Paola Efelli Rocha de Sousa Lima - Dissertação
Paola Efelli Rocha de Sousa Lima - Dissertação
Paola Efelli Rocha de Sousa Lima - Dissertação
ARAGUAÍNA – TOCANTINS
2019
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ARAGUAÍNA – TOCANTINS
2019
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AGRADECIMENTO
Sou grata ao meu professor orientador Walace Rodrigues, pelo respeito a minha
escrita durante suas intervenções, pelo incentivo e por ser uma mão experiente nessa pesquisa.
Sou grata por todo o aprendizado, sobretudo o da humildade, enquanto condição de que
somos todos aprendizes.
(Graça Graúna)
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RESUMO
A presente pesquisa sustentou-se, principalmente, com o objetivo de compreender a poesia
indígena de Márcia Kambeba pela via dos Estudos Culturais, buscando a valorização do
ensino da literatura indígena brasileira no ambiente escolar. A metodologia utilizada para a
realização do trabalho pautou-se em um estudo teórico e tomou como instrumento uma
revisão bibliográfica, acrescida da análise de alguns poemas da autora indígena amazonense
Márcia Wayna Kambeba, extraídos de seu livro intitulado “Ay kakyri tama (Eu moro na
cidade)”, publicado em 2013. Escolhemos falar primeiro sobre os Estudos Culturais, base
fundamental para essa pesquisa, e sobre as questões de identidade; posteriormente, abordamos
a temática da literatura indígena e o seu ensino nas escolas, tratando um pouco da poesia e
valorização dos povos indígenas; e, em um terceiro momento, fizemos a análise de alguns
poemas do livro. Os objetivos específicos da pesquisa foram: colaborar para dar visibilidade
às culturas indígenas no ambiente escolar; valorizar o ensino da literatura indígena nas
instituições escolares; interpretar alguns poemas da poeta indígena Márcia Kambeba através
de conceitos de identidade; e registrar as lutas das comunidades indígenas brasileiras e suas
demandas atuais. Tais abordagens contemplam o campo dos Estudos Culturais, enfatizando a
cultura e a identidade indígenas presentes nos textos analisados. Vale salientar que o povo
indígena passou por um longo período histórico de subjugamento e inferiorização, desde o
período colonial. Durante muitos anos os índios foram massacrados por guerras e epidemias,
escravizados e silenciados. Assim, conforme o resultado desse trabalho, entendemos que os
povos indígenas sempre batalharam por sua vida, seus costumes e seu território, desde o
tempo colonial. Esses povos são guerreiros e isso pode ser observados nos poemas, que
traduzem uma busca pela reafirmação e o reconhecimento da sua cultura e identidade
indígenas, mostrando a luta dos ancestrais e das novas gerações para ter os seus costumes
respeitados e reconhecidos. Abordar a literatura indígena no ambiente escolar sob a
perspectiva dos Estudos Culturais significa apresentar todo esse contexto étnico-racial na voz
do povo colonizado, e isso pode contribuir significativamente na formação de jovens e
crianças mais conscientes do seu papel social, humanizados e preparados para o exercício da
cidadania, buscando formar jovens e crianças fora das visões dos colonizadores e dos
(pré)conceitos entranhados na história do país até os dias atuais.
Palavras-chave: Estudos Culturais. Literatura indígena. Identidade. Cultura.
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ABSTRACT
This research was sustained, mainly, with the objective of understanding Márcia Kambeba's
indigenous poetry through Cultural Studies, seeking to value the teaching of Brazilian
indigenous literature in the school environment. The methodology used to carry out the work
was based on a theoretical study and used as a tool a bibliographic review, plus the analysis of
some poems by the Amazonian indigenous author Márcia Wayna Kambeba, extracted from
her book entitled “Ay kakyri tama (I live in city) ”, published in 2013. We chose to speak first
about Cultural Studies, a fundamental basis for this research, and about issues of identity;
later, we approached the theme of indigenous literature and its teaching in schools, dealing a
little with poetry and appreciation of indigenous peoples; and, in a third moment, we analyzed
some poems from the book. The specific objectives of the research were: to collaborate to
give visibility to indigenous cultures in the school environment; valuing the teaching of
indigenous literature in school institutions; interpret some poems by the indigenous poet
Márcia Kambeba through concepts of identity; and record the struggles of Brazilian
indigenous communities and their current demands. Such approaches contemplate the field of
Cultural Studies, emphasizing the indigenous culture and identity present in the analyzed
texts. It is worth noting that the indigenous people have gone through a long historical period
of subjugation and inferiority, since the colonial period. For many years the Indians were
slaughtered by wars and epidemics, enslaved and silenced. Thus, according to the result of
this work, we understand that indigenous peoples have always fought for their life, their
customs and their territory, since colonial times. These peoples are warriors and this can be
seen in the poems, which reflect a search for the reaffirmation and recognition of their
indigenous culture and identity, showing the struggle of ancestors and new generations to
have their customs respected and recognized. Approaching indigenous literature in the school
environment from the perspective of Cultural Studies means presenting this whole ethnic-
racial context in the voice of the colonized people, and this can significantly contribute to the
formation of young people and children more aware of their social role, humanized and
prepared for the exercise of citizenship, seeking to train young people and children outside the
colonists' visions and (pre) concepts embedded in the country's history to the present day.
Keywords: Cultural studies. Indigenous literature. Identity. Culture.
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LISTA DE SIGLAS
LI – Literatura indígena
LISTA DE FIGURAS
Figura 2 - “Primeira Missa no Brasil” (1861), pintado por Victor Meirelles. (Fonte:
www.google.com.br)
Figura 3 - Capa do livro “Ay Kakyri Tama (Eu Moro na Cidade) (KAMBEBA, 2013)
Figura 4 - Márcia Kambeba, com a apresentadora Fátima Bernardes, divulgando o seu livro
(Fonte: facebook.com.br)
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. ESTUDOS CULTURAIS
3.1 Metodologia
3.3 Análise do livro “Ay kakyri tama (Eu moro na cidade)” pela via dos Estudos Culturais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
1 ESTUDOS CULTURAIS
Segundo o autor supracitado, Stuart Hall, que deu o nome de Estudos Culturais a uma
nova forma de pensar sobre a cultura, também dirigiu o CCCS nos primeiros quatro anos, e
foi durante esse período em que o centro estava sob sua direção, de 1968 a 1979, que os
Estudos Culturais se consolidaram, com base em uma política que tinha como principal
preocupação colocar em discussão teorias e conteúdo mais sólidos sobre cultura.
E foi nos anos 80 e 90 que os Estudos Culturais conseguiram a sua aceitação no meio
acadêmico britânico e também a sua produção no meio editorial como um assunto de interesse
acadêmico geral, tendo como resultado boas vendas. Desse modo, Stuart Hall pôde observar a
ascensão dos Estudos Culturais de fato, pelos mais diversos estudiosos, inclusive pelo maior e
mais rico meio universitário dos Estados Unidos (SOVIK, 2013).
Foi assim que se deu o surgimento dos Estudos Culturais, que é um campo que abarca
múltiplos discursos, com histórias diferentes, períodos diferentes e com significados e
resultados diferentes. Segundo Hall (2013, p. 16) “os estudos culturais se fazem na própria
tensão entre a discursividade e outras questões que importam, que ‘nunca poderão ser
inteiramente abarcadas pela textualidade crítica’. Um tema que capta essa tensão claramente é
o da mistura cultural, mestiçagem, hibridismo.”
Entretanto, esta multiplicidade dos Estudos culturais pode acarretar em uma
desorganização nesses estudos, levantando contradições e desentendimentos entre os próprios
teóricos da área, em um diálogo conflitante. Os Estudos Culturais atuam em um campo de
pesquisa vasto e com muitos objetos, em diversos contextos, mas cabe a cada pesquisador
investigar e levantar as teses que necessita para serem aplicadas nas diferentes áreas de
pesquisa, observando essa divergência e multiplicidade de perspectivas para que a pesquisa
apresentada não seja conflitante em si mesma.
Sendo assim, podemos dizer que esse campo de abordagem é constituído por multi-
perspectivas, se baseiam em conceitos que nem sempre são transversais a todas as disciplinas
que estão em sua base teórica, e isso fomenta discussões entre os próprios pesquisadores da
área. Nos últimos anos surgiram novas escolas de estudos culturais em outros países, tais
como: Estados Unidos, Austrália, Canadá entre outros, os quais apresentaram novos métodos,
abordagens e estratégias de estudo (KELLNER, 2001).
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Desse modo, não se deve tomar como base a extrapolação de teorias e questões
individuais sem um engajamento em algum contexto sólido de investigação relacionado aos
Estudos Culturais, também não se deve colocar a subjetividade como fundamentação de
estudos em áreas que não estão relacionadas ao assunto, tomando como base assuntos
isolados de uma posição específica, é o que nos explica Hall (1996, p. 401):
Para este trabalho focaremos num dos tópicos mais relevantes para os Estudos
Culturais: a questão da identidade. Tal conceito tem vários entendimentos a partir dessa área
de estudos. Aqui, evidenciaremos as percepções do que é identidade e como ela se relaciona
com a cultura, a formação cultural de cada indivíduo, a partir dos Estudos Culturais. Sobre
esse assunto, entendemos, segundo Hall (2013, p. 49), que:
A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é
uma “arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus
recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição
enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o
que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a
nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é
uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que fazemos das nossas
tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada,
estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura
não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.
ressignificação do que se é para o que se pretende ser, em uma relação com antigas e novas
teorias e experiências, isso transforma as condições da existência humana, rompendo com
padrões e conceitos que considerávamos como “corretos” de acordo com o grupo social em
que participamos, pois nesse processo, conforme Hall (2013, p. 143):
Tais “rupturas” são dignas de registro pois representam a dialética existente entre
poder e conhecimento. Cabe dizer que no trabalho intelectual crítico não existem começos
absolutos e nem unidades que não admitem modificações, não é necessário seguir somente as
tradições e acompanhar teorias massificadas, pontuando o que é certo ou errado, o que
importa é ressignificar o conhecimento com base nas informações que temos e nas que vamos
adquirindo no decorrer dos estudos e da vida em sociedade.
Em uma primeira impressão parece fácil definir identidade. A identidade é aquilo que
se é, como por exemplo, sou brasileiro, sou negro, sou indígena, sou mulher, sou homem.
Entretanto, tratar de identidade não é uma tarefa simples, apesar de ser um assunto muito
discutido nas últimas décadas. Falar de identidade coloca em questionamento os sujeitos
analisados e suas percepções sobre si e suas situações de inscrição no mundo.
Para aprofundarmo-nos na questão de identidade, é necessário levantar alguns
conceitos básicos e centrais envolvidos nessas discussões a respeito do tema. Isso, para
compreendermos como a identidade funciona e como ela deve ser estudada. Mas, podemos
adiantar que “está-se efetuando uma completa desconstrução das perspectivas identitárias em
uma variedade de áreas disciplinares, todas as quais, de uma forma ou outra, criticam a ideia
de uma identidade integral, originária e unificada” (HALL, 2014).
A identidade é marcada por abordagens essencialistas, no intuito de definir quem
pertence ou não pertence a um determinado grupo identitário, colocando-a como algo fixo e
imutável. Em outros momentos a identidade é percebida como algo inerente à natureza, como,
por exemplo, as relações de raça e hereditariedade. Entretanto, as abordagens que aparecem
com maior frequência nas pesquisas relacionadas aos Estudos Culturais estão relacionadas a
uma versão essencialista, arraigadas a algum período histórico no passado que não pode ser
mudado e está intimamente associado ao sujeito (WOODWARD, 2014).
Nesse caso, a identidade está relacionada também à convivência, definida por uma
marcação simbólica, como uma bandeira nacional. Ela também está vinculada a condições
sociais e materiais. A identidade é construída, também, com base no simbólico e no social.
Sendo que a marcação simbólica define quem será incluído ou excluído com base nas práticas
e relações sociais. E a vivência dessa segregação é a diferenciação social. Dessa forma,
analisar os mecanismos sociais que constroem as identidades significa levantar
questionamentos sobre as políticas que excluem e oprimem uma parcela significativa de
sujeitos que são mantidos da esfera de subjugamento social.
O conceito de identidade possui duas vertentes principais de percepção: perspectivas
essencialistas e perspectivas não essencialistas (WOODWARD, 2014). Trazendo essas
perspectivas para o nosso campo de estudo, a literatura indígena, podemos entender que de
um lado existem os teóricos essencialistas que defendem que há um conjunto de
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características autênticas e límpidas comuns a todos os indígenas, e que elas não mudam com
o passar do tempo, essas características são inerentes aos sujeitos, independente do lugar ou
época em que estejam situados. Por outro lado, existem as concepções não essencialista, com
a perspectiva de observar as diferenças e não as similaridades dos sujeitos.
Por outro lado, existe a concepção de que a noção de sujeito sociológico está definida
pela complexidade do mundo moderno, tomando como base o conceito de que esse núcleo do
sujeito não é autossuficiente, pois é formado por outras pessoas, as quais esse sujeito
considera importante, por meio dessa interação são difundidos os valores, os sentidos, os
símbolos, ou seja, a cultura dos mundos que o sujeito está inserido. De acordo com esse
pensamento é que temos o conceito sociológico clássico de que “a identidade é formada na
‘interação’ entre o “eu” e a sociedade” (HALL, 2015, p. 11).
Também, de acordo com essa concepção, o sujeito ainda possui uma essência interior
que é o “eu real”, mas esse eu pode ser modificado de acordo com as interações contínuas
com outras identidades que existem no mundo que esse sujeito habita.
Com base nisso, entender as relações que existem entre os próprios indígenas ou entre
os indígenas e os ocidentais, representa o ponto de partida para compreender o que significa
ser um indígena na atualidade, por isso essa concepção tem mudado ao longo dos séculos
desde o período colonial. Desse modo, para afirmar uma identidade, como, por exemplo, a
indígena, é necessário não apenas colocá-la em oposição a outra identidade, mas também
reivindicar essa identidade autêntica e verdadeira que não se modificou, mesmo com o passar
dos anos. Encontrando, assim, uma “verdadeira” identidade indígena, com base nas diferenças
que formam cada sujeito.
Mas encontrar essa identidade “verdadeira” é uma busca eterna e infindável, pois para
Hall (2015, p. 11) “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e
estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. Desse modo, vislumbrar uma identidade
completa e finalizada é uma utopia. Segundo o autor, o sujeito possui identidades diferentes
de acordo como a situação em que está vivendo, dentro de cada sujeito há identidades que são
contraditórias, cada uma querendo seguir por uma direção diferente, desse modo, as
identificações são deslocadas a todo momento. Assim, a identidade também está associada a
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Por se tratar de um circuito, ele pode começar em qualquer um dos pontos, não existe
uma sequência fixa a ser seguida. Entretanto, cada um dos pontos está intimamente associado
aos outros. De maneira que não podem ser estudados separadamente. Por meio desse circuito
foi exemplificada a representação de como se constrói a identidade em um artefato que pode
ser associado aos sujeitos, e faz, por exemplo, com que pessoas sejam induzidas a adquirir
determinado bem, já que estão incluídas em determinados grupos sociais. O circuito se refere
a sistemas simbólicos, tais como os que são utilizados em propagandas de publicidade. Esses
sistemas produzem significados, que, por sua vez, produzem identidade.
Nesse sentido, Hall (2013) nos explica que identidade e diferença se relacionam com
a questão da discussão sobre representação. Essa representação, discutida por Hall, é marcada
por todas essas características presentes no círculo (figura 1), colocando a identidade como
um conceito central a todas elas.
É por meio desses significados produzidos e pelas representações que assumimos que
damos sentido as nossas experiências em sociedade e aquilo que somos, aquilo que queremos
ser ou quem podemos nos tornar.
Ainda, para entender o processo cultural de identidade é preciso ter a consciência de
que as identidades são compostas de muitos povos, foram formadas pelos mais diversos tipos
de movimento e deslocamentos sociais. Nesse sentido, podemos entender identidade como
sendo um desses “conceitos que operam ‘sob rasura’, no intervalo entre a inversão e a
emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas
questões-chave não podem ser sequer pensadas”. (HALL, 2014)
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Trazendo essa análise para o contexto da sociedade brasileira, entendemos que ela é
composta por diversos povos, conforme o processo histórico pelo qual o país passou. As
origens do povo brasileiro não são únicas, mas muitas. Na antiguidade, as terras do país eram
povoadas por diferentes povos indígenas. Vários desses povos foram dizimados pelo processo
de colonização, por meio de assassinatos, doenças, trabalho pesado, guerras e escravidão.
Muitos povos foram deslocados de sua realidade materna, do seu pertencimento nato. Tanto
os que aqui chegaram, como os que já estavam no país mesmo antes do descobrimento.
Esse contexto histórico nos coloca numa eterna busca pelo nosso local de
pertencimento, pois não pertencemos mais ao local de origem, mas também não nos sentimos
parte do local em que estamos hoje. É necessário estabelecer esses encontros das diferentes
culturas que formam um sujeito, para compreender a qual cultura ele pertence no momento
atual, ainda que esse pertencimento não seja estanque ou finalizado. Sobre isso, Fanon (1997,
p. 175) nos explica que “a reivindicação de uma cultura nacional passada não reabilita apenas;
em verdade justifica uma cultura nacional futura”. Desse modo, entender de onde viemos e
para onde vamos é ponto crucial para entender essas questões sobre identidade.
Um reflexo sobre essa busca pelo lugar de pertencimento é o fato de que estamos
discutindo muito sobre identidade nas últimas décadas. Segundo Kobena Mercer (1990) quase
todas as pessoas estão falando agora sobre identidade. A autora explica que a identidade só se
torna um problema quando está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é
deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza, quando são colocados em dúvida
conceitos que considerávamos como coerentes e “corretos” por toda a vida, discutir esses
assuntos nos leva a crer que realmente a identidade está em crise, mas porque antes não
tínhamos o conhecimento que temos hoje sobre cultura e identidade, e como essas questões
interferem no nosso modo de agir, pensar e estar no mundo.
Os termos “identidade” e “crise de identidade” são muito utilizados atualmente,
segundo Hall (2014) estamos vivenciando uma verdadeira “explosão discursiva” em torno do
significado de identidade. A partir do momento em que se levantam questões de
ressurgimento de identidades étnicas nacionais que sucumbiram no tempo, acontecem os
conflitos com as identidades atuais que se formaram da união de todas as identidades
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existentes durante o processo social. Nesse sentido, as crises de identidade estão associadas à
modernidade tardia, que por sua vez está associada ao caráter de vida contemporâneo.
Desse modo, a globalização tem uma parcela significativa nesse processo de confusão
identitário que envolve todo o globo terrestre, uma vez que essa questão engloba uma
interação entre fatores históricos e culturais, essa interação causa mudança nos padrões de
produção e consumo, desencadeando novas identidades globalizadas, movimentadas e
desenvolvidas em uma relação de consumo provocada pelo capitalismo presente na
globalização. Como exemplo disso, podemos citar os jovens que usam IPhone e comem
hambúrgueres no McDonald’s, eles formam um grupo de “consumidores globalizados”.
Entretanto, a globalização provoca diferentes resultados nas identidades. A
homogeneidade cultural que esse mercado consumista provoca nos indivíduos pode
desenvolver um distanciamento da realidade de seu grupo social, podendo levar a uma
resistência que pode reafirmar e fortalecer determinadas identidades que não se encaixam
nesse padrão de consumo e consequentemente não se sentem parte do grupo.
Esse paradoxo também pode levar ao surgimento de novas posições de identidade,
pois aquele que não se identifica com os padrões estabelecidos pelo grupo, procuram outras
formas de identificação, nesse caso “o que, então, está tão poderosamente deslocando as
identidades culturais nacionais, agora, no fim do século XX? A resposta é: um complexo de
processos e forças de mudança, que, por conveniência, pode ser sintetizado sob o termo
‘globalização.’” (HALL, 2015, p. 37)
Nessa esteira, o processo de globalização provoca a migração de trabalhadores para
diferentes áreas do globo terrestre, para fugir do desemprego, da fome, da miséria, dentre
outas situações que causam a falta de dignidade humana. Essa realidade provoca impactos,
tanto para os países de origem do sujeito diaspórico quanto para os países de destino.
Esse movimento migratório em todo o globo reflete-se nas identidades que são
moldadas em diferentes lugares e com a junção de diferentes culturas e sujeitos. O conceito de
diáspora, abordado por Hall (2013, p. 47), é o que nos permite compreender como isso
acontece, como o jogo das semelhanças e diferenças constituem os sujeitos, esse processo está
transformando o mundo inteiro, segundo o autor, “esse é o caminho da ‘diáspora’, que é a
trajetória de um povo moderno e de uma cultura moderna”.
