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Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas E Filsofia Pós-Graduação em História Social

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILSOFIA

PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

IGOR GOMES SANTOS

A HORDA HETEROGÊNEA

crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da


nação, Bahia (1822-1853)

NITERÓI

2017
IGOR GOMES SANTOS

A HORDA HETEROGÊNEA

crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da


nação, Bahia (1822-1853)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História Social do Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para a obtenção ao
título de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Badaró Mattos

Niterói, RJ

2017
IGOR GOMES SANTOS

A HORDA HETEROGÊNEA

crime e criminalização de “comunidades volantes” na formação da


nação, Bahia (1822-1853)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História Social do Intituto de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal
Fluminense, como requisito para a obtenção ao
título de Doutor em História.

Niterói

2017
Dedico esta tese aos ladrõezinhos de meu coração, Pedro e Benjamim.
Enfrentaria o grupo de Lampião, Lucas da Feira e todas as volantes por vocês.
Dimas os proteja!
Agradecimentos

“Ogunhê (...) estou vestido com as roupas e as armas de Jorge (...)”


Versão: Racionais MC’s.
Intro do disco “Sobrevivendo no Inferno” (1997).

Segundo meu orientador, Marcelo Badaró Mattos, numa de suas tantas tiradas bem
humoradas sobre a Universidade e seus rituais, a seção dos “Agradecimentos” é o “capítulo”
mais lido das teses e dissertações que fazemos nos programas de pós-graduação. Pensando
assim, espero me esmerar e não cometer desagravos e esquecimentos, ainda que isso, como
nos ensinam os estudiosos da Memória e da Psicanálise, seja muito difícil. Os
“Agradecimentos” geralmente são a última parte da tese a ser escrita, porque até a data em
que ela é depositada muita gente se envolve, te socorre e te afaga, e é a essas pessoas que
dedicamos essa seção. Pessoas importantes para que o autor do texto esteja, agora, sentado em
frente a uma página em branco – temendo cometer injustiças – escrevendo a última parte de
um trabalho que começou há quatro anos ou mais. Por essas razões os “agradecimentos” são
também um exercício histórico de todas as teses, mesmo as que não são de História. É a
História da tese. E como para os historiadores, viciados em carne humana, como diria Bloch,
não existe história sem homens e mulheres, darei os nomes de alguns deles que se
movimentaram e movimentaram o meu mundo para que eu estivesse em mais um processo
importante de minha vida.
E se estamos falando de importância começo por minha família. Minha mãe,
Romilda Gomes Santos, é uma mulher cujo modo de cuidar de tudo – de si, dos filhos, dos
netos e ainda arranjar tempo para fiscalizar e estar atenta aos prazos de relatórios e trâmites
acadêmicos da minha tese – é difícil de descrever aos desconhecidos. Desde que voltei do Rio
de Janeiro moro na “nossa casa”, como ela gosta de me corrigir, e ela sempre faz de tudo para
respeitar minha dinâmica de estudo, que é, por si só, uma bagunça. Alimentação, arrumação,
meus gostos e modus operandi. A forma com que ela rege a “nossa casa” me deixou com
bastante tempo para tratar dos assuntos da tese. Minha mãe é espírita, e a única coisa que eu
posso dizer a ela para demonstrar meu amor é: voltaria seu filho em quantas reencarnações
fossem necessárias, para o meu prazer e deleite.
Minhas irmãs (Isadora Gomes Santos e Mariana Gomes Santos) são, junto com
minha mãe, mulheres lindas, corajosas e guerreiras que me ensinaram, enquanto mulheres, a
ser homem, isto é, uma pessoa educada e pronta para a vida. Elas sempre me incentivam. Ao
olhar para elas nos momentos mais graves das nossas vidas, e nas conquistas alegres também,
sempre penso que deveria ser um pouco mais parecido com elas, ter mais força, mais ousadia.
Para reforçar essa admiração, elas me deram dois sobrinhos, Pedro e Benjamim. Duas
crianças que se amam. Dois presentes que fazem parte da gente. Benjamim nasceu no mês de
setembro de 2014, em meio ao período do doutorado, o que gerou uma contradição sobre ter
tempo (afinal ficamos bastante em casa) e não ter tempo (porque estamos em casa
trabalhando). Benjamim nem sente isso; já Pedro, algumas vezes, tadinho, ficou triste de ter o
tio ao seu lado, mas sem poder lhe dar a atenção devida. Mas quando lhe disse que tinha
terminado a tese, ele soube dar importância e ficou feliz por mim. Os cunhados, Renato e
Ulisses, são felizardos por quebrarem a regra de que cunhado não é família. Já são também
minha Família. Por fim, mas não menos importante, minha tia Rosa (Rosália Natividade
Gomes), também um dos exemplos de mulher guerreira deste núcleo familiar. Além disso,
exemplo de educadora e de crença na educação pública e na formação de professores como
aspectos centrais para o país tomar um rumo melhor. Compartilho com ela este sentimento.
Lisia Lira conseguiu fazer com que meus últimos meses de estudo fossem muito
tranquilos. Ela cuida de absolutamente tudo com seus caderninhos de anotação, não me
deixando esquecer nada e fazendo de mim uma pessoa mais disciplinada, o que é fundamental
para uma tese ser concluída. Mas Lisia não controla os meus dias, ela apenas faz parte deles.
Mesmo quando eu precisava do isolamento necessário para a escrita, ela estava presente na
minha saudade e na disciplina que era preciso manter para não perder meus fins de semana
com ela. Em poucos meses esta tese andou muito e isso tem tudo a ver com a sua presença
inspiradora em minha vida. “Se eu tocar no seu radinho”...
Certamente a defesa desta tese será motivo de celebração e festejos entre um grupo
de amigos que adora comemorar as vitórias uns dos outros – mas que também se faz presente
nos momentos difíceis. Esses amigos, em maior ou menor medida, foram responsáveis por
parte de minha formação em História. Desde os tempos de Graduação, em seminários, trocas
de leituras, conversas ébrias de fazer saltar fumaça pelas ventas, até hoje, compartilhando
experiências de pesquisas, docências e artes, eles estão comigo. Espero estar à altura dessas
amizades sempre. Essas pessoas várias vezes conseguiram me divertir em shows, festas,
almoços e até em grupos de whatsapp quando estava muito preocupado com os rumos da
pesquisa e com os resultados apresentados. Eles sabem quem são, mas colocarei aqui para que
fiquem registrados: Igor José Trabuco, Robério Sousa (Rober), Tatiana Faria de Jesus,
Fabricio Mota, Paloma Wanderley, Manuela Muniz e os longínquos Samuel Marques (por
tudo, sem palavras... bandido bom), Edivânia Alexandre, Nilton Araújo e Jeferson Sobrinho
(amizade que faz falta). Há ainda os de bem, bem longe, como Fernanda Vidal e Rafael
Portela. (Se fosse falar da importância de Fernanda na minha vida, não caberia nessa página,
por isso abro um parêntese só para ela, como se cada lado dele fosse um abraço meu. Agora
lerei seu livro, juro!). Rafael é sempre muito interessado na minha pesquisa e, além disso,
assim como eu, gosta de discutir história sempre. Os papos fazem falta. Os não tão longínquos
Andrei Valente e Larissa Penelu são parte importante dessa forma de aprender história que
falei acima, e que devo aos amigos: na base das “provocações” à la Abujamra. Uns debates
que nunca terminam entre Larissa e eu!
Agradecimento especial também a meu amigo David Rehem, sempre muito solícito
em me ajudar, em ler o material, ainda que tenha um milhão de afazeres. Obrigado mesmo,
maluco! Ricardo Sizílio também, sempre muito disposto a ajudar em diversas situações e
sempre atento a perguntar, como poucos: “precisando de alguma coisa?”.
Ao amigo João Miguel pelo estado de arte da nossa amizade que influiu
decisivamente para o Estado da Arte da tese. Valeu Brasil!
A Eurelino Coelho, pelo aprendizado da honestidade intelectual e pela interlocução
de sempre. Leu o projeto quando era uma ideia vaga e incentivou, como sempre, apontando os
caminhos para melhorar. Estendo ao LABELU os agradecimentos por uma sessão de
discussão do projeto e por alguns convites para falar sobre a pesquisa e outras coisas.
Kelman Conceição, além de leitora dos rascunhos da tese, me conhece como poucas
pessoas. Sabe o que tenho de melhor e pior e a confusão que isso me causa. Torcemos e
acompanhamos um ao outro todo dia. Kelman sempre acreditou em mim mais do que eu
mesmo. Obrigado por tudo.
Agradeço a Lais Moreira por ser a melhor arrumadora de malas de todos os tempos e
por ter incentivado a ida para o doutorado num momento em que escolhas difíceis precisavam
ser tomadas. Parece que, apesar dos caminhos tortos, tudo deu mais ou menos certo.
A Carla Faria pelas tentativas – na maioria das vezes bem sucedida – de fazer da vida
de um doutorando uma coisa menos árida. Além disso, Carla esteve comigo nos momentos
