreja Católica valendo-se da majestade real que o abrilhanta, nem com o
estrondo e poder das armas – contra os quais não pode resistir um sacerdote de Cristo
e homem religioso – mas munido apenas da agudez da pena e do engenho humano,
julguei próprio de meu ofício e instituição avançar à linha de combate, não para pôr
em xeque o esplendor e nome de tamanho rei (coisa que nem posso, nem desejo), mas
para que as névoas exaladas das fétidas covancas dos inovadores, com as quais se
tenta obscurecer a católica verdade, dissipem-se em ar e vapor, dissolvidas por raios
de verdadeira sapiência.
Para fazê-lo, roguei resolutamente a Deus, pai das luzes, para receber aquela luz
que é o conhecimento da sincera verdade, que de Cristo Senhor nos chega mediante
os apóstolos, que é exposta em vigílias pelos Santos Padres, e que deve ser seguida
por quem deseja manter-se no caminho reto do viver e do crer. Que inspire esta
empresa aquele Nume em cuja mão se encontram os corações dos reis.
E vós, reis e príncipes católicos do mundo, que com afeto fraterno desejais que
Jaime seja tal qual vós, recebei esta nossa obra sob vosso patrocínio, para defendê-la
com vossa autoridade. Pois é vosso o dito: fazemos nossas as coisas em que
investimos nossa autoridade.[ 2 ] Que seja vossa então esta obra, para que, defendida
pela autoridade régia de vosso patrocínio e adornada por vosso brilho, vá a público

42
com segurança, surja ilustre no mundo, e não seja julgada indigna dos olhos de reis.
Pois não de outro modo senão sob vosso nome poderia esta nossa obra, na qual
defendemos a causa de Deus, opor-se ao livro do rei sereníssimo.
Não é outro o pensamento que me impele a dedicar-vos este nosso trabalho, com
solícita submissão de espírito – vós que sois herdeiros do poder e da piedade de
vossos ancestrais, e que vos ocupais religiosamente da tutela da Igreja Católica.
A outros este nosso labor pode servir de antídoto; já vós não necessitais de
antídoto (que é a suprema piedade de Deus) contra a loucura dos inovadores, cujos
venenos extraídos dos riachos do Estige não vos podem fazer mal, vós que, na virtude
de Deus, preservam-se sujeitos e unidos à verdadeira e católica fé – tal como
belíssimos membros o estão à sua cabeça – pela unidade do Cristo Senhor e de seu
vigário romano na terra, o Sumo Pontífice. Enquanto vossa soberania se firma em
Deus, que ela cresça para a maior glória de vosso império e contribua para vossa
eterna felicidade.
Coimbra, 13 de junho de 1613

[ 2 ] “Vosso”, isto é, de um imperador, como vós: JUSTINIANO,Corpus Iuris Civilis, Codex Iustiniani, I, tit.
XX, Lyon, Hugues de la Porte, 1558-1560, col. 125.

43
Proêmio

1. Intenção do autor. 2. Resumo das asserções do sereníssimo rei Jaime.


3. Em que ordem devem ser impugnadas. 4. O método que se observará

1. INTENÇÃO DO AUTOR.[ 3 ] – Preferiria eu, como prefaciou Ambrósio em causa não


muito diferente, assumir a empresa de exortar à fé a encarregar-me do dever de
sobre ela disputar.[ 4 ] Porém, como o próprio direito natural exige e todas as leis
divinas e humanas postulam que, na defesa contra qualquer injúria, lute tanto quanto
possível o filho por seus pais, o sacerdote pela Igreja, o teólogo pela religião, o
religioso pelas coisas sagradas, e enfim todo e qualquer membro (não importa quão
vil) pela sua cabeça, sou por isso compelido a não desprezar este novo gênero de
escrita.
Pois o sereníssimo Jaime, rei da Inglaterra, em sua Apologia e seu Prefácio
Admonitório aos príncipes do mundo cristão, procura coagi-los todos, enquanto dá à
sua seita os nomes de “católica” e de “primitiva fé”, ao passo que à nossa verdadeira
religião impinge a desonra de desertora; enquanto arroga para si o nome de Defensor
da Fé Católica, ao passo que marca com o sinal de tirania e apostasia anticristã o
Pontífice, Sumo Pastor de todos os fiéis e sua cabeça suprema sob Cristo; enquanto
ataca muitos mistérios e sacramentos de nossa fé, cuja impugnação perturba os
corações da gente piedosa.
E induziu a mim, no rastro de outros homens doutíssimos (embora eu lhes seja
muito desigual tanto em erudição quanto em eloqüência), a acercar-me deste trabalho;
forçou-me a descer a esta arena, à qual não estou acostumado. Não me intimidou a
majestade de sua dignidade régia; antes estimulou-me muito mais a verdade por ela
impugnada, e que não se ofusquem os olhos dos mais fracos com o brilho de tamanho
nome. Principalmente porque nesta causa parece ele haver-se despojado de seu
esplendor de realeza, quando, agindo mais como doutor que como rei, tenta defender
a autoridade soberana que usurpou para si sobre os assuntos eclesiásticos. Recordo-
me de haver lido em Ambrósio[ 5 ] [em carta endereçada ao Imperador Teodósio] que
não é próprio do imperador o negar a liberdade de falar, nem do sacerdote o não
dizer o que sente. Nada nos reis é mais amável do que também amar a liberdade
naqueles que são seus súditos por obediência, e nada no sacerdote é mais perigoso
ante a Deus – e torpe ante os homens – do que não expressar livremente o que sente.
Pois está escrito: “falarei dos teus testemunhos perante os reis, e não me
envergonharei”.[ 6 ] Portanto, movido por estas palavras divinas e sagradas, não por
confiança em minhas capacidades,[ 7 ] mas apegado à verdade e confiante na própria
causa, em prol desta não temo falar livremente.

44
Esforçar-me-ei, porém, em dizer apenas aquelas coisas que não possam ofender o
excelso ânimo do rei, a não ser que a luz que ostende a própria verdade ofenda olhos
maldispostos. Pois propus-me a elucidar a fé católica e protegê-la; não a combater a
majestade régia, mas antes – o que desejo – a servi-la na exposição da verdadeira e
católica fé.
2. RESUMO DAS ASSERÇÕES DO SERENÍSSIMO REI JAIME. – Portanto, alentado pelo favor
divino, procederei a expor a verdade da fé – ensinada pelo Cristo Senhor, legada
integralmente pelos apóstolos e Santos Padres e incorruptamente conservada – acerca
de alguns pontos principais tocados pelo sereníssimo Jaime. Mas, para que se abra
uma via mais ampla em direção ao que queremos dizer, e tudo se entenda mais
facilmente, sugiro que examinemos antes o escopo e o propósito do rei, e depois a
ordem de resposta que seguiremos.
Pois, ao considerar atenta e cuidadosamente a obra deste monarca, facilmente
concluí que o intuito essencial do autor é principalmente defender com todos os seus
esforços o juramento de fidelidade que recentemente instruiu seus súditos a prestar-
lhe. E por este motivo, empenhou-se em combater tanto os rescritos pontifícios
quanto as cartas do ilustríssimo cardeal Belarmino ao arcipreste.[ 8 ]
Depois, recebida a resposta sobre tais temas, o rei, irritado, agregou à sua
Apologia um Prefácio a todos os príncipes do mundo cristão, no qual procura
exasperá-los contra o Sumo Pontífice como contra um inimigo comum, usurpador do
direito e do poder régios, e movê-los a uma deserção geral da Igreja Romana – seja
seduzindo-os com a esperança de maior liberdade e de poder mais excelente, seja
incutindo-lhes também o temor de que, enquanto permitem com excessiva e
indulgente leniência – é ele quem o diz – um crescimento desmedido da dignidade
papal, ou se apagaria absolutamente o esplendor régio, ou se o obscureceria mais do
que é justo. E, para que não se pense que esta guerra se move contra o vigário de
Cristo, chegou mesmo a tratar de persuadi-los de que o Pontífice não é defensor de
Cristo, mas o próprio Anticristo.
Finalmente, para que os verdadeiros filhos da Igreja, admirados com esta
gigantesca novidade, não a detestem, professa a si próprio como Defensor da Fé
Católica, de modo que, por tal razão, a seita que defende não pareça constituir uma
heresia, mas apenas uma discordância com o Romano Pontífice. E agrega ainda uma
extensa profissão de sua fé, pela qual tenta persuadir que permanece na fé primitiva e
antiga, enquanto – diz ele – renega apenas artigos novos e recentes, inventados pela
Igreja Romana.
3. EM QUE ORDEM DEVEM SER IMPUGNADAS. – Portanto, para que procedamos na
devida ordem de doutrina que sirva tanto à claridade quanto à utilidade a que visamos
nesta obra, dividi-la-emos em seis livros, que responderão aos mencionados pontos,
alterada apenas a sua ordenação.
Pois primeiro mostrarei que aquele cisma – que nem o próprio rei nega em seu
livro – não pode ser escusado de modo algum de heresia e infidelidade totalmente
opostas à fé verdadeiramente católica, e que o título usurpado em seguida pelo
sereníssimo rei, o de Defensor da Fé Católica, não só foi assumido sem fundamento,
mas é também claramente contrário àquilo que ele professa. Tomamos este título

45
como ponto de partida de nosso discurso, não apenas porque, posto no frontispício da
obra do rei, produz admiração imediata, mas também porque nos dará oportunidade
de estabelecer certos princípios pelos quais facilmente se pode concluir que a seita
anglicana não está fundada na verdadeira fé de Cristo. A isso dedicaremos o primeiro
livro.
Já no segundo, daremos prova de que todos os artigos da fé romana que o rei
impugna são antigos e católicos, e que artigos opostos não podem ser defendidos sem
aberta heresia.
Em seguida, se passará ao terceiro livro, em que defendemos – conforme nossas
forças – o direito e o primado do Pontífice. Não pretenderia percorrer tudo que se
poderia dizer de sua excelente dignidade e poder (pois esta obra se expandiria
indefinidamente), mas apenas expor que o Romano Pontífice não usurpou o poder
dos reis temporais, e sim reclamou apenas a dignidade de sumo sacerdote, da qual,
como diz Jerônimo, depende a salvação da Igreja,[ 9 ] e preservou seu direito, contra
o qual as portas do inferno nunca prevaleceram nem jamais prevalecerão.
E, visto que o rei deplora freqüentemente em seu Prefácio a isenção dos clérigos
quanto ao poder temporal e a jurisdição dos leigos, e lamenta que – como diz – uma
terça parte dos súditos tenha sido arrebatada dos reis temporais, adicionaremos um
quarto livro, no qual se demonstra o direito de imunidade das pessoas eclesiásticas.
No quinto livro, procuraremos comprovar não apenas que todas estas conjecturas
propostas acerca do Anticristo são levianíssimas, mas também que o Anticristo se
empenhará ao máximo na destruição da Sede Apostólica – e que por isso tal nome
antes conviria àqueles que esforçadamente tomam para si o ofício do Anticristo. Pois,
como disse Jerônimo a Dâmaso,[ 10 ]quem não junta contigo, espalha, ou seja: quem
não é do Cristo, é do Anticristo; e, como diz Bernardo[ 11 ] a Hildeberto, bispo de
Tours, sobre o Papa Inocêncio, os que são de Deus voluntariamente juntam-se a ele;
quem permanece em oposição, ou é o Anticristo, ou é do Anticristo.
No sexto livro, acerca do juramento de fidelidade exporemos brevemente o que de
injustiça e de ofensa à Sé Apostólica se encontra no rei que o exige, e diligentemente
explicaremos o que ele implica de perjúrio ou infidelidade aos súditos que o prestem.
4. O MÉTODO QUE SE OBSERVARÁ. – Não abandonarei o estilo de proceder e disputar,
nem o método escolástico ao qual estou acostumado, que pelo próprio hábito já me é
quase conatural, ainda que ele comumente seja pouco agradável àqueles que de nós
dissentem na fé; talvez porque seja o método mais apto a abrir caminho das trevas à
verdade, e o mais eficaz para combater erros.
E, por isso, embora pretendamos usar principalmente os testemunhos das sagradas
Escrituras, dos concílios e dos Padres, examinaremos o peso dos argumentos e – tanto
quanto pudermos – iremos no encalço de sua força e eficácia. Reuniremos não apenas
os que procedem dos referidos fundamentos da fé, mas, conforme ditar a ocasião,
também os que partem da própria luz natural; não porque os mistérios de nossa
sacrossanta religião precisem deles para defender-se, mas porque podem demonstrar
de modo nada obscuro para quão longe se desviam de toda a prudência e da própria
razão aqueles que não temem dissentir da Igreja Católica Romana em assuntos
pertinentes à salvação, nem dela separar-se.

46
[ 3 ] Na versão espanhola de JOSÉ RAMÓN EGUILLOR (Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1970), as notas
laterais são incorporadas ao texto como subtítulos. Julgamos também útil o procedimento do tradutor inglês
PETER SIMPSON (Nova York, Lucairos Occasio, 2012) de reuni-las à cabeça de cada uma das principais
divisões desta obra. Na presente edição, somamos os dois procedimentos. [N. T.]
[ 4 ] De Fide, I, Prologus, 4 (PL 16, 529B).
[ 5 ] Epístola 40, 2 (PL 16, 1101D-1102A).
[ 6 ] Salmos, 119:46.
[ 7 ] “Proprio ingenio diffisus”. In S. AMBRÓSIO, De Virginibus ad Marcellinam, I, 1, 2. (PL 16, 188A-B): “Et
quidem ingenio diffisus, sed divinae misericordiae provocatus exemplis, sermonem meditari audeo” [“E
certamente sem confiança em minhas capacidades, mas movido pelos exemplos da misericórdia divina, ouso
meditar sobre este tema”]. Depois prossegue o humilde Ambrósio, referindo-se ao episódio de Balaão: “Nam
volente Deo etiam asina locuta est” [“Pois, querendo Deus, até uma jumenta falou”]. [N. T.]
[ 8 ] Trata-se de George Blackwell, arcipreste da Igreja da Inglaterra entre 1597 e 1608. [Nota do
coordenador; doravante, N. C.]
[ 9 ] Dialogus contra Luciferianos, 9 (PL 23, 165A).
[ 10 ] Epístola 15, 2 (PL 22, 356).
[ 11 ] Na verdade, uma carta de Hildeberto a Bernardo: HILDEBERTO DE TOURS, Epístola 44, 1 (PL 171,
269A).

47
Parte I
A soberania civil

(Livro III - capítulos I a IX)

48
LIVRO III

Da excelência e poder do Sumo


Pontífice sobre os reis temporais

té agora expusemos em que heresias e graves erros incorreu a Inglaterra,

A uma vez desprezado o fundamento da fé católica. Resta-nos tratar da origem


de toda esta derrocada, isto é, da devida obediência negada ao Sumo
Pontífice e da usurpação, pelo rei temporal, do falso título de cabeça soberana nos
assuntos espirituais de seu reino. Pois foi este o início de todo o cisma, e do cisma
chegou-se à heresia, como vimos acima.[ 12 ]
Mas não é necessário recordar novamente este triste e torpe assunto, que deu
ocasião a tamanha mudança e tão horrendo cisma: a verdade desta história se
descreve com clareza suficiente no início do primeiro livro; também o argumento
evidente que ali se apresenta – o de que aquele movimento anglicano não nasceu do
Deus verdadeiro, mas do príncipe das trevas – consta suficientemente inculcado
naquele mesmo livro. Portanto, deixando omitidas estas coisas que dizem respeito ao
fato ocorrido, resta-nos tratar, no presente livro, do direito do rei e do direito do
Pontífice.
E, embora não se tenha movido nenhuma contenda ou controvérsia sobre o poder
absoluto do rei temporal, mas apenas sobre sua subordinação, dependência e devida
obediência ao Romano Pontífice, não obstante, para que todo o tema se entenda de
maneira mais precisa e satisfaçamos mais plenamente ao rei da Inglaterra (que em seu
Prefácio reclama de que o Pontífice injustamente usurpou dos reis tamanho poder,
que à vontade poderia mudar, conceder e tomar reinos[ 13 ]), explicaremos antes o
que ensina a fé sobre o cargo e a jurisdição dos reis temporais; em seguida,
trataremos do primado e do poder que, em razão de seu cargo, o Romano e Sumo
Pontífice pode exercer sobre quaisquer príncipes temporais. Uma vez observada a
ordem doutrinal, apontaremos e refutaremos – conforme haja oportunidade – os
vários erros que, respectivos a este ponto, o rei apresenta aqui e ali em seu Prefácio e
sua Apologia; além disso, satisfaremos a cada uma das objeções que ele indica. Isso,
porém, sem que nos percamos nos muitos outros pormenores que ainda se poderiam
mencionar sobre tal tema.[ 14 ]

[ 12 ] Isto é, conforme desenvolvido nos livros I e II, ausentes desta compilação. V. apresentação, pp. 43-4.
[ 13 ] JAIME I, Apologia pro Iuramento Fidelitatis, Praefatio, Londres, Opera Regia, 1609, p. 5.

49
[ 14 ] A Apologia pro Iuramento Fidelitatis foi publicada em conjunto com o Præfatio Monitoria em 1609,
por ocasião da disputa entre o rei Jaime I e o cardeal Roberto Belarmino. O Prefácio foi endereçado ao
imperador Rodolfo II, aos reis e príncipes cristãos. Historicamente, pode ser entendido como um chamado à
guerra contra a Igreja Católica Romana, advogando a reivindicação dos direitos e privilégios das coroas e
monarquias da Europa sobre assuntos eclesiásticos, sujeitos à jurisdição do Sumo Pontífice. Em resposta, o
cardeal Belarmino, em sua Apologia Roberti S.R.E. Cardinalis Bellarmini pro responsione sua ad librum
Iacobi Magnae Britanniae Regis, publicada em Roma no ano de 1610 e também dedicada aos monarcas,
procurou invalidar os argumentos de Jaime I, rebatendo-os ponto por ponto. A obra foi dividida em dezessete
capítulos e restou caracterizada pelo gênero polemista, tal como a Apologia e o Prefácio do monarca inglês.
Nela, Belarmino contrapõe as teses ventiladas pelo rei, defendendo a jurisdição espiritual do Sumo Pontífice
sobre bens eclesiásticos, como também a incompatibilidade entre a atitude do rei e a tradição da Santa Sé
quanto aos limites da autoridade política. [N. C.]

50
Capítulo I
Se o principado político[ 15 ] é legítimo,
e se procede de Deus
1-2. O erro de alguns judeus que não reconhecem nenhum principado humano. 3.
Primeira asserção: o principado político, se devidamente introduzido, é justo. 4.
Prova de nossa asserção mediante argumento. 5. Para o principado político, basta
uma só cabeça mística. 6. Segunda asserção: o poder político do príncipe provém de
Deus. 7. A razão de nossa asserção. 8. Desfaz-se o fundamento do erro afirmado no
princípio.

1. O ERRO DE ALGUNS JUDEUS QUE NÃO RECONHECEM NENHUM PRINCIPADO HUMANO. –


Aqui podemos citar o antigo erro de alguns judeus que diziam que apenas Deus
deveria ser reconhecido como príncipe e senhor, pois pareciam rechaçar todo e
qualquer principado humano, e, por isso, recusar também qualquer reino político
como algo contrário à liberdade humana. Isso nos conta Flávio Josefo em suas
Antigüidades Judaicas, livro XVIII, capítulo 1, onde indica como autor deste erro a
Judas Gaulanita, talvez assim denominado em razão de sua origem; já no capítulo 2,
chama-o Judas Galileu, provavelmente por sua pátria. No livro II, capítulo 2 da
Guerra dos Judeus, chama-o Simão Galileu. Nos Atos dos Apóstolos [5:37], parece
fazer-se-lhe menção pelo nome de Judas Galileu, do qual se diz: Depois deste,
levantou-se Judas, o galileu, nos dias do recenseamento, e arrastou o povo consigo;
mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos. Desta
sedição também nos recorda Josefo no local já citado, e no livro VII, capítulos 29 e
31 da Guerra dos Judeus; alguns julgam tratar-se daqueles galileus cujo sangue
Pilatos mesclou aos sacrifícios que faziam, conforme narra Lucas [13:1] e o expõem
Ecumênio[ 16 ] e Anastácio de Nicéia[ 17 ] sobre a Escritura.
Visto que o Cristo Senhor era galileu, e congregou discípulos da Galiléia, talvez
por isso houvessem tentado urdir-Lhe calúnia sobre tal erro, quando O interrogaram:
Acaso é lícito dar tributo a César? É isso o que pensa Agostinho,[ 18 ] ao comentar
aquelas palavras do Salmo 118: Príncipes me perseguiram sem razão;[ 19 ] também
Jerônimo, no Comentário à Epístola a Tito, no início do capítulo 3.[ 20 ]
2. Não me está claro se aquele Judas Galileu referiu-se com sua sentença apenas ao
povo judeu, ou se a todos os homens. Pois poderia pretender que especialmente aos
judeus não caberia ser submetidos por imperadores pagãos, nem ter que lhes pagar
impostos, nem dever reconhecê-los como senhores, uma vez que aquele povo estava
sujeito ao regime particular de Deus. Talvez por isso, após os apóstolos, também os
cristãos tenham sido no início suspeitos deste erro ante os gentios, como o apontam
Justino[ 21 ] e Clemente de Alexandria,[ 22 ] e como explicaremos no capítulo III.

51
Se Judas se referiu absolutamente a todos os homens e a todos os príncipes
humanos, talvez tenha se fundamentado na dignidade natural do homem. Pois este foi
criado à imagem de Deus, de próprio direito, e submetido apenas a Deus; por esta
razão, não pareceria justo poder reduzi-lo à servidão ou à sujeição a outro homem.
Assim, um homem não poderia ser justamente compelido a reconhecer outro como
seu príncipe e senhor temporal; portanto, o principado político, que usurpa este
domínio, não é legítimo nem procede de Deus.
3. PRIMEIRA ASSERÇÃO: O PRINCIPADO POLÍTICO, SE DEVIDAMENTE INTRODUZIDO, É
JUSTO. – Porém a verdade católica é que o principado político, se devidamente
introduzido, é justo. Digo devidamente introduzido para excluir aquele poder
usurpado pelo tirano, por tratar-se de violência, não de verdadeiro e justo poder, uma
vez que carece de justo título. Sobre o que seja um justo título, discorreremos no
capítulo seguinte.
A referida solução assim explicada encontra-se expressamente na Sagrada
Escritura, em Provérbios [29:4]: O rei justo estabelece a terra; também [29:14]: O rei
que julga os pobres com eqüidade terá seu trono firmado para sempre. Em Sabedoria
[6:24]: Um rei sensato é a prosperidade de um povo. Nestas passagens, portanto, e
em outras semelhantes, presume-se abertamente que os reis temporais são
verdadeiros e legítimos príncipes ou senhores. Por tal motivo temos em I Pedro
[2:13]: Por amor ao Senhor, sujeitai-vos, pois, a toda ordenação humana, seja à do
rei como superior, etc. E mais abaixo [2:17]: Honrai ao rei. Também São Paulo, em
Romanos [13:1]: Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores. E pouco depois
[13:5]: Não somente pelo castigo, mas também pela consciência. Ora, ninguém está
obrigado a obedecer por consciência, a não ser a quem possui poder legítimo para
ordenar. Além disso, dentre os Padres ensinou esta verdade Clemente de Roma: sede
sujeitos a todo rei e poder naquelas coisas que agradam a Deus, assim como aos
ministros de Deus e aos juízes dos ímpios. E depois: ofereçam-lhes todo o devido
temor, todo imposto, todo tributo, etc. E conclui: esta é a lei de Deus.[ 23 ] E o
mesmo se lê em passagem posterior.[ 24 ] Também Basílio de Cesaréia, em suas
Regras Morais, observa aquilo dito na Epístola a Tito [3:1]: adverte que sejam
sujeitos aos principados e poderes.[ 25 ] Jerônimo também o confirma[ 26 ] com
exemplos tomados dos seres brutos, dizendo que também os animais mudos e os
bandos de feras seguem seus líderes. Entre as abelhas há rainhas, e os grous seguem
um dos seus em ordem literata. Um só é o imperador; um só é o juiz da nação, etc. E
parece tê-lo tomado de Cipriano, de seu livro Sobre a Vaidade dos Ídolos.[ 27 ]
4. PROVA DE NOSSA ASSERÇÃO MEDIANTE ARGUMENTO. – Também dos seguintes
testemunhos pode coligir-se em primeiro lugar a razão dessa verdade, que se toma da
necessidade desse principado e de seu poder, e conseqüentemente de seu fim, que é a
conservação da república civil e humana. Pois o homem é propenso por natureza à
sociedade civil, e dela carece sobremaneira para a conveniente conservação desta
vida, como bem o ensinou Aristóteles, na Política, livro I, capítulos 1 e 2.[ 28 ] Que
isso também é ordenado por Deus para conciliar entre os homens a concórdia e a
caridade, expõe-no Crisóstomo em longo discurso (Homilia 34) sobre a Epístola aos
Coríntios.[ 29 ] Pois uma comunidade de homens não pode conservar-se sem justiça e

52
paz, nem estas podem preservar-se sem um governador que possua o poder do
ordenamento e da coerção. Portanto, na cidade humana é necessário um príncipe
político que a mantenha na prática de seu dever. Por isso diz-se em Provérbios
[11:14]: Onde não há governador, o povo se arruína; e em Eclesiastes [10:16]: Ai de
ti, terra cujo rei é uma criança, pois não basta haver um príncipe, se este não é apto a
governar. E como pena ameaça-nos Isaías [3:4]: E dar-lhes-ei meninos por príncipes,
e efeminados os reinarão. Logo, visto que a natureza humana não poderia ser
destituída dos meios necessários à sua conservação, não se pode duvidar que, pela
natureza das coisas, e observado o direito e a justiça naturais, na sociedade civil pode
haver um príncipe político que detenha poder legítimo e suficiente. Este discurso
pode ver-se em Agostinho (Proposições sobre a Epístola aos Romanos, n. 72)[ 30 ] e
é imitado por Anselmo (SobreRomanos 13),[ 31 ] Primásio[ 32 ] e Lourenço
Justiniano (Sobre a Agonia Triunfal de Cristo, capítulo 12).[ 33 ]
5. PARA O PRINCIPADO POLÍTICO, BASTA UMA SÓ CABEÇA MÍSTICA. – Podemos
demonstrar o mesmo ponto mediante o exemplo natural do corpo humano, que não
pode conservar-se sem cabeça. Pois a humana república existe à maneira de um só
corpo, que não pode subsistir sem os vários ministros e ordens de pessoas que fazem
as vezes de membros. Donde muito menos poderia conservar-se sem um governador
e príncipe, ao qual cabe buscar o bem comum de todo o corpo.
O mesmo se explica por – digamo-lo assim – exemplos extraídos da arte, como o
do navio, que sem timoneiro necessariamente afundará. O mesmo vale para um
exército que carece de comandante, e exemplos similares. Também apontam nesta
direção os exemplos de outros animais, aduzidos por Cipriano e Jerônimo, que (e isto
é digno de nota) não apenas tendem a concluir que é necessário haver um príncipe na
república, mas que deve haver somente um. Pois, di-lo Cipriano, nunca a associação
no mando começou com confiança, nem terminou sem sangue. Ao contrário, fala-se
de um principado soberano, pois sob ele pode haver vários governantes em diversas
partes do reino, mas é necessário que todos se subordinem a um só, no qual repousa o
poder supremo. Pois, se fossem vários, não subordinados entre si nem a outro, de
nenhuma maneira se poderia fazer que a unidade ou a concórdia, assim como a
obediência, fossem preservadas com justiça e paz – como é suficientemente evidente.
Mas também isto acerca de um só príncipe se deve entender não quanto à pessoa
propriamente dita, e sim quanto ao poder, e conseqüentemente quanto à pessoa, seja
ela física, mística ou política. Pois para a regência e preservação de uma sociedade
civil humana não é absolutamente necessário que haja só um monarca (pois há outros
regimes de governo suficientes, embora talvez não tão perfeitos, como veremos mais
abaixo); quando falamos de um só principado político, entenda-se um só tribunal ou
poder único, quer ele exista numa pessoa natural, quer num conselho ou congregação
de muitos numa só pessoa fictícia, tal como numa só cabeça.
6. SEGUNDA ASSERÇÃO: O PODER POLÍTICO DO PRÍNCIPE PROVÉM DE DEUS. – Além da
razão proveniente do fim e da necessidade de tal poder, devemos mostrar sua justiça a
partir de sua origem. Por este motivo, aduza-se que o príncipe político recebe seu
poder do próprio Deus. Também isso, falando-se absolutamente, é verdade de fé; pois
São Paulo (em Romanos 13) agrega expressamente, em razão da obediência devida a

53
tal príncipe, que não há poder que não venha de Deus, e os que existem são
estabelecidos por Deus. E mais abaixo: Pois ele é ministro de Deus. Também em
Provérbios [8:15] diz-nos a sabedoria divina: Por mim reinam os reis. Também
Sabedoria [6:1]: Ouvi, ó reis, etc., e [6:3]: é do Senhor que recebestes vosso poder, é
do Altíssimo a vossa soberania. O mesmo consta em I Reis 10:9: Bendito seja o
Senhor teu Deus, a quem aprouve elevar-te ao trono de Israel;[ 34 ] também Daniel
[2:37] disse a Nabucodonosor: O Deus do céu deu-te o reino, a força e o império.
Vemo-lo também em Jeremias [27:6].
É esta mesma a doutrina comum dos Padres que expuseram as passagens
anteriores de São Paulo, especialmente Crisóstomo[ 35 ] e Orígenes, nos seus
Comentários à Epístola aos Romanos, livro 9.[ 36 ] Também Ecumênio[ 37 ] afirma
que, como a igualdade em todos era coisa sediciosa, Deus agregou a potestade. Na
homilia ao Salmo 148,[ 38 ] acerca daquelas palavras: “Os reis da terra, todos os
povos, príncipes e todos os juízes da terra”, diz-se, entre outras coisas, que foi obra
da providência de Deus o haver dividido o universo entre aqueles que gerem as
magistraturas e aqueles que os obedecem. Igualmente o diz Gregório de Nazianzo,
em sua Oração 17;[ 39 ] Epifânio, em Contra Arcônticos, 40,[ 40 ] entre outras
coisas, diz do poder do príncipe: não provém de outro lugar senão de Deus. Também
Isidoro de Pelúsio afirma que o império é formado e instituído por Deus.[ 41 ]
Teófilo de Antioquia[ 42 ] igualmente diz: adorarei a Deus, não a César, mas ciente
de que César foi ordenado por Ele; e mais abaixo defende que o rei (ou César) deve
ser honrado, e que se deve orar a Deus por isso, pois o reino, ou império, assim como
a administração das coisas, foi confiado ou demandado por Deus. O mesmo ensina
extensamente Irineu,[ 43 ] ao expor neste sentido diversos pontos da Escritura
(especialmente São Paulo) e refutar outras interpretações. E principalmente
Tertuliano,[ 44 ] na obra A Escápula, II, capítulo 2: o cristão não é inimigo de
ninguém, muito menos do imperador, a quem também é necessário que ele ame,
reverencie, honre e deseje que se salve, por saber que o imperador foi instituído pelo
próprio Deus. Finalmente, diz Agostinho, na Cidade de Deus: Não atribuamos o
poder de conceder reino e império a ninguém senão ao Deus verdadeiro, etc.[ 45 ] O
mesmo se confirma na leitura dos Padres citados na asserção anterior, e também em
outros a que me referirei no capítulo seguinte.
7. A RAZÃO DE NOSSA ASSERÇÃO. – A razão de nossa asserção muito depende do modo
em que se deve crer que Deus dá tal principado e poder, o que devemos estudar no
capítulo seguinte. Portanto, agora a provaremos brevemente. Primeiro: todas as coisas
que pertencem ao direito natural provêm de Deus como autor da natureza. Ora, o
principado político pertence ao direito natural. Logo, provém de Deus como autor da
natureza.[ 46 ] E assim esta asserção se fundamenta na precedente, pois, visto que
este principado é justo e legítimo, não pode senão ser condizente com o direito
natural; e, sendo ele necessário à conservação da sociedade humana – a qual a própria
natureza humana deseja –, por esta mesma razão ele decorre do direito natural, que
exige tal poder. Portanto, assim como Deus, que é autor da natureza, é também autor
do direito natural, assim também é autor desse primado e poder. Pois, como afirma o
Filósofo, aquele que dá a forma, dá as coisas que dela decorrem.[ 47 ]

54
Esta mesma ilação também se poderia fazer da seguinte maneira: como todo o
bem emana de Deus como de seu autor principal, consta em Tiago [1:17] que toda a
boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto; ora, o principado político é bom e
honesto, como já mostramos. Portanto, procede de Deus.
Finalmente: por esta razão, os reis terrenos são chamados na Escritura “ministros
de Deus”, como vimos. Logo, seu poder é ministerial com respeito a Deus. Assim,
Ele próprio é o autor principal de tal regime. E isso se diz principalmente daquele
poder que o príncipe político tem para punir os maus, ainda que privando-os da vida,
caso seja necessário. Pois isso não poderia ser feito sem o assentimento divino, pois
apenas Deus é senhor da vida do homem, e a isso fez menção São Paulo, ao dizer (em
Romanos 13:4) que não traz a espada sem motivo, porque é ministro de Deus, e
vingador para castigar o que faz o mal. Daí também Agostinho[ 48 ] dizer que até o
poder dos que fazem dano não procede senão de Deus; e cita ainda aquela passagem:
Por mim reinam os reis, etc.
8. DESFAZ-SE O FUNDAMENTO DO ERRO AFIRMADO NO PRINCÍPIO. – Assim, facilmente se
vê a resposta ao fundamento do erro contrário – entendido no segundo sentido que se
afirmara acima – no qual se propunha algo contrário à verdade católica. Pois, por
mais que o homem tenha sido criado livre, não o foi sem capacidade e aptidão para,
com causa justa e afim à razão, poder sujeitar-se a outro homem. Certa sujeição é até
natural ao homem, quer consideremos o modo natural da geração, como o é a
sujeição do filho ao pai, quer consideremos certo pacto, como o é a sujeição da
esposa ao marido. Assim, posta a sociedade civil, é natural a sujeição de cada uma
das pessoas ao poder público ou ao principado político, enquanto conseguinte à reta
razão natural e necessária à conveniente conservação da natureza humana. Por isso,
esta sujeição nem repugna à condição do homem, nem redunda em injúria a Deus,
pois, embora o príncipe político seja rei, legislador e senhor em seu próprio patamar,
é-o de modo muitíssimo diverso e inferior ao de Deus. Pois do homem apenas
dizemos estas coisas por certa participação, na medida em que as dizemos de um
ministro de Deus; só a Deus elas convêm principalmente e por essência.
Já se entendemos o erro no primeiro sentido acima afirmado, então não se opõe à
asserção católica por nós proposta. Pois, embora o povo judeu, por privilégio divino
particular, fosse isento de sujeitar-se com justiça aos reis pagãos, ainda assim na
própria república dos judeus pudemos encontrar legítimo principado político, como
de fato houve em seu tempo; e o mesmo principado se via também nos outros reinos e
nações gentias, e em cada príncipe soberano havia poder semelhante sobre os povos
que lhe estavam sujeitos.
Não obstante, também neste sentido a referida posição careceu de fundamento
sólido – mas agora não temos condições de ponderar, nem tampouco de examinar, se
foi com justiça e legitimamente que eles estiveram sujeitos aos romanos e tiveram de
pagar-lhes tributo, ou se o foram por injustiça e tirania. Pois tais questões nada têm a
ver com o tema presente.

[ 15 ] A expressão “principatus politicus” pode ser entendida como a estrutura formal de uma comunidade
política, constituída por suas instituições, práticas e normas. A palavra república, originada do latim, foi
amplamente utilizada na Antigüidade para designar a mesma idéia. Outro termo normalmente empregado para
tal fim é pólis, derivado da língua grega. [N.C.]

55
[ 16 ] Commentaria in Acta Apostolorum, c. 6 (PG 118, 122A).
[ 17 ] ANASTÁCIO SINAÍTA, Quaestiones et Responsiones, q. 146 (PG 89, 799D-802A).
[ 18 ] Enarrationes in Psalmos[2], 118, 31, 2 (PL 37, 1590).
[ 19 ] Salmos, 119:161.
[ 20 ] Comment. in epist. ad Titum 3, vv. 1- 2 (PL 26, 590C-D).
[ 21 ] Apologia, I, c. 17 (PG 6, 354C-355A).
[ 22 ] Stromata, VI, 7 (PG 9, 275-284B).
[ 23 ] Constitutiones Apostolicae, IV, c. 13 (PG 1, 826A).
[ 24 ] Constitutiones Apostolicae, VII, c. 16 (PG 1, 1010A).
[ 25 ] Moralia, reg. 79, c. 2 (PG 31, 859B).
[ 26 ] Epístola 125, 15 (PL 22, 1080).
[ 27 ] S. CIPRIANO DE CARTAGO,De idolorum vanitate, VIII (PL 4, 576B).
[ 28 ] 1253a2.
[ 29 ] S. JOÃO CRISÓSTOMO,InEpist. I ad Corhomil. XXXIV, 3 (PG 61, 290).
[ 30 ] PL 35, 2083-2084.
[ 31 ] Na verdade, comentários de HERVÉ DE BOURG-DIEU, exegeta beneditino francês, contemporâneo de
Santo Anselmo: Comment. in Epistolas Pauli – In Epist. ad Rom, XIII (PL 181, 774-782).
[ 32 ] PRIMÁSIO DE ADRUMETO, In epist. ad Romanus, 13 (PL 68, 496).
[ 33 ] LOURENÇO JUSTINIANO,De Triumphali Christi agone, Opera omnia, Basiléia, Froben, 1560, pp. 462-
467.
[ 34 ] No original, consta III Reis. À época da composição desta obra, eram quatro os livros dos Reis.
Posteriormente, os dois primeiros foram separados e se tornaram os dois livros de Samuel. Portanto, III e IV
Reis equivalem hoje a I e II Reis. Nesta tradução já incluiremos as referidas atualizações. [N. T.]
[ 35 ] InEpist. ad Rom.homil. XXIII, 3 (PG 60, 613-622).
[ 36 ] PG 14, 1226C-1227A.
[ 37 ] Comment. in Epist. ad Rom., XXVII (Rom. XIII, 1-8) (PG 118, 575B-562B).
[ 38 ] S. JOÃO CRISÓSTOMO,Expositio in Psalmum CXLVIII, 5 (PG 55, 491).
[ 39 ] Oratio 17, 3 (PG 35, 976).
[ 40 ] S. EPIFÂNIO DE SALAMINA,Adversus Haereses, I, 3, 40, 4 (PG 41, 684).
[ 41 ] Epistolarum, II, 216, ad Dionysium (PG 78, 659).
[ 42 ] Ad Autolycum, I, 11 (PG 6, 1042A).
[ 43 ] S. IRINEU DE LYON,Contra Haereses, V, 24 (PG 7, 1186).
[ 44 ] Ad Scapulam, II (PL 1, 700A).
[ 45 ] De Civitate Dei, V, 21 (PL 41, 167).
[ 46 ] A expressão “natureza” empregada por Suárez não condiz com a noção naturalista tão contestada por
Hume e outros filósofos modernos. Antes, natureza aqui corresponde à forma substancial, um dos sentidos
possíveis de seu significado, conforme ensina Aristóteles na Metafísica, V, 4. Isso significa que o direito
natural para o granadino não coincide com a posição estóica, segundo a qual o direito natural aproxima-se de
um direito da natureza. Quer dizer, sim, que o principado político é de direito natural por pertencer ao âmbito
da criação divina enquanto forma adequada para a comunidade humana. Por isso, não é possível afirmar que
Suárez tenha incorrido em falácia naturalista. [N. C.]
[ 47 ] De cariz tipicamente aristotélico e difundida largamente na escolástica tardia, esta sentença deriva mais
diretamente – se escolhemos ater-nos ao formato específico utilizado acima – dos comentários de Santo
Tomás ao Estagirita. Cf. De Caelo et Mundo, III, lect. 7, n. 8.: “aquele que gera (...), quando dá a forma, dá
por conseqüência o movimento natural, assim como todos os acidentes naturais que se seguem à forma”. Cf.
também Contra Gentiles, III, c. 99, n. 4: “pois aquele que gera, que é o que dá a forma, dá todas as
propriedades que dela se seguem”. [N. T.]
[ 48 ] De Natura Boni contra Manichaeos, 32 (PL 42, 561).

56
Capítulo II
Se o principado político provém imediatamente de Deus,
isto é, se procede por instituição divina
1. O rei Jaime opina que o principado político procede imediatamente de Deus. 2-4.
O que se requer para que um poder seja imediatamente concedido por Deus. 5. A
soberania civil só é conferida imediatamente por Deus à comunidade perfeita.
Provamos a primeira parte da asserção com um primeiro argumento. 6. Provamo-la
com um segundo argumento. 7. Prova-se a segunda parte da asserção. 8. Objeção.
Solução. 9. De que modo se diz que a democracia procede do direito natural. 10.
Nenhum principado político procede imediatamente de Deus. 11-12. Confirmação
pelos Santos Padres. 13. Prova-se a conclusão mediante a razão. 14. Demonstra-se a
mesma conclusão mediante exemplos. 15. Objeção. 16. A vontade humana pode
intervir de dois modos na transferência de um poder que emana de Deus. Primeiro
modo. 17-20. Segundo modo.

1. O REI JAIME OPINA QUE O PRINCIPADO POLÍTICO PROCEDE IMEDIATAMENTE DE DEUS.


– A questão do capítulo precedente foi tratada em razão desta que agora proponho.
Nela não tínhamos nenhuma contenda com o rei da Inglaterra, mas foi necessário
apresentá-la para que se possa entender o tema presente. Nele, o sereníssimo rei não
só opina de modo novo e singular, mas também investe acerbamente contra o cardeal
Belarmino, por este haver dito que a autoridade não é concedida por Deus aos reis
imediatamente, à maneira como o é aos pontífices.[ 49 ] Afirmou Jaime, então, que o
rei recebe seu poder não do povo, mas imediatamente de Deus, e procura provar sua
posição com alguns argumentos e exemplos, cuja eficácia exporemos no capítulo
seguinte.
2. O QUE SE REQUER PARA QUE UM PODER SEJA IMEDIATAMENTE CONCEDIDO POR DEUS.
– Mas, embora esta controvérsia não pertença diretamente aos dogmas da fé (pois
dela nada de definitivo se pode demonstrar a partir da divina Escritura ou da tradição
dos Padres), ainda assim deve ser diligentemente tratada e explicada, não só porque
pode gerar ocasião de erro em outros dogmas, mas porque a referida asserção do rei –
da maneira em que a assevera e quer que seja entendida – é coisa nova e singular e
parece haver sido elaborada para exagerar o poder temporal e atenuar o espiritual; e,
finalmente, porque julgamos que a antiga sentença recebida do ilustríssimo
Belarmino é verdadeira e necessária. Para que o mostremos, é necessário antes
esclarecer o que significa um poder proceder imediatamente de Deus, ou – o que é o
mesmo – Deus ser causa imediata e autor de um poder.
Pois, para que Deus seja causa próxima, requer-se especialmente que Ele confira
tal poder por sua própria vontade; não basta que Deus atribua o poder à maneira de
causa primeira e universal. Porque, embora também possamos dizer de certo modo

57
que Deus realiza ou provê imediatamente tudo aquilo que d’Ele decorre como de
causa primeira, quer sob razão de virtude próxima, quer como supósito imediato
(como o distinguem os filósofos), ainda assim este modo de realização não nos basta
no caso presente, pois não há nenhum poder que deste modo não provenha de Deus
como causa primeira, e (por conseqüência) imediatamente segundo tal gênero.
Pois também assim aquele poder conferido imediatamente pelos homens, pelo rei
ou pelo Pontífice é dado por Deus enquanto causa primeira que influi imediatamente
em tal efeito e no ato da vontade criada, pela qual o poder é dado proximamente. Ora,
tal poder não se diz proceder imediatamente de Deus simpliciter, mas apenas
secundum quid.[ 50 ] Pois é concedido proximamente pelo homem, e dele depende.
Portanto, só se diz de modo absoluto que um poder é dado imediatamente por
Deus quando apenas Deus é causa próxima mediante sua própria vontade e dá per se
tal poder. E é desta maneira que falamos no presente âmbito; do contrário seria
frívola e inútil esta disputa.
3. Além disso, cabe ainda distinguir dois modos pelos quais Deus pode e costuma
conceder um poder imediatamente, isto é, somente por sua própria capacidade e
vontade. Um deles é dando um poder que está conectado necessariamente, pela
natureza das coisas, a alguma natureza criada pelo próprio Deus. E isto pode
considerar-se facilmente nas faculdades físicas. Pois, criando Deus a alma, dá-lhe
imediatamente intelecto e vontade – uma vez que, embora estas potências fluam
naturalmente da própria alma, apenas Deus cria a alma imediatamente, e por isso
dizemos que Ele confere imediatamente as potências que dela derivam.
E o mesmo se dá – guardadas as proporções – no poder moral: o poder do pai
sobre o filho é um poder moral, e é conferido imediatamente por Deus enquanto autor
da natureza; não como um dom peculiar totalmente distinto da natureza, mas como
conseqüente a ela por necessidade, suposto o fundamento da geração. Igualmente, em
sentido inverso, a sujeição do filho ao pai é natural e procede de Deus imediatamente,
não por uma instituição peculiar acrescentada à natureza, mas como conseqüente por
necessidade à natureza racional assim produzida.
Do segundo modo, o poder é imediatamente dado por Deus per se (por assim
dizer) e por doação particular, não enquanto necessariamente conectada com a
criação de uma coisa, mas enquanto voluntariamente acrescentada por Deus a certa
natureza ou pessoa. Disto podemos dar exemplos como que físicos[ 51 ] e exemplos
morais. Pois o poder próximo para realizar milagres é algo como físico, mas Deus o
confere a quem Ele quer, não por algum dever, senão por determinação de sua própria
vontade. Também o poder de jurisdição dado a Pedro, por exemplo, era moral, mas
Deus o conferiu imediata e diretamente, per se. A razão da distinção, pois, não é
outra senão que os próprios poderes podem ser de variados tipos e ordens, e que Deus
é capaz de operar de dois modos: conaturalmente e preternaturalmente (ou
sobrenaturalmente).
4. Portanto, como pretende o monarca que Deus dá imediatamente aos reis o poder
temporal, deve-se ver se tal asserção poderia ser verdadeira de algum dos modos
mencionados. Antes, porém, devemos tratar do sujeito ao qual se diz que Deus daria
imediatamente esse poder, e para que governo (e qual tipo de governo) se julga que

58
Ele o daria. Pois pode-se considerar tal poder, ou na medida em que ele está (ou pode
estar) em todo o corpo político da comunidade ou sociedade humana, ou enquanto ele
existe (ou pode existir) nestes ou naqueles membros de uma mesma comunidade.
Ademais, pode-se considerá-lo ou de modo precisivo[ 52 ] e abstrato, ou
determinado a certa espécie de governo político. Ora, como consta na doutrina moral
comum dos filósofos, três podem ser os regimes da república[ 53 ] humana: o
monárquico, com um príncipe soberano que corresponde a uma só pessoa; o
aristocrático, com um conselho ou tribunal soberano composto de vários optimates; e
o democrático, regido pelos sufrágios de todo o povo. Estes são os três modos
simples, mas deles podem também compor-se outros que participem de dois deles, ou
ainda dos três; tais são os chamados governos mistos. Portanto, o principado político
pode considerar-se, ou per se e precisivamente, como certo poder soberano de reger
civilmente uma república, com abstração deste ou daquele modo de regência (quer
simples, quer misto), ou enquanto determinado a certa espécie de regime dentre os
que enumeramos.
Assim propostas e distintas as coisas, poderemos estabelecer – sem qualquer
ambigüidade e com razão evidente – de que forma o principado político de fato
procede imediatamente de Deus, mas não é dado aos reis e senados supremos
imediatamente por Ele, e sim pelos homens.
5. A SOBERANIA CIVIL SÓ É CONFERIDA IMEDIATAMENTE POR DEUS À COMUNIDADE
PERFEITA. PROVAMOS A PRIMEIRA PARTE DA ASSERÇÃO COM UM PRIMEIRO
ARGUMENTO.– Em primeiro lugar, a soberania civil, vista em si mesma, é dada
imediatamente por Deus aos homens congregados numa comunidade ou sociedade
política perfeita, não em razão de uma instituição particular e como que positiva, ou
de uma doação totalmente distinta da produção da natureza humana, mas antes pela
conseqüência natural da força[ 54 ] de sua criação primeira. Assim, pela força de tal
doação não resulta esse poder numa só pessoa, nem numa peculiar congregação de
muitas, mas em todo o povo perfeito,[ 55 ] ou seja, no corpo da comunidade.
Esta posição, com respeito a todas as suas partes, é comum não apenas aos
teólogos, mas também aos jurisperitos, que prontamente mencionarei. Agora
demonstrarei pela razão cada uma de suas partes.
A primeira e a segunda se dão porque esse poder político é natural. Pois, mesmo
sem qualquer intervenção da revelação sobrenatural ou da fé, e apenas pelo ditame da
razão natural, esse poder seria reconhecido na república humana como absolutamente
necessário para sua conservação e eqüidade. Isso é sinal, portanto, de que se encontra
na comunidade como propriedade conseqüente à sua natureza ou criação, e à sua
instituição natural. Pois, se além disto fosse necessária uma doação ou concessão
especial de Deus, sem conexão com a natureza, ela não poderia constar pela pura
razão natural; antes seria forçoso que fosse manifestada mediante revelação aos
homens, para que dela pudessem ter certeza. E isso é falso, como se vê pelo que
dissemos.
6. PROVAMO-LA COM UM SEGUNDO ARGUMENTO. – Que seja necessário afirmar que tal
poder procede imediatamente de Deus ao menos desta maneira, isto concluímos
facilmente a partir dos mesmos princípios; pois aquilo que se segue imediatamente à

59
natureza é dado pelo autor próprio e imediato desta natureza, como afirmei. Ora, esse
poder é certa propriedade conseqüente à natureza humana enquanto congregada num
só corpo político, conforme demonstramos. Logo, é dada imediatamente por Deus,
enquanto autor e provedor de tal natureza.
Isto se pode provar, ademais, porque esse poder procede de Deus (como o
expusemos no capítulo anterior), e com respeito a tal comunidade não intervém entre
Deus e ela nenhum meio (por assim dizer) pelo qual o poder lhe seja atribuído; pois,
pelo próprio fato de que os homens se congreguem no corpo de uma só sociedade ou
república, cria-se nela o referido poder, sem intervenção de qualquer vontade criada –
e isso com tamanha necessidade, que não poderia ser impedido pela vontade humana.
Isso é sinal, portanto, de que procede imediatamente de Deus, intervindo apenas
aquela resultância natural (ou conseqüência da natureza) e o ditame da razão natural,
a qual mais demonstra esse poder do que apenas o exibe. Ora, a imediata emanação
desse poder por parte de Deus, se declarada deste modo, jamais foi negada pelo
cardeal Belarmino: antes ele a supôs, pois não postulou nenhum intermediário entre
Deus e o povo; ao contrário, quis que entre o rei e Deus fosse o povo o intermediário
pelo qual o rei recebe tal poder. E são muito diferentes entre si estas posições, como
prontamente explicarei.
7. PROVA-SE A SEGUNDA PARTE DA ASSERÇÃO. – Disto temos também como evidente –
como dizíamos na última parte de nossa asserção – que esse poder, considerado de
modo precisivo, enquanto procede do autor da natureza como por conseqüência
natural, não reside numa só pessoa, nem em qualquer comunidade particular, seja de
optimates, seja de quaisquer facções do povo. Isso porque, pela natureza das coisas,
este poder só se dá na comunidade inteira, não numa só pessoa ou senado. Logo, visto
que procede imediatamente de Deus, só se o concebe como existente em toda a
comunidade, não em alguma parte dela. E entenda-se “parte da comunidade” não
apenas no sentido individual ou material (por assim dizer), mas também enquanto
concebida formal, indeterminada ou vagamente. Ou seja, não ocorre imediatamente
numa determinada pessoa (Adão, Tiago, Filipe), nem exige por natureza que se
encontre num única pessoa – e o mesmo vale proporcionalmente para um senado,
quer se o considere materialmente (como constando de tais ou quais pessoas), quer
formalmente, enquanto congregação de certo tipo ou número de pessoas.
O motivo disto é manifesto: por força da razão natural, não se pode conceber
motivo algum pelo qual este poder se determine a uma só pessoa, ou a certo número
de pessoas inferior a toda a comunidade, ou a este número mais que qualquer outro.
Logo, no que deriva da concessão natural, ele se encontra apenas na comunidade.
Afirmamos, por fim, que pela mera força da razão natural não se determina um
principado político como monarquia, nem como aristocracia simples ou mista, pois
não há nenhum motivo que convença ser necessário um modo específico de regime. E
confirma-o o próprio uso, pois diversas regiões ou nações elegeram diversos modos
de governo, e nenhuma delas opera diretamente contra a razão natural ou contra a
imediata instituição divina. E isso nos sinaliza que o poder político não procede
imediatamente de Deus para ser dado a uma só pessoa, seja príncipe, rei ou imperador
– o que, do contrário, seria uma monarquia instituída imediatamente por Deus – nem
a um senado em particular, ou congregação específica de uns poucos príncipes – o

60
que, do contrário, seria uma aristocracia instituída imediatamente por Deus. E o
mesmo argumento poderia mover-se contra qualquer dos governos mistos.
8. OBJEÇÃO. SOLUÇÃO. – Mas dirás que, se esse raciocínio fosse eficaz, provaria
também que Deus não deu o poder político imediatamente a toda a comunidade, pois
de outro modo a democracia surgiria imediatamente por instituição divina, tal como,
em oposição a nós, inferiu-se sobre a monarquia e a aristocracia.
Mas isso não é menos falso e absurdo na democracia do que nas demais formas de
governo: primeiro, porque, assim como a razão natural não determina como
necessária a monarquia ou a aristocracia, tampouco o faz quanto à democracia; e
muito menos ela, que é a mais imperfeita de todas, como o atesta Aristóteles e é
evidente por si. Segundo, porque, se tal instituição fosse divina, não poderia ser
alterada pelos homens.
Respondemos, então, negando a primeira ilação, pois do fato de que tal poder não
seja dado por um Deus que institui uma monarquia ou aristocracia, antes se conclui
necessariamente que foi dado a toda a comunidade, uma vez que não resta nenhum
sujeito humano (por assim dizer) a quem se poderia dá-lo.
À segunda ilação – a saber, a de que a democracia nasceria por instituição divina
– respondemos que, se se a entende enquanto instituição positiva, negamos tal
conclusão. Se, por outro lado, se a entende enquanto instituição como que natural,
isso pode e deve admitir-se sem nenhum inconveniente. Pois é muito notável a
diferença entre estas formas de governo político: a monarquia e a aristocracia não
puderam introduzir-se sem alguma instituição divina ou humana, visto que a pura
razão natural, por si mesma, não determina qualquer destas formas como necessária,
conforme foi dito. Portanto, como na natureza humana – considerada sem a fé ou a
revelação divina – não tem lugar uma instituição positiva, conclui-se necessariamente
que tais formas de governo não procedem imediatamente de Deus.
Já a democracia pode existir sem instituição positiva, por mera instituição ou
emanação natural, quando da mera negação de uma instituição nova ou positiva; e
isso porque a própria razão natural determina que a soberania política se segue
naturalmente à comunidade humana perfeita, e que, por força desta mesma razão,
pertence a toda a comunidade – a não ser que mediante nova instituição ela se
transfira a outro, uma vez que por ditame da razão tampouco tem lugar outra
determinação, nem se postula outra mais imutável.
9. DE QUE MODO SE DIZ QUE A DEMOCRACIA PROCEDE DO DIREITO NATURAL. – Esse
poder, portanto, na medida em que é imediatamente dado por Deus à comunidade,
pode dizer-se (segundo a maneira de expressar-se dos jurisperitos) pertencer ao
direito natural à maneira negativa, não positiva – ou melhor, ao direito natural
concessivo, não simpliciter preceptivo. Pois com certeza o direito natural dá per se e
imediatamente esse poder à comunidade, embora não prescreva absolutamente que
ele nela permaneça sempre, nem que por ela tal poder seja exercido imediatamente,
mas apenas enquanto esta mesma comunidade não determina outra coisa, ou
enquanto uma mudança não houver sido feita legitimamente por alguém dotado de
poder. Seja exemplo a liberdade do homem, que se opõe à servidão: ela é de direito
natural, porque pela mera força do direito natural o homem nasce livre, e não pode

61
ser levado à servidão senão a título legítimo. O direito natural não prescreve que todo
homem sempre permaneça livre, ou (o que é o mesmo) não proíbe simpliciter que
seja levado à servidão, mas apenas que isso não ocorra sem seu livre consentimento,
ou sem justo título e poder. Assim, portanto, a perfeita comunidade civil é livre por
direito natural e não se sujeita a nenhum homem fora dela. Ela inteira possui em si
um poder que, caso não se altere, permanece democrático; não obstante, pode privar-
se de tal poder e transferi-lo a uma pessoa ou senado, seja por sua própria vontade,
seja por [vontade de] outro que possua poder e justo título.[ 56 ]
10. NENHUM PRINCIPADO POLÍTICO PROCEDE IMEDIATAMENTE DE DEUS. – Assim,
concluímos que nenhum rei ou monarca obtém ou obteve (segundo lei ordinária) o
principado político imediatamente de Deus, mas mediante vontade e instituição
humanas. É este um egrégio axioma da teologia, não como o proferiu o rei, à maneira
de chiste,[ 57 ] mas verdadeiramente: pois é maximamente verdadeiro se bem
compreendido, e maximamente necessário para entender os fins e limites do poder
civil. E não é algo novo, nem inventado pelo cardeal Belarmino, como o referido
monarca parece atribuir-lhe.[ 58 ] Pois muito antes ensinou-o o cardeal Caetano, em
sua Apologia, ou Tract. 2 de Auctoritat. Papae, p. 2, c. 10;[ 59 ] também Castro, no
livro I de De Leg. Poenal., c. 1;[ 60 ] e Driedo, no livro I de De Libertat. Christ., c.
19;[ 61 ] e Vitória, em Relect. de Potestat. Civil., n. 8 e ss.;[ 62 ] o mesmo consta
também em suas Relect. 2 De Potestat. Eccles., concl. 3 e ad. 1.[ 63 ] Ainda o diz
Soto, no livro IV de De Iustit., q. 2, art. 1, no discurso de conclusão 1, e de modo
geral na questão 4, art. 1.[ 64 ] Seguiu-os Luís de Molina, no Tractat. 2 de De Iustit.,
disp. 21.[ 65 ] E insinua-o Tomás de Aquino, na Summa Theologica Ia-IIae, q. 90, art.
3, e q. 97, art.3, e mais claramente em IIa-IIae, q. 10, art.10.
E não só entre os teólogos, senão também entre os juristas sustenta-se comumente
essa doutrina, tal como exposto no Digesto;[ 66 ] entre os modernos, veja-se
Azpilcueta Navarro[ 67 ] e também Covarrubias,[ 68 ] que também citam outros
autores.
11. CONFIRMAÇÃO PELOS SANTOS PADRES. – Além disso, essa verdade pode
depreender-se dos santos Padres. Primeiro, porque freqüentemente afirmaram que o
homem foi criado por Deus nobre e livre, e que apenas recebeu imediatamente de
Deus o poder de dominar os animais brutos e as coisas inferiores; já o domínio do
homem sobre outros homens pela vontade humana foi introduzido pelo pecado ou por
certa adversidade. Ambrósio no-lo explica em Sobre Colossenses 3,[ 69 ] ao fim; e de
modo mais extenso o faz Agostinho, na Cidade de Deus XIX, 15,[ 70 ] e no livro
Questões sobre o Gênesis, q. 153;[ 71 ] também Gregório, na Moral, XXI, c. 10 (11
em outras fontes)[ 72 ] e na Pastoral, parte II, cap. 6.[ 73 ] Pois o que dizem da
liberdade de cada homem – e da servidão, que é o seu oposto – é, pelo mesmo
raciocínio, também verdadeiro da pessoa mista ou fictícia de uma comunidade ou
sociedade humana. Pois, na medida em que é regida imediatamente por Deus pelo
direito natural, ela é livre e sui iuris, e sua liberdade não exclui, mas antes inclui o
poder de reger a si própria e de imperar sobre seus membros, ao passo que exclui a
sujeição humana a outro homem, o que se dá em razão do direito natural, pois Deus a
nenhum homem deu imediatamente tal poder, enquanto não for transferido a alguém

62
por instituição ou eleição humana. Confirma-o ainda egregiamente Agostinho, nas
Confissões, livro III, capítulo 8,[ 74 ] ao dizer que é pacto geral da sociedade
humana obedecer a seus reis. Pois com tais palavras afirma que o principado régio e
a obediência a ele devida têm fundamento no pacto da sociedade humana, e que
portanto não resulta de instituição imediata de Deus, uma vez que o pacto humano se
contrai mediante a vontade humana.
12. E talvez seja este o pacto que recebe o nome de lei régia no livro I de De
Constitut. Princip., onde afirma Ulpiano[ 75 ] que o beneplácito do rei tem vigor
porque mediante a lei régia, que se deu sobre seu governo, o povo lhe transferiu todo
o mando e poder que possuía. Estas palavras foram aprovadas e transcritas pelo
imperador Justiniano, no parágrafo Sed et Quod Principi, em suas Instituições.[ 76 ]
Pois tal lei não se diz “régia” porque tenha sido proclamada por algum rei, mas
porque versa sobre o poder régio, como consta da mesma obra, livro I, onde também
se a entende como constituída pelo povo, o qual criou e instituiu a dignidade do rei,
transferindo-lhe seu poder – e assim o expõem igualmente os doutores e as glosas
sobre este ponto.
Tampouco pôde aquela lei dar-se à maneira de mero preceito, pois por ele o povo
abdicaria da soberania de jurisdição. Portanto, deve entender-se como constituída à
maneira de pacto, pelo qual o povo transferiu o poder ao príncipe sob o ônus e a
obrigação de promover os cuidados da república e administrar-lhe a justiça – e o rei
aceitou tanto este poder quanto sua condição. Por esse pacto fez-se firme e estável a
lei régia, ou lei de poder régio. Portanto, não é imediatamente de Deus, mas do povo,
que os reis recebem este poder. Por isso, em 1. 2, no parágrafo Novissime, de De
Origine Iuris,[ 77 ] diz-se: Visto que o senado não podia reger bem todas as
províncias, uma vez instituído um príncipe foi-lhe concedido o direito de estabelecer
como norma o que ele constituísse.
13. PROVA-SE A CONCLUSÃO MEDIANTE A RAZÃO. – Do que foi dito, facilmente
coligimos os motivos de tal asserção; pois diz-se que um poder chega a alguém
diretamente de Deus, seja porque lhe advém unicamente pela vontade de Deus, seja
por força da mera razão natural ou de alguma instituição divina. Mas o poder do qual
tratamos não provém de Deus aos reis por nenhum destes modos (falando-se em
termos de lei ordinária), porque nem é dado imediatamente pela vontade especial de
Deus (pois tal lei nem nos foi revelada, nem deu-se a conhecer aos homens), nem
tampouco o direito natural dita por si que deva haver nos reis tal poder, como
demonstramos. Finalmente, Deus não realizou nenhuma instituição, determinação ou
transferência de tal poder aos reis, o que consta do próprio costume. Mesmo porque,
do contrário, tal instituição seria imutável, e seria iníqua toda mudança nela feita
pelos homens; todas as cidades, reinos e repúblicas deveriam observar uma mesma
instituição, pois a razão não é maior para uma do que para outra, nem uma recebeu
mais do que a outra tal instituição mediante revelação divina. Ela é, portanto, uma
instituição humana, porque feita imediatamente por homens. Logo, é pelos homens
que o poder chega aos reis, cuja dignidade é criada com tal instituição.
Mas diz-se que mediatamente Deus dá este poder aos reis: primeiro, porque
imediatamente o deu o povo, que ao rei o transferiu; segundo, porque Deus consente

63
com tal transferência feita proximamente pelo povo e com ela coopera enquanto
causa primeira e universal; terceiro, porque a aprova e a quer preservar.
Assim também o faz a lei humana: tanto obriga imediatamente pela vontade do
príncipe humano que a proclama, quanto mediatamente pela força da vontade de
Deus, que deseja que se obedeça aos príncipes legítimos, conforme o que diz Pedro,
em sede submissos, etc., pois tal é a vontade de Deus.
14. DEMONSTRA-SE A MESMA CONCLUSÃO MEDIANTE EXEMPLOS. – Finalmente, nossa
posição pode demonstrar-se mediante este exemplo do domínio humano sobre as
coisas inferiores. Falando simpliciter, todas as coisas das quais o homem tem domínio
foram-lhe dadas por Deus, mas não do mesmo modo. Pois Deus não deu
imediatamente (refiro-me à lei ordinária) o domínio de algo a um homem próprio e
particular; ao contrário, Ele imediatamente fez comuns todas as coisas.
Os domínios privados foram introduzidos em parte pelo direito das gentes, em
parte pelo direito civil, e não obstante também estes domínios privados provêm
mediatamente de Deus: primeiro, porque têm origem na doação primeira de Deus;
segundo, porque em sua providência geral Ele concorre para eles; terceiro, porque
deseja conservá-los, uma vez constituídos. E assim o diz Agostinho, ao final do
tratado 6 sobre João:[ 78 ]Por que cada um possui o que possui? Acaso não é pelo
direito humano? Pois, pelo direito divino, é do Senhor a terra e sua plenitude,
enquanto pelo direito humano dizemos “é minha esta fazenda, é minha esta casa, é
meu este servo”. E em seguida conclui: Deus distribuiu todos os direitos humanos ao
gênero humano mediante os imperadores e reis temporais. Ora, também assim,
guardadas as proporções, é Deus quem distribui os reinos e principados políticos, mas
mediante os homens, ou o consentimento dos povos, ou outra instituição humana
semelhante.
15. OBJEÇÃO. – Mas dirá talvez alguém que, segundo esta posição, apenas podemos
provar que o poder régio não é dado por Deus a uma pessoa sem a intervenção da
vontade ou da ação humana, o que não bastaria para afirmar que não é dado
imediatamente por Deus – pois também a dignidade apostólica foi dada a Matias
mediante a ação de outros apóstolos, e ainda assim ela lhe foi dada imediatamente por
Deus. De modo semelhante, o Sumo Pontífice é eleito pelos cardeais, e ainda assim
recebe o poder imediatamente de Deus. Algo parecido também ocorre no morgadio[
79 ] por hereditariedade: este direito se obtém do último antepassado, e ainda assim
se diz que os bens são obtidos imediatamente do primeiro instituidor do morgadio,
pois uma pessoa consegue o morgadio apenas por força da vontade deste, por menos
que o possa desejar o parente próximo. Assim, portanto, embora os reis temporais
obtenham a dignidade régia por sucessão, recebê-la-iam imediatamente de Deus, por
força da instituição primeira.
16. AVONTADE HUMANA PODE INTERVIR DE DOIS MODOS NA TRANSFERÊNCIA DE UM
PODER QUE EMANA DE DEUS. PRIMEIRO MODO. – Ora, tal objeção não debilita, mas
antes confirma as afirmações que fizemos: primeiro, porque os exemplos não são
semelhantes; segundo, porque não afirmamos que basta qualquer vontade ou ação
humana interposta para que a cessão de poder por Deus deixe de ser imediata, mas

64
isso apenas foi dito de uma mudança e transferência particular feita por uma nova
instituição humana.
Pois dois são os modos em que a ação ou vontade humana pode intervir na
transferência de um poder que tem origem em Deus. Primeiro, apenas designando ou
constituindo a pessoa que sucederá na dignidade instituída por Deus, mas mantendo-a
no modo em que foi instituída e sem autoridade ou poder para mudá-la, aumentá-la
ou diminuí-la. Este modo se observou na Lei Antiga no tocante à dignidade pontifícia
segundo a sucessão carnal. Na Nova Lei, faz-se por legítima eleição, pela qual é
designada uma pessoa.
Logo, quanto a este modo de sucessão, nada se opõe a que o poder seja conferido
imediatamente por Deus; e é apenas isso o que provam os referidos exemplos. A
razão disto é que sempre se confere o poder por força da instituição primeira e da
vontade de Deus – e disto é sinal ele haver sido conferido íntegra e imutavelmente tal
como foi instituído, e que também a sucessão tenha origem no mesmo poder e pela
mesma instituição: na Lei Antiga, a sucessão no pontificado era mediante geração
carnal, pois assim fora instituída por Deus. Agora, a designação da pessoa faz-se de
outro modo, mais espiritual, pois a tradição eclesiástica ensina que assim o instituiu
Cristo, que determinou a seu vigário o definisse mediante a eleição ou designação de
uma pessoa.
17. SEGUNDO MODO. – Mas a transferência de poder pelo homem também pode dar-se
de outro modo: mediante uma nova doação ou instituição, que transcende a mera
designação da pessoa. E assim, embora o poder tenha seu fundamento numa doação
anterior feita a outro, aquela transferência que se dá posteriormente é simpliciter de
direito humano, não divino, e procede imediatamente do homem, não de Deus. Seja
exemplo a servidão: se algum homem se vende ao serviço de outro, aquela servidão é
simpliciter de direito humano, e o poder que o senhor recebe sobre o servo foi dado
imediatamente pelo próprio servo, mediante o poder e liberdade naturais que este
recebeu imediatamente do autor da natureza. E o mesmo se dá no nosso caso, acerca
da sujeição de toda a comunidade humana a um só príncipe; pois procede
imediatamente da vontade da comunidade, e portanto procede imediatamente do
homem e do direito humano, embora tenha origem no poder natural sobre si que esta
comunidade recebeu de seu autor. E a razão é clara: nestes e noutros casos
semelhantes, nem basta a designação da pessoa, nem é tal designação separável da
doação ou contrato (ou quase-contrato) humano, para que tenha o efeito de conceder
o poder. Pois a mera razão natural não induz a uma transferência de poder de um
homem a outro unicamente pela designação da pessoa, sem o consentimento e a
eficácia da vontade daquele a partir do qual o poder deve ser transferido ou
concedido.
Por tal motivo, não se pode conceber uma transferência de poder feita
imediatamente por Deus – seja mediante geração, eleição ou semelhante desígnio
humano – exceto se tal sucessão procede de uma instituição divina positiva. Ora, o
poder régio não procede de instituição divina positiva, mas tem origem apenas na
razão natural mediada pela livre vontade humana; portanto, é necessário que proceda
do homem que a confere imediatamente, não de um que apenas designe a pessoa.

65
18. Disto também provém – o que é claro indício da verdade dessa posição – que esse
poder régio não seja igual em todos os monarcas, nem possua as mesmas
propriedades de duração, perpetuidade, sucessão e semelhantes. Pois nalguns o poder
é uma monarquia simpliciter, já noutros há certa mescla de aristocracia, ou certa
dependência de um senado no tocante a sufrágios decisivos, às vezes apenas em
certos casos, às vezes com respeito a todos os casos mais graves, às vezes com muitos
votantes, às vezes com poucos. Ademais, no caso de alguns reis foi dado o poder não
apenas à pessoa, mas à sua geração (por assim dizer), de modo que possam transferir
sua dignidade aos filhos e netos; noutros casos, o poder é dado à pessoa, sem
sucessão carnal, de modo que, morto o rei, outro seria eleito, tal como vemos no reino
da Polônia e no próprio Império Romano. Poderia ainda o rei ser eleito para um
determinado tempo, caso nalgum lugar isso fosse assim introduzido no princípio, uma
vez que tal coisa por natureza não repugna [à razão]. Logo, temos sinal manifesto de
que se trata de uma instituição humana imediata, e que portanto pode receber toda a
variedade que não repugne à razão e pôr-se sob o arbítrio humano.
19. Disto temos finalmente que o poder ou domínio régio pode obter-se de vários
modos – que aqui também nos é necessário registrar, para que a solução que
propomos seja mais perfeitamente entendida.
O primeiro modo de conferir o poder a um só príncipe, quando da instituição
primeira, é pelo consentimento voluntário do povo. Ora, este consentimento pode
entender-se de vários modos. Um deles é que ocorra paulatina e quase
sucessivamente, à medida que o povo cresce. Por exemplo, na família de Adão ou de
Abraão, ou outra semelhante, no princípio se obedecia a Adão enquanto pai de
família; depois, crescendo o povo, pôde continuar aquela sujeição, e pôde aquele
consentimento estender-se a obedecer a Adão como a um rei, à medida que aquela
comunidade começava a tornar-se perfeita. E talvez muitos reinos (e em particular o
primeiro reino da sociedade romana) tenham assim começado. E deste modo, se
considerarmos corretamente, o poder régio e a comunidade perfeita podem começar
simultaneamente.
Um segundo modo é quando uma comunidade já perfeita elege voluntariamente
um rei, ao qual transfere seu poder. Trata-se do modo mais conveniente e mais afim à
razão. Depois que essa transferência se estabelece de maneira firme e perpétua, não é
então necessária uma nova eleição ou um novo consentimento do povo: basta o que
se deu nos primórdios do reino, para que, por força daquele fato, a própria dignidade
e poder régios se transfiram por sucessão. E deste modo nos reinos sucessivos pode-
se dizer que os reis obtêm poder imediatamente do povo, não por um novo
consentimento, mas por força do antigo. Pois os filhos obtêm dos pais os mesmos
reinos em virtude da primeira instituição, mais do que pela vontade dos pais: ainda
que não o queira o pai, o primogênito o sucede no reino, e portanto o pai se encontra
na condição de aplicante ou constituinte desta pessoa à qual seu próprio poder é
transferido, por força daquele primeiro contrato.
20. Além deste modo voluntário, às vezes certas regiões ou povos livres sujeitam-se
involuntariamente aos reis por meio da guerra. Isso pode dar-se justa ou injustamente.
Pois, se a guerra teve justo título, o povo realmente se priva do poder que possuía, e o

66
príncipe que prevaleceu contra ele obteve verdadeiro direito e domínio de tal reino:
suposta a justiça de uma guerra, é justa a sua pena, tal como ocorre aos prisioneiros
que numa guerra justa são privados da liberdade concedida pela natureza e tornam-se
verdadeiramente servos por justa pena. E por isso afirmei acima que o poder régio se
funda num contrato ou num quase-contrato. Pois a justa punição de um delito faz as
vezes de contrato quanto ao efeito de transferir domínios e poderes, e portanto deve
ser igualmente observado.
Por outro lado, é mais comum que se ocupe um reino por guerra injusta, e em
geral foi por este modo que os impérios mais ilustres do mundo se engrandeceram.
Neste caso, em princípio não se adquire o reino nem o poder verdadeiros, visto que
falta o título de justiça; já com o passar do tempo, ocorre que o povo consinta
livremente, ou que por seus sucessores o reino prescreva com boa fé; então cessará a
tirania e começará o verdadeiro domínio e poder régio.
Assim, sempre se obterá o poder por algum título humano, ou imediatamente pela
vontade humana.

[ 49 ] Apologia pro Iuramento Fidelitatis, Praefatio, Londres, Opera Regia, 1609, pp. 139-140.
[ 50 ] Simpliciter e secundum quid correspondem à versão latina dos termos aristotélicos ἁπλός e κατὰ τί.
Herdados pela escolástica como um todo e utilizados normalmente sem tradução vernácula, significam
respectivamente em sentido absoluto e segundo algo (ou seja, sob certo aspecto). Cf. Topica, B, 11, 115a25-
b35. [N. T.]
[ 51 ] “(...) quasi physica”. O lat. “quasi” não nos indica algo que está “no limiar” ou “à beira” de ter certa
característica, mas algo que dela participa em certa medida ou sentido limitado. Vertê-lo por “como” ou
“como que” é solução que, embora não seja a ideal para a fluidez de leitura, evita falhas de compreensão. Já
nos casos da aplicação deste advérbio a substantivos, o circunlóquio é desnecessário, por nos valermos do
hífen; vejam-se, por exemplo, termos como “quase-contrato” e “quase-prova”. [N. T.]
[ 52 ] O advérbio latino praecise não tem aqui o sentido de “exatidão”, mas refere-se àquela consideração em
que prescindimos das condições particulares em que algo se encontra imerso. Este modo de consideração é
também significado na escolástica pelo termo praecisive, e preferimos vertê-lo a partir desta variante, para
evitar confusões derivadas de traduzi-lo como “precisamente” ou “de modo preciso”. [N. T.]
[ 53 ] Naturalmente, o termo república deve aqui ser lido no contexto clássico e amplo de coisa pública, ou
seja, a comunidade e sua estrutura de governo. [N. T.]
[ 54 ] O lat. vis significa “força” no sentido amplo de poder, virtude, capacidade. Utilizamos “força” em vez
de “poder” para evitar homonímia com o tema onipresente do poder político. [N. T.]
[ 55 ] O adjetivo “perfeito”, aqui presente em expressões como “povo perfeito” e “comunidade perfeita” não
indica uma moralidade imaculada de seus membros, nem a ausência de todo e qualquer defeito. Compreendê-
lo assim nos levaria a desvios de teoria política (e de antropologia e teologia) completamente estranhos ao
pensamento de Suárez. A perfeição à qual o autor se refere é aquela de tipo estrutural, com a qual podemos
dizer que algo não carece do que lhe seja essencialmente imprescindível. Pode-se dizer que, no âmbito da
política, uma comunidade perfeita é um conjunto auto-suficiente de famílias reunido em torno de uma
finalidade comum (Cf. Politica, A, c. 1, 1252a-1253a). Seu modelo mais fundamental é o da cidade-estado
clássica. Ademais, sendo as leis um elemento imprescindível para a auto-suficiência e para a ordenação a um
fim, vale mencionar a maneira complementar na qual, posteriormente a Aristóteles, bem descreveria Cícero a
própria noção de “povo” (De Re Publica, I, 39): “Não chamamos ‘povo’ a um conjunto de homens reunido de
qualquer modo, mas àquele congregado mediante o consenso do direito e a comunhão da utilidade”. [N. T.]
A expressão “comunidade política perfeita” é alusiva ao tratamento conferido à pólis no Livro I da Política de
Aristóteles, para quem a cidade é a mais excelente das formas de vida humana, já que é na comunidade
política que a vida boa é alcançada plenamente. Coincide com o termo “principatus politicus”, explicitado
acima, na nota 15. O termo “comunidade política perfeita”, além disso, designa o modo de vida política
necessário para que o corpo social possa receber de Deus a transferência do supremo poder civil (“Em
primeiro lugar, a soberania civil, vista em si mesma, é dada imediatamente por Deus aos homens congregados
numa comunidade ou sociedade política perfeita”). [N. C.]
[ 56 ] Dado o sentido aqui empregado, a palavra democracia se diz de dois modos: no primeiro, a palavra é
tomada no seu sentido literal – poder do povo. A democracia natural deve ser entendida nesta acepção. No

67
segundo, a democracia é tomada como uma modalidade de regime político, em comparação com a monarquia
ou a aristocracia. [N. C.]
[ 57 ] JAIME I, Apologia, p. 140.
[ 58 ] S. ROBERTO BELARMINO, Recognitio librorum omnium, Recognitio Libri Tertii (de laicis), Ingolstadt,
1608, pp. 56-64.
[ 59 ] TOMÁS CAETANO, De comparatione autoritatis Papae et Concilii, in Opuscula omnia, Lyon, 1562, trat.
2, c. 10, ad. 5 e ad 2ª confirm., p. 39.
[ 60 ] ALFONSO DE CASTRO, De Potestate Legis Poenalis, Lyon, 1556, I, c. 1, pp. 5-21.
[ 61 ] JOÃO DRIEDO DE TURNHOUT, De Libertate Christiana, Louvain, 1540, I, c. 2, pars 3, p. 98.
[ 62 ] FRANCISCO DE VITÓRIA, Relectiones theologicae, Lyon, 1586, III, De potestate civili, 8, p. 108.
[ 63 ] Op. cit., II, De potestate Ecclesiae, p. 63.
[ 64 ] DOMINGO DE SOTO, De iustitia et iure, Lyon, 1559, IV, pp. 207-9; pp. 218-221.
[ 65 ] De Iustitia et iure, Mainz, 1602, vol. I, trat. II, disp. 21, p. 109.
[ 66 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, 1828, lib. I, tit. II e IV, pp. 214-221; p. 224.
[ 67 ] MARTÍN DE AZPILCUETA NAVARRO, Commentarii et tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III, Relectio
cap. Novit de Iudicis, Notabile tertium, n. 41, fol. 67.
[ 68 ] DIEGO DE COVARRUBIAS E LEIVA, Practicae Quaestiones, Lyon, 1558, cap. 1, n. 6, fol. 7.
[ 69 ] Comment. in epist. ad Col., c. 4 (PL 17, 439B).
[ 70 ] De Civitate Dei, 19, 15 (PL 41, 643).
[ 71 ] Quaestiones in Heptateuchum, I, 153 (PL 34, 589-590).
[ 72 ] S. GREGÓRIO MAGNO, Moralia, lib. 21, 10 (11) (PL 76, 203).
[ 73 ] Regula Pastoralis, c. 6 (PL 77, 34B-38C).
[ 74 ] Confessiones, III, 8, (PL 32, 690).
[ 75 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, 1828, lib. I, tit. IV, 1, p. 224.
[ 76 ] Op. cit., Institutiones, lib. I, tit. II, 6, p. 4.
[ 77 ] Op. cit., Digesta, p. 216.
[ 78 ] In Ioannis evangelium tractatus, 124, trat. 6, n. 25 (PL 35, 1437).
[ 79 ] Cf. ANTONIO LUIZ M. C. COSTA, Títulos de Nobreza Hierárquicas, São Paulo, Draco, 2014, in “Títulos
hereditários da pequena nobreza”: “O morgado era o detento de uma propriedade alodial (absoluta, não
feudal) instituída pelo rei a pedido de uma família, chamada morgadio (majorat em francês, inglês e alemão;
mayorazgo em castelhano, ordynacja em polonês) que não podia ser vendida ou dividida sem autorização do
rei (embora pudesse ser ampliada) e tinha de ser legada na íntegra ao primogênito. Surgiu com a decadência e
abolição do feudalismo, como forma de evitar a fragmentação das propriedades e proteger o status de
linhagens tradicionais. A instituição surgiu na Espanha, onde durou de 1505 a 1820. Em Portugal, surgiu em
1521 e durou até 1863, exceto pelo morgadio da própria casa real de Bragança, que permaneceu até a
proclamação da República, em 1910 (no Brasil, onde chegou a ser aplicado às propriedades de senhores de
engenho, foi abolido na década de 1820). Na Polônia, foi instituída no século XVI e durou até a reforma
agrária comunista após a II Guerra Mundial. Na França, foi criada por Napoleão em 1808 e abolida com a
revolução de 1848.”

68
Capítulo III
Resposta aos fundamentos e objeções do rei da Inglaterra
contra a doutrina do capítulo anterior
1-2. Primeiro fundamento do rei, que parte de inconvenientes. 3. Faz-se justiça ao
ilustríssimo Belarmino ante a refutação do rei. Quando pode o povo insurgir-se
contra o monarca e eximir-se de seu poder. 4. Uma vez transferido o poder ao rei, o
povo não pode restringi-lo, nem revogar leis justas. 5-6. Segundo fundamento do rei
e sua solução. 7-8. É mais provável que Saul tenha recebido seu poder do povo. 9.
Matias recebeu seu apostolado imediatamente de Deus. 10. Os exemplos aduzidos
pelo rei Jaime não convencem que o principado político proceda imediatamente de
Deus. 11. Terceira objeção. 12-13. Solução.

