A Tragédia Grega - Jacqueline de Romilly

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Ter inventado a tragédia é um glorioso mérito,


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Não se trata simplesmente de fidelidade a um
passado brilhante. É evidente que a irradiação da
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autores souberam imprimir-lhe. A tragédia greg.
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público pode ser comparável. Modificou-se, acima
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Título original: La tragédie grecque

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armaze-
nada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.
Sumário
Impresso no Brasil

SUPERVISÃO EDITORIAL
AIRTON LUGARINHO
INTRODUÇÃO
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
A TRAGÉDIA E OS GREGOS, 7
MARIA CRISTINA ERVILHA

REVISÃO CAPÍTULO 1
JOELlTA DE FREITAS ARAÚJO E WILMA GONÇALVES ROSAS SAL TARELLI o GÊNERO TRÁGICO, 13
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA A ORIGEM DA TRAGÉDIA, 13
MfRIAM DE FRANÇA MOREIRA DIONISO E ATENAS, 13 \
CAPA
TRAÇOS DO CULTO E DA EPOPÉIA, 17
~\ A ESTRUTURA DA TRAGÉDIA, 23
o CORO, 26
SUPERVISÃO GRÁFICA OS PERSONAGENS, 31
ELMANO RODRIGUES PINHEIRO A AÇÃO, 39

ISBN: 85-230-0386-X
CAPÍTULO 2
Ficha catalográfica elaborada pela
ÉS QUILO OU A TRAGÉDIA DA JUSTIÇA DIVINA, 47
Biblioteca Central da Universidade de Brasília
o LADO DIVINO, 50
o LADO HUMANO, 60
Romilly, Jacqueline de
R765
A tragédia grega / Jacqueline de RomilJy; tradução de Ivo CAPÍTULO 3
Martinazzo - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1998. SÓFOCLES OU A TRAGÉDIA DO HERÓI SOUT ÁRIO, 71
170p.
Tradução de La tragédie grecque. o CONTRASTE DE DEVERES, 72
A SOLIDÃO DO HERÓI, 80
1. Teatro grego. 2. Tragédia grega.
I. Martinazzo, Ivo. 11.Título. o HERÓI E OS DEUSES, 85
CDU 875.09-2
6 Jacqueline de Romilly

CAPÍTULO 4
EURÍPIDES OU A TRAGÉDIA DAS PAIXÕES, 101
O TEATRO E A CIDADE, 103
HUMANOS MUITO HUMANOS, 110
OS JOGOS DA SORTE E OS JOGOS DOS DEUSES, 124 Introdução
INOVAÇÃO E DECADÊNCIA, 133

CONCLUSÃO
A TRAGÉDIA E O TRÁGICO, 137 A tragédia e os gregos
MITO E PSICANÁLISE, 138
ATUALIDADE E ENGAJAMENTO, 142
O TRÁGICO E A FATALIDADE, 147
O TRÁGICO E O ABSURDO, 152
Ter inventado a tragédia é um glorioso mérito; e esse mérito
BIBLIOGRAFIA, 159 pertence aos gregos.
Há, de fato, algo de fascinante no sucesso que conheceu esse
ANEXOS gênero, pois ainda hoje escrevemos tragédias, passados já 25 sé-
culos. Tragédias são escritas por toda parte, no mundo todo. Mais
I - CRONOLOGIA DAS DIVERSAS TRAGÉDIAS CONSERVADAS, 165 ainda, continuamos, de tempos em tempos, a tomar emprestado dos
II - OUTROS AUTORES TRÁGICOS, 1~8, .
gregos seus temas e seus personagens: ainda escrevemos Electras e
III - PEQUENO LÉXICO DAS PALA VRAS RELATIVAS À TRAGÉDIA
GREGA,169 Antígonas.
Não se trata simplesmente de fidelidade a um passado bri-
lhante. É evidente que a irradiação da tragédia grega se prende à
amplitude do significado, à riqueza de pensamento que os seus
autores souberam imprimir-lhe. A tragédia grega apresentava, por
meio da linguagem diretamente acessível da emoção, uma reflexão
sobre o homem. Sem dúvida, é por isso que, em épocas de crise e
de renovação como a nossa, sentimos a necessidade de um retomo
àquela forma inicial do gênero. Criticam-se os estudos gregos, mas
ainda se representam, no mundo quase todo, as tragédias de És-
quilo, de Sófocles e de Eurípides, pois é nelas que essa reflexão
sobre o homem brilha com sua força primeira.
Com efeito, se os gregos inventaram a tragédia, é inegável o
fato de que, entre uma tragédia de Ésquilo e uma tragédia de Raci-
ne, as diferenças são profundas. O contexto das representações já
não é o mesmo, nem é a mesma a estrutura das peças; sequer o
público pode ser comparável. Modificou-se, acima de tudo, o espí-
8 A tragédia grega 9
Jacqueline de Romilly

rito interior - cada época ou cada país dão uma interpretação dife- decorado com estátuas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Desde 386
rente do esquema trágico inicial. Mas é nas obras gregas que ele se (pelo menos essa é a data mais provável), havia-se começado a in-
traduz com o maior vigor, visto que nelas ele aparece em sua nudez cluir no programa das festas dionisíacas a repetição de uma das
original, tragédias antigas. O ápice da tragédia terminou ao mesmo tempo
Ademais, esta foi, na Grécia, uma eclosão repentina, breve, es- em que acabava a grandeza de Atenas.
plêndida. A tragédia grega, com sua safra de obras-primas, durou ao Em outras palavras, quando hoje se fala da tragédia grega,
todo oitenta anos. Em uma relação que não pode ser causal, esses pensa-se quase exclusivamente nas obras remanescentes dos três \
oitenta anos correspondem exatamente ao período da expansão polí- grandes trágicos: sete tragédias de Ésquilo, sete de Sófocles e de-I
tica de Atenas. A primeira representação trágica feita nas festas dio- zoito de Eurípides (se nelas incluímos o Reso). A seleção dessas 32'
nisíacas atenienses situa-se, segundo as infonnações, em tomo do tragédias remonta, grosso modo, ao império de Adriano.'
ano 534, durante o governo de Pisístrato. Mas a primeira tragédia I~é pouco, sob todÕsÕs pontos de vista. É pouco se pensa-i
que foi conservada (ou seja, considerada digna de estudo pelos anti- mos em todos aqueles autores que só conhecemos indiretamente, e
gos) tem lugar um dia após a grande vitória de Atenas sobre os inva- dos quais lemos apenas uma vaga idéia - em particular os grandes
sores persas. Mais que isso, ela perpetua a sua lembrança: a vitória antecessores, como Téspio, Pratinas,e sobretudo Frínicos. É pouco
de Salamina, que institui o poderio ateniense, aconteceu no ano 480; se pensamos nos rivais dos três grandes - como os filhos de Prati-
a primeira tragédia conserva a data de 472. Trata-se de Os persas, de nas e de Frínico, Íon de Quios, Néofron, Nicômaco e vários outros,
Ésquilo. Depois disso as obras-primas se sucedem. A cada ano, o entre os quais os dois filhos de Ésquilo, Eufórion e Evaion, e seu
teatro vê novas peças, apresentadas em festivais, na forma de con- sobrinho Philocles, o Antigo. É pouco, enfim, quando recordamos
curso, por Ésquilo, por Sófocles, por Eurípides. As datas referentes os seguidores de Eurípides, entre eles Iófon e Ariston, os dois fi-
a esses autores são próximas; suas viMa'stêm aspectos comuns. És- lhos de Sófocles, e ~t~do autores como Crítias e Agatão, ou
quilo nasceu em 525, Sófocles em 495, Eurípides por volta de 485 mais tarde Carcino. É muito pouco, finalmente, quando se leva em
ou 480. Diversas obras de Sófocles, e quase todas as de Eurípides, conta a produção dos próprios três grandes, uma vez que Ésquilo,
foram representadas depois da morte de Péricles, no decurso da segundo parece, havia composto noventa tragédias, e Sófocles mais
Guerra do Peloponeso, na qual Atenas, prisioneira de um império de cem (Aristófanes de Bizâncio menciona 130, sete das quais pas-
l
que já não conseguia manter, sucumbe finalmente sob os golpes de savam por inautênticas). Por fim, Eurípides havia escrito 92, 67 das
Esparta. Depois de 27 anos de guerra, Atenas perde, em 404, todo quais ainda eram conhecidas à época em que foi escrita sua biogra-
o poder conquistado após as guerras médicas. Naquela data, haviam fia. O desastre, portanto, é imenso; e quando se fala das tragédias
passado três anos da morte de Eurípides, e dois da de Sófocles. Foram gregas, é preciso, infelizmente, ter em conta que são conhecidas
encenadas ainda algumas peças deles que não haviam sido acabadas cerca de trinta, entre mais de mil. Sem dúvida alguma, elas nos
ou representadas. E isso foi tudo. Excluindo-se o Reso, uma tragédia pareceriam tão belas quanto as que possuímos. Além disso, desde o
que nos foi transmitida como sendo de Eurípides, mas cuja autentici- começo, Ésquilo, Sófocles eEurípides nem sempre eram os vence-
dade é fortemente contestada, nada mais nos resta, após 404, além dores nos concursos anuais.
de nomes de autores ou de peças, fragmentos e alusões por vezes Contudo, por mais estranho que possa parecer, essas Jri!lla pe-
impiedosas. A partir de 405, Aristófanes, emAs rãs, não via outro ças, distribuídas no período de menos de oitenta anos, são o teste-
meio de preservar o gênero trágico, a não ser procurando nos infernos
um dos poetas desaparecidos. Quando o teatro de Dioniso foi
reconstruído em pedra, na segunda metade do século IV, ele foi 1 A' ~eleção feita na época de Adriano compreendia as sete peças de És-
quilo, as sete peças de Sófoc1es e dez peças de Eurípides: as outras
obras de Eurípides conservaram-se de forma independente.
10 11
Jacqueline de Romilly A tragédia grega

munho não apenas daquilo que foi a tragédia grega, mas também reta uma evolução igualmente contínua nas formas de expressão.
da sua história e sua evolução. Uma nesga de sombra permanece, Em outras palavras, a aventura refletida pela história da tragédia
em ambos os lados das fronteiras que encerram a vida do gênero, em Atenas é a mesma que pode ser observada no nível das estrutu-
no seu grau mais elevado: essas fronteiras formam uma espécie de ras literárias ou no dos significados e da inspiração filosófica.
limiar, que não pode ser transposto sem cairmos naquilo que ainda Somente após termos acompanhado essa evolução dupla, no
não é, ou naquilo que já não é mais, a tragédia em si, digna desse seu impulso interior, é qüe podemos ter a esperança de compreen-
nome. Entre os dois limites, o "ainda não" e o 'Já não mais", um der aquilo que constitui o seu princípio comum, e enquadrar dessa
impulso poderoso arrebata a tragédia num movimento de renova- forma - para além do gênero trágico e seus autores - aquilo que
ção que vai se definindo ano a ano. Sob muitos aspectos, é mais encarna o real espírito das suas obras, isto é, aquilo que, depois
ampla e mais profunda a diferença entre Ésquilo e Eurípides do delas, jamais deixou de ser chamado o trágico.
que a que existe entre Eurípides e Racine.
Essa renovação interna apresenta dois aspectos complementa-
res: na verdade, o gênero literário evolui, seus meios se enrique-
cem, suas formas de expressão variam, e é possível escrever uma
história da tragédia que se apresente como algo contínuo, aparen-
temente desvinculado da vida da cidade e do temperamento dos
seus autores; por outro lado, no entanto, ocorre que esses oitenta
anos, que vão da vitória de Salamina até a derrota de 404, assina-
lam em todos os domínios uma pujança intelectual e uma evolução
moral absolutamente inigualáveis. • ,
A vitória de Salamina tinha sido conquistada por uma demo-
cracia nova, e por homens ainda completamente imbuídos do ensi-
namento pio e altamente virtuoso de Sólon. Depois disso, a
democracia conheceu rápida evolução. Atenas assistiu à chegada
dos sofistas, mestres do pensamento que eram, antes de mais nada,
mestres da retórica, e que colocavam tudo em questão, lançando,
no lugar das doutrinas antigas, mil idéias novas. Por fim, depois do
orgulho de haver afirmado gloriosamente seu heroísmo, Atenas
conheceu os sofrimentos de uma guerra prolongada, de uma guerra
entre gregos. O clima intelectual e moral dos últimos anos do sé-
culo é tão fecundo em obras e reflexões como em seu início, mas é,
ao mesmo tempo, profundamente diferente. A tragédia reflete, ano
após ano, esta transformação; vive dela; dela se nutre, e expande-se
em obras-primas de outra ordem.
Existe, evidentemente, uma relação entre a evolução pura-
mente exterior das formas literárias e a renovação das idéias e dos
sentimentos. A flexibilidade dos meios explica-se pelo desejo de
exprimir algo mais, e o deslocamento contínuo dos interesses acar-
~l

Capítulo 1

o gênero trágico

A tragédia grega é um gênero à parte que não se confunde com


nenhuma das formas assumidas pelo teatro moderno.
Todos nós adoraríamos poder descrever sua origem, para
compreendermos um pouco melhor aquilo que pôde suscitar um
tão notável sucesso. E não faltam livros e artigos que tentem des-
, . crevê-Ia. No entanto, o grande número de ensaios explica-se justa-
mente pela ausência de certezas. De fato, pairam muitas dúvidas
sobre o nascimento do gênero.
Todavia, possuíamos uma ou duas indicações seguras, que se
traduzem na própria forma que as tragédias eram representadas e
que, além das representações em si, explicam em que nível se situa
a tragédia.

A origem da tragédia

Dioniso e Atenas

Antes de mais nada - já foi dito e repetido -, a tragédia grega


tem, sem dúvida alguma, uma origem religiosa.
Essa origem ainda era claramente visível nas representações
da Atenas clássica. E essas derivam claramente do culto a Dioniso.
As tragédias só eram encenadas nas festas deste deus. O grande
evento, no período clássico, era a festa das dionísias urbanas, que
14
Jacqueline de Romil/y A tragédia grega 15

se celebrava na primavera; mas havia também concursos de tragé- todas as despesas. Finalmente, no dia da representação, todo o
dia na festa das leneanas, que ocorria no final de dezembro. A pró- povo era convidado a comparecer ao espetáculo: a partir da época
pria representação inseria-se, portanto, num contexto <. de Péricles, os cidadãos pobres podiam até receber um pequeno
eminentemente religioso, sendo acompanhada de procissões e sa- abono, para esse fim.
crifícios. Por outro lado, o teatro em que ela acontecia, cujas ruínas Conseqüentemente, esse espetáculo adquiriu as características
ainda hoje são visitadas, foi reconstruído mais de uma vez, mas foi de uma manifestação nacional. O fato explica com clareza certos
sempre chamado o "teatro de Dioniso"; com um magnífico trono aspectos da inspiração dos autores de tragédia. Eles se dirigiam
sempre a um grande público, reunido numa ocasião solene: é nor-
de pedra para o sacerdote de Dioniso e um altar para essa divinda-
mal que eles quisessem atingi-lo e interessá-lo. Portanto, eles es-
de no centro, onde se apresentava o coro. Este coro, por si só, evo-
creviam na qualidade de cidadãos que se dirigem a cidadãos.
cava o lirismo religioso. E as máscaras que coristas e atores
Esse aspecto da representação também tem a ver com as ori-
portavam levam-nos facilmente a pensar nas festas rituais do tipo
arcaico. gens da tragédia: é muito provável que a tragédia só tenha podido
nascer quando aquelas improvisações religiosas das quais ela surgi-
Tudo isso revela uma origem ligada ao cuIto, e pode perfeita- ria foram reorganizadas sob o comando de uma autoridade política,
mente conciliar-se com o que diz. _Aristóteles (Poética, 1449 a):
com apoio do povo. Numa característica realmente notável, o nas-
segundo ele, a tragédia teria nascido de improvisações. Ela teria se
cimento da tragédia está bastante ligado à existência da tirania - ou
originado de formas líricas, como o ditirambo (canto coral em lou-
melhor, de um regime forte sustentado pelo povo, contra a aristo-
vor a Dioniso); seria, como a comédia, a ampliação de um rito.
cracia. Os raros textos sobre os quais podemos basear-nos, na bus-
Desse modo, a inspiração fortemente religiosa dos grandes
ca das origens anteriores à tragédia ática, conduzem sempre a
autores de tragédias apresenta-se como a extensão de um impulso
tiranos. Uma lenda, atribuída a Solón, conta que a primeira repre-
inicial. De fato, não encontramos em suas obras menção especial a
sentação trágica seria de autoria do poeta Árion.' Ora, Árion vivia
Dioniso, o deus do vinho e das procissões eróticas, nem mesmo ao
em Corinto, sob o reinado do tirano Periandro (do final do século
deus que morre e renasce com a vegetação; porém, deparamos-nos
VII ao começo do século VI a.C.). O primeiro caso em que Heró-
sempre com uma certa presença do sagrado, que se reflete no pró-
-A\priojogo de vida e morte. doto cita os coros "trágicos" é o de Sicione, onde coros cantavam
as desgraças de Adrasto que foram "restituídas a Dioniso'Y ora,
Todavia, quando falamos de uma festa religiosa em Atenas, é
quem as restituiu a Dioniso foi Clístenes, tirano dessa cidade (iní-
preciso cuidado para não imaginar uma separação freqüente nos
cio do século VI). Sem dúvida, temos aí somente um esboço de
+ nossos Estados modernos. A festa de Dioniso era também uma
festa nacional. tragédia. Mas é dessa forma que nasceu a verdadeira tragédia. De-
Ir ao teatro, para os gregos, era muito diferente daquilo que fa- pois dessas tentativas hesitantes, em diversos pontos do Pelopone-
zemos hoje em dia - escolhendo o dia e o espetáculo de preferên- so, um belo dia surge a tragédia na Ática: devem ter existido
cia, e assistindo a uma representação que se repete todos os dias, alguns primeiros ensaios anteriores, mas houve um início oficial,
durante o ano todo. Havia duas festas anuais onde se encenavam que é o ato do nascimento da tragédia. Entre 536 e 533, Téspio
tragédias. Cada festa contava com um concurso, que durava três produziu, pela primeira vez, uma tragédia para a grande festa di 0-
dias, e a cada dia um autor selecionado com muita antecedência
apresentava, sucessivamente, três tragédias. A representação era
prevista e organizada sob o patrocínio do Estado, pois era um dos
altos magistrados da cidade quem se incumbia de escolher os
1
poetas e de selecionar os cidadãos ricos, encarregados de cobrir Cf. Jean Diacre, texto citado em Rheinisches Museum, 1908, p. 150, e a
Souda. .."..-

2 Cf. Heródoto, V, 67.


16 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 17

nísia.' Ora, tratava-se da época em que reinava em Atenas o tirano giosas iniciais e a representação oficial, a única que conhecemos,
Pisístrato, o único que ela conheceu. faltam-nos os elos de transição; devemos limitar-nos às hipóteses, e
Essa data tem para nós algo de emocionante: nenhum gênero as modalidades envolvem-se no mistério.
literário possui um registro civil tão preciso. E não se conhece ou-
tra forma de expressão que tenha permitido cerimônias como as
que aconteceram na Grécia, há alguns anos, por ocasião da cele- Traços do culto e da epopéia
bração dos 2.500 anos da tragédia.
Ao mesmo tempo, além da precisão destas origens, a data des- Partamos inicialmente desta palavra: a tragédia, que significa
pert?, por si só, algum interesse. "o canto do bode". Como interpretar esse nome? E o que fazer com
:4. Tendo ingressado na vida ateniense em virtude de uma decisão esse bode?
oficial, e inserindo-se em uma política de expansão popular, a tra- A hipótese mais difundida consiste em identificar esse bode
gédia apresenta-se, desde o princípio, associada à atividade cívica. com os sátiros, normalmente associados ao culto de Dioniso, e
Este laço só podia estreitar-se ainda mais no momento em que o aceitar as duas indicações feitas por Aristóteles, que inicialmente,
povo, reunido no teatro, se tomava árbitro dos seus próprios desti- na Poética (1449 alI), parece atribuir a tragédia aos autores de
nos. Ele explica a ligação do gênero trágico com a expansão políti- ditirambos (obras corais executadas, sobretudo, em honra a Dioni-
ca. Explica também o lugar ocupado, nas tragédias gregas, pelos so); e que, mais adiante, em 1449 a 20, especifica: "A tragédia to-
grandes problemas nacionais da guerra e da paz, da justiça e do mou alento, abandonando as fábulas curtas e a linguagem divertida
civismo. Pela importância que os grandes poetas conferem a esses devida à sua origem satírica, e aos poucos revestiu-se de majesta-
problemas, eles se colocam, mais uma vez, como a extensão de um de". Teríamos então para a tragédia uma origem muito próxima à
impulso inicial! • , * da comédia: bandos de fiéis a Dioniso representando sátiros, cujo
Entre estes dois aspectos da tragédia existe, ademais, uma re- aspecto ou roupagem lembrariam o bode.
ferência à sua origem. Pisístrato é, em certo sentido, Dioniso _ 01 Essa hipótese é coerente e, sob certos aspectos, simpática. No
tirano ateniense havia desenvolvido o culto a essa divindade. Ele entanto, ela apresenta duas dificuldades. A primeira é de ordem
ergueu, aos pés da Acrópole, um templo a Dioniso de Eleutério, e técnica: o fato de que os sátiros jamais foram identificados com os
instituiu em sua honra as festas dionísias urbanas, que seriam bodes. Logo, toma-se necessário encontrar uma explicação. E se
aquelas da tragédia. O fato de que, sob seu reinado, a tragédia te- apelarmos para a lascívia, comum a uns e a outros, livramo-nos da
nha integrado a cena do culto a esse deus simboliza, portanto, a primeira dificuldade para agravar a segunda - a de que uma gênese
união dos dois grandes patrocinadores daquele nascimento: Dioni- assim concebida valeria mais para o drama satírico que para a tra-
so e Atena. gédia. Nada nos permite imaginar que essas cantorias de sátiros,
Surgem assim dois pontos de partida gemi nados, cuja combi- mais ou menos lascivas, poderiam dar origem à tragédia, visto que
nação parece ter sido essencial para o nascimento da tragédia. In- esta não era absolutamente lasciva e não comportava qualquer tra-
felizmente, isto não significa que nos sejam claramente revelados ço dos sátiros.
nem a parte que coube a um e a outro nessa combinação, nem a É essa a razão pela qual, desde a Antiguidade, alguns preferi-
forma em que ela ocorreu. Além disso, entre as improvisações reli- ram interpretar de outra maneira a palavra tragédia. Admitiam que
o bode era a recompensa oferecida ao melhor participante,4 ou en-

3 Cf. mármore de Paros: I G XII, 5, I, 444 e Charon de Lampsaque, em


Jean Diacre, cf. acima.
4 Cf. mármore de Paros, a propósito de Téspio e Eusébio, Chronique,
Olympiade 47,2; também Horácio, Ars Poetica, 220. .
18
Jacgueline de Romilly A tragédia grega 19

tão a vítima oferecida em sacrifício. Femand Robert vai mais longe gédia. Nenhuma das hipóteses levantadas sobre a origem da tragé-
ainda, atribuindo a esse bode um valor catãrtico - fazendo dele o dia - das piores às melhores, mesmo que se provem verídicas - nos
bode expiatório - e restituindo assim uma dimensão religiosa e fornece a chave do mistério.
solene às diversas manifestações ligadas a esse sacrifíció.5 Nesse Na verdade, o gênero literário chamado tragédia não pode ser
caso, o ditirambo teria servido simplesmente de modelo formal, explicado a não ser em termos literários." Uma vez que as tragédias
tanto para a tragédia quanto para o drama satfrico.P que são gêneros que foram conservadas não falam nem de bodes nem de sátiros, é
paralelos, mas de inspiração inteiramente distinta. Essa interpreta- preciso então admitir que seu alimento essencial não procede nem
ção possui o grande mérito de respeitar a diferença entre os dois desse culto, nem desses divertimentos. Estes podem ter proporcio-
gêneros, e de conduzir diretamente àquilo que constitui a originali- nado a ocasião; podem ter inspirado essa mistura de cantos e diálo-
dade intrínseca ao gênero trágico. Entretanto, isso não significa que gos entre personagens fantasiados, representando uma ação mítica
se resolvem todas as dificuldades. Uma delas, evidentemente, é o situada fora do tempo; podem ilustrar uma fase mais religiosa, mas
fato de esta interpretação ignorar uma parte do testemunho de nada além disso. A tragédia, como gênero literário, surgiu somente
Aristóteles numa área onde os testemunhos já são em número tão porque aquelas festas em honra a Dioniso passaram deliberada-
reduzido. Outra dificuldade é que a interpretação se apóia inteira- mente a procurar a substância das suas representações num espaço
mente no sentido atribuído ao sacrifício do bode. Ora, apesar de estranho ao domínio dessa divindade.
alguns exemplos bastante notáveis, o culto a Dioniso aparece muito A passagem em que Heródoto fala de Árion evoca representa-
mais ligado aos cabritos e às corças que ao nosso infeliz bode." ções que ilustram as desgraças de Adrasto, um dos heróis ligados
Qualquer que seja a solução, de todo modo, permanece ao ciclo de Tebas. Clístenes, diz Heródoto, restituiu os coros em
abrupta a passagem entre esses ritos primitivos e a forma literária louvor a Dioniso. Isto quer dizer que ele fizera de Dioniso o herói
na qual desembocaram. Em um caso, preciso imaginar uma mu-
é
da representação em si? Permitimo-nos duvidar disso. Clístenes
dança profunda de tom e de orientação; no outro, a evolução é me- pode simplesmente ter associado o conjunto da festa ao culto a Di-
nos ilógica, mas o caminho a ser percorrido é estranhamente longo. oniso. Uma coisa, em todo caso, é certa: a tragédia somente adqui-
O fato é que essas festas rituais, independentemente do cami- riu existência literária a partir do momento em que ela se inspirou,
nho tomado, derivam mais ou menos da sociologia, enquanto o e de maneira ampla e direta, nos fatos de que já se ocupava a epo-
nascimento da tragédia pennanece um acontecimento único, sem péia. •
equivalente em nenhum outro país e em nenhuma outra época. É Trata-se aqui de um terceiro elemento, como um corpo estra-
certo que os improvisos de pastores ocorrem na cultura de muitos nho ao culto a Dioniso. Um conhecido provérbio dizia, em tom de
povos, e podem ter sido feitas comparações sugestivas com a tra- crítica ou espanto: "Aí não há nada que diga respeito a Dioniso".9
gédia. Mas os pastores, padres e camponeses não inventaram a tra- ~ A epopéia e a tragédia tratam, na verdade, dos mesmos as-
suntos. Existiram, por certo, algumas peças relativas aos mitos de
5 Cf. Les études c/assiques, 1964, pp. 97-129. Dioniso (As bacantes, de Eurípides, são o único exemplo); há tam-
bém algumas peças relativas a fatos marcantes da história contem-
6 Pratinas de Phlionte teria trazido o drama satírico para Atenas, no início
do século V.

7 O autor cita quatro exemplos e insiste principalmente em dois epítetos de


Dioniso: Dionysos Aigobolos (que bate nas cabras) e Dionysos Melanai- 8 Cf, G. F. Else, The origin and ear/y form of Greek tragedy, Martin Clas-
gis (da cabra negra). Ficaríamos evidentemente bem mais satisfeitos se a tt.. 9 sical Lectures, XX, 1965, p. 31.
palavra empregada fosse tragos. Cf. Plutarco, Questões de banquetes, 615 a, Zenóbio, V, 40, e a Souda.
Esta censura é dirigida a diversos autores de tragédias, entre os quais
Téspio e Ésquilo.
---=--
20
jacqueline de Romilly
A tragédia grega 21

porânea (nosso único exemplo é Os persas, de Ésquilo). No en-


tanto, a tragédia está geralmente ligada aos mesmos mitos da epo- sido percebidos antes delel Assim se desenvolveu uma espécie de
péia: a Guerra de Tróia, as explorações de Héracles, as desgraças afastamento, de recuo em relação ao tema, o que por sua vez pare-
de Édipo e sua família. Com exceção dos dois exemplos citados ce ter contribuído para acrescentar majestade à tragédia e conferir-
anteriormente, todas as peças que foram preservadas encontram aí lhe uma dimensão particular/Ela utiliza uma determinada ação
a sua matéria-prima. somente como forma de linguagem, um meio pelo qual o poeta
Não devemos surpreender-nos com isso: a epopéia foi, durante pode exprimir aquilo que o emociona ou escandaliza. ~
séculos, o gênero literário por excelência. O próprio lirismo nutria- De qualquer maneira, os autores de tragédias buscaram na
se dela. O objeto épico foi o objeto natural de toda obra de arte. O epopéia a inspiração para suas obras. E não há dúvida de que dali
mais espantoso, na verdade, é que ela permaneceu como objeto da extraíram, ao mesmo tempo, a arte de construir personagens e ce-
tragédia, não apenas na Atenas do século V, mas também, depois nas capazes de comover. Conferir o sentimento da vida, inspirar
dos gregos, até a época moderna. . terror e piedade, partilhar um sofrimento ou ansiedade foram sem-
É evidente que existiram, em diversos países, tragédias histó- pre traços da epopéia, que ela ensinou aos trágicos. Poder-se-ia
ricas. Mas a história, nessas tragédias, é tratada um pouco à manei- igualmente dizer que, se a festa criou o gênero trágico, foi a influ-
ra do mito: ela serve de exemplo; dela retemos apenas o sentido ência da epopéia que fez' dele um gênero literário.
I humano, e a modificamos ao nosso bel-prazer. É preciso dizer, de Mas a epopéia assim transmutada tomou-se algo novo. Se a
modo inverso, que os mitos gregos deviam, desde o princípio, res- epopéia narrava, a tragédia mostrava, o que acarretou uma série de
gatar uma história distante e heróica, mas geralmente verídica. inovações. Na tragédia tudo se revela aos olhos, real, próximo,
Embora a diferença não seja radical, estes são, de qualquer manei- imediato. Em tudo se crê, tudo se teme. E sabemos, por testemu-
ra, personagens pertencentes a um passado coberto de heroísmo, e nhos antigos, o quanto determinados espetáculos assustavam a
revestidos de certa grandeza. • , platéia. Se a comparamos com a epopéia, vemos que a força da
Essa grandeza, oriunda da epopéia grega, permaneceria para tragédia reside no fato de ela ser tão tangível e terrível.
sempre ligada ao gênero trágico. Esse gênero, dizem às vezes os Por outro lado, a limitação imposta ao autor obrigava-o a es-
autores do século XX, é "para os reis": estes reis são os heróis de colher somente um episódio, e os espectadores acompanhavam-lhe
Homero, que, tendo um dia entrado na tragédia, dela jamais have- o desenvolvimento contínuo, passando por todos os momentos de
riam de sair. esperança e de medo, sem perder o interesse. A força da tragédia
Assim se explicam as Electras e os Orestes que ainda hoje são também reside nessa atenção fixa a uma única ação.
escritos. O empréstimo é legftimo e corresponde a um hábito anti- Enfim, as próprias condições da representação levavam os
go bastante interessante para explicar o destino do gênero. autores a enaltecer os heróis e os temas. É importante lembrá-Io,
Essas lendas eram de fato conhecidas. As crianças de Atenas pois o teatro atual, como também, já em sua época, o teatro latino,
haviam-nas aprendido com a epopéia. O público presente às apre- difere nesse ponto do teatro grego. Por realizar-se ao ar livre, este
sentações teatrais conhecia-Ihes os elementos. Um autor trágico último foi concebido para representações excepcionais, reunindo
retomava-os; mais tarde, um outro voltava ao mesmo tema. Isso um público enorme. Os rostos encobertos por máscaras, os papéis
significa que a originalidade dos autores não estava ali, no nível femininos representados por homens excluíam obrigatoriamente
dos acontecimentos, da ação e do desfecho, mas sim no âmbito da um teatro de nuanças, dedicado à psicologia e aos personagens.
interpretação pessoal~Ela residia no fato de que o autor enfocava Contrariamente ao que as terminologias poderiam sugerir ao ho-
mem moderno, o teatro entre os gregos era menos intimista que a
uma emoção, uma explicação ou um significado que não haviam epopéia.
_ Pelo fato de mostrar, em vez de narrar, e pelas próprias condi-
çoes em que mostrava, a tragédia podia extrair dos fatos épicos um
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Jacqueline de Romilly A tragédia grega 23

efeito mais imediato e uma lição mais solene, o que se encaixava repentinamente, surge a Erínia, depois Apoio, em seguida Atena.
perfeitamente à sua dupla função, religiosa e nacional. Os fatos Cada tragédia assume um valor religioso. Na verdade, o conjunto
épicos s6 tinham acesso ao teatro de Dioniso se associados à pre- significa algo mais. Atena, com efeito, é a deusa guardiã de Ate-
sença dos deuses e à preocupação com a coletividade, porém mais nas. Graças à sua intervenção, as Fúrias convertem-se em divinda-
intensos, mais surpreendentes, mais carregados de sentido e força. des protetoras da cidade: elas velarão pela ordem e pela
Basta um s6 exemplo para dar a exata medida dessa transfor- prosperidade do país no qual elas se instalam, a partir de agora. Ao
mação. mesmo tempo em que alcança esse resultado:j'Atena dá instruções
A morte de Agamêmnon, assassinado por Egisto, ou talvez por para que seja mantido o tribunal do Areópago, instituído para jul-
Clitemnestra, e o retomo de Orestes para vingar seu pai eram fatos gar OrestestOra, Ésquilo exalta o papel restituído a esse tribunal
divulgados pela Odisséia, e narrados pela Orestia de Estesícoro.
Ésquilo, portanto, nada mais fez que retomar um fato épico. Mas
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no exato momento em ue Atena lhe altera os oderes. Desta for-
ma, a Orestia afeta a vida da cidade: ela fala de civismo, sua inspi-
com ele tudo se organiza: na metade das duas primeiras peças da ração assume uma dimensão nacional.
sua Ores tia ocorre um assassinato. Tais mortes são, ao mesmo A Orestia ilustra muito bem os aspectos que constituem a ori-
tempo, sacrifício e expiação. O assassinato é esperado, temido, as- ginalidade fundamental da tragédia grega, os que simplesmente
sistido e, por fim, lamentado: cada tragédia apresenta, portanto, distinguem o gênero trágico do gênero épico, e aqueles que dife-
uma unidade solidamente organizada. Na terceira delas, o assassi- renciam a tragédia grega das tragédias posteriores, em virtude de
nato é substituído por um julgamento, mas nem por isso o proble- suas raízes religiosas ou nacionais.
ma é mais simples e menos terrível, pois existe, todo o tempo, o É preciso acrescentar que, na sua estrutura básica, a tragédia
temor por uma vida que está em jogo. Por outro lado, se o público grega apresenta traços não menos .originais, e que não deixam de
não assistia aos assassinatos, que'aton'teciam no interior da casa, refletir fielmente as circunstâncias das quais ela se originou.
ele presenciava diretamente o terrível confronto entre mãe e filho;
presenciava o delírio de Cassandra; e, vivenciando fatos passados e
bem conhecidos, ele via as Erínias, ou Fúrias, bem vivas, grunhin- A estrutura da tragédia
do de maneira horrível, seguindo os passos do culpado. Cada tra-
gédia significava presença, e uma presença aterradora. Mas O principal desses traços originais é evidente à primeira vista:
presença de quê? Não apenas de morte e violência, pois o assassi- a tragédia grega funde em uma única obra dois elementos de natu-
nato era aprovado pelos deuses, e as Fúrias eram divindades. Pode- reza distinta, o coro e os personagens.
se dizer também que, na seqüência das três tragédias, se manifesta- Considerando-se que a tragédia nasceu do ditirambo - ou da
va a presença divina. Mesmo no nível dos fatos e das ações huma- imitação dos seus procedimentos -, essa dualidade nada tem de
nas, a estrutura simples das peças impõe algumas questões e I surpreendente: o ditirambo era, com efeito, o diálogo de um perso-
desperta a atenção dos espectadores para os deuses. Mas por que nagem com um coro.
afinal? Por que o assassinato de Agamêmnon? E após esse primei- Na tragédia grega, esta parceria permanece essencial; ela está
ro crime, por que o outro? Onde estava o pecado? Onde estará a presente na estrutura literária das obras, na métrica utilizada, cor-
penitência? O que decidem os deuses? Essa interrogação atormenta respondendo até a um divisão espacial.
o coro, atormenta os atores. E, na verdade, os deuses estão muito De fato, uma tragédia grega era representada em duas cenas ao
próximos. Eles falam por meio de oráculos, falam pela voz de uma mesmo tempo. Basta, para entendermos isso, conhecermos as ruí-
vidente; os homens estremecem ao pressentir sua cólera; depois, nas de qualquer teatro grego. Os espectadores ocupavam arquiban-
cadas dispostas num vasto semicírculo. Na sua frente levantavam-
se paredes de fundo, que dominavam uma cena, comparável ao
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24 A tragédia grega
Jacqueline de Romilly

cenário dos nossos teatros. Esse era o cenário reservado aos perso-
o coro, por sua vez, expressa-se na métrica lírica característi-
nagens. Sobre ele se erguia uma espécie de sacada, onde poderiam ca, onde os versos constituem, quase sempre, conjuntos e estrofes
aparecer os deuses. Não havia, na verdade, decoração, somente gemi nadas, alternadas, sempre diligentemente ordenadas, e sempre
algumas portas e símbolos evocativos do quadro da ação. A ação acompanhadas de evoluções coreográficas. A tipografia das edi-
desenrolava-se, normalmente, do lado de fora, às portas de um pa- ções modernas revela essa diferença: os caracteres itálicos indicam
lácio. Se fosse necessário, um dispositivo de palco (ou ekkuklêmay as partes cantadas, com destaque, entre estas, para os conjuntos
podia colocar em cena um quadro, ou um breve episódio, que re- corais. Assim, resulta que a tragédia grega se desenvolve sempre
velasse uma ação realizada no interior. Tudo isso era simples, e em dois planos, e que sua estrutura é comandada pelo princípio
deixava grande margem à imaginação dos espectadores; mesmo dessa alternância.
assim, eram procedimentos comparáveis aos utilizados pelo teatro Como era apresentada sem o recurso da cortina, uma tragédia
francês tradicional. grega não tinha atos; em contrapartida, a ação dividia-se em um
Em contrapartida, havia uma grande diferença. Além daquele certo número de partes, chamadas episódios, separadas por trechos
cenário, um teatro antigo dispunha daquilo que se chamava or- líricos executados pelo coro na orquestra.
chestra, ou "a orquestra" no sentido que chamamos os "lugares da Por outro lado, como era necessário um certo tempo para que
orquestra". Esta era uma vasta plataforma, de formato circular, esse coro entrasse na orquestra e aí se acomodasse, a estrutura ha-
cujo centro possuía um altar redondo dedicado a Dioniso; esta pla- bitual da tragédia comportava um prólogo (que precedia a entrada
taforma era inteiramente reservada às evoluções do coro. É certo do coro), depois a própria entrada do coro, ou párados (muitas ve-
que o palco formava o fundo da orquestra, e que poucos passos zes escrita em ritmo de marcha), depois os episódios, intercalados
levavam de um para outro. No entanto, os dois espaços permaneci- por cantos do coro (ou stasima), cujo número podia variar, segundo
am bem distintos; os atores, no palco, não se misturavam normal- o caso, de dois a cinco, e finalmente a saída do coro, ou exodos.
mente com os coristas da orquestra; e os coristas jamais subiam ao Isso não impedia que atores e coristas fossem envolvidos na
palco. mesma torrente de emoção; e essa relação traduzia-se de uma for-
Em outras palavras, o coro, pelo lugar que ocupava, permane- ma precisa, uma espécie de recitativo, do qual participavam atores
cia, de certa forma, independente da ação em curso; ele podia dia- e coristas, chamado o commos. Como escreveu Aristóteles (Poéti-
logar com os atores, encorajá-los, aconselhá-Ias, temê-Ios, e ca, 1452 b): "O commos é um lamento que vem ao mesmo tempo
mesmo ameaçá-Ias, mas ficava à parte. do coro e do palco". Ele traduz a concordância; ele funde num todo
No mais, sua função era muito bem definida. Se ele ocupava o a cena e a orquestra. Podem-se contar nos dedos da mão as tragé-
lugar da orquestra, era este o seu papel, lírico, comportando evolu- dias que não têm pelo menos um episódio que culmina no commos.
ções que iam de um gestual quase imóvel a verdadeiros passos de Tudo isso configura um esquema bem claro que se encontra no
dança. Em suma, o coro cantava e dançava. Podia ocorrer, eviden- conjunto das tragédias gregas, distinguindo-as de qualquer outra
temente, que um mestre de coro (ou corifeu) tivesse um diálogo obra teatral. Mas falar de regras seria cometer um equívoco. En-
falado com um personagem (da mesma forma como um ator podia, quanto a tragédia francesa do século XVII se preocupou constan-
mais raramente, apresentar um solo). De modo geral, porém, o coro temente em adaptar-se a padrões fixos, a tragédia grega não deixou
só se exprimia cantando, ou pelo menos recitando. Isto se traduz na nunca de inovar, de inventar, e somente o seu vigor interior escla-
métrica empregada: visto que na tragédia grega os atores se expri- rece o sentido de uma estrutura, à primeira vista, desconcertante.
mem em trímetros jâmbicos (adotando a forma lírica somente num Isto é, na verdade, natural, pois o gênero era, em si mesmo,
momento de viva emoção). uma invenção recente, que não contava com nenhum precedente,
nenhum modelo. Foi, portanto, necessário desembaraçá-Io, libertá-
10, aperfeiçoá-Io, como também adaptá-Io a interesses que se modi-
26
Jac'lueline de Romilly A tragédia grega 27

ficavam, a novas curiosidades que surgiam. De 472 a 405, ele so- Esse hábito deriva do fato de que inicialmente o coro detinha
freu o efeito de impulsos múltiplos que, combinados, resultaram um papel preponderante no desenvolvimento da tragédia. Ele re-
numa evolução quase contínua.
presentava pessoas estreitamente interessadas na ação em curso. E
Em particular, a importância relativa dos dois elementos da os seus cantos ocupavam um número considerável de versos.
tragédia - ação dramática e coro lírico - modificou-se aos poucos, Assim, o futuro dos anciões que compõem o coro de Os per-
a ponto de inverter-se. Esta alteração, que acarretou conseqüências sas, de Ésquilo, depende diretamente do sucesso ou da ruína do seu
diversas, acabou por traduzir-se numa renovação completa: das soberano. É por eles mesmos que eles temem, é sobre seu próprio
peças arcaicas do início chegou-se, em menos de um século, a um futuro que eles se perguntam, pois o destino do seu país depende
teatro bastante próximo do nosso.
do destino do exército. Da mesma forma~em Os sete contra Tebas,
o coro é composto de mulheres da cidade, que temem todo o tempo
O coro um desastre para sua pátria, e incessantemente evocam a atmosfera
de uma cidade pilhada e saqueada; elas têm medo ao pensar no que
as espera, no futuro reservado às mulheres - "viúvas de defensores,
Originalmente, o coro era o elemento mais importante da tra- aí, jovens e velhas ao mesmo tempo - arrastadas pelos cabelos,
11 gédia. Quando se preparava o concurso de tragédia, dois dos mais como éguas ..." (326-329). Etéocles, seu rei, repreende-as e exorta-
importantes magistrados da cidade cuidavam, antes de tudo, da
as à calma, mas elas não conseguem controlar-se:
designação dos coregos - isto é, dos cidadãos ricos que, às próprias
expensas, teriam a honra de recrutar e manter os quinze membros Eu quisera obedecer-te, mas o pavor mantém meu coração em
10
do coro, ou coreutas. Os mesmos magistrados realizavam igual- vigília, e a angústia, instalada às portas da minha alma, acende
mente uma escolha entre os poetas qUI("solicitavam um coro", ou em mim o terror: tenho medo do exército que cerca as nossas
seja, que pretendiam concorrer. O poeta que desta forma conse- muralhas, da mesma forma como a pomba, trêmula no seu ni-
guisse um coro tinha então a tarefa de ensaiá-lo. Em princípio, ele nho, teme a serpente com seus anéis de morte ... (287-294).
era pessoalmente encarregado, embora pudesse recorrer ao talento
de um "mestre de coro". Vale dizer, o coro era considerado o ponto O mesmo contraste, entre um homem senhor de si e um coro
de partida da representação. formado de mulheres assustadas, pode ser encontrado em As supli-
Muitos títulos, aliás, dão testemunho dessa importância. Como cantes. Aqui também o coro é formado pelas mesmas mulheres em
no caso da comédia, não é raro que uma tragédia seja designada perigo; do mesmo modo, o seu pavor subsiste, irreprimível, apesar
pela indicação dos papéis confiados aos coros. Os persas, As supli- das objurgações de seu pai: "Calafrios constantes perpassam a mi-
cantes, As coéforas, As eumênides são alguns exemplos; também nha alma; meu coração, agora negro, palpita. Aquilo que meu pai
As troianas ou As bacantes de Eurípides. Muitas vezes, também, viu do seu posto de vigia sobressaltou-me: estou morta de pavor"
um título é dado mesmo quando a natureza do coro não permite (784-786).
definir o conteúdo da tragédia - como no caso de As traquínias, de Esses três exemplos, esses três gritos de terror, escolhidos um
Sófocles, ou de As tenteias, de Eurípides. pouco a esmo no texto, demonstram bem que em peças desse gêne-
ro o coro. não é absolutamente um elemento estranho à ação. Ela,
normalmente, se concentra nele. É por ele, por intermédio dele, que
ela pode tocar os espectadores. Fica claro que ele tinha que inter-
10 Parece que, originalmente, o coro era formado por cinqüenta elementos; vir, suplicar, esperar, e que, por fim, as suas emoções acompa-
depois passou a contar com doze e, na época de SófocIes, quinze. nhem, do início ao fim, as diversas etapas da ação.
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jacqueline de Romil/y A tragédia grega 29