políticos que considero mais nebulosos dos últimos anos desse país. Acompanhou minha
perplexidade e tentou de novo me fazer focar. Discutimos muitas vezes sobre justiça, crime e
sistema penitenciário. Obrigado.
Existem algumas pessoas que fizeram daquele período na cidade não tão maravilhosa
um momento bem mais feliz e proveitoso intelectualmente.
Na disciplina “Estado e Poder no Brasil”, ofertada por Badaró, conheci uma turma
bem legal “de gente que discute coisas sérias e inteligentes como imperialismo, capitalismo,
neoliberalismo, ditaduras e revoluções”, como brincava com eles. Apesar das minhas piadas,
eles sempre se mostravam bem interessados pela minha pesquisa, e eu, vindo dos estudos do
século XX, obviamente me interessava pelas deles. Flávio, Marília Trajtenberg, Rejane
Hoeveller, Thiago, Kaio César, Flávia Fernandes (essa, minha companheira de século XIX),
André e Isabel, que era minha vizinha e às vezes nos brindava com sua companhia também
inteligente de historiadora das ditaduras da América Latina (desculpa não lembrar o
sobrenome de todos).
Não menos inteligente e interessada nas ditaduras, revoluções e contrarrevoluções
nas Américas e no Brasil, Ana Kallás foi a pessoa que mais ouviu meus reclamos, dúvidas e
inseguranças durante os anos iniciais do doutorado. Mas viu também minha labuta diária nos
arquivos, nas leituras, em diversos momentos de escrita. Ana me ajudou a recuperar uma
autoestima enquanto historiador e estudioso num momento em que eu achava tudo o que fazia
ruim e aquém do desejável. Ela certamente deve achar que, na nossa troca, ela, mais do que
eu, aprendia sobre História e tomava gosto pelos estudos históricos; mas mal sabe ela que, ao
me ver um pouquinho pelos olhos dela, fui eu que passei a gostar mais de História e dos
estudos para estar à altura daquele desejo de reaprender, de recomeçar, que ela até hoje me
inspira. Ana me lembra de que os “melhores” não são sempre aqueles que estão nas palestras,
nas publicações dos grupos de estudos, os convidados para fazer uma fala, os que dominam as
teorias, e que não há que se crer na genialidade dos “foda” ou dos “geniozinhos”, mas no
esmero, na dedicação, na labuta dos que estudam, nos quais ela e eu somos os “melhores”
que podemos ser.
A outros amigos se faz necessário agradecer: Rômulo Mattos, vizinho, historiador de
excelente gosto musical que me emprestou sua vitrola para passar meus dias no Rio de Janeiro
com muita música. Demian Melo, pela amizade e pelos convites para escrever artigos e
capítulos sob sua organização, a maioria negados por mim devido ao acúmulo de tarefas da
minha parte. Hugo Belluco, pela leitura de um capítulo, pela amizade da qual faço muito
gosto e pela interlocução intelectual da qual me nutro. Paulo Inácio, velho amigo de longas
datas, que sempre me ajudou no Rio de Janeiro, desde o mestrado. Dessa vez me ajudou a
conseguir o apartamento que aluguei, além das jornadas de sempre.
A Marco Pestana e Juliana Lessa agradeço pela amizade, pelas hospedagens e pelas
trocas políticas e intelectuais, bem como pelas “terapias acadêmicas”, como Juliana chama,
que infelizmente aconteceram quando eu já não era mais seu vizinho na rua mais
historiográfica do Rio de Janeiro.
Na Bahia agradeço a Urano Andrade pela gentileza e destreza em tirar minhas
dúvidas no Arquivo, ceder documentos e pelo exemplo de pesquisador e historiador que é.
Durante o tempo em que fui quase diariamente ao Arquivo Público do Estado da Bahia, onde
ele exerce o melhor do seu ofício, ele foi uma companhia divertida e interessada no meu
trabalho.
Luiz Junior pela coparticipação nas pesquisas de arquivo e por ter sido o laboratório
de uma relação de trabalho que talvez a conclusão do doutorado me imponha mais vezes.
Rafaela Cardoso me enviou por duas vezes trechos de obras de Jorge Amado. Eu
tinha comentado com ela sobre uma passagem que me interessou. Ela não acertou nas obras,
mas agradeço a tentativa e o tempo despendido.
A Elizeu Silva, que cultiva o mesmo interesse que eu pelos ladrões e bandidos do
século XIX e que sempre tem uma nova referência bibliográfica para me sugerir.
A Mayara Pláscido, que me cedeu documentos digitalizados sobre Lucas.
A Alex Ivo e Daniele Souza agradeço pelo livro emprestado de muita valia para os
estudos.
Na universidade e em outras instituições de pesquisa em História muitas pessoas
acolheram meus esforços de pesquisa e submeteram meu trabalho a um público mais amplo
de pesquisadores especialistas ou a um público não especializado. Iacy Maia me proporcionou
a oportunidade de apresentar um capítulo da tese para um grupo de alunos de mestrado e
doutorado de sua disciplina. A interlocução com aqueles colegas foi muito boa, uma espécie
de banca de qualificação. Iacy ainda me indicou a Gabriela Sampaio, na época coordenadora
do grupo de pesquisa Invenção da Liberdade, para apresentar um texto. Lá, mais uma vez o
debate foi muito bom e pude rever pontos de vista e melhorar a forma do texto. Agradeço a
todos que estiveram presentes naquela ocasião, especialmente a João José Reis, que leu e
comentou o texto todo, e a Lisa Castillo, que, além das várias sugestões interessantes, me
enviou um documento sobre um dos sujeitos da pesquisa.
Agradeço a Wlamira Albuquerque pela discussão de um texto no evento da ANPUH
Bahia e a Walter Fraga por ter nessa mesma ocasião sugerido um acervo de documentos que
foi de muita valia para a realização de alguns capítulos.
Agradeço a Rafael Fontes, agradecimento que se estende a todo o Centro de
Memória da Bahia da Fundação Pedro Calmon, pelo convite para uma exposição sobre o tema
do doutorado. Agradeço a Clíssio Santana, também da fundação Pedro Calmon, mas da
Biblioteca Virtual, pelo convite que muito me honrou para participar do projeto da Trezena,
que deu bastante alcance à minha pesquisa. Rafael, além de ser um dos responsáveis pelo
CMB, é um amigo antigo, e já compartilhamos muitas discussões sobre História e
Historiografia.
Agradeço ao meu orientador, Marcelo Badaró, pela confiança em aceitar orientar um
trabalho com o qual tem pouca familiaridade. Aceitou a tarefa pelo carinho e confiança que,
imagino, tem por mim. Badaró é um leitor como poucos e sabe dos paranauê do ofício. Sua
orientação é bem leve e autônoma. Espero que esta tese esteja “legalzinha”, “maneira” (são os
comentários que ele faz quando parece gostar do que leu) e à altura do nosso “chefia”,
acostumado a excelentes orientandos no seu grupo de estudos e trabalho “Mundos do
Trabalho”, aos quais também faço menção de agradecimentos.
Deixo aqui registrado os agradecimentos aos membros da banca, Iacy Maia Mata
(mais uma vez), Flavio dos Santos Gomes, Gabriel Aladrén e Paulo Terra. A leitura de todos,
em especial a de Gabriel e Flávio, que ajudaram desde o exame de qualificação, foi muito
gênerosa, sem deixar de ser rigorosa. Apontaram caminhos para melhorar os argumentos do
texto e a fluidez da leitura. Não concebo a ideia da parceria acadêmica sem admiração
intelectual e política. Destarte, os membros da banca de avaliação – de algum modo parceiros,
mesmo quando são nossos algozes no nada fácil ofício de avaliar e arguir alguém – são
figuras as quais, alguns mesmo em pouco tempo de contato, passei a admirar na labuta do
fazer-se historiador, professor, militante e colega de ofício (essas dimensões quase nunca
separadas). O convite e o aceite para a banca foi uma menção de afeto, agradecimento e
admiração profissional a essas pessoas e uma honra para mim. A tese saiu melhorada daquele
momento especial.
Agradeço a todos os funcionários do Arquivo Nacional. Ao pessoal também do
Arquivo Público do Estado da Bahia por conseguirem que a pesquisa em História ainda tenha
ferramentas em meio a tanta adversidade.
A minha ausência do cotidiano de trabalho no IFBA devido à licença para realização
do doutorado transtornou um pouco a vida dos meus alunos e colegas. Aulas extras, trocas de
aulas com colegas, intensificação dos estudos, falta de braços e pernas para tarefas políticas e
burocráticas que os substitutos não podem fazer. Agradeço então aos meus caros colegas da
COCH, à direção do IFBA pela licença e especialmente aos alunos das turmas de terceiro e
segundo ano dos anos de 2012 e 2013.
Um salve para aqueles cheios de coragem que ousam desafiar o imperativo do terror
e da repressão proporcionado por uma instituição gerida por homens e mulheres sem projeto
educacional, como tem sido o IFBA. São tantos, de tantos campis, cores, projetos, ideologias,
histórias. Admiro todos, mas vão aqui nomeados os meus amigos, que entenderam a minha
ausência em momentos cruciais: Roseli Afonso, Castro Vilas Boas, Erahsto Felício, Taíse
Chates, Valquiria Lima, Flaviane Nascimento, Rebeca Vivas, Theo Barreto, Alberto Leal,
Phillipe Murilo, Paulo Tavares, Sueli Prazeres, e muitos outros.
Aquele agradecimento à CAPES pela bolsa de pesquisa.
Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava outros hoje ainda falam
Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente

