Andrew Samuels - Sobreviverao Os Pos-Junguianos
Andrew Samuels - Sobreviverao Os Pos-Junguianos
Andrew Samuels - Sobreviverao Os Pos-Junguianos
SOBREVIVERÃO OS PÓS-JUNGUIANOS?
Andrew Samuels
Este texto foi traduzido mediante expressa autorização do autor. A Rubedo agradece a gentileza e a
amabilidade com que Andrew Samuels vem apoiando nosso projeto.
Introdução
As pessoas que lêem ou escutam pela primeira vez o título deste capítulo, tendem a imaginar
o que aconteceria se a resposta à pergunta fosse "não". Será que isso, meramente, poderia
significar a sobrevivência dos junguianos? Ou, se hoje em dia todo mundo é pós-junguiano,
que ninguém associado à psicologia analítica sobreviveria? Se a resposta para essa pergunta
fosse "sim", continuaria havendo junguianos sobrevivendo lado a lado com pós-junguianos?
Ou a sobrevivência dos pós-junguianos significaria o fim dos junguianos?
Não sei até que ponto deve-se levar a sério a presente questão da sobrevivência. Quero fazer
soar uma nota alarmista, porque tanto sinto quanto percebo ser necessário. Talvez o título
exagere o sentido de estar-se numa encruzilhada, porém, como disse Adorno, certa vez, a
respeito da psicanálise, os momentos importantes de algo podem residir nos exageros.
Para começar, deixem-me dizer algo a respeito do espírito com que escrevi este capítulo. Daí,
seguirei na tentativa de fazer uma espécie de amplo balanço para a psicologia jungiana no
mundo, em termos de créditos e débitos. A terceira seção será uma descrição do que veio a
se chamar "a década pós-jungiana", ou seja, os dez anos ou mais desde que publiquei Jung e
os Pós-Junguianos, em 1985. De lá, partirei na tentativa de dizer algo sobre o cenário pós-
junguiano de hoje, atormentado por conflitos, intrincado e diversificado. Depois disso,
discutirei o árduo problema de prantear a morte de Jung, o homem, que servirá de base para
a discussão de se podemos, de verdade, fazer com que a teoria e a prática jungianas sejam
"suficientemente boas". A seguir vem uma seção sobre Jung na universidade. Finalmente,
apresentarei, para debate e discussão, tanto quanto para qualquer tipo de esquema de
sobrevivência, uma "carta de intenções junguiana"; e concluirei explicando de que modo eu
pessoalmente tento "empacotar" Jung.
No que diz respeito ao espírito deste capítulo, preciso desculpar-me de antemão pela
quantidade de generalizações aqui contidas. Estarei, inevitavelmente, violentando diferenças
individuais valiosas e sinceras. Entretanto, acredito que se possa preservar as diferenças
individuais através da utilização de uma generalização judiciosa. O que tenho a dizer baseia-
se em minha experiência pessoal: minhas inúmeras viagens como conferencista a muitos
países; minha amizade com analistas junguianos e futuros analistas em vários países;
conexões com psicanalistas em muitos destes países; aquilo que aprendi através das conversas
com acadêmicos de diversas disciplinas.
Desejo trazer a público, tão francamente quanto possível, os tipos de questões que os analistas
costumam discutir em segredo. A questão não é se estou certo ou errado a respeito dessas
coisas, mas se os leitores percebem aonde estou querendo chegar. Robert Musil disse certa
vez: "Estou convencido não apenas de que o que eu digo está errado, mas de que o que se
disser em contrário também estará." Assim o espírito do capítulo envolve erro por todo lado.
Como realmente me sinto, sendo junguiano? No congresso internacional de psicologia analítica
de 1995, fiz uma apresentação juntamente com Polly Young-Eisendrath, intitulado "Por que é
difícil, no mundo de hoje, ser um analista junguiano?" É difícil por razões que vou explicar.
Mas eu não disse que fosse impossível. Ser um analista junguiano na prática clínica tem me
provido de uma base extraordinariamente útil, flexível e rica para trabalhar em áreas afins –
política, serviço social e outras. E sou imensamente grato.
Deixem-me prosseguir, falando a respeito desse balanço. No lado dos créditos, encontríamos
a tremenda penetração cultural da psicologia junguiana em alguns países, até um ponto em
que fica quase impossível falar de mulheres, homens, casamento, alma, política, sem se ter
em mente alguma idéia proveniente do corpus ou tradição jungiana, ou pós-jungiana. Este é
um sucesso extraordinário que trouxe consigo seus problemas particulares. Também do lado
dos créditos, acho que podemos discernir uma certa aceitação, até o momento negada aos
"junguianos" nos círculos clínicos, culturais e acadêmicos. Não é uma acolhida de braços
abertos, mas há uma aceitação, estimulada não apenas pelos argumentos irresistíveis e pelo
progresso no comportamento dos junguianos, mas também por mudanças no processo cultural
e no modo como compreendemos tanto o trabalho clínico quanto a natureza do conhecimento
mesmo na cultura contemporânea.
Um outro crédito deriva do fato de que a psicologia analítica opera internacionalmente. Não
tenho como exagerar a importância, para a psicologia junguiana, de que tenha havido, a nível
internacional, uma livre troca de idéias e de práticas. Em particular, o que é chamado
ironicamente de "áreas fronteiriças" para a psicologia analítica, tem-se provado fonte de todos
os tipos de boas idéias e energia criativa. Nos antigos países comunistas, no Extremo Oriente,
na América Latina e Australásia, estudiosos e analistas pós-junguianos estão fazendo e dizendo
coisas que adquirem valor em proporção direta a sua tendência para chocar os veteranos na
Europa e na América do Norte.