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Nesse sentido, a identidade deve ser vista não como única e imutável, pois não temos
como negar as miscigenações que ocorreram, ocorrem e que ainda ocorrerão no decorrer da
história por todo o globo. Hall (2013, p. 33) esclarece que as sociedades são compostas por
vários povos, as origens são muitas, segundo ele “a identidade é irrevogavelmente uma
questão histórica [...] a terra não pode ser ‘sagrada’, pois foi ‘violada’ – não vazia, mas
esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar”.
Não se pode voltar no tempo para modificar os acontecimentos, nesse caso, é preciso
reescrever uma nova identidade com base na formação de um novo sujeito, com base nesse
movimento de deslocamento social. A condição pós-moderna nos impõe a perceber a
realidade de que os sujeitos são formados por muitas identidades, e cada uma delas quer
seguir um caminho diferente. Isso faz com a que identidade esteja em eterno movimento.
Sobre esse assunto Bhabha (1998, p. 20) nos explica que:
cabeças, mesmo após a montagem final de todas as peças, as rupturas continuam lá, elas não
desaparecem, mas apenas ficam menos aparentes, como as linhas entre as peças do jogo.
Essas rupturas que marcam de forma violenta a história dos sujeito não podem ser
apagadas. Segundo Hall (2013, p. 36): “o conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma
concepção binária de diferença. Está tudo fundado sobre a construção de uma fronteira de
exclusão e depende da construção de um 'Outro' e de uma oposição rígida entre o dentro e o
fora”. Ou seja, o que pertence ou não a determinada identidade não pode ser fixado
definitivamente, a identidade não pode ser pensada como sendo pura e cristalina.
Pensar a identidade como sendo límpida e pura foi o que provocou o genocídio
liderado pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial, que exterminou mais de seis
milhões de pessoas consideradas “impuras” para evitar a “mistura” das “raças”, dentre elas
judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e pessoas com alguma deficiência física
ou mental. Os nazistas partiram do pressuposto de que a raça alemã era superior às demais,
que os “outros” (não-alemães) eram indignos de viver no país, e por isso deveriam ser
exterminados. Segundo Bauman (1998, p. 40): “a civilização moderna não foi a condição
suficiente do holocausto, mas ela foi sua condição necessária. Sem ela o holocausto seria
inimaginável”. Dessa forma, a modernidade e a noção errada de identidade contribuíram para
o acontecimento do holocausto, podemos citar esse acontecimento também como o resultado
da crise de identidade, e concepções errôneas do sujeito sobre seu “verdadeiro eu”.
Essa crise de identidade também serve como análise para a desestabilização que
aconteceu na ex-União Soviética e no bloco comunista do leste Europeu, causando a
afirmação de novas e renovadas identidades em busca de supostas identidades que foram
perdidas. Para preencher esse vazio, pela busca de uma identidade perdida, têm ressurgido na
Europa Oriental e na ex-União Soviética, as formas antigas de identidade nacional, buscadas
através da religião e da nacionalidade (WOODWARD, 2014).
As transformações que aconteceram nas estruturas políticas, econômicas e sociais de
todo o mundo contemporâneo colocam em evidência as lutas pelas afirmações das identidades
nacionais, ainda que o passado restaurado seja apenas uma suposição do que era a cultura
primária. Essas batalhas produzem a certeza de que houve a mudança, ainda que seja uma
busca eterna pelo pertencimento cultural (WOODWARD, 2014).
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Sabemos que não desejamos mais ficar no lugar em que estávamos, vivendo a cultura
de outrem, mas é preciso compreender para onde vamos. Isso é vier na sociedade pós-
colonial, a eterna busca pelo seu lugar de pertencimento, o que reforça a existência de uma
crise de identidade, pois o sujeito sabe que não pertence a um determinado local e/ou cultura
definidos, entretanto, não se identifica mais com o seu lugar de origem, pois as “histórias”
foram misturadas, confundidas, com a contribuição da globalização e da diáspora. Nesse
mesmo sentido, Hall (2013, p. 45) nos explica que:
Desse modo, a percepção das diferentes identidades que compõe todos os sujeitos do
globo terrestre está cada dia mais evidente, essas mudanças na compreensão sobre a
identidade estão trazendo reflexos significativos para todas as civilizações existentes no
planeta, inclusive para as nações mais antigas consideradas tradicionais e “completas” em
suas identidades.
Um dos caminhos para a descoberta dessa nova identidade é reafirmar as diferenças e
as pluralidades, como vista na passagem anterior, e não as singularidades que existem entre os
sujeitos, pois a identidade se forma por meio das diferenças, no respeito e na valorização de
cada cultura. Também é deixar de examinar os motivos que fizeram com que determinadas
histórias se cruzassem, pois não é possível separar os sujeitos depois que a vida se passou, não
existe a possibilidade de separar as histórias já vividas.
Esse reconhecimento da identidade também é discutido por Hall (2013) ao abordar
sobre a cultura caribenha, que é essencialmente diaspórica. Segundo os antropólogos, as
culturas caribenhas seriam “impuras”, pois a maioria dos cidadãos existentes no Caribe
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vieram de outros lugares. Mas é por meio dessa “impureza”, da mistura de raças, culturas,
ideias, políticas, modos de pensar e fazer, que a novidade entra no mundo. Entretanto, não se
sugere aqui que os elementos diferentes entrem em harmonia com os outros, pois eles são
diferidos pelas relações de poder entre os sujeitos, sobretudo nas relações de dependência que
o colonialismo sustenta(va).
Os momentos em que essas culturas são trabalhadas refletem a luta em busca de uma
reapropriação da própria cultura “ancestral”. Contudo, essa reapropriação não pode significar
um retorno ao lugar de origem, pois sempre existirá algo entre o lugar cultural de origem e o
lugar de destino, e isso faz do Caribe um exemplo da miscigenação e de
hibridismo cultural, sobre isso, Bhabha (1998, p. 87 nos explica que:
acontecer a negociação entre elas? Qual é a mais importante? Esses questionamentos são
levantados pois “as histórias são mesmo contestadas e isso ocorre, sobretudo, na luta política
pelo reconhecimento das identidades” (WOODWARD, 2014, p. 27).
Desse modo, as histórias devem ser contestadas e examinadas, para que possamos
entender a sua autenticidade, pois se temos histórias diferentes, temos também sujeitos e
identidades diferentes. Além disso, pode ter havido autores diferentes para uma mesma
história, como é o caso da história do período colonial do Brasil, pois a maioria dos relatos
dessa época estão tecidos pelo olhar do invasor: o europeu.
Stuart Hall (2013) explica-nos sobre os diferentes tipos de identidades, bem como todo
o processo que é necessário para se autenticar uma determinada identidade quando se
descobre o seu passado. Sendo que existe um ponto de partida sinalizado pela questão de
quem e o que nós falamos, ou seja, existe sempre uma posição histórica e cultural da qual o
sujeito se apropria na hora da fala.
A primeira concepção de identidade cultural apresentada pelo autor supracitado é
quando uma comunidade procura a sua verdadeira história; a segunda é quando o sujeito,
além de buscar sua raiz histórica, reconhece que não pertence mais ao local de origem, e isso
não representa negar o passado relacionado à identidade, mas entender que o sujeito precisa se
reconstruir a partir do processo de transformação cultural sofrido pela comunidade. Nesse
sentido, o conceito de identidade não é fixo ou completo, mas temos uma pluralidade de
centros identitários, pois é algo em transição, levando em consideração as misturas que
ocorrem entre as culturas e os processos diaspóricos.
Segundo Lucas (1998), a memória exerce influência na identidade, ela funciona como
uma espaço de reafirmação, onde acontecerá a reorganização e atualização da cultura, do que
está sendo experimentado e que já foi vivido. Apesar de a identidade se modificar
principalmente pelas mudanças de lugares dos sujeitos, os movimentos diaspóricos, ela
também sofre influência com as mudanças econômicas, como, por exemplo, as modificações
nos padrões de consumo movimentadas pela indústria e pelo capitalismo.
Do mesmo modo, a identidade, além de se mostrar em construção, também se
apresenta de formas diferentes a depender do contexto em que o sujeito se apresente. Pois os
indivíduos vivem em diferentes instituições, família, amigos, trabalhos, escolas, e cada um
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desses grupos possui um contexto simbólico específico. Por exemplo, a casa é um local onde
a mídia consegue exercer o seu poder de influência para produzir determinados tipos de
identidades, por meio de anúncios, das novelas, entre outras formas. Hoje, temos os famosos
digital influencers1, que conseguem influenciar centenas, e até milhares, de pessoas por meio
das suas redes sociais, com o seu estilo de vida, hábitos e opiniões. Atualmente, essas pessoas
ganham muito dinheiro para usar determinado produto e convencer as pessoas a usá-lo.
A respeito dessas características comuns a muitos sujeitos de uma nação, a identidade
apresenta duas classificações, a identidade nacional e a individual. Segundo Ribeiro (1996), é
possível identificar, no Brasil, uma identidade nacional coletiva, que colocaria um fim nas
diferenças entre os grupos sociais existentes no país. Ele explica que existe uma etnia
brasileira que envolve todas as etnias que se uniram aqui no Brasil, africanos, europeus,
índios, como também as características de mestiçagem entre brancos, mulatos, caboclos e
curicas, seguindo por esse caminho todos eles são um povo, unidos pelo reconhecimento de
igualdade que anula as diferenças existentes. Diante disso, cada membro possui a sua
identidade individual, no entanto, passa a se sentir parte de uma identidade coletiva.
Sobre isso, Jayme Paviani (2004) nos explica que a identidade nacional ou cultural de
um povo está relacionada a um conjunto de costumes, obras socioculturais, valores,
comportamentos e língua. Entretanto, é preciso ficar atento ao conceito de identidade
nacional, que pode assumir um conceito equivocado da realidade cultural de um povo, sendo
que toda identidade se constrói por meio das diferenças. Nesse sentido, sempre que tratarmos
de identidade não se pode deixar de lado as diferenças, mesmo que os sujeitos possuam
pontos em comum, é preciso dar a devida importância às diferenças.
Nesse sentido, cada ser humano tem uma forma original de ser e de viver de sua
maneira. Antes do final de século XVIII, segundo Charles Taylor (2000), as pessoas não
davam nenhuma importância para as diferenças que existem entre os sujeitos, pois ninguém
havia imaginado ainda que elas pudessem deter um significado moral. Existe uma forma de
1
O digital influencer é a pessoa que detém o poder de influência em um determinado grupo de pessoas.
Os influenciadores digitais impactam centenas e até milhares de seguidores, todos os dias, com o seu estilo de
vida, opiniões e hábitos. (Definição disponível em: <https://freesider.com.br/marketing-digital/o-que-e-um-
digital-influencer/>)
32
existir que é individual, “a minha maneira”, dessa forma cada uma vive a vida a sua maneira e
não imitando a vida de outras pessoas.
Essa maneira original de ser, de forma única, que não deve ser proibida ou oprimida,
deve ser reconhecida e respeitada, pois é com base nessas diferenças, nesse modo de existir,
que se fundamentam as ideias do multiculturalismo, essa corrente que procura inserir um
novo conceito com relação à dignidade do ser humano, e a todos os aspectos que esse direito
engloba.
Para Santos e Nunes (2003) existem muitos direitos indígenas que não são assistidos
de forma devida, o que fere o princípio da dignidade do ser humano, que é um direito de todos
os seres humanos.
E eis que depois da mulher, do louco e da criança, uma quarta figura da alteridade
surgiu diante do que a sociedade ocidental definida por normalidade: o selvagem. E,
à semelhança das três outras figuras, esse selvagem era mudo, isto é, podia suportar
um e até vários discursos estereotipados. (ROGNON, 1991, p. 12)
sem civilização, sem cultura, incapaz, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro etc. Para
outros ainda, o índio é um ser romântico, protetor das florestas, símbolo da pureza,
quase um ser como o das lendas e dos romances (LUCIANO, 2006, p. 30).
[...] caso do contato cultural entre índios e brancos, o silenciamento produzido pelo
Estado não incide apenas sobre o que o índio, enquanto sujeito, faz, mas sobre a
própria existência do sujeito índio. E quando digo Estado, digo Estado brasileiro do
branco. Estado que silencia a existência do índio enquanto sua parte e componente
da cultura brasileira. Nesse Estado, o negro chega a ter uma participação. De
segunda classe é verdade, mas tem uma participação, à margem, o índio é totalmente
excluído. No que se refere à identidade cultural, o índio não entra nem como
estrangeiro, nem sequer como antepassado.
Os povos originários do Brasil foram destituídos de voz pelos discursos oficiais. Eles
foram colocados à margem, sendo silenciados pelos colonizadores, como nos explicou Eni
Orlandi. Sua cultura foi exterminada e tudo o que era avesso aos ensinamentos ocidentais era
considerado impróprio e selvagem.
Os povos indígenas sofreram muitas situações, dentre elas, Eliane Potiguara (2004)
denuncia algumas, tais como: arrendamento de terras indígenas, violência e assassinatos,
usurpação do território indígenas e negação dos direitos desses povos. Por ter denunciado
essas situações de opressão e violência que os povos indígenas passaram, a autora foi
ameaçada de morte, mas foi protegida pelo Pen Clube da Inglaterra, a organização
internacional de Escritores na Prisão, grupo ativista dos Direitos Humanos, e também a
Agência de Imprensa Indígena (Aipin).
Durante muito tempo o termo índio foi considerado algo pejorativo para denominar os
povos indígenas, no entanto, após manifestações, esses povos chegaram à conclusão de que
era necessário estabelecer uma denominação comum, que fortalecesse e unisse os povos
originalmente brasileiros, e acima de tudo, que definisse as fronteiras étnicas e identitárias
entre eles, como um grupo para lutarem juntos em busca de direitos e melhores condições de
existência para o seu povo, a partir de então, segundo Luciano (2006, p. 31) o sentido
36
pejorativo de índio “passou a uma marca identitária capaz de unir povos historicamente
distintos e rivais na luta por direitos e interesses comuns. É neste sentido que hoje todos os
índios se tratam como parentes”.
O sentido de parentes abordado acima, não significa dizer que os índios são todos
iguais, mas que estão em busca dos mesmos interesses e lutando pelos mesmos ideais, pois
cada povo indígena se constitui de uma sociedade única, com base nas experiências de cada
grupo social, na sua economia e sua religião, sendo que a sua identidade é construída com
base nas histórias e nas diferenças de cada etnia. Nesse sentido, Luciano (2006, p. 31) nos
afirma que:
Até antes desse movimento, o termo indígena era considerado pejorativo, sendo o
sujeito um indígena ou não, o termo era considerado uma grande ofensa. E foi por esse
motivo que muitos indígenas renegaram suas origens e sua própria identidade, mas ainda que
negassem essa nomenclatura, e a sua etnia, não conseguiam esconder sua aparência, costumes
e maneira de falar. Essa negação do “ser indígena” trouxe grande repercussão na história
desse povo que tenta se reerguer a reafirmar sua identidade na atualidade, lutam por seus
direitos o por seu território, é um índio que não tem vergonha de ser quem é. Nessa esteira:
O índio de hoje é um índio que se orgulha de ser nativo, de ser originário, de ser
portador de civilização própria e de pertencer a uma ancestralidade particular. Este
sentimento e esta atitude positiva estão provocando o chamado fenômeno da
etnogênese, principalmente no Nordeste. Os povos indígenas, que por força de
séculos de repressão colonial escondiam e negavam suas identidades étnicas, agora
37
Mesmo que o índio tenha resgatado a sua autoestima e esteja lutando por seus direitos,
ainda há um grande caminho a percorrer na sociedade contemporânea para que os povos
indígenas não percam sua identidade, pois eles sofreram (e sofrem) danos que necessitam ser
reparados. É preciso dar voz ao indígena na sociedade atual, mesmo sendo impossível voltar
no tempo e reparar todos os danos causados desde o período colonial, mas é papel do
intelectual contemporâneo fomentar lugares para que esse indígena se manifeste (SPIVAK,
2018).
No cenário atual, questionamentos são levantados no sentido de que seria melhor se o
indígena fosse inserido na sociedade, para ter autonomia e independência, pois isso não
representaria renegar suas raízes. Porém, integrá-los à sociedade seria colocá-los em um lugar
de subalternidade, assim como nos explica Ailton Krenak (2018). Os indígenas são os povos
originários da floresta, precisam do seu território para preservar sua cultura, e se eles forem
integrados à sociedade passarão a ser “peões”, subalternizados pela força da contratação da
mão de obra barata. Foi o que Eline Potiguara denunciou em seu livro, “Metade Cara e
Metade Máscara” (2004), onde, dentre outras denúncias, a autora relata que a avó foi
estuprada aos 12 anos de idade, engravidando de Elza, a mãe de Eliane. Ela foi morar no rio,
na zona do manguezal, uma zona de prostituição. Essas mulheres indígenas que procuram a
integração em grandes cidades acabaram em zonas sub-humanas, discriminadas por conta da
etnia, do gênero, da classe social, sofrendo o desprezo da sociedade, tendo que carregar
sozinhas o fardo de sustentar os filhos, pois os homens das famílias são mortos ou
desaparecem “misteriosamente”. Mesmo com todas essas dificuldades e sem estarem
inseridas de forma digna em sociedade, elas resistem, mesmo em condições subalternas e
miseráveis.
Esse é o retrato da vida na sociedade “civilizada” que espera muitos indígenas. Em
uma narração feita por Eliane Potiguara, ela retrata o destino cruel dos indígenas que vão
tentar sobreviver nos centros urbanos. A autora dedica o livro a sua avó, símbolo de
resistência, que preservou sua cultura ancestral, mesmo vivendo fora da sua realidade, sua vó
38
trazia consigo a aldeia, a contação de histórias, preservando a tradição oral do seu povo e
transmitindo os relatos e conhecimentos para a neta Eliane.
Por isso, tentar colocar o indígena no convívio dos centros urbanos sem nenhuma
assistência é condená-lo ao descaso e à subalternidade social, além de destituí-lo de uma das
características primordiais para sua identidade: o seu território. Nesse sentido é preciso
compreender que:
A cultura dos povos indígenas, ao longo dos tempos, tem sido tratada com certo
desdém – vivendo em um hiato de esquecimento abissal. [...] O Brasil necessita se
conhecer, é impossível pensar em nossa história sem levar em consideração os
povos aqui existentes, sem louvar a ancestralidade presente no canto dos pássaros e
nas brisas do passado. Por isso, e muito mais, devemos encontrar mecanismos
para a manutenção da cultura indígena, primordial para o surgimento da nação
brasileira. (HAKYI apud TETTAMANZY, 2018, p. 18, negrito nosso)
indígenas tiveram que se esconder para sobreviver, tornaram-se sem-terra, sem-teto, sem-
história, sem-memória e sem-humanidade (MUNDURUKU, 2011).
Portanto, pensar a literatura indígena deve ser um processo entendido como um
mecanismo de renascimento dessa cultura, que foi aniquilada durante anos pela invasão dos
europeus e sofreu as maiores atrocidades que nem se pode imaginar. Os povos indígenas
sempre registraram sua história, cultura, crenças e costumes, por meio da tradição oral, dos
seus saberes e fazeres, e em tudo isso a cultura indígena sobrevive. Sendo assim, a oralidade
estava presente antes mesmo do aprendizado da escrita.
Entretanto, é por meio da escrita, também, que o indígena pode manifestar sua cultura,
para que ela não seja esquecida e sim reafirmada e fique registrada nos livros e trabalhos
científicos. Assim, um indígena escrever sobre seus saberes e seus fazeres, quem ele é e seus
ancestrais, demonstra a força do domínio de um poderoso instrumento tecnológico dos
ocidentais: a escrita. Neste sentido, a escrita pode ser compreendida como um poderoso
artifício para a reafirmação cultural indígena e um meio de informação e comunicação entre
os próprios indígenas e para os não-indígenas.
No contexto da manifestação da voz subalterna, que pode ser por meio da escrita,
podemos destacar o pensamento de Spivak (2018), que afirma que o “subalterno” não pode
falar por falta de espaço discursivo, mas ela mostra, também, que o papel dos estudiosos é
proporcionar locais de fala para que esse subalterno se manifeste, não só por meio da
literatura, mas também por outras artes em geral, e, assim, ele possa ser ouvido.