1. PRIMEIRO FUNDAMENTO DO REI, QUE PARTE DE INCONVENIENTES. – Dois parecem ser


os principais fundamentos do rei Jaime para crer que os reis não recebem o poder do
povo, mas imediatamente de Deus.
Propõe o primeiro redargüindo a Belarmino e deduzindo certos inconvenientes. O
primeiro inconveniente é que nossa tese, à qual o rei se opõe, seria uma base de
sedições avidissimamente proveitosa a facciosos e rebeldes. Porque, se o príncipe
recebesse seu poder do povo, poderia este insurgir-se contra o príncipe e reclamar
sua liberdade a qualquer momento que lhe parecesse, certamente apoiando-se no
direito e poder que transferiu ao rei. Sobretudo porque Belarmino afirma que o povo
nunca transfere o seu poder ao rei sem que o retenha para si em hábito,[ 80 ]para
que possa em certos casos recebê-lo também em ato.
E, do mesmo modo, o monarca pode inferir que seria justo aos súditos restringir o
poder régio, revogar suas leis e fazer coisas semelhantes, próprias de um poder
superior. Pois, se o rei recebe seu poder do povo, então dele sempre depende. Logo, o
poder do povo seria superior e, portanto, este poderia fazer de tudo, que é o que se
inferiu. Ora, tais coisas seriam absurdas, porque dão ocasião a sedições, ferem o
princípio do poder e não permitem preservar a integridade e o rigor da justiça.
2. Respondemos que nenhum destes inconvenientes se segue da solução ou sentença
que propusemos. Pois, primeiro, negamos que por ela se dê ao povo ocasião de
rebeliões ou sedições contra legítimos príncipes. Porque, depois que o povo transferiu
seu poder ao rei, não pode com justiça, apoiado neste mesmo poder, reclamar a
liberdade para si por arbítrio próprio ou sempre que quiser.
Ora, se foi concedido o poder ao rei e este o recebeu, por este mesmo fato ele
adquiriu o domínio. Logo, ainda que o rei tenha recebido do povo o domínio
mediante doação ou contrato, não será por isso lícito ao povo retirar-lhe tal domínio,
nem usurpar sua liberdade novamente – do mesmo modo que uma pessoa particular
que renunciou à sua liberdade e vendeu-se ou entregou-se como servo não pode, em

69
seguida, eximir-se da servidão por arbítrio próprio. E o mesmo vale para uma pessoa
fictícia ou comunidade, depois de haver-se sujeitado plenamente a algum príncipe.
Depois que um povo transferiu sua liberdade ao rei, já se encontra privado dela; não
pode, apoiado nela, insurgir justamente contra o rei, pois depende de poder que não
possui. Isso não seria um uso justo, mas uma usurpação do poder.
3. FAZ-SE JUSTIÇA AO ILUSTRÍSSIMO BELARMINO ANTE A REFUTAÇÃO DO REI. QUANDO
PODE O POVO INSURGIR-SE CONTRA O MONARCA E EXIMIR-SE DE SEU PODER. – Isto que
disse Belarmino, apoiado em Azpilcueta Navarro, que o povo nunca transfere o seu
poder ao rei sem que o retenha para si em hábito, para que possa em certos casos
usá-lo, nem é contrário à nossa posição, nem dá fundamento aos povos para que
reclamem sua liberdade por mero desejo. Pois Belarmino não diz simpliciter que o
povo retém o poder em hábito para quaisquer atos a seu mero desejo, e sempre que
tenha vontade de exercê-los; ao contrário, expressou-se com grande limitação e
circunspecção: em certos casos, etc. Tais casos devem entender-se, ou quanto às
condições do contrato anterior, ou quanto à exigência da justiça natural, pois os
pactos e convênios justos devem ser observados.
Portanto, se o povo transferiu seu poder ao rei, reservando-o para si para causas
ou negócios mais graves, neles poderá licitamente usá-lo e conservar seu direito. Mas
será necessário que este direito conste suficientemente de documentos antigos e
certos, ou de costumes imemoráveis. Por esta mesma razão, se o rei convertesse em
tirania o seu justo poder, dele abusando para a manifesta ruína da sociedade, poderia
o povo usar do poder natural para defender-se, pois dele nunca se privou. Fora estes
casos, porém, nunca é lícito a um povo faltar para com o rei legítimo apoiando-se em
seu próprio poder. E assim elimina-se o fundamento ou ocasião de toda sedição.
4. UMA VEZ TRANSFERIDO O PODER AO REI, O POVO NÃO PODE RESTRINGI-LO, NEM
REVOGAR LEIS JUSTAS. – Mas por essa mesma razão não é lícito ao povo, uma vez
sujeito ao poder do rei, restringi-lo mais do que o foi naquela primeira transferência
ou convenção, pois não o permite aquela lei de justiça que ensina que os pactos
legítimos devem ser observados, e que uma doação absoluta feita validamente não se
pode revogar, nem no todo nem em parte, principalmente se ela for onerosa.
Tampouco pode o povo, assentado em seu poder, revogar as leis justas do
príncipe, mas apenas apoiado no consenso tácito ou expresso do próprio príncipe,
como o ensinou Tomás de Aquino,[ 81 ] e como o afirmamos mais extensamente em
outra obra.[ 82 ] Daí não ser verdadeiro simpliciter que o rei depende do povo para
seu poder, ainda que dele o tenha recebido: pois pode depender do povo para sua
geração (como dizem), embora não dependa depois para sua conservação, se foi o
caso de havê-lo recebido plena e absolutamente. Portanto, depois que o rei foi
legitimamente constituído, possui soberania em todas as coisas para as quais a
recebeu, ainda que a tenha recebido do povo – e isso o exige a lei da justiça, como
antes afirmamos.
5. SEGUNDO FUNDAMENTO DO REI E SUA SOLUÇÃO. – Em segundo lugar, o rei aduz-nos
o exemplo de Saul e David, que não receberam o principado do povo, como o alega
Belarmino, mas imediatamente de Deus. E isso se confirma especialmente em Saul,
que foi eleito por Deus mediante sorteio, o que ele nos diz haver sido sinal certo de

70
um poder recebido imediatamente de Deus. Também nos persuadiria com o exemplo
da escolha de São Matias, do qual sabemos recebeu a dignidade apostólica
imediatamente de Deus, visto que a obteve mediante sorteio, conforme consta nos
Atosdos Apóstolos [1:21-26].
Acerca dos exemplos de Saul e David, respondemos que de ambos os lados se
pode disputar se estes reis receberam o poder imediatamente de Deus ou do povo.
Pois nenhum dos dois se depreende claramente a partir da sagrada Escritura. De fato,
embora conste certamente da própria Escritura que essas duas pessoas foram
instituídas reis pelo assentimento, vontade e revelação divinos, disto não se segue que
Deus também lhes tenha dado o poder imediatamente. Pois trata-se de duas coisas
distintas, e de uma não se deduz corretamente a outra. Porque, assim como Deus às
vezes concedeu aos homens a faculdade de designar uma pessoa à qual Ele haveria de
dar imediatamente o poder, assim também, ao contrário, Deus pôde reservar a si o
poder de designar a pessoa à qual o povo o daria imediatamente.
6. E que isso assim ocorreu no caso daqueles reis, elabora-o com suficiente
verossimilhança o cardeal Belarmino,[ 83 ] a partir de Deuteronômio [17:14-15]:
Quando entrares na terra que te der o Senhor teu Deus, e a possuíres, e nela
habitares, e disseres: ‘Constituirei sobre mim um rei, assim como o têm todas as
nações ao meu redor’, constituirás como rei aquele que o Senhor teu Deus escolher
dentre teus irmãos; não poderás fazer rei um homem de outra gente, que não seja teu
irmão. Com estas palavras afirmam-se como distintas duas coisas: primeiro, eleger
quem há de ser rei; segundo, constituí-lo rei. Aquele, Deus o reserva para si. Este,
Deus o concede ou entrega ao povo, como o vemos com aquelas palavras:
constituirás como rei aquele que o Senhor teu Deus escolher; e também o que consta
em Deuteronômio [28:36]: O Senhor levará a ti e a teu rei, que constituíres sobre ti,
a uma gente que desconheces, etc. Ora, constituir um rei não significa apenas pedir
um rei, tal como depois o povo o pediu em I Samuel [8:10-22], mas sim fazê-lo rei,
tanto pelo que se expõe em Deuteronômio [17:15]: não poderás fazer rei um homem
de outra gente, quanto pelo fato de que ali mesmo se ordena ao povo que constitua
como rei aquele que Deus elegesse. Ora, a petição por um rei não podia referir-se a
uma particular pessoa escolhida por Deus, pois ela foi anterior a esta escolha.
Portanto, a constituição do rei não era senão a própria criação dos reis, e uma
imediata transferência de dignidade e poder régios.
Assim, a eleição da pessoa que Deus reservou para si não era outra coisa senão a
designação desta pessoa. Logo, supõe-se que naquela passagem o povo tinha, pela
própria natureza da coisa, o poder de constituir para si um rei. Pois Deus não o
concebeu ali, àquele povo em particular, mas o supôs como algo comum aos demais
povos – e permitiu àquele povo que o usasse, ou predisse que nalgum momento o
usaria, conforme se cumpre em I Samuel [8 e ss.]. E, por mais que o poder de
designar uma pessoa também convenha naturalmente a qualquer povo, Deus reservou
para si o poder de eleger a pessoa, como favor particular àquele povo, para que a
pessoa mais apta fosse sempre a escolhida.
7. É MAIS PROVÁVEL QUE SAUL TENHA RECEBIDO SEU PODER DO POVO. – Portanto, a
partir daquela passagem, a melhor das conjecturas é a de que assim se observaram as

71
coisas quando da criação do primeiro rei daquele povo, Saul. E o mesmo podemos
coligir da história de sua eleição. Em I Samuel [10:24], depois que a sorte caiu sobre
Saul, disse Samuel ao povo: vedes a quem o Senhor escolheu?, como quem pede e
espera pelo consentimento deste povo, que então clamou, dizendo: Viva o rei! Em
seguida, já constituído o monarca, agrega-se que escreveu Samuel a lei do reino, etc.
E não importa que no mesmo capítulo, antes que houvesse tirado a sorte, se diga que
Samuel tenha ungido a Saul: Eis que o Senhor te ungiu príncipe sobre sua herança,
pois (como o diz Belarmino, e é provável) não foi isso uma transferência de poder ou
a entrega de um reino, mas uma promessa e predição certeira – à maneira profética –
de um efeito futuro, e algo como uma preparação do ânimo de Saul para sua
dignidade futura. Ou ainda: visto que após a escolha divina e a aclamação do povo
ainda muitos o recusavam, agrega-se no capítulo 11 que Samuel convocou novamente
o povo a Gálgala para renovar o seu poder. E complementa: todo o povo dirigiu-se a
Gálgala, e ali fizeram rei a Saul perante o Senhor. Com tais palavras não se significa
uma nova eleição do reino, mas uma confirmação da anterior, para que esta se
estabelecesse mais firmemente junto ao povo, e para que os ânimos de todos os
súditos melhor aquiescessem, de modo que cessasse toda a divisão e dissensão, como
retamente o afirma Alonso de Madrigal,[ 84 ] e o confirma Flávio Josefo em suas
Antigüidades Judaicas, livro XI, capítulo 6, ao agregar que ali, observando-o toda a
multidão, Samuel novamente ungiu a Saul com o óleo sagrado – algo que não relata a
Escritura, mas que pode entender-se do fato de que nem sempre este tipo de unção era
simultânea à entrega do reino: ao contrário, podia também ser sinal de uma entrega já
feita ou por fazer.
8. Por isso, no mesmo livro de I Samuel [16:1 e ss.], de modo semelhante David foi
ungido secretamente por Samuel com a promessa do reino, o qual em seguida Saul
possuiu pacificamente por muitos anos. Isso é sinal claro de que por aquela unção
David não foi feito rei, mas designado para a sucessão do reino. Por isso tem-se
depois em II Samuel [2:7 e ss.] que ele é novamente ungido pela tribo de Judá, para
que reinasse sobre a casa de Judá; e ali também se relata haver dito David que:
Embora esteja morto vosso senhor Saul, ungiu-me a casa de Judá para reinar sobre
ela, sinalizando que a promessa de Deus se completara mediante o consentimento do
povo. E por isso não começou a reinar sobre as outras tribos (como nos conta o
capítulo 5 do mesmo livro) enquanto não vieram os anciãos de Israel a David em
Hebron, e com eles travou pacto o rei David em Hebron perante o Senhor, e ungiram
David como rei sobre Israel.
9. MATIAS RECEBEU SEU APOSTOLADO IMEDIATAMENTE DE DEUS. – Nossa posição é,
portanto, provável, e contra ela pouco vale o argumento do rei acerca do sorteio, pois
por si a eleição por sorteio direto mediante especial providência de Deus apenas
prova que a designação da pessoa pelo próprio Deus foi feita imediatamente.
Mas não ocorreu por isso que Matias, eleito por sorteio, não recebesse
imediatamente de Deus a dignidade e o poder apostólicos. Porque, embora isso não se
colija suficientemente pelo mero modo de eleição por sorteio, colige-se do tipo e da
excelência de sua dignidade e poder. Pois a dignidade apostólica era sobrenatural e
instituída imediatamente pelo Cristo, e portanto apenas Ele mesmo podia concedê-la,

72
e imediatamente. Portanto, ainda que os apóstolos houvessem elegido a Matias sem
sorteio – o que poderiam haver feito, se soubessem com certeza que ele era o mais
digno, como freqüentemente insinuam-no os Santos Padres – ele mesmo assim
receberia imediatamente do próprio Cristo a dignidade e o poder. Logo, não é pelo
sorteio, mas pelo tipo de poder, que se deve concluir se Deus o confere
imediatamente ou não.
10. OS EXEMPLOS ADUZIDOS PELO REI JAIME NÃO CONVENCEM QUE O PRINCIPADO
POLÍTICO PROCEDA IMEDIATAMENTE DE DEUS. – Ante esta exposição, portanto, é nossa
a tese que mais se confirma mediante as passagens e exemplos aduzidos. Porém,
como tal exposição não é preceito de fé, nem absolutamente necessária, concedamos
ao rei Jaime ser provável que Saul e David tenham recebido o reino e o poder
imediatamente de Deus – pois facilmente poderia alguém, se quisesse, acomodar as
palavras da Escritura neste sentido. Quanto a David, afirma-o abertamente Soto;[ 85 ]
quanto a ambos, di-lo Azpilcueta Navarro,[ 86 ] e o mesmo opina Alonso de
Madrigal, como indicado acima. Ainda assim, estas posições não apenas não se
opõem à resolução que propusemos, mas, ao contrário, a partir delas podemos
confirmá-la com igual eficácia. Primeiro, porque exemplos específicos pouco valem
para inferir uma regra universal: antes costumam constituir exceções à regra, e delas
sói produzir-se aquele argumento que os juristas chamam de “caso excepcional”, para
inferir uma regra em contrário. Segundo, porque naquelas mesmas passagens supõe-
se manifestamente haver no povo livre o poder de constituir para si um rei, e mesmo
de escolher e designar a pessoa a quem entregar o direito do reino – e o provam
abertamente os testemunhos da Escritura que acima ponderei.
E portanto Deus particularmente reservou para si a escolha da pessoa a quem
constituir rei daquele povo, visto que, sem a revelação e o preceito divinos, tudo isso
se constituía pelo arbítrio do povo. Logo, daí não se pode inferir uma regra geral para
todos os reinos, a saber, que pertenceria a Deus o designar ou escolher imediatamente
a pessoa constituída no trono régio, quer no início do reino, quer em sua continuação.
(Do contrário, que nos mostre o rei inglês quando Deus, mediante particular
revelação ou sinal singular, teria elegido a ele ou algum de seus progenitores como
rei da Grã-Bretanha.)
Tampouco se pode disso inferir que Deus concede ou concedeu ordinariamente o
principado aos reis temporais – ainda que, talvez, no início do reino de Israel, devido
a um especial cuidado que tivera para com este, tenha-o feito uma e outra vez;
também isso pode depreender-se da outra proibição feita àquele povo, em
Deuteronômio [17:15]: não poderás fazer rei um homem de outra gente. Porque tal
proibição foi certamente positiva, não natural, pois consta que outros povos e nações
podiam fazer para si reis oriundos de qualquer região ou nação, e também nos
próprios imperadores romanos isso se observou sem qualquer injustiça ou violação do
direito natural. Tal proibição foi, portanto, positiva e específica. Logo, supôs haver
naquele povo o poder de constituir para si reis oriundos de qualquer gente, exceto se
estabelecida uma proibição divina; conseqüentemente, havia este livre poder no povo
de Israel antes de tal proibição, e o houve sempre naqueles povos sobre os quais ela
não recaiu – e foi mediante este poder que tiveram início os reis.

73
11. TERCEIRA OBJEÇÃO. – Terceiro, em favor do rei Jaime e da confirmação de suas
opiniões poderíamos instar com passagens da Escritura e dos santos, pelos quais antes
provamos que os reis são ministros de Deus, e que dele próprio recebem o poder. Pois
naquelas mesmas passagens atribui-se apenas a Deus tal concessão. Portanto,
deveríamos entender que o poder procede de um Deus que o doa imediatamente, pois
é esta a mais pura e mais simples interpretação. Assim, pelo mesmo motivo o poder
régio procederia diretamente de Deus.
12. SOLUÇÃO. – A isso respondemos, primeiro, que o próprio poder régio procede
imediatamente de Deus, como já afirmamos. Porém, como isso não ocorre mediante
revelação ou doação especial, mas por certa conseqüência natural (demonstrada pela
razão natural), o poder apenas é dado imediatamente por Deus àquele sujeito no qual
ele se encontra por exigência da mera razão natural. Ora, tal sujeito é o próprio povo,
e não qualquer de suas pessoas, conforme indiquei. Porém, visto que o povo transfere
o poder a um rei, e que a própria escolha deste rei não ocorre sem a cooperação
divina (nem sem sua particular providência), o poder régio se diz concedido por
Deus. E isso o declarou egregiamente Crisóstomo, na homilia 23 sobre a epístola as
Romanos;[ 87 ] ali, ao tratar daquelas palavras: Não há poder que não venha de
Deus, assim se expressa: Que dizes? Que todo príncipe foi constituído por Deus? Isso
não o digo. Pois agora não me refiro a qualquer príncipe que seja, mas à própria
coisa – isto é, ao próprio poder. Por isso acrescenta: O fato de que existam
principados, e que imperem estes homens e sejam súditos aqueles, e que as coisas
todas não se conduzam de modo simplório e irrefletido, digo ser obra da sabedoria
divina. E, em razão disto, não nos disse que não há “príncipe” que não venha de
Deus; antes referiu-se à própria coisa, dizendo: não há poder que não venha de Deus.
E o mesmo nos ensina Teofilacto.[ 88 ]
Ora, tampouco é necessário que todas estas coisas sejam explicitadas ponto a
ponto na Escritura. Pois nela própria consta que muitos efeitos se atribuem a Deus
quase com essas mesmas palavras, e é a partir da matéria em questão que se deve
deduzir, segundo a reta razão, o modo pelo qual há de dizer-se que eles procedem de
Deus. Pois também se diz freqüentemente que Deus concede reinos mediante
permissão especial, embora estes sejam usurpados mediante injustiça e sedição – o
que parece ser a opinião do próprio rei da Inglaterra acerca de Jeroboão,[ 89 ] e que
se dá com muito mais certeza em outros reis, conforme observou Agostinho, no livro
V da Cidade de Deus, cap. 21, e também Orígenes, na Homilia 4 sobre Juízes.
E, para que os reis sejam chamados de ministros de Deus, basta que possuam
poder sob Ele mas mediante o povo, pois trata-se do modo mais conatural e perfeito
que se pode cogitar no âmbito da razão natural.
13. Já quanto à comparação ou equiparação que nisso se faz entre o Pontífice e os
reis, respondo que são casos muito dessemelhantes. Primeiro, porque a monarquia
pontifícia é instituída e ordenada imediatamente pelo próprio Deus para toda a Igreja
de uma maneira tal que não pode ser mudada. Por outro lado, o modo do regime
temporal não foi definido nem ordenado por Deus, mas deixado à disposição dos
homens.

74
Por isso, o poder espiritual nunca existiu na comunidade de toda a Igreja: Cristo
não o conferiu ao corpo da Igreja, mas à sua cabeça, seu vigário; portanto, não pode a
Igreja concorrer na escolha do Pontífice à maneira de quem dá o poder, mas apenas
enquanto designa a pessoa. Já o poder civil encontra-se por natureza na própria
comunidade, e mediante ela é transferido a este ou aquele príncipe, por vontade da
própria comunidade, à maneira de quem – por assim dizer – dá a outro uma coisa que
é sua.
Disto decorre também que a jurisdição espiritual soberana do Pontífice lhe seja
conferida por direito divino de maneira tal que não possa ser limitada, aumentada ou
reduzida, seja por consentimento universal da Igreja, seja pela vontade do próprio
Papa. Este, enquanto retém tal dignidade, não pode diminuí-la nem alterá-la em si. Já
o poder régio – ou o de qualquer tribunal temporal supremo – pôde no princípio
constituir-se como maior ou menor, e, com o transcurso do tempo, poderá ser alterado
ou diminuído por aquele que tiver autoridade para fazê-lo, conforme for conveniente
ao bem comum.

[ 80 ] Em termos breves, o hábito (habitus) corresponde à disposição intermediária entre a potência e o ato
pleno, condição na qual a realização de algo encontra-se ao alcance do sujeito, embora este possa não exercê-
lo. Num paralelo com a teoria do conhecimento, ao não sabermos o que é um triângulo, encontramo-nos em
potência para sabê-lo. Se apenas conhecemos o triângulo, mas não o estamos considerando efetivamente,
nossa mente encontra-se em hábito com respeito a ele. Se não apenas o conhecemos, mas efetivamente
mantemos o triângulo em nossa consideração, sua forma encontra-se em nossa mente em ato pleno. [N. T.]
[ 81 ] S. Th., Iª-IIae, q. 97, a. 3.
[ 82 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore, Antuérpia, 1613, lib. VII, c. 18, pp. 553-9.
[ 83 ] S. ROBERTO BELARMINO, Opera Omnia, Paris, A. L. Vivès, 1870-1874, t. III, c. 3, p. 7.
[ 84 ] Commentaria in Primam Partem I Regum, Veneza, 1596, c. 11, questões 12 e 13, fol. 191. O gentílico
latino Abulensis – “de Ávila” – nos remete a Alonso Tostado (Alonso Fernández de Madrigal), bispo daquela
cidade.
[ 85 ] DOMINGO DE SOTO, De iustitia et iure, Lyon, 1559, IV, q. 2, art. 1, pp. 207-9.
[ 86 ] MARTÍN DE AZPILCUETA NAVARRO, Commentarii et tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III, Relectio
cap. Novit de Iudicis, Notabile tertium, nn. 33 e 147, ff. 67 e 74.
[ 87 ] S. JOÃO CRISÓSTOMO, In Epist. ad Rom. Homil. XXIII (Rom. 13:1) (PG 60, 613-622).
[ 88 ] TEOFILACTO DE ÁCRIDA, Expositio in Epist. ad Roman., c. 13, 1 (PG 124, 514).
[ 89 ] JAIME I, Praefatio, p. 143.

75
Capítulo IV
Se entre os cristãos há um legítimo poder civil
ao qual estejam obrigados a obedecer
1-2. O erro dos antigos hereges e o primeiro fundamento deste erro. 3. O segundo
fundamento. 4. Rejeita-se a referida heresia com as Escrituras e os Padres. 5.
Rejeita-se a mesma heresia com um argumento de Tomás de Aquino. 6. Explica-se a
força do argumento de Tomás. Não é lícito aos fiéis criar voluntariamente para si um
novo rei infiel. 7-8. O rei gentio que por guerra justa ocupa uma cidade cristã
também obtém sobre ela domínio verdadeiro. Quando a sujeição ao príncipe inclina
ao detrimento da fé, os fiéis podem dela se eximir. 9. Quando pode dissolver-se um
matrimônio entre infiéis em razão da conversão de um deles à fé. 10. Conclusão: é
verdade de fé que entre os cristãos há verdadeiros reis e príncipes. 11-14. Uma
evasiva, e sua refutação. 15. Prova-se a tese com um argumento. 16-17. Responde-se
a uma evasão tácita. 18. Em que consiste a liberdade cristã. 19. Refuta-se o primeiro
fundamento daquele primeiro erro. 20. Expõe-se a passagem de Mateus 17. 21-22.
Refuta-se o segundo fundamento.

1. O ERRO DOS ANTIGOS HEREGES E O PRIMEIRO FUNDAMENTO DESTE ERRO. – Embora


nesta questão não haja controvérsia entre nós e nossos adversários, muitos deles –
como ouvi dizer, e como o reitera várias vezes o rei da Inglaterra em seu Prefácio –
acusam o Romano Pontífice de defender uma doutrina que destrói os direitos e
domínios devidos aos príncipes. Portanto, julguei haver-se de explicar o que a fé
católica estabelece sobre este ponto e o que nos ensina a opinião mais sã dos
doutores, para que deste modo abra-se um caminho mais claro e apto a esta
controvérsia principal acerca do primado do Sumo Pontífice.
Ora, de duas maneiras julgou-se e afirmou-se que os reis cristãos não possuiriam
soberania civil para baixar leis, punir delitos e definir o direito político. Uma delas foi
a dos que afirmaram que na Igreja de Cristo não pode haver tal poder, nem seu uso
legítimo, pois os cristãos não podem estar sujeitos a nenhum domínio temporal. A
outra maneira foi a dos que, embora confessem haver na Igreja poder temporal,
negam que ele seja soberano nos reis temporais; ele apenas o seria no Pontífice, do
qual o poder dos reis se deriva por concessão ou tolerância. Deste segundo ponto,
trataremos no capítulo seguinte. Por outro lado, como ele supõe o primeiro, aqui
exporemos este primeiro brevemente – também pela razão de que os novos sectários
não opinam sobre ele retamente.
2. Muitos dos antigos hereges, à maneira de quem seguiria ou imitaria o erro dos
galileus indicado no capítulo I, afirmaram que os cristãos não seriam sujeitos a
príncipes temporais, especialmente se estes fossem pagãos. Isso disseram alguns
(como os begardos[ 90 ]) somente acerca dos cristãos perfeitos e maximamente

76
espirituais; já outros o disseram de todos os justos, ou de todos os cristãos, de modo
que julgo supérfluo enumerar tais erros de modo mais extenso. Daí falaram
parvamente os anabatistas e seus semelhantes que o principado político não é lícito
aos cristãos, especialmente se o exercerem sobre outros cristãos.
Podem cogitar-se diversos fundamentos para tais erros. O primeiro deles (e
específico acerca dos príncipes pagãos) é o de que é indigno e perigoso que um infiel
domine sobre fiéis. Pois adverte-nos Paulo, em II Coríntios [6:14-16]: Não vos
prendais a um jugo desigual com os infiéis. E explica-nos a razão disto de vários
modos, dizendo: Porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que
comunhão tem a luz com as trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que
parte tem o fiel com o infiel? E que consenso tem o templo de Deus com os ídolos?
Portanto, visto que o primado político procede de Deus, não se deve entendê-lo como
concedido contra a devida ordem e com perigo para a fé – porque as coisas que
procedem de Deus são ordenadíssimas. Logo, pela mesma razão de que alguém é
batizado e recebe a fé, torna-se imune à sujeição aos príncipes pagãos.
E isso pode confirmar-se por aquelas próprias palavras de Mateus [17:25] em que,
como Cristo interrogasse a Pedro: De quem cobram os reis da terra os tributos, ou o
censo? Dos seus filhos, ou dos alheios?, e Pedro lhe respondesse “dos alheios”,
concluiu o Senhor: Logo, estão livres os filhos, a saber, livres dos tributos, e
(conseqüentemente) do poder do príncipe, pois estas duas coisas são correlatas. Ora,
pelo nome de “filhos” o Cristo referiu-se a todos os seus irmãos e, por conseqüência,
a todos os fiéis, pois todos são filhos daquele reino sob o qual estão todos os reinos
terrenos, como afirmou Agostinho.[ 91 ]
Ou também por este outro título participariam da referida liberdade: o de que são
todos, de maneira especial e excelente, da família de Cristo, que é filho natural. Ora,
quando se diz que o filho é livre, inclui-se nisto também a sua família, como afirma
Nicolau de Lira,[ 92 ] em passagem repetida por outros autores. E o mesmo opinou
Jerônimo, ao dizer: Por nós, Ele suportou a cruz e pagou os tributos. Nós, por sua
honra, não pagamos tributos, e estamos imunes de impostos tal qual filhos de um rei.
[ 93 ] Tais palavras não se podem restringir, como o desejam alguns, apenas aos
sacerdotes e clérigos, pois os dois elementos nos vêm em conjunto: por nós suportou
a cruz e pagou os tributos. Se suportou simpliciter a cruz por todos, tanto leigos
quanto clérigos, foi também por todos que pagou os tributos. Logo, libertou a todos
de pagar tributos aos reis temporais. Portanto, eximiu-nos todos de seu domínio e
jurisdição, visto que uma liberdade implica a outra.
3. O segundo e mais geral fundamento desse erro é o de que os cristãos estariam
livres do poder de príncipes cristãos porque o postularia a liberdade cristã – a qual
entendem neste sentido e a exageram maximamente Lutero e outros sectários destes
tempos, que nesta interpretação distorcem variadas passagens da Escritura. Sobre elas
já discorremos o suficiente,[ 94 ] e portanto agora as omitimos.
Pois bem: partindo desse princípio – a liberdade cristã assim compreendida –
inferem retamente que tampouco nos príncipes cristãos haveria poder civil ou político
sobre os fiéis. Pois, se estes não estão obrigados à obediência, aqueles não têm o
direito de ordenar, uma vez que estas duas sentenças são correlativas e, tolhida uma,
tolhe-se a outra necessariamente. Disto nos apresentam testemunhos do Novo

77
Testamento, em que se diz que aos cristãos é proibido tanto o dominar quanto o
submeter-se. Pois do domínio afirma-se em Lucas [22:25-26]: Os reis dos gentios
dominam sobre eles, etc., mas não sereis vós assim; ou, como se diz em Mateus
[20:26], não será assim entre vós. Sobre isso diz-nos Crisóstomo[ 95 ] que Cristo
quis estabelecer essa distinção entre gentios e cristãos.
Já sobre a sujeição, afirma São Paulo, em I Coríntios [7:23]: Não vos façais servos
dos homens – e indica-nos o motivo, antepondo que: Fostes comprados por bom
preço, como quem diz que seria indigno dos redimidos de Cristo o sujeitar-se a
poderes terrenos.
4. REJEITA-SE A REFERIDA HERESIA COM AS ESCRITURAS E OS PADRES. – No entanto,
toda essa posição é, sem dúvida, herética. Pois, em primeiro lugar, os apóstolos
ensinaram aos fiéis já convertidos a Cristo que obedecessem aos reis e potestades,
não somente para evitar castigos, nem porque eram então incapazes de resistir-lhes,
nem somente para evitar escândalo, mas também por consciência, e porque eles são
ministros de Deus, como o demonstramos no capítulo I a partir de São Pedro e São
Paulo. Ora, falavam estes apóstolos na época em que seus imperadores e reis, seus
prefeitos ou potestades, eram infiéis e idólatras. Portanto, depreendemos de sua
doutrina que os cristãos sujeitavam-se aos príncipes embora estes fossem gentios; por
conseqüência, reis infiéis verdadeiros detinham poder sobre os cristãos que viviam
em suas terras.
E foi assim que tais passagens foram entendidas e ensinadas por Padres
antiquíssimos, como Crisóstomo, Ambrósio, Orígenes, Epifânio e outros, citados no
capítulo I; também o faz claramente Justino, em sua Segunda Apologia[ 96 ] a
Antonino Pio, imperador pagão: pouco depois do início, por intenção própria Justino
exime os cristãos dessa calúnia, dizendo que: Sempre e em primeiro lugar nos
esforçamos para pagar os tributos e impostos àqueles que haveis constituído,
conforme Ele nos ensinou. E aduz-nos as palavras de Cristo em Mateus [22:21]: Dai
pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Em seguida, conclui
Justino: Por isso adoramos apenas a Deus, mas nas outras coisas vos servimos
alegres, e confessamos que vós sois reis e príncipes dos homens, e rogamos para que
com vosso poder régio tenhais mente boa e sã. Com estas palavras, confessa em
nome de todos os cristãos haver infiéis que são reis verdadeiros e príncipes de
cristãos, uma vez que são homens, e que pode em tais infiéis haver poder, ainda que
não tenham mente sã. O mesmo opinam Inácio[ 97 ] e Optato,[ 98 ] e este diz
expressamente: ainda que o imperador fosse alguém que vivesse à maneira gentia.
Finalmente, podemos agregar a este tema as palavras de Ambrósio,[ 99 ] que, ao
ponderar as palavras de Cristo em Mateus 17, diz-nos: É grande e espiritual aquela
doutrina pela qual se ensina aos cristãos que devem submeter-se às potestades mais
sublimes, para que ninguém julgue ter-se que dissolver a constituição de um rei
terreno. Nesta passagem, alude também às palavras de São Paulo em Romanos 31.
Daí falar-se manifestamente de um rei legítimo, ainda que não seja cristão; pois assim
o disse São Paulo, assim falava Cristo acerca de César, imperador pagão, e no mesmo
sentido se expressavam os demais Padres, os quais logo citaremos.

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5. REJEITA-SE A MESMA HERESIA COM UM ARGUMENTO DE TOMÁS DE AQUINO. –
Alcançou a razão desta verdade Tomás de Aquino, que afirma: O domínio ou a
prelazia são introduzidos pelo direito humano; já a distinção entre fiéis e infiéis é de
direito divino. Ora, o direito divino, que procede da graça, não tolhe o direito
humano, que procede da razão natural. Portanto, a distinção entre fiéis e infiéis,
considerada em si mesma, não tolhe o domínio e prelazia dos infiéis sobre os fiéis.[
100 ] Este argumento é excelente, e pode explicar-se da seguinte maneira: quando os
súditos de algum rei gentio convertem-se à fé, não estão eximidos ipso facto (nem por
força do direito divino) da jurisdição temporal de seu príncipe legítimo, pois não
podem por autoridade própria privar a outro de seu domínio e direito. Tampouco lhes
é dado que o façam pela autoridade divina, pois isso nem lhes foi revelado, nem o
dita a razão natural – na verdade, a Escritura e a reta razão ensinam o contrário.
Primeiro, porque, sem intervenção da concessão divina, isso seria (falando per se)
contrário à justiça; segundo, porque se daria escândalo entre os infiéis e certa
ignomínia da religião cristã, cuja propagação poderia assim ser maximamente
impedida. Isso se confirma e se explica pelo exemplo do matrimônio entre infiéis,
que não se dissolve ipso facto pela conversão (por exemplo) da esposa à fé; ao
contrário, a esposa permanece submetida ao esposo infiel, pois este retém a potestade
sobre ela, como o ensina São Paulo em I Coríntios 7, e como o explica amplamente
Agostinho.[ 101 ] Mas a razão é aquela que apontou Tomás de Aquino: o matrimônio
entre infiéis consiste no direito natural, enquanto a profissão de fé não altera por si o
direito da natureza, nem o contrato humano nele fundado. Tal argumento também foi
indicado pelo Papa Inocêncio, nas Decretais.[ 102 ] Portanto, pelo mesmo motivo,
não se tolhe o legítimo poder civil em razão da conversão dos súditos à fé.
6. EXPLICA-SE
A FORÇA DO ARGUMENTO DE TOMÁS. NÃO É LÍCITO AOS FIÉIS CRIAR
VOLUNTARIAMENTE PARA SI UM NOVO REI INFIEL. – Não obstante, há algo muito digno
de nota acerca da doutrina de Santo Tomás naquela passagem citada: tal razão apenas
procede quando o domínio e poder do príncipe pagão preexistem à fé dos súditos,
caso em que também parecem proceder perfeitamente os testemunhos de São Pedro e
São Paulo e a tradição dos Padres. Por isso agrega Santo Tomás: se se trata de
instituir ou atribuir a infiéis um novo poder sobre os que já são fiéis, tal coisa não se
deve permitir de modo nenhum: Pois isso geraria escândalo e perigo para a fé, uma
vez que os súditos, se não são de grande virtude, facilmente seguem o império do
príncipe e também a sua religião. E, igualmente, os infiéis desprezarão a fé ao saber
de seu abandono por parte dos fiéis.
Deve-se entender, porém, que esta doutrina se refere a quando a nova sujeição dos
fiéis a um príncipe infiel depende do consentimento e vontade daqueles. Pois neste
caso procedem eficazmente as razões de Santo Tomás e do testemunho de São Paulo
em I Coríntios [6:1]: Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo
perante os iníquos (isto é, os infiéis, como o diz Tomás) e não perante os santos (ou
seja, os fiéis)? E, mais abaixo, declara-o o próprio apóstolo São Paulo, ao dizer: Mas
o irmão vai a juízo com o irmão, e o faz perante infiéis![ 103 ] Portanto, se até nos
juízos privados entre fiéis não se há de escolher voluntariamente juízes infiéis, muito
menos pode um povo cristão pôr à sua frente um príncipe infiel. E é por isso que,
como ensina Santo Tomás, a Igreja não o permite de nenhum modo.

79
7. O REI GENTIO QUE POR GUERRA JUSTA OCUPA UMA CIDADE CRISTÃ TAMBÉM OBTÉM
SOBRE ELA DOMÍNIO VERDADEIRO. QUANDO A SUJEIÇÃO AO PRÍNCIPE INCLINA AO
DETRIMENTO DA FÉ, OS FIÉIS PODEM DELA SE EXIMIR. – Se, porém, ocorresse a um povo
de fiéis ser submetido involuntariamente e a justo título por um príncipe infiel, então
procederiam a asserção e o argumento que se expuseram.
Por exemplo, se um rei gentio ocupasse uma cidade cristã mediante guerra justa,
adquiriria verdadeiro domínio, pois este procederia do direito das gentes, o qual
deriva do direito natural, que a fé não tolhe. Tampouco o impede a Igreja (falando per
se), quando o príncipe infiel é um gentio e não um súdito dela, como atualmente
dizemos.
E o mesmo ocorreria caso um rei infiel, por legítimo direito de sucessão,
recebesse sob si um povo cristão antes sujeito a um príncipe cristão; pois então
também a fé dos súditos não impede a aquisição do domínio, nem depende da
vontade daquele povo. Ao contrário, procede de uma instituição anterior e justa.
Mas estas coisas devem ser entendidas por si mesmas, ou seja, enquanto previnem
os escândalos e perigos dos fiéis, que também podem seguir-se da sujeição destes a
seus antigos príncipes infiéis. E, por isso, se em ambos os casos se temesse com
probabilidade o surgimento de tais incômodos, e não se os pudessem evitar senão
recusando um príncipe ou deixando de apoiá-lo, tal ação poderia e deveria ser
empreendida, pois a Igreja não carece de direito nem poder para fazê-lo. E por este
motivo afirma Santo Tomás, na passagem citada, que a Igreja pode por direito
instituir que os infiéis sejam privados do domínio e prelazia sobre os fiéis, que são
transformados em filhos de Deus – embora a Igreja, para evitar escândalo, não se
valha deste poder junto a príncipes infiéis, que de outro modo não lhe estão sujeitos.
8. Há que considerar também que alguns infiéis são sujeitos à Igreja apenas
temporalmente, como os judeus que habitam terras sujeitas a príncipes cristãos; de
tais infiéis não tratamos, pois estes não são os príncipes soberanos dos quais agora
falamos principalmente – embora seja certo que a Igreja ou os príncipes cristãos
podem assim governá-los nas coisas temporais, principalmente nas que dizem
respeito à liberdade e segurança dos fiéis, da maneira em que julgarem ser
convenientes ao bem da fé. Isso, porém, é outro tema.
Há outros infiéis que estão sujeitos à Igreja espiritualmente, ainda que sejam
príncipes temporais supremos – como é o caso de hereges batizados, que são cristãos
em nome mas em realidade são infiéis, visto que carecem da verdadeira fé, embora
estejam sujeitos à Igreja em razão do caráter do batismo. E destes é verdadeira a
doutrina que apresentamos, não apenas para evitar o perigo dos fiéis, mas também em
razão do poder direto que tem a Igreja para punir os hereges, ainda que estes sejam
reis, como veremos mais abaixo.
Já outros infiéis não estão de nenhum modo sujeitos à Igreja, nem temporalmente,
nem espiritualmente, nem de direito, nem de fato. E nestes a doutrina de Santo Tomás
só procede com relação ao poder indireto, pelo qual a Igreja pode libertar e defender
seus súditos féis de perigos morais e de ocasiões de abandono da fé. Pois a Igreja não
tem jurisdição sobre esses reis infiéis, como nos ensina São Paulo em I Coríntios
[5:12]: Dos que estão fora não nos cabe julgar;[ 104 ] portanto, assim como não pode
forçá-los à fé, tampouco pode puni-los por crime de infidelidade. E por este mesmo

80
motivo não pode privá-los do domínio e jurisdição que tenham sobre cristãos. A
Igreja apenas pode fazê-lo em razão do governo e necessária providência que tem
sobre seus súditos fiéis. Mas julgo muito verdadeiro que o possa fazer a este título:
pois aquele que dá o poder de governar, dá conseqüentemente o que é necessário para
o uso conveniente de tal poder, como em seguida o mostraremos mais
detalhadamente.
9. QUANDO PODE DISSOLVER-SE UM MATRIMÔNIO ENTRE INFIÉIS EM RAZÃO DA
CONVERSÃO DE UM DELES À FÉ. – Neste momento podemos tomar um excelente
argumento daquela doutrina recebida e aprovada pela Igreja, proveniente de São
Paulo em I Coríntios 7: a de que, se um cônjuge antes infiel é agora convertido à fé, e
o outro não quer converter-se, nem coabitar sem ofensa ao Criador, pode-se deixá-lo
e dissolver-se o matrimônio. Portanto, com mesma razão (ou ainda maior) é dado à
Igreja o poder de libertar os fiéis do jugo de quaisquer infiéis, quando a fé sofre
perigo com tal sujeição. Pois aqui urge igualmente o argumento de São Paulo: Neste
caso o irmão ou irmã não está sujeito à servidão.
E mais: nisto podemos notar ainda uma distinção, pois, como o vínculo do
matrimônio é indissolúvel por sua própria natureza, e subsiste apenas entre duas
determinadas pessoas, para que se o possa dissolver a tal título é necessário haver
claramente, no âmbito particular, o perigo do cônjuge fiel. Já o poder régio recai
sobre a multitude dos homens, e por si mesmo não é tão imutável; portanto, basta um
perigo comum e geral no qual vivam os fiéis submetidos (moralmente falando) a
príncipes infiéis, para que a Igreja possa libertá-los de tal submissão – ainda que não
conste claramente, no âmbito particular, o perigo de cada um. E isso porque as leis
morais, que tratam do que é universal, consideram as coisas que se dão na maioria
dos casos, ainda que estas possam não ocorrer em casos particulares.
Ainda assim, a Igreja raramente faz uso desse poder – e isso se dá licitamente,
embora ao deixar de fazê-lo ela exponha seus fiéis a algum perigo. Pois, às vezes, ou
ela não tem forças para exercer seu poder com eficácia e resultado, ou teme dar
origem provável a maiores escândalos. Isso não obstante, cada um dos seus súditos
fiéis poderá licitamente fugir ou valer-se de outro meio para escapar do perigo, se for
probo este meio, tanto porque estão mais obrigados a cuidar de suas almas do que do
direito alheio, quanto porque então sofrem injúria e violência do referido príncipe, e
por isso não estão obrigados a obedecê-lo.
10. CONCLUSÃO: É VERDADE DE FÉ QUE ENTRE OS CRISTÃOS HÁ VERDADEIROS REIS E
PRÍNCIPES. – Disto também concluímos que é um dado certíssimo e de fé o haver na
Igreja de Cristo príncipes cristãos, assim como reis que detêm poder político ou civil
verdadeiro sobre os seus súditos, também fiéis e cristãos. Esta doutrina não se
encontra expressa em todo o Novo Testamento com as palavras “príncipes fiéis e
cristãos”, talvez porque no tempo em que este foi escrito não havia ainda reis
temporais convertidos à fé, e assim não havia ocasião de falar deles. Porém os
testemunhos aduzidos provam a tese suficientemente, tanto por comparação (ou
certamente por razão maior), quanto porque as palavras dos apóstolos são vastamente
irrestritas e universais.

81
Pois diz São Pedro: Sujeitai-vos, pois, a toda ordenação humana por amor ao
Senhor, quer ao rei, como soberano, etc., e mais abaixo: Honrai ao rei. E depois
ordena aos servos que sejam sujeitos a seus senhores – não somente aos bons, mas
também aos maus.[ 105 ] (E estes não podem dizer-se bons sem que sejam fiéis.)
Veja-se também aquela advertência de São Paulo, dada em Tito [3:1]: Admoesta-
os a que se sujeitem aos principados e potestades, e apresentada mais extensamente
em Romanos 13; ela não nos foi dada pelo Apóstolo somente para aqueles tempos da
Igreja primitiva, mas para que nela perdurasse para sempre. Logo, ela também tem
lugar agora, com respeito aos príncipes cristãos.
O mesmo pode também confirmar-se pelos testemunhos do Antigo Testamento,
dos quais consta que príncipes fiéis tiveram um regime político sobre súditos fiéis, a
cujo império estes estavam obrigados a obedecer. É o que se colige de Moisés, Josué
e outros juízes até Samuel, e posteriormente Saul, David e seus sucessores, em
Deuteronômio 1 e 17, assim como em Juízes e Reis, e em II Crônicas 19, onde faz-se
também menção aos juízes e magistrados inferiores.
Portanto, com muito mais razão devemos observar aquela subordinação e sujeição
na lei da graça, pois ela não diz respeito aos cerimoniais da Lei Antiga, nem pertence
(falando em sentido geral) aos procedimentos judiciais próprios daquela lei, mas à lei
moral do direito natural: seja imediatamente, seja mediante algum direito humano – e
estes direitos perduram na lei da graça e obrigam mais perfeitamente.
11. UMA EVASIVA, E SUA REFUTAÇÃO. – Mas dirá talvez alguém que esse fundamento
que defendemos conclui-se retamente a partir da hipótese de que na Igreja de Cristo
há verdadeiros reis e príncipes temporais, possuidores de verdadeiro domínio e
jurisdição sobre os cristãos. Pois, postulado isso, as leis da justiça natural e da
obediência evidentemente obrigam os súditos a obedecer. Mas os adversários que
defendem o erro contrário negam tal princípio, ao afirmar que ele repugna à
instituição de Cristo e à liberdade cristã, ou seja, à perfeição da lei da graça.
Contra isso, no entanto, nossa tese pode ser provada a partir da tradição imemorial
da Igreja, desde os tempos em que imperadores e reis começaram a converter-se a
Cristo e batizar-se. Pois sempre foram tidos como reis e príncipes verdadeiros, e não
menos, mas mais perfeitos e excelentes do que eram antes. Isso consta da História
Eclesiástica de Eusébio e das de outros autores, especialmente acerca de Constantino,
Teodósio e semelhantes. E o mesmo sempre confessam os concílios gerais, como o I
de Nicéia (ao qual assistiu Constantino) e outros.
Ademais, os Sumos Pontífices que escreveram a reis e príncipes cristãos os
reconheciam como verdadeiros príncipes e senhores temporais, como é patente em
muitas epístolas de Leão e Gregório, assim como de outros que mencionaremos no
capítulo seguinte. Por agora, apenas citamos as palavras do Papa Símaco,[ 106 ] na
Apologia ao Imperador Anastácio. Diz ele: Nós aceitamos as potestades humanas em
seu lugar, enquanto não erguem suas vontades contra Deus. Também o XII Concílio
de Toledo, capítulo 1, declarou sob pena de excomunhão que Eríngio era verdadeiro
rei da Espanha;[ 107 ] no Concílio de Meaux, capítulos 15 e 16, lançava-se anátema
sobre os que presumissem contradizer a potestade régia;[ 108 ] falava-se dos reis
Cristãos, e deles se dizia que tinham de Deus o seu poder, segundo a frase do
Apóstolo – a qual igualmente se entende acerca dos reis cristãos.

82
12. E da mesma maneira entenderam os testemunhos apostólicos Crisóstomo,[ 109 ]
Ambrósio[ 110 ] e outros Padres – especialmente Agostinho. Este, acerca das
palavras: Toda alma esteja sujeita às potestades superiores,[ 111 ] adverte-nos
corretissimamente a que ninguém, pelo fato de que foi chamado pelo Senhor à
liberdade ao fazer-se cristão, erga-se em soberba e deixe de pensar que nos
caminhos desta vida devemos observar cada um o seu lugar; nem se julgue livre de
submeter-se às potestades superiores, às quais foi confiado por agora o governo das
coisas temporais.[ 112 ] E mais abaixo: Portanto, se alguém julga que por ser cristão
não deve render imposto ou tributo, ou que não deve dar a honra devida às
potestades que disto se ocupam, encontra-se em grande erro. Ali, Agostinho fala de
seu tempo, quando na Igreja já havia príncipes cristãos, e assim adequa as palavras de
São Paulo ao caso de todos os príncipes que então reinavam.
E tais palavras de Agostinho foram tomadas por Anselmo ao comentar São Paulo,
e mais brevemente por Primásio. O próprio Agostinho, em Contra Cresconium,[ 113
] explica o quão necessário é o ofício do rei também entre os cristãos, e como ele é
exercido de modo melhor e mais salubre pelos bons – isto é, piedosos e fiéis –
monarcas do que por aqueles que são maus e infiéis.
13. Além disso, confirmam-no os títulos honoríficos com os quais os antigos Padres
escrevem aos príncipes fiéis: Cirilo de Alexandria,[ 114 ] no livro Sobre a Reta Fé,
dedicado a Teodósio, primeiro o chama de rei cristianíssimo, e depois lhe diz: Vós
sois a fonte das mais altas dignidades, e sobre toda e qualquer eminência sois origem
e princípio da felicidade humana. Mais abaixo: É de vosso tão piedoso e ilustre
império a maior defesa de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois por ele reinam os reis,
etc. Em seguida, promete demonstrar que a gloriosa piedade ante Deus é o
fundamento sólido das honras régias. Coisa semelhante se pode ver em Ambrósio,[
115 ] na Epístola a Graciano que antepõe aos seus livros Sobre a Fé, onde também o
chama príncipe cristianíssimo e o mais cristão dos príncipes. O mesmo o faz em seus
discursos quando da morte de Teodósio e Valentiniano, e em várias epístolas aos
imperadores cristãos de seu tempo. Isso foi igualmente reconhecido por Gregório de
Nazianzo,[ 116 ] cujas excelentes palavras citarei depois, em lugar mais oportuno.
14. Além disso, agrego um testemunho mais antigo, o de Marcial, bispo de Limoges,
que viveu quase no tempo dos apóstolos. Na sua Epístola aos Tolosanos,[ 117 ] narra
que converteu à fé um príncipe da Gália, ao qual chama de rei e cuja fé elogia muito.
E adiciona: Ao qual deveis obedecer em tudo, pois o príncipe vos é constituído por
Deus, etc. Podemos também citar a passagem de Tertuliano,[ 118 ] na qual diz
primeiro que deve dar-se a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, como
ensina o Cristo; por isso, agrega depois: No que diz respeito, portanto, às honras dos
reis e imperadores, temos como suficientemente ordenado o ser-nos necessária, em
todos os obséquios, a submissão aos magistrados, príncipes e potestades, conforme o
preceito do Apóstolo. Mas dentro dos limites da disciplina, naquela medida em que
nos mantemos afastados da idolatria. E embora ali se fale do tempo dos imperadores
gentios, o autor entende tal doutrina de maneira geral; por isso adiciona que os
cristãos naquela época podiam acolher a dignidade e a administração do poder civil
por parte dos imperadores, desde que o fizessem sem qualquer mancha de idolatria.

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Por isso, escreveu corretamente Próspero da Aquitânia, em seu [poema no]
Epigrammaton, capítulo 34: Deve-se render tudo que bem postula a ordem do mundo
e não viola o propósito da piedosa fé. Dos mansos e santos nenhum poder merece o
desprezo: é justo servir aos reis e senhores. Para que aos servos de Cristo lhes sirva,
para honra verdadeira, haver amado os bons e tolerado os maus.[ 119 ]
15. PROVA-SE A TESE COM UM ARGUMENTO. – Também pela razão podemos facilmente
provar esta verdade. Pois a fé cristã e o batismo não tornam alguém incapaz para a
dignidade régia e o principado, nem para a potestade política. Logo, se alguém os
possuía antes de ter a fé, não os perde em razão do batismo ou da fé, caso se converta
a ela. Ou se, já cristão, alcança-os verdadeiramente mediante eleição ou outro justo
título, constitui-se como verdadeiro rei, príncipe ou magistrado. Portanto, também os
súditos fiéis e cristãos estão obrigados a obedecer-lhe. Estas conclusões são evidentes
por si e pelo que já foi dito. E o antecedente se prova porque aquela incapacidade, ou
proviria de uma particular instituição de Cristo, ou proviria da natureza da coisa e de
alguma incompatibilidade natural. Pois nenhum outro argumento se pode cogitar, e
aqueles dois apresentados são totalmente falsos e irracionais.
16. RESPONDE-SE A UMA EVASÃO TÁCITA. – Sobre o primeiro, o tema é claro. Antes de
tudo, porque em nenhum lugar lemos que Cristo proibiu o principado régio aos fiéis,
como facilmente o mostraremos abaixo, satisfazendo os argumentos da opinião
contrária. Em segundo lugar, porque, sobre o Cristo e o tempo da graça, previa-se
sobretudo que os reis da terra creriam em Cristo e o adorariam. Vemos em Salmos
[72:10]: Os reis de Tarsis e das ilhas trarão presentes, os reis da Arábia e de Sabá
lhe farão tributo, e o adorarão todos os reis da terra. Por isso diz-se em Salmos 2
que, primeiramente, os reis da terra ergueram-se contra Cristo, mas depois agrega-se:
Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos instruir, juízes da terra. Servi ao
Senhor com temor, etc. Também Isaías [49:23]: Os reis serão os teus aios, e as suas
rainhas as tuas amas; diante de ti se inclinarão com o rosto em terra, e lamberão o
pó dos teus pés. E saberás que eu sou o Senhor, que os que confiam em mim não
serão confundidos. E em seguida [60:3]: Os gentios caminharão à tua luz, e os reis
ao resplendor que te nasceu, etc.
Tampouco pode dizer-se ou cogitar-se que os reis que vêm à fé de Cristo por este
mesmo fato perdem seus reinos e deixam de ser reis; pois, como canta a Igreja, não
tolhe reinos mortais quem os dá celestiais.[ 120 ] De outra maneira, a providência
não haveria sido tão suave e conveniente: se os reis, uma vez convertidos a Cristo,
logo perdessem os reinos que detêm justamente, decerto haveria poucos que
desprezariam seus reinos a ponto de querer tornar-se cristãos. Portanto, não é crível
que Cristo, que chama para si todas as classes de homens, e dispôs sabiamente os
meios aptos à sua conversão, tenha imposto tamanho impedimento à conversão dos
príncipes temporais, e relegado à sua Igreja tal instituição.
17. Sobretudo porque tal instituição não seria pertinente ao esplendor da Igreja, nem
ao bom regime temporal, nem à perfeição espiritual. Quanto ao primeiro: muito mais
faz resplandecer a fé e a Igreja de Cristo o fato de que a Ele e a seu vigário sujeitem-
se os reis, imperadores e príncipes da terra; e isso é sem dúvida o que se designa nas
profecias antes citadas. Quanto ao segundo: o argumento postulado acima, acerca da

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necessidade do principado político para a conservação da sociedade humana, não tem
menos lugar dentro da Igreja de Cristo do que fora dela, pois também os cristãos
necessitam de uma comunidade política na qual se observem a paz e a justiça, e para
isso também eles precisam de direção e coação civis, como é evidente por si. Logo,
como nas coisas temporais Cristo não desejaria governar mal sua Igreja – nem, por
outro lado, haveria determinado regê-la milagrosamente – não era devido que lhe
tolhesse um regime como que natural, nem (conseqüentemente) o principado político.
Quanto ao terceiro: o principado político não é contrário à perfeição essencial da
Igreja, que consiste na verdadeira e viva fé, a qual opera mediante a caridade. Visto
que tal principado é afim à justiça e à razão natural, não pode ser contrário à caridade.
Tampouco é contrário à perfeição dos conselhos escriturais, pois para esta não se
impõe como necessário o abandono do domínio e jurisdição temporais; isso é deixado
ao arbítrio da vontade livre, quando se diz: se queres ser perfeito, etc.[ 121 ] E assim
a perfeição evangélica e a graça de Cristo mostram-se com ainda mais força pelo fato
de que muitos imperadores e príncipes abdicaram livremente de seus impérios e
reinos.
18. EM QUE CONSISTE A LIBERDADE CRISTÃ. – Com isso se prova de modo suficiente o
segundo ponto: que os cristãos certamente não são incapazes do principado político
em razão da natureza da coisa, ou por certa incompatibilidade natural. Primeiro,
porque pela natureza da coisa se demonstrou com ainda mais força o ser esse regime
necessário aos cristãos, aos quais também é muito melhor ser governado por
príncipes cristãos do que por não-cristãos – algo que já se expôs, e que é evidente por
si mesmo. Portanto, com especial razão foi necessário aos cristãos, pela natureza da
coisa, que fossem capazes dos reinos e magistrados temporais.
Segundo, porque, se houvesse alguma incompatibilidade, ou seria com a liberdade
cristã, ou com a fé. Mas a liberdade cristã não consiste na isenção das justas leis
humanas, nem na imunidade da justa coação ou punição pelos pecados, quando estes
se cometem contra a paz e a justiça. Ela antes consiste na isenção da lei de Moisés, ou
do temor servil, ou – o que é o mesmo – consiste numa servidão livre movida pelo
amor e a caridade, à qual o regime humano não repugna; ao contrário, auxilia-a
quando ela existe. Quando não existe, supre sua carência mediante a coação.
Quanto à fé, tampouco a ela repugna o referido poder ou a sujeição que lhe
corresponde, pois ambos são conformes à razão natural, a qual não é contrária à fé.
Isso o confirma suficientemente São Paulo, em sua Epístola a Filêmon, na qual
claramente pressupõe – em razão da fé que Filêmon possuía, e que seu servo
Onésimo havia recebido – que nem àquele havia sido tolhido o direito de domínio,
nem a este se havia anulado a servidão. Logo, o mesmo se deve dizer a fortiori da
jurisdição política e da submissão que lhe corresponde.
19. REFUTA-SE O PRIMEIRO FUNDAMENTO DAQUELE PRIMEIRO ERRO. – Quanto ao
primeiro fundamento do erro contrário, respondemos com aquelas palavras de São
Paulo, em II Coríntios [6:14]: Não vos prendais sob um mesmo jugo com os infiéis,
entendendo-se “infiéis” literalmente, enquanto infiéis, ou seja: não participeis com os
infiéis nas obras que lhes são próprias, que realizam na medida em que são infiéis. E
todos os argumentos de São Paulo comprovam este sentido.

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Mas de tal posição conclui-se que os fiéis só não devem obedecer a príncipes
infiéis se estes ordenam algo contrário à fé ou à verdadeira religião. E desta maneira
entenderam aquela passagem Ambrósio,[ 122 ] Teodoreto,[ 123 ] Santo Tomás[ 124 ]
e também Agostinho, em Contra os Donatistas.[ 125 ] É fato que Jerônimo[ 126 ]
entende por jugo o vínculo matrimonial, e opina que ali se proíbe à mulher cristã
contraí-lo com um gentio; mas sem qualquer dúvida o Apóstolo não fala ali
especialmente do vínculo matrimonial, pois nem faz dele menção, nem há em todo
aquele contexto ocasião para tratá-lo especificamente.
É antes provável o que nos disse Crisóstomo: que São Paulo adverte os fiéis a
evitar excessiva convivência e familiaridade com os infiéis, decerto pelo perigo de
que sejam corrompidos por eles na fé ou nos costumes.[ 127 ] Neste sentido, o
Apóstolo não aduz ali um novo preceito positivo, mas explica o natural, pelo qual
cada um está obrigado a evitar o perigo, para que nele não pereça. Da mesma
maneira, também a república cristã está obrigada a evitar o príncipe infiel, seja não o
aceitando – caso dependa de seu próprio consentimento –, seja repelindo-o – se em
razão de seu império se teme o perigo moral de que ela seja arruinada. Este segundo
recurso, no entanto, não deve ser utilizado por autoridade privada, mas pública,
quando ademais o príncipe detém direito legítimo de reinar. E assim preserva-se a
devida ordem e evitam-se os perigos.
20. EXPÕE-SE A PASSAGEM DE MATEUS 17. – Quanto a Mateus 17, como depois
consideraremos mais extensamente o tema da imunidade eclesiástica, agora apenas
afirmo brevemente que, pela palavra “filhos”, não se entendem ali todos os fiéis, nem
todos os justos. Pois Cristo ali fala literalmente dos filhos naturais, como consta do
contexto e da exposição feita por todos os exegetas.
Ao que diz Agostinho, responde Santo Tomás[ 128 ] que ali se falou em sentido
espiritual, e que assim os filhos do reino estavam livres da servidão do pecado, e do
tributo que deviam pagar em razão dele. Tal resposta não agrada a Caetano,[ 129 ]
que por isso expõe que por “filhos do reino” (ao qual se subordinam os reinos
terrenos) Agostinho haveria entendido não todos os justos, mas o que têm
precedência à maneira de filhos, como o são os bispos e outros eclesiásticos. Mas
tampouco estes são filhos naturais e, por isso, se nos atemos à exatidão das palavras,
não estão compreendidos sob o nome e a razão de filhos. Por isso julga Jansênio[ 130
] que Agostinho falou unicamente do Cristo, embora falasse de “filhos”, no plural,
pois Cristo Senhor falava de “filhos naturais” de uma maneira geral.
Tampouco estão compreendidos todos os cristãos sob aquela liberdade senão a
título de pertencer à família do Cristo, como o explica suficientemente São Paulo em
Romanos 13, pois aquela união com Cristo numa mesma família – ou seja, a Igreja –
é muito ampla e de outra ordem (isto é, espiritual), que não tolhe a submissão ou
servidão corporal, e conseqüentemente tampouco tolhe a ordem de justiça que dela
nasce.
Se em razão de tal título se estenderia ou não aquela imunidade a todas as pessoas
eclesiásticas pela força das palavras de Cristo, vê-lo-emos depois. E exporemos as
palavras de Jerônimo, que parecem aplicar-se a este assunto.

86
21. REFUTA-SE O SEGUNDO FUNDAMENTO. – Quanto ao segundo fundamento, já se
respondeu que a verdadeira liberdade cristã não exclui a honesta submissão a
legítimos príncipes temporais, sejam cristãos, sejam infiéis, como foi abundantemente
declarado a partir da doutrina dos apóstolos, e tratado de modo mais detalhado no
referido livro Sobre as Leis.[ 131 ] Finalmente, quanto às palavras de Nosso Senhor,
Cristo não teve a intenção de com elas tolher o justo principado entre os cristãos, mas
apenas ensinar-lhes a não imitar a ambição e tirania dos príncipes gentios. E por isso
não se refere aos reis simpliciter, mas diz sob certa determinação: Os reis dos gentios
dominam sobre eles,[ 132 ] onde também a palavra “dominar” indica o intenso desejo
e o modo ambicioso de governar, como o afirmou São Pedro: Tampouco dominando
sobre a herança de Deus.[ 133 ] E foi assim que o expôs Crisóstomo na Homilia
sobre Mateus[ 134 ] e em outra breve alocução sobre Mateus 20. Tanto pela ocasião
em que o Senhor expressou-se para repreender a ambição de seus discípulos e sua
contenda pelo primado, quanto pelas palavras que aduziu – a saber, Mas não sereis
vós assim; antes o maior entre vós faça-se como o menor – consta claramente que
Cristo não aboliu a ordem, nem os graus de maior e menor, mas quis moderar a
cupidez de seus discípulos.
22. Quanto ao que diz São Paulo: Não vos façais servos dos homens,[ 135 ] responde-
se que ali não se trata da sujeição civil, nem da servidão penal ou rigorosa, pois
nenhuma delas repugna ou derroga o preço da redenção de Cristo. De fato, no mesmo
ponto diz o Apóstolo: Foste chamado sendo servo? Não te preocupes com isso. E até
agrega que se pode preferir a servidão à liberdade – e isso em razão da humildade,
como o interpreta Santo Tomás,[ 136 ] com Ambrósio e Gregório. Portanto, quando
nos diz que não nos façamos servos dos homens, São Paulo se refere à servidão pela
qual o homem é preferido ao Cristo, por servir ao homem naquelas coisas que são
opostas à servidão a Deus. E, porque isso seria contrário ao efeito da redenção de
Cristo, o Apóstolo avança uma razão nobilíssima: Fostes comprados por bom preço.
Logo, servir aos homens daquela maneira deve ser algo alheio aos redimidos por
Cristo. Mas não é indigno sujeitar-se a príncipes legítimos nas coisas que não
repugnam a Deus; ao contrário, isso é uma obrigação, conforme às próprias palavras
do Redentor: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

[ 90 ] Seita existente no início do séc. XIII. [N. C.]


[ 91 ] Quaestionum Evangeliorum, I, q. 23 (PL 35, 1327).
[ 92 ] Bibliorum sacrorum cum glossa ordinaria, Lyon, 1545, t. V, fol. 55.
[ 93 ] Commentariorum in Evangelium Matthaei, III, 17, v. 26 (PL 26, 127C).
[ 94 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore, Antuérpia, 1613, I, caps. 18-19; III, c. 31, pp. 53-61 e pp. 221-
2.
[ 95 ] Segundo levantamento de Pereña, trata-se da Homilia 65 e não 56, como Suárez refere. Cf. S. JOÃO
CRISÓSTOMO, In Matthaeum Homil. LXVI (PG 58, 622).
[ 96 ] Na verdade, na PrimeiraApologia. V. nota 21 supra.
[ 97 ] S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola Interpolatae, Ad Smyrnaeos, IX (PG 5, 854). As epístolas
interpoladas de S. Inácio de Antioquia são hoje consideradas espúrias.
[ 98 ] S. OPTATO DE MILEVI, De schismate Donatistarum, III, 3 (PL 11, 1000A).
[ 99 ] Expositio evang. Secundum Lucam, IV, 73 (PL 15, 1634B).
[ 100 ] S. Th., IIª-IIae, q. 10, art. 10, corpus.
[ 101 ] De coniugiis adulterinis, I, cap. 18 (PL 40, 462-3).
[ 102 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, lib. IV, tít. 19 (De Divortiis), cap. 8 (Gaudemus), fol. ccccxxv.
[ 103 ] Trata-se, naturalmente, de uma censura a seus destinatários. [N. T.]

87
[ 104 ] O texto diz erradamente II Coríntios. [N. T.]
[ 105 ] I Pedro 2:13-18.
[ 106 ] Mansi 8, 215.
[ 107 ] Mansi 11, 1029.
[ 108 ] Mansi 14, 822A-B.
[ 109 ] S. JOÃO CRISÓSTOMO, In Epist. ad Rom. Homil. XXIII (Rom. 13:1) (PG 60, 613-622).
[ 110 ] Comment. In epist. ad Rom. 13, 1 (PL 17, 162-166).
[ 111 ] Romanos 13:1.
[ 112 ] Quarumdampropositionum ex Epistola ad Romanos, prop. 72 (PL 35, 2083).
[ 113 ] Contra Cresconium grammaticum Donatistam, III, c. 51. (PL 43, 527).
[ 114 ] De recta fide, I, 1 (PG 76, 1134A-5B). A tradução latina citada por Suárez pode ser encontrada em
Divi Cyrilli Archiepiscopi Alexandrini Opera: in tres partita, Basiléia, 1528, t. 3, fol. 94.
[ 115 ] Na edição Migne a referida epístola está publicada separadamente do De Fide, sendo a primeira da
série Epistolarum Classis I (PL 16, 876C). Em edições antigas (como in Operum Ambrosii Mediolanensis
Episcopi, Colônia, 1616, t. IV), essa epístola prefaciava o De Fide.
[ 116 ] Oratio 17, 8 (PG 35, 976).
[ 117 ] PSEUDO-MARCIAL, Orthodoxographa theologiae sacrosanctae ac sincerioris fidei Doctores LXXVI,
Basiléia, 1555, Epist ad tolosanos, cap. 8, pp, 278-9.
[ 118 ] De Idololatria, cap. 15 (PL 1, 684B).
[ 119 ] “Reddendum est quidquid mundi bene postulat ordo, / Propositumque piae non violat fidei. / Mitibus et
sanctis nulla est spernenda potestas: / Aequum servire est regibus et dominis. / Ut Christi famulis ad verum
prosit honorem / Dilexisse bonos et tolerasse malos.” PRÓSPERO DA AQUITÂNIA, Epigrammata, I, c. 34 (PL
51, 509).
[ 120 ] CÉLIO SEDÚLIO, Hymnus, vv. 31 e 32 (PL 19, 765).
[ 121 ] Mateus 19:21.
[ 122 ] Commentaria in Epist. ad Corinth. Secundam., VI, 14 (PL 17, 301C-D).
[ 123 ] TEODORETO DE CIRRO,Interpretatio Epist. II ad Cor. Cap. VI, 14 (PG 82, 416D).
[ 124 ] In epist. II Cor, 6, 14.
[ 125 ] Ad Donatistas post collationem, c.6 e 21 (PL 43, 657 e 673).
[ 126 ] Adversus Iovinianum, I, 10 (PL 23, 223A-224B); também Epístola 123, 5-6 (PL 22, 1049).
[ 127 ] In Epist. II ad Cor. Homil. XIII (PG 61, 493).
[ 128 ] S. Th., IIª-IIae, q. 104, a. 6.
[ 129 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Lyon, 1554, q. 104, 6, ad.
1, fol. 179.
[ 130 ] Commentarii in suam Concordiam ac totam Historiam evangelicam, Louvain, 1577, c. 69, pp. 539-
540.
[ 131 ] V. nota 82 supra.
[ 132 ] Lucas 22:25.
[ 133 ] I Pedro 5:3.
[ 134 ] In Matthaeum Homil. LXVIII (al. LIX) (PG 58, 622).
[ 135 ] I Coríntios 7:23.
[ 136 ] In Epist. ad Corinthios, VII, lectio IV.

88
Capítulo V
Se os reis cristãos têm soberania nas coisas
civis e temporais, e por que direito
1. O que é a soberania. 2. Dupla é a submissão: direta e indireta. Em que elas
consistem. 3. O sentido da questão. 4. A primeira opinião, negativa. 5. O primeiro
fundamento. 6. A opinião verdadeira. 7-8. O imperador não tem soberania temporal
sobre toda a Igreja. 9-10. Prova-se a asserção pela autoridade dos Sumos Pontífices.
11. Chega-se à mesma conclusão pela via da razão. 12-13. A soberania civil não
compete ao Sumo Pontífice pelo direito humano. 14-16. Prova-se o mesmo pelo
direito divino. 17-18. Objeção. Solução. 19. Objeção e uma primeira resposta. 20-21.
Segunda solução, e rejeição da resposta. 22. Refutam-se os fundamentos da opinião
contrária.

1. O QUE É A SOBERANIA. – Diz-se que um poder é soberano quando não reconhece


outro superior. Pois a palavra “soberano” denota a negação de um superior ao qual
este que se diz soberano deveria obedecer. Mas entenda-se um superior na terra, ou
humano, pois com Deus não se faz nenhuma comparação: qual príncipe, exceto se
ateu ou demente,[ 137 ] presumiria tentar subtrair-se ao poder divino? Portanto, com
aquela negação exclui-se a sujeição a um superior humano mortal. Mas tal negação
pode dar-se de várias formas, e, portanto, para que o título dessa questão possa ser
entendido e discernido de outras questões que aqui poderia haver, é necessário expor
o modo e sentido dessa negação.
Primeiro, pode-se negar simpliciter qualquer sujeição a um homem superior, tanto
em matéria espiritual quanto civil. Segundo, pode-se negar a sujeição numa mesma
matéria temporal e civil.
Embora no primeiro modo haja enorme dissensão entre nós e o rei da Inglaterra –
pois este não deseja submeter-se a ninguém na terra, mesmo em matéria espiritual (o
que cremos ser contra a fé e a obediência cristã) – não trataremos agora desta questão,
pois ainda não nos pronunciamos sobre o poder espiritual, sem cujo conhecimento
não se pode de maneira nenhuma entender sua solução. Por isso a remetemos à última
parte deste livro, e, por agora, chamamos soberano aquele poder temporal que numa
mesma ordem ou matéria não seja sujeito a outro.
2. DUPLA É A SUBMISSÃO: DIRETA E INDIRETA. EM QUE ELAS CONSISTEM. – Ademais,
costumam-se distinguir dois tipos de sujeição: a direta e a indireta. Chama-se “direta”
aquela que se encontra dentro do fim e dos limites de um mesmo poder, e chama-se
“indireta” a que só nasce da orientação a um fim que é mais alto, e pertinente a um
poder superior e mais excelente.
O poder civil propriamente dito, considerado por si, apenas se ordena diretamente
a um estado conveniente e à felicidade temporal da república humana para o tempo

89
desta vida presente, e por isso este poder também é chamado de “temporal”. Por esta
razão, o poder civil se diz soberano na sua própria ordem quando, nesta ordem e com
respeito a seu fim, toma para este fim uma resolução em última instância dentro de
sua esfera, ou dentro de toda a comunidade que lhe está sujeita – de modo que
pendem de tal príncipe soberano todos os magistrados que nela (ou em parte dela)
detêm poder, ao mesmo tempo em que o príncipe soberano não se subordina a
nenhum superior na ordenação ao mesmo fim do governo civil.
Mas, como a felicidade temporal e civil se remete à espiritual e eterna, pode
ocorrer que a própria matéria do poder civil deva ser governada e dirigida, em sua
ordenação ao bem espiritual, de maneira distinta à que parece postular a mera razão
civil. E assim, por mais que o príncipe temporal e seu poder não dependam
diretamente em seus atos de um outro poder de mesma ordem e relativo apenas a este
mesmo fim, pode fazer-se necessário que ele seja dirigido, ajudado ou corrigido em
sua própria matéria, por um poder superior que governa os homens em ordem a um
fim mais excelente e eterno – e tal dependência é a que se chama de “indireta”,
porque aquele poder superior às vezes versa sobre as coisas temporais, não por si nem
em razão de si próprio, mas como que indiretamente e em razão de outra coisa.
3. O SENTIDO DA QUESTÃO. – Disto resulta que aquela negação de sujeição nas coisas
temporais, que a prerrogativa soberana do poder temporal crê incluir, deve ser
subdistinguida em dois sentidos. Pois ela pode negar, ou toda a sujeição (tanto direta
quanto indireta), ou apenas a direta. E assim surgem duas situações. Numa, o poder
do rei cristão seria soberano do primeiro modo (ou seja, não reconhecendo superior
direto nem indireto em matéria civil e temporal); noutra, seria soberano do segundo
modo (isto é, não reconhecendo superior direto em matéria temporal).
Entre estas duas a diferença é tão grande, que a primeira constitui dogma de fé e a
seu redor gira o eixo de quase toda a controvérsia entre nós e o rei da Inglaterra; já a
segunda não pertence a matéria de fé, nem sobre ela haveria dissensão entre nós. Não
obstante, tampouco há lugar para considerar a presente questão no sentido anterior,
acerca da sujeição (ou, melhor dizendo, isenção de sujeição) indireta. Isso porque, se
a observamos atentamente, ela diz respeito ao tema do poder espiritual – uma vez que
aquela sujeição indireta só pode dar-se com relação a um poder espiritual, ou (o que é
o mesmo), se podemos conceber um poder ao qual se sujeitaria indiretamente o
temporal, este só poderia ser o espiritual. Isso o veremos ao tratar deste poder, e
portanto deixaremos esta questão para seu lugar próprio.
4. A PRIMEIRA OPINIÃO, NEGATIVA. – Foi a opinião de alguns católicos, principalmente
jurisperitos, que na Igreja de Cristo é monárquico não apenas o regime espiritual, mas
também o temporal; por isso, haveria em toda a Igreja Católica apenas um príncipe
temporal supremo, possuidor de soberania civil em toda a Igreja. Este seria, por
instituição de Cristo, o Sumo Pontífice. Por conseqüência, concluíram que nenhuma
república e nenhum rei ou imperador teria soberania em assuntos temporais, pois não
pode haver duas cabeças supremas numa mesma ordem. Portanto, se o Pontífice tem
soberania temporal diretamente e por si, é necessário que o poder em todos os demais
príncipes temporais não seja soberano, pois não haveria nenhum que não
reconhecesse um superior em assuntos temporais.

90
Alguns chegam mesmo a afirmar que todos os direitos e domínios dos reinos
foram entregues a Pedro enquanto vigário de Cristo, que assim o Romano Pontífice o
sucedeu naquele direito, e que, portanto, a soberania civil em hábito (como eles
mesmos o dizem) só existe no Pontífice, embora este o administre mediante outros
reis, por tácita ou expressa concessão. Isso dizem os principais entre os antigos
intérpretes do direito pontifício: afirma-o a Glosa,[ 138 ] Inocêncio,[ 139 ] o cardeal
Hostiense,[ 140 ] João de Andrea,[ 141 ] o Panormitano,[ 142 ] Felino,[ 143 ] Décio[
144 ] e outros.[ 145 ] Entre os intérpretes do direito romano, Bártolo de Sassoferrato,[
146 ] Oldrado,[ 147 ] Paulo de Castro[ 148 ] e outros, que citam Azpilcueta Navarro[
149 ] e Covarrubias,[ 150 ] que mencionaremos depois. A estes agregam-se
Antonino,[ 151 ] Álvaro Pais,[ 152 ] Agostinho de Ancona[ 153 ] e muitos outros por
eles citados.
5. O PRIMEIRO FUNDAMENTO. – Primeiro, apóiam-se em vários decretos dos sumos
pontífices, que parecem afirmá-lo; indicá-los-emos abaixo, quando explicarmos seu
pensamento.
Segundo, apóiam-se no costume e nos variados efeitos que demonstram este
poder, tais como: transferir o império dos gregos para os germanos, instituir o modo
de eleger o imperador e confirmá-lo, e instituir o modo de, às vezes, depô-lo. Todos
estes são atos de um poder temporal superior. Ora, se o imperador não é soberano,
tampouco o seriam os demais reis. Por isso também os reis foram às vezes depostos
por pontífices.
Terceiro, para aduzir também as Escrituras como prova, supõem que Cristo teve
poder direto não apenas espiritual, mas também temporal, tanto porque diz [Mateus
28:18]: Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, quanto porque era filho natural
de Deus. Disto inferem que Ele concedeu ambos estes poderes igualmente a seu
vigário. Em primeiro lugar, porque Ele próprio não o distingue em nada, senão que
diz absolutamente a Pedro [João 21:16]: Apascenta as minhas ovelhas. Sob o verbo
“apascentar” não menos se compreende o regime civil do que o espiritual. Pois consta
acerca de David, em II Samuel [5:2]: Disse-te o Senhor: tu apascentarás o meu povo
de Israel. Em segundo lugar, haveria concedido os dois poderes porque isso era
conveniente ao bom regime da Igreja, assim como à sua unidade e paz.
Quarto: aduzem uma razão natural, a saber, que num corpo deve haver uma só e
suprema cabeça, da qual todas as ações vitais procedem como de fonte primária, quer
sirvam ao corpo, quer sirvam ao espírito. Ora, a Igreja é um só corpo místico, como já
se declarou acima. Portanto, exige um só governante supremo para ambas as ordens,
e exige mesmo os dois poderes numa só pessoa – pois, se residirem em duas diversas,
nascerão infinitas dissensões e litígios, que, como a própria experiência o demonstra,
mal poderão ser contidos pela diligência e razão humanas.
6. A OPINIÃO VERDADEIRA. – Não obstante, devemos dizer que os reis cristãos têm
soberania civil em sua ordem, e não reconhecem nenhum outro como diretamente
superior – nesta mesma ordem temporal e civil – do qual dependam nos atos de sua
potestade. Por isso, resulta não haver na Igreja um único e supremo príncipe temporal
seu, ou de todos os seus reinos; ao contrário, há tantos deles quantos reinos ou

91
repúblicas soberanas houver. É esta a posição mais admitida e aprovada entre os
católicos, que em seguida citaremos.
Ora, a prova da primeira parte desta asserção depende da segunda: se provamos
que não há uma só cabeça temporal, é conseqüência necessária que haja muitos reis
soberanos, conforme propusemos. Pois agora não tencionamos deter-nos em casos
particulares sobre se este rei ou aquele seriam soberanos, nem comparar os próprios
príncipes temporais entre si; tal coisa é de todo alheia ao presente objetivo.
7. O IMPERADOR NÃO TEM SOBERANIA TEMPORAL SOBRE TODA A IGREJA. – Em razão
disto, não trataremos agora daquela questão de se o imperador seria superior em
jurisdição em todas as regiões e reinos cristãos, e se conseqüentemente seria monarca
soberano de toda a Igreja; isso porque, embora possa ser pertinente à segunda parte
da asserção, em nada contribui para explicar os dogmas da fé. Portanto, brevemente
suporemos que o imperador não possui domínio ou jurisdição temporal soberana
sobre toda a Igreja (o que quer que pensem Bártolo e alguns outros jurisperitos), seja
porque nunca o possuiu, seja porque, embora o tivesse possuído, perdeu-o em sua
maior parte.
O mais provável é que nunca o tenha possuído, pois nunca o obteve de modo
sobrenatural ou extraordinário de Cristo Senhor ou do Romano Pontífice (o que
constará a fortiori a partir do que diremos), nem o adquiriu mediante algum direito
humano, visto que nunca o imperador sujeitou a si o mundo inteiro ou toda a Igreja,
quer por eleição, quer por guerra justa. Ainda que concedamos que os antigos
imperadores cristãos tenham sido príncipes legítimos de todo o seu domínio, disto
não se conclui que tenham sido príncipes de todos os cristãos, pois fora de seu
território muitos povos puderam ser cristãos.
Porque, como diz retamente Próspero,[ 154 ]a graça cristã não se contentou com
possuir os mesmos limites que os de Roma, e com o cetro da cruz submeteu a muitos
povos que não domou com suas armas. Por isso nos disse acerca de Roma o Papa
Leão:[ 155 ]Para que presidisses mais extensamente com a religião divina do que
com a dominação terrena.
Ocorreu que o próprio Império Romano fosse dividido em Oriental e Ocidental, e
que depois o Império Ocidental (o único que permaneceu entre os cristãos, estando
ocupado por pagãos o Oriental), embora se encontrasse sob uma só pessoa quanto à
dignidade, quanto à jurisdição foi dividido em muitos príncipes e reis. Destes, embora
alguns sejam sujeitos ao imperador, vários se julgam legitimamente isentos pelo
direito de prescrição, ao que se soma o consentimento do povo ou o título de uma
guerra justa.
E, portanto, além do imperador, agora supomos que haja monarcas temporais
totalmente livres de sua jurisdição, tais como o rei da Espanha, o da França e o da
Inglaterra.
8. Assim, apenas resta por provar a asserção sobre o Sumo Pontífice. Pois, se ele não
tem domínio próprio de jurisdição temporal soberana sobre todos os reinos da Igreja,
de nenhum outro se pode imaginar que teria tal primado, e conseqüentemente haverá
vários reis temporais soberanos. Ora, entre os teólogos, a opinião de que o Pontífice
não possui tal jurisdição temporal sobre toda a Igreja foi algo sustentado sobretudo

92
por Maior,[ 156 ] Caetano,[ 157 ] Vitória,[ 158 ] Soto[ 159 ] e Belarmino,[ 160 ] que
aduz vários outros autores. Entre os jurisperitos, defendem-na Covarrubias,[ 161 ]
Azpilcueta Navarro,[ 162 ] Pedro Bertrand[ 163 ] e – o que é o mais importante – os
próprios Sumos Pontífices, que reconhecem simpliciter essa verdade em muitas
passagens.
9. PROVA-SE A ASSERÇÃO PELA AUTORIDADE DOS SUMOS PONTÍFICES. – Assim,
devemos primeiro provar nossa asserção mediante o estudo dos direitos pontifícios.
Escreveu ao arcebispo Albino o Papa Nicolau: A santa Igreja de Deus não tem
gládio senão o espiritual.[ 164 ] Ora, por “gládio” costuma-se significar no direito
canônico o poder temporal. Portanto, esta frase deve entender-se maximamente
acerca do poder direto e da jurisdição que a santa Igreja possui per se, por sua razão
intrínseca – pois a Igreja ou um prelado eclesiástico podem ter em seu próprio
território, por outro título, o gládio temporal, tal como o Romano Pontífice o detém
em seu domínio particular.
Além disso, Nicolau,[ 165 ] na Epístola ao Imperador Miguel, assim se expressa:
Nem o imperador arrebatou os direitos do pontificado, nem o pontífice usurpou o
nome de imperador; pois Cristo, por atos próprios e dignidades distintas, assim
discerniu os ofícios de poder de cada um.
Também nos ensina o Papa Gelásio,[ 166 ] quando, em sua Epístola 10 ao
imperador Anastácio, escreve serem duas as coisas pelas quais o mundo se rege
principalmente: a autoridade sacra dos pontífices e o poder régio. Também o Papa
Gregório[ 167 ] diz ao imperador Maurício: Para isto foi dado o poder sobre todos os
homens à piedade de meus senhores: para que o reino terrestre sirva ao reino
celeste. E ainda o Papa João, na epístola ao imperador Justiniano, reconhece seu
principado soberano e potestade régia.[ 168 ]
10. Além disso, Inocêncio III, no capítulo Novit, em De Iudiciis,[ 169 ] claramente
julga que o rei dos francos possui jurisdição temporal soberana, a qual o Papa não
quer perturbar nem minorar; por isso, diz em seguida: Pois não tencionamos julgar
sobre o feudo cujo juízo cabe a ele, manifestamente indicando que isso não lhe diz
respeito –ao menos não diretamente, como em acerto o indicaram a Glosa[ 170 ] e o
Papa Inocêncio. E o declara mais extensamente, quando agrega que: Exceto se por
acaso o direito comum for derrogado mediante algum privilégio especial ou costume.
Pois, mediante tal exceção, declara que o direito régio não é abolido mediante o
direito divino. Além disso, Inocêncio, no capítulo Per Venerabilem (título Qui filii
sint legitimi),[ 171 ] diz expressamente sobre o rei dos francos que este não reconhece
superior em assuntos temporais. E da Sé Apostólica diz ele que pode dispor
livremente – isto é, direta e absolutamente – no patrimônio de São Pedro, em que se
exerce tanto a autoridade de Sumo Pontífice quanto a de sumo príncipe (temporal),[
172 ] claramente julgando que, nos outros reinos, não pode dispor dos assuntos
temporais com a mesma liberdade. Também no capítulo Solitae (título De
Maioritate),[ 173 ] diz-nos que, nos assuntos temporais, o imperador é o mais
excelso em seu domínio; diz ainda que ele está à frente nos temas do mundo.[ 174 ]
Ademais, no capítulo Causam 2 (Qui filii sint legitimi), Alexandre III diz

93
expressamente ao rei que não cabe à Igreja julgar sobre as posses temporais, e fala em
particular do rei da Inglaterra.[ 175 ]
Portanto, consta suficientemente que os próprios Romanos Pontífices nunca se
arrogaram este tipo de poder – o que será demonstrado ainda melhor pelo que
exporemos em seguida.
11. CHEGA-SE À MESMA CONCLUSÃO PELA VIA DA RAZÃO. – Em segundo lugar, esta
verdade se demonstra principalmente porque ninguém pode indicar um justo título
que conceda ao Sumo Pontífice o domínio direto de jurisdição temporal sobre todos
os reinos da Igreja. Portanto, não a possui, nem a pode obter sem justo título.
Provemos a assertiva anterior: ou tal título seria de direito divino positivo, ou de
direito humano. Ora, pelo que foi dito, é evidente que não pode proceder
imediatamente de direito natural: pois provou-se que de direito natural imediato
apenas a comunidade humana perfeita (e congregada politicamente no corpo de uma
mesma república) possui jurisdição temporal soberana sobre si própria; e a
congregação da Igreja, embora seja um mesmo corpo espiritual (ou místico) de
Cristo, e possua neste gênero unidade de fé, batismo e cabeça, não está unida em
razão de uma mesma congregação política, senão que em si contém vários reinos e
repúblicas que no gênero político não têm qualquer unidade entre si. Portanto, por
força do direito natural não se encontra imediatamente em toda a comunidade da
Igreja uma mesma jurisdição temporal e universal sobre ela inteira; ao contrário, há
tantas jurisdições temporais soberanas quantas comunidades políticas houver, as
quais não são membros de um mesmo reino ou república civil.
12. A SOBERANIA CIVIL NÃO COMPETE AO SUMO PONTÍFICE PELO DIREITO HUMANO. –
Disto se conclui, com evidência não menor, que a soberania civil não se encontra
num príncipe eclesiástico em razão de algum título humano pelo qual tal potestade
temporal lhe tenha sido transferida.
Pois este título poderia haver sido a eleição e o consentimento dos povos – o que
aqui não tem lugar, como é evidente por si, visto que nunca todos os povos cristãos se
submeteram por própria vontade e consentimento a um só homem enquanto príncipe
temporal soberano.
Poderia haver sido o título de guerra justa, que claramente tampouco tem lugar
num príncipe eclesiástico.
Poderia haver sido o de legítima sucessão, que tampouco se aplica aqui (apoiando-
se precisivamente no direito humano), pois pressupõe ter havido legítimo título e
domínio no predecessor, e assim, ascendendo, necessariamente exige ancorar-se em
alguém que tenha obtido aquele domínio por outro título humano que não fosse a
sucessão – o que não teria podido dar-se senão pelo consentimento dos povos, ou por
uma guerra que a princípio tivesse sido justa, ou uma que se tivesse feito justa pelo
consentimento popular tácito ou pela passagem de um tempo legítimo.
Ora, nenhum destes casos acima ocorre com qualquer dos pontífices em que
possamos pensar, em qualquer dos tempos ou séculos que se tenham passado.
Por fim, poderia ser esse título o de alguma doação feita por homem, o que é
quase idêntico ao título de sucessão acima descrito: pois ninguém pode doar o que
não é seu, e nenhum príncipe temporal possuiu jamais a jurisdição temporal soberana

94
direta sobre todas as regiões e reinos cristãos, como já observamos. Assim, não há
ninguém que tivesse podido fazer tal doação à Igreja ou ao Pontífice.
13. E todas essas coisas são confirmadas pelo direito canônico,[ 176 ] que ensina que
o Romano Pontífice recebeu mediante doação do imperador Constantino o direito e
domínio temporais sobre o reino romano – o chamado “patrimônio de São Pedro”.
Disto se vê claramente que por título de doação o Papa só tem jurisdição temporal
direta sobre o reino e as cidades que constituem o patrimônio de Pedro, o qual
compreende todo o domínio temporal que possui agora o Romano Pontífice, quer
tenha sido inteiramente doado por Constantino, quer este o tenha iniciado e outros
reis e príncipes o tenham aumentado.177[ 178 ]
14. PROVA-SE O MESMO PELO DIREITO DIVINO. – Falta que tratemos do título de direito
divino positivo, o qual só pôde ter tido início por doação de Cristo Senhor, e em
seguida perdurado por sucessão legítima. Ora, por Cristo Senhor não foi feita
nenhuma doação de tal tipo, e conseqüentemente nenhuma sucessão legítima pode
haver em tal jurisdição temporal. Portanto, por este título tampouco convém ao
Pontífice tal jurisdição.
Prova-se, primeiro, que Cristo não a deu à Igreja: se a tivesse dado a alguém, o
teria feito sobretudo a Pedro, segundo agora suponho, em razão do que depois
diremos sobre o primado do Romano Pontífice. Mas que a Pedro não se a doou,
conclui-se por Mateus [16:19], onde, antes das palavras “o que atares e o que
desatares”, faz-lhe Cristo a promessa: A ti darei as chaves do reino dos céus. Logo,
não prometeu Cristo a Pedro as chaves do reino terreno – e portanto não lhe prometeu
domínio nem jurisdição temporais, mas poder espiritual.
Por isso, o que logo adiciona Cristo – a saber, “o que atares e o que desatares” –
deve sem dúvida ser entendido segundo o poder que prometera com a expressão das
“chaves”. Também as palavras “Apascenta minhas ovelhas” devem ser entendidas
com respeito ao mesmo poder, pois ali cumpre o Cristo a promessa antes feita. Em
nenhuma outra passagem indicou Cristo que daria a Pedro ou à sua Igreja domínio
temporal ou reino próprio direto, nem tampouco o demonstra a tradição eclesiástica –
em verdade, viu-se o contrário. Portanto, nenhuma via sobrenatural pode constar-nos
para uma jurisdição temporal e direta do Pontífice. Logo, não se lhe pode atribuí-la
com fundamento, pois Pedro não poderia obtê-la senão sobrenaturalmente.
15. Além disso, há excelente indício de que o próprio Cristo, em sua humanidade, não
assumiu para si nenhum reino terreno ou temporal com o domínio e jurisdição
temporal diretos que residem no imperador ou nos demais príncipes humanos.
Portanto, tampouco os atribuiu a seu vigário na terra. Supomos a antecedente a partir
do que dissemos sobre o reino de Cristo [em outra obra de nossa autoria],[ 179 ] e que
agora brevemente se demonstra a partir disto que diz a Escritura sobre a pobreza de
Cristo Senhor: Conheceis a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por
nós fez-se pobre, para que por sua pobreza fôsseis ricos [II Coríntios 8:9]. Por isso
João XXII, na Extravagante Cum Inter Nonnullos (título De Verborum
Significatione),[ 180 ] ao ensinar que Cristo teve, apesar de sua pobreza, domínio
sobre algumas coisas poucas e ordinárias, abertamente supõe que não obteve domínio
de reinos ou de outros bens cuja posse torna ricos os homens.

95
Isto indicou-o o próprio Senhor, quando disse em Mateus 8[:20] e Lucas 9[:58]
que O Filho do homem não tem onde repousar a cabeça. E mostrou-nos o mesmo
acerca da jurisdição temporal, quando, em Lucas 12, a quem lhe pedia: Dize a meu
irmão que divida comigo a herança, respondeu: Homem, quem me constituiu juiz ou
repartidor sobre vós? – como se dissesse não ter recebido aquele poder de julgar,
nem ter vindo ao mundo para exercer jurisdição temporal, como o comentam
retamente Ambrósio,[ 181 ] Teofilacto[ 182 ] e Eutímio.[ 183 ]
16. Confirmou-o também o próprio Senhor, em João [18:36], dizendo: O meu reino
não é deste mundo, ou seja, não é temporal e terreno como o reino de César, como o
expõem Cirilo,[ 184 ] Crisóstomo[ 185 ] e (de modo excelente) Agostinho, que diz:
Ouvi todos vós, reinos terrenos: não impeço vosso domínio no mundo, meu reino não
é deste mundo.[ 186 ] Por isso, todos os Padres ensinam que Cristo recebeu o reino
espiritual, que não exclui a verdadeira pobreza.
Em razão disto se prevê em Zacarias 9 que viria um salvador que seria rei e pobre,
o que em Mateus 21 e João 12 declarou-se haver sido cumprido em Cristo. Também
nos Salmos [2:6] diz-se de Cristo: Por ele me constituí rei em Sião, seu monte santo –
e logo depois agrega-se: para pregar a sua lei, assim significando que tal reino é
espiritual, não terreno. Por isso Agostinho diz acima que não é deste mundo aquele
monte sobre o qual Cristo foi constituído rei, pois os que crêem em Cristo, os que são
de seu reino, não são deste mundo. Hilário,[ 187 ] por sua vez, diz não se tratar da
Jerusalém terrestre, mas da celeste. Também neste tom deu-se a previsão feita pelo
anjo acerca de Cristo [Lucas 1:32-33]: E lhe dará o Senhor o trono de David, seu pai;
e logo agrega: E reinará para sempre na casa de Jacó, e seu reino não terá fim. Isso
porque não havia de ser um reino temporal, mas espiritual, como o observaram
Epifânio[ 188 ] e Jerônimo,[ 189 ] ao comentar Jeremias 22 e Zacarias 6. A razão
disto é que o reino temporal não foi necessário a Cristo para sua honra e majestade, e
foi mais conveniente à nossa redenção que ele não o tomasse.
17. OBJEÇÃO. SOLUÇÃO. – Assim, facilmente provamos a primeira conclusão. Pois
Cristo não conferiu a seu vigário um poder que Ele mesmo não tomou para si. Mas
dirás: embora Cristo não tenha possuído um reino temporal caduco e imperfeito,
possuiu também em sua humanidade – devido à graça unitiva – um domínio ainda
mais excelente, pelo qual podia por sua vontade valer-se de quaisquer coisas ou
reinos temporais; conseqüentemente, teria também podido dar a seu vigário reinos
temporais e direta jurisdição temporal.
A isso respondemos que não se nega que Cristo poderia fazê-lo, assim como pôde
tomá-lo para si, mas concluímos que, como não o tomou para si, tampouco o deu;
pois não deixou na terra senão um vigário daquele reino que de fato assumiu – a
saber, o espiritual (como demonstramos), que se consuma perfeitamente na glória, e
que começa neste mundo, na Igreja militante.
Ademais, como Cristo possuiu perfeito poder espiritual sem qualquer jurisdição
temporal direta, pôde também comunicar a seu vigário perfeita (ou suficiente)
jurisdição espiritual sem dar-lhe outra diretamente temporal.
Finalmente, assim como foi conveniente que o próprio Cristo não houvesse
assumido jurisdição temporal, assim também o foi que não a comunicasse a seu

96
vigário, tanto para não perturbar os reis da terra, quanto para não parecer mesclar as
coisas espirituais com as seculares.
18. Donde podemos, por último, argumentar mediante a razão. Pois um domínio
temporal com jurisdição direta e civil sobre toda a Igreja não era algo necessário ao
regime espiritual da Igreja – o que é evidente por si. Tampouco era útil a esse mesmo
fim; em verdade, ter-lhe-ia podido ser um grande impedimento. Logo, não é
verossímil que tivesse sido dado por Cristo.
Prova da asserção menor: em primeiro lugar, o regime temporal é muito diverso
do espiritual, e implica os homens em negócios seculares que maximamente os
desviam das coisas espirituais, como dizia São Paulo em II Timóteo [2:4]: Ninguém
que milita para Deus se implica com negócios da vida civil. Logo, não é crível que
Cristo Senhor tenha fundido essas duas potestades supremas e universais num só
Sumo Pontífice da Igreja, por ser moralmente impossível que um só homem baste
para o peso de ambos esses governos universais.
19. OBJEÇÃO E UMA PRIMEIRA RESPOSTA. – Mas dirás que com esse raciocínio se
provaria que o Sumo Pontífice ou os demais bispos não poderiam nem deveriam ser
simultaneamente príncipes temporais. Respondemos, primeiro, que é verdadeiro que
Cristo Senhor não instituiu tal coisa nem a ordenou, nem deu principado temporal a
algum de seus ministros ou pastores; o raciocínio que realizamos o prova, e
confirmam-no as coisas que dissemos acerca do reino de Cristo, pois Ele não assumiu
magistratura secular nem principado temporal sobre todo o mundo, nem sobre parte
deste. Portanto, tampouco o comunicou a qualquer bispo ou vigário seu, e o que Ele
disse acerca de si – a saber, Quem me constitui juiz ou repartidor sobre vós? – vale
para cada um dos bispos. Isso também o demonstra Bernardo,[ 190 ] com outros
testemunhos e longo raciocínio.
Não obstante, acrescento que Cristo não proibiu que o Pontífice ou um bispo
pudesse ser também senhor temporal; isso pelo fato de que tal proibição não pode ser
demonstrada, como apontamos acima, e sobretudo pelo que constará do que ainda
diremos. Tampouco tal coisa se deduz do raciocínio proposto, pois não é algo mal em
si que uma mesma pessoa seja pastor eclesiástico e príncipe temporal. Ao contrário,
embora um cuidado temporal muito constante e universal não convenha retamente à
solicitude espiritual, certo principado temporal moderado pode não só ser lícito, mas
também conveniente para conservar o esplendor e a autoridade da Igreja, assim como
para os gastos necessários e outros fins honestos semelhantes, como se diz com acerto
no capítulo Fundamenta (título De Electione).[ 191 ] E por isso Cristo Senhor não o
proibiu, mas deixa-o à humana disposição, regulada pela reta razão e segundo a
conveniência dos tempos.
20. SEGUNDA SOLUÇÃO, E REJEIÇÃO DA RESPOSTA. – Também se poderia responder de
outra maneira ao argumento que apresentamos. Dir-se-ia que ele apenas prova que o
exercício de ambas as jurisdições universais não deve ser entregue a uma mesma
pessoa, mas que ambas podem ter sido dadas em hábito ao Pontífice, e que foram
dadas segundo tal lei e condição: que a jurisdição espiritual se exerça por si, ao passo
que a temporal seja exercida ordinariamente mediante outros.