No lado dos débitos, os analistas junguianos não conseguem contornar o argumento do "culto
a Jung", lançado por Richard Noll (1994), simplesmente atacando seu autor. Os argumentos
de seu livro são bastante falhos: a análise jungiana não é um sistema de vendas piramidal e
o trabalho clínico não depende de um caminho apertado sobre uma versão particular da teoria
do inconsciente coletivo. Porém, às vezes, há uma excessiva deferência, visível em grupos
junguianos, para com os analistas em geral e, em particular, aos analistas mais antigos; uma
deferência é, às vezes, difícil de se justificar em termos da produtividade efetiva desses
indivíduos. Talvez deva observar que também fui, por vezes, o receptor, até mesmo beneficiei-
me por um breve período, de transferências idealísticas e positivas, verdadeiramente
injustificadas e, tenho que confessar que algumas vezes não tive auto-crítica suficiente, ou
não fui assíduo o bastante, para perguntar-me: estarei eu, aqui, conduzindo uma onda de
culto? Há também um problema gerontocrático, o qual definitivamente é preciso abordar. Isto
significa que alguma coisa foi incorporada à senioridade – cronológica tanto quanto profissional
– que precisa de uma crítica urgente.
Também no lado dos débitos, encontra-se a aparente inabilidade do nosso ramo particular da
profissão de psicoterapeutas, em convencer o grande público de que os analistas junguianos
não têm desvios de conduta sexual em maior proporção que os membros de qualquer outra
escola de psicoterapia. Há vinte e cinco anos atrás isso era um problema explícito na análise
jungiana. Porém, já colocamos nossa casa em ordem. Não obstante, em parte por causa do
legado de Sabina Spielrein, Toni Wolff e Christina Morgan – todos analisandos com os quais
supõe-se que Jung tenha tido relações sexuais –, tem sido difícil convencer aos outros de que
não somos piores que as outras escolas de psicoterapia.
Um aspecto adicional do lado dos débitos, diz respeito ao que vejo como a inabilidade contínua
dos analistas junguianos em lidar com os "truques sujos" da psicanálise praticados contra si.
Há uma história a esse respeito, é claro: o "comitê" secreto de Freud, organizado nos começos
da psicanálise, para garantir que não se reconhecessem os desertores como contribuintes
sérios ao empenho psicanalítico. O legado desse comitê é a tendência tão comentada dos
psicanalistas de ignorarem completamente as contribuições pioneiras de Jung (as quais serão
referidas com mais detalhes no momento devido), assim como as dos pós-junguianos. Por
exemplo, um livro recente chamado Freud and Beyond: A History of Psychoanalytic
Thought (1995), de Steven Mitchell e Margaret Black, excelente, abrangente, contém duas
referências a Jung. Acontece de serem referências bastante positivas. Por exemplo, Mitchell e
Black ressaltam que foi Jung quem antecipou a espiritualidade como uma séria preocupação
psicanalítica. Mas, sem dúvida, não haveria muitas outras coisas em que Jung pudesse ser
visto como pioneiro? Em Jung e os Pós-Junguianos (1985), citei dezessete avanços específicos
em psicanálise, desde a Segunda Guerra Mundial, que podem ser atribuídos a Jung como figura
presciente e pioneira. Não é meu propósito levantar novamente estas questões para me
queixar, mas sim para sugerir que esse estado de coisas merece uma entrada na coluna de
débitos da folha de balanço.
Alguns analistas junguianos consideram que isso não importa. Eu, porém, não tenho esse grau
de desprendimento e "maturidade".
A imagem pública da análise jungiana não é boa. De certo modo, isso é estranho. Vende-se
livros aos milhões, mas quando se pede a estudantes universitários que façam um simples
jogo associativo à palavra Jung (e eu o pedi a mais de 300), a avassaladora maioria das
reações à palavra-estímulo "Jung" é ou "Freud", ou alguma coisa que se refira a anti-
semitismo, nazismo, Alemanha, Hitler. Arquétipos vêm em terceiro lugar e misticismo, com
conotação pejorativa, em quarto. Essas reações sugerem que temos um problema de
identidade. Somos uma profissão? Somos uma comunidade? Somos um movimento?
Chegamos a ter uma história estabelecida com a qual todos concordam? Sonu Shamdasani,
um estudioso de Jung, publicou uma série de documentos (por exemplo, 1990, 1995) que
tornam impossível para os junguianos concordarem com os fatos de sua história. Miss Miller,
o pseudônimo de que Jung se utiliza no quinto volume de suas Obras Completas (1956), não
era um pseudônimo. Havia mesmo uma Miss Miller, a qual de forma alguma ignorava o
material cultural e mitológico que naquele tempo constituía a versão de Jung sobre o
inconsciente coletivo. Miss Miller era uma artista de palco, cuja especialidade era vestir-se
como membro de um exótico grupo étnico e recitar poesia germânica para aquele
agrupamento cultural em particular. Você poderia dizer que ela conhecia tudo sobre a idéia de
inconsciente coletivo muito antes de ter ouvido falar em Jung. Shamdasani mostrou também
que a autobiografia de Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões, é um texto dramaticamente
incompleto, cuja maior parte não foi escrita por ele e continha capítulos concernentes a Toni
Wolff, omitidos por insistência da família de Jung. O principal capítulo sobre seu débito a
William James também foi omitido, o que distorce totalmente a perspectiva da história
intelectual.