É assim bem evidente que, em tragédias desse tipo, o coro es- versos. Numa tragédia em que a ação se diversificava, ao contrário,
teja, mais do que ninguém, interessado no desfecho dos aconteci- tais conjuntos, durante os quais nada acontecia, só podiam parecer
mentos, sendo, no entanto, incapaz de influir nele por meio de tediosos; assim, as partes cantadas passaram a ser cada vez mais
qualquer ação. Ele é, por definição, impotente. Aliás, na maioria \ curtas. Aristófanes nos traz um testemunho dessa mudança de pre-
das vezes, o coro é formado por mulheres ou velhos, velhos demais ferência, ao introduzir no seu As rãs o personagem de Eurípides
para irem à batalha, velhos demais para se defenderem: os anciões criticando a obra de Ésquilo, Ao falar dos personagens intermina-
de Os persas, e os de Agamêmnon, constituem exemplos nítidos. velmente mudos da tragédia de Ésquilo, ele faz o seu Eurípides
Os de Agamêmnon lamentam-se desde o início da peça. exclamar, à guisa de crítica: "O coro demorava-se sucessivamente
Para que o coro pudesse conciliar tão importante função com em quatro séries de cantos, sem interrupção. E eles ficavam cala-
essa incapacidade de agir, era necessário que a ação da tragédia dos!" (As rãs, 914-915). Esse lirismo tão extenso, portanto, não era
fosse pouco desenvolvida. A partir do momento em que ela adqui- mais compreendido, nem apreciado.
riu maior importância, o coro deixou de desempenhar o papel cen- Eis aqui mais um exemplo, para ilustrar essa evolução. Em As
tral que até então detinha. Já nas últimas peças de Ésquilo (em coéforas, de Ésquilo, mais de quatrocentos versos são dedicados ao
Prometeu acorrentado e na Orestia em geral), o coro é apenas coro, de um total de 1.076, ou seja, bem mais de um terço. Em
simpatizante; pouco tempo depois, começam a aparecer coros que E.kJ:lm, de Sófoc!es, que trata do mesmo.terna (a mudança-do t-í-
1,1
viriam a tomar-se clássicos, compostos por mulheres do país, por I tulo já é QQr si.só.reveladora), o coro intervém com cerca de du-
confidentes, por testemunhas. Sem dúvida, permanece uma relação zentos versos, do total de 1.510, ou seja, menos de um sexto. Da
essencial entre o herói e o grupo que dele depende, mas esse elo mesma forma, em Electra, de Eurípides, há um pouco mais de du-
tende tomar-se frouxo. Na obra de Eurípides, ele se desfaz quase zentos, dos 1.360 que compõem a peça, também uma sexta parte.
completamente. \ ,
Uma tal evolução deveria, naturalmente, refletir-se sobre a
Basta um exemplo para ilustrar essa evolução. Em Os sete forma da tragédia. Não há dúvida de que a importância do coro
Contra Tebas, de Ésquilo, o coro era composto por mulheres ater- conferia às tragédias de Ésquilo grandeza e majestade, as quais,
radas, temendo pela cidade e pelas próprias vidas. Ora, Eurípides todavia, não tardaram a reduzir-se com seus sucessores imediatos.
retomou o mesmo tema em sua peça intitulada As fenicias, Desta Tal duração é, antes de mais nada, formal. Os coros trágicos
vez o coro era composto por jovens fenícias a caminho de Delfos: podiam ser arrebatados pela angústia, tomar-se ofegantes e trans-
elas se encontram em Tebas apenas como familiares em trânsito, tornados, mas seus cantos e evoluções obedeciam sempre a uma
cheias de simpatia, porém estrangeiras. As jovens conferem à tra- estrutura de conjunto cuidadosamente elaborada e controlada.
gédia uma nota exótica, que chegou a seduzir Eurípides; todavia, Sobre este aspecto, nenhuma tradução pode ser esclarecedora,
mantêm com a ação somente um laço indireto e tênue. Podemos e poucas são as representações que compreendem seu princípio.
imaginar um passo a mais - um passo jamais dado pela tragédia A versificação antiga baseia-se no comprimento das sílabas, e
grega, mas alcançado por outros -, e teremos então uma tragédia ~s.ordena segundo ritmos definidos. Ora, o princípio essencial do
sem coro, pois - isso é óbvio - a duração dos cantos do coro é par- lirismo coral requer que a estrofe seja respondida por uma anties-
cialmente ditada em função da atenção dada àquilo que ele expri- trofe, e que as figuras rítmicas se repitam de uma para outra, metro
me. Nas peças de Ésquilo, os cantos do coro são lon?os, amplos e por metro, sílaba por sílaba. Por outro lado, além desses duetos,
complexos. Como escreveu Maurice Croi se'~ "Para Esquilo, a 'ra-I ~rganizam-se, ocasionalmente, conjuntos mais complexos, sempre
gédia era o canto de um coro, intercalado aqui e ali por diálogos". \ ~gorosamente disciplinados. Os cantos do coro, na obra de Ésqui-
Certas tragédias comportam conjuntos líricos de mais de duzentos o, contam muitas vezes com duas, três, mesmo quatro duplas de
estrofes. O canto de entrada do coro em Agamêmnon, comporta
até uma tríade (estrofe, antiestrofe, epodo), após versos recitados
30
Jacqueline de Romil/y 31
A tragédia grega

em ritmo de marcha, sendo seguida de cinco pares de estrofes: o


expressões religiosas e, na met~de do canto, assume a forma de um
todo forma uma seqüência de 223 versos encadeados, recitados,
ato de fé na justiça de Zeus. E o próprio nome do rei dos deuses
falados e cantados, de acordo com ritmos que se alteram em função
que irrompe no início da estrofe: "Zeus ... qualquer que seja o seu
do pensamento e dos sentimentos, com estribilhos e repetições. Na
verdadeiro nome, se este for do seu agrado, é por este mesmo que
metade, está o pensamento mais importante, isolado do resto. Evi-
eu chamo". E a lei de Zeus é afirmada em toda a sua força: essa lei,
dentemente, durante a representação, as evoluções e os gestos tor-
proposta aos homens, ordena "sofrer para compreender" (verso
nam visíveis essas mudanças e essa ordem. A paixão do coro era,
177). A partir desse momento, após este par de estrofes de tão ele-
portanto, controlada, dominada, transformada em obra de arte. Para
vada inspiração, passa-se à lembrança do crime cometido por
nós, que não dispomos de mais que palavras _ e ainda pronuncia-
Agamêmnon, quando sacrificou a própria filha. O coro, então, não
das incorretamente! -, toda essa arte ficou perdida. Representações
se contenta em deixar entrever um desastre próximo: apresenta
modernas que nos oferecem passeios harmoniosos e frios, ou então
também uma justificativa no tempo e uma tentativa de explicação
uma espécie de transe arcaico e selvagem, são, em ambos os casos,
teológica. Graças à sua extensão, este canto toma-se uma filosofia,
falsas e enganadoras. Enfim, mesmo supondo que elas saibam pre-
que dá sentido aos acontecimentos que se seguirão.
servar o justo equilíbrio, nos seria transmitido pouco mais que uma
A presença dessa filosofia contribui expressivamente para a
11 impressão artificial, pois as cadências do texto já não nascem dire-
tamente do peso das palavras e das sílabas! grandeza do teatro de Ésquilo, mas ela logo desaparece, ou pelo
menos perde a sua importância, quando passamos para Sófoc1es e
I Essa grande harmonia que realça, graças ao privilégio da for-
Eurípides. A majestade do pensamento conciliava-se com essa
ma, todos os temas sustentados pelo coro reveste-se de outra ma-
fanua um tan~- . óvel. mas solene e inspirada, que era o liriSmo
jestade, decorrente do sentido desses temas. Pois ~sse coro, tão
.L coral: O dec1ínio de uma correszcnde ao declínio da outra.
~aixonadamente interessado no desen~1Qlyjmentofl<Lação em cur-
Certos coros de Sófoc1es figuram entre os mais belos do teatro
so, e todavia incapaz de pat:ti{;jpar dêla,sé-f@sta-p~rmanecer a dis-
grego, e adquirem, na obra de Eurípides, uma graça pungente. O~
..®leia. Nos momentos em que ele não é submerso pelas ondas de
elo com a ação, porém, é cada vez mais tênue, e esta não encontra
terror, nós o vemos a interrogar-se, procurando as causas, dirigin-
mais no lirismo aquela extensão que iluminava os sentidos.
do-se aos deuses. Ele se esforça por compreender, e por esse moti-
Em contrapartida, é evidente que a ação tenha se enriquecido
vo relembra freqüentemente o passado, buscando extrair-lhe a
com aquilo que perdia o lirismo. E se passarmos dos coros para os
lição. O coro oferece, portanto, novas perspectivas ao espírito dos
personagens, assistiremos, de modo inverso, a um enriquecimento
espectadores, tão amplas no seu conteúdo quanto Ihes permitia a
progressivo. Do começo ao fim, a tragédia sempre evoluiu numa
duração da forma. Assim, a meditação do coro confere à ação pro-
priamente dita uma dimensão a mais. direção, desenvolvendo cada vez mais a parte reservada ao palco.
A entrada do coro do Agamêmnon não constitui apenas um
conjunto lírico de extensão excepcional. Este canto encerra tam- Os personagens
bém uma reflexão mais profunda do que qualquer outra; sua pró-
pria extensão mostra-se o caminho para esse aprofundamento. Com Inicialmente, antes de Ésquilo, havia, aparentemente, um só
efeito, o coro começa por dizer por que a situação deve causar in- narrador em frente ao coro (na verdade, o próprio autor): quando
quietação. Depois, quando começa a cantar, ele evoca, num estado esse narrador se integrou à ficção poética, ele se tomou um perso-
quase contemplativo, os presságios funestos que acompanharam a nagem. Mas um só personagem não era suficiente para constituir
partida da frota para Tróia. A evocação é solene e permeada de um: ação. Eram necessários pelo menos dois. O mérito dessa ino-
vaçao, aparentemente, deve-se a Ésquilo. Aristóteles é explícito
sobre esse ponto:
32
Jacqueline de Romil/y
A tragédia grega 33

Ésquilo foi o primeiro a aumentar de um para dois o número de


atores, a diminuir a importância do coro e a transferir o papel
inexoravelmente, os dois últimos serão os dois irmãos, Por fim, a
principal para o diálogo; SófocJes aumentou o número de atores sorte está lançada! Etéocles, o defensor, abandona a cena para en-
para três, e mandou pintar o cenário (Poética, 1449 a). frentar Polinice, o sitiante. A partir do verso 800, é anunciada a
morte dos dois, e nada resta a não ser pranteá-los - durante cerca
Essa breve frase resume a eclosão e a expansão de um gênero. de duzentos versos.
É possível que ela delimite demais as etapas. Na verdade, se Sõfo- O teatro, tal como o conhecemos, não suportaria nenhuma
c1es foi o primeiro a aumentar para três o número de atores, certas peça de conteúdo tão linear, nem uma cena tão estática. É evidente
tragédias de Ésquilo não podem absolutamente ser explicadas sem que o teatro que nos é,familiar prefere um desenvolvimento menos
recorrer a três atores. Poder-se-ia imaginar que ele adotou de ime- previsível: enquanto Esquilo trabalhava com a previsão e o efeito
diato a inovação do seu jovem rival; e pode-se pensar também que, de uma certeza crescente, nós fomos habituados a que o interesse
a despeito de Aristóteles, ele foi o primeiro a fazer essa experiên- seja estimulado pela incerteza e renovado pela surpresa. Tais há-
cia. Parece-nos, em todo caso, que foi justamente a sua obra, que bitos foram introduzidos por obra dos sucessores de Ésquilo.
I,
para nós resume as formas mais arcaicas da tragédia, aquela que Essa evolução já havia sido iniciada nas suas últimas obras. Na
111 refletiu o mais vigoroso esforço de liberar e renovar essas formas. verdade, tal evolução, no teatro grego, é tão contínua e tão regular
Mas os novos meios requerem algum hábito; só aos poucos é que que provocou grande espanto quando, há alguns anos, se descobriu
são descobertas as suas possibilidades. Tanto isso é verdade que a um papiro que revelou não ser o drama As suplicantes a peça mais
presença de um maior número de atores só se popularizou na época antiga de Ésquilo, como se acreditava, mas que fora, sim, escrito
dos seus sucessores.
pouco antes da Orestia. Esta era uma peça em que o coro parecia
li,
A diferença fica clara se compararmos a estrutura das suas tra- ser composto por cinqüenta elementos (a lenda fala das cinqüenta
gédias com a dos seus sucessores. A t'ragédia de Ésquilo apresenta filhas de Dânao, e a peça menciona seus cinqüenta pretendentes.
uma forma simples, algo rígida, e por momentos quase hierática. Acima de tudo, esse coro desempenhava um papel excepcional-
Durante episódios inteiros, não acontece quase nada. Ademais, mente importante na peça (pois trata-se do destino dessas jovens,
cada peça comporta, em geral, apenas um evento, que ocupa quase suas emoções, sentimentos, e de fato elas recitam mais da metade
dois terços da tragédia: toda a parte inicial consiste em esperá-Io, e dos versos da peça). Por fim, a ação não podia ser mais reduzida (a
toda a parte final em lamentá-Ia. É claro que existe arte em manter peça inteira trata de um pedido de proteção, contra uma ameaça,
renovado o interesse, deixando que esse famoso evento se mostre pedido que é apresentado, aceito e confirmado). Pelo visto, era
aos poucos, mas não há propriamente surpresa, nem complexidade. quase certo tratar-se de um exemplo bem nítido da tragédia no seu
Em Os sele contra Tebas, sabe-se, desde o começo, que Tebas começo; e muitos até, mesmo em face de um documento tão antigo,
é atacada por um dos filhos de Édipo e defendida pelo outro; sabe- sentiram enorme dificuldade em admitir uma data mais recente.!'
se igualmente que uma maldição paterna condena os dois homens a É preciso ainda acrescentar que essa extrema simplicidade,
morrer golpeando-se um ao outro. Pois bem, a peça não contém que caracteriza a estrutura das tragédias de Ésquilo, era atenuada,
nada além disso. Até o verso 650, o espectador está preso à angús- em certa medida, pela maneira como eram representadas. Elas não
tia da cidade, e vê aproximar-se o momento em que os dois irmãos se apresentavam isoladas, mas formavam conjuntos de três peças -
irão se confrontar. Uma cena longa - de trezentos versos _ é ocu-
pada inteiramente pela descrição dos brasões dos sete chefes siti-
antes e dos sete chefes defensores. Ou melhor, seis, em vez de sete, 11 ' .

pois quanto mais avança a lista, mais claramente se percebe que, E possível também que Ésquilo tenha retomado um projeto antigo, mas
a da~a indicada pelo papiro sugere, ao menos, que esse estilo, um tanto.
arcaíco, se conservou entre as preferências do autor.
34
Jacqueline de Romi//y A tragédia grega 35

J trilogias." Com exceção de Os persas, todas as tragédias conheci, , corno a série sobre As troianas, 14 à qual pertencia a tragédia de Eu-
das de ÉsquilO, pertenciam a trilO,gias. As suplicantes e Prometeu
rípides. Mas elas não' s~O,mais ligadas por uma relação' tão' estreita
acorrentado cO,nstituíam, cada uma, a primeira peça de uma trilo,
como nas tragédias de Esquilo'; muitas vezes, até, essa relação' não'
gia; Os sete contra Tebas, ao, cO,ntráriO" é uma cO,nclusãO,. Aga- existe. PO,r outro lado, tanto, Sófocles como.Eurípides empenharam-
mêmnon, As coéforas e As eumênides, por sua vez, cO,mpõem uma
se em elaborar, em cada tragédia, a parte reservada.à ação'.
trilO,gia completa - a Orestia. Analisando' a Orestia, é fácil perce-
No' lugar de uma tragédia resultante de algum golpe cruel dos
ber quanto, ganhava cada tragédia com a cO,nexãO, com as outras
deuses, que levava um coro angustiado' a interrogar-se, em grande
duas, enCO,ntrandO, um prolO,ngamentO, natural, fazendo, parte, desde
temor, o, interesse passou a centrar-se sobre o, que eram e o, que fa-
o, início', de um conjunto harmO,niO,SO,.AgamêmnO,n era morto pO,r
ziam O,Shomens, A tragédia começou a mostrá-Ios .em luta com os
Clitemnestra; depO,is Clitemnestra pO,r seu filho: o, assassinato' O,CO,r-
acO,ntecimentO,s que recusavam ou impunham. A isso' correspon-
rido, na segunda peça era explicado' pelo' da primeira, e vinha em deu, necessariamente, uma renovação dos meios literários.
respO,sta a ele. PO,r outro lado', esse encadeamento' levantava um
A peça de Ésquilo onde Orestes retoma e mata a mãe chama-
1 prO,blema moral, pois se cada assassinato' chamava outro, qual seria
se As coéforas, porque o, coro entrava trazendo, libações funerárias,
o, final? E se cada assassinato' era justificado" corno se poderia dis-
O,Uchoai. Ambas as peças - uma de Sófocles, a O,utra de Eurípides
tinguir entre o, crime e seu castigo» Esse problema, suscitado' pelas
-, que tratam do' mesmo, assunto', chamam-se Electra. CO,m efeito" a
âuas primeiras peças, resO,lvia-se na terceira. Assim, pode-ss ima-
irmã de Orestes tornou-se aqui o, centro da ação'. Ela espera o, ir-
ginar o, quanto, As suplicantes cresceriam aos nosso olhos, se sou-
mão', incita-o' ao, crime, ajuda-o'. NO,ssO,interesse, portanto reside
béssemO,s como a trilO,gia das Danaides resO,lveria o, prO,blema
naquilo' que ela sente e faz; comovemo-nos com sua desgraça e
levantado' por essas virgens que se recusavam a casar; e pO,demO,s
com sua firmeza. Electra, na sua dor e na sua determinação', tor-
imaginar também quanto, sentido, {eçiam os diversO,s detalhes de Os
nou-se na verdade a heroína da tragédia. Ora, são' heróis como ela
sete Contra Tebas, se cO,nhecêssemO,s o,s eventos, jUlgamentO,s, CO,- que emprestam os seus nomes a todas as outras peças conservadas
mentáriO,s e problemas aos quais a peça trazia cO,nclusãO,.13 A trilO,-
de Sófocles, menos uma. Temos, assim, Ájax, Antígona, Édipo rei,
gia, na obra de ÉsquilO" é um verdadeiro' cO,njuntO, coeso _ quase
uma ação' em três partes. Édipo em Colona, Filoctetes. Poder-se-ia dizer: uma galeria de fi-
guras engrandecidas pelo' sofrimento e pela coragern - engrandeci-
No, entanto', se o, propósito, fosse conferi- maior mO,vimentO, e
das pela tragédia. A esses nomes correspondern os dos heróis de
variedade à ação', esta SO,luçãO,não' seria suficiente; ela permitia
Eurípides, ou, mais freqüentemente, os das suas heroínas: Alceste,
mais U)TI prO,IO,ngamentO, da ação' do, que uma aceleração, do' seu
Medéia, Hécuba, Helena, lfigênia em Áulida, Ifigênia em Tâuri-
ritmo'. PO,r isso', SófO,cles e Eurípides partiram para outro esquema.
da ... Os personagens são', a partir de agora, o, centro' do' interesse.
AmbO,s, praticamente, abandO,nam a trilO,gia. DepO,is de ÉsquilO"
Tal evolução decorre,
naturalmente, do' desenvolvimento da
por vezes, encO,ntram-se ainda três peças tratando, do' mesmo, tema,
ação. Pois se nos comovemos com o, destino' dO,s personagens, é
evidenta que essa emoção só tende a aumentar com os diversos
gO,lpes aos quais eles são' submetidos. E se nO,s interessamos por
12 A essas três tragédias juntava-se um drama satírico, apresentado pelo s~as virtudes ou paixões, é igualmente evidente que esse interesse
mesmo poeta; mas mesmo na obra de Ésquilo esse drama raramente ti- so poderá avivar-se se assistirmos às suas reações diante das diver-
nha alguma relação com o tema das tragédias. sas peripécias que deverão' enfrentar. A Electra de Sófocles, dessa
13 A trilogia era composta das seguintes peças: Laia, Édipo e Os sete
COntra Tebas, às quais se juntava, como drama satírico, A esfinge.
14 A .
tnlogia era composta das seguintes peças: Alexandre, Palamedes e
As traia nas, as
.
' quais. se acrescentava como drama satírico,
'
, . s'ISIifio.
37
A tragédia grega
36 Jacqueline de Romilly

nando- cada vez mais realista, chega-se, com Eurípides, a um


forma, tem a chance tanto de nos comover quanto de revelar sua se
teatro onde cada um defende seus sentimentôs ou suas idéias. De
verdadeira natureza, graças à idéia de SófocIes de fazê-Ia vítima da fato, Eurípides utilizou amplamente uma forma literária que tomou
mentira inventada por seu irmão. Ela esperava por Orestes, quando
fica sabendo de sua morte. Desesperada, decide agir sozinha. Des-
cobre então que ele não apenas está vivo, mas também presente,
remprestada da vida de sua época - ~ debate organizado.
Nascida do hábito do debate judiciário, ap~rfeiçoada pela ret?-
rica da época, a arte do embate oratóno florescla plenamente.lfr'a eso
diante dos seus olhos. Essa provação e esses contrastes acrescen- que se chamava um ogon." Ora, quase toda a tragédia de Eurípid
tam destaque ao personagem. contém pelo menos uma cena de agon. O agon é um confronto or-
Em outros casos, pode ser que o próprio herói, por iniciativa ganizado, no qual se contrapõem dois longos discursos, geralmente
própria, se encarregue de surpreender os outros, revelando de ma- seguidos de um intercâmbio de versos, tomando os contrastes mais
neira. imprevista aquilo de que era capaz. Assim Ájax, que, como densos, mais tensos, mais crepitantes. No agon, cada um defendia
Electra, foi inicialmente posto à prova por uma brusca calamidade, o seu ponto de vista com toda a força retórica possível, numa gran-
deverá enfrentar esse desafio. Ele poderia viver e aceitar. Fará \ ce exposição de argumentos, que naturalmente contribuía para es-
isso? Os seus propósitos parecem sugerir que sim. Mas Ájax não
\.darecer seu pensamento, ou sua paixão.
seria Ájax se aceitasse; e eis que, no momento em que todos acre- Dois exemplos podem dar uma idéia da diferença do enfoque
ditam que ele está salvo, Ájax se suicida. A brusca reviravolta da que esses hábitos de análise e discussão podem conferir aos perso-
ação é aqui obra sua, e é por meio dela que se afirma tal como é.
Mais que isso, a nova importância conferida aos personagens, nagens.
Ésquilo havia dotado sua Clitemnestra de uma grandeza ines-
no interior da própria ação, traduz-se pelo enriquecimento da análi- quecível. Mas parte dessa grandeza residia justamente no silêncio
se psicológica.lfim SófocIes e Eurípides, assistimos a personagens que Ésquilo deixava pairar sobre seus motivos. Clitemnestra, uma
que começam a se explicar, \a\se,justificar, e mesmo monologar vez cumprida a sua vingança, vangloria-se do seu ato, mas sem
sobre aquilo que pensam e sentem. A Electra de SófocIes tem uma jamais descrever os seus sentimentos: ela era A Vingança. Não há
irmã, com a qual discute; essa discussão permite ao autor colocar como compará-la com a Clitemnestra de Eurípides que, em Elec-
em evidência o contraste profundo entre as personalidades de cada tra, só aparece muitos anos depois do assassinato, velha e desiludi-
uma delas. Da mesma forma, Ájax discute com Tecmessa, e ambos da. Deve-se antes compará-la às heroínas de Eurípides, uma das
expõem detalhadamente a maneira como pensam que se deva agir. quais _ Medéia _, a exemplo da Clitemnestra de Ésquilo, pratica
Os personagens já não se contentam mais em agir: eles se explicam. um assassinato monstruoso no decorrer de uma tragédia. Ora, Me-
É preciso, além disso, acrescentar que a multiplicação do nú- déia, ao contrário de Clitemnestra, fala, grita, insulta e se lamenta.
mero dos personagens permitia, na prática, confrontar os protago- Desde o início da peça, ela se lamuria sem cessar, nos deixando a
nistas com mais surpresas e mais contrates - o que, por fim, -- p~r de tudo o que a está ferindo. por duas vezes ela se opõe a Ia-
sempre Ihes confere uma maneira de ser mais rebuscada e mais sao; a primeira traz um confronto sincero e cheio de irritação, com
matizada. De sobressaltos em sobressaltos, de cenas em cenas, eles todos os seus rancores asperamente formulados: Eurípides faz dis-
se definem, se enriquecem, se afirmam. A tragédia empenha-se so uma cena de agon. Naturalmente, isso é tudo. Quando Medéia
cada vez mais em fazê-los viver. ~ decide pelo assassinato, ela precisa explicar-se mais uma vez.
I
No teatro de SófocIes, esses contrastes e desafios servem, aci- la o faz num monólogo de quase quarenta versos. Depois, de
ma de tudo, para destacar as diferenças entre um ideal de vida e
outro, ou para ilustrar a força de alma dos personagens. Na medida
em que este procedimento vai sendo moldado, com a tragédia tor- \5 Cf., entre outros J. Duchemin L'agôn dans Ia tragédie grecque, Paris,
1945. ' '
38
Jacqueline de Romifly A tragédia grega 39

novo, no momento de passar à ação, Eurípides brinda-a com outro


monólogo, com mais de sessenta versos. Nesses dois monólogos,
A ação
vemo-Ia hesitante, cedendo a todo momento a solicitações contra- , Nas tragédías de S~focles já existe um~ arte bem definida, que
ditórias. A vingança, o orgulho, o amor maternal, tudo aí tem o seu consiste em cultivar o ínteresse e desperta-Io sempre de novo. O
lugar. Seria preciso ainda mencionar que, após o assassinato, bem caso de Dejanira, em As traquínias, pode prová-Ia. Ela está à espe-
no final da peça, um último enfrentamento com Jasão dá o toque ra do marido. E eis que chegam boas notícias: o seu marido che-
derradeiro à imagem do seu ódio. Assim, nessa tragédia, embora gou, está vivo e prestes a encontrar-se com ela; todos estão felizes.
seja uma das mais simples do autor, os estados de alma da heroína As notícias, porém, eram incompletas. Um personagem mais bem
revelam-se, abertamente, em todos os passos da ação. A grandeza infonnado acaba por revelar-lhe que seu marido está realmente de
de Clitemnestra estava no fato de não deixar transparecer nada; a volta e vivo, mas acompanhado de outra mulher, pela qual está
grandeza de Medéia reside no fato de ela se revelar por inteiro. agora apaixonado. A notícia é evidentemente dolorosa, mas Deja-
Da mesma forma, o Etéocles de ÉsquiJo, em Os sete Contra nira recupera a esperança acreditando poder trazer o marido de
Tebas, partia subitamente para combater o seu irmão, impelido por volta para si, graças a uma poção mágica. Restabelece-se, portanto,
uma maldição, embora não fossem claros os sentimentos que o fa- a esperança. Mas a droga destrói o pedaço de lã com o qual foi
ziam obedecer a tal impulso. Eurípides, ao contrário, retomando aplicada, e está de volta a angústia. E não sem razão, porque em
esse tema, deleitou-se em imaginar que houvera um encontro entre seguida Dejanira fica sabendo, por seu próprio filho, que ela na
os dois irmãos - um encontro preparado e arbitrado por Jocasta, verdade provocou a morte do marido. "Esses efeitos habilmente
mãe de ambos. Eles se queixam, e expõem as suas razões. Desco- conduzidos, essas notícias fragmentadas, essas alternâncias de ale-
brimos um Etéocles inebriado pelo poder, encarnando a ambição. gria e desespero encontram-se, em graus diversos, em quase todas
Esse Etéocles extrai do confronto up1~ realidade psicológica nova, as peças de Sófocles.zlidipo precisa de três revelações sucessivas
e ao mesmo tempo reveste-se de um valor quase simbólico, ao tor- para descobrir quem ele é e o que faz: a primeira enche-o de ale-
nar-se porta-voz de uma moral e de uma atitude política: postas às gria, a segunda inquieta-o e a terceira traz-lhe a certeza do desastre,
claras, suas motivações conferem-lhe o seu sentido pleno. Mesmo quando se trata de um personagem secundário, como
Confrontos análogos opõem, em Eurípides, grande número de Egisto, em E/ectra, Sófoc1es deleita-se ao imaginar que ele, vendo
idéias, doutrinas e paixões. Os personagens multiplicam-se, as pe- um cadáver, acredita que Orestes está morto: ele exulta, e crê que
ripécias põem-nos todos à prova. Acompanhamos as suas aventu- tudo está salvo; mas logo descobre que se tratava de Clitemnestra,
ras como o faríamos com pessoas reais, cujo destino nos interessa. e sabe então que está perdido.
Entretanto, seria uma perspectiva errônea ver na maior impor- , Essas reviravoltas constituem aquilo que Aristóteles chamava
tância concedida aos personagens um interesse antes de tudo psi- as "peripécias". Quando, na Poética, ele quer dar-lhes uma defini-
cológico, ou imaginar que o único objetivo da ação seja ressaltar os ção, o melhor exemplo que lhe ocorre é o de Édipo rei, tendo es-
sentimentos de uns ou de outros. O teatro grego jamais foi um tea- crito (em 1452 a):
tro predominantemente psicológico, e a psicologia somente obteve
algum destaque na medida em que uma ação mais elaborada lhe A peripécia é o reverter da ação ao seu sentido contrário, con-
abriu, à força, um espaço maior. forme o que foi dito; e isso, uma vez mais, segundo a verossi-
milhança ou a necessidade; assim, em Édipo, o mensageiro
chega, na certeza de que vai alegrar Édipo e tranqüilizá-Io a
respeito de sua mãe; mas a revelação de sua verdadeira identi-
dade produz em Édipo o efeito contrário.
40
Jacqueline de Romil/y 41
A tragédia grega

Ora, tais artifícios, capazes de despertar o interesse, tomar-se- neamente à morte. O fato suscita muitas emoções, surpresas e ori-
iam, na obra de Eurípides, a regra do gênero. Ele inventou o que
entações diversas. Nes~e meio tempo, chega o mensageiro. Irá ele,
poderíamos chamar de trama. Seu teatro está cheio de astúcias,
finalmente, como em Esquilo, anunciar a morte dos dois irmãos?
Surpresas, confusões e re~onhecimentos. Ele multiplicou os episó-
Absolutamente! Ele traz notícias da batalha em geral: tudo está
dios e os personagens, visando tomar essa trama mais variada e
emocionante. indo bem, há esperanças. Quanto aos dois irmãos, bem, eles estão
se preparando para enfreniar-se! O corte introduzido no relato fun-
Basta um exemplo para mostrar até que ponto se desenvolveu, ciona como uma espécie de "a seguir", no estilo dos nossos seria-
com Eurípides, o uso de vários personagens, e a variedade que ele dos. De fato, Jocasta e Antígona precipitam-se imediatamente, na
confere ao desenrolar da ação: As Tenteias, tragédia que goza da
esperança de ainda poder deter o combate~ Só no episódio seguinte
vantagem de tratar do mesmo tema de Os sete contra Tebas, de
Ésquilo. sabe-se que esta esperança foi frustrada. E fácil acreditar que uma
tragédia tão rica em personagens e tão fértil em peripécias não ti-
A peça de Ésquilo é bastante simples. Além de Etéocles e do vesse necessidade de duas outras para completá-Ia, nem poderia
coro, só há a intervenção de um ou mais mensageiros, e a ação
inserir-se numa triologia: ela constitui, em si, um mundo fechado,
li/ri! I consiste unicamente em aguardar a decisão de Etéocles, para de-
onde os acontecimentos se apresentam com toda a gama de suas
pois lamentar o seu defeito. Em As fenícias, ao contrário, toda a
implicações humanas.Í"
família de Édipo está envolvida no drama, e sofre seus golpes.
E, de repente, que intensificação do patético! A luta entre os
Aparece POlinice, para fazer oposição ao seu irmão Etéocles, num
dois irmãos é uma cena digna de análise: a presença de Jocasta, sua
conflito ruidoso; está presente Jocasta, mãe dos dois, assistindo a
mãe, e um elemento de dor e crueldade: ."Desgraçada de mim! O
esse conflito que a dilacera, há também Antígona e o pedagogo,
que fareis agora, meus filhos?" O pedido feito por Tirésias a Cre-
que fazem uma comovente apresentaç~o.da. abertura. Antígona re- onte (sempre em As fenícias) poderia levantar um problema a ser
aparece no fim, logo seguida pelo próprio Édipo, que, contrariando resolvido entre um chefe e um advinho: o sacrifício voluntário do
toda a tradição, parece ter permanecido no palácio só para unir-se
jovem Meneceu, ainda quase menino, toma o episódio comovente.
ao luto de sua filha. Além disso tudo, no meio da peça, Eurípides
As notícias do combate entre os dois irmãos poderiam ser traz idas
apresenta Creonte, irmão de Jocasta, que discute com Tirésias os
ao coro, como na obra de Ésquilo; mas é Jocasta que as recebe, e
meios de salvar a cidade, bem como Meneceu, filho de Creonte, parte com Antígona - uma anciã e uma mocinha - para tentar deter
que morrerá para salvá-Ia. Se juntarmos a essa lista os dois mensa-
os seus filhos. Do mesmo modo, para prantear os mortos, temos
geiros do final, teremos nada menos que onze personagens. Muitos
Antígona e Édipo - uma jovem e um velho cego - em vez do coro.
destes têm basicamente a função de valorizar e variar a ressonância
Ambos estão feridos nos seus sentimentos mais íntimos. O evento
humana do drama, mas é claro que, no conjunto, eles também impõem
refrange-se em sofrimentos pessoais e impotentes, com o propósito
à ação um movimento que precipita o ritmo e renova o interesse. de suscitar a piedade.
A entrada de Polinice nessa cidade que se tomou inimiga tinha . Esse aspecto patético, deliberadamente posto em prática por
o Propósito de instigar a curiosidade. O embate entre os dois ir- meio de uma ação mais elaborada, é uma das tendências essenciais
mãos podia levar a diversas direções. A chegada de Tirésias pode-
ria dar origem a novas esperanças. Porém, Tirésias revelou um
desastre imprevisto para Creonte: para salvar Tebas, ele deveria
-16

matar seu filho Meneceu. Ele faria isso? Ele não quer, e recusa. Por constituírem um mundo fechado em si mesmas, e considerando
também que Eurípides imaginava quase sempre situações estranhas à
Mas eis que esse filho, de maneira imprevista, se oferece esponta-
lenda, mas que enriqueciam a trama, suas peças começam em geral
co~ longas explicações, dadas num monólogo (cf. L. Méridier, O
prologo na tragédia de Eurípides, 1911).
42
jacque/ine de Romi//y
A tragédia grega 43

da tragédia, tal como foi concebida por Eurípides. Surgiram vários


instrumentos, todos utilizados para esse fim. ao atribuir, a princípio, um erro à pessoa. No primeiro caso, a situ-
ação leva ao que se denomina golpe teatral; no segundo, chega-se a
Em primeiro lugar, multiplicaram_se os personagens dignos de
um reconhecimento, o qual também pode - mas nem sempre - le-
compaixão. Ájax, na peça de Sófocles, despede-se de seu filho:
trata-se de uma evocação direta do canto VI da l/íada, e esta deve- var a um golpe teatral.
As cenas de reconhecimento não eram novidade. E Eurípides
ria ser uma cena muito impressionante no teatro. Já Eurípides, por
sua vez, apresentou jovens em Alceste, em Medéia, em Os herâcli: não foi, de forma alguma, o primeiro a utilizá-Ias no teatro. De
fato, aqui também a epopéia já havia apontado o caminho, pois era
das, na Andrômaca, no Héracles, em As suplicantes, em As troia-
nas: essas crianças eram abandonadas, ameaçadas ou mortas, seja famoso, na Odisséia, o momento em que Ulisses é reconhecido por
sua ama-de-leite, a qual, ao banhá-lo, se lembra de uma pinta que
em presença de uma mãe impotente para salvá-Ias, seja por obra da
ele tinha, identificando-o deste modo. A tragédia encontra aí farto
própria mãe. Na maioria das vezes, Eurípides as fazia falar, ao me-
nos para breves réplicas de aflição ou de súplica. Por outro lado, material patético. Quando Aristóteles, em sua Poética, fala da ação
complexa em oposição à ação simples, define a primeira pelo fato

! em número quase igual de peças, ele introduziu velhos alquebra-


dos, tanto pela idade como pelas desgraças, também vítimas de
insultos e violências, contra os quais permaneciam inertes. Mas,
sobretudo, mais do que os personagens patéticos, a tragédia desco-
de que a mudança no destino ocorre "com o reconhecimento, com
a peripécia, ou com ambos" (1452 a). Aristóteles define, inclusive,
as regras para um bom reconhecimento: é preciso que a verossi-
milhança e o natural se aliem ao patético. O melhor exemplo, a seu
briu a arte de apresentar situações patéticas. Foram vistos infelizes
ver, é o Édipo rei de Sófocles, onde o reconhecimento constituía,
refugiados ao pé de um altar, prestes a serem arrancados dali para
na realidade, o próprio núcleo da ação, entrecortando-a com revi-
serem conduzidos à morte, e espadas desembainhadas para execu-
ravoltas diversas. É evidente que Eurípides, com sua sutileza e seu
ções iminentes. De forma mais elabo{aQa, .viam-se cenas de luta
hábito de verossimilhanças retóricas, tinha tudo para tomar-se um
acontecendo na presença da vítima, cujo destino estava em jogo:
dos mestres do gênero. Em todo caso, ele debocha sem pudor do
Andrômaca, com seu filho, encontrava-se ainda sob pesadas amar-
reconhecimento concebido por Ésquilo entre Electra e Orestes -
ras, enquanto Peleu e Menelau enfrentavam_se por Sua causa. Ifi-
gênia escutava sua mãe suplicar a Agamêmnon por ela. Viam-se reconhecimento baseado na descoberta de uma mecha de cabelos e
inclusive personagens utilizando-se de um outro, para fazer pressão da marca de uma pegada, confirmado depois pelo achado de um
velho pano bordado. Mas uma mecha de cabelo e uma pegada seri-
sobre um terceiro. Fazendo uma chantagem, Menelau COnsegue a
am os mesmos, entre um irmão e uma irmã? Um tecido estaria ain-
libertação de Andrômaca, ameaçando seu filho de morte; e num
da em uso, depois de tantos anos? Eurípides deveria poder fazê-lo
belo rasgo de justiça literária, Orestes, por sua vez, na peça que
melhor. E Aristóteles refere-se, de modo favorável, ao reconheci-
leva o seu nome, pressiona Menelau, ameaçando sua filha, Her-
mento concebido por ele, entre lfigênia e Orestes, em Ifigênia em
míone, que detém à sua mercê, sob os olhos do próprio Menelau.
Táurida.
E, finalmente, essas diversas situações foram levadas a um ní-
O fato é que cenas desse gênero são freqüentes no teatro de
vel ainda mais patético, com a utilização de dois artifícios que seri- E unp,
ípid es. /on
' é uma peça repleta de falsos reconhecimentos, que
am considerados, mais tarde, elementos constitutivos da tragédia
grega. ~ulmi~am com o verdadeiro. E em Helena, Eurígides imaginou,
incíusíve
. cir
,cuns tânci . .
ancias que exigiam um recon h"ecírnento, impre-
O primeiro consiste em levar uma situação ameaçadora até o VIsto e pro d"IglOSO,entre Helena e Menelau, marido e mulher. Mas
seu limite extremo, até o momento em que o desastre é inevitável;
parece que ele preferia aqueles reconhecimentos que se combina-
o segundo consiste em tomar a situação particulannente horrível,
v;~ com os golpes teatrais, porque então o interesse na trama e o
eleito pa téetico
. se elevavam ao mais alto grau.
44
Jacqueline de Romil/y 45
A tragédia grega

Ele domina admiravelmente a arte de criar tensão, de infundir limitados que evocavam mais a tradição dos mistérios religiosos
medo, de fazer a platéia palpitar! Esta é, pode-se dizer, a arte do
que a do teatro moderno, constatamos, um tanto incomodados, que
escritor Profissional, de um homem de letras. O caso mais simples
Eurípides, sobretudo na segunda metade da sua vida literária, se
é o da espera de um salvador, que tarda a um ponto tal que se ins-
aproxima, por momentos, da comédia nova e de Menandro, às ve-
tala o desespero; e subitamente, quando ninguém mais acredita, eis
zes até do drama burguês.
que ele aparece. Assim foi o aparecimento de HéracJes, na peça
No entanto, a evolução é contínua - e breve. O impulso inter-
que leva seu nome: ele chega para salvar os seus, no exato mo- no que renova a tragédia grega, multiplicando seus meios e deslo-
mento em que, após muitas lamentações, esperanças e súplicas, seu cando seus centros de interesse, move-se, no espaço de oitenta
pai acaba de dizer: "Mas de que adianta invocar-te: vãos esforços! anos, do arcaísmo mais austero a uma modernidade, de certo
Estou vendo, a morte é inevitável" (502). Da mesma forma, em modo, excessivamente rápida.
Andrômaca, o velho Peleu surge no momento em que, após muita É possível também que essa modernidade, em certo sentido,
discussão e argumentação, Andrômaca e seu filho estão sendo le- marque o fim da tragédia grega, pois a evolução foi de tal ordem
vados à morte. Eles estão acorrentados; já deram adeus à vida; Me- que um dos dois elementos da sua composição perdeu totalmente
nelau acaba de pronunciar palavras inexoráveis, concluindo: "Tu sua função essencial. O coro, em certas tragédias de Eurípides, já
descerás ao Hades infernal". quando o coro anuncia: "Mas eu vejo não desempenha mais do que um papel secundário; e a graça ine-
Peleu que se aproxima ..."
gável do lirismo acaba tomando-se um atrativo dispensável - que o
Outras vezes, a salvação não vem de uma pessoa, mas de uma teatro moderno, de fato, dispensa.
notícia que altera a situação. Neste caso, o reconhecimento assume Podemos até nos perguntar se não foi a percepção de algo que
a forma de um golpe teatral, pois vem encerrar uma situação que se enfraquecia que inspirou uma das duas últimas tragédias de Eu-
acabaria em um drama monstruoso. ~uitas vezes são parentes pró- rípides (a última ou penúltima), uma das mais fiéis ao esquema
ximos - ou mesmo pais e filhos - que estão a ponto de se eliminar, original da tragédia grega. Trata-se da peça intitulada As bacantes.
sem conhecimento do que se passa. É assim em Íon, onde a mãe Composta na corte do rei da Macedônia, pouco antes da morte do
poeta, esta é uma tragédia na qual o coro volta a desempenhar um
quer, no início, matar aquele que é, de fato, seu filho; depois esse
papel importante, novamente associado à ação. É também uma tra-
filho prepara-se para a Sua vingança; e está a ponto de fazê-Io.
gédia de inspiração religiosa, que caminha para uma catástrofe úni-
quando surge a Pítia: "Alto lá, meu filho!" No último minuto,
ca. Enfim, é uma tragédia hostil ao espírito racional e sofisticado,
acontece o reconhecimento tardio entre mãe e filho. Já foi dito que, que tanto se destacou na inspiração de Eurípides. Por conseguinte,
nas peças que se perderam, como Cresfonte, Alexandre, Hipsípila, tudo leva a crer num retomo à fonte, cuja vertente secaria aos pou-
Eurípides extraía efeitos sUrpreendentes de situações análogas. E cos, tragada pela areia.
mesmo na lfigênia em Táurida, o reconhecimento entre irmão e . . De fato, a tragédia, como gênero literário, tinha evoluído até o
irmã alcança uma dimensão ainda mais patética pelo fato de que limite daquilo que definia a sua originalidade. Mas ela só pôde
Ifigênia, sem de nada saber, está prestes a imolar esse irmão no
culto de Ártemis. evoluir assim em razão de uma profunda transformação do espírito
geral que animava seus autores. E no momento em que a tragédia
Estes são apenas alguns exemplos. Se fôssemos além, arrisca- grega chega ao seu fim, vemos que a inspiração religiosa e nacio-
ríamos dar a impressão de que o teatro de Eurípides não ia além de nal, que havia suscitado as suas grandes produções, estava em de-
cad~ .
artifícios da profissão e de cenas de efeito~at!lralmente, não é enc~a, para logo mais desaparecer.
~ada disso. Todavia, no momento em que aspriPleiras tragédias de I O Impasse a que chega a tragédia grega, quando um dos seus
Esquilo poderiam desorientar-nos, com seu pd'rte hierático e meios e ementos básicos perde sua função essencial, coincide com o im-
v.
P~s.sea que chega Atenas, quando o individualismo triunfa sobre o
C IVISmo' , - e quan d o fima-1
, assim como o ateísmo sobre a devoçao,
mente o fut uro do homem deve ser repensado.
46
Jacqueline de Romil/y

