Antígona (Trad. Maria Helena Da Rocha Pereira)
Antígona (Trad. Maria Helena Da Rocha Pereira)
Antígona (Trad. Maria Helena Da Rocha Pereira)
INTRODUÇÃO
A data
Sendo uma das mais antigas, se não a mais antiga1, das obras conservadas de
Sófocles, Antígona situa-se, no entanto, a meio da carreira literária do tragedió-
grafo. Efectivamente, foi em 468 a.C. que ele ganhou a primeira vitória, compôs
cento e vinte dramas até ao final da sua longa vida, e, de acordo com o segundo
dos argumentos antigos, foi esta a sua trigésima segunda peça. O primeiro desses
argumentos, o de Aristófanes de Bizâncio, corrobora tal ordenação e acrescenta
que, segundo se dizia, o autor fora distinguido com o cargo de estratego em Samos,
na sequência da fama então alcançada. Com este dado concorda uma biografia
antiga de Sófocles que chegou até nós.
Esta referência aponta, por conseguinte, para uma data anterior, mas não muito,
a 440 a.C., ano do envio da expedição a Samos. Quer ela seja um facto histórico,
quer não2, prova pelo menos que os Antigos tinham a noção de que a estreia da
peça e a strategia do poeta de Colono não estavam muito distanciadas no tempo.
*
Sófocles, Antígona. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 (10.ª ed. ).
1
Das sete tragédias conservadas de Sófocles, apenas duas possuem data certa: Filoctetes (409
a.C.) e Édipo em Colono, representado postumamente em 401 a.C. De um modo geral, a discussão da
maior antiguidade centra-se em Antígona, Ájax e As Traquínias. Entre a primeira e a segunda há um
pormenor técnico que tem sido considerado por muitos indício de composição mais tardia – o uso
de antilabê, ou seja, divisão de um verso entre dois actores. Por outro lado, a estrutura do párodo
de Ájax está mais próxima do modelo de Ésquilo. Sobre a terceira em especial, vide E. R. Schwinge,
Die Stellung der Trachienerinnen im Werk des Sophokles, Goettingen, 1962.
2
K. Reinhardt, Sophokles, p. 251, considera-a uma anedota (embora com fundo de verdade), des-
tinada a realçar o apreço dos Atenienses pela arte dramática. Mais recentemente, R. P. Winnington-
-Ingram, Sophocles. An Interpretation, p. 341, escreve: “Diz-se que Antígona foi responsável pela eleição de
Sófocles para general em 440, o que, verdadeiro ou falso, não teria sido dito, a menos que se soubesse
que a peça tinha sido apresentada pouco antes daquela data.”
76 TRADUÇÕES DO GREGO
A hipótese de 441 a.C., que naturalmente ocorre, é a que tem mais defensores3.
Assenta, no entanto, na suposição de que Antígona não tenha sido parte de uma
das dezoito tetralogias de Sófocles que receberam o primeiro prémio, porque o
vencedor daquele não foi Eurípides4. O verbo empregado nos argumentos antigos
acima referidos (eudokimesas) não é explícito, pois apenas significa “alcançar fama”,
mas parece sugerir a distinção máxima. Essa é a razão por que outros se inclinam
para 442 a.C. como o ano mais provável5.
O mito
A história da casa real de Tebas, da família dos Labdácidas, é uma das mais
conhecidas de toda a mitologia grega. Esboçada nos Poemas Homéricos (a expe-
dição de Polinices e os jogos fúnebres em honra de Édipo, na Ilíada; o parricídio
e incesto do herói na Odisseia), teria a sua expressão mais completa em três dos
poemas do Ciclo Épico, a Edipodia, a Tebaida e os Epígonos, de que só possuímos
resumos e curtos fragmentos6.
Já aí figuravam os dados essenciais do mito: proibição divina de descendência
a Laio; nascimento e exposição do filho deste, Édipo; entrega da criança, por
um pastor, ao rei de Corinto; viagem de Édipo, já adulto, a Delfos; encontro com
um desconhecido, a quem mata; decifração do enigma da esfinge e consequente
subida, por casamento com Jocasta, ao trono de Tebas; nascimento de quatro filhos
(Etéocles, Polinices, Antígona e Ismena); descoberta do parricídio e incesto invo-
luntários; suicídio de Jocasta e cegueira de Édipo; maldição deste sobre os filhos
varões, que perecerão às mãos um do outro, no cerco de Tebas, levado a efeito
por Polinices com mais seis aliados; vingança posterior, ganha pelos filhos destes.
A lenda era conhecida dos líricos, numa extensão que ainda não podemos
determinar. A descoberta recente de um fragmento, provavelmente de Estesícoro,
3
E. g. G. M. Kirkwood, A Study of Sophoclean Drama, p. 53; G. Mueller, Sophokles. Antigone, p. 25.
4
O facto foi notado por Wilamowitz, Aristoteles und Athen, Berlin, 1893, II, p. 298. Acresce que em
441 a eleição dos estrategos se fez antes da realização das Grandes Dionísias (cf. Ehrenberg, Sophokles
und Pericles, Muenchen, 1956, p. 167).
5
Assim pensam E. R. Schwinge, op. cit., pp. 71-72; A. Lesky, Geschichte der griechischen Literatur.
Bern, 31971, p. 316; M. Pohlenz, Die griechische Tragoedie, I, p. 184; Kamerbeek, The Plays of Sophocles.
Part III. The Antigone, p. 36. Mais recentemente, R. G. Lewis, “An Alternative Date for Sophocles’ Anti-
gone”, propõe 438 a.C., entre outras razões, por se adaptarem melhor “a tensão entre lógica política
violenta e destemperada e os ditames dos princípios morais e religiosos” (p. 45) ao estado de espírito
em Atenas, após a Guerra de Samos.
6
Pode ver-se um elenco muito completo dos dados em Manuel dos Santos Alves, Eurípides. As Fenícias,
Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1975, pp. 29-34.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 77
com uma fala de Jocasta a tentar apaziguar os filhos7, deve pôr-nos de sobreaviso
contra as lacunas nos nossos conhecimentos.
O certo é que Ésquilo lhe consagrou uma tetralogia, de que se conserva a terceira
tragédia, Os Sete contra Tebas, representada em 467 a.C. Se o final desta peça, com
a proibição de sepultar Polinices e a determinação de Antígona de a infringir, for
autêntico, será essa a mais antiga versão que temos deste prolongamento do mito.
Há, porém, fortes razões para supor que se trata, pelo contrário, de uma adição
inspirada na obra de Sófocles8. Entre essas razões figura uma, de ordem estrutu-
ral, que Mueller sintetizou nestes termos: não é no êxodo que se levantam novas
questões. E, por isso, como escreve o mesmo autor, “existe uma probabilidade não
diminuta de que ele tenha inventado a história livremente. É-se muito inclinado
a acreditar nisso, porque esta desobediência de um ser humano de grande força
de ânimo à ordem do Estado condiz tão extraordinariamente bem com a teologia
e a arte dramática de Sófocles”9.
De resto, a questão da originalidade de um tema, que para os modernos tem
tanta importância, era, para os antigos, secundária. O grande mérito residia na
forma de o tratar. A esse ponto dedicaremos a parte que se segue.
Análise da peça
7
Trata-se do já célebre Papiro de Lille, cujo texto e tradução francesa pode ver-se em C. Meillier,
“La succession d’Oedipe d’après le P. Lille 76a + 73, poème lyrique probablement de Stésichore”, Revue
des Études Grecques 91 (1978) 12-43.
8
Sobre o assunto, veja-se, em especial, E. Fraenkel, “Zum Schluss der Sieben gegen Theben”,
Museum Helveticum 21 (1964) 58-64, e ainda a bibliografia indicada por Kamerbeek, op. cit., p. 3, nota 2.
9
Op. cit., p. 21. Sobre outros tratamentos do mito, incluindo a perdida Antígona de Eurípides,
idem, ibidem, pp. 21-24.
10
A tradução deste passo pode ler-se na nossa antologia Hélade, Porto, 92005, p. 445.
78 TRADUÇÕES DO GREGO
A cena fica vazia, e entretanto amanhece. Entra o Coro, constituído por quinze
anciãos de Tebas, que entoa o párodo, jubiloso pela libertação de Tebas, que estivera
ameaçada por tão graves perigos.
No primeiro episódio, Creonte expõe aos representantes da cidade, ou seja, ao
Coro, o seu programa de governo, que compreende uma parte de teorização política
e outra de aplicação prática: o édito relativo aos dois irmãos, cuja execução, aliás,
já está em marcha. Momentos depois, chega um dos guardas postados de vigilância,
que refere, atemorizado, como alguém desobedeceu às ordens reais, cobrindo com
uma camada de pó o cadáver de Polinices. Estupefacto, o Coro interroga-se, se tal
não teria sido obra dos deuses, o que contribui para a maior irritação de Creonte,
que suspeita de um acto de suborno dos seus inimigos e despede o Guarda com
terríveis ameaças, se não lhe trouxer o culpado.
O Coro entoa em seguida o primeiro estásimo, uma das odes mais célebres de
todos os tempos, em que se exalta a capacidade do homem, um ser susceptível de
pôr a Natureza ao seu serviço, de organizar a vida em sociedade – mas que precisa
de saber observar simultaneamente as leis divinas e humanas.
No segundo episódio, o Guarda reaparece trazendo consigo a pessoa surpreendida
em flagrante delito de prestar os ritos fúnebres a Polinices – a inerme e indefesa
Antígona. Feita a narrativa dos factos, Creonte manda-o embora em liberdade e ini-
cia o interrogatório da culpada. É nessa cena, mais que todas famosa, que Antígona
defende o seu procedimento, colocando a obediência às leis eternas e imutáveis dos
deuses acima das determinações humanas. Mas Creonte mandara também chamar
Ismena, que surge, aflita, a pretender chamar a si também a culpa, no que Antígona
não consente. O rei condena as duas irmãs a pena capital.
O Coro reflecte, no segundo estásimo, no acumular de maldições sobre a casa
dos Labdácidas.
O diálogo de Creonte com seu filho Hémon, que vem, em nome da razão, defender
a causa de Antígona, sua noiva, ocupa o terceiro episódio. Sem alcançar qualquer
êxito, o jovem príncipe parte, desesperado. Por sugestão do Coro, o tirano decide
ilibar do castigo Ismena; quanta a Antígona, encerrá-la-á numa caverna escavada
na rocha, só com o alimento indispensável, a fim de evitar qualquer contaminação.
O Coro celebra então, no terceiro estásimo, a força invencível de Eros.
Durante o quarto episódio, ouvem-se os lamentos de Antígona, que se despede
da sua cidade e da vida, enquanto a conduzem à prisão tumular. O Coro, reconhe-
cendo embora a sua glória, aponta para as faltas dos antepassados e para a obstina-
ção da heroína, que parte “sem lágrimas, sem amigos, sem himeneu” (vv. 876-877).
À comparação com emparedados ilustres da mitologia – Dânae, Licurgo da
Trácia e Cleópatra, filha do Vento Bóreas – é consagrado o quarto estásimo.
No quinto episódio, o adivinho Tirésias vem, em nome dos deuses, advertir Creonte
das calamidades que o esperam, se perseverar naquela atitude intransigente. Depois da
sua partida, o Coro facilmente convence o rei a libertar Antígona e a sepultar Polinices.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 79
As figuras
11
A ponto de ter sido possível a um grande especialista da tragédia grega como Kurt von Fritz
(“Haimons Liebe zu Antigone” in: Antike und Moderne Tragoedie, pp. 227-240) negar a existência do
amor de Hémon – tese esta que foi contraditada por Linforth, Gellie, Lesky e sobretudo por Hartmut
Erbse, em artigo com o mesmo título do de Kurt von Fritz. Também Winnington-Ingram, Sophocles. An
Interpretation, pp. 92-96, viu bem a questão, sobretudo neste trecho da p. 94: “Hémon está apaixona-
do, mas não se pretende que o vejamos como um herói romântico no estilo moderno. Por muito que
simpatizemos com ele, a sua paixão não é exibida como um traço simpático ou admirável, mas como
um facto trágico.” Aliás, a reacção final de Hémon, quando o pai ameaça fazer expirar Antígona na
sua presença (vv. 762-765), a afirmação, no v. 751, de que ela “ao morrer, causará a perda de alguém”,
a ode ao poder de Eros, no terceiro estásimo, e, finalmente, o suicídio, abraçado ao cadáver da noiva,
são factos que apontam todos no mesmo sentido.
80 TRADUÇÕES DO GREGO
12
Pode ver-se uma enumeração das principais em G. Ronnet, Sophocle, poète tragique, p. 86, nota 1.
Cf. também H. Patzer, Hauptperson und tragischer Held in Sophokles’ Antigone, p. 87, que chama a Creonte
“a contrafacção de um herói trágico”.
13
“O leque de motivos que pode compreender é limitado, e inc1ui ambição do poder e cobiça do
dinheiro” – escreve Winnington-Ingram, Sophocles. An Interpretation, p. 127.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 81
É a partir deste ponto que, como observou Hermann Rohdich14, Creonte cai no
isolamento como chefe da cidade, pois fica politicamente desqualificado e privado
da sua representatividade social.
O isolamento é típico do herói sofocliano, mas outros factos impedem que se
dê a Creonte esse título. A sequência dos acontecimentos mostra que “lhe escapa
grandeza, mesmo grandeza no erro e na queda”, pelo que não devemos considerá-lo
uma figura trágica no sentido que lhe dá aquele dramaturgo. A observação, que
é de Mueller15, está de acordo com o comportamento de Creonte desde que ouve
as ameaças de Tirésias. A partir daí é ele que, aterrado, pergunta ao Coro o que
deve fazer (vv. 1095-1110), e a sua presença no êxodo é uma contínua lamentação,
de que os anciãos de Tebas não compartilham. Pelo contrário, é a ele que aplicam
os versos de censura com que encerra a peça (1349-1353).
Este modo de entender a figura de Creonte abre caminho à resposta a uma das
mais discutidas questões que suscita a interpretação da tragédia, a saber: quem
é o protagonista?
Se aceitarmos a teoria da estrutura em díptico, posta em voga por T. B. L. Webster16,
e aplicável aos três dramas geralmente tidos por mais antigos, a questão não chega
a pôr-se. O peso incide tanto sobre a figura de Antígona como sobre a de Creonte.