A década pós-junguiana
O que quer dizer o rótulo "pós-junguiano"? Não cunhei este termo na esteira do "pós-
moderno". Na verdade, foi parodiando um livro bem conhecido da Penguin chamado Freud and
the Post-Freudians (Brown 1961). Talvez tenha sido apenas um tanto de meu complexo de
inferioridade junguiano. (Ou talvez leve cerca de vinte anos a partir da morte do pioneiro para
que tais livros sejam escritos – vinte e um anos para Freud, vinte e quatro para Jung
[Casement 1985].) Contudo, posso ver agora que interpretações do termo pós-junguiano
baseadas em interpretações do pós-modernismo fazem sentido, porque assim como não se
pode, absolutamente, ter pós-modernismo sem a modernidade, não se pode ter psicologia e
análise pós-jungianas sem as psicologia e análise jungianas. Quero expressar com isso uma
conexão com Jung e, ao mesmo tempo, distância crítica de Jung. A palavra-chave é "crítica";
e se eu fosse escrever meu livro de novo e tivesse total liberdade com relação ao título,
gostaria de chamá-lo Psicologia Analítica Crítica.
Eu precisei achar uma maneira de descrever o campo porque o que existia antes como
classificação era bastante problemático. As pessoas costumavam falar de "Londres" e
"Zurique". Mas, mesmo nos anos 80 e, com certeza, nos 90, há o que costumávamos chamar
analistas "londrinos" em Chicago e em São Francisco, e analistas "de Zurique" pelo mundo
todo que nunca chegaram perto de Zurique. Além do que, como hoje em dia existem quatro
sociedades jungianas bem estabelecidas em Londres, referir-se ao que diz respeito a todas
elas como "londrino" é, realmente, impossível em termos de semântica e mesmo de polidez.
Uma outra crença que já estava arraigada em mim antes que começasse a elaborar os modos
pós-junguianos, foi a de que havia, na verdade, uma divisão entre as abordagens clínicas e
simbólicas à psicologia analítica. Acho que Louis Zinkin acertou quando disse que esta divisão
era uma armadilha, pois nenhum analista junguiano que se prezasse diria não ser "simbólico"
e, sim, "clínico" (comunicação pessoal, 1983). E quais profissionais iriam concordar que não
eram "clínicos"?
O que eu fiz em Jung e os Pós Junguianos foi assumir que todas as escolas de psicologia
analítica sabem a respeito, e fazem uso, de todas as idéias e práticas a sua disposição, sob o
título de psicologia jungiana. Meu método foi dizer que, atualmente, há mesmo uma prioridade
e uma ponderação acontecendo dentro de cada uma dessas escolas tão diversas, conectadas
em virtude do fato de serem competitivas entre si.
Também admiti que as escolas sejam ficções criativas, porque existe uma grande quantidade
de sobreposições e que, em muitos aspectos, foram os pacientes que construíram as escolas,
tanto quanto os analistas.
Para resumir, eu disse que havia três escolas: (1) a escola clássica, trabalhando
conscientemente na tradição de Jung, com foco no Si-Mesmo e na individuação. Fiz questão
de mostrar que não se pode igualar clássico com empacado ou rígido. Existem evoluções
dentro de algo clássico que são bem possíveis. (2) A escola desenvolvimentista, que tem uma
abordagem específica sobre a importância da infância na evolução do caráter e personalidade
do adulto e, igualmente, uma ênfase aguda na análise das dinâmicas da transferência-
contratransferência no trabalho clínico. A escola desenvolvimentista tem relação íntima com a
psicanálise, embora a palavra rapprochement, usada com freqüência, esteja totalmente errada
porque a psicanálise não rapproche com a psicologia analítica, ao passo que a psicologia
analítica faz tentativas freqüentes a um rapprochement com a psicanálise. (3) A escola
arquetípica explora e joga com as imagens na terapia. Sua noção de alma sugere o
aprofundamento que permite a um evento tornar-se uma experiência.
Sem dúvida, meu próprio elemento da sombra encontrava-se presente no livro – talvez
houvesse uma fantasia sincretista ao fazer uma classificação como aquela. Espero que, através
dos anos, a utilidade dele tenha prevalecido sobre os aspectos da sombra. Na verdade, não
escrevi o livro a partir de uma clareza olímpica; escrevi a partir da confusão de ser um analista
recém-qualificado, que precisava entender a respeito daquilo sobre que meus antecessores e
superiores tanto se agitavam. Se o livro estava sob a influência de um deus, seria antes a de
Hermes, mais do que a de Zeus.
No livro e, subseqüentemente, tomei uma postura muito menos literal em relação às escolas.
O que eu diria agora, é que dentro de cada analista junguiano existe um analista da escola
clássica, um analista da escola desenvolvimentista e um analista da escola arquetípica. Isso
quer dizer que fica potencialmente em aberto para qualquer candidato ou analista junguiano,
ou psicoterapeuta junguianamente orientado, acessar o amplo espectro de idéias, práticas,
valores e filosofias que constituem o campo total da análise e psicologia pós-junguianas. Isto
nos permite saudar o emergir do que chamo, agora, de "novo modelo de analista junguiano".
