Nois Mudemo
Nois Mudemo
Nois Mudemo
(Autor desconhecido)
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstituí num momento meus longos anos de
magistério. Tudo escuro.
- Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno?
Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
- Eu sou “Nois mudemo”, lembra?
Comecei a tremer.
- Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo seu nome?
- Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa.
- O que aconteceu com você?
- O que aconteceu? Ah! Fessora! É mais fácio dizê o que não aconteceu.
Comi o pão que o diabo amasso. Fui garimpeiro, fui bóia fria, um “gato”
me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata . Lá trabaiei como
escravo, passei fome, fui baleado quando consegui fugi. Peguei tudo quanto é doença.
Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante às veis fais coisa sem qurê faze. A escola fais
uma farta danada. Eu não devia tê saído daquele jeito, fessora, mas não aguentei as
gozações da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje não sei!
- Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei
a soluçar. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, que me olhava
atarantado.
O ônibus buzinou com insistência.
- O rapaz afastou-me de si suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem culpa.
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para
mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da
guilhotina.
Hoje, tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos,
mudaamoos... Super usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática
faz gato e sapato da língua materna – a língua que a criança aprendeu com seus pais e
irmãos e colegas – e se torna o terror dos alunos. Em vez de comunicar e fazer crescer,
se expressando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para
aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares e milhares de lúcios da periferia e do interior, barrados
na sala de aula. “Não é assim que se diz, menino!” Como se o professor quisesse dizer:
“Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão
errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja você!
Renegue suas raízes! Diminua-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!”