Esta coincidência confinna a originalidade da tragédia grega e


seu vigor profundo. Mas, ao mesmo tempo, ela nos convida a ob-
servar mais de perto o que cada um dos três trágicos tinha a dizer
sobre o homem. Esta evolução do pensamento e da inspiração POde
definitivamente esclarecer não apenas as transfonnações literárias
aqui destacadas, mas também o que ainda não foi definido _ o sen-
tido. que se deve atribuir à noção do trágico.
Capítulo 2

Ésquilo ou a tragédia
da justiça divina
~I! I

Ésquilo é o homem das Guerras Médicas. Em duas oportuni-


dades, ele viu sua pátria ameaçada, depois salva, e por fim triun-
fante. E ele é um dos que lutaram por essa vitória. Em 490, ele
\
\
participou da Batalha de Maratona (como dela também participou
um irmão seu, cujo heroísmo é mencionado por Heródoto). Em
480, já com 45 anos, ele lutou em Salamina, quanto Atenas foi
evacuada, ocupada, incendiada.
É perfeitamente compreensível que uma tal aventura marque
um homem pelo resto da vida. E a obra de Ésquilo dá muitas pro-
vas disso. Existe um epitáfio atribuído a ele, e que bem poderia ser
seu, no qual a glória de haver combatido contra o invasor bárbaro
parece o principal mérito reivindicado por esse poeta. Diz o epitá-
fio: "Pelo seu valor, pode-se acreditar no famoso cerco de Marato-
na: ele o conhece bem".
Isso não significa que Ésquilo tenha esperado nem seus 45
anos, nem essa provação nacional, para escrever as suas tragédias:
na realidade, Iele parece ter iniciado sua carreira aos 25 anos, no
ano 500. Mas o fato é que ganhou seu primeiro concurso em 484,
ent:e as duas Guerras Médicas; e é fato também que a tragédia
rn,~~ant~ga conhecida seja, ao que parece, Os persas: ora, essa tra-
te Ia fOIrepresentada em 472, oito anos depois da grande vitória.
\certo modo, é muito estimulante o fato de que a entrada de És-
qUIo no mundo da tragédia, tal como o conhecemos, tenha ocorri-
48
Jacqueline de Romil/y 49
A tragédia grega

do na época dessa vitória, que consagra a grandeza ateniense e irn,


prime à obra do poeta uma marca tão profunda. Mas os atenienses não haviam encarregado os deuses de tudo.
Eles lutaram e se defenderam, a tal ponto que, quanto aos homens,

r
- De 472 a 458, a carreira de Ésquilo desenvolve_se naquela
a lição só podia estimular o respeito pelo heroísmo humano ao co-
'Í' Atenas ainda orgulhosa de sua recente glória, e onde a evolução
laborar com os deuses. Enfim, a experiência reforçava a idéia de
. democrática começa a delinear-se sob o comando do jovem Pér],
lW as gr.andes cri~s têm algo de coletivo..; portanto, ela se combi~~ C
. . cles, que havia sido o corego designado para garantir a representa_
nava facIlmente com o papel desempenhado pelo coro, levãnaõ
ção de Os persas, Das suas obras apresentadas, conhecemos ainda
Ésquilo a insistir no impacto que seus dramas individuais exerciam
Os sete COntra Tebos (peça apreSentada em 467), As suplicantes
sobre os grupos humanos, aos quais pertenciam os heróis.
(que data, provavelmente, de 463) e a OresHo, representada em 458.
Com relação aos deuses e aos homens, estes são efetivamente
A Ores/ia foi a última vitória alcançada por Ésquilo, que pou-
os traços mais originais do pensamento de Ésquilo; e é visível que
co depois saiu de Atenas, Partindo para a SicJ1ia. Já havia ido para
eles se relacionam facilmente com as datas das duas batalhas, que
• lá depois de apresentar Os persas, respondendo a um convite de
Hierão, tirano de Siracusa, que, igualmente vitorioso sobre outros demarcam sua vida.
Da mesma forma, as sete tragédias que chegaram até nós po-
bárbaros, iria comprazer-se
louvadas pelos poetas. em ver associadas as duas vitórias, e
dem dar-nos uma idéia bastante nítida da sua obra. No entanto,
• como não nos entristecer, considerando que Ésquilo escreveu cerca
Não se sabe quais descontentamentos levaram Ésquilo a aban-
de cem tragédias e que apenas sete chegaram às nossas mãos? O
donar essa Atenas pela qual havia combatido, e retomar à Sicflia.
apelo das tragédias perdidas, das quais só conhecemos os títulos,
Ignora-se de que maneira ele morreu em Gela, em 456 (a menos
carrega-se de luto, um pouco como o apelo dos nomes dos chefes
que se aceite a lenda, segundo a qual uma águia lhe teria atirado
persas, mortos na luta contra Atenas, os quais, como em Os persas,
uma tartaruga sobre a cabeça, tom{lndo o seu crânio por uma ro-
não voltarão jamais. Ifigênia, Filoctetes, os Mísios, as Mulheres
cha!). E ignora-se finalmente ~u~ndo e onde ele apresentou a tra-
tracianas e as Salaminas são outros tantos títulos que evocamos
gédia Prometeu, que contém algumas referências à SicJ1ia, mas da
em função de outros poetas, mas que evocamos em vão. Somente
qual se seja
Esquilo sabe seu
tãoautor.
pouco que alguns chegam mesmo a duvidar que
às vezes, num golpe de sorte, alguns versos ou algumas réplicas
são descobertos como as queixas de Níobe ou um trecho dos Mir-
Duas datas de batalhas, sete títulos de tragédias, isto é tudo o
midões. Ou então a lembrança, conservada pelos antigos, de um
que conhecemos da vida de ÉsquiJo. Isso é pouco, e é muito, pois,
momento particularmente impressionante, como o longo silêncio
se Esquilo não tinha nenhuma intensão de realizar uma obra de
guardado por Aquiles, acabrunhado, no início da peça consagrada
éPoca e ater-se à sua atualidade, a sua experiência reflete-se com
excepcional vigor no conjunto do seu pensamento. ao resgate de Heitor; ou também a angústia das duas mães, Tétis e
Eos, esperando que Zeus diga qual das duas deverá ver o seu filho
Atenas, evacuada pelos atenienses, ameaçada pelos bárbaros, morrer, em a Pesagem das almas (ou Psicostasia). Essas poucas
tinha sido confiada à proteção dos deuses; ela tinha sido salva, e o
lembranças, essas poucas descobertas aumentam o pesar, mas, por
invasor, ap6s tamanho sacrilégio, havia sido severamente punido.
~utro lado, não trazem surpresas: na verdade, a personalidade de
Isso s6 podia confimar a idéia, comum aos pensadores do século
Esquilo é tão forte e tão homogênea que ele pode ser identificado
anterior, da existência de uma justiça divina, que se manifesta os- ~c~. .'
a parte de sua obra. Uma peça de Esquilo, uma cena de Es-
tensivamente.
dente
----.: 1; de fato ~ fé, n'l..QQrade ÉSq!!iJo. mostra-se ar-
e obstinada.
-- ~Ullo, um verso ou uma imagem de Ésquilo são reconhecidos de
Imediato , por sua força e por sua majestade.
.
. Essas duas qualidades explicam-se por uma mesma inspiração,
seja pelo lado divino, seja pelo lado humano.
50 A tragédia grega 51
Jacqueline de Romilly

o lado divino tema e adotava a mesma perspectiva. A peça intitulava-se As feni-


das. Sobre essa peça não temos dados muito precisos (sabe-se so-
Os deuses encontram-se em toda parte no mundo de Ésquilo. E mente que ela foi montada por TemístocIes, assim como a de
ajustiça divina, igualmente, está em toda parte. Ésquilo foi montada por PéricIes). Em contrapartida, pode-se dizer
Isso não significa que se trate de um mundo em ordem. É com precisão que Esquilo não fez nenhuma menção aos homens do
muito mais um mundo que aspira à ordem, mas que se move no momento: Temístocles, o grande vencedor de Salamina, nem mes-
mistério e no medo. É um mundo onde reina a violência. Mata-se e mo é mencionado; e a própria Atenas (exceto em um ou dois ver-
morre-se, brutos devoram-se uns aos outros. É um mundo onde se sos) confunde-se com a massa dos gregos. Somente os persas
é perseguido, pisoteado, onde se grita de medo. 10, a jovem trans- figuram na peça, ou melhor, os persas e os deuses.
formada em novilha, corre em círculos, exaurida pela enorme mos- A ação é muito simples: os velhos persas interrogam-se sobre
ca que não lhe dá nenhuma trégua. Prega-se Prometeu, arrebite o destino da expedição; sua ansiedade aumenta ao tomarem conhe-
após arrebite, ao seu rochedo. E de resto, esse mundo povoado de cimento do sonho da rainha; depois, um mensageiro vem anunciar
deuses, que quiséramos justos, é igualmente permeado de forças e relatar o desastre. Ele o faz em etapas sucessivas, que levam de
terríveis, heranças de crenças mais ou menos primitivas: o sangue uma dor à outra; todavia, ele mesmo não sabe de tudo, e após a sua
derramado não desaparece; ao contrário, ele ganha vida, os mortos saída, a sombra do rei Dario vem para anunciar uma seqüência
retomam, os homens são presas do pesadelo e de visões; monstros igualmente trágica: ele explica e profetiza. Por fim, aparece Xer-
são vistos como essas Erínias, de olhos ávidos de sangue; fala-se xes, o rei vencido que retoma, conduzindo o luto dos seus, em
de sacrifícios recusados, de presságios; e ouve-se o ruído surdo das meio à desolação geral. Por conseqüência, a peça vai de um movi-
palavras mágicas e expressões de horror. mento lento e simples, para a inquietude e o desespero.
Mas, por meio da angústia e do temor, ~elo mistério em que se Mas o que confere verdadeira importância ao drama ViVidO~·
envolve o sagrado, uma mesma fé apresenta-se em toda parte, ten- pelos persas é a descoberta progressiva do seu significado, ou seja,
tando reconhecer nessas forças terríveis os traços, os sinais, os a descoberta progressiva do papel que nele desempenha a justiça
marcos de uma justiça superior, que é simplesmente mal compre- divina. -
endida. Essa busca da justiça confere uma dimensão extra à obra de Antes de mais nada, todos estão com o pensamento voltado
Ésquilo, pois amplia o alcance de cada fato e de cada palavra. para esses deuses. Vive-se no nível do sagrado. Há um sonho pro-
A fim de observarmos até que ponto essa busca é essencial fético. Há um morto que retoma no dia seguinte. E há, sobretudo,
para ele, vale a pena acompanhar sua expressão ao longo das sete em todos os temores, em todas as esperanças, em todos os relatos,
tragédias que se conservaram. a jdéja de que tudo depende dos deuses. Se no começo os velhos
Em Os persas, a idéia da justiça divina apresenta-se de uma têm medo, é porque eles sabem gue Xerxes seguiu seu orgulho; e o
maneira um tanto notável, na medida em que, a priori, estava fora orgulho desagrada aos deuses. E possível também que Xerxes te-
de contexto. Com Os persas dever-se-ia ter, normalmente, uma nha caído na cilada do desvario que os deuses mandam àqueles aos
peça de época ou, como se diria hoje, uma peça politicamente en- quais desejam arruinar. Esse delírio é Ate:' "carinhosa e doce, Ate
gajada. Porém, o que vemos é totalmente diverso. envolve o homem nas suas redes, de onde nenhum mortal pode
Antes de tudo, o tema é tratado não do ponto de vista dos ven- escapar e fugir" (98). Por trás de Xerxes, mostra-se-nos, invisível,
cedores, mas do ponto de vista dos vencidos. Nesse ponto, Ésquilo uma presença divina, de desígnios temíveis. E é ela que está agin-
contava com um ilustre antecessor: Frínico, quatro anos antes, ha-
via sido premiado em virtude de uma peça que tratava do mesmo
• Figura mitológica grega, vagamente personificada, que leva os homens à
perdição. (N. do T.)
52 jacquellne de Romilly A tragédia grega 53

do. O mensageiro sabe disso, e assim o exprime: "Não. Foi um Reencontramos a mesma dimensão trágica em Os sete contra
deus que, a partir daquele momento, destruiu a nossa armada, tor- Tebas. Essa peça, apresentada em 467, cinco anos depois de Os
nando muito desigual o destino das partes nos pratos da balança" persas, era a conclusão de uma trilogia dedicada aos descendentes
(345). Por que essa parcialidade dos deuses? O mensageiro, a rai- de Édipo. Depois de Laia e Édipo, •.a tragédja Os sete ... era consa-
nha e o coro falam de um excesso de confiança, de esperanças pe- grada aos dois filhos de Édipo amaldiçoados pelo pai.
rigosas: admitem confusamente que uma desgraça tão completa Em certo sentido, esta também poderia ser uma peça de época,
deve traduzir a cólera dos deuses. Mas cabe ao rei, ao pai, ao morto tratando da guerra civil (é assim que Eurípides tratou do mesmo
a tarefa de explicar tudo; no ceme da peça, logo antes do retomo de tema, no seu As fenícias). Mas Ésquilo viu no tema apenas duas
Xerxes, vê-se Dario, que surge de sua sepultura para revelar a ver- coisas: primeiro, a atmosfera de uma cidade sitiada, presa do terror,
dade. Quando ele toma conhecimento da audácia de seu filho e da mas preparando-se virilmente para a defesa; de outro lado, o drama
impiedade primária pela qual este quis atar "um peso ao pescoço de um homem que irá enfrentar o seu irmão, matá-Io e ser morto
do mar" (71), reconhece o delírio que veio do alto~Um deus, sem por ele, pelo simples fato de que uma maldição, decorrente de uma
dúvida, afetou o seu espírito. Um deus terrível, por havê-Io cegado longa série de pecados e desgraças, pesa sobre ele e o obriga a fa-
a esse ponto" (724-725). E, recuando muito antes no tempo, ele zê-lo,
recorda que um oráculo antigo previa semelhantes males. A "jo- Poder-se-ia dizer que se encontram aí dois aspectos diferentes:
vem imprudência" de Xerxes precipitou o mal, pois, "quando um um diz respeito aos homens, o outro trata da relação entre homens
mortal se empenha na sua própria ruína, os deuses vêm para ajudá- e deuses. Mas isto não seria exato, pois, mesmo DO que se refere à
.l2::.. Xerxes foi imprudente e ímpio até na vitóriã': os persas, na guerra. os deuses têm seu lugar e sua influência.
Atenas ocupada, espoliaram as estátuas dos deuses e incendiaram Nessa peça, que os antigos declaravam "cheia de Ares", a ati-
seus templos: "Altares foram destruídos, imagens divinas foram tude de todos mostra que, mais uma vez, a ação só se decide pela
destroçadas, postas de cabeça para baixo, derrubadas dos seus pe- intervençful do~ GelJlieL De um lado, temos o jovem rei, firme e
destais ... Que tremam agora! O edifício das suas desgraças não lúcido, que começa por uma prece aos deuses, rogando-Ihes que
chegou ainda nos alicerces, e irá crescer mais ..." poupem sua pátria; de outro, temos um coro de mulheres, transtor-
O tom do rei é profético; ele tem a majestade do além, mas, nadas pelo pavor. Elas exclamam o seu medo numa espécie de pâ-
acima de tudo, suas palavras completam a mudança interior que faz nico. E elas invocam os deuses em sua ajuda:
com que, contra os persas, o verdadeiro protagonista não seja nem
Temístocles, nem Atenas, nem os gregos, mas sim a vontade divi- Divindades de Tebas, escutai todas: contemplai uma turba de
.na. No coração da peça, está a revelação. E esta revelação contribui virgens suplicantes, amedrontadas pela escravidão. (...) Ó Zeus,
muito em conferir às prolongadas lamentações, que preenchem o Zeus, pai sem o qual nada se realiza, afasta para sempre de nós
final da peça, sua carga trágica. o inimigo raptor. (...) E tu, filha de Zeus, poderosa guerreira,
Palas, vem salvar a cidade! E tu, deus cavaleiro, cujo tridente
Com efeito, o sofrimento dos persas não parece apenas esten-
temido pelos peixes reina sobre os mares, Posêidon, livra-nos,
der-se no tempo, como uma desgraça irremediável: depois dessa
livra-nos desses terrores! (110 e ss.)
cena, as dores duplicam-se, causadas pelo pavor diante do poder
dos deuses.
Seguem os nomes de Ares, de Afrodite, de Apolo, de Ártemis,
Este poder, sem jamais agir ao acaso, parece bastante severo
e depois um novo apelo, ainda mais premente, a todos os deuses, a
para que a obscura consciência da culpa se junte, aos nossos olhos, todas as deusas. Essa prece desvairada junta-se à prece mais serena
ao horror da impotência.
de Etéocles: todos apelam aos deuses. Finalmente, os deuses ce-
dem a esses pedidos: Tebas, ao menos, será poupada. Mas Etéocles
54 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 55

não, ele não poderá ser poupado. E a peça inteira, em certo sentido, qual trata a Orestia. Mas convém considerar primeiro duas outras
é o advento inexorãvelda sua perdição. peças, das quais uma, ao menos, é anterior a ela, e que tratam dos
Mas, particularmente, o centro da tragédia é ocupado por uma deuses e da justiça em termos um pouco diferentes.
longa cena onde são descritos os emblemas dos diversos chefes do A tragédia As suplicantes, que por muito tempo foi considera-
exército sitiante, bem como os dos chefes adversários. As descri- da a mais antiga de todas, por suas linhas simples e pela grande
ções são extensas, ricas, coerentes; nada acontece. Mas o interesse importância do coro, parece na verdade ter sido montada alguns
fica em suspenso durante essa descrição. Primeiro, o orgulho dos anos depois de Os sete ... Ao contrário desta, aquela é a primeira
assaltantes, em oposição à virtude dos seus adversários, parece es- peça de uma trilogia, relativa às Danaides: ela as mostra procuran-
tender aos deuses uma esperança crescente. E, inversamente, a len- do abrigo em Argos, contra os seus perseguidores, os filhos de
tidão da cena, que contrapõe dois a dois os chefes que irão se Egito.
enfrentar, traz o pressentimento, uma certeza cada vez mais clara Sob muitos aspectos, a peça faz eco a Os sete ... Ela trata do
de que a decisão colocará frente a frente os dois filhos de Édipo. mesmo contraste, opondo um soberano advertido e calmo a um
E, de fato, no verso 652, no auge da tragédia, Etéocles aceita o grupo de mulheres desvairadas e aterrorizadas. E, como em Os
combate com o seu irmão. Por que isso? Porque ele foi amaldiçoa- sete ..., o soberano procura antes de tudo o apoio dos deuses, en-
do; porque os crimes da sua raça lhe valeram esse destino, ao qual quanto as mulheres nada fazem a não ser invocá-los aos gritos e
não pode furtar-se. E ele exclama: "Ah! raça furiosa, tão duramente multiplicar suas súplicas. É em As suplicantes que se lê a famosa
odiada pelos deuses! Ah! raça de Édipo, minha raça, merecedora invocação a Zeus: "Senhor dos senhores, bem-aventurado entre os
de todas as lágrimas! Ai de mim! Eis cumpridas hoje as maldições bem-aventurados, poder soberano entre os poderes, do alto da tua
de um pai!" Seria possível que ele recusasse esse combate, segun- felicidade, ó Zeus, escuta a nossa voz!" (524 e ss.). E é também em
do as sugestões do coro? Não, ele não o faz; um pouco, sem dúvi- As suplicantes que o mistério da vontade divina é afirmado com o
da, porque não está em sua natureza recusar uma luta. Em todo maior vigor: "Os caminhos do pensamento divino levam ao seu
caso, Ésquilo não nos ajuda a resolver esse problema, aparente- objetivo, por entre matagais densos e sombras espessas que ne-
mente muito moderno: tudo o que ele diz, tudo o que ele esclarece, nhum olhar poderia penetrar" (93 e ss.).
graças ao comentário do coro, é que a origem desses males re- A ação da peça é um exemplo dessas sombras espessas, pois
.~ monta de muito antes: originaram-se de um pecado inicial, cometi- ela não obedece a um esquema tão simples como em Os persas; e
~- do duas gerações antes. as culpas entrelaçam-se de uma maneira inextricável. As suplican-
Por conseguinte, aqui, mais uma vez, nos defrontamos com a tes são descendentes de 10. 10, que se perdeu de amor por Zeus, e

l'li justiça divina, que desorienta os espíritos modernos: ela pune os


culpados por meio de seus filhos; ela pune por meio de novos cri-
depois foi salva por ele; elas apelam para 10. Reclamam também
que seus perseguidores são arrogantes e ímpios. Mas pode ser que
nelas se manifeste também o anúncio de uma recusa ímpia ao amor
mes; ela pune lançando armadilhas. Mas o conceito dessa justiça e
de seus caminhos impenetráveis confere à morte dos dois príncipes a ao casamento. Em suma, pairam forças misteriosas, sem que se
uma outra dimensão. Não se trata somente deles, mas também dos apresente nenhuma certeza.
~uses e dos homens - dos deuses que tudo podem, e dos homens Em contrapartida, essa trama de esperanças e de medos, sem-
que tudo arriscam. A obscuridade que envolve a decisão de....Etéo- pre voltados para os deuses, põe em grande destaque a escolha de
fles parece fazê-Ia mai§ carregada de sentido. um homem - o rei - que coloca sua cidade no caminho da guerra.
Destes crimes em série, dessa justiça de efeitos distantes, gos- Aí tudo é claro, tudo é presente. E poder-se-ia pensar que essa es-
taríamos de passar diretamente ao problema que ela levanta, do colha é um gesto puramente humano. Pelasgo considera suas ra-
zões. Hesita. Por fim, toma uma atitude. Soberano de um Estado
estranhamente democrático, indivíduo responsável e que tem cons-
56 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 57

ciência disso, Pelasgo está mais perto de nós que Etéocles. Mas em autor da peça tenha, apesar de tudo, proclamado a sua fé na justiça
nome de que ele decide? O que o impele? Quem o ameaça? Sem- divin~ - ----- --
pre a vontade dos deuses, cuja cólera ele teme: "É, no entanto, sou Não se resolve esse problema sem um exame mais atento dos
obrigado a respeitar a ira de Zeus, suplicando: não há para os mor- textos, e sem basear-se no conteúdo do Prometeu libertado, hoje
tais objeto maior de temor" (478-479). Pelasgo cede em tempo e de perdido. Por fim, o que fazemos é muito mais definir caminhos
maneira lúcida, para não ter que, um dia, ceder da forma que cedeu para uma solução do que oferecer soluções propriamente ditas,
Etéocles. E o caráter solene da sua escolha atribui a dimensão trá- Mas isso, por sua vez, se encaixa bem ao modo de Ésquilo.
gica aos prolongamentos sagrados que lhe são atribuídos. É do seu estilo in uietar-se, protestar se for preciso: esse pro-J
Prometeu acorrentado não deveria apresentar, a priori, o testo procede de uma llli'iração à justiça. E tam êm próprio do seu
mesmo estilo, pois a peça transcorre inteiramente entre os imortais. modo de ser não se contentar com um otimismo simplista, mas
De fato, ela também é a única em que o princípio da justiça divina procurar, na aparente desordem do mundo, os sinais de uma orde,!!!;
não é afirmado - nem mesmo confirmado. Podem-se destacar aqui dois desses sinais, facilmente identificá-
Nessa tragédia, tudo é problema. Por razões de forma e de veis. Temos a própria arrogância de Prometeu, censurada igual-
conteúdo, tem-se duvidado de sua autenticidade. Se ela foi mesmo mente por todos, com maior ou menor dureza, com maior ou
escrita por Ésquilo, não se consegue identificar uma data conveni- menor solicitude, conforme o caso. Zeus não é, pois, um deus jus-
ente. Finalmente, outras dificuldades apresentam-se quando se to; mas a sua vítima tampouco é isenta de crítica (e nem o eram as
tenta reconstituir a trilogia à qual pudesse pertencer. Parece que ela suplicantes, tão ferrenhas inimigas do casamento). Além disso, o
foi a primeira das peças, mas não há certeza (alguns chegaram a próprio Zeus não passa de um soberano recente. É um "mestre
pensar que a obra intitulada Prometeu pirôforo evocaria o roubo do novo", um "jovem tirano", um "desses "deuses novos" (310, 942,
fogo pelo Titã, situando-se, por isso, em primeiro lugar; todavia, 960). Daí é que procede, em parte, o seu exagero: "jovens, vós
admite-se em geral que esse Prometeu pirõforo foi a última das exerceis um poder bem jovem, e pensais habitar um castelo inaces-
peças, onde era instaurado o culto do herói). Uma só coisa é certa: sível à dor" (955-956). Igualmente, esse tipo de afoiteza aproxima-
depois de ter sido "acorrentado", Prometeu, na trilogia, aparece se à do jovem Xerxes: também pode ser desbastada pela experiên-
como "livre". cia do fracasso. Mergulhando na idade lendária das teogonias, das
Mas é preciso reconhecer que, na peça que se conservou, Pro- teomáquias, Ésquilo parece sugerir que, mesmo junto aos deuses, a
~u é al?resentado como vítima de um Zeus soberano, qUenão justiça é fruto do tempo. E a sua acusação comporta, nos seus pró-
pratica a justiça. O início da peça é uma cena de suplício: Prometeu' prios termos, as premissas de uma resposta.
é pregado ao seu rochedo pelos dois ministros de Zeus, Poder e Sendo assim, a peça traz à doutrina de Ésquilo algumas som-
Força. O coro, constituído pelas jovens Oceânidas, chora por ele, e bras, um recuo, mas também um destaque. De qualquer maneira,
se indigna: no final, elas desejariam compartilhar a sua sorte, ela procede com certeza da mesma espécie de grandeza trágica,
quando Zeus o engolirá para debaixo da terra. E como se isso não pois os sofrimentos de Prometeu, bem como os de 10, todos eles
bastasse, Ésquilo imaginou o aparecimento em cena de outra víti- situados além do plano humano, todos eles inevitáveis, porém des-
ma do rei dos deuses: na presença de Prometeu, ele mostrou 10, a tinados a um fim, todos eles incompreensíveis, e no entanto pro-
jovem transformada em novilha, e perseguida mundo afora por um metidos a uma ordem que lhes dará sentido, ilustram bem que o
gigantesco mosquito que a enlouquece, e isso porque Zeus a amou. deus supremo não será qualquer um.
8. tragédia de Prometeu, portanto, nada mais é que um longo A magnitude das perspectivas que se delineiam para a!ém da
grito de dor, que soa como uma acusação. Como acreditaLque_o peça não poderia causar surpresa: com efeito, na Orestia, Esguilo
procurou definir a justiça divina, considerando sua evolução e seu
ajustamento ao longo de uma seqüência de gerações.
58 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 59

As três peças da trilogia (Agamêmnon, As coéforas, As eumê- o qual se acompanha o destino do rei, do começo ao fim da peça, é
nides) entrelaçam-se conforme um movimento, visando ao acesso a proporcional às forças envolvidas.I E esse destino, mais uma vez]
uma justiça melhor: como castigo de pecados anteriores, temos extrai a sua verdadeira dimensão trágica de um sentimento duplo:
sucessivamente um assassinato realizado por uma mulher culpada ele era inevitável e, por outro lado, foi o resultado de uma série de
(Clitemnestra mata o seu esposo Agamêmnon), depois um assassi- erros humanos, subitamente valorizados pelo capricho divino.'
nato consumado por um homem inocente (Orestes mata a sua mãe Em As coéforas, a trama é mais simples ainda: há um só assas-
j. Clitemnestra) e, por fim, um processo, apresentado aos juízes, do sinato e uma só vítima. Essa vítima é punida em função de seus •
qual participam homens e deuses. crimes. Mas quem é o assassino? Não Orestes sozinho, e não
Os homens voltam-se para os deuses e solicitam seu apoio; Orestes acima de tudo: ao seu lado, para orientã-lo, estão a ordem
pode-se dizer que as três tragédias são embebidas do sagrado, que de Apolo e a exigência dos mortos. E por isso que, no momento do
está presente em cada uma delas, de maneira tangível. Agamêmnon assassinato, quando Orestes já tem o braço levantado para golpear
faz o espectador assistir ao delírio profético de Cassandra; As coéfo- sua mãe, Ésquilo cuida de enfatizar claramente a causa de ordem
ras espalham-se ao redor da tumba do rei, e seu auxilio é longamente divina: Orestes se detém, hesita, volta-se para seu amigo Pílades,
invocado; além disso, os principais agentes que desencadeiam a ação que então o faz lembrar - e seu papel na peça limita-se a esses dois
são um oráculo dedicado a Orestes e um sonho de Clitemnestra; versos - que a ordem de Apolo é golpear. Nesse momento, a sua
por fim, As eumênides trazem à cena deuses (Apolo, Atena) e, decisão está tomada; e ele mata. Mas no instante em que golpeia,
principalmente, aqueles seres de aspecto horrível, as Erínias, deu- ele ainda proclama que não passa de instrumento da justiça divina,
sas encarregadas de vingar o crime. dirigindo-se à mãe: "Não sou eu, és tu que te matas a ti mesma"
Mas isso não é tudo, pois, além dá lição em curso, é preciso (923). Assim se verifica a fórmula de duplo sentido que o servo
acrescentar que todos os comentários do coro, todas as esperanças acaba de empregar, dizendo: "Eu digo que os mortos batem nos
de uns e todos os temores de outros parecem alimentar-se dessa vivos". O golpe que atinge Clitemnestra é, portanto, bem-vindo
presença constante da justiça divina. Agamêmnon principia com pela justiça divina. E sobre isso o coro não se engana, nem permite
um grande coro que, reportando-se ao passado, evoca a partida da que se enganem os espectadores, pois seu canto, no verso 935, co-
expedição a Tróia: ele avalia os presságios, celebra a sabedoria de meça por uma exclamação: "Ela chegou, a Justiça!. .."
Zeus, tem medo. Depois, até a morte de ambos, o rei e Cassandra, Estranha justiça, que utiliza um assassinato, obrigando Orestes
ele acompanha de perto o erro, os pecados que arruínam o futuro. a manchar-se do sangue de sua mãe, e por fim o entrega às Enírias
O coro volta-se constantemente para o passado, e, pouco a pouco, a vingadoras! Compreende-se a pergunta com a qual termina a peça:
angústia vai aumentando, até o momento em que Agamêmnon en- " uando se satisfará, uando se deterá, finalmente apaziguada, a
tra no palácio, sobre um tapete púrpura, símbolo da sua imprudên- .ira de Ate?" (Ate personifica a ruma enviada pelos euses. es-
cia, quando então o coro entoa o canto do medo: "Por que este posta bem característica de Ésquilo: a ira de Ate não se apaziguará
espanto que assim se levanta diante do meu coração profético e, - é esse o tema de As eumênides - até que Orestes, após haver es-
obstinadamente, esvoaça ao seu redor? .." (975 e ss.). O assassina- palhado suas impurezas de país em país, receba ajuda de Apolo,
to, pressentido pelo coro, e anunciado por Cassandra, foi permitido seja julgado e, graças à voz decisiva de Atena, absolvido. Então as
pelos deuses, como resultado de uma longa seqüência de pecados; Erínias, destituídas do seu antigo papel de colaboradoras dos juízes
e, ao final, o coro reconhece que esse assassinato não foi cometido humanos, tomar-se-ão as Eumênides, e cuidarão de evitar o crime
somente por Clitemnestra, mas também por Helena, Querela, tam- com antecedência.
bém o gênio vingador dessa raça (1454,1482,1509). O terror com Ao longo das três peças, a justiça divina, sucessivamente te-
mida, esperada e depois retocada e humanizada, está constante-
mente em primeiro plano. Ela confere a cada evento uma dimensão
60 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 61

superior e dá a cada gesto um prolongamento carregado de sentido. Ésquilo não está interessado nas paixões. E, embora tenha ce-
Cada acontecimento insere-se numa série maior, ligado a uma lebrado em versos admiráveis a dimensão cósmica do amor que
vontade transcendente. Pode-se dizer que Ésquilo insiste em mos- cria a vida, não se preocupou em pintar-lhe os efeitos. É como o
..Jrar que, por trás dos homens, existem grandes forcas em ação. Es- Eurípides de Aristófanes se pronuncia sobre ele, ironicamente: nele
tas forças ultrapassam-nos, dominam, mesmo que eles não tenham não havia "nada de Afrodite" (As rãs, 1045). Contrariamente à de
consciência disso. Portanto, os atos dos homens são intencionais, e Eurípides, a Clitemnestra de Ésquilo não nos fala dos seus amores
por eles cumpridos; mas configuram, sem que eles saibam, uma de mulher, nem dos sofrimentos de mãe. Ela revela ainda mais
trama cujo princípio lhes escapa, e que pode, a cada instante, levá- grandeza, mostrando-se menos individualizada. Seu erro, simplifi-
los à perdição. . cado em linhas brutais, torna-se o símbolo da desordem da nature-
Isso é de causar medo. A fé de Ésquilo na justiça divina está za. Clitemnestra é a "vaca que mata o touro de chifres negros"
sempre acompanhada de temor. Primeiro, porque ela passa pelo (Agamêmnon, 1225), é a "leoa bípede que dormia com o lobo"
sofrimento, e "somente àquele que já sofreu a justiça consente (1257), é a "víbora infame" (As coéforas, 249). Inversamente, sen-
compreensão"; depois, como saber o que irrita os deuses, e o que do Agamêmnon culpado, ela se identifica com a justiça divina; ela
eles nos permitem? É preciso esperar, deve-se temer; e muitas ve- é "a Cólera" (Agamêmnon, 154). Nessa linguagem duplamente
zes os dois sentimentos se misturam: são eles que conferem ao te- oracular, seu ato separa-se dela.
\ atro de Ésquilo a sua própria ressonância. Os traços de Clitemnestra são bem marcantes. Ela é imperiosa,
cruel, hipócrita e insolene. Mas Etéocles tem também traços bem
fortes. Isso não impede que Ésquilo faça pairar um silêncio sobre o
o lado humano aspecto psicológico de suas razões.re os gestos dos dois, assim li-
~\ gados ao destino, ganham uma força mais misteriosa.
A idéia da justiça divina pressupõe, em si, que os homens se- Ésquilo, portanto, não está em busca de sutilezas psicológicas.
jam responsáveis pelos seus atos. E, no teatro de Ésquilo, eles re- Além disso, seu teatro é eminentemente viril. Se Clitemnestra de-
almente o são. São responsáveis em relação aos deuses, os quais a sempenha nele um tal papel, como acabamos de ver, isso repre-
cada instante poderiam irritar-se; eles são também responsáveis senta um escândalo - porque é do homem o papel do comando. No
pelo grupo do qual estão encarregados, e que a todo momento total,,ª obra de Ésquilo concentra-se nos problemas da vida dos
ameaçam arrastar para o desastre. Essa responsabilidade, de ordem homens - a I!ue
cívica ou política, soma-se à primeira, contribuindo para conferir Fato notável: essas histórias, repletas de assassinatos familia-
maior repercussão aos seus atos. res, transmitidas pelas lendas, tornam-se para ele ocasião de dar
Daí a presença quase constante, na obra de Ésquilo, de um vida a várias imagens de soberanos e guerreiros cujos defeitos e
certo ideal cívico e de uma determinada imagem do chefe. Seus virtudes definem os valores que lhe eram mais caros.
personagens, com efeito, não são etéreos, nem tampouco reflexos Alguns deles se relacionam com a justiça divina, e já foram
irrequietos das ordens divinas. Eles vivem uma vida inteiramente mencionados nas análises anteriores. _Os reis devem evitar o des-
humana. Vivem simplesmente em função de seus deveres; e És- comedimento e governar com piedade. Xerxes não procedeu assim,
quilo parece interessar-se muito mais pelo seu papel de soberano nem o fizeram os chefes que sitiaram Tebas, tampouco os perse-
do que pelos seus motivos e suas paixões. Seus personagens vivem, guidores que tentavam arrastar aos altares as filhas de Dânao. E em
mas ele não está interessado em analisar-lhes a psicologia. cada uma dessas vezes, esses erros, ou defeitos, infundem a espe-
rança nos seus adversários. "E vejam quem nos cria ainda vanta-
gens e mais vantagens!", exclama Etéocles, ao ouvir a descrição do
orgulho de um adversário (Os sete ..., 437); e acrescenta, impaci-
A tragédia grega 63

62 Jacqueline de Romi\ly

Em Os sete ..., ele descreve o horror das cidades saqueadas:


ente: "Fala-nos da jactância de um outro ..." (480). Da mesma for-
ma, ouvindo falar da paixão impura dos filhos de Egito, Dânao diz E eis que se ouvem ruídos surdos por toda a cidade. Ao redor
às suas filhas: "Seria para nós puro proveito, minha filha, se eles dela se estende o laço que cerca as fortalezas. O guerreiro su-
fossem odiados pelos deuses como o são por ti" (As suplicantes, cumbe sob a lança do guerreiro. Os vagidos cortantes dos re-
cém-nascidos recrudescem seu lamento infantil. Por toda parte
753-754). o rapto, acompanhado da perseguição. Um saqueadorde mãos
Ao contrário, Dario, Pelasgo, e mesmo Etéocles, pretendem,
cheias passa por outro saqueador de mãos cheias ... (Os sete ...,
antes de tudo, orar aos deuses e manter a Justiça a seu lado. Contu-
345-353).
do, se eles respeitam dessa forma os deuses, não é somente por eles
mesmos: o sinal distintivo dos soberanos de Ésquilo é seu perfeito
Em todas essas evocações a morte está presente - essa morte
civismo _ ou, se quisermos, seu Zelo por seu povo. E isso se traduz
dos guerreiros, cujo escândalo ninguém exprimiu com mais força
tanto na sua atitude com relação à guerra, quanto na sua atitude em
que Ésquilo. Às vezes, ele a evoca por meio de um canto pesado de
respeito à ordem interna. luto, como em Os persas: "As naus os levaram embora; ai! As naus
O teatro de Ésquilo faz ressoar a todo instante o ruído da guer-
os perderam; ai! As naus em abordagens desastrosas! As naus e os
ra. A tragédia Os persas é toda dedicada à grande batalha que os
braços do Jônio!" (560-563). Ou então, traçando a imagem terrível
gregos acabavam de travar contra os soldados de Xerxes. Os sete
do "mercador da morte", ele faz referência ao luto dos atingidos
contra Tebas constituem o drama de uma cidade sitiada. E o Aga-
mêmnon, personagem da Orestia, acaba de voltar da Guerra de por essa negociação monstruosa:
Tróia, cuja sombra paira sobre toda a peça, e sobre quase toda a Mas em todas as casas, de onde partiram os guerreiros para lon-
trilogia. Primeiro o mensageiro e depois Agamêmnon evocam a ge da terra grega, reina o luto arrasador. Um pensamento obses-
vitória e os longos esforços que a precederam. Clitemnestra o ima- sivo apunhala os corações. São lembradas as fisionomias dos
gina. E o coro, incansável, faz referência à partida da expedição; a que foram vistos partir; mas, no lugar de homens, são umas e
Helena, a causa de tudo; a lfigênia, a primeira vítima; e aos mortos, cinzas que voltam para casa! Ares, mercador da morte, reajus-
tou suas balanças durante a cruel batalha, e de I1ion envia de
que não voltarão mais.
Poder-se-iam recolher facilmente, em toda a obra de Ésquilo, volta aos pais, ao despontar da luz, um pó carregado de choros
descrições agudas dos horrores ou das misérias da guerra. Ele des- cruéis - em vez de homens, cinzas, que ele armazena em potes,
com facilidade! (Agamêmnon, 430 e ss.)
creve, em Os persas, o horror da batalha e da carnificina:

Os navios naufragam; o mar desaparece inteiramente sob o Isso tudo foi sentido fortemente por Ésquilo: ele viu, experi-
aglomerado de destroços e cadáveres ensangüentados; as mar- mentou. É por isso que, além do luto e do sofrimento, ele pôde
gens e os rochedos cobrem-se de mortos, e uma fuga desorde- também descrever as torturas físicas dos combatentes. Ora conta
nada, com remos à toda, leva o que resta das embarcações como sofrem de sede e esgotamento: "Uns, perto da limpidez das
bárbaras _ enquanto os gregos, como se fossem atuns libertos fontes, suportavam a agonia da sede ..." (Os persas, 483-484); ora
das redes, golpeiam, massacram, com pedaços de remos, com fala das fadigas da vida no campo de batalha:
fragmentos de destroços! Um lamento misturado a soluços do-
mina a imensidão do mar ... (Os persas, 419-427). Se eu vos dissesse do cansaço, da maneira penosa como está-
vamos acompanhados, das passagens estreitas em que nos deitá-
vamos sobre a terra ... e se eu vos dissesse do inverno, que mata os
passarinhos, do inverno insuportável que nos mandava a neve do
Ida! Ou então do torpor do verão ... (Agamêmnon, 555 e ss.)
64 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 65

Todavia, a guerra, sempre mais ou menos presente nas tragé- de", que chora seus mortos, é antes de mais nada a capital, Susa,
dias de Ésquilo, não é evocada com um espírito de protesto, ou de como aparece nos versos apreensivos recitados pelo coro no início
pacifismo. Os males da multidão, esses males anônimos, que tecem (116-118): "Oh, desgraça, a derrota da armada persa! Seria essa a
toda uma rede de sofrimento e luto, servem principalmente para notícia a chegar ao conhecimento da minha cidade, a grande cidade
exaltar a responsabilidade dos chefes, cujo papel é precisamente de Susa, esvaziada de todos os seus homens?" Mas a mesma pala-
poupar seus povos de tais provações. vra é empregada, por vários outros autores, em relação ao vasto
Se a guerra traz a destruição, é necessário um chefe lúcido e reino dos persas; e as traduções vacilam diante desse emprego de
enérgico como Etéocles. E Ésquilo fez de tudo para ressaltar esse polis. Paul Mazon a traduz, às vezes, como "um país" (versos 213-
papel de defensor. Etéocles, em Os sete ..., aparece solitário, antes 946), às vezes como "a Pérsia" (511), outras vezes como "o Esta-
do coro, antes de toda explicação; e de um momento para outro, ele do" (715). Em todo caso, para os atenienses, a palavra, provavel-
se mostra como o protetor consciente. Suas primeiras palavras ex- mente, evocava os laços estreitos entre os cidadãos, conferindo
primem-no com majestade: "Povo de Cadmo, devo dizer o que a assim o luto persa um acento mais pessoal. Ora, esse luto tem um
hora exige àquele chefe que, tendo por encargo o governo da cida- responsável, cuja imprudência foi proclamada por todos, e que, ao
de, empunha a barra do leme, sem deixar que durmam suas pálpe- final da tragédia, aparece em pessoa para reconhecer, com desespe-
bras ..." De fato, Etéocles mostra-se, em seguida, firme com aqueles ro, que carrega o peso daquele desastre: "Ai de mim! Sou eu, infe-
que se desesperam, apto a organizar a defesa, e zeloso ao obter in- lizmente, eu mesmo, lamentável e desprezível, que teria sido o
formações. Mas por quê? Porque - e Ésquilo acentua isso desde o flagelo da minha' raça e da minha pátria!" (931-933).
princípio - a cidade para ele está em primeiro lugar: "Zeus, Terra, Opondo-se a esse retomo de um rei vencido, temos, no outro
deuses da minha pátria, e tu, Maldição, poderosa Erínia de um pai, extremo da obra de Ésquilo, o retomo de um rei vencedor. Mas
poupai ao menos minha cidade!. .." (69). ~.\ I Agamêmnon não é menos culpado, pois ele conduziu uma guerra
Essa preocupação em salvar a cidade é o que move os reis assassina, sem um motivo essencial que a justificasse, e que acabou
bons. Mais do que qualquer coisa, é o que inspira Pelasgo, em As em excessos ímpios. Desde o princípio, o coro denuncia clara-
suplicantes. Ele pensa, em primeiro lugar, na sua cidade, e só com mente o contraste entre a causa da guerra e os sofrimentos que ela
ela se preocupa: "Que a causa desse grupo de estrangeiros não pro- acarretou: "Em breve, por causa de uma mulher que pertenceu a
voque males! Que dela não resulte nenhuma disputa, de imprevis- mais de um homem, braços irão entorpecer-se em lutas sem tré-
to, de surpresa, para Argos. Argos não precisa disso" (354-358). E gua ..." (62-64). Novamente o mesmo contraste se repete. Ifigênia
repete com ansiedade: "E guarde-me o Céu de ouvir Argos dizer- foi morta "por ajudar um exército a resgatar uma mulher" (225); e
me um dia, se tal desgraça vier a acontecer: 'Para honrar estrangei- a grande imagem do deus da guerra, citada anteriormente, detém-se
ros, tu arruinaste tua cidade!" (399-401). na descrição do luto que reina em todas as casas: "Geme-se, ao
O crime dos maus reis, ao contrário, consiste em envolver-se exaltar tal guerreiro tão hábil no combate, ou outro, que tombou
levianamente em guerras imprudentes, nas quais os deuses não os gloriosamente na luta sangrenta - por uma mulher que não signifi-
ajudarão. Toda a tragédia Os persas o demonstra eloqüentemente. cava nada para ele" (445-447). Tudo isso está carregado de repro-
Os sofrimentos desses persas, o apelo dos mortos, o luto e a angús- vação. E quando o rei reaparece, o coro, feliz, dedicado e fiel,
tia são apresentados com tamanho destaque unicamente para res- encontra, todavia, meios de formular uma censura retrospectiva.
saltar a dimensão do erro inicial de Xerxes. Em função de uma Ele admite que outrora classificara Agamêmnon como "extrava-
deformação histórica bem característica, Ésquilo não hesita em gante e incapaz de segurar o leme da (sua) razão: é justo, por aca-
empregar a palavra "cidade" para referir-se aos persas. Tal "cida- so, sacrificarem-se guerreiros para reconquistar uma jovem
impura?" (802-803).
( 66 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 67