É aquele que, graças ao trabalho de diferenciação que eu e outros fizemos, consegue saber,
quando trabalha de qualquer maneira particular, quais idéias e práticas específicas são
formuladas: clássicas (Si-Mesmo e individuação); desenvolvimentistas (infância,
transferência-contratransferência); arquetípicas (alma, imagens particulares). Pode estar
trazendo consigo todas elas, algumas delas e, como discutiremos daqui a pouco, nenhuma
delas. Pode variar a mistura durante toda a sua prática; pode variá-la na análise de um
indivíduo; e pode variá-la dentro dos limites de uma única sessão clínica de análise. Se bem
que eu ainda pense ter dito algo válido num nível factual, literal, acadêmico e de história das
idéias, também acho que o modelo diz algo de válido quanto à experiência interna de ser um
analista e à crise de escolha que os analistas cada vez mais bem-educados de hoje em dia
enfrentam a todo momento no contexto clínico.
Os pós-junguianos hoje
Eu poderia parar por aqui, com tudo parecendo ótimo. Mas é claro que as coisas não estão
ótimas – daí o título do capítulo. Quero prosseguir, discutindo certos problemas que vejo afligir
e afrontar hoje em dia os pós-junguianos. O que quero oferecer neste momento é uma
classificação atual das escolas de psicologia analítica pós-jungianas.
Como entendo agora, existem quatro escolas de psicologia analítica pós-jungianas. As escolas
clássica e desenvolvimentistas têm permanecido praticamente como eram. A escola
arquetípica tem sido integrada ou eliminada como entidade clínica – talvez, um pouco dos dois.
Mas, há duas novas escolas a se considerar, cada qual uma versão extrema de uma das duas
escolas até aqui existentes, a clássica e a desenvolvimentista. Chamo a essas duas versões
extremas de fundamentalismo junguiano e de fusão jungiana com a psicanálise. As quatro
escolas poderiam ser apresentadas num espectro: fundamentalista, clássica,
desenvolvimentista, psicanalítica.
Deixem-me prosseguir, fazendo uma crítica semelhante à tendência jungiana atual em direção
à fusão com a psicanálise. Quero deixar bem claro que não sou contra o uso da psicanálise
pelos junguianos, como é o caso da escola desenvolvimentista. Como foi que apareceu no
mundo junguiano, essa tendência atual de fundir-se com a psicanálise? Em primeiro lugar,
acho que, muitas vezes, baseou-se em alguma coisa excessivamente pessoal, visto que vários
junguianos que fizeram análise pelas escolas jungianas clássica ou desenvolvimentista não
ficaram satisfeitos com suas experiências ali. Daí a fusão jungiana com a psicanálise pode
estar baseada, em minha opinião, na raiva e numa idealização da psicanálise como sendo, de
alguma forma, clinicamente melhor, como possuindo requintada e superior habilidade clínica,
quando comparada com a nossa.
Isto leva os junguianos a fecharem os olhos às enormes contribuições clínicas que têm sido
feitas pelos próprios junguianos. Não estou fazendo a queixa costumeira (referida acima) de
que ninguém reconhece que "nós" pensamos nisto primeiro. Minha queixa aqui é a de que os
próprios junguianos da escola psicanalítica não atentam para certas idéias que são nossas por
direito de nascença e por herança.
Não deveríamos nos esquecer de que existe uma abordagem hermenêutica jungiana ao
material clínico: o material clínico não se torna vivo devido a sua natureza causal, nem a uma
compreensão determinística da situação em que o paciente se encontra, mas sim por causa
da maneira com que o sentido emerge a partir de trilhar os traumas e as dificuldades do
passado que tem lugar na análise.
Nessa escola de psicanálise existe uma fuga, por parte do analista, do uso disciplinado do
auto-revelar-se para o paciente; seus sentimentos fantasias e reações corporais àquele
paciente. Não é meramente medo de processos por imperícia. Nós fomos, na verdade, em
direções completamente opostas àquelas que sustentam nossa tradição. Nós adotamos os
dogmas psicanalíticos de neutralidade e abstinência como regras para governar nosso
trabalho. É a isto que me refiro como uma fusão com a psicanálise.
Pode ser que hajam maneiras em que uma perspectiva pós-junguiana permitisse esclarecer
dificuldades dentro da psicanálise contemporânea. Por exemplo, existe na psicanálise um
debate intenso com respeito às categorias de "o bebê" ou "a infância", no tocante à
compreensão e interpretação de material clínico. Será o bebê, no paciente, um bebê de carne
e osso, cujas experiências examinadas cultivaram e coloriram (e, talvez, causaram) os traços
principais da personalidade adulta com a qual o analista está engajado? Ou será o bebê um
símbolo de renascimento e regeneração, um bebê metafórico como numa das ilustrações da
alquimia que Jung apresentou? Ou uma combinação de ambos? A questão do que fazem os
analistas quando introduzem, ou estendem a introdução, do bebê do paciente é uma questão
perene.