E quem era inocente hoje já virou bandido


Pra poder comer um pedaço de pão todo fudido

Banditismo por pura maldade


Banditismo por necessidade
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade

Banditismo por uma questão de classe!


Banditismo por uma questão de classe!
Banditismo por uma questão de classe!

Música: Banditismo por uma questão de lasse


Disco: Da lama ao Caos
Artista: Chico Science e Nação Zumbi
Letra: Chico Science
Resumo

A tese central deste estudo defende que, no contexto das lutas do processo de
constituição do Estado nacional no Brasil, sujeitos pobres, de várias raças e cores, atuaram nas
brechas da desorganização política, administrativa e militar para realizar pequenas e grandes
ações armadas fora da lei que dificultaram os planos de ordem do Império Brasileiro. Essas
ações armadas se deram através de atos individuais ou através de “comunidades volantes” que
atacavam a propriedade, os mercados e a segurança individual dos “homens de bens”.
Destacamos no texto a heterogeneidade das ações; das pretensões políticas implícitas ou
explícitas; bem como das mobilidades territoriais para que essa hidra, formada de muitas
comunidades e indivíduos dispersos, fosse composta. Essa “horda heterogênea” possuía pouca
consciência das implicações de sua atuação frente a um sistema político em formação, mas
mesmo assim produziu uma miríade de “deslocamentos de autoridades”, que confrontou
senhores e Estado. Suas ações visavam à sobrevivência material imediata. Negociavam os
frutos de suas atividades e de seus serviços com homens poderosos, mas também podiam
alterar a correlação de forças em favor dos grupos sociais subalternos quando se envolviam ou
aproveitavam das desordens ocasionadas nos rastros de algumas lutas entre classes senhoriais
e Estado contra escravos, índios, lavradores pobres e trabalhadores diversos.
Contraditoriamente, suas ações podiam deixar a vida desses mesmos grupos subalternos mais
difíceis, pois atraíam para os pequenos povoados, através do recrutamento e do
encarceramento generalizado, uma “repressão preventiva” contra os modos de vida de
homens pobres, taxados de vadios, vagabundos e ociosos. Em aliança com a população
criminalizada, lutaram contra o recrutamento e fizeram das cadeias cenário para um
contrateatro do poder, atacando-as frequentemente a fim de libertar seus parceiros e vexar
simbolicamente algumas autoridades. No entanto, tinham consciência de que, em meio às
crises de reacomodação no interior do Estado pelas classes senhoriais, a sua mão de obra era
importante para viabilizar as pretensões de poder que localmente ainda dependiam muito da
capacidade desses homens poderosos de provar seus potenciais de vencer eleições e garantir a
ordem. Do mesmo modo, o desafiante ao poder deveria demonstrar mais força que seu
inimigo para se mostrar apto ao apoio do poder central para conquistar postos de comando e
de distribuição de cargos que teciam a malha do Estado em vias de centralização. As disputas,
eleitorais e outras, se mostraram momentos propícios para os bandidos negociarem uma pauta
invisível e muda que envolvia butins, liberdade territorial, o não aprisionamento de seus
parceiros, a proteção por autoridades, entre outras demandas. Eles complementavam as forças
públicas nas disputas contra os “facciosos”, que, por sua vez, tinham em seus exércitos grande
proporção de foragidos da justiça.