97
Mas isso se refuta facilmente, não apenas porque tal jurisdição em hábito não se
demonstra segundo nenhum título nem modo provável, mas também porque ela é
impertinente ou profundamente odiosa. Ou, ainda, porque aquele que possui tal
jurisdição nunca deverá empregá-la per se (e assim será ociosa e inútil), já que nunca
pode alguém usá-la mediante outros sem antes a usar per se, ainda que seja para
delegá-la ou concedê-la ordinariamente. Mas, se se diz que ela é dada para tal uso,
pergunto-me se (por exemplo) o Pontífice abdicaria totalmente de tal jurisdição ao
conferi-la, e abandonaria doravante todo o seu respectivo cuidado, ou se a conferiria
de maneira a sempre permanecer temporalmente superior e dotado do poder de
revogar tal concessão – ou limitá-la, ou corrigi-la, ou emendar os atos por ela
realizados.
Se considerada do primeiro modo, ela é estéril e ociosa: que importa que o
Pontífice tenha em hábito tal poder, se necessariamente deveu dá-lo a outros por
quem ele seria exercido – e se, depois de dado, já não pode exercer atos de um
superior naquela ordem? Antes se conclui que ele agora já não o tem, e que apenas se
imagina que ele o teve nalgum momento, no intuito de atribuir ao Pontífice a
emanação de tal poder aos príncipes seculares – situação abundantemente
promovedora de inveja e maximamente odiosa, ademais de infrutífera e infundada.
21. Por outro lado, se tal jurisdição for considerada do segundo modo – enquanto algo
em hábito que pode passar ao ato quando se queira ou quando for oportuno – tornam-
se ainda maiores o ódio e a inveja, pois assim os príncipes temporais não serão reis
soberanos, e será falsa aquela canção de Sedúlio,[ 192 ] acolhida e muito celebrada
pela Igreja: Não tolhe reinos mortais quem os dá celestiais. E poderia o Papa, ao seu
arbítrio, subtrair ou alterar os reinos temporais, assim como reclamar para si os
juízos, dispensações e atos semelhantes sobre as coisas temporais – e isso de maneira
ao menos válida, pois, embora talvez não atuasse bem (em razão da perturbação da
ordem), teria vigor a sua ação, pois procederia de uma jurisdição soberana, da qual
depende a inferior.
Ora, isso é não apenas odioso e capaz de perturbar (não sem motivo) os ânimos
dos reis, mas é também algo incrível em si, por contrário à paz universal da Igreja e à
sua prática universal e perpétua. Daí não o admitirem nem mesmo aqueles
jurisperitos que dizem ter o Sumo Pontífice jurisdição temporal soberana. Ao
contrário, quanto a muitas ações de jurisdição temporal, tais jurisperitos negam
absolutamente que o Pontífice possa usurpá-las fora de seu próprio domínio, como o
ensinam comumente os doutores no capítulo Per Venerabilem.[ 193 ] Finalmente, se
deste modo tivesse o Pontífice jurisdição temporal de toda a Igreja, sua atenção
pessoal a um bom regime temporal sobre todos os reinos da Igreja não seria menos
necessária do que sua atenção pessoal ao regime espiritual de todos os episcopados;
pois trata-se de uma mesma razão e obrigação, guardadas as devidas proporções. E
assim procede o argumento que movemos, de que esta dupla solicitude universal
excede moralmente as forças e capacidades humanas, e é contrária a toda a razão e à
prática costumeira.
22. REFUTAM-SE OS FUNDAMENTOS DA OPINIÃO CONTRÁRIA. – Entre os fundamentos da
opinião contrária, o primeiro e o segundo têm validez apenas acerca do poder

98
indireto. E certamente muitos dos autores aduzidos em prol da referida sentença
apenas falam desse tipo superior de poder, conforme exporemos no fim deste livro.[
194 ]
O terceiro fundamento, por sua vez, procede de um princípio falso, pois Cristo
Senhor não assumiu reinos temporais, como já dissemos.
Da mesma maneira, o quarto fundamento é deficiente, pois a Igreja não é uma só
república temporal, como o é espiritual. Portanto, não carece de um poder temporal
único diretamente soberano, mas de um único poder espiritual que se estenda às
coisas temporais, como também veremos mais adiante.

[ 137 ] Vale notar o giro de linguagem que consta da redação original latina. A frase “atheus vel amens”, que
repete o mesmo prefixo negativo, nos indica que um príncipe que adotasse tal posição seria, ou sem Deus, ou
sem mente. [N. T.]
[ 138 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, lib. II, tít. I, cap. 13 (De Iudiciis), fol. cxlix.
[ 139 ] PAPA INOCÊNCIO IV, Commentaria super Libros Quinque Decretalium, Frankfurt, 1570, II, tit. 27, c.
27, pp. 317-8.
[ 140 ] HENRIQUE DE SEGÚSIO, Summa aurea, Veneza, 1574, lib. IV, col. 1385.
[ 141 ] In Secundum Decretalium librum Novella commentaria, Veneza, 1612.
[ 142 ] NICOLAU DE TUDESCO (chamado PANORMITANUS), In primam secundi decretalium libri partem,
Veneza, 1591, cap. XIII, 6, fol. 32.
[ 143 ] FELINO SANDEU, Commentariorum Felini Sandei Ferrariensis in Decretalium libros V pars secunda,
Veneza, 1570, tit. 1, cap. XIII, 3b-c, col. 92.
[ 144 ] FELIPE DÉCIO, In Decretalium volumen perspicua commentaria, Veneza, 1576, fol. 71 (causam quae);
173-6 (novit de iudiciis).
[ 145 ] Cf. Decretum Gratiani, Veneza, 1595, I, d. 10, c. 8 (Quoniam idem); d. 96, c. 6 (Cum ad verum), pp.
30-31.
[ 146 ] Consilia, quaestiones et tractatus, Veneza, 1585, Tract. super Const. ad reprimendum, 8, fol. 95.
[ 147 ] OLDRADO DE PONTE, Consilia seu Responsa et Quaestiones aureae, Veneza, 1571, Consilium
CLXXX, fol. 75.
[ 148 ] In Primam Codicis partem Commentaria, Lyon, 1585, ff. 25-7.
[ 149 ] MARTÍN DE AZPILCUETA NAVARRO, Commentarii et tractatus, Veneza, 1601, t. III, Relectio cap. Novit
de iudiciis, ff. 60-84.
[ 150 ] DIEGO DE COVARRUBIAS E LEIVA, Regvlae Peccatvm. De Regul. Iur. Lib. VI. Relectio, Veneza, 1568,
II, § 9, 7, pp. 211-5.
[ 151 ] ANTONINO DE FLORENÇA, Tomus Summe Sancti Antonini Archiepiscopi Florentini Ordinis
Praedicatorum, Lyon, 1529, III, tit. 22, cap.5 §13 e 17, ff. 202-4.
[ 152 ] De Planctu Ecclesiae, Veneza, Sansovinus, 1560, lib. I, cap. 37, ff. 14-5.
[ 153 ] Summa de ecclesiastica potestate, Roma, 1479, qq. XXXV-XLV.
[ 154 ] De Vocatione omnium gentium, II, cap. 16 (PL 51, 704A).
[ 155 ] S. LEÃO MAGNO, Sermones, 82, c. I (PL 54, 423A).
[ 156 ] JOÃO MAIOR, Joannis Maioris doctoris Theologi In Quartum Sententiarum, Paris, 1519, IV, d. 24, q. 3,
ff. ccxiii-ccxvi.
[ 157 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Lyon, 1554, q. 104, a. 6,
fol. 178.
[ 158 ] FRANCISCO DE VITÓRIA, Relectiones theologicae, Lyon, 1586, II, De potestate Ecclesiae, 6, pp. 36-8.
[ 159 ] DOMINGO DE SOTO, De iustitia et iure, Lyon, 1559, IV, q. 4, art. 1, pp. 218-221.
[ 160 ] S. ROBERTO BELARMINO, De Summo Pontifice, Ingolstadt, 1599, lib. V, c. 1 e seq., p. 600.
[ 161 ] Loc. cit.
[ 162 ] Loc. cit.
[ 163 ] Tractatus de origine iurisdictionum, Paris, 1520, q. 3, fol. ix.
[ 164 ] Decreta ex Gratiano collecta, De matrimonio (tit. XVIII), VIII (PL 119, 1198D).
[ 165 ] Epistolae et decretae, LXXXVI (PL 119, 960D).
[ 166 ] Epistolae et decretae, Epistola VIII (PL 59, 42A).
[ 167 ] Epistolarum Lib. III, Indict. XI, Epist. 65 (PL 77, 663B).
[ 168 ] Corpus Iuris Civilis, Codex Iustiniani, Lyon, Hugues de la Porte, 1558-1560, I, tit. IIII, col 14.

99
[ 169 ] Innocentii III Pp. Regestorum Lib. VII, Pontificatus Anno VII, Christi 1204, XLII (PL 215, 325D-
326C).
[ 170 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, II, tít. I, cap. 13 (De Iudiciis), fol. cxlix.
[ 171 ] Op. cit., IV, tít.17, c.13 (Per venerabilem), fol. ccccxxi.
[ 172 ] Idem, fol. ccccxx.
[ 173 ] Op. cit., I, tít. 33, c.6 (Solitae), fol. cxx.
[ 174 ] Literalmente, “nos temas da carne”. [N. T.]
[ 175 ] Op. cit., IV, tít. 17, c. 7 (Causam quae 2), fol. ccccxix.
[ 176 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, I, dist. 96, can. 13 e 14, pp. 443-6.
[ 177 ] Sextus liber Decretalium, Paris, 1513, I, tit. 6, cap. 17, ff. xliii-xlv.
[ 178 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, II, causa 12, q. 1, can. 15, p. 915.
[ 179 ] De Incarnatione, Veneza, 1745, p. I, Disput. 48, sect. 2, p. 607.
[ 180 ] Extravagantes XX Johannis XXII, Paris, 1513, tít. 14, c. 4, ff. li-liii.
[ 181 ] Expos. Evang. Sec. Lucam, VII (vv. 13, 14) (PL 15, 1730B).
[ 182 ] TEOFILACTO DE ÁCRIDA,Ennarratio in. Evang. Matt., 8 (PG 123, 221C-D), e Ennarratio in. Evang.
Luc., 9 (PG 123, 831C-D).
[ 183 ] EUTÍMIO ZIGABENO, Comment. in Matthaeum e Comment. in Lucam (PG 129).
[ 184 ] S. CIRILO DE ALEXANDRIA, In Ioannis evangelium, XII, cap. 18, 36 (PG 74, 620C-621A).
[ 185 ] S. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilia In Ioannem, 84, 1 (PG 59, 455).
[ 186 ] In Ioannis evangelium tractatus CXXIV, 115, 2 (PL 35, 1939).
[ 187 ] S. HILÁRIO DE POITIERS, Tractatus super psalmos, 124, 4 (PL 9, 681C).
[ 188 ] Adversus Haereses, I, II, 29, 3 (PG 41, 392).
[ 189 ] Commentaria in Ieremiam, 22 (vv. 29, 30) (PL 24, 819A).
[ 190 ] S. BERNARDO DE CLARAVAL,De Consideratione ad Eugenium Tertium, I, c. 6, n. 7 (PL 182, 735C-
736B) e II, cap. 6 (PL 182, 747A-750B).
[ 191 ] Sextus liber Decretalium, Paris, 1513, I, tit. 6, cap. 17, ff. xliii-xlv.
[ 192 ] CÉLIO SEDÚLIO, Hymnus, vv. 31 e 32 (PL 19, 765A).
[ 193 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, IV, tít.17, c.13 (Per venerabilem), fol. ccccxxi.
[ 194 ] Seção ausente desta edição compilada.

100
Capítulo VI
Se há na Igreja de Cristo um poder
espiritual de jurisdição externa, como
que político, distinto do temporal
1. O poder eclesiástico é de outra ordem e jurisdição. 2. Também é dupla a
jurisdição eclesiástica. O sentido da questão. 3-4. A heresia de Marsílio e o
fundamento do cisma anglicano. 5. O fundamento desta heresia. 6. Primeira
asserção, de fé. Sua prova pela Escritura. 7-8. Também com a razão se demonstra a
mesma verdade. 9. Uma evasiva do rei da Inglaterra e seus argumentos. 10. Refuta-
se a evasiva do rei. 11. Responde-se à primeira prova do rei. 12. Responde-se à
segunda razão do rei. 13-14. O Espírito Santo não se pode dizer propriamente
vigário de Cristo. 15-16. Cristo Senhor conferiu a Pedro verdadeira jurisdição
espiritual. 17. Distinção entre poder espiritual e temporal. 18-19. Refutam-se os
fundamentos dos erros mencionados no início deste capítulo.

1. O PODER ECLESIÁSTICO É DE OUTRA ORDEM E JURISDIÇÃO. – Até agora tratamos do


poder temporal, para que conste que nenhum príncipe cristão pode com razão
argumentar que a Igreja e a doutrina católicas lhe subtraem arbitrariamente seu
devido poder. Agora, devemos tratar do poder espiritual, para mostrar que também
neste âmbito os reis cismáticos fazem indevida usurpação, e para explicar em que
coisas eles se recusam a obedecer e submeter-se – contra o direito divino – à
potestade eclesiástica.
Como é múltiplo o poder eclesiástico, em nosso título restringimos a questão ao
poder de jurisdição espiritual e externa. Pois sói distinguir-se dois poderes
eclesiásticos, a saber, o de ordem e o de jurisdição; a estes dois ramos reduzem-se os
demais que se costumam enumerar, como bem o observou Azpilcueta Navarro.[ 195 ]
Não trataremos aqui do poder de ordem, pois não é pertinente à presente
controvérsia, uma vez que não consiste no poder do superior sobre os súditos, mas em
certa faculdade moral ordenada ao culto religioso de Deus, seja pela oblação do
sacrifício, seja pela administração ou dispensação dos sacramentos instituídos para a
santificação dos fiéis, seja por quaisquer outras cerimônias que, para ornar o
sacrifício ou os sacramentos, devem realizar-se conveniente e ordenadamente. Donde
tampouco os protestantes parecem negar de todo tal poder, por mais que o
interpretem de modo a confessá-lo mais nominal do que realmente. Isso, porém, há de
ser examinado no tratado sobre os sacramentos.
2. TAMBÉM É DUPLA A JURISDIÇÃO ECLESIÁSTICA. O SENTIDO DA QUESTÃO. –
Igualmente, o poder de jurisdição se divide na jurisdição do foro interno de penitência
e na do foro externo eclesiástico. A primeira constitui proximamente os sacerdotes

101
como superiores e juízes em certo foro divino e secreto, que se exerce no sacramento
da penitência. E embora sobre ela haja também grande contenda dos hereges de
nossos tempos contra a Igreja Católica, agora a omitimos, pois nem o rei Jaime a
aborda, nem ela diz respeito ao governo externo ou eclesiástico. Assim, omitidos
estes poderes, trataremos do poder de jurisdição externa dada para o governo da
Igreja, na medida em que ela é certa república espiritual e corpo místico de Cristo; a
tal jurisdição chamamos “espiritual” para distingui-la da temporal. Nossa intenção é,
portanto, investigar se existe tal jurisdição, e se ela é distinta da temporal.
3. A HERESIA DE MARSÍLIO E O FUNDAMENTO DO CISMA ANGLICANO. – Em torno desta
questão revolveu a heresia de Marsílio de Pádua, que há quase quinhentos anos[ 196 ]
disse, entre outras heresias, que Cristo não deu nenhuma jurisdição sobre sua Igreja
aos bispos ou ao Romano Pontífice, nem sobre leigos nem sobre clérigos, nem para
preceituar nem para obrigar, nem para coagir nem para punir. Apenas teria dado aos
sacerdotes o poder de ministrar os sacramentos e pregar a palavra de Deus; em todo o
restante, teria deixado seus súditos à disposição e jurisdição dos príncipes temporais.
Assim descrevem este erro vários autores, mas o faz mais precisamente que outros
Alberto Pighi.[ 197 ] E neste erro parece haver-se fundado Henrique VIII, rei da
Inglaterra, para fomentar seu cisma contra a Igreja Romana. Pois, para negar
obediência ao Pontífice, negou também (por conseqüência) haver na terra um
superior seu, tanto em assuntos temporais quanto espirituais – por isso afirmou
possuir em seu reino toda a soberania que respectivamente pode haver na Igreja. E o
mesmo parece haver pensado acerca de qualquer outro rei cristão, pois não pôde
encontrar em si, mais do que em outros reis soberanos, maior razão ou título para tal
poder – e é isso que clara e freqüentemente o rei Jaime afirma ou supõe em seu
PrefácioAdmonitório aos Príncipes Cristãos.
4. Portanto, estão manifestamente convencidos de não reconhecer na Igreja outro
poder jurisdicional além daquele que existe nos reis temporais ou que dele emana,
pois não podem alegar nenhum outro título com que usurpá-lo. Por conseguinte,
assim como antes dissemos que o poder régio emanou do povo aos reis, relatam por
sua vez as crônicas anglicanas que o rei Henrique arrogou para si este poder mediante
consentimento do reino em parlamento, e que com consenso semelhante declarou-se
o mesmo quanto a Eduardo, seu sucessor imediato, afirmação renovada sobre
Elizabete.
Logo, isso é sinal de que acerca desse poder não pensam de outro modo senão
sobre o poder político; e o mesmo dá a entender abertamente o rei Jaime, quando
professa tê-lo por direito hereditário e título de sucessão carnal. Ora, tampouco foram
alheios a este erro Calvino ou Lutero, porque, embora Calvino não tenha aprovado o
primado de Henrique, ainda assim foi levado por outro princípio a negar tal poder
espiritual. Pois Lutero e ele constituem todos os cristãos como iguais no sacerdócio, e
tolhem a distinção entre o clero e o povo leigo – e assim não põem nenhum poder
especial na Igreja para seu governo, exceto aquele que reside no magistrado político,
ou o que existe em uma sociedade para, partindo da natureza das coisas, preservar a
reta ordem.

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5. O FUNDAMENTO DESTA HERESIA. – São vários os fundamentos deste erro. Pois estes
homens que citei por último puderam fundamentar-se em sua crença de não haver na
Igreja sacrifício verdadeiro e próprio, e conseqüentemente tampouco sacerdócio
verdadeiro e próprio, mas apenas um espiritual e metafórico, comum a todos os
cristãos, dos quais se diz em I Pedro [2:5]: Vós também, como pedras vivas, sois
edificados como casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios
espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo. E mais abaixo: Vós sois a geração
eleita, o sacerdócio real.
Marsílio, por sua vez, embora não tenha negado o sacerdócio e tenha distinguido o
clero (ou presbíteros) do restante do povo, negou no entanto a ordem hierárquica no
clero, e disse que todos os presbíteros são iguais aos bispos, e os bispos ao Papa;
donde inferiu não haver entre eles – nem com respeito ao povo – sujeição ou prelazia.
Ao contrário, disse que todos estão sujeitos ao magistrado político. E aduzia aquela
passagem em Lucas [22:25-26]: Os reis dos gentios dominam sobre eles, mas não
sereis vós assim, por cujas palavras julgou ser proibido aos clérigos todo domínio ou
jurisdição. E introduzia outros testemunhos da Escritura que afastam os clérigos dos
cuidados seculares, como: Ninguém que milita para Deus se implica com negócios da
vida civil (II Timóteo 2:4), ou: Se tiverdes negócios seculares em juízo, constituí
como juízes os mais desprezíveis que houver na Igreja. (I Coríntios 6:1)
Sobre os reis da Inglaterra, não me consta outro fundamento em que se baseiem,
exceto que, distorcendo o sentido das Escrituras, negam que o poder espiritual
encontre-se nelas fundado, e exageram que elas ordenam a todos os cristãos o
submeter-se aos príncipes e magistrados. Com isso igualam a Igreja de Cristo à
Sinagoga ou a uma república fiel que pudesse existir na lei da natureza, nas quais
julgam não haver outro poder de governo além daquele que é dado aos reis na Lei
Antiga, ou do que, noutro estado, poderia dar-se pela natureza das coisas numa
sociedade ordenada pela fé ao culto e religião do Deus verdadeiro, e ser transferido
do povo aos príncipes – ou (o que é o mesmo) aos primogênitos – mediante
consentimento do povo, como um só e mesmo poder conatural.
6. PRIMEIRA ASSERÇÃO, DE FÉ. SUA PROVA PELA ESCRITURA. – Não obstante, a verdade
católica é que na Igreja há poder espiritual de jurisdição verdadeira e própria, pelo
qual o povo cristão pode ser governado convenientemente em ordem à salvação da
alma. Esta afirmação é certeza de fé, ensinada pelos católicos em consenso comum, e
provada – primeiro – com testemunhos claríssimos da Escritura. Os principais são
estes dois: O que atares, etc. (Mateus 16:19), e: Apascenta as minhas ovelhas (João
21:15-17), pontos que comentaremos detalhadamente mais adiante.
Há também ponto semelhante em Mateus [18:17]: Se não escutar a Igreja, que ele
seja para ti como um gentio ou um publicano; e agrega: Em verdade vos digo que
tudo o que atardes na terra será atado no céu, e tudo o que desatardes na terra será
desatado no céu. Ora, atar e desatar são atos manifestos de jurisdição, e aí não se fala
apenas de jurisdição do foro interno ou secreto de penitência, como é evidente, nem
de jurisdição temporal, uma vez que a excomunhão, que é o ponto de que ali se trata,
é censura eclesiástica, a qual o próprio rei Jaime também chama às vezes de
“espiritual” em seu Prefácio.

103
Há também aquelas palavras expressas de São Paulo, em II Coríntios [13:10]:
Portanto, escrevo estas coisas estando ausente, para que, estando presente, não use
de rigor, segundo o poder que o Senhor me deu para edificar, não para destruir. Ora,
este poder era espiritual, pois não havia poder temporal ou régio em Paulo.
E refere-se ao mesmo poder o que também diz o Apóstolo em Atos [20:28]:
Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos
constituiu bispos para reger a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com seu sangue. Aí
diz-nos expressamente que aos bispos foi dado poder para reger a Igreja. Ora, regime
e governo são a mesma coisa. Portanto, a não ser que se faça grande violência a tais
palavras, o Apóstolo trata ali do poder jurisdicional. E, de modo a significar que tal
regime é espiritual, adiciona em referência à Igreja: Que Ele adquiriu com seu
sangue. Pois não adquiriu Cristo com seu sangue o reino temporal, mas o espiritual.
7. TAMBÉM COM A RAZÃO SE DEMONSTRA A MESMA VERDADE. – Por isso, pode-se
confirmar esta verdade não apenas com os testemunhos da Escritura, mas também
com muito boa razão. Pois temos das Escrituras que pelo Pai foi prometido a Cristo,
Deus e homem, um reino eterno: Do fruto do teu ventre porei sobre o teu trono
(Salmos 132:11), e Sobre o trono de David e sobre seu reino se sentará (Isaías 9:7).
E acrescenta o anjo, em Lucas [1:32]: E lhe dará o Senhor o trono de David seu pai,
e reinará para sempre na casa de Jacó, e seu reino não terá fim.
E este reino prometido a Cristo não haveria de dar-se nem de iniciar-se apenas no
céu, como vemos em Daniel [7:13]: Eu olhava na minha visão da noite, e eis que
vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem. E mais abaixo: E foi-lhe dado o
poder, a honra e o reino, e todos os povos, tribos e línguas o servirão; seu poder é
poder eterno, que não se acabará; seu reino, um que não se corromperá. Ora, todos
entendem que o filho do homem é Cristo (que assim se chama muitas vezes no
Evangelho).
Quanto ao fato de que seu reino haveria de iniciar-se na terra depois de outros
impérios e durar para sempre, isso se prediz abertamente tanto naquela passagem,
quanto em Daniel 1. E disso vemos concordância em Ezequiel [37:22]: E deles farei
uma só nação na terra, nos montes de Israel; e um só rei será rei de todos eles, e seu
supremo rei será um senhor a imperar sobre todos eles, e não serão mais duas
nações. Evidentemente entende-se que tais palavras se referem a Cristo e à sua Igreja,
como consta de todo o contexto até o fim do capítulo. Ora, este reino de Cristo não é
corporal ou temporal, mas espiritual e eterno, como afirmamos no capítulo IV, e
como se depreende das palavras do próprio Ezequiel (E os livrarei de todas as
habitações em que pecaram, etc.) e de Jeremias [23:5-6]: Eis que vêm dias, diz o
Senhor, em que levantarei a David um rebento justo, que, sendo rei, reinará
sabiamente e praticará o juízo e a justiça na terra. Nos seus dias Judá será salvo, e
Israel habitará seguro; e este será o seu nome, com o qual Deus o chamará: O
Senhor, Justiça Nossa. Isso confirmam também outros testemunhos da Escritura e
dos Padres, aduzidos no referido capítulo IV.
8. Assim concluímos, ademais, que esse reino de Cristo não é senão a sua Igreja, na
qual Ele reina espiritualmente, como diz Gregório.[ 198 ] Também Agostinho: O que
é o seu reino senão os que n’Ele crêem? Aos quais diz: “não sois do mundo”.[ 199 ]

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E mais abaixo: Portanto, não diz “Meu reino não está neste mundo”, mas “Meu
reino não é deste mundo”. Nem diz “Não está aqui”, mas “Não é daqui”. Porque
aqui ele está até o fim dos tempos. Portanto, assim como o reino é espiritual, deve ser
espiritual o poder que o rege.
Mas tal reino é perpétuo não apenas no céu, como também na terra, enquanto
durar o mundo – conforme relatei a partir de Agostinho, e demonstrei no livro
primeiro,[ 200 ] ao tratar da Igreja. Portanto, também o poder espiritual para reger
este reino foi concedido por Cristo à Igreja, para que ela dure para sempre, uma vez
que não pode conservar-se um reino sem um poder governador que lhe seja
proporcionado. Por isso diz corretamente Epifânio:[ 201 ]O trono de David – e sede
régia – é o sacerdócio na Santa Igreja, que, enquanto dignidade real e também
pontifícia, foi concedido conjuntamente como dádiva de Cristo à sua Santa Igreja,
tendo sido transferido a esta o trono de David que perdurará para sempre. E mais
abaixo: Da casa carnal de Judá e de Israel foi transferida a dignidade real, mas seu
trono se assenta firmemente na Santa Igreja de Deus, para sempre.
9. UMA EVASIVA DO REI DA INGLATERRA E SEUS ARGUMENTOS. – Entretanto, a esta
razão responde tacitamente o rei Jaime em seu Prefácio (páginas 5 e 7) com as
seguintes palavras: Ainda que os reinos terrestres devam ser regidos por monarcas
terrestres, nem por isso se segue que a Igreja deva ser governada por um monarca
terrestre. E, para que seja assim, dá-nos duas razões. A primeira é que tampouco é
um só o moderador e monarca de todo o mundo e todos os reinos. A segunda é que
Cristo é o monarca de sua Igreja, e em seu lugar já está o que Ele nos prometera que
viria: o Espírito Santo. E agrega: Os reis dos gentios dominam sobre eles, mas não
sereis vós assim.
Com estas palavras, porém, o rei toca outra questão referente à monarquia, que
ainda estudaremos, e que é distinta da presente. Pois agora apenas tratamos da
soberania espiritual necessária para reger o reino de Cristo (que é a Igreja), e
afirmamos que tal poder deve existir na própria Igreja segundo ela se encontra na
terra, quer ele resida numa só pessoa, quer em muitas, ou numa congregação delas
composta – o que veremos depois. Mas as palavras do rei tencionam não ser
necessário nesse reino de Cristo nenhum poder que o governe em seu lugar, como
vemos claramente na segunda razão que nos dá, em que indica a função do Espírito
Santo. E por isso não pudemos aqui omiti-la.
10. REFUTA-SE A EVASIVA DO REI. – Sobre a primeira equiparação do reino espiritual
da Igreja com o reino terreno, dizemos que, se se faz a comparação de modo
proporcional, não é menos necessário haver na Igreja um governante terrestre
soberano, isto é, um homem visível e mortal, que exista no reino terrestre.
Pois a Igreja universal de Cristo não é menos una – um reino uno, em sua própria
ordem – do que qualquer reino temporal em seu respectivo âmbito. E, embora a Igreja
seja um reino espiritual quanto ao fim e a seus meios principais, ainda assim é
também terrestre no que tange às pessoas das quais se constitui – e as ações nas quais
deve ser regido, dirigido e corrigido são também terrestres, isto é, externas e
sensíveis, e mediante elas deve preservar-se a paz, a unidade, a religião e todas as
demais coisas necessárias ao conveniente governo deste corpo. Logo, não é menos

105
necessário neste reino um poder soberano que governe e dirija de modo sensível e
humano os seus membros e as ações destes, em ordem à salvação eterna. Portanto,
Bonifácio II[ 202 ] e Gregório[ 203 ] dizem retamente, ao tratar da Igreja, que: Para
isto a providência da dispensação divina constituiu diversos graus e ordens distintos:
para que da diversidade brotasse o laço de uma só concórdia, e se gerisse retamente
a administração de cada um dos ofícios. Pois tampouco a totalidade poderia
subsistir de outra maneira se não a preservasse esta grande ordem de diferenças.[
204 ] Ora, como não se pode proceder ao infinito nesta diversidade e ordem de graus,
nem pode neles haver divisão, é necessário que terminem ou encontrem-se unidos
numa cabeça suprema. Por isso, complementa Gregório: Cada um cumpre sãmente
seu ofício quando há algum superior a quem se possa recorrer. E, assim como isso é
certamente verdadeiro em cada congregação espiritual ou eclesiástica, e em cada
episcopado ou igreja particular ou província, assim também isso é necessário – e com
muito maior razão – na Igreja inteira.
E por isso nos diz o Papa Anastácio, na Epístola ao Imperador Anastácio:[ 205
]Se todo poder procede de Deus, então mais ainda aquele poder que está posto à
frente das coisas divinas – o qual chamamos aqui de poder espiritual. Logo, é muito
acertada esta conclusão, que o rei rejeita. Se um reino terreno deve ser regido por um
monarca terreno, também foi necessário que a Igreja possuísse na terra seu monarca
ou governante soberano.
11. RESPONDE-SE À PRIMEIRA PROVA DO REI. – O primeiro argumento do rei não apenas
não refuta a nossa posição, mas antes a comprova, se consideramos outra diferença
que há entre a Igreja e o mundo inteiro no tocante aos reinos terrenos. No mundo
todo, não há uma só república ou um só reino temporal, mas variados e
numerosíssimos que entre si não compõem um corpo político único; por isso,
tampouco foi necessário haver um monarca apenas, nem um comando apenas
(falando de modo mais geral), nem apenas um tribunal supremo político e humano
para todo o mundo. Em verdade, nem poderia ter sido assim, tanto moral quanto
humanamente.
Por outro lado, a Igreja de Cristo é um só corpo místico perfeito, e um só reino
simples – por assim dizer – difundido por todo o mundo, como dissemos no livro
primeiro,[ 206 ] ao tratar da Igreja Católica; portanto, é necessário um único poder
soberano que a governe inteira. Assim, se supomos que o regime da Igreja é
monárquico (o que se mostrará adiante), sua comparação com o reino temporal não se
deve fazer ante o mundo inteiro, mas junto a cada um de seus reinos, de modo que,
assim como cada reino temporal é regido por um só monarca terreno – digo “terreno”
quanto à pessoa, ao poder, à matéria e ao fim próximo – assim também todo o reino
da Igreja igualmente seria regido por um só monarca, terreno quanto à pessoa, mas
celeste quanto ao poder, à matéria, e a seu fim próximo e principal. Pois, por esta
razão, a Igreja militante de Cristo, embora possa dizer-se um reino terreno por
constituir-se de homens mortais que vivem na terra, ela é muitas vezes chamada na
Escritura de “reino dos céus” – e Cristo dela diz: Meu reino não é deste mundo.
Como observa Agostinho,[ 207 ] não disse Cristo que: Meu reino não está neste
mundo, mas que: Não é deste mundo; pois, embora esteja no mundo, não é do mundo,

106
mas vem do céu. E portanto tal reino necessita de um governador que seja ao mesmo
tempo terrestre e celeste.
12. RESPONDE-SE À SEGUNDA RAZÃO DO REI. – Quanto ao segundo argumento,
certamente concedemos que Cristo Senhor é monarca primeiro de sua Igreja. Por isso,
enquanto esteve na terra e conviveu com seus apóstolos, governou-a por si enquanto
seu rei e Pontífice soberano, escolheu os apóstolos, consagrou sacerdotes e bispos e
os enviou para pregar, proveu-os com discípulos, e proveu todas as demais coisas
necessárias à situação da Igreja nas circunstâncias daquele tempo. Mas, visto que
agora está ausente da Igreja militante no que tange à sua presença visível, não pode
como antes exercer por si e proximamente a função de seu pastor; por isso, para
compensar sua presença visível, proveu um governante vigário ao qual confiou o
regime de sua Igreja.
E não o nega o rei da Inglaterra, mas – o que é surpreendente – diz que este
vigário é o Espírito Santo, pois, Cristo não prometeu que deixaria Pedro para guiar e
ensinar os apóstolos, mas o Espírito Santo. Mas isso, ou não foi dito propriamente, ou
não o foi verdadeiramente com respeito ao tema e causa de que tratamos. Sei que
Tertuliano às vezes referiu-se ao Espírito Santo como vigário de Cristo,[ 208 ] mas o
fez com expressão imprópria e metafórica, apenas porque Cristo disse, em João
[14:16]: E vos dará outro Consolador, para que permaneça entre vós para sempre o
Espírito da verdade. E abaixo: Isto lhes disse, estando convosco. Mas o Consolador,
o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas,
e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. Com tais palavras envia Cristo o
Espírito Santo, para que por sua graça confira a seus fiéis a virtude interior, a
iluminação e a orientação.
13. O ESPÍRITO SANTO NÃO SE PODE DIZER PROPRIAMENTE VIGÁRIO DE CRISTO. –
Entretanto, tal operação não pode ser atribuída ao Espírito Santo enquanto vigário de
outrem, se falamos de maneira própria, pois um vigário é ministro de outro agente
principal, que faz gestão em seu lugar, e usa o poder que lhe foi concedido. Ora, o
Espírito Santo ensina e inspira internamente enquanto causa próxima e principal da
graça e da virtude interna, como nos diz São Paulo: Não é algo o que planta, nem o
que rega, mas Deus, que dá o crescimento. (I Coríntios 3:7)
Assim, não se pode dizer propriamente que o Espírito Santo é vigário de Cristo.
Tertuliano expressou-se de modo lato e impróprio, e isso porque o Espírito Santo foi
enviado para que, no lugar de Cristo, consolasse os apóstolos e lhes ensinasse ou
explicasse muitas coisas que, pelas circunstâncias e pela brevidade do tempo, não era
possível ou necessário que fossem explicadas pelo próprio Cristo. Por isso, falou-nos
[João 14:16]: Eu rogarei ao pai, e Ele vos dará outro Consolador, como se dissesse:
“Em mim tínheis um Consolador, mas, embora me vá, não estareis carentes, pois o
Pai vos dará outro, que os consolará em meu lugar.” E, noutro sentido (que nos indica
Eutímio[ 209 ]), falou sobre o Espírito Santo: Aquele que o Pai enviará em meunome
[João 14:26], ou seja, para que termine o que comecei, guiando-vos e explicando-vos
o que ensinei, tanto agregando o que agora não podeis receber, quanto dando
testemunho de mim.

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Por esta razão, pode dizer-se de certo modo que o Espírito Santo geriu ou explicou
no lugar de Cristo, não por virtude vicarial ou ministerial, que seria inferior, mas
enquanto causa principal que perfaz o que Cristo não pôde levar a termo no breve
tempo de sua vida. Logo, qualquer um que deste modo sucede a outro num ofício, ou
perfaz o que ele começou e não pôde terminar, pode chamar-se seu suplente e vigário,
ainda que não seja propriamente vigário, nem opere mediante um poder inferior e
participado, dependente do outro.
14. Se o rei da Inglaterra entendeu que o Espírito Santo atuou no lugar do Cristo
apenas desta maneira, não tem fundamento para crer que tal operação do Espírito
Santo baste para um regime eclesial externo e adaptado aos homens, pois aquela
virtude e operação do Espírito Santo é invisível, e meramente interna e espiritual.
Ora, aos homens também é necessário um regente externo e visível.
Ademais, se aquele influxo invisível do Espírito Santo fosse suficiente para a
Igreja visível, não apenas o Espírito Santo, mas também o próprio Cristo, ausente e
agora invisível para nós, poderia dizer-se vigário presente ou visível de si mesmo,
pois também prometeu-nos [Mateus 28:20]: Eis que eu estou convosco todos os dias,
até a consumação dos séculos, ou seja, com proteção e auxílio invisíveis, como antes
expliquei.
Além disso, se Cristo, que é monarca primeiro da Igreja, não lhe conferiu um
regente visível para que a governasse em seu lugar, por que o rei da Inglaterra, em
seu Prefácio, chama a si e aos demais reis “vigários de Cristo?” Pois – de acordo com
sua opinião, na qual ele se crê cabeça da Igreja em seu reino, também nas coisas
espirituais – é necessário que, ao chamar a si próprio “vigário de Deus”, isso se
entenda não apenas com relação ao reino temporal, mas também quanto à Igreja
Britânica. Logo, contradiz-se o rei ao afirmar que Cristo não nos deixou um vigário
além do Espírito Santo.
15. CRISTO SENHOR CONFERIU A PEDRO VERDADEIRA JURISDIÇÃO ESPIRITUAL. –
Finalmente, é falso que Cristo não nos prometeu um Pedro para reger-nos e ensinar-
nos. Pois não só o prometeu, como também o deu, por confiar-lhe as chaves do
governo e da ciência. Também quando lhe disse: Roguei por ti, para que tua fé não
desfaleça, logo agregou: E tu, quando te converteres, confirma os teus irmãos. (Lucas
22:32) E por fim, ao dizer: Apascenta minhas ovelhas, abarcou manifestamente tanto
a doutrina quanto o regime e a direção, como veremos mais abaixo.
Além disso, em muitos outros lugares Cristo indicou que haveria na Igreja um
governo espiritual, e alguém – ou alguns ministros seus – que a gerissem em seu
lugar enquanto vigários próprios e visíveis. Assim entendem os Padres isto que se diz
em Lucas [10:16]: Quem ouve a vós, a mim me ouve; quem rejeita a vós, a mim me
rejeita. Assim comentam esta passagem Ambrósio,[ 210 ] Hilário[ 211 ] e
Crisóstomo.[ 212 ] Pois, visto que Cristo, na parábola do pai de família que deseja ser
aguardado e obedecido por seus súditos com grande vigilância e solicitude, explicara
como se deve servir ao senhor, e Pedro o interrogou [Lucas 12:41]: Senhor, dizeis a
nós esta parábola, ou a todos?, respondeu-lhe Cristo: Qual é, pois, o dispensador fiel
e prudente? Com isso indicou que os apóstolos haviam sido especialmente chamados
para ser como servos principais, de quem se exigia a atenção aos demais; e

108
principalmente Pedro, que seria constituído sobre toda a família de Cristo, estava
obrigado não só à vigilância de todos, mas a uma especial fieldade e prudência.
E eram este cuidado e obrigação de que se recordava São Pedro, ao dizer:
apascentai o rebanho de Deus que está entre vós provendo-lhe não por força, mas
voluntariamente, segundo Deus. E são consoantes as palavras de São Paulo, em I
Coríntios [4:1]: Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e
dispensadores dos mistérios de Deus. E é isto o que se exige dos dispensadores: que
sejam fiéis, etc. E no capítulo 3 dissera: Quem é Apolo e quem é Paulo? Ministros
daquele em quem crestes, isto é, vigários d’Ele, e regentes da Igreja em seu lugar. Em
Romanos 13, chamou um príncipe ou juiz temporal de “ministro de Deus”.
16. Pois que aquele ministério foi apostólico e dotado de poder e jurisdição para
julgar, declara-o claramente o próprio São Paulo, no fim do capítulo 4, ao dizer: Que
quereis? Que vá a vós com a vara? E no capítulo seguinte: Eu, na verdade, ainda que
ausente no corpo, mas presente no espírito, já determinei, como se estivesse presente,
que o que tal ato praticou, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc., seja entregue
a Satanás para a destruição da carne, para que o espírito seja salvo, etc. E em II
Coríntios [13:2]: Se eu for outra vez, não usarei de perdão! E, claramente, em
Hebreus [13:17]: Obedecei aos vossos pastores, e sujeitai-vos a eles, pois velam por
vossas almas. E ainda I Timóteo [5:17]: Que os presbíteros que bem governam sejam
tidos por dignos de dupla honra. Também em Tito [1:7]: Convém que o bispo seja
irrepreensível, como dispensador da casa de Deus, etc. E no capítulo seguinte [2:15]:
Fala disto, exorta e repreende com toda a autoridade. Finalmente, a isso se referem
as palavras de Paulo em que descreve a unidade do corpo da Igreja e seus vários
membros, como em Romanos 12[:8], onde, entre outras coisas, diz-nos: O que
preside, faça-o com zelo, etc.; também remeto a II Coríntios 12 e Efésios 4[:11-12],
onde fala: Constituiu apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e doutores (...) no
ofício do ministério, para a edificação do corpo de Cristo. E diz que tal modo de
governo há de durar até a consumação dos santos, isto é, até o fim do mundo, como
foi explicado em seções anteriores.
17. DISTINÇÃO ENTRE PODER ESPIRITUAL E TEMPORAL. – Do que dissemos se conclui
manifestamente que este poder espiritual é totalmente distinto do temporal. Primeiro
(e principalmente) pelo seu fim: o poder temporal se ordena a conservar a paz e a
integridade moral da república, conforme as palavras de São Paulo em I Timóteo
[2:2]: Para que possamos viver uma vida calma e tranqüila, em toda a piedade e
castidade. Já o poder eclesiástico se ordena a alcançar a salvação eterna; diz-nos o
Apóstolo, em Efésios [4:12]: Até a consumação dos santos, etc., e em Hebreus
[13:17]: Obedecei aos vossos pastores, e sujeitai-vos a eles, pois velam por vossas
almas e delas deverão dar conta.
A segunda diferença reside em sua origem. O poder temporal tem origem em
Deus enquanto autor da natureza, por intermédio da razão natural. Considerado em si
mesmo, pertence ao direito natural; na medida em que se encontra num rei ou num
senado, pertence ao direito humano. Já o poder eclesiástico é de direito divino
positivo, mediante promessa e concessão especiais de Cristo: A ti darei as chaves;
Apascenta minhas ovelhas; Assim como o Pai me enviou, eu vos envio a vós. Pois,

109
assim como o fim ao qual se ordena este poder – e também os atos e meios que lhe
dizem respeito – estão por sobre a natureza e as forças humanas, é necessário também
que o próprio poder tenha origem superior ao direito natural ou humano. E desse
modo explicam tal distinção os Papas Gelásio[ 213 ] (em Sobre o Vínculo do
Anátema) e Nicolau I,[ 214 ] em sua Epístola ao Imperador Miguel, próximo ao fim,
quando diz: Jesus Cristo, o mediador entre Deus e os homens, distinguiu os ofícios
destes dois poderes com atos próprios e dignidades diversas – por desejar que com
sua própria humildade medicinal fossem levados às alturas, e não imersos no inferno
pela soberba humana – de modo que os imperadores cristãos necessitassem dos
pontífices para a vida eterna, e os pontífices se valessem apenas das leis imperiais
para o curso das coisas temporais, ao passo que a ação espiritual permanecesse à
distância das incursões terrenas. Tais diferenças foram comentadas por Gregório
VII,[ 215 ] que as confirma pelas palavras de Anastácio[ 216 ] e de Gregório, em sua
Pastoral.[ 217 ] O mesmo ensina Símaco,[ 218 ] na Apologia dirigida ao imperador
Anastácio, ao dizer: Comparemos a honra do imperador com a do Pontífice; elas
distam entre si na medida em que aquele se ocupa das coisas humanas e este, das
divinas. E mais abaixo: Tu administras os assuntos humanos, aquele dispensa a ti as
divinas. Símaco diz o mesmo no sínodo de Roma,[ 219 ] e trata-se deste tema
extensamente no capítulo Bene quidem.[ 220 ] Muitas outras coisas também se
mencionarão nos dois capítulos que se seguem.
18. REFUTAM-SE OS FUNDAMENTOS DOS ERROS MENCIONADOS NO INÍCIO DESTE
CAPÍTULO. – Tampouco obstam contra essa católica doutrina os fundamentos dos
demais erros baseados em outras heresias – as quais não nos é possível refutar neste
lugar da melhor maneira. Pois, no fundamento do primeiro erro, é herético dizer que
na Igreja de Cristo não há sacrifício verdadeiro e visível, nem sacerdócio verdadeiro e
próprio. De modo semelhante, é herético dizer que todos os fiéis são iguais no
sacerdócio. Noutro lugar já refutamos e pusemos à prova todas essas coisas.
Também Marsílio de Pádua erra na fé ao supor que todos os bispos e clérigos ou
sacerdotes são iguais pelo direito divino. Pois, quanto ao poder de ordem, por
instituição de Cristo, o bispo excede ao presbítero, o presbítero ao diácono, etc., como
se mostra em maior detalhe no tratado Sobre o Sacramento da Ordem. Já quanto ao
poder de jurisdição, há, no que tange aos apóstolos, uma claríssima diferença, que
facilmente pode coligir-se dos testemunhos já aduzidos; com respeito a Pedro e seus
sucessores, a questão se mostrará em detalhe mais abaixo.
Ademais, isto que ele diz, que Cristo proibiu aos pontífices o reinar
temporalmente é de todo falso e errôneo, conforme mostraremos no capítulo VIII;
além disso, tal coisa de nada importaria para o tema que agora tocamos, pois, ainda
que o admitíssemos, daí apenas se poderia inferir que os bispos e pontífices – pelo
poder que têm enquanto tais – não reinam temporalmente, mas espiritualmente, coisa
que afirmamos de modo resoluto quando dizemos que seu poder não é temporal, mas
espiritual.
19. E prova-o em grau máximo aquele testemunho, que tampouco o rei da Inglaterra
omitiu [Lucas 22:25-26]: Os reis dos gentios dominam sobre eles, mas não sereis vós
assim; pois tampouco neste sentido Cristo proíbe os apóstolos de reinar, mas sim de

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reinar como os gentios, isto é, temporalmente. Ora, é necessário que reinem
espiritualmente ao menos aqueles que têm soberania nesta esfera. A não ser que
digamos que nem mesmo o Sumo Pontífice reina espiritualmente, mas que vice-reina,
por não fazê-lo como rei soberano, mas como vigário do Rei Altíssimo.
Mas a verdade é que o Senhor não proibiu o reinar, mas o governar dominando as
pessoas com jactância, antepondo-se a elas, tratando desumanamente os súditos. Isso
o diz Gregório, que em sua Pastoral[ 221 ] explica as palavras de Cristo mediante as
do Eclesiástico [32:1]: Se te constituíram chefe, ou, em outra versão, Se te puseram
como regente, não te jactes: comporta-te entre eles como um deles. Também estas:
Tampouco dominando sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao
rebanho.[ 222 ] E ainda estas, de São Paulo: Não porque dominemos sobre a vossa fé,
mas por sermos cooperadores para vossa alegria.[ 223 ] Por fim, dizem-nos coisa
semelhante Gregório[ 224 ] e Bernardo.[ 225 ]
Portanto, com isto respondemos aos fundamentos que neste ponto toca o rei da
Inglaterra. Sobre as outras objeções que move contra primado do Pontífice e contra o
verdadeiro sentido das Escrituras pelas quais ele busca provas, disto falaremos em
seguida.

[ 195 ] MARTÍN DE AZPILCUETA NAVARRO, Commentarii et tractatus, Veneza, Nicolinus, 1601, t. III,. Relectio
cap. Novit de Iudicis, Notabile tertium, n. 83, fol. 69.
[ 196 ] Mais corretamente, trezentos anos. MARSÍLIO DE PÁDUA publicou originalmente seu Defensor Pacis
em 1324. Defensor Pacis, Frankfurt, 1612, Dictio II, caps. 4 e 26, pp. 117-131 e pp. 388-396.
[ 197 ] Hierarchiae Ecclesiasticae Assertio, Colônia, 1544, lib V, c. 14, ff. cccii-cccxiii. Cf. também ÁLVARO
PAIS.De Planctu Ecclesiae, Veneza, Sansovinus, 1560, lib. I, cap. 68, ff. 92-5, e NICHOLAS SANDER (OU
SANDERS). De visibili monarchia ecclesiae, Louvain, 1571, VII, n. 166, p. 342.
[ 198 ] S. GREGÓRIO MAGNO,Commentarii in librum I Regum, 6, 3, 31 (PL 79, 468A).
[ 199 ] In Ioannis evangelium tractatus CXXIV, 115, 2 (PL 35, 1939).
[ 200 ] Ausente desta edição compilada.
[ 201 ] Adversus Haereses, I, 2, 29, 2 e 3 (PG 41, 391 e 393).
[ 202 ] PSEUDO-BONIFÁCIO II, Mansi 8, 732.
[ 203 ] PAPA GREGÓRIO VII, Registrum, VI, Epist. 35 (PL 148, 539D).
[ 204 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, I, dist. 89, can. 7, pp. 404-5.
[ 205 ] PAPA SÍMACO, Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum famosum, Mansi 8, 215.
[ 206 ] Ausente desta edição compilada.
[ 207 ] V. nota 186 supra.
[ 208 ] De praescriptionibus adversus haereticos, c. 13 (PL 2, 26A) e 28 (PL 2, 40B).
[ 209 ] EUTÍMIO ZIGABENO, Comment. in Ioannem, 14, 26 (PG 129, 1403).
[ 210 ] Expositio evang. sec. Luc. Lib. VII, 9 (PL 15, 1710-1721).
[ 211 ] Commentarius in Matthaeum Cap. XVI, 7 (PL 9, 1009, 1010).
[ 212 ] Provavelmente in Opus Imperfectum, In Matthaeum Homil. XVII (PG 56, 727), obra erroneamente
atribuída a S. João Crisóstomo.
[ 213 ] De anathematis vinculo, Mansi 8, 93 (PL 59, 109A). Cf. PAPA NICOLAU I, Decretum Gratiani, Veneza,
1595, I, dist. 96, can. 6, pp. 432-4.
[ 214 ] Ad Michaelem imperatorem, Mansi 15, 214-5. Cf. Decretum Gratiani, Veneza, 1595, I, dist. 10, can. 7,
p. 30.
[ 215 ] Registrum, IV, Epistola 2 (PL 148, 455B).
[ 216 ] PAPA ANASTÁCIO II, Epistola I Anastasii Papae II ad Anastasium Augustum, Mansi 8, 188.
[ 217 ] Na verdade, é S. Ambrósio quem Gregório VII cita como autor dessa “Pastoral” (loc. cit.). Trata-se de
uma obra espúria, embora até mesmo na citação presente no Decretum Gratiani (dist. 96, 10) o bispo de Roma
tenha se consagrado como seu autor. A passagem original provavelmente seja de GERBERTO DE AURILLAC
(PAPA SILVESTRE II), in Sermo de informatione episcoporum (PL 139, 170C).
[ 218 ] V. nota 106 supra.
[ 219 ] Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum famosum, Mansi 8, 215B.
[ 220 ] Decretum Gratiani, I, d. 96, c. 1, pp. 436-9.

111
[ 221 ] Regula Pastoralis, p. II, c. 6 (PL 77, 37B).
[ 222 ] I Pedro 5:3.
[ 223 ] II Coríntios 1:24.
[ 224 ] Loc. cit. (PL 77, 34D); cf. também Epistolarum Lib. I, indict. IX, epist. 25 (PL 77, 475).
[ 225 ] De Consideratione ad Eugenium Tertium, II, c. 6, nn. 10 e 11 (PL 182, 747D e 748B).

112
Capítulo VII
Prova-se por autoridade que não há nos reis
ou príncipes o poder de reger a Igreja em
assuntos espirituais ou eclesiásticos
1-2. De que modo os poderes espiritual e temporal relacionam-se entre si no que
tange a seu sujeito. O erro da seita anglicana sobre o sujeito do poder espiritual. 3.
Primeira conclusão: não cabe aos reis temporais, enquanto tais, nenhum poder
espiritual. 4-5. Prova desta conclusão pelas Escrituras. 6-11. Prova-se a asserção
mediante os Sumos Pontífices. 12. Estabelece-se esta mesma verdade pelos escritos
dos imperadores.

1. DE QUE MODO OS PODERES ESPIRITUAL E TEMPORAL RELACIONAM-SE ENTRE SI NO QUE


TANGE A SEU SUJEITO. O ERRO DA SEITA ANGLICANA SOBRE O SUJEITO DO PODER
ESPIRITUAL. – Além das diferenças entre o poder espiritual e o temporal relatadas no
capítulo anterior, há outra que, por ser origem e fundamento principal do cisma
anglicano, reservamos para exame neste capítulo, por mais que dela já se obtenha
evidente conclusão a partir dos princípios expostos no anterior.
Tal divisão consiste no seguinte: que os poderes temporal e espiritual não dizem
respeito por si a umas mesmas pessoas que devam recebê-los, senão que são
separáveis quanto ao sujeito – o que claramente supõe haver entre elas uma distinção,
e a indica.
Ora, de dois modos totalmente contrários é possível errar acerca desta divisão.
Primeiro, afirmando que esses poderes não apenas são distintos, mas são também tão
opostos entre si que seria contrário ao direito divino que se encontrassem juntos numa
mesma pessoa. E assim parece haver errado Marsílio de Pádua,[ 226 ] por mais que
ele, ou confunda o poder espiritual com o temporal, ou negue ser possível que estes
convirjam simultaneamente – não em qualquer sujeito, mas somente nos sacerdotes.
Mas, entendido neste sentido, tal erro carece de fundamento, e será brevemente
impugnado no capítulo seguinte, visto que ele pouco nos importa para o momento
presente.
Já o outro modo de errar é o próprio da seita anglicana, cujo princípio e
fundamento é que o poder espiritual não se separa do temporal, senão que é algo
anexo ao cetro régio. Isso o quis Henrique III, a quem seguiram seus sucessores
Eduardo e Elizabete, como expõe extensamente Sander[ 227 ] nos três primeiros
livros de Sobre o Cisma Anglicano, no qual descreve também várias das leis
promulgadas por estes príncipes para amplificar seu poder naquele reino.
2. Por fim, persistiu neste erro o rei Jaime, como consta claramente de suas ações, e o
professa várias vezes em seu Prefácio, ao dizer: De fato, tampouco me crerei inferior

113
ao Pontífice no que quer que seja. No mesmo sentido refere-se pouco antes aos reis
temporais, que Deus colocou em seu trono, no mais alto dos graus de dignidade,
quase como vigários e legados seus, para exercer a justiça. E ainda sobre eles: Os
que Deus mandou ser na terra seus principais vigários na administração da justiça.
No mesmo sentido diz que a controvérsia que tem com seus súditos católicos não
parte de outro ponto senão da ambiciosa tirania dos pontífices, que, contra a
autoridade das Escrituras e contra a sentença dos concílios e dos antigos Padres,
usurparam para si injustamente os direitos temporais dos reis. E nesse mesmo ponto
conclui que foi para afirmar esta autoridade dos reis – ao menos neste sentido – que
dedicou toda a sua Apologia.
Mas o fundamento deste erro parece ser apenas o fato de que ele não reconhece a
diferença entre poder espiritual e temporal, e nega o primado de Pedro e de seus
sucessores. Disto trataremos nos capítulos seguintes.
3. PRIMEIRA CONCLUSÃO: NÃO CABE AOS REIS TEMPORAIS, ENQUANTO TAIS, NENHUM
PODER ESPIRITUAL. – A verdade católica, portanto, é que os reis temporais, enquanto
tais, ou seja, em razão de sua jurisdição soberana no principado político, não possuem
nenhum poder espiritual sobre a Igreja. Esta asserção pode provar-se pela autoridade
da Escritura de dois modos.
Primeiro, porque no Novo Testamento esse poder é prometido e dado por Cristo a
pessoas que não eram reis temporais. Segundo, porque não se encontra dado a reis
temporais. Destes dois pontos, tanto tomados isoladamente quanto em conjunto,
retamente conclui-se que ele não existe nos reis temporais, uma vez que não pode
encontrar-se senão naquele a quem foi dado por Cristo, ou em seus sucessores
legítimos.
A primeira parte se prova suficientemente pelos testemunhos aduzidos no capítulo
anterior, pelos quais consta que Cristo prometeu e deu esse poder particularmente a
Pedro. Também em João 20 mostra-se que Ele o deu a todos os apóstolos, aos quais
(e aos seus sucessores) este poder foi prometido sob o nome de Igreja em Mateus 18.
Há ainda outros testemunhos que mostram que São Paulo comumente fez uso de tal
potestade, que ela se encontra nos bispos e superiores da Igreja, e que é exercida por
eles. Ora, nenhum destes era rei, nem administrava qualquer jurisdição temporal.
Donde se tem adicionalmente um argumento eficacíssimo: antes que na Igreja
houvesse reis temporais, nela havia pastores dotados de verdadeira jurisdição
espiritual para regê-la, o que se conclui de modo patente pelo uso que fizeram deste
poder, e pelos testemunhos que citamos. Portanto, este poder não depende por si da
potestade régia, nem se encontra atado a ela por ser o que é; pois os reis temporais de
então não o possuíam, e deles não o haviam recebido aqueles homens que o exerciam
legitimamente.
4. PROVA DESTA CONCLUSÃO PELAS ESCRITURAS. – Deste modo, com clareza prova-se
também pelas Escrituras (ponto que tocamos no capítulo anterior) que este poder é de
origem diversa do temporal. Pois o poder temporal, na medida em que se encontra no
rei ou noutra pessoa semelhante, seja proximamente, seja por sucessão ou outro título
humano, provém da multitude do povo, que confere ao príncipe sua autoridade. Já o
poder espiritual não tem esta origem: na Igreja primitiva, os apóstolos o obtiveram

114
não do povo cristão, mas do próprio Cristo, e o comunicaram aos demais bispos por
autoridade sua, independentemente do povo, como se vê em São Paulo, em Tito [1:4]:
Deixei-te em Creta por esta razão: para que termines de organizar o que falta, e
constituas presbíteros pelas cidades, da maneira que te ordenei. E em I Timóteo
[4:14]: Não desprezes a graça que há em ti, que te foi dada. Logo depois, no capítulo
seguinte [5:19], mostra-nos que tal graça vinha acompanhada de jurisdição episcopal,
ao dizer: Contra um presbítero não recebas acusação, exceto sob duas ou três
testemunhas, etc.
Ora, visto que, pelos capítulos precedentes, estabelecemos que todo poder régio
emana proximamente do povo, é portanto evidente que pela via deste poder régio o
monarca não possui qualquer jurisdição ou potestade espiritual.
5. Ademais, pelo mesmo princípio e fundamento é aqui eficaz uma segunda prova,
que procede da autoridade escritural a que chamamos “negativa”. Pois, como diz
retamente Santo Tomás, nestas coisas que estão por sobre a natureza, só se crê pela
autoridade.[ 228 ]As coisas que procedem unicamente da vontade de Deus, por cima
de toda exigência da criatura, não podem ser conhecidas por nós senão enquanto
reveladas divinamente.[ 229 ] Ora, o poder espiritual da Igreja é um dom que supera
a natureza, e que depende da vontade e instituição divina tanto para existir quanto
para existir nesta pessoa, por tal modo ou sucessão. E não há nenhuma revelação ou
autoridade divina que mostre que Cristo deu tal poder aos reis temporais. Portanto,
como disse acima Santo Tomás, onde está ausente a autoridade, devemos seguir a
condição da natureza. E, no presente âmbito, a condição da natureza é que o rei
temporal só possua aquela potestade que os homens, guiados pela razão natural,
puderam conferir-lhe – e por isso tenha apenas e estritamente o poder temporal.
Que a divina autoridade não dá testemunho em favor de um poder maior dos reis,
isto é algo evidente. Primeiro, porque nossos adversários não admitem nenhuma
palavra de Deus para além das Escrituras, e, ainda que a admitissem, não há nenhuma
tradição sacra ou apostólica que indique nos reis tal poder – antes o contrário, como
constará no decorrer deste capítulo e de todo o livro presente.
No que tange à Escritura, já o provamos o suficiente ao demandar um testemunho
de onde Cristo teria conferido aos reis tal poder, o que sem dúvida não se poderia
apresentar, nem no Antigo nem no Novo Testamento. Pois são frívolos os
testemunhos que sói aduzir-se, nos quais somos instruídos a obedecer aos reis, pois
eles nada contêm deste novo poder supostamente concedido por Cristo aos reis, mas
apenas nos advertem sobre aquela obrigação natural pela qual estamos obrigados a
obedecer-lhes nessas coisas que pertencem à sua jurisdição, como explicaremos mais
abaixo, ao responder a objeções.
Aqui se poderia também considerar o fato de que São Paulo, sempre que descreve
a hierarquia eclesiástica e distingue seus fundamentos, ministérios e ofícios de
governo, enumera seus apóstolos, profetas, pastores e doutores, mas não faz nenhuma
menção a reis e imperadores – não porque não houvessem de existir na Igreja, mas
porque não constituem grau próprio no que diz respeito à ordem hierárquica eclesial,
e são contados junto com o povo leigo; não se os conta entre os constituídos para
edificar o corpo de Cristo nas coisas espirituais até a consumação dos santos, mas
apenas entre aqueles que devem ser edificados e consumados.

115
Por fim, podemos ter em mente que Cristo Senhor, indagado sobre se cabia dar
tributo a César, respondeu com precisão: Dai a César o que é de César, e a Deus o
que é de Deus, indicando claramente que a César, isto é, ao rei ou imperador, deve
dar-se apenas aquilo que é devido em razão do poder de César, isto é, do poder régio.
Portanto, como ponderadamente observou Salmerón,[ 230 ] assim como Cristo não
tolheu o poder régio, tampouco o aumentou, nem lhe atribuiu o direito peculiar de
apascentar suas ovelhas.
Agrega também Crisóstomo:[ 231 ]Quando ouves que se há de dar a César o que
é seu, não duvides que isso se refere apenas às coisas que em nada se opõem à
piedade e à religião. Pois aquilo que obstaculiza a fé e a virtude não é tributo nem
paga de César, mas do diabo. Ainda mais claramente o diz Ambrósio,[ 232 ] na
Epístola a Marcelina: Alega-se que ao imperador tudo é lícito, que são dele todas as
coisas. Respondo: não te agraves, imperador, de modo a pensares ter algum direito
imperial sobre as coisas divinas. Não te jactes; se queres imperar divinamente,
submete-te a Deus. Está escrito: dai a Deus o que é de Deus, a César o que é de
César. Ao imperador pertencem os palácios, aos sacerdotes a Igreja. Foi-te confiado
o direito sobre os edifícios públicos, não os sagrados.
6. PROVA-SE A ASSERÇÃO MEDIANTE OS SUMOS PONTÍFICES. – Em terceiro lugar,
devemos provar nossa asserção com os testemunhos dos pontífices e do direito
canônico, os quais, embora pareçam obrar em causa própria, nela possuem máxima
autoridade, tanto pela chave da ciência que detêm para ensinar a Igreja, quanto
porque nos apresentam a tradição certa e imutada da Igreja. Pois desta verdade deram
testemunho os pontífices (não apenas os modernos, mas também os mais antigos),
assim como os santos e os mártires.
Poderíamos aduzir, primeiro, todas as coisas que escreveram sobre o primado da
Igreja Romana, mas isso se recapitulará depois; agora apenas as citaremos naquilo em
que se comparam ambos os poderes entre si, ou em que exigem obediência também
dos imperadores e reis – algo que, se nos príncipes temporais houvesse poder
espiritual soberano, não se poderia fazer.
Assim se expressa o Papa Anastácio II ao imperador Anastácio:[ 233 ]Pelo amor
de vosso império e pela felicidade que seu reino pode alcançar, de acordo com nosso
ofício apostólico, rogamos – como é correto, e o dita o Espírito Santo – que se preste
obediência às nossas admonições. Mais abaixo: Que tua piedade não despreze a mim
por freqüentemente sugerir estas coisas a ti, tendo ante teus olhos as palavras do
Senhor no Evangelho: “Quem ouve a vós, a mim me ouve; quem rejeita a vós, a mim
me rejeita, e rejeita aquele que me enviou.”
Também o Papa Gelásio,[ 234 ] na Epístola 10 ao mesmo imperador Anastácio,
ensina reiteradamente que aquele poder convém a ele, não ao imperador; entre outras
palavras, escreve-lhe estas: Há duas coisas, augusto imperador, pelas quais o mundo
é regido principalmente: a autoridade sacra dos pontífices e o poder régio, etc. Diz o
Papa Símaco[ 235 ] ao mesmo imperador: Se és príncipe cristão, deves escutar
pacientemente a voz de qualquer superior apostólico. E mais abaixo: Comparemos a
honra do imperador com a do Pontífice, etc. E ainda: Se todo poder procede de Deus,
então mais ainda aquele poder que está posto à frente das coisas divinas. Obedece a
Deus em nós, e nós obedeceremos a Deus em ti. Donde abertamente indica não haver

116
poder espiritual no imperador, mas sim no pontífice. E depois agrega: Todos os
príncipes Católicos, seja quando tomaram as rédeas do império, seja quando
reconheceram novos superiores instituídos pela Sé Apostólica, enviaram-lhe escritos
prontamente, para informar-lhe que a apoiavam. Isto nos escreveu Símaco há mil e
cem anos, e vemos que esta prática foi preservada até nossos tempos.
7. Ademais, isso também confirma a definição do próprio Papa Símaco[ 236 ] no IV
Concílio de Roma: Não cabe aos leigos, ainda que religiosos, nem aos poderosos de
qualquer cidade, decidir de qualquer modo sobre os recursos eclesiásticos, pois o
cuidado de dispô-los ensina-se haver sido confiado por Deus indiscutivelmente
apenas aos sacerdotes. Esta razão e determinação tem validade em toda e qualquer
causa eclesiástica. Para confirmar esta verdade, Graciano também coligiu muitos
documentos.[ 237 ]
Sobretudo, corrobora-a extensamente o Papa Nicolau[ 238 ] na sua Epístola ao
Imperador Miguel, onde, entre outras coisas, diz-nos: Quando se chegou ao [que é]
verdadeiro (isto é, à verdade evangélica), nem o imperador arrebatou os direitos do
pontificado, nem o pontífice usurpou o nome de imperador; pois o mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo, distinguiu os ofícios destes dois poderes com atos
próprios e dignidades diversas, de modo que os imperadores cristãos necessitassem
dos pontífices para a vida eterna, e os pontífices se valessem apenas das leis
imperiais para o curso das coisas temporais.
O mesmo nos explica detalhadamente Gregório VII, em sua epístola a Herimano,
bispo de Metz,[ 239 ] onde confirma tal verdade com ditos e fatos de outros
pontífices e imperadores. Também Inocêncio III,[ 240 ] no capítulo Solitae, afirma
que o imperador precede o pontífice nos assuntos temporais, enquanto nos espirituais
se dá o contrário. Igualmente Bonifácio VIII,[ 241 ] em sua Extravagante De
Maioritate et Obedientia, diz que na Igreja há o gládio espiritual, a ser empunhado
pelo sacerdote, e o gládio temporal, a ser empregado pelos leigos em prol da Igreja,
com a vontade e o consentimento do sacerdote. E é isto que nos confirma de modo
tácito Clemente V, em sua Extravagante Meruit – De Privilegiis,[ 242 ] embora
declare, mediante a Extravagante de Bonifácio, que o rei e o reino da França não se
encontravam em maior sujeição à Sé Apostólica do que aquela que já tinham.
Finalmente, Graciano, na distinção 63,[ 243 ] baseando-se no Papa Adriano,
confirma-nos este ponto: Para que príncipes ou potentados leigos não intervenham
em eleições eclesiásticas, pois em coisas eclesiásticas não possuem nenhum poder.
A mesma posição se tem no IV Concílio de Constantinopla (ou VIII Concílio
Geral),[ 244 ] capítulo 22, e também no capítulo 12 não apenas se nega aos príncipes
temporais o poder de criar bispos, mas se diz ainda que deve ser deposto quem
houver sido introduzido mediante tal tirania. Também no VII Concílio,[ 245 ]
capítulo 3, declara-se inválida a eleição de um bispo feita por príncipe temporal – o
que é citado por Graciano, na referida distinção 63, capítulo Omnis.
Assim também se expressa Inocêncio III,[ 246 ] no capítulo Ecclesia (título De
Constitutionibus): Aos leigos não é conferido nenhum poder sobre as igrejas e
pessoas eclesiásticas; a eles cabe a necessidade de obedecer, não a autoridade de
imperar. Tal posição se reitera no capítulo Tua 1 (título De Decimis),[ 247 ] com
palavras tomadas do IV Concílio, presidido pelo Papa Símaco III.

117
Poderíamos citar muitos outros escritos do direito canônico nos quais se prescreve
a isenção das causas eclesiásticas com relação ao poder dos leigos, pois em tais
escritos se supõe não haver poder espiritual nos magistrados temporais. Mas
reservamos todas estas referências para o livro Sobre a Imunidade Eclesiástica.[ 248
]
8. A esses testemunhos podem agregar-se as sentenças de outros Padres, que, embora
não tenham sido pontífices, foram bispos, arcebispos, patriarcas ou santos doutores da
Igreja, e viveram em seus primeiros séculos. Entre eles, temos Crisóstomo,[ 249 ]
que, entre muitas outras coisas, disse egregiamente: Por mais que pareça admirável o
trono régio, foi seu quinhão administrar as coisas terrenas, e não possui qualquer
autoridade para além deste poder. E, em sua homilia sobre Mateus, diz a um
diácono: Tens poder maior do que ele – isto é, do que o príncipe secular, no âmbito
da administração eclesiástica. Sobre isto temos também várias passagens no livro III
de Sobre o Sacerdócio.
E Cirilo de Jerusalém:[ 250 ]Acaso não tem a Igreja o novilho e o leão se
alimentando juntos, como até os dias de hoje vemos os príncipes do mundo ser
regidos e instruídos pelos eclesiásticos? Ali refere-se à passagem de Isaías [11:6]: O
lobo e o cordeiro se alimentarão juntos; o leão e o boi comerão palha; e, sob a
palavra “alimentar-se”, inclui o ser regidos e instruídos. Também Cirilo de
Alexandria,[ 251 ] na Epístola 31 a João de Antioquia e ao concílio desta cidade, faz
referência ao concílio anterior, de Éfeso, em que advertia os bispos a que escutassem
aqueles a quem queriam acusar de heresia, para que não se causassem tumultos junto
aos tribunais externos. E agrega: É muito melhor e mais justo que as questões
eclesiásticas sejam discutidas e elaboradas nas igrejas, e não ante estranhos, aos
quais decerto não convém de nenhum modo o trato com tais causas.
9. É também célebre aquela sentença de Gregório Nazianzeno,[ 252 ] movida a
cidadãos perturbados por grande temor; nela, após haver discursado aos súditos,
adiciona: E que de vós, ó príncipes e governantes? Pois é a vós que se dirige nossa
fala. E depois: Acaso me tolerareis com ânimo justo, se eu lhes falar livremente?
Porque também vós a lei de Cristo submeteu a meu comando e trono; sim, também
nós gerimos comando e, digo ainda, um comando mais elevado e perfeito, salvo se
for justo que o espírito se submeta à carne, e as coisas celestes cedam às terrenas.
Dessas palavras, considero especialmente as seguintes: “a lei de Cristo submeteu”.
Sobre elas, temos a opinião do Nazianzeno, para quem esta instituição e divisão de
poderes é divina e procede da lei de Cristo. E muitas afirmações semelhantes podem
tomar-se da mesma fonte.[ 253 ]
Também o diz de modo excelente Damasceno,[ 254 ] no Discurso 1 Sobre as
Imagens: Pois tampouco é próprio de reis piedosos despedaçar os estatutos
eclesiásticos. E mais abaixo: Não cabe aos reis decretar nem estabelecer sobre essas
coisas, etc. No Discurso 2, logo no início: Não é quinhão dos monarcas o decretar
leis da Igreja, o que se confirma com os testemunhos de São Paulo em II Coríntios 12
e Hebreus 13, já comentados.
Em Teodoreto,[ 255 ] vemos narrar-se a egrégia resposta do presbítero Eulógio,
ao ser advertido pelo governador do imperador herege Valente: “Vai ter com o

118
imperador”, responde Eulógio, de modo dissimulado mas muito espirituoso, “Acaso
ele obteve com seu império também a dignidade de sacerdote?” E, como o
governador se irasse ao perceber tal ironia, o próprio Eulógio lhe respondeu
novamente que ele tinha um pastor a cuja vontade obedecia.
Fato semelhante nos narra Suidas,[ 256 ] sobre Leôncio, bispo de Trípoli da Lídia.
Enquanto Constâncio presidia a reunião de bispos e muito escrevia, recebendo a
anuência de todos, Leôncio calava; quando lhe perguntou o imperador por que calava,
respondeu: Admira-me que tu, destinado a cuidar de uns assuntos, te ocupes de
outros, e que, estando à frente dos temas militares e da república, ordenes aos bispos
coisas que apenas dizem respeito aos próprios bispos.
10. Além disso, na já mencionada Epístola a Marcelina,[ 257 ] Ambrósio nega que o
imperador tenha algum poder de mando nas coisas divinas. E ensina-o expressa e
reiteradamente no Discurso 1 contra Auxêncio,[ 258 ] onde diz, entre outras coisas:
Também vós mesmos sabeis que aos imperadores costumo fazer deferência, mas não
ceder, e que me ofereço livremente aos suplícios, mas não temo o que me preparam.
Mais abaixo: Respondi o que é próprio do sacerdote; que faça o imperador o que
cabe ao imperador. E, sobre os arianos que pediam ao imperador uma igreja, diz ele:
Vede quão piores são os arianos do que os judeus: estes perguntavam sobre se era
devido pagar a César o direito de tributo; já aqueles querem dar ao imperador o
direito eclesial. E ainda: O bom imperador encontra-se dentro da Igreja, não sobre
ela. Pois o bom imperador não recusa o auxílio da Igreja, mas antes o busca. E,
assim como dizemos isto humildemente, assim também o expomos constantemente.
Também nas atas do Concílio de Aquiléia[ 259 ] temos que, como o herege
Paládio, ao fugir da condenação dos bispos, chamasse à sua ajuda os leigos presentes,
assim lhe respondeu Ambrósio: Os sacerdotes devem julgar os leigos, não estes os
sacerdotes. E mais abaixo: Ainda que seja descoberto em muitas impiedades,
ruborizamo-nos que alguém que clama para si a condição do sacerdócio se veja
condenado por leigos. E é por este mesmo fato que o declaro indigno do sacerdócio:
porque merece condenação quem espera receber sentença dos leigos, quando antes
deveriam os leigos ser julgados pelos sacerdotes.
11. Confirma esta verdade de modo excelente Atanásio,[ 260 ] na Epístola aos que
Levam a Vida Solitária, primeiro citando e depois elogiando as palavras de Hósio a
Constâncio: Desiste, peço-te, e recorda-te que és mortal; teme o dia do juízo,
preserva-te puro para aquele dia, e não te metas nos assuntos eclesiásticos, nem
ordenes a nós neste tema. Ao contrário, aprende-o de nós. A ti Deus confiou o
império; a nós, as coisas da Igreja. Da mesma maneira que contradiz a ordem divina
quem se queixa de teu império com olhos malignos, assim também cuida para que,
trazendo para ti as coisas da Igreja, não te faças culpado de um grande crime. Está
escrito: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” Logo, nem é
justo que tenhamos um império sobre a terra, nem que tu, imperador, tenhas poder
sobre os incensos e sacrifícios. Mais abaixo, assim escreve Atanásio, com palavras
próprias: Se se trata de um juízo de bispos, que tem o imperador em comum com
isso? Se, ao contrário, e em afronta a estas regras, movem-se os processos pelas
ameaças do imperador, qual a serventia destes homens com título de bispos?

119
Quando, desde o começo dos tempos, se ouviu coisa igual?! Quando foi que o juízo
da Igreja recebeu sua autoridade do imperador? Quanto a “com título de bispos”,
refere-se àqueles que Constâncio criara por sua autoridade, e que, como dizia mais
abaixo, eram bispos apenas em título, mas não em verdade – o que corresponde de
modo admirável aos bispos anglicanos.
Finalmente, Agostinho[ 261 ] repreende os donatistas, que, em matéria
eclesiástica, ousaram apelar da sentença dos bispos ao imperador Constantino:
Tampouco ousou um imperador cristão tomar para si desta maneira as suas
tumultuosas e falazes querelas, para julgar ele próprio a sentença dos bispos que se
reuniram em Roma. E mais abaixo: Neste assunto, já ouvistes o quanto ele os detesta.
E, visto que Constantino, vencido pela importunidade dos hereges, passou sentença
sobre este ponto, escusa-o tacitamente Agostinho, dizendo: Este cedeu a eles, por
haver julgado sobre esta causa após os bispos, mas depois tencionou pedir perdão
aos santos prelados, que nada mais tiveram a lhe dizer. Agostinho está, ademais, em
concordância com o que afirma sobre este tema Optato de Milevi:[ 262 ]Donato
acreditou que devia apelar da sentença dos bispos, e a esta apelação o imperador
Constantino assim respondeu: Ó audácia raivosa da loucura! Assim como sói fazer-
se nas causas dos gentios, interpuseram-me uma apelação!
12. ESTABELECE-SE ESTA MESMA VERDADE PELOS ESCRITOS DOS IMPERADORES. – A isto
podemos adicionar os testemunhos e declarações dos próprios imperadores. Pois
Justiniano[ 263 ] (nas Autênticas, no início do título Quomodo oporteat episcopos),
assim nos diz: Os maiores de todos os dons de Deus, concedidos pela clemência
celeste, são o sacerdócio e o império – aquele administra as coisas divinas, este
preside às humanas e lhes presta cuidados. Ambos procedem de um só e mesmo
princípio, e adornam a vida humana. O próprio imperador Justiniano, portanto,
entendeu que no imperador não se encontra o poder espiritual sobre as coisas divinas.
E o mesmo sentia Constantino, o Grande, que recusou emitir juízo entre os bispos no
Concílio de Nicéia, e reconheceu que isto não lhe cabia, ao dizer: Deus vos constituiu
sacerdotes, e nos fostes dados por Deus como juízes; não convém, portanto, que um
homem julgue a deuses, mas apenas Aquele de quem está escrito: “Levanta-se Deus
na congregação dos deuses, e entre os deuses emite seu julgamento”, conta-nos
Rufino de Aquiléia.[ 264 ] E diz-nos o Papa Adriano[ 265 ] (em cujo texto se
menciona também Teodósio, que escrevia uma epístola ao Concílio de Éfeso): É
ilícito que quem não pertence à ordem dos santíssimos bispos se mescle aos assuntos
eclesiásticos.
Conta-nos também Sozomeno[ 266 ] que, como certos bispos enviassem um
legado ao imperador Valentiniano, para solicitar-lhe o direito de reunir-se em concílio
e tratar dos temas da fé, ele próprio respondeu-lhe que, por contar-se entre os leigos,
não lhe era lícito interpor-se em tais coisas. Este episódio é também narrado por
Nicéforo.[ 267 ]
Do mesmo Valentiniano conta-nos Sozomeno:[ 268 ]foi a tal ponto piedoso no
amor a Deus, que nem ordenava nada aos sacerdotes, nem inovava nas instituições
da Igreja quanto ao que lhe parecesse bom ou ruim; pois, por mais que fosse
excelente imperador, e muito competente para gerir o reino, estimava que estas
outras coisas excediam de longe o seu julgamento. Na História Tripartite,[ 269 ]

120
refere-se ainda a Valentiniano, que, quando, com a morte do herege Auxêncio de
Milão, desejava que se ordenasse um bispo católico, disse aos demais bispos:
Conheceis bem, ó eruditos nas palavras divinas, como deva ser um pontífice. E mais
abaixo: Estabelecei na sé pontifícia um homem a quem também nós, que governamos
o império, curvemos sinceramente nossas cabeças, e cujas advertências recebamos
necessariamente como remédios de quem nos cura, quando em nossa condição
humana tenhamos delinqüido. E, como os bispos lhe pedissem que ele próprio,
piedoso e sábio, o indicasse, respondeu: Tal escolha nos supera.
Resta também, entre as epístolas de Inocêncio I, uma do imperador Honório
Augusto a Arcádio,[ 270 ] na qual, ao escrever sobre a causa de Crisóstomo, diz:
Visto que, quando se trata de alguma causa religiosa entre prelados, é necessário
que o juízo seja episcopal – pois é a eles que cabe a interpretação das coisas divinas
–, cabe a nós a obediência à religião. E pouco depois: Pelas próprias coisas se vê o
que pensou disso a majestade divina, etc.
Finalmente, entre as atas do VIII Concílio Geral, Súrio cita-nos o discurso do
imperador Basílio,[ 271 ] em que muito piedosa e fielmente fala aos leigos: Sobre
vós, nada mais há por dizer, exceto que de nenhum modo vos é lícito emitir pareceres
sobre as causas eclesiásticas. Pois investigá-las e inquiri-las é próprio dos
patriarcas, pontífices e sacerdotes, que foram escolhidos para o ofício de governar,
que detêm o poder de santificar, atar e desatar, que receberam as chaves eclesiais e
celestes; não é algo próprio de nós, que devemos ser apascentados. E prossegue com
seu discurso de modo detalhado, sábio e piedoso.

[ 226 ] Defensor Pacis, Frankfurt, 1612, Dictio II, c. 4, § 4, p. 119.


[ 227 ] NICHOLAS SANDER, De Origine ac progressu schismatis anglicani libri tres, Roma, 1586.
[ 228 ] S. Th., I, q. 101, a. 1, co.
[ 229 ] Op. cit., III, q. 1, a. 3, co.
[ 230 ] ALFONSO SALMERÓN, Commentarii in Evangelicam Historiam, et in Acta Apostolorum, Colônia, 1602,
t. VIII, tract. LIX, pp. 460-6.
[ 231 ] In Matthaeum Homil., 71, n. 2 (PG 58, 656).
[ 232 ] Epistolarum classis I, Epist. XX, 19 (PL 16, 999C).
[ 233 ] Epistola I Anastasii Papae II ad Anastasium Augustum, Mansi 8, 190.
[ 234 ] Epist. 8 ad Anastasium Imperatorem, Mansi 8, 31.
[ 235 ] Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum famosum, Mansi 8, 215.
[ 236 ] Synodus Romana IV, Mansi 8, 266C.
[ 237 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, I, d. 96, c. 6 (Cum ad verum), pp. 30-31.
[ 238 ] Ad Michaelem imperatorem, Mansi 15, 214E-215A.
[ 239 ] Registrum, IV, Epistola 2 (PL 148, 454) e VIII, Epistola 21 (PL 148, 594).
[ 240 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, I, tít. 33, c.6 (Solitae), fol. cxx.
[ 241 ] Extravagantes Communes, Paris, 1511, lib. I, ff. x-xii.
[ 242 ] Op. cit., lib. V, fol. lii.
[ 243 ] Decretum Gratiani, I, d. 63, c. 1, p 296.
[ 244 ] Actio X, c. 22, Mansi 16, 167.
[ 245 ] Decretum Gratiani, I, dist. 63, can. 7, p. 299; Mansi 13, 748.
[ 246 ] Decretales Gregorii IX, lib. II, tit. 16, cap. 3, fol. clxxxviii.
[ 247 ] Op. cit., lib. III, tit. 30, cap. 26, fol. cccxxxvii.
[ 248 ] Trata-se do Livro IV da Defesa da Fé Católica, não traduzido na presente edição.
[ 249 ] In Illud Vidi Dominum, Homil. 5 (PG 56, 130); In Matthaeum Homil., 82, 6 (PG 58, 744); De
sacerdotio, III, 6 (PG 48, 641).
[ 250 ] Catechesis XVII De Spiritu Sancto II, 10 (PG 33, 981).
[ 251 ] Epist. 67 (PG 77, 337).
[ 252 ] Oratio 17, 8 (PG 35, 976A-B).

121
[ 253 ] Oratio 36, 11 (PG 36, 277-280).
[ 254 ] S. JOÃO DAMASCENO, De Imaginibus Oratio I (PG 94, 1281); De Imaginibus Oratio II, 12 (PG 94,
1295).
[ 255 ] TEODORETO DE CIRRO, Ecclesiasticae Historiae, IV, cap. 15 (PG 82, 1155C-D).
[ 256 ] Suidae Historica, Basiléia, 1564, cols. 542-3.
[ 257 ] V. nota 232 supra.
[ 258 ] Epistolarum Classis I, Sermo contra Auxentium, 2; 18; 31; 36 (PL 16, 1008A; 1013A; 1016C-D;
1018B).
[ 259 ] Mansi 3, 611C-D.
[ 260 ] S. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA,Historia Arianorum, 44 e 52 (PG 25, 746C-D e 755C-D) e Mansi 3,
246A-B.
[ 261 ] Epistolarum Classis II, 43, 20 (PL 33, 169).
[ 262 ] De schismate Donatistarum, lib. I, cap. 25 (PL 11, 934-5).
[ 263 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Novellae, Nápoles, 1830, lib. V, tit. VI, pp. 35-6.
[ 264 ] Historia Ecclesiastica, I, c. 2. (PL 21, 467C-468C).
[ 265 ] Ad Michaelem imperatorem, Mansi 15, 215A-B.
[ 266 ] Historia Ecclesiastica, lib. VI, c. 7 (PG 67, 1312A).
[ 267 ] NICÉFORO CALISTO XANTÓPULO, Ecclesiasticae Historiae, lib. XI, c. 30 (PG 146, 671C-682A).
[ 268 ] Op. cit., lib. VI, c. 21 (PG 67, 1345B-C).
[ 269 ] CASSIODORO, Historia Tripartita,VII, cap. 8 (PL 69, 1073B).
[ 270 ] Exemplum Sacrae Honorii Augusti Missae ad Principem orientis Arcadium, Mansi 3, 1122.
[ 271 ] LOURENÇO SÚRIO, Concilia omnia tum generalia tum provincialia, Colônia, 1567, III, p. 543.

122
Capítulo VIII
Confirma-se a mesma verdade
por argumentos de razão
1-2. Primeiro argumento. 3. Segundo argumento. A evasiva dos protestantes e sua
refutação. 4-5. Impede-se uma segunda evasiva e mostra-se que a cabeça soberana
da Igreja deve ser uma só. 6. Objeção. Solução. Instância. 7-8. Resposta. 9.
Refutação de uma evasiva. 10. Terceiro argumento. 11. A resposta dos hereges e sua
refutação. 12. Refuta-se cabalmente aquela mesma resposta a partir dos princípios
dos protestantes. 13. Impugna-se a mesma resposta pelos inconvenientes que se
dariam. Primeiro inconveniente. 14. Segundo inconveniente. 15. Evasiva e refutação.
16. A evasiva anterior repugna ao próprio rei Jaime.