É neste sentido que se exprime Charles Segal, entre os mais recentes exegetas17 .
Porém não será essa a maneira mais adequada de entender a composição da
tragédia. Devemos antes procurar saber se o herói é necessariamente aquele que
está em cena durante quase todo o drama, aquele sobre quem se abatem todas
as calamidades até aos últimos versos, aquele que sofre uma mudança radical
na sua acanhada visão, até cair num desespero total, ou seja, Creonte. É assim
que entendem grandes helenistas, e.g. Kitto, que declara peremptoriamente18: “A
peça central é inequivocamente Creonte. Podemos preferir fazer dela Antígona,
mas, se o fizermos, o plano de Sófocles torna-se em certa medida ininteligível;
14
Antigone. Beitrag zu einer Theorie des sophokleischen Helden. pp. 131 e 135.
15
Sophokles. Antigone, p. 17. Cf. também B. M. W. Knox, Word and Action. Essays on the Ancient
Theater, p. 166, que remete para o artigo fundamental de Hans Diller, “Ueber das Selbstbewusstsein
der sophokleischen Personen”, Wiener Studien 69 (1956) 70-85 = Kleine Schriftell zur antiken Literatur,
Muenchen, 1971, pp. 272-285. Diller escreve mesmo que ele é “a única figura sofocliana que acaba
por ceder num ponto fundamental” (p. 283).
16
An Introduction to Sophocles, pp. 102-103. Seguiram-no, e.g., A. J. A. Waldock, Sophocles the Dramatist,
p. 50, e G. M. Kirkwood, A Study of Sophoclean Drama, pp. 42-54. Outros rejeitam o termo, como H. D. F.
Kitto, Greek Tragedy, p. 118.
17
“A Antígona é certamente uma peça de antíteses e conflitos, e esta fase do conflito é incarnada na
presença no palco de dois protagonistas, cada um diametralmente oposto ao outro” (“Sophocles’ Praise
of Man and the Conflicts of the Antigone” in: Sophocles. A Collection of Critical Essays, p. 62). “A peça é ver-
dadeiramente uma ‘terrível simetria’” (Idem, Tragedy and Civilization. An Interpretation of Sophocles, p. 189).
18
Form and Meaning in Drama, p. 176.
82 TRADUÇÕES DO GREGO
A dedicação sem limites, ainda que pelo preço da vida, ficou bem vincada, e
consumar-se-á no final da peça, elevando Antígona a uma estatura moral que a
singulariza entre as figuras trágicas de toda a história do teatro.
Duas dificuldades têm sido levantadas, no entanto, a este perfil linear, cristalino,
que acabámos de esboçar. Uma é o comportamento da heroína na segunda parte
do segundo episódio, em que alguns vêem sobranceria e desdém ante o desejo de
aproximação de Ismena 20, e outros, pelo contrário, a tentativa altruísta de impedir
que a irmã seja arrastada para a mesma sorte. Julgamos que não há lugar para falar
de desdém (“Se escarneço de ti, é com dor que o faço” – v. 551), mas de uma reafir-
mação da sua atitude irredutível, ditada por uma lealdade inquebrantável (“Está
tranquila: tu tens vida, ao passo que a minha acabou há muito, para servir os que
morreram” – vv. 559-560). Esta noção encontra eco nas palavras que proferirá de
novo diante de Creonte, no final do quarto episódio (vv. 891-903).
19
Antigone, pp. 202-203. A estatística das presenças em cena das duas figuras encontra-se no bem
fundamentado estudo de H. Patzer, Hauptperson und tragischer Held in Sophokles’ Antigone, o qual conclui
que há que distinguir entre figura principal “cénica” e “temática” (p. 104), sendo esta última sem dúvi-
da Antígona. O mesmo livro enumera, na bibliografia, os partidários das diversas teses em confronto.
Na sua edição comentada do drama, Mark Griffith considera esta discussão um pseudo problema e observa:
“sem um, não poderia haver tragédia para o outro” (p. 36).
20
Embora se possa aceitar, como von Fritz, “Haimons Liebe zu Antigone”, p. 230, que Ismena só
intervém pela vida de Antígona, não pela razão que ela tenha.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 83
21
E.g. por von Fritz, “Haimons Liebe zu Antigone”, p. 238; Mueller, Sophokles. Antigone. p. 183.
22
Sophocles. An Interpretation, p. 139.
23
Antigone, pp. 145-186. As citações são, respectivamente, das pp. 161,160 e 227.
24
Este isolamento tem sido posto em relevo por diversos helenistas, e.g., von Fritz, “Haimons Liebe
zu Antigone”, pp. 235, 239; G. Mueller, Sophokles. Antigone, p. 187; Winnington-Ingram, Sophocles. An Inter-
pretation, p. 138; H. Rohdich, Antigone, p. 104; David Seale, Vision and Stagecraft in Sophocles, pp. 99 e 100.
84 TRADUÇÕES DO GREGO
O Coro
25
“Sophokles’ Aias und Antigone” in: Neue Wege zur Antike (Leipzig 1929) apud Mueller, Sophokles.
Antigone, pp. 183-184, nota 1, que observa que o facto de aquele artigo não ter figurado depois na
colectânea do autor, Hellas und Hesperien, Zuerich, 1960, será certamente significativo do abandono
das suas posições, após a crítica de Reinhardt, Sophokles, pp. 265-266.
26
Sophokles. Antigone, p. 183 e nota 1.
Antígona não sabe da reacção dos seus concidadãos nem da diligência de Hémon, como notaram
27
Kirkwood, A Study of Sophoclean Drama, p. 164, e Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies, pp.119-120.
28
Assim o observou já Mueller, Sophokles. Antigone, p. 13. A escolha do nome do protagonista
para designar a tragédia tem uma conhecida excepção em Sófocles em As Traquínias, cujo título
deriva da composição do Coro. Para o facto encontrou Bowra uma resposta plausível: a de o autor
querer assim indicar que nem Héracles nem Dejanira prevaleciam um sobre o outro em importância
(Sophoclean Tragedy, p. 116).
SÓFOCLES, ANTÍGONA 85
actores, como parte do conjunto, que toma parte na acção, não como em Eurípides,
mas como em Sófocles” – afirmaria Aristóteles na Poética 1456a. E a Antígona comprova
esta asserção. Pareceu-nos, contudo, preferível, tratá-lo em separado, em face das
dificuldades específicas que a interpretação do seu papel comporta.
Diversamente do que sucede noutras tragédias, o Coro não sente em sintonia com
a protagonista. A sublinhar esse distanciamento emocional está, como já foi notado,
o facto de ele ser constituído – caso único nas peças conservadas de Sófocles – por
pessoas de outro sexo, cujos interesses estão ligados aos da comunidade que repre-
sentam, não aos da figura principal29.
Sendo assim, não surpreende que os seus pontos de vista sejam divergentes dos
da heroína, e só lentamente mudem de posição. Começam por acatar as ordens de
Creonte, que lhes aparece de início como o salvador da cidade; abrandam a sua
atitude depois de ouvirem Hémon, e conseguem a libertação de Ismena; mas só
após terem escutado a profecia de Tirésias compreendem claramente de que lado
está o interesse da cidade, e são eles que prescrevem a Creonte o que deve fazer.
As suas últimas palavras são, como já vimos, de censura aberta ao monarca 30.
A sua função não se esgota, porém, com as atitudes e palavras que acabamos
de sumariar. Temos ainda a considerar as odes corais – talvez a parte da tragédia
que tem sido objecto de mais acalorada discussão – em que estão contidas muitas
das ideias fundamentais da peça, e que comportam, além disso, uma segunda
leitura dos factos que se vão sucedendo: a leitura facultada pelo emprego quase
constante da chamada ironia dramática 31, processo usual em Sófocles, que em Rei
Édipo alcançará o cume da perfeição.
O facto é especialmente visível nos estásimos segundo (onde os vv. 620-624
acabarão por se aplicar a Creonte) e terceiro (que celebra o poder de Eros e aparece
como uma confirmação iniludível dos reais sentimentos de Hémon, mas, por outro
29
Cf. Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies, p. 85; Winnington-Ingram, Sophocles. An Inter-
pretation, p. 138.
30
Kirkwood, A Study of Sophoclean Drama, p. 126, resume admiravelmente a evolução do Coro:
“O Coro de Antígona é invulgarmente importante para o pensamento da peça. Como anciãos de
Tebas, o Coro tem um vivo interesse pessoal pelo que se está a passar; importam-se tanto com a
rectidão religiosa como com o bem-estar e estabilidade do Estado. Estão todo o tempo conscientes
da excelência moral da piedade de Antígona, e desde o começo têm escrúpulos sobre o édito de
Creonte (210-215). Mas permanecem ao lado da lei do país, e crêem que é correcto fazê-lo. Daí a
sua crítica ao acto de Antígona, a despeito da sua simpatia por ela; a sua piedade admiram-na, a
sua desobediência censuram-na como obstinada e mal-avisada (872-875); a sua censura exprime-se
pela declaração de que ela foi de encontro a Dike (853-855). Mas, para Creonte, uma vez que lhes
foi assegurado, através das palavras indiscutíveis de Tirésias, que a sua lei está errada aos olhos
dos deuses (e por isso não é uma lei verdadeira de Tebas, como Creonte mesmo tem finalmente de
reconhecer), não têm senão palavras de censura e condenação.”
31
O facto foi já notado, entre outros, por Kitto, Form and Meaning in Drama, p. 150.
86 TRADUÇÕES DO GREGO
lado, sugere que é esse deus que leva o príncipe à injustiça, quando os aconteci-
mentos provarão o contrário)32.
Menos importante, embora muito discutido, é o quarto estásimo, em que se
sucedem os exemplos míticos de figuras que sofreram suplício idêntico ao de
Antígona. Enumerar paradigmas mitológicos com a finalidade de consolar ou de
exortar alguém era processo que já vinha da tradição homérica e que alcançou
um desenvolvimento esplendoroso na lírica coral de Píndaro. É esse tipo de ornato
que aqui temos.
Duas odes estão especialmente ligadas à cidade: a primeira, o párodo, que co-
memora com alegria a sua libertação, interpretando a derrota dos sete sitiantes
como um castigo de Zeus, e invocando em especial Baco, o patrono de Tebas; e a
última, o quinto estásimo, em que igualmente se faz uma invocação a este deus,
num agitado hiporquema em sua honra, para que cure o seu povo. Em ambos os
casos, a euforia do Coro redundará numa amarga desilusão; primeiro, porque as
sequelas da luta fratricida irão destruir a casa dos Labdácidas; depois, porque
Creonte, ao inverter a ordem das acções que o Coro lhe recomendara – libertar
Antígona, sepultar Polinices – não chegou a tempo de evitar a sucessão de catás-
trofes que será narrada no êxodo33.
Deixámos para o final a que é considerada a mais bela das odes de Sófocles, o
estásimo primeiro, habitualmente designado por “Ode ao Homem”34. Ela abre com
a afirmação da superioridade do ser humano:
32
Encontram ironia dramática também no estásimo primeiro V. Ehrenberg, Sophokles und Peri-
kles, pp. 80-81; Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies, p. 103. Quanto ao quarto estásimo, veja-se
Christiane Sourvinou-Inwood, “The fourth stasimon of Sophocles’ Antigone”, Bulletin of the Institute
of Classical Studies (London) 36 (1989), 141-165.
Sobre os estásimos de Antígona existe uma considerável bibliografia, de que salientamos o livro de
Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies. Para o segundo estásimo em especial, e a concepção arcaica
do destino que lhe subjaz, não podemos deixar de mencionar a análise de E. R. Dodds, The Greeks and
the Irrational, University of Califomia Press, 1951, p. 49.
33
O facto foi notado, entre outros, por Rohdich, Antigone, p. 217.
Outros títulos, referidos por Burton, op. cit., p. 104, são “Hino à Grandeza do Homem”, “Canto
34
Jaeger há muitos anos35. Há, no entanto, outras expressões mais antigas da mesma
noção, como, provavelmente, a contida nos vv. 441-506 do Prometeu Agrilhoado de
Ésquilo36, e, seguramente, a que está implícita no fr. 18 Diels-Kranz de Xenófanes.
Na medida em que elogia as potencialidades do homem, contrasta com o se-
gundo estásimo. Como muito bem viu Burton 37, eles “apresentam dois pontos de
vista contraditórios do destino do homem, um que retrata o seu avanço a caminho
da vida civilizada, e outro que revela a sua inerente vulnerabilidade.”
Contudo, o segundo estásimo ensina-nos algo mais na segunda antístrofe.
É que na própria grandeza o homem encontra a sua maior limitação: é preciso
prezar as leis da terra e também a justiça divina, para subir bem alto na cidade
(hypsipolis); quem assim não proceder, será “privado da cidade” (apolis). Os dois
compostos estão seguidos no original, para melhor evidenciar o contraste, que
será essencial na peça.
Com esta última frase, estamos já a tocar na controversa questão da relevância
dramática da ode. Limitando-nos apenas a algumas das doutrinas mais notáveis,
referiremos que, para Wilamowitz, é uma fala do poeta como conselheiro do povo,
vagamente ligada ao contexto dramático, para censurar a educação sofística, nas
suas implicações políticas38; para W. Kranz39 e para A. J. A. Waldock40, não há ligação
deste canto com o feito de Antígona; ao passo que R. W. B. Burton41 considera que a
ode “não é simplesmente um resumo de artes e técnicas, nem uma lição de filosofia
política, nem um sermão para a época, mas primeiro e acima de tudo um canto
composto para uma peça” e D. Seale42 observa que, no final do canto, “estes dois
pilares da moralidade política, a justiça humana e a justiça divina, ironicamente
as próprias bases do conflito que vai surgir, são aqui ligadas numa única visão.”
O Coro pensa, pelo menos aparentemente, num transgressor, de cuja identidade
não tem a menor ideia, como o demonstra a sua dolorida surpresa, expressa logo
35
Paideia, Berlin (11933), 31954, I, p. 359. Para Heidegger, in: Sophocles. A Collection of Critical Essays,
p. 93, não se trata da evolução do homem desde o estado selvagem ao civilizado.
36
Dissemos “provavelmente” porque a data dessa tragédia (e até a autoria) é, como se sabe, uma
vexata quaestio.