Dentre os indígenas que se manifestam por meio das artes, podemos citar Cristino
Wapichana (apud TETTAMANZY, 2018). Ele nos mostra a sua necessidade de criar, escrever
e estar envolvido com a arte. Ele destaca que é preciso apresentar uma visão indígena da
própria história indígena e não uma visão ocidentalizada dos fatos. Explica-nos, ainda, que a
manifestação indígena por meio da arte fortalece não só a cultura indígena, mas também
melhora a sua autoestima, no sentido de fazer com que eles se sintam valorizados com o
reconhecimento e valorização do seu trabalho:
40
Desse modo, trazer à baila reflexões sobre a cultura indígena significa pensar sobre a
base estrutural do povo brasileiro, ajudar num renascimento dessas culturas que foram quase
aniquiladas no período colonial. Ouvir o indígena, significa, assim, resgatar a voz do
subalterno que foi inferiorizada e massacrada desde o período colonial até os dias atuais. As
produções literárias indígenas são produções que retratam a resistência de identidades que
poderiam ter sucumbido na história, mas que se mantiveram vivas até hoje.
Ainda que a escrita seja uma habilidade recente para os indígenas, pois eles priorizam
a oralidade para transmitir conhecimento e a cultura de geração para geração. Existem muitos
autores indígenas com produções de abordagem pós-colonial, no sentido de reafirmar a
cultura indígena apagada da história. Dentre eles podemos citar o escritor e professor
brasileiro Daniel Munduruku, que é graduado em Filosofia, História e Psicologia, fez
mestrado em Antropologia Social pela USP, doutorado em Educação também pela USP e pós-
doutorado em Literatura pela UFSC-Car. Sobre a habilidade de dominar a escrita, o autor nos
explica que:
A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta técnica com perfeição para poder
utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao
contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de
transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que
precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro. O papel da
literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não
destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional
outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.
Assim, os povos indígenas são marcados por suas tradições orais. Ao aprender a
escrever e produzir obras escritas, muitos indígenas acreditam que estão renegando a sua
cultura materna e se afastando das suas tradições, uma vez que os povos indígenas priorizam a
oralidade. Quando na verdade acontece o contrário.
É também por meio da escrita que o indígena pode registrar a sua história, reafirmar a
sua cultura, registrar em textos as suas tradições, lutas, alegrias, rituais, batalhas, etc., para
que a sociedade não-indígena conheça um pouco mais sobre seus fazeres e saberes
ancestralmente silenciados.
42
Escrever sobre Literatura Indígena brasileira significa discorrer sobre uma temática
que ainda é nova no campo do conhecimento literário, mas que possui uma alta carga ativista
no processo de ressignificação da identidade e da cultura indígenas no cenário
contemporâneo.
Entendemos que, mesmo com normas incluídas pelo governo federal, no sentido de
difundir o conhecimento sobre cultura, arte e história indígenas, essas temáticas ainda são
pouco trabalhadas nos ambientes educacionais. Entretanto, com o advento da lei 11.645/2008
que inclui a disciplina de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, existe a necessidade
atual de se preencher essa ausência.
Por isso, é importante aprender e debater sobre os textos que abordam temáticas
indígenas, pois essa é uma forma de conhecer e valorizar o “outro”, o diferente, além de
aprender também sobre uma nova cultura e visões estéticas e textuais distintas das que
estamos habituados. Defendemos que esse contato desenvolve a formação de leitores
competentes e mais conhecedores de uma (ou várias) cultura ancestral, formando leitores
multiculturais e multiletrados.
Quando falamos de Literatura Indígena damos espaço para uma área que apresenta
uma coletânea de vozes que foram silenciadas, subjugadas e algumas até exterminadas no
decorrer da história. Entretanto, mesmo após anos de desvalorização, algumas vozes
43
permanecem relutantes e combatentes nesse cenário, mantendo-se vivas para contar a sua
história ancestral, no sentido de fortalecer e reafirmar a sua identidade e cultura indígenas, a
Literatura Indígena é uma das formas mais belas de resistência.
Ainda, num cenário político atual de invasões de terras indígenas, o estudo das
Literaturas Indígenas pode auxiliar na compreensão da importância das culturas desses povos
originários e que têm tanto a nos ensinar.
Os povos indígenas têm todo o direito de manifestar seus costumes, cultura, crenças, a
íntima relação com a terra e com o território, o que significa reafirmar a sua existência.
Entretanto, esse direito não está sendo exercido de forma eficiente, por conta de muitos
fatores, que abordaremos a seguir, mas, apesar disso, a forma de viver dos indígenas
conseguiu sobreviver a todas as atrocidades cometidas contra eles desde o período colonial até
os dias de hoje. Os indígenas são resistência, pois conseguiram resistir por mais de 500 anos
de espoliação e exploração.
Uma forma que os indígenas possuem de reafirmarem suas identidades é por meio da
literatura. A literatura é uma prova da força da sobrevivência indígena, e por meio dos textos
os indígenas possuem voz e fazem renascer toda a sua cultura ancestral que foi transferida de
geração em geração por meio da memória oral.
Por terem como predominância a tradição oral para o ensinamento de informações e
cultura, a Literatura Indígena representa um campo recente de estudo. Ocorre que os
indígenas foram proibidos de utilizar a sua língua em vários períodos da história nacional, o
único modo de manterem os registros da sua cultura, costumes e história foi por meio da
oralidade. Desse modo, existe uma forte relação da escrita indígena com a tradição oral, ainda
que os textos sejam escritos em uma língua ocidental. Pensar que os indígenas tomaram para
si a língua do colonizador para manter viva suas tradições, saberes e fazeres é ver como eles
se utilizaram, inteligentemente, da tecnologia da escrita a seu favor. Os indígenas estão
começando a entender como subverter as relações de poderes simbólicos impostas pelos
brancos, a começar pela linguagem escrita.
Vários autores indígenas enfrentam preconceito ao escrever, pois muitos indígenas
entendem que eles estão renegando suas origens, quando na verdade a escrita é a reafirmação
da identidade registrada pelos ancestrais (MUNDURUKU, 2018).
44
Brasil. Não se pode estudar os fatos históricos por meio de uma visão unívoca e eurocêntrica.
Mesmo não sendo uma tarefa fácil, a escola deve dispor essas informações para os alunos,
sendo a escola o espaço primário de promoção desses saberes.
Nossa sugestão é que seja feito um trabalho com obras literárias que valorizem os
indígenas, com objetivo de apresentar uma visão positiva sobre esses grupos sociais. No
mesmo sentido, Walace Rodrigues (2016) nos explica que “Assim, o conhecimento não seria
uma abstração escolar e passaria a ser uma realidade materializada em conhecimentos e,
espera-se, em atitudes de respeito”. Assim, poderiam ser exploradas as culturas indígenas em
muitas outras artes.
Nesse mesmo sentido, Hall (2013) reforça que a literatura permite ao leitor conhecer
costumes, culturas e comportamentos de outros povos, que podem estar em outros tempos,
lugares e espaços que não são os mesmos que o seu. Assim se dá a apropriação de novos
conceitos para reforçar a organização da ideia de mundo, como também a construção da
identidade na busca pelo lugar de fala.
Todas as pessoas possuem um lugar de fala, que é o resultado de um lugar social, e é
por meio de uma escuta legitimada das vozes nos lugares diferentes que poderá haver um
debate significativo sobre os variados assuntos que existem na sociedade (RIBEIRO, 2013).
Pensar nesses lugares é reforçar identidades que foram silenciadas durante muito tempo,
rompendo com o cenário hierárquico elitizado e masculino existente no campo literário até a
atualidade.
Na área da Literatura Indígena existe um campo de estudo ainda mais recente na
literatura brasileira: a poesia indígena. Temos, atualmente, alguns escritores indígenas que
começam a ficar em evidência neste campo de atividade literária, como Eliane Potiguara,
Daniel Munduruku, Márcia Kambeba, entre outros.
Nesse cenário, a Literatura Indígena (ai incluída a poesia indígena) é uma forma de
(re)afirmação da cultura desse povo, tratando-se de um “(re)encontro” da história indígena
com o homem ocidental, no sentido em que a memória indígena deve se atualizar para se
manter viva. Assim, “Pensar a Literatura Indígena é pensar no movimento que a memória faz
para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que
a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade” (MUNDURUKU, 2008, s/p). E não
47
é só por meio da escrita que essa (re)afirmação identitária dos indígenas atuais pode ser feita,
pois existem outras formas de manifestações dessa cultura que precisam ser reforçadas.
Segundo Munduruku (2018), algumas delas seriam: a internet, a TV, a rádio e os festivais.
Ainda, pensando sobre as relações entre a literatura canônica ocidental e a Literatura
Indígena da atualidade, Devair Fiorotti e Pedro Mandagará (2018) reafirmam o processo
dinâmico que compõe e recompõe a literatura indígena por meio da sua força oral e das ações
performáticas, essas últimas por meio da voz dos recitadores.
As culturas orais constroem história, memória e literatura. Elas são a base da
transformação e das constantes invenções que acontecem de forma indissociável. O mundo
está em constante evolução (o discurso, as narrativas, os cantos, etc.) e a cada época surge um
mundo novo, atualizado (isso não quer dizer que seja melhor a cada dia). A medida em que o
presente se transforma, novos passados e novos espaços são criados. Não há como dissociar o
passado do presente, assim como são inseparáveis a história oral e a literatura, pois uma
depende da outra, pois uma (re)faz a outra.
Culturas orais, por outro lado, fazem história, memória e literatura como um
processo de perda e invenção constantes, e na maioria das vezes de forma
indissociável, como nos ensina o termo Panton, em língua macuxi: que se refere às
histórias do povo macuxi, inclusive às lendas e mitos, de forma indissociável. Na
medida em que o mundo se torna outro, o discurso (da narrativa, do canto) vira
outro. Conforme o presente se transforma, criam-se novos passados e novos espaços.
Nada menos primitivo que este trabalho de reinvenção constante - estamos longe de
ideias de autenticidade parada no tempo. (FIOROTTI; MANDAGARÁ, 2018, p. 15)
Nesse sentido, estudar a história, a cultura e os costumes dos povos indígenas por meio
de uma literatura produzida por uma indígena significa reforçar a identidade de um povo que
quase foi apagada no contexto nacional. É dar voz para o “subalterno” que teve sua cultura
estigmatizada no decorrer da história e hoje luta por um espaço na sociedade contemporânea,
em que sua cultura possa existir e ser respeitada.
Ainda pensando nos indígenas brasileiros e em suas produções artísticas (mais
tradicionais ou as que incorporam traços da ocidentalidade), vale compreender o sentido do
conceito de “subaltenidade”, pois os indígenas foram e ainda são tratados como subalternos
48
Outra acepção sobre subalternidade é discutida por Spivak (2018, p. 13-14). Em sua
obra “Pode o subalterno falar?”, a autora descreve o termo subalterno como sendo “as
camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelos modos específicos de exclusão dos
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos
no estrato social dominante”. Nessa obra, a autora faz uma discussão com base no
questionamento levantado no título do livro, que é uma crítica à Gramsci, e que não discute o
simples sentido literal da frase que intitula a obra, mas sim o processo de autorrepresentação
do subalterno que não se efetua em sociedade, pois o ato de ser ouvido não acontece, já que o
subalterno não tem voz de manifestação na contemporaneidade.
Nesse aspecto, o intelectual não pode falar pelo subalterno e assumir um discurso de
resistência, pois enquanto isso continuar sendo feito, o subalterno continuará silenciado, sem
que lhe ofereçam uma oportunidade em sociedade para que ele possa se manifestar por ele
mesmo.
Portanto, a posição do intelectual pós-colonial deve ser a de proporcionar lugares de
fala para que esse sujeito subalterno se manifeste e apresente o seu discurso por ele mesmo,
sem a interferência ou interpretação do pesquisador, uma vez que essa interpretação, por mais
próxima que fique da manifestação do próprio sujeito pesquisado, jamais será a voz do
subalterno e não representará de forma fiel a sua manifestação.
Identidade é um conceito potente, que convoca à reflexão e exige um posicionamento
prático e teórico em relação a análise da poesia indígena, pois remete à questão cultural da
49
autora e à formação de sua personalidade enquanto sujeito indígena. Esse assunto será melhor
discutido mais adiante.
Acreditamos, portanto, que as significações culturais moldadas através da poesia
indígena brasileira podem ser decodificadas a partir da análise de categorias como gênero,
etnia, identidade, funções sociais, etc.
Sobre a análise cultural, Stuart Hall nos lembra que toda ação social é cultural. Assim,
a ação de criar poesia indígena é eminentemente cultural, pois reflete um conhecimento do
mundo indígena muito maior do que aquele que qualquer autor ocidental poderia ter de tal
mundo, dando significado a uma literatura verdadeiramente indígena.
Praticar ou observar a ação social são atos significativos, pois nas duas situações
existem variados sistemas de significados que são utilizados para classificar, codificar,
organizar, regular a conduta em relação aos outros. Esse sistema é o que dá sentido às ações
em sociedade. Eles permitem interpretar significativamente as ações dos outros sujeitos.
Todas as ações praticadas em sociedade (ação social e cultural) representam ou comunicam
um significado. Nesse sentido, elas são denominadas de “sistemas de representação e práticas
sociais” (HALL, 2015, p. 63).
Assim, abrir-se à poesia indígena significa tentar buscar novas maneiras de pensar a
literatura fora dos cânones ocidentais. A disponibilidade intelectual e sensível aos fazeres do
“outro” (do não-ocidental, do indígena) pode desvendar muitos saberes únicos a partir das
concepções ancestrais de mundo.
Ainda, os saberes que podemos conseguir através dos estudos das formas não-
ocidentais de literatura podem contribuir grandemente na área da educação e incentivar a
abertura a outras fontes de conhecimento fora dos cânones ocidentais. Nesse sentido, o estudo
da Literatura Indígena brasileira pode auxiliar na educação escolar de nossos jovens.
Rodrigueiro (2016) nos informa que os conteúdos relacionados às minorias precisam
ser compreendidos e ensinados nos mais variados contextos educacionais que existem no
Brasil, principalmente na sala de aula, pois é o espaço onde deve ocorrer a promoção das mais
diversas formas de conhecimento. Não é uma tarefa fácil apresentar novas informações sobre
a história de “outros” cidadãos nacionais, que já estavam aqui antes dos portugueses
colonizarem o Brasil, mas é preciso formar sujeitos mais críticos e conscientes da sua origem.
50
Nesse mesmo aspecto, a arte (em nosso caso a Literatura Indígena) possui o poder de
ultrapassar barreiras de preconceitos e revelar lugares de fala com os quais nunca tínhamos
pensado existir. Sobre isso, Bhabha (2003, p. 439, tradução nossa) nos explica que:
O valor da arte não está em seu alcance transcendente, mas na sua capacidade de
tradução; na possibilidade de mover-se entre meios, materiais e gêneros, cada vez
marcando e remarcando as fronteiras materiais da diferença; articulando ‘lugares’
onde a questão da ‘especificidade’ é ambivalente e complexamente construída.
Esse é um protesto contra uma política que procura acabar com a cultura dos povos
indígenas, reduzindo-os à subalternidade social. Fazendo com que eles percam a sua
indianidade para levá-los a uma extinção progressiva de direitos adquiridos durante todo o
percurso histórico adquirido por meio de lutas enfrentadas pela população indígena.
A situação no Brasil não foi muito diferente da do Canadá, pois o governo fez uma
proposta de converter os indígenas a cidadãos brasileiros, isso para aqueles que estivessem
mais próximos da cultura ocidental. Para Graça Graúna (2001, p. 79-80), essa atitude
governamental “em nossos dias seria o atestado de óbito de um grande número de nações
indígenas”.
Ainda tratando da propagação da cultura indígena por meio da literatura, um grupo de
escritores indígenas reconhecidos foi convidado para discutir sobre políticas de meio
ambiente no XIV Salão da Fundação Nacional do Livro para Crianças e Jovens (FNLIJ) e no
Instituto C&A. O objetivo principal do encontro foi utilizar o conhecimento desenvolvido por
escritores indígenas para contribuir nas reflexões de políticas para o meio ambiente no Fórum
Rio+20, que é um evento que acontece anualmente e conta com a colaboração de milhares de
professores e escritores de diversas áreas. Para Graça Graúna (2012, p. 272) temos muito a
aprender:
Há uma literatura escrita por indígenas; há uma identidade nessa produção literária;
há uma demanda crescente por esse tipo de escrita. Isso é um fato notado a partir dos
últimos 20 anos. É uma produção voltada para crianças e jovens, sim; comprometida
com a conscientização da sociedade brasileira sobre os valores que os povos
originários carregam consigo apesar dos cinco séculos de colonização.
(MUNDURUKU, 2018, s/p)
escrever em uma língua ocidental coloca à mostra o que aconteceu do período colonial até
hoje e ficou escondido nos relatos ocidentais durante muito tempo. Do texto abaixo, de
autoria dos autores indígenas Aldair Glória Marinho e Uziel Guaynê, vejamos a
interculturalidade presente no texto, com a apresentação da cultura e vocabulário indígenas:
O CURUPIRA
Desde os tempos remotos, os velhos, chamados de sábios, têm alertado o povo
quanto ao ataque do CURUPIRA. Dizem eles que o curupira é uma criatura
pequena, de cabelos vermelhos, orelhas pontudas, que tem os pés para trás, anda
montado em um porco queixado, abusando de gente e de bicho. Raramente foi visto,
porque se disfarça de qualquer coisa da mata, pois domina alguns segredos da
natureza.
[...] Foi quando dois companheiros inseparáveis, amigos de caça, de pesca e de
trabalho, Pixuira e Arudé, saíram pra uma investida. Andaram, andaram, o dia
estava lindo, muito calmo, os dois chegaram ao local, fizeram um tapirí para
trabalhar em paz. Arrumaram tudo, encheram água em um garapezinho próximo.
Arrumaram seus pãneiros, seus tacapes, flechas e arcos. Depois de uma gostosa
ventrecha assada de pirarucu, dormiram sossegados. Cedinho, seguiram ao local
desejado. (MARINHO e GUAYNÊ, 2017, s/p)
Os autores são filhos dos pais indígenas Marauáh, atualmente residem em Manaus,
estão seguindo os passos de outros autores com produções que têm como objetivo a
divulgação e a valorização da cultura indígena. Nesse conto os autores mostram a história de
várias lendas da cultura indígena, como o curupira, que é uma herança da memória oral
indígena para a cultura brasileira. Eles utilizam várias palavras do vocabulário indígena e no
final do conto apresentam o glossário com a tradução para tais vocábulos. Como por exemplo:
Pãnero: objeto tecido de fibras de cipó. É presa com a alça à cabeça, e no pãnero se
apoiam as costas.
Pegar uma boia: expressão que se usa pra pegar alimentos.
Pequiá: fruta da mata, grande e oleosa; se come apenas cozido. Se diz pelos
indígenas que um pequiá cozido com farinha é equivalente a um almoço.
Piaçocas: jaçanãs.
Pirão: farinha molhada, deixada alguns minutos para tufar. (MARINHO e
GUAYNÊ, 2017, s/p)
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principais de colocar as rimas nos versos de um poema: Rimas emparelhadas, são as que se
sucedem duas a duas; rimas cruzadas, são as que se colocam de forma alternada; rimas
enlaçadas, rimam em parelha dois versos entre dois outros que estão rimados também; rimas
misturadas, são as que possuem escrita livre, sem rima ou uma quantidade de sílabas
específicas nos versos. Abaixo temos um trecho do poema da escritora indígena Márcia
Kambeba (2013, p. 33), intitulado “Aldeia Tururucari-uka (A Casa de Tururucari)”, como um
exemplo de poema formado por rimas emparelhadas:
[...]
Diz o tuxaua maior,
O Kambeba é povo agricultor,
Não se pode deixar de plantar,
Escolheu São Tomé como protetor,
Para que tivesse boa colheita,
Nesse santo se apegou.
Na aldeia Tururucari-Uka,
As casas representam união,
Ordenanadas em forma de círculo,
Facilitam a comunicação,
Feitas de madeira e palha,
Mantendo a antiga tradição.
A função principal da rima é criar uma sensação marcante estabelecida por meio da
sonoridade contínua do poema. Mas também existem os poemas que não possuem rimas,
como dito acima. Observemos, então, o poema de Graça Graúna (2007, p. 23), intitulado
“Serra do Mar”, que é um exemplo de poema que faz uso de versos livres:
É por meio da poesia que o sujeito pode ter acesso à vida, às relações com o mundo, a
sua identidade. A poesia é onipresente, fazendo renascer memórias, histórias, relatos e
alteridades. No poema acima, podemos perceber que a autora traz o relato de sua vivência, em
uma associação das duas paisagens, a natural e a cultural.