1. PRIMEIRO ARGUMENTO. – Visto que a verdade católica já foi suficientemente


fundamentada pela autoridade, podemos demonstrá-la facilmente pela razão, partindo
dos mesmos princípios. Ora, como o poder de reger não pode encontrar-se em
homem algum sem justo título – princípio pelo qual antes provamos que não há no
pontífice soberania temporal direta –, mostramos claramente por este mesmo
princípio que não há no rei temporal poder para o governo espiritual. Assim, os que
aceitam livremente o primeiro, forçosamente aceitarão o segundo, a não ser que
queiram falar sem razão, ao capricho de suas vontades.
Ora, encontramos muito menos justo título de poder espiritual no príncipe
temporal, do que de poder temporal no pastor espiritual. E provamos brevemente o
princípio que presumimos: ou aquele título seria de direito natural ou de direito
positivo – divino ou humano.[ 272 ] E todas estas posições facilmente se rejeitam
pelo que já dissemos: de fato, não pode ser de direito natural, tanto porque esse poder
não é natural (como já o provamos), quanto porque, por procedência imediata do
direito natural, nenhum poder de dominar ou reger outros encontra-se numa pessoa
em particular, mas apenas na comunidade. Ora, esse poder espiritual não se encontra
na comunidade humana enquanto algo que dela flui naturalmente, nem – na medida
em que se encontra numa pessoa em particular – pode fundamentar-se na vontade
desta mesma comunidade de ceder ou transferir a outrem esse poder, que é de ordem
muito mais elevada. Portanto, não pode encontrar-se no rei pelo direito natural.
E pela mesma razão se mostra que não pode provir de um direito humano que se
fundamente apenas no natural, ou tenha origem neste, como é o caso do direito das
gentes ou do direito civil. Pois, se o próprio direito natural não alcança tal poder,
muito menos o fazem os outros direitos que nele se fundamentam.
2. Acerca do direito divino, o tema é manifesto pelo que já foi dito, pois tal direito
deve ser comprovado mediante autoridade divina. Ora, não há nenhuma autoridade

123
que o comprove, nem divina, nem humana; não há autoridade que demonstre que tal
direito foi dado aos reis.
Ademais: embora se possa às vezes persuadir mediante a razão que algo procede
do direito divino, é necessário que isto se colija suficientemente dos princípios
revelados, ou ao menos que, suposta a instituição da Igreja, demonstre-se que este
algo é o mais consoante com a divina providência. Nada disso se tem no caso
presente, pois não há nenhum princípio revelado pelo qual se comprove com
verossimilhança o haver nos reis tal poder espiritual. Ao contrário, rechaçam esta
doutrina todos os princípios revelados, como expusemos.
E, com efeito, todo argumento baseado na conveniência providencial e na
disciplina eclesiástica nos indica que não se deveu confiar esse poder celeste aos reis
temporais. Primeiro, porque estes se encontram envolvidíssimos nos cuidados
temporais e negócios seculares; segundo, porque não podem dedicar tempo aos textos
sagrados e à ciência divina, doutrina maximamente necessária nos pastores
eclesiásticos. E é por isso que Paulo dizia a Timóteo [em I Timóteo 4:16]: Atende a ti
e à doutrina. Nisto, indica-nos também este outro argumento: visto que tal poder se
confere para uma finalidade espiritual e para a salvação das almas, ele requer, neste a
quem se o confere, um estado de vida espiritual e perfeita, para que possa auxiliar os
seus súditos não menos com a palavra do que com o exemplo. Ora, os reis temporais,
falando em termos morais e em virtude de seu estado, não possuem nem confessam
esse tipo de vida, e por isso não eram aptos para tal ofício.
Finalmente, por este motivo o sacerdócio na Igreja de Cristo não é unido per se ao
governo, pois não foram os reis os escolhidos para, em prol dos homens, ser postos à
frente desses assuntos divinos. Logo, pela mesma razão, tampouco eram aptos ao
governo espiritual.
Desta feita, exclui-se conseqüentemente qualquer título fundamentado no direito
canônico: primeiro, porque o direito canônico deriva do direito positivo divino;
segundo, porque mesmo assim os argumentos que expusemos ainda procedem;
terceiro, porque se mostrou que o direito canônico se opõe absolutamente a tal
presunção por parte dos reis.
Isto que dissemos se tornará mais evidente no capítulo seguinte, no qual
mostraremos como são levianos os fundamentos que o rei Jaime aduz para seu
direito.
3. SEGUNDO ARGUMENTO. A EVASIVA DOS PROTESTANTES E SUA REFUTAÇÃO. –
Podemos ainda produzir outro argumento, da seguinte maneira: se houvesse poder
espiritual nos reis temporais, haveria tantos príncipes espirituais soberanos na Igreja
quanto há de príncipes soberanos temporais – o que é absurdo e repugna muito aos
princípios da fé.
Tal conclusão é manifesta. Primeiro, porque, se o poder para reger a Igreja em
matéria espiritual é algo unido ao poder régio, ele nem se reduz a um princípio mais
elevado sob Deus, nem depende de outro poder mortal. Segundo, porque, não há
maior razão pela qual um rei se submeta a outro em matéria espiritual, ou vice-versa.
Talvez os protestantes anglicanos não apenas o concedam, mas o desejem como
principal. Tampouco julgam haver nisso qualquer inconveniente, pois não admitem
várias cabeças espirituais de uma Igreja universal inteira, mas sim de várias igrejas

124
particulares que existam nos diversos reinos como partes da Igreja universal – por
essa razão poderiam ter várias cabeças parciais. Ora, que isso seja absurdo e
monstruoso na Igreja militante de Cristo, facilmente o entenderá aquele que, partindo
das Escrituras, considerar que a Igreja de Cristo é um só corpo místico perfeitamente
constituído. Pois tal corpo requer um só poder soberano, que tenha eficácia sobre
todos os seus membros – quer tal poder se encontre numa pessoa física, quer numa
congregação (o que veremos depois) – uma vez que sem tal poder não pode haver a
devida união e conformidade entre os membros do corpo.
4. IMPEDE-SE UMA SEGUNDA EVASIVA E MOSTRA-SE QUE A CABEÇA SOBERANA DA
IGREJA DEVE SER UMA SÓ. – Mas dirão, talvez, que basta todas as igrejas particulares
estarem unidas sob uma só cabeça, o Cristo.
Ora, contra isto está o fato de que a Igreja militante, conforme se encontra neste
mundo, é um só reino espiritual e corpo místico, perfeitamente uno em seu próprio
gênero. Logo, requer também neste mundo um só tribunal soberano que o governe;
de outro modo, não se poderia dizer que, tal como habita este mundo, esse corpo
possui unidade.
Isto se esclarece com uma comparação. Muitos reinos que militam sob reis ou
imperadores distintos não são apenas um reino ou império, porque não possuem
apenas um regime soberano na terra, por mais que se encontrem unidos sob um só rei,
Deus, que é monarca soberano – e também temporal – de todos os reis. Assim,
segundo tal posição, vê-se claramente que as várias igrejas que há no mundo não
constituirão uma Igreja universal propriamente una, da mesma maneira que os vários
reinos temporais não formam apenas uma república temporal ou apenas um império
ou reino.
E isso também se demonstra com este outro exemplo apropriado: se em duas
regiões diversas houvesse dois exércitos do rei da Espanha, sob dois comandantes
soberanos e de nenhuma maneira subordinados entre si, não se poderia dizer que há
um só exército, ainda que se encontrem unidos sob um mesmo rei, e deste recebam
um influxo de outro tipo. Portanto, o mesmo se deveria dizer dos diversos reinos,
enquanto neles houvesse igrejas distintas que militassem sob cabeças eclesiásticas
soberanas.
5. Ocorre também que a unidade da Igreja não pode preservar-se sem unidade de fé e
de sacramentos. Ora, esta unidade de fé não poderia conservar-se nos diversos reinos
e províncias sem enorme milagre, se as partes da Igreja e suas cabeças na terra
estivessem totalmente divididas entre si e desprovidas de qualquer subordinação a
algum poder soberano, ao qual todos na terra estejam obrigados a obedecer.
E demonstra-o suficientemente a experiência, pois foi dessa situação que
nasceram todos os cismas e divisões das igrejas. A razão disso é clara: se dois reis
temporais são soberanos em matéria espiritual, e um escolhe em seu reino um modo
de religião e outro escolhe outro; se um, por juízo próprio, toma da Escritura uma fé,
enquanto outro toma uma fé contrária, como poderão reduzir-se à unidade? E assim
conclui-se ser moralmente impossível que duas igrejas soberanas (isto é, não
reconhecedoras de um superior espiritual na terra) sejam também unidas em Cristo:
pois elas não se unem a Cristo senão pela verdadeira fé, e, assim, por uma só e

125
mesma fé, pois a verdadeira fé não é senão uma só. Ora, tais igrejas não poderiam
conservar-se em apenas uma fé, como já demonstramos. Portanto, tampouco
poderiam preservar a união em Cristo.
6. OBJEÇÃO. SOLUÇÃO. INSTÂNCIA. – Mas dirás que este raciocínio procederia
igualmente contra os bispos ou apóstolos, ainda que se diga haver neles a soberania
espiritual.
Respondo: é verdade que também eles devem ser reduzidos a uma cabeça
suprema, para que se possa preservar a unidade da Igreja. Qual e de que tipo seja esta
cabeça, vê-lo-emos mais abaixo, pois, pela força de nosso argumento anterior apenas
se conclui que ela deve ser uma só, quer seja um só bispo, quer seja uma congregação
de bispos.
Mas insistirás que, diriam os anglicanos, embora o rei temporal também seja em
seu reino um soberano espiritual em comparação com qualquer outra pessoa
particular, ainda assim poderia reunir-se em concílio ou congresso com todos os reis
cristãos, no qual haja um poder espiritual superior ao de cada um dos reis, e por cuja
autoridade a unidade da Igreja possa preservar-se.
O rei da Inglaterra não parece ser alheio a esta resposta, pois também parece
reconhecer a autoridade de um concílio legítimo – uma vez que dá fé aos quatro
primeiros concílios, reclama que não se costume empregá-los, e defende que cabe aos
reis, não ao pontífice, o poder de convocá-los.
7. RESPOSTA. – Não obstante, tal evasiva não apenas é ineficaz, mas complica ainda
mais sua posição. Primeiro porque, se antes da convocação daquele concílio ou
congresso nenhum rei tem condição superior em matéria espiritual, quem terá o poder
de convocá-los? Pois, se alguns se recusam, ninguém os poderá coagir. E, se há de
convocar-se os bispos, nenhum rei poderá intimar a tal encontro os bispos não
sujeitos a ele, nem autenticamente convocá-los. Logo, tratar-se-á de coisa
moralmente impossível, e insuficientemente providenciada pelo Autor da Igreja. Da
mesma maneira, se, para dispor em matéria política o necessário para o bom governo
de todo o mundo, fosse forçoso que todos os reis e príncipes temporais soberanos se
reunissem em assembléia, seria certamente impossível haver tal convocação, e se
trataria de algo totalmente alheio a qualquer providência prudente.
Finalmente, quem presidiria a tal encontro? Pois nenhum deles quereria ceder ao
outro, visto que é igualmente soberano, e especialmente se o assunto fosse relativo à
fé: se houvesse discordância, cada um julgaria dever crer em seu próprio espírito, em
detrimento das opiniões dos demais. Sobretudo se fosse verdadeira a norma do rei da
Inglaterra, pela qual propõe a todos os reis a ciência de cada um como fundamento de
sua própria fé.
8. Além disso, admitido tal congresso ou concílio monstruoso, se ele fosse superior a
cada um dos reis, já não seria nenhum deles soberano em matéria espiritual, como o
defendia com pertinácia o rei da Inglaterra. E portanto creio que não era sua intenção
admitir como superior o poder de algum concílio, mas apenas que servisse a certa
consulta prudente e a um exame mais público das coisas.
Por isso, não fala coerentemente daqueles mesmos concílios, mas aprova o que
quer e rejeita o que não quer, constituindo-se juiz deles.

126
Ainda mais: em certo ponto de seu Prefácio, discerne por seu próprio arbítrio
entre os que se haveria de convocar a um concílio geral, se agora se devesse reuni-lo.
9. REFUTAÇÃO DE UMA EVASIVA. – Finalmente, se em seus reinos os monarcas
soberanos temporais têm também poder espiritual soberano sobre os demais
monarcas, então não resta nenhum fundamento para afirmar que uma congregação
destes monarcas teria na Igreja um poder sobre ela inteira, e sobre todos os seus
príncipes, pois pela própria natureza das coisas isso não procede, nem se pode
afirmar.
Em matéria temporal, ainda que se fizesse uma assembléia, esta não teria
jurisdição soberana sobre aqueles reis, exceto se cada um deles livremente
renunciasse a seu direito e alterasse o regime anterior, constituindo das várias
monarquias uma só aristocracia – o que seria algo voluntário, e mais um fruto da
imaginação do que algo realmente existente. Ora, as coisas seriam da mesma maneira
no tocante ao poder espiritual, se este por sua natureza estivesse unido ao temporal.
E, caso alguém imagine que Cristo, por instituição particular, tenha desejado que
em assuntos espirituais haja vários reis sujeitos a uma assembléia deles próprios, será
necessário demonstrar algum vestígio desta instituição. Principalmente porque tudo
que dissemos contra tal poder em cada um dos reis (considerado individualmente)
procede igualmente contra qualquer multidão ou assembléia deles.
Portanto, é fictícia e monstruosa essa soberania espiritual dos príncipes temporais,
qualquer que seja a maneira em que se a invente ou conceba.
10. TERCEIRO ARGUMENTO. – Por fim, podemos elaborar um terceiro argumento, a
partir de inconveniências. Primeiro que, se partimos de tal posição, segue-se que é
possível aos reis cristãos, se quiserem, exercer por si mesmos todas as ações próprias
dos sacerdotes e bispos, tais como oferecer sacrifícios a Deus, ou (se não admitem a
anterior) administrar os sacramentos, ligar mediante excomunhões e censuras,
absolver delas e dos pecados, e outras ações que pertencem ao culto público de Deus.
Ora, tais coisas são inauditas na Igreja de Cristo.
Até mesmo na sinagoga dos judeus foi dito ao rei [II Crônicas 26:18]: Não é teu
ofício, Ozias, oferecer incenso ao Senhor. E, como não cessou de fazê-lo, acometeu-o
a lepra. Que isto não se aplica menos a um rei cristão, ensina-o Crisóstomo,[ 273 ] em
sua Epístola 5, ao comentar as palavras de Isaías.
Além disso, se um rei temporal, pelo mero fato de ser rei, pode administrar
legitimamente por si mesmo tais ações, será também lícito a uma mulher exercê-las
por si, pois a mulher é capaz de potestade régia. Assim, segundo a opinião dos
protestantes, com tal potestade ela terá a soberania espiritual. Ora, São Paulo nem
permitiu às mulheres falar na Igreja, nem exercer as atividades sacras; ao contrário,
ordenou que calassem e se submetessem.[ 274 ]
11. A RESPOSTA DOS HEREGES E SUA REFUTAÇÃO. – Mas podem nossos adversários,
discernindo entre as ações que requerem poder de ordem ou apenas de jurisdição,
responder que é possível ao rei exercer por si todo ato de jurisdição eclesiástica e ter
soberania para isso, muito embora não possa exercer por si outras ações que requerem
poder de ordem.

127
Mas, primeiro, isso é contrário à instituição de Cristo, pois Ele quis que a Igreja
fosse regida por aqueles que desejou fossem os principais ministros da palavra e dos
sacramentos de Deus, ou seja, pelos bispos, nos quais existe por excelência o poder
de ordem.
Finalmente, é bastante absurdo que o governante mais alto da Igreja não possa
exercer seus atos principais, que se ordenam ao culto divino e à santificação dos fiéis.
Pois, numa república civil, não há nada que os magistrados inferiores possam fazer –
com ordem à finalidade de seu poder – que não possa também ser feito pelo rei ou
imperador, com seu poder mais elevado, dentro da ordem a esta mesma finalidade.
Portanto, no caso da república cristã, visto que o poder, a ordem e a jurisdição
eclesiástica se referem à finalidade espiritual e à santificação das almas, com muito
mais razão estes dois poderes[ 275 ] deveram ser ordenados entre si e instituídos de
modo que no príncipe soberano da Igreja eles se encontrassem unidos, com toda a
perfeição e excelência – e, por isso, no que depende de seu poder, um superior (ou o
soberano) pode fazer tudo que está ao alcance dos inferiores.
12. REFUTA-SE CABALMENTE AQUELA MESMA RESPOSTA A PARTIR DOS PRINCÍPIOS DOS
PROTESTANTES. – Podemos também refutar os protestantes partindo de seus próprios
princípios. Pois, entre eles, o poder de ordem nada é senão a nomeação de ministros
feita pelo rei ou magistrado temporal. Pois, dizem eles, se é o caso de que na
Inglaterra se realizam outras cerimônias para constituir ministros, não as reputam
necessárias, nem instituídas por Cristo, mas inventadas ou preservadas pelo arbítrio
humano em vista de certo ornado exterior. Portanto, sem elas poderia o rei instituir
ministros para essas mesmas funções. Logo, com muito mais razão poderia exercer
todas elas por si mesmo.
Assim, a rainha Elizabete teria podido igualmente fazê-lo, em virtude dessa
mesma dignidade; e, pelo mesmo raciocínio, poderia então constituir mulheres como
ministros de sua Igreja. Ora, quem acreditaria que uma mulher pode ser cabeça da
Igreja, mas não pode ser ministro? Longe estejam da cabeça de Cristo governo e
hierarquia tão absurdos!
13. IMPUGNA-SE A MESMA RESPOSTA PELOS INCONVENIENTES QUE SE DARIAM. PRIMEIRO
INCONVENIENTE. – Se a jurisdição espiritual soberana se segue à temporal, e não
requer de nenhum modo o poder de ordem, decerto ela também poderá se encontrar
num rei pagão, sobre toda a Igreja em seus domínios – pois este tem poder
jurisdicional tão perfeito quanto o de um rei cristão, e pela Escritura não se pode
provar que, para o uso de tal jurisdição, o batismo seja mais necessário do que a
ordenação clerical.
Explicamo-lo melhor: na Igreja Romana, Constantino, por exemplo, possuía
soberania temporal desde antes de se haver convertido à fé. Logo, ou já possuía
também a espiritual – e assim se admite o inconveniente que já aduzimos, um
absurdo sem igual –, ou Constantino não a possuía. Neste segundo caso, certamente a
possuía então Silvestre. Portanto, também depois de batizado Constantino, Silvestre
reteve consigo tal soberania, não Constantino. Afinal, quem realizaria tal
transmutação ou transferência de poder de Silvestre para Constantino? Ou por que
palavra de Deus se fez que Constantino, pelo mero batismo, de ovelha passasse a

128
pastor, e de filho espiritual passasse a pai soberano e governante? Tais coisas são
certamente incríveis e absurdas.
E, se Constantino, já batizado, reteve consigo apenas o poder temporal, foi com
certeza apenas este que transmitiu a seus sucessores, e apenas este que foi dividido
entre os outros reis e príncipes que hoje existem. E, se há outros reis que não têm
origem nele e depois se tornaram cristãos, o mesmo raciocínio pode (guardadas as
proporções) aplicar-se a eles.
E, da mesma maneira, se, depois do batismo de Constantino, Silvestre perseverou
em seu pontificado com o mesmo poder espiritual, foi este que chegou a seus
sucessores até os dias de hoje. E, guardadas as proporções, o mesmo vale para a
Inglaterra e qualquer outro reino cristão.
14. SEGUNDO INCONVENIENTE. – Há ainda outro absurdo que podemos inferir. Se com
a soberania temporal vem unida a espiritual, por que não se encontram igualmente em
qualquer magistrado ou príncipe temporal inferior – embora estes reconheçam seu
superior – os dois poderes unidos, com a devida proporção e subordinação ao
superior? Pois o raciocínio é o mesmo, e não se pode fazer distinção por força do
direito natural. E a Escritura não dá mais poder espiritual aos príncipes soberanos do
que a seus inferiores; onde a Escritura fala da obediência devida aos príncipes
temporais, de modo geral fala tanto de reis quanto de outros magistrados. Pois assim
se entende São Paulo, quando diz em Romanos [13:1]: Toda alma esteja sujeita às
potestades superiores – e o explicou mais claramente São Pedro, ao falar: Quer ao
rei, como superior, quer aos governadores, como enviados seus.[ 276 ]
Ora, se se concedesse tal absurdo, toda a hierarquia eclesiástica seria
necessariamente arruinada no tocante a seu regime de governo externo. Pois, onde se
crê que o rei temporal é governante supremo em matéria espiritual, por isso mesmo
ali se exclui o Sumo Pontífice. Logo, se o prefeito régio de uma cidade também tem
nela a prefeitura espiritual, conseqüentemente ali haverá de se excluir do regime
espiritual o bispo, porque não pode haver duas cabeças de uma mesma ordem; porém
a fortiori estão ali também excluídos todos os demais prefeitos ou governantes
eclesiásticos – e assim, queira ou não o rei da Inglaterra, cairemos na anarquia dos
puritanos no tocante ao regime eclesiástico.
15. EVASIVA E REFUTAÇÃO. – Poder-se ia responder que o mesmo raciocínio não vale
para o rei soberano e seus magistrados anteriores, porque o rei tem por si e quase que
por necessidade ambos os poderes conjuntos, mas os inferiores derivam seu poder do
rei, e portanto ele pode por seu arbítrio dividir tais poderes: comunicaria o temporal
ao prefeito civil, e o espiritual ao bispo.
Primeiro, porém, tudo isso não transcende a mera vontade e instituição humana, a
qual o rei também poderia mudar à vontade, assim como a constituiu. Logo, pode
demolir toda a hierarquia eclesiástica no tocante ao regime da Igreja.
Segundo, o rei não é coerente nessa sua posição, se a concedemos. Porque então
admite que são distintos os poderes espiritual e temporal, e separáveis quanto ao
sujeito, e também separados nos magistrados inferiores. Logo, por que não se
separariam essas duas ordens em seu ponto mais alto? Com que título pode
demonstrar-nos que possui ambos esses poderes?

129
16. A EVASIVA ANTERIOR REPUGNA AO PRÓPRIO REI JAIME. – Há ainda outra razão pela
qual a proposta acima contradiz as afirmações do rei. Pois ele repreende Belarmino
por este haver negado que os bispos recebam seu poder imediatamente de Deus;
assim, tem que crer que os bispos obtêm sua jurisdição imediatamente de Deus.[ 277
] Logo, como pode o rei agora dizer que é ele quem lhes dá jurisdição, e que está a
seu arbítrio dá-la não a eles, mas a seus magistrados temporais? A não ser que
também se queira superior ao próprio direito divino...
Ademais, o rei da Inglaterra confessa na mesma passagem que discorda dos
puritanos acerca da jurisdição dos bispos. Pois bem: os puritanos afirmam que a
jurisdição eclesiástica é conferida pelo magistrado temporal. Portanto, se o rei se diz
conferir jurisdição aos bispos, não difere dos puritanos neste tema da jurisdição
episcopal, pense o que pensar sobre a diferença em dignidade de ordem.
Assim, para que o governo da Igreja pelos bispos (e não por magistrados
temporais) seja firme e estável, é necessário que esta seja uma instituição divina, e
que também a jurisdição dos bispos derive de Cristo – quer mediante o Papa, como
pensa com mais probabilidade Belarmino,[ 278 ] quer imediatamente, como também
com probabilidade pensam outros católicos. Por agora, porém, este último detalhe é
irrelevante. E digo-o porque, de qualquer maneira que essa jurisdição proceda de
Cristo mediante instituição positiva, não pode proceder do rei temporal, nem
depender dele per se. Conseqüentemente, não pode o poder régio ser diretamente e
per se superior ao episcopal, nem tampouco soberano no âmbito da jurisdição
eclesiástica.
Talvez guiado por seu espírito de contradizer a Belarmino, o rei não percebeu essa
contradição em seus ditos e opiniões, apesar de ela ser bastante clara, como
exporemos novamente no capítulo seguinte.

[ 272 ] Seguindo a tradição tomista, Suárez separa duas classes de direito positivo: direito divino e direito
humano. Cf. De Legibus ac Deo Legislatore, Antuérpia, 1613, II, cap. X, pp. 90-8. [N. C.]
[ 273 ] In Illud Vidi Dominum, Homils. 1-5 (PG 56, 97-131).
[ 274 ] I Coríntios 14:34.
[ 275 ] Isto é, o de ordem e o de jurisdição. [N. T.]
[ 276 ] I Pedro 2:13-14.
[ 277 ] Apologia pro Iuramento Fidelitatis, Praefatio, Londres, Opera Regia, 1609, p 54.
[ 278 ] S. ROBERTO BELARMINO, De Summo Pontifice, Ingolstadt, 1599, lib. IV, c. 25, resp., p. 596.

130
Capítulo IX
Refutam-se algumas objeções contra a verdade provada
nos capítulos anteriores
1. Três objeções sobre o poder de reger a Igreja. 2. Primeira objeção. 3. Resposta. O
poder régio não está unido ao sacerdotal pelo direito natural. 4. Na lei natural não
houve poder sobrenatural de ordem. Tampouco houve jurisdição espiritual. 5.
Objeção. Solução. 6. Segunda objeção. 7. Terceira objeção, tomada do Novo
Testamento. 8. Solução aos dois primeiros testemunhos. 9. Do terceiro texto, em
Timóteo, nada se deduz contra a verdade que estabelecemos. 10. Do testemunho em
Mateus, conclui-se o contrário. Mostra-se também que João e Lucas confirmam a
doutrina que defendemos. 11. Quarta objeção. 12. Solução. Agostinho é citado sem
razão para apoiar o erro contrário. 13. Resposta às palavras de Isidoro. 14. Quinta
objeção, tomada dos Padres. 15. Solução. Esclarece-se a verdadeira opinião dos
Padres. 16. Exposição autêntica do Concílio de Arles.

1. TRÊS OBJEÇÕES SOBRE O PODER DE REGER A IGREJA. – São muitas as razões pelas
quais o rei da Inglaterra esforça-se para persuadir-nos de que é com justo título que
ele se arroga, em seu reino, o poder espiritual e o nome de cabeça ou governante
espiritual soberano. Tudo que aduz são objeções contra a verdade por nós já provada;
embora não sejam difíceis, não podemos desconsiderá-las e daremos satisfação a
todas elas. Porém, como muitas destas objeções tomam-se dos feitos dos reis e
imperadores, e não dizem respeito ao ponto presente, é necessário distinguir aqui três
questões, para que mais claramente se entenda cada uma das referidas objeções nos
lugares em que foram propostas.
A primeira delas é a de que agora tratamos: sobre se no príncipe o poder espiritual
encontra-se necessariamente unido ao temporal. A segunda é se, supondo-se que estes
poderes se encontram em diversas pessoas, uma delas seria superior à outra, e qual
delas o seria – um ponto de que trataremos a partir do capítulo XXI. A terceira é uma
questão geral, sobre se os clérigos estão isentos do poder temporal também nas causas
civis, criminais e tributárias; tal questão é sem dúvida bem diversa das outras duas, e
será discutida a partir de outros princípios, no capítulo seguinte.
Assim, portanto, se há quaisquer eventos ou ações de príncipes católicos que de
algum modo possam objetar-se contra a jurisdição eclesiástica, estes pertencem
sobretudo à terceira questão, sobre a imunidade dos clérigos, como então veremos, e
também tocaremos nalguns poucos pontos acerca da segunda questão.
Quanto ao ponto presente, creio que, antes de Henrique VIII, a muito custo se
encontrará exemplo de um príncipe cristão – mesmo só de nome, embora herege –
que por força de seu próprio e inato poder tenha tentado usurpar um ato de jurisdição
espiritual, nem muito menos tentado arrogar-se a soberania e o primado do poder

131
espiritual. Por isso, deixando de lado estes exemplos, consideraremos brevemente
outros títulos com os quais o rei tenta fortalecer ou aparentemente defender o seu
direito.
2. PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O primeiro é que, por direito natural, esses dois poderes – o
régio e o sacerdotal – estão unidos. Logo, este direito natural permanece unido na lei
da graça, pois a graça não destrói a natureza, nem a lei de Cristo foi dada para tolher a
lei natural, mas para perfazê-la. E tal asserção assim se prova: antes da lei de Cristo e
de Moisés, apenas se observava o direito natural; de fato, aquele período é chamado
de “tempo da lei natural”. Ora, naquele tempo eram um só o rei e o sacerdote, como
consta de Melquisedeque, Abraão, Isaac, Jacó, e geralmente pela norma então aceita
de que os primogênitos e herdeiros do reino eram também sacerdotes, como vemos
em Jerônimo[ 279 ] e Ruperto.[ 280 ] Por isso São Paulo, em Hebreus 12, chama de
sacrílego a Esaú por haver vendido sua primogenitura, que era sagrada em razão do
sacerdócio.
3. RESPOSTA. O PODER RÉGIO NÃO ESTÁ UNIDO AO SACERDOTAL PELO DIREITO NATURAL.
– O título acima não é algo que se encontre formulado expressamente pelo rei, mas
julguei que não deveria omiti-lo (embora seja realmente frívolo), para fins de
complemento da doutrina, e também porque o rei parece supô-lo ao alegar em seu
favor alguns testemunhos do Novo Testamento. Em primeiro lugar, ainda admitindo-
se certo costume antigo, que parece ter vigido não apenas entre os fiéis, mas também
entre os gentios, negamos que ele proceda do direito natural (isto é, que seja
comandado pela lei natural), ainda que tenha origem em princípios gerais do direito
natural, mediante a razão e a vontade humana.
Pois, embora o sacrifício pertença de algum modo ao direito natural, e
conseqüentemente também o sacerdócio, não está prescrito pelo direito natural que
ele seja instituído de tal modo, nem por estas ou aquelas pessoas; ao contrário, isto
necessita definir-se mediante algum direito positivo. E assim, antes da lei de Moisés,
seja pelo direito das gentes, seja pelos costumes do povo, introduziu-se que a
dignidade sacerdotal mais elevada estivesse unida à dignidade régia. Tal regra, assim
como foi mudada na Lei Antiga, pode também ser mudada na Nova Lei. E que isto
foi feito e pertence à perfeição da lei da graça, ensinou o Papa Nicolau ao imperador
Nicolau,[ 281 ] ao dizer: Antes do advento de Cristo, às vezes ocorreu que alguns
tenham sido reis e sacerdotes simultaneamente, e conta-nos a história sagrada que
um deles foi o santo Melquisedeque, etc. E mais abaixo: Mas, quando se chegou à
verdade, nem o imperador nem o Pontífice usurparam a condição de ser rei e
Pontífice simultaneamente.
4. NA LEI NATURAL NÃO HOUVE PODER SOBRENATURAL DE ORDEM. TAMPOUCO HOUVE
JURISDIÇÃO ESPIRITUAL. – Em segundo lugar, se se trata do sacerdócio quanto ao poder
de ordem, a diferença é manifesta: pois na lei natural não havia poder sobrenatural de
ordem propriamente dito, mas somente o ministério de sacrificar e interceder pelo
povo, para o qual alguém podia dedicar-se por vontade própria ou consentimento –
uma vez que Deus naquele momento não havia prescrito nada em particular sobre o
sacerdócio ou o sacrifício. E assim o Papa Anacleto[ 282 ] nega que Melquisedeque,
Abraão ou outros homens daqueles tempos houvessem oferecido sacrifício com

132
qualquer autoridade sacerdotal instituída particularmente por Deus. Já na Lei Antiga,
assim como Deus determinou os sacrifícios, também o fez com o sacerdócio ou
pontificado, sem intervenção do povo ou consentimento deste. E também na Nova
Lei instituiu-os Cristo, de modo mais elevado e excelente.
Se, por outro lado, trata-se do sacerdócio quanto ao poder de jurisdição, aquela
objeção supõe primeiramente algo falso ou muito incerto, a saber, que o sacerdote ou
Pontífice tivesse possuído jurisdição espiritual na lei natural – coisa que, ou é falsa,
ou incerta. Pois tal poder nem foi dado especialmente por Deus naquele estado, como
é evidente por si, nem pode caber aos homens por direito natural. O poder
governativo do homem não transcende a ordem humana, e institui-se sobretudo para
ordenar os homens entre si, de modo que, embora também possa dar atenção ao culto
divino, em seu modo e determinação ele dirá sempre respeito ao bem comum da
república humana, como em passagem semelhante nos diz Santo Tomás.[ 283 ] Por
essa razão, não foi correta a comparação entre a lei natural e a da graça. Na lei
natural, todo o poder de governo era abarcado pelo poder temporal, pois este era
capaz de dispor das coisas referentes ao culto de Deus da forma que conviesse ao
bem comum da república humana. Mas não é isso que ocorre na lei da graça, que é lei
divina: ela principalmente ordena os homens a Deus, e orienta o bem da própria
república à amizade dos homens com Deus; por isso, nesta lei o poder sacerdotal é
espiritual e de ordem mais elevada, e não pode proceder dos homens ou da
comunidade, mas deveu emanar apenas do próprio Cristo – o que realmente foi o
caso, como antes expusemos.
5. OBJEÇÃO. SOLUÇÃO. – Mas dirás que isto vale apenas para os homens considerados
enquanto homens (pois assim é evidente que neles não pode haver senão poder
natural), e não para homens cristãos enquanto cristãos, e enquanto compõem uma
comunidade não apenas política, mas também cristã. Pois, assim como tal
comunidade se funda na fé e na religião sobrenatural, também destas obtém poder de
tipo mais elevado, conatural à própria graça, para dispor aquelas coisas respectivas ao
culto divino, e consentâneas à verdadeira fé e amizade de Deus. Portanto, é desse
modo que devemos entender agora o poder eclesiástico; conseqüentemente, foi
possível que uma comunidade inteira o conferisse a seu rei temporal.
Respondo: isso poderia haver ocorrido, se Cristo Senhor não houvesse instituído
sua Igreja e seu regime de modo particular, e se este regime não pudesse, numa
sociedade de homens cristãos (ainda que enquanto cristãos), existir de modo muito
mais excelente do que apenas a partir da natureza das coisas. Mas Cristo, por
particular instituição, adiantou-se – por assim dizer – e sublimou o regime espiritual
da Igreja.
Primeiro, instituiu-a ao modo de um só corpo místico espalhado por todo o
mundo, no qual pudesse conservar-se a unidade da fé e a concórdia no rito
substancial da religião, ordenado ao culto divino e à santificação dos homens. Ora,
isto não podia realizar-se sem soberania espiritual, como antes mostrei. Mas o poder
universal sobre o mundo inteiro não pôde proceder dos próprios homens, dispersos
por toda parte. Portanto, deveu proceder de Cristo.
Ademais, Cristo instituiu uma Igreja que, na fé, seria uma coluna de verdade, e
seria sempre santa nos costumes. Por isto deu-lhe tal poder espiritual: para que ela

133
pudesse, mediante Ele, ser guiada a ambos esses fins retamente e sem defeito
substancial. Logo, tal poder deve ser necessariamente sobre-humano.
Finalmente: ainda se se consideram os homens da Igreja enquanto cristãos, não
seria pela mera natureza das coisas que haveria a necessidade de a Igreja ser regida
por bispos ou pastores semelhantes, incumbidos do cuidado especial das almas. Ora,
a Igreja necessariamente deve ser regida por bispos e sacerdotes, cujas instituição e
distinção descendem sem dúvida do direito divino. Portanto, o poder governativo da
Igreja de Cristo em matéria espiritual não procede do povo cristão, ainda que
iluminado pela fé, mas do próprio Cristo, seja imediatamente, seja por participação
daquele a quem Cristo o comunicou imediatamente.
6. SEGUNDA OBJEÇÃO. – A segunda objeção se toma de algumas passagens do Antigo
Testamento, nas quais se indica que os pontífices da Lei Antiga foram inferiores e
submissos aos reis.
Agora omito esta objeção, pois, no que se refere ao ponto presente, é evidente no
Antigo Testamento que a dignidade pontifícia e o poder régio se encontravam em
pessoas distintas, e é apenas disso que temos tratado.
Quanto à comparação destes poderes, dela trataremos mais adiante, quando então
veremos melhor se há ou houve necessariamente uma só e mesma disposição entre
essas leis (isto é, a antiga e a nova), ou se uma relação de inferior e superior.
7. TERCEIRA OBJEÇÃO, TOMADA DO NOVO TESTAMENTO. – A terceira objeção foi
tomada dos testemunhos do Novo Testamento, nos quais se ordena aos cristãos a
obediência a todos os reis temporais, como vemos nas passagens anteriormente
aduzidas, e compiladas pelo rei Jaime na página 129 de sua Apologia: Romanos 13 e
I Pedro 2, às quais agrega I Timóteo 2, em que São Paulo ordena que se ore por
todos, mas principalmente pelos reis e por todos os que estão em posição elevada.
Também Mateus 22 (dai a César o que é de César, etc.), João 18 (Meu reino não é
deste mundo), Lucas 12 (Quem me constituiu juiz sobre vós?) e Lucas 22 (Os reis dos
gentios dominam sobre eles, etc.).
8. SOLUÇÃO AOS DOIS PRIMEIROS TESTEMUNHOS. – Mas nenhum destes testemunhos
serve à sua causa, e alguns deles podem mesmo servir de provas contra a intenção do
rei. Primeiro, porque em nenhum deles fala-se particularmente do poder espiritual,
nem neles se insinua que tal poder foi concedido aos reis temporais, ou que se lhes
deve obedecer ao darem ordens em tal matéria.
Quando São Paulo diz [Romanos 13:1]: Toda alma esteja sujeita às potestades
superiores, fala de modo geral de todos os superiores, como consta do teor de suas
palavras. Donde se pode entendê-las corretamente se feita a devida divisão, ou seja,
que aqueles que estão submetidos devem obedecer a seu superior naquela matéria em
que ele é superior. Pois assim também diz, mais adiante: Dai a cada um o que deveis;
a quem tributo, tributo; a quem honra, honra. (Romanos 13:7) Portanto, esta
distribuição geral deve ser aplicada a cada um segundo a medida de seu poder, mas
ali não se explica qual ela seja em cada um dos poderes.
Mas concedamos que ali São Paulo nos fale particularmente do poder temporal,
do qual pouco depois nos diz [Romanos 13:4]: Não traz debalde a espada. Que outra
coisa se pode depreender desta passagem, assim entendida, senão que devemos

134
obedecer aos príncipes temporais naquilo que ordenam justa e retamente? Ora, e
quem o nega? Mas como podemos daí concluir que se lhes deve obedecer também em
matéria espiritual e eclesiástica?
Certamente o Apóstolo não se referia apenas aos príncipes cristãos, mas também
(principalmente naquele tempo) aos reis gentios, aos quais os cristãos também
estavam obrigados a obedecer como a senhores temporais; mas nem por isso uma
pessoa prudente dirá que eles eram então as cabeças das igrejas em seus reinos.
Portanto, tudo que ali dizem Pedro e Paulo em suas epístolas refere-se a um só e
mesmo sentido: ou se entendem proporcionalmente, de modo que a cada um seja
dado o direito ou obediência devida a seu grau de poder, ou, se se entendem de modo
determinado acerca dos senhores temporais, devem entender-se também no foro e
matéria deles, conforme o exige a própria razão de justiça. Pois ali os apóstolos não
fundam um novo direito, mas ordenam que se observe o próprio direito natural. Pois é
da mesma maneira que se advertem os servos a que sejam submissos a seus senhores,
e as mulheres aos seus maridos, etc.
9. DO TERCEIRO TEXTO, EM TIMÓTEO, NADA SE DEDUZ CONTRA A VERDADE QUE
ESTABELECEMOS. – Quanto ao terceiro testemunho, admitimos que Paulo pede que se
façam orações por todos os homens, e em seguida agrega especialmente [I Timóteo
2:2]: Pelos reis e por todos em posição elevada, para que possamos viver uma vida
calma e tranqüila. Mas que tem isso a ver com o primado espiritual dos reis
temporais? Acaso diz que os reis são as cabeças das igrejas em matéria espiritual,
apenas porque os antepõe? É claramente frívola esta conclusão, e Crisóstomo[ 284 ]
lhe dá outro sentido completamente distinto, a saber: Daí haver agregado “pelos
reis”: porque então os reis não cultuavam a Deus, e por muito tempo ainda
persistiriam na infidelidade que herdaram da seqüência de suas sucessões. E mais
abaixo: Mas, como percebia que os Cristãos logicamente seriam morosos para fazê-
lo, e que não aceitariam tais advertências, uma vez que se haveria de oferecer preces
a um gentio no instante dos sacramentos, observa o que agregou em seguida, para
que, pensando eles em seu próprio bem, mais fácil e solicitamente acolhessem tal
admonição: “para que possamos viver uma vida calma e tranqüila”.
Logo, na opinião de Crisóstomo, o Apóstolo não fez menção aos reis porque
fossem cabeças espirituais das igrejas – o que então seria de todo impossível, pois
eram gentios –, mas para que por essa razão os fiéis não deixassem de orar
publicamente por eles.
Tampouco disse Paulo “principalmente pelos reis” – o termo “principalmente” foi
agregado pelo próprio rei Jaime –, mas falou sem distinções, como se dissesse que
também os reis gentios encontravam-se abarcados naquele todo. Pois, embora fossem
gentios, havia que orar por eles para que se convertessem à fé. E deu-o a entender o
Apóstolo sobretudo pela razão que agregou [I Timóteo 2:3-4]: Pois isto é bom e
agradável a Deus nosso Salvador, o qual deseja que os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da verdade.
Finalmente, ainda que São Paulo houvesse agregado o termo “principalmente”, de
nada importaria, pois a conversão dos reis era a mais difícil, e é a mais necessária
para o bem comum da Igreja; portanto, também se pôde encomendá-la especial e
principalmente.

135
10. DO TESTEMUNHO EM MATEUS, CONCLUI-SE O CONTRÁRIO. MOSTRA-SE TAMBÉM QUE
JOÃO E LUCAS CONFIRMAM A DOUTRINA QUE DEFENDEMOS. – Quanto às seguintes
palavras de Cristo: Dai a César o que é de César, já se demonstrou acima, pela
sentença de Crisóstomo, Ambrósio e Atanásio, que elas na verdade provam o
contrário: a César, isto é, ao rei temporal, deve dar-se aquilo que é de César, a saber,
o poder temporal, uma resposta precisiva que tem o efeito de excluir, como indicou
Teofilacto,[ 285 ] ao dizer: Por estar na moeda a imagem de César, Jesus persuade-
os de que devem dar a César o que lhe cabe, isto é, as coisas que têm a sua imagem;
pois nas coisas corpóreas e externas devemos obedecer ao rei, ao passo que, nas
internas e espirituais, a Deus; entende-se, decerto, ou obedecer imediatamente ao que
ordena, ou fazê-lo mediante seus pastores, conforme as palavras de São Paulo:
Obedecei aos vossos pastores, e sujeitai-vos a eles.[ 286 ]
Quanto àquelas outras palavras de Cristo [João 18:36], a saber, O meu reino não é
deste mundo, dizemos que também provam o contrário do que se alega, o que se
conclui sem dificuldade a partir do que já foi dito. Pois, segundo a doutrina de
Agostinho e dos demais Padres, delas deduzimos três pontos: primeiro, que Cristo
tem reino também neste mundo, embora tal reino não seja deste mundo; donde se
conclui o segundo, a saber, que os reis deste mundo, apenas por sê-lo, não têm poder
no reino de Cristo, que é de origem mais elevada; por fim, em terceiro lugar,
inferimos conseqüentemente que este reino de Cristo não está privado de
governantes, os quais, embora não sejam reis deste mundo, são pastores espirituais e
sacerdócio régio.
O mesmo raciocínio vale para estas outras palavras de Cristo [Lucas 12:14]:
Quem me constituiu juiz ou repartidor sobre vós? Pois elas provam que as causas
temporais não pertencem per se ao reino de Cristo ou ao seu vigário. Disto, por via
contrária (ou, invertida a comparação), bem se deveria inferir que as causas
espirituais não cabem ao rei temporal.
Finalmente, dizemos o mesmo destas últimas palavras citadas [Lucas 22:25]: Os
reis dos gentios dominam sobre eles. Pois Cristo não acrescentou: “Vós, ao contrário,
não governeis”, ou: “Não ordeneis nem corrijais vossos súditos”, mas antes supôs que
eles haveriam de ser pastores ou reitores, e portanto disse [v. 26]: Mas não sereis vós
assim, quase que pressupondo um regime, distinguindo-o do reino temporal, e nele
estabelecendo um tipo diferente de comando – que São Pedro explicitou,[ 287 ] e que
já comentamos acima.
11. QUARTA OBJEÇÃO. – Uma quarta objeção pode tomar-se do título de “vigário de
Deus” que o rei da Inglaterra atribui a todo rei temporal.
Para que não pareça novidade essa maneira de falar, já antes de Jaime ela foi
usada por Eduardo, rei da Inglaterra[ 288 ] (conforme encontramos no capítulo 19 de
suas leis), o qual não obstante se conta entre os santos. E podemos igualmente
confirmá-lo pela autoridade de Agostinho, em Questões Sobre o Antigo e o Novo
Testamento,[ 289 ] onde fala do rei: Ele é adorado na terra como vigário de Deus.
Também se diz que Eleutério,[ 290 ] em certa epístola a Lúcio, rei dos bretões, assim
se expressou: Recentemente recebestes no reino da Britânia por misericórdia divina
a lei e a fé de Cristo; tendes neste vosso reino ambas as páginas. Tomai delas a lei,
pela graça de Deus e conselho de vosso reino, pois nele sois vigário de Deus.

136
Portanto, por cima deste vigário não é necessário outro que se encontre
imediatamente sob Deus; assim, reside no rei todo aquele poder que é vigário do
poder divino, tanto espiritual quanto temporal.
E podemos ainda expandir essa objeção citando Isidoro,[ 291 ] que afirma: Deus
concedeu aos príncipes a prelazia, para o governo dos povos. Ora, “prelazia” é nome
de poder espiritual, pois não se diz “prelado” senão aquele que rege em matéria
espiritual.
12. SOLUÇÃO. AGOSTINHO É CITADO SEM RAZÃO PARA APOIAR O ERRO CONTRÁRIO. –
Respondo brevemente que a conclusão acima não tem nenhum peso, o que quer que
se pense sobre a forma de expressão que foi empregada, sobre a qual não haveremos
de disputar, ainda que sejam apócrifos os pontos que se alegam em seu favor. Porque,
segundo o parecer de todos os doutores, o livro Questões Sobre o Antigo e o Novo
Testamento não é de Agostinho, pois não são seus o estilo nem – em muitos pontos –
a doutrina, ainda que seja verdadeira aquela sentença bem explicada, na qual o rei é
certamente adorado, isto é, cultuado e venerado, pela dignidade na qual de certo
modo ele representa a Deus, de quem faz as vezes.
Também é apócrifa aquela epístola de Eleutério, pois dela não encontramos
menção, nem entre as cartas pontifícias, nem nos tomos dos concílios, nem entre os
autores católicos; ao contrário, foi forjada por algum herege, como observou Sander.[
292 ] E demonstram-no o suficiente aquelas mesmas palavras que dela se citam, pois
tal frase é própria de inovadores, e completamente alheia aos pontífices romanos.
13. RESPOSTA ÀS PALAVRAS DE ISIDORO. – Não negamos que um rei possa, em sentido
bom e são, ser chamado de vigário de Deus. Pois, em Romanos 13, São Paulo os
chama de “ministros de Deus”, o que é quase o mesmo. Por isso diz Ambrósio,[ 293 ]
sobre tal passagem, que o príncipe age no lugar de Deus, e que portanto devemos
prestar-lhe submissão.
Ora, agir no lugar de alguém é o mesmo que ser seu vigário, mas não por isso se
conclui retamente que os reis são vigários de Deus em matéria espiritual. Pois Deus é
monarca principal, tanto no reino temporal quanto no espiritual da Igreja, e em ambos
pôs vigários seus: no temporal, reis; no espiritual, bispos, e sobretudo o Sumo
Pontífice.
Assim, pelo fato de que o rei é vigário num dos reinos, infere-se mal que ele o seja
em ambos. Pois igualmente os reis gentios, dos quais também falava Paulo, são
ministros de Deus e, portanto, vigários; mas não nos assuntos espirituais, senão
apenas nos temporais.
Logo, o mesmo se deve dizer acerca dos reis cristãos, ainda que possam também
ser denominados vigários de Deus por título especial, para defender a Igreja e
proteger os prelados, de modo que estes possam ministrar as coisas espirituais em paz
e eficazmente. E foi nesse sentido que falou Eduardo.
Quanto a Isidoro, foi com certa liberdade que este denominou “prelazia” qualquer
prefeitura ou poder de regência, como também o fez no capítulo 49 antecedente [na
obra citada], onde pôs sob o título de “prelados” os reis e demais poderes seculares,
tanto fiéis quanto infiéis. Logo, está claro que não falava de “prelados” com aquele
rigor pelo qual, no uso comum, se significa com tal palavra o superior eclesiástico; ao

137
contrário, usa-a de modo geral, enquanto deriva do verbo preferir, e pode significar
qualquer superior ou governante principal.[ 294 ]
14. QUINTA OBJEÇÃO, TOMADA DOS PADRES. – Em quinto lugar, podem objetar-se
alguns testemunhos dos Padres, que costumam atribuir o primado ao rei ou
imperador. Alguns destes lidam com a comparação entre uma jurisdição e outra, tema
que trataremos posteriormente, como disse. Já outros referem-se ao ponto em que
estamos, pois neles parecem atribuir-se aos reis atos próprios do poder espiritual, a
saber: ensinar a verdade, rechaçar os erros, e atos semelhantes.
Epifânio[ 295 ] diz que os reis nos foram dados por Deus para bem dispor e
administrar todas as coisas, e para a boa ordenação da terra: onde as mortes, onde
as lutas, onde a ignorância e a boa doutrina, etc., indicando que tudo isso recai sob
os cuidados do rei.
E assim também fala Alcuíno[ 296 ] a Carlos Magno, no prefácio a seu livro sobre
a Trindade: a sabedoria lhe havia sido dada para que regesse e ensinasse seus súditos
com pia solicitude. E, mais abaixo, diz que lhe cabe discernir as coisas justas,
ordenar o que foi determinado e advertir sobre coisas santas, para que cada um
retorne feliz a seu lar com sentença de salvação perpétua. E adiciona em seguida: É
conhecidíssima a necessidade de que o príncipe de um povo cristão saiba e ordene
todas as coisas que agradam a Deus. Pois tampouco é apropriado que alguém
conheça mais ou melhores coisas que as conhecidas pelo imperador, cuja doutrina
deve auxiliar a todos os súditos, etc.
E até mesmo o [VI] Concílio de Arles,[ 297 ] sob o próprio Carlos Magno, no
último capítulo, agrega após todos os decretos: Decretamos estas coisas que havemos
de apresentar a nosso senhor, o imperador, pedindo-lhe sua clemência; para que, se
algo aqui for insuficiente, ele o supra com sua prudência; se contrário à razão, que o
emende com seu juízo; se razoavelmente repreensível, que o aperfeiçoe com seu
auxílio, adjuvante a divina clemência.
Poderiam agregar-se aqui também as objeções procedentes dos atos de
congregação dos concílios gerais, de neles presidir, ou criar ou depor pontífices. Pois
estes e outros atos semelhantes são de jurisdição eclesiástica, e, nada obstante –
defende o rei da Inglaterra em seu Prefácio – exerceram-nos freqüentemente os
imperadores.
15. SOLUÇÃO. ESCLARECE-SE A VERDADEIRA OPINIÃO DOS PADRES. – À primeira parte
respondo que os Padres nunca atribuem aos reis seus próprios atos de jurisdição
espiritual, mas às vezes, à maneira de exortação, louvor ou honra, estimulam-nos a
exercer alguns atos que possam levar a cabo sem jurisdição, ou a procurar que outros
atos na Igreja se realizem eficazmente por seus pastores, os quais podem exercê-los
legitimamente.
Um desses atos pode ser o cuidar para que a ignorância seja eliminada da Igreja, e
para que a boa e santa doutrina se conserve e cresça, que é do que fala Epifânio. Pois
há também espaço para isso dentro dos limites da república política – o que é
evidente por si –, e portanto tais atos estão na capacidade do rei em razão de seu
poder próprio. Já com respeito à Igreja e no que tange à doutrina da fé, o rei pode ter
a atribuição de exercer estes atos, não pregando publicamente por si mesmo, nem

138
dando a autoridade para fazê-lo, mas cedendo auxílio aos prelados e pregadores
católicos, fundando centros de estudo das letras sagradas, e coibindo com seu poder
os disseminadores de má doutrina.
E foi nesse sentido que se expressaram os Padres do [III] Concílio de Tours[ 298 ]
sob Carlos Magno, no início; depois que elogiaram a piedade e a sabedoria do
imperador, agregaram: Atento a estas coisas, portanto, ele advertiu com salubérrimas
exortações os piedosos e religiosos sacerdotes que, no reino que pelo favor divino lhe
fora concedido, detinham as rédeas da Igreja de Deus, para que se empenhassem e
se sobressaíssem com ações pelas quais guiassem bem, tanto a si mesmos (com boas
obras) quanto os que lhe foram confiados (instruindo-os com palavras e exemplos). E
o mesmo indica antes Alcuíno,[ 299 ] dizendo: Grande é a razão para que todos os
fiéis regozijem em vossa piedade, enquanto a solicitude de vossa clemência tem vigor
sacerdotal na pregação da palavra de Deus, como convém.
16. EXPOSIÇÃO AUTÊNTICA DO CONCÍLIO DE ARLES. – Já todo o restante do que
mencionamos são palavras de honra e louvor, pois também o imperador cristão pode
ser douto e bem instruído na sacra doutrina, e pode privadamente, numa ou outra
ocasião, ensinar a verdade. E é nesse mesmo sentido que se expressam as palavras
dos Padres no [VI] Concílio de Arles:[ 300 ] para pedir ao imperador proteção e
auxílio à execução de seus decretos, como consta no texto da última cláusula. As
demais palavras são de modéstia e urbanidade, das quais não se pode depreender
nenhum juízo ou submissão por parte do concílio, nem poder espiritual do imperador.
Quanto à outra parte da objeção, dizemos resumidamente que aqueles não são
propriamente atos de poder imperial; ao contrário, podem (ou alguma vez puderam)
exercer certa cooperação ou disposição preparatória, ou condição que não requeira
poder como que espiritual, conforme exporemos adiante.

[ 279 ] Epistolae, 73, 6 (PL 22, 680).


[ 280 ] RUPERTO DE DEUTZ, De Trinitate et operibus eius, in Gen. Lib. V, c. 12 (PL 167, 378).
[ 281 ] Na verdade, ao imperador Miguel. Ad Michaelem imperatorem, Mansi 15, 214D-E.
[ 282 ] Epistola II Anacleti Papae, 2, Mansi 1, 611B.
[ 283 ] S. Th., Iª-IIae, q. 99, a. 3, resp.
[ 284 ] In Epist. I ad Timoth. Cap. II, Homilia 6 (PG 62, 530-1).
[ 285 ] TEOFILACTO DE ÁCRIDA,Enarratio in Evangelium Matthaei, c. 22, 16-22 (PG 123, 389B).
[ 286 ] Hebreus 13:17.
[ 287 ] I Pedro 5.
[ 288 ] S. EDUARDO O CONFESSOR, Leges Edwardi Confessoris, MS Additional 24066, Londres, 1190, fol.
216r.
[ 289 ] Quaestiones Veteris et Novi Testamenti, 91 (PL 35, 2284).
[ 290 ] PAPA S. ELEUTÉRIO,Epistola II Eleutherii Papae Rescriptum ad Lucium Britanniae Regem, Mansi 1,
698B.
[ 291 ] S. ISIDORO DE SEVILHA, Sententiarum, lib. III, cap. 49, 3 (PL 83, 721A).
[ 292 ] NICHOLAS SANDER, De Clave David seu regno Christi: contra calumnias Acleri pro visibili
Monarchia, Roma, 1588, lib. V, cap. 6, pp. 328-9.
[ 293 ] Na verdade, AMBROSIASTER,Commentaria in Epistolam ad Romanos, 13, 6 (PL 17, 163D).
[ 294 ] O lat. praefero, cuja herança hoje encontramos no verbo “preferir”, tinha não apenas o sentido
moderno, mas também um mais geral, de “levar à frente” (prae + fero). Como o verbo fero é irregular, seus
derivados de supino se formam com o radical na forma lat-. Praelatus é, portanto, aquele que é posto ou
levado à frente de algo, e, por extensão de sentido, aquele que lidera. [N. T.]
[ 295 ] Adversus Haereses, I, 3, 40, 4 (PG 41, 684).
[ 296 ] De fide S. Trinitatis, Epistola nuncupatoria (PL 100, 12A).
[ 297 ] Concilium Arelatense VI, can. XXVI, Mansi 14, 62E.

139
[ 298 ] Concilium Turonense III, Mansi 14, 83C.
[ 299 ] Op. cit. (PL 100, 13B).
[ 300 ] Concilium Arelatense VI, Mansi 14, 57-62.

140
Parte II
O juramento de fidelidade

(Livro VI - capítulos I-X e XII)

141
LIVRO VI

Do juramento de fidelidade
do rei da Inglaterra

mbora o presente livro se situe na parte posterior desta obra – porque assim o

E postulam a conexão entre próprios assuntos, a clareza da doutrina e a ordem


que o rei da Inglaterra manteve em seu livro –, sua matéria e seu argumento
deram fundamento e ocasião a esta controvérsia inteira, como o próprio rei o declara
largamente no início de seu Prefácio. Por esta razão, para que se tenha diante dos
olhos o escopo da disputa, considerei também necessário pôr à vista o início e a
origem de tal juramento, e o seu progresso até ao presente estado. Mas em primeiro
lugar suponho que nem os católicos nem os cismáticos põem em dúvida que o
juramento de fidelidade devido ao rei temporal, e prestado de forma conveniente, é
em si honesto e afim à razão, de tal modo que é lícito ao rei exigi-lo de seus vassalos
– e estes santamente podem, ou antes devem, prestá-lo, quando é pedido segundo o
modo e a razão convenientes, e são depois obrigados a observá-lo e a cumpri-lo.
Como, de fato, os súditos de cada rei estão obrigados, segundo o testemunho de São
Paulo, a acatá-lo, a observar a fidelidade e a obedecê-lo em tudo que diz respeito ao
poder régio (como se mostrou no livro III), é manifesto por si que o juramento acerca
da observância desta obediência e fidelidade (que chamamos de juramento de
fidelidade) é honesto em si e por seu objeto, e, ademais, que o rei também pode
postulá-lo para sua maior segurança e estabilidade, caso em que os súditos devem
prestá-lo e observá-lo. Por isso, também se deixa explicado de passagem que a
fórmula deste juramento, para que seja honesta, deve ser tal que não exceda os termos
do poder régio, porque nem o rei pode justamente exigir uma promessa de obediência
indevida, nem os súditos estão obrigados a fazê-la ou a jurá-la. Pelo contrário, se tal
promessa prejudica os direitos de outros, não podem fazê-la em boa consciência,
como diremos mais detalhadamente em seguida.
2. Mas este juramento de fidelidade, embora seja honesto em si, não se reputa tão
necessário que seja exigido de cada um dos vassalos e das pessoas de todas as ordens,
em todos os reinos. Ao contrário: nas repúblicas bem instituídas, que vivem
quietamente e em paz, e principalmente nos reinos católicos, aceita-se como costume
que nas assembléias públicas os procuradores das cidades, e outros príncipes e
magistrados, em nome de todo o reino, prestem ao príncipe esse juramento de

142
obediência e de fidelidade, quer quando ele por primeiro receba o poder do reino,
quer também depois, em tempos prescritos, segundo o costume de cada reino. Mas
não se costuma postulá-lo de cada um dos da plebe; não porque não o possam fazer,
mas porque os próprios príncipes, que reinam na paz e na tranqüilidade e que confiam
na fidelidade dos súditos, julgam-no desnecessário, inoportuno ou inconveniente.
Mas no reino da Inglaterra, desde o tempo em que nele os cismas e as heresias
começaram a ser semeados, também começou a introduzir-se o costume de exigir dos
súditos um juramento particular. Por isso, assim como Henrique VIII foi autor do
cisma, também foi ele o primeiro que começou a propor a seus súditos uma nova
forma de juramento, pela qual postulou uma promessa não só de obediência civil,
mas também daquela que é devida somente ao Romano Pontífice.
3. Na obra Sobre o Cisma Anglicano, próximo da metade do livro I, relata Sander[
301 ] que o rei Henrique, quase no início do cisma, pediu em assembléias públicas a
todas as ordens do reino que se exigisse dos eclesiásticos um juramento pelo qual lhe
prometeriam a obediência que anteriormente costumavam prestar ao pontífice
romano; e embora no princípio isto tivesse sido admitido – não simpliciter, mas com
certa limitação (como direi abaixo) – o rei assim obteve finalmente o que apetecia.
Sander não nos conta, porém, que Henrique tenha promulgado uma forma especial
para a prestação do juramento, mas que aplicou simpliciter a si mesmo a forma usual
do juramento de obediência ao Papa, ou seja: deveriam prometer-lhe obediência com
palavras de mesmo teor e deveriam confirmá-la por juramento.
Tampouco nos narra que todos do povo tenham sido coagidos a prestá-lo, mas
apenas as pessoas eclesiásticas – e nem todas elas, mas só as que podiam ter sufrágio
nas assembléias, como se pode coligir de sua história. Tampouco encontro no tempo
de Eduardo algum juramento similar que tenha sido proposto ou postulado ao povo
ou aos eclesiásticos.
Já Elizabete, logo no início de seu reinado, ou nas primeiras assembléias, que eles
chamam de Parlamento, apresentou uma nova forma de juramento, e ordenou que
todos, exceto os primazes laicos, o prestassem solenemente. Ora, a forma do
juramento é a seguinte, como nos relata Sander[ 302 ] no livro III de sua obra, acerca
do início do reinado de Elizabete:

FORMA DO JURAMENTO PRIMEIRO PROPOSTA POR ELIZABETE


A SEUS SÚDITOS E DEPOIS EXPANDIDA SOB JAIME

Eu, N.N., inteiramente testifico e declaro em minha consciência que a rainha é a


única soberana governadora tanto deste reino da Inglaterra quanto de todos os
outros domínios e regiões de Sua Majestade, não menos em todas as coisas e causas
espirituais e eclesiásticas do que nas temporais, e que nenhum príncipe, pessoa,
prelado, estado ou potentado externos têm, de facto ou de jure, alguma jurisdição,
poder, superioridade, preeminência ou autoridade eclesiástica ou espiritual neste
reino. E por isso renuncio e repudio todas as jurisdições, poderes, superioridades e
autoridades externas.

143
4. Ora, Sander adverte retamente que ela, sendo mulher, ou tinha temor ou pudor de
usurpar o nome de cabeça da Igreja, que Henrique arrogara a si, e por isso mudou o
nome para soberana governadora. Porém na realidade não havia diferença senão no
nome, pois o que o rei dissera com termo metafórico Elizabete declarou com um
nome mais próprio. Posteriormente muitos até suspeitaram de que a rainha tencionava
algo mais pela fórmula de juramento, ou seja, arrogar a si todo poder espiritual,
mesmo na administração dos sacramentos. Mas ela própria declarou que por aquelas
palavras não queria atribuir a si nada além do que fora concedido pelas ordens a seu
pai e a seu irmão sob o nome de cabeça da Igreja.
5. Assim, essa forma de juramento foi conservada no tempo de Elizabete, mas
posteriormente Jaime a expandiu, acrescentando uma promessa especial de
observância da fidelidade e da obediência ao rei, razão por que já podia ser chamado
de juramento de fidelidade – pois o primeiro parecia ser apenas uma confissão ou
profissão jurada do primado, quase como um artigo da fé anglicana. Portanto, a forma
do primeiro juramento apresentado pelo rei Jaime (que ele mesmo refere na
Apologia) acrescenta, para além da fórmula anterior, apenas a seguinte promessa:
Eu, N.N., etc., também prometo de agora em diante que prestarei fidelidade e
obediência verdadeira à majestade régia, e a seus legítimos herdeiros e sucessores, e
segundo minhas forças, favorecerei e defenderei todas as jurisdições, privilégios,
preeminências e autoridades concedidas ou devidas à majestade régia, a seus
herdeiros e sucessores, ou unidas e anexas à coroa imperial deste reino. Assim me
ajude Deus, etc.
6. Mas depois, como o rei salienta no início do Prefácio e da Apologia, e
freqüentemente em seu livro, o rei criou uma nova forma de juramento por ocasião da
traição ou conjuração, através de um ataque de pólvora,[ 303 ] dirigida contra ele e
contra as ordens públicas de seu reino que se reuniam. Sancionou esta nova forma por
lei e decreto público, para que fosse exigida e prestada por todos os seus, tanto para
que, se ainda restassem ali sócios de tamanho crime, pudessem ser apreendidos,
quanto para aumentar a sua segurança e a dos seus contra semelhantes perigos e
maquinações. Ora, a forma do juramento é a que segue:

TERCEIRA FÓRMULA DE JURAMENTO, CONCEBIDA


E DEFENDIDA PELO REI JAIME

Eu, N.N., verdadeira e sinceramente reconheço, professo, testifico e declaro em


minha consciência perante Deus e o mundo, que nosso soberano senhor, o rei Jaime,
é rei soberano e verdadeiro deste reino e de todos os outros domínios e terras de Sua
Majestade, e que o papa, nem por si mesmo, nem por outra autoridade qualquer da
Igreja, ou da Sé Romana, nem por qualquer intermédio com quaisquer outros, não
tem poder nem autoridade para depor o rei, ou para dispor dos domínios ou dos
reinos de Sua Majestade, ou para conceder a algum príncipe estrangeiro autoridade
para danificá-lo ou para invadir suas terras, ou para exonerar nenhum de seus
súditos da obediência e sujeição à Sua Majestade, ou para dar licença a nenhum
deles para portar armas contra ele, semear o tumulto, ou causar qualquer violência

144
ou dano à pessoa de Sua Majestade, ao Estado, ao regime, ou a quaisquer de seus
súditos sob os seus domínios.
Igualmente juro de coração que, não obstante qualquer declaração ou sentença
de excomunhão ou privação, feita ou concedida – ou que haja de ser feita ou
concedida – pelo papa ou por seus sucessores, ou por qualquer autoridade derivada,
ou que alega ser derivada dele ou de sua Sé, contra o dito rei, seus herdeiros ou
sucessores, e não obstante qualquer absolvição dos ditos súditos com relação à sua
obediência, ainda assim prestarei fidelidade e verdadeira obediência à Sua
Majestade, aos seus herdeiros e sucessores, e defendê-los-ei a ele e aos outros com
todas as minhas forças contra todas as conspirações, e contra quaisquer atentados
ou outras coisas que se fizerem contra a sua pessoa, ou contra a pessoa deles, ou
contra a sua coroa e dignidade, quer tenham sido cometidas pela doutrina ou pelo
tom de alguma sentença ou declaração, quer de outra maneira, e me empenharei de
todo para revelar e manifestar à Sua Majestade, e a seus sucessores e herdeiros,
todas as traições e conspirações traiçoeiras contra ele ou contra os seus, que me
vierem ao conhecimento ou ao ouvido.
Ademais juro que de todo o coração aborreço e abjuro como ímpia e herética
esta doutrina e proposição: que os príncipes excomungados ou privados pelo papa
podem ser depostos e mortos por seus súditos ou por quaisquer outros.
E por fim creio, e resolvo em minha consciência, que nem o papa, nem outro
qualquer, tem poder de isentar-me deste juramento ou de qualquer parte sua.
Juramento que reconheço ter sido legitimamente apresentado a mim por uma
autoridade justa e plena, e renuncio a todas as concessões e dispensas em contrário.
Tudo isto reconheço claramente e sinceramente, e juro segundo as palavras assim
expressas por mim, e segundo o sentido e o entendimento chãos e comuns das
palavras, sem nenhuma equivocação, ou evasão mental, ou qualquer reserva secreta.
Faço de coração este reconhecimento e esta corroboração, voluntariamente e
verdadeiramente, na veraz fé de varão cristão, e assim me ajude Deus.
7. Ora, por ocasião deste juramento nasceram não só dúvidas, mas também opiniões
várias e dissensões entre os católicos da Inglaterra.
De fato, a muitos aborreciam prestá-lo, porque em sua fórmula, ainda que não de
modo claro, negava-se direta e implicitamente a obediência devida ao pontífice e se a
prometia ao rei – além disso, o artigo do primado do rei estava nele virtualmente
contido e reconhecido.
Outros, porém, diziam ser possível prestar o juramento sem escrúpulo de
consciência, enquanto fosse feito com a mente e a intenção de prometer ao monarca
apenas a obediência civil. Pois as demais coisas, como não estão contidas no
juramento, não se podem atribuir a quem jura, se sua intenção é reta – porque,
embora outros porventura possam suspeitar de algo, isso procede apenas da
ignorância, que pode ser removida suficientemente por uma admonição e uma
protestação feitas antes diante dos católicos. E assim se pode evitar todo o escândalo.
Pois, removido isso do caminho, parecia não inerir ao juramento nenhuma malícia
interna.
Mas, porque alguns, mesmo entre os principais católicos e eclesiásticos,
enganados por essas cores e porventura induzidos por algum temor humano, não só

145
consentiam nessa sentença, mas também adiantavam-se na prestação do juramento,
foi necessário em matéria tão grave e exposta a perigos que o Sumo Pontífice, em
virtude de seu cuidado pastoral, aplicasse um remédio oportuno. Por isso, nosso
Santíssimo Senhor Paulo V admoestou os católicos da Inglaterra ao que deveriam
pensar e observar em coisa tão árdua, dando-lhes cartas em forma de breve. A forma
de tais cartas é a seguinte:

PRIMEIRO BREVE PONTIFÍCIO

Filhos diletos, saudação e bênção apostólica. Com grande pesar de espírito,


sempre nos afligiram as tribulações e calamidades que continuamente suportastes
para reter a fé católica. Mas, como sabemos que neste tempo tudo se exacerbou,
nossa aflição aumentou de modo admirável.
De fato, soubemos que vós sois compelidos, sob ameaça de gravíssimas penas, a
ir aos templos dos hereges, a freqüentar suas assembléias, e a assistir a seus
sermões.
Cremos com certeza e sem dúvida alguma que aqueles que com tanta constância
suportaram até agora acerbíssimas perseguições e misérias quase infinitas para
andarem sem mancha na lei do Senhor, jamais se juntarão à comunhão dos
desertores da lei divina para se mancharem.
Contudo, impulsionados pelo zelo de nosso dever pastoral, e pela solicitude
paterna com a qual laboramos assiduamente para a salvação de vossas almas, somos
coagidos a advertir-vos e a conjurar-vos que por nenhuma razão vos aproximeis dos
templos dos hereges, nem ouçais seus sermões, nem comungueis com eles em seus
ritos, para não incorrerdes na ira de Deus. De fato, não vos é lícito fazê-lo sem
detrimento do culto divino e de vossa salvação.
Razão por que tampouco podeis, sem evidentíssima e gravíssima injúria à honra
divina, vos obrigar pelo juramento que vos foi proposto – como ouvimos com
semelhante dor para nosso coração –, e que tem este teor, a saber: Eu, N.N.,
verdadeira e sinceramente, etc., como acima.
Sendo assim, deve ser transparente a vós que tal juramento não se pode prestar,
para que se resguardem a fé católica e a salvação de vossas almas, pois contém
muitas coisas que adversam abertamente a fé e a salvação.
Por isso vos admoestamos a que eviteis de todo a prestação deste e de outros
juramentos similares. E de fato pedimo-lo de vós com mais veemência, porque, tendo
experimentado a constância de vossa fé, que foi provada como o ouro na fornalha
pelo fogo da perpétua tribulação, temos como certo que com espírito disposto
suportareis os tormentos mais atrozes, e por fim sofrereis com constância a própria
morte, antes de lesar a majestade de Deus em qualquer coisa.
E nossa confiança é confirmada pelo que se nos anuncia diariamente acerca de
vossas egrégias virtude e fortaleza, que não resplandeceram menos nestes últimos
tempos por vossos mártires do que nos primórdios da Igreja.
Portanto, estejam vossos rins cingidos com a verdade, vesti a loriga da justiça,
tomando o escudo da fé: confortai-vos no Senhor e na potência de sua virtude, para
que nada vos detenha. Ora, aquele que vos há de coroar observa do céu vossos

146
combates, e terminará a boa obra que começou em vós. Sabeis que ele prometeu a
seus discípulos que nunca os deixará órfãos. Pois Aquele que prometeu é fiel.
Retende, portanto, a sua doutrina, isto é, radicados e fundados na caridade, o que
fizerdes, o que empreenderdes, fazei-o unânimes em simplicidade de coração e em
unidade de espírito, sem murmuração ou hesitação. Porquanto é por isto que todos
conhecerão que somos discípulos de Cristo, se tivermos mutuamente amor entre nós.
Este amor, embora deva ser maximamente desejado por todos os fiéis de Cristo,
certamente vos é, filhos diletíssimos, de todo necessário. Pois esta vossa caridade
enfraquece a potência do diabo, que agora insurge tanto contra vós, porque ela
brota principalmente das contendas e dissídios de nossos filhos.
Exortamos-vos, pois, pelas vísceras de Nosso Senhor Jesus Cristo, por cuja
caridade fomos soltos das fauces da morte eterna, para que antes de tudo tenhais
mútua caridade entre vós. O Papa Clemente VIII, de feliz memória, prescrevera
sabiamente a vós preceitos maximamente úteis sobre o exercício mútuo da caridade
fraterna, por cartas em forma de breve a seu amado filho, o mestre Gregório,
arcipreste do reino da Inglaterra, e datadas do dia 5 de outubro de 1603. Portanto,
segui-os diligentemente e, para que não vos tardeis por nenhuma dificuldade ou
ambigüidade, preceituamos a vós que observeis à risca todas as palavras daquelas
cartas, e que as aceiteis e entendais simples e absolutamente, como soam e como
estão postas, removida qualquer possibilidade de interpretá-las de outro modo.
Neste ínterim, nós nunca cessaremos de deprecar a Deus, Pai das misericórdias,
que considere clementemente vossas aflições e vossos labores, e que vos custodie e
defenda com uma proteção contínua, aos quais comunicamos clementemente nossa
bênção apostólica.
Dado em Roma, em São Marcos, sob o anel do pescador, no dia 22 de setembro
de 1606, no segundo ano de nosso pontificado.
8. Porém, como naquele tempo alguns espalharam rumores na Inglaterra – porventura
para enganar os católicos, para que não recusassem o juramento naquela ocasião –
pelos quais punham em suspeita a veracidade das cartas, dizendo que o breve nem era
verdadeiro nem tinha sido escrito pelo Papa, mas que tinha sido forjado por outrem, o
Sumo Pontífice redigiu um segundo breve no qual tornava mais certa a verdade do
primeiro. O seu teor é o seguinte:

Segundo breve pontifício

Filhos diletos, saudação e bênção apostólica. Embora tivéssemos declarado


suficientemente por nossas cartas, do dia 22 de setembro do ano anterior, dadas em
forma de breve, que não podíeis prestar em sã consciência o juramento que era então
exigido de vós, e, ademais, embora tivéssemos estritamente preceituado que de
nenhum modo o prestásseis, relatou-se-nos que se encontram entre vós alguns que
ousam dizer agora que tais cartas sobre a proibição do juramento não foram escritas
segundo a opinião de nosso espírito e por nossa própria vontade, mas antes foram
escritas segundo o intuito e pela indústria de outros. E, por esta causa, os mesmos
tentam persuadir-vos que não se deve atender ao que mandamos nas ditas cartas.

147
Esta notícia certamente nos perturbou ainda mais porque, tendo experimentado
vossa obediência, ó filhos nossos singularmente diletos, na qual para seguir a esta
Santa Sé reputastes como nada – piedosa e generosamente – as riquezas, os
recursos, a dignidade, a liberdade, e mesmo a vida, nunca poderíamos suspeitar de
que vós poríeis em dúvida a veracidade de nossas cartas apostólicas, para que, sob
tal pretexto, vos eximísseis de nossos mandatos. Mas reconhecemos a astúcia e a
fraude do adversário da salvação humana, e atribuímos esta renitência antes a ele do
que à vossa vontade.
Por esta razão decidimos escrever-vos novamente, e dar a conhecer que nossas
cartas apostólicas sobre a proibição do juramento, datadas de 22 de setembro do
ano passado, foram escritas não só motu proprio e com ciência certa, mas também
após tomarmos longa e grave deliberação acerca das coisas nelas contidas; e por
isso estais obrigados a observá-las totalmente, rejeitando toda interpretação que vos
queira persuadir do contrário. Ora, esta é nossa mera, pura e íntegra vontade, nós
que, solícitos de vossa salvação, sempre pensamos no que vos é mais conveniente.
E para que nossas cogitações e conselhos sejam iluminados por Aquele que
prepôs nossa humildade para custodiar a grei cristã, oramos incessantemente; a
quem também deprecamos sem cessar que aumente em vós, filhos nossos mui diletos,
a fé, a constância, a caridade e a paz mútuas entre vós, aos quais abençoamos
amorosamente com todo o afeto da caridade.
Dado em Roma, em São Marcos, sob o anel do pescador, em 22 de setembro de
1607, no terceiro ano de nosso pontificado.
9. Tendo sido escritos este breve pontifício e a epístola do ilustríssimo cardeal
Belarmino ao arcipreste da Inglaterra, o rei da Inglaterra, irritado, escreveu ou
mandou escrever, ocultando seu nome, um livro contra ambos, o breve e a epístola, e
em defesa desse último juramento.
Nele tenta principalmente mostrar que pelo juramento nada se exige dos súditos
senão a obediência e a fidelidade civis, e por isso deplora veementemente que sejam
dissuadidos de prestar-lhe tal obediência.
De fato, assim afirma no princípio do Prefácio, na pág. 13. Também noutro lugar
da Apologia assim se expressa: Quanto ao atinente ao próximo capítulo do breve, em
que proíbe aos papistas o entrar em nossas igrejas e o freqüentar nossos ritos e
cerimônias, não é tanto minha intenção tratar destes temas, já que a única coisa
importante que agora me incumbe é expor ao mundo as injúrias e injustiças do
pontífice ao proibir seus súditos de professar sua obediência a mim.
E em outro lugar, com grande peso e exagero nas palavras, afirma: Pois creio, até
onde minha mente pode alcançar, que o céu não dista tanto da terra, quanto a
profissão de obediência civil a um rei civil difere de todas as coisas que de algum
modo são afins à fé católica ou ao primado de São Pedro.
10. Mas todas estas coisas (e muitas outras similares contidas na Apologia) não foram
deixadas sem suficiente resposta e impugnação da parte do cardeal Belarmino. De
fato, logo que a Apologia chegou à sua mão, escreveu contra ela um antídoto –
embora tenha encoberto o seu nome – provando que o juramento não era de

148
fidelidade, mas de infidelidade, e que era uma profissão não apenas de obediência
civil ao rei, mas também de negação do poder pontifício.
O rei, como quem desprezasse esta resposta, não julgou que devesse acrescentar
algo à sua última edição da Apologia. Mas, quase no início do Prefácio, após investir
amargamente contra o autor da resposta, e após queixar-se gravissimamente das
injúrias, das afrontas, e de outros defeitos quanto ao modo em que foi escrita, o rei
concluiu dizendo que nunca respondeu diretamente àquilo que era o eixo da questão.
E, nesta ocasião, declara que houve apenas dois capítulos sobre os quais dissertou na
Apologia: Primeiro, para provar que no juramento de fidelidade não se contém nada
senão a obediência meramente civil e secular que os súditos devem aos príncipes
soberanos. Segundo, para mostrar que este poder sobre os reis, iniquamente
usurpado pelos pontífices, conflita com as Escrituras, os concílios e os Padres.
Ora, destes dois capítulos, tratamos extensamente sobre o último nos livros III e
IV,[ 304 ] onde respondemos de modo assaz direto a tudo que o rei aduz naquela
parte da Apologia e no Prefácio; por isso, não mais tocaremos neste tema.
Já o outro, que julgamos ser mais breve e claro, perseguiremos resumidamente
também neste livro. Mas, para que tampouco o rei nos objete que nos afastamos do
escopo, propô-lo-emos novamente de modo um pouco mais extenso e distinto.

[ 301 ] NICHOLAS SANDER, De Origine ac progressu schismatis anglicani libri tres, Roma, 1586, I, pp. 104-5.
[ 302 ] Op. cit., III, pp. 368-9.
[ 303 ] O famoso episódio da “conspiração da Pólvora”, protagonizado pelo católico inglês Guy Fawkes.
[ 304 ] Este último ausente desta compilação.

149
Capítulo I
O escopo da presente controvérsia,
o estado desta causa e o método de disputa
que nela se deve observar
1. Os tipos de juramento de fidelidade. 2. É dogma a licitude de um juramento de
obediência civil católica. 3. Vários concílios ensinaram o mesmo dogma. 4. Prova-se
pelo Concílio de Aachen a diferença entre o primado eclesiástico e o leigo. A
sentença de Constantino sobre a jurisdição dos bispos. 5. Outrora era inaudito que
um príncipe leigo tivesse jurisdição espiritual. 6. A presente questão não é sobre o
segundo ou terceiro tipo de juramento. 7. O quarto tipo de juramento. 8. Estado e
divisão da controvérsia.

1. OS TIPOS DE JURAMENTO DE FIDELIDADE. – Para que tenhamos diante dos olhos o


próprio escopo da disputa e o estado da controvérsia, é necessário distinguir os vários
tipos de juramento que podem ser exigidos pelo rei temporal, e que se podem coligir
do que foi dito.
O primeiro pode dizer-se juramento civil, porque refere-se apenas à obediência
civil em coisas meramente temporais e verdadeiramente pertencentes ao poder do rei.
O segundo é o juramento sagrado ou eclesiástico, ou seja, de obediência somente
eclesiástica ou espiritual, que se presta ao rei temporal como se tivesse o supremo
poder eclesiástico e espiritual. Por este juramento conseqüentemente se abjuram o
poder do pontífice e a devida obediência a ele.
O terceiro pode dizer-se juramento misto clara e abertamente, porque por ele se
faz expressamente profissão dos dois poderes no rei temporal, e se lhe prometem as
duas obediências; conseqüentemente, também ambas são abjuradas ao pontífice.
O quarto pode dizer-se juramento misto velado, porque por ele jura-se
expressamente a obediência civil, mas, veladamente e sob palavras menos claras,
nega-se a obediência devida ao pontífice e se a atribui ao rei.
2. É DOGMA A LICITUDE DE UM JURAMENTO DE OBEDIÊNCIA CIVIL CATÓLICA. – Sobre o
primeiro tipo de juramento, como disse, não há nenhuma controvérsia entre o
pontífice e o rei da Inglaterra. Embora de fato o rei se queixe de que o pontífice lhe
fez injúria e injustiça ao proibir seus súditos de lhe prometer e observar a obediência
civil, na verdade isto não é assim, como observou com razão Belarmino na resposta
ao Prefácio[ 305 ] régio e à Apologia, ao responder às objeções contra o primeiro
breve pontifício.[ 306 ]
Pois em nenhum dos dois breves pontifícios encontra-se uma repreensão de tal
juramento, nem pode o rei alegar algum autor católico que julgasse que tal tipo de
juramento não condiz com a fé católica. Por isso, é em vão que se esforça o rei, em

150
sua Apologia,[ 307 ] para provar pelas Escrituras, concílios e Padres que se deve aos
reis obediência civil em consciência, e que é lícito o juramento pelo qual se a
promete, porque todos confessamos que isto é não apenas verdadeiro, mas também
dogma católico.
Mas os testemunhos alegados pelo rei provam isto e não outra coisa, como
mostramos no livro III,[ 308 ] discorrendo ex professo sobre cada um deles. E os
testemunhos dos Padres que ele mesmo aduz indicam-no claramente, pois, ou
distinguem as duas obediências, ou expressam-se moderando e delimitando.
Por exemplo, quando Agostinho dizia que os soldados cristãos obedeciam a
Juliano, embora fosse apóstata e infiel, acrescentou em seguida: Mas, quando se
tratava de Cristo, não reconheciam senão o que estava no céu.[ 309 ] Também
Tertuliano, ao dizer: Cultuamos o imperador, acrescenta em seguida: do modo que
nos é lícito e que lhe convém.[ 310 ] E encontramos coisas semelhantes em Graciano.
[ 311 ]
3. VÁRIOS CONCÍLIOS ENSINARAM O MESMO DOGMA. – Tampouco é menos supérfluo o
que o rei colige dos IV, V, VI e X Concílios de Toledo em sua Apologia, no início da
resposta à epístola de Belarmino, para provar que seu juramento de fidelidade deve
ser observado por todos os súditos.
Pois aqueles concílios tratam do juramento de fidelidade puro, lícito, e honesto,
que então se fazia na Espanha aos seus reis, e que ainda hoje se faz e se observa
fidelissimamente. Realmente, não ocorreu aos padres daqueles concílios que pudesse
haver na Igreja Católica outro tipo de juramento, pelo qual prometeriam obediência
eclesiástica ao príncipe temporal, ou lhe reconheceriam algum poder espiritual, ou o
abjurariam com relação ao pontífice.
Por isso, no X Concílio de Toledo,[ 312 ] capítulo 2, diz-se expressamente: Se há
algum religioso, desde o bispo até o clérigo de ordem ínfima, ou um monge, que
violou com vontade profana os juramentos gerais para o bem do rei, da gente ou da
pátria, seja ele imediatamente privado da própria dignidade e excluído de seu posto
e de sua honra. Estas palavras declaram suficientemente que o discurso trata dos
juramentos gerais, que se costumam fazer em qualquer república humana para a sua
conservação, para a obediência civil, e para assegurar ao rei a vida e as suas coisas.
De modo semelhante, os outros concílios falam abertamente do juramento que se
costumava fazer não só entre os fiéis, mas também entre quaisquer gentios. Daí que o
IV Concílio de Toledo,[ 313 ] capítulo 75, afirme o seguinte: De fato, é um sacrilégio
as gentes violarem a fidelidade prometida a seus reis, porque não só transgridem o
pacto contra eles, mas também contra Deus, em cujo nome se oferece a própria
promessa. E os demais falam do mesmo modo.
Tratam, portanto, do pacto comum entre rei e reino, firmado por juramento de
fidelidade, que é juramento puramente civil e político, sobre o qual não há
controvérsia. Portanto, aqueles concílios parecem ter sido aduzidos mais para
aparência e aparato do que para provar a causa.
Tampouco pertence ao escopo da disputa o cânon 12 do II Concílio de Aachen[
314 ] sob o rei Luís e sob Gregório IV, em seu segundo artigo ou parte, onde são
condenados em geral os que se insurgem contra o rei, ou que não lhe observam o
juramento de fidelidade. Pois também este concílio fala do simples juramento civil,

151
seja porque até então não se ouvira na Igreja outro juramento feito aos reis, seja
também porque o concílio propõe como fundamento: É evidente que qualquer um que
resista ao poder dado por Deus resiste à ordenação de Deus, segundo o ensinamento
apostólico. Ora, o poder do rei é apenas civil. Logo, o concílio fala de juramento
deste mesmo tipo.
4. PROVA-SE PELO CONCÍLIO DE AACHEN A DIFERENÇA ENTRE O PRIMADO ECLESIÁSTICO
E O LEIGO. A SENTENÇA DE CONSTANTINO SOBRE A JURISDIÇÃO DOS BISPOS. – Mas se o
rei da Inglaterra, como convém, põe fé neste soleníssimo concílio, peço-lhe antes que
considere atentamente o primeiro fundamento lançado.
Pois logo no princípio os padres assim dizem:[ 315 ]Primeiramente, pareceu que
a norma da religião universal e da disciplina eclesiástica consiste em duas pessoas,
isto é, na pontifical e na imperial. E este primeiro fundamento se confirma com a
autoridade de Gelásio,[ 316 ] que antepunha a autoridade do Papa ao poder dos reis;
daí o testemunho de Fulgêncio: Quanto ao pertinente à vida deste tempo, não se
encontra na Igreja nenhum superior ao Papa, nem no século nenhum superior ao
imperador cristão.[ 317 ]
E na terceira parte do mesmo concílio transmitem-se muitas coisas sobre o ofício
e o poder régios; no capítulo 5 da referida parte, relata-se o dito de Constantino[ 318 ]
aos bispos: Deus vos deu o poder de julgar também a nós, e por isso nós somos
retamente julgados por vós, mas vós não podeis ser julgados pelos homens.
Portanto, quando os concílios decretam que se devem observar os juramentos de
fidelidade feitos aos reis, não confundem a obediência civil com a eclesiástica, mas
estabelecem que se deve render a cada um o que é seu, a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus.
E assim não há controvérsia nenhuma sobre o primeiro juramento de fidelidade e
de obediência apenas civil.
5. OUTRORA ERA INAUDITO QUE UM PRÍNCIPE LEIGO TIVESSE JURISDIÇÃO ESPIRITUAL. –
Sobre o segundo tipo de juramento, porém, pelo qual um vassalo fiel de um rei
cristão reconhece-o como suprema cabeça ou governador da Igreja em coisas
eclesiásticas e espirituais, e lhe promete obediência nas mesmas coisas espirituais,
não houve outrora na Igreja Católica nenhuma controvérsia, porque nunca se ouviu
nela tal juramento, uma vez que sua matéria sempre foi julgada sacrílega e contrária à
doutrina da fé.
Mas, a partir do tempo de Henrique VIII, aquele juramento começou a ser
introduzido no reino da Inglaterra. A princípio o próprio rei não ousou propô-lo nas
assembléias do seu reino, porque era coisa nova e inaudita, e sabia que seria
acerbíssima aos homens católicos e especialmente aos eclesiásticos. E por isso ele
coagiu Rochester, homem de grande autoridade, a propô-lo e a persuadir os outros
com sua autoridade.
Mas ele, embora não ignorasse a iniqüidade do juramento, foi induzido por temor
ou por razões humanas, e obedeceu então ao rei; propôs aos outros bispos o
juramento não simpliciter, mas com certa limitação acrescida, a saber: No que lhes
seja permitido e lícito pela palavra de Deus.[ 319 ] Depois, porém, ele se arrependeu
gravissimamente deste erro procedente da fragilidade humana, e protestou

152
publicamente que não deveria haver admitido o juramento com aquela exceção, como
se se tratasse de coisa dúbia; antes deveria, pela palavra de Deus, haver manifestado a
verdade para que outros não fossem induzidos ao engano.
E assim, desde então, os cismáticos e tímidos começaram a aprovar e a prestar o
juramento; mas os católicos, a detestá-lo e evitá-lo. E o mesmo dissídio entre os
católicos e os heréticos dura até agora, e perdurará perpetuamente enquanto os
cismáticos permanecerem em seu erro, pois para nós é certo que a fé católica condena
tal juramento.
6. A PRESENTE QUESTÃO NÃO É SOBRE O SEGUNDO OU TERCEIRO TIPO DE JURAMENTO. –
Contudo, a questão de que se trata agora não é sobre este juramento, pois o rei da
Inglaterra bem sabe que a fé romana o condena, e que seus verdadeiros e constantes
súditos católicos não devem prestá-lo.
Ainda mais (como veremos adiante), por esta razão disse ele que mudara a
fórmula do juramento: para que seus súditos não fossem induzidos com ingente
perigo a tais angústias. Embora, de fato, ele e outros protestantes anglicanos opinem,
segundo seu erro privado, que aquele juramento é lícito, porque consideram tal
promessa como de coisa lícita e devida, não negam nem podem negar – se querem
valer-se da razão natural – que é iníquo prestar tal juramento contra a consciência,
seja com intenção de não cumpri-lo, seja crendo que tal obediência só se deve render
ao Sumo Pontífice.
Por tal razão, sobre este ponto não resta entre nós controvérsia sobre o juramento,
mas sim sobre a sua matéria, que coincide com a controvérsia sobre o primado, que
foi tratada no livro III.
7. O QUARTO TIPO DE JURAMENTO. – E pela mesma razão não há questão acerca do
terceiro juramento, que compreende abertamente ambas as obediências, civil e
eclesiástica.
Como, efetivamente, o bem procede de causa íntegra e o mal de algum defeito, e
uma parte da matéria de tal juramento é perversa, é manifesto que todo o juramento é
iníquo. Pois, assim como uma proposição copulativa que tem uma parte falsa é
simpliciter falsa, assim também este juramento é simpliciter iníquo e detestável,
porque por ele se promete copulativamente (por assim dizer) obediência civil e
eclesiástica ao rei como suprema cabeça.
Finalmente, quem crê que o rei temporal é supremo nas coisas temporais e
espirituais, embora não erre na primeira parte, mas apenas na segunda, é simpliciter
herético, porque uma única heresia é suficiente para constituir um herege. Portanto,
de modo semelhante, esse juramento é profissão de certa heresia, e por conseguinte é
abominável.
O mesmo não deve ser menos evidente e certo com respeito à quarta forma de
juramento, na qual se propõe promessa de obediência civil ao rei e abjuração da
obediência pontifícia, não claramente, mas encoberta e simuladamente; porque em
moral estas duas coisas equiparam-se, e pouco importa para a constância da fé que a
verdade católica seja negada abertamente ou sob alguma cobertura ou simulação. Por
isso, a controvérsia principal tampouco versa sobre este ponto.

153
Mas, como os ignorantes podem pô-lo em dúvida, confirmaremos a dita verdade
mais abaixo, em lugar oportuno.
8. ESTADO E DIVISÃO DA CONTROVÉRSIA. – Portanto, o ponto principal sobre o qual o
rei constituiu a controvérsia não é de jure, por assim dizer, mas de facto, isto é, se na
forma última de juramento inventada pelo rei da Inglaterra exige-se dos súditos
somente a obediência civil, mas de nenhum modo a eclesiástica, nem expressamente,
nem tacitamente, nem de maneira encoberta ou velada. E se, de modo semelhante, se
renega por aquele juramento o primado do Papa e sua soberania espiritual, ou se
apenas se faz profissão da soberania régia em sua própria ordem e grau, sem profissão
do poder espiritual que se usurpa.
Pois o rei da Inglaterra defende que naquele juramento somente estão contidas
uma promessa de obediência puramente civil e uma profissão da soberania régia
temporal.
De fato, assim fala no Prefácio:[ 320 ]Com tanta dedicação e tanta solicitude
cuidei para que nada se contivesse neste juramento além da promessa de fidelidade e
de obediência temporal que a própria natureza prescreve a todos os que nascem no
reino. E mais abaixo observa que escreveu uma Apologia, em que se encarregava de
provar que nada está contido naquele juramento a não ser o que diz respeito à
obediência meramente civil e temporal, tal qual é devida pelos súditos aos príncipes
soberanos.
E repete o mesmo em outros lugares, tanto do Prefácio como da Apologia, dos
quais referi algumas coisas no prólogo precedente.
É isto, portanto, o que devemos examinar primeiro. E primeiro dissertaremos
sobre a própria coisa considerada em si mesma, e, discorrendo por cada uma das
partes da fórmula de juramento (como o rei as parece postular), mostraremos o
quanto ele é injusto e contrário à fé. Depois responderemos facilmente ao que se
objeta contra os breves pontifícios.