Palavras-chave: Banditismo, lutas sociais, Estado.


Abstract

This study argues that, in the context of the struggles for the constitution of the
Brazillian national state, poor people of various races and colors acted in the breaches of
political, administrative and military disorganization to carry on big and small outlaw armed
actions, which made difficult the plans of the Brazilian Empire to maintain the order. Those
armed actions were both individual and collective and attacked private property, markets and
the personal safety of the “good citizens.” We highlight the heterogeneity of these actions; the
implicit and explicit political intentions; as well as the spatial dynamics that contributed to the
making of this hydra, composed by many communities and dispersed individuals. This
“heterogeneous horde” lacked the consciousness of the implications of their actions to a
political system still in construction. Despite that, they were able to cause some “authorities
displacements,” which confronted the landlords and the State. Their actions aimed at
immediate material survival. They negotiated the products of their activities and services with
powerful men but also altered the balance of power for subaltern groups when got involved in
or took advantage of the disorders caused by the struggle between the seigneurial classes and
the State against slaves, Indians, poor farmers and different kinds of workers. On the other
hand, these actions could make life even harder for the same subaltern groups, as they
attracted to small villages, through military recruitment and massive incarceration, a sort of
“preventive repression” against the poor people’s way of life, seen as vagabonds, and idlers.
In alliance with the criminalized population, they fought the recruitment and made the prisons
a stage for their counteract, attacking them to free partners and symbolically embarrass some
authorities. However, they were aware that, in the midst of the crisis caused by the seigneurial
classes and their political rearrangements inside the State, their workforce was essential to
make real the intentions of the powerful men in gaining more power, for it was necessary to
prove their ability to win elections and keep order. For the ones seeking to replace these
powerful men, it was necessary a huge display of power for presenting himself as worthy of
central authority’s support to gain the command posts and the jobs distribution that were part
of this State in its path to centralization. These disputes, electoral and other, were strategic
moments for the bandits to negotiate a silent agenda which involved plunder, territorial
liberty, guarantees as not to be imprisoned, protection by authorities, among others. They
were complementary to the public forces in the disputes against the “factious,” which had in
their armies a high number of justice fugitives.

Keywords: Banditry, Social struggles, State.


sumário

Introdução - “O Crime não é creme” .................................................................................................... 1


Primeira parte - Independência e banditismo: Indisciplina, insubordinação, e (des)organização política
e militar ................................................................................................................................................ 33
Capítulo 1 - “É o soldado pior inimigo público” .................................................................................. 34
Capítulo 2 - Deserção: armas, fardas e crimes ...................................................................................... 75
Capítulo 3 - A farda do crime ............................................................................................................... 86
Segunda parte - “Sem temor divino nem humano”: ações armadas entre a autonomia e a
acomodação.......................................................................................................................................... 96
Capítulo 4 - Burocracia da Violência: Estado, clientelismo e banditismo ............................................ 97
Capítulo 5 - A guerra entre Militão e Guerreiros. Do banditismo da política à política do
banditismo .......................................................................................................................................... 119
Capítulo 6 - Os Canguçús “vão se tornando em salteadores” ............................................................. 152
Capítulo 7 - Antônio Guimarães e seus peitos largos: dispersão e federalismo bandoleiro................. 160
Terceira parte - Criminalização: a liberdade dos livres em questão. .................................................. 170
Capítulo 8 - Recrutamento e repressão preventiva .............................................................................. 171
Capítulo 9 - Cadeia e fuga ................................................................................................................. 198
Quarta parte - “A horda heterogênea” e o “deslocamento de autoridade” ......................................... 208
Capítulo 10 - “Quilombos de ladrões” e outros “covis de criminosos” ............................................. 209
Capítulo 11 - Lucas e sua “horda de salteadores”: entre a “associação de protetores dos ladrões” e a
feira dos “homisiados” ....................................................................................................................... 250
Conclusão - Cultura, materialismo, hegemonia: Uma “cultura política da violência” para um sertão de
“uma classe só”? ................................................................................................................................ 324
Bibliografia ........................................................................................................................................ 331
Documentação Citada ........................................................................................................................ 344
1

Introdução

“O Crime não é creme”

Quando Martinho José da Silva fugiu da Cadeia do Barbalho com mais 39 outros
julgados, ficamos sabendo que o destino de muitos deles era o Rio de São Francisco. Poucos
anos depois, esse Martinho foi visto pelas autoridades da Barra (Comarca do Rio de São
Francisco) tentando livrar alguém, que o documento1 não informa, da cadeia.
Alguns anos a mais e Martinho foi morto por uma diligência comandada por um
oficial de justiça, Leandro José Santana, que iria tentar prender o criminoso que causava certo
incômodo nos arredores da vila de Valença, Recôncavo Sul da Bahia. Ele tinha muito mais
perfurações de bala do que os chumbos causariam normalmente com apenas dois tiros
deflagrados, como foi relatado no laudo da perícia. Para agravar a situação, ele foi alvejado
nas costas, com perfurações muito grandes. Parecia, como afirmou um dos tantos juízes por
cujas mãos o processo passou durante quase 10 anos, se tratar de mais um caso simples de
execução realizado por forças policiais ou milícias privadas, tão comuns até hoje no Brasil.
Mas não foi. Por algum motivo, que suspeito ter sido a existência de rusgas políticas entre o
juiz e o delegado, quem encaminhou a ida do oficial de justiça em seu lugar, o caso foi
conduzido de uma forma bastante inesperada, até mesmo para os dias de hoje: com base no
pressuposto do abuso das forças de justiça.
Este é o primeiro aspecto que o caso de Martinho Silva ilustra para o nosso trabalho.
Os bandidos e/ou as ações decorrentes deles fizeram parte das disputas políticas dos homens
que ocupavam postos de poder no Estado em formação. Controlar a relação que esses chefes
locais mantinham com os bandidos, fosse de violência excessiva, fosse de ligações mais
cúmplices, foi fundamental para construir uma ideia necessária de autoridade central. O
recado era claro: os potentados não mais poderiam passar por cima da burocracia montada e
construída para monopolizar e controlar a violência.
O Estado se esforçava, através de uma série de mudanças institucionais, para
reorganizar o quadro da administração dos povos nos anos posteriores à independência. Essa
reorganização foi traçada de modo que o controle à violência política e ao crime fossem seus
escopos centrais. Para isso, acabou com cargos antigos, substituindo-os por outros, montando
uma estrutura jurídica e penal através do Código do Processo Criminal e do Código Penal à