37
The Chorus in Sophocles’ Tragedies, p. 112.
38
Griechische Verskunst, Darmstadt, 21958, pp. 516-518. Na mesma linha seguiu M. Pohlenz, Die
griechische Tragoedie, I, pp. 197-198.
39
Stasimon, Berlin, 1933, pp. 123 sqq.
40
Sophocles the Dramatist, Cambridge, 21966, pp. 112-114.
41
The Chorus in Sophocles’ Tragedies, p. 103.
42
Vision and Stagecraft in Sophocles, p. 89. Já dissera A. Lesky, Die tragische Dichtung der Hellenen, p.
197, que a ligação mais próxima deste canto com o todo está na delimitação das normas éticas perante
as quais se desenrola a oposição entre as exigências dos deuses e as do Estado.
88 TRADUÇÕES DO GREGO
O tema da tragédia
43
Cf. C. Segal, Tragedy and Civilization. An Interpretation of Sophocles, p. 168; H. Rohdich, Antigone, p.
74. Veja-se ainda Gregory Crane, “Creon and the Ode to Man in Sophocles’ Antigone”, Harvard Studies
in Classical Philology 92 (1989) 103-116.
44
Vorlesungen ueber Philosophie der Religion II.2, II.3.a, e Aesthetik II.2.1.
“Polis und Hades in der Antigone des Sophokles” in: Theologische Aufsaetze Karl Barth zum 50.
45
Geburtstag, Muenchen, 1936, 78-89 = Glauben und Verstehen, Tuebingen, 1952, II, 20-31 = Sophokles hrsg.
Hans Diller, Wege der Forschung, Darmstadt, 1967, 311-324. A citação é da p. 311 da terceira reimpressão.
46
Sophokles (11933, 31947). A citação é da p. 75.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 89
47
Antigone, pp. 11-12. Deste modo se atinge a conclusão, referida nas páginas anteriores, de que
só Antígona pode ser a verdadeira e única protagonista.
48
The Heroic Temper, especialmente, pp. 77 e 102.
49
Tragedy and Civilization. An Interpretation of Sophocles, p. 152.
50
Vision and Stagecraft in Sophocles, p. 85.
51
Antigone. As citações são, respectivamente, de pp. 37, 225, 227, 230 e 232.
90 TRADUÇÕES DO GREGO
52
Fr. 44A Diels-Kranz (tradução na Hélade, Porto, 92005, p. 292). Sobre esta antinomia, vide F. Heini-
mann, Nomos und Physis. Herkunft und Bedeutung einer Antithese im griechischen Denken des 5. Jahrhunderts,
Schweizerische Beitraege zur Altertumswissenschaft, Basel, 21965, e ainda G. B. Kerferd, The Sophistic
Movement, Cambridge, 1981, pp. 111-130.
53
Assim o vira já Aristóteles, Retórica 1375a (cf. 1373b), precisamente em relação a Antígona.
54
The Heroic Temper, pp. 94-98 e p. 183, nota 24.
55
Cf. Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies, p. 102.
Assim é que Aquiles, no Canto XXIII da Ilíada, é advertido em sonhos por Pátroclo de que deve
56
efectuar os funerais do amigo, porque a sua psyche anda errante, sem poder transpor os portões
do Hades (65-76).
Na tragédia que nos ocupa, não se trata só do cumprimento de uma prática consagrada, mas
também, como acentuou Kitto, Form and Meaning in Drama, pp. 148-149, do horror físico ao tratamento
ultrajante de um corpo amado.
57
Die griechische Tragoedie, I, pp. 190-191.
58
Cf. G. M. Kirkwood, A Study of Sophoclean Drama, p. 221.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 91
A tradução e notas
Para a tradução que agora apresentamos, tomámos como base a nova edição crítica
de Sófocles por H. Lloyd-Jones et N. C. Wilson, Sophoclis Fabulae, Oxford University Press,
1990, o que quer dizer que revimos na totalidade e alterámos em muitos lugares
a versão que há anos havíamos publicado61. Como todos os especialistas sabem,
o texto de Antígona é cheio de dificuldades e eriçado de cruces, muitas das quais
59
A que poderiam acrescentar-se outros confrontos que se desenham na peça, como o do ritual
religioso e o do conflito de géneros (cf. Mark Griffith, op. cit., p. 26).
60
Outro aspecto dessa riqueza é o número de imitações a que deu origem. Sobre o assunto existe já um
livro inteiro, o de Simone Fraisse, Le mythe d’Antigone, Paris, 1974, que engloba teatro, narrativa, poemas,
música, dança, filmes, e conclui, na p. 167: “No mundo ocidental, a interpretação do seu acto é inseparável
da história política dos dois últimos séculos.” À lista apresentada, haveria que juntar três obras portugue-
sas: a Antígona de António Sérgio (1930), a de Júlio Dantas (1946) e a de António Pedro (1954). Veja-se ainda
o livro de George Steiner, Antigones (Oxford, 1984) e o artigo de B. Kytzler, “Antigone im Jahrhundert der
Woelfe. Metamorphosen eines alten Mythos im XX. Jahrhundert”, Gymnasium 100 (1993) 97-108.
61
1.ª edição: Colecção Amphitheatrum, I, Porto, Centro de Estudos Humanísticos (anexo à Universidade
do Porto), 1958. Essa versão manteve-se ainda até a 4.ª edição, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos
e Humanísticos, 1987.
92 TRADUÇÕES DO GREGO
R. Jebb, Sophocles. The Plays and Fragments. Part III. Antigone. Cambridge University Press,
3
1900, reimpr. Amsterdam, Hakkert, 1971.
A. Dain et P. Mazon, Sophocle. Tome I. Paris, Les Belles Lettres, 1955.
I. Errandonea, Sófocles. Tragedias. Tomo II. Barcelona, Alma Mater, 1965.
A. Colonna, Sophoclis Fabulae. Vol. II, Corpus Scriptorum Graecorum Paravianum. Torino,
1978.
R. D. Dawe, Sophocles. Antigone. Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum
Teubneriana. Leipzig, Teubner, 31996.
Andrew Brown, Sophocles. Antigone. Warminster, Aris and Phillips, 1987.
Mark Griffith, Sophocles. Antigone. Cambridge University Press, 1999.
H. Lloyd-Jones et N. G. Wilson, Sophoclis Fabulae. Oxford University Press, 1990.
G. Mueller, Sophokles. Antigone, Erlaeutert und mit einer Einleitung versehen. Heidelberg,
Winter, 1967.
J. C. Kamerbeek, The Plays of Sophocles. Commentaries. Part III. Antigone. Leiden, Brill,
1978.
ESTUDOS
Wm. Blake-Tyrrell and Larry J. Bennett, Recapturing Sophocles’ Antigone. Lanham, Rowman
and Littlefield Publishers, 1998.
C. M. Bowra, Sophoclean Tragedy. Oxford University Press, 1944.
Andrew Brown, “Notes on Sophocles’ Antigone”, Classical Quarterly 41 (1991) 325-339.
R. Bultmann, “Polis und Hades in der Antigone des Sophokles” in: Sophokles hrsg. H. Diller,
Wege der Forschung. Darmstadt, 1967, pp. 311-324.
R. W. B. Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies. Oxford University Press, 1980.
Robert R. Chodkowski, “Antigone und Achilles oder die Ritterideale in der Antigone des
Sophokles”, Eos 78 (1990) 249-257.
Gregory Crewe, “Creon and the Ode to Man in Sophocles’ Antigone”, Harvard Studies in
Classical Philology 92 (1989) 103-116.
Martin Cropp, “Antigones’ final speech (Sophocles, Antigone 891-928)”, Greece and Rome
(1997) 137-160.
96 TRADUÇÕES DO GREGO
ANTÍGONA
ISMENA
CORO DOS ANCIÃOS DE TEBAS
CREONTE
GUARDA
HÉMON
TIRÉSIAS
MENSAGEIRO
EURÍDICE
SEGUNDO MENSAGEIRO (Mensageiro de dentro de casa)
ANTÍGONA
Ismena, minha irmã, minha querida irmã, por ventura conheces na li-
nhagem de Édipo algum mal que Zeus ainda não fizesse cair sabre nós duas,
sobre as nossas vidas1? Não há dor, não há desgraça 2, não há vergonha, não há 5
desonra que eu não tenha visto no número das minhas e tuas penas. E agora,
que nova é essa que toda a cidade afirma, desse édito que o general acaba de
promulgar? Tu sabes? Tu já ouviste? Ou acaso ignoras que a maldade dos nossos
inimigos avança sabre aqueles que nos são caros? 10
ISMENA
Sobre os que nos são caros, Antígona, nem uma palavra me chegou, nem doce
nem dolorosa, desde que fomos privadas dos nossos dois irmãos, que, num só dia,
pereceram às mãos um do outro. Depois que, esta noite, o exército dos Argivos se
pôs em marcha, nada mais soube, nem de bom, nem de mau. 15
ANTÍGONA
Mas sei-o eu, e por isso te mandei vir para fora do palácio, a fim de que só tu
o ouvisses.
1
A sucessão de calamidades é pormenorizada adiante por Ismena, vv. 49-57.
2
No texto há uma crux, já notada por Dídimo. Efectivamente, a sequência de três adjectivos subs-
tantivados é quebrada pelo sintagma ἄτης ἄτερ. Mueller propõe uma emenda que tem por si a dificul-
dade: ἀτημελές, “desprezado”, forma documentada, em sentido activo, no fr. 184 Nauck de Eurípides.
Mas, como escreveu Dawe no aparato crítico da sua segunda edição, emendatio nulla arridet. Na terceira
edição o mesmo helenista preferiu terminar a frase em ἄτερ e atetizar o v. 5.
102 TRADUÇÕES DO GREGO
ISMENA
ANTÍGONA
mas quem quer que o cometa incorre em crime de lapidação pública nesta cidade.
Tais são os factos, e em breve mostrarás se tens carácter ou se da tua nobreza
fizeste vileza.
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
ANTÍGONA
(erguendo a mão)
3
Damos a versão do texto que seguimos, embora ele seja considerado duvidoso. Na emenda
adoptada por Jebb, seria “com recta observância da justiça e da lei”.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 103
ISMENA
ANTÍGONA
Sim, a esse irmão que é meu e teu, ainda que o não queiras. Não me acusarão 45
de o ter atraiçoado 4.
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
Ai de mim! Pensa, ó minha irmã, no nosso pai, como ele pereceu odioso e
sem glória, ferindo os olhos por suas próprias mãos, assim que descobriu os seus 50
crimes5. Depois, a mãe e esposa dele – que de ambas tinha o nome – destrói a
sua vida no laço de uma corda6. Em terceiro lugar, os nossos dois irmãos, num só 55
4
O v. 46 foi considerado espúrio por Dídimo e também por Dawe. Parece-nos, todavia, de manter
a opinião de Jebb, de que a quebra da esticomitia não é de enjeitar, e, por outro lado, de que “estes
dois versos exprimem a resolução em volta da qual gira a peça”, como escreveu aquele helenista.
Tanto Mueller como Kamerbeek entendem também que deve conservar-se e o mesmo fazem Lloyd-
-Jones e Wilson.
5
Um oráculo havia profetizado que Édipo havia de matar o pai e de desposar a mãe; por isso, esta,
logo que o filho nasce, o manda expor numa montanha; mas um pastor salva a criança e entrega-a a
outro pastor, que a leva ao Rei de Corinto, por quem é adoptada como filho. Já tornado homem, Édipo
tem um dia conhecimento da profecia; para evitar que ela se realize, abandona Corinto. Mas, ao chegar
a uma encruzilhada próxima de Tebas, tem uma questão com um desconhecido, a quem mata; depois,
decifra o enigma da esfinge, e recebe como recompensa da cidade a mão da rainha e o trono vazio de
Tebas. Anos mais tarde, os factos revelam que o desconhecido era na verdade o seu pai e a rainha a
mãe. Ao compreender a terrível realidade, o herói cega-se, desesperado. Esta parte do mito será tratada
por Sófocles, muito tempo depois, no Rei Édipo. A miserável vida de exilado de Édipo, acompanhado
por Antígona, até acabar os seus dias em Atenas, será o assunto da sua obra póstuma, Édipo em Colono.
6
Jocasta suicidara-se, ao ter conhecimento da verdadeira identidade daquele estrangeiro que a
cidade lhe havia dado por marido.
7
Os dois filhos varões de Édipo, Etéocles e Polinices, disputaram o trono em luta fratricida.
Conservam-se duas tragédias em que essa parte da lenda foi dramatizada, Os Sete contra Tebas de
Ésquilo e As Fenícias de Eurípides.
104 TRADUÇÕES DO GREGO
E agora, que só restamos nós as duas, vê lá de que maneira ainda pior acabaremos,
se, contra a lei, vamos transgredir o édito dos soberanos ou o seu poder. Pelo 60
ANTÍGONA
Não serei eu quem to ordene, nem, ainda que o quisesses fazer, colabo-
rarias comigo de bom grado meu. Procede como entenderes. A ele, eu lhe 70
darei sepultura. Para mim, é belo morrer por executar esse acto. Hei-de jazer ao
pé dele, sendo-lhe cara, como ele a mim, depois de prevaricar, cumprindo um
dever sagrado – já que é mais longo o tempo em que devo agradar aos que estão 75
no além do que aos que estão aqui. É lá que ficarei para sempre; e tu, se assim te
parece, desonra aquilo que para os deuses é honroso.
ISMENA
Eu não faço nada que não seja honroso, mas sou incapaz de actuar contra o
poder da cidade.
ANTÍGONA
Podes apresentar essas desculpas, que eu por mim vou erguer um túmulo ao 80
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
Mas ao menos não reveles a ninguém esta acção; guarda-a em segredo, que
outro tanto farei eu.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 105
ANTÍGONA
ANTÍGONA
Mas sei que agrado àqueles a quem mais devo dar prazer.
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
ANTÍGONA
Se assim falares, serás odiada por mim, e com razão serás odiada pelo que
morreu. Mas deixa-me, a mim e à minha loucura, a sofrer este mal terrível. Eu,
por mim, não creio que haja outro tão grande como morrer sem honra.