Ainda sobre a composição dos poemas, eles podem ser classificados conforme a
quantidade de versos que possuem em cada estrofe, eles se classificam em: monóstico, estrofe
de um verso; dístico, com dois versos; terceto, com três versos, quarteto ou quadra, quando
possuem quatro versos; quintilha, estrofes com cinco versos; sextilha, com seis versos;
sétima, setilha ou hepteto, estrofe com sete versos; oitava, com oito versos; nona, estrofe com
nove versos; décima, estrofe com dez versos e irregulares, que são as estrofes com mais de
dez versos (FERREIRA, 2013). Abaixo temos um poema, de Graça Graúna (2007, p. 31),
intitulado de “Yvy-Marãey”, que é formado, em sua maioria, por quartetos:
No vai-e-vem de troncos
quantas nações em prantos!
E os homens-daninhos
Seduzindo a taba.
Grávidos de malícia
sedentos de guerra
dançam a falsidade
esterilizam a festa.
De quinto a quinhentos
o ouro encantou-se.
Plastificaram o verde
58
pavimentaram o destino.
E foi acontecendo
e escurecendo,
mas de manhã, bem cedinho
além da Grande Água
vi um curumim sonhando
com Yvy-Marãey formosa.
IV
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
59
Já vi cruas brigas,
De tribos amigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
No poema acima conseguimos perceber que a medida que a leitura dos versos avança,
o leitor sente a força de cada estrofe, com o jogo de ritmo feito brilhantemente pelo autor.
Mas, acima da força rítmica contida nos versos, podemos perceber que este poema representa
um texto que é um objeto de contribuição no ensino escolar, trazendo história e cultura
indígenas de forma poética. Assim, a literatura sempre foi utilizada no cenário educacional.
Segundo Zilberman (2009, p. 09) “o ensino da literatura, ou da poesia, integrou-se ao preceito
que por muito tempo regeu a educação de modo geral, a saber, o de transmitir regras e
princípios a serem absorvidos pelos futuros cidadãos”.
Nesse mesmo sentido, entendemos que a literatura é uma forma de rever conceitos,
romper paradigmas estereotipados, fazer interpretações, levantar questionamentos e
conscientizar, é um dos mecanismos mais importantes para se tomar consciência da
humanidade com relação a sua própria história, com a possibilidade de construí-la de um
modo diferente (cf. BARCELLOS, 2006).
Sabe-se da importância do gênero poético no processo de ensino e aprendizagem. No
entanto, ele é pouco utilizado na escola, e quando é utilizado está no formato prosódico, em
avaliações sistemáticas, que pouco contribuem para uma formação humanizada das crianças e
jovens em período escolar (FRANTZ, 1997). Com o auxílio da Literatura Indígena no
processo de ensino e aprendizagem, os conteúdos poderão ser trabalhados de forma
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interdisciplinar, uma vez que essa temática pode abarcar os mais variados assuntos de
diferentes ciências do saber.
Mas não se pode trabalhar o poema de forma mecânica, pois dessa forma não se
desenvolve no aprendente a capacidade de interpretação aprofundada que o poema requer, e
assim o leitor pode ser privado de perceber as emoções, as sensações, os sentimentos, as
imagens e as interpretações possíveis que o texto poético apresenta.
Segundo Antônio Cândido (1996) sempre foi uma preocupação da poética estabelecer
regras com relação às modalidades e tipos de rima de compõem o poema. Os parnasianos
foram o máximo da exigência que já se alcançou no decorrer da história de classificação dos
poemas quanto às rimas. Entretanto, não existe uma obrigatoriedade para a utilização de todas
essas regras, pode haver boa poesia, com uma beleza sonora, sem obedecer a maior parte
dessas regras. Sendo assim, nem todo poema, ou obra construída com as normas métricas
exigidas, tem poesia. Podemos dizer que existem máquinas de rimar, mas não de fazer poesia.
Mas, por outro lado, a poesia pode existir sem poema, pois ela está presente em paisagens,
pessoas, lugares, acontecimentos e cenas do próprio cotidiano.
Acreditamos que a poesia tem um papel fundamental no processo de ensino e de
aprendizagem. Além do mais, concordamos com Hélder Pinheiro (2002), em não aceitar que
“estudante não gosta de poesia”, pois o autor comprovou na prática exatamente o contrário.
Os alunos não gostam de poesia trabalhada de qualquer forma, ou de qualquer poesia. Por
isso, é importante investir em trabalhos com poemas para os mais diversos objetivos, pois o
gênero poético contribui para a formação de leitores críticos, autônomos e cidadãos mais
humanizados e preocupados com o seu papel social. É por meio do poema que o aluno terá
acesso a diferentes culturas, lugares, sentimentos e emoções, nunca sentidos ou
experimentados de fato, assim, poderá interpretar tudo o que lhe cerca de uma maneira mais
consciente.
É preciso que o professor, enquanto mediador, tenha consciência do seu real papel
quanto ao desenvolvimento da capacidade de interpretação dos alunos a partir dos mais
variados tipos de textos, verbais e não verbais, inclusive. Para que isso aconteça, é necessário
trabalhar a linguagem em sua carga máxima de significados, utilizar a poesia, a música, a
emoção, o sentimento, a função social, a cultura, a identidade, a arte e a criticidade. Pois,
61
segundo Pinheiro (2002), é por meio do contato com a poesia que o professor poderá trabalhar
tais competências com os alunos. Fazendo leitura em voz alta, comentando os poemas e
repetindo estrofes e versos de que mais gostaram.
Entretanto, segundo Frantz (1997, p. 82), sabe-se que a poesia é importante para a
formação do “ser”, pois ela atua na compreensão de sentimentos e inquietudes, ao mesmo
tempo em que trabalha a interpretação significativa do texto. Entretanto, muitas escolas
insistem em não trabalhar esse gênero, optando por textos mais informativos e objetivos. E
quando a escola trabalha a poesia, é em forma de textos prosódicos. Tal atitude impede que o
aluno desfrute de uma “experiência inigualável” que a poesia pode proporcionar.
O autor também explica como deve ser a posição do poeta colonizado que se preocupa
em produzir obras nacionais, com o objetivo de descrever seu povo e sua cultura. Segundo
ele, a obrigação primária do poeta colonizado é informar com clareza o tema povo de sua
criação, pois só é possível avançar quando se toma consciência de sua alienação. Pois o povo
colonizado absorve tudo o que lhes é ensinado, enquanto o “outro lado” não absorve nada,
apenas querem que aceitemos a sua cultura sem compreender nem assimilar nada da nossa:
Nós absorvemos tudo do outro lado. Mas o outro lado não nos dá nada sem, através
de mil rodeios, nos curvar em sua direção, sem, através de dez mil artifícios, sem
mil estratagemas, nos atrair, seduzir, aprisionar. Absorver é também, em múltiplos
planos, ser absorvido. Não basta portanto tentar desligar-se acumulando as
proclamações ou as contestações. Não basta juntar-se ao povo nesse passado em que
êle já não está mais. É preciso juntar-se também no movimento oscilante que êle
acaba de esboçar e a partir do qual tudo vai repentinamente ser discutido. É nesse
ponto de desequilíbrio oculto em que se mantém o povo que é necessário que nos
situemos porque, não tenhamos dúvidas, é aí que se cristaliza sua alma e se ilumina
sua percepção e sua respiração. (FRANTZ, 1997, p. 188)
Entendemos, também, que esse seja o papel daqueles que trabalham com literatura
pós-colonial, que é levantar esses questionamentos para que se compreenda até onde estamos
sendo preenchidos por outras culturas que não são a do nosso povo de origem.
O que acontece é que, em muitas escolas, atentem-se apenas a ensinar a parte histórica
da literatura. Entretanto, essa forma de instrução não é suficiente para explorar o gênero
poético, pois é importante que o professor elabore um plano dinâmico e atrativo para esse fim.
62
Pois é por meio da literatura, segundo Lajolo (2001), que o leitor pode ter contato com vários
mundos: desde aquele que envolve elementos do sobrenatural até os da cientificidade. Ainda,
entendemos, que a literatura pode ser compreendida como a “porta para variados mundos que
ele cria e não se desfazem na última página do livro, na última frase da canção”. Permanecem
no leitor, incorporados como vivência, marcos da história de leitura de cada um (LAJOLO,
2001, p. 44-45).
Também nesse sentido, segundo os PCNs, para o Ensino Médio, ao trabalhar com
poemas o aluno poderá ampliar seus conceitos sobre o belo e a arte, ultrapassando a barreira
da informação memorizada e decodificada, pois “A leitura meramente denotativa de um
poema é certamente uma leitura pobre” (BRASIL, 2006, p. 39). Essa leitura pobre de que
tratam os PCNs está fundada em uma perspectiva superficial do poema ou escolha incorreta
dos textos.
Os poemas indígenas podem ser trabalhados para evidenciar conceitos apresentados
em sala de aula, relacionados à história, cultura, costumes e crenças dos povos indígenas,
assim o processo de ensino e aprendizagem será bem mais rico, pois ao perceber esses
elementos anteriormente estudados, o aprendente conseguirá compreender o discurso contido
no texto poético. Segundo Yunes (1995, p. 193) a “interpretação não é decorrência linear do
que está codificado em linguagem, não é desocultamento do mistério do texto, mas do
mistério do próprio leitor. Interpretar é um ato de leitura que associa o sujeito ao discurso que
elabora e o explica enquanto se explica”. Assim, é preciso trabalhar o poema, mas com os
conceitos que já foram abordados em sala de aula, por meio da história e cultura indígenas,
com o auxílio de textos que desconstruam estereótipos construídos ao longo de nossa história
de colonizados e que perduram até os dias de hoje.
Outra situação que precisa de atenção é a forma como o poema é trabalhado. Segundo
Pinheiro (2002) existe uma grande carência de poemas nos livros didáticos de 5ª a 8ª série e
quando se trata de poemas de autores indígenas, essa carência é ainda maior. Ainda que a
LDB (BRASIL, 1996) tenha incluído o ensino de história e cultura dos povos indígenas no
âmbito de todo o currículo escolar, os livros didáticos ainda não se adequaram a essa
realidade. Mesmo o Brasil tendo muitos escritores indígenas, trabalhar a Literatura Indígena
63
na voz dos povos indígenas ainda é uma realidade que não está presente nas salas de aula.
Situação que coloca o autor indígena em um lugar de invisibilidade.
Uma perspectiva que pode ser trabalhada em sala de aula é a produção de poemas com
base nos textos de autores indígenas. Os alunos podem criar textos com a perspectiva que
tiveram da leitura realizada, pois, conforme Pinheiro (2002), decodificar o texto não cativa e
nem envolve o leitor na essência textual, pois é necessário que o leitor desenvolva sua
capacidade criativa que deve ser trabalhada com a leitura e produção de poemas.
Ao trabalhar a leitura de poemas em sala de aula, deve-se envolver e cativar o leitor
com os textos, por meio de um trabalho aprofundando, levando em consideração os aspectos
sonoros, intrínsecos, intertextuais e subjetivos presentes no poema, assim como os citados
acima. Além de se trabalhar a cultura a identidade indígena, reforçando nas salas de aula que
as culturas desses povos também compõem a cultura do povo brasileiro. Isso sempre
respeitando as faixas etárias em que se trabalha o texto, pois existem textos de Literatura
Indígena para as diversas fases de desenvolvimento, como demonstrado anteriormente.
É necessário entender essa relação do poema com a faixa etária do leitor, pois em cada
texto o autor busca desenvolver no leitor o prazer pelo poema. Isso de acordo com sua
realidade e o seu conhecimento previamente adquirido e a fase de desenvolvimento em que se
encontra. Existem muitos autores indígenas (GRAÚNA, 2001, 2012 e 2007; KAMBEBA,
2013; MINÁPOTY, 2017; MUNDURUKU, 2018 e 2019; POTIGUARA, 2004, entre outros)
que podem participar da construção do livro didático, com produções de poemas voltadas para
o público infantil e infantojuvenil. Como, por exemplo, Lia Minápoty, que é autora de mais
de três livros infantis e juvenis, e sempre procura demonstrar a cultura indígena por meio da
sua contação de histórias de raízes amazônicas. Um exemplo de sua produção é o poema “A
menina e as flores”, que conta a história de uma menina que nunca havia visto um jardim, não
conhecia nada além dos cômodos da sua própria casa. Então, um belo dia, a menina resolve
enfrentar o medo do desconhecido, e então abre a janela da sua casa e se depara com um lindo
jardim, com as mais diversas cores de flores e quanta beleza ela estava perdendo por se
manter inerte, entre os muros da sua casa, com medo do diferente. Vejamos um trecho do
poema:
64
Amõrukape o ma’epotytéwaporãga’etépotyra’nápanhé
- Ikatu’reté: “que legal!” – Falou na língua dos seus pais, que eram índios
maraguás.
Ikatúreté, o che’egmaraguápe
Finalmente descobriu
Que, com as flores,
A vida tem múltiplas cores,
É bela como um jardim.
Nesse caso, temos o exemplo de literatura intercultural, que mistura o idioma indígena
com a língua portuguesa, a autora não usa somente a tradução, mas coloca no texto trechos
em que o eu poético usa a sua língua materna e a língua portuguesa na narrativa, como, por
exemplo, no trecho: “- Como é lindo! – ela repetiu, traduzindo a mesma frase em português”.
Nesse sentido, é por meio da poesia que o aluno poderá desenvolver a sua percepção e
aguçar o seu sentido literário e sua compreensão sobre diversas culturas, em nosso caso em
especial, sobre a cultura indígena. Poderá se questionar, aprender, problematizar, pois os
textos poéticos aguçam isso no leitor, o que não é possível em outros textos. A escola atual
busca um aluno autônomo, com o pensamento rápido e espontâneo, um aluno que seja crítico
65
e pensante, leitor e produtor de textos significativos. Nesse sentido, entendemos que a poesia
traz uma grande construção nesse perfil de aluno que a escola procura.
Entretanto, essa perspectiva é atual, pois até a década de noventa os alunos eram tidos
como caixas vazias, nas quais o professor tinha a tarefa de depositar os conhecimentos
estipulados pelo currículo escolar e o aluno deveria apenas aceitar essas informações, sem
questionar ou formar sua opinião. Segundo Rouxel (2012, p. 274):
Sobre a poesia pós-colonial, Franz Fanon (1997) nos explica que ela tem o condão de
uma poesia de revolta, de desabafo, uma poesia analítica e descritiva. Ele coloca o poema
como sendo uma arma para combater a discriminação e o silenciamento dando voz aos
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povos colonizados. Para os colonizados, essa violência significa a práxis absoluta, significa
lutar contra o colono de acordo com cada caso, essa violência tem um caráter reintegrador,
pois permite que os colonizados reencontrem seu lugar e se reintegrem. Desse modo, a
libertação do homem colonizado acontece pela violência. E a forma de violência escolhida
por nós é a literária. Podemos observar essa violência na poesia de Césaire (apud FANON,
1997, p. 66):
O REBELDE (áspero)
Meu amor: ofensivo; meu prenome: humilhado; meu estado: revoltado; minha idade:
a idade da pedra.
[...]
Meu coração tu não livrarás de minhas lembranças...
Foi num noite de novembro...
E de súbito clamores iluminaram o silêncio,
Havíamos saltado, nós, os escravos; nós, o lixo; nós, os animais resignados.
Corríamos tomados de fúria; os tiros explodiam... Batíamos. O suor e o sangue nos
refrescavam. Batíamos entre os gritos, e os gritos se tornavam mais estridentes que
ardiam e a labareda projetava-se suave em nossa face.
Então deu-se o assalto à casa do patrão.
Disparavam das janelas.
Arrombamos as portas.
O quarto do patrão era espaçoso. O quarto do patrão resplendia, e o patrão lá, muito
calmo... e os nossos se detiveram... era o patrão... Eu entrei. És tu, me disse êle,
muito calmo... Era eu, era eu mesmo, respondi, e bom escravo, o escravo fiel, o
escravo escravo, e de repente seus olhos se converteram em duas baratas
amedrontadas nos dias de chuva... bati, o sangue esguichou: é o único batismo de
que me lembro até hoje.
Assim, por meio da leitura podemos estar presente em momentos históricos que não
foram vivenciados por nós, sentir a violência denunciada nos textos, para entendermos um
pouco o que os nossos antepassados sofreram. Mas, não só na literatura reside a poesia, como
dito anteriormente, em muito do que está ao nosso redor existe poesia. E quanto mais for
trabalhada a poesia em sala de aula, mais despertará no aluno o desejo de aprender mais, de
entender as nuances da existência humana, na música, nas artes, na rua, etc. A poesia pode ser
interpretada de muitas formas, em muitos ambientes e contextos, em um ritmo de interação e
descoberta dos sentidos, culturas e identidades, optando e decidindo sobre o universo que os
toca, em uma leitura da vida e para a vida.
É por isso que os professores devem trabalhar com a poesia com seus alunos. Com a
poesia se trabalha o sendo estético, a sonoridade das rimas, a criatividade, as imagens e a
emoção. A poesia é também responsável por desenvolver a capacidade linguística da criança e
do adolescente por meio da familiaridade com a linguagem, que transcende culturas, épocas,
neologismos, ultrapassando gerações, com o belo e a arte.
Mas para que isso ocorra, o aluno precisa do apoio do professor, pois, por meio dele,
podem ser construídas pontes ou barreiras, vai depender da prática pedagógica que será
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utilizada em sala de aula, se o texto escolhido atende à necessidade daquela realidade cultural
do aluno e também de sua faixa etária.
A poesia tem o poder de encantar quem a lê, a partir do momento que há uma ligação
com o autor e o leitor. Ao perceber, nas entrelinhas do poema, a possível mensagem que está
sendo transmitida pelo autor, o aluno se abre para um novo horizonte e se envolve no deleite
de cada descoberta. No exercício de entender e interpretar um poema existe uma magia que os
textos informativos não são capazes de transmitir.
É possível que esteja nesse aspecto a resposta para o trabalho com a poesia: fazer
com que o aluno sinta prazer na leitura da poesia e em cada descoberta que o texto lhe
proporciona. Surgirão questionamentos, pois cada aluno terá uma percepção ímpar, e isso é
fundamental para o desenvolvimento emocional e cognitivo do aluno, para o fomento do
debate e a compreensão da realidade circundante, atrelado aos conhecimentos previamente
adquiridos por cada aluno em relação ao que lê, sente, pensa e imagina.
É preciso que o professor seja um elo entre o significado do texto poético e o aluno,
sem deixar que ele perca a sua autonomia com relação à interpretação, mas que também não
exponha as possíveis respostas sem esforço.
Não se trata de formar poetas, mas de desenvolver capacidades essenciais que só o
trabalho com a leitura e a produção de poemas poderá desenvolver nos alunos. Esse trabalho
construirá alunos mais críticos, criativos, autônomos, leitores literários, interpretadores e
construtores da própria vida e tudo o que lhes cerca, além de mais conscientes da sua herança
ancestral.
[...] a maior herança que o Brasil recebeu dos índios não foi propriamente o
território, mas a experiência em sociedade, a nossa engenharia social. A capacidade
de viver junto sem se matar, reconhecendo a territorialidade um do outro como
elemento fundador também da sua identidade, de sua cultura e de seu sentido de
humanidade. (RIBEIRO, 1996, p. 84)
69
Os povos indígenas têm muito a nos ensinar nas mais diversas área do conhecimento,
como no plantio, na forma de se relacionar, no respeito à natureza e entre os povos. Mesmo
tendo passado por um grave abalo cultural, os saberes indígenas continuam presentes no
cotidiano da vida em sociedade, e podem ser percebidos nas técnicas de plantio, na culinária,
na linguagem, nas crenças e na cultura.
É por meio dessa herança que se pode vislumbrar a construção de um enfrentamento
político, cultural e identitário, instaurado pelos estudiosos das temáticas indígenas na
contemporaneidade, afim de que se minimize toda a barbárie sofrida pelos povos indígenas
com a invasão dos colonizadores. Esses povos que foram silenciados, e visibilizados estão
vivos e presentes na sociedade, nos dando contribuições nas mais diversas áreas de
conhecimento.
A seguir, veremos como se deu a invasão no território brasileiro, desmistificaremos o
mito de que os indígenas aceitaram o domínio de suas terras e o extermínio de sua cultura,
linguagem e saberes de forma pacífica. Veremos também toda a herança cultural indígena que
está presente na sociedade contemporânea de forma entrelaçada e indissolúvel na formação da
cultura do povo brasileiro.