1
Toda essa parte sobre Martinho José Silva está amparada no documento Arquivo público da Bahia (doravante
APB). Processos crimes. Tribunal da relação. 09/368-30. Valença, 1851. Martinho José da Silva.
2

medida que ia desmantelado a obra do liberalismo no Brasil, especialmente o mais radical,


através dos Atos Adicionais como o de 1834 e o de 1840, que apontavam para a diminuição
da possibilidade de autonomia do poder local em relação ao poder central.
Uma “burocracia da violência”2, que se pretendia monopolizadora do poder de
julgar, prender, recrutar, invadir e desapropriar em nome do Estado, foi espalhada pelos
recônditos de pequenas vilas interioranas, onde às vezes a existência desses homens só se
dava como presença estatal. Organizavam em torno de si as “armas da nação”, os editais de
governo, o fisco e as indicações para funções políticas que interessavam ao poder central
consolidar nas populações, através de homens poderosos localmente que, por sua vez, se
fortaleciam nessa relação.
Mas essa façanha de provocar uma unidade tensa e contraditória da obra
centralizadora, incorporando o desejo de poder local dos senhores, tensionando-o, contudo, a
alcançar esse feito por dentro do poder central – ao se mostrarem atuantes e importantes para
o Estado, a ponto de seus agentes lhes promoverem em postos e funções políticas importantes
–, não aconteceu sem dores.
Os senhores derrotados nessas disputas buscavam outras fontes de poder, sendo uma
delas o banditismo. Mas vale notar que essas disputas não eram mais contra o Estado, ou pela
autonomia local, mas pelo reconhecimento do Estado para com determinado senhor rural.
Agregados, jagunços, homens livres e pobres e muitos bandidos eram acionados nos testes de
força entre frações das elites locais. Esses conflitos degeneraram algumas vezes em anos de
banditismo, que, por sua vez, abriram ainda mais espaço para a atuação dos agrupamentos de
2
Segundo Foucault, as origens do tribunal e de um judiciário encarregado como organismo de suposta
neutralidade universal se desenvolveram quando os senhores feudais precisaram reagir às sedições urbanas e
camponesas no início do século XV. Segundo ele, foi a partir daí que cresceram as diligências judiciárias contra
vagabundos, mendigos, entre outros membros da plebe, o que mais brevemente resultou no fortalecimento de
corpos de polícia mais amplos, profissionalizados e equipados. Foi a “‘ordem judiciária’ que se apresentou como
expressão do poder público: árbitro ao mesmo tempo neutro e autoritário, encarregado de resolver ‘justamente’
os litígios e de assegurar ‘autoritariamente’ a ordem pública. Foi sobre pano de fundo de guerra social, de
extração fiscal e de concentração das forças armadas que se estabeleceu o aparelho judiciário”. Para que fique
mais claro o entendimento que estou dando ao crescimento da importância do aparelho judiciário no Brasil do
século XIX como uma consolidação de uma “burocracia da violência”, é preciso dizer que, para Foucault, a
função social que as classes dirigentes destinaram ao judiciário sempre foram as de reprimir a plebe não
proletarizada, isto é, a população socialmente e economicamente não ativa e desnecessária para a reprodução do
sistema social, através de um conjunto de ordenamentos jurídicos contra a mendicância, a vadiagem, os
“loucos”, e através do policiamento preventivo autorizado por legisladores. Para o autor dessas reflexões, o
intuito das classes dominantes era o de separar o proletariado da plebe, pois a aliança entre esses dois grupos
sociais era vista pelos patrões e legisladores como uma união explosiva, isto é, o contágio com as formas
rebeldes, violentas, armadas e debochadas da plebe no conjunto de um grupo social que se mostrava ativo
politicamente já desde o final do século XVIII. Legislar e penalizar a mobilidade, o uso do corpo, os tipos de
empregabilidade a que se submetiam, criminalizando-os, era uma maneira de produzir uma barreira entre aqueles
que se pretendiam de bem contra os maus sujeitos. Essa era apenas uma das facetas de uma outra noção que
usarei ao longo da tese, a de “repressão preventiva”. FOUCAULT, Michel. Sobre a Justiça Popular. In:____.
Microfísica do Poder. São Paulo, p. 42.
3

salteadores e outros fora da lei, tanto dentro das milícias privadas quanto em destacamentos
oficiosos que lutavam com as armas públicas. Os conflitos também abriam espaços para a
percepção bandoleira de que o caminho estava mais ou menos livre para a ação autônoma, o
que acirrou ainda mais os graves confrontos que aconteceram no sertão da província da Bahia
na primeira metade do século XIX.
A morte de Martinho José da Silva foi um momento em que uma autoridade preposta
do Estado levou adiante a obra centralizadora, abrindo um demorado processo contra outras
autoridades que, ao ver de alguns juízes, agiram mal. Situações parecidas com esta, em outros
locais, produziram confrontos longos, com um banditismo generalizado, mas não chegou a ser
esse o caso do ocorrido em Valença.
Mas Martinho José ainda nos serve para sugerir ao leitor outros aspectos que
abordaremos ao longo deste trabalho. Ao fugir em grupos de cadeias, esses homens
pronunciados, recrutados à força ou julgados, formavam, ainda que breve e instantaneamente,
“comunidades volantes”3 compostas de homens muito diversos. O caso de Martinho é ainda
mais emblemático porque sua fuga ocorre para a região do Rio São Francisco, abrigo aberto
para uma população de escravizados, fugitivos das leis e proscritos. O Rio São Francisco era o
local para onde os diversos senhores em contenda política e bélica se dirigiam a fim de buscar
homens homiziados para seus exércitos. O São Francisco era estratégico por sua geografia
que fazia fronteira com muitas províncias, bem como por causa dos obstáculos naturais para
os destacamentos que precisavam atravessar o rio de margem a margem. O rio também era um