ISMENA
Vai, se assim te parece. Mas fica sabendo que, embora sejas uma insensata em 95
8
Segundo Mueller, esta frase é proferida após a partida de Antígona, porquanto implica um
reconhecimento da razão da atitude da irmã, que Ismena não quisera exprimir na frente dela, para a
dissuadir do seu projecto. No entanto, com a emenda de Dawe ao v. 94 (προσκλήσηι em vez do difícil
προσκείσηι dos manuscritos), as palavras finais de Ismena tornam-se a contrapartida da acusação
anterior de Antígona.
106 TRADUÇÕES DO GREGO
CORO
estrofe 1.ª
9
Já na Ilíada (IV.406) a cidade de Tebas se distinguia pelas suas sete portas.
10
O rio que corria a ocidente de Tebas, cantado por Píndaro no final da VI.ª Ístmica.
Polinices desposara uma das filhas de Adrasto, rei de Argos, ao qual persuadira a vir atacar
11
Tebas. Por isso se diz que os sitiantes são argivos e se afirma a seguir “sobre a nossa terra fez cair”.
12
A lição ὀξυτόρωι, defendida por H. Lloyd-Jones, “Notes on Sophocles’Antigone”, Classical Quarterly
7 (1957) 12-16, e seguida por Dawe, confere à frase um valor metafórico.
13
Subentende-se aqui um verbo como ἤγαγεν. Deste modo, é Polinices o sujeito, o que permite
identificá-lo com a águia do símile que vem a seguir. Sobre outras vantagens deste regresso à tradição
manuscrita, vide Burton, The Chorus in Sophoclean Tragedies, p. 93. Nauck propôs a seguir ἐχθρὸς δ’, que
mais tarde emendou para κεῖνος δ’. Dawe prefere manter a lacuna de uma dipodia.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 107
na luta do dragão.
brandindo o raio
atira-o àquele16 que já ia,
lá do alto da meta,
proclamar a vitória.
estrofe 2.ª
deixaram a Zeus,
senhor dos troféus,
seus brônzeos tributos;
só aqueles dois malditos,
14
Hefestos era deus do fogo. A cidade não chegou, portanto, a ser incendiada.
15
Ares designa aqui, por metonímia, a guerra. Esta é descrita alegoricamente: os Argivos são
comparados a uma águia que quer devorar a cidade; a resistência tebana é “a luta do dragão”. Alude-se
assim à conhecida lenda da origem dos Tebanos, a partir dos dentes de dragão semeados por Cadmo.
16
O arrogante Capaneu, que foi atingido por um raio.
A “báquica fúria” sugere a semelhança entre Capaneu, “com a tocha na mão”, e uma Ménade
17
de um só pai nascidos
e de uma só mãe, 145
de há pouco esqueçamos;
em danças nocturnas, vamos
dos deuses a todos os templos, e Baco21
tremente domine em Tebas.
anapestos
CREONTE
20
Etéocles e Polinices, filhos de Édipo e Jocasta, matam-se um ao outro em combate singular.
Cf. supra, nota 7.
21
Baco, filho de Zeus e de Sémele, a qual o era de Cadmo, fundador de Tebas, estava especialmente
ligado à cidade, de que era patrono.
22
Depois da morte dos dois príncipes, pertencia a Creonte, irmão de Jocasta, o trono tebano.
Uma das muitas metáforas náuticas que surgirão ao longo desta peça, em ligação com a alegoria da
23
nau do Estado. Esta alegoria era muito antiga na Literatura Grega: datava do fr. 105 West de Arquíloco.
Tornou-se célebre através de poemas de Alceu, um dos quais (fr. 326 Lobel-Page) foi universalizado pela
imitação de Horácio na Ode XIV do Livro I, que por sua vez serviu de modelo às literaturas modernas.
24
A lacuna, que Dindorf colocava após o v. 167, figura neste ponto, na edição de Lloyd-Jones e
Wilson, que entendem que se torna necessário esclarecer o sentido de κείνων (que traduzimos por
“de cada um deles”).
SÓFOCLES, ANTÍGONA 109
pereceu, permanecestes leais aos filhos de cada um deles, com um ânimo cons-
tante. Mas já que esses, por um duplo fado, acabaram num só dia, batendo-se 170
homem, antes de ele se ter exercitado no poder e nas leis26. Eu, por mim, enten-
do que todo aquele que, sendo supremo senhor de um Estado, não se mantiver
firme nas melhores decisões, mas por medo entravar a sua língua, é e foi sempre 180
um grande celerado. E quem quer que tenha mais amor a outrem do que à sua
própria pátria, por esse não tenho a menor consideração. Pela minha parte –
saiba-o Zeus, que sempre vigia tudo – não me calaria, se visse a ruína, em vez da 185
salvação, a avançar sobre os cidadãos, nem teria por amigo próprio um varão que
quisesse mal à nossa terra. Sei bem que é ela que nos mantém salvos e que, se 190
navegarmos nela com direito rumo, podemos contrair amizades. Tais são as leis
com que eu criarei a prosperidade deste Estado.
E agora acabo de proclamar aos cidadãos um édito gémeo destes princí-
pios, que diz respeito aos filhos de Édipo: a Etéocles, que pereceu a comba-
ter por esta cidade, praticando toda a espécie de actos valorosos com a sua 195
linhagem, quis saciar-se do sangue dos seus e levá-los cativos, – quanto a esse,
proclamou-se nesta cidade que nem seria sepultado, nem pessoa alguma o
lamentaria, mas se deixaria insepulto, e que o seu corpo, dado a comer aos cães e 205
25
No original grego estão três palavras difíceis de distinguir na flutuante terminologia da época
(psyche, phronema, gnome), a segunda das quais regressa no resumo do programa de acção do v. 207.
Mueller observa que, como palavra mais genérica para a consciência, psyche é aqui ligada com as outras
duas como funções específicas ou partes da consciência. (No entanto, objectaremos nós, a noção de
consciência só aparece em Eurípides.) E acrescenta: “O elemento de vontade em gnome é conhecido
de Tucídides”. Kamerbeek tenta precisar melhor: “Nesta tripartição psyche parece referir-se antes de
tudo à coragem e firmeza do homem ou seus contrários, phronema à sua disposição moral e intelectual
genericamente, gnome à sua visão e juízo em situações que reclamam acção”. Sobre psyche existem
dois importantes estudos: David B. Claus, Toward the Soul. An Inquiry into the Meaning of Psyche Before Plato,
Yale University Press, 1981; Jan Bremmer, The Early Greek Concept of the Soul, Princeton University Press,
1983. Sobre gnome, vide Pierre Huart, Gnome chez Thucydide et ses Contemporains, Paris, 1973 (que dá a sua
interpretação deste passo na p. 20, nota 1). Veja-se ainda o comentário de Griffith (1999), pp. 157-158.
26
No decurso da tragédia, este princípio vai ser posto à prova na pessoa de Creonte.
Repare-se no emprego de nomos (“lei”), uma palavra-chave deste drama, que regressa no v. 191,
no termo do programa político de Creonte.
110 TRADUÇÕES DO GREGO
CORO
A ti apraz-te, Creonte, filho de Meneceu, proceder desse modo para com quem
é desfavorável e para com quem é propício a esta cidade. Em tuas mãos está a
faculdade de usar das leis, quaisquer que sejam, quer para os mortos, quer para os
que estamos vivos.
CREONTE
CORO
CREONTE
CORO
CREONTE
Que não vos junteis aos que desobedecem às minhas ordens. 215
CORO
CREONTE
Pois será esse o salário; mas muitas vezes a esperança do ganho aniquila
os homens.
(Entra o Guarda.)
SÓFOCLES, ANTÍGONA 111
GUARDA
Meu senhor, não direi que foi por causa da velocidade que cheguei aqui
sem fôlego, depois que pus em movimento os meus pés ligeiros. Na verdade, 225
muitas foram as paragens que fiz para pensar, às voltas no caminho, quase a
tornar atrás. O meu espírito dizia-me muitas coisas, falando-me assim: – Des-
graçado, para que vais com tanta pressa onde à tua chegada serás castigado?
Miserável, então tu páras outra vez? E se Creonte o souber por outro, como
deixarás de sofrer? – Com estas hesitações, fiz caminho sem grande pressa, e
assim uma pequena distância se volveu em grande. Por último, enfim, prevaleceu
vir ter contigo. E, se o que eu te contar não valer nada27, mesmo assim vou dizer-to.
Porque eu venho agarrado a esta esperança, de que nada mais sofrerei senão o 235
CREONTE
GUARDA
Primeiro quero falar-te do que me diz respeito: não fui eu quem praticou 240
essa acção, nem sei quem fosse. E não há razão para eu cair em desgraça.
CREONTE
Não há dúvida que atiras bem e fazes boa defesa em volta do caso28. Mas é
manifesto que tens algo de novo para contar.
GUARDA
27
Mantemos a interpretação corrente de τὸ μηδὲν a despeito das reservas de Vollgraff, seguido
por Kamerbeek, que traduzem por “a minha morte”.
28
Damos a interpretação corrente, que vê aqui uma imagem tirada da caça. Tanto Mazon como
Kamerbeek partem do sentido habitual de στοχάζεσθαι e daí derivam o de “adivinhar” (que Liddell-
-Scott dá para este passo). O segundo traduz: “A tua suposição (sc. quanto ao que te espera) está
perfeitamente correcta”.
112 TRADUÇÕES DO GREGO
CREONTE
GUARDA
Enfim, vou dizer-to. Há pouco ainda, alguém deu sepultura ao cadáver e se 245
retirou; espalhou sobre o corpo o pó seco e fez-lhe as oferendas que são devidas.
CREONTE
GUARDA
Não sei. Não havia lá sinais de machado nem terra que a enxada amon- 250
toasse. O solo, duro e seco, não estava sulcado pelo peso de rodas; quem quer
que tivesse sido o autor da obra, não deixara vestígios. Quando a primeira sen-
tinela no-lo mostra, já lá estava aquele prodígio embaraçoso para todos nós.
O cadáver estava invisível, não enterrado contudo, mas tinha por cima uma camada 255
fina de pó, como de alguém que a pusesse para fugir a uma maldição29. Não havia
vestígios da passagem de qualquer animal selvagem ou de cães, nem tinha
aspecto de ter sido dilacerado. Entrechocavam-se palavras desagradáveis entre 260
nós; cada guarda acusava o outro. E teria havido pancada, se não aparecesse
quem o impedisse. Cada um de nós podia ser o autor, mas nenhum o era mani-
festamente, antes se esquivava a reconhecê-lo. Estávamos prontos a levantar
ferros em brasa com as mãos, e a atravessar as chamas30, a jurar pelos deuses que 265
sabíamos que havíamos de lhe replicar, nem que fazer para sermos bem
sucedidos. O que ele disse foi que era preciso revelar-te o facto, e não mantê-lo
oculto. Prevaleceu esta opinião, e eu sou o desventurado que a sorte escolheu
para receber tal benefício. Aqui estou eu contra vontade, perante quem a não tem 275
boa para mim, bem o sei, pois ninguém gosta de quem anuncia más notícias.
29
Na impossibilidade de efectuar todas as cerimónias fúnebres, para que o morto pudesse transpor
as portas do Hades, entendiam os Gregos que era suficiente cobrir o cadáver com uma camada de pó.
Quem passasse por um cadáver insepulto sem lhe lançar terra incorria numa maldição. Para os que
morriam no mar, havia o recurso de lhes erigir um túmulo vazio (cenotáfio).
30
Os equivalentes antigos dos “juízos de Deus” da Idade Média.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 113
CORO
Senhor, há muito que o meu espírito pondera, se acaso este feito não será obra
dos deuses.
CREONTE
Cessa, antes que as tuas palavras me encham de cólera, para que não sejas 280
ao mesmo tempo insensato e velho. Pois não se pode suportar que tu digas que
as divindades possam ter cuidados com esse cadáver. Acaso o cobriram por
haverem especialmente como seu benfeitor aquele que vinha para lançar fogo aos 285
instituição tão perversa como o dinheiro. É ele quem destrói cidades, ele que
arranca os homens do seu lar; ele que ensina e alicia um carácter honesto a
cometer acções vergonhosas. Mostrou aos humanos como praticar vilezas e deu- 300
essa sepultura, e não mo apresentardes diante dos meus olhos, o Hades31 não será
suficiente para vós, antes que, suspensos com vida, aclareis este ultraje, para que 310
de futuro fiqueis a saber extrair o ganho donde ele deve obter-se, e apren-
dais que não se deve querer tirar lucro de toda e qualquer origem. Por causa
de aquisições vergonhosas é que se vêem muitos mais na desgraça do que
na prosperidade.
GUARDA
Concedes-me que diga alguma coisa, ou devo ir embora sem mais? 315
CREONTE
31
O reino dos mortos era governado por Hades, cujo nome é frequentemente empregado como
sinónimo dos seus domínios.
114 TRADUÇÕES DO GREGO
GUARDA
CREONTE
GUARDA
CREONTE
GUARDA
Seja como for, o certo é que não sou eu o autor desse feito. 320
CREONTE
GUARDA
Ai! Tremendo é que quando alguém acalenta suspeitas, elas sejam falsas!
CREONTE
32
Dawe adopta a emenda de Burges, δεινόν (aqui: “tremendo”), que encontra eco no v. 323, onde
o adjectivo se repete. Por isso a seguimos.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 115
GUARDA
Bem, antes de mais nada, que ele apareça! Quer ele seja apanhado ou não – e
isso é a sorte que há-de decidi-lo – não terás maneira de me veres aqui outra vez.
Pois ainda agora é bem contra a minha expectativa e as minhas suposições que 330
saio daqui a salvo, pelo que dou aos deuses muitas graças.
CORO
o engenho do homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
33
O Coro celebra as conquistas do homem: a navegação, a agricultura, a caça, a pesca, a domesticação
dos animais, a fala, o pensamento, a política, a construção de casas, a medicina. Conforme referimos na
introdução, a noção de progresso da humanidade, que aqui se define, está também no Prometeu Agrilhoado
de Ésquilo (vv. 441-506), e aparece pela primeira vez, que saibamos, no séc. VI a.C., em Xenófanes (fr. 18
Diels-Kranz); tornou-se corrente entre os Sofistas, a avaliar pelo mito do Protágoras de Platão (322a-c).