Ésquilo, convém repetir, não é absolutamente um pacifista; ele guerra civil e os demais flagelos. De modo que a peça termina com
se exalta com a idéia das lutas defensivas (como aquela conduzida as bênçãos a Atenas.
por Etéocles,' ou a que foi conduzida pelos gregos, da qual ele ha- Amor pela cidade, proteção à cidade, preocupação em conSUI-)1
via tomado parte); ele tem até palavras de louvor pelas conquistas tá-l~: por meio dessas imagens, reais ou divinas, impõe-se o ideal
de Dario e pela grandeza das cidades fortificadas. Mas o que todas de Esquilo. Ora, trata-se de um ideal fundado sobre a conciliação,
as peças exigem é o respeito pela vida, o respeito pelo povo ..
dos os mitos em que ele baseia os temas épicos - mitos qu.e..só
EJm1j mas tendendo sempre para a ordem.
Pelasgo deseja a harmonia da sua cidade. Atena, paciente-
falavam de famIlias, de estirpes ou de homens - ele introduz essa mente, empenha-se em obter a aliança das Erínias. Ela não quer a
ersona em coletiva ue é a cidade, essencial nã sua ex enx • violência, mas apela para a "persuasão santa", que confere à sua
rópria, mas anacrônica em relação a en a. palavra a "doçura mágica". O que ela mais pede para sua cidade é
Sob esse aspecto, o mais puro anacronismo nada tem a ver o consenso interno. Ela teme, por Atenas, "aquela sede homicida,
com a guerra: ele diz respeito à ordem interna e ao governo da ci- que lança irmãos contra irmãos, insuflando-lhes audácia mútua"
dade, pois o rei Pelasgo, em As suplicantes, toma-se o modelo do (862-863).
rei democrático, preocupado em consultar o seu povo. Também Mas tal harmonia implica o respeito e a ordem. E o fato é que
nesse campo ele coloca a consideração para com a cidade acima de os soberanos de Ésquilo se, de um lado, são comedidos e pacientes,
tudo. E obstinadamente explica: de outro, permanecem imperiosos, quando se trata de exigir a dis-
ciplina dos cidadãos.
Vós não estais sob minha proteção: mancha impura afeta Argos, O Conselho do Areópago tinha precisamente por função fazer
se afeta a cidade inteira, que o povo\ inteiro se ocupe de desco- respeitar essa disciplina. E no momento em que, em Atenas, uma
brir-lhe o remédio. Quanto a mim, ~u saberia fazer-te promessas lei nova visava restringir os poderes desse conselho, Ésquilo em-
antes de haver comunicado os fatos a todos os argoenses (365- penhou-se em chamar a atenção para a importância do papel moral,
369);

e mais adiante: "Eu já te disse: qualquer que seja o meu poder, eu


não saberia fazer nada sem o povo". O rei não se contenta em pro-
teger a cidade, ele a respeita.
1 que deveria permanecer sempre como sua atribuição. Retomando
as fórmulas que as próprias Erínias empregavam ao reivindicar, em
nome da ordem, o direito de punir os culpados, Atena repete que é
preciso evitar tanto a anarquia quanto o despotismo: "Nem anar-
quia, nem despotismo, essa é a regra que eu aconselhoàIninha ci-
Sem dúvida, não é por acaso que o problema levantado na
dade observar com respeito. Sobretudo, que os temores não sejam
Orestes é definitivamente entregue ao veredito dos homens, que
banidos para fora da cidade; se nada existe para se temer, qual é o
representam a cidade de Atenas. Numa variação, o papel que Pe-
mortal que faz o que deve?" (696-699). E, mais tarde, ela afirma,
lasgo assumia em Argos é confiado aqui a uma deusa tutora. Ela
na qualidade de soberana que se sabe obedecida: "Incorruptível,
também hesita, e prevê dificuldades, mas escolhe os juízes entre
venerável, inflexível, tal é o conselho que aqui instituo, para prote-
seu povo. E não pára aí a sua solicitude. Antes de permitir que eles
ger, em vigília, a cidade adormecida" (704-706).
votem, ela edita as leis que devem proteger a cidade: o Conselho
Em certo sentido, tais fórmulas traem as preocupações do ho-
do Areópago, que ela acaba de instituir, atuará como um "corpo
mem e do momento. Mas é preciso esclarecer que, se a atualidade,
tutelar" (701). Depois, uma vez lançado o veredito, ela tem um só
na obra de Ésquilo, chega assim à tragédia, isto não significa que
pensamento, que é o de reconciliar com a sua cidade as velhas deu-
essa tragédia tenha ficado mais familiar: ao contrário, como em Os
sas do castigo: ela lhes pede que abençoem seu povo; que evitem a
persas, tem-se a impressão de que a atualidade, transposta e repen-
sada, acaba revestindo-se de majestade.Jrata-se do Areópago, da
~a de lutas internas, mas também da ordem como tal - aquela
68 jacqueline de Romilly A tragédia grega 69

'lU'"' Pl,",'UU,", a Vl§UlI1LU'rav uv U1UUUV, ç ljuç L~JU, na ordem da cida-) Essas múltiplas perspectivas, e esse risco constante de uma
~e, apenas mais um dos seus aspectos. desgraça incalculável, conferem ao trágico de Ésquilo uma resso-
Na realidade, Pelasgo, Etéocles, Dario, guardadas as propor- nância sem equivalentes.
ções, são' figuras comparáveis à Atena de As eumênides. São tam- Poder-se-ia dizer que isso representa, na verdade, a combina-
bém figuras comparáveis ao Apolo do templo de Zeus em Olímpia: ção de muitas idéias, muitas abstrações e considerações gerais. É
com o braço estendido, com o gesto autoritário, ele parece afirmar por isso que, após havermos traçado as grandes linhas da significa-
o castigo vindouro desses raptores intoleráveis que são os centau- ção que acompanha cada gesto da obra de Ésquilo, convém lem-
ros, e impor a sua ordem às mulheres aterrorizadas, que espiam brar que essas mesmas linhas, inscritas sobretudo nos cantos do
pelas frestas da porta. coro, não impedem que essa obra seja, acima de tudo, imediata e
Assim parece ser, finalmente, a mesma inspiração que preside concreta. Ésquilo não analisa, seu teatro exprime idéias que emer-
tanto à evocação da justiça divina quanto à da vida humana. Num e gem por conta própria, no auge da ansiedade, nem sempre muito
noutro campo, deparamo-nos com uma mesma fé na existência de claras, mas bruscas como revelações.
( uma ordem, imposta pelos sofrimentos, e que deve impor-se custe Elas geralmente adquirem vida na sua realidade mais concreta.
o que custar. Ésquilo gosta de mostrar. Ele evoca todos os ruídos da guerra. Ele
Mas a aproximação não termina aí. Parece que, no final, as faz ecoar o som dos arrebites, aplicados um a um, pregando Pro-
perspectivas divinas e humanas se combinam para conferir a cada meteu ao seu rochedo. Ele mostra as Erínias, seus grunhidos são
gesto uma dimensão superior. ouvidos. Tudo o que se vê e se escuta impõe-se imediatamente. ./
Os reis bons participam da majestade divina; quanto aos reis Quando deseja exprimir o luto dos persas, ele não comenta: dá
culpados, seu erro inscreve-se, ao mesmo tempo, em dois registros nomes e mais nomes; cortes de imagens bruscas, concretas, evo-
paralelos. Culpados perante os deuses, são' punidos por eles, e ar- cam os cadáveres atirados aos rochedos pela ressaca. Quando ele
rastam seu povo em seu desastre. Mas, se inversamente são culpa- decide falar do jovem Orestes, ou então dos sofrimentos da guerra,
dos perante os seus povos, eles com isso irritam os deuses. não hesita em fazê-lo por intermédio da ama-de-leite de Orestes,
Embora, no final, tudo se junte numa coisa só, a ofensa aos deuses ou do mensageiro que é esperado em Tróia, dos seus mais humil-
e a ofensa à cidade são os dois lados de um só pecado. Como des sofrimentos, na sua banalidade brutal.
anuncia o coro, em Agamêmnon: "Aquele que derramou rios de Mesmo quando deseja sugerir algo mais, quando fala do assas-"
\ sangue tem sobre si o olhar dos deuses". sinato, do pecado ou do castigo, a sua arte oferece, em vez de ter-
O resultado é que toda ação humana se prolonga, e desperta mos abstratos, imagens fulgurantes, nas quais as coisas parecem
uma série de ecos que lhe conferem gravidade e seu alcance trági- adquirir vida por si mesmas, impondo mais medo ou horror. 0_
co. Com efeito, neste mundo de relações misteriosas, o gesto do sangue derramado, com certeza, não pode ser restituído: "Uma vez
homem que faz derramar sangue já não se limita ao seu horizonte derramado sobre a terra o sangue escuro de um ser humano, ne-
pessoal ou familiar, mas estende-se ao domínio do sagrado, onde nhum encantador o fará voltar às veias de onde saiu" (Agamêmnon,
tudo é avaliado em termos de erros e castigos. Estende-se também 1019-1021). Porém, se ele não pode ser restituído, não pode tam- (
no tempo, pois Ésquilo vê esse homem como uma peça na seqüên- pouco ser eliminado. Ele permanece. E Cassandra o encontra,
cia das gerações de sua raça. Estende-se até nas suas repercussões muitos anos depois, quando ela reconhece, no palácio de Aga-
imediatas, pois os reis são responsáveis pelo seu povo. mêmnon, "um abatedouro humano com o chão alagado de sangue"
(1092). Esse sangue está lá, com seu odor: "Este palácio cheira a
assassinato e a sangue derramado" (1309). Nada poderá redimi-lo.
Nada poderá fazê-lo desaparecer: "Mas assim que as gotas são be-
bidas pela mãe-terra, o sangue vingador coagula: ele não se dissi-
, . ...
70 Jacqueline de Romilly

pará jamais!" (As eoéforas, 66-67). Prenunciando lady Macbeth, o


coro chega a declarar: "Para purificar o homem de mãos ensan-
güentadas, todos os rios juntos, confundindo as suas torrentes, em
vão tentariam lavar suas impurezas" (72). O pecado não apenas
permanece: ele vive, prolifera, como um parto horrível:
Capítulo 3
Mas sempre, em contrapartida, o excesso antigo dos maus faz
nascer um excesso novo, cedo ou tarde, quando chega o dia
marcado para um novo nascimento; e com ele uma divindade
indomável, ímpia - Ate -, cruel com as casas, e que traz todos Sófocles ou a tragédia do
os traços de sua mãe (Agamêmnon, 764-767).
herói solitário
A mesma imagem aparece em As eoéforas, quando o coro de-
clara (646-652):

Nem está ainda o altar da justiça posto completamente abaixo, e


o destino já forja a sua espada; e eis que o rebento dos assassi- ~~er~ção de Sófocles viveu o apogeu da história de Atenas.
natos antigos entra por sua vez na casa, conduzido por aquela a Na época da Batalha de Salamina, ele ainda era um rapaz (diz-se
quem finalmente se devem pagar as impurezas, a Erínia, famosa que ele conduziu o coro de efebos, encarregado de celebrar a vitó-
por seus negros desígnios. ria). Ele conheceu o império ateniense, assistiu às construções da
~\ Acrópole. E, sem dúvida, acompanhou de perto as decepções da
À brutalidade da presença concreta alia-se um vulto de assom- Guerra do Peloponeso. Mas o amor por sua pátria não ficou abala-
bração; mas o pensamento de Ésquilo sempre se move rente ao do: Édipo em Colona, sua última peça, que só foi apresentada após
chão da realidade, e a ela se prende. A insuficiência das expres- sua morte, contém o mais belo dos cantos de glória a Atenas - a
sões, com sua majestade oracular ou sua rude simplicidade, contri- uma Atenas onde a vida é boa, cuja frota permanece gloriosa.
bui para a sua força. Mas essa força prende-se ao poder das Além disso, Sófocles é o único dos três grandes trágicos que_não
sensações. . ~~ abandonar Atenas: permaneceu, até o fim, fiel à época de feli-
Sem essa observação, correríamos o risco de admitir que a cidade na qual havia vivido.
grandeza do teatro de Ésquilo se aproxima da majestade clássica, ,gle -foi também uma pessoa feliz. Nascido em uma família
quando, ao contrário, ela geralmente desagradava na época do elas- abastada, recebeu uma educação correspondente a esse padrão de
sicismo. Essa mistura de vida concreta e de fundo religioso, que vida. Foi vencedor de competições esportivas, recebeu atribuições
nada tem de intelectual, representa justamente a característica pró- de músico, participou com sucesso da vida política (por duas vezes
\ pria do arcaísmo. E, em relação a ele, tudo o que seguiu seria ao foi estratego, e foi convidado a participar dos conselhos especiais,
mesmo tempo mais analisado e menos elevado, mais modesto e nomeados depois do desastre da Sicília, quando já tinha 83 anos).
mais concreto. Ninguém, depois de Ésquilo, se situou em seu nível. Cumpriu também funções religiosas. Enfim, sua carreira literária
foi brilhante. Premiado pela primeira vez em 468, quando ainda
não tinha trinta anos, ele o foi ainda outras vezes - mais que qual-
quer outro poeta trágico. Foi ainda premiado, aos 87 anos, por cau-
sa do seu Filoetetes.
72 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 73

Acrescente-se a isso que ele era um homem amável e sociável. quena, mesmo se consideramos o drama satírico Os sabujos, do
Tinha muitos amigos, e seus ditos espirituosos eram citados por qual foram encontrados fragmentos importantes, em 1912). No
toda parte. É possível que ele tenha também conhecido, no final de entanto, duas dessas sete tragédias são exemplos menos ilustrati-
sua vida, algumas decepções de ordem familiar; mas quem não as vos, justamente as que Sófocles dedicou a Édipo. Visto que nelas a
conhece? Se é verdade que ninguém pode ser declarado feliz antes relação com os deuses se passa antes do conflito entre os homens,
da sua morte, a vida de Sófocles tem por certo direito a esse epíteto. ambas serão examinadas sob esse aspecto.
Isso prova que se pode viver feliz e escrever tragédias, e até Entre as outras, as duas que melhor caracterizam a supremacia
inventar o mundo destinado a tomar-se o mundo trágico por exce- da ética são Antigona e Electra. Antigona, em particular, merece
lência. ser considerada, em primeiro lugar, por representar mais clara-
Esse trágico, próprio de Sófocles, está mais próximo de nós do mente a maneira como Sófocles atribuía a uma lenda o seu alcance
que o de Ésquilo. E, em certo sentido, a expansão política que SÓ- trágico. Em termos cronológicos, a exposição não deveria começar
focles conheceu e da qual desfrutou condiz com essa diferença: por ela (ela deve datar de 442, enquanto Ájax, As traquínias re-
essa expansão supõe, com efeito, uma maior confiança no homem. montam possivelmente a uma data anterior). Mas como em A re-
Ésquilo havia conhecido a ameaça de um desastre; Sófocles conhe- pública de Platão, Antígona oferece uma leitura mais clara daquilo
ce uma grandeza de bases sólidas, que deve ser bem administrada. que, nas outras peças, se apresenta mais diluído.
Ele coloca, portanto, o homem no centro de tudo, e entremeia suas Antígona, desobedecendo a ordem promulgada em Tebas, se-
~ tragédias com obrigações conflitantes e debates sobre condutas. pultou seu irmão Polinice, que havia sido morto na luta fratricida
Ele acredita na importância do homem e na sua grandeza, Chega contra Etéocles: ela deverá pagar com a vida tal iniciativa. Esse é o
assim a conceber imagens de heróis que ninguém conseguiria do- início da trama. E já podemos destacar, no nível dos fatos, alguns
brar - mesmo que fossem renegados por aqueles que os cercavam, detalhes particulares que parecem inventados por Sófocles: Antí-
mesmo que os deuses parecessem zombar deles. .• gona, na peça, age sozinha, sem a ajuda de sua irmã, e é perseguida
A magnitude dos atos humanos já não é mais, como na obra de por Creonte, o novo rei, e não pelo filho de Etéocles. Temos assim,
Ésquilo, exaltada pela evocação de suas conseqüências: ela reside de um lado, um ato solitário, e de outro, uma repressão com base
agora na atenção dada 'às suas .motivações e aos seus impulsos. ~- na autoridade. Daí nasce uma série de conflitos que comandam
fim, o trágico de Sófocles é, antes d~ t~JJloçã<UioJ.Qeal humano toda a peça.
, ,2bedecido por seus heróis. Esses conflitos correspondem às quatro grandes cenas da obra:
cada cena contrapõe dois personagens, e cada uma delas oferece
um contraste. No começo, Antígona discute com sua irmã Ismênia.
o contraste de deveres No fim, Creonte volta-se contra seu filho Hêmon, depois contra o
adivinho Tirésias. No meio da peça, dos versos 441 a 525, Creonte
Nenhuma das peças conservadas de Ésquilo deixa de trazer em enfrenta Antígona.
seu núcleo, guiando a trama, o problema da justiça divina. Do Existe, portanto, um conflito central comandando a peça.
mesmo modo, nenhuma das peças conservadas de Sófocles deixa Além disso, os dois personagens principais enfrentam um ou mais
de apresentar um problema de ordem ética, com toda a sua força, conflitos com os outros, o que ajuda a definir suas atitudes.
encarnado nos personagens. O simples fato de começar a peça com o diálogo entre essas
É possível, portanto, examinar sob esse ponto de vista as sete duas irmãs e de havê-Ias imaginado tão diferentes - uma, dedicada
peças que se conservaram (sete, das 123, uma lástima: a lista é pe- ao morto, corajosa, desafiante; a outra, medrosa, preocupada em
não empreender uma tarefa impossível - constituía um achado para
74 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 75

quem desejava ressaltar o heroísmo de Antígona. Ela faz o que Is- ba reconhecendo isso. Antígona combina, na sua decisão, certo
mênia não tem coragem de fazer, sem hesitar, e sabendo por quê. senso familiar, um sentido de pura humanidade e muita religião.
Entretanto, Ismênia só discorda de Antígona quanto à forma Mas esses conceitos antagônicos - fanu1ia e Estado, humanidade
de agir pretendida pela irmã. Defendendo-se, ela diz: "Eu não des- ou autoridade, religião ou respeito às leis - revelam outros confli-
prezo nada; sinto-me apenas incapaz de agir contra a vontade. da tos que Sófocles, em algumas cenas, ilustra vivamente diante dos
minha cidade" (78-79). Ela mostra, com este contraste, a coragem nossos olhos.
de Antígona, sem que entre elas haja qualquer choque de princípi- As duas cenas seguintes, nas quais Creonte se submete aos ar-
os. Esse choque será reservado para a cena com Creonte, onde ex- gumentos de seu filho Hêmon, depois aos do adivinho Tirésias, dão
plode o conflito entre dois princípios de vida, dois ideais, dois continuidade, após a saída da heroína, à análise dos princípios que
conceitos de dever. sustentam sua atitude. Hêmon representa humanidade e um certo
Os valores de Creonte são conhecidos desde o momento em senso político; ele se baseia na opinião, no que dizem as pessoas.
que ele se apresenta, pois os personagens de Sófocles têm a com- Ele pede ao pai que não se endureça a ponto de não escutar ne-
pulsão de se explicar, de cõõtãr suas regras de conduta: nhum conselho: "Não é isso o que diz todo o povo de Tebas". "Ha-
veria então Tebas de ditar-me ordens?" E mais adiante: "Queres,
Será possível, no entanto, conhecer bem a alma, os sentimentos, portanto, falar sozinho, sem que ninguém te responda?" (733-734,
os princípios de qualquer homem, se ele ainda não se mostrou 757). Tirésias, por sua vez, representa a religião, e fala da cólera
no exercício do poder, governando e ditando leis? Pois bem! eis dos deuses. O rei, no entanto, teima: ele já se revelara tirânico; irá
aí o que ele é para mim... (175-178). também mostrar-se ímpio? Finalmente ele cede, mas muito tarde:
Antígona e Hêmon serão mortos antes de saberem que ele viria
Ora, os-princípios de Creonte giram todos em torno da cidade líbertá-los.
e da dedicação que ela exige. E foi este o motivo pelo qual ele Em cada uma dessas quatro cenas, os personagens enfrentam-
proibiu o sepultamento de Polinice, que havia atacado a cidade. Os se dois a dois, em monólogos firmes e vibrantes, nos quais põem
princípios que animam Antígona são bem diferentes. As únicas leis toda a sua convicção, seguidos freqüentemente por diálogos breves
que ela conhece são os grandes princípios morais, assegurados pe- e crepitantes. Cada verso responde ao anterior, e o rigor das antíte-
los deuses. Contra a ordem de Creonte, ela defende a ordem de ses ajuda a esclarecer as posições, conferindo às diversas opções
Zeus: contornos nitidamente definidos.
A peça inteira baseia-se nesses conflitos, como que pondo à
Eu não imaginava que tuas proibições fossem tão poderosas que
prova um ideal moral. Em contrapartida, ao coro só resta acompa-
permitissem a um mortal passar por cima de outras leis, das leis
não-escritas, inabaláveis, dos deuses! Estas não datam nem de nhar, inquieto, esse debate que se sobrepõe a ele. No início, ele
hoje nem de ontem, e ninguém sabe o dia em que elas aparece- canta a vitória recente. Quando toma conhecimento de que Polinice
ram. Como poderia eu, por medo do que quer que seja, expor- foi sepultado, ele canta o gênio do homem e a desgraça produzida
me à vingança dos deuses? (452-459). pelo gênio mal empregado. Ele canta o desastre, quando Antígona
é condenada; o amor, depois da cena de Hêmon, noivo de Antígo-
Já foi dito que o conflito entre Antígona e Creonte representa- na; os grandes infortúnios mitológicos, quanto Antígona é levada
va o conflito entre os deveres familiares e as razões do Estado. Isso embora. Ele ora a Dioniso, quando tudo parece solucionar-se. A
é verdade, mas ao mesmo tempo não é. \Creonte, autoritário e or- partir daí, ele fica de fora, à margem da peça. Toda a tragédia con-
gulhoso, não age inteiramente movido pelo bem do Estado - e aca- centra-se no confronto dos personagens.
Em Electra, encontramos quase a mesma estrutura, tão inova-
dora em relação a Ésquilo. Retomando o tema de As coéforas de
76 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 77

Ésquilo, Sófocles despiu-o do aspecto religioso, e, em vez de dei- terna e dedicada, Tecmessa. Tecmessa desejava que Ájax vivesse:
xar Electra à sombra, faz dela sua heroína. Como Antígona, ela é por isso, ela lhe suplica, mas também procura argumentar. E, mais
uma heroína de uma coragem sem limites: quando acredita que o que a uma cena patética, assistimos a uma cena em que contrastam
seu irmão está morto, pensa por um momento em vingar-se sozinha duas formas de nobreza, duas formas de dever. Para Ájax, a nobre-
do pai. Como Antígona, ela é intransigente e altiva. E como Antí- za não aceita qualquer compromisso: "Viver nobremente ou no-
gona, é levada a agir por piedade dos mortos. Como em Antígona, bremente perecer, eis a regra para quem tem bom sangue"; para
Sófocles colocou ao lado dela uma irmã, mais hesitante, mais me- Tecmessa, ao contrário, a nobreza caracteriza-se por deveres hu-
drosa, que se retrai em face de uma ação aparentemente impossí- manos, imediatos e precisos: "Aquele que deixa perder-se a memó-
vel. Dessa forma, assistimos mais uma vez a uma série de ria de um bom feito não pode passar por alguém de bom sangue".
confrontos: primeiro, Electra e sua irmã (328-471), depois, Electra Uma vez mais, deparamo-nos com grandes exposições de princípi-
e Clitemnestra (515-659); e, mais uma vez, depois do anúncio falso os, seguidas de diálogos rápidos; uma vez mais, um conflito de
da morte de Orestes, um confronto entre Electra e sua irmã (870- esperanças e de vontades, onde o homem se debate.
1057). Ao longo desses confrontos, a vontade de Electra revigora- A segunda parte da peça não possui a mesma grandeza. O he-
se, define-se, e avança quase ao extremo, a tal ponto que o duplo rói, ao redor de quem se centrava a trama, está morto, agora existe
assassinato de Clitemnestra e de Egisto aparece como o desfecho apenas o seu cadáver. O debate é bastante fraco aos olhos dos mo-
natural dessa tensão. Electra e Orestes reconhecem-se no verso dernos, conduzido entre personagens que nada têm de heróico. To-
1224; Clitemnestra morre no verso 1416; e a peça termina no verso davia: mais uma vez, encontramos confrontos entre direitos,
1510. Em suma, o importante é o que se passa antes na alma de princípios e vontades: Teucro defende Ájax contra Menelau, de-
Electra, quando ela está só, e reduzida ao desespero. pois contra Agamêmnon; em seguida ele é substituído, nesse de-
Electra é mais amarga do que Antígona, e essa peça de vin- bate, por Ulisses. Por intermédio desses sucessivos campeões,
gança não possui o mesmo brilho que a primeira. Mas a firmeza da assistimos ao conflito entre a admiração e a vingança, a gratidão e
heroína é a mesma, como também é o mesmo o método de con- os direitos da autoridade. Como em Antígona, as exigências morais
trastes sucessivos. vêm em contraponto às da disciplina.
As demais peças, sem empregar meios similares, respondem Se acrescentarmos, por fim, que o mesmo Ulisses, que no final
mais ou menos a uma inspiração análoga. A tragédia Ájax (que da peça defende os direitos da moderação, já havia aparecido no
pode ser a mais antiga que possuímos) é uma peça composta de princípio, quando a sua prudência e flexibilidade contrastavam vi-
dois quadros, separada, no meio, pelo suicídio de Ájax. A primeira vamente com a imprudência e arrogância de Ájax, ficará evidente
parte conduz a esse suicídio, mostrando como o herói, ao se recu- que certas antíteses sempre se delineiam claramente no teatro de
perar de uma noite de loucura, quando matou bois e cavalos acre- SófocleS, mesmo quando os personagens em questão não trocam
ditando estar massacrando homens, se recusa a aceitar essa nenhum verso entre si.
desonra. A segunda mostra como, depois de sua morte, os atridas Isso é confirmado em As traquinias. Nessa tragédia, igual-
acabam por aceitar que ele seja sepultado e, de certa forma, reabi- mente composta de duas partes bem distintas, a divisão que as se-
litado. Nas duas partes, como sempre, há o confronto vigoroso en- para é mais marcante ainda do que em Ájax. A primeira delas é
tre princípios de conduta. dedicada a Dejanira, a mulher de Héracles: primeiro, ela se con-
Da mesma forma como colocou ao lado de Antígona e de some na espera e na inquietude; depois, é informada ao mesmo
Electra irmãs tímidas, realçando-lhes o heroísmo, Sófocles colocou tempo da volta de Héracles e de sua infidelidade. Envia-lhe então
ao lado de Ájax, o herói arrebatado, arcaico e feroz, uma escrava um presente mágico, que acredita ser capaz de trazê-lo de volta
para si. Quando descobre que esse presente vai causar a morte de
Héracles, ela se suicida. Héracles não é mostrado em toda essa
78 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 79

primeira parte. Quando aparece, moribundo, gritando de dor, Deja- em Antígona. Como ele, opõe-se violentamente à voz do adivinho
nira já está morta. Portanto, os dois personagens principais nunca e à dos seus (aqui, à do próprio Creonte!). Como ele, acusa errone-
se encontram em cena. Mas isso não impede que o contraste entre amente. E pode-se até falar de obsessão, como no caso de Creonte.
esse herói sobre-humano e sua mulher devotada, submissa e inse- Da mesma forma, na última das peças de Sófoc1es, Édipo em Co-
gura seja igual ao de Ájax e Tecmessa, ou àquele das irmãs herói- lona, Édipo aparece cercado pela proteção divina, finalmente con-
cas e das irmãs temerosas. cedida; ele morrerá de uma morte misteriosa; seu corpo será
O mesmo já não ocorre no extremo da carreira de Sófoc1es, no envolvido por poderes benéficos; mas ele permanece tão obstinado
Filoctetes. E, no entanto, a estrutura da tragédia ilustra ainda me- quanto violento e intratável. Cabe dessa vez a Antígona convencê-
lhor este estilo, muito próprio de Sófoc1es, de contrapor, duas a 10 a dobrar-se a favor de Polinice.
duas, as normas éticas. Assim, mesmo nas peças em que tal preocupação é apenas se-
Desta vez a tragédia é puramente dedicada a um problema mo- ~cundária, reencontramos esses contrastes de temperamentos, que
ral. Ulisses, desde o prólogo, pede ao jovem Neoptólemo que, as- são também contrastes de valores e de ideais.
tutamente, se apodere do arco de Filoctetes. Filoctetes vive Sófoc1es, sob esse aspecto, é o testemunho privilegiado da
solitário, rusticamente, num canto deserto da ilha de Lemnos, onde evolução moral que, em Atenas, havia acompanhado a evolução
foi abandonado pelo exército grego depois que uma cobra picou -*'-social, e que fragmentava as noções em diversos aspectos. A velha
seu pé. Ele está fraco e sem nenhuma outra defesa além desse arco. moral aristocrática devia ser repensada à luz da razão. Entre a hon-
É preciso tomar-lhe o arco, segundo o interesse dos gregos. Mas ra pessoal e o dever de proteger os seus, entre a honra reconhecida
mentir? Roubar? Neoptólemo primeiro hesita, depois aceita. A publicamente e o sentimento do que se é devido, entre os direitos
peça inteira resume-se no relato desse conflito vivido por ele: ele é dos deuses e os do Estado, abriam-se abismos, surgiam conflitos, e
piedoso, honesto, não pode ludibriar esse'homem solitário. O ardi- operavam-se tomadas de consciência. É por isso que os persona-
loso Ulisses, levado por razões de Estado, tenta impor-se ao ho- gens da epopéia passam a ser, na obra de Sófoc1es, os porta-vozes
mem jovem e puro, que finalmente------foge ao compromisso: "A de um mundo novo: eles apresentam problemas que a lenda igno-
honestidade aqui vale muito mais do que a habilidade" (1246). Ini- rava, e encamam um ideal que exigia mais do homem, incessante-
ciado no prólogo, o grande debate moral entre a competência e a mente, tomando-o sempre mais o juiz único de seus deveres.
honra mantém-se até essa última decisão, tomada, como sempre, Mas, acima de tudo, esses contrastes acabam sempre colocan-
em favor do heroísmo. do o mesmo problema, primordial aos olhos de Sófoc1es. Ceder ou
Poder-se-ia acrescentar, por fim, que se de fato Neoptólemo não ceder? Curvar-se ou permanecer firme? Deixar-se convencer,
devolve o arco de Filoctetes, ele também tenta convencê-lo a adaptar-se às coisas ou enrijecer, e permanecer tal qual se é? As
acompanhá-lo até Tróia. Fala-lhe de glória; o outro, porém, tem palavras, como as situações, repetem-se de uma tragédia para ou-
medo de retratar-se. É o princípio do perdão opondo-se ao princí- tra. Em todas elas, trata-se do problema do heroísmo.
pio da obstinação; um pouco como o debate apresentado no final Pois existe um problema, uma ambigüidade profunda, trazida
de Ájax. Aqui, é um deus que o convence, ou melhor, um semi- à luz pelo paralelismo das fórmulas: os dois tipos de personagens,
deus: é Hérac1es que aparece para finalmente fazer Filoctetes ceder. na obra de Sófoc1es, que se recusam a ceder. Uns são obst~nados
Há apenas duas peças em que tais conflitos não aparecem: são sem razão, como o Creonte de Antígona, o Agamêmnon de Ajax, o
as que Sófoc1es dedicou a Édipo. No entanto, nelas reencontramos próprio Hérac1es, ao condenar Dejanira. Outros são heróis, mere-
aqueles dilemas entre o herói que não quer ceder e os que tentam cedores da nossa admiração, exatamente porque nada os abate -
convencê-Ia. Em Édipo rei, Édipo é tão obstinado quanto Creonte como Antígona, como Ájax, como Electra. O que os distingue dos
primeiros é somente a causa que se propõem a servir. Distingue-se
somente o fato de que estes possuem a força e desejam vê-Ia im-
80 A tragédia grega 81
Jacqueline de Romilly

posta, enquanto aqueles não têm nada, são esmagados, abandona- claro, não poderia discernir em sua conduta nada além do testemu-
dos, mas conservam um ideal que justifica seu sacrifício. nho de vulgar insubordinação. Mas os demais não mostram uma
Antígona .e Ájax não são necessariamente modelos aos olhos melhor compreensão. Ismênia a teria acompanhado, se a tivesse
de Sófocles - se entendemos por modelos exemplos de comporta- compreendido. E o coro, que normalmente deveria apoiá-Ia e mos-
mento que cada um deveria adotar. Mas eles são casos extremos e trar-lhe simpatia, revela, de um momento para outro, uma total in-
admiráveis daquilo que o homem pode ser, e da grandeza que ele diferença. Antes mesmo de saber quem cometeu o ato proibido, ele
pode atingir. - se apressa em censurar o espírito de desobediência às leis, sejam
- e-faro de que ele só atinja essa grandeza na solidão, de que ele elas divinas ou humanas (367). Quando sabe que se trata de Antí-
seja rejeitado pelos outros homens e enganado pelos deuses, nada gona, ele não consegue acreditar que ela tenha agido assim, e que
disso evidentemente a diminui: ao contrário, tal circunstância con- só pode ter sido surpreendida "em plena crise de loucura" (383).
fere à grandeza um caráter trágico. A atitude do herói, seu desejo No momento em que ela é conduzida à morte, o coro não contém
apaixonado pela honra e sua recusa de qualquer compromisso só seu espanto e sua reprovação: "A tua paixão só pediu conselho a si
nos afetam tão fortemente porque essa atitude vai de braços dados ::t mesma, e assim ela te desgraçou" (875). Ao lado de Antígona,
portanto, não há ninguém. É o destino que lhe foi reservado. Ela,
cQ..I11.a
-
solidão e com a aceitaçãJLda morte.
que deverá ser emparedada viva num lugar deserto, já está, entre os
seus, abandonada por todos.
A solidão do herói Sófocles' não hesitou em enfatizar esse abandono. A orgulhosa
Antígona é atingida, a ponto de gemer em voz alta. Primeiro, ela
A série de confrontos que contrapõem os heróis a outros per- desabafa sua amargura: "Ah! riem-se de mim!" (839). Depois são
sonagens não tem somente a função de dai- Úm'contorno mais níti- lamentos, sentidos, obstinados, insistentes:
do e mais rigoroso ao seus sentimentos: ela também afasta
progressivamente os heróis de toda ajuda e de todo apoio humanos. Privada dos prantos de luto, sem amigos, sem marido, eis-me
"Tu és o meu sangue, minha irmã, Ismênia, minha querida ..." desgraçada, arrastada pelo caminho que se abre à minha frente!
Desfavorecida pela sorte, não terei mais o direito de contemplar
Essas primeiras palavras, que abrem a Antígona, são um apelo à
o brilho dessa chama sagrada; e sobre meu destino, por nin-
ação conjunta. Antígona quisera que Ismênia a ajudasse a agir: guém lamentado, nenhuma voz amiga irá proferir um gemido
"Julgo que não vais tardar em mostrar se é digna do teu sangue, ou (876-882).
se, sendo filha de bravos, tens um coração pusilânime". Ora, Ismê-
nia recusa, e Antígona imediatamente se enrijece, trancando-se em Mais adiante, ela proclama pela última vez a justiça da causa
si mesma: ela opta pela solidão. Não quer mais ouvir falar da par- que desejou servir, e o escândalo dessa retribuição cruel: "Sem um
ceria: "Fica tranqüila, não te pedirei mais nada; e mesmo que mais olhar amigo, abandonada pelos meus, eu desço viva, miserável, à
tarde quiseres agir, eu terei a mínima satisfação de sentir-te ao meu minha morada subterrânea dos mortos ... Não tenho aliados a quem
lado" (69-70). Ela manterá essa recusa mesmo diante do perigo; e apelar: minha piedade valeu-me a fama de ímpia" (919-924).
quando Ismênia, mais tarde, desejar associar-se a ela, Antígona, Mas esses lamentos, por mais comoventes que sejam, não de-
fiel ao seu princípio, rejeitará: "Tu não quiseste seguir-me, e eu vem iludir-nos. Antígona sofre com sua solidão, mas a havia rei-
não te associei ao meu ato" (539). vindicado desde o princípio, aceitando-a com firmeza. Ela se
Antígona está, portanto, só. E mais do que isso, ela parece queixa, mas parte para a morte resolutamente. Dito de outra forma,
destinada a uma solidão moral: ninguém a compreende. Creonte, é o sofrimento que nasce desta solidão representa ao mesmo tempo a
condição e a conseqüência da coragem heróica: ela é ~ reverso da
82 jacqueline de Romilly A tragédia grega 83

grandeza. No final, essa ambivalência é tão trágica quanto a sub- tava a Electra, senão uma esperança - a chegada de Orestes. Ora,
missão inquieta em que viviam os heróis de Ésquilo. Sófocles utilizou (e, dos três trágicos, ele foi o único a fazê-Io) o
Tal ambivalência encontra-se a todo momento na obra de SÓ- recurso de manter Electra inconsciente da mentira da morte de
foclés: todos os seus _herói~ ~ão mais valentes que o natural; e todos Orestes. A tragédia contém um extenso relato dessa morte fictícia.
se debatem na solidão que seu heroísmo exige. Após esse relato, Electra fica sozinha, abandonada: "Ó meu Ores-
Ájax é um dos mais solitários. Embora tenha ao seu lado a fiel tes, a tua morte me mata. Tu me abandonas, e me arrancas do cora-
Tecmessa e os seus fiéis marinheiros, ele se sente alvo de chacotas ção a única esperança que ainda me restava ... (...) Aqui estou,
da tropa. Mesmo os seus não o compreendem: o debate com Te- sozinha, privada de ti, como também do meu pai" (808-813). E
cmessa, assim como o de Antígona com Ismênia, serve para esta- desse abandono nasce então uma idéia heróica: com sua irmã, sem
belecer posições contrárias, mas serve ainda mais para revelar o ajuda de mais ninguém, ela deseja vingar Agamêmnon. Fazer as-
isolamento moral em que se encontra o herói. Tal isolamento é sim a ligação da vontade heróica de Electra com aquela solidão
evidente também na atitude de evitar a discussão, na impaciência e imaginária constitui um dos achados de Sófocles.
grosseria de Ájax quando se recusa a quem quer que seja. O coro Mas ela ainda não está absolutamente só, pois imagina que sua
qualifica esse isolamento com uma bela expressão, que não se en- irmã irá ajudá-Ia. E numa cena equivalente àquela do início de An-
contra em nenhuma outra parte do grego: ele "nutre o seu coração tígona, mas intencionalmente deslocada para o final, ela pede à sua
na solidão" (614). irmã que lhe ajude: "Nós estamos completamente sós", diz ela
De resto, a estrutura dramática da peça deixa bem elaro o refe- (950). Orestes está de fato morto: "Hoje ele não existe mais, e é
rido isolamento, pois, após a cena com Tecmessa e com seu filho, para ti que volto os meus olhos. Estou segura de que tu não hesita-
Ájax só reaparecerá para falar sozinho: primeiro, em um longo rás em unir-te à tua irmã para matar o assassino de teu pai" (954).
monólogo, visando enganar o cdrd - monólogo do qual Ájax é o Última ilusão que se dissipa: a irmã recusa-lhe auxílio, assim como
único a compreender o sentido; depois, em outro monólogo, que Ismênia se recusou a ajudar Antígona. Eliminada essa última espe-
precede a sua morte. As despedidas do herói não se dirigem a ho- rança, Electra decide, como Antígona, agir sozinha - agir significa
mem nenhum. E para tomar essa solidão ainda mais evidente, SÓ- não somente realizar um ato tradicionalmente normal, só recente-
foeles utilizou um expediente extraordinário: o próprio coro se mente proibido por um decreto, mas sim matar um rei: "Pois bem!
retirou. Ájax, portanto, morre numa solidão total e marcante. serei eu mesma, com minhas mãos e sozinha, que haverei de cum-
Quanto a Electra, a sua solidão acumula todos os aspectos da prir a tarefa" (10 19-1020). Pode-se dizer que o ato heróico brota
solidão dos demais. Ou melhor, ela os põe em ordem, segundo uma aqui da própria solidão.
espécie de gradação. Desde o princípio, descobrimos nela uma he- Na obra de Sófocles, essa solidão pode revestir-se de muitas
roína solitária e incompreendida - como Ájax ou Antígona no formas. Esse homem, sociável e feliz, parece ter tido um senso
momento de sua morte. Electra encontra-se sozinha, sustentando os apurado do que significavam o abandono e o mal-entendido. Antí-
sentimentos de revolta e piedade filial numa família que os renega. gona e Electra são acusadas por terem feito escolhas nobres. Ájax,
O coro a censura; sua irmã Crisótemis a acusa; sua mãe a agride e a julgado somente por sua revolta e loucura, nem por isso foi menos
ameaça. Ela é, portanto, ainda mais incompreendida que Antígona. incompreendido e tratado injustamente. E Dejanira, que nada tem
E como Antígona - coincidência por si só eloqüente - sofre a ame- de heróica, morre condenada pelo próprio filho, quando ela so-
aça de ser emparedada viva em um local deserto. mente quis fazer o bem. O teatro de Sófocles é constantemente en-
Tal solidão, porém, não surge de uma só vez: ela cresce ao tremeado de condenações erradas.
longo da tragédia, em dois tempos sucessivos. Primeiro, nada res- Um belo exemplo delas encontra-se na última das tragédias de
Sófoeles. O Édipo que Sófoeles imagina em Édipo em Colona é
um homem que não enxerga mais, que não tem mais pátria, que
84 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 85

rompeu com os seus filhos, e de quem todos os homens fogem. absoluto: Édipo conhece a tristeza extrema da solidão, atingindo
Além disso, uma vez cego, não desejaria ele mesmo afastar-se do uma solidão que transcende o humano.
resto dos homens? Ele dizia, em Édipo rei: "Se me fosse possível ÉdiQo, de fato, morre só, como Ájax. Mas, morre cercado.do
barrar o fluxo dos sons a caminho dos meus ouvidos, nada me im- mistério sagrado. No momento em que alguns sinais, que só ele
pediria então de trancafiar meu pobre corpo, tornando-o cego e conhecia, lhe anunciam a morte próxima, esse cego põe-se a cami-
surdo ao mesmo tempo" (1386-1389). nho sem a ajuda de ninguém: "Nenhum dos seus poderia ser seu
Édipo, portanto, está só. Mas em meio ao horror em que é guia" (1588). As testemunhas da sua morte são pouco a pouco
mantido pelos homens, ele percebe algo de profundamente injusto. afastadas: um relato nos conta as suas últimas palavras às filhas,
Algo de criminoso, pelo qual ele não é responsável. E proclama que não são muitas. Somente Teseu saberia o resto; mas mesmo
obstiqadamente essa inocência. Quando o coro pretende expulsá-lo ele, que conta a morte de Édipo, na peça não sabe de nada. Assim
do asilo de Colona onde se refugiara, ele explica: "Meus atos, eu os ignoramos como morreu Édi~. Ignoramos também o local de sua
sofri, não os cometi". "Foi sem saber de nada que cheguei ao ponto sepultura. Ele é, como os heróis das outras tragédias, um ser à par-
que cheguei" (267, 273). Depois, no decorrer da peça, volta cons- te. Mas ele o é mais que os outros: ele se afastou dos homens.
tantemente ao assunto: "Tu sofreste ... Eu sofri provações que não Isso sugere que, ao lado trágico da solidão entre os homens,
se esquecem nunca mais. Tu cometeste ... Eu não cometi" (538- Sófocles acrescenta um outro, que não nasce da relação entre os
539). E, diante das acusações de Creonte, repetirá ainda: "Desgra- homens, ma~ sim da relação entre os heróis e os deuses.
ças que eu sofri, ai de mim, tão involuntárias!" (964). "Como pode-
riam em plena razão condenar-me por um ato não-proposital?"
(977). "Eu a desposei contra a minha vontade, e é ainda contra a o herói e os deuses
minha vontade que aqui falo dessas cois'ls'; (987). Tantos protestos --,
acentuam a dificuldade de fazer-se ouvir. ~dipo é o exemplo do Os deuses estão sempre presentes nas tragédias de Sófocles.
homem condenado injustamente. - Diferentes dos deuses de Ésquilo, eles já não têm uma influência J
Solitário moralmente e de fato, Édipo tem, na verdade, as duas tão grande sobre as emoções. Também não são tão sensíveis. Já.
filhas junto de si. Mas Sófocles não perdeu a chance de torná-Io, ao não se comenta tanto sobre seus desígnios, os quais deixam de se
longo da peça, subitamente privado desse último apoio: Creonte relacionar tão fortemente com o conceito de justiça. Mas esse
arranca à força, do velho cego, as duas jovens.' mesmo distanciamento nada mais é que o sinal da diferença radical
No entanto, mesmo nesse momento, Édipo não chora a sua que os separa do homem.
solidão. Ela é uma solidão orgulhosa, vingativa, quase agressiva. Sófocles, na verdade, tinha o sentimento profundo da majesta-
Ele sabe que goza de poderes únicos. de divina. No teatro, os deuses revelam-se à parte, alheios, acima
Com efeito, a originalidade profunda de Édipo em Colona é o da imperfeição e do tempo. Como diz o coro, em Antígona:
fato de que o herói, que no começo parecia mergulhado no mais
doloroso abandono, se mostra marcado por outra solidão, a do pri- Ó Zeus, mas qual orgulho humano poderia reduzir teu poder?
vilégio divino. A ambivalência que encontrávamos no caso dos Nem o sono que seduz a todos os seres, nem o curso incansável
outros heróis, no nível da grandeza moral, adquire aqui um valor dos meses divinos jamais triunfam sobre ele. Insensível à idade
e ao tempo, tu permaneces o senhor absoluto do Olimpo de es-
plêndida claridade ... (604-610).