3
Flávio dos Santos Gomes e Maria Helena P. T. Machado fazem uso dessa noção para discutir casos de
comunidades compostas por escravizados, libertandos e libertos, algumas vezes até não negros, como os
caboclos, nas regiões cafeeiras de São Paulo e Rio de Janeiro. Viviam em pequeno número de não mais que
dezenas de homens e mulheres que, durante as oportunidades abertas pelos conflitos dos anos finais da
escravidão, fugiram para os matos, estradas, senzalas e cidades onde poderiam obter emprego, laços de
solidariedade e autonomia. Durante seus deslocamentos, praticavam, invariavelmente, roubos e furtos, causando
muito terror nas vilas próximas. A mobilidade era sua característica central; ao mesmo tempo em que fugiam,
intencionavam alcançar alguns lugares onde pudessem se diluir para viver. No entanto, suas ações foram
marcadas por perseguições e conflitos com a polícia. O primeiro passo que os unia era a fuga e ou a deserção de
frentes de trabalho. Posteriormente, por não muito tempo, devido a objetivos diferenciados entre seus
participantes ou pela dispersão causada pela repressão, viviam juntos enfrentando os percalços das estradas,
trilhos e caminhos, ou mesmo tentando a penetração em outras comunidades. De todo modo, como destacam
bastante os autores, o crime foi para eles uma via de sobrevivência ou de defesa. Ver: GOMES, Flávio dos
Santos; MACHADO, Maria Helena Toledo de. “Atravessando a Liberdade: deslocamentos, migrações,
comunidades volantes na década da abolição. Rio de Janeiro e São Paulo”. In: GOMES, Flávio dos Santos;
DOMINGUES, Petrônio. Políticas da Raça. Experiências e legados da abolição e da pós-emancipação do
Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2014, p. 69-96. No nosso caso, adaptamos essa noção para abarcar sujeitos livres,
a maioria de cor, mas também brancos, que, pelos motivos que serão explicados, fugiram e constituíram
“comunidades volantes”. Contudo, suas fugas não eram, em alguns casos, da escravidão, mas das linhas do
exército ou de outra autoridade militar e policial, do recrutamento, de dispersões de jagunços geradas por guerras
de famílias, das fugas das cadeias, entre outras situações.
4

desaguadouro dessas comunidades ou de indivíduos que buscavam o acoitamento de um


fazendeiro ou mesmo se manter em pequenas ações armadas. Era local estratégico também
para a formação desses agrupamentos.
Talvez tenha sido por esse motivo que Martinho foi visto andando armado com o
intuito de, talvez, retirar da cadeia algum parceiro seu. Essa parceria poder ter se iniciado em
plena fuga da cadeia do Barbalho ou já lá no São Francisco.
Obviamente, havia outros roteiros de fuga. Um dos assassinos de Martinho, quando
foi procurado pela justiça, fugiu para as matas da região de Rio de Contas, segundo o próprio
acusado. A Chapada Diamantina era também um local para onde acorriam muitos homens em
busca de diamantes, chegando mesmo a ter alcançado um dos maiores contingentes
populacionais da Bahia na proximidade da metade do século XIX. Escravizados, proscritos,
faiscadores, gente vadia e pobre para lá iam tentar a sorte no garimpo. Mas, para alguns,
sobravam apenas as brechas da ordem para sobreviver. Manoel Moreira Espírito Santo, um
dos que participaram da ação contra Martinho, foi preso em Rio de Contas, provavelmente
realizando alguma pequena ação para sua sobrevivência.
Outras vilas, como a de Feira de Santana, também atraíam uma quantidade grande de
gente devido à expansão da sua feira de gado cavalar e bovino, que incluía ainda muitos
outros produtos. Sua proximidade com o recôncavo tornava-a passagem quase obrigatória
para quem ia para esta região ou para a capital. Por este mesmo motivo, a vila se tornou
também um local de fuga para escravizados e desertores das lutas que grassaram no
recôncavo de 1822 até a Sabinada.
Na ocasião em que Martinho José foi cercado, o oficial de justiça disse que tinha a
autorização do subdelegado para montar “uma diligência”, obrigando as pessoas escolhidas a
se apresentarem “sob pena de desobediência, procedendo em os aquartelar, e só em último
caso de dar-se resistência recorrerá à providência da lei”4. É notória aí a condição compulsória
da “ajuda” que os homens deveriam prestar às autoridades. Não fazê-lo implicava ser
criminalizado pelo Estado. A facilidade com que o oficial de justiça aciona essa ordem é típica
de uma sociedade que possuía um sistema de recrutamento forçado, como prática de
criminalização, também abordada nesta tese.
O recrutamento funcionava como uma forma de aprisionar, sem o cometimento de
crimes, o homem livre. Constituía uma “repressão preventiva” que visava submeter homens
fora dos padrões considerados úteis e produtivos a patrões, à terra ou ao casamento. Aqueles

4
APB. Processos crimes. Tribunal da relação. 09/368-30. Valença, 1851. Martinho José da Silva.
5

que não estivessem em condições de provar a sua adesão a uma ou mais dessas situações eram
criminalizados como “perfeitos réus de polícia”, vadios, ociosos e vagabundos, e por isso
eram recrutados e submetidos a outras instituições onde se concentravam homens criminosos
ou criminalizados: polícias, exército e Guarda Nacional.
Quando não eram salvos por algum homem prestigioso, podiam ser salvos por ações
de bandidos, ou mesmo por homens livres “vadios” que odiavam a presença do recrutamento,
que sempre se direcionava contra eles. Dessas situações nasciam mais “comunidades
volantes”. Soldados a caminho da deserção livravam recrutados, que passavam então a ser um
incômodo para as populações e para o governo. Munidos de fardas e armas da nação,
praticavam muitas ações armadas por onde sua comunidade passava.
As guerras, tanto as intestinas, feitas pelos potentados no interior da província,
quanto as de libertação nacional e federalistas, que aconteceram no recôncavo baiano, pelo
efeito massivo do recrutamento, foram lugares e situações oportunas para a formação daquilo
que estamos chamando de “horda heterogênea” 5.
Martinho José da Silva era um homem pardo, livre, solteiro e pobre, como a maior
parte dos homens dos grupos sociais subalternos6 que aparecem ao longo desta tese. Ele havia