Sobre a existência desta noção entre os Gregos, vide E. R. Dodds, The Ancient Concept of Progress and Other
Essays. Oxford, 1973, e L. Edelstein, The Idea of Progress in Classical Antiquity, Baltimore, 1967.
34
O vento Sul.
35
A emenda de Nauck, ἀγρεῖ por ἄγει, adoptada por Dawe, fora apoiada por Mueller e rejeitada
por Kamerbeek, por Lloyd-Jones e Wilson e por Griffith. Seguimo-la, no entanto, por nos parecer que
aquele verbo é mais adequado do que este para descrever as sucessivas conquistas do homem sobre
os animais terrestres e marinhos.
116 TRADUÇÕES DO GREGO
Ao Hades somente
não pode escapar36.
De doenças invencíveis os meios
de escapar já com outros meditou.
antístrofe 2.ª
36
Seguindo a emenda de Meineke e Heindorf, Dawe escreve aqui ἐπεύξεται, que obrigava a traduzir
por “fugir não implora”. A lição dos códices, ἐπάξεται (“obter meios de escapar”), que fora defendida
por Jebb com paralelos seguros, voltou a ser adoptada por Lloyd-Jones e Wilson, e é essa que utiliza-
mos na presente versão.
37
Mantivemos a emenda de Reiske (γεραίρων), seguida por Dawe e Griffith, apesar de Lloyd-Jones
e Wilson regressarem à lição de quase todos os códices (παρείρων), lição essa que Liddell-Scott, s.v.
παρείρω, referem expressamente como corrupta.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 117
GUARDA
Aqui está a autora do feito. Apanhámo-la no acto de dar sepultura. Mas 385
CORO
CREONTE
GUARDA
Senhor, aos mortais não é lícito garantir que seja impossível coisa alguma. É que
a reflexão torna falso o prévio julgamento. Pois eu havia de jurar que levava tempo 390
a que tornasse aqui, devido às tuas ameaças, que então me atormentavam. Mas
surgiu-me esta alegria acima e para além de toda a esperança, de um tamanho que
não se pode medir com qualquer outro prazer. E venho, apesar de ter feito solenes
juramentos em contrário, trazer-te esta donzela, que foi detida quando arranjava 395
a sepultura. Aqui já não houve baralhar de sortes, porque esta foi uma descoberta
minha, e de mais ninguém. E agora, ó príncipe, toma conta dela tu mesmo, julga-a
e interroga-a à tua vontade, que eu tenho jus a ficar livre e forro destes malefícios. 400
CREONTE
GUARDA
Era ela que estava a sepultar o varão. Ficaste agora a saber tudo.
CREONTE
GUARDA
Vi-a, sim, a dar sepultura ao cadáver que tu proibiste. E agora, falei claro e 405
compreensível?
CREONTE
GUARDA
terríveis sobre quem executara aquele feito. Imediatamente leva nas mãos o pó
sedento, e, erguendo o vaso de bronze lavrado, presta honras ao cadáver com 430
coisa alguma, com prazer e pena minha, ao mesmo tempo. Porque isto de uma
pessoa escapar de uma calamidade é o melhor que há; mas é penoso levar à ruína
aqueles que se estimam. Porém, tudo isto vale menos para mim do que a minha 440
própria salvação.
38
O ritual fúnebre, agora mais completo, compreendia libações em vasos de barro ou de metal.
Na Odisseia (X.519-520), constavam de hidromel, vinho e água; em Ésquilo (Persas 610-618) de leite,
hidromel, vinho e azeite; em Eurípides, de água, leite, vinho e mel, em Ifigénia entre os Tauros (159-166),
de mel, leite e vinho, no Orestes (115).
SÓFOCLES, ANTÍGONA 119
CREONTE
(voltando-se para Antígona, que está de cabeça baixa)
E tu, tu que voltas o rosto para o chão, afirmas ou negas o teu acto?
ANTÍGONA
CREONTE
(voltando-se para o Guarda)
Tu já estás livre de uma pesada acusação; podes ir para onde quiseres. (O Guarda 445
retira-se. Creonte volta-se para Antígona). E agora tu diz-me, sem demora, em poucas
palavras: sabias que fora proclamado um édito que proibia tal acção?
ANTÍGONA
CREONTE
ANTÍGONA
É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com 450
ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram. Por causa das
tuas leis, não queria eu ser castigada perante os deuses, por ter temido a decisão
de um homem. Eu já sabia que havia de morrer um dia – como havia de ignorá- 460
‑lo? –, mesmo que não tivesses proclamado esse édito. E, se morrer antes do
tempo, direi que isso é uma vantagem. Quem vive no meio de tantas calami-
dades, como eu, como não há-de considerar a morte um benefício? E assim,
é dor que nada vale tocar-me este destino. Se eu sofresse que o cadáver do 465
filho morto da minha mãe ficasse insepulto, doer-me-ia 39. Isto, porém, não me
39
Os vv. 466-467 são uma das mais notórias cruces da peça. A forma ἠισχόμην, que Dawe mantém
no seu texto, e está documentada em quatro manuscritos (LKRS) não é conhecida. Por outro lado,
120 TRADUÇÕES DO GREGO
causa dor. E se agora te parecer que cometi um acto de loucura, talvez louco
seja aquele que como tal me condena. 470
CORO
CREONTE
Mas fica sabendo que os espíritos demasiado obstinados são os que mais
depressa sucumbem, e o mais sólido ferro, levado ao rubro e endurecido pelo 475
fogo, é frequente vê-lo partir-se e reduzir-se a bocados. Sei bem que com um
pequeno freio se subjugam os cavalos fogosos. E não costuma ter pensamentos
altivos quem é escravo daqueles que lhe estão próximos. Esta soube bem ser 480
Pode ela ser nossa sobrinha ou mais próxima de nós pelo sangue do que qual-
quer outro dos que vivem no meu lar41. Ela, e a que é da mesma origem42 , não
escaparão à pior das sortes. Porque também a essa eu acuso de ter premeditado 490
abomino é que quem foi apanhado em flagrante delito, ainda por cima se vanglorie disso.
ANTÍGONA
AUY lêem ἠνσχόμην, que Jebb e Griffith aceitam, mas oferece dificuldades linguísticas (pois teria
de se supor a omissão do segundo aumento e a apócope do prevérbio, o que não é normal no ático).
Liddell-Scott, no entanto, registam-na. Porém Lloyd-Jones e Wilson regressam à emenda de Blaydes,
que tem a seu favor a melhoria de sentido e a própria simplicidade das alterações: <ὄντα> ἠνεσχόμην.
Neste difícil passo, seguimos, com Lloyd-Jones e Wilson, a correcção de Nauck (δῆλον em vez
40
de δηλοῖ) e, logo a seguir, regressámos, como eles, à lição da maioria dos manuscritos, τὸ γέννημα.
41
Como explicou o escoliasta, a expressão do original, τοῦ παντὸς ἡμῖν Ζηνὸς ἑρκείου, equivale
a “da gente da minha casa”. A alusão é a Zeus Herkeios, cujo altar se encontrava no pátio central do
edifício e simbolizava, portanto, o espírito de união da família.
42
Ismena, que Creonte manda chamar no verso seguinte, por um dos homens do seu séquito.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 121
CREONTE
ANTÍGONA
Então porque hesitas? Assim como das tuas palavras não me vem nenhum
deleite, nem poderá jamais vir, assim também o meu parecer te é desagradável 500
por natureza. E, contudo, onde podia eu granjear fama mais ilustre do que dando
sepultura ao meu próprio irmão? Todos os que aqui estão diriam também como
aprovam este acto, se o medo lhes não travasse a língua. Mas é que a realeza, entre 505
CREONTE
ANTÍGONA
CREONTE
ANTÍGONA
Não é opróbrio prestar honras aos que nasceram das mesmas entranhas.
CREONTE
Com que então não era do mesmo sangue o que morreu no campo adverso?
ANTÍGONA
43
O fundador e primeiro rei mítico de Tebas. Vide supra, notas 15 e 21.
44
Refere-se ao Coro.
122 TRADUÇÕES DO GREGO
CREONTE
Nesse caso, como podes prestar-lhe um tributo ímpio aos olhos do outro?
ANTÍGONA
CREONTE
ANTÍGONA
CREONTE
... Que ia assaltar esta terra; o outro tomou armas por ela.
ANTÍGONA
CREONTE
ANTÍGONA
CREONTE
ANTÍGONA
CREONTE
Agora que vais lá para baixo, ama-os, se amar se devem; mas, enquanto eu
viver, não será uma mulher quem dá ordens. 525
CORO
CREONTE
E tu, que andavas a envenenar-me sem eu o saber, tal como uma víbora que se
insinuasse na minha casa, sem que eu me apercebesse de que estava a alimentar
duas maldições para subverterem o meu trono, anda, diz-me lá se também afir-
mas a parte que tomaste nesta sepultura ou se juras não ter tido conhecimento? 535
ISMENA
Eu pratiquei esse acto, tal como ela45; colaborei e participo e aguento a acusação.
ANTÍGONA
Porém não to permitirá a justiça, pois nem quiseste, nem eu te dei parte nele.
ISMENA
45
A emenda de Nauck, adoptada por Dawe e defendida por Fraenkel, Mueller, Rohdich (ἥδ· ὁμορροθῶ),
foi impugnada tanto por Jebb como por Kamerbeek. Entende este último que a afirmação de Ismena
se torna assim “demasiado absoluta e contrária ao seu retrato”, pelo que prefere o dizer dos ma-
nuscritos (ἥδ’ ὁμορροθεῖ, “se ela o consente”). Mas não só a correcção encontra fundamento em
Aristófanes, Aves 851, como a súbita determinação está de acordo com “o rosto em fogo” com que
Ismena se apresenta. Por isso, mantemos a correcção de Nauck, apesar de Lloyd-Jones e Wilson e
também Griffith regressarem à lição dos manuscritos.
124 TRADUÇÕES DO GREGO
ANTÍGONA
De quem é essa obra, são testemunhas o Hades e os que estão debaixo da terra.
E eu não prezo quem me ama só em palavras.
ISMENA
ANTÍGONA
Não queiras partilhar a minha morte nem faças teu aquilo em que não tocaste.
Para morrer, basto eu.
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
ANTÍGONA
ISMENA
ANTÍGONA
Para estes és tu que pensas bem; para aqueles, julgo ser eu.
ISMENA
ANTÍGONA
Está tranquila: tu tens vida, ao passo que a minha acabou há muito, para 560
CREONTE
ISMENA
Perante as calamidades, ó rei, o senso que era inato não permanece, mas afasta-se.
CREONTE
... De ti pelo menos, quando optaste por praticar o mal com os possessos. 565
ISMENA
CREONTE
ISMENA
CREONTE
ISMENA
CREONTE
ANTÍGONA
CREONTE
CORO
46
Os manuscritos atribuem esta exclamação a Ismena, e assim fazem Lloyd-Jones e Wilson e Griffith.
A Edição Aldina deu-os a Antígona, no que foi seguida por Jebb, Dawe (na 2.ª edição) e muitos outros.
Efectivamente, como escreveu Kamerbeek, o verso, se proferido por Antígona, “tem uma força patética
espantosa”. Além disso, só assim se compreende bem a réplica de Creonte.
As dúvidas na atribuição das falas prosseguem nos versos seguintes. Assim, o v. 574 é dado a Antígona
por Dawe (na 2.ª edição), a Ismena pelos códices e por Rohdich e por Lloyd-Jones e Wilson, bem como
Griffith, e ao Coro por Boeckh; ao passo que 576 fora atribuído à heroína por Boeckh, e nos manuscritos
é dado ora à irmã, ora ao Coro. Embora Lloyd-Jones e Wilson e também Griffith aceitem a atribuição a
Ismena, demos, como Jebb, os dois versos em causa ao Coro. Com efeito, o v. 576 recebe a resposta de
Creonte “Por ti e por mim”, que parece pressupor que, na mente do tirano, o seu querer se identifica
com o da cidade, que o Coro representa. Em 574, este fizera a pergunta usando o demonstrativo para
mencionar Antígona; agora conclui, apenas. Jebb observa, a propósito de 574, que Ismena já interrogara
o rei em 568, e objectara em 570, o que levara a uma segunda reposta mais dura. Seria mais natural que
não fosse ela quem voltasse a fazê-lo, mas sim outro intercessor.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 127
CREONTE
CORO
CREONTE
Por ti e por mim. Não haja detença. (Para os dois escravos). Levem-nas para dentro,
escravos. A partir deste momento, têm de ser mulheres, em vez de andarem livre-
mente47. Até os valentes procuram fugir, quando avistam o Hades a rondar a sua vida.
CORO
47
Desta mesma diferença já Ismena mostrara ter consciência no diálogo inicial com Antígona
(vv. 61-62).
48
O Coro examina a sorte dos membros da casa real de Tebas e refugia-se na crença ancestral
nas maldições que destroem as famílias. Sobre esta atitude de espírito e seu significado, vide E. R.
Dodds, The Greeks and the Irrational, University of California Press, 1951, pp. 49-50.
O texto, para além de ter uma crux no v. 586 (ποντίας ἁλός), oferece grandes dificuldades sintác-
ticas. Seguimos a interpretação de Kamerbeek (na esteira de outros), tomando ἔρεβος ὕφαλον como
sujeito de ἐπιδράμηι e οἶδμα como seu objecto.
128 TRADUÇÕES DO GREGO
as velhas maldições
eu vejo acumular-se, 595
do palácio de Édipo50,
dos deuses infernais
o cutelo sangrento,
a demência do verbo,
a loucura da Erínia
de novo a extingue51.
estrofe 2.ª
49
A família real de Tebas, que descendia de Lábdaco, pai de Laio.
50
Referência a Antígona e Ismena, esperança da continuidade da família.
Neste complexo passo, uma das dificuldades maiores reside na lição κόνις (“pó”) dos manuscri-
51
tos, que Jortin, seguido por muitos outros, entre os quais Dawe, substitui por κοπίς (“cutelo”), mais
consentâneo com as outras causas da extinção da casa dos Labdácidas, a seguir mencionadas. A con-
trovérsia, como escreveu Burton, The Chorus in Sophocles’ Tragedies, p. 107, “continua há dois séculos e
não é provável que se resolva, embora de momento κοπίς esteja em ascensão”. Sobre o assunto, veja-se
também Winnington-Ingram, Sophocles. An Interpretation, pp. 167-168.