1 Como Filoctetes, que só tem o seu arco, e acaba tendo-o arrancado. T~do o que parte desses deuses, ou se relaciona coin eles, tin>
ge-se constantemente com essa luminosidade do absoluto. Por isso,
86 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 87

as regras morais que reivindicam uma ordem divina revestem-se, amanhã, ele é "efêmero". De fato, Sófocles emprega repetidas ve-
quando comparadas às regras humanas, de um valor intangível, que zes ess,a palavra, para designar os homens.!
lhes confere prioridade sobre todo o resto. É realmente impressio- ntre os homens, tudo é incerto e frágil. Sua vida é feita de
nante notar com que insistência Sófocles realça essa negação do altemâncias. Tudo muda, tudo passJ'E Sófocles evoca essa idéia
tempo e da mudança, que constitui, aos seus olhos, a beleza da or- com imagens eloqüentes, que traem seu sentimento pessoal. Talvez
-, dem divina. Sob esse aspecto, a justificativa de Antígona é revela- a mais bela esteja em As traquínias, que continua em Ájax. Em As
dora, situando-se num contexto maior. traquínias, ela aparece logo no princípio da peça, e pertence a uma
Quando declara ter preferido, às ordens do rei, as leis "não- parte cantada:
escritas e inabaláveis dos deuses", ela explica: "Essas leis não da-
Igualmente o Crônida, o rei que tudo ordena, jamais outorgou
tam nem de hoje nem de ontem, e ninguém sabe quando elas apa-
aos mortais favores sem sofrimentos. Para todos, as alegrias e as
receram. Como poderia eu então, por medo de quem quer que seja, tristezas vão-se alternando: é como se assistíssemos ao carrossel
expor-me à vingança dessas leis perante os deuses?" (454-460). E das estrelas da Ursa. Para os homens, nada há que dure, nem a
o coro de Édipo rei exprime-se em termos semelhantes, quando noite estrelada, nem as desgraças, nem a riqueza. Tudo isso um
exclama: dia bruscamente se dissipará; e já chega a vez de um outro des-
frutar - antes de tudo perder (126-135).
Ah! Possa o destino fazer com que eu sempre conserve a pureza
santa em todas as minhas palavras, em todos os meus atos. As Essa forma de altemância regular, que parece presidir o desti-
leis que os regem têm a sua sede nas alturas: elas nasceram no no dos homens, aparece novamente em Ájax, para ilustrar um pen-
éter celeste, e o Olimpo é o seu único pai, ser humano algum
samento um pouco diferente, mas em termos ainda mais amplos.
Ihes deu origem; jamais o esqàecímento as entorpecerá; um
Dir-se-ia que ela se estende ao universo inteiro:
deus poderoso está presente nelas, um deus que não envelhece
(863-871).
As potências mais terríveis cedem aos direitos reconhecidos. O
inverno, que avança sobre a neve, dá lugar ao verão, portador de
Tal sentimento intenso do contraste existente entre o mundo
colheitas. A carruagem lúgubre da noite se desvanece diante do
dos deuses e o mundo dos homens é digno de Píndaro. E as pala- dia e seus corcéis brancos, para deixá-los brilhar com toda a sua
vras de Sófocles nos fazem lembrar que Píndaro empregou, a pro- luz. O sopro suave do temível vento acalma as ondas raivosas
pósito dos deuses, no fragmento 143 Snell (= Ad. 25, Puech): "Eles do mar. O sono, todo-poderoso, liberta os seres que ele manti-
estão ao abrigo das doenças e da velhice; não conhecem esforço, nha acorrentados, e não os domina indefinidamente. E n6s, pre-
escapam à travessia do Aqueronte, à travessia dos gemidos sur- cisamente nõs, não saberíamos ser razoáveis? (669-677).
dos". Trazem ao pensamento também aquelas outras palavras, da
terceira Ístmica, relativas aos homens (18-20): "Mas enquanto os Essas grandes evocações encontram eco em numerosas obser-
dias correm, o tempo traz muitas vicissitudes. Somente os filhos vações, espalhadas aqui e ali nas tragédias. Ora são, por exemplo,
dos deuses são invulneráveis". os marinheiros de Ájax que exclamam: "Nada existe que- o tempo
A devoção grega, com efeito, nutre-se fortemente desse con- todo-poderoso não faça desaparecer" (713). Ora é o mensageiro de
traste. Os deuses representam a luz, a perenidade, a serenidade. O Antígona que observa:
homem, ao contrário, é dado à instabilidade, vive sem pensar no \

2 Cf. Ájax, 399; Antígona, 790.


88 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 89

Ó vós, vizinhos do palácio de Cadmo e de Anfíon, saibais que Existe no teatro de S6focles, portanto, um fosso profundo en-
-
não há existência humana tão estável que nos traga completa tre os altos e baixos do destino e a distante esfera dos deuses. E
satisfação ou queixa. A cada instante, o destino vem abater-se isso explica por que o homem não pode penetrar o mistério da
sobre o homem feliz, como também reerguer o desgraçado; e vontade divina, e nem tenta fazê-Io. Nesse teatro não se pergunta,
quanto à constância que tanto desejam, não há adivinho capaz como em ÉsquiIo, sobre os caminhos da justiça divina. Os deuses
de garanti-Ia aos mortais (1155-1160).
não estão mais tão perto, e as perguntas feitas referem-se mais ao
sentido dos seus oráculos. É s6 isso o que restou; e, na verdade, é
Ora, ainda, é o coro de Édipo rei que vê, no destino do herói,
muito pouco, pois, por mais atento que se esteja, por maior que
justamente essa fragilidade humana, e que, descoberta a verdade,
seja o esforço de indagar, comparar e compreender, as profecias
começa o seu canto, proclamando:
dos deuses raramente são claras para os homens.
Pobres gerações humanas, em vós só vejo o nada! Qual é, qual é
Em quase todas as peças de S6focles há diversas profecias que
pois o homem que alcança mais felicidade do que precisa para se combinam. Elas entreabrem uma porta, apenas o bastante para
parecer feliz, e irá depois, satisfeita essa aparência, desaparecer perceber que há um mundo do outro lado, e que um destino se pre-
no horizonte? (1186-1192). para, sem que se possa saber qual é. Assim é que, em As traquini-
as, se sabe que é chegado o dia em que Héracles deverá sucumbir,
Os sentimentos dos homens também estão sujeitos a oscila- ou então viver livre de toda tristeza (166 e ss.). Mas qual dessas
ções. Os heróis custam a aceitá-Io, mas Sófocles empresta-Ihes duas alte~ativas veremos? O oráculo nada diz. Da mesma forma,
palavras particularmente fortes para expressarem essa condição - em Ájax, sabemos que a cólera de Atena perseguirá Ájax durante
mesmo que,
seja só para dizer quanto, sofrimento
í
isso lhes causa. "um só dia" (756). Mas poderia ele evitar esse dia? Isso não está
Assim Ajax, esquivando-se de seu mundo, proclama que tudo dito. No Filoctetes, sabemos que as armas de Filoctetes, ou talvez
muda, e que ele também mudará. Ele faz menção ao tempo, que ele mesmo, são necessárias para a tomada de Tróia; mas serão elas
"no seu longo e interminável curso revela o que permanecia na obtidas? Perto do final da peça, somos informados de que o her6i
sombra, da mesma forma como esconde o que brilhava à luz do s6 poderá ser curado em Tróia. Mas ele irá até lá? Às vezes, é s6
dia". E, em seguida, a sua evocação torna-se amarga: "Nada há que no fim da peça que os heróis se lembram de um oráculo, que enfim
possa nos causar surpresa; e encontramos falhas, tanto nos jura- se tomou claro. É o caso de Héracles, que, no momento de sua
mentos mais fortes, como nas vontades mais firmes" (646-649).3 morte, descobre que o bálsamo mágico preparado por sua mulher
Certamente, os heróis têm, por natureza, a tendência a não lhe havia sido confiado pelo centauro Nesso, que estava moribun-
mudar. Édipo, Electra, Antígona, como também Ájax, recusam-se do. Ele exclama que agora compreende:
~a baixar a cabeça e transigir com relação ao seu ideal. Essa obsti-
nação vem do desejo do absoluto. Mesmo sendo senhores das suas Outrora foi-me profetizado pelo meu pai que eu não morreria
escolhas, eles não são senhores dos seus destinos, sendo, aliás, os pela ação de um vivo, mas sim de um morto, de um hóspede
primeiros a sofrer seus contragolpes. Tais golpes são a marca da dos infernos. E é efetivamente o monstro, o Centauro, que terá
consumado a profecia divina: morto matou-me, sendo eu vivo
-condição humana, à qual somente os deuses escapam.
(1159-1163).

\ Imprecisos, obscuros, muitas vezes ardilosos, o~ oráculos dão


3 Esses exemplos, e outros do mesmo teor, são comentados em nosso Ti- espaço à esperança e ao erro. E poderíamos dizer mais. Eles pare-
me in Greek tragedy, Come li University Press, 1968, pp.88 e ss. cem calculados precisamente para iludir, sugerindo fortemente que
a divindade teve prazer em divertir-se com o homem. Sob esse as-
90 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 91

pecto, aliás, Sófocles se aproxima bastante de Heródoto, com eis que vem o filho de Zeus, eis o rebento de Alcmena, que se en-
quem, aparentemente, cultivava bom relacionamento." Com efeito, caminha para a sua casa ..." E não se contém de tanta impaciência:
não podemos deixar de lembrar os muitos oráculos citados pelo "Que chegue, pois, que chegue logo! E que a nau, tão bem munida
historiador, . suscitando quase sempre o embaraço daqueles aos de remos, que para cá o conduz, não esmoreça antes que ele alcan-
quais se dirigiam. Alguns desses oráculos chegam propositada- ce esta cidade ..." (633-662). No momento em que o coro se cala,
mente a levá-los à ruína, por encorajarem uma falsa interpretação. Dejanira entra, e suas primeiras palavras são: "Tenho medo ..." Hé-
O exemplo mais famoso é a profecia feita a Creso: ela o incitou a racles chegará, por certo, à sua cidade - mas para morrer.
entrar em guerra, dizendo-lhe que se o fizesse destruiria um grande Em Ájax, o efeito trágico é idêntico. No momento em que o
império. E estava certo o oráculo, mas esse império era o dele pró- herói só está vivo para enfrentar vergonha e desespero, e passar do
\ prio (I, 53 e 91). desespero para a morte, ouve-se um canto de alegria: o canto dos
Esse jogo entre o homem e os deuses, marcado por oráculos marujos que, iludidos pelas declarações de Ájax, acreditam por um
prontos a semear o erro, é sabidamente a idéia-mestra do Édipo rei. instante que tudo terminará bem. É um grito de júbilo: "Tremo de
\ Mas seria errôneo pensar que ele aparece somente ali. Na verdade, desejo, arrebata-me a alegria ..." (693). Apenas terminado o canto,
~.~ inteira dramaturgia de Sófocles repousa sobre a idéia de que o entra o mensageiro, dando a notícia de que Ájax é ameaçado. Cem
homem é o brinquedo daquilo que se poderia chamar a ironia do versos depois, Ájax está morto.
destino. Da mesma forma, em Antígona, há um momento no final onde
Do ponto de vista técnico, Sófocles introduziu na ação trágica o coro acredita que a heroína poderá ser salva: Creonte acaba de
( a surpresa e a peripécia, que se incorporaram à própria história do ceder, e parte, apressado. "Serei eu quem vai libertá-Ia", ele diz.
gênero. Mas essas surpresas e peripécias adquirem também, no Também aqui, Sófocles opta por um canto do coro, impaciente e
domínio das idéias, um significado profundo: mostram que os jubiloso, que antecede justamente a catástrofe final. Ele invoca
\l/eventos se divertem com o homem. Dioniso:
I Com muita freqüência, o homem atira-se à ruína justamente ao
,\esforçar-se em escapar dela. Dejanira causa a morte daquele que Nesta hora em que a nossa cidade inteira é presa de um mal cru-
el, vem a ela e, de um passo que deverá trazer-lhe a salvação,
ama, usando uma droga que, acreditava ela, iria uni-los para sem-
transpõe as alturas do Pamaso ou o estreito lamurioso. Tu que
pre. Mesmo quando as coisas não chegam a esse ponto, existe, sem
reges o coro dos astros inflamados, e que presides os apelos que
dúvida, certa ironia do destino no fato de um homem imaginar-se lançamos na noite, rebento, filho de Zeus, aparece, senhor, ao
triunfante, no exato momento em que se consuma a sua perdição. lado dos teus servos, no meio dessas Tíades, cujas danças fre-
Do ponto de vista dramático, o contraste aviva a surpresa. Do néticas te homenageiam a noite inteira, laco, o Dispensador!
ponto de vista do pensamento, ele ressalta de modo trágico a ce- (1140-1152).
gueira e a ignorância dos assim enganados. Ora, é indiscutível que
Sófocles parecia divertir-se em compor para seus coros hinos de Nesse exato momento, entra o mensageiro, que, comentando o
júbilo, para o momento anterior ao do desastre. Encontramos um desastre que ele logo anuncia, proclama antes de tudo a fragilidade
exemplo desses hinos em As traquínias, quando Dejanira ainda das venturas humanas. O próprio ritmo do teatro de Sófocles, com
acredita que tudo acabará bem; o coro anuncia a boa notícia: "Pois os seus contrastes fortemente acentuados, simboliza, portanto, a
lidéia de debilidade humana e da ironia do destino. E no momento
em que se confia que chega, subitamente, o desastre. No momento
4 Ele havia composto uma ode a Heródoto, cujo início nos foi conservado
por Plutarco. em que pensamos estar agindo bem, descobrimo-nos presos a uma
armadilha e provocando uma desgraça. O homem nada sabe. Ele
joga às cegas um jogo feito de surpresas, quase sempre perversas.
92 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 93

De fato, existe aí uma espécie de ironia trágica, cujo sentido se mente naquele que porá tudo a perder. E a própria Dejanira não
delineia claramente aos olhos dos espectadores, enquanto os pró- sabia o que o Centauro queria dizer, quando ele havia prometido
prios personagens não conseguem percebê-Io. que, graças a essa droga, Héracles seria atingido "a tal ponto que
Este sentido da ironia trágica é próprio de Sófocles, distin- depois não poderia preteri-Ia por qualquer outra mulher que visse".
guindo-se profundamente do que foi chamado de ironia trágica na As palavras citadas por Dejanira voltam-se contra ela, condenando-
obra de Ésquilo ou de Eurípides. a sem que ela saiba.
Com efeito, chama-se normalmente de ironia trágica o fato de Mas o exemplo mais terrível dessa ironia trágica involuntária é
um personagem utilizar-se de fórmulas de duplo sentido, que o seu oferecido pela prece de Ájax, que foi enganado por Atena, estando
\ interIocutor não está em condições de compreender, mas que po- desorientado e perdido. Mas ele ainda não o sabe, e dirige-lhe uma
\ dem ser percebidas pelo espectador. Quando Agamêmnon entra no súplica, perante Édipo, que sabe, e diante dos espectadores, que
palácio onde está Clitemnestra, esperando para matá-lo, ela profere acabam de ver tudo: "A ti - diz ele - outra coisa não peço do que
uma oração, terrível por sua ambigüidade: "Zeus, Zeus, por quem estar ao meu lado, minha aliada como sempre" (116-117). Ulisses,
tudo se cumpre, cumpre os meus desejos, e pensa bem na obra que que presencia a cena, compreende bem o alcance de tal ironia. Le-
deves executar" (Agamêmnon, 973-974). Tais ambigüidades reapa- vado, pela cegueira de Ájax, a fazer um retrospecto da sua condi-
recem ocasionalmente nas tragédias de Eurípides. E, quando Hécu- ção humana, ele diz: "Bem vejo o que nós somos, todos nós que
ba se prepara ardilosamente para matar Polimnestor, assim como vivemos aqui; nada mais do que fantasmas, ou sombras evanes-
Clitemnestra matara Agamêmnon, ela também emprega palavras centes" .
de duplo significado: não revela a Polimnestor que ela sabe ser ele Édipo rei coloca em cena o destino de um homem e de uma
o assassino do seu filho; diz-lhe apenas estas palavras, que não o amília que julgaram poder ludibriar os oráculos; mas a ironia trá-
perturbam: "Quando tiveres tudo 'aquilb de que necessitas, recupe- Lgica comanda toda a sua estrutura.
rarás, com os teus filhos, a morada que reservaste ao meu" (Hécu- -r--: Laio sabia, por um oráculo, que seria morto por um filho nas-
ba, 1021-1022). Tais intentos repousam sobre a ironia trágica _ cido dele e de Jocasta. Por isso, ele enjeitou esse filho desde o dia
assim chamada, porque implica um espectador que assiste à ação e do nascimento, acreditando assim ter-se resguardado da sua morte.
que está em condições de compreender, assim chamada também Édipo, de outro lado, tinha conhecimento de que um dia ele seria o
porque, na maioria das vezes, ela contém uma ameaça de morte, I assassino do seu pai: para evitar essa fatalidade, ele abandona a
implícita mas iminente. \ corte onde viveu desde a sua infância, bem como os pais que ele
Na gbra de Sófocles encontramos muitas cenas desse gênero sempre acreditou serem os seus. Ora, fugindo desses pretensos
(por exemplo, aquela em que Egisto se regozija ao ver um cadáver pais, ele encontra seu pai verdadeiro, Laio, e o mata sem poder re-
que acredita ser o de Orestes, enquanto Orestes encoraja tal enga- conhecê-Io. Por uma bela ironia do destino, o gesto de cada um
no). Mas, em geral, Umnia trágica tem um significado diferente; deles tewr efeito precipitar a desgraça que ambos queriam evitar.
ela não se inscreve no propósito de um dos personagens; ela não r Ma~ Edipo não sabia de nada. Ninguém sabia. E a tragédia
implica que um ludibrie o outro, sua vítima, ela ilustra apenas a começa deste erro, e cheia de confiança. Édipo, o decifrador de
ignorância.dos homens, enganados pelos próprios deuses. enigmas, orgulha-se da sua inteligência. Ele é um bom rei que, para
Assim é que, em As traquinias, a última palavra do canto em salvar Tebas, não deixa de consultar - ironia suplep1entar - os orá-
que o coro exprime a sua alegria é justamente o nome do monstro, culos. E quando o conselho deles é punir o assassino do antigo rei,
do Centauro, que havia fornecido a droga que se mostrará fatal. ele se empenha em descobrir esse assassino - que é ele mesmo.
Esse pobre coro não sabe que ele deposita suas esperanças justa- I Começa então uma busca trágica, ao final da qual ele saberá
quem é o assassino do seu pai e o causador da morte da sua mãe.
Essa busca começa com cólera, muito mais do que com inquieta-
[I
94 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 95

ção. Édipo é um rei seguro de si, que acredita ser a inocência em ~ De fato, Édipo rei permanece o exemplo típico de como toda
'pessoa, Ele obriga o vidente a falar, mas se recusa a acreditar no ação humana pode voltar-se contra seu autor.
que finalmente ouve. Ele enviara o cunhado a Delfos, mas não con- Em grande parte, por causa de Édipo rei, nunca se deixou de
. fia nas respostas que este lhe traz. Com a mesma obstinação do comentar o papel do destino ou da fatalidade no teatro grego .'
. Creonte da Antígona, ele desconfia e ameaça. Mas esses mesmos Entretanto, justamente.por.ser tão.importante o estilo trágico
I confrontos estimulam nele o desejo de saber; e, surdamente, a in- expresso nessa obra, de-vemos olhar mais de perto o que eJ~ sígnífí-
\ quietude começa a invadi-lo. cava para Sófoeles, pois este não é Cocteau, e se é bem verdade
Mas, nesse momento, num artifício bem característico de SÓ- que Sófocies sempre foi muito sensível à idéia da incapacidade do
foeles, Édipo recebe notícias que vêm tranqüilizá-lo: aquele que ele homem e das ironias do destino, ele jamais a associou àquela re-
acredita ser o seu pai acaba de morrer em Corinto, e o oráculo, por volta amarga que, aos olhos dos modernos, deveria aliar-se a esta
conseguinte, é considerado mentiroso. Ele e Jocasta triunfam: "Ah! idéia.
oráculos divinos, onde estais vós nesta hora? Assim, eis que um E antes de mais nada, antes de definirmos a atitude de Sófo-
homem de quem Édipo fugia há muitos anos, no pavor de matã-lo, eles perante a fatalidade de Édipo, devemos, evidentemente, levar
este homem hoje morre, golpeado pela sua sorte, e não por Édipo!" em conta o fato de que, muito depois do Édipo rei, o autor decidiu
(946-949). escrever outra peça sobre Édipo, uma extensão da primeira, que é,
De fato, essa confiança tem algo de alarmante. Na intenção de em certo sentido, uma retificação.
tranqüilizar Édipo, que ainda se preocupa com aquela que acredita Êdipo em Colona, peça póstuma, só foi representada em 401.
ser sua mãe, o mensageiro procedente de Corinto revela-lhe que ele Ela apresenta o fim do velho Édipo. E seu movimento é exata-
não é filho daqueles que pensa serem seus pais. A ameaça está mais mente inverso ao do Édipo rei.
próxima; a investigação é urgente; e a verdade acaba revelando-se. No início da peça, Édipo chega, com Antígona, a Colona,
Édipo será o último a se convencer: ele quer provas, testemu- perto de Atenas; ele é um banido, com um nome carregado de ver-
nhas, que se somam e, por fim, se confirmam. Então, finalmente, gonha; e antes mesmo que Teseu, rei de Atenas, possa prometer
ele compreende que tudo o que faz para escapar à profecia termi- acolhê-lo, ele percebe que será objeto de ameaças e de pressões,
nou por conduzi-l o à sua concretização. Ele reconhece que foi ma- por parte de seus filhos e de Creonte. Ele está, pois, na condição
nipulado: "Ai de mim! ai de mim! então era tudo verdade!" Não mais miserável e mais deplorável. Mas os oráculos - pois eles ain-
lhe resta outra coisa a não ser furar os olhos para deixar de ver esse da existem! - desta vez estão a seu favor. Édipo sabe que obterá
mundo, onde não há mais lugar para ele. Ele não enxergará mais, e uma trégua para seu sofrimento no dia em que chegar à moradia
não quer mais ser visto. Quanto a Jocasta, ela se enforcara. das Eumênides, justamente onde ele acaba de chegar. Logo em se-
A peça, pela perfeição da ironia que comanda seu desenvolvi- guida, somos informados de que seus filhos tentarão reencontrá-lo
mento, deveria permanecer, pelos séculos futuros, como símbolo porque, vivo ou morto, ele será, unicamente por sua presença, uma
de como o destino zomba do homem. Lembramos espontanea- garantia de vitória. Por fim, ele revela a Teseu que sua tumba terá a
mente o que escreveu Jean Cocteau, à guisa de introdução à sua virtude de proteger Atenas, para sempre, contra qualquer invasão
adaptação dessa peça, que intitulou A máquina infernal: dos tebanos. Ele se tomara o protegido dos deuses, conhecendo,
inclusive, os sinais, os sinais que anunciarão sua morte. Em meio
Observe-a, espectador, recomposta no seu conjunto, de tal sorte ao ressoar dos trovões, ele parte sozinho para um encontro misteri-
que a ação se desenvolve lentamente ao longo de toda uma vida oso com a morte; e, numa aura de glória e mistério, ele é levado da
humana, uma das mais perfeitas máquinas, construída pelos terra, sem que ninguém saiba como.
deuses infernais, para o aniquilamento matemático de um mortal! /
96 Jacqueline de Romi\ly A tragédia grega 97

Quem o fez desaparecer? Não foi um clarão inflamado que veio De fato, quando os gregos falavam do destino, referiam-se so-
do céu, nem um furacão que subiu do mar, naquele momento. bretudo à realidade, na medida em que ela escapa ao poder do ho-
Terá sido, por certo, um enviado dos deuses, a menos que a mo- mem. Ésquilo bem tentou encontrar-lhe um sentido, em nome de
rada tenebrosa da terra dos mortos tenha tido a bondade de
uma justiça tão misteriosa; mas Sófocles contenta-se em mostrar a
abrir-se diante dele. Ele não partiu cercado de prantos, nem dos
incapacidade do homem, que não tem o poder de influenciá-Ia
sofrimentos da enfermidade, mas em pleno milagre, se é que
isso um dia tenha acontecido ao homem (1658-1665). como gostaria. E quando fala de uma realidade predeterminada,
não faz mais que exprimir essa incapacidade em termos mais for-
Mas, com certeza, é preciso evitar um mal-entendido: Édipo tes. Na realidade, todos os comentários feitos, no decorrer da peça,
não mudou, e sua morte não evoca santidade ou reconciliação. Ele sobre a fatalidade de Édipo, encaram-na como uma ilustração gri-
continua violento e arrogante. Por outro lado, ele proclama a sua tante da instabilidade que pesa sobre os homens em geral. Nin-
inocência em relação àqueles crimes, dos quais foi mais uma víti- guém põe em questão uma vontade particular, referindo-se a um
ma que o autor, mas em parte alguma da peça é dito que justiça lhe homem particular; ninguém procura uma causa atrás dos efeitos.
foi feita. Simplesmente, numa espécie de compensação inexplica- Mas o destino é encarado sob o ângulo da ignorância humana; ele
da, esse homem, que foi um brinquedo da fatalidade, é chamado a procura menos as causas, demonstrando muito mais a inutilidade
um destino privilegiado. O dom divino lhe é outorgado sem razão de procurá-Ias.
aparente, da mesma forma como antes recebera a condenação pelo Dessa forma, se explica que a soberania do destino não venha
seu triste destino. acompanhada, necessariamente, de revolta. Ao contrário, o conhe-
Isso seria o suficiente para mostrar a diferença entre Sófocles e cimento da fraqueza humana, na obra de Sófoeles, dá lugar a uma
aqueles que encaram a ação dos deuses sob uma forma puramente confiança dupla, no homem e nos deuses.
cruel, que suscita o protesto. Ao mesmo 'tempo, porém, a existência Não sendo o destino uma condenação deliberada, o homem
desta segunda peça chama a atenção para tudo o que, na primeira, não precisa convencer-se de que nada tem a fazer, senão deixar as
já se distingue de tal enfoque. coisas correrem. O que lhe acontece constitui uma provação; mas
r Na verdade, podemos observar que, em Édipo rei, jamais são ele ainda pode definir seu próprio valor, pela forma como reage a
formuladas perguntas sobre a razão do que acontece ou acontecerá ela. Na adversidade, ele pode escolher a via mais elevada - como o
a Édipo. Sófocles em nenhum momento procurar explicar a severi- fazem Antígona e Electra, como o faz Ájax, mesmo acuado pelo
dade do destino imposto a Édipo, provocado por uma falta originá- desespero. E se nada mais há a esperar, resta ainda a grande digni-
ria cometida por Laio. Tal idéia - sobre a qual Ésquilo, em Os sete dade de isolar-se deliberadamente do mundo. É a opção de muitas
contra Tebas, tanto insistia - não encontra aqui nenhuma menção. heroínas silenciosas, que partem para o suicídio sem uma palavra
Sófoeles tampouco busca uma explicação em algum pecado por- de queixa - como Dejanira, como Jocasta, como Eurídice. Como
ventura cometido pelo próprio Édipo. E os exegetas procuraram em também o faz Ájax, com mais estardalhaço. E de certa forma, é
vão por uma falha do herói que tudo explicasse.' Aos olhos de SÓ- esta também a via escolhida por Édipo, ao perfurar-se os olhos.
foeles, não há nada a explicar: não há explicação, nem há pergun- Quando a vida se tornou demasiadamente sombria, não há mais
tas. As coisas são simplesmente assim. \ alegria a não ser na escuridão. E o gesto de Édipo lembra o grito de
Ájax: "Ah! Trevas, meu sol particular; Érebo, para mim cheio de
esplendor! Tomai-me, tomai-me, quero viver junto de vós, tomai-
5 Cf, E.R. Dodds, "On Misunderstanding the Oedipus Rex", Greece and
me!" (394-397). Mesmo o desespero dos heróis, nas peças de SÓ-
Rome, XIII, 1966, pp. 37-39. foeles, guarda uma nobreza altiva, permitindo-lhes triunfar, mesmo
quando derrotados.
98 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 99

Mas essa fé no homem só é possível porque as ironias do des- mente tanto sofrimento, físico ou moral. E, no entanto, o teatro de
tino não implicam que os deuses sejam cruéis, nem tampouco indi- Sófocles faz-nos admirar o homem e amar a vida.
ferentes. Em face a tantas desgraças e reviravoltas, Sófocles não Nele admiramos o homem na pessoa do herói, que conduz a
conclui que se deva revoltar-se ou protestar. Ao contrário, sua con- coragem a tal extremo; nele amamos a vida, onde cada um se es-
clusão é que não poderíamos jamais nos mostrar suficientemente força por fazer o melhor que pode. E estes dois sentimentos são
respeitosos para com os deuses, nem suficientemente devotados. ainda reforçados pelos cantos do coro, generosos, livres, exaltando
Mesmo o fato de que os oráculos acabam sempre por se con- a beleza.
firmarem nos leva a nos inclinarmos perante a soberania divina. Os No que diz respeito à admiração do homem - o homem em ge-
homens não devem compreender, mas adorar. Adorar. Aqueles que ral, a criatura humana -, nenhum texto se compara ao grandioso
se apegam aos adivinhos - como Creonte e Édipo - e os outros que canto de Antígona sobre as conquistas da civilização: "Muitas ma-
, \ duvidam dos oráculos - como Jocasta - pagarão cedo por tal irre- ravilhas há neste mundo, mas nenhuma é maior do que o homem"
) \ \ verência, com alguma tragédia ostensiva. O coro sempre evita as- (332 e ss.). A navegação, as lavouras, a vitória sobre os pássaros do
sociar-se a tais dúvidas. Sófocles o demonstra em Édipo rei, céu e sobre os animais da terra, a palavra, o pensamento, as cida-
mostrando o coro chocado e inquieto: des, tudo é passado em revista: "Tudo isso ele aprendeu por conta
própria". E o texto termina num cuidado bem digno de Sófocles,
Ah! Zeus soberano, pois, se é veraz o teu renome, tu és o senhor com uma reserva quanto ao uso, bom ou mau, que o homem faz
do Universo, e não permitas que elas (essas práticas ímpias) es- dos seus dons. Mas tal restrição em nada diminui toda a evocação
capem aos teus olhos, ao teu poder eterno. Assim, estão sendo anterior que soa como um grande hino de triunfo.
considerados caducos e pretende-se abolir os oráculos dirigidos E, no que tange ao amor pela vida, como deixar de recordar
ao velho Laio! Apoio vê-se abertamente despojado de toda hon- um outro canto, não menos célebre, mencionado anteriormente, a
ra. O respeito aos deuses vai ~n\bo~a(903-910). respeito da sua biografia: é o canto que celebra a beleza da Ática:
"Neste país de bons cavalos, tu encontrarás, ó estrangeiro, o mais
E a peça termina com uma nova consulta ao oráculo, na qual
belo recanto da terra. Aqui é que se encontra a branca Colona onde
Édipo afirma a sua fé e o pouco que lhe resta de confiança e espe-
o harmonioso rouxinol, mais que em qualquer lugar, prefere can-
rança.
tar ..." Fato digno de nota: esse canto faz parte de Édipo em Colona
Sófocles, .sabidamente, era um homem de fé. Diz-nos a tradi-
<,
(668 e ss.), uma peça consagrada a um homem que, mais do que
ção que ele exercia em Atenas funções religiosas; e parece que ele
ninguém, foi maltratado pelo destino, escrita por um homem de
foi um dos responsáveis pela introdução do culto a Esculápio, para
quase noventa anos.
quem havia composto um hino. Não surpreende, portanto, que o
Essa combinação de uma filosofia tão sombria com uma fé tão
reflexo dessa devoção seja percebido na sua obra. E todas as revi-
viva no homem e na vida distingue definitivamente o teatro de SÓ-
ravoltas que atravessam a vida humana têm sobre ele o efeito de foeles de todas as obras modernas, que nele inspiradas tentaram
evocar, com nostalgia, o esplendor da vida bem-aventurada que endurecê-Ia, e que por isso mesmo jamais atingem o mesmo es-
levam os deuses, distantes de nós.
plendor.
I Esse aspecto do pensamento de Sófocles explica por que o seu
teatro chega a conciliar tamanha intensidade dramática com uma
serenidade calorosa e confiante.
Não existe outra criação teatral onde apareçam tantos inocen-
tes massacrados e destruídos. Não há outra obra em que se experi-
Capítulo 4-

Eurípides
ou a tragédia das paixões

Eurípides era apenas quinze anos mais novo que Sófocles, mas
pertencia a uma outra época intelectual, e tinha um temperamento

· \
oposto ao do seu antecessor.
Aberto a todas as influências, contemporâneo dos primeiros
sofistas, ele reflete em seu teatro muitas idéias novas, muitos novos
problemas.
Ele não conheceu a era gloriosa das Guerras Médicas. Sua ex-
periência mais marcante foi a da Guerra do Peloponeso, uma guer-
ra entre gregos que, longa e desastrosa, provocou, após 27 anos de
lutas estéreis, a ruína do império ateniense. E a desordem em que
se debatem seus personagens deve-se, provavelmente e em grande
parte, a essa atmosfera de desencanto.
Ele próprio nunca conheceu o bem-estar de que parece ter des-
frutado Sófocles. Sua família foi muitas vezes denegrida, às vezes
com razão, às vezes injustamente. Diz-se que seus casamentos fo-
ram infelizes. Sua carreira literária provocou grande impacto, como
atestam as constantes referências de Aristófanes; mas ela jamais
alcançou aprovação indiscutível, pois, em toda a sua vida, ele só
foi declarado vencedor de um concurso por quatro vezes. Por fim,
ele nunca participou da vida política, chegando mesmo, no fim da
sua vida, a romper com Atenas, indo viver na distante corte do rei
da Macedônia, onde morreu, em 406.
102 A tragédia grega 103
Jacqueline de Romilly

Essa instabilidade e falta de adaptação, que se refletem em sua o teatro e a cidade


vida pessoal, não correspondem absolutamente a uma pequena
participação nas emoções e aventuras dos seus concidadãos. Muito Essa abertura a todas as influências do momento mostra-se,
pelo contrário, pode-se dizer que, excessivamente moderno para principalmente, na inspiração de natureza política.' <,

agradar sempre a todos, ele era também muito sensível a todas as Ésquilo havia escrito peças profundamente identificadas com
solicitações daqueles anos, tão pródigos em descobertas e fracas- as realidades atenienses do momento: a tragédia Os persas era de-
sos. Com efeito, seu teatro é desconcertante em função de suas mil dicada a uma recente vitória nacional; As eumênides encerrava-se
facetas, com seus variados reflexos. Ele evoca a política com suas com a criação do Conselho do Areõpago, cuja função Atenas se
lutas do dia-a-dia; ele condena, discute, protesta. Seus personagens preparava para modificar. Havia, porém, nessas duas peças, uma
obedecem a uma nova psicologia, pois estão mais próximos de nós tal amplitude de perspectivas que impede que elas sejam conside-
que os heróis dos outros trágicos, e também mais inteiros nas suas radas obras de momento. Eurípides, ao contrário, não hesita em
J) paixões - as quais Eurípides nos mostra em toda a sua crueza. En- escrever peças de orientação política, ou então em introduzir nas
::>
-o fim, o mundo que ele evoca nada tem daquela ordem pela qual peças não-políticas cenas - ou longas passagens - que repercutem
suspiravam Ésquilo e Sófoc1es, cada qual à sua maneira. Nesse sobre todo o resto, numa espécie de eco aos problemas então em
::r: mundo em que se ousa criticar os deuses, ao menos sob sua forma vogá. E, note-se, aqui ele se mostra, mais uma vez, tão acessível às
lendária, o destino parece zombar dos homens, com uma crueldade influências da conjuntura, tão móvel e tão vulnerável, que suas po-
--I
que Eurípides gosta de expor. A sua arte sabe extrair efeitos patéti- sições mudamde uma peça para outra, ao sabor das novidades. Ele
cos de uma ação onde pululam as surpresas, das quais o homem é é ao mesmo tempo engajado e inconstante.
sempre a vítima, mas nem por isso consegue extrair alguma lição. Assim, conforme à peça, vemos alternarem-se nele o senti-
Eurípides introduziu no gênero trágico uma profunda renova- mento patriótico e o espírito pacifista. Podemos observar apenas
ção, presente em todas as suas obras.' Ele desenvolveu a ação, for- que as duas peças essencialmente patrióticas se referem à primeira
çou os efeitos, liberou a música, multiplicou os personagens, parte da guerra.
desceu os heróis dos seus pedestais, operou mil reviravoltas, consi- Por uma circunstância bem característica, cada uma delas re-
deradas, por muitos, melodramáticas. Mas essa renovação nada trata um dos dois grandes acontecimentos míticos mais freqüente-
mais é do que a conseqüência direta do que caracterizava a sua ins- mente lembrados para ilustrar o passado de Atenas: a ajuda
piração. Para os seus contemporâneos, o teatro de Eurípides, ao concedida aos filhos de Hérac1es e o apoio às farm1ias dos guerrei-
3
mesmo tempo intelectual e patético, familiar e amargo, suscitava ros mortos junto com os Sete, no cerco de Tebas.
tantos comentários e levantava tantas surpresas quanto as causadas, A peça intitulada Os heráclidas refere-se aos anos bem do iní-
no seio do teatro tradicional, pelo aparecimento das obras rascantes cio da guerra. Ela mostra a acolhida generosa que o rei de Atenas,
e opulentas de Cocteau, numa certa época, ou de Ionesco. Demofonte, oferece aOS filhos de Hérac1es, acompanhados do ve-
lho Iolau. O interesse sustenta-se, primeiro, pelas ameaças do

2 Tendo em vista que as diversas tendências de Eurípides, em cada uma de


1 Chegaram a nós dezoito das cem tragédias escritas por Eurípides. Talvez suas tragédias, se misturavam em proporções variáveis, serão examina-
devamos excluir desse número o Reso, cuja autenticidade é contestada. dos aqui os temas que o inspiravam, em lugar de analisar cada tragédia
Por outro lado, é preciso acrescentar um drama satírico que foi conser- de maneira completa. Para compensar essa limitação, forneceremos,
vado, O ciclope, bem como fragmentos muitas vezes importantes das num apêndice, uma lista das peças conservadas, com as indicações cro-
tragédias perdidas.
nológicas que possuímos.
3 Isócrates cita-os de ponta a ponta em o Panegírico, pp. 54 e ss.
104 A tragédia grega 105
Jacqueline de Romilly

arauto de Argos, depois pelo sacrifício voluntário da jovem Macá- Por outro lado, na cena do confronto entre Teseu e o herói te-
ria, filha de Héracles;" mas o essencial é a elegia a Atenas. Pode-se bano, Eurípides introduziu uma discussão sobre os regimes e, por
dizer que está em curso, antes de tudo, uma elegia que revive, aos conseguinte, uma ode vibrante aos princípios democráticos. O
olhos dos espectadores, esse exemplo da generosidade ateniense: arauto enfatiza os erros dos demagogos, os excessos, os perigos;
um espetáculo, sem dúvida, destinado a inflamar-lhes o ardor pa- mas, em contrapartida disso, Eurípides presenteia Teseu com um
triótico. Mas há também a elegia direta, pois muitos dos belos ver- discurso sobre o espírito democrático que, sob muitos aspectos,
sos exprimem o esplendor da tradição ateniense. "Desde sempre pode ser comparado à oração fúnebre que Tucídides dedica a Péri-
nosso país teve a disposição de assistir aos desafortunados com um eles, no livro II da sua história. Na democracia, afirma Teseu, não
justo socorro. Também mil contratempos suportou por seus ami- há privilégio concedido à boa sorte. As leis estão escritas e são
gos", declara com orgulho o corifeu, nos versos 328-331. E, mais iguais para todos. Enfim, quando se pergunta: "Quem quer tomar a
adiante, o coro proclama que Atenas não teme ameaças: "Longe da palavra em favor do Estado?", cada um pode falar, se o quiser.
y grande Atenas, dos coros magníficos, semelhante temor!" (358- "Existe, pois, regime mais imparcial?" (430-441).
359). Arde em tais versos o mais inflamado patriotismo. A peça, ainda mais que Os herâclidas, vai além do elogio. O
A mesma veia reaparece, porém menos pura, em As suplican- interesse, de início, centra-se na hesitação de Teseu. O patético é
tes. Também aí a peça começa com a imagem de infelizes refugia- garantido pelo retomo das cinzas dos chefes, pelo choro das crian-
dos, que procuram asilo ao pé de um altar. Trata-se, no caso, das ças e pelo. suicídio de uma jovem viúva. Além disso, a tendência
mães dos chefes mortos na região de Tebas, com os seus filhos e o patriótica perde-se um pouco numa série de outros temas e em dis-
velho Adrasto. Mais uma vez, trata-se de desprotegidos: mulheres, cussões variadas. Com efeito, assiste-se, no princípio, a todo um
crianças e um velho. E o rei de Atenas (na ocasião, Teseu) nova- debate sobre o progresso, e paralelamente a isso uma discussão
mente lhes concede a sua assistência. Como em Os herâclidas, ele sobre os regimes mistura críticas e elogios. Da mesma forma, o
enfrenta as ameaças de um arauto inimigo. Outras vez, portanto, é patriotismo da peça e a sua agressividade com relação a Esparta
lembrada a generosidade ateniense. E assim como em Os herâcli- são acrescidos de passagens pacifistas, de espírito bastante diverso
das, à elegia juntam-se fórmulas radiantes, que proclamam a cida- (485 e ss.; 747; 949 e ss.). Já encontramos aí um Eurípides que vê
de altiva, a cidade livre, que deve o seu bem-estar unicamente às os dois lados de todas as coisas, e que muito deve à arte dos sofistas.
incessantes provações. Seja como for, essas duas peças exprimem um patriotismo
Eurípides imaginou até mesmo duas cenas que tomam essa real, e não são as únicas a testemunhá-Io. Ao lado dos generosos
apologia mais completa e mais explícita. Inicialmente, ele teve a reis atenienses de Os heráclidas e As suplicantes, seria preciso ci-
idéia de mostrar um rei, em princípio, hesitante. Introduziu a per- tar Egeu, que aparece como amigo dedicado em Medéia, bem
sonagem de Etra, mãe de Teseu, que o censura, e recorda-lhe a gló- como Teseu, aquele que chega para salvar Héracles na peça que
ria de Atenas: "Olha a tua pátria, escamecida por sua leviandade, leva seu nome. Tudo isso sem falar dos reis atenienses das peças
como sabe recuperar-se, e lançar sobre os que dela zombam um perdidas, como o Álope, onde surgia Teseu pela primeira vez, ou
olhar que os faz tremer. As lutas a engrandecem ..."s Essa cena lhe ainda o Erecteu. Sem dúvida, trata-se do mesmo patriotismo que
dá a oportunidade de expor com detalhes o tema da honra ateniense. levaria Eurípides, em 411, a apresentar os dois filhos de Édipo lu-
tando um contra o outro, numa disputa de poder. Eles provocam
com isso o desespero de sua mãe e a ruína de sua pátria, enquanto
4 Cf. pp. 120-121. o jovem Meneceu não hesita em sacrificar-se para salvar seu país.
Este era justamente o ano do início da guerra civil em Atenas, épo-
5 Páginas 321 e seguintes, tradução de M. Delcourt.
ca em que os mais prudentes desejavam ardentemente uma recon-
ciliação.
106
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 107

Mesmo os mais ardentes podem ficar chocados, ou consterna- qual não encontra equivalente, do ponto de vista formal, em ne-
dos, ante a dura provação enfrentada pela cidade que lhes é tão nhuma outra tragédia."
cara. E esta pode ser a razão pela qual encontramos, na obra de Na verdade, o que mais afetou Eurípides na guerra, menos que
Eurípides, censuras após elogios, lamentos após esperanças, por o ímpeto da violência e o escândalo da morte, foi o luto das mulhe-
vezes uns misturados aos outros. Eurípides, que tão bem exalta os res, das prisioneiras, dos indefesos. Assim não nos surpreende o
princípios democráticos, detém-se em observações amargas sobre o fato de termos outras duas tragédias de Eurípides dedicadas às
papel dos demagogos (isso em Hécuba, 131-132, ou 154 e ss.; em mulheres de Tróia.
Electra, 380 e ss.; ou em Orestes, 917 e ss.). E ele, que sabe escre- Em Hécuba, como em Andrômaca, o luto não é a fonte única
ver peças tão cheias de ardor patriótico, deseja, bem depressa, a do patético: a velha rainha troiana que, na primeira parte da peça,
paz. assiste à morte de sua filha Polixena, imolada pelos gregos, fica
Eurípides não gostava de Esparta (não apenas atribuiu a Me- sabendo em seguida da morte do seu último filho, assassinado lon-
" nelau, em diversas ocasiões, papéis dos mais ingratos, mas também ge de Tróia; a segunda parte da peça relata, então, sua cruel vin-
salpicou algumas peças de acusações violentas contra a cidade gança contra o assassino. No entanto, até mesmo esse ímpeto de
inimiga, como fez em Andrômaca, 445 e ss.). Ocorre, porém, que, paixão se passa nas tendas das prisioneiras; e o sentimento domi-
se ele não prezava Esparta, gostava menos ainda da guerra. E a nante da peça é o da derrota. A velha rainha, que perdeu tudo e se
grande calamidade da guerra foi para Eurípides uma rica fonte de arrasta, combalida pelos anos e pelo sofrimento, representa um
inspiração. Isso é percebido, em graus diversos, em três tragédias, símbolo dessa desolação: ela entra em cena gemendo, mal susten-
todas dedicadas às prisioneiras troianas e à ruína da sua cidade, tando-se de pé: "Amparai e reerguei, troianas, a vossa compa-
ó

destruída pela guerra. nheira de servidão, outrora vossa rainha" ...; e só lhe resta dizer
Na primeira delas, Andrômacai a estória não se passa em adeus à sua filha, e debruçar-se sobre o cadáver do seu filho. Ao
Tróia, e o luto não é o único tema, longe disso. A peça, aliás, não seu redor, as outras prisioneiras acompanham-na no seu luto. Elas
está entre as melhores de Eurípides. Ela confronta Andrômaca e também perderam tudo, e estão destinadas à escravidão: "Compra-
Hermíone (como fará a de Racine), mas de uma forma ainda mais da como escrava, à casa de que senhor estarei destinada? ..." (448).
crua. Hermíone, esposa de Neoptólemo, tem ciúmes de Andrô- Dolorosamente, elas recordam o último dia, a derradeira noite,
maca, que tem um filho dele. Hermíone quer matar Andrômaca e quando a vida ainda era normal, quando Tróia ainda existia e
seu filho; e para isso tem o apoio do seu pai, Menelau. Andrômaca quando, repentinamente, um grande clamor anunciou o início da
é salva justamente pela chegada do velho Peleu, pai de Neoptõle- catástrofe.
mo. Nesse meio termo, Hermíone, tomada pelo medo, aceita a aju- Tais lamentos dão o tom da peça. E é preciso acrescentar que
da de Orestes, que mata Neoptólemo. Nesse drama de fraqueza e se trata, principalmente, dos males da guerra, mais que dos males
pavor, um dos temas mais destacados é o reiterado lamento de An- da derrota; e é isso que dizem as prisioneiras troianas: "E também
drôrnaca sobre os males da guerra. Ela o exprime em diversas pas- geme, banhada em lágrimas, a filha da Lacônia, em sua casa, às
sagens, e o coro a acompanha. Essas lamentações assumem um margens do Eurotas; e a mãe, chorando seus filhos mortos, leva as
valor particularmente pungente na ode que encerra o prólogo, a mãos à cabeça" (650 e ss.). O luto da guerra é mais cruel para os
vencidos, mas ele atinge também os vencedores.