[ 305 ] Cap. 2.
[ 306 ] No parágrafo “Pergit deinde auctor”, etc., in Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Bellarmini pro
responsione sua ad librum Iacobi Magnae Britanniae Regis cuius titulus est Triplici nodo triplex cuneus; in
qua Apologia reffelitur Prefatio monitoria Regis eiusdem, Roma, 1609, p. 202.
[ 307 ] Apologia pro Iuramento Fidelitatis, Responsio ad primum Breve Pontificis, Londres, Opera Regia,
1609, pp. 17-35.
[ 308 ] Cap. 9.
[ 309 ] Enarratio in psalmum CXXIV, 7, 3 (PL 37, 1654).
[ 310 ] Ad Scapulam, II (PL 1, 700A).
[ 311 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, II, C. 11, q. 1, cols. 1-50, pp. 840-854.
[ 312 ] Concilium Toletanum X, Mansi 11, 34D-E.
[ 313 ] Concilium Toletanum IV, Mansi 10, 638A-B.
[ 314 ] Concilium Aquisgranense II, Mansi 14, 679B-C.
[ 315 ] Mansi 14, 673A-B.
[ 316 ] PAPA GELÁSIO I, Epistolae et decreta, 8 (PL 59, 42).
[ 317 ] FULGÊNCIO DE RUSPE, De Veritate praedestinationis, II, cap. 22 (38) (PL 65, 647D).
[ 318 ] V. nota 264 supra.
[ 319 ] De Origine ac progressu schismatis anglicani libri tres, Roma, 1586, I, p. 106.
[ 320 ] Op. cit., p. 12.

154
Capítulo II
Se na primeira parte da fórmula do juramento
se propõe algo para além da obediência civil e
contrário à obediência eclesiástica
1. Vide o livro Sobre o Juramento, I, cap. 13, n. 8, 21 e seguintes. 2. Mostra-se que na
primeira parte do juramento oculta-se um veneno. 3. Exclui-se uma evasiva. 4. Pelas
ditas palavras se abjura o poder do Papa. 5-6. A razão principal. 7. Outros erros
contidos nesta cláusula. 8. Outro erro. 9. O último juramento contém os primeiros
virtualmente.

1. VIDE O LIVROSOBRE O JURAMENTO, I, CAP. 13, N. 8, 21 E SEGUINTES. – A dita


fórmula do juramento se divide em quatro partes ou parágrafos. A primeira está em
seu início; a segunda, no parágrafo Igualmente juro; a terceira, no parágrafo Ademais
juro; e a quarta, no parágrafo E creio também. Elas devem ser discutidas, e é preciso
considerar atentamente se em todas e em alguma delas se mostra verdadeiro o que rei
pronunciou: que nada há no juramento a não ser o que diz respeito à obediência
meramente civil e temporal.
Mas antes que desçamos às partes individuais, advirto que outros observaram que
o verbo “juro” não se apõe à primeira e à última cláusula, e por isso nelas não se
juraria; portanto, daquelas coisas que nelas se propõem não se requereria tamanha
certeza da verdade, que não se possa confessá-las sem culpa (ao menos grave), ainda
que nelas não se creia – ao contrário do que se daria com a certeza necessária das
outras duas partes professadas sob juramento.
Mas esta consideração é falsa e perniciosa.
Primeiro, porque é certamente verdade que também se professa sob juramento
aquilo que se encontra na primeira e na última parte. Pois na primeira se diz: Em
minha consciência perante Deus, duas expressões que a rigor costumam ser fórmulas
de juramento. E, embora sejam ambíguas se tomadas separadamente, ajudam-se uma
à outra quando juntas, e determinam seu significado ao modo de uma indubitável
fórmula de juramento.
E a certeza aumenta pela solenidade do juramento, quer por sua matéria, quer
porque se diz imediatamente na segunda cláusula: Igualmente juro, quer por outras
coisas que direi agora.
Pois na última cláusula também se põe a expressão em minha consciência, donde
se supõe tratar-se de um juramento simpliciter, tão válido quanto a todas as suas
partes, que o pontífice não pode isentar ninguém de nenhuma delas. E, para tirar toda
a dúvida, diz-se abaixo: Todas estas coisas reconheço e juro claramente e
sinceramente. E no fim conclui-se: Na veraz fé de varão cristão, e assim me ajude
Deus. Estas últimas palavras são suficientes para jurar todo o dito anteriormente,

155
como também se depreende do direito canônico, no capítulo EgoN. (título De
iureiurando).
Mas acrescento por último que, como na primeira parte se diz reconheço e
professo, e na última se diz creio, e a matéria pertence aos dogmas da fé, mesmo se
não interviesse juramento seria pecado gravíssimo confessar ou professar algo falso
nesta matéria, porque seria contrário à confissão da fé, que é necessária à salvação,
como São Paulo testemunha em Romanos [10:9].
2. MOSTRA-SE QUE NA PRIMEIRA PARTE DO JURAMENTO SE OCULTA UM VENENO. –
Portanto, suposto isso, lê-se primeiro no próprio início do juramento: Eu, N.N.,
verdadeiramente e sinceramente reconheço, professo, testifico e declaro em minha
consciência perante Deus e o mundo, que nosso soberano senhor, o Rei Jaime, é rei
legítimo e verdadeiro, etc. Advirto que, embora estas palavras propostas e entendidas
singelamente nada pareçam conter de modo expresso senão uma profissão de
domínio e de reino temporal, ainda assim oculta-se um veneno nas palavras: nosso
soberano senhor, o rei.
Pois, segundo a intenção daquele que fala – e por outra fórmula de juramento
jamais retratada, e bastante conhecida por sua profissão pública e por seus escritos –,
e segundo o sentido vulgar e aceito naquele reino, a expressão soberano senhor
significa ser soberano simpliciter tanto nas coisas espirituais quanto nas temporais:
soberano – repito – positivamente em seu reino, porque está por sobre todos, tanto
leigos quanto eclesiásticos, tanto nas coisas temporais quanto nas espirituais; e
negativamente com relação ao mundo todo ou à Igreja (porque nela não reconhece
nenhum superior).
Portanto, como nessa mesma forma de juramento todo aquele que assim jura é
coagido a reconhecer o rei como senhor soberano, é coagido a confessar tacitamente
o seu primado supremo sobre toda a Grã-Bretanha e Irlanda, e sua desobrigação de
todo poder superior; conseqüentemente, é coagido a abjurar a soberania espiritual do
pontífice.
Assim, portanto, naquela única expressão nosso soberano senhor está contido
algo para além da obediência civil e temporal.
3. EXCLUI-SE UMA EVASIVA. – Dirá alguém: seja esta a intenção do rei, o que
certamente não se pode negar; ele apenas deliberadamente não a expressou na própria
fórmula, para não causar nos papistas (como ele mesmo fala) escrúpulo de
consciência – do qual agora poderão facilmente desfazer-se, não jurando segundo a
intenção daquele que fala, mas segundo o simples soar das palavras e num sentido
acomodado que aquelas palavras podem dar, entendendo-as apenas acerca do
domínio soberano nas coisas temporais.
Porém, embora esta fuga possa sustentar-se especulativamente – como dizem – e
abstratamente (uma vez removido o escândalo), ainda assim, segundo o uso e a praxe
em tal lugar, e entre tais pessoas, e com as outras circunstâncias e com o perigo de
escândalo que ali concorre simultaneamente, é difícil poder separar-se daquelas
palavras tal significado. Conseqüentemente, será ela uma confissão e profissão
externa do poder absolutamente soberano do rei em toda matéria, sem nenhuma
limitação além daquela que se adiciona nas próprias palavras: que se trata das terras

156
sujeitas a seu domínio. E esta limitação eleva as demais palavras, de modo que estas
se devam entender sem limitação alguma. E muito mais o declaram as palavras
subseqüentes, onde já não velada, mas expressamente estende-se o juramento para
além da obediência civil e temporal.
4. PELAS DITAS PALAVRAS SE ABJURA O PODER DO PAPA. – De fato, acrescenta-se: E
que o papa, nem por si mesmo, nem por outra autoridade qualquer da Igreja ou da
Sé Romana, nem por qualquer intermédio com quaisquer outros, não tem poder nem
autoridade para depor o rei. Pergunto eu: quem diria que por estas palavras se
postula dos súditos apenas a obediência civil devida por eles aos príncipes soberanos?
Certamente os outros reis da Igreja são príncipes não menos soberanos nas coisas
temporais do que o rei da Inglaterra, e, contudo, tampouco eles exigem tal
obediência, nem crêem que ela lhes é devida dos súditos, nem estes a reconhecem.
Portanto, o rei da Inglaterra declara abertamente falar de si mesmo e opinar como
quem o faz de um príncipe soberano que não tem na terra nenhum superior – e
postular dos súditos esta profissão pelo referido juramento.
Além disso, mediante aquelas palavras, o que se faz não é tanto jurar obediência
ao rei, quanto abjurar o poder do Papa.
Ora, não pertence ao poder civil ou temporal do rei (nem à obediência civil que
lhe é devida) tratar do poder do Papa ou propor o seu juramento ou abjuração.
Logo, aquelas palavras evidentemente excedem os termos da obediência civil.
Primeiro, porque as próprias palavras significam algo distinto, para além da
obediência civil devida ao rei, como elas mesmas manifestam. Segundo, porque o
próprio ato de exigir tal juramento e de obrigar a professar isto ou aquilo sobre o
poder do pontífice é ato de jurisdição mais que civil; de fato, é de jurisdição superior,
ou de jurisdição não submetida ao poder do pontífice, porque não pertence ao poder
civil prescrever os limites do poder espiritual, especialmente do poder espiritual
soberano.
Portanto, expresso em termos teológicos, de dois modos o rei postula uma
obediência mais que civil por aquelas palavras. Primeiro, in actu signato,[ 321 ] ao
propor matéria não civil; segundo, in actu exercito,[ 322 ] ao usar de poder mais que
civil e coagir os súditos a que se submetam a ele, e reconheçam-no por professá-lo.
5. A RAZÃO PRINCIPAL. – Ocorre que, por aquelas palavras, propõe-se a profissão de
certo erro contrário à doutrina aprovada por toda a Igreja.
Embora a matéria seja realmente eclesiástica, a usurpação de jurisdição seria até
tolerável de algum modo, se a doutrina proposta fosse verdadeira. Porém, como a
própria forma do juramento contém erro e compele os súditos a professá-lo, ele não
só exige algo além da obediência civil, mas também coage a abnegar o poder
pontifício e a confessar algo contrário à sã doutrina.
Isto se mostra suposto, porque aquele artigo do juramento inclui a seguinte
proposição (e a fé nela): Nem o pontífice nem a Igreja universal têm poder de depor
um rei batizado em nenhum caso, por qualquer causa ou culpa. Pois, embora na
própria forma do juramento não se acrescentem expressamente todas estas expressões
(em nenhum caso, por qualquer causa ou culpa), elas estão contidas em outras
equivalentes, por certo quando se diz que o Papa, nem por si, nem por outros, nem

157
por intermédio de quaisquer outros, tem poder ou autoridade para depor o rei. Ora, se
não tem nenhum poder, tampouco tem a faculdade de punir, nem tem, por qualquer
outro título, poder eficaz para tal efeito ou deposição.
E isto mesmo é ampliado por outras cláusulas, a saber, que o Papa não tem o
poder de dispor dos reinos constituídos sob o domínio do rei, nem de conceder a
outro rei autoridade para invadi-los.
Pois todas estas coisas pendem daquele princípio: que o Papa não pode coagi-lo
pela referida pena de deposição, mesmo que seja herético ou cismático ou
perseguidor dos católicos, nem pode usar de quaisquer meios de coação temporal ou
corporal para puni-lo, ou para defender a Igreja e livrar os católicos de tamanho
perigo.
Mas já se mostrou suficientemente no livro III[ 323 ] quão falso é este dogma, e
quão alheio aos princípios da fé, ao uso da Igreja e também a toda reta razão,
supondo-se o ofício pastoral que Cristo encomendou a seu vigário. Por isso, não me
demorarei sobre este ponto no presente livro.
6. Finalmente, há outra cláusula da mesma ordem com que se conclui essa parte do
juramento, na qual o rei coage seus súditos a jurar que no pontífice não há poder
nenhum de exonerar nenhum de seus súditos da obediência e sujeição à Sua
Majestade, ou de dar licença a nenhum deles para portar armas contra ele, semear o
tumulto, ou causar qualquer violência ou dano à pessoa de Sua Majestade, ao
Estado, ao regime, ou a quaisquer de seus súditos sob os seus domínios.
Esta cláusula é quase da mesma ordem que a precedente e procede do mesmo
erro, a saber, que o pontífice não tem nenhum poder de coagir o rei pela violência
corporal ou por outras penas temporais, doutrina que foi mostrada errônea no mesmo
livro III.
Por tal razão também nessa cláusula se propõe algo para além da obediência civil,
se usurpa o poder espiritual, e os súditos são coagidos no mesmo juramento a
professá-lo e reconhecê-lo no rei. E, por fim, também o poder pontifício é abjurado, e
jura-se um erro contrário à doutrina da fé.
7. OUTROS ERROS CONTIDOS NESTA CLÁUSULA. – Ainda mais: novos erros estão
envolvidos aqui.
Um deles é o de que o Papa não tem poder de relaxar juramentos, mesmo que
interceda causa justa e razoável, o que é contra o costume eclesiástico e contra o uso e
a aprovação dos concílios gerais;[ 324 ] ademais, é também contrário ao consenso dos
doutores católicos, e contra o poder dado a São Pedro de ligar e desligar, assim
declarado pelo uso e costumes de todo o povo cristão.
Além disso, é também contra a razão, pois sempre em semelhantes juramentos se
inclui uma condição tácita, a saber, que a promessa pode cumprir-se sem notável
dano e perigo para quem jura, maximamente quando o perigo e o dano provêm da
injúria ou da violência daquele a quem se faz a promessa. Ou se subentende o direito
reservado do superior que, não obstante a promessa feita pelo súdito, pode proibi-lo
de cumpri-la ou de executar a ação prometida, se uma causa justa e razoável
interceder; e conseqüentemente pode relaxar o juramento, proibindo sua matéria.

158
Por fim, este erro supõe o primeiro. Pois, se o Papa pode depor o rei,
conseqüentemente é necessário que possa retirar o vínculo de obediência e juramento,
pois não se promete obediência a Jaime enquanto Jaime, mas enquanto rei. Daí que,
se deixa de ser rei, por isso mesmo não se lhe deve obediência, e por conseqüência
tampouco o juramento obriga: removida a matéria do juramento, é conseqüentemente
necessário que se retire a obrigação do juramento.
8. OUTRO ERRO. – Outro novo erro é que não só se nega ao pontífice o poder de depor
o próprio rei herético, mas também o poder de coagir seus súditos por penas de
mesmo tipo, como vemos pela expressão quaisquer de seus súditos.
De fato, com respeito ao sentido destas palavras deve advertir-se que não há quem
ensine que o pontífice pode dar, a seu arbítrio e sem uma razão cogente de justiça,
licença a algum príncipe para tomar armas contra outro rei ou seus súditos, ou para
lhe infligir alguma violência ou prejuízo – assim como não pode, por mero arbítrio,
dar licença aos súditos para excitar turbas contra seu rei, o que se parece atribuir ao
Papa no decorrer da referida obra, como no fim do livro III observamos e refutamos.
Em verdade, que pontífice alguma vez arrogou a si tal poder? Que católico ou homem
munido de razão alguma vez o ensinou ou pregou?
Não é mister, portanto, encobrir ou paliar aquelas palavras, fingindo ser seu
sentido que o Papa não possa dar aquela licença “arbitrariamente e sem causa”, pois
isto é algo que nem o rei teme, nem vem à mente dos homens.
9. O ÚLTIMO JURAMENTO CONTÉM OS PRIMEIROS VIRTUALMENTE. – O sentido, portanto,
é que o pontífice não pode infligir qualquer violência ou dano, não só ao rei, mas
tampouco aos seus súditos; tampouco pode dar a alguém licença para agir de modo
semelhante contra os súditos do rei da Inglaterra, mesmo que sejam apóstatas e
rebeldes à Igreja Romana, ou semeadores ou fomentadores de cismas e heresias.
Deste modo dizemos, portanto, que naquelas palavras está contido um erro grande
e novo, ou pelo menos o mesmo erro sobre aquele primado mais explicitado. De fato,
que outra coisa é isso senão a profissão dos súditos do rei da Inglaterra de que não
têm no mundo outro superior além do próprio rei, e que ele não pode ser coagido ou
punido por seus crimes, mesmo que sejam perniciosos aos outros católicos e à Igreja
de Cristo?
Portanto, por todas as cláusulas, seja de maneira suficientemente expressa, seja ao
menos implicitamente, nega-se e abjura-se a soberania do pontífice, e se lha atribui ao
rei.
Donde se conclui ser falso não estar exigido no juramento algo além da profissão
de obediência temporal e civil; pelo contrário, vê-se muito verdadeiramente que se
trata de um juramento misto, e que ele contém em virtude tudo que se propunha nos
anteriores. E não vejo o que se possa responder com alguma aparência de
probabilidade a estas razões. Quanto a certa evasiva que o rei insinua, dela trataremos
no próximo capítulo.

[ 321 ] In actu signato: diretamente. Diz-se quando a intenção do agente é expressa diretamente em suas
palavras. [N. T.]
[ 322 ] In actu exercito: indiretamente. Diz-se quando a intenção do agente é expressa indiretamente, por suas
ações e não por suas palavras. [N. T.]

159
[ 323 ] Livro III, caps. 23 e 27, ausentes desta edição.
[ 324 ] Sextus liber Decretalium, Paris, 1513, II, tit. 14, cap. 1, fol. cxxi: “Papa imperatorem deponere potest
ex causis legitimis” [“O Papa pode depor o imperador por causas legítimas”].

160
Capítulo III
Na segunda parte do juramento se apresenta também algo
para além da obediência civil e contrário à eclesiástica
1. Prefácio. 2. O duplo sentido da segunda parte do juramento. O primeiro sentido é
excluído, e se mostra que é alheio à mente do rei. 3. Mostra-se que contém erro o
segundo sentido intentado pelo rei. 4. Naquela parte do juramento inclui-se a
profissão de um erro contra a fé. 5. Exclui-se uma evasiva. 6. As palavras seguintes
do juramento contêm erro semelhante à precedente. Outro erro ali incluído. 7.
Licitamente os súditos podem e devem revelar uma traição contra o príncipe.
Limitação. 8-9. Se se toma a traição em sentido impróprio, não se deve revelá-la.
Nem tal revelação pode ser prometida licitamente em juramento. 10. O crime
imposto a Garnet. 11. Pode revelar-se coisa ouvida em confissão por causa razoável,
ocultando-se a pessoa. Primeira limitação desta doutrina. 12-13. Segunda limitação.

1. PREFÁCIO. – Esta parte começa com as palavras: Igualmente juro, e não contém
quase nada diferente da precedente, senão que nela se declaram mais ainda todas as
coisas que na primeira parte se abjuram contra o poder do Papa, para que por certo se
entenda que procedem não só do poder extrajudiciário, por assim dizer, ou do poder
de obrar pelas forças humanas, mas também do poder de jurisdição e do poder
judiciário, que na segunda parte é negado mais expressamente e é abjurado ao
pontífice nas seguintes palavras: Igualmente juro de coração que, não obstante
qualquer declaração ou sentença de excomunhão ou privação, feita ou concedida –
ou que haja de ser feita ou concedida – pelo papa ou por seus sucessores, ou por
qualquer autoridade derivada, ou que alega ser derivada dele ou de sua Sé, contra o
dito rei, seus herdeiros ou sucessores, e não obstante qualquer absolvição dos ditos
súditos com relação à sua obediência, ainda assim prestarei fidelidade e verdadeira
obediência à Sua Majestade, aos seus herdeiros e sucessores, e defendê-los-ei a ele e
aos outros com todas as minhas forças contra todas as conspirações, e contra
quaisquer atentados ou outras coisas que se fizerem contra a sua pessoa, ou contra a
pessoa deles, ou contra a sua coroa e dignidade, quer tenham sido cometidas pela
doutrina ou pelo tom de alguma sentença ou declaração, quer de outra maneira.
2. O DUPLO SENTIDO DA SEGUNDA PARTE DO JURAMENTO. O PRIMEIRO SENTIDO É
EXCLUÍDO, E SE MOSTRA QUE É ALHEIO À MENTE DO REI. – Para que, portanto, não se dê
nenhum lugar a subterfúgio, pergunto se o rei entende que pode ser justa a sentença
do Papa que depõe por crimes um rei batizado, que confessa ser cristão, ou se ele crê
que é sempre injusta.
Creio eu que não afirmará o primeiro, pois estaria então induzindo seus súditos a
jurar coisa torpíssima, a saber, a não obedecer a uma sentença justa que traz consigo
um preceito justo. Pois, se a sentença é justa, também será justo o preceito pelo qual

161
se manda aos súditos observá-la, porque de outro modo ela não poderia ser
executada.
Igualmente, se a sentença de deposição dada pelo Papa contra o rei pode ser justa,
será também eficaz. Tem, portanto, o efeito da pena que impõe. Por isso, visto que a
pena imposta por sentença de deposição do reino priva o rei ipso facto do domínio e
da propriedade do reino, é uma sentença justa que o priva eficazmente do reino.
Portanto, resistir a tal sentença, e defender a pessoa do rei contra a execução de tal
sentença, é contrário à justiça e à obediência devidas ao Papa. Logo, quem crê no
primeiro mas jura o segundo jura coisa claramente injusta e iníqua.
E de outra parte é contraditório querer observar a obediência e a fidelidade a
alguém como verdadeiro rei, que sabes que foi efetivamente deposto do reino por
declaração ou sentença justas. Se o próprio Papa exigisse dos fiéis que jurassem
defendê-lo em sua Sé, e lhe prestassem obediência e fidelidade, não obstante qualquer
sentença ou declaração de sua deposição feita por qualquer concílio geral, mesmo por
crime de heresia, tal juramento seria iníquo, porque seria sobre coisa iníqua e
contrária à Igreja e à fé. Portanto, tal é o juramento do rei se se supõe justa a dita
sentença.
Isto, portanto, sem dúvida o rei não admite, tampouco opino que seja tão iníquo
estimador de suas coisas que, embora conceda que possa ser justa a sentença dada
pelo Papa contra algum rei, negue que contra si tal sentença possa ter a mesma
eqüidade. Pois que imunidade ou inocência pode alegar para si maior do que a de
outros reis que foram rebeldes à Igreja Romana ou desertores e impugnadores da fé?
Ou, embora não reconheça em si uma causa digna de deposição, como sabe que não
pode havê-la em seus sucessores, embora exija igualmente juramento sobre todos?
Não há dúvida, portanto, de que o fundamento deste juramento é que tal sentença
não pode ser justa.
3. MOSTRA-SE QUE CONTÉM ERRO O SEGUNDO SENTIDO INTENTADO PELO REI. – Daqui,
portanto, concluímos evidentemente que por aquelas palavras se postula dos súditos
do rei da Inglaterra que jurem que a sentença de deposição contra o rei não pode ser
válida nem justa. Pois em verdade é isto que professam, quando juram não obedecer a
tal sentença, nem observá-la. E disto finalmente concluímos que se lhes pede jurem
não haver no pontífice poder para dar tal sentença.
A prova disto é que o rei crê – e quer que seus súditos creiam – que tal sentença
apenas é injusta por haver sido dada pelo Papa, que não tem poder nem jurisdição
sobre o rei. De fato, o rei tenta por todos os meios quebrar esse jugo e tolhê-lo de si, e
por isso em seu livro freqüentemente repete que não é em nada menor que o
pontífice, e que não há nada entre ele e o pontífice, e coisas similares.[ 325 ]
Nem pode o rei alegar ou pretender em tal sentença outra razão de injustiça que
seja perpétua e que poderia dar fundamento a essa parte do juramento. Pois, embora
no princípio da Apologia ele indique duas outras causas, a saber, que uma disparidade
no culto religioso não é causa suficiente para que os súditos possam conjurar contra o
rei,[ 326 ] e que foi condenado sem sua causa ter sido ouvida (querelas de que tratarei
abaixo), ainda assim nenhuma destas causas é universal e perpétua. E de sua
qualidade nada direi agora.

162
E assim a forma do juramento não podia fundar-se nessas causas, tanto porque o
pontífice ainda não escrevera o breve de que o rei se queixa, quanto também porque o
juramento não fala de sentença dada (ou por dar) contra o rei ou seus sucessores.
Compreende, portanto, toda e qualquer sentença, seja de parte ouvida, seja de parte
não ouvida, seja por disparidade de religião, seja por quaisquer outros crimes ou
qualquer outra causa.
Logo, a injustiça que o rei supõe na sentença, e sobre a qual fundou a fórmula de
juramento, não existe senão porque ele crê que ela não pode emanar de poder e
jurisdição legítimos.
4. NAQUELA PARTE DO JURAMENTO INCLUI-SE A PROFISSÃO DE UM ERRO CONTRA A FÉ. –
Concluo, portanto, que nas palavras do juramento não apenas se postula dos súditos
obediência civil, mas também a profissão deste erro: que o Papa não tem poder nem
jurisdição – por qualquer que seja a causa – para dar sentença de deposição contra o
rei. E, conseqüentemente, não é verdadeira esta proposição do rei: Nada se contém
naquele juramento a não ser o que diz respeito à obediência meramente civil e
temporal.[ 327 ] E disto se infere, por fim, que os súditos pecam gravemente ao
prestar tal juramento. Pois professa-se exteriormente que o Papa não tem sobre o rei
uma jurisdição pela qual possa proclamar justa sentença de deposição, por qualquer
razão ou de qualquer modo que a dê, observada a ordem que, se não estivesse ausente
o poder, a justiça natural postularia.
De fato, aquele que presta o juramento, ou crê naquilo que professa, ou não crê.
Se crê, é cismático no coração e nos atos, e erra na doutrina da fé; se porém não crê
no que contém a forma do juramento e ainda assim o jura, peca tanto contra a
confissão da fé, quanto contra a religiosidade do juramento, quer jure sem a intenção
de cumprir o que jura, quer jure com a intenção de observá-lo: porque do primeiro
modo é perjuro, e do segundo modo faz do juramento um vínculo de iniqüidade, e
propõe obedecer antes aos homens do que a Deus, por prometer obediência ao rei
contra a justa sentença e preceito do pontífice.
5. EXCLUI-SE UMA EVASIVA. – Mas se o rei diz que aqueles que juram simpliciter não
entendem tudo que está contido no juramento, respondemos que tal escusa é frívola,
tanto porque tratamos não da ignorância das pessoas, mas da qualidade do juramento
– de sua justiça ou injustiça –, quanto também porque esta ignorância nos católicos
dificilmente pode ser invencível, a não ser que sejam muito rústicos e pouco
instruídos na religião, porque os letrados e peritos facilmente entendem os erros
latentes no juramento, e os que são menos doutos ao menos duvidarão e terão de
indagar a verdade. E ninguém é tão ignorante que possa jurar temerariamente com
consciência segura, sem primeiro inquirir qual seja o juramento. E isto vale sobretudo
para a Inglaterra, onde todos os católicos sabem (mesmo os rústicos) que o rei e seus
conselheiros perseguem o pontífice com máximo ódio e se opõem à fé romana, e
vêem na própria forma do juramento abjurar-se muitas coisas contra o pontífice; é
portanto necessário que ponham em dúvida qual seja esta abjuração. Portanto, se
juram temerariamente, não se escusam das gravíssimas culpas que declaramos
subjazer ao juramento.

163
E por fim, como tal juramento resulta no desprezo da Sé Apostólica e no
detrimento da religião cristã, não pode ser admitido sem grande escândalo, e por isso
os pastores e doutores da Igreja que está na Inglaterra não devem calar a verdade e
permitir a ignorância dos simples. Pois em tal evento é mal menor tolerar a aflição
temporal, ou permitir a inconstância da queda de alguns, do que ocultar ou dissimular
a verdade.
6. AS PALAVRAS SEGUINTES DO JURAMENTO CONTÊM ERRO SEMELHANTE À PRECEDENTE.
OUTRO ERRO ALI INCLUÍDO. – E isso que se disse sobre a abjuração iníqua de uma
sentença justa que o pontífice pode dar contra o rei, também pode aplicar-se à
semelhante abjuração que o Papa concederia aos súditos do rei, isentando-os de todo
juramento de fidelidade, e que se faz por estas palavras: Ou por qualquer isenção dos
ditos súditos. Pois estas palavras também excedem a obediência política, porque o
Papa poder ou não poder eximir alguém de juramento não é matéria de obediência
civil, mas eclesiástica, atinente à interpretação do poder de ligar e desligar dado a São
Pedro por Cristo Senhor.
Além disso, essas palavras têm conexão com as precedentes e contêm o mesmo
erro, porque a obrigação de obediência em qualquer ordem ou estado dura para o
súdito tanto quanto dura no superior a sua dignidade, poder ou jurisdição, pois estas
coisas são correlativas e uma pende da outra. Daí que, tanto nas prelaturas da Igreja
quanto nas magistraturas civis, quando a pessoa superior se depõe da prelatura ou da
magistratura, por esta mesma razão cessa para os súditos a obrigação de obedecer-lhe,
pois já não estão submetidos a ela. E isto também tem lugar no Sumo Pontífice, se ele
renuncia ao pontificado ou é deposto por heresia.
Assim, portanto, se o pontífice pode depor o rei, pode também isentar os súditos
da obediência a ele: logo, há pelo menos o mesmo erro em se abjurar toda isenção de
fidelidade feita pelo pontífice e em se abjurar toda sentença de deposição.
Mas acrescento que nessa parte posterior está envolvido outro erro, porque,
mesmo sem deposição do reino, o pontífice pode preceituar aos súditos que não
obedeçam a um rei pertinaz em algum erro ou em crime público e escandaloso, e
isentá-los por ora do juramento de obediência, mais ao modo de suspensão da
obrigação do que de absoluta privação, como observaremos abaixo ao tratarmos da
censura de excomunhão.
7. LICITAMENTE OS SÚDITOS PODEM E DEVEM REVELAR UMA TRAIÇÃO CONTRA O
PRÍNCIPE. LIMITAÇÃO. – Resta examinar as últimas palavras desse parágrafo, onde se
pede um juramento de promessa especial de revelar toda traição com estas palavras: E
empregarei todo trabalho para revelar e manifestar à Sua Majestade, e a seus
sucessores e herdeiros, todas as traições e conspirações traiçoeiras contra ele ou
contra os seus, que me vierem ao conhecimento ou ao ouvido.
Acerca desta promessa, advirto que, se se assumem tais palavras em seu sentido
simples e próprio, ela é honesta e nada contém que exceda a fidelidade civil ou
repugne à sã doutrina. Pois a traição é crime gravíssimo contra o príncipe ou a
república, pois significa crime de lesa-majestade.[ 328 ]
Portanto, os súditos estão obrigados a revelar a seus reis legítimos tais traições ou
conspirações traiçoeiras, mesmo sem uma promessa especial, tanto pela lei da

164
caridade e da piedade, e da deferência para com eles e a república, quanto também
pelo título de sujeição e fidelidade, que pela própria lei da natureza devem ao seu
príncipe em razão da sujeição. Por isso, confirmar e aumentar esta obrigação por
promessa ou juramento é honesto e santo.[ 329 ]
É necessário, porém, que as palavras que me vierem ao conhecimento ou ao
ouvido sejam corretamente entendidas como respectivas ao conhecimento meramente
humano, não ao obtido pela confissão sacramental. Pois não é lícito revelar o sigilo
da confissão em nenhum caso, como logo direi.
E, de fato, se as palavras dessa promessa são aceitas simpliciter, como eu disse,
incluem por si aquela explicação e limitação, porque – principalmente entre cristãos e
católicos – aquelas palavras, pronunciadas em geral e indefinidamente segundo seu
sentido comum, não trazem consigo outro sentido nem introduzem maior obrigação.
8. SE SE TOMA A TRAIÇÃO EM SENTIDO IMPRÓPRIO, NÃO SE DEVE REVELÁ-LA. NEM TAL
REVELAÇÃO PODE SER PROMETIDA LICITAMENTE EM JURAMENTO. – Mas, embora isto
seja verdadeiro no tocante à força das palavras e sem a consideração de circunstâncias
particulares, uma vez ponderados todos estes elementos devemo-nos acautelar de
uma dupla fraude e engano naquelas palavras.
A primeira é que pelo nome de traição o rei não entende apenas aquilo que em
verdade e em realidade é traição, mas também tudo aquilo que considera traição por
seu próprio juízo ou segundo os erros das cláusulas precedentes.
Assim, mesmo que o rei seja legitimamente deposto pelo pontífice, e os súditos
sejam por este legitimamente liberados e isentos do vínculo de juramento e
obediência devida ao rei, o rei chama de traição ou conspiração traiçoeira toda e
qualquer conspiração do reino, da república ou dos súditos para expulsá-lo e livrar-se
de sua tirania (se porventura a exerça), quando na verdade não é assim: ao contrário,
trata-se de defesa, guerra ou suplício justos, como mostrarei no capítulo seguinte.
Portanto, entendendo-se traição neste sentido, a exação de tal promessa é injusta, e
seria torpe e sacrílego jurá-la.
Primeiro, porque isto, como disse, não é traição. Pois nesse caso deve-se guardar
fidelidade antes à república ou à comunidade dos súditos oprimidos pela violência, do
que ao tirano que os oprime injustamente – porque ele em verdade já não é rei.
Segundo, porque também então obriga o segredo natural, sob o qual se dá o
conhecimento de tal conspiração, porque é sobre coisa justa e necessária para o bem
comum da sociedade, que se defende justamente; por isso, a promessa contrária
àquele segredo nem obriga nem pode ser honesta, e, por conseguinte, tampouco pode
ser jurada santamente.
Por tal razão aquelas palavras, consideradas em si mesmas e solitariamente, por
assim dizer, poderiam carecer da presumida suspeita. Contudo, quando unidas às
precedentes, deve-se tomar cuidado, porque o último sentido em questão parece ser o
maximamente intentado pelo rei.
9. Já a segunda fraude pode ter lugar porque a referida promessa parece fazer-se
também no tocante ao conhecimento obtido por confissão sacramental. Que esta foi
de fato a intenção do rei e daqueles que editaram aquela fórmula de juramento,
podemos deduzir do fato de que para eles não há nenhuma confissão sacramental, e o

165
sigilo da confissão é considerado como nada; não fazem nenhuma distinção entre tal
conhecimento e qualquer outro. Nem duvidará muito dessa intenção do rei aquele que
considerar atentamente o que ele escreveu sobre o sigilo da confissão no seu
Prefácio.[ 330 ]
De fato, embora ele ali declare que os doutores escolásticos, desde que passaram a
existir na Igreja, asseveraram todos que, quando se revela algo ao confessor sob o véu
da confissão – por mais nocivo ou pernicioso que seja – o confessor é obrigado a
ocultar o nome do confessando, o rei propõe tal doutrina de um modo que parece
mais escarnecê-la. Pois diz: Desde que estes doutores escolásticos passaram a existir
na Igreja, começaram também a arruinar os antigos fundamentos da teologia com
novos fundamentos tomados da filosofia, significando que a referida posição sobre o
sigilo confessional pertenceria a este erro ou defeito da teologia.
Mas o mundo cristão não ignora que os inovadores atuais têm ódio à teologia
escolástica, ou porque a ignoram, ou porque ela descobre e impugna mais
acuradamente os seus erros. Em verdade, que os fundamentos da doutrina e da
posição acerca do sigilo da confissão são mais antigos que os doutores escolásticos, e
que sempre foram e ainda são os mesmos na Igreja, provamo-lo claramente em outro
lugar.[ 331 ] Este tema não pode ser tratado agora de passagem, devido à sua
dignidade, mas isto tampouco é necessário, pois no lugar citado o rei não quis discutir
sobre essa parte da doutrina.
10. O CRIME IMPOSTO A GARNET.[ 332 ] – Ele acrescenta, porém, que nenhum dos
antigos escolásticos negou que, se ao confessor fosse revelado algo cuja ocultação
pudesse criar grande prejuízo para a república, o confessor poderia e deveria –
quantas vezes isso tivesse acontecido – revelar a coisa para prevenir o perigo, embora
ocultando o homem. Ele opina ser tão certa esta doutrina, que a contrária (atribuída
por ele aos jesuítas), conteria dogma novo e perigoso, de modo que nem o rei nem a
república podem estar seguros onde se encontram aqueles que a defendem.[ 333 ]
Mas ali ele propõe e exagera esta doutrina para acusar a Henry Garnet de ter tido
ciência de uma traição não revelada, e para fazê-lo partícipe desta, não admitindo a
sua escusa do segredo de confissão.[ 334 ] – Isto embora, insatisfeito com tal
incriminação, acrescente depois (e tente prová-lo) que não havia sido na confissão
que Garnet tivera notícia daquela conspiração, mas fora do sacramento.
Quanto ao fato que diz respeito a Garnet, nada posso dizer com ciência certa,
porque nem estava presente, nem pude ler uma história certa sobre o fato. Sei, porém,
que Garnet, com quem tratei familiarmente por muitos anos, foi ornado por Deus com
grandes dotes de espírito. Pois, além da prestância do engenho e da egrégia erudição,
sempre observei nele um grande candor de espírito, e integridade e probidade de
costumes, qualidades que custodiou até a morte, segundo sempre entendi mediante
sinais e indícios certeiros. Por esta razão, não duvido de que tenha observado grande
prudência, fidelidade e verdade ao guardar o segredo da traição, quer antes de ter sido
preso, quer ao prestar a confissão judicial.
Por isso, quando o cardeal Belarmino[ 335 ] afirma que muitas testemunhas – e
uma delas mais grave e excepcionalmente maior que todas – afirmaram santamente
que ouviram da boca de Garnet, à beira de sua morte, que não estivera ciente da
traição senão pela confissão sacramental, creio que se deve dar fé a ambos, ou seja, a

166
Garnet, que negou ter tido outra notícia, e às testemunhas, que disseram que Garnet o
negara. Nem nos leve a mal o rei se preferimos o testemunho dos fiéis e católicos aos
testemunhos dos hereges, que se impuseram ao próprio rei.
11. PODE REVELAR-SE COISA OUVIDA EM CONFISSÃO POR CAUSA RAZOÁVEL,
OCULTANDO-SE A PESSOA. PRIMEIRA LIMITAÇÃO DESTA DOUTRINA. – Mas no que
pertence ao direito ou à doutrina que afirma que, para evitar uma ingente ruína, a
coisa ouvida em confissão pode ser descoberta sem se revelar a pessoa, dizemos que
ela é absolutamente verdadeira e nunca foi negada pelos jesuítas.
Pois Belarmino em sua Apologia admite-a francamente[ 336 ] e eu, no De
Poenitentia,[ 337 ] explicando em detalhe o segredo de confissão e o seu preceito,[
338 ] expus que se deve entender o segredo com relação à pessoa do pecador, e por
isso o confessor pode, por utilidade, falar da própria coisa silenciando a pessoa, o que
na seção 7 confirmei e declarei novamente.
Tampouco pode o rei mostrar algum autor da Companhia que tenha ensinado
doutrina contrária, muito embora eles agreguem as clarificações necessárias, para que
ninguém abuse da doutrina.
Uma delas nosso Belarmino agregou agudamente, com sobriedade e prudência, na
defesa de Garnet e em resposta ao rei: disse ser lícito admoestar o príncipe com
palavras gerais sobre uma traição conhecida em confissão, para que se guarde do
perigo, mas deve entender-se isto, em primeiro lugar, de um príncipe católico, que
creia na religião da confissão sacramental e a tenha na devida reverência, e, por fim,
deve entender-se de um príncipe pio e cristão, de quem se pode presumir que não
interrogará algo além do que é justo.
O sacerdote não é obrigado a se pôr em tamanho perigo e risco, nem deve ou pode
licitamente revelar um segredo de confissão a alguém que ele sabe que considera a
confissão como nada, e que se esforçará plenamente em interrogar e inquirir a pessoa
do traidor.
12. SEGUNDA LIMITAÇÃO. – E a isto diz respeito outra explicação geral, a saber, que
assim devemos entender a referida doutrina: é lícito falar da própria coisa conhecida
em confissão, apenas quando nem diretamente nem indiretamente se revela a pessoa.
E porque, em moral, o perigo se equipara ao evento (pois aquele que ama o perigo
perecerá nele[ 339 ]), age contra o sigilo aquele que fala da coisa de tal modo que
exponha a pessoa do confessante a perigo moral, sobretudo dando ocasião moral ou
preparando o caminho para que se chegue ao seu conhecimento. Pois às vezes revela
a pessoa indiretamente, o que não é lícito por nenhuma razão.
Nem esta doutrina se entende de forma contrária à segurança dos reis e dos reinos.
Pois são antes necessárias tamanha religião e observância do segredo, para que, pela
via da confissão e pelos conselhos e admonições do confessor, possa dar-se algum
remédio a tais traições e iniqüidades, que de outro modo claramente cessariam: pois,
se os penitentes não estão seguros de sua incolumidade pelo segredo, ninguém
ousaria revelar semelhantes fatos em confissão. E, assim, são antes os que
escarnecem a confissão ou rompem o seu segredo os que menos cuidam da segurança
dos reis e dos reinos.

167
13. Por fim, para que voltemos ao ponto donde nos afastamos: como na fórmula de
juramento o rei da Inglaterra exija que seus súditos revelem todas as traições que lhes
vierem ao conhecimento, merecidamente os católicos podem temer, e até crer, que
isso se postula sem nenhuma distinção, quer aquele conhecimento chegue por
confissão, quer a revelação da traição se faça junto com a do traidor, quer com perigo
moral para ele, quer de qualquer outro modo. Neste sentido, tanto a fórmula excede a
obediência civil, quanto envolve algo contrário à religião católica.
E por esta razão também nessa parte o juramento é muito suspeito, e portanto os
católicos e varões prudentes podem merecidamente exigir maior esclarecimento,
embora por outras razões sejam obrigados a recusá-lo simpliciter.

[ 325 ] Apologia, Praefatio, Londres, Opera Regia, 1609, p. 7.


[ 326 ] Op. cit., p. 6.
[ 327 ] Op. cit., p. 13.
[ 328 ] No texto original, termina-se esta frase com: “..., que na língua vulgar se chama ‘traição’.” [“..., quod
vulgari sermone traycion vocatur.”]. A manutenção deste trecho perde seu sentido no contexto da tradução:
visto que o latim proditio, empregado normalmente pelo autor, se traduz por “traição” tanto no português
como no espanhol de Suárez (excetuados os anacronismos ortográficos), não há propósito em manter esta
referência pontual sobre como se verte esta palavra numa língua em que já nos encontramos. [N. T.]
[ 329 ] É doutrina pacífica do magistério da Igreja Católica o reconhecimento da autonomia das instituições
políticas sobre matérias atinentes à jurisdição civil e temporal. A defesa do poder político frente ao domínio da
jurisdição espiritual é assunto que, apesar das controvérsias existentes na história dos debates internos da
própria Igreja, restou consolidado como posicionamento final. Sobre isso, recomendamos a excelente
monografia de ANTONIO MOLINA MELIÁ, Iglesia y Estado en el Siglo de Oro Español: el pensamiento de
Francisco Suarez, 1ª ed., Valencia, Editora de la Universidad, 1977. [N. C.]
[ 330 ] Op. cit., p. 147.
[ 331 ] Cf. Commentaria ac Disputationes in Tertiam Partem Divi Thomae, in Opera Omnia, Paris, Vivès,
1866, t. 21, q. 80, art. 6, Disput. 67, sect. 3, nn. 3-7, pp. 490-2. Também t. 22, De Virtute Poenitentiae, Disp.
33-34, pp. 686-732.
[ 332 ] Raul de Scorraille assevera que Henry Garnet foi aluno de Suárez no Colégio Romano entre os anos
1580-1584. Ver P. RAÚL DE SCORRAILLE, El P. Francisco Suarez de la Compañia de Jesus, 1ª ed., Barcelona,
Subirana, 1917. [N. C.]
[ 333 ] Praefatio pp. 147-148.
[ 334 ] Op. cit., pp. 148-152.
[ 335 ] Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Bellarmini..., Roma, 1609, cap. 13, pp. 120-132.
[ 336 ] Loc. cit.
[ 337 ] Opera Omnia, t. 22, De Virtute Poenitentiae, Disp. 33, sect. 7, pp. 706-10.
[ 338 ] Op. cit., disp. 33, sect. 3, n. 8, pp. 696-697.
[ 339 ] Eclesiástico 3:27.

168
Capítulo IV
Se a terceira parte do juramento contém algo para além da
obediência civil e contra a doutrina católica
1. Duplo gênero de tiranos. 2. O príncipe, embora governe como tirano, não pode ser
morto licitamente por autoridade privada. 3. A doutrina contrária é condenada como
herética. O erro de Wycliffe e Jan Hus. 4. Fundamento da verdadeira doutrina. 5. É
lícito assassinar o príncipe em defesa da própria vida? 6. E se for em defesa da
república? 7. Um tirano por usurpação é assassinado licitamente. 8. O que se requer
para que o tirano por usurpação possa ser assassinado licitamente por um
particular. 9. Outra limitação. 10. A sentença de outros. 11. A sua reprovação.
Responde-se a Agostinho. 12. Propõe-se outra dificuldade. 13. Explica-se a
dificuldade. 14. Outra dificuldade. Por que razão um rei herético é privado do
domínio do reino. 15-16. A explicação da dificuldade. Quando pode a república
privar de seu reino um rei que governa tiranicamente. 17. O reino cristão depende do
pontífice para depor um rei tirano. 18. Como pode o rei ser punido, depois de
sentença declaratória justa. 19. Uma pessoa privada não pode pela própria
autoridade matar um condenado à morte. 20. Pela doutrina transmitida se demonstra
um erro incluso no juramento. 21. Isto mesmo se demonstra pelas palavras do
juramento. Outra razão. 22. Duplo erro incluso na terceira parte do juramento.

1. DUPLO GÊNERO DE TIRANOS. – Após os juramentos precedentes adiciona-se um


terceiro, com estas palavras: Ademais juro que de todo o coração aborreço e abjuro
como ímpia e herética esta doutrina e proposição: que os príncipes excomungados
ou privados pelo papa podem ser depostos e mortos por seus súditos ou por
quaisquer outros.
Nestas palavras é necessário considerar três coisas: primeiro, a própria doutrina;
segundo, com que direito se exige dos súditos este juramento; terceiro, quanto estas
palavras repugnam àquilo que o rei prometeu, a saber, que mostraria que nada
contido neste juramento está para além da obediência civil.
Quanto ao primeiro: uma vez que o rei, solícito de sua própria segurança,
freqüentemente inculca esta questão vulgar – a saber, se é lícito a uma pessoa privada
ou aos súditos matar um rei tirano –, e visto que de sua verdadeira resolução depende
muito o entendimento desta e de outras partes, julguei necessário antepor algumas
palavras a seu respeito.[ 340 ]
Os teólogos, pois, distinguem dois tiranos: um é o que ocupou o reino não a justo
título, mas pela violência e injustamente, que na verdade não é rei nem senhor, mas
ocupa o seu lugar e traz a sua sombra; outro é o que, embora seja verdadeiro senhor e
possua o reino a justo título, reina tiranicamente quanto ao uso e ao governo; ou seja,
porque, ou converte tudo em proveito próprio, desprezando o comum, ou aflige

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injustamente os súditos, espoliando, matando, pervertendo ou perpetrando
injustamente coisas similares em público e com freqüência.
Tal foi, por exemplo, Nero, que Agostinho[ 341 ] numera entre os tiranos que às
vezes Deus permite dominar, assim interpretando o que se diz em Provérbios [8:15-
16]: Por mim reinam os reis, e por mim os tiranos possuem a terra.
E entre os cristãos deve-se enumerar sobremaneira nesta ordem o príncipe que
induz seus súditos à heresia, ou a outro gênero de apostasia, ou ao cisma público.
2. O PRÍNCIPE, EMBORA GOVERNE COMO TIRANO, NÃO PODE SER MORTO LICITAMENTE
POR AUTORIDADE PRIVADA. – A presente questão, portanto, trata principalmente do
príncipe legítimo que governa tiranicamente, porque é destes príncipes que fala o rei
da Inglaterra, e porque nós o temos nesta ordem dos reis legítimos.
Dizemos, portanto, que o príncipe, por causa do regime tirânico ou por causa de
qualquer crime, não pode ser justamente morto por alguma autoridade privada. A
asserção é comum e certa. Ensinou-a Santo Tomás em Sobre o Regime dos Príncipes,
[ 342 ] onde a confirma com ótimas razões morais. O mesmo ensina Caetano,[ 343 ]
citando outros modernos: Soto,[ 344 ] Luís de Molina,[ 345 ] Juan Azor,[ 346 ] o
cardeal de Toledo,[ 347 ] e os sumistas[ 348 ] em geral, sobre a palavra tirano.
Consentem em asseverar essa verdade os jurisperitos Bártolo,[ 349 ] Alexandre de
Imola,[ 350 ] Mariano Socino,[ 351 ] cardeal Zabarella,[ 352 ] João Antônio[ 353 ] e
outros, os quais cita e segue Jerônimo Gigante.[ 354 ]
O mesmo ensinam Lucas de Penna,[ 355 ] Conrado Bruno,[ 356 ] Tomás Actio,[
357 ] amplamente e bem, Restauro Castaldo[ 358 ] – que cita a outros mais –, Paris
del Pozzo,[ 359 ] que, como direi depois, pensa assim, embora fale confusamente. E
também Covarrubias.[ 360 ]
E esta verdade é conforme aos preceitos em I Pedro [2:13]: Por amor ao Senhor,
sujeitai-vos, pois, a toda ordenação humana, seja à do rei, etc. E abaixo [v. 18]:
Servos, sede obedientes aos vossos senhores, não só aos bons e moderados, mas
também aos díscolos.
3. A DOUTRINA CONTRÁRIA É CONDENADA COMO HERÉTICA. O ERRO DE WYCLIFFE E
JAN HUS. – Mas esta doutrina foi definida em sua espécie, e a contrária foi condenada
como herética no Concílio de Constança, seção 15, onde se condena este artigo: O
tirano pode e deve ser assassinado lícita e meritoriamente por qualquer vassalo ou
súdito seu, mesmo por meio de insídias secretas, branduras ou adulações sutis, não
obstante qualquer juramento prestado ou confederação feita com ele, sem esperar a
sentença ou o mandato de qualquer juiz. E o Concílio declara que são heréticos (e
que como tais devem ser punidos) os que defenderem pertinazmente este artigo.[ 361
]
Pois essa definição, como todos os autores modernos a entendem, é dada sobre um
tirano em regime, não sobre um tirano por usurpação do reino, o que se pode coligir
daquelas próprias palavras, uma vez que “vassalo” e “súdito” se dizem propriamente
com respeito a um verdadeiro príncipe e superior.[ 362 ]
Igualmente, as palavras não obstante qualquer juramento prestado incluem
também juramentos legitimamente feitos a verdadeiros reis, pois são palavras
universais.

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Daí não haver dúvida de que o autor daquele artigo falara ao menos
universalmente de todo tirano, quer por usurpação quer em regime, como consta de
suas palavras e exagerações. E também porque aquele artigo nasceu da doutrina de
Wycliffe[ 363 ] e Jan Hus,[ 364 ] que diziam que os senhores temporais, por qualquer
pecado moral, perdiam ipso facto o principado, e assim podiam ser censurados por
seus súditos a seu arbítrio, como se diz no mesmo Concílio, seção 8.[ 365 ]
O concílio, porém, condena o artigo por sua universalidade e precipitação (que
logo se manifestam em todos os seus artigos e amplificações) e o condena sobretudo
na medida em que compreende verdadeiros reis e príncipes que governam
tiranicamente.[ 366 ] Mas pode estender-se também ao tirano no sentido mais
próprio, que usurpa e retém o reino injustamente, se o artigo for afirmado
temerariamente com todos aqueles exageros, ou seja, não obstante qualquer
juramento prestado ou confederação feita com ele. Pois isto é falso e contra a razão
natural, que manda que se observem os pactos, principalmente os juramentos.
4. FUNDAMENTO DA VERDADEIRA DOUTRINA. – Mas a razão da asserção é que um rei
que governa tiranicamente, ou pode ser morto por qualquer súdito privado a título de
vingança justa e de punição, ou a título de defesa justa, de si ou da república.
O primeiro é de todo falso e herético, porque o poder de vingar ou de punir delitos
não está nas pessoas privadas, mas na superior ou na inteira comunidade perfeita.
Portanto, a pessoa privada que mata o seu príncipe por este título usurpa uma
jurisdição e um poder que não tem, e, portanto, peca contra a justiça.
A premissa maior é de fé certa, e Agostinho[ 367 ] a ensina no livro I da Cidade
de Deus, capítulos 17 e 18, dizendo: Não é lícito a algum poder privado matar um
homem culpado; tal licença de matar nenhuma lei concede. E diz nos capítulos 21 e
26: É homicida quem mata outro sem poder público ou sem sua ordem justa.
A razão disto é, primeiro, porque a vingança e a pena dos delitos ordenam-se ao
bem comum da república, e por isso não são confiadas senão àquele a quem foi
confiado o poder público de governar a república.
Segundo, também porque punir é ato que cabe a um superior e que procede da
jurisdição; portanto, se um privado o faz, é ato de jurisdição usurpada.
Terceiro, porque de outro modo se seguiriam infinita confusão e perturbação da
república, e dar-se-ia ocasião a sedições e homicídios. Mas se por tal razão é
homicídio o matar com autoridade própria um homem privado, mesmo que seja um
homicida, ladrão e assassino, muito maior crime é estender a mão com autoridade
própria contra um príncipe, por iníquo e tirano que seja.
E, finalmente, porque de outro modo não poderia haver nenhuma segurança para
os reis e príncipes, pois os vassalos facilmente se queixam de que são injustamente
tratados por eles.
5. É LÍCITO ASSASSINAR O PRÍNCIPE EM DEFESA DA PRÓPRIA VIDA? – O outro título de
defesa, embora talvez possa ter lugar em outro caso, não o tem, porém, naquele de
que tratamos, ou seja, se pode um particular matar o rei apenas por seu governo
tirânico.
E assim é necessário distinguir se defende a si mesmo ou a república. E, se ele
defende a si mesmo, é necessário distinguir se defende a vida, ou os membros, ou

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uma grave mutilação do corpo, ou apenas defende os bens externos e de fortuna.
Pois para defender somente os bens exteriores não será lícito matar o príncipe
invasor, tanto porque se deve preferir a vida do príncipe a estes bens exteriores, por
causa de sua dignidade, e porque representa a Deus de um modo singular, ocupando o
seu lugar, quanto também porque o príncipe tem certa administração superior de
todos os bens dos súditos, e, embora talvez se exceda, nem por isso se deve resisti-lo
até ao assassínio. Pois é suficiente que depois ele permaneça obrigado pela justiça a
restituir e compensar as coisas subtraídas, e que o súdito possa exigi-las, tanto quanto
puder fazê-lo sem violência.
Mas, se a defesa é da própria vida, que o rei tenta tirar violentamente, então será
ordinariamente lícito ao súdito defender-se a si mesmo, mesmo que daí se siga a
morte do príncipe; porque o direito de conservar a vida é máximo. Neste caso o
príncipe não está em tal necessidade que obrigue o súdito a perder a vida por ele; ao
contrário, ele próprio se pôs voluntária e iniquamente em tal perigo.
Mas digo “ordinariamente”, porque, se pela morte do rei a república se
perturbasse, ou padecesse outro grande incômodo contra o bem comum, então a
caridade pela pátria e pelo bem comum obrigaria a não assassinar o rei, mesmo com
perigo da própria morte; mas esta obrigação diz respeito à ordem da caridade, da qual
não tratamos aqui.
6. E SE FOR EM DEFESA DA REPÚBLICA? – Mas, se a discussão versa sobre a defesa da
própria república, isto não tem lugar a não ser que se suponha que o rei agride a
cidade em ato, para perdê-la injustamente e matar os cidadãos, ou algo similar.
E então certamente será lícito resistir ao príncipe, e até mesmo matá-lo, se não for
possível defender-se de outro modo, tanto porque, se isto é lícito para a própria vida,
muito mais o é para o bem comum, quanto também porque a própria cidade ou
república tem então justa guerra defensiva contra o invasor injusto, mesmo que seja
seu próprio rei. Portanto, qualquer cidadão, enquanto membro da república, e por ela
movido expressa ou tacitamente, pode no conflito defender a república do modo que
for capaz.
Mas agora não tratamos deste caso, em que o rei inflige guerra agressiva em ato
contra a própria república para destruí-la e matar a multidão dos cidadãos. Tratamos
de quando, reinando em tempo de paz, perturba a república de outros modos, e lhe é
nocivo; nesse caso não há lugar para a defesa pela força, nem a insídias contra a vida
do rei, porque então não se inflige violência efetiva contra a república, que seria lícito
repelir com violência. Por isso, agredir o príncipe seria então mover guerra contra ele
com autoridade privada, o que não é lícito de modo algum, porque a ordem natural,
conveniente à paz dos mortais, exige que a autoridade para suscitar guerra resida na
república ou no príncipe, como diz Agostinho.[ 368 ]
Igualmente porque, assim como não é lícito vingar os males cometidos por outro
matando-o com a própria autoridade, assim tampouco é lícito impedir os males
futuros que dele se temem, matando-o com a própria autoridade. É, de fato, a mesma
razão, e esta é evidente quanto aos malfeitores privados; igualmente, portanto, a razão
é maior quanto ao príncipe.

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7. UM TIRANO POR USURPAÇÃO É ASSASSINADO LICITAMENTE. – Porém, para que
possamos ilustrar mais essa doutrina e melhor aplicá-la à dita cláusula proposta do
juramento, é necessário primeiro falar do outro membro daquela divisão – isto é, do
tirano por usurpação – e de se nele tem lugar ou não a doutrina precedente.
Comumente se faz uma distinção entre esses dois gêneros de tiranos; pois se
afirma que o tirano por usurpação pode ser morto por qualquer pessoa privada que
seja membro da república que padece tirania, se desta não pode libertá-la de outro
modo. O mesmo pensa Santo Tomás,[ 369 ] que quase todos os doutores citados
seguiram, e que pode ser visto em Conrado Bruno,[ 370 ] que refere vários exemplos;
estes, porém, são coleções de atos justos e injustos, e por isso não provam o direito,
mas o uso.
O argumento, portanto, é que então não se está matando o rei ou príncipe, mas um
inimigo da república.
Do mesmo modo o próprio Santo Tomás,[ 371 ] na obra Sobre o Regime dos
Príncipes, livro I, capítulo 6, defende o que fez Aod (em Juízes 3): este, sendo pessoa
privada, matou Eglon, rei de Moab, a quem servia Israel, porque não era verdadeiro
rei do povo de Deus, mas inimigo e tirano. O mesmo ensina Alonso de Madrigal[ 372
] – e acrescenta que ele poderia ter sido morto por qualquer israelita.
Assim também, em Judite 13, esta matou a Holofernes. E deu-se fato semelhante
quando Jael, em Juízes 4, matou Sísara, ação louvada no capítulo seguinte.
Assim também Santo Tomás, na passagem anterior, aprova a sentença de Cícero,
que louvou os que mataram César, que não por justo título, mas pela força e pela
tirania usurpava o império.
Por isso também os doutores dizem que contra esse tirano não se comete crime de
lesa-majestade, porque nele não há nenhuma verdadeira majestade.
Dizem também que a um tirano assim não lhe cabe o nome de príncipe, e por isso
os decretos que dizem não ser lícito matar o príncipe não compreendem este tirano,
como se pode ver em Jerônimo Gigante.[ 373 ]
8. O QUE SE REQUER PARA QUE O TIRANO POR USURPAÇÃO POSSA SER ASSASSINADO
LICITAMENTE POR UM PARTICULAR. – Mas Santo Tomás acrescenta acima uma
limitação, a saber: que isso é lícito quando não há como recorrer a um superior por
quem se possa fazer um julgamento do invasor.
Tal limitação tem lugar sobretudo quando a tirania não procede do príncipe
supremo, mas é exercida por algum inferior. De fato, não só os reis, mas também os
senhores inferiores poderosos podem pela tirania usurpar algum domínio, jurisdição
ou magistratura.
Portanto, embora no ato da agressão o povo possa resistir ao invasor, ainda assim,
depois que se têm de fato a posse e o domínio, não podem matá-lo pela própria
autoridade, nem mover nova guerra contra ele, se podem recorrer a um superior.
Porque, como têm um superior, não lhes é lícito tomar a espada pela própria
autoridade; e isto será menos lícito a uma pessoa privada, pois, de outro modo, tudo
se perturbaria e nasceria grande confusão na república.
E, pela mesma razão, também quando não há superior a quem recorrer, é
necessário que a tirania e a injustiça sejam públicas e manifestas. Pois, se são

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duvidosas, não será lícito pela força expulsar o apossado, pois em caso de dúvida sua
condição é melhor, salvo se for também certo que sua própria posse fora tirânica.
Ademais, para que o assassínio de tal tirano seja lícito, é preciso que seja
necessário para obter a liberdade do reino. Pois, se o tirano pode ser expulso por outra
via menos cruel, não será lícito matá-lo imediatamente, sem poder maior e sem
exame da causa.
9. OUTRA LIMITAÇÃO. – Ademais, há de se entender a opinião comum, a não ser que
se interponham entre o tirano e o povo algum tratado, trégua ou pacto firmado por
juramento, como notou mais acima Alonso de Madrigal. Pois os pactos e juramentos
devem observar-se mesmo com os inimigos, salvo talvez no caso de aqueles serem
evidentemente iníquos e feitos sob coação.
Deve ajuntar-se também outra limitação, se se temem pela morte do tirano males
iguais para a república, ou ainda maiores do que os padecidos sob ele. E assim disse
Bártolo[ 374 ] que neste caso é lícito matar o tirano, não pelo bem privado, mas pelo
bem comum. Pois, se alguém mata o tirano para apossar-se do império por uma
tirania semelhante, não se escusa de culpa de homicídio, por causa desta nova tirania.
Igualmente, isso não será lícito se se crê que o filho do tirano (ou outro aliado
similar) há de infligir os mesmos males à república; porque então se faz o mal sem
esperança de um maior bem, e porque então a república não é verdadeiramente
defendida nem liberta da tirania, que é o único título que justifica tal morte.
Por fim, é necessário que a república não se oponha ao assassínio expressamente.
Pois, se ela expressamente o repugna, então não só não fornece autoridade a pessoas
individuais, mas também declara que tal defesa não cabe a ti, que nisto deves crer;
conseqüentemente, ter-se-á então que não é lícito à pessoa privada defender a
república pela morte do tirano.
10. A SENTENÇA DE OUTROS. – Não obstante tudo isto, não faltam autores a quem essa
distinção e sentença não aprazem, mas reputam que se deve dizer indistintamente que
não é lícito a uma pessoa privada matar um tirano, seja só em regime, seja por
usurpação.
Assim opina Castro,[ 375 ] na medida em que discorre do tema indistintamente. E
do mesmo modo entende o Concílio de Constança,[ 376 ] e todos os seus argumentos
tendem ao mesmo.
Azor o indicou mais expressamente, ao reprovar a referida opinião comum.[ 377 ]
Ele se funda, primeiro, no Concílio de Latrão, que fala de modo absoluto e geral
sobre o tirano. Segundo, em Agostinho,[ 378 ] que diz também em absoluto não ser
lícito matar alguém sem a administração pública. Terceiro, em Santo Tomás,[ 379 ]
que não diz que tal tirano é louvavelmente morto por alguma pessoa privada, mas diz
de modo indistinto que ele é louvavelmente morto. Quarto, em que nenhum malfeitor
pode ser morto justamente, nem o apossado pode ser efetivamente expulso, sem antes
ter sido ouvido e julgado. Nem é suficiente a evidência de crime perpetrado, se não
precede a sentença.
11. A SUA REPROVAÇÃO. RESPONDE-SE A AGOSTINHO. – Mas estas coisas pouco
obrigam contra a sentença recebida.

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Pois o Concílio de Latrão, como dissemos, não define uma proposição universal
negativa: “nenhum tirano pode ser morto”, mas antes condena a afirmativa universal:
“todo tirano pode ser morto”, e esta afirmação não é pronunciada absolutamente, mas
com muitas ampliações, e por isso sua definição se reduz a esta indefinida, de que
“nem todo tirano pode ser morto antes que contra ele se pronuncie uma sentença”,
donde não se pode tomar nenhum argumento contra a opinião comum.
A Agostinho respondo que aquele homem privado que desse modo mata o tirano
não o faz sem a administração pública, porque, ou o faz com a autoridade de uma
república que consente tacitamente, ou com a autoridade de Deus, que pela lei natural
deu a cada um poder de defender a si mesmo e a república contra a violência que
semelhante tirano faz.
A Santo Tomás respondemos que ele fala assaz claramente, pois diz no corpo do
artigo: Quando há faculdade para isto, alguém pode repelir tal domínio. Na solução
à quinta objeção, pela palavra alguém ele indica claramente uma pessoa privada,
tanto porque interpreta as palavras de Cícero sobre os assassinos de Júlio César,
quanto porque conclui assim: Pois então quem mata o tirano para libertar a pátria é
louvado e recebe prêmio.
Do último argumento, diz-se que ele apenas procede quando alguém, como pena
de um delito, deve ser morto ou privado de seus bens, que possui quietamente, sem
conflito atual,[ 380 ] formal ou virtual. No nosso caso, porém, não se trata de
vingança, mas de defesa, nem o tirano se apossa quietamente, mas por efetiva força;
porque, embora a república não mova guerra (porque não pode), ainda assim – como
nota com razão Caetano[ 381 ] – ela sempre nutre uma guerra implícita, porque
resiste o quanto pode.
12. PROPÕE-SE OUTRA DIFICULDADE. – Mas daí surgiria uma nova dificuldade, porque
segundo esta doutrina não haveria nenhuma diferença entre os dois casos, ou entre os
dois tipos de tiranos. De fato, também o tirano por usurpação não pode ser morto com
autoridade privada, mas pública. Ora, deste modo é também lícito matar um rei que
governa tiranicamente. Daí parte o seguinte argumento: o tirano por usurpação deve
ser morto, seja por vingança de seu crime, seja a título de defesa.
No primeiro sentido, já se disse que ele não pode ser morto por qualquer pessoa
privada com autoridade privada, tanto porque punir é ato de jurisdição e de um
superior, como dissemos acima, quanto porque nem mesmo a república ofendida por
tal tirano pode puni-lo deste modo, a não ser que haja conselho público e que a causa
seja conhecida e suficientemente julgada. E, por isso, para que a pessoa privada o
faça, não é suficiente o consenso tácito ou presumido da república, mas se requer
expressamente uma declaração de uma comissão especial ou ao menos de uma
comissão geral. Daí que também por este título não seja lícito a pessoas privadas
estranhas – e nem mesmo a pessoas públicas que não têm jurisdição sobre tal tirano –
matá-lo por este título sem expressa comissão da república ofendida.
Mas, se isto é lícito à pessoa privada apenas a título de defesa, nesse sentido não
há então nenhuma diferença entre tais tiranos; porque também a título de defesa é
lícito à pessoa privada matar um rei verdadeiro, que invade tiranicamente seu próprio
reino ou cidade, como dissemos.

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Igualmente, tal assassínio não é lícito pelo poder tacitamente concedido pela
república a seus membros, mas pela autoridade de Deus, que deu a cada um pela lei
natural a faculdade de defender a si mesmo e a sua pátria, e ainda qualquer inocente.
Portanto, matar um tirano por este título, não é lícito só aos membros da república
mas também aos estranhos, em ambos os casos e em ambos os tiranos. Logo, não há
diferença.
13. EXPLICA-SE A DIFICULDADE. – Respondo primeiro à última interrogação, sobre se é
verdade que um tirano que ocupa o reino sem justo título não pode ser morto
justamente por qualquer pessoa privada, a modo de vingança ou punição. De fato, é o
que demonstram os argumentos que apresentamos na primeira parte do dilema.
Assim, quanto a este ponto admito que não há diferença entre esses reis tirânicos
no tocante à razão absoluta de injustiça, embora no caso do rei em sentido próprio
isso seja crime muito mais grave e de lesa-majestade, o que não se dá com respeito ao
outro tirano, caso em que há simples injustiça e jurisdição usurpada. Resta, portanto,
que apenas por direito de defesa é lícito a pessoas privadas matar o tirano.
Porém quanto a isto há grande diferença entre este tirano e um rei corrupto.
Pois o rei, embora governe tiranicamente, enquanto não move uma efetiva guerra
injusta contra a república que lhe está sujeita, não lhe inflige violência efetiva, e por
isso com respeito a ele não há lugar para defesa, nem pode algum súdito por esse
título agredi-lo ou mover guerra contra ele.
Contudo, um tirano em sentido próprio, enquanto detém o reino injustamente e
domina pela força, sempre inflige em ato violência à república, e assim ela sempre
nutre contra ele uma guerra em ato ou virtual[ 382 ] – não vingativa, por assim dizer,
mas defensiva. E, enquanto a república não declara o contrário, sempre se crê que
quer ser defendida por qualquer de seus cidadãos, até mesmo por qualquer
estrangeiro; e, portanto, se ela não pode defender-se de outro modo senão matando o
tirano, é lícito a qualquer um do povo matá-lo.
Daí que a rigor também seja verdade que então não se faria tal coisa com
autoridade privada, mas pública, ou melhor, com a autoridade do reino que quer ser
defendido por qualquer cidadão enquanto membro e órgão seu, ou com a autoridade
de Deus, autor da natureza, que dá a cada homem o poder de defender o inocente.
Donde tampouco nisto há distinção entre os dois tiranos: de fato, nenhum deles
pode ser morto por autoridade privada, mas é sempre necessária a pública. A
diferença, porém, é que se crê que este poder foi outorgado a qualquer pessoa
particular contra aquele que é propriamente tirano, mas não contra o que é
propriamente senhor, devido à diferença já explicada.
14. OUTRA DIFICULDADE. POR QUE RAZÃO UM REI HERÉTICO É PRIVADO DO DOMÍNIO DO
REINO. – Mas disto nasce nova dificuldade, de solução necessária para o presente
propósito. Pois dessa última resolução sobre o tirano propriamente dito se segue que a
anterior, sobre um rei que governa tiranicamente, só procede antes que se dê uma
sentença de deposição contra tal rei, mas não depois dela – algo contra o qual protesta
o rei da Inglaterra, e que é digno de exame.
Pois a conseqüência tem, em primeiro lugar, grande fundamento no Concílio de
Constança, porque este fala apenas de quem mata o príncipe tirano com autoridade

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privada, sem esperar a sentença ou o mandato de qualquer juiz.[ 383 ] Assim,
efetivamente, o Concílio de Constança condenou a asserção contrária. Portanto, se
um juiz legítimo de tal rei, quem quer que seja ou possa ser, deu sentença justa conta
ele, pela qual ipso facto o depôs do reino, já não procede a definição do concílio.[ 384
]
Em segundo lugar, desaparece também a razão dada, e assim não terá lugar aquela
primeira asserção como foi proposta. Pois então já se supõe a esperada sentença justa
e legítima, e assim o agressor não procede com autoridade privada, mas em virtude da
sentença, e conseqüentemente como instrumento da autoridade pública.
Por último, legitimamente deposto o rei, já não é ele rei nem príncipe legítimo, e
conseqüentemente não pode valer-lhe aquela asserção que trata do rei legítimo. Ainda
mais: se tal rei, depois da deposição legítima, perseverando em sua pertinácia, retém
o reino pela força, começa então a ser tirano por usurpação, porque não é rei legítimo
nem possui o reino a justo título.
E isto fica ainda mais claro no rei herético. Pois pela heresia ele é ipso facto
imediatamente privado do domínio e da propriedade de seu reino de certo modo, pois,
ou este permanece confiscado, ou passa a um legítimo sucessor católico de direito – e
contudo não pode ser imediatamente privado do reino, mas o possui e o administra
justamente, até que seja condenado por uma sentença ao menos declaratória do crime,
segundo o capítulo Cum secundum leges (título De Haereticis).[ 385 ]
Após a sentença dada, no entanto, ele é privado do reino totalmente, de tal modo
que não possa possuí-lo a justo título. Portanto, desde então poderá ser tratado como
tirano em sentido pleno, e conseqüentemente poderá ser morto por qualquer pessoa
privada.
15. A EXPLICAÇÃO DA DIFICULDADE. QUANDO PODE A REPÚBLICA PRIVAR DE SEU REINO
UM REI QUE GOVERNA TIRANICAMENTE. – Esta dificuldade supõe ser possível dar-se
pena de deposição e sentença de privação do reino contra um rei soberano também
nas coisas temporais, o que o rei da Inglaterra se recusa a ouvir. Isto porém é muito
verdadeiro, e se colige evidentemente dos princípios postos no livro III; e o diremos
novamente nas linhas seguintes.
É grande a questão acerca de quem pode dar tal sentença. Brevemente, contudo,
supomos agora que esse poder de depor o rei pode residir, ou na própria república, ou
no Sumo Pontífice, embora de um modo diferente.
Na república ele se encontra apenas por modo de defesa necessária à sua
conservação, como disse acima no livro III, capítulo 3. Portanto, se um rei legítimo
governa tiranicamente, e não resta ao reino outro remédio para a sua defesa senão
expulsar e depor o rei, poderá a inteira república, com um conselho comum das
cidades e dos nobres, depor o rei, tanto pela força do direito natural, pelo qual é lícito
repelir a violência com a violência, quanto porque este caso necessário à própria
conservação da republica é entendido como exceção no pacto pelo qual a república
transfere seu poder ao rei. É deste modo que se deve entender o que disse Santo
Tomás:[ 386 ] que não é sedicioso resistir ao rei que governa tiranicamente,
sobretudo se o faz uma autoridade legítima da comunidade, e prudentemente e sem
maior detrimento do povo. Assim também expôs Santo Tomás em Sobre o regime

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dos príncipes (livro I, capítulo 6)[ 387 ] e assim o fizeram seus discípulos, Soto,[ 388
] Bañez[ 389 ] e Molina.[ 390 ]
Já alguns dos jurisperitos alegados falam confusamente sobre esse ponto, pois
Paris del Pozzo (acima) e Antônio de Massa[ 391 ] parecem afirmar que essa licença
é concedida também aos cidadãos individuais. Ao contrário, Restauro Castaldo[ 392 ]
repugna-o de tal modo que parece negá-lo também à comunidade. Ambos, porém,
devem abrandar-se segundo o que já dissemos.
16. Porém, no Sumo Pontífice esse poder reside como num superior que tem
jurisdição para censurar reis enquanto súditos seus – e mesmo os reis soberanos,
como mostramos acima.
Portanto, se os crimes são em matéria espiritual, como é o de heresia, ele pode
puni-los no rei diretamente, inclusive com a deposição do reino, se assim o postulam
a pertinácia do rei e a providência do bem comum da Igreja.
Se, por outro lado, os vícios são em matéria temporal, também podem, enquanto
pecados, ser corrigidos pelo poder direto. Porém, enquanto temporalmente nocivos à
república cristã, poderão ser punidos ao menos indiretamente, na medida em que o
regime tirânico de um príncipe temporal é sempre pernicioso também para a salvação
das almas.
17. O REINO CRISTÃO DEPENDE DO PONTÍFICE PARA DEPOR UM REI TIRANO. – Ainda
mais, deve acrescentar-se finalmente que, embora a república ou o reino dos homens
– considerando-se apenas a natureza da coisa tal qual existiu entre os gentios e agora
existe entre os pagãos – tenham o poder que dissemos (de defender-se de um rei
tirano e, para este fim, de depô-lo se for necessário), os reinos cristãos têm quanto a
isto certa dependência e subordinação com relação ao Sumo Pontífice.
Primeiro, porque o pontífice pode preceituar a algum reino para que não insurja
contra o seu rei sem consultá-lo, ou que não o deponha sem que ele primeiro conheça
a causa e a razão, por causa dos perigos morais e da perda das almas, que ocorrem
moralmente nesses tumultos populares, e para evitar sedições e rebeliões injustas.
Por isso lemos nas crônicas que em tais casos os reinos quase sempre consultavam
os pontífices, ou também lhes pediam que depusessem um rei inepto ou tirano.
Assim se relatou sobre Childerico, rei da Gália, no tempo do Papa Zacarias.[ 393 ]
E sobre Sancho II, rei de Portugal, no tempo de Inocêncio IV, contam largamente as
histórias de Portugal que fora deposto da administração régia pelo pontífice, embora
não privado do reino.[ 394 ]
Segundo, o reino cristão depende do pontífice em que este não só pode aconselhar
ou consentir que o reino deponha um rei pernicioso, mas também lhe pode ordenar e
coagir a fazê-lo, quando julgá-lo necessário para a salvação espiritual do reino e,
principalmente, para evitar heresias e cismas.
Porque então tem maximamente lugar o uso do poder indireto sobre as coisas
temporais com vistas a um fim espiritual, e em tal caso pode o pontífice por si mesmo
depor o rei imediatamente. Portanto, pode coagir o reino a realizá-lo, se for
necessário, pois de outro modo seu poder não só seria ineficaz, mas também
insuficiente.
E, por fim, porque tal preceito neste caso é justíssimo.

178
18. COMO PODE O REI SER PUNIDO, DEPOIS DE SENTENÇA DECLARATÓRIA JUSTA. –
Portanto, suposto esse fundamento, deve dizer-se, sobre o último ponto proposto, que
após um poder legítimo ter dado a sentença condenatória do rei sobre a privação do
reino, ou, o que é o mesmo, após sentença declaratória de um crime que tem tal pena
imposta por direito, aquele que deu a sentença ou alguém que dela foi encarregado
pode privar o monarca do reino, mesmo matando-o, seja por não poder fazê-lo de
outro modo, seja porque a sentença justa se estende também a esta pena. Não pode,
porém, qualquer pessoa privada matar imediatamente o rei deposto, tampouco repeli-
lo pela força, até que isto lhe seja preceituado, ou até que a comissão geral se declare
na própria sentença ou no direito.
A primeira parte se segue evidentemente do princípio precedente. Pois aquele que
pode condenar alguém justamente também pode executar a pena por si, ou por
auxílios necessários; pois, sem poder eficazmente coativo, o poder de determinar a
justiça seria vazio.
E por esta razão, como diz Agostinho,[ 395 ] o ministro do rei age retamente
quando mata um homem por preceito do rei, porque então executa mais o poder do
rei do que o seu próprio.
Assim, portanto, quando a república pode depor o rei justamente, os seus
ministros agem retamente ao coagir e matar o rei, se houver necessidade, porque já
não se obra com poder privado, mas com poder público.
E assim disse com razão Soto[ 396 ] que, embora aquele que é tirano apenas no
governo não possa ser morto por qualquer um, contudo, uma vez dada a sentença, diz
ele, qualquer um pode ser instituído ministro da execução. E, do mesmo modo, se o
Papa depõe o rei, este pode ser expulso ou morto por aqueles que o Papa
comissionou. E, se não ordenar a execução a ninguém, esta ficará a cargo do legítimo
sucessor no reino ou, se não houver nenhum, ela caberá ao próprio reino.
E assim ensinam os doutores que se deve atuar quanto ao crime de heresia,
quando o rei herético é declarado privado do reino por uma sentença pública, como se
pode ver em Castro[ 397 ] e em Diego de Simancas.[ 398 ]
19. UMA PESSOA PRIVADA NÃO PODE PELA PRÓPRIA AUTORIDADE MATAR UM
CONDENADO À MORTE. – Ora, a partir dessas coisas se prova facilmente a outra parte,
porque, embora alguém seja condenado à morte justamente, não pode qualquer
pessoa privada matá-lo a seu próprio arbítrio, mas apenas se uma autoridade o
preceituar, ou se for movido de outro modo. Porque ninguém pode matar a outro
senão aquele superior que tem em si tal poder, ou um ministro seu; e não se pode
dizer ministro aquele que não é movido por um poder principal.
Se isto é verdadeiro com respeito a qualquer malfeitor, certamente com maior
razão o será com respeito a um príncipe.
Talvez alguém diga que é suficiente a moção implícita ou tácita da república, que
por depor o rei quer ipso facto que todos o expulsem e coajam, e se resistir, que o
matem. Mas isto é falso, e cogitado ou imaginado contra a razão.
Pois o juiz que condena um herético ou malfeitor privado não dá imediatamente a
todos faculdade para puni-lo. Portanto, nem a república nem o Papa, ao condenar um
rei herético ou de outro modo tirânico, concedem tal licença a todos, mesmo tácita ou
implicitamente. De fato, por nenhuma razão justa se pode presumir tal licença contra

179
um príncipe mais do que contra outros. Pois são sempre necessários a prudência e os
justos modos na execução, e é maior o perigo de perturbação ou de excesso na coação
da pessoa do príncipe, do que na dos outros.
Por isso, se o Papa declara por uma sentença que o rei é herético e está deposto do
reino, e nada mais declara sobre a execução, não pode algum príncipe imediatamente
mover-lhe guerra, porque, nem lhe é superior nas coisas temporais, como supomos,
nem recebeu do Papa tal poder apenas pela força da sentença.
E por isso, como dizíamos, só o seu legítimo sucessor, se é católico, tem então
essa faculdade; ou, se ele é negligente ou não há sucessor, a comunidade do reino o
sucede neste direito, contanto que seja católica. Se esta pedir auxílio de outros
príncipes, estes poderão prestá-lo, como é evidente por si. Já se o pontífice (como o
fez várias vezes) conceder a outros reis poder de invadir tal reino, então isto poderá
ser feito justamente, porque, nem falta uma causa justa, nem lhe falta o poder.
20. PELA DOUTRINA TRANSMITIDA SE DEMONSTRA UM ERRO INCLUSO NO JURAMENTO. –
Portanto, desta doutrina verdadeira e certa provamos que a terceira parte do
juramento contém, por vários capítulos, excesso de poder, injustiça contra os bons
costumes e erro contra a doutrina verdadeira e católica.
Provo a primeira: com que autoridade o rei coage seus súditos a jurar como
herética uma proposição que a Igreja Católica até agora não condenou? Se o rei, de
fato, diz que ela fora condenada no Concílio de Constança, primeiro não o pode fazer
com coerência, porque ele considera como nada a autoridade dos concílios,
especialmente dos modernos.
Além disso, onde lê o rei no Concílio de Constança a expressão: Os príncipes
excomungados ou privados pelo papa? Ou esta: Por seus súditos ou por outros
quaisquer? Como, portanto, estas expressões adicionadas à proposição transformam a
ela e ao seu significado em algo muito diferente, tal proposição se atribui ao concílio
por uma ilação falaz e ilusória.
E, se não é com a autoridade do concílio que o rei condena esta proposição, mas
com a sua, excede sem dúvida seu poder e abusa de um poder que não tem.
Além disso, é admirável que muitas vezes despreze o poder do Papa de definir as
coisas da fé, e ouse arrogá-lo para si; pois, embora não diga isto com palavras,
professa-o de fato. Nisto também é pouco consistente consigo mesmo, pois, noutra
passagem da mesma Apologia,[ 399 ] gloria-se de não forjar novos artigos de fé ao
modo dos pontífices.
Por fim, como não considere nada como de fé senão o que se contém na Escritura,
é necessário que o rei nela nos mostre onde a proposição é condenada como herética
ou contrária à revelação divina, de tal modo que se deva considerá-la herética.
Certamente, embora São Paulo tenha dito em Romanos [13:1]: Toda alma esteja
sujeita às potestades superiores, nunca acrescentou que “todos estejam sujeitos aos
poderes excomungados ou privados pelo Papa”, nem se pode coligir uma idéia da
outra, porque são muito diferentes, para não dizer opostas, pois um monarca privado
de seu reino já não é uma autoridade superior.
E daqui concluo finalmente que a profissão do juramento quanto a essa parte é
uma confissão da autoridade e do poder régios, tanto para condenar à vontade como
heréticas quaisquer proposições, quanto para propor aos fiéis autenticamente o que

180
devem crer com fé ou o que devem protestar como herético – o que, da parte do rei, é
excesso e usurpação do poder espiritual, e, da parte dos que confessam tal juramento,
é a virtual profissão de uma fé falsa.
21. ISTO MESMO SE DEMONSTRA PELAS PALAVRAS DO JURAMENTO. OUTRA RAZÃO. –
Além disso, pelas mesmas palavras se evidencia que o rei exige nesse juramento não
só a obediência civil ou o compromisso com ela. Pois detestar sob juramento uma
proposição como herética é algo que excede claramente a obediência civil, de ordem
muito inferior à fé cristã – maximamente quando tal preceito é novo na Igreja, de tal
modo que o rei não só coage o súdito cristão a detestar uma proposição condenada
pela Igreja (o que um rei católico pode às vezes fazer, observando o modo devido),
mas também o coage a detestar uma proposição que ele condena com sua própria
autoridade e de modo inédito, como o faz agora.
Por isso também permanece suficientemente provado que esse juramento é injusto
da parte do rei, porque de muitos modos excede seu poder, e assim é uma coação
violenta e uma usurpação da jurisdição alheia.
Já da parte dos fiéis também é injusto aceitá-lo, seja pela razão geral, seja porque
jurariam coisa ilícita ou mentirosa. Pois, se crêem que a proposição é herética por
apenas conter a autoridade do rei, por isso mesmo o juramento é condenável; e muito
mais porque a proposição que nele se condena é veracíssima e certa, conforme os
verdadeiros princípios da fé, como provamos no livro III.
Se, por outro lado, abjuram de modo exterior uma proposição que em sua mente
não crêem ser herética, cometem manifesto perjúrio, como é evidente por si. E, além
disso, tal profissão contém uma especial e própria injúria contra o pontífice, cujo
poder e obediência negam por temor humano.
22. DUPLO ERRO INCLUSO NA TERCEIRA PARTE DO JURAMENTO. – Por fim, do que
dissemos depreende-se facilmente que essa parte do juramento também envolve
doutrina errônea.
O primeiro erro é que no pontífice não haveria poder para depor um rei herético
ou cismático, que conduz e perverte seu reino ao mesmo cisma e à mesma heresia. De
fato, a profissão deste erro se faz principalmente e mais diretamente por aquelas
palavras do que por outras, como é patente de modo imediato para qualquer leitor, e
como se provou de múltiplos modos acima.
Outro erro, menos expresso nas palavras e que está latente na mesma sentença e
nela contido virtualmente, é que o rei temporal poderia, em coisas pertencentes à
doutrina da fé e à detestação das heresias, exigir de seus súditos fidelidade até sob
juramento. E ainda mais: também nisto se deveria preferir a sentença do rei à do
pontífice, o que, sem dúvida, é certa profissão do primado do rei temporal sobre as
coisas espirituais e eclesiásticas, pois não há nada maior no primado de Pedro, nem
nada mais necessário para a conservação da Igreja e para sua união, do que a
soberana autoridade para propor coisas de fé e condenar heresias – autoridade que o
rei, por aquelas palavras, arroga para si.
Portanto, a profissão de tal juramento é a profissão manifesta de cisma e de erro;
os verdadeiros católicos estão obrigados em consciência a recusá-lo.

181
[ 340 ] As palavras em questão estão expostas no Livro V do presente tratado, não traduzido nesta edição.
[ 341 ] De Civitate Dei, V, 19 (PL 41, 166).
[ 342 ] D. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici Opuscula Omnia, Opusculum XX: De Regimine Principum,
Roma, 1570, lib. I, cap. 6, fol. 163.
[ 343 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Lyon, 1554, q. 64, 3, fol.
104.
[ 344 ] DOMINGO DE SOTO, De iustitia et iure, Lyon, 1559, V, q. 1, art. 3, pp. 288-290.
[ 345 ] De Iustitia et iure, Mainz, 1659, vol. IV, trat. III, disp. 6, n. 2, col. 539-540.
[ 346 ] Institutionum Moralium, Roma, 1600, p. 1, lib. VIII, cap. 12, q. 17; cap. 26, q. 7, col. 966A-B; p. 3, lib.
II, cap. 2, q. 1, col. 130; cap. 7, q. 30, cols. 151-2.
[ 347 ] FRANCISCO DE TOLEDO HERRERA, Instructio Sacerdotum, Rouen, 1636, lib. V, c. 6, n. 17, p. 738.
[ 348 ] SILVESTRO MAZZOLINI, Summae Sylvestrinae Quae Summa Summarum Merito Muncupatur Pars IIa,
Veneza, 1587, v. “Tyrannus”, fol. 363.
[ 349 ] BÁRTOLO DE SASSOFERRATO, Consilia, Quaestiones et Tractatus, Veneza, 1585, Tractatus de Guelphis
et Gibellinis, n. 8, fol. 151.
[ 350 ] Consilia seu responsa, Veneza, 1590, vol. 6, cons. 13, n. 2, fol. 10.
[ 351 ] Consilia, Veneza, 1571, vol. 3, cons. 68, ff. 95-103.
[ 352 ] FRANCISCO ZABARELLA, Commentaria in Clementinam, Veneza, 1602, De sententia & re iudicata, c. 2
(Pastoralis), 13, fol. 89.
[ 353 ] JOÃO ANTÔNIO DE SAN GIORGIO, In Secundam Decretorum Partem Commentaria, Veneza, 1579, c. 2,
q. 1, c. 7, n. 25.
[ 354 ] HIERONYMUS GIGAS, Tractatus de crimine laesae maiestatis, Spirae Nemetum apud B. Albinum, 1598,
q. 65, nn. 1-8, pp. 128-9.
[ 355 ] In tres Codicis Iustiniani Imperatoris posteriores libros luculentissima Commentaria, Ne armorum
usus, Lyon, 1583, lib. II, cod. 11, 46, 1, f. 169v.
[ 356 ] De seditionibus, Mainz, 1550, lib. V, c. 2, pp. 206-8.
[ 357 ] De ludo scacchorum in legali methodo tractatus, H. Concordiam, 1583, q. 2, n. 50, f. 9.
[ 358 ] Amplissimus Tractatus de Imperatore, Roma, 1540, q. 82, ff. cxlvii-cxlviii.
[ 359 ] De Syndicatu, Lyon, 1548, § An liceat occidere regem tyrannum, ff. 11-12.
[ 360 ] DIEGO DE COVARRUBIAS E LEIVA, Epitome in quartum decretal., Lyon, 1558, cap. 3, § 4, n. 6, fol. 45.
[ 361 ] Mansi 27, 765E; Conc. Constantiense, a 1414-18, s. 15. COD: 432.
[ 362 ] O termo técnico latino “tyrannus in titulo” sói verter-se como “tirano por usurpação” e refere-se ao
tirano que, tendo de seu cargo apenas o título, encontra-se em tal posição por usurpar um poder que
legitimamente caberia a outrem; distingue-se do tirano em regime (ou em exercício), que, fazendo uso de
poder legitimamente seu, atende apenas a seu próprio bem particular, em detrimento do bem comum. [N. T.]
[ 363 ] JOHN WYCLIFFE, Tractatus de civili dominio, Londres, 1885, lib. I, cap. 3, pp. 16-25.
[ 364 ] JAN HUS, Historia et monumenta Joannis Hus atque Hieronymi Pragensis confessorum christi,
Nuremberg, 1558, De Decimis, III, fol. cxxxii.
[ 365 ] Mansi 27, 629E-640B; Conc. Constantiense, a 1414-18, s. 8, art. 15. COD: 412.
[ 366 ] V. nota 361 supra.
[ 367 ] De Civitate Dei, I, cap. 17 (PL 41, 31); cap. 21 (PL 41, 35) e 26 (PL 41, 39).
[ 368 ] Contra Faustum Manichaeum, XXII, cap. 75 (PL 42, 448).
[ 369 ] Commentum in Lib. II Sententiarum, dist. 44, q. 2, a. 2, corpus e ad 5.
[ 370 ] De seditionibus, Mainz, 1550, lib. VI, c. 3, pp. 257-267.
[ 371 ] D. Thomae Aquinatis Doctoris Angelici Opuscula Omnia, Opusculum XX: De Regimine Principum,
Roma, 1570, lib. I, cap. 6, fol. 163.
[ 372 ] Commentaria in Iudices et Ruth, Veneza, 1596, In Librum Iudicum, cap. 3, q. 26, fol. 34.
[ 373 ] HIERONYMUS GIGAS, Loc. cit.
[ 374 ] BÁRTOLO DE SASSOFERRATO, Consilia, Quaestiones et Tractatus, Veneza, 1585, Tractatus de Guelphis
et Gibellinis, n. 9, fol. 151.
[ 375 ] Adversus omnes haereses, Paris, 1564, XIV, v. “Tyrannus”, fol. 253.
[ 376 ] Mansi 27, 531-1215.
[ 377 ] JUAN AZOR, Institutionum Moralium, Roma, 1600, p. 1, lib. VIII, cap. 12, q. 17, col. 966A; Colônia,
1608, p. 2, lib. XI, cap. 5, col. 1674.
[ 378 ] De Civitate Dei, I, cap. 21 (PL 41, 35) e cap. 26 (PL 41, 39).
[ 379 ] Commentum in Lib. II Sententiarum, dist. 44, q. 2, art. 2.
[ 380 ] O termo “atual” tem aqui acepção técnica, e significa “em ato”, “efetivo”. [N. T.]
[ 381 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Lyon, 1554, q. 64, art. 3,
fol. 103.