O território que ocupamos atualmente, denominado de Brasil, era habitado por vários
povos autóctones, antes da invasão dos europeus. Tal invasão foi seguida de massacre,
70
escravidão e exploração. Temos poucos registros seguros dessa história, alguns deles são
divergentes, pois muitos ainda carregam narrativas preconceituosas de domesticação,
construídas com base no olhar do invasor, enquanto algumas passagens e relatos históricos de
mortes foram desconsiderados pela história em registro. Em alguns casos, os indígenas são
apresentados como um povo que se rendeu aos encantos da cultura europeia, de maneira
totalmente errônea, como comprovaremos a seguir, em outros, existem relatos de muitas
batalhas e extermínio de populações indígenas inteiras.
Embora seja um assunto que possui evidente importância, a historiografia nacional é
pouco trabalhada por especialistas nessa área. Certamente porque os trabalhos mais profundos
e abrangentes sobre o assunto de que se tem conhecimento foram escritos pelo ângulo do
olhar do colonizador, ou de maneira superficial (DIAS, 1988).
Embora não haja informações precisas com relação ao número de indígenas que
habitavam o continente antes da invasão dos colonizadores, quando o navegador Cristóvão
Colombo, a serviço da Espanha, chegou no México, os números que a história tem registro
variavam entre 8,4 a 112,55 milhões (CUNHA, 1992). Se tomarmos essa última estimativa,
podemos verificar que em quatro séculos a população nativa americana foi reduzida a um
oitavo do montante original. Estudos recentes demonstram que os resultados foram ainda
mais avassaladores por conta de doenças até então desconhecidas dos indígenas, como
sarampo e varíola (RIBEIRO, 1983). Nesse sentido, se fizermos apenas uma comparação
rápida dos dados demográficos da população indígena no período colonial e alguns anos
depois da invasão dos europeus, podemos entender que a colonização do continente não foi
nada amistosa, como defendem alguns estudiosos. Essa mesma realidade sanguinolenta se
estendeu ao Brasil.
Ao chegarem no Brasil e desembarcarem em Porto Seguro, na Bahia, os europeus não
sabiam se estavam na costa da África, na Índia ou em uma ilha, por isso os colonizadores
denominaram a terra nova de Pindorama, depois de Ilha de Vera Cruz, em seguida de Terra de
Santa Cruz e, por último, mas não menos importante, foi chamada de Brasil.
Ainda, alguns registros afirmam que a população indígena no século XVI era de um
milhão de habitantes, na região Norte, Sul, Leste e Oeste (CUNHA, 1992). Essa população
71
era dividida em centenas de grupos, que falavam línguas variadas e foram divididos por
pesquisadores em grandes famílias linguístico-culturais, com a finalidade de estudo.
Segundo Carlos Antônio Dias (1988) esses microdomínios eram representados por
tabas, que eram compostas de 4 até 7 malocas, cada uma delas com 150 a 300 ou mais
indígenas. Desse modo, esses grupos eram formados por 600 a 2.000 indivíduos. Todos os
integrantes da comunidade tinham uma relação de parentesco, por afinidade ou consanguínea.
Essas unidades possuíam uma grande estabilidade organizacional. Enquanto instituições,
entretanto, por não possuírem um governo central, estavam mais vulneráveis se participassem
de conflitos ou guerras prolongadas. Então, quando esses grupos foram expostos aos poucos
invasores, mas organizados política e militarmente, apoiados pelo governo e bem engajados
com o poder central de Portugal, foram dominados.
Os índios Tupiniquim, que pertenciam à grande família Tupinambá, do tronco Tupi-
guarani, foram os primeiros a terem esse infeliz contato com os portugueses, pois eles
habitavam quase todo o litoral do país. Na Carta de Pero Vaz de Caminha à D. Manuel, o
Venturoso, rei de Portugal, no ano de 1500, lia-se que os habitantes encontrados na nova terra
“Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas, eram os
Tupiniquins. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e
Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram” (CAMINHA apud
RIBEIRO, 1983, p. 19). Os demais relatos são sobre as riquezas do lugar com um olhar
europeu.
O olhar do colonizador, quando chegou aqui no Brasil, era de um mundo novo, nunca
antes explorado. Tudo o que o colonizador enxergava era visto com espanto: as pinturas na
pele indígena, o fato de não vestirem roupas, a língua desconhecida, etc. Esse olhar
estereotipado sobre uma nova civilização desconhecida marcou a história indígena e todo o
conceito histórico escrito que se tem conhecimento desse povo foi transmitido através da voz
dos europeus. A distância que separava o invasor dos habitantes nativos da região era imensa,
pois aqui os invasores não encontraram os frutos que conheciam, nem os animais domésticos
a que estavas habituados, as técnicas de cultivo que utilizavam na Europa não se aplicavam
aos terrenos tropicais, etc. Desse modo, eles tiveram que aprender com os indígenas as
técnicas para sobreviver nos trópicos.
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Segundo Ribeiro (1983), aos poucos, os europeus foram aprendendo a conviver com
os nativos, aprendendo a comer suas raízes, seus frutos, e começaram a desenvolver novas
técnicas para a sobrevivência nos países tropicais. Tiveram que conviver de forma pacífica
por um tempo com os nativos, pois o contingente de indígenas era muito superior a
quantidade de invasores que chegaram nas caravelas. Com isso, meio século após a invasão os
portugueses já haviam formado alguns núcleos de civilização na costa do continente. Era uma
primeira civilização, ainda que desordenada, formada por um misto de cultura europeia com
cultura tribal.
Esses núcleos que foram surgindo já continham os traços da sociedade brasileira: não
eram índios e também não eram europeus. A base econômica dessas células era a exportação
do pau-de-tinta (pau brasil), que garantia a sua subsistência. A partir de então a história do
Brasil começa a se formar, diante da aventura desses núcleos que se formaram na Bahia, em
Pernambuco, no Rio de Janeiro e em São Paulo (RIBEIRO, 1983).
Dentre as muitas heranças que a população brasileira herdou dos indígenas, os mais
importantes foram os genes, uma vez que as mulheres indígenas eram as reprodutoras da nova
população, pois as primeiras embarcações trouxeram apenas homens de Portugal. As índias
deram luz aos primeiros mamelucos que ocupariam todo o território nacional. Embora os
filhos falassem a língua materna, identificavam-se ideologicamente com os pais, e seguiam os
objetivos dos portugueses, dominar e invadir, em busca de riquezas.
A partir de então a história do Brasil toma novos rumos, agora os portugueses não
precisam dos índios, uma vez que já subtraíram deles o que precisavam para sobreviver no
continente tropical. Entretanto, com a chegada das mulheres europeias ao continente, a
produção de mamelucos ficou menor e as mulheres indígenas eram inferiorizadas perante as
73
de cultura europeia. O preconceito com as mulheres indígenas ficou acentuado e muitas foram
descartadas, como um objeto sexual, pois os europeus não viam mais necessidade em se
relacionarem com elas.
Com o passar do tempo, o indígena foi se tornando desnecessário para os invasores,
uma vez que os portugueses já haviam aprendido os métodos de plantio das plantas que eram
cultivadas nos trópicos e também a forma de prepará-las e consumi-las. Também já haviam
conseguido a mão de obra escrava indígena, que foi substituída pelos negros posteriormente.
Haviam conseguido a força do guerreiro indígena, os conhecimentos da terra (com guias e
geógrafos). Nesse sentido, o índio, que era arredio à escravidão, tornou-se desnecessário com
a introdução do escravo negro.
Depois de ser usado, o indígena passava a ser visto como um animal doméstico,
incapaz de raciocinar, já que não era considerado um ser humano. Entretanto, a produção de
indígenas domesticados não dura muito, pois para os europeus o gasto estava sendo maior do
que o lucro. Sobre isso, Frantz Fanon (1997, p. 84) explica que:
De então até nossos dias, esse lastro aborígene da cultura brasileira, sobretudo da
base tupi-guarani, conserva-se em grande parte no Brasil interiorano. Isso pode ser
observado pela facilidade com que o sertanejo nordestino, o caiçara paulista, ou,
mais propriamente, o caboclo amazônico encontram elementos culturais que lhes
são familiares num contexto tribal. Para todos, a base da alimentação é a farinha de
mandioca, que é cultivada e preparada pelos mesmos processos. Na casa indígenas
encontram vários utensílios domésticos que lhes são familiares, chamados pelos
mesmos nomes: o tipiti para espremer o sumo da mandioca brava, o pilão, o ralador,
a peneira, os balaios, os abanos, as esteiras trançadas de palha; os jacás, samburás,
jamaxis, aturás, para trazer peixe, castanha, ou produtos da roça. Reconhecem
inúmeros implementos de pesca: o pari, que é a barragem para fechar o igarapé e
atrapar o peixe; o juquiá ou covo, que é a armadilha cônica; cacuri, curral para
peixe, tracajá ou tartaruga; o puçá, a tarrafa e o jererê, espécies de redes; a pesca
com linha e anzol (hoje de aço, antes com fisga de osso) e pelo envenenamento dos
peixes com certas folhas saponáceas como o timbó. Do mesmo modo, são familiares
ao caboclo e ao sertanejo certos tipos de embarcação como o ubá escavada em
tronco de árvore a fogo; instrumentos de música, como o berimbau; armadilhas de
caça como o mundéu ou alçapão para quadrúpedes e a arapuca para a caça de
passarinhos; utensílios de mesa e de cozinha como o porongo, a cuia, a gamela, o
pote e a panela de barro.
Além de tudo o que já foi citado, ainda estão presentes nos lares do caboclo e do
sertanejo inúmeros pratos de origem indígena, como o mingau, o beiju, o chibé (farinha de
mandioca misturada com água e as vezes temperada com fruta), a papa, a tapioca, a paçoca de
peixe ou de carne com farinha, a muqueca, o tucupi (muito conhecido e apreciado no estado
do Pará), a bebida de guaraná (apreciada pela população do norte), e a de mate (pelos povos
do sul), e muitos outros que fazem parte da culinária brasileira. Além da culinária, muito
presente na mesa dos brasileiros, ainda existem outros elementos que contribuem com a vida
do homem no sertão, como os bancos e o fumo, e rede (comumente utilizada em todo o
território nacional, de várias cores e formatos, umas mais modernas e outras mais rústicas,
mas sem perder a essência indígena).
Nesse percurso histórico a cultura indígena foi se entrelaçando com a cultura europeia,
as quais não puderam mais se separar, trazendo à tona uma nova cultura. Segundo Hall (2013,
p. 149), “a cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e culturas
populares das sociedades [...]. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma
do inter-relacionamento das mesmas”. Nessa inter-relação cultural se deu o início da cultura
brasileira.
75
C. Hoehne (apud RIBEIRO, 1983, p. 101), que esteve presente em muitas expedições
realizadas no Brasil, autor de uma das melhores obras sobre o legado indígena na área da
botânica.
O autor explica que esse confronto entre invasores e povos colonizados, no atual
território denominado de Brasil, se deu por meio de fatores globais (principalmente os de
caráter cultural). Foi uma história com registro da superioridade dos invasores contra os povos
corajosos e heroicos lutando em defesa da sua terra, mas sem a organização social e política
necessária para a vitória.
Ainda falando da superioridade tecnológica dos europeus frente aos indígenas, vale
ressaltar o importante papel da imprensa. Esta que fora criada no século XV, como também o
uso de cartas com o objetivo de transferir informações às autoridades de Portugal, enquanto
comandantes e militares atuavam em uma espécie de teatro das operações. Por esse meio de
comunicação também eram acionados os pedidos de reforço quando as tropas europeias
estavam em momentos críticos. Isso causou um efeito a longo prazo, talvez mais forte e
devastador do que as guerras e as epidemias para a cultura aborígene. Segundo Dias (1988, p.
78
05) “o colonizador escreveu o que quis e como quis, pôs e dispôs o indígena e sua terra sob
uma ótica de negação da gente indígena e de usurpação territorial, em contestações”.
O fato de somente o colonizador deter todo o poder de informação e comunicação
sobre os dados e eventos históricos e culturais que aconteceram nos séculos de destruição e
opressão, foi uma situação avassaladora para a cultura brasileira. A sensação que temos hoje é
de que toda a história e cultura genuinamente brasileira encontra-se perdida, sem registros,
soterrada num passado historicamente registrado pela voz do opressor.
Esse preconceito histórico das narrativas na voz do colonizador perdura até hoje. O
único modo de diminuir esse olhar eurocêntrico é apresentar o outro lado da história, tentar
resgatar nos poucos relatos de que se tem registro, a história contada pelo povos colonizados:
os indígenas. Conforme Frantz Fanon (1997, p. 30):
Entender a literatura com o olhar indígena significa, portanto, desvencilhar essa área
das amarras coloniais que foram solidificadas e estabelecem conceitos estereotipados, desde a
época colonial até hoje, baseados na voz do colonizador. Por isso é importante estudar a
desvendar os caminhos literários na voz do “outro”: o colonizado. Esse é o nosso papel
enquanto pesquisadores, não só da área da Literatura e História do Brasil, mas de todos os que
desejam dar um lugar notório para a cultura nativa brasileira.
O exercício de “ver” o que é diferente de nós mesmo e de tudo aquilo que nos é
familiar, é sempre envolto de percepções muito preconceituosas e etnocêntricas: o
que é diferente da nossa sociedade assusta; os valores que não conhecemos são
considerados irracionais e desprezíveis. Os contatos entre ameríndios e europeus,
inaugurados no século XVI, são percebidos como um dos maiores encontros com a
alteridade, ou seja, os eventos que se sucederam a partir dos primeiros contatos
constituem um rico conjunto de episódios que nos ajudam a pensar sobre a nossa
relação com o Outro, com o diferente. (FIALHO E SANTOS, 2017, p. 74)
Ao enxergar o que é diferente de nós e de tudo o que nos é familiar, vemos o novo
como sendo algo ruim, cria-se uma visão preconceituosa e etnocêntrica2, pois o que é
diferente da sociedade que nós já conhecemos assusta. A cultura e valores desconhecidos são
entendidos como insignificantes e ínfimos, foi isso o que aconteceu no encontro dos povos
indígenas com os europeus.
Esse contato do europeu com os indígenas marcou uma nova fase na cultura do
colonizador e do colonizado, pois a compreensão de que o mundo é composto de vários
povos, diferentes entre si, ou seja: a humanidade não é homogênea. O encontro com a
alteridade abriu novos horizontes ao mundo europeu e também para os nativos das regiões
invadidas, como a região que hoje denominamos de Brasil.
Segundo Hall (2014, p. 183) a identidade é marcada pelas diferenças, e as identidades
se formam a partir de outras identidades diferentes, ao entrar em contato com o diferente, o
“forasteiro”, o “outro”, o sujeito forma significados, e esse deveria ser um momento
construtivo. Mas o que houve nesse período foi a construção negativa da diferença, pois se
deu “por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como
“outros” ou “forasteiros”, nesse caso, os indígenas.
Atualmente existem muitos relatos sobre esse encontro dos europeus com os índios e
sobre a população indígena que existia antes da colonização. Entretanto, algumas informações
são precárias e díspares. Mas, nesse processo, a figura do índio foi sendo formada a partir do
olhar europeu, a partir dos valores, da cultura, da formação filosófica e religiosa desse povo
branco e que desconhecia e ignorava a cultura indígena.
2
Etnocentrismo é a ideia de que os valores de um determinado povo estão sendo os únicos considerados,
são percebidos como o ponto de vista central, o correto. Tudo que é vivido ou pensado diferentemente é entendido
como grotesco, absurdo, inferior. (FIALHO e SANTOS, 2017)
80
Com essa invasão dos europeus nas terras brasileiras, a população indígena sofreu um
grande extermínio, com isso muitas sociedades indígenas foram completamente dizimadas. A
maioria delas foi morta na escravidão, por meio de doenças transmitidas pelos europeus e de
batalhas em defesa de território, pois os indígenas lutaram bravamente para defender seu
espaço, seu território. Os números apresentados com relação ao declínio dessas populações
não são homogêneos, pois, segundo Ribeiro (1983, p. 27):
No entanto, cada relato, ainda que seja precário, nos fornece informações para
compreender um pouco do que houve no processo de colonização, e, segundo Ribeiro (1983),
uma das maiores críticas dos estudiosos de demografia histórica americana aos antigos
registros é que não se levou em consideração testemunhos importantes, como o do Padre
Bartolomeu de las Casas, que informou o genocídio de mais de 40 milhões de índios durante
o período de 60 anos e realizado por espanhóis.
Os efeitos das epidemias eram tão evidentes que os índios começaram a acreditar que
o batismo realizado pelos jesuítas trazia a morte. Isso é o que podemos identificar com o
relato do Padre Manuel Nóbrega (apud RIBEIRO, 1983, p. 16), ao afirmar que “quase todos
os que batizamos, caíram doentes, quais do ventre, quais dos olhos, quais de apostema; e
tiveram ocasião os seus feiticeiros de dizer que lhes dávamos a doenças com a água do
batismo e com a doutrina, a morte”. Lembrando que o aperfeiçoamento da vacina contra a
varíola se deu apenas por volta do ano 1800.
E nesse processo, as populações indígenas foram sofrendo um considerável declínio.
Ocorreu um extermínio de vidas, de culturas e de sociedades inteiras. Os índios sofreram com
81
a doenças dos brancos, com a escravidão e o subjugamento cultural. Eles eram considerados
uma caixa vazia, onde tudo poderia ser acrescentado: língua, cultura, religião e demais
conceitos sociais advindos dos europeus. O olhar do colonizador era direcionado ao índios
como sendo homens e mulheres nus e sem nenhum tipo de conhecimento, eram selvagens,
assim como animais da floresta.
Quando os europeus aportaram no Brasil, os povos indígenas viviam somente em
contato com a natureza e entre si. A existência deles é tão antiga quanto a dos europeus, eles
representavam uma outra civilização, com vivência diferente e ao mesmo tempo semelhante à
dos invasores. Isso pode ser comprovado por meio de artefatos históricos encontrados em
várias regiões do país, como objetos arqueológicos e registros rupestres (pinturas e gravuras).
Os índios também produziam muitas ferramentas de pedras e artefatos de cerâmica, dentre os
quais se tem registro como objetos arqueológicos. Tais objetos constituem importantes
documentos da história indígena no Brasil, assim como as memórias e a tradição oral
(GOMES, 2017).
As memórias também são uma herança importante da população indígena, elas podem
ser reconstruídas e apropriadas de acordo com a vivência nos grupos sociais. Podemos dizer
que elas são um patrimônio, visto que os indígenas não tiveram a oportunidade de aprender a
escrever em sua língua materna. A única forma de manter o registro de suas tradições,
costumes e culturas era por meio da tradição oral, transmitida de geração em geração, que
pode assumir novas características na voz de cada novo locutor.
Segundo Gomes (2017), a natureza dessas memórias se modifica de acordo com o
lugar de fala de quem as produz, pois cada sujeito terá a sua versão da história. Essa
disparidade nos registros da memória gera conflitos. Podemos afirmar que são os conflitos
sociais que geram as disputas entre as memórias diferentes. Por exemplo, ao noticiar um
tiroteio em uma comunidade, um jornal pode usar termos que inocentam ou incriminam
determinados sujeitos, entre policiais e bandidos. Outro exemplo desse fato é que muitos
livros de história abordam o título “descobrimento do Brasil” para relatar a chegada dos
europeus no Brasil. Mas como em um lugar que já era habitado por milhares de sujeitos pode
ser descoberto? E para os povos que foram denominados de indígenas, que já estavam aqui
82
antes dos colonizadores, existiu mesmo esse “descobrimento”? Qual a versão dos indígenas
para esse “descobrimento”?
Nesse sentido, a memória atende aos interesses de quem as reproduz. Por isso, a
memória é um campo de conflito entre as diferentes visões do passado, no caso do Brasil,
entre povos colonizadores e povos colonizados. Assim, as memórias são organizadas de
maneira a surtir o efeito desejado com relação aos interesses de quem as organiza.
Nesse ínterim, Michel Pollak (1989) diz-nos que a memória se constitui de maneira
individual ou coletiva, pois, em primeiro lugar, são os acontecimentos que foram vividos e,
em segundo, aqueles acontecimentos que foram vividos por outras pessoas, outros sujeitos do
grupo, e foram transmitidos aos demais sujeitos que não tiveram aquela experiência. Desse
modo, acontece então a “comunidade de memória”, por meio do compartilhamento das
memórias vividas com outros sujeitos.
Essas memórias podem ter sido vividas pelos pais, avós ou bisavós de quem as narra.