Neste contexto se situa ainda, no final da antístrofe, a referência à Erínia, divindade primitiva,
especialmente encarregada de punir os crimes de sangue ou outras infracções graves à ordem es-
tabelecida pelos deuses.
52
Seguimos a conjectura de Jebb, πάντ’ ἀγρεύων, em vez de mantermos a crux παντογήρως (“que
todos envelhece”), conservada por Dawe, por Lloyd-Jones e Wilson e por Griffith.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 129
o famoso provérbio:
parecer bem o que é mal, é só a quem
o deus leva à ruína.
Pouco será o tempo que ele passará 625
isento de desgraça.
o último rebento,
aflito com a sorte de Antígona,
a prometida esposa 53,
o logro temendo dos esponsais. 630
(Entra Hémon.)
CREONTE
Em breve o saberemos, e por forma mais segura do que pela adivinhação. (Para
Hémon) Filho, acaso estás aqui para atacar o teu pai, sem prestares ouvidos ao de-
creto fixado acerca da tua noiva? Ou estimas-nos sempre, em todos os nossos actos?
HÉMON
Pertenço-te, meu pai. E tu, que tens nobres pensamentos, regulas os meus 635
CREONTE
Assim é, meu filho, que tu deves ter a peito fazer – colocar a opinião paterna
acima de tudo. Por isso os homens fazem votos por gerar e ter em suas casas filhos 640
53
O verso 628 é atetizado tanto por Dawe como por Lloyd-Jones e Wilson e ainda por Griffith,
que anotam interpretationem sapit.
130 TRADUÇÕES DO GREGO
obedientes, que se defendam dos inimigos com o mal e que honrem os amigos do
mesmo modo que o pai. Porém quem cria filhos que o não ajudam, que outra coisa 645
poderá dizer-se dele, senão que arranjou trabalhos para si e motivos de escárnio
para os seus inimigos? Por isso, meu filho, não sacudas o jugo da razão por causa
do prazer com uma mulher, ciente de que se tornam frígidos os amplexos, quando 650
a companheira de leito que se tem em casa é perversa. E que ferida maior pode haver
que ser perversa aquela a quem amamos? Despreza-a, deixa-a ir desposar alguém no
Hades, como inimiga, que é. Em toda a cidade, foi a ela só que eu apanhei em acto de 655
flagrante desobediência. Não me farei passar por mentiroso perante o país. Antes a
vou matar. Sobre isto, ela bem pode invocar o deus da consanguinidade. Porque na 660
manecerá um combatente justo e corajoso. Mas aquele que transgredir e violar as 670-1, 663
leis ou pense mandar nos que detêm o poder, esse não alcançará elogios da minha 664-5
parte. Não; aquele a quem a cidade elegeu, força é que o escutem em questões de 666
pouca monta, nas justas como nas contrárias. Não há calamidade maior do que a 667
anarquia. É ela que perde os Estados, que deita por terra as casas, que rompe as filas
das lanças aliadas. E àqueles que seguem caminho direito, é a obediência que salva a 675
vida a maior parte das vezes. Deste modo se devem conservar as determinações, e de
forma alguma deixá-las aniquilar por uma mulher. Mais vale, quando é preciso, ser
derrubado por um homem, do que sermos apodados de mais fracos que mulheres. 680
54
Traduzimos, na ordem adoptada por Dawe e por Griffith (668-671 antes de 663-667) que con-
tinua a parecer-nos a mais lógica. Esta transposição, proposta por Seidler e aceite por Pearson e
Mueller, foi atacada por Jebb, que escreve que ela “obliterava um dos traços mais subtis desta fala”,
pois Creonte pede uma obediência absoluta e depois completa esta exigência com uma observação
sobre a dignidade de tal obediência; quem assim obedecer dá a maior prova de que poderá reinar.
Também Lloyd-Jones e Wilson a não adoptam.
Note-se que este passo tem suscitado dúvidas quanto à sua autenticidade, e o próprio Dawe,
que o imprime no texto, propõe no aparato crítico a eliminação de 666-667, e Lloyd-Jones e Wilson
atetizam-nos. Por outro lado, 673-676 parecem suspeitos a Blaydes. Logo a seguir, o excurso sobre
a anarquia e a diatribe contra as mulheres (672-680) são também atetizados por Dawe no aparato.
Mas a teorização política que aqui se encontra está a carácter com o modo de ser de Creonte e cer-
tamente ecoava as discussões da época; quanto ao desdém para com o sexo feminino, além de ser
um lugar comum na tragédia, está em consonância com o que o tirano disse em 524-525 e 578-579.
Ainda relativamente à anarchia, é interessante observar, com E. Fraenkel, Aeschylus: Agamemnon,
Oxford, 1950, II, p. 397, que é esta a mais antiga ocorrência do termo, no sentido de “desobediência
à autoridade”, a menos que o v. 1030 de Os Sete contra Tebas de Ésquilo seja autêntico.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 131
CORO
A nós se nos afigura, se é que a idade nos não ilude, que te exprimes sensa-
tamente sobre este assunto.
HÉMON
Meu pai, de quantos bens os deuses outorgaram aos homens, o raciocínio é o mais
excelente. Nem eu poderia nem saberia afirmar que não tens razão de falar assim. 685
Contudo, também pode ocorrer por outra via um pensamento aproveitável55. Ora tu
não estás em condições de vigiar quanto dizem ou fazem ou têm a censurar, porque
o teu aspecto é terrível para o homem do povo, ante aquele género de palavras que 690
te não apraz ouvir. Mas a mim é-me dado escutar na sombra como a cidade lamenta
essa rapariga, porque, depois de ter praticado acções tão gloriosas, vai perecer de
tal maneira, ela, que, de todas as mulheres, era quem menos o merecia. Ela, que 695
não consentiu que o seu próprio irmão caído em combate ficasse insepulto, e fosse
destruído pelos cães vorazes ou por alguma ave de rapina. Não é ela digna de receber
honras gloriosas? Tais são os murmúrios obscuros que em silêncio se difundem. Para 700
mim, ó meu pai, não há bem mais precioso do que a tua felicidade. Pois que glória
maior pode haver para os filhos do que a prosperidade do pai, ou para o pai do que
a dos filhos? Não tenhas pois um só modo de ver: nem só o que tu dizes está certo, 705
e o resto não. Porque quem julga que é o único que pensa bem, ou que tem uma
língua ou um espírito como mais ninguém, esse, quando posto a nu, vê-se que é
oco. Mas não é vergonha que um homem, ainda que seja sábio, aprenda muita coisa, 710
e não distenda demasiado a corda. Bem vês que, nas torrentes infernais, quando
as árvores cedem, os ramos se salvam: quem oferece resistência, perde-se com as
próprias raízes. Do mesmo modo, quem distender com força a cordagem da nau e 715
não ceder em nada, há-de ficar voltado para baixo, e navegar para sempre com os
bancos dos remadores virados ao contrário. Mas domina a tua cólera, modifica o teu
ânimo. Se, portanto, eu posso, apesar de mais novo, apresentar uma opinião boa, 720
direi certamente que vale mais aquele homem que por natureza é mais dotado de
saber em tudo; se, porém, assim não for – pois é costume a balança não se inclinar
para este lado – é belo aprender com aqueles que falam acertadamente.
CORO
Senhor, se ele dissertou com propriedade, é natural que tu aprendas com ele, e tu,
Hémon, com teu pai, por tua vez; pois de ambas as partes se disseram palavras sensatas. 725
55
Na sequência de Heimreich, Lloyd-Jones e Wilson atetizam este verso. Parece-nos, no entanto,
que a frase é importante no cauteloso argumentar de Hémon.
132 TRADUÇÕES DO GREGO
CREONTE
Com que então devo aprender a ter senso nesta idade, e com um homem de
tão poucos anos?
HÉMON
Nada aprenderias que não fosse justo. E, se eu sou jovem, não são os anos, mas
as acções, que cumpre examinar.
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
Não tens respeito por ele, quando calcas as honras devidas aos deuses. 745
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
CREONTE
HÉMON
Se não fosses meu pai, diria que não estavas a ser sensato. 755
56
Na longa stichomythia que vai de 740 a 757, Dawe supõe que a ordenação dos versos terá sido
alterada pela memória dos actores, pelo que propõe que se leia 740-741, 748-749, 756, 755, 742-747,
750-754, 757-760. Traduzimos de acordo com a sequência apresentada pelos manuscritos, que é a
adoptada por Lloyd-Jones e Wilson.
57
Traduzimos de acordo com o texto dos manuscritos. Lloyd-Jones, Classical Quarterly 4 (1954) 93,
propôs a emenda de κενάς para σ’ἐμάς, que adopta na sua edição. Assim daria à frase o sentido de “Em
que consistem as ameaças de te expor os meus propósitos?” Embora paleograficamente fácil, a alteração
faz desaparecer o eco daquele adjectivo (“ocas”) na resposta de Creonte.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 135
CREONTE
HÉMON
CREONTE
Sim? Pois, pelo Olimpo, fica sabendo que não me ultrajarás com as tuas cen-
suras impunemente. (Para as guardas) Tragam essa abjecta criatura, para que 760
HÉMON
Dito de mim, com certeza, não o julgues jamais; nem ela perecerá perto de
mim, nem de modo algum avistarás o meu rosto, vendo-o com os teus olhos. 765
De forma que serás louco, sim, mas na companhia dos amigos que o queiram.
(Sai Hémon.)
CORO
CREONTE
CORO
CREONTE
CORO
CREONTE
necessário para fugir ao sacrilégio, a fim de que a cidade evite qualquer con-
taminação58. E aí, se ela pedir ao Hades – único dos deuses que venera –, talvez
lhe seja concedido não morrer, ou ficará finalmente a saber, embora tarde, que
prestar culto a esse deus é trabalho escusado. 780
(Sai Creonte59.)
CORO
enlouquece.
58
Causar impunemente a morte de alguém era um crime que os deuses castigavam com seve-
ridade. Assim, no começo do Rei Édipo, uma epidemia de peste assola Tebas, porque o desconhecido
assassino de Laio não fora ainda castigado.
59
Para Kitto, Form and Meaning in Drama, pp. 146-147, Creonte permanece em cena durante as partes
líricas, uma vez que não há no texto indicação em contrário. A esta opinião pode objectar-se que a
inversa também é verdadeira.
A presença de Creonte durante o quarto estásimo, bem como o segundo, e talvez o terceiro, é ainda
aceite por Winnington-Ingram, Sophocles. An Interpretation, pp. 100 e 136, nota 58. Outros, como Burton,
The Chorus in Sophocles’Tragedies, p. 112, colocam a saída de Creonte em 780, para dar ocasião a mandar
proceder ao emparedamento de Antígona, e o seu regresso a tempo de ouvir as palavras finais do kommos
do quarto episódio. Neste sentido se pronunciara também Kamerbeek, que foi ao ponto de afirmar que
“a presença de Creonte durante o kommos seria intolerável; não serviria nenhuma finalidade dramática”
(p. 156); por isso, se em 780 deve assinalar-se a saída do rei, como já fizera Jebb, em 882 teremos de mar-
car o seu regresso - sem o que, acrescentaremos nós, não se compreenderia que, no princípio do quinto
episódio, Tirésias encontre logo o monarca em cena. Também H. Patzer, Hauptperson und tragischer Held in
Sophokies’Antigone, p. 90, julga impossível a presença de Creonte durante este estásimo.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 137
Afrodite.
Antígona
aproximar-se.
ANTÍGONA
estrofe 2.ª
60
Alusão a Antígona.
61
Seguindo Lloyd-Jones e Wilson, mantivemos a lição dos manuscritos, ἐμπαίζει, em vez da
conjectura de Livineius, adoptada por Dawe, ἐμπαίει, que significaria “atinge-o”. Como Mueller,
pensamos que é aquele verbo, e não este, que caracteriza a actuação de uma deusa que troça dos
mortais. Sobre as dificuldades de interpretação desta ode, vide Winnington-Ingram, Sophocles. An
Interpretation, especialmente p. 95.
62
Este episódio toma, desde o v. 806 a 882, a forma de um kommos, ou seja, conforme a definição
de Aristóteles, Poética 1452b, de uma “lamentação em comum do coro e da cena”.
63
Um dos rios do Hades, frequentemente tomado como sinónimo da mansão dos mortos.
138 TRADUÇÕES DO GREGO
CORO
o salário;
mas por ti64,
única viva entre os mortos,
ao Hades descerás.
ANTÍGONA
CORO
64
No original está a palavra-chave ἀυτόνομος, que aponta para o exclusivismo de Antígona na
obediência à lei. “O coro vê Antígona como fazendo as suas próprias leis independentemente das leis
do Estado em que vive, como se ela fosse uma espécie de Estado dentro do Estado”. (Burton, The Chorus
in Sophocles’Tragedies, p. 119).
65
Níobe, filha de Tântalo e mulher de Anfíon, rei de Tebas, era natural da Frígia (por isso, estran-
geira para os Tebanos). Por se ter vangloriado de ter gerado muitos filhos, ao passo que Latona apenas
tivera Apolo e Ártemis, estes mataram-lhe toda a descendência. Níobe chorou até ser petrificada no
monte Sípilo, na Lídia, e as suas lágrimas ficaram transformadas em fonte. O mito inspirou diversos
escultores e pintores, bem como dramaturgos (Ésquilo e Sófocles, em tragédias que se perderam).
SÓFOCLES, ANTÍGONA 139
ANTÍGONA
recinto sagrado!
O vosso testemunho invoco ainda assim,
como sem lágrimas amigas
e sob que leis
vou p’ra cave tumular
de estranho sepulcro.
Ai de mim, desgraçada, 850
CORO
66
Seguindo G. Wolff, e contrariando Jebb, Dawe assinala aqui uma lacuna de um verso, exigida
pela correspondência com o sistema anapéstico anterior. Lloyd-Jones e Wilson apenas registam o
facto no aparato.
67
Sobre este rio de Tebas, vide supra, nota 10.