Pode ser que a idéia de Jung da amplificação, não seja familiar a alguns leitores. Foi
mencionada especificamente pela primeira vez em 1908, num ensaio em uma coleção editada
por Freud (Jung 1908: 186-8), onde Jung declarava não desejar que o processo de
interpretação se encaminhasse "inteiramente no subjetivo". Em 1935, Jung falou da
necessidade de encontrar "o tecido no qual a palavra, ou a imagem, está incrustada" (1935:
84). Alegava ali, que a amplificação segue uma espécie de "lógica" natural. Já em 1947
encontra-se o valor da amplificação no fato de que ela nos permite alcançar, por inferência,
as estruturas arquetípicas da mente inconsciente que, por definição, são representativas em
si e de si mesmas, tem que ser distinguidas de suas representações na cultura e que, portanto,
só podem ser acebadas por meio de técnicas tais como a amplificação. Como muitos outros
leitores têm conhecimento, a amplificação é uma técnica que envolve o uso dos paralelos
míticos, históricos e culturais de forma a esclarecer, tornar mais amplo e, por assim dizer,
aumentar o volume do material factual, emocional e de fantasia que pode ser obscuro, tênue
e difícil de tratar. Os analistas esperam por associações às imagens oníricas para alcançar seus
significados pessoais. A amplificação segue em outra direção. Através da amplificação o
analista torna possível ao paciente alcançar para além do conteúdo pessoal, implicações
coletivas, culturais e sociais mais amplas e/ou mais profundas do material. O paciente sente-
se menos só e pode localizar sua neurose pessoal dentro do sofrimento global da humanidade
e sua produção.
Para Jung, o método da amplificação era também uma forma de demonstrar a validade do
conceito de inconsciente coletivo. O modo como Jung compreendia o inconsciente coletivo
inicialmente, era de que este se compunha de imagens primordiais que eram, em grande
medida, consistentes através das épocas e culturas. Como a amplificação envolve a reunião
de paralelos provenientes de fontes diversas, poder-se-ia considerá-la como executando esta
função evidente. Os analistas junguianos atuais, especialmente aqueles em contato com o pós-
modernismo e sua abstenção de metanarrativas, estão muitíssimo menos convictos de que
existam imagens eternas e universais.
Será que já fizemos luto bastante pela morte de Jung? E por que essa pergunta? É óbvio que
a função sentimento nos diz que devemos honrar Jung como pessoa concentrar-nos em Jung
como um grande homem, a fonte de uma enorme sabedoria e o fundador da escola de
psicologia e psicoterapia. Mas concentrar-se nele e honrá-lo demais é também uma deficiência
da função sentimento. Se a função sentimento se refere a equilíbrio, avaliação, julgamento,
então dar muita ênfase a Jung é tanto uma deficiência do sentimento, como também
desconsiderar e abandonar o velho homem. Acho que temos mesmo um problema de luto.
Não somos os únicos. Não apenas nós. Robert Wallerstein, naquela palestra presidencial aos
psicanalistas citada anteriormente, disse: "Para muitos de nós Sigmund Freud permanece
nosso objeto perdido, nosso gênio inalcançável, por cuja passagem talvez não tenhamos
jamais feito o luto apropriado, pelo menos em plenitude emocional." Que coisa inacreditável,
vinda do mesmo presidente que se utilizava de grosseiras lealdades tribais e deturpações
ultrajantes dos fatos para excluir aos junguianos, de forma que pudesse incluir a todos e livrar
a própria cara! Em 1988 ele teve mesmo a coragem de dizer a seus colegas psicanalistas, que
não haviam chorado apropriadamente um homem que morrera em 1939.
Se não houvéssemos feito luto adequado por Jung, estaríamos deprimidos. E realmente acho
que exista uma depressão no mundo junguiano de hoje que torna difícil valorizar-nos
suficientemente para abrirmo-nos a outros psicoterapêutas e intelectuais em geral. O que
significaria estar de luto por Jung? Significaria pôr-se além de uma divisão idealização-
depreciação em relação a ele, uma divisão que sinto contaminar algo de nossos pensamentos
e, certamente, de nossas práticas.
Aqui, minha investigação diz respeito a se temos lidado, ou não, tão bem quanto deveríamos
com os problemas notórios de Jung: elitismo, discriminação sexual, racismo e anti-semitismo
– não em termos da pessoa de Jung, mas em termos de nós, analistas junguianos, com nossas
próprias responsabilidades. Não o problema dele, mas o nosso. Em minha opinião a resposta
é "sim e não". A coisas estão avançando; existe um espírito crítico revisionista por toda parte.
Deixem-me dar um exemplo do meu próprio trabalho. Comecei a escrever sobre Jung e seu
anti-semitismo em 1988. Isso quase custou minha conexão emocional com o movimento
junguiano pelo mundo afora. De início as pessoas ficaram muito agitadas com o que eu tivesse
a dizer. Pode bem ser que um tanto disso tenha sido por falhas de estilo ou de tato de minha
parte, mas parecia realmente que eu havia cometido uma séria traição. (Este material pode
ser encontrado nos capítulos 12 e 13 de A Psique Política, 1993a.) Quase dez anos depois, é
extraordinária a mudança de reação. Não apenas as pessoas de fora do mundo junguiano
olham-nos com mais simpatia (pois não se deu apenas comigo) por termos abordado essa
questão; dentro da comunidade jungiana há sinais de gratidão e aprovação por termos mexido,
particularmente, nesta casa de marimbondos. Como sabemos, enfrentar a sombra costuma
trazer resultados produtivos.
Deixem-me fazer uma rápida colocação. É o bastante dizer, quando olhamos o racismo de
Jung, a discriminação sexual, o anti-semitismo e assim por diante, "Ora, ele era apenas um
homem de seu tempo". O problema aí, especialmente com relação ao anti-semitismo, é que
ele não era. Existe um amplo e acrimonioso debate sobre o que ele dizia e fazia na época a
respeito dos judeus e dos alemães. Em 1936, quando se propôs conferir-lhe um título
honorário em Harvard, foi um verdadeiro pandemônio. Henry Murray defendeu-o. Gordon
Allport, outro grande psicólogo, atacou-o. Portanto não era como se Jung não tivesse podido
fazer nada de diferente. As pessoas daquele tempo sabiam que ele tinha várias opções diante
de si.