Elas são compartilhadas por um sujeito que não viveu a experiência e só teve acesso à
narrativa daquele determinado fato por meio dos ancestrais, e isso é uma herança em
memória. Mas, no fim das contas, é praticamente impossível saber se a pessoa participou ou
não, de fato, daqueles acontecimentos, pois as memórias individuais se confundem com as
memórias que foram transmitidas. Além do mais, ela se articula conforme o momento em que
está sendo transmitida. Para Pollak (1992, p. 224) é por isso que:
daquilo que os inscreve enquanto sujeitos. Assim, podemos entender, conforme Pollak (1992,
p. 203), que “A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado”. Isso
faz com que o campo da memória seja único, e por mais que seja compartilhado, não pode ser
uníssono.
Os processos de reorganização e reconhecimento da memória estão no presente. Esses
processos funcionam como uma ponte entre o passado e o futuro. As memórias indígenas são
uma das mais difundidas tradições orais existentes até hoje, dentre os vários grupos sociais
que formaram a sociedade brasileira. Essas memórias são um verdadeiro exemplo de
resistência, enquanto representantes da história do país, registrados por olhos diferentes dos
daqueles que escreveram a história dita “oficial”.
Entender as memórias indígenas é entender também um pouco da nossa vida ancestral.
Ao passo que as memórias estão ligadas à identidade, e esse é o primeiro passo para o
reconhecimento da nossa identidade enquanto sujeitos circunscritos em um país multicultural.
Segundo Hall (1996), o termo multiculturalismo está sendo utilizado universalmente,
entretanto, isso não contribui para a compreensão do termo, assim como a utilização de outros
termos relacionados, como raça, etnicidade, diáspora e identidade. Mas ele explica que na
ausência de conceitos menos complexos, a única alternativa que temos é a de utilizar certos
termos mesmo assim. Desse modo, optamos por utilizar esse termo também em nossa
pesquisa e tentaremos explicá-lo de forma resumida com base nos estudos que já foram
apresentados até hoje sobre o assunto.
Entender um pouco sobre o termo multiculturalismo e o que ele aborda é uma questão
crucial para compreender a literatura indígena e suas nuances. Hall (2013, p. 57) faz uma
distinção entre os termos “multiculturalismo” e “multicultural”, vejamos:
eurocêntrico que foi construído durante anos com base em relatos estereotipados. Ainda que
tais conceitos estejam entranhados na sociedade contemporânea, é preciso trabalhar em busca
da redescoberta da identidade do povo brasileiro, e isso, acreditamos, faz-se por meio da
compreensão da identidade ancestral, desprendendo o país das amarras do racismo, da
misoginia, dos preconceitos, da ignorância, do sexismo, etc.
O multiculturalismo está intrinsecamente associado ao processo histórico de formação
do Brasil. É preciso redescobrir a identidade brasileira, uma vez que não se pode voltar ao
local de origem, ou tapar completamente as rupturas sociais que foram deixadas pela invasão
colonial.
[...] a literatura indígena funda uma voz-práxis autoral que, por meio de um relato
autobiográfico, testemunhal e mnemônico dos oprimidos por si mesmos, das vítimas
por si mesmas, das minorias por si mesmas, permite a politização direta, radical,
inclusiva e participativa de nossa sociedade, de suas instituições, de seus sujeitos
sociopolíticos, de suas relações, de suas práticas e de seus valores, refundando,
reconstruindo a história de nossa sociedade a partir da participação dessas vítimas
silenciadas, invisibilizadas e privatizadas por nossa história oficial (DANNER,
DORRICO E DANNER, 2018, p. 317)
Ensinar literatura indígena nas escolas significa reescrever a história do país, com um
novo olhar desprendido da narrativa eurocêntrica presente em vários textos sobre o
“descobrimento” do Brasil. É por meio dessa voz-práxis autoral que podemos reconstruir a
história do país com base na formação original, sem excluir as vítimas que são silenciadas até
hoje, como é o caso dos indígenas. Não existe a necessidade de que os teóricos falem no lugar
dos indígenas, eles podem falar por si mesmos hoje, e a literatura é uma prova disso. A
literatura indígena é uma forma de combater esse silenciamento, que continua presente apesar
das lutas dos povos indígenas para serem ouvidos. Sobre esse silenciamento Aílton Krenak
(2018, p. 26) nos explica que:
86
Para o governo, para todos os governos que se sucederam na história deste país, o
problema está resolvido: ignora-se o direito à existência dos índios. A própria
imagem que nos é passada na escola conta-nos a seguinte história: “Quando Cabral
chegou, o Brasil era habitado por índios”. Aí fecha rápido a cortina e pronto: “não
há mais índios!”. Acontece que há. O Estado prefere continuar ignorando o direito à
existência de índios no Brasil, mas eles começam a se fazer representar junto às
instituições
Ainda que a cultura indígena tenha se reconstruído pela união de suas experiências
primitivas com a cultura dominante, tanto para os povos indígenas quanto para os ocidentais,
há uma grande dificuldade de assumirem que eles são diferentes mas estão relacionados, e
acima de tudo, compreender suas diferenças, pois é isso que forma a identidade de um povo.
O indígena contemporâneo busca, atualmente, assumir uma postura de autoafirmação e
reconhecimento da sua cultura, sua história e seus costumes, veiculando essas informações em
diferentes mídias, também por meio da literatura.
Para Canclini (2010), há um grande esforço da população indígena para que exista um
diálogo intercultural entre os povos indígenas e não indígenas. Nesse sentido, é importante
apresentar aos docentes obras literárias que identifiquem e reconhecem os indígenas fora dos
padrões estereotipados apresentados até hoje. Uma alternativa entendida por nós, é contar a
história da colonização na visão dos próprios indígenas, resgatando os poucos fatos que temos
em registro. Além da utilização das ricas histórias orais indígenas.
Nesse sentido, vemos que a educação escolar tem uma importante função nesse
processo de recontar a história na visão dos povos indígenas. Essa é uma prática que vem
sendo assumida pelos povos indígenas.
O Serviço de Proteção ao Índio e a Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILT,
teve uma grande participação nesse processo de recontar a história a partir da visão indígena.
Com o advento da Constituição Cidadã de 1988, a escola indígena foi regulamentada.
Segundo Bergamaschi e Gomes (2012, p. 03):
Essa Escola Indígena que funciona no seio das sociedades ameríndias interage com
modos de vida próprios e com a educação da tradição de cada povo. Mas também
estão implementados em seu currículo estudos que visam compreender os modos de
vida, línguas e ciências não-indígenas e assim, apropriados desses conhecimentos,
estabelecer um diálogo mais equitativo com essas sociedades. Nos parece que esse é
um exemplo bastante concreto de educação intercultural e de relações interculturais,
que prevê também aprender na interação com culturas diferentes.
Entendemos, que se os povos indígenas procuram investir esforços para que o diálogo
intercultural aconteça. É é necessário que a escola invista nesse processo também, fazendo um
89
esforço para conhecer esses povos de maneira eficaz, com informações que superem a
invisibilidade histórica que os povos indígenas sempre enfrentaram. Apesar das tentativas de
extermínio, da colonização, da catequese, da exploração, da tentativa de incorporar os
indígenas à identidade nacional, esses povos se mantiveram aqui, firmes, ainda que
escondidos e silenciados. O indígena contemporâneo tem o papel de se colocar firme perante
a sociedade atual, em movimentos políticos de afirmação étnica, respondendo para o período
histórico, que investiu no seu total a pagamento social, que continua aqui e sua cultura
permanece viva.
Mas, para que a temática indígena seja trabalhada de maneira eficaz nas escolas é
necessário olhar com atenção para o cotidiano escolar, para compreender o que pode ser feito
a fim de que a legislação que defende o ensino de literatura e história indígena nas escolas
seja cumprida de maneira eficaz e sem os estereótipos. Mas a realidade e a vivência dos
alunos devem ser respeitadas, uma vez que elas variam de acordo com região onde as escolas
estão situadas.
É necessário pensar a diversidade como sendo constituinte da identidade do povo
brasileiro, entendendo as diferenças não como forma de separar e criar intolerância entre os
povos, mas como um meio de proporcionar a compreensão de quem nós somos enquanto
povo, enquanto nação formada por muitas identidades, vivas e que se comunicam, mas que
não são homogêneas.
Nesse cenário, a escola atua como um espaço onde acontecem várias formas de
manifestações de culturas de diferentes grupos, onde se apresentam normas, tradições,
valores, sinais de rebeldia e resistência.
Vemos que as relações étnicas no Brasil esbarram com relações de poder existentes na
sociedade. Sobre isso, Candau (2008, p. 23) nos afirma que “as relações culturais não são
relações idílicas, não são relações românticas, elas estão construídas na história e, portanto,
estão atravessadas por questões de poder, por relações fortemente hierarquizadas, marcadas
pelo preconceito e discriminação de determinado grupo”. Assim, entender que as marcas das
diferenças foram construídas, principalmente, a partir da dominação, hegemonia,
silenciamento e extermínio dos povos que aqui habitavam antes da colonização, os indígenas,
90
é o primeiro passo para olhar suas culturas fora da visão estereotipada construída da
colonização à atualidade.
Sob a perspectiva do ensino, entendemos ser necessário trabalhar também, associado
ao contexto da literatura e todos os aspectos levantados até agora, o significado de identidade,
quando se fala da cultura e história indígenas. Pois, segundo Kathryn Woodward (2014), falar
de identidade é também falar de diferença e da relação de dependência existente entre elas,
pois percebemos nossa identidade a partir do momento que nossas diferenças são entendidas.
Nesse sentido, afirmar que existe uma sociedade totalmente homogênea, na qual todos
compartilham a mesma identidade, não faz sentido.
Para que as diferenças sejam compreendidas, com relação aos processos formativos
que são vivenciados na escola, chamamos a atenção para os trabalhos que procuram uma
compreensão identitária por meio de práticas pedagógicas. Segundo Hall (2015) a identidade
se torna uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam. Ela é definida historicamente e não biologicamente.
Essa diversidade percebida na convivência entre crianças, jovens e adultos que se
relacionam socialmente na escola é um ponto desafiador para os docentes no processo de
ensino e aprendizagem, pois se deve pensar uma prática relacionada ao currículo impresso,
trabalhar de fato as diferenças de identidade, incluídas no planejamento e na prática docente,
de acordo com a realidade de cada grupo social e as várias culturas que estão contidas nesses
grupos.
Pensando nisso, cada dia mais o termo “pluralidade cultural” é utilizado em feiras,
congressos e demais locais educacionais, no sentido de orientar os sujeitos componentes do
processo de ensino para um viés mais amplo de práticas educacionais relacionadas à
diversidade étnica da sociedade brasileira.
Há que se entender a pluralidade étnica, cultural e social no ambiente educativo como
uma forma de riqueza, buscando atividades pedagógicas que tragam as muitas contribuições
dos vários povos formadores da sociedade nacional. Neste sentido, a literatura indígena pode
contribuir sobremaneira nesse intuito.
91
Entendemos que a LDB está correta em colocar que os conteúdos devem ser
ministrados no sentido de apresentar a contribuição dos indígenas na literatura nacional, no
entanto, o Brasil possui uma categoria de literatura que é a Literatura Indígena. Isto é, os
indígenas têm o papel de escritores e não somente de participantes secundários da história, a
qual está (ou, pelo menos, deveria estar) associada à literatura nacional do Brasil.
Com o objetivo de contemplar a Literatura Indígena nas escolas do país, o governo
promulgou o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) Indígena. A seleção das obras
sobre a temática indígenas foi realizada por meio de uma reunião de editores, para que
escolhessem as obras que seriam trabalhadas no contexto de valorização da diversidade
sociocultural dos povos indígenas brasileiros, como também as suas diversas e amplas
contribuições no processo histórico de formação da sociedade nacional. (BRASIL, 2014)
Apesar de todo esse aparato legal voltado para a valorização da cultura indígena e do
reconhecimento do multiculturalismo nacional, ainda há muito a se percorrer, no que diz
respeito à aplicação prática, para que essas leis sejam verdadeiramente efetivadas. O índio é
visto pelo governo atual como um “resíduo arqueológico”, que atrapalha a exploração de
terras, dentre outros fatores. Assim como nos explica Berta Ribeiro (1983, p. 14), em sua fala
tão contemporânea, apesar de ter sido escrita há muitos anos:
Ocorre que a legislação não é cumprida e a tutela Estatal é mal exercida. Na prática,
o órgão oficial de intervenção protecionista atende aos interesses dos que cobiçam as
terras indígenas e a exploração de uma mão de obra barata e desqualificada,
desprezando a evidência de que, no seu contexto, ela é altamente capacitada. Na
medida em que poderosos interesses patrimonialistas são contrariados, o índio passa
a ser visto como um intruso em sua própria terra, um estorvo “à margem da
civilização”, e “resíduo arqueológico”, inteiramente inútil. No entanto, a história nos
ensina que a civilização ocidental e, particularmente, a cultura brasileira herdaram
do índio uma massa inesgotável de conhecimentos. Muito ainda temos a aprender
com o índio.
Vemos, ainda, que a leitura dos mais variados tipos de textos é condição básica de
aprendizado e proporciona um conhecimento da pluralidade cultural existente no país. Isso
implica em promover a igualdade e evitar que existam prejulgamentos com base em opiniões
estereotipadas da cultura do “outro” pelo fato de que ela é diferente da nossa.
A diferença entre as culturas pode representar uma barreira presente nas escolas
devido à falta de conhecimento dos professores para trabalhar a temática indígena no
ambiente escolar. É comum que os professores ainda se refiram aos índios no passado, como
se fossem “um resíduo arqueológico” que não existe mais e que não contribuem para com a
cultura do país, em um eterno discurso de desaparecimento dos povos indígenas. Entretanto, o
que se observa hoje é um aumento da população indígena, como nos descreve a autora
indígena Graça Graúna (2012, p. 268) ao reafirmar a existência indígena, mesmo que estejam
morando em centros urbanos:
Embora o censo indígena não seja considerado oficialmente, somos mais de 315.180
indivíduos sobrevivendo nos grandes centros urbanos. Viver na cidade grande não
nos faz menos indígenas; mas a nossa condição de indígenas urbanos a Funai não vê
e uma das provas da sua cegueira é não reconhecer a nossa existência nos Estados do
Rio Grande do Norte (com 394 indígenas autodeclarados), Piauí (com 314 indígenas
autodeclarados) e no Distrito Federal (não informado). Nós existimos; só não
enxerga mesmo quem não quer ver. Para a Funai, os indígenas urbanos sequer estão
inseridos no quadro de indígenas aptos a serem considerados indivíduos
razoavelmente integrados à sociedade.
Nesse contexto, o indígena não é reconhecido por não estar em seu território, enquanto
o governo atua de maneira significativa para retirar as terras indígenas e utilizar para
exploração na pecuária, na mineração e no agropecuário. O governo também não reconhece a
cultura desses povos e tampouco valoriza o seu território.
Segundo Thiél (2013), são muitos os fatores que fazem com que a literatura indígena
não seja conhecida nas escolas brasileiras. Ainda que a produção de obras indígenas tenha
aumentado, inclusive ganhando prêmios nas produções literárias, as obras brasileiras ainda
estão em número bem reduzido se comparadas às dos norte-americanos. Mesmo que existam
publicações indígenas de vários gêneros literários em circulação, como contos, poemas,
94
crônicas, dentre outros gêneros, existem poucos leitores que se dedicam à leitura dessas obras
sem buscar nelas apenas o elemento exótico que faz com que a identidade indígena seja um
objeto apenas de curiosidade.
Assim, entendemos que as noções de pluralidade cultural, identidade, diversidade e
diferença precisam estar presentes no discurso das salas de aula, apresentando-se em como
trabalhar as diferenças de diversas formas, respeitando o princípio da alteridade, compondo
orientações curriculares necessárias para cumprir o trabalho pedagógico das escolas. Essas
ações são resultado das demandas sociais que chegaram no cenário escolar, no que diz
respeito à formação de sujeitos conscientes do seu papel na sociedade e fomentando atitudes
de respeito perante o “outro”. Entretanto, é necessário fazer com que esse discurso se efetive
de forma prática na vida desses sujeitos, tanto nas instituições educacionais como em
sociedade.
3.1 Metodologia
Os poemas tratados no livro “Ay Kakyri Tama (Eu moro na cidade)” retratam as
tensões vividas entre os universos indígena e o ocidental. São relatos orais banhados na
história do povo Kambeba, história de lutas, vitórias, derrotas, alegrias, tristezas, de rituais e
96
Esse povo tinha a tradição de achatar as cabeças das crianças, por isso receberam a
denominação de “Kambeba”, que significa cabeça chata. Esse também foi um meio que eles
encontraram para serem diferenciados dos índios antropófagos, driblando a escravidão e o
extermínio.
Os Kambeba são marcados por uma história de lutas, alegrias, sangue, tristezas,
mudanças e travessias. Esconderam-se nas matas para fugir das guerras, epidemias e demais
problemáticas enfrentadas no período colonial. Uma das alternativas encontradas pelo povo
Omágua/Kambeba foi abandonar o Brasil e fugir em direção ao Ucaiali, no Peru, escapando
assim da perseguição dos colonos (RIBEIRO, 1983).
Os Kambeba, assim como outros povos indígenas, representam a resistência de uma
etnia que poderia ter sucumbido no tempo, como aconteceu com tantos outros povos, mas se
mantiveram firmes entre lutas e fugas, mostrando-se como um povo resistente às adversidades
impostas a eles. Os Omágua/Kambeba mantiveram-se vivos e até hoje tentam reafirmar toda a
sua cultura ancestral, fortificando a sua identidade Kambeba na atualidade. Isso pode ser feito
de várias formas, entendemos que a poesia é uma delas.
Os Kambeba são um exemplo de resistência, pois algumas etnias foram
completamente dizimadas do globo terrestre, mas algumas tiveram que se esconder nas matas
fechadas para sobreviver. Sobre isso Maciel (2013, p. 15) nos explica que:
Em sua memória coletiva os Cambeba guardam ainda outras respostas dadas aos
brancos. Relatam que durante parte do século XX se alguém parasse no porto de
suas aldeias e perguntasse se ali tinha índios, a ordem era dizer que não. Somente na
década de 1980, liderados pela família de Valdomiro Cruz, os Cambeba
reassumiram sua identidade étnica no médio Solimões. De lá para cá, fizeram novas
alianças políticas, demarcaram parte de seus territórios e reinventaram vários
99
É por isso que entendemos que os Kambeba são um símbolo de resistência no cenário
de reafirmação da cultura indígena contemporânea. Infelizmente, muitas outras etnias não
tiveram essa mesma sorte de conseguir sobreviver em meio ao caos que se formou no período
da invasão colonial. Mas esse processo de sobrevivência também levou parte de suas
tradições ancestrais e os obrigou a adaptarem-se a novos ambientes e situações sociais.
Um exemplo de etnia que não existe mais por conta do massacre ocorrido no período
colonial são os Kayapó, que viviam às margens do Rio Araguaia em grandes populações até a
invasão dos europeus, mas que no ano de 1958 havia apenas uma sobrevivente para contar a
história desse povo. Sobre isso, Berta Ribeiro (1983, p. 29) nos explica que:
Outro exemplo do Brasil é dado por Dobyns no caso dos índios Kayapó das margens
do rio Araguaia. Os padres dominicanos se estabeleceram na região em 1903 para
dirimir os conflitos entre esses índios e seringueiros que penetram em seu território.
Anos mais tarde, os dominicanos estimaram a população Kayapó em 6 a 8 mil
indivíduos. Em 1918 estavam reduzidos a 500 índios e, em 1929, a apenas 27, num
declínio de 222 a 1, que os levou à extinção. Em 1958, havia uma única
sobrevivente.
Além dessa, muitas outras etnias desapareceram nesse período. Para fugir desse
extermínio muitos outros povos se esconderam, assim como os Kambeba. Isso para fugir da
escravidão e também para se protegerem das doenças transmitidas pelos europeus, que
acometia os indivíduos do continente americano e os exterminava de forma rápida, uma vez
que os indígenas não tinham nenhuma defesa contra tais enfermidades.
Segundo Porro (1996), os Omágua/Kambeba organizaram-se em dois grandes grupos,
os Omágua/Yetê ou Omáguas verdadeiros, que ficavam sobrevivendo no Alto Napo. Esse
último território pertence, hoje, ao Equador e ao grupo indígena que é denominado de La
Gran Omágua, ou Omágua das Ilhas. A extensão deste território possuía em média 700 km.
Sobre a extensão de seus domínios, em meados do século XVII, o território dos
100
Omágua/Kambeba havia se estendido até a parte baixa de Jutaí. Eles também ocupavam as
margens do rio Solimões por uma área correspondente a 200 km, entre Tefé e Coari.