182
[ 382 ] A virtualidade corresponde à condição daquilo que não é atual – ou seja, não é efetivo – mas que pode
vir a efetivar-se. [N. T.]
[ 383 ] Mansi 27, 765E.
[ 384 ] Mansi 27, 629E-640B; Conc. Constantiense, a 1414-18, s. 8, art. 15. COD: 432.
[ 385 ] Sextus liber Decretalium, Paris, 1513, VI, tit. 2, cap. 19 (Cum secundum leges), fol. cciiii.
[ 386 ] S. Th., IIª-IIae, q.42, a. 2 e 3.
[ 387 ] V. nota 371 supra.
[ 388 ] V. nota 344 supra.
[ 389 ] DOMINGO BAÑEZ, Decisiones de Iure & Iustitia, Veneza, 1595, q. 64, art. 3, dub. 1, p. 205.
[ 390 ] LUÍS DE MOLINA, De Iustitia et iure, Mainz, 1659, vol. IV, trat. III, disp. 6, n. 2, cols. 533-4.
[ 391 ] Contra Usum Duelli, Roma, 1554, nn. 78 e 79, pp. 80-2.
[ 392 ] V. nota 358 supra.
[ 393 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, II, causa XV, q. 6, c. 3 (Alius), p. 1014.
[ 394 ] Sextus liber Decretalium, Paris, 1513, I, tit. 8, cap. 2 (Grandi), fol. lxvii.
[ 395 ] De Civitate Dei, I, 26 (PL 41, 39).
[ 396 ] V. nota 344 supra.
[ 397 ] ALFONSO DE CASTRO, De iusta haereticorum punitione, Antuérpia, 1568, lib. II, cap. 7, ff. 157-163.
[ 398 ] De catholicis Institutionibus, Roma, 1575, tit. 46, n. 75, p. 372.
[ 399 ] Op. cit., p. 13.

183
Capítulo V
Da última parte do juramento
e dos erros nela contidos
1. Na última parte do juramento os erros postos acima são repetidos e ampliados. 2-
3. O pontífice pode isentar do juramento de fidelidade os súditos de um herege. 4. A
mesma verdade é confirmada por outro argumento. 5. Este juramento não obriga por
si. 6. Esta forma de juramento atribui ao rei a soberania espiritual. 7. Nas últimas
palavras do juramento itera-se a profissão de todos os erros precedentes. Em outro
capítulo mostra-se que ali se comete perjúrio.

1. NA ÚLTIMA PARTE DO JURAMENTO OS ERROS POSTOS ACIMA SÃO REPETIDOS E


AMPLIADOS. – Na última parte do juramento quase os mesmos erros são repetidos, e
por isso não resta praticamente nada a acrescentar sobre ela. Mas, porque estes erros
são parcialmente mais explicitados e ampliados, e porque parcialmente também se
aumenta a perversidade do juramento, deve-se apontar brevemente cada um deles e
expô-los de tal modo que possam ser facilmente entendidos por todos.
Primeiro, portanto, abjuram-se novamente a autoridade e o poder do pontífice com
estas palavras: E por fim creio, e resolvo em minha consciência, que nem o papa, nem
outro qualquer, tem poder de isentar-me deste juramento ou de qualquer parte sua.
Por estas palavras, afirma-se abertamente a seguinte proposição: “O Papa não
pode isentar os súditos do rei temporal de um juramento de fidelidade.” Porque o que
se afirma sobre isso no juramento não decorre de uma razão particular, nem decorre
de uma dignidade que seria maior no rei da Inglaterra do que em outros reis
temporais, como é evidente por si, e como professa abertamente o próprio rei no seu
Prefácio.[ 400 ]
Mas quando ele diz: o papa não pode, etc., isso se entende simpliciter, isto é, “de
modo algum”, “por nenhuma causa” e “em nenhum caso”, pois é isto que as palavras
significam segundo o sentido e o entendimento chãos e comuns, do modo que o
próprio rei quer, logo depois, que as palavras do juramento sejam aceitas. Ademais,
pela parte final do juramento e pela primeira parte faz-se suficientemente claro que é
esta a mente do rei.
2. O PONTÍFICE PODE ISENTAR DO JURAMENTO DE FIDELIDADE OS SÚDITOS DE UM
HEREGE. – Mas uma proposição assim é herética, porque é contrária ao poder de ligar
e desligar dado a São Pedro, como sempre o entendeu e praticou a Igreja Católica.
Pois assim os súditos de um herege qualquer, que é denunciado publicamente como
herético por uma sentença legítima, estão eximidos ipso facto do juramento de
fidelidade, segundo o decreto de Gregório IX;[ 401 ] e Santo Tomás explica o poder e
a razão justíssima da pena.[ 402 ]

184
De modo similar, Urbano II[ 403 ] e Gregório VII[ 404 ] (presidindo o Sínodo
Romano) isentam qualquer um do juramento de fidelidade prestado a um senhor que
foi publicamente excomungado e denunciado. O vínculo de juramento não é ali
tolhido de todo e simpliciter, mas é como que suspenso pelo tempo em que o
excomungado perseverar contumaz em sua censura.
Mas isso é diferente de quando o rei ou o príncipe são depostos e privados do
domínio do reino por heresia ou outros crimes, pois neste caso o juramento é tolhido
de todo e quase anulado, por se subtrair a sua matéria. E deste modo Inocêncio IV,
com o I Concílio de Lyon, eximiu do juramento de fidelidade todos os súditos do
imperador Frederico II;[ 405 ] e pusemos outros exemplos acima (livro III, cap. 23[
406 ]), nos quais se mostra o antigo e universal parecer da Igreja, que é a melhor
intérprete da Escritura.
Pois, se todos os direitos dizem que o costume humano é o melhor intérprete das
leis humanas, por que a lei dada por Cristo e o poder de ligar e desligar atribuído por
Ele a Pedro não teriam como os melhores intérpretes o costume universal e
antiquíssimo da Igreja e seu uso de tal poder? Poder este que os próprios pontífices,
que dele se serviram, defenderam com soberana autoridade e doutrina;
principalmente Gregório VII,[ 407 ] Inocêncio III[ 408 ] (na epístola ao Duque de
Caríngia) e Bonifácio VIII.[ 409 ]
3. Pois, se o rei não crê nessa proposição – fundada na Escritura, declarada com a
autoridade dos pontífices e dos concílios, e recebida até agora por um consenso
comum –, com que direito e com que autoridade quer coagir todos os seus súditos a
crer na falsidade contrária, a afirmá-la com sua boca, e a confirmá-la por juramento?
E como podem eles resolver em sua consciência, como se diz no juramento, crer e
jurar sem razão ou motivo?
A não ser que creiam que o rei, só com seus ministros, tenha maior autoridade
para confirmar seu erro, e para exigir fidelidade a ele, do que a Igreja Romana e
universal, com os Sumos Pontífices que ensinaram esse tema com uma tradição e um
consenso tão constantes.
Pois, se é isto que tenciona o rei, e se obriga seus súditos a esta fidelidade, é
necessário que reconheça que nesse juramento ele não contende apenas pela
jurisdição temporal, mas pelo primado espiritual.
4. A MESMA VERDADE É CONFIRMADA POR OUTRO ARGUMENTO. – Explico também este
ponto de outra maneira evidente.
Pois é contrário à razão natural dizer que ninguém pode isentar-se de uma
promessa confirmada em juramento devido à alteração da matéria, removendo-a e
anulando-a. Pois, embora alguém prometa em juramento restituir um depósito, o
depositário está eximido do juramento se o outro cede de seu direito. Disto se tem
que, se tal alteração se faz por um poder superior, igualmente se tolhe a obrigação de
fidelidade.
Isto também reconhecia Cláudio Trifonino, o jurisconsulto, na lei Bona Fide[ 410
] e seguintes sobre o mesmo tema, ao dizer que, se alguém aceita um depósito dando
fé de restituí-lo ao seu senhor, e depois o senhor é condenado pelo pretor e seus bens
são confiscados, o depositário estará livre da fé de restituir-lhe o depósito, e deverá

185
depositá-lo no tesouro público, porque, como diz abaixo: A razão de justiça postula
que a fidelidade a ser observada num contrato seja considerada não só no tocante
aos contratantes, mas também com respeito a outras pessoas a quem diz respeito o
que é tratado. E isto é maximamente verdadeiro quando intervêm a autoridade de um
superior e o bem público.
Tampouco duvidará o rei, como opino, que ele exerce um poder similar em seu
reino, por exemplo, ao privar dos bens um súdito descoberto em crime de lesa-
majestade, e, conseqüentemente, transferindo todas as suas ações ou promessas a si
mesmo ou ao fisco, seja anulando-as de todo, seja perdoando-as aos devedores, ou
remitindo-as. Donde se segue necessariamente que, embora estivessem confirmadas
por juramento, os devedores permanecem isentos do juramento.
Portanto, o rei não pode negar que este modo de isentar pode ser honesto e válido,
se aquele que isenta tem o poder de dispor da matéria do juramento, ou do direito do
credor, do senhor ou do promissário.
Portanto, ou o poder de isentar os súditos de um juramento feito a um rei herético
e pernicioso aos súditos cristãos é negado ao Sumo Pontífice de modo muito injusto e
contrário a toda razão, ou este é negado por nenhum outro fundamento senão o de que
o rei crê que o pontífice não tem poder para coagir e punir os reis temporais.
E assim essa parte se reduz às anteriores, e contém abertamente uma profissão de
erro contra o primado do pontífice e uma asserção herética sobre o primado do rei e
sua absoluta desobrigação de obediência ao pontífice, maximamente quanto à força
coativa mediante penas temporais.
5. ESTE JURAMENTO NÃO OBRIGA POR SI. – Por fim, como o rei fala desse juramento
em particular e não de juramentos em geral, não omitirei que – num sentido
verdadeiro e católico, embora contrário à mente do rei – se há podido dizer que
ninguém é capaz de isentar o jurador do presente juramento, e isto porque ninguém
que não esteja ligado pode ser desligado, em sentido próprio. Ora, o presente
juramento não liga quem o jura, porque um juramento não pode ser vínculo de
iniqüidade, tal qual este o é. Portanto, ninguém pode ser dele eximido.
Contudo, dele pode alguém ser declarado absolvido ou não ligado, coisa que o
pontífice pode fazer com especial autoridade, e o fez suficientemente quando
declarou que o juramento é ilícito e contrário à salvação eterna.
Donde se segue, de fato, que não apenas não se deve prestá-lo, mas que, se isto foi
feito, ele não deve ser observado. E daí ocorre também que em outro sentido o
pontífice pode isentar daquele juramento já feito, isto é, do pecado cometido na
prestação de tal juramento, desde que preceda uma digna penitência como disposição
necessária.
6. ESTA FORMA DE JURAMENTO ATRIBUI AO REI A SOBERANIA ESPIRITUAL. – Segundo,
nessa mesma parte se faz confissão do supremo poder régio sobre as coisas
espirituais, e se o subtrai do Sumo Pontífice, com estas palavras: Juramento que
reconheço ter sido legitimamente apresentado a mim por uma autoridade justa e
plena. E depois o juramento é confirmado com estas palavras: Tudo isto reconheço e
juro claramente e sinceramente.

186
Que a confissão está contida nas palavras é evidente pela expressão por uma
autoridade plena. Pois, embora o termo soberana tenha sido evitado de propósito
para não aterrorizar os mais simples, o termo plena, entendido segundo a mente do rei
durante todo o discurso, é posta como eqüipolente, pois não se diz que tal juramento
procede de uma autoridade plena senão porque não há entre os homens um poder
capaz de impedi-lo, proibi-lo ou retirá-lo; este é, portanto, um poder soberano.
Ademais, como o próprio juramento é expressamente contrário ao poder do Papa,
quando se acrescenta foi-me legitimamente apresentado por poder pleno,
evidentemente o significado é que o poder régio que apresenta o juramento é superior
ao poder do Papa, ou lhe é equivalente.
Isto, portanto, que o rei professa em outros lugares de modo expresso, está aqui
envolto veladamente, no próprio emprego do poder usurpado. Por isso, quem
consente com tal juramento jura claramente que o ato de um poder usurpado é ato de
poder legítimo, o que é perjúrio aberto, e contrário à confissão da fé católica.
E, finalmente, por essas palavras se prova também que o rei não exige pelo
juramento apenas obediência civil, pois que postula o reconhecimento e a confissão
de seu poder plenário para decidir contra o poder do Papa.
7. NAS ÚLTIMAS PALAVRAS DO JURAMENTO ITERA-SE A PROFISSÃO DE TODOS OS ERROS
PRECEDENTES. EM OUTRO CAPÍTULO MOSTRA-SE QUE ALI SE COMETE PERJÚRIO. –
Terceiro, pelas últimas palavras acrescenta-se um novo juramento, deste teor: Faço
de coração este reconhecimento e esta corroboração, voluntariamente e
verdadeiramente, na veraz fé de varão cristão, e assim me ajude Deus. Esta é uma
nova confirmação, e uma repetição de todos os erros precedentes e de sua confissão,
não só externa, mas também interna, de tal modo que quem jura não pode escusar-se
de infidelidade interna ou de perjúrio.
E, além disso, julgo que a expressão voluntariamente, que envolve uma aberta
mentira, é suficiente para que os católicos não possam jurar sem perjúrio. Pois é
evidente que não prestam o juramento voluntariamente, mas coagidos com ameaças e
terrores, porque, como o mesmo rei dissera um pouco antes, aqueles que renunciam a
tal juramento lançam-se e atiram-se miseravelmente ao perigo de perder a vida e os
bens.[ 411 ] De que modo, portanto, podem em verdade jurar que prestam tal
juramento voluntariamente?
De fato, voluntariamente não significa qualquer vontade, mas uma que não é
coagida por medo grave e por poderosa violência humana, os quais poderiam pairar
sobre quem jura. Ora, os católicos sabem que não têm tal vontade, e o próprio rei não
o ignora. Logo, também nesse capítulo o juramento é iníquo, porque envolve e exige
perjúrio.

[ 400 ] Praefatio, pp. 1-3.


[ 401 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, liv. V, tít. 7, cap. 16 (Absolutos), fol. cccclix.
[ 402 ] S. Th., IIª-IIae, q. 12, a. 2.
[ 403 ] Decretum Gratiani, Veneza, 1595, II, causa 15, q. 6, can. 5 (Iuratos Milites), p. 1014.
[ 404 ] Op. cit., II, causa 15, q. 6, can. 4 (Nos sanctorum), p. 1014.
[ 405 ] Sententia contra Fridericum Imperatorem ab Innocentio Papa IV, in Concilio lata, Mansi 23, 613C-
619A; Conc. Lugdunense I a. 1245. COD: VI 2, 14, 2. P. 283. Cf. Sextus liber Decretalium, Paris, 1513, II, tit.
14, cap. 2, fol. cxxii.
[ 406 ] Ausente desta edição.

187
[ 407 ] Registrum, VIII, epist. 21 (PL 148, 594-601).
[ 408 ] Decretales Gregorii IX, I, tít. 6, c. 34 (Venerabilem), fol. xlix.
[ 409 ] Extravagantes Communes, Paris, 1511, lib. I, 8, 1 (Unam sanctam), fol. ix.
[ 410 ] Corpus Iuris Civilis Romani, Digesta, Nápoles, 1828, t. II, lib. XVI, tit. III, 1, 31, pp. 47-8.
[ 411 ] Apologia, p. 5.

188
Capítulo VI
Consideram-se as razões por que
o juramento é defendido
1. Prefácio. 2. Os fundamentos do rei. 3. Daí se deduzem três conseqüências. 4. O
último tipo de prova. 5. Resposta ao fundamento do rei. Pelo título do juramento se
prova que este foi inventado para discernir os católicos dos sectários. 6. Pelo título
do segundo juramento se colige que o rei quer o primado nas coisas espirituais. O
fim principal deste juramento é a negação do poder pontifício. 7. Isto se confirma
pela equivocação das palavras. O poder civil se subordina ao espiritual. 8. Conclui-
se que o juramento postula mais do que fidelidade civil. 9. Replica-se a uma objeção
latente do rei. 10. Qual é a obediência civil dos súditos fiéis. 11. A obediência devida
aos reis é de direito das gentes. Por que razão se pode dizer de direito natural. Ela
às vezes não obriga. 12. A obediência civil dos súditos cristãos é limitada pela fé
divina. 13. Desmente-se certa evasiva. 14. O pontífice, pela excomunhão, priva o rei
da jurisdição do reino quanto ao uso. 15. Confutação da objeção. 16. A deposição do
rei não é o efeito próprio da excomunhão. Pelo uso diuturno da Igreja se mostra o
poder do pontífice para depor um rei. 17. Resposta ao fundamento do rei. 18.
Confutação do corolário que o rei infere. Confutação do último corolário. 19-21.
Resposta à última prova do rei. Examinam-se as proposições que o rei infere. 22-23.
A décima proposição envolve repugnância [à razão] e dá ocasião a calúnia. 24. O
duplo sentido da décima primeira proposição. 25. A décima terceira proposição é
verdadeira e segue-se retamente da rejeição do juramento. 26. A última proposição é
falsa e mal concluída. 27. Mostra-se a falsidade destas palavras. 28. Todos os
doutores católicos admitem no Papa jurisdição para depor um rei herético.

1. PREFÁCIO. – Até aqui refutamos o juramento e mostramos suas deformidades,


metodicamente e por partes, como desejava o rei, segundo suas palavras.
Agora, para que não pareçamos dar sentença contra uma parte inaudita, o que
também é uma reclamação do rei, consideramos necessário examinar tudo que ele
indica, ou que nós pudemos cogitar, em defesa do juramento, para que se evidencie
ainda mais que daí antes se aumenta a condenação do juramento do que sua defesa e
escusa.
2. OS FUNDAMENTOS DO REI. – Primeiro, portanto, pode objetar-nos a autoridade régia
que, com palavras expressas e freqüentemente repetidas, pelo juramento o monarca
afirma não querer exigir de seus súditos nada mais do que a obediência civil e sua
profissão. Assim o repete com freqüência, tanto na Apologia quanto no Prefácio.
Pois, na página 4 da Apologia, ele disse haver mostrado suficientemente que pelo
juramento não desejava nada além de fazer-se seguro da fidelidade e da constância
dos súditos, que estes estão obrigados por consciência a prestar-me, como diz.

189
No Prefácio, com mais freqüência – a saber, nas páginas 11, 12, 13 e 14 – e mais
abertamente, ele não só o afirma, mas também o prova mais ou menos deste modo:
como o parlamento da câmara baixa houvesse inserido uma cláusula no juramento
pela qual se tirava do pontífice o poder de me excomungar, quis suprimi-la
imediatamente. Daí, portanto, se pode coligir com quanta solicitude cuidei para que
no juramento não se contivesse uma profissão além da fidelidade e da obediência
civil e temporal, que a própria natureza prescreve aos que nascem no reino.
Deste mesmo lugar colige-se a prova desta ilação, pois, retirada do juramento a
abjuração do poder do pontífice para excomungar o rei, nada restava nele além da
obediência e fidelidade civis. Pois, se algo pode ser maximamente argüido é queo
direito do pontífice de remover os reis é negado e abjurado. E isto é justíssimo e não
excede a fidelidade civil; portanto, etc.
Prova-se a premissa menor, primeiro porque tal direito não foi adquirido pelo
pontífice de nenhum modo legítimo, mas foi vindicado pela usurpação injusta dos
papas e pela violência secular, o que o rei repete freqüentemente no Prefácio; e
principalmente na pág. 22 diz-nos que decidiu provar na Apologia que esta usurpação
dos pontífices é algo que repugna às Escrituras, aos concílios e aos Padres.
Segundo, porque tal remoção ou deposição dos reis excede em tudo os fins da
excomunhão, que é uma censura espiritual. A excomunhão do pontífice não pode,
portanto, fornecer uma causa legítima e justa para que os súditos maquinem algo
contra o rei ou seu império.
O rei fala mais ou menos assim no referido lugar.
3. DAÍ SE DEDUZEM TRÊS CONSEQÜÊNCIAS. – E desse fundamento ele infere
tacitamente, tanto ali quanto em outros lugares, que o pontífice não pode isentar os
súditos da obediência civil devida ao rei, porque não pode depor o rei de sua posição
e de seu domínio; nem pode, portanto, fazer que não se lhe deva obediência, a qual
lhe cabe por direito natural,[ 412 ] que o Papa não pode tolher. É isto, de fato, o que o
rei quis significar com as palavras que a própria natureza prescreve aos que nascem
no reino.
De modo similar, infere que o pontífice não pode isentar os súditos do juramento
de fidelidade, porque a matéria do juramento – que é a obediência civil – e a sua
promessa são imutáveis e sempre honestas, pois são devidas segundo o direito da
natureza. Logo, nenhum poder humano pode fazer com que esse juramento não
obrigue sempre.
Prova-se a conseqüência porque não pode alguém ser eximido da obrigação do
juramento, sob a qual promete algo, sem que antes a própria promessa, ou a sua
matéria, seja removida ou anulada, porque o vínculo de juramento é inviolável por si,
e obriga maximamente por direito divino e natural. Como, portanto, não se pode
subtrair do juramento a sua matéria, certamente nem o próprio juramento pode ser
dissolvido.
Terceiro, daqui ele também colige haver muita diferença entre o antigo juramento
do primado e esse outro, porque naquele abjurava-se também o poder espiritual, mas
nesse abjura-se apenas o poder temporal que o Papa usurpa aos reis.
Por isso no Prefácio o rei repreende a Belarmino com veemência, porque, como
diz, ele tenta provar que este juramento de fidelidade não é nada além daquele

190
antigo juramento do primado, reformado agora com palavras obscuras e ambíguos
circunlóquios, etc.
Depois, por fim, ele diz no princípio de sua Apologia: Este juramento não foi
constituído para outro fim senão para que de nenhum modo subsistisse alguma
diferença entre os súditos fiéis e os pérfidos traidores, mas também entre os papistas
que crêem que se deve observar a fidelidade ao rei e os que, a pretexto da
disparidade de religião, julgam ser lícito conjurar contra o rei.
Por isso conclui em seguida: Este juramento foi constituído com o fim de que
houvesse para com ele uma fidelidade dos súditos, à semelhança de um penhor e de
um contrato. Logo, nada contém além da obediência civil.
4. O ÚLTIMO TIPO DE PROVA. – Por último, a este lugar pertence outro tipo de prova
(por redução à inconsistência), que, na Apologia, no princípio da impugnação à
epístola de Belarmino, o rei nos apresenta. Aquele que ensina que o juramento deve
ser recusado necessariamente implica os súditos em posições proditórias e absurdas
ao tentar afastá-los do juramento. E o rei enumera catorze proposições deste tipo,
sendo que todas ou algumas delas, diz ele, inferem-se necessariamente da reprovação
do juramento. Quais sejam estas proposições ficará evidente abaixo, quando
respondermos a esta parte.
5. RESPOSTA AO FUNDAMENTO DO REI. PELO TÍTULO DO JURAMENTO SE PROVA QUE ESTE
FOI INVENTADO PARA DISCERNIR OS CATÓLICOS DOS SECTÁRIOS. – São estas as coisas
que pude coligir de vários lugares e de vários ditos do rei em sua defesa, que, embora
sejam escusas frívolas e revolvam sempre sobre o mesmo ponto, não acredito que
devam ser omitidas, tanto para que seja mais evidente a todos que nada
negligenciamos do nosso dever no tocante ao que pode conduzir à apresentação da
dificuldade ou da verdade, quanto também, se for possível, para que o próprio rei
perceba que, em assunto de tamanha importância e perigo, se deixa guiar por razões
tão ligeiras e por opiniões tão mal fundadas.
Portanto, às palavras do rei respondemos, em primeiro lugar, que os fatos não são
consentâneos com as palavras, e que se deve assentir mais aos fatos e às realidades
mesmas do que às palavras e às promessas. De fato, que importa que o rei afirme que
não quisera exigir de seus súditos nada senão a fidelidade e a obediência civis, se pela
forma do próprio juramento e por todas as suas partes mostra evidentemente o
contrário?
Portanto, às palavras do rei opomos as suas próprias. Pois o edito régio que
continha a fórmula de juramento tinha sobrescrito o título: Para descobrir e reprimir
os papistas, isto é, os católicos e obedientes ao Papa e que reconhecem o seu
primado.
Ora, se o juramento exigisse apenas a fidelidade civil e a obediência temporal, não
poderia ser um signo de distinção entre os papistas e os sectários, ou apóstatas do
Papa, porque a obediência civil é comum a todos. Pois os que obedecem ao Papa não
negam a justa obediência civil a seus reis.
Portanto, diz-se que tal juramento foi dado para descobrir os papistas não por
outra razão senão porque se crê que os que admitem o juramento renunciam ipso

191
facto ao Papa e abjuram seu poder; e, pelo contrário, os que o recusam mostram-se
ipso facto fiéis e obedientes ao Papa.
Ele não foi dado, portanto, apenas por causa da obediência civil, pois (como o
próprio rei também defende com todas as suas forças) a obediência civil não conflita
com a religião romana, e, conseqüentemente, nem com a obediência ao Papa que
professam aqueles que o rei chama de papistas.
6. PELO TÍTULO DO SEGUNDO JURAMENTO SE COLIGE QUE O REI QUER O PRIMADO NAS
COISAS ESPIRITUAIS. O FIM PRINCIPAL DESTE JURAMENTO É A NEGAÇÃO DO PODER
PONTIFÍCIO. – Ademais, no próprio edito régio continham-se dois juramentos, distintos
em título; um deles intitulado Sobre o primado do rei nas coisas espirituais, que foi o
juramento usado sob Elizabete, e que foi enriquecido pelo rei Jaime com certa
promessa, como notamos acima, acerca do Prefácio. O outro, intitulado Contra o
poder do pontífice sobre os reis cristãos, que não é senão aquele que o rei agora
chama juramento de fidelidade. O edito não trazia nenhum outro juramento, e até
agora não se fez menção a outro.
Portanto, pelo próprio título é evidente que o juramento contém a abjuração do
poder do pontífice sobre os reis, mais do que a fidelidade dos súditos para com seu
monarca. Pois o primeiro é o que diretamente se intenta, como mostra o título, e o
que se declara e repete freqüentemente em suas palavras, de modo imediato e
expresso. Já o segundo, quando aparece expresso, o é muito indireta e remotamente,
ou mediante certa conseqüência, embora seja provavelmente o tencionado pelo rei,
em si e principalmente.
Por isso com razão podemos notar aqui e aplicar a distinção dos escolásticos e dos
filósofos moralistas entre a intenção do operante e a da obra, e entre a intenção do fim
e a eleição do meio para o fim.
O rei, de fato, poderia por esse juramento tencionar a fidelidade civil dos súditos,
e a segurança e a indenidade de suas coisas e de sua pessoa. Mas o meio utilizado
para obtê-lo foi a abjuração do poder pontifício, e assim, embora o primeiro fim fosse
talvez precípuo no operante, isto é, no rei que instituiu o juramento, contudo o escopo
próprio do juramento, e seu objeto (por assim dizer) é a negação do poder pontifício,
e deste modo dizemos que é o fim principal da obra, isto é, de tal juramento, porque é
o fim intrínseco e a matéria próxima, como se declara em cada uma de suas partes.
E, assim, qualquer que seja a intenção principal do rei, da qual não cuidamos, e
nem queremos argüi-lo como mentiroso, não se pode duvidar de que o próprio
juramento, que o rei usou como meio, excede os termos da obediência civil, e, para
fortalecê-la além do que é justo, invadiu o poder pontifício abjurando-o, e ao mesmo
tempo arruinando e negando os fundamentos da fé.
7. ISTO SE CONFIRMA PELA EQUIVOCAÇÃO DAS PALAVRAS. O PODER CIVIL SE SUBORDINA
AO ESPIRITUAL. – Para torná-lo mais claro, advirto que as expressões obediência e
fidelidade civis, tal como o rei da Inglaterra as usa, escondem uma equivocação, que
pode enganar facilmente os simples e ignorantes.
De fato, o rei exige dos súditos obediência civil e fidelidade tais, que não
reconheçam na terra nenhum superior ao rei, nem diretamente nem indiretamente, e

192
que estas obediência e fidelidade não possam ser impedidas ou tolhidas em nenhum
caso, por nenhuma razão, mediante jurisdição existente em algum homem mortal.
E, porque não se pode reconhecer no rei poder tão soberano sem se negar o poder
do pontífice – o único que poderia ser-lhe superior, mesmo nas coisas civis, embora
indiretamente –, para fortalecer sua obediência civil no grau e na ordem que pede,
serviu-se deste meio: a abjuração do poder pontifício.
E por isso, em suas palavras, diz que exige dos súditos apenas a fidelidade civil,
mas na verdade arranca-lhes uma abjuração da fé católica.
Mas, segundo a sã e vera doutrina, em geral diz-se obediência civil aquela que se
deve aos poderes mais elevados, temporais e civis, a cada um segundo seu grau, em
sua matéria e dentro de seu limite, segundo diz São Paulo em Romanos [13:7]: Dai a
cada um o que deveis; a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem
temor, temor; a quem honra, honra. Também I Pedro [2:13-14]: Sujeitai-vos, pois, a
toda ordenação humana por amor ao Senhor, quer ao rei, como soberano, quer aos
governadores, como enviados por ele, etc.
E assim também se deve obediência civil aos magistrados civis, subordinada,
porém, à obediência aos reis, que lhes são superiores.
Mas aos reis que não reconhecem nenhum superior nas coisas temporais, deve-se
também obediência civil máxima nesta ordem. O seu poder não pode, porém, deixar
de subordinar-se ao poder espiritual, se a obediência é cristã. Pois esta deve ser
segundo a medida da fé: segundo a fé, todos os cristãos, quer sejam reis, quer sejam
súditos, estão obrigados a obedecer aos seus superiores (Hebreus 13:17), e
precipuamente ao vigário de Cristo, a quem este sujeitou todas as suas ovelhas, entre
as quais se contam os reis.
E, por isso, se um rei temporal postula uma obediência civil de tal tipo que exclua
a obediência ao pontífice, ela já não será mera obediência civil, mas passa a ser
espiritual e eclesiástica. Tal é, porém, a obediência que o rei da Inglaterra exige dos
seus; por isso, na fórmula do juramento, quase se esquecendo da obediência civil,
atirou-se todo a negar e a abjurar o poder pontifício.
8. CONCLUI-SE QUE O JURAMENTO POSTULA MAIS DO QUE FIDELIDADE CIVIL. – Daí se
torna evidente que é falso simpliciter o que diz o rei da Inglaterra, a saber, que ele
postula de seus súditos por este juramento a fidelidade que eles estão obrigados a
prestar por consciência. Pois é por consciência que estão obrigados os súditos, como
disse Cristo: Dai a César o que é de César, e a Deuso que é de Deus (Marcos 12:17)
– e, por conseqüência, também ao vigário de Cristo o que é dele. E, porque as coisas
do pontífice pertencem a Deus por modo e por título singulares, elas estão contidas na
segunda parte das palavras de Cristo. Razão por que, assim como quando César
preceitua algo contra Deus, deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens, como
disse São Pedro (Atos 4:19; 5:29), assim também, embora os cristãos estejam
obrigados em consciência a obedecer ao rei como superior em sua ordem, não estão
obrigados (e nem o podem estar) a obedecer-lhe quando este lhes preceitua a
abjuração do poder pontifício; tampouco estão obrigados a obedecer ao rei
confrontando a devida obediência ao pontífice, que é de ordem superior, e à qual a
obediência civil está subordinada de modo tal que, em certos casos, ou por justas
razões, às vezes lhe deve ceder.

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Portanto, é falso que no juramento nada se postula dos súditos senão aquilo que
estão obrigados em consciência a prestar.
9. REPLICA-SE A UMA OBJEÇÃO LATENTE DO REI. – Mas deve ler-se atentamente e com
cautela o que ele repete logo em seguida em seu Prefácio, mudando um pouco as
palavras: Nada se contém neste juramento além da profissão de fidelidade e de
obediência civis, que a própria natureza prescreve aos que nascem no reino. Isto
contém uma objeção e um erro latente.
A objeção foi feita acima: a obediência e a fidelidade são devidas aos reis por
direito natural; portanto, são devidas independentemente do pontífice. Assim, tanto
não se pode mudá-las, como não se pode mudar o direito natural, nem se pode livrar
alguém delas, assim como não se pode livrar alguém do direito natural.
Já o erro ou o engano latentes consistem em não considerar que se deve julgar a
obediência civil entre cristãos de modo superior àquela que há entre os pagãos. Pois
ambos devem a seus reis a obediência civil que a própria natureza prescreve, e por
isso o rei pensa que a obediência civil que os cristãos devem prestar aos seus
príncipes não deve ser definida por termos e por regras distintas daquelas que
definem a obediência devidas a seus reis pelos pagãos.
E facilmente se persuadirá de que esta é a mente do rei aquele que rememorar as
palavras mais claras que ele escreveu no Prefácio, pág. 34, contra Belarmino. Pois
diz ele: Como ele me conta entre os heréticos, e me iguala a Juliano, o Apóstata, é
necessário que me coloque fora do redil e da grei pontifícia. E assim, pelo mesmo
direito, devo ser incluído entre os príncipes pagãos, com os quais, ele mesmo o
confessa, o pontífice nada pode.
Portanto, partindo deste princípio, quis indicar por outras palavras que, assim
como o Papa não pode depor um rei pagão, nem isentar seus súditos de obedecer-lhe,
assim tampouco pode livrar seus súditos da obediência e fidelidade a ele, Jaime, e por
isso nada postula no juramento senão o que a própria natureza impõe aos que nascem
no reino.
10. QUAL É A OBEDIÊNCIA CIVIL DOS SÚDITOS FIÉIS. – Mas a verdade católica ensina
que, embora a fé e a graça não destruam a natureza, aperfeiçoam-na e põem-na sob
regras e leis mais elevadas. Por isso, a obediência civil entre os cristãos, embora
nasça da lei natural, é definida e limitada a uma obediência civil que é consentânea a
tal estado, que não repugna à fé e à religião, e que se subordina às leis e aos justos
preceitos da Igreja.
E, por isso mesmo, não se deve equiparar a obediência civil entre os cristãos à
obediência civil entre os pagãos, ou entre homens que podem ser governados pela
pura prudência natural, sem nenhuma luz da fé, porque os pagãos e infiéis não
batizados não se submetem ao pontífice e às leis da Igreja como os cristãos. Por isso
em muitos casos os príncipes cristãos, mesmo sendo soberanos nas coisas temporais,
podem ser proibidos por uma lei pontifícia de imperar algo a seus súditos, mesmo em
matéria civil, enquanto os príncipes pagãos não podem ser coagidos nesta matéria,
porque não estão no grêmio das ovelhas, e ali nunca entraram.
Mas o rei Jaime (como provamos no livro I[ 413 ]), embora não possa ser
escusado do crime de infidelidade, de heresia ou de apostasia, nem por isso se deve

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contar entre os pagãos isentos da obediência ao pontífice, pois não pode apagar de si
o caráter do batismo. E assim não pode eximir-se do dever de obediência eclesiástica,
mesmo que mil vezes confranja os jugos e rompa os vínculos e diga: Não obedecerei.
Pois de fato poderia resistir e não obedecer, mas perante Deus sempre será réu de
desobediência, não só dele, mas de todos os seus.
Razão por que, quando ele diz que no juramento nada se contém além da
obediência e da fidelidade civis, que a mesma natureza prescreve a todos os que
nascem no reino, se ele a entende (como parece) como uma obediência livre de toda e
qualquer regra e direção da fé, tal como pode existir entre os pagãos que usam da reta
razão, confirma ipso facto o erro de seu juramento e a perversidade que o envolve,
porque exige uma obediência civil que exclui a eclesiástica, e se prefere a ela.
Mas, se queremos interpretar de modo são a obediência civil que a natureza
prescreve a todos os que nascem no reino, é falso dizer que nada além disso está
contido no juramento, como se patenteará ao respondermos à objeção que recolhemos
daquelas palavras.
11. A OBEDIÊNCIA DEVIDA AOS REIS É DE DIREITO DAS GENTES. POR QUE RAZÃO SE PODE
DIZER DE DIREITO NATURAL. ELA ÀS VEZES NÃO OBRIGA. – Respondemos, pois, que a
fidelidade e a obediência civis dadas aos reis, embora sejam fundadas e radicadas no
direito natural, com mais verdade e propriedade diz-se que são de direito das gentes,
porque não são imediatamente de direito natural, mas supõem que os homens estejam
reunidos num corpo político e numa comunidade perfeita.
Ou certamente pode dizer-se no máximo que elas são do direito da natureza se
supomos o pacto ou convenção entre os próprios homens, do mesmo modo como
obrigam por direito natural o voto ou promessa feitos a Deus, e o juramento entre os
homens, como expliquei largamente no livro III desta obra, e também no livro III de
Sobre as Leis.[ 414 ]
Donde ocorre que a obrigação de obediência civil não é igual, quanto à matéria e
quanto ao modo, para todos os homens que nascem no reino, mas reside em cada um
conforme a instituição primeva do reino e a condição do pacto e da aliança entre o rei
e o povo, que soem constar das leis escritas (que em outros lugares se chamam foros),
ou de um costume que excede a memória dos homens.
E por isso também ocorre que o vínculo de tal fidelidade ou obediência por vezes
não obriga, e às vezes pode ser rescindido, segundo as condições que na primeira
aliança entre o rei e o reino estão postas expressamente ou estão inclusas
internamente, pela própria exigência do direito natural. E assim esta obediência não
obriga a obedecer ao rei quando este preceitua coisas ilícitas e contrárias à salvação
da alma.
A perversidade do rei contra o bem comum da república, ou contra as alianças e
convenções feitas com o reino, pode ser tamanha que o reino inteiro pode, em
assembléia comum, rescindir os pactos e depor o rei, e assim podem livrar-se da
obediência e fidelidade civis a ele, como dissemos acima no capítulo V.
12. A OBEDIÊNCIA CIVIL DOS SÚDITOS CRISTÃOS É LIMITADA PELA FÉ DIVINA. – Assim,
portanto, num bom sentido se pode dizer que também os cristãos que nascem no reino
têm prescrita pela natureza a fidelidade a seus reis – mas de um modo adaptado ao

195
direito comum das gentes cristãs e do mundo católico, ou melhor, de um modo
acomodado ao direito divino e à fé.
Este modo consiste em subordinar a obediência civil à eclesiástica, sendo que esta
dirige aquela quanto às coisas que dizem respeito à salvação; por conseguinte, o
vínculo sobre o qual se funda a obrigação da obediência civil pode ser dissolvido pelo
pastor da Igreja se quem detém o poder civil dele abusa, para prejuízo espiritual dos
súditos, ou mesmo para o seu, com escândalo público e detrimento dos outros.
Neste sentido, é falso que o rei da Inglaterra exigiria de seus súditos apenas aquela
obediência civil que a própria natureza prescreve a todos os que nascem num reino
cristão; porque a própria natureza, iluminada pela fé divina, dita aos cristãos que eles
devem obedecer aos reis nas coisas civis, sempre que estes não envolvam ou
preceituem algo contra a fé ou contra a obediência eclesiástica, tal como o rei da
Inglaterra faz nesse juramento, como acima mostramos suficientemente.
13. DESMENTE-SE CERTA EVASIVA. – Mas ao indício pelo qual o rei tenta provar o
contrário, a saber, porque não permitiu que se pusesse no juramento a abjuração do
poder de excomungá-lo, respondemos que, embora isto seja assim (o que não
duvidamos, pois o rei o testifica de fato com suas palavras), tal indício é insuficiente.
Primeiro, porque, embora tenha sido retirada a abjuração expressa do poder de
excomungar, ela permaneceu implícita e velada.
Segundo, porque se põe expressamente no juramento a abjuração do poder que
tem o pontífice para depor o rei por qualquer causa, ainda que justa, e para livrar os
súditos de qualquer fidelidade ou obediência devidas ao monarca, quer prometidas,
quer juradas – poder este que convém ao pontífice com não menor certeza do que o
poder de excomungar.
Ambos os pontos são evidenciados facilmente pelo que já dissemos, porque de
dois modos pode o pontífice privar do poder do reino o monarca rebelde e contumaz
contra a religião, e isentar os súditos da fidelidade a ele. De um modo, apenas quanto
ao uso, à maneira de suspensão; de outro modo, quanto à propriedade e domínio, à
maneira de deposição.
E no juramento o rei da Inglaterra nega ambos; o primeiro, mais claramente em
suas cláusulas segunda e quarta; o segundo, em todo o juramento e em todas as suas
partes.
Contudo, a doutrina católica ensina ambos.
14. O PONTÍFICE, PELA EXCOMUNHÃO, PRIVA O REI DA JURISDIÇÃO DO REINO QUANTO AO
USO. – Pois o primeiro modo de privação está intrinsecamente incluso no mesmo
vínculo da excomunhão maior, como ensina o Papa Gregório VII,[ 415 ] no capítulo
Nos sanctorum, onde diz: Os que estão ligados a um excomungado por fidelidade ou
juramento, livramo-los pela autoridade apostólica, e proibimos de todos os modos a
observância da fidelidade.
Por estas palavras não se dá tanto uma nova proibição quanto se explica a
proibição dada em virtude de tal censura. Pois a censura priva não só da comunhão
sagrada, mas também da civil, em todas as coisas e em todos os casos não excetuados
pelo direito. Aqui, porém, não só não há exceção, mas também é explícita a
proibição.

196
Que isto, porém, não é uma deposição absoluta, mas certa suspensão, patenteia-se
pela limitação adjunta: Até que eles façam reparação. Disto é evidente que a isenção
não é perpétua, mas permanece enquanto durar o vínculo; é, portanto, à maneira de
suspensão do poder quanto ao uso, e não à maneira de deposição.
Mas, como se diz que tais últimas palavras não se encontram no códice
manuscrito encontrado no Vaticano, uma decisão similar, com aquela declaração
expressa, acha-se em Pascal II,[ 416 ] que diz: enquanto estiver excomungado. E
contém-se uma limitação similar no último capítulo do título De poenis.[ 417 ]
15. CONFUTAÇÃO DA OBJEÇÃO. – Nem obsta a isso a objeção do rei de que a
excomunhão é uma censura espiritual, e portanto a privação da jurisdição ou do poder
temporal, mesmo quanto ao uso e à maneira de suspensão, excede os seus fins.
Pois negamos a conseqüente; embora a excomunhão se diga realmente uma
censura espiritual (quer por sua matéria principal e seu fim, quer porque procede do
poder espiritual), da mesma maneira que o próprio poder, embora espiritual, se
estende indiretamente às coisas temporais, assim também a censura de excomunhão,
que é igualmente espiritual, também se estende indiretamente às coisas temporais.
Pois ela priva não só da comunhão sagrada, mas também da comunhão civil e
humana, como é evidente pela instituição e pelo uso da Igreja, aprovado por uma
tradição perpétua e fundado na Escritura. Pois em II João [1:10] se diz: Nem o
saudeis; e diz São Paulo em I Coríntios [5:11]: Com este tal, nem comer deveis. E ele
insinua a razão disto naquele mesmo lugar, quando diz: Julguei (...) que tal homem
seja entregue a satanás, para a morte da carne, a fim de que o espírito seja salvo no
dia de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, portanto, a excomunhão vexa o homem
também nas coisas temporais e corporais, para que a vexação lhe dê entendimento, e
para que retroceda de sua contumácia.
16. A DEPOSIÇÃO DO REI NÃO É O EFEITO PRÓPRIO DA EXCOMUNHÃO. PELO USO
DIUTURNO DA IGREJA SE MOSTRA O PODER DO PONTÍFICE PARA DEPOR UM REI. – Mas o
outro modo de privação, à maneira de deposição do reino ou de qualquer poder
temporal, e conseqüentemente com a perpétua isenção dos súditos da fidelidade e da
obediência civis, não é efeito próprio e intrínseco da excomunhão maior, se nada se
lhe acrescenta, como o suponho pela própria matéria, pelo uso comum da Igreja, e
pelo que se pode coligir suficientemente dos direitos já alegados.
Contudo, também esta deposição e isenção são acrescentadas à censura como uma
pena singular, quando os delitos dos príncipes coagem os pontífices a usar de tal
severidade, cujo uso já comprovamos suficientemente no livro III.
E assim se demonstra o poder em questão, porque um uso tão público e constante,
e tão eficaz sem a violência das armas, não poderia existir sem a fé da Igreja que
reconhece no pontífice um poder legítimo para impor tal pena, circunscrito pelo
poder de ligar e desligar dado a São Pedro por Cristo, e no báculo pastoral que
recebeu para reger a Igreja, como mostramos satisfatoriamente no lugar citado.
E aqui também tem lugar o argumento de São Paulo: para que recobre os sentidos,
é necessário às vezes afligir gravissimamente o homem pecador nas coisas corporais
e temporais. Ademais, trata-se de um argumento excelente, porque os súditos de um
rei necessitam freqüentemente deste remédio, para que não se subvertam.

197
E por isso São Paulo disse do herético, em Tito [3:10]: Evita-o depois da primeira
e da segunda correção, o que costuma muito mais ser necessário no caso do príncipe
do que no caso dos outros.
17. RESPOSTA AO FUNDAMENTO DO REI. – E assim nada nos obsta o que o rei disse:
que essa pena excede em tudo os fins da excomunhão. Mesmo que seja assim com
respeito à deposição, ela não excede os limites do poder pontifício, como se abjura
nesse juramento.
Mas, como ele diz que o pontífice adquiriu esse direito sem nenhum justo título,
respondemos que ele não o adquiriu propriamente por um título humano, mas lhe foi
dado por título divino, como se mostrou pelas palavras de Cristo no livro III. Ali
também refutamos aquelas palavras do rei: pela usurpação injusta dos papas e pela
violência secular. Pois é fácil dizê-las, especialmente para um rei potente e – digo-o
sem querer ofendê-lo – muito cativo e obcecado pela afeição à soberania; porém é
impossível prová-las. E assim o rei não aduziu nenhuma prova ou indício dessa
injusta usurpação, nem é verossímil que uma usurpação injusta prevalecesse contra o
poder dos imperadores e dos reis.
Por isso aquelas palavras que o rei agrega, sobre a “violência secular”, são antes
inacreditáveis por si, porque tal violência não se faz senão pelas armas e pelo poder
secular. Ora, os pontífices não tiveram tamanho poder que fosse suficiente para
infligir violência aos imperadores e reis. E assim nas histórias não se lê que os
pontífices tivessem praticado tal violência. É, portanto, uma asserção gratuita e que
procede apenas da liberdade de falar.
18. CONFUTAÇÃO DO COROLÁRIO QUE O REI INFERE. CONFUTAÇÃO DO ÚLTIMO
COROLÁRIO. – Acerca dos corolários que o rei infere, o primeiro e o segundo, sobre a
isenção dos súditos da obediência e do juramento de fidelidade, foram
suficientemente rejeitados pelo que dissemos. Já o terceiro, sobre a comparação deste
último juramento com o primeiro sobre o primado, é de fácil refutação.
Pois com razão disse o cardeal Belarmino[ 418 ] que um está incluso no outro
virtual e veladamente. Porque o poder pelo qual o pontífice depõe os reis cismáticos e
perniciosos ao rebanho de Cristo não é outro senão o poder que recebeu de Cristo,
que é único e indivisível (para que fique explicado), e por isso não se divide, não se
diminui, nem pode ser em parte abjurado e em parte retido. Como, portanto, no
último juramento o poder do pontífice para reprimir e punir os reis é abjurado,
claramente se abjura todo o seu poder espiritual, como se fazia expressamente no
primeiro juramento.
Ora, é indício suficiente desta verdade que o próprio rei, para dar aparência de
fundamento à negação do poder de depô-lo, nega por conseguinte que Cristo tenha
dado a Pedro, ou mediante este ao Romano Pontífice, a soberania espiritual para reger
a Igreja, julgando que ambas as proposições são tão conexas que não se pode negar
uma sem negar a outra. Logo, quando no juramento se abjura expressamente uma
delas, por conseqüência a outra também é virtualmente negada, e com o mesmo
perjúrio.
A última ilação, porém, como que uma protestação do rei acerca do fim do
juramento, não o ajuda em nada. Admitamos que a intenção do rei seja discernir e

198
conhecer os traidores pelo juramento; não obstante, o meio de que se serviu para isto
foi a abjuração do poder pontifício. Por isso, pelo juramento ele não só distingue os
súditos civilmente fiéis dos traidores, mas também induz os fieis católicos a trair e a
abjurar a sua fé. Disto resulta que o juramento separa antes os crentes dos não-
crentes, ou ao menos aqueles que recusam com constância a abjuração e aqueles que
miseravelmente a simulam para evitar incômodos temporais.
Por esta razão, tal juramento antes deve ser tido justamente como um sinal do
cisma anglicano do que como um penhor ou contrato de fidelidade dos súditos.
19. RESPOSTA À ÚLTIMA PROVA DO REI. EXAMINAM-SE AS PROPOSIÇÕES QUE O REI
INFERE. – Falta-nos responder à última prova do rei, tomada de catorze proposições
que ele infere da rejeição do juramento.
Dizemos, em primeiro lugar, que por estas proposições se colige com evidência
que a intenção do juramento não é tanto a prestação de obediência ao rei quanto a
negação do poder do pontífice e a sua usurpação.
Pois, de todas as proposições, apenas uma pertence à defesa da dignidade régia, e
ela não se segue à rejeição do juramento. Já quase todas as outras versam diretamente
sobre o poder do pontífice, e são bastante verdadeiras se entendidas em sentido
correto – e portanto o juramento é rejeitado com razão, porque contém asserções
contraditórias, como o próprio rei confessa ao dizer que tais proposições se seguem
por antítese da rejeição do referido juramento.
Porém, para que isto se torne mais evidente, anotarei cada uma das proposições e
o que se deve pensar delas. A primeira é: Que eu, Jaime, não sou o rei legítimo deste
reino, nem de todos os meus domínios.
Ora, isto não se segue de modo algum da rejeição do juramento. Pois, embora
Jaime seja verdadeiro e legítimo rei, o juramento é perverso no sentido em que se
abjura o poder pontifício para depô-lo por causa justa: de fato, o Papa tem este poder
sobre reis e imperadores legítimos e verdadeiros.
20. A segunda é: Que é lícito ao papa depor-me do reino por sua mera autoridade,
ou, se não pela sua, pela autoridade da Igreja ou da Sé Romana; e se não pela
autoridade da Igreja ou da Sé Romana, ainda assim lhe é lícito depor-me do reino
por outros meios ou com a ajuda de outros.
A terceira: Que é lícito ao papa julgar ao seu arbítrio os meus reinos e domínios.
A quarta: Que o papa possui poder para permitir a qualquer príncipe estrangeiro
a invasão de meus domínios.
A quinta: Que é lícito ao papa isentar meus súditos da fidelidade e da obediência
devidas a mim.
A sexta: Que o papa possui licença para permitir a um ou a muitos de meus
súditos que portem armas contra mim.
A sétima: Que é lícito ao papa dar vênia aos meus súditos para infligir violência
contra a minha pessoa, contra os meus domínios ou contra quaisquer dos meus
súditos.
A oitava: Que se o papa me excomungar ou depor por uma sentença dada, os
súditos não estarão livres para persistir na fidelidade e na obediência devidas a mim.

199
A nona: Que se o papa me excomungar ou me depor judicialmente, os súditos não
estarão livres para defender a minha pessoa e a minha coroa com todas as suas
forças.
A décima: Que se o papa promulgar contra mim alguma sentença de excomunhão
ou de deposição, os súditos, pela força da sentença, de modo algum estarão
obrigados a desvelar todas as conjurações e traições tramadas contra mim, que por
ventura venham a ouvir ou a conhecer.
A décima primeira: Que não é herético nem detestável opinar que os príncipes
excomungados pelo papa podem ser depostos ou mortos impunemente por seus
súditos ou por outros quaisquer.
A décima segunda: Que o papa tem poder para isentar meus súditos deste
juramento, ou de alguma parte sua.
21. Mas estas asserções se sobrepõem mais ou menos numa só, que é declarada por
partes ao longo das doze proposições, para exagerar o assunto. Mas em algumas delas
acrescenta-se entrementes alguma expressão que destrói e comuta o verdadeiro
sentido.
O que, então, se diz na segunda: o papa pode depor o rei Jaime por sua mera
autoridade é muito verdadeiro e católico, enquanto a expressão mera não excluir
causa legítima, mas apenas declarar a suficiência de sua autoridade, sem a ajuda de
outra. E, porque a proposição fala em particular de uma pessoa em quem não falta a
legítima causa, como é evidente pelo que dissemos e é manifesto a toda a Igreja, por
isto mesmo a proposição, sem nenhuma equivocação, tem um sentido verdadeiro,
porque não exclui a causa legítima, mas a supõe.
Mas na terceira, que é mais ou menos similar, a expressão ao seu arbítrio contém
uma ambigüidade e dá ocasião a calúnia, principalmente porque em outros lugares o
rei sói empregar termos como arbitrariamente, ou algo similar. Assim, se se o
entende como um arbítrio justo e legítimo, a proposição é verdadeira; mas se se o
entende como uma mera e absoluta vontade e como um simples capricho, temos aqui
uma impostura, que não pode, por nenhuma conclusão verossímil, ser inferida da
rejeição do juramento.
E para as outras valem as mesmas razões, pois todas versam sobre a soberania do
Papa para coagir os cristãos rebeldes (mesmo que sejam reis) até ao ponto de sua
deposição, se o postulam a gravidade da causa e a necessidade espiritual do reino.
22. A DÉCIMA PROPOSIÇÃO ENVOLVE REPUGNÂNCIA [À RAZÃO] E DÁ OCASIÃO A
CALÚNIA. – Apenas quanto à décima proposição é necessário advertir que (como
indicamos acima) ela em parte envolve repugnância [à razão] e em parte dá ocasião a
calúnia.
Digo que envolve repugnância [à razão] porque, se o rei, por uma sentença justa
do Papa, é ipso facto deposto, por isso mesmo aqueles que antes lhe eram súditos,
deixam de ser súditos. Pois o rei já não seria mais rei nem superior. E por isso já não
poderiam chama-se traidores, se tramassem alguma conjuração contra ele. Tampouco
os cidadãos estariam obrigados, ao menos a título de fidelidade e de sujeição, a
revelá-la.

200
Mas acrescento que aquele modo de falar pode dar abertura a calúnias, porque o
rei criminoso, embora já deposto, não pode imediatamente ser morto com justiça por
alguém do povo, por uma conjuração ou por insídias; porque tampouco é lícito aos
cidadãos matar deste modo, por sua própria autoridade, um outro cidadão privado que
seja criminoso, mas só pela autoridade pública, ou pelo poder recebido dela, que o
pode dar por sentença, ou por ordem, ou por uma comissão especial.
23. Por esta razão, após a deposição do rei, se algumas pessoas maquinarem a sua
morte através de insídias privadas, não recebendo poder de um juiz legítimo, aquele
que vier a sabê-lo (fora da confissão) pode ser obrigado pela caridade a revelá-lo para
impedir o mal do próximo, quando concorrem as circunstâncias que costumam ser
necessárias para tal obrigação.
Já quando se procede contra a pessoa de tal rei segundo o teor de uma justa
sentença, sem exceder os limites do poder concedido por um juiz legítimo, então
cessa toda obrigação de descobrir o segredo, porque já não se trata de insídias
iníquas, mas de guerra justa. Portanto, como a proposição fala indistintamente,
afirmei que ela pode dar ocasião a calúnia, como se dissesse que os cidadãos nunca
estariam obrigados a revelar – por nenhuma razão, nem mesmo pela caridade – as
conjurações e traições, mesmo quando fossem injustas e iníquas. Isto é falso, e não se
segue da rejeição do juramento, como é evidente por si.
24. O DUPLO SENTIDO DA DÉCIMA PRIMEIRA PROPOSIÇÃO. – Deve-se ter a mesma
cautela quanto à décima primeira proposição; pois a sua sentença é, em suma, que um
rei excomungado pode ser deposto ou morto impunemente por qualquer um. Assim
declarada simpliciter, ela é muito falsa.
Pois a excomunhão, sozinha e desnuda, não dá poder para matar o excomungado,
nem para privá-lo do domínio de suas coisas, mas apenas o priva da comunhão, e
pode privá-lo por conseguinte do uso de alguma coisa própria, que não pode ser
usada sem tal comunhão.
O rei excomungado, portanto, se a sentença não contém nada além da
excomunhão, não pode ser imediatamente deposto ou morto por seus súditos ou por
quaisquer outros, e isto tampouco se segue da rejeição do juramento.
Porém, se na proposição a palavra “excomunhão” compreende também deposição
e difidência, o que ocorre às vezes mediante uma sentença canônica, então ela contém
verdade.
E até mesmo se a proposição fosse entendida como apenas referente à censura de
excomunhão em sua forma comum, então, se o sentido da proposição for que o
príncipe excomungado, enquanto durar a excomunhão, está privado do direito de
preceituar a seus súditos que lhe obedeçam (e que, se ele os coagir, poderão resisti-lo
até mesmo com uma guerra justa), neste sentido a proposição será muito verdadeira,
pois a doutrina contrária é herética e oposta à força e ao poder das chaves da Igreja.
Contudo, na proposição e em suas palavras desnudas não se explicam
suficientemente estas coisas, e portanto deve-se evitar a calúnia, e deve-se falar
abertamente.
25. A DÉCIMA TERCEIRA PROPOSIÇÃO É VERDADEIRA E SEGUE-SE RETAMENTE DA
REJEIÇÃO DO JURAMENTO. – A décima terceira proposição é: Que este juramento não é

201
de modo algum administrado por autoridade legítima e plena. Isto, de fato, segue-se
abertamente da rejeição do juramento, porque ninguém pode propor um juramento
iníquo com autoridade legítima.
A proposição é, contudo, muito verdadeira e certíssima, o que se mostra de modo
manifesto pelo que já dissemos, pois por seu teor fica evidente que todos os artigos
versam sobre o poder do pontífice, e o juramento contém freqüentemente muitos
artigos contrários ao poder do Papa. Portanto, é manifesto que o rei temporal não tem
autoridade legítima para administrar tal juramento a seus súditos.
E com a mesma clareza se segue que tal juramento não é prestado somente sobre a
obediência civil, mas também sobre a sagrada e sobre o poder apostólico; ou melhor,
ele é exigido contra o poder apostólico.
26. A ÚLTIMA PROPOSIÇÃO É FALSA E MAL CONCLUÍDA. – A última proposição é: Que
este juramento deve ser tomado com equivocação, com evasão mental ou reserva
tácita, e não segundo a sentença do espírito nem segundo o íntimo do coração, na
verdadeira fé de homem cristão. Ora, isto não é de modo algum conexo ou
conseqüente à rejeição do juramento, porque, embora esta parte dele também seja
rejeitada, não se afirma por isso que se deva tomar o juramento com equivocação.
Pois estas afirmações são contrárias, e ambas podem ser falsas, e entre elas há um
meio-termo, a saber: não prestar tal juramento de nenhum dos dois modos.
E assim estamos tão longe de dizer ou cogitar que tal juramento deva ser tomado
com equivocação, que antes o reprovamos, tanto porque aquilo se faria com perjúrio
à última parte do juramento, quanto também porque se faria com escândalo e com
uma omissão da fé em tempo devido – e mais: com uma negação externa da fé, como
explicaremos em mais detalhe no próximo capítulo.
27. MOSTRA-SE A FALSIDADE DESTAS PALAVRAS. – Por último, após as proposições, o
rei acrescenta as seguinte palavras: Estes são os artigos derivados por antítese de
várias partes do juramento, cujas teses contrárias não tocam em nada o primado do
pontífice nas causas espirituais, e nunca em nenhum concílio geral plenamente
terminado se concluiu, ou se definiu, que tal poder sobre os reis pertence à
autoridade do pontífice. E, por fim, até hoje os seus doutores escolásticos dissidiam
entre si sobre este ponto em um litígio inexplicável.
Mas já mostramos suficientemente de que modo o poder que é explicado nesses
artigos pertence à dignidade espiritual do pontífice, e como as teses opostas inclusas
no juramento a contrariam diretamente.
Mas o que o rei acrescenta – que em nenhum concílio geral plenamente terminado
se concluiu, ou se definiu, que tal poder sobre os reis pertence à autoridade do
pontífice, e que, ademais, há dissídio entre os escolásticos acerca deste poder – é
abertamente falso quanto às duas partes, e não pôde ser afirmado pelo rei senão
porque, não podendo penetrar nem os concílios nem os escolásticos, fora enganado
pelos protestantes.
Pois acima, no livro III, mostrou-se que muitos concílios gerais reconheceram este
poder no Sumo Pontífice, e o aprovaram; além disso, sem a definição de um concílio,
as definições dos pontífices são suficientes para estabelecer esta verdade como certa.
Não obstante, com freqüência os pontífices de fato usaram deste poder junto com os

202
concílios gerais, como Inocêncio III com o Concílio de Latrão (capítulo 3),[ 419 ] e
Inocêncio IV com o Concílio de Lyon.[ 420 ] Daí não haver dúvida de que os
concílios, ao aprovarem o que foi feito, reconheceram o poder do pontífice.
Além disso, essa verdade está fundada sobre a tradição e o consenso comuns da
Igreja.
28. TODOS OS DOUTORES CATÓLICOS ADMITEM NO PAPA JURISDIÇÃO PARA DEPOR UM
REI HERÉTICO. – Nem há dissensão quanto a este ponto entre os doutores católicos,
que, como opino, são aqueles que o rei entende como escolásticos, pois seus teólogos
detestam a teologia escolástica. Sobre o consenso comum dos católicos quanto a esse
ponto já dissemos o bastante no livro III, e mais amplamente o disse nosso cardeal
Belarmino, no princípio do livro Contra Barklay.[ 421 ]
E os que dizem que eles dissidiam devem mostrar os autores católicos que
contradizem essa verdade, o que certamente não podem fazer. Pois mesmo os
escolásticos que parecem às vezes restringir o poder do pontífice, como Ockham,[
422 ] Gerson,[ 423 ] Paris[ 424 ] e similares, nunca denegaram este poder de depor
reis heréticos ou perniciosos à salvação de seus súditos, ainda que haja entre eles
diversidade quanto ao modo de falar: por exemplo, se o Papa pode fazê-lo por si e
imediatamente, ou só por preceituar aos súditos que expulsem tal rei – e nisto
também muitos deles, e os que opinam melhor, e todos os outros crêem que os dois
modos convêm ao poder do pontífice.
E na verdade é inacreditável que um reino cristão não tenha remédio contra um rei
herético. De fato, isto vai contra toda razão e contra a perfeita providência de Deus,
porque o rei herético facilmente infecta o reino todo, como a experiência o ensina.
Por isso também o Papa, se é herético, pode ser deposto pela Igreja.
Portanto, é necessário que haja na terra um poder que possa depor um rei herético,
pertinaz e incorrigível. Portanto, deve havê-lo maximamente no pontífice, enquanto
ele é, na terra, o supremo pastor visível das almas, e nem se poderia colocar
convenientemente em outro tal poder, pois que esta privação, que está exposta a
muitas dificuldades e perigos, deve ser feita com maior maturidade e justiça, como
explicamos.

[ 412 ] “Quia iure naturali debita est”. É por direito natural que as autoridades civis governam politicamente a
comunidade civil. Por isso, é uma ordenação da razão o exercício da autoridade política sobre os reinos e
jurisdições de sua competência. Sobre esse tema, ver HEINRICH ROMMEN,O Estado no pensamento católico:
tratado de filosofia política, 1ª ed., São Paulo, Editora Paulinas, 1967. [N. C.]
[ 413 ] Ausente desta compilação.
[ 414 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore, Antuérpia, 1613, III, pp. 132-240.
[ 415 ] Decretum Gratiani, II, causa 15, q. 6, can. 4 (Nos sanctorum), p. 1014.
[ 416 ] Op. cit., II, causa 15, q. 6, can. 5 (Iuratos Milites), p. 1014.
[ 417 ] Decretum Gratiani, V, tit. 36, c. 13, fol. cccccv.
[ 418 ] Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Bellarmini..., Roma, 1609, pp. 201-254.
[ 419 ] Conc. Lateranense IV 1215, COD: 234; Mansi 22, 953-1086.
[ 420 ] Conc. Lugdunense I 1245, COD: 283; Mansi 23, 613-619.
[ 421 ] Tractatus de Potestate Summi Pontificis in rebus temporalibus adversus Barclaium, Roma, 1610, caps.
37-42, pp. 257-276.
[ 422 ] GUILHERME DE OCKHAM, Dialogus de postestate papae et imperatoris, Colônia, 1460, p. I, lib. VI, cap.
6, ff. 87v-88r.
[ 423 ] JEAN GERSON, Tractatus de potestate ecclesiastica et de origine iuris et legum, in Ioannis Gersonii
Opera omnia, Haia, 1728, t. 2, Consideratio 12, cols. 246-250.

203
[ 424 ] PARIS DEL POZZO, De Syndicatu, Lyon, 1548, § An liceat occidere regem tyrannum, ff. 11-12.

204
Capítulo VII
O Sumo Pontífice não só podia, mas também
devia afastar com seu aviso os católicos ingleses da
profissão do referido juramento
1-2. Três objeções propostas pelo rei contra o breve pontifício. 3-4. Fundamentos da
doutrina contrária. O pontífice tem direito a examinar tal juramento. 5-6. O pontífice
está obrigado a reprovar tal juramento. 7-9. Mesmo que a controvérsia sobre o
juramento fosse dúbia, o pontífice deveria dirimi-la. 10. A primeira objeção se volta
contra ele próprio. 11-12. O pontífice não impôs nenhuma pena ao rei. 13. Diferença
entre o breve de Pio V e o de Paulo V. 14. Responde-se à segunda objeção do rei.

1. TRÊS OBJEÇÕES PROPOSTAS PELO REI CONTRA O BREVE PONTIFÍCIO. – Até agora
demonstramos a injustiça e os erros do referido juramento de fidelidade, e refutamos
as vãs escusas. Resta-nos defender os breves pontifícios e responder às querelas e às
objeções do rei, que podem ser brevemente e facilmente elucidadas pelos princípios
postos.
No começo, pois, da Apologia o rei ousa repreender o pontífice porque pelo breve
enviado à Grã-Bretanha, e ali publicado, ele proibiu a todos os papistas que se
deixassem atar por este juramento.[ 425 ] E nele o rei nota especialmente três erros:
um, contra o próprio rei; outro, contra os católicos ingleses; o terceiro, no próprio
modo de refutar o juramento.
Sobre o primeiro, fala assim: Como não há guerra declarada, não se pode negar
que o pontífice agiu contra os bons costumes e contra a usança dos príncipes,
especialmente dos cristãos, ao condenar-me sem me ouvir. Por isso, colige em
seguida: O pontífice, se se estima meu juiz competente, como costuma dizer, por que
me condena sem ouvir minha causa? Se a coisa não é assim, e se entre o papa e eu
não há nenhuma relação (o que é muito verdadeiro), por que se imiscui em obra que
não é sua, e mete a foice em messe alheia, principalmente em matéria civil, que não
lhe diz respeito de modo algum?[ 426 ]
2. Segundo, ele prova que o Papa pecou contra os católicos da Inglaterra, porque os
atirou em míseras angústias: ou renunciam à fidelidade ao príncipe com perigo de
vida e com a perda dos bens, ou em detrimento da fé católica põem em risco a
salvação de suas almas, como pretende o pontífice.[ 427 ] De fato, ambos os perigos
seriam evitados se se lhes permitisse prestar o juramento de boa fé, como já haviam
começado a fazer.
Terceiro, prova que o pontífice errou quanto ao modo da reprovação, porque
emprega muito trabalho em rever a fórmula íntegra do juramento quanto às
palavras, mas depois, com uma palavra geral, condena o juramento, não indicando o

205
que repreende, para que possa ser emendado ou benignamente interpretado por ele,
ou, se ele próprio não quisesse fazê-lo, para que os seus súditos católicos tivessem
alguma escusa ao recusarem o juramento.[ 428 ]
3. FUNDAMENTOS DA DOUTRINA CONTRÁRIA. O PONTÍFICE TEM DIREITO A EXAMINAR
TAL JURAMENTO. – Mas estas objeções procedem de dois princípios errôneos: um é
que o pontífice não tem poder espiritual direto sobre o rei; o outro é que o pontífice
não tem, muito menos, poder também indireto sobre o rei em coisas temporais.
Mas, no livro III, já estabelecemos os dogmas contrários e já os provamos. Tendo-
os como supostos, facilmente se responde a todas as objeções.
Pois primeiro dizemos que o pontífice podia, de direito, examinar a fórmula de
juramento prescrita pelo rei, e enquanto a julgasse contrária à religião cristã ou
sacrílega com relação à reverência do juramento, ele podia reprová-la ou proibi-la.
Prova-se o primeiro, porque o juramento é coisa muito espiritual e sagrada.
Portanto, está diretamente sob o poder espiritual do pontífice. Logo, pertencia ao
múnus pontifício reprovar um juramento sobre coisa iníqua, ou muito perniciosa aos
fiéis, tal qual está contida na fórmula, como mostramos suficientemente acima.
4. Segundo, quando a lei civil excede seus termos temporais, ou quando dispõe das
coisas temporais favorecendo os pecados (ou dando-lhes ocasião), o pontífice,
enquanto seu poder espiritual se estende indiretamente às coisas temporais, pode por
este reprová-la, anulá-la, ou declará-la nula, como mostramos extensamente acima,
no livro III, cap. XXII.[ 429 ]
Mas aquela fórmula, como o próprio rei defende, é certa pragmática régia ou lei
civil, que (como mostramos) excede os limites da matéria civil e temporal, e contém
muitas coisas contrárias à religião e aos bons costumes, de tal modo que os fiéis não
podem observá-la sem prejuízo de suas almas.
Portanto, o pontífice, ao reprová-la, usou do legítimo poder das chaves: da chave
da ciência, declarando a injustiça e a malícia do juramento (tal é o ofício próprio do
pastor, a quem diz respeito pastorear a grei de Cristo); da chave do poder, proibindo o
uso de tal juramento.
Isso também se confirma porque o pontífice tem o direito de defender o poder que
Cristo conferiu a sua Sé. Ora, o juramento é diretamente contrário ao poder
pontifício. Logo, ele podia de direito reprová-lo e proibi-lo eficazmente.
5. O PONTÍFICE ESTÁ OBRIGADO A REPROVAR TAL JURAMENTO. – Ademais,
acrescentamos que ele não só não podia, mas também não devia – pela força de seu
ofício e dever – calar-se ou ocultar a verdade, mas devia admoestar seus súditos a
abster-se de tal juramento.
Prova-se o primeiro: ele está obrigado a pôr às claras mediante a doutrina os
escândalos públicos e as ocasiões de pecado, quando os inimigos da Igreja os
oferecem aos fiéis por fraude e engano.
E semelhantemente está obrigado, enquanto está ao seu alcance, a remover ou
impedir tais perigos por seu poder, maximamente quando a autoridade pública os
aprova e no-lo propõe.
De fato, ambas as coisas estão contidas nas palavras de Cristo: Apascenta as
minhas ovelhas,[ 430 ] onde se lhe concede o poder (como se explicou largamente

206
acima) e, junto com esta concessão, um preceito imposto a São Pedro e a seus
sucessores – o que é evidente tanto pela forma das palavras quanto pela matéria. Pois,
uma vez suposto o próprio encargo, tal preceito é conatural, pelo que disse São Paulo:
os superiores da Igreja prestarão contas a Deus pelas almas dos súditos.[ 431 ]
Ora, nesse juramento concorrem todas estas coisas, a saber, uma latente ocasião
de erro e de engano, por aceitar-se a abjuração do poder pontifício sob cor de
juramento de fidelidade civil, e conseqüentemente uma ocasião de cisma, heresia e
perjúrio.
Portanto, o pontífice estava obrigado, em virtude de seu encargo, a expor a
verdade, não obstante qualquer incômodo, porque com tanto detrimento espiritual não
se deve calar a verdade por incômodos que se temem em razão da malícia dos
homens.
6. Ainda de outro princípio esta obrigação se segue: o pontífice está obrigado a
guardar e a defender os direitos eclesiásticos, como fiel e prudente dispensador.[ 432
] Isto, já que é verdadeiro quanto a todos os bens eclesiásticos, tem maximamente
lugar quanto à guarda da dignidade e do poder pontifícios, pois são os fundamentos
da unidade da Igreja, como o próprio Cristo ensinou, e são maximamente necessários
para a preservação da verdade da fé, como o mostra a própria experiência, e como se
provou no livro III.
Ora, de fato no reino da Inglaterra o poder pontifício é erodido por esse
juramento, mediante poder e perversa doutrina – o que daí pode difundir-se a outros
reinos por perverso exemplo. Logo, o pontífice estava obrigado, não obstante
qualquer dificuldade ou impedimento, a se opor ao juramento e a abominá-lo.
7. MESMO QUE A CONTROVÉRSIA SOBRE O JURAMENTO FOSSE DÚBIA, O PONTÍFICE
DEVERIA DIRIMI-LA. – Ainda mais, acrescentamos por último que não só em matéria
tão clara, como é a perversidade do juramento, mas também se a matéria fosse dúbia,
caberia ao pontífice expor a verdade, para que os fiéis não vivessem em trevas com
respeito a assunto tão grave e perigoso.
Assim ensina de modo geral Inocêncio III, no capítulo Per Venerabilem (título
Qui filii sint legitimi),[ 433 ] e nos aduz aquilo de Deuteronômio [17:8-12]: Se vires
que teu juízo é difícil e ambíguo, etc., até à parte: Aquele porém que, deixando-se
levar pela soberba, não quiser obedecer ao mandado do sacerdote, que nesse tempo
for o ministro do Senhor, teu Deus, nem ao decreto do juiz, esse homem morrerá.
Esta lei, embora diretiva e moral, ainda agora tem lugar, não em virtude da Lei
Antiga, mas em virtude da fé evangélica, porque, suposto o poder de sumo sacerdote
da lei da graça, aquela obrigação segue-se necessariamente da lei como algo quase
conatural àquele poder.
Daí tem-se que a razão é adequada, pois a matéria é espiritual, tanto porque
pertence à doutrina da fé e aos costumes (cuja explicação cabe aos pastores da Igreja
e não aos reis, como se provou suficientemente acima pela Escritura e pelos Padres),
quanto também porque atinge proximamente a salvação das almas, pois examina se
tal juramento é nocivo à alma ou não. Logo, um juízo em tal dúvida cabe aos pastores
de almas, e principalmente à sua cabeça.

207
8. Aqui há que se fazer uma confirmação e uma explicação: quando nasce uma
controvérsia similar entre um rei (mesmo católico) e o Papa, para saber se algum
juramento é lícito e consentâneo à fé, certamente não se deve dirimir a controvérsia
pela guerra, porque nem a guerra é um meio conveniente para declarar a verdade
moral, nem seria esta uma maneira conveniente de prover a Igreja nas coisas
espirituais, porque daí necessariamente nasce o cisma, e o reino dividido em si
mesmo não pode subsistir.[ 434 ]
Tampouco tal controvérsia pode ser encerrada por árbitros, porque, ao se declarar
uma verdade moral, tal juízo sobre matéria dúbia não transcende a opinião humana,
nem pode ser dado por um árbitro com maior poder; por isso, não é suficiente para a
segurança da Igreja, nem pode o pontífice se submeter a tal juízo. Portanto, é
necessário que tal controvérsia seja dirimida pelo rei ou pelo pontífice.
Ora, ninguém que ler as Escrituras preferirá nesse tema o poder régio ao
pontifício, porque este é superior simpliciter, é espiritual, e pertence ao pastor vigário,
a quem Cristo comissionou a direção das ovelhas na fé e na moral.
Logo, o rei deve, em semelhante controvérsia, ser dirigido e governado pelo
pontífice; como uma ovelha, deve ser conduzido e apascentado pelo pastor.
9. Disto se prova suficientemente que o rei da Inglaterra não só se queixa sem razão
do Sumo Pontífice, que deu um juízo sobre a sua fórmula de juramento, mas também
peca gravemente ao discordar de seu juízo, quando deveria qual súdito obedecê-lo,
principalmente em casos espirituais, aos quais pertence evidentemente a controvérsia
sobre o juramento.
Ocorre que até agora ele não pôde apresentar nenhuma escusa ou defesa de seu
juramento, como se mostrou na primeira parte deste livro; e o que dissemos ali prova
que não é possível encontrar-lhe nenhuma escusa ou defesa.
Tampouco objetou ao breve pontifício algo grave ou de alguma importância,
principalmente no que tange ao ponto da causa principal, que é sobre a honestidade
do juramento, como veremos em seguida.
10. A PRIMEIRA OBJEÇÃO SE VOLTA CONTRA ELE PRÓPRIO. – Assim, em sua primeira
repreensão, em que argüi que o pontífice o condenou sem ouvi-lo e sem que houvesse
guerra declarada entre eles, o rei peca de múltiplos modos no argumento.
Primeiro, porque seu raciocínio sobre a guerra não declarada é impertinente. Pois
mesmo entre príncipes temporais (maximamente entre cristãos), embora nenhum
deles esteja sujeito a outro, não é lícito condenar a outro sem ouvi-lo, mesmo após
uma guerra declarada. Porque, para que uma guerra seja justamente declarada, é
necessário que o agressor não se mova contra uma parte não ouvida. Pois afirma
Agostinho:[ 435 ]Definem-se justas as guerras que vingam as injúrias, se o povo ou a
cidade que serão atacados negligenciaram vindicar suas ações ímprobas, ou
devolver o que arrebataram mediante injúrias. Ora, estas condições não podem
aplicar-se a uma parte não ouvida. Portanto, mesmo numa guerra justa, não se pode
dar justa condenação contra uma parte não ouvida. Portanto, tampouco pode um rei,
após declarada a guerra, condenar um igual ou superior sem ouvi-lo, por uma
sentença ou de outro modo, tal como o rei parece supor em sua objeção.

208
Em segundo lugar, porque, embora entre outros príncipes igualmente soberanos
isto proceda algumas vezes, há uma ordem muito diversa entre ele e o pontífice, e por
isso abusa da comparação, porque de iure é súdito do pontífice, em razão do batismo
e da fé que nele professou.
Porém, se o próprio rei não receia negar esta verdade e professar publicamente o
contrário, como pode queixar-se de que é condenado sem ser ouvido?
Ademais, quando o rei diz que não há guerra declarada entre ele e o pontífice, se o
entende de guerra material e corporal, o que isto tem que ver com uma causa que é,
por assim dizer, direta e principalmente espiritual? Mas uma guerra maximamente
espiritual foi declarada entre o rei da Inglaterra e o Sumo Pontífice, e quem primeiro
a declarou publicamente foi Henrique, a quem Jaime, seu sucessor, imita. E isto é
suficiente para não poder, embora condenado, queixar-se de que foi condenado sem
ser ouvido.
11. O PONTÍFICE NÃO IMPÔS NENHUMA PENA AO REI. – Por último, por que se queixa de
ser condenado? Pois em nenhum dos dois breves pontifícios se lê nenhuma
condenação, nenhuma excomunhão, nenhuma deposição, nem sequer foi infligida
alguma pena nem foi dada uma sentença.
Pois, se ele chama de sua condenação a reprovação e a proibição do juramento,
então diz sem razão que foi condenado sem ter sido ouvido, porque a fórmula do
juramento é ouvida e lida em todo lugar, o que é suficiente para que seja condenada.
Nem é necessário, além disso, ouvir a pessoa, porque não se deu ao rei nenhuma
sentença declaratória de crime cometido pela promulgação e petição de tal juramento,
nem se lhe deu pena pelo mesmo crime.
Mas o rei diz que o pontífice o condenou sem ouvi-lo, em parte por arrolá-lo
entre os perseguidores eem parte por ordenar aos católicos ingleses que se
abstenham do juramento.[ 436 ] Ora, nenhum dos dois diz respeito a uma condenação
própria e jurídica, que não se deve dar contra uma parte não ouvida. Pois às vezes é
lícito julgar uma opinião privada, manifesta pela fama pública e por seus efeitos, e
falar de alguém como autor de algum crime, mesmo que ele não seja ouvido antes,
como é manifesto por si.
Mas por que razão o rei da Inglaterra pode ser justamente arrolado entre os
perseguidores dos fiéis, vê-lo-emos no capítulo X.
Sobre a proibição do juramento, já dissemos que o rei foi suficientemente ouvido
quanto a esta parte, ao se ler a própria fórmula do juramento – e nem ele nega, nem
pode duvidar, que por sua autoridade ela foi feita e proposta a seus súditos.
12. Portanto, se o rei fala apenas de condenação privada, por assim dizer, o dilema
que ele põe nada acrescenta ao assunto, porque para julgar algo privado não é
necessário haver um juiz competente, isto é, que disponha de jurisdição. Tampouco é
sempre necessário, como tenho dito, que se ouça a pessoa julgada: é bastante que haja
causas suficientes, razões e motivos para assim julgar.
Tampouco o dilema está retamente adequado à segunda parte da proibição do
juramento, porque, para reprovar uma falsa doutrina, não é necessário ser juiz
competente de seu autor, nem é necessário ouvi-lo de outro modo que por seus
escritos.

209
Já para proibir sob preceito tal juramento, é de fato necessário ter-se jurisdição
sobre aqueles a quem se dá o preceito, jurisdição esta que os católicos ingleses
reconhecem no Sumo Pontífice enquanto pastor. Logo, o pontífice pôde impor tal
proibição aos ingleses, principalmente porque não tanto promulga uma lei nova, mas
declara e confirma com seu preceito a lei divina e natural que manda evitar um
juramento ilícito e fugir da profissão de um falso erro.
Mas com respeito ao rei, embora seja muito verdadeiro que o pontífice é seu juiz
competente, como mostramos acima, neste ato não se exerceu nenhum juízo de
jurisdição sobre o rei. Pois, mesmo que o autor de semelhante juramento fosse um rei
pagão não batizado, se o juramento envolvesse algum erro sobre a fé cristã ou uma
injúria contra nossa religião, o pontífice poderia reprová-lo e proibi-lo aos católicos
que vivem sob algum imperador gentio, como é manifesto pelo que dissemos até
agora.
13. DIFERENÇA ENTRE O BREVE DE PIO V E O DE PAULO V. – Por isso é sem razão que
o rei, na página 7 de sua Apologia, compara e equipara o breve pontifício de Paulo V
à sentença dada por Pio V contra Elizabete, dizendo: Porventura pôde ele (i.e. Pio V)
estabelecer algo mais acerbo e grave do que o que este pontífice estatui contra mim?
Pois não se pode discernir facilmente que diferença há entre isentar os súditos do
vínculo de obediência, preceituando-os a lançarem mão das armas, como fez Pio V, e
mandar aos súditos que não obedeçam ao juramento de fidelidade solicitado pelo
príncipe, como faz o pontífice atual.[ 437 ]
Embora o que ambos os pontífices fizeram tenha sido muito justo, os dois feitos
são tão distantes que facilmente se discerne a diferença entre eles.
Pois Pio V proferiu sentença contra a pessoa da rainha, proclamou uma pena
gravíssima, e usou de seu poder contra ela de modo severo, embora justo.
Por outro lado, Paulo V não proferiu em seus breves nenhuma sentença contra o
rei da Inglaterra, nem o prejudicou até agora com nenhuma pena, nem declarou com
sua autoridade que ele incorreu em alguma pena, mas apenas externou a reprovação
do juramento, e proibiu, por conseguinte e necessariamente, a obediência ao rei que o
ordenava. Não quis, porém, como o rei sempre alega, que os súditos não prestassem a
seu rei um juramento de fidelidade, simpliciter e em termos absolutos, mas que não
prestassem esse juramento em particular, que é injurioso à fé e à religião cristã.
E por isso são coisas muito diferentes o proibir aos súditos do rei este juramento e
o isentá-los da obediência civil. Eles podem, de fato, sem ser coagidos a este
juramento, prestar a obediência civil e jurar aquilo que não repugna à pureza da fé
cristã.
14. RESPONDE-SE À SEGUNDA OBJEÇÃO DO REI. – À segunda objeção, sobre o
detrimento e o perigo para os súditos, respondemos que os súditos católicos foram
reduzidos a esse estado de angústia não porque o pontífice ensinou a verdade e
porque proibiu o que é mal por si, mas por causa do rei que ordenou tal juramento.
Supostas a força e a coação do rei, não pôde o pontífice calar a verdade ou dissimular
o erro, mas cumprir o seu encargo, como é justo.
À terceira outros responderam muito bem: o pontífice escreveu como legislador, e
por isso expôs brevemente o que se devia evitar.

210
Mas podemos acrescentar que não convinha ao pontífice designar o que
repreendia no juramento, pois do princípio ao fim não há quase nada nele que não se
deva evitar ou eludir, porque, em cada uma de suas partes (como mostramos), ou
inculcam-se os mesmos [pontos], ou diferentes. E todas as suas sentenças estão tão
conexas entre si, que dificilmente alguma delas está livre da suspeita de erro.
Portanto, com um conselho não só prudente, mas também necessário, o pontífice
não designou nada em particular que fosse digno de repreensão, para que não
parecesse aprovar tacitamente o resto.

[ 425 ] Apologia, p. 5.
[ 426 ] Op. cit, pp. 6-7.
[ 427 ] Op. cit, pp. 5-6.
[ 428 ] Op. cit, p. 8.
[ 429 ] Ausente desta edição.
[ 430 ] João 21:16.
[ 431 ] Hebreus 13:17.
[ 432 ] Lucas 12:42.
[ 433 ] Decretales Gregorii IX, Paris, 1511, IV, tít.17, c.13 (Per venerabilem), fol. ccccxxi.
[ 434 ] Marcos 3:24.
[ 435 ] Quaestiones in Heptateuchum, lib. VI, q. 10 (PL 34, 781).
[ 436 ] Apologia, p. 6.
[ 437 ] Op. cit., p. 7.

211
Capítulo VIII
Podem os ingleses que admitem o juramento escusar-se de
culpa por alguma razão ou de algum modo?
1. Duas outras objeções contra o breve. 2. Responde-se à primeira. 3. Confuta-se a
segunda. 4. Se quem aceita o juramento pode escusar-se de pecado. Primeira escusa.
5. Segunda escusa. 6. Assim se lê no breve pontifício como Belarmino o referiu. 7.
Terceira escusa. 8. Refuta-se a primeira escusa. 9. É um grave pecado abjurar o
poder pontifício de depor o rei por justa causa e com um único ato. 10. Mostra-se um
argumento ad hominem. Fundamento do dito poder pontifício. 11-13. Refuta-se a
segunda escusa. 14. Refuta-se a confirmação do poder pontifício. Exclui-se uma
evasiva. 15. Em que sentido e para que pessoas a terceira escusa tem lugar.