Jung na universidade
Se existe um ambiente onde vejo uma esperança clara de sobrevivência para a psicologia
analítica pós-jungiana, ele se encontra nas universidades. Testemunhamos, atualmente, um
crescimento substancial do interesse acadêmico por estudos junguianos e pós-junguianos em
muitos países.
Existem muitas possibilidades. Uma delas diz respeito ao resultado dos estudos e das
abordagens quantitativas ou qualitativas com relação à questões de eficácia clínica. A maioria
dos centros de estudo de psicologia profunda, como presentemente constituídos e com os
recursos de que dispõem, não poderiam tomar a seu cargo os esforços necessários. Contudo,
reparo nas propostas e boletins publicados por pesquisadores de psicoterapia, ao fazer um
estudo crítico e comparativo de seus vários protocolos ou declarações de intenção, numa
interessante perspectiva. Podemos explorar de um ponto de vista de meta-pesquisa algumas
das pressuposições clínicas (que, como Jung insinuou, são, usualmente, imagens de um certo
tipo) que sustentam os projetos de pesquisa. Colocar a desnudo essas pressuposições é de
interesse, não apenas em si mesmo, mas também em termos do estabelecimento de séries de
estudo que terão conseqüência quanto à eficácia da psicoterapia analítica de longo prazo. Em
geral concorda-se que tais estudos estão insuficientemente representados na literatura.
A segunda linha de investigação em pesquisa clínica tem relação com a pesquisa dentro do
processo clínico. Seria de interesse, principal mas não exclusivamente, para os clínicos e
enfocaria, por exemplo, como é que os profissionais empregam os conceitos teóricos que
possuem, ou como respostas a tipos específicos de material com que se vêem confrontados
pelos pacientes, são conduzidas de várias formas pelos diversos profissionais, com base na
orientação teórica e nas variáveis pessoais (por exemplo, o substrato étnico e sexual do
profissional e do paciente).
Uma terceira via de pesquisa possível diria respeito (em termos gerais) a questões práticas
globais, tais como se seria recomendável e desejável por parte do profissional, explicar ou
descrever para o paciente a provável natureza, evolução e progresso do processo que está
empreendendo. A psicanálise, classicamente, tem estado relutante em oferecer explicações
para os paciente quanto aos princípios e prognósticos terapêuticos, por muitas e irrefutáveis
razões. Quando propus (Samuels 1993b) que os clínicos pudessem levar em consideração uma
verificação controlada, na qual se empregaria ou não procedimentos explanatórios iniciais,
houve uma manifestação de interesse. A possível utilidade de tal pesquisa residiria, também,
na criação de caminhos confiáveis e claros de informar ao público em geral (não apenas aos
pacientes) sobre o alcance e a experiência dos tratamentos psicoterápicos.
Afirma-se que a pesquisa em áreas "difíceis", tais como a análise e a psicoterapia, está
entrando numa nova era. Em seguida à pesquisa quantitativa e qualitativa, chegamos agora
ao estágio de "pesquisa colaborativa". Esta subentende o (mas não se restringe ao)
envolvimento de pacientes na pesquisa, a cada ponto e a cada nível. A pesquisa empírica
feminista e a pesquisa histórica oral podem também inspirar um projeto semelhante, o que
seria congruente com as tradições dialéticas e dialógicas da análise jungiana.
Muitas das idéias centrais de Jung sofreram revisões extensas no curso de trabalho de sua
vida. Contudo, porque ele estava menos interessado que Freud em sistematizar seu
pensamento, fica difícil destrinchar, por exemplo, a evolução histórica da teoria dos arquétipos.
As Obras Completas de C. G. Jung apresentam com freqüência textos importantes de maneira
a tornar uma leitura histórico/variorum muito difícil. Por isso na universidade, ao contrário do
contexto clínico, poder-se-ia enfatizar os elementos mutáveis e históricos dentro da análise
das teorias de Jung. O ensino de psicologia analítica deveria incluir comparações com
teorizações análogas em todos os tipos de psicanálise (kleiniana, relações objetais, psicologia
do Self, lacaniana e pós-lacaniana, laplanchiana, etc.) assim como com abordagens
humanísticas e existenciais. Além disso, há uma teoria de grupo esquecida nos escritos de
Jung que pode ser recuperada e avaliada em comparação com abordagens psicanalíticas de
processos de grupo. Em muitos centros de estudos psicanalíticos, grande quantidade das
pesquisas são históricas, fato que atua como salutar inibição sobre quaisquer alegações que a
psicanálise possa fazer de natureza universalística e totalizante.
Assim, a psicologia analítica pode também contribuir à crítica literária e à história da arte. Da
mesma forma, a psicologia analítica pode contribuir para estudos sobre os gêneros, estudos
culturais e estudos sobre lésbicas e gays. Embora se conteste, hoje em dia, a teoria de animus
e anima, há um crescente interesse acadêmico em como se explorar as imagens de homens e
mulheres mantidas por homens e mulheres, tomando-as como indicadores de medos e
fantasias atuais. Na psicologia analítica pós-jungiana existe uma boa dose de trabalho sobre
teorias da construção de gênero e diferença sexual, ao passo que a rejeição, por parte de
Jung, da idéia de que a orientação sexual homossexual seja pervertida ou patológica em si
mesma, fornece uma base bastante útil para uma contribuição ao estudo de sexualidades
dissidentes.