As referências com relação à descendência linguística dos Omágua/Kambeba são de
que eles pertencem ao tronco dos Tupinambá, povos provenientes do litoral brasileiro. Essa
descendência teve apoio sobretudo na base linguística, indicando uma semelhança com o
Tupi-Guarani, uma subfamília do Tupi.
As fontes estudadas que comprovam essa aproximação podem ser verificadas nos
registros do Padre Francisco de Figueroa (1661, apud RODRIGUEIRO, 2007, p. 47), ao
perceber a diversidade linguística entre os grupos indígenas, faz uma comparação entre as
diferentes etnias, dizendo que “de los cocama se habla em los omaguas y em los parianas y
yestes del Rio de Quito, y aun em Santiago la hablan los xibitaonas”. Nesse trecho fica clara a
percepção do padre sobre as semelhanças entre as línguas faladas entre as etnias Cocama,
Omágua/Kambeba e Pariana, que habitavam as margens do rio de Quito.
Desse modo, os estudos linguísticos conferiram ao povo Omágua/Kambeba como
sendo representantes do Tupi-Guarani, que é a expansão do Tupi, uma vez que foram povos
com grande mobilidade espacial e capacidade de readaptação. Eles se tornaram mais flexíveis
com relação à língua e à cultura. Betty Meggers (1987), sobre a análise do tronco linguístico
Tupi, destaca que essa família possui 6 subfamílias, 20 línguas e uma considerável quantidade
de dialetos não mencionados. Ela nos explica que os registros comprovam que o surgimento
da subfamília Tupi-Guarani se deu no Alto Amazonas, região habitada pelos
Omágua/Kambeba.
E também na obra de Pablo Maroni, temos o registro de que os Omágua/Kambeba são
de origem dos Tupinambás do Brasil, o autor explica que eles usavam a língua Omágua, que
era denominada de língua geral, pois era utilizada pela maior parte dos grupos indígenas do
Brasil.
Esta lengua Omagua tengo por certo que, según su primera origen, no es outra que la
de los Tupinambás que vinieron del Brasil, donde cerca de la Baja (de todos os
Santos) hay aun muchos dellos; y esta es la lengua que los portugueses del pará y
Brasil llaman lengua general, y em la realidad no hay outra que tanto se entienda
com esta, desde Napo, Marañon, para arriba, a más de los Omagua, la hablan
101
Por conta desses e de outros registros históricos feitos pelos padres e autoridades da
época é que entendemos que os Omágua/Kambeba possuem sua origem linguística no Tupi,
pertencente à subfamília Tupi-Guarani. Essa descendência e semelhança linguística entre os
povos localizados tanto no litoral quanto na parte amazônica do país deixa claro a mobilidade
que esse povo possuía e a sua facilidade de adaptação a ambientes e situações diferentes.
Os Omágua/Kambeba possuem excelentes trabalhos realizados também nas produções
em cerâmica, no estilo Napo-Caimito que estão localizados em uma das últimas fases e
vinculados aos antepassados dos Kambeba. Esse estilo apareceu entre os anos 1320 a 1375
d.C., caracterizado como uma cerâmica complexa com pinturas negras e vermelhas sobre o
branco, ou pinturas brancas sobre vermelho. (RODRIGUEIRO, 2007)
Segundo Rodrigueiro (2007) os movimento migratório dos povos Omágua/Kambeba,
provenientes da região amazônica central, conduziu-os a um deslocamento em direção aos
rios Ucauali e Napo, locais onde aconteceram as distribuições das produções em cerâmica,
provenientes dessas migrações, o que as configura como herança desses povos, tanto os povos
que habitavam a região que hoje é o Brasil quanto os que foram em direção à região que
compreende hoje o Peru.
Em se tratando da formação sócio-política desse povo, por serem povos localizados na
várzea amazônica e no litoral, os Kambeba derivam de um tronco indígena com ampla
diversidade nas formas do governo e com funções específicas dentro de cada grupo étnico.
Pois foram desenvolvendo essas organizações com base nas necessidades que enfrentaram no
período colonial, de acordo com o contexto em que cada grupo foi inserido.
Antônio Porro (1996) nos explica que existe uma grande proximidade dos povos
Omágua/Kambeba com os Tupi-Cocama, ambos da região da várzea. Esses grupos possuíam
unidades políticas com a presença de poder centralizado como uma maneira de sustentação
social, com isso havia uma relação de obediência dos sujeitos para com os líderes do grupo
indígena, de acordo com as evidências etnográficas e os relatos dos missionários no período
colonial.
102
Com isso, ao fazer essa caracterização social dos Kambeba, evidenciamos que os
fatores econômicos, as epidemias, as variações demográficas que ocorreram por conta da
guerra, tornaram as ações sociais mais flexíveis dentro do grupo indígena, que se difere de
outros grupos indígenas que não tinham essa organização social.
Sobre o contexto cultural dos Omágua/Kambeba, nos relatos encontrados, há um
grande destaque para a refinada produção dos objetos em cerâmica, os adornos que usavam
para enfeitarem-se, confeccionados em ouro e prata, além disso eles usavam indumentárias
em algodão com pinturas exóticas. É o que nos explica Acuña (1639, p. 72-75, apud
RODRIGUEIRO, 2007, p. 74):
[...] Andan todos con decencia vestidos, así hombres como mujeres, las cuales del
mucho algodón que cultivan [...] hacen panos muy vistosos, no solo tejidos de
diversos colores, sino pintados com estos mismos tan sutilmente, que apenas se
sistingue lo uno de lo outro [...] los Omáguas, que dicen son gente riquíssima de oro,
que traen em grande planchas pendientes de las orejas y narices.
Esses padrões apontados nesse grupo são definidos em momentos anteriores à invasão
europeia, indicam o desenvolvimento tecnológico e cultural desse povo. Eles faziam troca e
realizavam o comércio de algumas mercadorias. Dentre as principais mercadorias
comercializadas pelos Omágua/Kambeba podemos destacar: sal, canoas, raladores de
mandioca, cerâmicas, telas de algodão, ouro e resina. As peças de algodão eram fabricadas de
maneira manual pelas mulheres dos grupos indígenas, elas produziam a quantidade necessária
para o grupo e trocavam as sobras com os grupos vizinhos. Com isso, confirmamos o cultivo
de algodão e a influência dos povos dos Andes para com os povos da Várzea, particularmente
os Omágua/Kambeba, pois eles faziam roupas de algodão, que foram bastante usadas pelos
povos andinos (MEGGERS, 1987).
Sobre isso, a autora Márcia Vieira da Silva (2012), autodeclarada como pertencente da
etnia Omágua/Kambeba, também nos explica que seu povo se diferenciava das demais etnias
por conta disso, pois andavam vestidos e confeccionavam suas próprias roupas, além do mais
plantavam grande quantidade de algodão para poderem fabricar suas vestimentas.
103
4.2 Análise do livro “Ay Kakyri Tama (Eu moro na cidade)” pela via dos Estudos
Culturais
Acreditamos que para adentrar o misterioso mundo das formas poéticas, assim como
nos diz Segismundo Spina (2002), temos que nos libertar das amarras do mundo em que
vivemos. Entretanto, adentrar ao mundo da poesia indígena significa resgatar as raízes
ancestrais da nossa história, representa entrar em contato com nosso mundo primeiro. A
poética indígena nos apresenta a sua originalidade e sua força, que não deixam nada a desejar
se comparadas aos trabalhos literários de grandes cânones da literatura europeia. Entretanto, a
maioria dos textos indígenas está depositado em um local de silenciamento, desperdiçando
essa riqueza poética que aflora boa parte da nossa cultura.
Figura 3: Capa do livro “Ay Kakyri Tama (Eu Moro na Cidade) ( KAMBEBA, 2013)
104
Mas esse silenciamento das obras indígenas só continua até que o sujeito tenha acesso
à obra, pois, agora os indígenas tiveram a oportunidade de dominar a leitura e a escrita em
línguas ocidentais, em uma tentativa de reafirmar e propagar a sua cultura. Contribuindo para
a formação de novas concepções sobre o período colonial.
Nosso primeiro contato com a poesia indígena se deu por meio da obra de Márcia
Kambeba, como sugestão de pesquisa do meu orientador Walace Rodrigues; depois disso,
comecei a pesquisar mais autores, não só aqueles que são conhecidos no meio literário
indígena, mas também aqueles que ainda estão começando a jornada da escrita. Com isso,
percebemos o quanto esses autores têm para nos ensinar, o quanto de vida e poesia há em seus
textos. Eles são fortes, originais e cada um com sua origem própria, com as peculiaridades do
seu povo, levando em consideração que existem muitos povos indígenas no Brasil atual.
105
[...] podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto,
assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono,
talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator
indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua
humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no
inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas
conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou
escolar.
Ainda nesse mesmo sentido, Zilberman (2012) defende que as discussões nas escolas
devem abordar uma literatura nacional robusta, com uma qualidade artística reconhecida pelo
público local, esse é o mecanismo mais seguro de que possa acontecer a tão sonhada
autonomia econômica, ideológica e política.
Com a inclusão do ensino e história indígenas no currículo escolar, a literatura tem um
importante papel de desenvolver um aluno mais crítico, mais humano, menos preconceituoso,
e com a mentalidade mais aberta para o Outro, descobrindo uma nova cultura, a cultura
indígena, por meio dos textos literários dos próprios indígenas, pois existe, atualmente,
material suficiente para esse trabalho. A literatura indígena se integra ao programa de ensino
de história e cultura indígenas, proporcionando um maior aprendizado nessa área, por meio da
linguagem literária.
Segundo Zilberman (2012) “a literatura se produz em nome dela, porque lhe compete
a emancipação da humanidade de suas amarras naturais, religiosas e sociais”, ou seja, a
literatura tem o poder de reconstruir conceitos predeterminados na sociedade, pelos mais
diversos fatores, amarrados a fatores sociais que podem estar relacionados a uma história de
preconceito, subalternidade e exploração, como é o caso dos indígenas.
Nesse sentido, dar espaço para manifestações literárias indígenas significa colocar em
evidência parte de nossa cultura ancestral, que está associada à existência do povo brasileiro,
compreendendo e resgatando valores, crenças e costumes que foram esquecidos com a
invasão colonial dos europeus no país.
A autora indígena Márcia Kambeba (figura 4) marca o seu livro com fortes traços de
oralidade e ancestralidade cultural e étnica, colocando em evidência toda a cultura do seu
povo. A todo momento a autora cita rituais, crenças, dentre outros elementos indígenas. Ela
apresenta, ainda, a reconstrução da identidade indígena em seus poemas, quando aborda
termos na língua Tupi em harmonia com a língua ocidental, desse modo faz um convite para
que as pessoas conheçam um pouco da língua indígena, que é uma arma poderosa de
reafirmação da identidade.
Figura 4: Márcia Kambeba, no programa da Fátima Bernardes, divulgando o
seu livro (Fonte: facebook.com.br)
108
O livro é marcado pela história do povo Kambeba, que lutou durante muitos anos para
conseguir sobreviver. Começaremos as análises com o poema intitulado de “Ser Indígena –
Ser Omágua”. O poema possui 3 estrofes. Na primeira estrofe a autora aborda no título a
denominação original da etnia, Omágua, pois Cambeba ou Kambeba é um apelido dado ao
povo pela prática de achatar o crânio, como dito anteriormente, no decorrer do texto
utilizaremos a expressão Omágua/Kambeba para denominar esse povo, entendemos ser a mais
adequada, e é a mesma utilizada pela autora em suas produções. Logo no título, nota-se que a
autora busca reafirmar a existência do povo Omágua/Kambeba. Eis o texto:
SER INDÍGENA – SER OMÁGUA
A escrita da autora perpassada por um corpo que procura inscrever a figura indígena
feminina na poesia. Esse poema é fruto de vários momentos históricos em que a autora passou
em sua vida, ou que conheceu por meio da voz dos ancestrais. A autora coloca em evidência
os momentos sofridos pelo seu povo por meio dos poemas. Ela dá vida ao papel estéril e
consegue transpor sua identidade, a origem do seu povo, resgatando a memória oral dos
Kambeba por meio da literatura. Em uma conversa com o título do poema, “Ser indígena –
Ser Omágua”, podemos entender que o texto abordará sobre o que é ser indígena na visão de
um indígena, e não na visão ocidental, como em grande parte dos livros, com estereótipos
110
é resgatada por meio da memória da própria autora, daquilo que foi aprendido culturalmente.
Em virtude de sua oralidade a memória coletiva sobrevive e se faz presente no poema.
Segundo Graça Graúna (2012, p. 268-269) “Ao longo da história da colonização, os povos
indígenas vivenciaram a impossibilidade de escrever e expor o seu jeito de ser e de viver em
sua própria língua. Diante disso, podemos dizer que não é à toa o fato de que a memória oral
continuou sendo o único caminho para [o ameríndio] guardar, pelo menos, parte da história.”
Os Kambeba viveram boa parte da história escondidos, com medo. Na segunda estrofe
fica claro que eles não querem mais viver no anonimato e isso se comprova com o “grito” da
autora em afirmar que “Sou Kambeba e existo sim”. Ela reafirma a sua existência indígena,
que deve ser valorizada e respeitada, dentro da sua cultura, das suas crenças, buscando a sua
inscrição enquanto sujeito, reconhecendo a sua identidade indígena.
A autora reafirma a identidade indígena quando fala que o povo Kambeba vive no
toque dos tambores, na força dos arcos, no sangue derramado, na dança.... essas
características fazem parte da cultura e da identidade indígenas que foram silenciadas durante
muito tempo, mas, que, apesar de tudo, sobrevivem até hoje. A dança, a mata, o arco e a
flecha, tudo representa poesia para a poeta indígena e cada relação com a sua cultura ancestral
representa a sua identidade. Reviver o passado é uma forma de reafirmar a identidade
indígena, segundo Bhabha (1998, p. 21) “O reconhecimento que a tradição outorga e uma
forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição”, desse modo, a tradição está associada a
uma parte da identidade, mas que foi reconstruída, não representa uma tradição original ou
recebida, mas uma nova identidade que se formou com o passar dos anos, pois as identidade
de diferença são frequentemente construídas. Sobre essa formação de novas identidades, Hall
(2015) também nos explica que o sujeito, que era tido como tendo uma identidade estável e
unificada, está se tornando fragmentado, ele é composto de várias identidades, e isso é o que
acontece também com os povos indígenas, pois
Também na segunda estrofe, a autora fala das guerras que o seu povo enfrentou no
decorrer da história e reafirma a sua territorialidade, quando diz “essa terra que é nossa”.
Reafirmar o território indígena é uma reafirmação da identidade. O indígena sempre lutou
pelo território. E atualmente existe um grande esforço em explorar terras indígenas sem
112
discriminação. Esse é um desafio para o indígena, recuperar seu território e lutar pelo que
ainda existe dele, para que não sejam desocupadas com o objetivo de exploração comercial.
Os indígenas mantêm a tradição dos ancestrais de uma estreita relação com o mundo natural e
sobrenatural, e isso está representado pelo trecho do poema “e na dança dos tempos pajés e
curacas mantêm a palavra dos espíritos da mata, refúgio e morada do povo cabeça-chata”.
Mais uma vez fica evidente que os Omágua/Kambeba encontraram refúgio na mata, para se
proteger do homem branco.
Ao falar que “Foi a partir de uma gota d’água que o sopro da vida gerou o povo
Omágua”, a autora relembra o mito da origem do povo Omágua/Kambeba, que se formou e
cresceu às margens do rio, no estado do Amazonas. E quando ela relembra o mito, ela o
reativa criativamente a sua história ancestral.
Continuando a segunda estrofe, a autora volta a reafirmar a identidade do seu povo,
novamente falando em nome da coletividade, revivendo a sua memória oral coletiva e
individual, citando elementos da sua cultura ancestral que se mantém viva até hoje e que foi
transmitida principalmente pela oralidade, por meio de seus ancestrais, mas que pode também
ser resgatada por meio da escrita, com o uso da literatura. Sobre essas relações com as
experiência passadas, Zilberman (2012, p. 41) nos explica que o “horizonte de expectativas da
literatura distingue-se do horizonte de expectativas da vida prática histórica, porque não só
conserva experiências passadas, mas também antecipa a possibilidade irrealizada, alarga o
campo limitado do comportamento social a novos desejos, aspirações e objetivos”, dessa
forma ocorrem novas experiências futuras e novas representações de identidade.
Na terceira e última estrofe, a autora suplica para que o grito do seu povo chegue para
as outras pessoas, clamando a Tupã (um deus que, na cultura indígena Tupi, é considerado o
senhor do relâmpago do raio e do trovão, segundo a tradição indígena foi ele também o
criador dos mares, do mundo animal, das matas, do céu e da terra). É o deus supremo da
cultura indígena Tupi, e, seguindo a mitologia indígena, foi por meio dele que os pajés
adquiriram conhecimento sobre plantas e ervas medicinais, sobre a caça e pesca.
A autora revive elementos da sua cultura, para que todos conheçam e respeitem os
Omágua/Kambeba. Levando em consideração que o subalterno não tem voz, segundo Spivak
(2018), a autora se vê obrigada a gritar para ser ouvida, mas na incerteza de que o seu grito
113
será realmente ouvido em outras culturas. Por meio da palavra, esse grito pode ecoar e se
manter vivo por muitas gerações, assim como a memória oral dos Omágua/Kambeba, que se
manteve viva no decorrer do tempo.
Os poemas de Márcia Kambeba são carregados de memórias orais e representam não
apenas a autora, mas todo o seu povo. E isso também pode ser verificado no segundo poema
que escolhemos para a análise, intitulado de “Território Ancestral”. Esse poema representa
toda a luta do indígena contemporâneo na batalha social e política pelo seu território, pois não
existe indígena sem território. Vejamos:
TERRITÓRIO ANCESTRAL
Tradução:
O que fazer com o homem na vida,
Que fere, que mata,
Que faz o que quer.
mas que se faz tão presente que acreditamos também ter presenciado tais momentos relatados
no texto poético.
A começar pelo título, esse poema nos remete à memória do povo Omágua/Kambeba,
quando a autora usa o termo “ancestral”. É um poema que fala de tudo o que foi transmitido
de geração em geração por meio da oralidade e significa também uma conexão com as
batalhas enfrentadas pela população indígena atualmente, que é a luta pelo território.
A primeira estrofe do poema é escrita na língua materna da autora, o Tupi. Desse
modo, ela nos remete a sua língua primeira, que é uma manifestação fundamental da
identidade do seu povo, escrever em língua indígena, ainda que associada a uma língua
ocidental, significa também um movimento de resistência, para que a língua indígena não caia
no esquecimento e a sociedade ocidental conheça um pouco dessa língua.
Língua, identidade e cultura estão intimamente associados, por isso é tão importante
demonstrar a língua indígena nos textos, para demonstrar essa interculturalidade existente no
país. Muitas vezes esquecemos que somos um país que fala várias línguas. Mas as
menosprezamos e as inferiorizamos em relação à língua portuguesa. Trazer o Tupi para o
texto poético é reafirmar que poesia pode ser feita em qualquer idioma.
A segunda estrofe é a tradução da primeira, onde a autora fala do homem não
indígena, que é capaz de matar e ferir para conseguir o que quer. Nessa estrofe é possível
identificar traços da oralidade no sentido de externar todas as atrocidades pelas quais o povo
Kambeba passou por culpa do “homem branco”. Podemos sentir o sofrimento desse povo que
ficou registrado na memória oral da autora. A autora utiliza-se de seu eu lírico para reviver a
história de seu povo. Nessa estrofe podemos entender que as memórias estão vivas para
carregar as marcas das batalhas em defesa de território e dos direitos indígenas, que elas não
podem ser esquecidas nesse movimento de reafirmação da cultura indígena. Essa estrofe
representa a incompreensão indígena diante da maldade do homem ocidental, visto que eles
manipulam, brigam, matam e são capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que querem,
sempre em busca de riquezas materiais. Nesse sentido, percebemos as diferenças de
concepções de território para indígenas e brancos.
Logo na terceira estrofe a autora fala do “encontro” entre “índio” e “branco”, que eles
não esquecem tal encontro. Nessa estrofe podemos perceber a eterna batalha do índio
116
defendendo seu território e a sua cultura. A autora reforça que “não se pode esquecer” essa
história, ela deve ser lembrada e revivida por meio da literatura e outras artes.