68
Os vv. 850-851 têm sofrido várias correcções. Dawe coloca o texto entre cruces. Lloyd-Jones e
Wilson retiram a primeira negativa, antes de βροτοῖς, e acrescentam νεκρός antes da segunda, em
851. Resumimos o total numa frase só.
69
Diversas interpretações têm sido propostas para este passo, uma das quais, a de Lesky, Hermes
80 (1952) 98 = Gesammelte Schriften, Bern, 1966, p. 176, levaria a supor que Antígona se prostrara como
suplicante junto do altar de Dike (a Justiça). Burton, The Chorus in Sophocles’Tragedies, p. 121, ao referir
esta hipótese, conclui que ela levaria a perceber na resposta do Coro o seu reconhecimento da justiça do
acto da heroína, mas a tal interpretação se opõem, quer razões de ordem linguística, quer o confronto
140 TRADUÇÕES DO GREGO
ANTÍGONA
o tríplice lamento70.
Ai das maldições
do leito materno e união de meu pai
de infeliz mãe 865
foste celebrar71!
E depois de morto
a mim me mataste,
quando ainda vivia!
CORO
ANTÍGONA
com passos similares de Ésquilo. O texto que temos, continua, leva-nos a imaginar um pedestal em
que se encontra a figura da Justiça e que é esta que detém Antígona na sua correria louca contra ela.
70
O multiplicativo serve apenas para dar maior intensidade.
Como esclareceu o escoliasta, foi o casamento de Polinices com a filha de Adrasto, rei de Argos,
71
contemplar.
A minha sorte, sem pranto,
amigo algum a lamenta.
CREONTE
-na num túmulo abobadado, como eu disse, e depois deixem-na só e isolada, quer
ela deseje morrer ou viva emparedada em tal reduto. Nós estamos puros pelo que
toca a esta donzela, pois não ficará privada da habitação dos de cá de cima. 890
ANTÍGONA
Ó meu túmulo e meu tálamo nupcial, ó lar cavado na rocha que me guar-
darás prisioneira para sempre! Para aí avanço ao encontro dos meus, de que
Perséfone72 recebeu já o maior número entre os mortos; dentre eles, restava eu, 895
derramei sobre o túmulo as libações. E agora, Polinices, por ter dado sepultura
ao teu corpo, obtenho esta recompensa.
[E contudo, eu soube bem honrar-te, aos olhos dos que pensam bem. Pois nem
que eu fosse uma mãe com filhos, nem que tivesse um marido que apodrecesse 905
e mãe ocultos no Hades, não poderá germinar outro irmão. Por eu ter preferido
honrar-te, devido a este princípio, é que eu apareci aos olhos de Creonte como
culpada e ousada, ó meu caro irmão! E agora ele tem-me nas suas mãos, e leva- 915
72
Esposa de Hades, e, como tal, rainha dos infernos.
142 TRADUÇÕES DO GREGO
ainda viva, para os sepulcros dos mortos.] 73 Qual foi a lei divina que eu transgredi? 920
Porque hei-de eu, ai de mim, olhar ainda para os deuses? Quem invocarei para
me valer, já que por usar de piedade fiquei possuída de impiedade?
Mas se esta pena é bela aos olhos dos deuses, só depois de a termos sofrido 925
poderemos reconhecer que errámos. Se, porém, são eles que erram, que eles não
sofram maiores males do que aqueles a que me forçaram, fora da lei.
CORO
CREONTE
ANTÍGONA
CREONTE
73
Os vv. 904-920 são considerados por Jebb e por muitos outros comentadores como uma interpolação
que perturba o sentido do texto. Outros, como Kirkwood, Knox, Kamerbeek, aceitam-nos, como uma
tentativa desesperada de auto-defesa da heroína, quando tudo parecia ter falhado. É costume invocar a
história da mulher de Intafernes, que prefere poupar a vida do irmão, em vez da do marido ou dos filhos,
em Heródoto 3.119 (a que poderia acrescentar-se a de Meleagro, na Ode V de Baquílides) para justificar os
sentimentos que estariam na base deste estranho raciocínio, que desde Goethe é conhecido como o “cál-
culo dialéctico”. Dawe, que mantém o passo, recorda no aparato crítico que Aristóteles, Retórica 1417a, co-
nhecia estes versos. A ter havido interpolação (como supomos, pelo que assinalámos todo o passo com
parêntesis rectos), ela já estaria feita, portanto, no séc. IV a.C. Note-se, no entanto, que a edição de Lloyd-
-Jones e Wilson também mantém o passo, cuja autenticidade foi de novo defendida por Matt Neuburg,
“How like a woman: Antigone’s ‘Inconsistency’”, que tenta provar, com base numa “leitura estrutural, temá-
tica da peça” (p. 70), que ele faz sentido. Também Martin Cropp, “Antigone’s final speech (Sophocles, Anti-
gone 891-928)”, após uma análise da retórica desta rhesis, na qual distingue três pontos de vista principais
(a decisão da heroína perante os mortos, perante os vivos e perante os deuses), defende a consistência
do texto quanto às suas três partes. Também Griffith, pp. 277-279, tem o passo como autêntico.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 143
ANTÍGONA
Ó cidade paterna,
do solo de Tebas, ó deuses ancestrais,
levam-me, já não aguardo mais.
Vêde, ó príncipes de Tebas, 940
CORO
74
Para Rohdich, Antigone, pp. 202-203, só depois do quarto estásimo é que Antígona sai da cena.
75
O Coro evoca sucessivamente figuras da mitologia que foram castigadas com o emparedamento,
como Antígona. Assim, Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos, foi encerrada por este numa torre de bronze,
a fim de que não tivesse descendência, pois estava profetizado que o filho que gerasse o mataria. Porém
Zeus visitou-a na sua prisão, sob a forma de chuva de ouro, e a princesa deu à luz Perseu. Acrísio meteu
mãe e filho numa arca, que lançou ao mar. Mas eles acabaram por dar à costa na ilha de Serifo, onde
encontraram acolhimento. O mito inspirou inúmeras obras de arte, antigas e modernas, entre as quais
cumpre salientar o fr. 38 Page de Simónides (traduzido em português na Hélade, Porto, 92005, pp. 178-179).
76
É a ideia tradicional grega sobre a inamovibilidade do destino, que regressa adiante, vv. 986-987
(sempre na boca do Coro). A noção afim, de transmissão hereditária da culpa, afirma-se no v. 856, e
a de maldições que actuam nas famílias no segundo estásimo (cf. supra, nota 48).
77
Licurgo, filho de Driante e rei dos Edones (na Trácia) opôs-se à introdução do culto de Diónisos
no seu país. O deus castigou-o com a loucura (ou a cegueira, segundo outros), até que os Edones, por
ordem de um oráculo, o encerraram numa caverna do Monte Pangeu. Os versos finais desta antístrofe
aludem a aspectos característicos das celebrações dionisíacas: o delírio das Bacantes, as tochas acesas,
a música da flauta. A história de Licurgo serviu de tema a uma trilogia perdida de Ésquilo, a Licurgeia.
144 TRADUÇÕES DO GREGO
78
Literalmente: “e irritou as Musas, amigas da flauta”. A este propósito, observa Kamerbeek que
φιλαύλους Μούσας tanto pode ser uma metonímia (como o escoliasta parece supor) como as próprias
deusas: inclina-se, porém, para a segunda hipótese. Em nosso entender, o contexto favorece a primeira.
As Simplégades, que estavam à entrada do Bósforo.
79
Como deus da guerra e da carnificina, estava naturalmente ligado a este acto sangrento.
82
Cleópatra, filha do Vento Bóreas (por isso se lê na antístrofe “em meio das pátrias tempestades
de Bóreas se criara”) e esposa de Fineu, rei de Salmidessos, de quem teve dois filhos. Mais tarde, Fineu
repudiou-a, encarcerou-a e desposou Idoteia, a qual cegou e aprisionou os enteados. Sabe-se que Ésquilo
escreveu uma tragédia sobre Fineu, ao passo que Sófocles compôs duas ou três sobre o mesmo tema.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 145
de funestos esponsais.
Aos ancestrais Erectidas83
remontava a sua raça,
e em cavernas distantes,
em meio das pátrias tempestades
de Bóreas84 se criara, veloz 985
TIRÉSIAS
Príncipes de Tebas, fizemos caminho juntos, sendo de nós dois um só o que vê,
pois a maneira de andar dos cegos é ter alguém que os guie. 990
CREONTE
TIRÉSIAS
CREONTE
TIRÉSIAS
CREONTE
83
A mãe de Cleópatra era Oreitia, filha de Erecteu, rei de Atenas.
84
Vento Norte.
85
As Parcas ou Moirai eram divindades que fiavam o destino dos homens.
86
Mais uma metáfora náutica. Cf. supra, nota 23.
146 TRADUÇÕES DO GREGO
TIRÉSIAS
CREONTE
TIRÉSIAS
de todos os seres alados, oiço um som das aves desconhecido, oiço-as a gritar
com fúria penosa e vozes bárbaras. Percebi que se dilaceravam umas às outras
com as garras, de uma maneira sangrenta; o barulho das asas não era, na ver-
dade, desprovido de significado. Imediatamente, cheio de temor, experimentei
os sacrifícios do fogo, em altares todos em chamas 88; e dentre as brasas não
brilhou Hefestos 89, mas sobre as cinzas os humores pútridos das coxas das víti- 1005
mas exsudaram, fumegaram e crepitaram, o fel espalhava-se nos ares e as coxas 1010
poluídos pelas aves e cães que comeram do infeliz filho de Édipo, que jaz no
sítio onde caiu. E depois os deuses não aceitam da nossa parte as súplicas que 1020
87
A observação da vontade dos deuses através dos movimentos das aves (significado etimológico da
palavra “auspícios”) desempenhava um papel muito importante na religião, quer grega, quer romana.
Da existência do lugar de observação de Tirésias em Tebas restava, ainda no séc. II, a tradição,
segundo Pausânias 9.16.1.
Outro dos processos divinatórios consistia em queimar a carne dos animais que se sacrificavam
88
da frase; mais adiante, atetiza igualmente 1021, seguindo Reeve. Um e outro são mantidos por Lloyd-
-Jones e Wilson e também por Griffith.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 147
matar de novo quem já morreu? Por pensar no teu bem é que eu falo. Nada mais 1030
agradável do que atender quem fala por bem, se é vantajoso o que diz.
CREONTE
Ó ancião, todos vós sois como archeiros que atiram para este homem como para
um alvo, e a vossa arte de adivinhar não me deixou incólume. A raça dessa gente91 1035
presa, arrebatando-o para o trono do deus. Nem mesmo temendo isso como um
motivo de poluição, eu o entregarei à sepultura. Porque eu bem sei que nenhum
homem tem o poder de manchar os deuses. E caem de uma maneira vergonhosa, 1045
ó velho Tirésias, mesmo aqueles dentre os mortais que são mais sábios, quando
dizem com arte palavras baixas, com a mira na ganância.
TIRÉSIAS
Ai! Por ventura há algum homem que saiba, algum que pense...
CREONTE
TIRÉSIAS
CREONTE
TIRÉSIAS
91
Passo obscuro, como observam, no seu aparato, Lloyd-Jones e Wilson, que colocam entre
cruces o final do v. 1034 e todo o v. 1035. Brown corrige μαντικῆς para μαντικοῖς, tornando a frase
mais compreensível.
148 TRADUÇÕES DO GREGO
CREONTE
TIRÉSIAS
CREONTE
TIRÉSIAS
CREONTE
Acaso sabes que estás a proferir censuras contra quem está no poder?
TIRÉSIAS
CREONTE
TIRÉSIAS
Vais incitar-me a revelar um segredo que devia deixar intacto na minha alma. 1060
CREONTE
TIRÉSIAS
CREONTE
TIRÉSIAS
Convence-te bem que de já não verás cumprirem-se muitas revoluções suces- 1065
sivas do Sol, antes de teres dado alguém, saído das tuas próprias entranhas – um
cadáver em troca de outros –, em paga de teres arremessado lá para baixo quem era
ainda cá de cima, e de com desprezo teres encerrado num túmulo uma vida, e de
conservares aqui um cadáver que é pertença dos deuses infernais, sem a sua parte 1070
de oferendas, sem rituais, sem purificações. Neles não tens tu parte, nem os deuses
celestes, mas a tua conduta é uma violência. Por esse motivo, as Erínias93 do Hades
e dos deuses, essas potências de destruição após o crime, estão de emboscada, à 1075
espera de que sejas apanhado pelos mesmos males que eles. Considera também se
eu digo isto por suborno: não demorará muito tempo que surjam no teu palácio
gemidos de homens e de mulheres94. Todas as cidades se agitam agressivas, as da- 1080
queles cujos restos dilacerados receberam os rituais fúnebres dos cães ou das feras
ou de quaisquer aves aladas, levando o cheiro impuro para a pátria dos seus lares95.
Como um archeiro, atirei com ira, pois me af ligiste, estas setas firmes da 1085
92
Traduzimos a frase como interrogativa, tal como a imprimem Dawe, Lloyd-Jones e Wilson e ainda
Griffith, e dando às partículas o valor que lhes atribui Kamerbeek.
93
Sobre as Erínias, vide supra, nota 51.
94
O genitivo pode ser entendido como subjectivo ou como objectivo (e nesta hipótese significaria
“por homens e por mulheres”, aludindo à previsão da morte de Hémon e de Eurídice).
95
Embora se possa ver uma alusão ao facto já no v. 10, o certo é que só aqui se diz que não só
Polinices, mas todos os seus aliados, estavam insepultos. Esta veio a ser depois a causa da guerra dos
Epígonos (os descendentes desses mortos). A lenda era muito conhecida dos Atenienses, pois foi graças
à intervenção armada de Teseu que os cadáveres foram restituídos às suas cidades (tema da tragédia de
Eurípides, As Suplicantes). Por isso não julgamos que haja razão suficiente para excluir os vv. 1080-1083,
como fez A. Jacob. A edição de Lloyd-Jones e Wilson, que os conserva, prefere supor uma lacuna antes
do v. 1081, que Dawe também adoptou na sua 3.ª edição.
150 TRADUÇÕES DO GREGO
CORO
O homem partiu, senhor, depois de ter profetizado coisas terríveis. E nós sabemos,
desde que este nosso cabelo, de negro, se volveu em branco, que jamais ele disse
falsidades que acontecessem ao país.
CREONTE
CORO
CREONTE
CORO
Vai dar ordem para trazer a donzela da mansão subterrânea, ergue um 1100
CREONTE
CORO
Sim, e o mais depressa possível, senhor, porque os flagelos dos deuses, com pés
velozes, vêm atalhar o caminho aos maldosos.