Muitos analistas junguianos têm tido esperança em estender a psicologia analítica até uma
explicação do fenômeno social de etnia e "raça". Preciso admitir que tenho algumas dúvidas a
esse respeito. Em lugar disso, eu rearticularia esta questão em termos de uma consideração
do papel dos discursos universalizantes dentro da psicologia analítica e da psicanálise, na
prevenção da formação de abordagens transculturais à psicologia e à psicoterapia.
Como tantas outras cartas de intenções, a minha tem dez itens. Se pareço estar colocando
uma veia um tanto polêmica e propagandística, é proposital. Minha intenção é mesmo a de
colocar uma carga energética.
1 Os pós-junguianos deveriam ser os porta-vozes do elo que existe entre os mundos interior
e exterior, especialmente em relação ao que parecem questões do mundo exterior, tais como
problemas sociais e políticos. Deveríamos nos apoiar no ótimo impulso dado pela psicologia
jungiana em engajar-se com questões prementes do mundo atual. Michael Vannoy Adams, em
seu livro sobre a racialidade do inconsciente intitulado The Multicultural Imagination (1996), é
um bom exemplo.
5 "O trabalho multidisciplinar é bom para a alma." Os junguianos talvez devessem se retirar
do que chamo de "síndrome do amador expert". Um escritor junguiano conhece um bocado a
respeito de uma tribo obscura, ou de um conto de fadas em particular, ou de um mitologema
específico, ou da física sub-atômica, e parece ser, no mundo junguiano, uma grande
autoridade no assunto. Mas quando você realmente sai e encontra acadêmicos que estão
dentro dos contos de fadas, ou daquela tribo em especial, ou daquele mito particular, ou da
mitologia em geral, ou da física, o que eles têm a dizer sobre o nível ou o tipo de conhecimento
e sofisticação demonstrado pelo junguiano é deveras arrasador. Eu tive essa experiência com
relação ao meu trabalho em política. O que eu gostaria que fizéssemos, seria criar parcerias
multidisciplinares com pessoas de outras disciplinas, de maneira que pudéssemos contribuir
com nossa "parcela" psicológica. Em meu próprio trabalho, nos campos social e político, minha
imagem de fantasia é a de um spectrum de experts disponível para todo grupo que faz política
ou político que tenta maquinar uma política. Num extremo do spectrum encontraremos um
estatístico ou um economista, ou alguém do tipo. No outro extremo teríamos um psicólogo da
psicologia profunda, ou um terapeuta – um dentre muitos especialismos engajado na produção
de novas idéias.
6 Acho que a psicologia jungiana poderia desenvolver mais sua famosa percepção moral da
realidade do mal, mas não de um modo fundamentalista. Quando duas crianças de 10 anos
jogam uma de 5 pela janela, para citar um caso, pensamos freqüentemente na realidade do
mal. Será que poderíamos utilizar a noção do mal como uma realidade de forma sóbria, séria,
investigativa, ao lado de observações psiquiátricas e sociológicas? Acho que isso é algo em
que devíamos estar pensando em fazer.
7 Deveríamos valorizar nossa excelência clínica. A análise jungiana hoje combina rigor com
visão, respeito pelas aspirações do paciente e uma procura de significado. Desde que o
façamos sem prejudicar ninguém em termos de sexo, classe social, religião, fatores raciais ou
étnicos, ou questões de diversidade e orientação sexual, acho que a análise jungiana é, com
certeza, boa o bastante.
8 Deveríamos "sujar" nossas mãos envolvendo-nos em política profissional, local, nacional e
internacionalmente. Vamos parar de reclamar do sucesso das campanhas de truques sujos de
outros grupos de psicoterapêutas e psicólogos e montar nossa própria.
9 Está na hora de parar de se queixar dos ataques à psicoterapia, seja pela crise no
gerenciamento dos planos de saúde nos Estados Unidos, ou o assalto furioso da mídia na Grã
Bretanha. O caso dos planos de saúde, em que as empresas seguradoras recusaram-se a
pagar por psicoterapias de longo prazo é, em certo sentido, um desastre. Mas, é também uma
ótima oportunidade para os analistas junguianos da América, redefinirem suas identidades
profissionais e, além disso, no meu ponto de vista, fazer algo que será bom para suas almas.
O preço das consultas nos Estados Unidos ficou muito alto; daí a receita de alguns analistas
ficou muito grande. Este não é um problema só dos junguianos, é um problema psicanalítico.
Ele tem a ver com o fato de que a auto-imagem profissional dos psicoterapêutas está vinculada
à auto-imagem profissional, e conseqüentemente às expectativas de rendimento, dos
ginecologistas, oftalmologistas, cirurgiões e outros. Será mesmo este o lugar que ocupam os
analistas em termos de cultura e sociedade? Não seria de fato mais saudável, útil e acurado
dizer que caminhamos lado a lado com os conselheiros pastorais, ministros da igreja,
assistentes sociais, acadêmicos e assim por diante? Acho que se se houvesse redução dos
honorários, as pessoas nos Estados Unidos continuariam a procurar terapias jungianas e
mesmo outras formas de terapia profunda, a despeito do fato de suas contas não estarem
sendo pagas – ou pelo menos não em proporção significativa – pelos planos de saúde. Eu diria
também, que deveríamos fazer mais do que simplesmente reduzir os honorários. Precisamos
pensar em termos de uma ação afirmativa para a análise jungiana, devido aos custos enormes
de treinamento e da impressão de eurocentrismo que a análise jungiana passa para os
pacientes.