A autora, na quarta estrofe, fala da inferioridade de armamento dos índios em relação
aos europeus, que tinham o domínio de armas de fogo e se protegiam com muros de alvenaria,
enquanto os índios dispunham de arco e flecha, com um poder de alcance e destruição
inferiores. Segundo Ribeiro (1983, p.111), “Era uma luta desigual de homens nus, lutando
com arcos e flechas e com clavas, contra homens protegidos por armaduras de metal ou
roupas de couro e entrincheirados atrás de fortalezas de pedra e cal”. Os europeus e os
brancos em geral estavam em superioridade tecnológica e traziam com eles animais de carga,
grandes embarcações e construíam sólidas edificações, enquanto os índios viviam em cabanas
feitas de palha e madeira, sem muita proteção contra os invasores. Mesmo assim, lutaram
bravamente para proteger o seu povo e o seu território. E mesmo não conseguindo a vitória
em muitas batalhas, sobreviveram e lutam até hoje, também pelos mesmos motivos. No
entanto, hoje a guerra não é mais entre armas de fogo e arco e flecha, mas é uma guerra
também política, onde os indígenas devem se armar em todos os setores possíveis: social,
político, religioso artístico, em especial a literatura, que tem o poder de alcançar muitas
pessoas.
Ainda nessa estrofe, o eu lírico mostra o índio, que foi obrigado a usar roupas, foi
proibido de usar a língua materna e era considerados povo sem cultura. Foi grande o esforço
dos brancos em destruir toda a cultura indígena, mas ela se manteve resistente até hoje. No
trecho “destruíram o meu chão” podemos entender que os indígenas ficaram perdidos, pois
seu território estava sendo destruído, deixando-os, ao mesmo tempo, sem lugar firme para
levantarem-se. Eles foram obrigados a sobrevier em condições sub-humanas, eram tratados
como animais selvagens, sem conhecimento, sem cultura.
A quinta estrofe mostra a individualidade dos povos como uma herança da do contato
com os brancos. A autora afirma que antes da chegada dos brancos, os índios viviam em
união, faziam “Ajuri” (que significa mutirão), tudo o que se caçava todos comiam e ninguém
passava necessidade, pois todos se ajudavam. Segundo Meggers (1987) os indígenas
produziam a quantidade necessária para o grupo e trocavam as sobras com os grupos vizinhos,
não tinham o objetivo de acumular riquezas, mas apenas de sobreviver.
117
A sexta estrofe fala da opressão que os índios sofreram em suas próprias terras, onde
antes viviam livres, sem preocupações com demarcações ou moradias, o território era dos
povos indígenas e todos vivia nele e dele. Hoje “se vive oprimido”, e os indígenas vivem com
medo da sociedade envolvente, medo de um governo que tenta “civilizá-los” para explorar
seu território, medo de invasões em suas terras, da exploração realizada pelo homem
ocidental. Uma forma que os povos indígenas encontraram de se proteger foi se isolando da
convivência com o branco, pois o indígena “não consegue entender tanto mal”, uma vez que
as experiências de “encontro” entre o índio e o branco sempre resultaram em morte e opressão
dos povos indígenas, que são o lado hipossuficiente desse confronto.
Na sétima estrofe, a autora relembra rituais realizados pelos seus ancestrais, mas que
deixaram de ser realizados por conta das experiências ruins que ocorreram na história. Esse
confronto entre culturas é visto até hoje, tanto nas formas de preconceito do homem branco
com o índio, quanto em batalhas que resultam em mortes de ambos os lados. A passividade e
a ingenuidade indígenas deram lugar ao cenário hostil criado pela maldade ocidental que
assolou esses povos, exercida pelo homem branco.
Para sobreviver, os Omágua/Kambeba tiveram que se esconder na mata virgem para
fugir da escravidão e do extermínio. Esse relato pode ser observado na oitava estrofe, em que
a autora descreve o momento da história que os Kambeba optaram por se esconder para
preservar a existência do seu povo, para assegurar às próximas gerações a cultura milenar
desta etnia. Muitos povos não tiveram essa oportunidade e não conseguiram se proteger do
massacre realizado durante as muitas invasões e perseguições. Segundo Maciel (2013)
durante o período colonial, muitas etnias indígenas foram totalmente dizimadas do globo
terrestre, pois era obrigatório que o povo dominado assumisse a cultura do povo dominante, e
aqueles que não se curvavam para serem escravos domesticados eram mortos.
Ainda na mesma estrofe, podemos entender o silenciamento sofrido pelos indígenas.
Eles foram despidos de tudo o que acreditavam: sua língua, sua cultura, sua identidade, e
tornaram-se povos vagantes e sem território, sem direção, lutando apenas pela sobrevivência.
Eles permaneceram, durante muitos anos, “em silêncio”, sem saber se um dia poderiam
reivindicar tudo o que lhes havia sido tirado. Mantiveram-se em silêncio, escondidos nas
matas, para preservar sua vida e sua cultura.
118
Hoje, o indígena contemporâneo busca a sua reafirmação na sociedade, não quer mais
viver no silenciamento social. Ainda que o indígena more nas cidades, isso não o faz menos
indígena, e também não o faz perder a sua identidade. Isso pode ser observado na nona
estrofe, onde a autora aflora a união dos indígenas em busca de defesa dos seus ideais, já que
os povos indígenas se unem em busca de seus direitos. A autora, que atualmente reside em
Belém, reafirma a sua identidade indígena num grande centro urbano. Muitas pessoas
acreditam que o índio que mora na cidade está renegando a sua cultura, o que é uma
inverdade, pois mesmo morando na cidade o índio pode manter a sua cultura viva, assim
como faz a autora do poema ora analisado, mantendo a chama da sua cultura acessa por meio
das artes literárias.
A última sensação que não podemos deixar de referenciar aqui no poema, está na
conclusão do texto, que é finalizado com a mesma estrofe do início. Em poucas palavras e
com versos com a mesma métrica, a autora consegue expressar a exploração que aconteceu
desde o período colonial, afirmando que o povo invasor “consegue tudo o que quer”.
Continuando as análises dos poemas, faremos agora uma interpretação do poema
“Minha pena vermelha”, também seguindo a mesma linha dos Estudos Culturais para
demonstrar os traços de identidade presentes no texto. Vejamos o poema:
O poema “Minha pena vermelha” é composto por três estrofes, sendo que as duas
primeiras são compostas por seis versos e a última por quatro. Quanto à sonoridade temos um
poema que é marcado por rimas misturadas e três versos por estrofe. As rimas são percebidas
nas palavras encena/morena/pena, amendoado/acuado/afetado, e na última estrofe temos duas
rimas nos dois últimos versos, com as palavras permitir/ferir.
A começar pelo título, podemos identificar que o eu lírico chama a atenção para dois
aspectos principais que definem a identidade indígena, são eles: a pena, que está presente em
muitos utensílios indígenas e é usada também como adorno, pois está nos tornozelos, nos
cocares que enfeitam suas cabeças, etc. A pena é um símbolo muito presente na cultura
indígena e a cor vermelha representa a cor da pele do povo indígena, como também a cor do
urucum que colore a pele deles, a cor de seus utensílios que são feitos de argila. Esse mesmo
vermelho também representa o sangue indígena que foi derramado durante toda a história
nacional, representa a cor da guerra, do indígena que lutou e continua lutando para defender o
seu território e manter a sua cultura viva.
Isso pode ser constatado pela voz do eu lírico, que aparece logo na primeira estrofe
dizendo que “Nas cores das minhas plumas, minha identidade acena”, informando que
apresentar os adornos de penas é uma marca forte da identidade indígena. Em seguida o eu
lírico aborda o caminhar do povo indígena e a pele morena em contraste com as pinturas e os
adereços de penas que levam em seu corpo. Com isso, fica evidente a marca da identidade
indígena que aparece logo na parte física e na forma de fazer arte com os produtos da
natureza.
A segunda estrofe segue reafirmando as características dos indígenas: os olhos negros
característicos de todos eles, no formato de amêndoas, que é marcante quanto se sente ferido,
assim como os animais da floresta, revelando um pouco do que passaram. É uma proteção que
120
o indígena carrega até hoje, pois em seu olhar penetrante que se fecha, por medo do homem
ocidental, também há uma ligação íntima com o ambiente natural que o abriga, seu território.
É feita também uma relação entre os povos indígenas e a natureza, pois eles se sentem como
parte dela, que é o seu território. A relação é aquela de um bicho ferido, acuado e afetado com
o indígena ameaçado a todo tempo. Desse modo, os sujeitos vão construindo suas próprias
identidades cultuais relacionadas ao lugar, o território representa a sobrevivência da
identidade, significa o “local da cultura” de um povo, segundo Homi Bhabha (1998, 147):
território, nos apresenta os preconceitos enfrentados por eles desde a época colonial. Sobre
esse preconceito Canclini (2010) nos explica que a cultura indígena é vista com base em
estereótipos classistas e eurocêntricos, pois privilegiam obras acessíveis somente às classes
altas da sociedade. Enquanto esse posicionamento não for revisto é inútil tentar incluir nos
parâmetros ocidentais produtos da cultura indígenas.
O poema apresenta uma realidade que tortura, ameaça e interroga os indígenas no
cotidiano, na vida em sociedade, por sua cultura não ser compreendida e ser menosprezada.
Por meio do texto temos contato com o “sujeito indígena”, esse contato que deseja levar essa
identidade para o conhecimento da sociedade.
A terceira estrofe continua falando do medo que os indígenas possuem do homem
branco, do preconceito enfrentado durante anos e que dificulta a vida desses povos até hoje.
Eles não se sentem seguros convivendo com o homem branco, pois carregam na memória
todo o sofrimento pelo qual seus ancestrais passaram. A “estranheza” com a qual eles são
olhados, por meio do olhar preconceituoso do homem branco (may-tini), significa a
estranheza com que os indígenas são olhados, como se fossem animais sem identidade ou
cultura. E eles carregam as marcas construídas pelo olhar do colonizador até hoje, pelo fato de
serem considerados preguiçosos.
Esses estereótipos foram transmitidos de geração em geração, nas escolas, nas famílias
e na sociedade, pela ignorância dos sujeitos que perpetuam tais conceitos que não deveriam
existir. Segundo Berta Ribeiro (2013, p. 166), a sociedade branca estava, e está, carregada “de
preconceitos contra a terra e os povos de cor, nada do que ostentasse a marca nacional e
popular tinha valor. A alienação intelectual e artística de seu estrato erudito levou-a a imitar e
a “transplantar ideias e valores alheios”, que se manifestam na arquitetura, nas letras e artes.”
A autora afirma ainda que a cultura indígena continua ativa, embora silenciada. É um
organismo vivo e temos muito a aprender com ela se vencermos o preconceito e o desprezo
que sempre lhe foi depositado.
Marcadamente vemos que conceitos dos Estudos Culturais como identidade, etnia,
estranhamento, poder e lugar social marcam o poema. Parece haver uma luta para reafirmar
sua identidade indígena contra os preconceitos do homem branco, pois, segundo Stuart Hall
(2013, p. 16) “Os Estudos Culturais se fazem na própria tensão entre a discursividade e outras
122
questões que importam, que ‘nunca poderão ser inteiramente abarcadas pela textualidade
crítica”.
Em seguida, analisaremos o poema “Ay Kakuri Tama (Eu Moro na Cidade)”, que é
um poema que mais uma vez carrega toda a voz de uma coletividade no indígena
contemporâneo que, mesmo morando em cidades, não perde a sua identidade.
AY KAKUYRI TAMA
(Eu Moro na Cidade)
Ay kakuyri tama.
Ynua tama verano y tana rytama.
Ruaia manuta tana cultura ymimiua,
Sany may-tini, iapã iapuraxi tanu ritual.
Tradução:
Eu moro na cidade
Esta cidade também é nossa aldeia,
Não apagamos nossa cultura ancestral,
Vem homem branco, vamos dançar nosso ritual.
O poema “Ay kakuyri tama (Eu moro na cidade)”, que dá nome ao livro, é um dos
poemas que mais possui traços de identidade que podem ser explorados com base no contexto
sociocultural da autora. O poema compõe-se de oito estrofes, a primeira estrofe está em língua
Tupi, o que nos remete ao interculturalismo presente nos textos da autora. Pensamos, assim,
que, quando Márcia Kambeba utiliza sua língua indígena para começar o poema, ela nos força
a, pelo menos, tentar ler sua língua. Ela nos força ao contato com uma nova língua, com o
“novo”, como nos disse Gayatri Spivak (1996, p. 4) sobre a abertura aos conhecimentos do
“outro”.
Quanto à sonoridade, o poema apresenta rimas fortes que carregam a marca da
oralidade indígena A forma como a poeta utiliza os fonemas na sua língua também é
percebida nos poemas em língua portuguesa, como nas palavras cresci/esqueci, vivi/Aracy,
Tupi/Guarani, com a predominância de rimas agudas, o que dá uma entonação forte ao
poema, representando também a força do povo indígena, uma marca da oralidade que
ultrapassa os limites do papel e faz pulsar o coração do leitor com cada verso.
O título do poema “Ay kakuyri tama (Eu moro na cidade)” apresenta um indígena que
não mora mais em contato direto com as florestas, pois vive na cidade e que, mesmo assim,
não esquece do seu povo, da sua origem, da sua identidade. E, ainda com todas as
adversidades, procura preservar a memória oral transmitida pelos ancestrais e todos os
ensinamentos advindos dessa tradição. Uma prova disso é que a autora escreve sempre
procurando incluir palavras do vocabulário indígena nos textos. Talvez para apresentar o Tupi
aos leitores. A linguagem é uma forma de manifestação da identidade, pois, segundo Kathryn
124
Woodward (2014, p. 27), “Essas identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos
sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas”.
Na segunda estrofe o eu poético nos diz que mora na cidade (a autora do poema mora
em Belém, capital do estado do Pará), assim como outros indígenas, mas que isso não apagou
sua cultura ancestral, pois mesmo vivendo na cidade não esquece das suas tradições. Existe
um grande preconceito com os indígenas que moram na cidade, pois o homem ocidental
acredita que se o indígena mora na cidade ele deixa de ser indígena. Esse pensamento também
é sustentado por alguns indígenas mais antigos e tradicionais, que não acreditam que o
indígena possa aprender uma língua ocidental, pois isso significa renegar sua cultura. Vemos,
no entanto, que isso não acontece, pois suas culturas indígenas fazem parte de suas
identidades indígenas e são intrínsecas a eles.
Sobre essas identidades diaspóricas, como no caso dos indígenas que deixam suas
aldeias e vão para as cidades grandes, Stuart Hall (2013, p.16) nos explica que “a identidade é
um lugar que se assume, uma costura de posição e contexto, e não uma essência ou substância
a ser examinada”. Desse modo, entender que a identidade não está ligada diretamente ao local
em que se vive, ou ao que se veste ou ao que se come, etc. Nesse mesmo sentido, o autor nos
explica que (idem, p. 30) “Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada
no nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem dos
genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. É impermeável a algo tão ‘mundano’,
secular e superficial quanto uma mudança temporária de nosso local de residência”. Desse
modo, é importante entender que a identidade não está inteiramente associada ao local que se
mora, ainda que o indígena necessite do seu território para continuar com sua cultura e seus
costumes, não podemos associar a identidade indígena apenas a isso.
Ao afirmar que a cidade também é a aldeia indígena, o eu lírico chama a atenção para
o fato de que os indígenas eram detentores de todo o território que atualmente é chamado de
Brasil antes da invasão colonial. E mesmo morando na cidade, o indígena continua com suas
tradições e seus costumes, e faz um convite ao homem branco para dançar junto com ele no
seu “ritual”.
Ainda que o indígena more na cidade ele não abandona a sua cultura, pois “cada
disseminação [cultural] carrega consigo a promessa do retorno redentor” (HALL, 2013, p.
125
31). Ou seja, o sujeito diaspórico sempre tem o desejo de voltar para a sua terra natal, e isso
pode ser percebido por meio do eu lírico que apresenta, por muitas vezes, uma voz nostálgica
quando fala do canto dos pássaros, das árvores, do banho no rio, em uma conectividade com a
natureza sempre tão presente na cultura indígena. E isso se reflete em seus textos, pois essa
nostalgia fica evidente na quarta estrofe, onde o eu lírico nos diz que “Minha casa era feita de
palha, Simples, na aldeia cresci Na lembrança que trago agora, De um lugar que eu nunca
esqueci.”
Na terceira estrofe o eu lírico se identifica como indígena, dizendo que nasceu na
mata, que é o território indígena, que morava em casa de palha, que cresceu na aldeia e que
tudo isso ela traz em sua lembrança, dentro de si, enquanto parte relevante de sua identidade.
Afirma, como em um grito de guerra, de resistência: “Sou Wayna, filha da mãe Aracy”.
Na quarta estrofe fica evidente a nostalgia que o eu poético apresenta da sua terra
natal, pois traz a saudade da casa que morou e da aldeia onde cresceu, afirmando que nunca
esqueceu a sua terra de origem, sempre no desejo de retornar para o seu lugar de origem.
Entretanto, a formação cultura não significa apenas uma viagem de retorno, um busca
arqueológica, pois não se trata do que as tradições fazem por nós, mas o que nós fazemos com
as tradições, pois o sujeito está sempre em transformação cultural. Não se trata de uma
questão de ser, mas se tornar (cf. HALL, 2013).
Na quinta estrofe ela nos diz que cantava em língua Tupi e que sua luta e seu canto
guerreiro uniu-se ao de outros povos, como os Tembé e os Guaraní. Essa estrofe reforça a
identidade indígena de Márcia Kambeba e sua necessidade de luta pelos direitos indígenas,
pela sua identidade indígena na cidade. Essa é a postura do indígena contemporâneo, de lutar
por seus direitos em busca de reafirmação e reconhecimento da identidade indígena, momento
em que todas as etnias se consideram como uma grande família, em que todos se ajudam,
como se fossem uma grande aldeia em forma de resistência. Afirma também que seu canto era
diferente, pois cantava na língua Tupi, e hoje utiliza a língua portuguesa para propagar a
cultura indígena e lutar por mais direitos para seu povo.
Na sexta estrofe a voz nos diz que sua selva agora é de pedras (a cidade grande) e que
sua calma (que antes tinha na aldeia) foi levada por uma rotina urbana. Essa estrofe marca
fortemente a ideia de mudança da indígena Kambeba de sua aldeia para a cidade. Com isso,
126
ao modificar o local do seu domicílio, teve que se adaptar ao estilo de vida das demais
pessoas do local para sobreviver. O eu lírico se viu em uma situação que precisava de
mudança para lutar pelos direitos do seu povo, saindo da comunidade em busca de novos
conhecimentos. Ela percebeu que sua rotina mudou de acordo com a mudança do seu local de
morada. O eu poético se vê inserido no mundo globalizado e percebe que a rotina da cidade é
bem diferente da rotina da aldeia. Sobre o processo de globalização e as transformações nas
identidades, Stuart Hall (2014, p.21) nos explica que:
E com esse processo de deslocamento, os povos indígenas estão ficando mais unidos,
pois se veem como uma grande família, lutando pelos mesmos ideais. Eles tiveram que se
organizar com mais força e de forma política e social, como também aprender novas línguas.
Esse é o processo de transculturação sofrido pelas identidades indígenas, mas que não quer
dizer que eles tenham abandonado a sua cultura por conta disso. Muito pelo contrário. Hoje o
movimento indígena está mais forte e organizado do que há anos atrás, e isso pode ser
observado na quantidade de indígenas que estão se autodeclarando como pertencentes a
alguma etnia. Esse é o resultado de que os povos indígenas estão conseguindo a reafirmação
da sua cultura e da sua identidade enquanto cidadão brasileiro. Esse processo de reafirmação
de identidade é denominado de “etnogênese”, o que significa:
Novamente esse poema trabalha com categorias muito utilizadas pelos Estudos
Culturais, como identidade, etnia, pertencimento, território, entre outras. Com o uso de tais
categorias, Márcia Kambeba marca novos territórios na poesia indígena, deixando ver um
lugar só seu nesse campo de criação artística. No próximo poema veremos como a atitude do
homem branco é ofensiva para a natureza, destruindo tudo o que pode, para explorar e
dominar, o poema mostra o grita da natureza que tenta sobreviver nas mãos do homem
branco.
NATUREZA EM CHAMAS
Na terra sagrada
Que TUPÃ criou,
Do seio materno
Se ouve o clamor,
Da mãe natureza
Sofrendo de dor.
O fogo ardente,
Ao longe se vê,
Queimando a mata
Sem Q, nem porquê,
As folhas se torcem
Querendo viver.
No solo desnudo,
Os restos mortais,
Do verde da vida
E dos animais,
Queimados, sofridos
Em cinzas reais.
Dos gritos agudos
Se ouve o clamor,
Do fruto ardendo
Na chama, no calor,
Ceifado, perdido,
O fogo o calou.
Varrendo o chão,
Varrendo o chão!
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