5
Referência explícita à obra dos historiadores LINEBAUGH, P.; REDIKER, M. A Hidra de Muitas Cabeças.
Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. Os autores dividem dois tipos combinados de agrupamento para definir o que seria essa horda
heterogênea. O primeiro caso se refere a trabalhadores organizados em turmas, um “pelotão de pessoas que
executam tarefas semelhantes, ou diferentes, com vistas a uma meta comum”, como nas plantations e as turmas
de trabalhadores de navio. Esses indivíduos trabalhavam de forma intensa, algumas vezes sob a imposição do
chicote. O segundo significado descreve uma formação “sócio política do porto ou da cidade do século XIX”,
ligada às formações urbanas e portuárias do século XVII na Inglaterra. “Eram geralmente aglomerações armadas
de diversos grupos e turmas, cada qual com sua mobilidade própria”. Estes eram, de algum modo, protagonistas
de muitos levantes e de contestações políticas. Além do mais, eram multiétnicas (ou multirraciais). Os autores
dão destaque especial aos marinheiros, submetidos a uma disciplina feroz e militarizada, chamada por eles de
“hidrarquia”. Os marinheiros faziam greves por melhores condições de trabalho e por soldo, organizavam fugas
de recrutamento, combatiam os recrutadores e, quando se juntavam com os escravos nas colônias americanas,
organizavam “turbas” (definidas como uma “ralé de rapazes e negros”) que possuíam uma consciência moral
própria. Em que pese o contexto histórico em que Linebaugh e Rediker situaram seus estudos, parece apropriada
essa noção para dar maior visibilidade coletiva às ações aqui tratadas. O estudo que aqui segue tem como escopo
identificar os movimentos que constituem as ações armadas de grupos heterogêneos em meio a uma crise
política, revolucionária para alguns, contrarrevolucionária para outros. Da mesma forma como foi apontado
pelos historiados citados, essa horda estudada por mim é extremamente móvel, ligando através de ações diretas
pessoas que, em sua maioria, ou estavam submetidas a uma disciplina feroz – como a da escravidão, a militar, a
disciplina das cadeias e dos aldeamentos indígenas – ou estavam resistindo a ela. A condição de fugitivos e
volantes uniu experiências portuárias como a da cidade de Cachoeira e seu entorno com pequenos portos em
torno das vilas banhadas pelo rio São Francisco, contínuo local de fuga, abrigo e ação para aqueles homens. E,
do mesmo modo, em alguns momentos, derrotar essa horda significou a pacificação definitiva de um contexto
turbulento e de regresso para a mobilização popular e vice-versa.
6
Essa é outra categoria que irá aparecer bastante ao longo da tese. Apresso-me logo em defini-la para não haver
dúvidas sobre seu uso. A inspiração aqui é tirada de Antonio Gramsci, tanto no sentido explicativo quanto no
metodológico, expostos no caderno especial “Às margens da história. (história dos grupos sociais subalternos)”.
Segundo ele, os grupos sociais subalternos são historicamente oriundos dos homens e mulheres pobres,
submetidos ao trabalho por meios “livres” ou pela via da expropriação, mas também são aqueles grupos sociais
6

retornado a Valença depois de alguns anos. Ele tinha sido condenado pela justiça de lá e por
isto estava preso na Cadeia do Barbalho, onde havia prisioneiros de muitas localidades.
Martinho José andou muito pela província da Bahia. Figuras como ele, livres e com
mobilidade, não agradavam às elites. A sua existência era tolerada por elas apenas na
condição de “peito largo”, “satélite” e “capanga”. Alguns homens7 vieram a se tornar
exatamente isso. Obviamente eles figuram mais na documentação do que os salteadores e
criminosos sem relação direta com as elites, o que causa a impressão da existência de uma
solda cultural entre senhores e bandidos. E também a impressão de que o interior das
províncias, o sertão, era uma “sociedade de uma classe só”. Voltaremos mais tarde a essa
definição.
Na interpretação de alguns historiadores, no sertão, esses homens eram fiéis
escudeiros de grandes proprietários das casas de fazenda. Lutavam as suas lutas por um misto
de sentimento de fidelidade aliado a um estruturalismo clânico-familiar que explica o

que vivem supostamente fora do circuito de mercantilização da força de trabalho por sua própria vontade ou
outro qualquer impeditivo fora do seu desejo. Os grupos sociais subalternos tanto podem ser a plebe quanto o
proletariado organizado. Podem ser os vagabundos e ladrões e também os trabalhadores defensores da ordem. O
que dá unidade à história desses sujeitos é a condição a qual estão submetidos pelas iniciativas do Estado e das
classes dominantes. A história oficial é sempre a história dos grupos dominantes, pois são esses grupos
dominantes que dirigem o Estado, fazendo da versão deles e dos seus acontecimentos aquilo que dá coesão
social e ideológica à unidade nacional. Os subalternos são aqueles que os registros históricos silenciaram. Suas
iniciativas só são visualizadas quando conseguem romper as iniciativas políticas e culturais das classes
dominantes. Mesmo assim, quando as fazem, é preciso que se tenha muito cuidado, pois romper com o lugar
determinado que lhe foi imposto nem sempre é representativo dos seus modos de vida. Uma ação violenta de
uma turba pode deixar de fazer notar uma série de outras formas de ação de subserviência, deferência,
comodismo e acomodação, bem como invisibilizar a visualização de tantos modos de resistências cotidianas.
Gramsci chega mesmo a destacar que, para fazer a história dos subalternos, é preciso um método “indiciário”,
dando importância a toda ação autônoma que “deve ter valor inestimável para o historiador”, já que os arquivos
tendem a ocultá-las ou inseri-las nos modos de vida e práticas culturais das classes dominantes. Os grupos
sociais subalternos podem ser historicamente subordinados por aspectos como raça, cultura ou religião. Ver:
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 05. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 129-145.
Como o próprio Gramsci afirmou, cada “historiador deve observar (...) o espírito de cisão” que em cada contexto
os subalternos desenvolveram. No nosso caso, estamos muito inclinados a definir os grupos sociais subalternos
pela sugestão de Foucault em texto aqui já citado. Os subalternos que aparecem aqui são os principais atingidos
pelo processo de formação do Estado nacional, aqueles que sofreram as iniciativas mais preponderantes do
Estado, no sentido de desarticulá-los através do Exército (via recrutamento), da prisão e dos “coloniamentos”:
homens livres e pobres de cor, sem emprego, sem moradia fixa, que viviam da sua itinerância como jornaleiros
ou cumprindo outras funções que exigiam deslocamentos; escravizados negros, sempre vistos com temor e
vigilância; indígenas, submetidos aos Diretórios de Índios e aldeiamentos, formas de colônia de moradores
extremamente disciplinadoras dos costumes e do trabalho; ex-prisioneiros fugitivos, proscritos e forasteiros. Para
mais informações sobre os grupos sociais subalternos, ver: GUHA, Ranahit. Las voces de la Historia y Otros
Estudios Subalternos. Barcelona: Crítica, 2002; HOBSBAWM, Eric. Notas para el estudio de las clases
subalternas. In: ____. Marxismo e Historia Social. Universidad Autónoma de Puebla: Puebla, 1983, p. 45-59.
7
No caso, tratava-se de homens mesmo, pois foi muito rara a participação de mulheres no banditismo no século
XIX como membros de bandos, diferentemente do Cangaço no fim do século XIX e início do XX. Elas
aparecem na documentação que trabalhei como um grupo de apoio em esconderijos e cuidados médicos. Em
outros casos, eram grandes matriarcas de família, normalmente viúvas, que se envolviam, junto com seus filhos,
em diversas disputas políticas que viraram casos de banditismo. Ver por exemplo: AUAD, Marcia do Couto.
Anésia Cauaçu. Mulher-Mãe-Guerreira. Um estudo sobre mulher, memória e representação do banditismo na
região de Jequié-Bahia. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013.
7