96
Seguimos o texto (e a interpretação) propostos por Lloyd-Jones, Classical Review 14 (1964) 129-
130, e agora incluído na sua edição oxoniense. As emendas abrangem apenas Ἄτη (que passa para
genitivo) e aquilo que Jebb chamara a “dreadful alternative” de ἐν δεινῶι, que foi substituído por
ἐν λίνωι, formando assim uma metáfora com antecedentes em Ésquilo (Persas 97-99, Agamémnon
360, Prometeu 1078).
SÓFOCLES, ANTÍGONA 151
CREONTE
Ai de mim! É a custo que o faço, mas abandono o meu propósito para ceder. 1105
CORO
CREONTE
Irei já, assim como estou. Ide, ide, servos, os presentes e os ausentes, tomai 1110
CORO
estrofe 1.ª
97
Mais do que qualquer outro deus, Diónisos, aqui implorado como patrono da cidade, distinguia-
-se pela variedade de invocações que lhe eram dadas - mais de sessenta.
98
Sémele, filha de Cadmo, era amada de Zeus, a quem pediu que lhe aparecesse com todo o seu poder. O deus
supremo manifestou-se então com os seus trovões e raios, que fulminaram Sémele. No entanto, Zeus salvou
o nascituro, Diónisos, a quem, por este motivo, se chama aqui “raça de Zeus tonitruante”. Cf. supra, nota 21.
99
Dawe alterou Ἰταλίαν para Οἰχαλίαν, com base na existência de culto dionisíaco nessa região,
mencionada por Pausânias 7.21.1-5, e tendo em atenção que as outras terras citadas são todas próximas
dessa. Porém a autenticidade da lição dos manuscritos tem a seu favor, entre outros argumentos, o da
então recente fundação de Túrios, na Magna Grécia (local, onde, acrescentamos nós, se encontraram
algumas das famosas lâminas de ouro, cujo conteúdo, sabe-se desde há pouco, é de origem dionisíaca).
Sobre o interesse desta referência para a história da religião grega, vide W. Burkert, Ancient
Mystery Cults, Cambridge, Mass., 1987, p. 142, nota 55.
100
Diónisos era venerado em Elêusis, ao lado de Deméter, com o nome de Iaco.
152 TRADUÇÕES DO GREGO
os fumegantes brandões104
te têm visto, onde andam
as corícias, bacantes
Ninfas, e a Fonte Castália105. 1130
101
As celebrantes do culto orgiástico de Diónisos eram as Bacantes.
102
Rio que corria do lado nascente de Tebas.
Cadmo semeara o solo com dentes de dragão, dos quais haviam nascido os antepassados dos
103
de Diónisos), esta deve ser a da ilha de Eubeia, onde cresciam em abundância as duas plantas simbólicas
do deus: a hera e a vinha.
107
A lição dos manuscritos, ἀμβρότων ἐπέων (“palavras imortais”), é seguida por Jebb e por Lloyd-
-Jones e Wilson e por Griffith. Kamerbeek também entende que deve manter-se, apesar de ser “uma
ousada figura de linguagem”. Outras emendas, como a de Pallis, acolhida por Dawe (ἀμβρότων ἑπετᾶν)
têm contra si o facto de esta última palavra não ocorrer na tragédia.
108
Um dos gritos rituais em honra de Diónisos.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 153
(Entra o Mensageiro.)
MENSAGEIRO
Ó vós que habitais junto do palácio de Cadmo e de Anfíon114, não há situação 1155
na vida humana que eu de algum modo preze ou deprecie, como coisa fixa. Pois
que a fortuna dirige e a fortuna faz balançar sempre a felicidade e a infelicidade.
E ninguém pode ser profeta sobre a humana condição. Outrora, Creonte era digno 1160
de inveja, a meu ver, pois tinha salvo dos inimigos este país de Cadmo e, depois
de ter assumido o poder único e total desta terra, governava-a, prosperando na
descendência nobre de seus filhos. E agora tudo se lhe foi. Pois, quando os prazeres 1165
do homem o abandonaram, acho que ele já não está vivo, apenas traz um cadáver
animado. Suponhamos, se quiserem, que se é muito abastado em casa e se vive à
109
Referência ao destino de Sémele. Cf. supra, nota 98.
110
O Euripo, que separa a Eubeia da Beócia.
111
O poeta associa os próprios elementos da Natureza ao entusiasmo dionisíaco. Não vemos necessidade
das complexas explicações de C. Segal, Tragedy and Civilization. An Interpretation of Sophocles, pp. 200-206,
para o estásimo em geral, e para este passo em particular.
112
As Tíades eram as ninfas que celebravam as orgias dionisíacas.
113
As danças nocturnas em honra de Diónisos-Iaco (cf. supra, nota 99) eram parte do cortejo de
Atenas para Elêusis, por ocasião da celebração dos Mistérios. Eurípides também lhes faz referência
no Íon (vv. 1078-1086); Aristófanes parodia-as em As Rãs (vv. 316-408).
114
Anfíon, bem como seu irmão Zetos, haviam construído a muralha de Tebas.
154 TRADUÇÕES DO GREGO
maneira de um rei: se a isso se retirar a alegria, o que resta eu não o compraria 1170
CORO
MENSAGEIRO
CORO
MENSAGEIRO
Hémon pereceu. Sangra por obra de uma mão que não é estranha. 1175
CORO
MENSAGEIRO
CORO
MENSAGEIRO
CORO
Eis que vejo perto a desgraçada Eurídice, esposa de Creonte. Ei-la que sai de 1180
dentro do palácio, ou porque ouviu falar do filho, ou porque passou por acaso.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 155
EURÍDICE
Cidadãos todos que aqui estais, percebi as vossas palavras, quando avançava 1185
para a porta, a fim de dirigir preces à deusa Palas115. Por acaso, no momento em que
levantava a tranca do portal para o abrir, chegam-me aos ouvidos vozes de desgraça
familiar; com o terror, caio para trás nos braços das escravas e perco os sentidos. Mas
vós contai outra vez a história; não sou pessoa inexperiente da desgraça: escutarei. 1190
MENSAGEIRO
Contarei, minha cara ama, pois estava presente, e não omitirei uma só palavra
da verdade. Pois para que havia eu de atenuar aquilo que mais tarde nos faria
passar por mentirosos? A verdade está sempre certa. 1195
Eu fui com o teu esposo, como seu guia, até ao extremo da planura; aí jazia
ainda, sem que ninguém o lamentasse116, e dilacerado pelos cães, o corpo de
Polinices. Rogámos à deusa dos caminhos e a Plutão117 que, propícios, detivessem 1200
suas iras, lavámo-lo com pia unção, envolvemo-lo em ramos colhidos de fresco,
depois queimámos o que restava118. E, após termos erguido um túmulo elevado,
dirigimo-nos então para o aposento nupcial119 da donzela, uma caverna infer- 1205
nal, com chão de lagedo. De longe, alguém ouve o som de autênticos gemidos
junto daquele quarto nupcial sem ritos funerários, e, de regresso, anuncia-o
ao rei Creonte. À medida que ele se aproxima cada vez mais, passam também
em sua volta sinais indistintos de um grito de desgraça, e, gemendo, despede
estas palavras lamentosas: – Ó desgraçado de mim, estarei eu a adivinhar? 1210
115
Havia em Tebas dois santuários de Palas Atena.
116
Como Jebb e Kamerbeek, atribuímos sentido passivo, e não adverbial, a νηλεές.
117
Trata-se de Hécate, a deusa das encruzilhadas, que vem a confundir-se com Perséfone, e do
deus dos infernos, aqui referido por outro dos seus nomes.
Descrevem-se aqui os rituais fúnebres dos Gregos, que usavam a cremação. Sobre as cinzas,
118
se sou iludido pelos deuses –. Estas foram as palavras do nosso exaltado amo.
Vamos ver: no interior do túmulo avistamo-la suspensa pelo pescoço, presa pelo 1220
laço de um tecido fino. Ele, agarrado a ela com os braços apertados em volta,
lamentava a destruição da sua noiva do além, a acção do seu pai e a desgraça das 1225
suas núpcias. O rei, assim que o viu, soltando um grito amargo, corre para dentro,
em direcção a ele, e chama-o com um lamento: – Ó desgraçado, que fizeste? Que
pensamentos eram os teus? Que acontecimento te privou da razão? Sai daí, filho, 1230
é com súplicas que to peço –. O filho deita-lhe um rápido e fero olhar, cospe-lhe
no rosto, e, sem nada responder, puxa dos copos da espada, mas não atinge o pai,
que se precipita na fuga. Em seguida, o desventurado, furioso consigo mesmo, tal 1235
como estava, coloca-se sobre o montante, apoia-o contra o seu flanco até metade
e, ainda lúcido, atrai a donzela aos seus braços a desfalecer. Arquejante, lança
uma torrente veloz de sangue gotejante nas brancas faces. Jaz um cadáver ao pé 1240
CORO
Que te parece isto? A senhora retirou-se de novo, antes que dissesse uma só
palavra, para bem ou para mal. 1245
MENSAGEIRO
CORO
Não sei. A mim, contudo, este silêncio em demasia parece-me de mau augúrio,
tanto quanto um vão alarido.
a caverna de Antígona que Sófocles imaginou, mas parece ter algo de semelhante com os túmulos
micénicos, como o chamado Tesouro de Atreu.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 157
MENSAGEIRO
CORO
CREONTE
121
Desde este ponto até ao v. 1347, o texto toma a forma de um kommos (sobre a qual vide supra,
nota 62).
Os anapestos acabados de proferir pelo Coro, bem como o v. 1279, levam a supor, como Mueller e
Kamerbeek, que é o próprio rei que traz o cadáver de Hémon, em vez de se limitar a acompanhar o
préstito fúnebre, como supôs Jebb. O mesmo Kamerbeek formula a hipótese (p. 201) de Creonte mais
adiante pousar o filho e ajoelhar-se ao seu lado durante a primeira estrofe e antístrofe. Tal não nos
parece possível, tendo em conta que entre as duas se situa o mencionado v. 1279.
158 TRADUÇÕES DO GREGO
CORO
CREONTE
Aprendi, desgraçado!
Na minha cabeça o deus
desferiu pesado golpe,
incitou-me aos caminhos cruéis,
derrubando-me, ai de mim!, 1275
espezinhando a alegria.
Oh! as penas dolorosas dos mortais!
SEGUNDO MENSAGEIRO
Meu amo, dir-se-ia que vieste aqui como quem já tem e ainda possui mais, pois
trazes uma desgraça nas mãos, e em casa irás ver outra brevemente. 1280
CREONTE
SEGUNDO MENSAGEIRO
A tua mulher, a verdadeira mãe desse cadáver, desgraçada, morreu sob golpes
vibrados há bem pouco.
CREONTE
122
Como Jebb e Liddell-Scott, entendemos δυσκάθαρτος como “que nenhum sacrifício pode apa-
ziguar”. Outros, entre os quais Kamerbeek, preferem interpretar literalmente: “difícil de purificar”.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 159
SEGUNDO MENSAGEIRO
CREONTE
segunda calamidade!
Que desgraça, que desgraça
pode ainda aguardar-me? Nas mãos,
há pouco, o filho, coitado!
Já na frente outro cadáver!
Ai, ai, mãe miseranda, ai, meu filho! 1300
SEGUNDO MENSAGEIRO
A senhora, junto do altar, com a espada afiada124, deixa que as suas pálpebras
façam trevas; geme sobre o leito vazio de Megareu 125, morto outrora, e depois
123
É duvidoso que se usasse para este efeito o maquinismo chamado ekkyklema. Cf. A. Pickard-
Cambridge, The Theatre of Dionysus in Athens, Oxford, 1946, p. 110, e Kamerbeek, p. 206.
124
Tradução aproximada de um passo corrupto (v. 1301), após o qual Dawe e Lloyd-Jones e Wilson,
seguindo Brunck, conjecturam uma lacuna.
125
O outro filho de Creonte sacrificara a vida para apaziguar Ares, que exigia como vítima um
descendente puro de Cadmo. Este mito foi aproveitado por Eurípides para uma das mais belas cenas
do seu drama As Fenícias (onde, aliás, o jovem se chama Meneceu, em vez de Megareu).
Mantendo a lição dos manuscritos, seria κλεινὸν λέχος (“ο leito glorioso”), que não se coaduna com
as circunstâncias. Por isso, Bothe emendou λέχος para λάχος (“sorte”, “quinhão”). Se conservarmos
160 TRADUÇÕES DO GREGO
novamente pelo deste que aqui está; depois invoca as mais terríveis desgraças
sobre ti, assassino de teus filhos. 1305
CREONTE
Tremo de horror!
Porque não me atravessam o peito
com uma espada afiada? Miserável
que eu sou! A miséria e a angústia 1310
confundem-se comigo.
SEGUNDO MENSAGEIRO
A tua culpa para com este filho e para com o outro denunciou-a a morta que
aqui está.
CREONTE
SEGUNDO MENSAGEIRO
CREONTE
λέχος e aceitarmos a emenda de Seyffert de κλεινόν para κενόν, como fazem Lloyd-Jones e Wilson,
obtemos um sentido mais consentâneo com a realidade, pois Megareu deixou cedo o seu leito vazio.
SÓFOCLES, ANTÍGONA 161
CORO
CREONTE
CORO
Isso ao futuro pertence. Mas com os que aqui jazem algo há a fazer. O resto
importa só àqueles que disso têm cuidado126. 1335
CREONTE
CORO
Não, não implores ninguém; aos mortais não é dado libertar-se do destino
que lhes incumbe.
CREONTE
e a ti também!
Ai de mim, desgraçado, não sei para qual
hei-de olhar, a quem apoiar-me127, pois tudo
que tenho nas mãos está abalado; sobre mim 1345
126
Entenda-se: “aos deuses”.
127
O v. 1344, que Dawe transcreve entre cruces, não faz sentido nem está metricamente certo.
Traduzimos segundo as emendas adoptadas por Jebb e aceites por Lloyd-Jones e Wilson: eliminação
de ὅπαι (Seidler) e substituição de καὶ θῶ por κλιθῶ (Musgrave).
162 TRADUÇÕES DO GREGO
impende um futuro
que não se suporta.
CORO