6 Essa ode encontra-se nos versos 91 e ss.; vejam-se também 274 e ss.,
395 e ss. Comentários amargos sobre a Guerra de Tróia inspiram tam-
bém alguns debates entre Peleu e Menelau.
'- .,
·

108 A tragédia grega 109


Jacqueline de Romilly

Sem dúvida, trata-se de temas que tocaram o coração de Eurí- ças agarravam-se às vestes de suas mães, com as mãos crispa-
~. 7
pides. Alguns anos mais tarde, no momento em que Atenas, arre- d as d e paruco,
batada pela ambição, se lançava mais uma vez à guerra, Eurípides
Acrescente-se a isso que passagens brilhantes em toda a peça
fez do luto que ela espalhou o tema único de uma tragédia. Com
efeito, As troianas não têm mais como figura central uma heroína: sublinham o absurdo desta guerra que, por um motivo tão medío-
cre, provocara tanto sofrimento e que, mais uma vez, os vencedo-
não há mais heróis, nem mesmo uma unidade de ação: assistimos
res não seriam considerados mais felizes que os vencidos. Numa
somente a uma longa seqüência de desgraças, que repercutem umas
nas outras, intensificando-se. Somente Hécuba está presente, do espécie de audacioso paradoxo, Cassandra sustenta que eles foram
começo ao fim, ainda mais prostrada que na peça que leva seu mesmo mais desgraçados, e o ilustra com uma torrente apaixonada
nome, pois durante cenas inteiras ela faz a figura de uma moribun- de argumentos e provas:
da, estirada no chão. Sua única atitude é lançar acusações sobre
Por uma única mulher, por um único amor, para restituir-nos
\'. Helena, a quem julga responsável por todos os males de Tróia. No
Helena, perderam centenas de vidas ... Os que tombavam não o
restante do tempo, ela se limita a padecer. Vê desfilar diante de si, faziam para reconquistar as suas fronteiras, a sua fortaleza. Ares
sucessivamente, sua filha Cassandra, presa da loucura do desespe- os levava, sem que eles pudessem rever os seus filhos. As mãos
ro, e depois sua nora Andrômaca, cujo filho está prestes a ser das suas mulheres não estenderam sobre eles suas mortalhas.
morto; e a cena entre Menelau e Helena não passa de uma breve I;,strangeira é a terra em que jazem ..}
digressão, enquanto se aguarda a entrada do cadáver do pequeno
Astíanax. Por fim, a tragédia termina com o incêndio final da cida- A exaltação coma qual esse tema é abordado como também o
de: "Estais ouvindo, compreendeis? - É o estrondo de Pérgamo fato de que se tenha, de alguma forma, alterado o formato habitual
que desaba. - Desmorona toda a cidade ... - Estende-se como uma da tragédia ilustram, de maneira eloqüente, a força com que Eurí-
onda" ... pides reagia em face dessas idéias, de um modo diferente de És-
Nesse quadro de sofrimentos da guerra, Eurípides não hesitou quilo. Enquanto este, em Os persas, mostrava os sofrimentos da
em introduzir o patético mais insistente, mais espetacular, mais guerra, mas procurando extrair-lhes, numa revelação progressiva,
dilacerante: cenas de desespero e loucura, comentários ao mesmo os erros morais que poderiam estar sendo expiados, Eurípides
tempo impiedosos e enternecedores sobre o cadáver de um menino contenta-se em agrupar todas essas imagens de sofrimentos indivi-
- tudo isso está lá. E como em Hécuba, o coro sempre volta ao duais. Não existem nem ideal patriótico nem esperança no sentido
drama da tomada de Tróia: desta vez, o grito de terror que anuncia da história, para compensar toda a amargura.
o desastre interrompe os sacrifícios e as festividades por causa da Sempre que o mito abordado o permite, vemos Eurípides, a
entrada do famoso cavalo na cidade: pretexto de uma digressão, voltando-se para a consideração de te-
mas próximos. A tragédia Helena, apesar de passar-se longe de
E eu, junto ao seu templo, celebrava entre os coros a rainha das Tróia, contém manifestações ardorosas contra a loucura da guerra
montanhas, Árternís, filha de Zeus, quando um grito de morte, (veja 1151 e ss.). E, em lfigênia em Áulida, não apenas vemos cri-
vindo das fortalezas, ecoou no fundo de todas as casas. As crian- ticada a cada instante a ambição de Agarnêmnon, mas a própria
Ifigênia refere-se aos gregos como um povo unido, ou que deveria

7
Pp. 551 e ss. (trad. M. Delcourt).
8
Pp. 368 e ss. (trad. M. Delcourt).
-~
110
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 111

unir-se, para lutar contra os bárbaros: a Guerra do Peloponeso, com Boquinha querida, que tantas promessas me fazias, agora está
sua crueldade crescente, traz aqui, portanto, as suas lições. fechada pela morte! Tu mentias, meu filho, quando te atiravas
Por fim, a guerra e seus problemas, quando não estão no cen- sobre a minha cama, dizendo: "Minha mãe, no luto por ti eu
tro da ação, servem-lhe muitas vezes de pano de fundo. Transtor- cortarei uma longa madeixa dos meus cachos e levarei à tua se-
nando completamente as vidas, ela expõe as paixões," atrai as pultura todos os meus amigos" ... Meus beijos, meus cuidados
vinganças, abre a porta às intrigas. Na realidade, os problemas po- carinhosos, ai, nossos sonos de outrora, tudo isso está perdido
• 10
líticos, na obra de Eurípides, encontram-se inextricavelmente mis- para mIm ...
turados com todos os dramas do sentimento.
Os heróis de Eurípides são mais enternecedores, justamente
por terem uma vida muito semelhante à dos outros homens.
Humanos muito humanos Esse realismo repercute naturalmente sobre a sua psicologia.
Os heróis de Eurípides são postos à prova por todas as fraquezas
\.

Por meio desses temas patrióticos ou pacifistas, já era possível humanas. Alguns deles obedecem às suas paixões; e esse domínio
constatar o quanto as tragédias de Eurípides estão próximas da rea- da paixão é descrito com realismo. Outros cedem aos seus interes-
lidade do seu tempo. Próximos dessa realidade estão também os ses, e são, portanto, uns medíocres. De toda maneira, Eurípides nos
seus personagens. Ele se compraz em fazê-los descer das alturas mostra tudo o que se passa com eles, e que poderia acontecer com
legendárias. Num golpe audacioso, no qual seria depois imitado qualquer outro ser humano.
por Giraudoux, ele casou sua Electra com um simples camponês: Já o retrato das paixões em si era uma novidade. Ésquilo inte-
atribuiu-lhe cuidados de dona-de-casa, frustrações de moça pobre. ressava-se pouco por ele: os problemas do erro e do castigo sobre-
Nesse ponto, portanto, também, foi um inovador. E não inovou punham-se à psicologia. Já na obra de Sófocles existe maior
apenas quanto à tradição literária, mas também em relação às idéi- interesse; mas seus personagens assumem virtudes tão íntegras que
as herdadas, pois o irmão de Electra, na tragédia, lança-se numa são definidos mais por um ideal que por uma vida interior comple-
longa teoria sobre a presença da virtude num homem de origem xa. Eurípides foi o primeiro a representar o homem preso a suas
humilde. De outro lado, Eurípides divertiu-se também em mergu- paixões, e a tentar descrever os seus efeitos.
lhar seus personagens numa vida quotidiana sem lances espetacula- Figura de eminente destaque na história literária, Eurípides ca-
res. Provocou o escândalo, ao apresentar no palco reis em andrajos. racteriza-se, especialmente, por ter sido o primeiro a haver repre-
E mesmo em tempos felizes, seus heróis vivem como homens co- sentado o amor no teatro. E o testemunho de Aristófanes mostra-
muns. Em Hécuba, as prisioneiras evocam as noites de felicidade, nos o quanto essa inovação era ousada. Em As rãs, quando, no in-
com o marido deitado sobre a cama, e a mulher demorando-se di- ferno, coloca frente a frente Ésquilo e Eurípides, apresenta o pri-
ante do espelho a pentear os cabelos. E a velha rainha, em As troi- meiro dizendo, cheio de desprezo: "Mas por Zeus, eu nunca
anas, em face da morte do pequeno Astíanax, recorda a doçura das representei Fedras prostituídas, nem Estenebéias ..." (1044). É
carícias infantis: "Arrancadas estão essas madeixas encaracoladas, muito possível que a audácia de Eurípides nesse campo lhe tenha
que tua mãe tratava e beijava!" (1175). E, com profunda tristeza, valido críticas severas. Sabe-se, em todo caso, que o primeiro Hi-
repete as palavras confiantes do menino: pólito (Hipólito cobrindo o rosto, peça que só conhecemos hoje
por algumas alusões) apresentava Fedra confessando o seu amor
por seu genro. Ora, a peça pode ter sido chocante, pois, no segundo

9 É, aliás, o que declara Tucídides, na análise de III, 82.

10
Pp. 1180 e ss. (trad. M. Delcourt).
112 A tragédia grega 113
Jacqueline de Romilly

Hipôlito (o que possuímos), Fedra é mais discreta; somente a ama uma fonte borbulhante, beber de sua água pura, e sob os álamos,
trai o seu segredo. sobre a erva espessa, deitar-me e dormir! ..."ll, ou mais adiante, de
Mesmo tendo sido revista e corrigida, a tragédia Hipólito, maneira já mais explícita: "Ah! segui-me à montanha! Eu irei à
juntamente com Medéia, continua sendo um dos melhores exem- floresta sob os pinhos, lá onde se desata a matilha que persegue as
plos do que o trágico euripidiano deve ao retrato das paixões, e corças malhadas. Céus: que prazer em excitar os cães ..." Ela termi-
mais particularmente do amor. na evocando, numa série de gemidos, os amores de sua mãe, de sua
Em ambos os casos, uma mulher domina a peça. Em ambos os irmã; em seguida, as suas revelações deixam entrever timidamente
casos, as catástrofes que se desencadeiam são o fruto do senti- que se trata de Hipólito, que ela não ousa chamar pelo nome. Ao
mento que arrasta, irresistivelmente, essa mulher. Em ambos os final confessa-o, pela bela réplica que Racine conservou: "Foste tu
casos, por conseguinte, tudo se passa como se a parte há pouco a dizer-lhe o nome" (352). Apenas escapada essa confissão, ela
atribuída a uma vontade divina tivesse sido transferida ao próprio explica que tudo fez para lutar contra esse amor, acreditando, assim
\.,
homem, portador do seu destino no seu coração. diz, que a sua virtude triunfaria. Mas ela compreendeu, como Me-
Medéia é o drama da mulher abandonada e arrebatada por sua déia, que de nada adianta o querer: "Nós temos a noção e o discer-
vingança monstruosa, pois, tendo eliminado a jovem princesa que nimento do que é honesto", diz no verso 380, "mas não o
tomou seu lugar, Medéia acaba degolando os seus próprios filhos. colocamos em prática ..."
Por certo, ela é uma bárbara, uma feiticeira; mas há nela um cinis- A vingança de Fedra contra aquele que lhe causou tantas pe-
mo, mistura de astúcia e violência, que supera em muito essas ca- nas, por quem demonstra agora tanto menosprezo (que parte de um
racterísticas. Ela é uma Clitemnestra, que se debruça sobre seu coração muito puro, totalmente fiel ao amor, diferente do que ima-
próprio coração, que sofre, deseja, fraqueja e, por fim, deixa-se ginou Racine), é proporcional a esta mesma paixão. Ela decide
absorver. Ela é a paixão personificada., I morrer, mas deseja que o outro também morra com ela: "Para que
Eurípides tem plena consciência do que aí está envolvido. E ele aprenda a não triunfar sobre minha miséria" (729).
Medéia também o sabe. Trata-se de uma força irracional, mais po- Com efeito, no teatro de Eurípides as paixões geralmente pro-
derosa do que a razão. "Sim, eu sinto a perversidade daquilo que vocam toda espécie de violências, devidas ao desejo de vingança,
ouso fazer", diz Medéia, no momento de matar os seus filhos, "mas de fazer sofrer porque se sofre. A Herrníone da Andrômaca, que
a paixão é mais forte do que as minhas resoluções, ela, a causadora tem menos motivos que Medéia para se deixar dominar pelo ran-
dos piores males da humanidade" (1078 e ss.). cor, deseja, contudo, desde o princípio, a morte de Andrômaca e de
Neste aspecto, Medéia é irmã de Fedra, pois esta, em Hipólito, seu filho; e ela se empenha de modo implacável a alcançá-Ia. Hé-
bem que luta para não revelar seu amor pelo genro. A honra é, para cuba, desesperada, encontra de repente uma nova energia, ao tra-
ela, algo tão preciso que, ao ver seu segredo traído pela ama, ela mar e depois realizar a sua vingança. É uma vingança atroz, pois
não hesita em suicidar-se, deixando uma carta que, para salvar essa ela mata os filhos de Polimnestor, e vaza-lhe os olhos; depois
honra, na segunda parte da peça traz a morte do seu amado. Mas exulta com sucesso: "Esmurra, emprega toda a tua força, arromba a
todo esse senso de honra, todo esse desejo de ser estimada nada porta! Não devolverás nunca mais a luz às tuas pupilas, nem reen-
podem contra o amor. Em uma cena admirável, que Racine trans- contrarás vivos os teus filhos, pois eu os matei!,,12 Os cadáveres
creve quase literalmente, ela permite, antes de tudo, que se lhe ar- que se amontoam no final das tragédias de Eurípides são o preço
ranque o seu segredo. Ela, que se consumia, quase a morrer, é dessa explosão da paixão e vingança.
vista, primeiro, a sonhar somente com as florestas onde busca o
jovem amado: "Como, ah!, como fazer para encontrar-me junto a
11
Pp. 215 e ss. (trad. M. DeJcourt).
12P. 1044 (trad. M. DeJcourt).
114
jacquefine de Romifly A tragédia grega 115

É preciso acrescentar, porém, que essas paixões e vinganças matou seu filho estimula-a e a toma eloqüente: ela utiliza argu-
não se traduzem unicamente em atos violentos - e é nesse ponto mentos verossímeis, contesta explicações, defende e acusa com
que o teatro de Eurípides consegue acumular horrores sem cair no uma habilidade digna dos sofistas. Mas essa mesma habilidade é
melodrama. Isso porque tais gestos de violência são, primeiro, pro- algo que vem espontaneamente da sua viva indignação. Quanto ao
vocados, depois bem elaborados ou bem justificados. Além disso, a mais, se ainda duvidássemos de que a eloqüência corresponde à
paixão da obra de Eurípides caracteriza-se também por confrontos convicção, seria suficiente lembrar os dois debates entre Medéia e
verbais, ao mesmo tempo ardentes e lúcidos.
seu esposo infiel. Um deles acontece no momento em que ela de-
À primeira vista pode parecer estranho que um personagem, fende a sua causa com um arrebatamento impiedoso (e Jasão o per-
mergulhado no sofrimento, consiga transfonnar-se tão facilmente cebe, pois começa por dizer: "Acredito que preciso preparar-me
em orador, multiplicando seus argumentos, brilhando como um para ser bom orador e, como hábil piloto, recolher em tempo a mi-
aluno dos retóricos, com longas passagens compostas com rigor. É nha vela, se quiser escapar à fúria da tua eloqüência")." O outro é
\,
o que se observa, no entanto, em todas as cenas de agon, ou de quando ela, já decidida a agir, utiliza, ao invés da habilidade, a hi-
contestação. Mas, na verdade, isso não é tão chocante, pois Eurípi- pocrisia e a mentira. No primeiro caso, a ágil oratória de Medéia é
des só emprega os meios da retórica para conferir maior eloqüência a expressão da sua paixão; no outro, essa agilidade vai servir ao
a um personagem que deseja apaixonadamente convencer a um intento inspirado por essa paixão. Em suma, poder-se-ia dizer que a
outro. É assim que Hécuba, na peça que leva seu nome, se lança paixão mobiliza todos os recursos do homem.
três vezes em longos discursos; mas é preciso dizer que, em cada Tod~via, o retrato dos sentimentos, ou mesmo das paixões,
vez, sua esperança depende toda do resultado que obtiver. Na pri- não se limita a evocar o domínio que eles podem ter sobre o ho-
meira. vez, ela discute com Ulisses, e suplica-lhe poupar sua filha. mem. Uma das maiores descobertas de Eurípides foi reconhecer
Seu discurso premente estende-se \ por cinqüenta versos; ela fala de
. que o campo do sentimento é o campo do irracional, e os homens
justiça, depois evoca seus títulos, buscando o reconhecimento de que a ele se abandonam podem estar sujeitos a reviravoltas brus-
Ulisses: um promotor não teria feito melhor. E por que não usaria cas. Alguns heróis enxergam claramente o que desejam, e vão até o
ela todos os argumentos em favor de uma tal causa? Afinal, a pai- fim sem hesitar; mas nem todos. Entre as mulheres, em particular,
xão dos personagens de Eurípides ainda é uma paixão ateniense, descobre-se que a vida interior pode ser estranhamente instável.
que sabe se exprimir. Da mesma forma, mais adiante na peça, Hé- Isso começa com a hesitação: não uma hesitação racional, baseada
cuba suplica a Agamêmnon que seja seu vingador, numa passagem em argumentos cuidadosamente estudados, mas muito mais uma
que é ainda mais longa que a precedente. Aqui Hécuba recorre a dúvida que nasce da perturbação, de oscilações, de embates interiores."
todos os argumentos, invocando, inclusive, o relacionamento entre Por certo, Medéia permanece, do começo ao fim, firme em seu
Agamêmnon e Cassandra. O ardor do seu discurso é proporcional propósito. Mas sua ternura para com as crianças choca-se com o
ao ardor da sua paixão, e corresponde ao seu desejo de vitória. seu desejo de vingança e, no último instante, a detém: ela se vê
Como ela diz, num paroxismo de exaltação: "Que eu deixe falarem oscilando de uma decisão à outra, ao sabor de impressões concre-
os meus braços, as minhas mãos, os meus cabelos, os meus péS!,,13 tas, precipitando-se sucessivamente em direções contrárias. A pre-
E quando finalmente ela está vingada, deverá defender mais uma sença das crianças, de suas mãos, lábios e pele emociona-a a tal 11
causa, pois Agamêmnon vai colocar-se entre ela e Polimnestor, de ponto que ela tem a impressão de que não vai conseguir realizar
quem ela acaba de se vingar. Toda sua raiva contra aquele que seu intento: "Ah! eu não serei capaz!" Depois, a lembrança da situ-
ação em que se encontra e o deboche dos inimigos vêm reforçar a
13Pp. 836-837 (trad. M. Delcourt).

14 Pp. 522 e ss. (trad. M. Delcourt).


116 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 117

sua resolução. Por quatro vezes, ao longo do seu famoso monólo- Menelau lhe pergunta: "Qual é o mal que te devora?", ele respon-
go, ela passa de um sentimento a outro, dilacerada: "Ai de mim! de, como homem que não se surpreende com tais tormentos: "A
Ai! Por que olham vocês para mim, meus filhos? Por que me diri- minha consciência. Eu experimento o horror da minha perversida-
gem este supremo sorriso? Ah! o que fazer? O meu coração desfa- de" (Orestes, 396).
lece, Ó mulheres, diante do olhar radiante dessas crianças ..." (1040 Às vezes, em vez de remorso, encontramos apenas um súbito
e ss.).
medo. É o caso de Hermíone, em Andrômaca: ela passa do impulso
Da mesma forma, Fedra, embora em surdina, queria e não que- homicida ao medo de ser punida pelo que desejou fazer. Outras
ria, hesita e se recupera: "Ai! Por que não me dizes tu as palavras vezes, percebendo-se as conseqüências de uma decisão, existe uma
que devo usar?" (345).
súbita desistência. É o que fazem, sucessivamente, Agamêmnon e
Essas almas em luta, arrastadas em direções contrárias, cons- Menelau, no começo da lfigênia em Áulida.
tituem uma novidade literária. Os heróis de Homero por vezes he- Mas essa mesma peça contém outro exemplo, muito mais cé-
sitavam, mas sua hesitação era avaliada em termos claros e lebre, no qual a reviravolta se traduz de maneira inversa. Trata-se
" intelectuais. No teatro de Eurípides, ao contrário, surgem lutas re- do exemplo de Ifigênia, quando passa da esperança de viver à
pentinas e descontroladas, onde se desenha uma alma dividida. aceitação total da morte. Ela havia suplicado a Agamêmnon que
Platão, mais tarde, elaboraria essas lutas no nível teórico em Fedra, não a sacrificasse. Tentando apaixonadamente convencê-I o, ela
com o mito da comparação da alma com o cocheiro que se esforça havia utilizado os argumentos mais comoventes, a ponto de dizer
em impor sua lei ao cavalo negro.
que qualquer tipo de vida seria preferível à morte. E depois não
Mas, evidentemente, essas forças contrárias da alma não estão disse mais nada. Mas eis que de repente, quando Aquiles e Clitem-
constantemente em conflito direto e imediato. Surge uma quando a nestra procuram desesperadamente um meio de salvá-Ia a qualquer
outra se retrai; e temos uma viva Rs~cologia resultante das revira- preço, ela intervém, resoluta, pronta para morrer, preferindo a
voltas correspondentes a essa alternância. morte, e orgulhosa, pois essa morte servirá à Grécia. Eurípides não
No caso de Medéia, no momento da última hesitação, vemos a explica como aconteceu essa reviravolta, sob quais influências, por
heroína empenhar-se, aparentemente sem apelação, primeiro numa quais meios: deixa que nós adivinhemos. Mas essa decisão brusca
direção e depois noutra; mas são apenas tentações breves. Em ou- adquire um relevo maior, na medida em que parece emanar de um
tros momentos, Eurípides admitiu recomposições duráveis, parti- instinto mais profundo.
cularmente no caso do remorso. Ele foi o primeiro dos trágicos Sabemos que, também nesse ponto, Eurípides chocou os há-
gregos a imaginar Electra e Orestes, após o assassinato de sua mãe, bitos do seu tempo. Aquelas reviravoltas interiores, que adquiriram
horrorizados pelo que fizeram. Agora, arrefecido o seu ardor, eles tão grande importância em toda a psicologia e literatura modernas
têm sentimentos completamente diferentes, e lançam-se num pesar (o exemplo clássico continua sendo "Quem te disse?", da Hermio-
ilógico: "Quantas lágrimas, meu irmão! e eu sou a causa de tudo ne de Racine), pareciam aos gregos dos séculos V e IV uma falta
isso. Eu ardia em um ódio atroz, logo eu, a filha, contra essa mãe de lógica e de coerência. Aristóteles, em a Poética, cita precisa-
que me gerou" (Electra, 1182 e ss.). Numa outra peça, ele é nova- mente o exemplo de Ifigênia para criticar, na obra de Eurípides, a
mente o primeiro dos trágicos gregos a imaginar um Orestes ator- falta daquilo que ele chama a "constância" dos personagens. Tal
mentado após o seu crime, não por Erínias reais, executoras de um crítica ajuda a avaliar o quanto era audaciosa a originalidade do
castigo divino, e sim por terrores infundados de sua imaginação poeta.
doentia. Vemo-Io deitado em sua cama, sofrendo, esgotado, trans- Os personagens de Eurípides, portanto, obedecem aos impul-
pirando. Ele tem visões, toma sua irmã por uma Erínia. E quando sos diversos da sua sensibilidade: não agem em função de um ideal
claramente definido, mas sim movidos por medos e desejos. Isso
explica o fato de que, quando esses impulsos são baixos ou egoís-
118
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 119

tas, os personagens também se revelem baixos e egoístas. Eurípi- covardia. Aliás, o velho Peleu, alquebrado pela idade, não tem ne-
des não mostra somente paixões, mas também os personagens, e nhum pudor em insultã-lo e ridicularizá-lo. Por certo, é fácil ridi-
estes personagens são, muitas vezes, nada heróicos. Uns seguem cularizar Menelau ..., mas não é fácil ser tão insuItuoso como Peleu.
obstinadamente seus interesses, como outros, com igual obstina- Desde o começo, ele interpela o rei de Esparta: "Tu te julgas um
ção, seguem suas paixões. E ficamos espantados ao ver a irreve- homem, seu poltrão, filho de facínoras? Quem é que pensa em ti
rência áspera com que Eurípides introduz na tragédia uma série de quando se enumeram os valentes? Tu, que deixaste que tua mulher
poltrões, quase ridículos, ou outros tantos egoístas, movidos por fosse roubada por um frígio? ..." Zomba dele como marido, zomba
uma sórdida ambição.
dele como guerreira; não encontra palavras suficientemente duras:
Isso é particularmente gritante na mais antiga das tragédias "Some com tua filha. Melhor é ter como amigo e aliado um pobre
conservadas, Alceste. Com efeito, se por um lado o tema da peça de coração correto do que um rico perverso. Tu, tu não és nada!,,16
ilustra o nobre sacrifício da jovem mulher que, por livre e espontâ- Diante de tais insultos, Menelau primeiro tenta defender a justiça
nea vontade, aceita morrer em lugar de seu marido, por outro lado, da sua causa, mas depois, vendo que não o consegue, desiste, sem
" esse tema não atribui muita nobreza a esse marido, que aceita um mais: "Por enquanto, pois o meu tempo é contado, eu volto para
tal sacrifício. E, para carregar as tintas do egoísmo, Eurípides teve casa" (732). Na cena seguinte, a gravidade desse abandono é de-
o cuidado de confrontar o jovem marido com seu velho pai, que se nunciada abertamente pelas lamentações de Hermíone: "Tu me
recusa energicamente a aceitar o sacrifício. A troca de insultos en- abandonaste, meu pai; abandonada como um barco sem remo en-
tre esses dois egoístas deriva mais da sátira que da tragédia. Ne- calhado na praia, estou completamente só. Ele me matará, ele me
nhum dos dois mede suas palavras: "És bem feliz de estar vivo.
matará ..."
Pensas que o teu pai o aprecie menos?", é a pergunta feita pelo pai. Triste figura esse Menelau! Mas seu irmão Agamêmnon não
E acrescenta: "Quanto a ti, com tçda imprudência,espemeaste para vale mais que ele. A querela que sustentam, no início da Ifigênia
não morrer, e eis que estás vivo, ludibriando teu momento fatal, às em Áulida, faz com que ambos se rebaixem ao nível mais medío-
custas dessa morte. Depois disso tu ainda falas da covardia, tu o cre. Numa longa passagem, Menelau ridiculariza o irmão, mostra-o
mais covarde dos covardes, vencido por uma mulher ... ,,15 Se acres- burlando os sufrágios, fazendo-se amável para com todos, na ânsia
centarmos a essas passagens o fato de que a peça comportava ainda de ver-se nomeado comandante da expedição. Depois disso, revela-
uma cena, no decorrer da qual Héracles festejava dentro da casa em o pronto a sacrificar a própria filha para manter esse posto, e a mu-
luto, ignorando a recente desgraça, podemos compreender que difi- dar de idéia em seguida, como um homem incapaz de assumir res-
cilmente a peça poderia ser considerada uma verdadeira tragédia. ponsabilidade. Agamêmnon, por sua vez, deleita-se ao responder-
Na realidade, parece que ela ocupou o lugar normalmente reserva- lhe que esses ataques vêm de um marido ridicularizado, que não
do, no concurso, ao drama satírico. A existência de um gênero tão pensa em outra coisa que não sejam seus amores:
mesclado é bastante característico do universo euripidiano.
Mas Alceste não tem a exclusividade - longe disso _ dos per- o que te morde não é a minha ambição, mas o desejo de ter em
sonagens fracos ou covardes. O Menelau de Andrômaca que, por, teus braços a bela esposa, a despeito de toda razão e de toda
consideração à sua filha, se dispõe a matar uma mulher e uma cri- honra: prazeres vexaminosos, sinal de um homem desprezível.
ança, fugindo logo depois, sem pensar mais nessa filha, diante da Sou eu o louco, ou és louco tu, que perdeste uma mulher culpa-
cólera de um velho, dificilmente pode ser superado em matéria de

15 Pp. 691 e SS. (trad. M. Delcourt). 16 É a conclusão da passagem, ao verso 641; as diversas citações da peça
são extraídas da tradução de M. Delcourt, assim como também as de
lfigênia em Áulida, a seguir.
120
jacqueline de Romilly A tragédia grega 121

da e agora queres recuperá-Ia, quando os céus te prestaram tão de figuras idealizadas, preservadas, por sua longa juventude, de
bom serviço? (385 e ss.). todo compromisso, e cujo heroísmo as impele a aceitar livremente
a morte, quando esta pode ser útil.
Os dois "campeões da vingança", como os chamava Ésquilo, pas- A tragédia Alceste, citada há pouco pela mediocridade de cer-
a
saram ser, cada um à sua maneira, dois fracos.
tas figuras, é também aquela onde brilha pela primeira vez a ima-
E não se pense que Eurípides tivesse especial falta de conside- gem de tal sacrifício: uma jovem mulher, movida por um pacto
ração para com os responsáveis pela Guerra de Tróia. Não seria inicial, oferece-se para morrer no lugar do seu marido. Seu adeus à
também seu Jasão, de certa maneira, um covarde, quando à fúria de vida, as recomendações dirigi das ao seu marido em favor dos fi-
Medéia contrapõe argumentos hipócritas, e explica que ela deveria, lhos, a tristeza de todos fazem com que a sua graça domine a peça.
na verdade, ser-lhe agradecida?
E o contraste que se estabelece entre sua generosidade e o egoísmo
Sem dúvida alguma, a influência da retórica contemporânea, dos outros confere a ela, ao final, um brilho mais intenso.
que dava lugar de destaque aos argumentos de interesse, pode ter Esse tema é encontrado em diversas tragédias, envolvendo
contribuído para tais análises; e as justificativas do orador foram pessoas ainda mais jovens e menos comprometidas com a vida, e
provavelmente substituídas, em mais de um caso, pelos motivos sua aceitação ocorre sob o olhar dos espectadores. Em Os herâcli-
reais ou sentimentos verdadeiros. Mas Eurípides não teria recorrido das, cujo tema geral é político, Eurípides decidiu que, antes de
a este tipo de argumentação, se este não estivesse inserido na sua prestar qualquer ajuda aos homens, os deuses cobrassem o sacrifí-
própria visão do mundo - e também no sistema do pensamento de cio de uma virgem. Assim, Macária, filha de Héracles, oferece-se
muitos atenienses de então. A época descrita por Tucídides não é
para morrer por seus irmãos: "Eis que venho livremente, pai, antes
uma época de desinteresse.
que alguém me convide, pronta para morrer e oferecer-me como
Da mesma forma, a veia satíric~ que, aflora em tais passagens vítima".17 Em uma passagem de mais ou menos quarenta versos,
não se limita à evocação daquelas intenções egoístas. A mais trági-
calma e simples, ela invoca a honra, e só muito rapidamente acres-
ca das peças de Eurípides bem mostra a força que esta veia pode
centa que, sem seus irmãos, a sua vida seria precária e indigna
"I assumir, onde menos se espera. Em As bacantes, ela se revela tanto
dela. Depois disso, sai para morrer. Todo esse episódio é disso-
às custas de Penteu, que se recusa a aceitar o culto a Dioniso, como
nante, fora do contexto. Parece, aliás, que foi inventado por Eurípi-
às expensas dos dois velhos, Cadmo e Tirésias, que se dedicam ao
des, que está aí apenas porque o tema agradava ao poeta.
culto despropositadamente e sem dar-se conta de sua idade. Penteu
Ele é encontrado também em Hécuba, onde Polixena aceita ser
exibe de bom grado sua curiosidade quase doentia e a obstinação
sacrificada. Também ela declama um longo trecho, igualmente
de sua mente limitada; e uma cena mostra-o travestido de mulher,
calma e sóbria, falando da sua impossibilidade de viver sem a no-
grisalho, e ridicularizado pelas mãos daquele deus. Quanto a Cad-
breza à qual já está condenada. Ela também menciona a liberdade.
mo e Tirésias, o contraste acentuado entre os passos de dança que
O tema, desta vez, adquire maior amplitude, por termos aí um re-
eles pretendem executar por prudência, somente, e a velhice que os
lato maravilhoso da morte de Polixena, onde a sua graça superior
faz cambalear fazem deles um espetáculo igualmente risível. O
transparece em cada detalhe. Ela não aceita que a segurem ou a
deus zomba de Penteu; Penteu zomba dos dois velhotes. O ridículo,
toquem: desferiu ela mesma o golpe que iria matá-Ia. "Em nome
em Eurípides, toma-se facilmente a parcela dos humanos.
dos deuses, deixai-rne livre para golpear-me, e que livre eu mor-
Entre essas paixões desenfreadas, egoísmos e excentricidades, ra"."
o que resta no mundo de Eurípides que escape à condenação, e
permaneça belo e heróico? Pouco - somente um pequeno número
17
Pp. 501-502 (trad. M. DeJcourt).
18
Pp. 550-551 (trad. M. DeJcourt).
123
A tragédia grega
122 Jacqueline de Romilly

vera, a abelha reina sobre a pradaria intacta, e o Pudor irriga-a com


Essa mesma nobreza aparece também em As fenicias, com o água viva".19 Tão grande pureza prepara o jovem homem para a
único caso de um jovem adolescente: Meneceu, filho de Creonte. O morte; e, graças a Ártemis, sua morte terá a doçura de alguns sacri-
vidente pediu a sua morte, e Creonte recusa. Mas o menino, que
fícios voluntários.
tudo escutou e nada disse, resolveu matar-se em segredo. Ele não Há apenas um desses jovens heróis de Eurípides que não se
deseja sua vida, cujo abandono significaria a salvação da sua pá- ofereceu à morte: Íon. Mas ele não faz verdadeiramente parte da
tria: quer obedecer à honra e, sem que ninguém o force, parte para vida. Servidor do templo de Apelo, em Delfos, ele vive num mun-
atirar-se do alto do forte. Imagem viva de devoção à cidade, algo do consagrado ao deus. O início da peça mostra-o varrendo o átrio
que, na mesma peça, parece ter faltado a Etéocles e Polinice. do templo, enxotando os passarinhos, cantando a alegria de servir
Depois, finalmente, temos Ifigênia. A brusca mudança que a ao seu deus. O santuário representa, pois, um asilo de serenidade,
faz repentinamente aceitar a morte não constituía apenas uma que os humanos só invadirão para introduzir, como eco de suas
mostra de audácia psicológica, mas também uma alteração feita à
lenda, de modo a inserir nela o tema do sacrifício voluntário: "Eu discussões, o erro e o crime.
Hipólito gostaria de ser deixado em paz nos seus prazeres da
" refleti, minha mãe, e compreendi que devo aceitar a morte. Mas caça, e Íon adoraria continuar exclusivamente dedicado aos seus
quero entregar-me a uma morte gloriosa ..." Efetivamente, Ifigênia afazeres piedosos. Característica notável: ambos revelam e definem
deseja morrer pela Grécia; "oferece-lhe sua pessoa". E ela, por sua como insistência o quanto lhes parece absurda a ambição. A graça
vez, parte para a morte, em meio a temas despedidas, sem um úni- de Hipólito e de Íon reside exatamente nessa pureza, fazendo o
co momento de fraqueza. Enquanto a Ifigênia de Ésquilo, em Aga- contrapeso das paixões e das ambições que povoam o universo eu-
mêmnon, morria amordaçada e arrastada à força, "como uma
cabra", a de Eurípides ocupa todo o final da tragédia com sua ripidiano.
Eurípides conhecia muito bem o coração humano para deixar
aceitação altiva., \ de experimentar a nostalgia de um mundo mais puro. E a Guerra
O tema é, portanto, um dos mais freqüentes na obra de Eurípi- do Peloponeso, com seus horrores crescentes, não estava lá para
des, compensando amplamente a crueldade. Mas, de certa maneira, atenuar esse sentimento. É por isso que o seu teatro, onde o horrí-
pode-se dizer que ele também confirma essa crueldade, pois as vel se instala sem reservas, e o patético emprega os meios mais
únicas figuras ideais de sua obra só conservam sua beleza por se- sólidos, é também permeado de figuras ideais e carinhosas, que
rem extremamente jovens e por suas mortes breves. contrastam com todo o resto, e que se situam à parte da trama. A
Ainda assim, além das mortes voluntárias, pode-se constatar sua graça parece pertencer a alguma área inacessível, onde, perce-
que os heróis de Eurípides são mais brilhantes, na medida em que
be-se, o poeta amaria refugiar-se.
não pertencem propriamente à vida real. O seu Hipólito é a pureza Isso é coerente com o fato de que, de tempos em tempos, bro-
em pessoa. Ele nem mesmo conhece o amor, como o Hipólito de tasse nele um desejo premente de fuga. Esse desejo muitas vezes é
Racine. A idéia em si já o escandaliza, e ele diz orgulhosamente de manifestado pelos coros, e pelo fato de eles interferirem cada vez
Afrodite: "Eu a cumprimento a distância, pois sou puro" (102). De menos na ação em curso. Não raro, esses coros são de arrependi-
fato, ele vive num mundo intacto e perfeito, longe dos homens, mento, cantando uma felicidade perdida ou um lugar distante; al-
tendo como sua sociedade a natureza e a deusa virgem - Ártemis, a guns estão repletos de exclamações, votos impossíveis e sonhos.
caçadora. A coroa que Eurípides lhe atribui no início da peça (o Sob esse aspecto, podemos citar o coro de As fenícias, onde, em
que explica o nome dado a ela, Hipólito coroado) é feita "das flo-
res de uma pradaria reservada, onde nenhum pastor tem o direito
de levar seu rebanho, e onde a foice jamais passou; mas na prima-
19 Pp. 73 e ss. (trad. M. Delcourt).
124
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 125

pleno drama, as jovens se põem a sonhar sobre as maravilhas de novas, e que deve ao seu meio intelectual o hábito de questionar
Delfos, para onde gostariam de ser levadas. tudo. Embora não seja totalmente não-religioso, a sua fé, como o
Mas esse desejo de evasão encontrou a sua expressão mais resto do seu pensamento, caracteriza-se pela marca das idéias novas.
forte .em As bacantes. O que os homens procuram nesse culto a Da mesma forma com que discute regimes políticos, a ambi-
I:
Dioniso, tema da peça, é a fuga para algum lugar: fuga para a ção ou a guerra, ele levanta problemas da moda na época - a here-
montanha, isto é, longe da cidade, dos seus problemas e das suas ditariedade e a educação, a vida ativa ou a vida contemplativa, a
angústias - fuga também para longe de si mesmos. Eles desejam virtude ou o vício das mulheres. Discute também os mitos e a idéia
perder-se no contato renovado com a natureza e com o deus, em que eles nos transmitem dos deuses. Numa ironia mordaz, ele sub-
meio ao êxtase. Em um quadro idílico, Eurípides evocou inclusive linha a inverossimilhança de certos contos; queixa-se - antes de
as maravilhas de uma natureza surpreendentemente amiga. Ele en- Platão - que os deuses aparecem muitas vezes agindo muito mal.
controu tintas brilhantes para pintar esse sonho, perseguido pelos Se ApoIo comportou-se como um sedutor, ele é atacado e criticado
, devotos do deus: como tal, em Ion, do mesmo modo como o seria um jovem egoísta
e leviano. Ele, que "com o brilho de ouro dos seus cabelos" veio
Porei eu finalmente os meus pés nus entre os coros noturnos de para violar uma jovem, não passa de um "amante de alma ignóbil"
Baco, jogando minha cabeça para trás no ar úmido de orvalho? (913), e sua vítima grita-lhe que Delos o odeia. Se foi o mesmo
Tal qual uma corça que passeia com delícia na verde pradaria, ApoIo que realmente ordenou que Orestes matasse Clitemnestra,
depois de escapar ao temível caçador e livrar-se dos laços bem
armados ... (862 e ss.).
ele agiu mal, e isso lhe é dito no fim da peça Electra. Mesmo o
divino Castor não hesita em afirmar: "Fobos pode ser sábio, mas a
ordem que te deu não o era de forma alguma".2o E tem sido dito,
Da mesma forma como a Guerra do Peloponeso e seus males
sem rodeios, que todos esses relatos tradicionais, atribuindo aos
acabaram por expulsar Eurípides de 'Atenas, pois que haveria de
deuses tal ou tal outra ação vil, não passam de lendas vulgares:
acabar os seus dias na Macedônia, assim também o seu conheci-
mento e sua visão do homem faziam nascer nele a nostalgia de
A idéia de que os deuses se entregam a amores culposos não
tudo o que pudesse permanecer puro. Mas se, de um lado, a morte pode ser a minha idéia, da mesma forma como jamais admiti, e
efetivamente consagra a pureza de certos heróis, por outro lado, nunca acreditarei, que eles se prendam por correntes aos pulsos,
todos os demais meios de fuga ou libertação permanecem, em úl- ou que um exerça poder sobre outro, como seu senhor. Um
tima instância, proibidos. A tragédia As bacantes termina com um deus, se é realmente deus, não conhece nenhuma necessidade;
despertar cruel. E, se os homens fazem o mal uns aos outros, os os relatos em contrário são invenções miseráveis dos poetas,
deuses, por seu lado, não lhes oferecem refúgio. Ao contrário, eles
são, com muita freqüência, mais apaixonados e mais cruéis que os assim se exprime Héracles, nos versos 134 I-1346, da peça com o
próprios homens. mesmo nome.
Todavia, discemimos nisso tudo mais uma ousadia agressiva
que uma falta de religião. E essa própria audácia traduz, sobretudo,
Os jogos da sorte e os jogos dos deuses o desejo de uma religião mais pura e menos primitiva. É certo que
a tradição nos tenha deixado uma ou outra declaração deliberada-
Eurípides, com efeito, já não tem mais nos deuses aquela fé mente atéia, que Eurípides, com alguma bravata, colocou na boca
simples e inteira, que encontramos, com nuances diversas, tanto em
Sófocles como em Ésquilo. Ele é um poeta filósofo, cheio de idéias