10 Tenho a esperança de que os pós-junguianos estarão abertos à crítica dos outros, mas
também gostaria de que nos orgulhássemos quando esse for o caso. Gostaria de sugerir que
pensássemos em caminhos onde o mundo junguiano em geral – analistas, futuros analistas,
psicoterapeutas que não são analistas, e o que se refere como público leigo – pudesse relaxar
e desfrutar mais uns dos outros. Eros poderia ser trazido para nossas instituições, onde quer
que fosse possível, sem nos esquecermos ou negarmos que a tendência humana para a
competição é algo de incorrigível.
Empacotando Jung
Quanto às alegações de anti-semitismo e nazismo, fiz um estudo extenso desta questão como
um todo, envolvendo muitas publicações que apresentam novas evidências e material histórico
(Samuels, 1993a). Em resumo, acredito que os críticos de Jung estão certos em pedir aos
psicólogos analíticos atuais que explorem esta parte específica da história de sua profissão.
Concluo que, ao fazê-lo, a psicologia analítica poderá, não apenas, restabelecer suas
credenciais éticas, mas que há muita coisa que Jung esteve experimentando, com resultados
desastrosos em seu caso pessoal, no estudo psicológico do nacionalismo, na psicologia
nacional e na psicologia cultural, que poderia formar parte de uma abordagem atual dessas
questões. Se bem que existam diferenças importantes, também acho que os fatos
estabelecidos por filósofos e historiadores quanto à necessidade de se continuar a estudar os
textos de Heidegger (tanto no contexto de sua filiação ao nazismo quanto, digamos,
relativamente independente desse contexto) aplica-se à psicologia analítica e aos estudos
sobre Jung. Em ambos os casos, uma tarefa seria a de examinar até que grau o envolvimento
nos eventos sociais dos anos 30, influenciou o pensamento destes dois homens.
Quanto à noção de que Jung fosse um "místico" ou adepto de algum caminho "oculto" (ou
mesmo, como se argumentou recentemente, que tenha iniciado um "culto"), e como dei a
entender neste capítulo, minha tendência é abordar essa noção do ponto de vista das atitudes
mutáveis para a epistemologia e apoiá-la com interpretações coligidas da história da ciência.
A abordagem de Jung da psicologia desafiou a linha divisória observador/observado e colocou
em primeiro plano a "subjetividade" no processo de pesquisa. Não o vejo como o empirista
que alegava ser, antes vejo-o promover uma análise sistemática, ou auto-análise pelo
observador, de suas reações aos fenômenos que vivencia no mundo da experiência. A
teorização clínica atual sobre a contra-transferência do analista estende amplamente o estudo
"científico" de Jung da subjetividade, conduzindo ao possível emprego de uma tal abordagem
em relação à temáticas políticas e sociais (cf. Samuels 1993a: 24-50)
Outra reação problemática quanto ao "Jung como místico", foi a de pesquisar porque a simples
idéia provoca reações tão fortemente negativas (salvo, talvez, dentro de departamentos de
estudos religiosos). Pode-se ver que o mundo secular não abandonou completamente a
receptividade religiosa que observamos emergir no ocidente e, mais além, nas formas
(amplamente diversas) dos fundamentalismos religiosos de um lado, e do fenômeno "Nova
Era" do outro. Espiritualidade parece ser o que muitos estudantes desejam estudar, e confesso
ainda não ter desenvolvido uma resposta completa ao problema de como tratar isso do ponto
de vista da psicologia analítica pós-junguiana.
Talvez esta seja uma nota condizente para terminar o capítulo: uma nota de desconcerto, da
parte de alguém que, a despeito do pensar rigoroso e do sentimento apaixonado com que
tomou parte no projeto pós-junguiano, ainda não consegue tornar claro o que sua relação com
Jung tem sido, será ou deveria ser.
Referências
Casement, A. Artigo sobre Samuels, A., Jung and the Post-Jungians. "The Economist", April,
1985.
McGuire, W. (ed.), London, Routledge & Kegan Paul, 1895; Princeton, NJ, Princeton University
Press.
Jung, C. G. The Content of the Psychoses. Collected Works, vol. 3. Londres, Routledge & Kegan
Paul, 1908; Princeton, NJ, Princeton University Press, 1960.
Jung, C.G. The Tavistock Lectures. Collected Works, vol. 18. London, Routledge & Kegan Paul,
1935; Princeton, NJ, Princeton University Press, 1977.
Jung, C. G. On the Nature of the Psyche. Collected Works, vol. 8. London, Routledge & Kegan
Paul, 1935; Princeton, NJ, Princeton University Press, 1960.
Mitchel, S. and Black, M. Freud and Beyond: A History of Modern Psychoanalytic Thought. New
York, Basic Books, 1995.
Noll, R. The Jung Cult: Origins of a Charismatic Movement. Princeton, NJ, Princeton University
Press, 1994.
Samuels, A. Jung and the Post-Jungians. London and Boston, Routledge & Kegan Paul, 1985.
Samuels, A. The Political Psyche. London and New York, Routledge, 1993a.
Vannoy Adams, M. The Multicultural Imagination: "Race", Color and the Unconscious. London
and New York, Routledge, 1996.