1. DUAS OUTRAS OBJEÇÕES CONTRA O BREVE. – Após o começo ou prefácio de sua


Apologia, o rei examina à letra o primeiro breve do pontífice e em seguida aplica-se a
impugná-lo.
Podemos dividir o breve em três partes: primeiro, o pontífice antepõe algumas
poucas palavras para consolar os fiéis em sua tribulação e para instruí-los na moral;
em seguida, reprova e proíbe o juramento; por fim, exorta seus filhos à resistência
corajosa pela fé e à concórdia da caridade.
Todas estas coisas o rei impugna na mesma ordem, mas nos pareceu mais cômodo
concluir primeiro o tema do juramento, e depois divagar com o rei pelos demais
assuntos.
Assim, após apresentar a fórmula do juramento, o pontífice veta que se o preste,
com as seguintes palavras: Sendo assim, deve ser transparente a vós, por suas
próprias palavras, que tal juramento não se deve prestar, para que se resguardem a
fé católica e a salvação de vossas almas, pois contém muitas coisas que abertamente
adversam a fé e a salvação.
Contra estas palavras o rei não objeta nada novo, mas repete duas impugnações
que, embora freqüentemente as inculque, não acrescentam nenhuma força senão a
acrimônia das palavras. A primeira é que o pontífice impugna o juramento com
poucas palavras, e o refuta sem nenhuma prova. E acrescenta o rei: Aqui convém o
velho ditado difundido acerca do filósofo: ele diz muitas coisas, mas prova poucas,
ou melhor, não prova nada.[ 438 ]
A outra objeção é que uma profissão de fidelidade ao príncipe não seria capaz de
adversar a fé e a religião; e sobre a asserção contrária ele diz: Isto excede de tal modo
minha teologia – por pequena que ela seja – que não posso julgar uma afirmação
inteiramente nova e totalmente exótica e que não deveria ser proferida pela boca
daquele que vindica muito insipidamente ser o bispo universal e o pastor ecumênico

212
das almas de todos os cristãos.[ 439 ] E o rei repete este argumento nas páginas 30 e
31 da Apologia.[ 440 ]
2. RESPONDE-SE À PRIMEIRA. – Ora, como dissemos, se o leitor pio e considerado
observar atentamente essas objeções, não encontrará nenhuma força de argumento
nem solidez de doutrina, mas apenas ousadia no falar.
À primeira repreensão, pois, para sermos breves, já no capítulo precedente
rendemos as justas razões.
Mas à nova redargüição – de que o papa diz, mas não prova –, Belarmino[ 441 ]
responde retamente que aquilo que o rei alega não procede de um homem fiel e
cristão, mas de um filósofo pagão e infiel, quer seja Aristóteles falando de Moisés,
como o rei indica, quer seja Averróis falando de Cristo, como dizem, quer seja
Galeno, como consta dele próprio. De fato, todos estes se regiam não pela fé, mas
pela opinião e pelo juízo próprio, e nisto são imitados pelos hereges; por isso, não é
de admirar se objetem ao pontífice que outros se opunham a Cristo ou a Moisés.
Mas o pontífice, visto que falava a fiéis – a quem foi dito: Se não credes, não
entendereis[ 442 ] –, não teceu uma disputa nem agregou uma prova prolixa, mas
julgou suficiente a proposição da simples verdade. Porque, como falava a pessoas
ortodoxas, que não duvidam de sua autoridade e poder, e como entre elas há muitos
rudes e ignorantes que não conseguem seguir os argumentos e provas teológicas, não
era conveniente onerá-los com razões e provas, mas ensinar a simples verdade. Ainda
mais, tampouco era oportuno, num assunto de tamanha importância, enredar os
doutores em opiniões e razões humanas ambíguas, mas sim confirmar a verdade com
a autoridade pontifícia e desembaraçar o assunto com uma breve declaração dela.
Acrescento, porém, que também por suas palavras o pontífice insinua uma prova
certíssima e evidentíssima, dizendo: Deve ser transparente a vós, por suas próprias
palavras. De fato, não é necessária outra prova senão as palavras do juramento, que
são suficientíssimas, como demonstramos nos seis primeiros capítulos, os quais
podem servir como certo comentário a estas palavras do pontífice.
3. CONFUTA-SE A SEGUNDA. – À outra objeção já se respondeu muitas vezes que não é
oportuno falar do juramento de fidelidade civil em geral, mas desse juramento em
particular, que trata antes da abjuração da fidelidade ao pontífice do que da fidelidade
ao rei. Pois um juramento de fidelidade, considerado em sentido geral, não repugna à
religião romana nem à fé cristã (que são a mesma coisa), nem tampouco à salvação
dos fiéis; e não há teólogo digno do nome que o ignore.
Contudo, para falar livremente a favor da verdade, aquele que atribuiu essa
asserção ao pontífice não ponderou suficientemente, porque em nenhum de seus
breves, nem em quaisquer decretos dos pontífices, encontra-se qualquer vestígio dela.
Mas esse juramento de infidelidade evidentemente se opõe à verdadeira religião, e é
contrário à salvação das almas; é isto o que diz o pontífice, e isto é muito verdadeiro e
evidente pelas palavras do juramento – como já respondemos e provamos, e como já
o fez o cardeal Belarmino antes de nós.
O rei nada responde a estas provas, mas divaga em seguida na sua Apologia, para
provar que os reis têm autoridade e poder nas coisas temporais, como se algum
católico o negasse. Daí não aduzir nada que pertença a algum ponto da presente

213
controvérsia. De fato, o que ele aduz prova que os reis têm a soberania sobre as coisas
temporais, mas não prova que não a tenham subordinada e sujeita ao poder espiritual
do pontífice, como se mostrou muito largamente no decorrer do livro III, onde se
respondeu a tudo que o rei aqui propõe, e por isso não nos resta nada a dizer sobre
essa objeção.
Apenas não deixarei de advertir que o rei, na página 33, afirma sem razão que o
pontífice foi temerário e movido por rumores incertos ao promulgar o breve. Pois está
evidentemente claro pelas pouquíssimas palavras do pontífice que ele foi movido, ou
melhor, obrigado a proibir aos fiéis tal juramento não por boatos ou rumores, nem por
outros testemunhos extrínsecos, mas pelas nítidas palavras do próprio documento.
Quanto às coisas que o rei declara nas partes seguintes e até o final, elas não são
diferentes. Omito-as com prazer, porque só se referem a fatos a que Belarmino
respondeu copiosamente.
4. SE QUEM ACEITA O JURAMENTO PODE ESCUSAR-SE DE PECADO. PRIMEIRA ESCUSA. –
Mas alguém pode finalmente pôr em dúvida, não obstante essa parte do breve
pontifício, se quem não recusa a prestação do juramento pode escusar-se da culpa de
infidelidade ou de sacrilégio.
E a razão da dúvida pode ser, em primeiro lugar, porque o juramento não parece
negar nem abjurar nenhum dogma de fé. De fato, no máximo se nega o poder do
pontífice para depor um rei, e o resto pende deste princípio. Porém, embora creiamos
ser verdadeiro que o pontífice tem esse poder, ele não parece pertencer aos dogmas de
fé, porque nem está expresso na Escritura, nem foi definido pela Igreja como de fé.
Portanto, embora esse poder seja negado pela prestação do juramento, não se negará
nenhum dogma de fé.
Daí se pode inferir, enfim, que ninguém está obrigado a recusar o juramento com
grande dano para si e evidente perigo de morte, porque, se não contém uma negação
externa da fé, não é intrinsecamente mau nem contrário à religião; e assim quem o
presta pode, por razão tão grave, escusar-se de culpa.
5. SEGUNDA ESCUSA. – Em segundo lugar, pode aumentar-se a escusa, porque as
palavras do juramento não são tão claras que não possam ser concebidas e juradas
num outro sentido, em que tampouco se abjure o poder do pontífice para depor os
reis. Portanto, deste modo o juramento é lícito e escusável de culpa.
Prova-se a conseqüência: embora quem produz o juramento o exija num sentido
perverso e mau, quem jura não está obrigado a confirmar a sua intenção, mas pode
valer-se da ambigüidade de que padecem as palavras; assim, nem jura contra a
verdade, nem contra a religião ou confissão da fé, porque quem jura não tem tal
intenção.
Assim, a dificuldade parece residir na antecedente, que assim se prova: a primeira
cláusula, em que se jura que o rei é senhor soberano, etc., pode ser entendida em
sentido são, com respeito ao senhorio temporal. E, quando se acrescenta que o Papa
não pode depô-lo, quem jura pode subentender arbitrária e caprichosamente, como
sói falar o rei da Inglaterra. Portanto, as suas palavras podem ser entendidas assim,
como se estivessem expressas tais palavras subentendidas – ou, o que dá no mesmo,

214
se poderia subentender a expressão sem causa legítima. As mesmas expressões
podem conceber-se na mente, e repetir-se nas demais palavras da mesma cláusula.
E na segunda cláusula isto pode fundamentar-se especialmente nestas palavras: e
defendê-los-ei a ele e aos outros com todas as minhas forças contra todas as
conspirações e contra quaisquer atentados. De fato, conspirações e atentados
significam, no seu pior sentido, conjurações e tumultos atiçados injustamente.
Qualquer um pode, portanto, tomar as palavras neste sentido, e não pecará por jurá-
las neste sentido.
Logo, todo o precedente pode ser concebido e jurado segundo esse mesmo
sentido, porque no próprio contexto as palavras posteriores explicam e limitam as
anteriores. E assim, conseqüentemente, as demais cláusulas admitem uma escusa
similar, como se patenteia facilmente a quem considera.
6. ASSIM SE LÊ NO BREVE PONTIFÍCIO COMO BELARMINO O REFERIU. – Essa
ambigüidade costuma ser confirmada pelos ingleses, como ouvi de pessoas dignas de
fé, porque o juramento foi produzido em língua inglesa, e, no original, para significar
“matar o rei” consta o termo murder [assassinar], que em inglês significa “matar
injustamente”, e assim se a aceita comumente. Portanto, também no juramento é
lícito aceitá-la em seu sentido literal e comum, sobretudo ante um caso de perda da
vida e de todos os bens.
E neste sentido é verdade que nunca é lícito aos súditos assassinar (murder) o rei,
e é herético afirmar que isto é lícito às vezes, assim como é herético dizer que às
vezes é lícito cometer uma injustiça. Portanto, as outras palavras podem ser reduzidas
ao mesmo sentido, por sua conexão.
Ou certamente porque toda proposição, sendo copulativa, é falsa em razão da
outra parte. De fato, na terceira cláusula se propõe copulativamente a abjuração da
proposição: é lícito depor e matar o rei (ambos injustamente). Logo, a proposição
toda será falsa e herética em razão de uma parte, e assim poderá ser abjurada sem
pecado, porque a proposição copulativa que tem uma parte falsa é simpliciter falsa, e,
de modo similar, se uma parte é herética, a outra será simpliciter herética.
7. TERCEIRA ESCUSA. – A terceira evasiva popular costuma ser a escusa da ignorância,
a qual alguns dos ingleses tentaram provar que não só poderia ser invencível entre
eles, mas que de fato o era. Porque a opinião que afirma ser lícito prestar o juramento
passou a ser provável pela autoridade de muitos varões, e por várias razões e
explicações das cláusulas. Portanto, embora o juramento seja em si perverso, como
declarou o pontífice, contudo, na prática, os que o admitem não pecam ao se
conformar a uma opinião provável, em caso de tamanha necessidade e de extremo
perigo.
Estas são as escusas que – segundo ouço – encontraram aqueles que querem
permitir semelhante juramento. Na verdade, porém, são antes fraudes para enganar as
almas, em vez de defesas legítimas daquela promessa contrária à verdadeira religião,
como o provaremos ao discorrer sobre cada uma delas.
8. REFUTA-SE A PRIMEIRA ESCUSA. – A primeira escusa antes poderia ser descoberta
por hereges do que por teólogos fiéis, pois o que se admite em seu princípio é falso e
herético.

215
Pois a proposição: O Papa tem poder para depor reis heréticos e pertinazes, e que
são perniciosos a seu reino em coisas atinentes à salvação da alma, deve ser tida e
crida entre os dogmas da fé. Ora, ela está contida nas palavras de Cristo ditas a Pedro
de maneira singular, e por razão particular: Tudo que ligares e tudo que desligares,[
443 ] e Apascenta minhas ovelhas,[ 444 ] como as entendeu a Igreja Católica, que é
coluna e firmamento da verdade,[ 445 ] e como declarou muito abertamente
Bonifácio VIII na extravagante Unam Sanctam,[ 446 ] ao concluir que esta verdade é
necessária à salvação. E assim todos os doutores católicos, tanto juristas como
teólogos, aceitam essa verdade com o mesmo grau de certeza, como disputamos
claramente no livro III e repetimos várias vezes.
Portanto, como no juramento se abjura esse poder, claramente se abjura a fé
católica. Assim, se alguém o faz de coração, perde a fé e incide em heresia; se porém
o faz simuladamente, comete múltiplo perjúrio e peca contra a confissão da fé, como
é evidente.
9. É UM GRAVE PECADO ABJURAR O PODER PONTIFÍCIO DE DEPOR O REI POR JUSTA CAUSA
E COM UM ÚNICO ATO. – Mas acrescento também que é muito falso o que na última
parte da escusa se admite, porque, embora não se tratasse de uma verdade de fé em
sentido estrito – ou, como dizem, em primeiro grau –, mas certa por certeza teológica,
seria gravíssimo pecado abjurar aquela verdade e aquele ato de poder pontifício.
A prova está na razão dada há pouco: se a abjuração é fingida, cometem-se muitos
perjúrios e coisas injuriosas e perniciosas ao pontífice, que são no mínimo contrárias
à reverência e à obediência devidas a ele por direito, e incluem evidentemente a
malícia do cisma (o que o rei não ousa negar de si mesmo, embora dissimule sua
malícia, como mostramos suficientemente no livro I).
Se a abjuração é de coração, comete-se cisma mais grave e mais formal, por assim
dizer, e o juramento, embora não seja contrário à mente de quem jura, faz-se ipso
facto iníquo e vínculo de iniqüidade. Pois, em matéria gravíssima e necessária à
unidade e à concórdia da Igreja, negar certa verdade, mesmo que não seja de fé per se
primo, é pecado gravíssimo contra a caridade da Igreja e contra a justiça, por negar à
Sé Apostólica o que é seu por título legítimo. Portanto, jurar tal negação é sacrílego e
pernicioso. Não deve, portanto, ser admitido para evitar quaisquer incômodos
temporais.
10. MOSTRA-SE UM ARGUMENTO AD HOMINEM. FUNDAMENTO DO DITO PODER
PONTIFÍCIO. – Propomos um argumento ad hominem: certamente não é de fé que
Jaime é o rei da Inglaterra, pois em nenhum lugar isto foi revelado, nem sequer é
teologicamente certo. É suficiente crê-lo com certa fé humana moralmente certa, e,
contudo, o rei não negará que jurar que “Jaime não é rei da Inglaterra” seria um grave
pecado, porque isto significaria, ou jurar algo que é falso na realidade, ou ao menos
jurar algo que não se pode crer ou afirmar como verdadeiro sem grande temeridade.
Por isso o rei concederia facilmente que tal juramento não pode ser feito, mesmo para
se evitar a morte.
Mas, não importa quanto o rei tergiverse em seu Prefácio, o fato de que o
pontífice tem poder sobre o próprio rei é algo muito mais certo do que o fato de ele
ser rei verdadeiro. Com efeito, o primeiro funda-se em princípios mais abundantes e

216
mais elevados do que o segundo. Pois o fato de que Jaime é verdadeiro sucessor do
reino só se pode fundar sobre certa tradição e prova humanas; e ele mesmo tinha não
pouco temor de que isto fosse posto em dúvida, porque ele é herético e sucessor de
uma rainha já declarada herética. E tal temor apenas pôde ser removido com a
aceitação pública do reino unida à paciência e à tolerância dos pontífices.
Já o poder do Papa sobre o rei se funda na palavra de Cristo, na confissão comum
da Igreja, nos decretos dos pontífices e dos concílios, nas doutrinas dos Padres e de
excelentes teólogos católicos, prudentes intérpretes de ambos os direitos, e no
costume freqüente e inveterado.
Como, portanto, pode comparar-se uma certeza à outra? Se, pois, o rei concede
sem dificuldade que é iníquo os seus súditos abjurarem o rei, como ousa discutir se é
iníquo e pernicioso aos fiéis cristãos abjurar o direito e o poder do pontífice, e a
obediência a ele, como se faz evidentemente no juramento?
11. REFUTA-SE A SEGUNDA ESCUSA. – A segunda escusa pode ter sido encontrada por
homens tímidos e pouco constantes na fé e na caridade. Ela é, de fato, muito frívola e
repugna às palavras do juramento de muitos modos.
Primeiro: no final do documento se acrescenta uma cláusula que exclui todo e
qualquer sentido extraordinário das palavras, quer por expressões subentendidas, quer
de qualquer outro modo. Ela reza assim: Reconheço todas estas coisas claramente e
sinceramente, e juro-as segundo as palavras assim expressas por mim, e segundo o
sentido e o entendimento chãos e comuns das palavras, sem nenhuma equivocação,
ou evasão mental, ou qualquer reserva secreta.[ 447 ]
Se alguém profere estas palavras sem intenção de cumpri-las é ipso facto perjuro;
se as professa de coração e de espírito, não tem lugar a segunda escusa, como se
patenteia facilmente a quem o considera. Pois, embora possamos conceder que as
expressões sem causa legítima ou caprichosamente possam estar subentendidas na
abjuração do poder do pontífice enquanto considerada em si mesma e sem as outras
cláusulas adjuntas, ainda assim, supondo-se a última cláusula, não se pode
acrescentar sem perjúrio tal emenda tácita ou mental.
12. Ademais, no juramento não se faz apenas a profissão de nunca matar o rei, nem
de cooperar com alguma conspiração contra ele ou coisas similares que pertencem ao
domínio dos atos (e que podem entender-se de atos injustos), mas se abjura o próprio
poder do pontífice – e isto com tantas expressões distributivas, que não há lugar para
subentender outro sentido ou qualquer limitação.
De fato, assim se diz na primeira cláusula: E que o papa, nem por si mesmo, nem
por outra autoridade qualquer da Igreja ou da Sé Romana, nem por qualquer
intermédio com quaisquer outros, não tem poder nem autoridade para depor o rei,
etc. Estas palavras não podem de modo algum se restringir ao poder de depor
injustamente e sem causa. Primeiro, porque todo poder lhe é negado, tanto em
particular, com respeito a esse rei, quanto em geral, com respeito a todos os
sucessores, como se acrescenta na segunda cláusula com as expressões distributivas:
não obstante qualquer declaração ou sentença de excomunhão ou privação, feita ou
concedida, ou que haja de ser feita ou concedida. Segundo, também porque se jura
virtualmente que tal sentença ou deposição não podem ser justas nem eficazes por

217
defeito de poder, ainda que o rei que exige o juramento (ou a quem se o jure
especificamente) seja herético ou cismático.
13. Além disso, de modo similar e com as mesmas amplificações, abjura-se o poder
do pontífice para isentar os súditos do vínculo de obediência, e afirma-se que os
súditos, não obstante qualquer isenção, devem defender o rei mesmo contra o Papa,
sem levar em conta qualquer censura ou excomunhão.
Isto não pode ser restringido mentalmente a uma excomunhão injusta ou nula,
porque as palavras são tão universais que repugnam tal limitação: não obstante
qualquer declaração ou sentença de excomunhão. Destas palavras não se pode
excluir uma declaração de que tal rei é herético ou cismático (embora verdadeira e
feita pelo Papa mediante qualquer poder seu), pois estas palavras abarcam todas elas.
Por fim a profissão, a confissão e a abjuração são de todo diretamente contrárias
às definições dos pontífices e dos concílios, e, pois, são uma expressa negação
exterior dos dogmas da fé, que nunca pode fazer-se lícita mediante interpretações ou
expressões subentendidas, porque é contrária à obrigação de confessar a fé e à
obrigação de não negá-la nem sequer exteriormente; para não mencionar o escândalo
público dos outros fiéis, que não pode ser separado de tal ação. Tal juramento não
deve ser feito nem para evitar a morte, como nos ensina o exemplo de Matatias
Macabeu.[ 448 ]
14. REFUTA-SE A CONFIRMAÇÃO DO PODER PONTIFÍCIO. EXCLUI-SE UMA EVASIVA. –
Assim, como resposta à confirmação tomada da palavra vernácula inglesa murder,
que dizem significar o mesmo que matar injustamente, dizemos que, se o juramento
apenas propusesse que é herético que os súditos possam assassinar (murder) o rei,
seria tolerável esta escusa. Mas ali não se propõe apenas isto, mas também que é
herético que os súditos possam depor os príncipes excomungados e privados pelo
Papa, o que é contrário à doutrina da fé.
Tampouco tem lugar a evasiva de que uma expressão copulativa inteira é falsa em
razão de uma das partes. Primeiro porque, na forma do juramento, como consta no
livro régio, lê-se disjuntivamente depor oumatar. Segundo, porque, embora se leia
copulativamente depor ematar, o sentido vem a ser o mesmo, porque não se jura que
todo o conjunto ou proposição hipotética sejam heréticos, mas se jura que todas as
partes são heréticas, ou seja, que os súditos podem depor e podem matar (murder) o
príncipe deposto pelo papa; e assim sempre se condena como herética aquela
proposição católica e de fé certa.
Acima de tudo devido a que a palavra murder é posta aí porque se supõe que o
assassinato do rei, não obstante qualquer sentença do Papa, é uma traição iníqua e
algo contrário à fidelidade devida ao rei; e assim tudo isso é ali jurado.
Ademais, embora a palavra murder tomada em si mesma tenha tal significado, no
juramento ela é explicada e expandida por muitas outras palavras, de tal modo que
não tem lugar a limitação, principalmente quanto a todo o juramento e quanto a todas
as suas cláusulas, nas quais se faz freqüentemente uma expressa, absoluta e universal
abjuração do poder papal de punir os reis, mesmo os rebeldes e pertinazes, e ademais
se reconhecem no rei a autoridade e o poder para exigir tal juramento, e ainda se

218
imiscuem outras coisas que não podem ser em verdade juradas ou escusadas de
perjúrio mediante equivocações de palavras ou sentidos subentendidos.
15. EM QUE SENTIDO E PARA QUE PESSOAS A TERCEIRA ESCUSA TEM LUGAR. – Acerca da
terceira escusa, é necessário distinguir os tempos e as pessoas.
Quanto aos tempos, podemos falar do tempo anterior à declaração do Sumo
Pontífice, e do tempo posterior a ela.
No primeiro tempo, poderia porventura haver alguma contenda ou diversidade de
opiniões entre os católicos, resguardando-se a consciência, como logo direi.
Mas, após a declaração do pontífice, de modo algum se pode pensar numa opinião
provável que fosse contrária à sua decisão, porque ele tem o poder de esclarecer estas
dúvidas atinentes aos bons costumes e à fé – e junto a ele os súditos estão obrigados a
permanecer, pois de outro modo tal poder seria inútil. E sobre isto já falamos
suficientemente nas partes anteriores.
Já quanto às pessoas, dentre elas é preciso distinguir os que são doutos – que
podem por si examinar a qualidade do juramento e dar um juízo acerca dele – e os
que são ignorantes, que precisam ser guiados pela opinião e pelo juízo dos outros.
Acerca destes últimos não há dúvida de que a ignorância possa escusar alguns
deles, se os sacerdotes, que são tidos na conta de probos e doutos, ensinaram-nos que
tal juramento poderia ser prestado com consciência limpa, retendo-se a intenção de
não jurar algo contra a fé ou contra o poder do Papa.
Mas esta ignorância já não tem lugar, mesmo entre os simples, após o breve
pontifício, porque todos estão obrigados a preferi-lo a todos os seus doutores
privados. Se, porém, houvesse alguns demasiado rudes, que não ouvissem nem
entendessem nada da declaração pontifícia, esta ignorância poderia ainda persistir
neles, porque, para tais, é como se o Papa nada tivesse declarado. Contudo, a coisa é
tão notória e pública naquela região, que a muito custo isto poderia dar-se
moralmente.
Mas entre os demais fiéis doutos, que podem por si examinar o peso do
juramento, mesmo se o breve pontifício fosse retirado do caminho, creio que nunca
houve uma opinião provável que ensinasse que a profissão de tal juramento é lícita,
porque suas palavras sempre foram tão claras e tão abundantes, e de tantos modos
atam a consciência e a conduzem à aprovação e à profissão do cisma, que, embora em
alguma partícula ou expressão pudesse ter lugar a evasiva, seria impossível encontrar
um modo provável de honestar ou escusar todo o juramento, e de evadir os seus
perigos, como o prova suficientemente o que ponderamos até aqui acerca de cada
uma de suas palavras.
Portanto, se no princípio alguns homens autorizados por sua doutrina e vida
caíram em tal opinião, guiados talvez por temor ou razão humana, isto foi porque não
consideraram atentamente o assunto. Não é necessário julgar aqui se sua ignorância
foi provável ou não; mas é necessário, creio eu, temer tal mácula e compensá-la tanto
pela penitência quanto pela confissão pública – para que os mais fracos sejam
animados e instruídos a não incorrer nessa fraude – e, se for preciso, lavá-la com o
próprio sangue.

[ 438 ] Op. cit., p. 24.

219
[ 439 ] Op. cit., p. 25.
[ 440 ] Op. cit., p. 30.
[ 441 ] Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Bellarmini..., Roma, 1609, p. 183.
[ 442 ] Originalmente, o texto “Credite ut intelligatis. Nisi enim credideritis, non intelligetis” [“Crede para
entenderdes. Pois se não crerdes, não entendereis”] é de Santo Agostinho. Cf. Sermones de tempore, 212, 1
(PL 38, 1059). Santo Anselmo, em seu Proslogion, cap. 1, empregou a mesma idéia (“credo, ut intelligam.
Nam et hoc credo quia nisi credidero, non intelligam”) [“Creio para entender. Pois creio também nisto: que,
se eu não crer, não entenderei”] (PL 158, 227C). [N. C.]
[ 443 ] Mateus 16:19.
[ 444 ] João 21:16.
[ 445 ] I Timóteo 3:15.
[ 446 ] Extravagantes Communes, Paris, 1511, lib. I, 8, 1 (Unam sanctam), fol. ix.
[ 447 ] Apologia, p. 13.
[ 448 ] “Agora, pois, ó filhos, sede zeladores da lei e dai as vossas vidas pela aliança feita com os vossos
pais.” (I Macabeus 2:50)

220
Capítulo IX
Se é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos hereges
e comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de
cooperação com eles, apenas para evitar as penas
temporais
1. Prefácio. 2-5. Explica-se o preceito divino de confessar a fé exteriormente. 6-7. O
motivo próprio da confissão da fé é a manifestação da fé interior. 8. No preceito de
confessar a fé está incluído um preceito negativo. 9-10. O preceito de confessar a fé e
de não ocultá-la nem sempre é obrigatório. Duas ocultações da fé. 11. Em que tempo
o preceito de confessar a fé é obrigatório. 12. Razão da dúvida. 13. Primeiro
argumento que mostra ser lícito ir às igrejas dos hereges, etc. 14. O segundo. 15.
Terceiro argumento. 16. É ilícito aos católicos acudir às igrejas dos cismáticos e
hereges para observar seus ritos. 17. A declaração do Sumo Pontífice é
maximamente consentânea às Sagradas Escrituras. 18. É também conforme aos
Santos Padres. Há um preceito apostólico proibindo tal comunhão. 19. Esta doutrina
foi confirmada por um milagre. 20-21. Refutam-se duas evasivas. Primeiro
argumento que prova que tal comunhão é ilícita. 22. Confirmação desta doutrina. O
argumento de Agostinho a explica melhor. 23. Outra razão por que se explica a
doutrina proposta. 24. Exemplo de Eleazar. 25. Por que o preceito de confessar a fé,
contido no artigo, é obrigatório. 26. Azpilcueta Navarro o supõe e ensina
abertamente. Exemplo de Santo Hermenegildo. 27. Confirma-se a doutrina
transmitida pelo argumento do escândalo. 28. Prova-se o último pelo perigo da
perda da fé. 29-30. Responde-se à primeira razão de dúvida. 31. Responde-se à
segunda razão de dúvida. Quando o preceito de confessar a fé é maximamente
obrigatório. 32. Responde-se à terceira razão. 33. A protestação pública não é
suficiente para honestar uma comunhão supersticiosa.

1. PREFÁCIO. – Ainda que o rei da Inglaterra em sua Apologia não quisesse tocar essa
parte do breve pontifício ao se referir a ela, para a completude da obra, para maior
instrução dos fiéis, e para maior esclarecimento e confirmação do que dissemos sobre
o juramento, julguei oportuno e necessário dizer aqui algumas coisas sobre este
ponto. Mas a ocasião ou necessidade dessa doutrina nasceu da dura vexação que os
católicos padecem na Inglaterra, enquanto por leis acerbíssimas são privados dos bens
e são sujeitos a outras penas graves, se não adentram as igrejas dos hereges e não
assistem a seus sermões, orações e ritos.
De fato, desde os tempos de Elizabete os católicos começaram a ser
imediatamente coagidos, por gravíssimas penas, a freqüentar as igrejas dos hereges e
assistir aos seus ritos e sermões.

221
Anteriormente, como nos relata Sander[ 449 ] no livro III, no ano de 1559
aplicara-se uma multa de doze asses por cabeça aos que se recusavam a freqüentar as
igrejas como antes.
Mas posteriormente, como ele próprio relata acerca do ano de 1582, temos que:
Convocando as ordens, promulgaram uma lei segundo a qual os indivíduos de ambos
os sexos que, uma vez atingida a idade de dezesseis anos, se recusem a assistir às
preces e aos sermões dos protestantes e ir às suas igrejas, sejam multados em vinte
libras inglesas mensais, isto é, em quase setenta moedas de ouro. E acrescentou,
referindo o bispo de Tarazona, que os que não tivessem a soma de moedas de ouro
seriam detidos no cárcere até pagá-la. Tais leis e penas até o presente tornaram-se
mais acerbas, como referiremos no capítulo seguinte.
Por isso, alguns, movidos por uma piedosa misericórdia para com os católicos,
começaram a duvidar se, por alguma razão, poderiam escusar-se de culpa os que
observam essas leis, de tal modo que nem fossem coagidos a suportar sem evidente
obrigação todos estes males, nem tampouco se sujeitassem, com perigo à consciência,
a leis iníquas e tirânicas, devido a algum temor humano ou amor excessivo às coisas
temporais.
2. EXPLICA-SE O PRECEITO DIVINO DE CONFESSAR A FÉ EXTERIORMENTE. – Porém, para
que a razão da dúvida e sua verdadeira solução possam fundar-se melhor, é
necessário antepor algumas palavras sobre a obrigação e o preceito de confessar a fé,
não só em palavras, mas também em atos.
E primeiro é preciso diferenciar estas três coisas, que comumente se distinguem
nessa matéria, a saber: o confessar a fé exteriormente, isto é, publicamente ou diante
dos outros, para que os que vêem e ouvem os sinais externos dados por mim
entendam que sou cristão; a isto se opõe extremamente o negar a fé; mas quase como
um meio-termo entre os dois está o ocultar a fé, que se opõe à confissão apenas
negativamente e não contrariamente, como o negar a fé.
3. Mas destes três é certo que o primeiro, ou seja, confessar a fé, é preceito divino.
Assim ensinam todos os doutores católicos, com Santo Tomás.[ 450 ]
E isto é certo de fé, pelo que diz São Paulo em Romanos [10:10]: Com o coração
se crê para a justiça, mas com a boca se faz a confissão para a salvação. De fato,
com esta última expressão, se faz a confissão para a salvação, o Apóstolo quer dizer
que a confissão da fé é necessária para a salvação; porque, assim como diz que com o
coração se crê para a justiça porque a fé é necessária para a justificação, assim
também diz que a confissão da fé é feita para a salvação (isto é, a eterna), por ser
necessária para conquistá-la e para conservar a graça.
E é também evidente que São Paulo fala ali da confissão externa e sensível da fé,
pois a confissão interna pertence à primeira parte, a de crer com o coração, pois a fé
interior – isto é, as verdades da fé – não se confirma de outro modo senão por se lhe
atribuir assentimento interno, que é crer com o coração. Portanto, além disso se
requer a confissão externa para a salvação.
São Paulo o explica também ao dizer que com a boca se faz, não porque apenas
com a boca se possa ou deva fazer a confissão – pois também é possível fazê-la com
atos corpóreos e outros sinais externos pelos quais os outros reconheçam que

222
professamos a religião cristã –, mas porque as palavras são sinais mais expressivos e
foram instituídas principalmente para expressar o pensamento. Por isso São Paulo
atribui a confissão da fé especialmente à boca.
4. Já Cristo disse absolutamente em Mateus [10:32]: Todo aquele que me confessar
diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus.
Estas palavras não têm uma forma tão expressa de preceito como a têm de promessa,
mas em outros lugares Cristo explicou que nossa confissão nos é necessária para
obter a sua confissão, como logo veremos.
Mas a promessa de Cristo se enquadra perfeitamente na expressão de São Paulo,
para a salvação. Pois o apóstolo distingue entre a fé do coração e a confissão da
boca, e diz que a primeira é necessária para a justiça, isto é, para a remissão dos
pecados e para a obtenção da renovação interna da alma, porque a fé interna é o
fundamento da própria justiça.
Para isto não é tão necessária a confissão externa da fé, a não ser porventura no
propósito geral de cumprir todos os preceitos. Pois o homem também é justificado
pela fé interna com contrição e dileção do coração, antes que proceda ao ato externo
de confessar a fé. Daí Ambrósio[ 451 ] dizer retamente, comentando o Salmo 38: A fé
é o princípio para os que crêem, e a confissão é sua execução. E por isso não diz que
a confissão de fé é para a justiça, mas para a salvação; pois, após obter a justiça, é
necessária a confissão da fé para perseverar na justiça e, por conseguinte, para
alcançar a salvação. Pois quem perseverar até o fim será salvo,[ 452 ] e Cristo o
confessará diante de seu Pai.[ 453 ]
5. Este preceito, porém, não é apenas um preceito divino positivo, mas um preceito
moral quase conatural à própria fé ou ao homem, supondo-se o estado de fé; e por
isso em qualquer tempo e em qualquer situação da Igreja a confissão da fé foi
necessária à salvação.
Agostinho[ 454 ] toca a razão desta verdade, dizendo: A fé exige-nos o ofício do
coração e da língua; pois diz o Apóstolo: “Com o coração se crê, etc.” E por isso é
necessário que nos lembremos da justiça e da salvação, visto que nós, que
reinaremos em sempiterna justiça, não podemos ser salvos do presente século
maligno a não ser que, esforçando-nos para a salvação do próximo, professemos
também com a boca a fé que carregamos no coração. Com estas palavras ele insinua
que a confissão da fé é necessária por causa do próximo.
Ele explica o mesmo mais largamente com estas palavras:[ 455 ]Sem fé é
impossível agradar a Deus. Aquele que escrutina os rins e corações a reconhece em
nossos corações. Mas, para a conservação da unidade da Igreja, na providência
deste tempo, é necessária junto com a fé do coração a confissão da boca, porque
“com o coração se crê para a justiça, mas com a boca se faz a confissão para a
salvação”, não só dos pregadores, mas também dos instruídos, pois de outro modo
um irmão não pensaria em outro irmão, nem a paz da Igreja seria preservada, nem
alguém poderia dar ou receber o ensino acerca das coisas necessárias à salvação, se
não transmitisse o que tem no coração ao coração dos outros por meio dos signos
das palavras, como por seu veículo natural. Portanto, a fé deve ser conservada no
coração e exposta pela boca. De fato, a fé é fundamento de todos os bens.

223
6. O MOTIVO PRÓPRIO DA CONFISSÃO DA FÉ É A MANIFESTAÇÃO DA FÉ INTERIOR. – E
assim pensa Agostinho: a fé do coração é necessária per se primo por causa de Deus,
mas a confissão da fé, por causa do próximo e por causa da Igreja. Pois, assim como a
fé interna é o fundamento da união da alma com Deus, assim a confissão da fé é o
fundamento da unidade e da paz eclesiásticas, não porque a confissão da fé não tenha
sido também preceituada para a honra e o culto de Deus, mas porque não tende a
Deus tão direta e imediatamente, nem é tão necessária por causa d’Ele como o é a fé
interna.
Quanto a isto, também se deve considerar que a confissão da fé pode dar-se de
dois modos: de um modo, para mostrar exteriormente a fé interna que temos no
coração, de tal maneira que este seja o motivo principal, único e próximo de tal
confissão; de outro modo, para principalmente prestar e exercer um culto externo a
Deus.
E deste segundo modo pode dizer-se que o sacrifício da Missa, a freqüência aos
sacramentos e outras cerimônias pertencem à confissão da fé, embora propriamente
sejam atos de religião e sejam feitos e preceituados para próxima e precipuamente
cultuar e honrar Deus.
Mas a confissão de fé formal e própria, por assim dizer, é a que se faz para
manifestar aos outros a nossa fé interna, e esta sem dúvida se refere imediatamente
aos homens. Pois por Deus ela não é necessária, e por isso a razão desse preceito se
fundamenta retamente na necessidade desta confissão para a conjunção dos fiéis na
paz e na unidade de uma única Igreja, o que a própria fé exige. E assim também
expôs Agostinho ao comentar o Salmo [116:10]: Eu cri, por isso falei. Como esses
que crêem não o crêem perfeitamente, diz Agostinho, não querem falar.[ 456 ]
7. E daqui se colige também o segundo, ou seja, que negar a fé é contra o preceito
divino, ou está incluído no preceito proibitivo ou negativo. E isto é igualmente de fé
certa, pois Cristo Senhor disse em Mateus [10:33]: O que me negar diante dos
homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus. Pois quem o
negar ouvirá: Não vos conheço, como disse Teofilacto[ 457 ] naquele mesmo lugar.
Por isso São Paulo diz, em II Timóteo [2:12]: Se o negarmos, ele também nos negará
a nós. Ambrósio,[ 458 ] Teodoreto[ 459 ] e Primásio[ 460 ] observam o mesmo.
Crisóstomo[ 461 ] dá a razão, ao dizer: Ele nos pede uma confissão livre e nos
induz a uma caridade maior, desejando que sejamos sublimes e invictos, e por isso
deu este preceito a todos. E do mesmo modo interpreta ali as palavras de Cristo, em
Mateus [10:16]: Sede prudentes como as serpentes, que expõem seu corpo a qualquer
ferida para salvar a cabeça. Assim também o fiel deve antes perder o corpo do que
negar a fé, que é cabeça e início de todos os bens. Também o dizem Jerônimo,[ 462 ]
Hilário[ 463 ] e Agostinho,[ 464 ] no mesmo lugar.
8. NO PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ ESTÁ INCLUÍDO UM PRECEITO NEGATIVO. – Esse
preceito se segue do anterior, pois em todo preceito afirmativo está incluído o
negativo: nada fazer que contrarie o que o afirmativo preceitua. Por exemplo, se se
nos ordena amar a Deus, ali nos está virtualmente proibido fazer qualquer coisa
contrária ao amor divino, e assim por diante. Ora, um contrário destrói o outro, pois,
se se preceitua um, o contrário é sem dúvida proibido.

224
Como, portanto, se preceitua a confissão da fé, ali se proíbe virtualmente a
negação da fé, pois é contrária à confissão, como é patente por si. Mais ainda: do
preceito da fé interna se segue necessariamente a proibição de negar esta mesma fé.
Pois quem nega a fé com a boca, ou a nega no coração (e portanto é infiel, e age não
só contra a confissão da fé, mas também contra o preceito da fé), ou, ao negá-la com
a boca, retém a fé no coração e assim mente com uma mentira muito perniciosa e
contrária à honra de Deus, porque, ao negar a fé, atribui a Deus uma mentira, dizendo
ser falso o que Deus disse. Ofende também gravissimamente a religião cristã e – no
que dele depende – dissolve a Igreja e cinde a sua unidade.
Portanto, essa mentira está proibida, não só pelo preceito geral de não mentir, mas
também pelo preceito particular da fé e da religião cristã, como opina retamente
Agostinho.[ 465 ]
Daí também ocorre que, assim como a mentira é proferida de dois modos, a saber,
por se negar o que é verdadeiro, ou por afirmar o que é falso ou contrário à verdade,
assim também no presente caso a negação da fé pode acontecer de dois modos: seja
negando-se puramente que a verdade de fé é verdadeira ou certa, seja por se professar
um erro contrário (pois a profissão do falso é necessariamente a negação do
verdadeiro e envolve a mesma malícia ou uma maior).
9. O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ E DE NÃO OCULTÁ-LA NEM SEMPRE É OBRIGATÓRIO.
DUAS OCULTAÇÕES DA FÉ. – O terceiro que indicamos, ou seja, a ocultação da fé, tem
certa natureza média, porque nem sempre é má e nem sempre é lícita, como também
todos os doutores católicos ensinam.
A razão disto é porque calar a verdade e não proferi-la não é o mesmo que negá-
la, mas é escondê-la, como é evidente por si. E assim também ocultar a fé não é negar
a fé, e por isso em parte nem sempre é mau.
Por outro lado, o preceito de confessar a fé, como é afirmativo, embora sempre
seja obrigatório, não o é o tempo todo. De fato, esta é a natureza de um preceito
afirmativo, como agora o supomos, e, além disso, o não confessar a fé por ocultá-la
não é sempre mau, porque se o exercício de algum ato não é necessário por si, a
cessação de tal ato não pode ser sempre má, como é manifesto por si.
Portanto, a ocultação da fé só será perversa se ela for ocultada no tempo em que o
preceito de confessar a fé seja obrigatório, assim como calar os próprios pecados nem
sempre é mau, mas apenas é mau quando o preceito de confessá-los em juízo é
obrigatório.
Daí se podem distinguir duas ocultações da fé: uma à maneira de pura negação,
que pode dar-se licitamente e sem pecado durante todo o tempo em que, ou pelo que,
o homem não está obrigado a prestar uma confissão externa de sua fé; outra, à
maneira de privação ou omissão moral, por admitir-se naquele tempo em que se
deveria prestar a confissão da fé – e assim carece da ação devida, e por isso se chama
de privação moral.
E isto é um pecado em si grave, porque é contrário ao preceito de confessar a fé.
Pois a lei afirmativa que preceitua uma ação em algum momento conseqüentemente
proíbe a omissão da ação naquele mesmo momento, como é manifesto.

225
10. E podemos entender retamente as palavras de Cristo acerca desta omissão em
Lucas [9:26]: Quem se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho
do homem se envergonhará dele, quando vier na sua majestade, na de seu Pai e dos
santos anjos. Pois envergonhar-se parece ser menos do que negar, porque não só
aquele que nega, mas também aquele que deixa de confessar Cristo ou a verdade de
sua fé (o que é o mesmo) quando deve fazê-lo, envergonha-se de Cristo.
E embora Cristo tivesse usado a palavra envergonhar-se (que significa
propriamente evitar algo por pudor ou por temor do desprezo e da irrisão de
alguém), porque era mais acomodada à matéria de que falava, ou porque no princípio
gentios e judeus desdenhavam da doutrina e assim muitos por pudor ou vergonha a
desprezavam, contudo a doutrina e a cominação são gerais. Pois se alguém omite a
confissão da fé no tempo devido (por qualquer razão, seja por pudor, seja por temor
de perder a vida ou outros bens temporais) incorre na mesma repreensão e
cominação.
11. EM QUE TEMPO O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ É OBRIGATÓRIO. – Mas aqui ocorre
imediatamente a pergunta: em qual tempo a confissão da fé é obrigatória? Ora, não
cabe explicá-lo agora detalhadamente; basta supor que é naquele tempo em que a
confissão de fé é necessária para guardar a honra de Deus e da religião cristã, toda
vez que, como se pensa, um tirano, ou poder público, interroga acerca da fé, ou toda
vez que calá-la e não confessá-la seria negá-la virtualmente.
Este, de fato, é outro modo de tornar perversa a omissão, porque envolve uma
negação virtual da fé, e porque em moral o implícito é reputado como explícito
quando induz o mesmo efeito. E assim o preceito de não negar a fé proíbe não só a
negação expressa, mas também a tácita e virtual.
Esta omissão se diz, porém, negação virtual da fé quando a própria omissão da
confissão é aceita comumente como sinal de negação da fé. Assim como no sentido
ordinário e comum o não trazer vestes nem tonsura clericais, nem monacais, sem
causa ou necessidade especial, é certa negação virtual de tal estado, e pode às vezes
ser suficiente para indicar apostasia externa, assim também, pois, pode acontecer na
confissão da fé, se em algum lugar foi instituído justamente algum sinal tão próprio
do cristianismo que quem o omite parece negar ipso facto que é cristão, como se
explicará melhor nas partes seguintes.
12. RAZÃO DA DÚVIDA. – A partir disto se entende onde reside a dificuldade da
questão proposta, que devemos considerar: acaso os atos de ir às igrejas dos hereges,
ou ouvir seus sermões e rezar com eles, ou assistir a outros de seus ritos, seriam uma
negação da verdadeira fé, ou (o que é o mesmo) a profissão de um erro contrário? Ou
seria isto apenas o não confessar a verdadeira fé? E, supondo-se que seja isto, acaso
seria uma pura negação ou uma omissão moral pecaminosa?
A razão da dúvida é tomada da diferença que há entre as palavras e as ações ou
outras coisas. Pois as palavras significam mais expressamente do que as coisas, e não
têm outro uso próprio senão este, pois para isto foram instituídas primeiramente e per
se. Mas as outras coisas, como vestes, casas, comidas e similares, ou mesmo os atos
de ouvir, ver e outros que tais, não foram instituídos para por si significar a mente do
operante, mas para outros usos naturais e humanos, embora às vezes pareçam

226
significá-la a modo de conseqüência. Disto resulta que o significado das coisas
costuma ser mais obscuro e ambíguo, ou equívoco, do que o das palavras.
Ademais, ocorre também que a simulação, ou antes a dissimulação sem mentira,
tem mais facilmente lugar no uso de certas coisas ou de certas ações do que no uso
das palavras, que têm significação mais certa e usual, por assim dizer.
Por fim, deste mesmo princípio se extrai outra razão para duvidar acerca das ações
de ir às igrejas, etc. (de que tratamos agora), distinta da razão de duvidar sobre o
juramento de fidelidade. Pois a profissão deste é feita por palavras expressas, que têm
por único fim explicar a intenção mental, e as palavras da fórmula do juramento são
tais, que contêm a expressa negação da doutrina da fé (e conseqüentemente a
confissão da heresia contrária); e portanto ninguém que não vive nesta heresia – a não
ser que tenha incidido na antiga heresia de que em tortura seria possível negar a fé
sem pecado, mesmo sob juramento – pode duvidar de que a profissão do juramento
não é lícita.
13. PRIMEIRO ARGUMENTO QUE MOSTRA SER LÍCITO IR ÀS IGREJAS DOS HEREGES, ETC. –
Por outro lado, parece ser possível duvidar das ações propostas na questão. Primeiro,
porque estas são indiferentes por seus objetos e matérias próprios. Pois entrar em uma
igreja, ou é bom em si, ou é ao menos indiferente. E porque os hereges usam mal do
lugar não torna a ação intrinsecamente má. Pois isto pertence à sua perversa intenção,
sem a qual entrar ali é indiferente; pois tampouco o entrar numa sinagoga dos judeus,
ou num templo pagão, é mau em si.
Similarmente, ouvir um sermão de qualquer doutrina, mesmo de uma perversa,
não é intrinsecamente mau. De fato, alguém pode ouvi-lo para confutá-lo, ou para se
deleitar com a eloqüência do sermão, ou para desdenhá-lo.
Por fim, assistir a suas preces e ações sagradas, tomado materialmente, é
indiferente, porque alguém pode, enquanto está ali, fazer secretamente as preces
católicas segundo o rito católico ou então pensar na verdadeira fé.
Por outro lado, estes atos não têm uma significação contrária à fé, imposta por si,
porque não foram impostos para significar especialmente a fé, mas apenas para operar
algo que é feito imediatamente por cada um deles.
Mas se tais atos, ou pelo discurso dos que vêem ou pelo uso comum dos outros,
costumam indicar uma fé perversa, isto é acidental, se o católico não os faz com a
mesma intenção, porque ele não significa uma falsa fé nem engana os outros, mas
apenas permite que sejam enganados.
Portanto, os que fazem tais atos só para obedecer ao rei em atos materiais
externos, e para evitar danos temporais, não negam a fé, nem faltam à confissão da fé
devida por preceito, porque então não há nenhuma necessidade especial que torne
obrigatório naquele momento o preceito afirmativo de confessar a fé. Logo, ali cessa
toda razão de culpa.
Por isso os doutores católicos ensinaram que não é mau em si comungar com os
hereges nos atos sagrados, enquanto não são declarados nominalmente.
14. O SEGUNDO. – Segundo, se ali houvesse alguma culpa, seria maximamente pela
profissão de falsa religião, ao menos simulada. E esta simulação não é sempre

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intrinsecamente má. Portanto, será maximamente lícita no caso de evitar multas e
vexações gravíssimas.
A conseqüência é patente, porque, se tal simulação não é intrinsecamente má, não
há de ser proibida porque é má. Portanto, no máximo será má por estar proibida, ou
acidentalmente, em razão dos males que daí se seguem. Mas estas razões cessam em
tão urgente necessidade, porque a proibição positiva não é obrigatória com tanto
rigor, e os incômodos que se lhe seguem não são intentados mas permitidos, e por
isso não são imputados.
A premissa maior é também clara, porque supomos que a intenção do operante
não é professar algo falso, mas apenas estar presente ali e fazer algo bom ou
indiferente, não importando o que os outros pensem, o que é uma dissimulação, ou
uma simulação, material.
Prova-se, pois, a premissa menor.
Primeiro, porque não faltaram autores católicos e de peso que ensinaram que não
é intrinsecamente mau simular uma religião falsa e supersticiosa, ou fingi-la em atos
exteriores fazendo-os apenas materialmente, como dizem, isto é, sem intenção de
religião e de culto, mas em vista de alguma utilidade humana.
Ademais, muitos atribuem esta sentença a Jerônimo, que dizia ser lícito aos
apóstolos observar simuladamente os preceitos legais, num tempo em que já seriam
mortíferos se seguidos seriamente e com intenção de culto, como indicamos
extensamente no livro IX de Sobre as Leis, cap. 16, onde citamos muitos autores e
aduzimos os testemunhos das Escrituras que os moveram.
Quanto à razão, já a tratamos acima: porque tal simulação não é uma mentira, uma
vez que por ela não se tenciona significar algo falso ou contra a mente, mas ela é
apenas uma ocultação, ou não-confissão, de alguma verdade ou da fé. E, segundo a
primeira razão, esta ocultação não é má como a negação da fé, porque esta não se dá
sem uma mentira; quanto à segunda razão, não é má, porque não há nada então que
torne obrigatório o manifestar-se, ou o confessar a fé.
15. TERCEIRO ARGUMENTO. – Mas pode-se responder que estas razões procedem
diretamente da malícia encontrada em si naqueles atos; não obstante, estes são maus
em razão do escândalo, que deles não se pode separar moralmente – e isto é suficiente
para que o ato seja sempre moralmente mau.
Mas contra isto se objeta, em terceiro lugar, que também o escândalo não só pode
separar-se daqueles atos, como também se separa deles efetivamente, tal qual os
católicos podem fazer naquele reino, como dizem.
Pois, em primeiro lugar, todos sabem que os que mantêm a fé romana não fazem
tais atos espontaneamente ou sinceramente, mas apenas para evitar as penas.
Ademais, também sabem que o rei os preceituou antes pela cupidez do ouro e da
prata do que pelo culto ou pela religião de Deus, e por isso impôs voluntariamente
penas pecuniárias em vez de corporais. E, por conseguinte, também estão
convencidos de que os católicos não fazem tais ações por causa da religião, ou por
desprezo da fé, mas apenas para evitar a espoliação dos bens. Portanto, não há de
onde tomar racionalmente um escândalo, porque a ação em si não é má, e a aparência
de mal, que parecia ter, é tolhida por aquele conhecimento público.

228
Agregue-se a isto que se diz que os fiéis fazem primeiro uma profissão pública de
sua reta intenção e da verdadeira fé. Portanto, se resta ainda algum escândalo, ele não
é algo dado, mas aceito, e que não se imputa ao agente, sobretudo quando intervêm
uma causa e uma necessidade tão graves.
16. É ILÍCITO AOS CATÓLICOS ACUDIR ÀS IGREJAS DOS CISMÁTICOS E HEREGES PARA
OBSERVAR SEUS RITOS. – Contudo, sem dúvida alguma se deve dizer que não é lícito
aos católicos da Inglaterra reunir-se na igreja dos cismáticos e hereges para ouvir seus
sermões heréticos e perfazer ritos profanos. Nosso Soberano Senhor, Paulo V, assim
o admoesta em seu breve, com as seguintes palavras: Cremos com certeza e sem
dúvida alguma que aqueles que com tanta constância e fortaleza suportaram até
agora acerbíssimas perseguições e misérias quase infinitas para andarem sem
mancha na lei do Senhor, jamais se juntarão à comunhão dos desertores da lei divina
para se mancharem. Contudo, impulsionados pelo zelo de nosso dever pastoral, e
pela solicitude paterna com a qual laboramos assiduamente para a salvação de
vossas almas, somos coagidos a advertir-vos e a conjurar-vos que por nenhuma
razão vos aproximeis dos templos dos hereges, nem ouçais seus sermões, nem
comungueis com eles em seus ritos, para não incorrerdes na ira de Deus. De fato,
não vos é lícito fazê-lo sem detrimento do culto divino e de vossa salvação.
Destas palavras é possível coligir que esta proibição não é apenas positiva ou
humana (razão por que aqueles atos se tornariam maus porque proibidos), mas é uma
lei declarativa da malícia e da torpeza existentes em tais atos, razão por que são
proibidos: porque maus. De fato, é isto que significam estas palavras: De fato, não
vos é lícito fazê-lo, e por isso o pontífice não usa tanto de palavras proibitivas quanto
de palavras admonitórias e conjuratórias sobre a malícia de tal comunhão com os
hereges.
Por fim se colige destas palavras que a culpa é mortal e assaz grave: para não
incorrerdes na ira de Deus. De fato, não vos é lícito fazê-lo sem detrimento do culto
divino e de vossa salvação.
Por isso, embora porventura houvesse anteriormente entre os católicos alguma
contenda ou diversidade de juízos quanto a este ponto, já devem cessar de todo,
porque não lhes é lícito duvidar de uma autêntica declaração do pontífice em assunto
moral e atinente à salvação das almas.
17. A DECLARAÇÃO DO SUMO PONTÍFICE É MAXIMAMENTE CONSENTÂNEA ÀS SAGRADAS
ESCRITURAS. – Mas é necessário mostrar quão consentânea é essa declaração aos
princípios da fé, às doutrinas dos Santos Padres e à razão.
Em primeiro lugar, a comunhão com os infiéis, principalmente em coisas
sagradas, é maximamente proibida na Escritura; ora, não há dúvida de que os hereges
estão compreendidos entre os infiéis.
Ademais, São Paulo escreveu precipuamente acerca destes [II Timóteo 2:16-18]:
Evita as conversas profanas e vãs, porque contribuem muito para a impiedade, e a
palavra deles vai lavrando como gangrena; neste caso estão Himeneu e Fileto, que
se extraviaram da verdade, etc. E por isso em Tito [3:10] ele nos adverte que se deve
evitar o homem herético pertinaz, e em I Coríntios [6] e em Romanos [16:17-18] ele
admoesta gravissimamente a que, como diz, vos aparteis daqueles que causam

229
dissensões e escândalos contra a doutrina que aprendestes, pois seduzem os corações
dos inocentes por doces sermões e bênçãos.
Devem notar-se também as palavras de João em sua segunda epístola [v.10-11],
quando falava dos hereges: Nem os saudeis, e acrescenta a razão: porque quem os
saúda participa das suas obras más.
Por conseguinte, como toda comunhão com os hereges foi proibida pelos
apóstolos por causa do perigo, maximamente e com maior rigor foi proibida a
comunhão em obras malignas, que sem dúvida eles fazem enquanto hereges.
Mas são estas as de que tratamos agora, e não se pode negar que os católicos que
se juntam a eles nas igrejas para perfazer semelhantes conventículos comungam com
eles nas mesmas obras.
Quanto a isto, embora porventura nem toda outra comunhão com pessoas
heréticas ainda não declaradas seja a rigor proibida por preceito, esta comunhão em
particular, que é nas obras malignas e cismáticas, por assim dizer, foi sempre
proibida. De fato, São Paulo diz em I Coríntios [10:20-21]: Não quero que vós
tenhais sociedade com os demônios. Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice
dos demônios. Não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos
demônios. E em II Coríntios [6:14]: Não vos sujeiteis ao mesmo jugo que os infiéis –
isto é, como Santo Tomás[ 466 ] o expõe, não comungueis com os infiéis em suas
obras de infidelidade. Pois, como acrescenta o Apóstolo, que sociedade tem a justiça
com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas? E que concórdia há entre
Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel?
18. É TAMBÉM CONFORME AOS SANTOS PADRES. HÁ UM PRECEITO APOSTÓLICO
PROIBINDO TAL COMUNHÃO. – Essa lei das Escrituras, seguiram-na os Santos Padres e
no-la transmitiram.
De fato, Irineu[ 467 ] diz que os apóstolos e seus discípulos tiveram tanto temor,
que nem em palavras comungaram com algum dos que adulteraram a verdade; e
refere o testemunho de São Paulo, assim como os exemplos conhecidos de João, o
Evangelista, e de Policarpo.[ 468 ] E no livro I, capítulo 13, diz: É necessário fugir
deles para algum lugar, e longe, exorcizando-os e anatematizando-os.
Segundo a mesma sentença diz Cipriano:[ 469 ]Ademais, que vigorosamente
declineis e eviteis, diletíssimos irmãos nossos, as palavras e os colóquios daqueles
cuja palavra vai lavrando como gangrena, como diz o Apóstolo. E abaixo diz:
Sejamos tão separados deles, quanto eles são prófugos da Igreja. E mais abaixo: Isto,
diz ele, o beato Apóstolo não só admoesta mas também ordena: que nos apertemos
de tais. Preceituamos, diz, a vós em nome do Senhor Jesus Cristo que vos aparteis de
todo e qualquer irmão que anda desordenadamente, e não segundo a tradição que
receberam de nós.
Este é, portanto, um preceito apostólico, como testemunha Cipriano, e convém
com muita propriedade à causa presente. Pois os conventos dos cismáticos da
Inglaterra são muito desordenados e são novas invenções humanas, alheias às
tradições dos apóstolos. Portanto, pelo preceito de São Paulo, o varão fiel não pode
comungar com tais ritos e assembléias.
Coisas semelhantes contém o livro De Lapsis [de Cipriano],[ 470 ] no final; mas,
com mais clareza e expressividade, tratando da mesma questão, a [sua] Epístola 4 Ad

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plebem[ 471 ] diz, contra os que cindiam a Igreja em oposição aos costumes legítimos
e condenavam os seus ritos: Deus é um, e Cristo é um, e uma é a Igreja, e uma é a
cátedra fundada sobre Pedro pela palavra do Senhor. Não se pode constituir outro
altar ou um sacerdócio novo, além do sacerdócio uno e do altar uno.
E acrescenta logo em seguida: Separai-vos para longe do contágio de tais
homens, e fugindo de seus discursos como de uma gangrena e de uma peste, evitai-
os, segundo a admonição do Senhor, que disse: “São cegos e guias de cegos”.[ 472 ]
E abaixo: Ninguém, diz, tolhe da Igreja os filhos da Igreja. Pereçam sós os que
quiseram perecer. Permaneçam sós fora da Igreja os que da Igreja retrocederam. E
abaixo: Evitai os lobos que separam as ovelhas do pastor. O que se poderia dizer
com mais clareza dos cismáticos anglicanos?
19. ESTA DOUTRINA FOI CONFIRMADA POR UM MILAGRE. – Ademais, Hilário,[ 473 ]
interpretando misticamente as palavras de Cristo: Não vades para entre os gentios,
etc.,[ 474 ] diz: Não que não fossem enviados também para a salvação das gentes,
mas que se abstivessem da obra e da vida da ignorância gentia. E ao se lhes vetar a
entrada às cidades dos Samaritanos, são admoestados a não se aproximarem das
igrejas dos hereges.
Agostinho[ 475 ] ensina detalhadamente que não é lícito simular a heresia, mesmo
para converter os próprios hereges, e opina que isto é sempre uma perniciosa mentira.
Na Epístola 162, no princípio, ensina que se deve evitar de todo a comunhão dos
hereges, fora das coisas ordenadas à sua conversão; portanto, maximamente nas
coisas que pertencem à religião.
E existem muitos documentos da Antigüidade em que é manifesto que os Santos
Padres aborreciam os ritos dos hereges, mas maximamente a comunhão com eles nas
coisas sagradas. E por isso sempre proibiram receber deles a comunhão, como é
patente no decreto do Papa Júlio.[ 476 ]
E deve-se notar o exemplo que nos refere Gregório de Tours,[ 477 ] de um
sacerdote católico ou romano (como ele diz) que não queria provar as comidas
abençoadas por um sacerdote herético, embora não usasse um rito herético para
abençoá-las, e Deus aprovou o feito por um milagre. Quanto mais, então, se deve
evitar a comunhão nas próprias cerimônias heréticas? Por isso também lemos que
Gregório[ 478 ] escreveu que se deveria omitir por algum tempo o rito de batismo por
tripla imersão, porque os hereges dele abusavam, dando-lhe um falso significado.
20. REFUTAM-SE DUAS EVASIVAS. PRIMEIRO ARGUMENTO QUE PROVA QUE TAL
COMUNHÃO É ILÍCITA. – Mas essa doutrina dos Santos Padres é geral e alguém poderia
eludi-la ou interpretá-la não como um preceito rigoroso mas como uma admoestação
em razão de perigo, ou limitá-la ao uso ordinário e voluntário, e não à coação
inevitável sem ingente perigo.
Contudo, nenhuma das evasivas tem lugar nas palavras de Agostinho,[ 479 ] ao
tratar de Romanos 13: Quem resiste ao poder, resiste à ordenação de Deus. Pergunta
ele: Mas, e se ele te ordena algo que não deves fazer? E responde: Neste caso,
sobriamente despreza o poder, temendo o poder. E explica-o por um exemplo,
acrescentado em seguida: Se o imperador ordena: ‘Faze-me este obséquio’, muito

231
bem, mas não em servir aos ídolos. Quanto a servir aos ídolos, um poder maior o
proíbe. Perdoa-me: tu lanças no cárcere, Ele, na geena.
Donde, pelas sentenças alegadas dos santos, as das evasivas podem facilmente ser
refutadas, se se ponderam as palavras de cada uma e se se comparam todas entre si.
Mas isto se fará com mais eficácia explicando-se as razões dessa verdade e, segundo
a ocasião, urgindo e enriquecendo ainda mais os testemunhos dos Padres.
Portanto, a primeira razão é: porque a comunhão com os hereges, sobre a qual é
movida a questão, não pode ocorrer senão pela profissão, ou ao menos pela
simulação, da nova religião dos hereges, ou melhor, da sua superstição. E ambas são
intrinsecamente más e contrárias ao preceito de confessar a verdadeira fé e de honrar
Cristo e sua verdadeira religião. Portanto, tal comunhão não é lícita em razão de
nenhum temor humano.
A conseqüência é evidente pelo dito.
Mas o antecedente quanto às duas partes se mostra assim: ora, os que se reúnem
com os hereges nas igrejas podem assistir nelas de dois modos.
Primeiro, com o propósito de cultuar a Deus com aqueles ritos e aquelas
cerimônias, ou com a intenção de exercer os ritos como lícitos e religiosos, e isto é
professar formalmente e verdadeiramente uma falsa religião, assim como quem adora
um ídolo com verdadeira intenção de culto professa de fato a idolatria, e o que exerce
os ritos judaicos com intenção de culto professa de fato a seita dos judeus.
Por isso é necessário que aquele que assim professa uma falsa religião negue a
verdadeira e, por conseguinte, a fé sobre a qual está fundada. Nem pode haver dúvida
quanto a isto, nem os católicos tencionam assistir deste modo aos ritos dos hereges.
21. De outro modo, pois, isto pode ser feito: sem intenção de culto ou de religião, mas
apenas com intenção de uma obediência política coagida quanto à presença externa
do corpo, com o propósito de ali cultuar a Deus secretamente segundo o rito católico.
Mas nisto se incluem necessariamente a profissão simulada de cisma e a
comunhão exterior com os hereges em seus ritos, porque segundo o uso comum e
aceito daquela gente e daquele lugar isto é significado por aquelas ações externas, e é
para este fim que se dá a convocação comum. Mas tal simulação sempre é má, como
prova extensamente Agostinho,[ 480 ] e como, nele apoiados, também o provamos
em Sobre as Leis.[ 481 ]
E isto se mostra brevemente, primeiro por São Paulo [I Coríntios 10:20]: Não
podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios, isto é, da superstição gentia
e da idolatria. Não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos
demônios, de modo algum podeis comer das coisas oferecidas aos ídolos, mesmo sem
intenção de cultuar ou adorar o ídolo, como explicam as palavras seguintes que
examinaremos logo depois.
E assim entenderam esta passagem os Padres, repreendendo gravemente o comer
as coisas sacrificadas aos ídolos, quando isto se faz exteriormente ao modo de um ato
de religião e como uso de alimento sagrado, como é possível ver em Cipriano, no
livro citado De Lapsis, e em muitas epístolas, nas quais condena gravissimamente
todo e qualquer sinal externo de comunhão ou de consentimento nos ritos dos infiéis,
principalmente nas Epístolas 31[ 482 ] e 52,[ 483 ] das quais algumas palavras
referirei abaixo.

232
Tertuliano[ 484 ] fala o mesmo largamente no livro De Spectaculis, capítulo 13:
Abstemo-nos, diz ele, da idolatria, e desprezamos os monumentos não menos do que
os templos, não sacrificamos nem comemos do sacrificado. E abaixo: Afastamos
osolhos e os ouvidos das coisas sacrificadas aos ídolos, e no livro De idolatria,
capítulo 13:[ 485 ]É necessário, diz ele, fugir deste lugar nos dias festivos (ou seja,
dos infiéis) e em outras solenidades extraordinárias, a que subscrevemos ora por
lascívia ora por nossa timidez, comungando, contra a disciplina da fé, com as nações
em suas idolatrias.
E acrescenta a questão: O servo de Deus deve comungar com as nações nestas
coisas, quer no vestir, quer no comer, etc., ou seja, enquanto são feitas por causa da
religião? E responde: Nestas coisas não há nenhuma comunhão entre a luz e a treva,
entre a vida e a morte. Doutrina que também transmite largamente Orígenes.[ 486 ]
Quanto a isto é também insigne a passagem de Crisóstomo,[ 487 ] cujas palavras logo
referirei.
Mas a razão própria é porque toda comunhão nesses ritos supersticiosos, mesmo
que ocorra com reta intenção, é certa participação de superstição. Por isso, assim
como a idolatria exterior, mesmo se praticada com intenção fingida, participa da
malícia da idolatria, assim também toda superstição exterior, mesmo se simulada,
reveste-se da malícia da superstição.
22. CONFIRMAÇÃO DESTA DOUTRINA. O ARGUMENTO DE AGOSTINHO A EXPLICA
MELHOR. – Esta razão se confirma porque a profissão exterior simulada de tal cisma é
certa aprovação e atestação dele, de que ele é religioso e procede da verdadeira fé. E
isto é intrinsecamente mau, ainda que não se creia internamente e não seja esta a
intenção, porque é uma confissão externa de religião falsa.
E tampouco se pode separar o significado de tais atos e em tal matéria, ou seja, de
religião e de culto, porque os atos exteriores, as vestes e outras cerimônias não são
tomados no culto senão por algum significado. Portanto, quem deles se serve
exteriormente à maneira de culto religioso, ao menos exteriormente aprova aquele
rito de culto a Deus. E isto é intrinsecamente mau, porque aprovar e confessar com
palavras que tal rito é religioso é algo mau e contrário à fé e à religião; portanto,
aprovar o mesmo com atos é igualmente perverso. Este é o argumento principal de
Agostinho nos lugares citados.[ 488 ]
Isso ainda se explica melhor do seguinte modo: essa simulação de falsa religião é
certa negação exterior da fé; ora, esta é sempre má, como pusemos no princípio.
Logo, também o é aquela simulação.
A premissa maior é evidente porque a simulação é aprovação de uma religião
supersticiosa, e, por conseguinte, é confissão de uma falsa fé, donde procede a
superstição. Ora, a afirmação do erro é a negação da verdade. Logo, aquela simulação
é uma negação da fé católica, que é contrária à heresia.
Ademais, como a religião verdadeira é apenas uma, reprova toda contrária quem
aprova exteriormente esta uma. Portanto, quem aprova exteriormente os ritos
heréticos, nega por isto mesmo e do mesmo modo a religião católica, e prevarica
contrariamente na confissão da fé.
Por isso, também por esta razão tal simulação é contrária à honra da religião
cristã, pois dá lugar ao seu desprezo, uma vez que se a nega e reprova exteriormente,

233
enquanto se fortalece na mente dos inimigos a religião contrária, como diremos
pouco depois.
Donde por fim se conclui que nunca é lícita tal simulação, mesmo para evitar a
morte, tanto porque a negação externa e simulada da fé nunca é lícita para se evitar
qualquer mal, quanto também porque o homem está maximamente obrigado a
observar um preceito, mesmo o positivo e humano, não obstante qualquer perigo de
morte violenta, quando a sua transgressão é extorquida para desprezo da religião,
como dissemos no livro III de Sobre as Leis, capítulo 30.
23. OUTRA RAZÃO POR QUE SE EXPLICA A DOUTRINA PROPOSTA. – Podemos explicar de
outro modo a força dessa obrigação, porque no momento em que os fiéis são
coagidos por leis iníquas a assistir aos ritos sagrados dos hereges, é obrigatório em
especial o preceito afirmativo de confessar a fé católica resistindo a tais leis. Portanto,
os que dissimulam e obedecem, mesmo que o façam com espírito dissimulado, pecam
contra a confissão da fé e por isso hão de ser contados entre os que caíram durante
uma perseguição da fé.
Tomo esta doutrina de Cipriano, nos lugares supracitados, principalmente da
Epístola 31, que é uma carta dirigida a ele pelos clérigos da Roma de então. Nela, ao
dizer-se que não só pecaram contra a fé os que haviam sacrificado exteriormente aos
ídolos ou que haviam comido das coisas oferecidas aos ídolos, mas também os que
haviam apresentado certos libelos de submissão, os quais trouxeram estando
presentes, ou enviaram estando ausentes, acrescentam-se as seguintes palavras
notáveis: Não estão imunes de crime os que querem parecer ter satisfeito aos editos
ou às leis propostas contra o Evangelho. Pois aquele que quer parecer ter obedecido,
por isso mesmo já obedeceu.[ 489 ]
E abaixo Cipriano punge com maior veemência os ingleses, tanto os cismáticos
quanto os que são débeis na constância da fé, ao dizer: Longe estejam da Igreja
Romana o abandonar o seu vigor com facilidade tão profana e o dissolver os nervos
da severidade, por se arruinar a majestade da fé.
E isto é consoante às palavras do mesmo Cipriano[ 490 ] no livro De Lapsis, onde
diz: Nem se persuadam a fazer menos penitência aqueles que, embora não tenham
contaminado suas mãos com sacrifícios nefandos, contudo poluíram a consciência
com libelos. E aquela profissão de negação é uma afirmação, por parte do cristão,
da renúncia a ser o que ele havia sido: disse que havia feito aquilo que de fato fez
outrem. E, como está escrito: “não podeis servir a dois senhores”, ele serviu ao
senhor secular e acatou seu edito, e obedeceu mais ao império humano do que a
Deus.
24. EXEMPLO DE ELEAZAR. – Tomo a mesma doutrina de Crisóstomo, na homilia 25
sobre Mateus,[ 491 ] em que primeiro mostra a necessidade de se confessar a fé, e diz
entre outras coisas: Se Deus tivesse criado para ti apenas o coração, seria suficiente
para ti a fé do coração. Mas Deus criou para ti a boca, para que creias com o
coração e confesses com a boca. E acrescenta: Não apenas com a boca mas também
com os cinco sentidos carnais, pois se faltasse um dos sentidos a confissão não seria
perfeita.

234
Mas, ao explicar a ocasião necessária de tal confissão, acrescenta as palavras
seguintes que referirei na íntegra, porque confirmam esta verdade de muitos modos e
dão certa luz à solução dos argumentos.
Portanto, diz ele, se alguém te disser “não comas as coisas sacrificadas aos
ídolos, mas olha como os ídolos são formosos”, e se olhares em resposta a tal
chamado, terás negado Cristo com teus olhos. Não porque olhar os ídolos seja
grande coisa, mas porque, se olhas por ser convidado, pecas. Se contudo não
olhares, com os teus olhos terás confessado Cristo. Por isso está escrito: “Desvia os
meus olhos, para que não vejam a vaidade”.[ 492 ]
Mas se alguém te disser: “Não quero que olhes os ídolos, mas apenas escuta
como aquele gentio blasfema Cristo para glorificar os deuses.” Se escutares, negas a
Cristo com teus ouvidos. Se ele te disser: “Não quero que ouças a blasfêmia contra
Cristo, mas eis como oferecem incenso aos deuses, apenas permanece aí e aceita o
odor do incenso.” Se o cheirares, terás ofendido Cristo com teu olfato.
Igualmente se te disser: “Não coma as carnes com teus dentes, mas apenas finge
comer do imolado”. Se o simulares, assim terás negado Cristo com teu paladar. Mas
se não quiseres fingi-lo terás confessado Cristo, como Eleazar no livro dos
Macabeus, que não quis comer carnes de carneiro sob aparência de carne suína.
Se te disser: “Não quero que tu finjas comer do imolado, mas apenas toca o ídolo
com a tua mão, ou segura o turíbulo”. Se o tocares ou o segurares, terás negado
Cristo com teu tato. Mas, se não o quiseres, terás confessado Cristo com o teu tato,
como está escrito: ‘Se há iniqüidade nas minhas mãos’, etc.[ 493 ]De fato, todos os
membros de tua alma e de teu corpo, Deus não só os criou para teu uso, mas para a
sua glória.
25. POR QUE O PRECEITO DE CONFESSAR A FÉ, CONTIDO NO ARTIGO, É OBRIGATÓRIO. –
Mas pela razão pode mostrar-se a dita proposição suposta, a saber, que naquele artigo
o preceito afirmativo de confessar a fé é obrigatório, porque naquele instante, ou
naquele ínterim, o preceito é maximamente obrigatório quando o fiel é interrogado
por um tirano infiel ou herético, ou por qualquer perseguidor público da fé, acerca de
sua fé (sobre se é cristão ou se obedece ao Romano Pontífice), ou se lhe é interrogado
se crê que a seita ou o rito de adoração divina alheios à Igreja Católica ou Romana
são lícitos ou santos. De fato, nestes casos o fiel não só está obrigado a não negar
abertamente a fé católica, ou a não confessar uma falsa, mas também a não
tergiversar nem dissimular ou calar, mas a confessar abertamente a fé e a religião
católicas.
Ora, no caso em que o poder público coage por um edito os fiéis a ir aos templos
dos hereges e a assistir a seus ritos, virtualmente se lhes interroga se aprovam tais
ritos, ou se professam a religião católica.
Portanto, os fiéis estão obrigados a confessar a verdade mediante a desobediência
a tais editos, pois esta recusa é certa confissão da fé, a que obriga então o preceito.
A proposição maior é comum entre os teólogos. Junto com Santo Tomás,[ 494 ]
Caetano[ 495 ] e todos os modernos expositores não só consentem com ela, mas
também a transmitem como dogma certo.[ 496 ] Pois, embora haja certa controvérsia
sobre se qualquer interrogação é suficiente (o que não se refere ao caso presente),
quando a interrogação procede do poder público, não há nenhuma dúvida acerca da

235
obrigação de se confessar a fé, porque então maximamente urge a necessidade de
honrar Deus e a religião cristã, e por isso aquele que então tergiversa subtrai a Deus a
devida honra e verdadeiramente se envergonha de Cristo.
Acerca do que, assim escreveu Cipriano, no supracitado livro De Lapsis: Cristo
diz em seus preceitos: Aquele que se envergonhar de mim perante os homens, o filho
do homem se envergonhará dele. Acaso considera-se cristão aquele que sente
vergonha e temor de ser cristão? Como pode estar com Cristo aquele que sente
vergonha ou medo de pertencer a Cristo?
26. AZPILCUETA NAVARRO O SUPÕE E ENSINA ABERTAMENTE.[ 497 ]EXEMPLO DE
SANTO HERMENEGILDO. – Ora, pelo mesmo fato é manifesto que, no caso de que
tratamos, os católicos são interrogados pelo poder público, tanto sobre sua religião e
fé, quanto sobre se aprovam ou recusam a superstição dos protestantes. Por isso são
coagidos por gravíssimas penas a ir a suas igrejas, etc., para mostrar se são papistas,
ou pertencentes à religião romana, como eles mesmo dizem, e se aborrecem a
religião calvinista.
Ainda mais: são interrogados de tal modo que não possam mostrar exteriormente
a ambas. Portanto, nesta ocasião é maximamente obrigatório o preceito de confessar a
fé, ao menos ao recusar tal comunhão com os hereges. E isto é muito bem confirmado
pelo exemplo de Santo Hermenegildo, príncipe da Hispânia, que para não aceitar a
eucaristia da mão de um herege, mesmo com ordem do pai, recusou-se até à morte.
Gregório elogiou muito este feito, dizendo:[ 498 ]Um varão dedicado a Deus;
quando lhe veio um bispo ariano, exprobrou-o como devia e repulsou a sua perfídia
com dignas increpações. Com estas palavras, ele quer significar que o fez pelo dever
obrigatório, para que não parecesse comungar da heresia do ministro.
27. CONFIRMA-SE A DOUTRINA TRANSMITIDA PELO ARGUMENTO DO ESCÂNDALO. –
Outra razão desta obrigação pode assumir-se do escândalo que parece ser tão
intrinsecamente anexo a essas ações que parece ser-lhes inseparável. Mas isto é
suficiente para que a comunhão externa com os cismáticos seja pecaminosa e
detestável, segundo a doutrina do Apóstolo em Romanos 14 e em I Coríntios 8, onde
chama a isto um pecado contra Cristo [v.12], e no capítulo 10 [28-29] diz: Não o
comais por causa da consciência; da consciência, digo, não tua, mas do outro.
E pelo feito de Matatias (em II Macabeus 6) e por suas egrégias palavras é
evidente que se deve antes tolerar a morte do que dar esse escândalo aos irmãos.
E que neste negócio intervém escândalo, explicamo-lo. Primeiro, da parte dos
próprios hereges: pois, por tal fragilidade dos católicos, eles são confirmados e se
endurecem em seu erro, e desprezam a fé romana. Por isso Sander,[ 499 ] ao referir
que no tempo da rainha, por causa de uma lei acerbíssima e por causa da coação,
muitos católicos não se recusaram, às vezes até publicamente, a ir às igrejas, aos
sermões, à comunhão e às assembléias dos cismáticos, acrescenta: Neste ínterim,
desde o princípio a rainha e os seus pensaram que agiram tão bem, que, embora
houvesse no reino tantos cultores da antiga fé, sabiam que a maior parte abraçou
publicamente os ritos prescritos por ela, e os aprovou exteriormente de uma maneira
ou de outra por sua presença, embora cultivassem interiormente outra fé, da qual
eles mesmos não cuidavam tanto, ou a qual criam que deveriam dissimular por um

236
tempo. E se alegravam nada medianamente de que alguns sacerdotes não
aborrecessem a administração destes ritos.
Assim, portanto, essa dissimulação dos católicos redundou em aumento do cisma
e em grande desprezo da religião romana, e a ocasião de escândalo sempre
permanece.
E assim se encontra também outra malícia em tal ação, porque redunda em favor e
ajuda aos hereges enquanto hereges, isto é, na medida em que exercem as obras de
seu erro. Mas isto é intrinsecamente mau, como notou de modo similar Azpilcueta
Navarro.[ 500 ]
Por isso esse escândalo se produz maximamente da parte dos católicos,
principalmente dos mais simples, pois estes facilmente imitam os outros que parecem
ser mais sábios, e assim este costume se converte em pedra de tropeço aos fracos.
Pois se alguém vir (como diz São Paulo) a outro dotado de ciência assistindo aos
ritos dos hereges em suas igrejas, sua consciência, porque é fraca, é induzida a imitá-
lo, e assim perece o fraco pela ciência do mais douto. E, o que é capital, daí ocorre
que, crescendo a multidão, já não mais simula, mas usa daquele rito com a intenção
de cultuar a Deus, de tal modo que os simples não sabem mais distinguir entre a
antiga religião e a nova superstição.
Isto é, portanto, um dano e um escândalo evidentes, razão por que este pecado não
é apenas contrário à caridade fraterna e à honra divina, mas também é contrário à
confissão da fé, que é maximamente obrigatória, segundo o testemunho supracitado
de Santo Tomás,[ 501 ] quando por dissimulação ou taciturnidade se subtraem a
honra devida a Deus e a utilidade devida ao próximo.
28. PROVA-SE O ÚLTIMO PELO PERIGO DA PERDA DA FÉ. – Por último, podemos
acrescentar a estas uma razão tomada do perigo moral. Pois, se o povo fiel freqüenta
as assembléias dos hereges e (principalmente) se ouve os seus sermões, está em
máximo perigo de perder a fé.
Pois, embora um ou outro possa ouvi-los sem perigo, e ainda impugná-los e
confundi-los, o vulgo simples é facilmente enganado; e por isso também os mais
avançados estão obrigados a se abster de tais sermões, para que por seu exemplo não
arrastem os outros consigo e assim a sua fé corra perigo.
E por isso nos admoesta Crisóstomo[ 502 ] que se deve fugir mais dos lugares e
dos sermões que estão cheios de opiniões pestilentas, do que dos lugares contagiosos
e infectos, porque estes são funestos ao corpo, mas aqueles destroem a alma. Não
permaneças, diz ele, foge, não te tardes, teme até mesmo a menor demora ali.
Dizemos isto não porque temamos a firmeza de suas opiniões, mas porque tememos
vossa fraqueza, etc.
E por isso admoesta Agostinho:[ 503 ]Devemos nos precaver com pia e cauta
vigilância para que a fé não possa ser violada em alguma de suas partes pelas
fraudulentas sutilezas dos hereges.
E Gregório Nazianzeno[ 504 ] repreende gravemente aqueles que, como diz,
acomodam a sua fé ao arbítrio do tempo; quando os hereges dominam as coisas,
aqueles seguem a vontade destes nas coisas da fé e, como acrescenta, servem-se de
dispensa da fé. Isto é antes uma simulação perigosa, e por isso também diz que os que
andam assim claudicam na fé, porque em verdade pecam contra a confissão da fé e

237
correm o perigo de perdê-la – e, embora porventura sejam constantes, põem seus
irmãos no mesmo perigo.
29. RESPONDE-SE À PRIMEIRA RAZÃO DE DÚVIDA. – Ora, pelo dito se responde
facilmente às razões de dúvida.
À primeira se diz que aquelas ações tomadas abstratamente e de modo geral
podem dizer-se indiferentes enquanto não são intrinsecamente más; contudo, tomadas
em particular, de tal modo e com tais circunstâncias, contêm uma malícia intrínseca.
Pois, como referia Crisóstomo,[ 505 ] olhar os ídolos não é intrinsecamente mau,
mas olhá-los por indução ou por medo do tirano é negar a Cristo. Não porque, diz ele,
olhá-los seja grande coisa, mas porque, se olhas por ser convidado, pecas. Assim,
portanto, entrar numa igreja dos hereges ou numa sinagoga dos judeus não é nada em
si; mas entrar por causa da religião e para exercer os ritos dos hereges, para obedecer
ao herege mandante, é mau.
Assim também, embora ouvir o sermão de um herege não seja por si
intrinsecamente mau, assistir aos sermões freqüentemente e sob ordem de quem induz
à heresia, com escândalo e perigo para os fracos e às vezes para si mesmo, é
pernicioso. E é muito mais claramente supersticioso o assistir às preces e aos ritos dos
hereges, porque, ou isto é certa aprovação tácita de tal superstição, ou porque nisto
imiscui-se também a cooperação.
E discerne-se isso maximamente pela participação nos sacramentos. Portanto,
dentre todos os ritos que fazem os calvinistas, a coisa mais detestável é a comunhão
com eles na cena sacrílega e na eucaristia fictícia que ministram. Pois os que nela
participam, cooperam evidentemente com esta infiel superstição, e aceitam como
sacramento de Cristo o que nada é, e por suas próprias ações aprovam este costume.
Assim, finalmente, embora em caso de necessidade o católico possa ser batizado
por um herege que use do verdadeiro e substancial rito do batismo, se porém o herege
acrescenta outros ritos acidentais, supersticiosos, e alheios ao costume da Igreja
Romana, o católico não pode cooperar com eles, embora os possa entrementes
tolerar, se não intervém escândalo ou desprezo da religião, e se não os pode evitar.
30. E assim também se respondeu a outra parte daquele argumento, pois esses são
atos de religião, segundo a imposição e o uso comuns, e têm essa significação em
parte pela natureza da coisa, em parte pela imposição e pelo uso dos homens. Por
isso, tomados em particular em tal ocasião, e com tal indução, e em consórcio e
comunhão com tais cismáticos, significam claramente o seu culto e rito religiosos, e
para isso foram instituídos por aquele rei.
Por esta razão, assim como é intrinsecamente mau tomar o signo de uma falsa
religião, e tampouco se pode licitamente fazê-lo por causa do temor (como consta
claramente na teologia), é igualmente algo mau por si o exercer aqueles atos de tal
modo e em tal ocasião.
Quanto àquela doutrina ensinada por Azpilcueta Navarro, que diz ser lícito
comungar nas coisas sagradas com um herege enquanto este não é denunciado como
herege, é por ele mesmo mais expressamente esclarecida: desde que os ritos sagrados
ocorram no rito católico, e que não haja nenhuma comunhão no rito, na cerimônia ou
na impiedade dos hereges e, ademais, que não intervenha nenhuma ofensa aos

238
católicos e nenhum perigo para a fé, como declarou expressamente Azor[ 506 ] ao
referir Azpilcueta Navarro.[ 507 ]
31. RESPONDE-SE À SEGUNDA RAZÃO DE DÚVIDA. QUANDO O PRECEITO DE CONFESSAR A
FÉ É MAXIMAMENTE OBRIGATÓRIO. – À segunda se responde que a simulação de falsa
religião é intrinsecamente má, como mostrei largamente no citado livro IX de Sobre
as Leis, mediante a sentença supracitada de Agostinho, e de muitos doutores que
referi ali. E o mesmo opinam todos os que negam ser alguma vez lícito assumir o
signo de uma falsa religião ou exercer um ato externo de infidelidade, mesmo que
retendo a fé interna.
Porque, embora quem assuma o signo não tenha em vista a sua significação, esta é
inseparável, e por isso, querendo ou não, significa ipso facto que é infiel, e assim
professa uma falsa religião por seu obrar, o que é contrário ao preceito de confessar a
fé.
Pois, assim como a fé verdadeira obriga-nos a confessá-la, assim também nos
obriga a evitar a infidelidade contrária – e, por conseguinte, também a confessá-la
exteriormente. E esta obrigação é mais urgente quando o acossamento de um tirano
público insta o contrário. Pois então é maximamente obrigatório o preceito de
confessar a fé verdadeira e evitar toda e qualquer simulação contrária. E será tanto
maior esta obrigação quanto maior forem o escândalo e o perigo de ruína da fé e de
desprezo da religião romana. E todas estas coisas concorrem maximamente no
presente caso.
32. RESPONDE-SE À TERCEIRA RAZÃO. – Por isto também responde à terceira razão, que
se referia ao escândalo.
De fato, dizemos em primeiro lugar que, além do escândalo, há outras razões
suficientes. Em segundo lugar, dizemos que não se evita o escândalo com as evasivas
propostas.
Pois quando se diz que todos sabem que os católicos fazem aquelas coisas
exteriormente e não de coração, mas por coação, respondemos que isto é incerto (pois
muitos podem ignorá-lo), e isto é suficiente para constituir um escândalo gravíssimo,
pois o próprio fingimento é um grave pecado. Além disso, assim não se evitam outros
perigos e injúrias à religião cristã.
Igualmente, quando se diz que o rei não acossa os fiéis tanto por causa da religião
como por causa da cupidez do dinheiro, respondo também que isto é dito por mera
especulação. Mas, qualquer que seja o caso, pouco importa, porque não nos devemos
fixar na intenção do operante, e sim na da obra: embora o rei intente o lucro
monetário, ele induz proximamente à profissão de uma religião falsa e supersticiosa,
junto com a negação ao menos tácita da religião romana. E isto é intrinsecamente
mau. Portanto, qualquer que seja a razão intentada pelo rei, deve-se resisti-lo.
33. A PROTESTAÇÃO PÚBLICA NÃO É SUFICIENTE PARA HONESTAR UMA COMUNHÃO
SUPERSTICIOSA. – Por fim, tampouco serve de escusa a protestação, quer porque
moralmente não pode ser tão pública e notória como o é a própria simulação da
heresia, quer também porque a protestação, mesmo que conhecida de todos os
católicos, não tolhe o fato de que aquela ação é uma simulação e uma profissão

239
externas de erro e falsa superstição; nem tolhe a falha em confessar a fé, nem o
desprezo da religião, nem o perigo das almas.
Ademais, esta via dá licença para se professar exteriormente qualquer
infidelidade, desde que se proteste perante os fiéis católicos que não se faz isto por
intenção infiel, mas por desejo humano de não perder os seus meios e outros bens
temporais.
Ora, isto é torpíssimo, perniciosíssimo, e contrário à razão. Pois essa profissão
fingida de uma religião perversa não só é má porque outros fiéis virão a crer que ela é
feita por infidelidade, mas também porque é isto que se significa a todos aqueles
capazes de ver e entender tais signos. No máximo, a protestação tolhe tal opinião aos
católicos somente, porque costuma ser feita apenas perante os fiéis, não perante os
infiéis.
E, ademais, ainda se feita perante todos, tal ação será sempre contrária à honra de
Deus e promotora do desprezo da fé, com perigo e escândalo para os fracos. Portanto,
a protestação não expurga a malícia de tais ações. E é assim, em suma, que Azor
explicou sua própria sentença.[ 508 ]

[ 449 ] NICHOLAS SANDER, De Origine ac progressu schismatis anglicani libri tres, Roma, 1586, p. 444.
[ 450 ] S. Th., IIª-IIae, q. 3, a. 2.
[ 451 ] Enarrationes in XII psalmos Davidicos, In psalmum XXXVIII enarratio, 4 (PL 14, 1041C).
[ 452 ] Mateus 24:13.
[ 453 ] Mateus 10:32.
[ 454 ] De fide et symbolo, I, cap. 1 (PL 40, 181).
[ 455 ] Trecho hoje considerado de autoria incerta: De symbolo, exordium (PL 40, 1189).
[ 456 ] Enarrationes in Psalmos, 115, n. 2 (PL 37, 1492).
[ 457 ] TEOFILACTO DE ÁCRIDA,Enarratio in Evangelium Matthaei, cap. X, vv. 32-33 (PG 123, 243B-C).
[ 458 ] Na verdade, AMBROSIASTER,Commentaria in Epistolam ad Timotheum Secundam, II, vv. 11-12 (PL
17, 490A).
[ 459 ] TEODORETO DE CIRRO,Interpretatio Epist. II ad Tim. Cap. II, vv. 12-13 (PG 82, 842A-B).
[ 460 ] PRIMÁSIO DE ADRUMETO, In epist. II ad Timotheum, c. 2 (PL 68, 675B).
[ 461 ] In Matthaeum Homil. XXXIV, 3 (PG 57, 402).
[ 462 ] Commentariorum in evangelium Matthaei, lib. I, cap. X, vv. 17-18 (PL 26, 64D).
[ 463 ] S. HILÁRIO DE POITIERS,Commentarius in Matthaeum, cap. X, 11 (PL 9, 970B-D).
[ 464 ] De doctrina Christiana, lib. II, cap. 16, 24 (PL 34, 47).
[ 465 ] Contra Mendacium ad Consentium, cap. 6 (PL 40, 525-7).
[ 466 ] Super I Epistolam ad Corinthios, cap. 6, lect. 3.
[ 467 ] S. IRINEU DE LYON,Contra Haereses, III, cap. 3, 4 (PG 7, 853-855).
[ 468 ] POLICARPO DE ESMIRNA, Epistola ad philippenses, II (PG 5, 1006).
[ 469 ] S. CIPRIANO DE CARTAGO,Epistola XII S. Cypriani ad Cornelium Papam, 21 (PL 3, 828A-B).
[ 470 ] Liber de lapsis, cap. 34 (PL 4, 492A).
[ 471 ] Epístola 40, 5 (PL 4, 336A-B).
[ 472 ] Mateus 15:14.
[ 473 ] Commentarius in Matthaeum, cap. 10, 3 (PL 9, 967B).
[ 474 ] Mateus 10:5.
[ 475 ] Contra Mendacium ad Consentium, cap. 3, 4 (PL 40, 521) e Retractationes, lib. II, cap. 60 (PL 32,
654).
[ 476 ] Decretum Gratiani, II, c. 24, q. 1 c. 41, p. 1319.
[ 477 ] Miraculorum lib I: De Gloria Martyrum, cap. 80 (PL 71, 776C-777C).
[ 478 ] S. GREGÓRIO MAGNO, Epistolarum Lib. I, Indict. IX, Epist. 43 (PL 77, 497D-498A).
[ 479 ] Sermones de Scripturis, 62, cap. 8, n. 13 (PL 38, 420-421).
[ 480 ] V. nota 475 supra, e em várias epístolas a Jerônimo: Epistolarum Classis I, 28, cap. 3, n. 3 (PL 33,
112); 40, cap. 4, nn. 4 e 6 (PL 33, 155 e 156); 82, cap. 2, nn. 4, 10 e 13-8 (PL 33, 276 e 279 e 280-3), cap. 3,
24-7 e 29 (PL 33, 286-8), cap. 4, 30 (PL 33, 288).
[ 481 ] Tractatus de legibus ac Deo legislatore, Antuérpia, 1613, IX, c. 17, pp. 781-790.