20 P. 1245 (trad, M. Delcourt).


126
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 127

de alguns personagens, como Belerofonte.I' Mas permanece o fato se confundem num único ardor o seu desejo de fuga e o sentido
de que Eurípides, em geral, faz objeção aos "velhos contos", como imediato de uma religião que respondesse a uma necessidade do
ele diz. Os seus ataques não negam uma crença nos deuses, que ele coração: "Bem-aventurado o homem que teve a fortuna de ser ins-
apenas pinta com reflexos mais modernos. truído pelo divino mistério e, santificando a sua vida, alcança uma
Primeiramente, ele tingiu essa crença de filosofia, falando do alma fervorosa ..." (72 e SS.).24
éter, e nomeando Júpiter o sustentáculo do mundo. Tingiu-a de O racionalismo crítico de Eurípides alia-se, portanto, aos im-
moralidade, quando inventou, em Helena, a personagem de Teô- pulsos de um fervor real; e a religião do poeta, como o intuito dos
noe, a sacerdotisa que nasceu para servir aos deuses e que não tem seus personagens, tomou-se algo interior, presa solidamente ao
outro desejo, aquela que declara que seu coração é um "santuário segredo da sensibilidade.
sagrado da justiça" (1002). Hesitou depois, admitindo um Júpiter Mas essa mesma interiorização acarreta uma conseqüência: os
misterioso, um Júpiter "quem quer que sejas" ou "seja ele quem deuses deixaram de ser para ele os responsáveis, sempre presentes,
, for".22 Mas, acima de tudo, como homem sempre levado por uma por tudo o que acontece no mundo.
sensibilidade muito viva, ele tingiu essa crença de uma espécie de Nem Medéia, nem Os heráclidas, nem Andrômaca, nem Hé-
misticísmo ba~t-ante-pe.culiar: a ternura que liga Hipólito à deusa cuba, nem As suplicantes, nem Helena, nem As fenícias, nenhuma
Árternis tem algo de mais pungente e mais inefável que a velha delas acusa um deus. A ação segue o seu curso; segue, de fato, o
camaradagem que, na Odisséia, ligava Ulisses e Arena." Quando curso das paixões que a determinam, e que são a causa da desgraça
Hipólito está a ponto de morrer, a suavidade do perfume que flutua dos homens. Igualmente, em muitas peças, assistimos à interven-
no ar avisa-o da presença da deusa; e esta se lamenta que lhe sejam ção de um deus, que nada faz, geralmente, além de interromper as
proibidas as lágrimas para chorar por aquele de quem se declara a desgraças em que se lançam os homens. Héracles salva Alceste,
fiel amiga. Sua presença estende sobre a 1110rtede Hipólito, e sobre respondendo assim ao debate que se havia iniciado, no começo da
todo o final da peça, uma grande serenidade. Reencontramos um peça, entre Apoio e a Morte; mas o que importa na tragédia é o
pouco desse sentimento na feliz piedade do jovem Íon. Há ainda sacrifício de Alceste. Tétis surge no final de Andrômaca, só para
mais serenidade na pura Teônoe, de Helena. E, embora o resultado consolar o velho Peleu, cujo filho sucumbiu às intrigas de uma
dessa atitude possa ser discutível ao final, devemos sempre lembrar mulher ciumenta. Os Diôscuros aparecem no fim de Electra, para
com que fervor e sentido de mistério Eurípides evocou, no fim de trazer um pouco de paz e de ordem. Com igual objetivo, Atena
sua vida, os ritos e orgias do culto a Dioniso, em As bacantes. Ali aparece no último ato de Ifigênia em Táurida. Todas essas apari-
ções divinas, mais ou menos eficazes, só fazem possibilitar um
final conveniente aos dramas humanos. Elas não imprimem a esses
21 Belerofonle, frag. 286: "Diz-se que existem deuses no céu: não existem,
não existem, a menos que o homem, em sua loucura, queira ater-se aos
dramas nem significado nem majestade. E fica um pouco de im-
velhos contos". Entretanto, neste mesmo trecho, é possível que o per- pressão de que tudo, até o fim, acontece sem os deuses.
sonagem tenha simplesmente negado a existência material dos deuses, E, contudo, é evidente que o homem não é o senhor do seu
não a sua existência espiritual. próprio destino. Em parte alguma, além do teatro de Eurípides,
22 Cf. Hérac!es, 1263, e Melanipo filósofo, frag. 480: a fórmula esconde percebemos o homem tão transtornado pelos acontecimentos que o
uma velha e piedosa precaução, mas o seu emprego, em Eurípides, am- tomam de surpresa. É justamente esta a impressão transmitida pelo
plia-lhe o sentido. estribilho melancólico que encerra a maioria das suas peças:
23 No Ájax de SófocJes, essa velha camaradagem revestia-se de um maior
respeito: havia-se aprafundado a distância entre os dois.
24 Cf. Festugiêre, "La signification religieuse de Ia 'parados' des Bac-
chantes", Eranos, 1956, pp. 72-86.
128 A tragédia grega 129
Jacqueline de Romilly

Muitas são as formas assumidas pelo destino, e muitos os Em Ifigênia em Táurida, assistimos à estória de um irmão e
eventos inesperados realizados pelos deuses. O esperado não uma irmã. O risco de um assassinato monstruoso dá também a esta
chega ao seu final, e ao inesperado a divindade prepara um fim. comédia de erros uma dimensão trágica, pois é por puro acaso que,
Esta é a moral da presente ação.25 no último instante, Ifigênia reconhece no estrangeiro que deve
matar o irmão que sempre esteve em seu pensamento.
Os deuses aí são mencionados; porém, visivelmente, nada fa- Em Helena, a situação é mais romanesca ainda, pois aqui estão
zem além de emprestar seus nomes às fIutuações de um destino um marido e uma mulher que não ousam ou não podem reconhe-
que já não faz sentido. cer-se. E com efeito, como poderiam fazê-lo? Como poderiam
De fato, o teatro de Eurípides vive ao ritmo da surpresa. A imaginar que, segundo uma idéia que Eurípides tomara do poeta
história do gênero trágico mostra muito bem o partido que Eunpi- Estesícoro, Helena jamais teria estado em Tróia, e que os deuses
des soube tirar dessas surpresas, no que se refere aos efeitos dra- entregaram a Páris, e depois a Menelau, uma falsa Helena, um
máticos, sobretudo na segunda parte de sua carreira literária. Mas é fantasma que se parecia com ela? Vítimas de farsas desse tipo,
evidente que, do ponto de vista da inspiração, esses impactos do como poderiam os homens encontrar-se? Menelau chega, com um
erro e da revelação, do mal-entendido e do lance teatral não nos nome falso, ao Egito, onde desafia a morte; encontra Helena no
dão a sensação de que o futuro tenha sentido. As peças romanes- exato momento em que esta é obrigada a entregar-se ao rei do país:
cas, com todas as suas intrigas, passam a ser um jogo no qual os o perigo pelo qual ambos passaram acrescenta ao reconhecimento
personagens fazem as vezes de marionetes. mútuo um tom patético. Depois, eles se põem a salvo do Egito,
Podemos constatá-Io em três tragédias que, na verdade, se si- graças a um ardil, assim como Ifigênia e Orestes, em Ifigênia em
tuam no limite do gênero, datando as três do período entre 418 e Táurida, fugiram de Táurida. Astúcias e reconhecimentos, zomba-
412: Íon, Ifigênia em Táurida e Helena. ria dos deuses, acasos felizes, surpresas: as grandes paixões das
Em Íon, o jovem herói da peçe' é b filho de Apoio e da rainha primeiras tragédias de Eurípides deram lugar às fantasias imprevi-
de Atenas, Creusa, Ora, Creusa chega a Delfos com seu marido,
síveis do destino.
que nada sabe a respeito do rapaz, e que gostaria de ter um filho. Se essas fantasias sempre se traduzissem em acasos felizes,
Apoio tenta fazer o jovem passar por filho do rei. Creusa, enciu- estaríamos rapidamente fora do domínio do trágico. Mas não é
mada, tenta matá-Io. Este, comprovada sua inocência, quer por sua exatamente assim - o teatro de Eurípides contém tantas surpresas
vez matar a rainha. E mãe e filho reconhecem-se no exato mo- más quanto boas, tantas reviravoltas para o mal quanto para o bem.
mento em que o crime ia ser executado. Estamos aí em plena co- Só que os reveses para o mal aparecem mais freqüentemente como
média de intriga. Todos vivem no erro, e é necessária uma
obra deliberada dos deuses.
intervenção divina no último instante para se evitar o desastre. Fi- Mas talvez devamos ainda evitar este plural. Eurípides não é
lhos perdidos e encontrados, maridos inocentes, agressões mútuas, um teólogo. Menciona "os deuses" para evocar aquilo que o desti-
isso deixaria de ser uma tragédia, se não houvesse dois momentos no dos homens tem de instável e desconcertante. Mas quando ve-
tão próximos da morte, e se o sofrimento de Creusa, enfraquecida mos intervir no seu teatro uma vontade divina expressa e precisa,
em sua ternura maternal, não revelasse o que tais intrigas podem ela vem normalmente de divindades individuais, levadas pelas
custar aos pobres humanos. mesmas paixões que os homens. Enfim, o que ele critica, por vezes
energicamente, são esses deuses dos "velhos contos", nos quais sua
amargura se diverte em acreditar, quando sua maldade explica as
1- ,
25 São esses os versos finais de Alceste, Medéia, Andrômaca, Helena. desgraças do homem.
Assim, Héracles chegou justamente a tempo de salvar os seus:
aparentemente, um acaso feliz. Mas eis que no instante em que
131
A tragédia grega
130 Jacqueline de Romilly

do intelectualismo. O fato é que esse culto, celebrado longe das


tudo parecia resolvido aparecem duas temíveis divindades, pairan- cidades, corresponde bem à crise vivida na cidade. Nesse caso, a
do sobre o palácio - íris e Lissa, a Raiva: elas são enviadas da deu- fuga em direção à mudança, acompanhada da partida do poeta ao
sa Hera e estão a serviço do seu ciúme, pois Hera é ciumenta, não exterior, poderia perfeitamente representar a última iniciativa espi-
no sentido encontrado nas obras de Ésquilo ou Heródoto, de um ritual de seu pensamento, sempre aberto a todas as influências.
ciúme divino, que recusa a um simples mortal elevar-se muito alto; Além disso, essa iniciativa poderia ser, em certo sentido, uma
mas ciumenta como uma mulher traída, como Hermíone ou Me- redescoberta. A tragédia As bacantes, onde se descreve, em seu
déia. E mais uma vez trememos de medo: "Ai! Ai! iremos de novo desenvolvimento inevitável, a vingança de um deus contra um ho-
enfrentar os abalos do terror? Anciãos, vede essa aparição por so- mem tão confiante em seus simples recursos humanos, retoma um
bre o palácio!" (815-817). Hérac1es, cego por essas duas enviadas esquema antigo, onde toda a ação é o reflexo de um desígnio divino.
de Hera, fica repentinamente louco e massacra selvagemente as E, no entanto, nem esses sentimentos mais ou menos místicos,
crianças que acaba de salvar. O transtorno é tão definitivo quanto nem essa concepção de um deus que castiga uma falta conseguem
inteiramente imprevisível. Ele é obra de uma arbitrariedade divina. representar a essência da peça. Ao contrário, a presença desses
Afrodite, em Hipôlito, aniquila com a mesma crueldade o jo- elementos ressalta ainda mais a discordância estridente que Eurípi-
vem caçador que se recusa a adorá-Ia; e Ártemis, indignada com des introduz em temas tão religiosos.
esse "capricho", promete por sua vez matar um ser querido de O deus, antes de mais nada, ludibria o seu mundo com muita faci-
Afrodite. Tais vinganças, que encontram o homem desarmado." lidade. E aS ilusões, em que se debatem tão freqüentemente os persona-
preparam, no teatro de Eurípides, uma vingança ainda mais horrí- gens de Eurípides, aqui estão claramente relacionadas à ironia de um
vel: aquela de Dioniso, em As bacantes, contra um homem que, da deus descontente por não ser reconhecido. Esse mesmo deus abre a peça
mesma forma, se recusou a cultuá-lo. com uma identidade falsa, que conservará até o fim: faz-se passar por
Na realidade, a tragédia As bacatues, escrita por Eurípides no um sacerdote lídio, e só o público está a par do segredo. É preciso ob-
fim da sua vida, apresenta-nos um problema. A obra desse drama- servar também como ele zomba de Penteu! Ridiculariza-o com pala-
turgo é toda cheia de surpresas, como o mundo em que se debatem vras, abusa dos termos de duplo sentido, ostenta sua superioridade
os seus heróis. E As bacantes é uma das mais desconcertantes. diante da ignorância do outro. E quando Penteu o manda prender e
Sob muitos aspectos, efetivamente, a peça revela um tom fora amarrar, ele simplesmente muda de forma. Este mestre da ilusão trans-
do habitual. O coro é formado por bacantes, que cantam as alegrias forma-se em touro, e, enquanto o homem se exaure na tentativa de laçar
e os mistérios do culto a Dioniso. Cantam com tanto fervor, tanta o touro, o deus olha com divertida ironia: "Eu aguardava tranqüilo, a
poesia, tanto desprezo pelo racionalismo pequeno daqueles que se olhá-lo". De repente, Penteu lança-se sobre um fantasma e, acreditando
recusam a crer, a ponto de termos a sensação de assistir à conversão atingir seu inimigo, corta ao meio "o éter cintilante". Esforça-se em vão
de Eurípides. E cabe-nos perguntar se ele, cansado de Atenas e dos na luta contra um ser inatingível. Todos os erros, todas as falsas identi-
sofistas, tomado ele mesmo um fugitivo, não teria encontrado, uma dades, todas as ilusões de que está cheio o teatro de Eurípides encon-
vez distante, nesse culto tão próximo da natureza, uma abertura tram aqui o seu apogeu, no jogo deliberado de um deus hostil.
para um mundo mais rico. O Eurípides intelectual estaria cansado Mas esse deus não se diverte menos com os reveses do destino.
Sem dúvida, ele concede aos seus fiéis felicidade e milagres; mas a
mais exaltada, mais enlouquecida e confiante das suas fiéis - a rainha
26 Podemos acrescentar que, se é verdade que em fon uma intervenção Agave _ conheceu a pior das desilusões. E o deus puniu a mulher infi-
divina acaba arranjando tudo, o mal se havia originado da violação de
el, mas antes zombara dela de maneira tão áspera, preparando-lhe
Creusa por Apoio e das mentiras com as quais esse deus pretendia en-
contrar uma solução, e que o levam a pôr tudo a perder. depois uma morte tão tenebrosa, que tal punição ganhou ares de
perseguição, ao mesmo tempo fácil e desmedida.
132
jacqueline de Romilly A tragédia grega 133

Penteu partiu com Dioniso, que prometeu mostrar-lhe os segredos análise, ora grandioso, ora burguês; teatro de intriga, melodrama,
das bacantes. Dioniso enganou-o, desiludiu-o, embriagou-o, cegou-o. mistério religioso. Ele tentou ou, ao menos, tudo preparou.
E quando Penteu parte, assim ridicularizado, Dioniso exulta: "He- Seria preciso acrescentar ainda que essas diversas orientações,
rói terrível, caminhando para um destino terrível, tu irás encontrar a gló- aparentemente contraditórias, não se apresentam, em sua obra, su-
ria, escalar o céu. Estende os braços, Agave!" (971 e ss.). Porém, na cessivamente. E se foi possível evocar, de forma mais especial, II

cena seguinte, um longo relato conta como Penteu, descoberto, foi mas- determinadas peças, a propósito desse ou daquele tema, sobre al-
sacrado pelas bacantes, e principalmente por Agave, a mãe de todas. gumas foram feitas somente alusões breves, pois teria sido necessá- 11'·'
Isto poderia bastar, sendo tão horrível. Mas não, Agave retoma, trazen- rio citá-Ias repetidas vezes. Precisamente por isso, elas podem
do a cabeça do seu filho, e triunfando com o sucesso da sua caçada. Ela servir para ilustrar a variedade e a sutileza do talento de Eurípides.
também é vítima de uma ilusão: acredita estar segurando a cabeça de Trata-se das peças As [enleias, Orestes e lfigênia em Áulida.
um boi, ou de uma fera; ela não sabe, delira. Como negar que esse delí- As fenicias trata, grosso modo, do tema de Os sete contra Te-
rio tenha produzido uma cena tão espetacular? Mas o delírio e a revela- bas, de Ésquilo. Mas é uma peça psicológica, na qual os dois filhos
ção que se seguem são por demais atrozes para não despertarem revolta de Édipo se encontram, na presença de sua mãe. Um fala das suas
contra o deus que provocou tudo. Como diz o velho Cadmo, se o casti- ambições, o outro das suas impressões do exílio; e cada um, à sua
go era merecido, foi todavia excessivo. Aquilo foi demais, e inspirou, maneira, dilacera o coração da mãe. Por outro lado, trata-se de uma
com relação ao deus, mais terror que verdadeiro respeito. peça política que, representada num ano de perturbações civis, pre-
Se existe mistério, se há presença do sagrado, a tragédia As ga a reconciliação e o civismo. Esta é, enfim, uma peça cheia de pe-
bacantes só os evoca para mostrar, ao final, o homem despojado de ripécias, onde ocorre o sacrifício de um jovem, subitamente exigido
tudo: o jogo sagrado realiza-se às suas custas e deixa atrás de si o pelo vidente, recusado inicialmente pelo pai, depois livremente
luto e o desespero.
aceito pelo filho. Sob todos os aspectos, portanto, o tema foi renova-
A mais religiosa de todas as tragédias de Eurípides projeta assim do. E se o tom não tem mais aquela magnitude de Ésquilo, o patéti-
uma luz bastante sombria sobre a filosofia do autor. Qualquer que te- co, por suas diversas modulações, toma-se muito mais humano.
nha sido a sua fé numa divindade, com a qual pudéssemos nos comu- Orestes discorre um pouco do tema de As eumênides, de És-
nicar com o espírito e com o coração, o desenrolar dos acontecimentos quilo, pois trata do destino de Orestes, após o seu crime. Mas tudo
humanos, no seu teatro, nunca permite supor que essa divindade pre- se toma mais humano e familiar. Orestes não é perseguido por ver-
sidisse tais eventos. E os deuses que vemos em ação, quando não são dadeiras Erínias: ele está doente e delira. Não será julgado por um
um simples símbolo dos sentimentos humanos, reproduzem sua pai- tribunal que os deuses criaram especialmente para ele, e sim pela
xão da maneira mais extremada. Eles aumentam, portanto, o campo assembléia da cidade. Precisa encontrar apoio para pressionar essa
das misérias humanas, sem contudo dar-lhes o menor sentido. assembléia: não mais o testemunho de ApoIo, mas sim os meios de
ação de Menelau. A peça está cheia de debates e discursos, em que
são defendidas teses contrárias: obrigações de Menelau para com
Inovação e decadência
Orestes - dificuldade em que este se encontra; culpa de Orestes -
culpa de Helena. Mistura-se aí a política: como agir com relação ao
Eurípides, portanto, inovou no domínio triplo da cidade, do povo? Há também mistura de ação, pois Orestes, após haver discu-
coração humano e da filosofia religiosa. As suas inovações repre- tido com Menelau, e depois com Tíndaro, não encontra nada me-
sentam todas as novas direções para as quais se lança o teatro trá- lhor do que fazer uma espécie de chantagem, ameaçando matar
gico: teatro de atualidade, ora pacifista, ora nacionalista; teatro de Hermíone. Da defesa apaixonada ao melodrama, do remorso à
chantagem, da análise ao grande espetáculo: tudo é novo, brilhante,
moderno.
134 135
Jacqueline de Romilly A tragédia grega

Por fim, a Ifigênia em Àulida. que os estudantes franceses vê- Mas esse mesmo progresso, quanto à tragédia, traz em si os
em, de certa forma, através da imagem depurada de Racine, é, por germes da morte. E, à força de inovações, sentimos por vezes que
sua vez, uma peça bastante variada. Ifigênia, como em Racine, se chega ao limite do gênero. Certas cenas, em que o patético é
chega ao campo dos gregos para ser sacrificada; ela suplica, aceita levado ao extremo, à espera do efeito teatral, já revelam aspectos
e, por fim, é poupada. Mas Eurípides aproveitou esse momento de melodrama. Outras, em que aparecem personagens tremenda-
(em que não há lugar para o amor - como também não havia no mente medíocres, têm um tom cômico, pelo menos tragicômico. A
coração do seu Hipólito) para introduzir os seus temas e suas ousa- grandeza trágica dilui-se numa ação onde já não se reconhece mais
dias favoritas. Começa por uma discussão entre Agamêmnon e o desígnio divino, e que se perde em fantasias como as que vemos
Menelau, onde se inserem uma crítica feroz à ambição e uma espé- em Helena. Enfim, 9 gênero em si tende a diluir-se. Só a custo des-
cie de caricatura da política. Por outro lado, no decorrer da mesma cobre-se ainda uma unidade de ação em As troianas, onde episódi-
cena, tanto um quanto outro sofrem bruscas mudanças psicológi- os sucessivos deixam de entrelaçar-se diretamente uns com os
cas, que por si mesmas fazem eco ao golpe teatral representado outros. E o coro, tão essencial à tragédia grega, perde muito da sua
pela chegada do criado, precedendo Clitemnestra e Ifigênia. E, na- importância, quando a ação propriamente dita começa a fervilhar e
turalmente, essas reviravoltas não são nada em comparação com a a reter todo o interesse.
de Ifigênia, quando inesperadamente aceita a morte. Por fim, Eurí- Não há surpresa, portanto, no fato de que os sucessores de Eu-
pides introduziu todo um jogo de peripécias: Ifigênia virá ou não rípides, considerando as inovações do mestre, sem possuírem,
virá, ela será ou não será massacrada? Existem espera, desespero; e contudo, uma' sensibilidade igualmente rica, tenham transposto
só no derradeiro instante ela é miraculosamente salva. Mas o cará- essa linha ideal, da qual Eurípides se aproximou, mas que não che-
ter humano que ele atribuiu a Ifigênia, a Clitemnestra e ao próprio gou a ultrapassar. Aristóteles lamenta que o coro tenha rapida-
Agamêmnon toma cada verso tocante e surpreendente. A sátira mente perdido a sua conexão com a ação, e que esta se tenha
política e as tramas da intriga passam por sofrimentos humanos, diluído, a ponto de os poetas acumularem numa só peça a história
próximos e intensos. É justamente por isso que Racine, que tinha inteira do saque de Tróia: foi, como diz, o único erro de Agatão?8
objetivos muito diferentes, se inspirou neles. Chama a atenção também para o fato de que os novos autores fa-
Assim como, na arte de Eurípides, os longos discursos, com lam como retóricos.29 Com efeito, Astidamos, Teodecto, Afareu,
sua argumentação diligentemente dialética, expressam fortes pai- todos eles eram discípulos ou amigos de Isócrates. Poder-se-ia dis-
xões, assim também a ação, a análise, as idéias, as cenas patéticas cemir aí uma das deformações do gênero, que pouco a pouco se
mesclam-se num todo, dominado pelos sentimentos daqueles que tomou inchado, com tantas digressões mais ou menos filosóficas.
sofrem. Mas a observação de Aristóteles sugere também uma explica-
Não houve, portanto, uma tentativa seguida de outra, ou um ção mais profunda, que questiona a própria evolução dos espíritos
gênero seguido de outro. Tudo o que se pode dizer é que as primei- e da política. Esse gosto amargo, esse desejo de evasão, que por
ras tragédias de Eurípides parecem ser mais clássicas, exclusiva- momentos traem a obra de Eurípides, só são bem compreendidos
mente dominadas por uma grande figura trágica, como Medéia, quando situados na atmosfera do fim da Guerra do Peloponeso.
Fedra, ou Hécuba, e que, quanto mais se avança, mais se desenvol- Eurípides só reencontra acentos verdadeiramente renovados quan-
ve a variedade, e mais as inovações de todo tipo se multiplicam.27 do longe de Atenas, na Macedônia. Agatão, igualmente, acaba os
seus dias na Macedônia. Em Atenas tudo se desfazia. A perda do

27O sentido dessa evolução está muito bem delineado no livro de A. Rivier,
Essai sur le tragique d'Euripide, Lausanne, 1944.
28Poética, 18, 1456 a.
29 Ibid., 6, 1450 b.
136 Jacqueline de Romilly

império soa um pouco como um cortejo fúnebre da vida cívica.


Sócrates é condenado à morte. O jovem Xenofonte vai servir no
estrangeiro. Is6crates abre a sua escola, mas jamais falou diante da
assembléia do povo. E Platão sonha em fundar, em algum lugar,
uma cidade digna desse nome. A vida da cidade vegeta: Dem6ste-
I~
nes jamais deixou de lamentar profundamente esse fato, evocando Conclusão
inutilmente o sentido da grandeza passada.
Numa tal atmosfera, o teatro passava a ser, cada vez mais,
obra de letrados, dirigindo-se a um público de curiosos. A pr6pria A tragédia e o trágico
vida do gênero trágico dependia da participação de todos, de uma
manifestação coletiva, ao mesmo tempo nacional e religiosa. Tor-
nando-se mais refinada, a arte dramática mudou de tom e de senti-
do. Racine deveria imitar Eurípides, mas diante de um público
seleto e limitado, o que não ocorria em Atenas. De fato, a tragédia De Ésquilo a S6focles e a Eurípides, a tragédia grega passou
grega morreu, quando se cortou o laço que a ligava à sua cidade. por uma transformação e renovação profundas. A visão do mundo
mudou, Q.S meios literários também mudaram, o gosto, o tom, as
idéias, tudo se alterou. Todavia, a forma literária permaneceu a
mesma, como permaneceu o mesmo o espírito que a animava. E
este espírito revelou-se bastante característico para que, a partir
•• daí, todo teatro que bebesse da mesma fonte de inspiração fosse
chamado "trágico", e também para que toda desgraça ou situação
que apresentasse alguma analogia com os fatos daquelas peças fos-
se igualmente qualificada como "trágica". O bode, que emprestou
o seu nome à tragédia grega, acabou por invadir, de maneira um
tanto quanto inesperada, o vocabulário moderno da emoção ...
Naturalmente, uma tal tendência não ocorre sem esquerdismos
ou deformações. Da mesma forma como, na representação das tra-
gédias gregas, cada época ou cada autor ressaltavam certas caracte-
rísticas em detrimento de outras (ora o equilíbrio e a harmonia, ora
a aspereza arcaica, ora uma política predominante, ora uma religião
atemporal), e também como as adaptações dessas peças variavam
de acordo com o espírito e a inspiração, segundo o momento ou a
moda, assim também cada época e cada corrente acabam por pri-
vilegiar, dentro da própria noção do trágico, ora um aspecto, ora
outro. O reflexo das tendências contemporâneas esclarece essa no-
ção, de uma ou de outra forma. Se reagruparmos aqui alguns traços
essenciais que conferiram ao teatro trágico grego a sua excepcional
grandeza, encontraremos esses reflexos diversos, e estaremos as-
138 . 139
Jacqueline de Romilly A tragédia grega

sim prontos para identificar os eventuais erros que eles poderiam que possuímos, uma de Sófoeles (Electra) e quatro de Eurípides
suscitar. (Orestes, Electra, Ifigênia em Áulida, Ifigênia em Táurida.
Antes de mais nada, nos próprios componentes da tragédia,
podemos perceber que õ vigor da ação das peças gregas se baseava
A família dos Labdácidas não recebeu menor quinhão, muito
pelo contrário. A juventude de Laio, o pai de Édipo, é marcada por
II~I
em duas fontes de inspiração, que implicavam, ambas, um risco de assassinatos, aos quais se dedicaram as tragédias hoje perdidas,
deformação: o passado mítico e a atualidade política. ' como a Antiopc, de Eurípides. Quando se tornou rei, ele foi amea-
çado de ser morto pelo próprio filho; ao nascer esse filho, trata de
fazê-lo desaparecer, mas inutilmente: em virtude de uma série de
Mito e psicanálise enganos preparados pelo destino, Édipo mata o pai, casa-se com
sua própria mãe e gera filhos que, de certa maneira, são seus ir-
Os mitos gregos, em que se inspiravam as tragédias, são carre- mãos. Segundo palavras que Sófoeles lhe atribui: "Acaba sendo-
gados de horror, e afetam os laços primários entre os homens. me revelado que sou o filho de quem não devia nascer, o esposo de
Certamente isso também ocorre com mitos de outras civilizações. quem não devia sê-lo, o assassino de quem não deveria ter matado
Mas aqui eles se tornaram o objeto de obras literárias, que insistem (Édipo rei, 1185). Esse personagem, destinado ao monstruoso,
justamente na crueldade e no escândalo destes crimes contra a na- agride, portanto, todas as relações normais no seio de uma família;
tureza. Assim, a emoção suscitada pela tragédia nutre-se de experi- e, diante do mundo que se lhe abre, ele prefere fugir de tudo, va-
ências mais elaboradas do que outras, visando transtornar o homem zando-se às olhos. Mas esse gesto não põe um fim aos males da
nas suas emoções essenciais. sua linhagem. Resta-lhe ainda maldizer os seus filhos, que acabam
Na realidade, duas grandes famílias de heróis dominam a tra- por matar-se um ao outro: Édipo em Colona, de Sófoeles, Os sete
gédia: os Átridas e os Labdácidas. E ambas carregam em seu seio contra Tebas, de Ésquilo, As fenícias, de Eurípides, são três peças
uma série de crimes monstruosos. ~ I
que se dedicam a esse confronto monstruoso. O que vale para essas
Atreu e Tieste eram dois irmãos. Mas havia um terceiro irmão, duas famílias privilegiadas aplica-se também a todos os compo-
Crisipo, que de comum acordo os dois decidiram matar. Depois nentes míticos que inspiraram a tragédia grega. As heroínas de As
disso, voltaram-se um contra o outro. Atreu matou os filhos de Ti- suplicantes, de Ésquilo, massacram seus jovens maridos por horror
este, e fez com que o próprio pai os comesse, durante um festim. A ao laço matrimonial (esse crime não aparece na peça que se con-
lembrança deste horror pesa sobre a família de Atreu e sobre os servou, mas pesa evidentemente sobre ela de certa maneira). A
seus dois filhos, Agamêmnon e Menelau. E é sabido que, no que Dejanira de Sófoeles, sem querer, mata o seu marido bem-amado,
concerne a Agamêmnon, o horror prossegue: ele sacrifica sua filha Héraeles, e com isso é amaldiçoada por seu próprio filho. O Héra-
lfigênia, e mais tarde é morto por sua mulher, Clitemnestra. A pró- eles de Eurípides mata os seus filhos num momento de delírio, da
pria Clitemnestra acaba sendo morta por seu filho Orestes. Assis- mesma forma como a Agave, do mesmo Eurípides, mata o filho
timos, pois, no espaço de duas gerações, e no seio de um pequeno num momento de loucura dionisíaca. Ainda na obra de Eurípides,
grupo familiar, aos crimes mais monstruosos; as pessoas se matam, Teseu entrega seu filho à morte, por engano, e Medéia mata os fi-
entre irmãos, esposos, pais e filhos; e assim as relações familiares lhos deliberadamente, sob o efeito da paixão. Isto sem falar da-
mais elementares são questionadas. Pode-se dizer que não existem quelas tragédias em que assassinatos igualmente monstruosos são
crimes mais bem arquitetados para escandalizar ou espantar. Ora, a evitados no último instante, devido a uma revelação imprevista.
família dos Átridas ocupa três tragédias de Ésquilo, dentre as sete Todos esses horrores representam casos extremos. Mas, quan-
do levados ao palco, eles conferem às desgraças uma dimensão
.
mais perturbadora. E Aristóteles, sem dúvida, de uma maneira um

~
.
140 A tragédia grega 141
Jacqueline de Romilly

tanto quanto fria, tinha-o em mente, quando recomendava aos auto- Mas estava aí a ocasião de abrir as portas a uma certa inter-
res trágicos temas onde pretação literária que, nos espíritos conhecedores da doutrina freu-
diana, mas às vezes menos familiarizados com as obras gregas em
entre as pessoas amigas fossem produzidos os dramas - por
exemplo, quando um irmão mata seu próprio irmão, ou um filho
geral, corria o risco de provocar um mal-entendido.
Este risco aumentava, na medida em que a sobriedade das ex-
J
o seu pai, ou uma mãe o seu filho, ou um filho a sua mãe, ou plicações psicológicas forneci das pela tragédia, principalmente nos
I
quando se dispõem a isso, ou cometem outros atos desse gênero seus começos, deixava bastante campo para interpretações. Os si-
(Poética, 1453 b).
lêncios trágicos podem encobrir muitas coisas.
Se tratamos de esmiuçar o significado de uma obra, a despeito
E sem entrarmos aqui no problema do "expurgo das paixões", do seu autor, as tragédias gregas são, seguramente, um exemplo
de que fala o próprio Aristóteles, pode-se ao menos pensar qu~sa
que vale tanto, ou mais, que outros. Mas não se pode dizer que o
catarse era mais eficaz, na medida em que aquelas emoções, na- silêncio dos autores seja uma forma de aquiescência, e pareça co-
quele momento, se baseavam em casos nascidos do imaginário, brir os sentidos que eles perceberam, de modo mais ou menos con-
sendo, porém, particularmente chocantes e excepcionaisJ
fuso. A tragédia, com efeito, não é o mito. Ela é a obra de poetas,
De qualquer maneira, é perfeitamente compreensível que a que deliberada mente transpuseram o mito, para nele inserir um
evocação dessas desgraças e emoções repercuta no âmago da sen- sentido pessoal. Fizeram-no em função de determinados esquemas
sibilidade humana. E a tragédia grega extrai disso uma força que só e interesses, 'os quais não eram de ordem psicológica. Além disso,
a ela pertence. Em particular, ela se distingue, sob esse aspecto, da aquilo que a psicologia moderna acredita ler naquelas obras é, às
nossa tragédia clássica, mais reservada e mais recatada, que sempre
vezes, mais distante do espírito que as animava do que o seria, no
se manteve a distância das lendas mais brutais, ou que diluiu a sua
caso de obras mais modernas. E é pelo menos justo manter em
aspereza mediante retoques detalhados.i I •
mente a noção dessa diferença.
Mas, assim sendo, compreende-se também que essa mesma Não há dúvida de que o Édipo concebido por Sófocles so-
aspereza tenha estimulado a psicanálise a reconhecer, naqueles da-
mente mata o seu pai e casa-se com sua mãe por causa de um cruel
dos tão diretos e naquelas emoções tão fundamentais, um campo
equívoco, e que ele não o deseja de forma alguma. Quanto ao mais,
que lhe pertence. Conhecemos a importância que, depois de Freud,
não existe na lenda qualquer recordação da sua tenra infância; ele
adquiriu aquilo que ele chamou de complexo de Édipo. Freud, se-
não conhece os seus pais, jamais os viu, nada sabe. Foi preciso um
gundo parece, estava convencido de que a constância das tendênci- Cocteau para inventar um Édipo bem diferente, e tingir essa união,
as que levavam a este complexo teve grande peso no sucesso
ocorrida por engano, de um caráter incestuoso. Assim também a
literário de Édipo rei.
Clitemnestra, concebida por Ésquilo, por Sófocles e por Eurípides,
age por razões que nada têm a ver com o ódio íntimo que pode
I Em relação a isso, vale a pena observar que o tema de Édipo, tão em nascer entre um casal. E foi necessário um Giraudoux para em-
moda na época moderna, não inspirou absolutamente o século XVII. De prestar-lhe essa hostilidade que teria brotado desde o primeiro
outro lado, em uma tragédia como Andrômaca, a heroína raciniana tem momento contra seu esposo.
por certo um filho, mas não é mais o de Pirro; e as razões pelas quais se Mesmo quando o tema da peça grega possa estar diretamente
arrisca a matá-Io são de natureza puramente política: a nudez do conflito relacionado com os problemas apresentados pela psicologia mo-
entre as duas mulheres foi dissimulada. Da mesma forma, Hipólito, em derna, e com os temas aos quais ela se dedica, na realidade parece
Racine, já não encarna mais a castidade. As nuances de sentimentos
que os intérpretes, no intuito de formular-lhe o conteúdo, tenham
ocuparam o lugar de problemas mais essenciais.
sido fatalmente levados a ultrapassar as intenções do autor .do sé-
culo V a. C. É verdade que Hipólito é exageradamente devotado à
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 143

sua castidade, e que a sua morte, na peça de Eurípides, mostra o dispomos somente de um exemplo - o da peça Os persas, de És-
quanto ele estava errado, ao opor-se tão drasticamente à deusa do quilo.
amor. Mas se falarmos de rancores recaJcados, ou se mencionar- Em contrapartida, os temas trágicos são freqüentemente des-
mos, sob qualquer forma, a atividade sexual e suas exigências, o envoividos de maneira que a peça, no seu conjunto, ou pelo menos
conflito muda de figura, e não será mais o conflito entre um ho- em certas passagens, convide o espectador a uma aproximação com
mem e uma divindade. E sendo apresentado em outra linguagem, o presente. O caráter nacional e coletivo da representação favorecia
ele assume imediatamente um outro sentido.' Sem dúvida, essas essa tendência. Além do mais, a importância primordial da cidade
observações de cunho moderno podem, aqui ou ali, lançar uma na vida dos atenienses do século V tomava praticamente impossí-
nova luz sobre determinado aspecto de uma tragédia, acrescentar vel que isto se passasse de forma diversa. Com efeito, os atenienses
uma nuance, uma sombra, uma sugestão. Mas a partir do momento participavam da vida pública muito mais do que podemos imagi-
em que se acrescenta algo na leitura de um texto, corre-se facil- nar. Eles próprios se encarregavam de certas tarefas, eram respon-
mente o risco de acrescentar demais. sáveis, conheciam uns aos outros, acompanhavam suas ações. E
Em outras palavras, as tragédias gregas tratam de temas que num Estado tão reduzido, os sucessos e fracassos públicos reper-
envolvem emoções essenciais do homem; podem até utilizar-se cutiam imediatamente na vida de cada um. Dessa forma, é perfei-
disso para afetar, de modo certeiro, tanto os espectadores quanto os tamente normal que a tragédia grega tenha exercido, quase sempre,
leitores. Mas elas tratam dessas emoções dentro de um certo espí- algum impacto coletivo e nacional.
rito, que não é necessariamente o nosso. Podem buscar nos grandes ~ De fato, é raro que o autor se-detenha a este núcleo familiar ao
temas míticos uma capacidade maior de comover; mas elas trans- qual se referia, essencialmente, o mito. Acima de tudo, Aga-
puseram esses temas, modificaram-nos, elaboraram-nos, em função mêmnon e Édipo eram reis, e esse fato influencia tanto seu destino
de problemas outros que não os da psicplpgia moderna. quanto seus sentimentos. Édipo seria tão comovente, e agiria da
Em particular, acontecia freqüentemente que aqueles temas só forma como agiu, se não carregasse, em todos os momentos, a res-
serviam como moldura a uma imaginação totalmente voltada para ponsabilidade pela cidade? A primeira palavra que ele pronuncia é
a atualidade - e isso nos leva à fonte de um segundo provável mal- "filhos", mas essa palavra não é dirigida à sua monstruosa família,
entendido. Esses "filhos" são os suplicantes, que representam o povo de Te-
bas: "Todo o restante do povo, fervorosamente a postos, está ou de
Atualidade e engajamento joelhos, ou nas praças, ou diante dos dois templos consagrados a
Palas, ou ainda junto às cinzas proféticas de Ismeno". É no intuito
É raro encontrarmos, na vida moderna, o tema de uma tragédia de salvar Tebas do flagelo que Édipo começa a agir. É em nome da
grega; ou mais exatamente, entre as tragédias que se conservaram, salvação de Tebas que ele, do começo ao fim, insistirá em saber a
verdade. Essa nobreza cívica toma seu desastre ainda mais como-
vente.
2 Mesmo detalhes verdadeiros correm o risco, nesse caso, de adquirir um Da mesma forma, Agamêmnon é responsável por Argos. Mas
°
destaque exagerado. Por exemplo, é bem verdade que animal que ser- ele não cuida o bastante, ou suficientemente bem. E se o coro lhe
ve para matar Hipólito é um touro (M. Delcourt, em Euripide de Ia Pléi-
permanece fiel, sabendo que a sorte da cidade está ligada àquela do
ade, pp. 206-207); mas esse touro é enviado por Posêidon. E na
soberano, ele sabe também que os atos de Agamêmnon nem sem-
suposição de que ele jamais tenha tido um significado simbólico, Eurí-
pides não revelou nem sugeriu em momento algum; ele insiste muito pre trouxeram a felicidade dos cidadãos: "pesada é a reputação
mais sobre o papel desempenhado pelos cavalos, tão caros a Hipólito. atribuída pela indignação de todo um país: é necessário que ele
pague a sua dívida pela maldição de um povo".
144 A tragédia grega 145
Jacqueline de Romilly