240
[ 482 ] Epistola XXXI, 2 (PL 4, 310A-B).
[ 483 ] Epistola X S. Cypriani ad Antonianum, 6 (PL 3, 767A-B).
[ 484 ] LiberDe Spectaculis, cap. 13 (PL 1, 646B).
[ 485 ] PL 1, 680A.
[ 486 ] Contra Celsum, lib. VIII, cap. 5 (PG 11, 1526).
[ 487 ] Opus imperfectum, In Matthaeum Homil. XXV (26) (PG 56, 766-7). V. nota 212 supra.
[ 488 ] Contra Mendacium ad Consentium, cap. 6 (PL 40, 525-7) e nota 480 supra.
[ 489 ] V. nota 482 supra.
[ 490 ] PL 4, 487B.
[ 491 ] V. nota 487 supra.
[ 492 ] Salmo 119:37.
[ 493 ] Salmo 7:4.
[ 494 ] S. Th. IIª-IIae, q. 3, a. 2.
[ 495 ] Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Lyon, 1554, q. 3, a. 2, ff. 9-
10.
[ 496 ] DOMINGO BAÑEZ,Scholastica commentaria in secundam secundae Angelici Doctoris S. Thomae,
Duaci, 1615, q. 3, art. 2, pp. 203-5.
[ 497 ] MARTÍN DE AZPILCUETA NAVARRO,Consilia seu responsa, Roma, 1602, cons. XII, n. 6, p. 382.
[ 498 ] Dialogi, lib. III, cap. 15 (PL 77, 292A).
[ 499 ] NICHOLAS SANDER, De Origine ac progressu schismatis anglicani libri tres, Roma, 1586, p. 393.
[ 500 ] MARTÍN DE AZPILCUETA NAVARRO, Consilia et responsa, Lyon, 1594, lib. V, t. II, consil. 12, nn. 6-9,
pp. 130-1.
[ 501 ] V. nota 494 supra.
[ 502 ] De Fato et Providentia, orat. 2 (PG 50, 756-7).
[ 503 ] De fide et symbolo, I, cap. 1 (PL 40, 181).
[ 504 ] Oratio XLIV, 9 (PG 36, 618).
[ 505 ] V. nota 487 supra.
[ 506 ] JUAN AZOR, Institutionum Moralium, Roma, 1600, p. 1, lib. VIII, cap. 11, q. 4, col. 958B-C.
[ 507 ] V. nota 500 supra.
[ 508 ] JUAN AZOR, Institutionum Moralium, Colônia, 1612, p. 3, lib. I, cap. 7, após a segunda questão, cols
30-1.

241
Capítulo X
Se o acossamento que os católicos
padecem na Inglaterra é uma verdadeira perseguição da
religião cristã
1. Persegue a Igreja Católica aquele que por ódio à Igreja Romana acossa alguma
parte sua. 2. O estado da controvérsia. 3. Razões por que o rei se escusa. 4. Não é
perseguição da Igreja aquela vexação dos cristãos que se detém sobre as coisas
temporais. 5. O que é perseguição da Igreja. 6. O que é propriamente uma
perseguição da Igreja. 7. O primeiro meio de que costumam servir-se os
perseguidores. 8-9. Mostra-se por seu fim que a vexação dos fiéis na Inglaterra é
uma perseguição da Igreja. 10. O mesmo se demonstra pelos meios. Quão grave foi a
perseguição sob Henrique. 11. Quanto cresceu a perseguição sob Eduardo. Sob
Elizabete. Sob o rei Jaime. 12. Outro meio de perseguição. Quanto cresceu sob
Elizabete. 13. E sob o rei Jaime. 14-15. O convento dos quatro arcebispos irlandeses
para extirpar a fé católica. 16. Exclui-se a evasiva empregada pelo rei. 17. Refuta-se
outra evasiva. 18-19. Aniquila-se outra evasiva. 20. O progresso da perseguição sob
Jaime. 21. Replica-se à evasiva. Não há escusa pelos benefícios dados aos católicos,
se estes foram conferidos em razão do regime político.

1. PERSEGUEA IGREJA CATÓLICA AQUELE QUE POR ÓDIO À IGREJA ROMANA ACOSSA
ALGUMA PARTE SUA. – Esta questão não deve ser tratada de tal modo que regressemos
de novo à primeira controvérsia: onde está a religião católica e verdadeira, se na ilha
anglicana, ou no orbe inteiro ou, o que é o mesmo, na Igreja Romana. Pois isto foi
disputado suficientemente no livro I.[ 509 ]
E do que ali foi dito supomos que a verdadeira fé e a religião cristã estão na Igreja
Romana. Disto se segue evidentemente que, se na Inglaterra os fiéis (que os hereges
chamam de papistas) são acossados porque estão unidos à Igreja Romana e
professam a sua fé, religião e obediência, esta é uma perseguição própria e de todo
verdadeira da fé católica e da Igreja de Cristo – e seu autor é inimigo de Cristo e
perseguidor dos cristãos.
E ninguém pode duvidar desta conseqüência, ou desta proposição condicional,
uma vez admitida a referida hipótese. Pois, se a Igreja Romana é a verdadeira Igreja
de Cristo, quem persegue a Igreja Romana por causa de sua religião, ou quem ataca
sua religião, persegue e ataca a Igreja de Cristo, e, por conseguinte, isto será uma
perseguição de Cristo e de sua Igreja.
E chama-se especialmente assim quando não é uma perseguição privada de uma
ou de outra pessoa, mas é também pública e geral, de toda a comunidade. Pois,
embora a perseguição de qualquer membro enquanto tal, quer pela fé quer pela
justiça, seja uma perseguição do próprio Cristo, e, em razão da causa geral ou do

242
motivo, pareça redundar em toda a Igreja, por antonomásia se diz perseguição contra
a Igreja aquela que combate a comunidade da Igreja e seu corpo universal.
Mas, para que mereça o nome de perseguição da Igreja, não é necessário que tal
vexação se faça direta e imediatamente contra a Igreja Católica inteira enquanto
difusa por todo o orbe, ou contra a Igreja Romana enquanto episcopado particular;
basta que ela grasse nalgum reino cristão por causa da mesma fé católica e romana.
De fato, diz Agostinho:[ 510 ]Que erro não é o desconsiderar que a Igreja, que
frutifica e cresce por todo o mundo, pode em algumas gentes padecer perseguição
pelos reis, mesmo quando em outras não a padece? E traz os exemplos da
perseguição feita na Pérsia pelo rei, e pelos godos em seu domínio, e por Herodes em
Jerusalém. De fato, tal vexação contra um reino ou contra uma parte principal da
Igreja não ocorre sem alguma participação e turbação da Igreja universal. Pois toda
ela é de algum modo abalada, uma vez que, embora se mova a perseguição numa
única província, tentam-se debilitar os fundamentos de toda a Igreja.
2. O ESTADO DA CONTROVÉRSIA. – Portanto, supondo isto como uma constante – uma
vez que é de fato evidente que os que professam a religião romana têm sido
acossados de muitos modos e afligidos por grandes suplícios pelos príncipes daquele
reino depois de Henrique VIII (excetuando-se Maria, a Católica) – eis o sentido da
presente controvérsia: se isto em verdade é, e deve chamar-se, uma perseguição da
Igreja e de Cristo, ou apenas uma guerra injusta ou uma punição justa.
E o rei da Inglaterra nos deu ocasião à questão, ao muito queixar-se do pontífice
por este parecer arrolá-lo entre os perseguidores da Igreja. Por isso defende que as
penas e aflições que na Inglaterra são infligidas pela autoridade régia aos papistas
(como eles nos entendem) não merecem o nome de perseguição da Igreja, porque são
infligidas não a título de religião, mas como pena justa por crimes cometidos contra o
rei e a república.
Por isso, no princípio da Apologia diz o monarca: Não se pode negar que o
pontífice pecou contra os bons costumes e contra a usança dos príncipes,
especialmente dos cristãos, ao condenar-me sem me ouvir, o que fez ao arrolar-me
entre os perseguidores, como se indica não obscuramente por sua exortação a que os
seus católicos aspirem à glória do martírio.
Por fim, na impugnação do primeiro breve do pontífice ele digressiona largamente
acerta disso, e primeiro afirma (na página 18), acerca de Elizabete, que a nenhum dos
papistas ela irrogou pena por causa da religião, antes que suas maldades e
depravações lhe arrancassem, como que contra a sua vontade, os suplícios que
padeceram.
E disto ele dá uma quase-prova mediante a seguinte divisão geral: a rainha não
pode ser imputada justamente com a infâmia da perseguição, nem antes da publicação
do breve de Pio V contra ela, nem depois. Quanto à primeira parte: naquele tempo
prévio a que Pio V fulminasse a sentença contra a rainha, ela não havia imposto aos
católicos nenhuma multa, nem leis mais severas, nem foi constituída naquele tempo
nenhuma pena capital contra os papistas.
Quanto à segunda parte: desde o tempo em que se proferiu a sentença contra a
rainha nasceram naquele reino muitas conjurações, maquinações e rebeliões
públicas, de tal modo que aquelas não só foram penas justas, mas também

243
moderadas, contra os delinqüentes. Portanto, não por aquelas penas poderia a rainha
ser assinalada com a infâmia da perseguição; antes deveria ser aclamada com título de
grande clemência.
3. RAZÕES POR QUE O REI SE ESCUSA. – Por fim, o rei faz uma transição para si e para o
seu regime, e diz na página 23: Quanto à calúnia acerca da perseguição dos
católicos, nunca se pôde provar que alguém fora, durante meu reinado, condenado à
morte, ou que vivera em perigo de morte em razão de sua consciência e, portanto, de
sua religião. A não ser que porventura, diz ele, esta infeliz interdição feita pelo papa
aos católicos, que não me prestem o juramento, seja daqui para diante a causa pela
qual muitos sejam justamente castigados. Em seguida, tenta por muitos argumentos e
indícios mostrar que isto não merece o nome de perseguição.
Primeiro ele o fez de maneira geral, por comparação à rainha: porque o rei Jaime
tratou os católicos com mansidão e piedade muito maiores do que ela o fez.
Segundo, porque usou de tanta clemência com os católicos que eles mesmos
chegaram a esperar que em breve fruiriam da liberdade para sua religião, e que
outros sectários, familiares do rei, espantaram-se e temeram algum grande perigo para
o reino.
Terceiro, o rei recenseia os favores humanos e os benefícios temporais dados aos
católicos. Por exemplo, deu a alguns, embora o recusassem, a dignidade eqüestre, e a
outros fez partícipes do seu acesso e de seu colóquio, e sem nenhuma discriminação
de religião concedeu-lhes muitas honras e muitos benefícios, e coisas similares.
Quarto, enumera entre estes benefícios o advertir aos seus juízes que não
afligissem os sacerdotes com suplício, mesmo que fossem culpados, e especialmente
exagera seu edito clementíssimo, por que se permitiu a todos os sacerdotes que não
tinham sido apreendidos, e que estavam ativos fora da custódia, partir do reino além
do dia pré-estabelecido. E os que estavam detidos no cárcere, também se lhes
permitiu ir livremente; e, se depois disso alguns foram apreendidos, foram enviados
ao outro lado do mar e lá soltos. Daí conclui a ingratidão mostrada pelo pontífice,
que compensou tantos benefícios com uma medida tão iníqua.
4. NÃO É PERSEGUIÇÃO DA IGREJA AQUELA VEXAÇÃO DOS CRISTÃOS QUE SE DETÉM
SOBRE AS COISAS TEMPORAIS. – Mas, como nos é certo e examinado que a perseguição
que agora a Igreja padece na Inglaterra, e que padeceu após Henrique sob Elizabete, é
uma das mais graves que a Igreja Católica já suportou até agora em algum reino em
particular, advirto (para que o mostremos a partir de seus inícios e fundamentos) que
em toda e qualquer perseguição, para lhe dar algum juízo, primeiro de tudo se deve
observar o escopo e o fim ao qual ela tende, e em seguida os meios pelos quais se o
procura alcançar.
Portanto, para que a vexação contra a Igreja seja uma perseguição própria e
pública, é necessário e suficiente, quanto ao fim, que ela se ordene à destruição ou à
mutação da Igreja Católica, no todo ou em alguma parte notável.
Pois, embora a vexação do povo ou do reino cristão se ordene ao domínio
temporal e à sua ocupação tirânica, e por esta razão muitos prejuízos temporais dos
cristãos ocorram por rapinas, homicídios e outras injúrias similares, se estes não
tendem à ruína da religião cristã, mas apenas consistem no apetite do império

244
temporal, não serão uma perseguição própria da Igreja como dela tratamos agora,
porque por ela os fiéis não são acossados enquanto fiéis e cristãos, mas enquanto
homens ou cidadãos, assim como às vezes são acossados os gentios e pagãos.
Portanto, poder-se-á chamá-la de perseguição corporal – não espiritual – e
humana – não cristã –, pois esta deve dar-se por causa de Cristo ou da fé n’Ele,
segundo suas próprias palavras em Mateus [5:11]: Bem-aventurados sois quando vos
insultarem, etc., por causa de mim. E em I Pedro [4:15-16] se diz: Nenhum de vós
sofra como homicida, etc. Se sofre como cristão, não se envergonhe, antes glorifique
a Deus por tal nome.
5. O QUE É PERSEGUIÇÃO DA IGREJA. – Mas, pelo contrário, se a perseguição tende
àquele fim, e se é feita sob este nome, ela é uma perseguição cristã, quaisquer que
sejam os meios empregados.
Porque, como se diz em moral, o fim é o que dá ser e espécie à ação. Por isso,
assim como quem favorece os cristãos porque são cristãos, ou lhes confere quaisquer
benefícios por causa da fé e do amor de Cristo que há neles, honra a Cristo e pode
esperar d’Ele um prêmio, segundo o que se diz em Mateus [10:42]: Todo o que der a
beber a um destes pequeninos, etc., a título de discípulo, não perderá a sua
recompensa; assim também, em sentido contrário, o que tende diretamente a ofender
a religião católica e a desviar dela os que a professam, quaisquer que sejam os meios
de que se sirva, é propriamente um perseguidor dos cristãos, e, conseqüentemente,
também de Cristo, segundo suas palavras ditas a São Paulo: Por que me persegues?
(Atos 9:4)
Mas, quanto aos meios, o próprio Senhor insinua vários modos de se perseguir os
cristãos, dizendo no mesmo lugar (Mateus 5:11): Quando vos insultarem e vos
perseguirem, e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim.
Agostinho,[ 511 ] distinguindo acuradamente estas três coisas, diz que as
perseguições são feitas propriamente mediante a força ou mediante insídias; insultar,
porém, é desonrar alguém e lançar-lhe afrontas em sua presença; dizer o mal, por
outro lado, é propriamente detrair alguém e ferir-lhe a reputação enquanto está
ausente.
Mas, embora isso esteja dito com acerto ao se tomar estritamente a palavra
perseguir, também aquela vexação feita aos cristãos por afrontas e infâmias merece o
nome de perseguição, como se diz dos apóstolos em Atos [5:41]: Eles saíam da
presença do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas
pelo nome de Jesus. E em I Pedro [3:14] diz-se: Se alguma coisa sofreis pela justiça,
sois bem-aventurados.
Assim, segundo a diversidade dos meios ou das tribulações, poderá haver
perseguição maior ou menor; mas, de qualquer modo que ocorra, se é em razão da fé
ou da religião cristã, ela será uma perseguição cristã. Como disse Agostinho, no lugar
citado, alguém padece por Cristo quando se chama cristão segundo a verdadeira fé e
segundo a disciplina católica e por isso é acossado.
6. O QUE É PROPRIAMENTE UMA PERSEGUIÇÃO DA IGREJA. – Por fim, para lançarmos
maior luz a esta causa, julgamos útil explicar mais distintamente tanto os fins das

245
perseguições contra a Igreja quanto os meios pelos quais elas costumam ser
realizadas.
Pois a perseguição pode acontecer apenas contra os bons costumes, ao introduzir-
se pela violência e potência humanas algum perverso costume na república, e ao
afligir-se gravemente os que resistem e de algum modo pugnam pela verdade. Mas tal
vexação, enquanto se contém nestes limites, não costuma ser chamada de perseguição
da Igreja, mas antes de governo iníquo e tirânico, porque ela pode existir em todo e
qualquer reino, mesmo no meramente humano e pagão.
Mas a vexação do príncipe cristão costuma finalmente progredir até a cisão da
unidade da Igreja e até o desprezo de sua única cabeça, de tal modo que todos os
súditos que não consentem com o príncipe no mesmo cisma são por ele afligidos ou,
por aquele mesmo fato, considerados dignos de suplícios. E isto já atinge
propriamente certo grau de perseguição da Igreja.
Mas o fim e o escopo da perseguição podem ser a mutação da fé e da verdadeira
religião nela fundada, com acossamento e aflição para os fiéis que resistem a tal
mudança. E esta é, em razão do fim, uma consumada perseguição da Igreja: porque
tenta subverter completamente o seu fundamento.
7. O PRIMEIRO MEIO DE QUE COSTUMAM SERVIR-SE OS PERSEGUIDORES. – Já os meios
dos quais os perseguidores da Igreja costumam servir-se para este fim são mais ou
menos os seguintes: primeiro, pela força e pela potência arruínam o culto divino da
Igreja, destruindo os templos, queimando as imagens, e convertendo os mosteiros e
locais sagrados em locais de uso profano. Assim nos relata Optato acerca dos
donatistas,[ 512 ] os quais acusa com as palavras de Elias:[ 513 ]Destruíram os teus
altares. Por que, diz ele, arruinastes os votos e os desejos dos homens junto com os
altares? Por que destruístes a via para as preces?
E comprova Agostinho[ 514 ] que os donatistas perseguiram os maximianistas,
porque destruíram a basílica de Maximiano. Assim também os arianos subvertiam os
templos dos católicos, como relata Vítor de Vite.[ 515 ] Outros imperadores também
subverteram as imagens e as incendiaram, como é de comum conhecimento.
Um segundo meio costuma ser promulgar leis e editos contrários à fé, pelos quais
os fiéis são coagidos sob gravíssimas penas a abjurá-la ou a professar algo contrário
às suas regras. Fizeram isto não só os imperadores pagãos, mas também os que
desertaram de Cristo: Juliano, Valente e similares. A isto se acrescenta a execução
das penas e dos tormentos. Às vezes também costumam empregar meios violentos
para que os ministros e mestres heréticos ensinem e instruam os filhos dos católicos,
na intenção de que, ao contrário, estes se afastem da disciplina católica, e ela lhes seja
de todos os modos proibida – tal como fez Juliano, o Apóstata, segundo lemos nas
memórias. Por fim, algumas vezes os tiranos costumam tentar as mentes dos fiéis
com blandícias e favores humanos, como se divulga nas histórias eclesiásticas.
8. MOSTRA-SE POR SEU FIM QUE A VEXAÇÃO DOS FIÉIS NA INGLATERRA É UMA
PERSEGUIÇÃO DA IGREJA. – Primeiro, portanto, deve-se provar que a vexação dos fiéis
na Inglaterra é uma perseguição da Igreja quanto ao fim. De fato, se contemplamos
seu início e sua origem, isto se tornará manifesto.

246
Pois Henrique VIII, para que fosse pronunciada em seu reino a sentença de
divórcio entre ele e a rainha Catarina, em desprezo à Sé Apostólica, induziu a
Inglaterra a uma nova forma de igreja, constituiu-se a si mesmo como sua cabeça, e
decretou que na administração das coisas eclesiásticas daquele reino não seria
necessária a autoridade do Papa. E, por esse poder assim usurpado, decretou a
introdução no seu reino de novos ritos e leis para o culto de Deus, muito distantes
daqueles que existiam anteriormente, e com este fim fez muitas coisas de que
trataremos depois.
Eduardo também teve esse escopo, ou melhor, tiveram-no seu protetor e seus
conselheiros, que aumentaram e intensificaram aquele mesmo fim, de tal modo que
em pouco tempo na Inglaterra o sacrifício tremendo, os ofícios divinos, e todos os
sacramentos deixaram totalmente de ser realizados segundo o rito católico, como
refere Sander.[ 516 ] E ainda, embora Henrique houvesse vetado a mutação de outros
artigos atinentes à fé, exceto o do primado, logo depois Eduardo começou a
introduzir a heresia zwingliana, como vimos acima.
Elizabete estabeleceu o mesmo objetivo assim que assumiu o reino, pois se
declarou a suprema governadora de toda a Inglaterra não menos nas coisas espirituais
e eclesiásticas do que nas temporais, e quis que seus súditos o jurassem. E inclinou-se
de todos os modos a não só conservar o cisma, mas também a introduzir a heresia
luterana e outras não muito diferentes, e a mudar totalmente a religião católica, que
sua irmã Maria começara a restaurar, e trabalhou até ao fim da vida nesta empresa e
nesta solicitude.
9. E não é necessário provar que o rei Jaime tenciona de todos os modos conservar e
preservar em seu reino a mesma forma de religião, que sem dúvida repugna à
católica. Pois de maneira suficientemente eloqüente e clara o próprio rei o professa
com freqüência em seu livro, como é assaz manifesto por sua profissão de fé, que
expusemos acima, e da qual em seguida indicaremos muitas palavras e lugares em
que mostra e declara este fim.
De tudo isso é evidente que os três fins perversos da perseguição à religião cristã,
que distinguimos acima, a saber, os costumes perversos, a mutação da religião pelo
cisma, e a mutação da fé pela heresia, todos encontram-se nessa perturbação
anglicana. De fato, ela começou pela corrupção dos costumes, prosseguiu ao cisma e
consumou-se como heresia declarada – e assim continua até hoje.
Pois, quanto ao cisma, nem o rei o nega; mas este, por sua vez, já está fundado
sobre a heresia, como se mostrou no livro III, e cumulou muitas outras heresias, como
se provou nos livros I e II.[ 517 ] Ora, o cisma e a heresia não podem dar-se sem
grande corrupção dos costumes. Portanto, quanto ao fim, ali concorrem todos os
males que se podem encontrar na perseguição da Igreja.
10. O MESMO SE DEMONSTRA PELOS MEIOS. QUÃO GRAVE FOI A PERSEGUIÇÃO SOB
HENRIQUE. – Mas que também quanto aos meios a perseguição foi acerbíssima não só
antes de Elizabete, mas sob ela, e após ela sob Jaime, isto se prova discorrendo
brevemente pelos capítulos que tocamos.
O primeiro era acerca da subversão e da usurpação das coisas sagradas. Ora, estas
começaram imediatamente sob Henrique, com a mutação da religião. Pois Henrique

247
sozinho ocupou violentamente dez mil dos mosteiros e templos edificados pelos
católicos ao longo de muitos séculos, e os perverteu para uso profano, como relata
Bozio.[ 518 ]
Sander[ 519 ] descreve mais extensamente a duração e o modo de sua tirania. Diz-
nos: Henrique preceituou a todos os varões e mulheres de todas as ordens que
entregassem a seus tesoureiros os preciosíssimos ornamentos das igrejas e suas
relíquias. Em seguida, diz que ele conseguiu em assembléias públicas que os
mosteiros menores, cujas rendas não excediam setecentas libras, fossem entregues a
seu arbítrio, e assim ocupou trezentos e setenta e seis mosteiros, e deles auferiu cento
e vinte mil libras a cada ano, e reenviou ao século mais de dez mil religiosos de
ambos os sexos. De fato, em três anos ele arruinou todos os mosteiros do reino, e
aplicou, com suma violência, todos os seus bens ao fisco. E o mesmo autor continua a
relatar extensamente com quanta força e com quantos artifícios perversos o rei pôs
em prática tais medidas.
Após isto, o monarca moveu guerra contra as imagens, os monumentos e as
relíquias dos santos: subverteu todos os mais célebres, afrontou-os e pilhou-os. E,
embora não subvertesse de todo a outras igrejas, arrebatou qualquer coisa preciosa
que nelas havia, e de modos incontáveis violou a elas e a todas as coisas sagradas,
tratando-as indignamente.
11. QUANTO CRESCEU A PERSEGUIÇÃO SOB EDUARDO. SOB ELIZABETE. SOB O REI JAIME.
– Mas todas essas coisas foram mantidas e intensificadas sob Eduardo. Pois, se na
Inglaterra haviam restado algumas imagens ou cruzes, estas em parte foram
subvertidas e em parte queimadas, e foram entregues ao rei todos os vasos de ouro e
de prata, os cálices e as vestes eclesiásticas sagradas, e todos os bens das igrejas.
E começaram a recitar os ofícios divinos segundo o rito herético e na língua
vulgar; assim, removendo-se o sacrifício divino e destruindo-se os altares, as igrejas
dos católicos deixaram de ser templos de Deus e de Cristo e comutaram-se em
sinagogas de Satanás.
Depois, Elizabete tirou novamente do caminho os templos, os mosteiros e todas as
coisas sagradas que sua irmã devolvera em parte ao antigo decoro da religião
verdadeira, e com maior vigor e poder invadiu todas as coisas sagradas, e tentou com
todas as forças remover todo uso da antiga religião.
Jaime, porém, embora talvez não tivesse encontrado mosteiros para destruir, nem
bens imóveis para deles se apossar, nem templos que já não estivessem contaminados
pelos hereges, deve contar-se ainda assim entre os que infligiram a mesma violência
contra as coisas sagradas.
Primeiro, porque por seu poder ele faz com que aquela abominação da desolação
seja conservada, e com a mesma violência impede que seja instaurada em seus reinos
qualquer coisa que cheire à religião católica. E embora na Irlanda (como ouvimos
daí) as igrejas outrora derruídas pelos hereges sejam agora reedificadas às expensas
dos católicos por ordem do rei, faz-se isto para que elas sirvam aos ritos e encontros
sacrílegos dos calvinistas, o que duplica, por assim dizer, a injúria e a perseguição.
Ademais, se os católicos retêm ocultamente quaisquer vasos sagrados e os
ministros do rei os encontram, estes os rapinam e convertem a seu uso profano. Além
disso (como ouvimos de pessoas dignas de fé), desta maneira pilham quaisquer vasos

248
preciosos de ouro e de prata ou ornamentos femininos, fingindo que são vasos
sagrados e que estão reservados para o ornato das relíquias e dos altares.
12. OUTRO MEIO DE PERSEGUIÇÃO. QUANTO CRESCEU SOB ELIZABETE. – Outro modo de
se perseguir a religião cristã costuma ser por editos e leis violentas e penais que
repugnam à fé católica. É conhecidíssimo na Inglaterra que estes foram promulgados
pelos referidos reis e são propostos quotidianamente.
Pois Henrique, no princípio de sua queda, por um edito público coagiu os súditos
a prestar-lhe um juramento sobre o primado, como se viu acima. Além disso, ardia de
tanto ódio contra o pontífice, que preceituou sob pena capital que todos apagassem de
seus livros o nome do Papa. E outras leis similares foram promulgadas por ele e por
Eduardo contra a religião católica.
Depois Elizabete, logo no princípio de seu reinado, propôs que os súditos
aceitassem o juramento sobre seu primado eclesiástico. Pois, embora não usasse o
nome de cabeça da Igreja, mas de soberana governadora, declarou posteriormente
que ambas as expressões significavam a mesma coisa. Acrescentaram-se as penas de
privação de bens e cárcere perpétuo aos que se recusavam por primeira vez; aos que
se recusavam por segunda vez, a pena capital.
Além disso, proibiu-se o uso do sacrifício e dos sacramentos no rito romano, na
primeira vez sob pena de duzentas libras, na segunda, de quatrocentas, na terceira, de
perda de todos os bens e de cárcere perpétuo.
Igualmente, sob pena de perda de todos os bens e cárcere perpétuo, proibiu na
Inglaterra que qualquer um trouxesse ágnus-deis, cruzes, ou quaisquer outras coisas
consagradas pela autoridade do pontífice, e, sob pena capital, que qualquer um
portasse breves ou bulas de Roma.
Quis que fosse crime de lesa-majestade o querer reconciliar-se com a Igreja
Romana. Privou de todos os bens os que navegassem para fora do reino por causa da
religião. Depois promulgou uma lei segundo a qual todos os clérigos ordenados pela
autoridade pontifícia estavam coagidos a sair do reino dentro de cem dias, e a nunca
mais voltar de além-mar, sob pena de lesa-majestade. E promulgou inúmeros editos
similares.
13. E SOB O REI JAIME. – Tampouco Jaime foi mais vagaroso ao atacar a fé católica
com suas leis. Pois, como refere extensamente o cardeal Belarmino na sua resposta à
Apologia,[ 520 ] saiu no ano de 1606 um edito régio cujo título era Para descobrir e
reprimir os papistas. Pelo título, é manifesto que foi promulgado por motivo religioso
e para o afastamento do Papa. Por isso, no primeiro artigo se confirmam as leis
promulgadas por Elizabete, e nos demais instituem-se muitas outras coisas, sob
gravíssimas penas, com o mesmo fim. Por exemplo, os católicos que recusam tomar a
ceia dos hereges, ou entrar em seus templos e assistir a seus ritos sagrados, são
multados com várias penas pecuniárias, que aumentam a cada reincidência. Isto é
feito de modo muito mais acerbo do que sob Elizabete.
Ademais, embora o rei diga que moderara o antigo juramento, não o retirou. De
fato, sabemos por relato digno de fé que, no último ano, decretou que todos os súditos
o prestassem.

249
Além disso, os que recusam também o novo juramento de fidelidade são lançados
no cárcere dos sicários, e, se ali ainda recusam, são privados de todos os bens e
transferidos para cárcere perpétuo.
Igualmente, se alguém reconduzir à obediência eclesiástica algum súdito do rei, é
tido como réu de lesa-majestade e sofre a pena por seu crime, a não ser que dentro de
certo tempo o confesse e acolha os dois juramentos (o do primado e o contrário ao
poder do Papa).
Todos esses editos e todas essas leis se ordenam manifestamente ao escopo de
afastar os homens da religião romana, e contêm grande coação, pois, pela ameaça da
privação dos bens e do cárcere perpétuo os homens são mantidos afastados dos atos
consentâneos à fé e à religião romana, ou induzidos a jurar as pérfidas e sacrílegas
superstições dos hereges.
14. O CONVENTO DOS QUATRO ARCEBISPOS IRLANDESES PARA EXTIRPAR A FÉ CATÓLICA.
– Ocorre que antes, sob Elizabete, as coisas não eram tão acerbas como nos últimos
anos, especialmente desde 1605 até o presente. Os mesmos editos foram promulgados
na Irlanda (como escrevem dali) pelos legados e governadores enviados pelo rei com
grande poder, os quais acossam os católicos de tal modo que quase não se lhes
permite viver se não renunciam à antiga religião.
De fato, preceitua-se a todos, sob gravíssimas penas, que freqüentem as igrejas
dos protestantes nos domingos e festas, e que assistam a seus ritos ímpios; e os
católicos são coagidos a desertar a pátria se não querem conformar-se aos
protestantes.
Além disso, os católicos estão, sob pena de cárcere perpétuo, proibidos de ensinar
gramática ou outras ciências aos jovens dentro do reino. Os pais, sob pena de
confisco de todos os bens, estão proibidos de enviar os filhos para estudos católicos
de letras fora do reino; se constar que eles os enviaram, são detidos no cárcere até que
os filhos retornem. Também os que são seus próprios senhores[ 521 ] estão, de modo
semelhante, proibidos de sair do reino para obter ciência, sob pena de cárcere
perpétuo se forem capturados na saída.
E a ninguém se permite ser eleito à magistratura, nem ser admitido a seu regime,
sem que primeiro preste o juramento sobre o primado eclesiástico do rei da Inglaterra.
Tudo isso e muitas outras coisas, que omitimos por causa da brevidade, ordenam-
se ao mesmo fim: o de arrancar radicalmente a fé católica daquela ilha, onde até
agora parecia vigorar.
Por isso, com ordem do rei, quatro arcebispos, que são os únicos naquela região,
reuniram-se em Dublin para tratar dos assuntos religiosos, e todos a uma só voz
juraram que de todos os modos e com todos os meios cuidariam que se conserve nas
suas dioceses, e nas sufragâneas, e também em toda a ilha, a uniformidade no rito da
religião: Com o fim, dizem, de erradicar totalmente a religião papista, e no lugar
dela plantar a fé e a religião verdadeiras.
15. Mas esta vexação por editos e leis não consiste apenas em ameaças, mas
prossegue, na maior parte, à sua implementação, como relata Sander[ 522 ]
extensamente acerca do tempo de Elizabete. E, quanto ao presente período, segundo o
rumor constante e relatos muito dignos de fé, consta que os católicos são

250
maximamente acossados por pilhagens e rapinas, e, reduzidos à suma pobreza,
carecem de ânimo e força para resistir. Disto podemos dar muitos exemplos, mas um
é suficiente: o de certo ilustre varão, Visconde de Montagu, que, para não tomar o
novo juramento, no ano de 1611 pagou como compensação seis mil libras, isto é,
vinte e quatro mil cruzados portugueses.
Nem é necessário que ofereçamos uma prova mais extensa acerca de outros meios
de tormento, penalização e coação, com os quais os fiéis são acossados
gravissimamente, porque no capítulo seguinte[ 523 ] precisaremos relatar muitos
argumentos e exemplos desta verdade, e estes também agora ficarão mais evidentes
pela resposta às objeções (ou melhor, às escusas) do rei – pois nem mesmo o próprio
rei ousa negar de todo as aflições e penas que os ortodoxos[ 524 ] padeceram na
Inglaterra, e ainda agora padecem. Mas é mister examinar outras escusas que ele
apresenta, para que se evidencie muito mais o fato de que aquela perseguição é tão
clara e cruel, que nenhuma tergiversação poderia ocultá-la.
16. EXCLUI-SE A EVASIVA EMPREGADA PELO REI. – Primeiro, portanto, o rei escusa sua
predecessora, Elizabete, segundo aquela divisão de tempos feita acima. Pois, antes da
sentença promulgada por Pio V, ela não teria acossado gravemente os fiéis; após a
sentença, não os teria acossado, mas se defendido, nem teria perseguido a fé, mas os
crimes e conjurações.
Ora, a primeira parte se apóia sobre um fundamento falso. Pois diz o rei que antes
da excomunhão de Pio V se haviam promulgado na Inglaterra leis mais severas
contra os católicos. Ora, a excomunhão foi promulgada por Pio V no ano de 1569 e,
contudo, as leis relatadas acima foram promulgadas no ano de 1558 e no seguinte –
leis que não podem nem devem dizer-se apenas mais severas, mas severíssimas.
De fato, as penas de privação de todos os bens e de cárcere perpétuo, tomadas em
si mesmas e individualmente, são gravíssimas. Como, portanto, não se há de julgar
severíssima a lei que ao mesmo tempo impunha ambas as penas aos que recusavam
aquele juramento de perfídia?
Igualmente, não podem não ser consideradas gravíssimas e severíssimas as outras
leis que impõem penas pecuniárias, tanto aos que observam o costume católico nos
ritos sagrados, quanto aos que evitam o rito sacrílego dos protestantes, visto que elas
pouco a pouco os privam dos bens necessários à vida, e entregam por fim ao cárcere
os que perseveram no bem.
17. REFUTA-SE OUTRA EVASIVA. – O rei ainda acrescenta que naquele tempo nenhuma
pena capital foi constituída contra os papistas. Ora, o que se evidencia pelas ditas leis
é o contrário, pois impunha-se a pena capital àquele que recusava por segunda vez tal
juramento de perfídia. E pagava a mesma pena aquele que trouxesse qualquer bula
pontifícia para a Inglaterra. E um doutor da fé católica, se convertesse alguém da sua
heresia, seria tido como réu de lesa-majestade, e em seguida também réu de morte.
Já naquele tempo a rainha acossava os católicos não só pelas leis, mas também por
sua aplicação, e de inumeráveis outros modos. Pois relata Sander[ 525 ] que muitos
bispos que não quiseram jurar nem consentir com outras impiedades foram depostos e
entregues ao cárcere, e ali, por fim, foram extintos após um longo dissabor de
misérias. Igualmente, nobres e outros religiosos de ambos os sexos, ou suportaram

251
semelhantes vexações, ou, para evitá-las, foram coagidos a desertar a pátria e,
abandonando tudo, fazer-se exilados.
É portanto evidentíssimo que Elizabete acossou os católicos com perseguição
gravíssima antes que Pio V a castigasse. Se o rei quisesse (como ele postula) estimar
e ponderar com espírito justo todo o assunto em suas circunstâncias, diria ser muito
mais verdadeiro que Pio V não lançou nenhuma pena contra a rainha antes que sua
pertinácia e severidade contra os católicos compelissem o pontífice a defender os
inocentes.
18. ANIQUILA-SE OUTRA EVASIVA. – Vejamos, em seguida, quão legítima é a escusa
sobre os atos de Elizabete naquele tempo posterior. Elizabete, diz ele, exacerbada
com a censura e a deposição de Pio V, moveu contra os católicos sua ira e
indignação.
Mas que escusa é esta? Certamente é nula; ou antes, por isso mesmo a iniqüidade
da perseguição tornou-se mais grave e mais detestável.
Pois, como mostramos, por muitos anos antes da sentença de Pio V Elizabete
acossara os católicos para desviá-los da obediência ao pontífice. Quando Pio IV
enviou-lhe um legado para admoestá-la a não arruinar seu nobilíssimo reino por ódio
ao pontífice, e ademais afirmar-lhe que, se ela temia algo quanto ao direito do reino,
isto poderia ser resolvido pela benignidade da Sé Apostólica, ela nem quis ouvir tal
legado, nem lhe permitiu passagem para a ilha, como relata Sander.[ 526 ]
E acrescenta o autor que, quando um segundo legado fora enviado para a
Inglaterra pelo mesmo pontífice, para exortar à rainha que enviasse alguns de seus
bispos para o concílio de Trento – prometendo-lhes toda a segurança – para que
tratassem de matéria de fé, ela também o rejeitou soberbamente.
Também, diz ele, ela sempre se mostrou mais dura às várias cartas do imperador,
dos reis e de outros varões católicos ilustres.
Por que se admirar, portanto, se Pio V julgou que devia por fim usar de severidade
contra ela, já que por quase quatro anos de seu pontificado esperou pacientemente
alguma correção ou moderação nos costumes da rainha e não obteve nada?
Certamente, ninguém que não duvide do poder do Papa ousará repreender sua justa
indignação, nem escusará a pertinácia da rainha.
19. E podemos acomodar à presente causa a egrégia sentença de Agostinho,[ 527 ]
que assim fala aos donatistas:
Se vós erigistes um altar contra a Igreja de Cristo, e vos separastes por um cisma
sacrílego da unidade cristã, que se difunde por todo o orbe, e se adversais o corpo de
Cristo, que é a Igreja difusa por todo o orbe, blasfemando-a e, quanto podeis,
combatendo-a, a Escritura sagrada e canônica prova que sois ímpios e sacrílegos.
Por outro lado, são tidos como regentes diligentíssimos e conselheiros piíssimos
aqueles que determinam de modo tão leniente que, por tamanha iniqüidade, sejais
desencorajados e coagidos por meio de admonições, quer quanto aos danos, quer
pela privação de suas posições, honras ou dinheiro, para que, cogitando por que
padeceis estas coisas, fujais de vosso conhecido sacrilégio e sejais livrados da eterna
danação. Os pontífices devem a vós este amor: que não determinem a punição
merecida por vossos sacrilégios, por causa da mansidão cristã, mas que tampouco

252
vos deixem de todo impunes, por causa da solicitude cristã. E isto Deus opera neles,
cuja misericórdia não quereis reconhecer, mesmo nas moléstias de que vos queixais.
É mais ou menos isto que disse Agostinho, que, embora não fale de um pontífice
coagindo um rei cismático, mas de um imperador irando-se a favor da Igreja contra
súditos rebeldes – como já dissemos –, as suas palavras e toda a sentença acomodam-
se de modo excelente e proporcional à causa presente.
Nem o poderá contradizer senão aquele que negar o poder do Papa para coagir os
reis cismáticos: ele reconduzirá a controvérsia para a questão sobre a causa da
religião. Mas assim também se conclui que, embora Elizabete, provocada pela
sentença do pontífice, tenha aumentado a perseguição, nem por isso mudou o escopo
e o fim desta. De fato, sempre pugnou contra a religião, e se firmou ainda mais e com
maior crueldade neste mesmo propósito por ocasião da sentença justa, e assim não
mudou nem retirou a perseguição dos católicos, mas a aumentou.
20. O PROGRESSO DA PERSEGUIÇÃO SOB JAIME. – Às outras coisas que o rei propõe
sobre si mesmo e sobre seu regime, respondemos brevemente.
De início, quanto à comparação que faz entre Elizabete e ele, esta nos mostra no
máximo que no princípio de seu império ele tratou os católicos com maior mansidão,
e moderara de algum modo a perseguição de Elizabete, embora não a tenha cessado.
Mas nós podemos facilmente mostrar que o próprio Jaime também perseguiu a
religião católica desde o princípio de seu reinado.
Primeiro, porque, em seu primeiro ano de mando e em seu primeiro parlamento,
ele não só confirmou os editos da rainha mas também os aumentou não pouco, como
testemunha Belarmino[ 528 ] em sua resposta. Segundo, porque o próprio rei diz que
os católicos, confiantes em sua benignidade, chegaram a ter a esperança de que em
breve tempo fruiriam da liberdade de sua religião. Portanto, ele admite que, enquanto
já reinava, os católicos sempre estiveram proibidos de professar ou observar sua
religião. Logo, eram coagidos a desertá-la. Mas o que pode ser uma perseguição
religiosa mais evidente do que proibir o seu uso por leis iníquas e pela força?
Terceiro, o próprio rei confessa que atingiu a suma clemência para com os católicos,
que, excedendo o dia constituído, lhes permitiu sair do reino, ou melhor, os obrigou a
sair, pois tal exílio lhes era concedido para evitarem penas mais graves. E o rei chama
isto de edito clementíssimo. Mas ouça-se o que escreveu Sander sobre uma concessão
similar feita no tempo de Elizabete: Tomaram nestes dias uma nova deliberação
acerca de alguns que tinham presos, para enviá-los ao exílio, ou porque acreditavam
que a morte e a imolação dos sacerdotes não lhes aproveitavam nada; ou porque
julgaram que, por este fato, se poderia divulgar em muitos lugares sua clemência
postiça, cujo louvor tanto esperam.[ 529 ] O que acontecerá, portanto, se alguém
fizer o mesmo juízo acerca da determinação semelhante do rei? Talvez não se afaste
muito da verdade.
Contudo, concedamos que o rei o fizesse com a intenção de abrandar a vexação e
de diminuir as penas. Ainda assim o exílio perpétuo não é grande argumento em prol
de sua leniência, como o mesmo Sander acrescenta. Ademais, considerado em si
mesmo, é uma pena gravíssima, e é uma grande calamidade o ser coagido por ela
para que se evitem penas mais graves. Por fim, é também algo muito duro e severo tê-
la imposta sob a condição de que o retorno constituísse delito capital.

253
21. REPLICA-SE À EVASIVA. NÃO HÁ ESCUSA PELOS BENEFÍCIOS DADOS AOS CATÓLICOS,
SE ESTES FORAM CONFERIDOS EM RAZÃO DO REGIME POLÍTICO. – E diz o rei que não se
pode provar que alguém fora condenado à morte por motivo religioso durante o seu
reinado.
Ora, em primeiro lugar, isto não é nenhuma graça, a não ser que seja considerado
um benefício aquilo dos ladrões, que costumam gloriar-se de que deram a vida
àqueles que dela não privaram. Ademais, a conclusão é péssima: “Os católicos não
são mortos; logo, tampouco padecem perseguição.” Como se apenas a matança e a
morte fossem coações e penas graves. Por isso, diz Agostinho:[ 530 ]Os príncipes são
perseguidores e opressores toda vez que pelos terrores das penas, mesmo das mais
leves, desencorajam os súditos da boa vida e das boas ações, ameaçando-os e
seviciando-os.
Por fim, mostraremos no capítulo seguinte que sua asserção é também falsa.
Quanto ao que o rei acrescenta (e que dá a entender ocorrerá), que a proibição do
juramento é ocasião para matar muitos recusantes, isto mostra suficientemente que o
propósito do rei é perseguir os santos até à morte por causa da religião. Pois, como
mostramos, a religião e a consciência obrigam os fiéis a não admitir este juramento.
Portanto, os fiéis que ele mata por esta causa, persegue-os até à morte por sua
religião. E o sangue deles não recairá sobre a cabeça do pontífice, como profetiza o
rei, mas sobre a cabeça do perseguidor, se não se corrigir.
Pois o pontífice, que proibiu o juramento declarando a verdade, não deu motivo
para tal efusão de sangue; será antes o rei – que, atacando a verdade, impôs tal
juramento e decidiu perseguir os recusantes até à morte – a causa deste sangue tão
cruelmente vertido.
Além disso, os favores e benefícios que relata haver dado aos católicos são de
pouca importância para escusar a perseguição. Pois não foi por causa da religião que
ele começou a favorecê-los, ou antes a dissimulá-los, mas por razões políticas, para
que, de algum modo, a todos reconciliasse com ele no princípio de seu reinado.
E talvez desejasse ganhar seus espíritos com tais blandícias e honrarias, para que
depois os encontrasse mais facilmente obedientes à sua vontade também nas coisas da
religião. Se é assim, aquilo não se deve considerar uma escusa, mas antes uma parte
da perseguição e uma razão de seu aumento.
Por fim, o que o rei freqüentemente alega em sua defesa, que fora forçado a agir
mais severamente contra os papistas por causa dos crimes de conjuração, isto nem
escusa a perseguição, que começara muito antes, como mostramos, nem de nada
serve para escusar da acusação de perseguição o acossamento dos católicos que daí se
seguiu, como mostraremos no capítulo seguinte.

[ 509 ] Ausente desta compilação.


[ 510 ] De Civitate Dei, XVIII, 52 (PL 41, 616).
[ 511 ] De Sermone Domini in Monte, lib. I, cap. 5, n. 14 (PL 34, 1236).
[ 512 ] S. OPTATO DE MILEVI, De schismate Donatistarum, VI, 1 (PL 11, 1066B-1067A).
[ 513 ] I Reis 19:10.
[ 514 ] Contra Cresconium grammaticum Donatistam, III, c. 59 (65) (PL 43, 531).
[ 515 ] Historia persecutionis africanae provinciae temporibus Geiserici et Hunirici regum wandalorum,
Bibliotheca veterum Patrum, Paris, 1589, lib. I (De Persecutione Vandalica).
[ 516 ] NICHOLAS SANDER, De Origine ac progressu schismatis anglicani libri tres, Roma, 1586, II, p. 276.
[ 517 ] Ausentes desta compilação.

254
[ 518 ] TOMÁS BOZIO EUGUBINO,De Signis Ecclesiae, Roma, 1591, t. I, lib. 10, cap. 10, p. 410, D-E.
[ 519 ] Op. cit., I, pp. 169-170.
[ 520 ] Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Bellarmini..., Roma, 1609, p. 14.
[ 521 ] Isto é, homens sui iuris (de direito próprio), que não são servos. [N. T.]
[ 522 ] Op. cit., III, pp. 268-373.
[ 523 ] Ausente desta edição compilada.
[ 524 ] Isto é, os fiéis católicos, que não abandonaram a ortodoxia doutrinal para ceder à heresia. [N. T.]
[ 525 ] Op. cit., III, p. 384.
[ 526 ] Op. cit., III, p. 307.
[ 527 ] Ad Catholicos epistola contra donatistas (De unitate Ecclesiae), lib. I, cap. 20, n. 55 (PL 43, 433).
[ 528 ] Op. cit., p. 181.
[ 529 ] Op. cit., III, pp. 476-7.
[ 530 ] Ad Catholicos epistola contra donatistas (De unitate Ecclesiae), lib. I, cap. 20, n. 53 (PL 43, 432).

255
Capítulo XII
Resposta ao que o rei objeta contra o segundo breve
pontifício e contra a epístola do cardeal Belarmino
1. Redargüição do rei contra a brevidade do cardeal Belarmino. 2. As decisões
principais do segundo breve de Paulo V. 3. Como o rei não tinha objeções contra o
segundo breve, usou do exagero das palavras. 4-5. Com que espírito a forma de
juramento foi intentada. Responde-se ao inconveniente inferido pelo rei. 6. Resposta
à última ilação do rei. 7. Refutam-se as objeções do rei contra a epístola de
Belarmino. A primeira. A segunda. 8. A terceira. A quarta. A quinta. Falsamente se
atribui aos pontífices a matança dos reis. 9. A sexta. O que carece de prova é
suposto, não provado. 10. A sétima. Não é contradição calar num lugar o que se diz
em outro. 11. Vindica-se de calúnia o ilustre martírio de Thomas More e de Fisher.
12. A oitava.

1. REDARGÜIÇÃO DO REI CONTRA A BREVIDADE DO CARDEAL BELARMINO. – Entre


outros sinais de “arrogância” na Apologia de Belarmino e em sua resposta, que o rei
enumera e repreende em seu Prefácio, um deles é que em seu texto Belarmino quis
seguir o rei, que ao escrever manteve a brevidade. E acrescenta o monarca: Quis ele
usar contra mim o resumo de que me servi para refutar o segundo breve do pontífice,
e, a meu exemplo, quase encerrar-se na estreiteza de uma só página. Portanto, para
que eu evite uma repreensão similar, e fuja de toda sombra de sua ocasião – como fiz
até agora quanto aos demais pontos –, neste último desejei dar uma repreensão
copiosa ao sereníssimo rei. Entretanto, não encontrei nada, nem no próprio breve que
necessitasse de nova defesa e prova, nem no ataque do rei que postulasse uma
resposta peculiar. Por isso, achei mais satisfatório incorrer naquela mesma ofensa e
repreensão régia do que repetir coisas já ditas ou onerar as páginas com palavras
supérfluas e ociosas.
Assim, primeiro explicarei de modo breve o segundo decreto do pontífice e a sua
razão; depois, com a mesma brevidade mostrarei que o rei não pode objetar nada
difícil contra ele. Por fim, de modo similar, discorrerei sobre a refutação à epístola de
Belarmino.
2. AS DECISÕES PRINCIPAIS DO SEGUNDO BREVE DE PAULO V. – O pontífice, pois, nesse
segundo breve não impôs aos católicos ingleses nenhuma obrigação ou nenhum ônus
novo, mas confirma novamente o primeiro breve e explica mais distintamente que
nele se fizeram duas cosias.
Uma é declarar que não é lícito em consciência prestar esse juramento de
fidelidade. A outra é proibi-lo também por preceito próprio, para que se tolha toda
ocasião de tergiversação e de dúvida.

256
Ademais, também declara que o primeiro breve fora escrito não só motu proprio e
com ciência certa, mas também após longa e grave deliberação acerca de todas as
coisas contidas no juramento; e por isso aquele documento deve ser observado de
todo, rejeitando-se qualquer interpretação que queira persuadir em sentido contrário.
Mas a razão ou a necessidade desta nova declaração ou confirmação foi que,
como relata o próprio pontífice, alguns – ou súditos, ou sedutores do rei – espalharam
na Inglaterra o rumor de que o breve era forjado, ou de que não fora expedido
legitimamente e com ciência certa, mas sub-repticiamente. Com este pretexto, alguns,
desprezando o breve, não recusavam o juramento. Tal fraude e renitência o mesmo
pontífice atribuiu benigna e prudentemente à astúcia do adversário da salvação
humana, para escusar a fragilidade dos fiéis mais infirmes.
3. COMO O REI NÃO TINHA OBJEÇÕES CONTRA O SEGUNDO BREVE, USOU DO EXAGERO
DAS PALAVRAS. – Mas o rei da Inglaterra, não tendo nada a objetar – seja pela
autoridade, seja pela razão – contra a declaração muito verdadeira do pontífice e
contra aquela proibição necessária, prorrompe na exageração das palavras, arrebata as
do próprio pontífice (que aduzimos há pouco) e as volta contra ele, dizendo que nem
mesmo o demônio, por nenhuma fraude, poderia em mil anos prejudicar tanto os
católicos da Inglaterra como o Papa os prejudicou pela expedição desse breve.
Porque dele se seguiria este grande incômodo: muitos que admitiram o juramento,
mesmo sacerdotes, seriam coagidos a abjurá-lo, e assim se tornariam perjuros de dois
juramentos prestados a seu rei. Um seria aquele que todos que nascem no reino juram
tacitamente, e o outro seria esse que admitiram posteriormente. Donde se segue, diz
ele, que ninguém pode professar a religião romana na Inglaterra, nem cuidar da
salvação de sua alma, senão aquele que abandonar e rejeitar a sua fidelidade
conhecida e jurada para com o príncipe.
E depois nada mais objeta contra esse breve.
4. COM QUE ESPÍRITO A FORMA DE JURAMENTO FOI INTENTADA. RESPONDE-SE AO
INCONVENIENTE INFERIDO PELO REI. – Mas não é difícil no presente ponto provar o
espírito,[ 531 ] e mostrar o que procede do espírito de Satanás: se a instituição e a
exação do juramento, ou se sua reprovação e proibição. Pois isto se pode discernir por
seus frutos ou efeitos.
Pois o fim do juramento é afastar os fiéis da obediência eclesiástica sob a
roupagem da obediência civil, induzindo-os a negar o poder pontifício sob pretexto
de jurar fidelidade ao rei. Por isso os frutos de tal juramento, se é prestado, serão a
profissão, a confirmação e o aumento do cisma, a negação da fé, a íntegra ruína do
reino nas coisas espirituais e a perdição das almas.
É, portanto, evidente que o juramento foi cogitado pelo adversário da salvação
humana, e inserido por ele nos corações dos protestantes que aconselham o rei, e do
mesmo espírito procederam todas as palavras e meios pelos quais tal juramento é
defendido; mas, pelo contrário, a reprovação e proibição do juramento foram
inspiradas pelo espírito contrário, ou divino, tanto porque a obra própria do espírito
de Deus é dissolver as obras do diabo, quanto também porque os que receberem tal
proibição com plena fé e constante obediência atenderão às suas consciências e
resistirão ao cisma e à infidelidade com esperança de grandes frutos e recompensas.

257
Mas os que admitiram tal juramento, seja pela fragilidade do espírito, seja por erro
ou engano, como o rei afirma, reconhecendo sua queda e seu erro pelo clamor do
pastor, dissolverão os laços da impiedade e abjurarão o juramento iníquo. De fato,
isto não só não é inconveniente, como o rei infere, mas é antes necessário à salvação,
e deve ser computado entre os efeitos principais desse breve.
5. Além disso, tampouco se segue a outra parte que o rei postula, a saber, que se
rechaça aquele juramento de obediência e fidelidade ao rei que aos súditos é
congênito.
Pois, quer se entenda por esse juramento aquela obrigação que, como por direito
hereditário, chega a todos os súditos e a seus filhos pela fidelidade jurada aos
príncipes por seus pais e maiores, quer também se entenda o expresso juramento,
lícito e honesto, feito pelos súditos sobre a fidelidade política devida ao rei, de
nenhum dos dois modos se segue que, pela retratação desse outro juramento
inventado pelo monarca e admitido por alguns, se abjure ao vínculo natural ou ao
juramento de obediência civil – porque nesse outro, como mostramos, não se promete
ao rei uma obediência civil justa e honesta, mas se negam diretamente a obediência e
o poder do pontífice. Por isso, quando alguém o retrata, abjura uma negação, por
assim dizer, e portanto reconhece o poder pontifício e retorna à sua obediência.
Antes nega-se ao rei apenas aquela obediência que é contrária à devida ao Papa e
a Deus. Que essa não é contrária à devida obediência civil e natural, já o explicamos e
provamos muitas vezes.
6. RESPOSTA À ÚLTIMA ILAÇÃO DO REI. – E com isso respondemos à última ilação do
rei.
Pois, se o rei, ao falar da obediência que ele deseja, diz que não se reconheceria
nenhuma outra acima dela – seja diretamente nas coisas espirituais, seja
indiretamente nas coisas temporais – ele infere muito bem que ninguém na Inglaterra
pode manter e conservar a fé católica jurando tal obediência ao rei, ou sem retratar tal
juramento, se alguma vez o prestou.
Nem o rei duvidará disto se ele crê, como deve, que fora da única Igreja Católica e
Apostólica não pode haver salvação ou fé; porque, onde não há união com a cabeça,
aí há cisma, divisão e separação da Igreja. E portanto não é possível que esteja em
estado de salvação quem admite o juramento e nele persiste.
Já se o rei falasse sobre a pura e legítima obediência civil, sua ilação não teria
importância alguma, porque esta obediência civil não impugna a eclesiástica. E em
outros reinos católicos os súditos observam a religião romana e atendem à sua
salvação, e contudo não abandonam nem abjuram a fidelidade devida a seu rei; antes
observam-na com maior fidelidade, e com paz e segurança maiores para o reino.
7. REFUTAM-SE AS OBJEÇÕES DO REI CONTRA A EPÍSTOLA DE BELARMINO. A PRIMEIRA.
A SEGUNDA. – Após impugnar os decretos pontifícios, o rei investe contra a epístola
do cardeal Belarmino, e não julguei valer a pena responder-lhe quanto a esta parte,
tanto porque o doutíssimo cardeal o fez completamente e com sólida erudição, como
porque à presente causa ela nada contém de atinente que já não tenhamos respondido
acima.

258
Para que isto seja evidente a todos, explicá-lo-ei individualmente e por partes, de
modo breve.
Primeiro, ele atribui a Belarmino a confusão entre o juramento de fidelidade e o
juramento do primado. Ora, o próprio cardeal refuta satisfatoriamente esta objeção. E,
por isso, no princípio deste livro propusemos a fórmula de ambos os juramentos, para
que não se deixasse abertura à tergiversação ou à ambigüidade.
Segundo, na passagem Atque ut iustitiam, etc., o rei propõe catorze asserções, das
quais afirma que todas (ou ao menos algumas) se seguem à impugnação do
juramento. Ora, já se falou delas suficientemente no capítulo VI.
8. A TERCEIRA. A QUARTA.A QUINTA. FALSAMENTE SE ATRIBUI AOS PONTÍFICES A
MATANÇA DOS REIS. – Terceiro, no parágrafo Atque ut clarius, o rei se põe a provar a
justiça de seu juramento de fidelidade mediante a autoridade dos concílios. Ora, como
notei no capítulo II deste livro, aqueles concílios falam de um juramento muito
diverso. Por isso, não é sem razão que podemos voltar contra o rei o erro que ele
atribuiu a Belarmino no princípio dessa impugnação, a saber: para confirmar um
juramento completamente alheio à questão, ele colecionou provas desnecessárias
(como expus extensamente naquele mesmo lugar).
Quarto, no parágrafo Nunc vero, que está na página 65, ele digressiona por muitas
páginas com palavras injuriosas, ou com motejos e afrontas, perseguindo e argüindo a
Belarmino. Mas em tudo isto não encontro nada que seja atinente à causa ou à
doutrina, ou que seja digno da discussão. Mesmo assim, Belarmino refutou
doutamente a todas, embora não sem razão pudessem ter sido desprezadas.
Quinto, na página 84, no parágrafo Nunc autem, ele volta de onde digressionou,
como diz, mas logo aparta-se para outra coisa: redargüir Belarmino de outra
contradição; para fazê-lo, assume o encargo de provar que os pontífices acossaram
muitos imperadores, inquietaram-nos, e perseguiram-nos até à morte. E aduz vários
exemplos de imperadores e reis depostos pelos pontífices. Mas neles mistura muitas
falsidades com verdades, como mostra Belarmino eruditamente. Por conseguinte, as
coisas verdadeiras confirmam a verdade católica, como examinamos de modo
diligente no livro III, quando a elas nos referimos, ponderando as circunstâncias de
cada uma em particular. Já as que são falsas devem desprezar-se, pois antes refutam o
próprio argumentador. E, assim, nem uma nem outra provam que os pontífices
maquinaram o assassínio dos reis por sicários ou por insídias, como negara
Belarmino. Pois falsidades não provam nada; já as verdadeiras histórias apenas
provam que os pontífices, quando uma causa legítima intervinha e uma causa justa o
exigia, com freqüência procederam à sentença de deposição contra príncipes iníquos,
observando-se a ordem do direito.
9. A SEXTA. O QUE CARECE DE PROVA É SUPOSTO, NÃO PROVADO. – Sexto, na página 90,
na passagem Nam cum illud constet, etc., o rei chega mais próximo do tratamento da
causa sobre a malícia ou a probidade do juramento; contudo nela pouco insiste. De
fato, logo divaga pelos símiles e exemplos aduzidos por Belarmino, buscando em
cada um deles disparidade, como se buscasse nó no junco.[ 532 ]
Mas nada aduz em defesa do juramento, nem para mostrar a sua probidade, além
daquele princípio geral: é santo o juramento de fidelidade civil prestado ao rei. Como,

259
porém, a dificuldade reside em aplicar ao juramento em questão este princípio muito
verdadeiro (sobre o qual se dá a controvérsia), e em mostrar que ele é um simples
juramento de obediência civil, que nada tem de contrário à religião católica. Ele
freqüentemente o supõe e repete, mas nunca o prova nem o defende, senão pela
negação do poder do pontífice.
E por isso julgamos que se deve insistir sobre este único ponto. Os demais símiles
e exemplos – apresentados mais para exortação do que para prova – supõem a
doutrina católica, e estão bem se esta está de pé. Tampouco o rei os refuta senão
negando a doutrina católica, como notou retamente o mesmo Belarmino, defendendo
e confirmando todas as partes, exemplos e testemunhos de sua epístola.
E porque pertencem à causa do primado certas palavras dos papas Gregório e
Leão, que o rei ataca extensamente nas páginas 106 até 116, tratamo-las largamente
no livro III. Já no livro II[ 533 ] refutamos o que ele repete, na página 117, contra a
comunhão sob as duas espécies e contra as missas privadas.
10. A SÉTIMA. NÃO É CONTRADIÇÃO CALAR NUM LUGAR O QUE SE DIZ EM OUTRO. –
Sétimo, nas páginas 117 a 126, novamente investe contra Belarmino e Sander e, por
fim, contra Thomas More e Fisher.[ 534 ] E, embora nada do que toca pertença ao
ponto em questão, consideramos que algo se deve dizer brevemente sobre cada uma
de suas asserções, visto que em alguma parte elas tocam a doutrina da fé.
Em primeiro lugar, ele não repreende a Belarmino, mas à Igreja, que não
acrescenta às palavras da consagração a frase quod pro vobis datur,[ 535 ] indo de
encontro (diz o rei) a Lucas e Paulo. E acrescenta que ele tem um adversário e
inimigo, Belarmino, que confessa que estas coisas não se podem conciliar.
Mas quem alguma vez disse que há oposição entre aqueles que falam da mesma
coisa, quando um narra o assunto integralmente e o outro refere uma parte, sem
discrepância, enquanto cala sobre outra?
Se isto é contradição ou oposição, são infinitas as oposições entre os evangelistas
que não poderão ser conciliadas. Ademais, neste mesmo ponto Mateus e Marcos se
oporiam a Lucas e Paulo: aqueles calaram a expressão quod pro vobis, que Lucas e
Paulo puseram. Mas também Lucas e Paulo estariam de algum modo em oposição
entre si, porque não usaram a mesma palavra, mas um disse quod pro vobis datur
[Lucas 22:19] e o outro quod pro vobis tradetur [I Coríntios 11:24].[ 536 ]
Aprouve-me anotá-lo, para que o leitor advirta por que pretextos os protestantes
deixam a Igreja Católica, e ousam repreender seus ritos apostólicos.
De fato, evidentemente consta que ali não há oposição nenhuma, seja porque calar
não é contradizer, seja porque Paulo e Lucas não disseram que todas aquelas palavras
são necessárias para a consumação da Eucaristia – nem é verossímil que Mateus e
Marcos tenham preterido algo substancial do sacramento. É antes blasfemo e herético
cogitar que Pedro transmitira à Igreja Romana uma forma mutilada e insuficiente da
Eucaristia; sobre isto disputamos detalhadamente noutro lugar.
11. VINDICA-SE DE CALÚNIA O ILUSTRE MARTÍRIO DE THOMAS MORE E DE FISHER. – Da
pessoa de Sander[ 537 ] o rei diz que ele mereceu o mal de sua pátria. O rei o prova
por suas sentenças e asserções – enumera oito delas – que não precisam ser transcritas
aqui, pois em seus livros podem ser vistas facilmente.[ 538 ]

260
Mas destas se conclui abertamente que Sander não haveria merecido o mal de sua
pátria senão porque ensinou a verdade católica, ou porque não aderiu a reis
cismáticos, nem os adulou, ou, por fim, porque morreu exilado da pátria por causa da
constância na fé.
De Thomas More e de Fisher, insignes varões e mártires ilustres, embora não
pudesse negar que foram mortos porque não quiseram assentir ao decreto sobre o
primado do rei da Inglaterra nas coisas espirituais, acrescenta que foram mortos não
só por esta causa, mas também porque recusaram aprovar as segundas núpcias do rei.
E di-lo especialmente de More, mas entende o mesmo de Fisher, pois assim contam
as histórias sobre os dois.
Mas o rei acrescenta: Segundo meu juízo, a causa do martírio foi muito carnal.
Eu, porém, julgo que este juízo do rei mostra satisfatoriamente quão potente é o erro,
uma vez embebido, para perverter o juízo prudente mesmo nas coisas que são mais
claras que a luz meridiana. Pois o que pode ser mais detestável do que dizer que algo
mau é bom, ou o que pode ser mais grave do que aprovar o falso no lugar do
verdadeiro, principalmente em matéria moral e concernente à salvação eterna?
Como, portanto, as segundas núpcias do rei Henrique eram tão detestáveis que,
contra todo direito divino e humano, foram contraídas sem valor e sem efeito, mesmo
que não interviesse nenhuma outra causa para a morte além da recusa à aprovação
delas, sem dúvida tal causa seria suficiente para o martírio.
Pois, embora sejam carnais o adultério e a poligamia (enquanto vive o primeiro e
verdadeiro cônjuge), condená-los é obra de virtude, e muito espiritual; e suportar
firmemente a morte pela constância nesta obra é causa egrégia de martírio.
De fato, assim foi ilustre martírio a morte de João Batista, como o pensa a Igreja,
embora tenha morrido antes pelo ódio da concubina do que pelo da esposa, visto que
pregava ao rei [Mateus 14:4]: Não te é lícito tê-la. Esta causa, embora fosse assaz
carnal da parte do rei e de Herodíade, era espiritual da parte de João: era o
testemunho da verdade pelo qual foi morto.
O mesmo, portanto, acontece com More e Fisher, e por isso seu martírio não se
obscurece por este ponto, mas se faz ainda mais ilustre.
Já o resto com que o rei detrai a estes santos varões pertence às calúnias dos
hereges, a quem ele dá fé. E por isso também opõe a Fisher os escritores e as
assembléias heréticas da Inglaterra, contra o consenso e a autoridade de todo o orbe.
E isto é muito frívolo, como expõe egregiamente Belarmino.
12. A OITAVA. – Oitavo, no parágrafo Denique illud, etc., o rei tenta provar a
dignidade e o poder régios pela letra do Antigo e do Novo Testamento, mas trabalha
em vão, porque ninguém nega a dignidade e o poder legítimos do rei temporal. Mas
aqueles testemunhos não provam – e outros testemunhos certíssimos reprovam – o
poder espiritual do rei ou sua isenção da obediência aos prelados da Igreja, como se
mostrou no livro III, onde falamos copiosamente sobre os testemunhos que o rei aqui
reúne.
E por isso é assaz evidente quão frívolas são as oposições que o rei forja entre os
modos de falar da Escritura e os de Belarmino sobre o poder e a dignidade dos reis
temporais, às quais o cardeal responde suficientemente, e ainda refuta o que o rei
acrescenta depois contra os títulos de Soberano Pontífice ou de Cabeça da Fé, com

261
os quais costuma honrar-se o Papa. Acerca destes e de muitos outros também nós
falamos no livro III. E por isso, como disse, julguei que não me deveria demorar mais
em toda essa parte da Apologia.

[ 531 ] I João 4:1.


[ 532 ] “Procurar dificuldades onde não as há.” A expressão é do dramaturgo romano Plauto. [N. T.]
[ 533 ] Ausente desta compilação.
[ 534 ] No original, Rossensis, ou seja, “de Rochester”; trata-se da diocese do bispo John Fisher, santo e
mártir, executado por Henrique VIII. [N. T.]
[ 535 ] “Que é dado por vós”. [N. T.]
[ 536 ] “Que será entregue por vós”. [N. T.]
[ 537 ] De visibili monarchia ecclesiae, Louvain, 1571, VII, nn. 1323-1343, pp. 588-592.
[ 538 ] Apologia, pp. 119-121.

262
Conclusão da obra e peroração
ao rei da Inglaterra

1. Com que gravidade e moderação de palavras devem-se falar e disputar nas


controvérsias da fé, aquele Gregório[ 539 ] que por antonomásia adquiriu o nome de
Teólogo ensina-nos tanto pelo exemplo quanto pela sentença brilhante e gravíssima,
dizendo, no Sermão 32: Não ensinamos imperitamente, nem atacamos os adversários
com contumélias e afrontas, como quase todos fazem, confrontando não o discurso
mas aquele que fala, cobrindo entrementes a fraqueza das razões e dos argumentos
com maldizeres, não de outro modo (como dizem) que o das sibas, que vomitam tinta
preta ante si para escapar aos pescadores ou para se furtar ao seu olhar.
Que nós fazemos uma verdadeira guerra por Cristo, tornamo-lo claro por este
argumento: lutamos segundo Cristo, que é manso e pacato, e que portou nossas
enfermidades.
Pois tampouco buscamos a paz em detrimento da verdadeira doutrina, e nada
diminuímos do combate dos espíritos para obter a fama de complacentes e mansos,
pois não espreitamos de modo mau aquilo que é bom. Ao contrário, cultivamos a paz
pugnando legitimamente e contendo-nos dentro de nossos limites e da regra do
espírito.
E, de fato, penso assim quanto a este tema, e estatuo como lei a todos os
despenseiros das almas e árbitros da reta doutrina, que nem pela dureza exasperem
os espíritos dos homens, nem pela submissão os façam arrogantes e insolentes, mas
que se comportem prudente e sensatamente na causa da fé, e não excedam a medida
em nenhum dos dois sentidos.
2. Quis que toda esta disputa se conformasse a essa regra de escrita de tal modo que,
se fosse possível, dela não discrepasse nem mesmo no mínimo. Pois sempre estive
persuadido de que isso é devido à majestade régia e próprio de meu ofício, e muito
necessário para obter o fim por que empreendi tal labor.
De fato, não desejei vencer por causa do louvor da vitória ou para ostentar
engenho e doutrina; meus votos foram maximamente que a própria verdade vença,
que as trevas dos erros sejam afastadas, e que Cristo reine em todas as coisas.
Por esta razão, rei sereníssimo, se algo em minha resposta e disputa parecer ter
sido dito mais rispidamente do que o costumeiro, ou mais livremente do que o justo,
entende que foi dito não contra o cargo que susténs, mas contra aquela doutrina não
só nova como também ignominiosa ao vigário de Cristo; e considera com espírito
tranqüilo que é dificílimo repreender vivamente, como é justo, uma doutrina perversa
e perniciosa – que o varão católico aborrece, que o doutor rejeita, que o religioso
ouve com indignação – sem que algo pareça redundar nos seus seguidores. De fato,

263
estas duas coisas são tão conjuntas que dificilmente podem separar-se na disputa e na
admonição, como notou certa vez Crisóstomo acerca de São Paulo,[ 540 ] dizendo:
Ele queria falar preservando a gravidade e a reverência, e às vezes abalar o ouvinte
afligindo-o; mas estas duas coisas não se davam juntas, senão que uma era
impedimento para a outra. Pois se dizes algo reverentemente, não podes de modo
algum pressionar o ouvinte; se pelo contrário queres pressioná-lo veementemente, é-
te necessário assinalar o ponto com um discurso aberto e nu. Mas a prudência de
São Paulo, diz ele, preservou as duas coisas com exatidão, aumentando a repreensão
em nome da própria natureza, mas usando um véu para encobrir a vergonha da
exposição.
Certamente tive diante dos olhos esta prudência de São Paulo, e esforcei-me com
diligência por imitá-la o quanto pude, sempre tratando, até onde era possível, do
próprio assunto e não da pessoa, ou, onde a necessidade instava, dirigindo o discurso
não ao rei, mas aos protestantes, seus enganadores.
3. Resta, portanto, rei sereníssimo, como abundas em benignidade de espírito e em
grandeza de caráter, da qual sempre estive muito confiante, que não desdenhes de
receber esta nossa obra benevolamente e de folheá-la algumas vezes por puro amor da
verdade; e, ao mesmo tempo, que consideres que pertencem ao engenho do espírito e
ao máximo juízo o abandonar uma falsa opinião uma vez detectada a mentira, e o
abraçar com o espírito a verdade entendida, e professá-la em palavras, e precaver-se
dos perigos iminentes da eternidade.
De fato, não há nenhuma glória na pertinácia, mas suma prudência na docilidade
do espírito, e providência na piedosa conversão a Deus – pela qual, como é devido
pela grandeza de teu ofício, não cuidas só de ti, mas de uma pátria outrora muito
florescente, agora posta em grave crise.
Pois, se ouvires a voz do Senhor que te chama, e se decidires obedecer-lhe, aquele
que começou chamando terminará ajudando, e nada haverá que não consigas vencer e
superar, se estribado no auxílio divino. Por isso, não há por que temer a contradição
dos inimigos da verdade, cujo discurso lavra como gangrena,[ 541 ] pois Deus te
protegerá da contradição das línguas.
Muitas línguas contradizem, diz Agostinho sobre o Salmo 30,[ 542 ]diversas
heresias e diversos cismas ressoam, muitas línguas contradizem a doutrina veraz; tu,
corre ao tabernáculo de Deus, guarda a Igreja Católica, não queiras te apartar da
regra da verdade, e no tabernáculo serás protegido da contradição das línguas.
Aquele Henrique, que fora primeiro nomeado Defensor da Fé, e que antes
escrevera egregiamente contra as línguas contraditoras, depois deixou, enlouquecido,
um exemplo deplorável tanto para a Inglaterra quanto para o mundo inteiro, ao cuidar
mal de si e da pátria. Por que Jaime – embora antes enganado por sedutores, e tendo
escrito contra o tabernáculo de Deus, ou seja, contra a Igreja Católica –, entendendo
depois a verdade, não se apresentaria como propugnador acérrimo da Igreja e como
instaurador da dignidade inglesa? Pois assim merecerias com imortal louvor o ilustre
título de Defensor da Fé Católica (que exaltas com razão) não só em palavras, mas
em obra e em verdade.

264
4. Mas, se porventura, rei sereníssimo, com nossas disputas ainda não satisfizemos a
vosso desejo,[ 543 ] espírito excelso e agudo engenho, e se desejais com respeito a
certos assuntos uma resposta mais clara ou uma prova maior, ou se ocorrem a vós ou
a vossos ministros novas objeções contra a doutrina católica às quais seja necessário
responder, desejaria que fossem propostas com toda a sinceridade; e, pelo motivo
único de entender a verdade, naquilo que depender de mim, sempre me encontrareis
pronto para render a razão desta fé que está em nós, quer por escrito, quer também
oralmente, se for o caso – assim como para responder segundo minhas forças a tudo
que for proposto, confiante não em mim, mas no auxílio divino e na verdade.
Com toda a submissão de espírito, postulo diligentemente a Vossa Majestade esta
única coisa: se vos parecer necessário responder algo contra o que tratei nestas
disputas, que vos abstenhais de toda vã contenda de palavras e que se evitem as várias
digressões sobre aquilo que, às vezes, ou por acaso escapa do tema, ou é tocado de
passagem, e em nada se refere à causa da fé, e que se trate do próprio assunto apenas
por amor da verdade, e que a verdade da fé seja inquirida.
De fato, se eu obtiver isto de vós, erguido pela esperança de alguma utilidade
pública, não pouparei nenhum labor, mas de muito boa vontade o despenderei, e
esgotarei a mim mesmo por vossas almas.

[ 539 ] S. GREGÓRIO NAZIANZENO, Oratio XLII, 13 (PG 36, 472D-473B).


[ 540 ] In Epist. ad Rom. Homil. IV, 1 (PG 60, 417).
[ 541 ] II Timóteo 2:17.
[ 542 ] Enarratio in Psalmum XXX, 8, v. 21 (PL 36, 253).
[ 543 ] A mudança de tratamento, da segunda pessoa do singular para a segunda do plural, reproduz aqui o
estilo do autor. [N. T.]

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PAPA JOÃO XXII, Extravagantes XX Johannis XXII, Paris, 1513.


PAPA NICOLAU I

Ad Michaelem imperatorem, Mansi 15, 214-5.

Decreta ex Gratiano collecta (PL 119, 1183-1200).


Epistolae et decretae (PL 119, 769-1182).

PAPA S. ELEUTÉRIO,Epistola II Eleutherii Papae Rescriptum ad Lucium Britanniae Regem, Mansi 1,


698B.
PAPA S. GREGÓRIO MAGNO

Commentarii in librum I Regum (PL 79, 17-467).

270
Dialogi (PL 77, 149-431).
Epistolarum libri (PL 77, 441-1327).

Moralia (PL 75-76).


Regula Pastoralis (PL 77, 13-127).

PAPA SÍMACO, Apologetica adversus Anastasii Imperatoris libellum famosum, Mansi 8, 215.

PARIS DEL POZZO,De Syndicatu, Lyon, 1548.

PAULO DE CASTRO,In Primam Codicis partem Commentaria, Lyon, 1585.

PEDRO BERTRAND,Tractatus de origine iurisdictionum, Paris, 1520.

POLICARPO DE ESMIRNA, Epistola ad philippenses (PG 5, 1005-1023).

PRIMÁSIO DE ADRUMETO, Commentaria in Epistolas B. Pauli (PL 68, 417-793).

PRÓSPERO DA AQUITÂNIA
De Vocatione omnium gentium (PL 51, 647-733).

Epigrammata (PL 51, 147-155).

PSEUDO-AGOSTINHO,De symbolo (PL 40, 1189-1201).

PSEUDO-BONIFÁCIO II, Mansi 8, 732.

PSEUDO-JOÃO CRISÓSTOMO,Spuria (PG 56, 517-946).

PSEUDO-MARCIAL, Orthodoxographa theologiae sacrosanctae ac sincerioris fidei Doctores LXXVI,


Basiléia, 1555.

RAÚL DE SCORRAILLE, El P. Francisco Suarez de la Compañia de Jesus, 1ª ed., Barcelona, Subirana,


1917.

RESTAURO CASTALDO,Amplissimus Tractatus de Imperatore, Roma, 1540.

RUFINO DE AQUILÉIA, Historia Ecclesiastica (PL 21, 461-541).

RUPERTO DE DEUTZ, De Trinitate et operibus eius (PL 167, 199-1828).

S. AGOSTINHO

Ad Catholicos epistola contra donatistas (De unitate Ecclesiae) (PL 43, 391-445).
Ad Donatistas post collationem (PL 43, 651-689).

Confessiones (PL 32, 659-869).

Contra Cresconium grammaticum Donatistam (PL 43, 445-595).

Contra Faustum Manichaeum (PL 42, 207-519).

Contra Mendacium ad Consentium (PL 40, 517-547).


De Civitate Dei (PL 41, 13-805).

De coniugiis adulterinis (PL 40, 451-487).

De doctrina Christiana (PL 34, 16-121).

De fide et symbolo (PL 40, 181-197).

De Natura Boni contra Manichaeos (PL 42, 551-577).

271
De Sermone Domini in Monte (PL 34, 1229-1308).
Enarrationes in Psalmos (PL 36-37).

Epistolarum Classis II (PL 33, 121-471).


Expositio quarumdam propositionum ex Epistola ad Romanos (PL 35, 2063-2087).

In Ioannis evangelium tractatus (PL 35, 1379-1977).

Quaestionum Evangeliorum (PL 35, 1321-1365).

Quaestiones in Heptateuchum (PL 34, 547-825).

Quaestiones Veteris et Novi Testamenti (PL 35, 2213-2417).

Retractationes (PL 32, 583-659).

Sermones de Scripturis (PL 38, 23-993).

Sermones de tempore (PL 38, 993-1248).


S. AMBRÓSIO

Comment. in Epistolas B. Pauli (PL 17, 45-509).

De Fide (PL 16, 523-703).

De Virginibus ad Marcellinam (PL 16, 239-305).

Enarrationes in XII psalmos Davidicos (PL 14, 921-1180).

Epistolae in duas classes distributae (PL 16, 875-1269).

Expositio Evangeli secundum Lucam (PL 15, 1527-1851).

Operum Ambrosii Mediolanensis Episcopi, Colônia, 1616.

S. ANSELMO,Proslogion (PL 158, 223-242).

S. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA,Historia Arianorum (PG 25, 693-797).

S. BERNARDO DE CLARAVAL, De Consideratione ad Eugenium Tertium (PL 182, 727-809).

S. CIPRIANO DE CARTAGO
De idolorum vanitate (PL 4, 563-582).

Epistola XII S. Cypriani ad Cornelium Papam (PL 3, 795-838).

Liber de lapsis (PL 4, 463-494).

S. CIRILO DE ALEXANDRIA

De recta fide, ad Theodosium (PG 76, 1134-1335).


Epistolae (PG 77, 9-393).

In Ioannis evangelium (PG 73-74).

S. CIRILO DE JERUSALÉM,Catechesis XVII De Spiritu Sancto II (PG 33, 331-1059).

S. EDUARDO O CONFESSOR, Leges Edwardi Confessoris, MS Additional 24066, Londres, 1190.

S. EPIFÂNIO DE SALAMINA, Adversus Haereses (PG 41, 173-1199).


S. GREGÓRIO NAZIANZENO,Orationes (PG 35).

272
S. HILÁRIO DE POITIERS
Commentarius in Matthaeum (PL 9, 917-1078).

Tractatus super psalmos (PL 9, 231-890).


S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epístola Interpolatae, Ad Smyrnaeos (PG 5, 729-873).

S. IRINEU DE LYON,Contra Haereses (PG 7, 433-1225).

S. ISIDORO DE SEVILHA, Sententiarum (PL 83, 537-738).

S. JERÔNIMO

Adversus Iovinianum (PL 26, 211-337).

Comment. in epist. ad Titum (PL 26, 555-599).

Comment. in Evangelium Matthaei (PL 26, 15-219).

Comment. in Ieremiam (PL 24, 705-935).


Dialogus contra Luciferianos (PL 23, 155-183).

Epistolae (PL 22, 285-1182).

S. JOÃO CRISÓSTOMO

De Fato et Providentia (PG 50, 749-770).

De sacerdotio (PG 48, 623-693).

Expositio in Psalmos (PG 55, 35-527).

Homilia In Ioannem (PG 59, 23-485).

InEpist. I ad Corhomil. (PG 61, 9-381).

In Epist. II ad Cor. Homil. (PG 61, 381-611).

InEpist. ad Rom.homil (PG 60, 583-681).

In Epist. I ad Timoth. (PG 62, 501-599).

In Illud Vidi Dominum Homil. (PG 56, 97-142).


In Matthaeum Homil. (PG 57-58).

S. JOÃO DAMASCENO, De Imaginibus Oratio (PG 94, 1227-1421).

S. LEÃO MAGNO, Sermones et Epistolae (PL 54).

S. OPTATO DE MILEVI, De schismate Donatistarum (PL 11, 883-1103).

S. ROBERTO BELARMINO
Apologia Robertii S. R .E. Cardinalis Bellarmini pro responsione sua ad librum Iacobi Magnae Britanniae
Regis cuius titulus est Triplici nodo triplex cuneus; in qua Apologia reffelitur Prefatio monitoria Regis
eiusdem, Roma, 1609.

De Summo Pontifice, Ingolstadt, 1599.

Opera Omnia, Paris, A. L. Vivès, 1870-1874.

Recognitio librorum omnium, Recognitio Libri Tertii (de laicis), Ingolstadt, 1608.

Tractatus de Potestate Summi Pontificis in rebus temporalibus adversus Barclaium, Roma, 1610.

273
S. TEÓFILO DE ANTIOQUIA,Ad Autolycum (PG 6, 1023-1168).
S. TOMÁS DE AQUINO

Commentum in Lib. II Sententiarum


Contra Gentiles

De Caelo et Mundo

De Regimine Principum

In epistolas ad Corinthios

Summa Theologica

Super I Epistolam ad Corinthios

SILVESTRO MAZZOLINI, Summae Sylvestrinae Quae Summa Summarum Merito Muncupatur Pars IIa,
Veneza, 1587.
SOZOMENO, Historia Ecclesiastica (PG 67, 843-1630).

TEODORETO DE CIRRO

Commentarius in omnes sancti Pauli Epistolas (PG 82, 31-879).

Ecclesiasticae Historiae (PG 82, 879-1279).

TEOFILACTO DE ÁCRIDA

Ennarratio in. Evang. Luc. (PG 123, 683-1127).

Ennarratio in. Evang. Matt. (PG 123, 143-487).

Expositio in Epist. ad Roman. (PG 124, 335-563).

TERTULIANO

Ad Scapulam (PL 1, 697-706).

De Idololatria (PL 1, 661-696).

De praescriptionibus adversus haereticos (PL 2, 9-74).

LiberDe Spectaculis (PL 1, 627-662).


THOMAS HOBBES, Leviatã: ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, 3ª ed., São
Paulo, Ícone, 2008.

TOMÁS ACTIO,De ludo scacchorum in legali methodo tractatus, H. Concordiam, 1583.

TOMÁS BOZIO EUGUBINO,De Signis Ecclesiae, Roma, 1591.

TOMÁS CAETANO

De comparatione autoritatis Papae et Concilii, in Opuscula omnia, Lyon, 1562.


Secunda Secundae Sancti Thomae, cum commentariis Cardinalis Caietani, Lyon, 1554.

VÁRIOS AUTORES

Decretales Gregorii IX, Paris, 1511.

Extravagantes Communes, Paris, 1511.

Sextus liber Decretalium, Paris, 1513.

274
Suidae Historica, Basiléia, 1564.
VÍTOR DE VITE,Historia persecutionis africanae provinciae temporibus Geiserici et Hunirici regum
wandalorum, Bibliotheca veterum Patrum, Paris, 1589.

275
FRANCISCI SUAREZ OPERA OMNIA

A lista das obras a seguir corresponde à relação dos volumes das Opera omnia, Paris,
Vivès, 1856-1877 (as quais, embora não incluam estritamente todas as obras de
Suárez, é o que de mais completo temos até então):

VOL. I (1856)
De Deo Uno et Trino (De divina substantia ejusque attributis, De divina praedestinatione et reprobatione, De
Trinitas mysterio)

VOL. II (1856)
De angelis

VOL. III (1856)


De opera sex dierum
De anima

VOL. IV (1856)
De ultimo fine hominis
De voluntario et involuntario
De bonitate et malitia humanorum actuum
De passionibus

VOL. V (1856)
De legibus ac Deo legislatore (livros I-V)

VOL. VI (1856)
De legibus ac Deo legislatore (livros VI-X)

VOL. VII (1857)


De Gratia Dei

VOL. VIII (1857-8)


De auxiliis gratiae in generali

VOL. IX (1858)
De essentia gratiae

VOL. X (1858)
De merito

VOL. XI (1858)

276
De concursu et efficaci auxilio Dei
De scientiae Dei futurum contingentium
De auxilio efficaci
De libertate divinae voluntatis
De meritis mortificatis, et per
poenitentiam reparatis
De justitia qua Deus reddit praemia meritis, et poenas pro peccatis

VOL. XII (1858)


De fide
De spe
De caritate

VOL. XIII (1859)


De virtute et statu religionis (trat. I-III)

VOL. XIV (1859)


De virtute et statu religionis (trat. IV-VI)

VOL. XV (1859)
De virtute et statu religionis (trat. VII)

VOL. XVI & XVIbis (1866)


De virtute et statu religionis (trat. VIII-X)
De obligationibus religiosorum
De varietate religionum
De religione Societatis Jesu in particularis...

VOL. XVII (1866)


De Incarnatione, III, a, qq. 1-9

VOL. XVIII (1866)


De Incarnatione, III, a, qq. 10-26

VOL. XIX (1866)


De Incarnatione, III, a, qq. 27-59

VOL. XX (1866)
De sacramentis
De baptismo
De confirmatione
De eucharistia, III, a, qq. 60-74

VOL. XXI (1866)


De eucharistia, III, a, qq. 75-83

VOL. XXII (1866)


De poenitentia, III, a, qq. 84-90

VOL. XXIII (1866)


De censuris
De excommunicatione

277
VOL. XXIIIbis (1866)
De suspensione
De interdicto
De irregularitate

VOL. XXIV (1859)


Defensio fidei
De anglicana secta

VOL. XXV (1866)


In Metaphysicam Aristotelis
Disputationes Metaphysicae (disp. 1-27)

VOL. XXVI (1866)


Disputationes Metaphysicae (disp. 27-54)

VOL. XXVII (1878)


Index I

VOL. XXVIII (1878)


Index II

VOL. XXIX (1859)


Opuscula sex inedita
(ed. Joannes Baptista Malou)

278
Índice
Capa 2
Folha de Rosto 4
Créditos 5
Coleção Salamanca 6
Agradecimento aos colaboradores 8
Sumário 14
Apresentação 16
I. A posição de Francisco Suárez ante a modernidade e o contexto histórico
17
da Defensio Fidei
II. A controvérsia sobre o juramento de fidelidade e a Defensio Fidei 20
III. O problema da origem e da natureza do poder: excursus sobre o
26
Principatus Politicus (Livro III da Defensio Fidei)
IV. Apontamentos sobre a presente edição 34
Nota do coordenador editorial 40
Defesa da Fé Católica 41
Abertura 42
Proêmio 44
Parte I - A soberania civil (Livro III - caps. I-IX) 48
Da excelência e poder do Sumo Pontífice sobre os reis temporais 49
Capítulo I — Se o principado político é legítimo, e se procede de Deus 51
Capítulo II — Se o principado político provém imediatamente de Deus, isto
57
é, se procede por instituição divina
Capítulo III — Resposta aos fundamentos e objeções do rei da Inglaterra
69
contra a doutrina do capítulo anterior
Capítulo IV — Se entre os cristãos há um legítimo poder civil ao qual
76
estejam obrigados a obedecer
Capítulo V — Se os reis cristãos têm soberania nas coisas civis e temporais,
89
e por que direito
Capítulo VI — Se há na Igreja de Cristo um poder espiritual de jurisdição
101
externa, como que político, distinto do temporal
Capítulo VII — Prova-se por autoridade que não há nos reis ou príncipes o
113
poder de reger a Igreja em assuntos espirituais ou eclesiásticos
Capítulo VIII — Confirma-se a mesma verdade por argumentos de razão 123
Capítulo IX — Refutam-se algumas objeções contra a verdade provada nos
131
capítulos anteriores

279
Parte II - O juramento de fidelidade (Livro VI - caps. I-X e XII) 141
Do juramento de fidelidade do rei da Inglaterra 142
Capítulo I — O escopo da presente controvérsia, o estado desta causa e o
150
método de disputa que nela se deve observar
Capítulo II — Se na primeira parte da fórmula do juramento se propõe algo
155
para além da obediência civil e contrário à obediência eclesiástica
Capítulo III — Na segunda parte do juramento se apresenta também algo
161
para além da obediência civil e contrário à eclesiástica
Capítulo IV — Se a terceira parte do juramento contém algo para além da
169
obediência civil e contra a doutrina católica
Capítulo V — Da última parte do juramento e dos erros nela contidos 184
Capítulo VI — Consideram-se as razões por que o juramento é defendido 189
Capítulo VII — O Sumo Pontífice não só podia, mas também devia afastar
205
com seu aviso os católicos ingleses da profissão do referido juramento
Capítulo VIII — Podem os ingleses que admitem o juramento escusar-se de
212
culpa por alguma razão ou de algum modo?
Capítulo IX — Se é lícito aos católicos ingleses ir aos templos dos hereges e
comungar com eles nos ritos, sem intenção de culto ou de cooperação com 221
eles, apenas para evitar as penas temporais
Capítulo X — Se o acossamento que os católicos padecem na Inglaterra é
242
uma verdadeira perseguição da religião cristã
Capítulo XII – Resposta ao que o rei objeta contra o segundo breve pontifício
256
e contra a epístola do cardeal Belarmino
Conclusão da obra 263
Bibliografia citada 266
Francisci Suarez Opera Omnia 276

280

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