Esse eco provocado pela ação dos príncipes, para o bem ou o (que escrevera num teatro, sob esse aspecto, mais livre), toda uma
mal do país, evidencia ainda mais a dimensão trágica dos seus atos. série de alusões, transposições, intenções polêmicas ou apologias
Ao mesmo tempo, tal ação imprime, conseqüentemente, uma signi- que conferissem ao texto um eco, ou uma dimensão, que um leitor
ficação também política à obra. talvez a custo percebesse. E é natural também que o teatro grego
Agamêmnon, além de marido de Clitemnestra, é também o rei tenha sido um exemplo para aqueles que esperam da literatura mais
imprudente, que empreendeu a guerra por "uma mulher que foi de que um prazer puramente artístico, e desejam que o poeta seja tam-
mais de um homem". É também o homem que levou a guerra ao bém um cidadão, engajado na realidade política, tomando partido e
extremo e ao sacrilégio: permitiu que se incendiassem os santuári- servindo a uma causa.
os dos deuses. Por tudo isso, o seu exemplo equivale ao do jovem De fato, na verdade, a tragédia grega apresentava, sob esse as-
Xerxes. E compreende-se que, em certos casos, essa condenação pecto, uma dimensão a mais - uma dimensão que não conheceria,
pelos excessos da guerra venha a ser uma condenação pela guerra por exemplo, a tragédia francesa do período clássico.
em si. Em Os persas, em Os sete contra Tebas, em Agamêmnon, Todavia, devemos, mais uma vez, fazer algumas reservas, se
Ésquilo exprimiu com força os horrores da guerra, da pilhagem e quisermos evitar confusão. Antes de mais nada, é preciso evitar a
da morte. Eurípides, em plena Guerra do Peloponeso, empenhou-se expectativa de que o poeta diga mais do que diz. ~ caça às al~sões
em reiterar as desgraças dos vencidos, nas tragédias Andrômaca, é perigosa, porque facilmente faz referências excessivas. E um
Hécuba e As troianas. convite à engenhosidade, correndo o risco de dar ao detalhe uma
Além do mais, a propósito de qualquer tema, os poetas trági- importância exagerada. 'Ela parece fornecer chaves de interpreta-
cos encontram, oportunamente, idéias ou problemas que evocam ção, quando muitas vezes, na realidade, existe apenas uma seme-
imediatamente o presente. A Ores tia termina com comentários so- lhança distante, que despertou o interesse do autor, sem inspirar-
bre o papel do Areópago e sobre o pt?,ri.go,da guerra civil; de outro lhe, no entanto, o desejo de provar o que quer que seja.
lado, Orestes promete a Atenas uma aliança com o país de Argos. , E, sobretudo, referir-se à literatura engajada, a propósito da
Todos estes eram assuntos atuais. Édipo em Colona chega a mos- tragédia grega, é evocar um movimento de espírito muito diferente
trar que o corpo de Édipo resguardaria para sempre Atenas de uma daquele que animava os poetas do século V.
invasão dos tebanos. Ora, quando a peça foi escrita, a cavalaria Aqueles poetas eram, efetivamente, cidadãos. Viviam engaja-
beócia, sob o comando do rei de Esparta, acabava de tentar uma dos, porque o próprio estatuto da cidade implicava uma participa-
expedição na Ática, justamente pelo lado de Colona. Da mesma ção constante e profunda. Mas sua obra como poetas consistia, o
forma, As suplicantes de Eurípides abordam uma recusa de sepultar mais das vezes, em transcender esses interesses imediatos, e em
os mortos, depois de uma batalha. Ora, quando a peça foi escrita, transpô-Ios até o nível dos interesses humanos. Trata-se da mesma
os beócios acabavam de negar aos atenienses o direito de recolher atitude adotada por Tucídides, quando deseja fazer da sua história
os corpos dos soldados mortos em Delion, enquanto Atenas ocu- uma "conquista para sempre", descartando desta história todas as
passe seu santuário; a batalha havia durado dezessete dias, e abala- indicações de detalhe, ligadas aos debates diários. Com mais razão
do profundamente a opinião pública ateniense. Em todos os casos, ainda, encontramos essa atitude nas transposições trágicas.
conseqüentemente, o mito era evocado de uma forma e em termos A tragédia Os persas dá o tom, já que essa peça de atualidade
diretamente relacionados com as emoções e com os problemas do se cala com relação aos indivíduos, às responsabilidades, falhas e
momento. sucessos, para ater-se exclusivamente aos grandes temas atempo-
tE, portanto, natural que se tenha procurado discernir, na obra rais, como a insolência punida, ou os horrores da guerra. Ora, as
dos três grandes trágicos, particularmente naquela de Eurípides tragédias gregas seguiram, em geral, este exemplo. Certamente não
seria razoável procurar em Creonte caricatura de Péricles, mesmo
que, neste ou naquele detalhe, o pensamento de Sófocles tenha se
A tragédia grega 147
146 Jacqueline de Romilly

alimentado daquilo que ele via ou escutava ao seu redor.' Ao con- gédia grega, embora dele se nutra, se esforça constantemente em
trário, é justamente porque Creonte não é Péricles que o debate extrair-lhe o segredo atemporal.
entre Antígona e ele se toma um debate eterno, claro como um de- No seu conjunto, a tragédia grega adquire uma ressonância
senho acabado, sempre tão atual e tão vivo: Antígona, durante a particular, pelo fato de ter mantido um contato constante com as
última guerra mundial, encamava a resistência à opressão. Da realidades coletivas da vida política, enquanto se revestia também
mesma forma, não seria razoável reconhecer, nos dois irmãos ini- de uma força mais austera, por ter conservado a ligação com os
migos de As fenícias, os homens ou os partidos de 411 a.c.: dizer mitos originais. Mas em nenhum dos casos ela se confunde com a
que Polinice representa A1cebíades porque, como ele, permanece matéria que, dessa forma, lhe é fornecida. A sua real grandeza pro-
exilado, ou que Etéocles representa o partido oligárquico porque cede da interpretação humana dada aos males que ela evoca. E é
tenciona conservar o poder, sem compartilhá-l o com outros, são apenas essa interpretação o que define verdadeiramente o trágico.
interpretações que enfrentam mil dificuldades, e não resistem a
uma análise. Por outro lado, é bastante visível que nesta peça, es-
crita numa época de guerra civil, Eurípides optou por descrever o trágico e a fatalidade
uma luta fratricida, mostrando os sofrimentos que ela semeia e
A descrição do assassinato no qual uma mulher mata o seu
evocando com insistência o sonho de uma reconciliação impossí-
marido, ou uma mãe mata os seus filhos, o relato do desespero de
vel. Ele, portanto, denunciou o mal, em seu aspecto humano e ge-
um homem que se descobre casado com a própria mãe, tudo isso
ral; mas evocou, em contrapartida, o esplendor do patriotismo em
'J...
poderia ser assunto de belos melodramas. Mas, para que esses fatos
si. Ultrapassou o atual para atingir o tipológico. Do mesmo modo,
apareçam como trágicos, é preciso um elemento a mais, um enfo-
alimentada pela experiência contemporânea, sua tragédia elevou-se
que diferente, um significado próprio. Qual é então esse enfoque
acima do contemporâneo: ela pode atingir a quem quer que seja,
em qualquer época, independente da de guerra civil. E seu Etéocles trágico?
Como já foi dito uma vez, ele pressupõe um "drama sério,
não é nem um oligarca, nem um tirano: ele encarna a ambição em
atingindo alguns dos problemas fundamentais da condição huma-
seus traços eternos, e adquire o valor de um símbolo humano. Os
na"." Em outras palavras, para que esses assassinatos sejam trági-
jovens alunos do século 11I a.C. estudavam em sala de aula o que
cos, é preciso que estejam ligados a causas que ultrapassem o caso
Jocasta disse daquela ambição; e Cícero nos relata como César
individual, que os tomem necessários em virtude de circunstâncias
gostava de citar as palavras de EtéocIes. Em qualquer país, ama-
nhã, essas palavras poderiam novamente carregar-se de um valor impostas ao homem.
Clitemnestra mata Agamêmnon porque todo erro atrai, cedo
atualizado, porque a atualidade de 411 foi transposta em uma expe-
riência humana de ordem moral. ou tarde, a cólera dos deuses justos, e porque Agamêrnnon, de fato,
errou. Édipo desposou sua mãe, porque o homem não é capaz, por
É por isso que @"ãose pode falar de literatura engajada sem o
mais que se esforce, de evitar um destino que ele se recusa a acei-
risco de confusão. Uma literatura engajada implica o desejo de
tar. Medéia mata os seus próprios filhos porque a paixão humana
aproximar-se, tanto quanto possível, ao presente - enquanto a tra-
leva o homem a destruir precisamente aquilo que lhe é mais caro.
Clitemnestra, Édipo, Medéia são casos extremos e monstruosos; no
3 Nem por isso essas comparações deixam de ser interessantes, contato entanto, seus crimes são o resultado inevitável de um certo arranjo
que não Ihes seja dada uma importância sistemática. Sobre esse caso
particular, cf. V. Ehrenberg, Sophoc/es and Pericles, Oxford, 1954
(texto alemão, Munique, 1956).
4 H. D. F. Kitto, Le théãtre tragique (coletânea de exposições reunidas por
J. Jacquot), 1962, p. 65.
148 Jacqueline de Romilly 149
A tragédia grega

do mundo. Nesse sentido, eles poderiam também ter sido nossos. E A obra de Ésquilo trata, quase sempre, dos deuses. Desta for-
eles inspiram, além da compaixão por suas vítimas, a compaixão ma, Zeus é quem provocou a queda de Tróia (Agamêmnon, 367), e
por eles mesmos e pelo próprio homem. são os deuses que incitam os excessos de Agamêmnon (461). Mas,
É essa a razão pela qual, ao escrever sobre a tragédia grega, ao decidir sacrificar a sua filha, o mesmo Agamêmnon "curva sua
somos obrigados a lançar-nos em considerações sobre a filosofia fronte ao jugo do destino" (218). E quando ele morre, o coro reco-
dos autores, ou a falar dos deuses e dos homens. Tal modo de ex- nhece que foi uma ação do destino: "Gênio (daimon), que te abates
posição não seria adequado para qualquer forma teatral. Mas é im- sobre a cabeça das duas crianças de Tântalo, tu te serves de mulhe-
possível evitã-lo quando se trata da tragédia grega, com aquele res de almas iguais para triunfar, dilacerando os nossos corações ..."
coro que diz a cada instante: "Vede o destino do homem", "Vede o (1468-1471). A palavra daimon é repetida na cena em diversas
poder dos deuses", ou "Decididamente, a condição humana apre- oportunidades, tanto por Clitemnestra como pelo coro: o assassi-
senta tal ou tal caráter". A tragédia grega sempre dá um testemu- nato de Agamêmnon não tem a característica do melodrama, por-
nho sobre o homem em geral, e, graças ao coro, esse testemunho é que ele é obra do daimon?
constantemente chamado à atenção dos espectadores. Encontramos esta mesma noção na obra de Sófocles. O desti-
E pode ser exatamente esse traço, tão característico da tragédia no, embora menos ligado à idéia de justiça, não deixa, nem por
grega, aquilo que as tragédias de outras épocas tiveram grande di- isso, de ser soberano. Pode-se até dizer que o tema de Édipo rei é
ficuldade em conservar. Isto se aplica tanto à tragédia latina quanto somente o triunfo de um destino que os deuses haviam anunciado,
à tragédia francesa, pois, se Fedra alcança o seu porte e sua riqueza e que o homem não conseguiu evitar. Não precisamos de muitos
por representar, segundo uma fórmula célebre, uma cristã à qual comentários para que se revele, aos olhos de todos, essa ostensiva
faltou a graça, não é certo que os Irmãos inimigos tenham atingido vitória do destino. Tanto o coro quanto os personagens, no pouco
a grandeza de Os sete contra Tebas; Fst~s heróis, mais ocupados que dizem ao evocar a vida de Édipo, falam sempre do seu "desti-
com o amor e com a política, não podiam apresentar facilmente no", ou do seu "quinhão". E quando o coro comenta a desastrosa
problemas tão essenciais ao homem; e o coro já não estava mais lá notícia, declara que não pode mais considerar nenhum homem feliz
para ajudá-los, diante do exemplo de Édipo, do daimon de Édipo (1194). Ele pró-
Seja como for, essa noção dos limites inerentes à condição prio exclama então: "6 meu destino (daimon), onde foste precipi-
humana estava sempre presente na tragédia grega. Manifestava-se tar-te?" (1311).
sob formas diferentes, mas o espírito era o mesmo. Isto explica, Isso já não é mais tão evidente no teatro de Eurípides, ou tal-
sem dúvida, o fato de se ter muitas vezes traduzido esse sentimento vez a idéia de necessidade tenha se interiorizado. Nenhum destino
por meio da palavra fatalidade. ' impele Medéia a matar os seus filhos, mas tantas são as forças que
Em certo sentido, isso se justifica, pois é verdade que a tragé- pesam sobre ela! Primeiro, a longa seqüência de acontecimentos
dia grega não se cansa de apontar, além do homem, forças divinas que a conduziram ao impasse em que se encontra; e a ama que abre
ou abstratas que decidem sobre seu destino, e decidem sem apela- a peça o faz com uma lamentação característica: "Quis o Céu que a
ção. Pode tratar-se de Zeus soberano, ou dos deuses, ou ainda, em- nau Argos, em seu vôo à terra de Cólquida, não tivesse transposto
pregando um termo belo, neutro e misterioso, do daimon, ou as Simplégades com sua sombra azuL", pois então nada teria
divino. Pode ser também o destino, a Moira, ou então a necessida- acontecido. Depois, existe a paixão em si mesma, da qual Medéia
de. E o coro menciona, incansável a cada instante, a ação dessas
forças sobre-humana~_
5 O termo encontra-se no singular, mais de trinta vezes, na obra de És-
quilo, sem contar uns quarenta exemplos em que está no plural, tendo
então um sentido mais pessoal.
150 A tragédia grega 151
Jacqueline de Romilly

se confessa escrava (1078-1080). E uma vez dado o primeiro pas- temnestra é O agente do assassinato, mas ela age por rancor, vin-
so, a heroína toma-se prisioneira da sua própria iniciativa: "Va- gança e ciúme, pelo efeito de um ódio inteiramente pessoal, e de-
mos! encouraça-te, coração meu! Por que tardamos em executar a verá responder por isso. Quanto ao próprio Agamêmnon, ele só é
perversidade terrível e necessãria?"? Medéia forja seu próprio des- condenado a morrer sob os golpes dela porque, deliberadamente,
tino; mas isso não quer dizer que ela possa fugir-lhe. ofendeu as ieis divinas e humanas, tanto ao sacrificar sua filha,
Se é verdade que, mesmo num caso desse gênero, paira sobre como ao cometer crimes vários que marcaram a tomada de Tróia.
todo o conjunto a idéia de uma necessidade, e que dessa forma o Levantar o problema da liberdade humana, a propósito de tais
destino de Medéia ilustra a fraqueza do homem e a fragilidade da eventos, constitui uma atitude moderna. Para um antigo grego, as
sua condição (como de fato o coro o afirma), pode-se compreender duas causalidades coexistem sem contradição. Como diz Ésquilo,
que as desgraças dos heróis trágicos possam revestir-se de uma "quando um mortal se empenha na sua ruína, os deuses vêm ajudá-
dimensão aterradora para todos. E compreende-se também por que 10" (Os persas, 742). Nada acontece sem a vontade de um deus;
se instalou o uso generalizado da palavra fatalidade. mas nada tampouco acontece sem que o homem participe e se en-
Entretanto, aqui uma vez mais, o termo corre o risco de ocasi- gaje. O divino e o humano combinam-se, sobrepõem-se. É por isso
onar confusões, e requer ao menos algumas reservas. Em primeiro que, em última instância, se pode dizer que a morte de Hipólito se
lugar, existem tragédias, particularmente nas peças de Eurípides, deveu ao amor ou a Afrodite; que Héracles sucumbe a um mo-
onde nada indica a fatalidade: o acaso dos encontros e o sobres- mento de loucura ou à ação da raiva, enviada por Hera; ou ainda
salto dos golpes teatrais dão, muito mais, a impressão de uma ação explicar a morte de Penteu por se recusar a admitir certas tendências
provocada por si mesma, livremente. A própria Medéia hesita, ou naturais ou a reconhecer o deus Dioniso.
seja, ela poderia ter agido de outra forma. E não é nenhuma fatalida- Por certo, as coisas não são sempre tão simples. Mas, de modo
de que decide a tomada de Tróia, ,a vingança de Hécuba, ou a sorte geral, a fatalidade grega não elimina a responsabilidade humana,
de Andrômaca. A fatalidade, portanto, não é essencial ao trágico. como o sentido da palavra poderia sugerir.
De resto, mesmo quando os acontecimentos são apresentados Por outro lado, mesmo onde o destino parece reinar absoluto,
como decorrentes de uma decisão divina, irrevogável e soberana, ele não envolve qualquer espécie de abdicação por parte do ho-
falar de fatalidade equivaleria ainda a simplificar as coisas ou, ao mem. Dizer que uma coisa foi determinada pelo destino significa
menos, caracterizaria o termo de maneira imprópria, se ele sugerir dizer que ela está aí, pura e simplesmente. Significa constatar o
a negação da responsabilidade. Um dos traços mais marcantes do fracasso do homem. Significa mostrar que ele se debate contra um
pensamento grego é, com efeito, a possibilidade de explicar todo universo que não pode comandar. Mas não significa tomar partido
acontecimento em dois planos simultâneos, e por meio de uma du- sobre como é regido esse universo, nem renunciar ao exercício de
pla causalidade, que se combina ou se sobrepõe. Presente já desde um determinado papel dentro dele. Mesmo um homem avisado
Homero, essa dupla causalidade existe em quase toda a tragédia. A pelos oráculos, como Édipo, procura lutar. E se, de outra parte, ele
condenação de Agamêmnon resulta de um veredito divino; mas a se toma presa do impasse do trágico, permanece sempre o senhor
sua concretização atravessa uma série de vontades humanas: Cli- da sua própria reação. A tragédia Ájax começa quando o destino já
havia cumprido a sua parte; e o herói, acuado pelo impasse, res-
pende, com uma morte voluntária.
6 Evoca-se aqui, inclusive, a lembrança dos crimes passados: "Pesa sobre Portanto, em vez de fatalidade, seria preciso usar uma palavra
7
os mortais a purificação do sangue familiar; à medida do crime, ela des- recentemente proposta por um filósofo - transcendência. Pois o
perta, contra os assassinatos da sua própria raça, sofrimentos que a mão
dos deuses faz criar sobre as suas casas" (1268-1270).
7 Cf. H. Gouhier, "Trágico e transcendência", Le théâtre tragique, coletâ-
nea de exposições publicada em Paris, em 1962.
152
Jacqueline de Romilly A tragédia grega 153

que confere aos desastres da tragédia grega essa dimensão particu- pois na tragédia luta-se, tenta-se fazer o que se deve. E tudo o que
lar, sem a qual não há tragédia, não é o fato de que tenham sido se faz, seja o bem ou mal, acarreta sérias conseqüências. Isso, e
previamente desejados pelos deuses, mas sim de que eles adquirem nada além disso, constitui a tônica da tragédia.
um sentido em relação aos problemas maiores relativos à condição Além disso, na medida em que o homem enfrenta obstáculos
humana. A tragédia define-se muito mais pela natureza das ques- contra os quais nada pode fazer, ele fica de certa forma engrande-
tões que levanta do que pelo tipo de respostas que oferece. E o trá- cido e inocentado. O caso dos vilões realmente não prova nada. E
gico consiste em medir a sorte do homem em geral, em função de se estivemos falando tão livremente de fatalidade, com relação à
desgraças individuais, muitas vezes excepcionais. tragédia, é em parte porque as desgraças apresentadas nas peças
Uma situação pode ser triste, horrível, dramática: nesse caso, resultam, aparentemente, muito mais da condição humana do que
ela inspira a compaixão para com aquele que nela se encontra. Diz- da perversidade das vítimas, ou agentes da trama. Seja por sofre-
se que ela é trágica quando acontece uma espécie de recuo, graças rem um desígnio determinado pelos deuses, por pagarem por um
ao qual ela aparece como uma prova dos sofrimentos que o homem pecado de seus pais, ou por responderem por sua própria impru-
pode vir a suportar, sem solução e sem recurso. dência, há sempre neles uma parte de inocência. E mesmo quando
nos são apresentados como culpados, mesmo quando se deixam
arrastar por suas paixões, isto só ocorre porque o erro é o quinhão
o trágico e o absurdo dos homens, ou porque eles estão respondendo por sofrimentos que
são, igualmente, o quinhão humano. Podemos falar de um traidor
A idéia dos sofrimentos reservados ao homem, se colocada de num melodrama; mas não podemos falar de um traidor numa tra-
forma imprecisa, corre o risco de dar do trágico uma idéia inexata e gédia. A tragédia não admite nenhuma pequenez.
prestar-se a uma confusão inversa à anterior. A confusão anterior Sob esse aspecto, poderíamos citar dois testemunhos moder-
o
considerava o evento como ~esultado de uma ordem implacável: nos que, sem concordarem no restante," soam, a este respeito, es-
esta, em vez disso, tenderia a considerá-lo como desprovido de or- tranhamente próximos.
dem e de sentido. Com efeito, na medida em que o destino não está Giraudoux escreveu em Electra:
ligado a uma vontade coerente - o que acontece, com mais fre-
qüência, depois de Ésquilo -, corre-se o risco de cair numa atitude Realizam-se com os reis as experiências que não se verificam
pessimista, tendendo-se a acreditar que nada tem sentido. Estaría- jamais entre os humildes, como o ódio puro, a cólera pura. Por
mos então bem próximos de um determinado espírito moderno que toda parte, a pureza. Isso é a tragédia, com seus incestos, seus
privilegia o absurdo. parricídios: pureza quer dizer, em suma, inocência.
Esse espírito pode produzir obras que não deixam de relacio-
nar-se com a tragédia, visto que questionam a própria condição E Anouilh, em Antígona, diz:
humana. Na realidade, elas não têm outro objetivo, nem outro
No drama, com seus perversos encamiçados, com essa inocên-
tema. Mas estão fundadas na amargura e no desânimo. Elas denun-
cia perseguida, esses vingadores, esses terras-novas, esses lam-
ciam, elas desesperam. E é isso que revela claramente a diferença
pejos de esperança, tudo isso toma a morte espantosa, como um
en!re elas e a tragédia, poiptragédia vive de ação, e impr~a he- acidente. Talvez tivesse sido possível salvar-se, o bom jovem
roismo. .
talvez pudesse ter chegado a tempo com os homens armados.
Construída em tomo de um ato a ser cumprido, a tragéd a en-
volve uma afirmação do homem. A palavra drama quer dizer ação,

8
Um fala de esperança, o outro, de falta de esperança.
154 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 155

Na tragédia, estamos tranqüilos. Antes de tudo, estamos entre ofensa que sofreu como mãe. Sua ira torna-se engrandecida, por
iguais. Enfim, somos todos inocentes.
identificar-se, de fato, com a cólera divina.
Na obra de Sófocles, a noção de heroísmo é ainda mais acen-
A tragédia grega, tanto pela sua ótica quanto pelas próprias
tuada. Por certo, o herói pode enganar-se; ele pode, depois de um
condições de suas representações, dava as costas ao realismo. Con-
momento de orgulho, ver-se ridicularizado pelos deuses, como
ferindo-lhe a dimensão mais ampla, ela desenhava destinos exem-
Ájax, Ele pode, levado pelas circunstâncias, apresentar-se muito
plares, atingindo heróis fora do comum. É isso que os autores do
severo e duro, como Hérac1es. Ele pode, como Édipo, ser excessi-
século XX tendem a exprimir, ao usarem a palavra inocência, e que vamente seguro de si. Ele pode, como Neoptólemo, hesitar por um
os antigos gregos teriam, anteriormente, definido por heroísmo.
momento entre dois deveres. Mas Sófoc1es não deixa jamais o es-
Mesmo quando um homem é abatido pela vontade de um deus,
pectador com a impressão de que essas imperfeições diminuam a
no decorrer de uma tragédia, o autor reserva-lhe uma certa maneira
grandeza dos personagens, ou que, de alguma forma, possam justi-
de ser abatido que encerre grandeza. Preserva-lhe uma parte da
ficar a desgraça que os atinge. Ájax, Hérac1es, Édipo, Neoptólemo
mais elevada honra. Etéocles é abatido dessa forma, segundo És-
são, da mesma forma como Antígona, os porta-vozes de um ideal
quilo. Mas ele se mostrara, em toda a primeira parte da peça, um
de honra e as vítimas de um destino injusto.
chefe fervoroso, enérgico, lúcido, apaixonadamente dedicado à sua
Poderíamos pensar, por outro lado, que as coisas não são mais
pátria. E se ele parte para combater o irmão, o faz somente por
assim no teatro de Eurípides, pois os homens já não agem exclusi-
obedecer a um decreto dos deuses, obediência decorrente de sua
vamente em função do seu ideal, e infligem-se o mal entre si, deli-
própria coragem. Etéocles é um herói. Ájax também recebe de SÓ-
beradamente. E isso sem mencionar que, no teatro de Eurípides,
focles um tal fim. Mas ele reage à sua desgraça como um homem
existem às vezes personagens que beiram o ridículo, tamanha a sua
que nada poderia deter: ele só pensa em sua honra e, com pleno
mediocridade. E, no entanto, no seu conjunto, poderíamos chamar
conhecimento de causa, se entrega à dl0rte, esperando que, na se-
de mesquinho o mundo de Eurípides? Não seria antes que os per-
gunda metade da peça, seus próprios inimigos reconheçam os seus
sonagens mesquinhos se destacam precisamente porque os outros
direitos e a sua valentia. Também o Héracles de Eurípides é vítima
não o são?
de uma visão divina, que o leva a matar seus filhos: arrasado pela Como não lembrar aquelas figuras ideais e como ventes que
dor, encontra, entretanto, a coragem de suportar a provação. Mor-
permeiam tantas peças, reavivando-lhes o brilho? Alceste, a Macá-
rer parece-lhe covarde: "Quero enfrentar a tentação da morte", diz.
ria de Os heráclidas, Hipólito, Andrômaca, Polixena em Hécuba,
Ájax e Héracles são verdadeiramente heróis; e existe um pouco de
Íon, o Meneceu de As fenicias, lfigênia? Todos eles morrem, ou
triunfo humano na sua ruína.
estão dispostos a morrer, pela honra; todos eles são personagens
Pode também haver uma certa grandeza na forma como os he-
imaculados.
róis agem, mesmo quando não estão completamente isentos de Às suas figuras junta-se o ideal encarnado por salvadores e
erro. Agamêmnon podia, aos olhos da justiça divina, ter merecido a
protetores, como esses reis de Atenas, soberanos constantemente a
sua sorte. Mas ele era um rei nobre e capaz, que realizou grandes serviço dos outros, intervindo com generosidade, mesmo onde apa-
feitos, que fala com ponderação, e que acredita poder orgulhar-se
rentemente não seria necessário.
de tudo o que fez; o remorso dos seus filhos, nesse sentido, irá fa- E, sobretudo, não podemos deixar de reconhecer que até os
zer-lhe justiça. A própria Clitemnestra, a esposa culpada, é uma
personagens mais engajados na tragédia, os mais envolvidos na
mulher corajosa, lúcida, superior; e sua cólera é proporcional à
ação, mesmo na ação horrível, conservam, apesar de tudo, uma
grandeza que encanta e encoraja. A própria Fedra, a própria Hécu-
ba, a própria Medéia.
A tragédia grega 157
156 Jacqueline de Romilly
I!II

Essas três mulheres podem servir de exemplo. Criminosas as


Isto explica por que, desde sempre, as desgraças representadas
na tragédia apareciam envolvidas numa determinada luz, que lhes
I~:
três, são, no entanto, levadas ao crime pela pressão da desgraça: no
resgatava o horror e a tristeza. O exemplo de Antígona é a prova
princípio, elas aparecem simplesmente abandonadas em seus ge-
mais brilhante. Assistindo à peça de Sófocles, ninguém se prende,
midos; .depois, a sua desgraça, bruscamente engrandeci da, provoca
em momento algum, ao aspecto desolador do drama: guarda-se
um sobressalto de defesa, de vingança. Hécuba foi ferida no seu
muito mais no coração a admiração pela heroína. E em todos os
amor maternal, Fedra e Medéia na sua honra de mulheres. E a sua momentos da história houve homens que se sentiram estimulados e
vontade subitamente se afirma: o ato pelo qual elas se vingam não
encorajados por ela.
significa para elas nada além da destruição daquilo que as destruía. Giraudoux, que se havia embriagado das letras gregas, parece
E isso, por vezes, a custo de toda a esperança, pois Fedra vinga-se haver reconhecido perfeitamente essa dupla face do trágico. E po-
morrendo, e Medéia executando um crime que, ela bem o sabe, vai
demos ilustrá-lo citando as belas palavras que ele coloca no final
levá-Ia ao desespero. A rainha de Tróia, a filha de Minos, a neta do
da sua Electra:
Sol nada trazem em si de mesquinho. Pelo contrário, seus próprios
crimes tomam-se uma forma de heroísmo; e qualquer coisa, em Como se chama aquilo, quando o dia desponta, como hoje, e
Medéia, proclama a força terrível de que pode revestir-se a vontade que tudo está em desordem, tudo exaurido, e no entanto o ar se
humana, quando se trata de seres de certa têmpera. respira; e quando se perdeu tudo, e a cidade está em chamas, e
Sem dúvida, é nesse sentido que se explica uma outra observa- os inocentes se matam entre si, mas os culpados agonizam, em
ção de Aristóteles sobre os personagens trágicos, observação que, à algum canto do dia que se levanta? - Pergunte ao mendigo, ele
primeira vista, poderia parecer ingênua e desconcertante. Trata-se o sabe. - Isso tem um belo nome, dona Narsés. Isso se chama
da passagem em que diz que o primeiro ponto a ser analisado, no aurora.
tocante aos personagens, é que eles 'idevem ser bons" (Poética,
1454 a). Não se poderia exprimir com maior modéstia a irradiação
do heroísmo, pois esta é a questão fundamental. Com efeito, o he-
roísmo suscita a simpatia, portadora da compaixão e do terror; ele
transforma o espetáculo trágico, que infunde a compaixão e o ter-
ror, em algo tônico, estimulante, enobrecedor.
Esta fé no homem, que ilumina, a partir do interior, todas as
tragédias, mesmo as mais sombrias, corresponde perfeitamente ao
espírito grego do século V a.C. Citamos aqui, a respeito de Sófo-
eles, o admirável canto de Antígona, que fala das belezas da civili-
zação criada pelo homem: "Existem tantas maravilhas neste
mundo, nenhuma delas porém maior do que o homem ..." Mas po-
demos acrescentar que essa elegia ao progresso e à civilização hu-
mana, que normalmente nada teria a ver com a tragédia, se
encontra na obra de todos os três grandes trágicos gregos. Ésquilo
dedicou-lhe uma cena do Prometeu, e Eurípides uma passagem
bastante extensa de As suplicantes. O século V tinha fé no homem.
li!

Bibliografia

A bibliografia relativa à tragédia grega é praticamente infinita,


e vem enriquecendo-se continuamente. Devemos, portanto, con-
tentar-nos' em aludir aqui aos estudos mais importantes ou mais
atualizados, procedendo a uma escolha que exige boa dose de ar-
bitrariedade. Além disso, para simplificar, não citamos aqui ne-
nhum artigo isolado, por mais importante que seja. Para maiores
detalhes, faremos referência à análise bibliográfica de A. Lesky,
Die Tragische Dichtung der Hellenen, Gõttingen, 1956, completa-
mentada pelos artigos do mesmo autor, nas Anzeiger für die Alter-
tumswissenschaft; com relação a Sófocles, veja-se a análise dos
trabalhos publicados de 1939 a 1959, em Lustrum (análise feita por
H. Friis Johansen, publicada em 1963).

Obras gerais

Além das histórias da literatura grega, consultaremos, princi-


palmente, duas obras de análise, dedicadas à tragédia grega:

LESKY, A. Die griechische Tragõdie, Stuttgart, 1938, traduzido


para o inglês: Greek Tragedy, Londres/Nova York, 1965, di-
versas edições.
POHLENZ, M. Die griechische Tragõdie, 2ª ed., Gôttingen, 1954, 2
vols.
160 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 161

Acrescentamos as seguintes obras, relativas às peças ou ao gê- Em inglês


nero trágico:
FRITZ, K. Von. Antike und moderne Tragõdie, Berlim, 1962 (im- MURRAY,G. Aeschylus, the Creator ofTragedy, Oxford, 1940.
portante coletânea de artigos). THOMSON,G. Aeschylus and Athens. A Study in the social Origins
DEL GRANDE,C. Tragôidia, Essenza e Genesi della Tragedia, Ná- ofGreek Tragedy, Oxford, 1941.
poles, 1952. TAPLIN,O. The Stagecraft of Aeschylus, Oxford, 1977.
KRANZ W. Stasimon. Untersuchungen zu Form und Gehalt der
g riechischen Tragôdie, Berlim, 1933.
MASQUERAY, P. Théorie des formes Iyriques de Ia tragédie gre- Emaiemão
cque, Paris, 1895.
PICKARD-CAMBRIDGE,A. W. Dithyramb, Tragedy and Comedy, SNELL, B. Aischylos und das Handeln im Drama, Philologus, su-
Oxford, 1927. plementband, XX, I, Leipzig, 1928.
PICKARD-CAMBRIDGE,A. W. The dramatic festivais of Athens, REINHARDT, K. Aischylos ais Regisseur und Theologe, Berna,
Oxford, 1953. 1949, traduzido em Eschyle, Euripide, Paris, Ed. de Minuit,
1971.
(Além disso, encontraremos um breve apanhado sobre as re-
presentações trágicas em: O. Navarre, Le théâtre grec, Paris, 1925. • Acrescentaremos, quanto ao estilo: J. Dumortier, Les images
Ele será completado por estudos mais recentes, como H. C. Baldry, dans la poésie d'Eschyle, Paris, Les Belles-Lettres, 1935; e F. R.
Le théâtre tragique des Grecs, trad. do inglês, Paris, Maspero, Earp, The style of Aeschylus, Cambridge Univ. Press, 1948.
1975, e O. Taplin, Greek Tragçds in Action, Londres, 1978.)

ROMILLY,J. de. Le temps dans Ia tragédie grecque, Paris, Vrin, Obras relativas a Sófocles
1971.
VERNANT, J.-P., VIDAL-NAQUET,P. Mythe et tragédie en Grêce
ancienne, Paris, Maspero, 1971. Em francês
SAID, S. La faute tragique, Paris, Maspero, 1978.
GERMAIN,G. Sophocle, Paris, Le Seuil, 1969 (breve obra de apre-
sentação).
Obras relativas a Ésquilo RONNET,G. Sophocle, poête tragique (ed. E. de Boccard, 1969).
REINHARDT,K. Sophocle, trad. do texto alemão de 1933, Paris, Ed.
Em francês de Minuit, 1971; boa tradução inglesa, Oxford, 1979.

CROISET, M. Eschyle, étude sur l'invention drama tique dans son


théâtre, Paris, Belles-Lettres, 1928. Em inglês
MÉAUTIS,G. Eschyle et Ia trilogie, Paris, Grasset, 1936.
ROMILLY,J. de. La crainte et l'angoisse dans le théâtre d'Eschyle, BOWRA,C. M. Sophoclean Tragedy, Oxford, 1944 (2ª ed., 1947).
Paris, Les Belles-Lettres, 1958. KIRKWOOD,G. M. A Study of Sophoclean Drama, Cornell Univ.
Press, 1958 (obra muito precisa e útil).
WEBSTER,T. B. L. An introduction to Sophocles, Oxford, 1936.
III
162 Jacqueline de Romilly A tragédia grega 163

KNox, B. M. W. The heroic tempero Studies in Sophoclean Trage- (No tomo I dos mesmos Entretiens, figura uma excelente ex-
dy, Sather Classical Lectures, XXV, 1964 (muito sugestivo). posição de F. Chapouthier sobre "Eurípides e o acolhimento do
WINNINGTON-INGRAM,R. P. Sophocles, An Interpretation, Cam- divino".)
bridge, 1980.
Sobre as relações com a política da época, acrescentaremos: E.
Delebecque, Euripide et Ia guerre du Péloponnêse, Paris, 1951; e
Obras relativas a Eurípides Goossens, Euripide et Athênes, Acad. Royale de Belgique, LV, 4,
1962; finalmente, para o conhecimento das tragédias perdidas: T.
Em francês B. L. Webster, The Tragedies of Euripides, Londres, 1967.
A essas obras devem ser acrescentadas, para um estudo sério
DECHARME,P. Euripide et l'esprit de son théâtre, Paris, 1893. das peças, consultas às edições comentadas do texto. Em particular,
RIVIER,A. Essai sur le tragique d'Euripide, Lausanne, 1944. não podem ser omitidos:
DUCHEMIN,J. L'Agôn dans Ia Tragédie grecque, Paris, 1945.
ROMILLY,J. de. L'évolution du pathétique, d'Eschyle à Euripide,
Quanto a Ésquilo:
Paris, Presses Universitaires de France, 1962, reed. Les Belles-
Lettres, 1980. o comentário sobre o Agamêmnon, de Ed. Fraenkel, editado
JOUAN, F. Euripide et les légendes des chants cypriens, Paris, em Oxford, 1950, 3 vols.
1966. O comentário mais acessível à mesma peça, por Denniston e
Page, Oxford University Press, 1957.
~\
Em alemão
Quanto a SófocIes:
STROHM, F. Eu ripides, Interpretationen zur dramatischen Form
(Zetemata, 15), Munique, 1957. As edições comentadas de Jebb (l vol. por peça, Cambridge
University Press, entre 1890 e 1900).
Os comentários de J. C. Kamerbeek (l vol. por peça, o primei-
Em italiano ro data de 1953; o último está em preparação, em Brill, Leiden).
A edição comentada de Electra, por Kaibel, Berlim, 1911.
BENEDETTO,V. di. Euripide, Teatro e Società, Turim, 1971. Por outro lado, a edição comentada de Sófocles, de Toumier
(revistada por Desrousseaux e publicada por Hachette, 1886), é
menos completa, mas sempre útil.
Em línguas diversas:

EURIPIDE,coletânea de exposições e discussões, t. VI dos En- Quanto a Eurípides


tretiens sur l'Antiquité classique, Fondation Hardt, Vandroeuvres- Sete tragédias de Eurípides (Hipólito, Medéia, Hécuba, Ifigê-
Genebra, 1960 (exposições de MM. Diller, Kamerbeek, Lesky, V. nia em Áulida, Ifigênia em Tâurida, Electra, Orestes), comentadas
Martin, Rivier, Winnington-Ingram, Zuntz).
por H. Weil, Paris, Hachette, 1868.
DALMEYDA,G. As bacantes, Paris, Hachette, 1908; de J. Roux,
Paris, 1970; de M. Lacroix, Paris, 1976.
164 Jacqueline de Romilly

WILAMOVITZ-MOELLENDORF, U. VON. Héraclês, Berlim, 1895, 2ª


ed., 1909.
BENEDEITO,V. DI. Orestes, Florença, 1967.
KANNICHT,R. Heidelberg. Helena, 1969 .
. Peças diversas, editadas com comentários, Oxford Univ. Press,
principalmente:
DoDDS, E. R. As bacantes, (1944, 2ª ed., 1960) (edição notável);
DALE, A. M. Alceste, (1954);
DENNISTON,J. Electra, (1939);
PAGE, D. L. Medéia, (1938);
DALE, A. M. Helena, (1967).
Anexos
Além disso, acrescentamos Medéia, de R. Flaceliêre, na col.
Erasme, Presses Universitaires de France, 1970.

índice dos fragmentos Anexo I

Os fragmentos dos trágicos foram reunidos por Nauck, nas


edições Teubner (edição completada por Snell). CRONOLOGIADASDIVERSAS
Acrescentaremos duas edições particulares: TRAGÉDIASCONSERVADAS
I \
MEITE, H. J. Die Fragmente der Trag. Des Aischylos, Berlim, 1º Ésquilo (525-455)
1959.
PEARSON,A. C. Sophocles' Fragments, Cambridge, 1917. História I Tragédias

Quanto às concordâncias e ao vocabulário, estamos perfeita- 490. Vitória de Maratona


mente equipados com: 480. Vitória de Salamina
472. Os persas
ITALIE,G. IndexAeschyleus, Leiden, Brill, 1955.
467. Os sete contra Tebas
ELLENDT,F. Lexicon Sophocleum, Hildeshein, Olms, 1958.
As suplicantes (depois de 468,
ALLEN, J. T., ITALIE, G. A concordance to Euripides, Berkeley e
[provavelmente em 463)
Londres, 1954.
46l. Início da influência de
NAUCK, A. Tragicae dictiones index spectans ad tragicorum frag-
Péric1es
menta (reimpressão Hildesheim, 1962).
Prometeu acorrentado (data
N. B. - As citações baseiam-se nas traduções da coleção das Uni- desconhecida, autenticidade
versidades da França, salvo indicações em contrário. con tes tada).
458. A Orestia (Agamêmnon,
As coéforas, As eumênides)
166 jacqueline de Romilly A tragédia grega 167

22 Sófoeles (495-405) Héraeles furioso (entre 420 e


415)
História I Tragédias Íon (entre 418 e 414)
415. As troianas
447. Início das construções dalÁjax (data desconhecida)
Acrópole 415. Início da expedição à Si-IElectra,413
As traquinias (data desconhe- cília
cida) Ifigênia em Táurida (entre 415
442. Antígona e 412)
431. Início da Guerra do Pelo- 412. Helena
poneso 411. Queda provisória da de- I

Édipo rei (talvez em tomo de mocracia


420) 410. As fenícias (data prová-
Electra vel)
409. Fi/octetes 408. Orestes
I

404. Fim da Guerra do Pelopo- Ifigênia em Áulida: após a


neso: ruína de Atenas morte de Eurípides
401. Édipo em Colona (peça As bacantes: após a morte de
representada pelas mãos de seu Eurípides
neto). 404. Fim da Guerra do Pelopo-
neso: ruína de Atenas.
32 Eurípides (de aproximadamente 480 - aos anos 406-405)
Nota: as vidas de Sófoc1es e de Eurípides sobrepõem-se, o mesmo
História Tragédias ocorrendo também com a sua produção literária. Os eventos histó-
ricos são, portanto, os mesmos do quadro anterior.
438. Alceste
431. Início da Guerra do Pelo-1431. Medéia
poneso
Os heráelidas (entre 430 e
427)
429. Morte de Péricles
428. Hipólito
Andrômaca (provavelmente
em tomo de 426-424)
Hécuba (em tomo de 424)
As suplicantes (entre 424 e
421)
A tragédia grega 169
168 Jacqueline de Romilly

Anexo 111
Anexo 11

PEQUENO LÉXICO DAS PALAVRAS


OUTROS AUTORES TRÁGICOS
RELATIVAS À TRAGÉDIA GREGA

Agatão, nascido por volta de 450, aparece no Banquete, de Platão,


Agon: cena de debate, inspirada nos hábitos retóricas do tempo,
e nas Tesmojórias, de Aristófanes; parece ter sido um autor em
comportando geralmente dois discursos opostos, seguidos de
voga nos últimos anos do século V; em particular, escreveu
um debate verso a verso.
uma tragédia intitulada Anteu. Antifonte, o Trágico, imitador
Commos: canto recitado, do qual participavam os personagens e o
de Eurípides; escreveu, entre outras peças, Meleagro.
Ariston, filho de SófocJes. coro.
Corifeu: dirigente do coro.
Astídamos, autor do século IV, descendente de Ésquilo, quinze
vezes coroado. Coturno: sapatos de salto alto, calçados pelos atores.
Didascália: indicação, deixada pelos antigos, das circunstâncias
Carcino, autor do século IV.
Cheremon, autor do século IV. nas quais se realizava a representação de cada peça.
Ditirambo: forma lírica antiga da qual se originou, segundo Aris-
Choirilos, debuta em 521, autor de numerosas tragédias, entre elas
Álope. tóteles, a tragédia.
Ekklyklema: plataforma rolante que permitia ver um quadro que,
Crítias, tio de Platão, fez parte dos trinta tiranos em 404. Foi questiona-
supostamente, se desenvolvia no interior do palácio.
do se os fragmentos de um Piritoo eram dele ou de Eurípides.
Episódio: parte da tragédia limitada por dois cantos do coro.
Eufórion, filho de Ésquilo.
Mechané: aparelho que permitia o aparecimento de um persona-
Evaion, filho de Ésquilo. I \
gem como se pairasse acima do solo.
Frínico, autor de grande renome, anterior a Ésquilo; levou ao pal-
Monódia: canto lírico atribuído a um ator, solo.
co, em particular, A tomada de Mileto, em torno de 494, e As
Orquestra: plataforma circular ocupando o centro do teatro, e re-
fenicias, em 476.
servada às evoluções do coro.
Íon de Quios, nascido na época das Guerras Médicas, autor de uma
Párodo: diz-se 1) das duas entradas laterais por onde, primeiro o
dezena de trilogias.
público e depois o coro, entravam no teatro; 2) da parte da tra-
Iophon, filho de SófocJes.
gédia reservada à entrada do coro.
Meletos, acusador de Sócrates, autor de uma Edipodia.
Prólogo: monólogo, ou cena, ou grupo de cenas que precediam o
Néofron, de Sicione, autor de uma Medéia, comparada à de Eurípi-
des, datas desconhecidas. párodo.
Rhésis: longo discurso de um personagem, desenvolvendo uma
Nicômaco, contemporâneo de Eurípides, pouco conhecido.
Philocles, o Velho, sobrinho de Ésquilo. tese.
Stasimon: parte lírica, dançada e cantada pelo coro, entre dois epi-
Philocles, o Moço, neto do anterior.
sódios.
Pratinas de Phlionte, fim do século VJ- começo do século V, pare- Stichomitia: debate entre dois personagens, cada um pronunciando
ce ter-se distinguido no drama satírico.
um único verso, em réplica cerrada.
Sófocles, o Moço, neto de Sófocles.
Theologeion: espécie de balcão, por sobre a cena, onde aparecem
Teodecto de Phaselis, autor do século IV, vencedor por oito vezes.
Téspio, primeiro autor trágico, século VI. os deuses.
Thymeleu: altar que ocupava o meio da orquestra.

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