sentimento de dívida e pertencimento dos subalternos às grandes famílias que os incorporam


como parte da “família estendida”, além de um sangue quente que a visão típica do
determinismo geográfico impõe a quem nasce distante da polis, da civilização, e luta contra
onças e intempéries da natureza.
A todo esse caldeirão se chamou inúmeras vezes, por diversos meios, de “cultura”,
“cultura da violência”, “cultura política”, “cultura sertaneja”. Os homens e mulheres agiriam
como agiam porque essas culturas sobre-determinavam suas escolhas. A cultura era uma
linguagem que dava unidade e justificava o porquê de homens livres e pobres lutarem ao lado
e para os grandes senhores das casas de fazenda: a cultura do sertão, a valentia sertaneja, a
desfeita à honra sertaneja, a fidelidade do vaqueiro, a horizontalidade cultural do fazendeiro.
De acordo com essa perspectiva não haveria resistência no banditismo, pois ele se
realizava por e para os senhores da casa da fazenda que se utilizavam dos bandidos em suas
querelas. O alvo de sua crítica é obviamente a historiografia do banditismo social,
corporificado no seu maior representante e fundador, Eric Hobsbawm 8, e o que está em jogo é
a própria noção de que o banditismo poderia ser uma das tantas tradições de rebeldia
camponesa, dos homens livres, que a historiografia clássica do tema construiu ao longo de
décadas.
Esta tese se opõe a essa interpretação, pois vê nessa relação realmente existente entre
senhores e bandidos uma política de acomodação dos setores dos grupos sociais subalternos.
Compreende-se a “acomodação” como parte de um processo conflitivo e de resistência.
Tomando de empréstimo essa definição de James Scott 9, analisamos essa relação como uma
estratégia individual ou coletiva dos sujeitos que, em “condições amplamente independente de
suas determinações”, passaram a agir em colaboração com outros grupos sociais no intuito de
se legitimar, ainda que subordinadamente, como parte de um sistema de dominação. O
objetivo dessa ação é o de escapar dos efeitos diretos e mais opressores desse sistema de
dominação, usando de seus recursos simbólicos e materiais para conquistar garantias dentro
da ordem. Isso significa que o sujeito ou o coletivo em processo de acomodação se submete a
um conjunto de relações de poder, que Joan Scott chamou de “hegemonias simbólicas”. No
caso dos homens do campo, sua acomodação se dá entre os “obstáculos” da “estrutura das
classes sociais”, forjadas em meio a “clivagens” produzidas “por laços familiares, de

8
HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978 e ____. Bandidos. São Paulo:
Paz e Terra, 2010. Aqui no Brasil, Rui Facó, sobretudo, Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2013.
9
SCOTT, James C. “Formas cotidianas da resistência camponesa”. Raízes, Campina Grande, vol. 21, nº 1,
jan/jun. 2002, p. 10-31.
8

parentesco, de facção, ou de patronagem (...) [e] pelas relações de dependência que restringem
as ações dos homens e mulheres”10. É no meio desse emaranhado que os sujeitos encontram
um modo de conquistar seu lugar.
Essa “acomodação”, como bem definiu Scott, não inviabiliza a existência de
resistências por parte dos mesmos sujeitos. No caso que estudei, revela-se justamente o
contrário. A “acomodação” do bandido ao sistema de dominação, ou à hegemonia cultural, se
deve à sua capacidade de exigir ou conseguir contrapartidas dos senhores, através de um
conjunto de rituais que deixam clara a necessidade da contrapartida para aquela
“acomodação”. Esses rituais são aquilo que Scott definiu como lutas de classe de estilo
Brechtiano11. Os personagens centrais de Brecht são quase sempre figuras que buscam viver o
mundo tal qual ele é, ora com doses de esperteza e vigarice, ora com uma aceitação plácida
das coisas, o que os torna às vezes muito estúpidos ou, em outras situações, velhacos
sorrateiros, mas ambos estão, de alguma forma, sempre em confronto com um mundo que os
coloca em indisposição com o modo tal qual ele é.
A discussão acima fará mais sentido ao leitor quando ele se situar no debate
historiográfico que norteou toda a tese.
Por volta da década de 1980, historiadores, que aqui chamaremos de culturalistas 12
e/ou revisionistas13, sistematizaram uma série de críticas a essas abordagens marxistas sobre o

10
Idem, p. 18.
11
Idem, p. 12.
12
Essa é uma expressão usada por Luitgarde Barros para criticar a mesma historiografia que estou debatendo. A
autora será objeto de uma discussão crítica abaixo. BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A Derradeira
Gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 56.
13
O revisionismo, diferentemente da revisão historiográfica, é uma proposição que visa alterar ou até mesmo
rejeitar, através de um indivíduo ou um grupo de especialistas em determinado tema, toda uma forma de
interpretar determinados fenômenos sociais. Na maioria das vezes essa reinterpretação da história visa desvalidar
as conclusões de uma ou mais correntes de interpretação de determinado acontecimento. Em que pese ser próprio
da natureza das ciências humanas o debate interpretativo sobre as coisas das sociedades, o revisionismo tem uma
natureza mais política do que científica, e não é por acaso que os ciclos revisionistas são expandidos nas
efemérides de temas importantes para a constituição da identidade nacional ou quando se abrem e se encerram
novas hegemonias, sendo o revisionismo parte desse novo circuito intelectual hegemônico. Alguns desses
revisionismos foram produzidos dentro de instituições políticas de Estado e escolas de pesquisa financiadas por
interesses de grupos, instituições, Estados e empresas, onde se formaram muitos estudantes que divulgavam
essas novas interpretações por meio de outros circuitos que não apenas os das comunidades científicas, mas
também por meio de televisão, colunas de jornais, revistas para públicos não especializados, entre outros. O
termo foi e é, sem dúvida, mais caro aos marxistas. A origem da sua utilização está, segundo Enzo Traverso, nos
debates do Partido Social Democrata Alemão, o chamado Bernsteindebatte, que abriu a perspectiva de
transformações socialistas por meios parlamentares institucionais. Depois, foi usado no contexto em que o
stalinismo transformou o marxismo – o marxismo-leninismo – em dogma de Estado, acusando a oposição de
revisionismo. Por fim, e o que mais nos interessa, reapareceu nas novas interpretações sobre as origens da
Segunda Guerra Mundial, que criticavam explicações monocausais e diplomáticas para os acontecimentos. Para
Traverso, é preciso problematizar o uso desse termo, pois, em sua origem, as interpretações revisionistas
cumpriram o papel de ser explicações antioficiais quanto aos princípios postulados pelos partidos e pelo Estado,
o que seria muito positivo. TRAVERSO, Enzo. “Revisión y Revisionismo”. In: ____. El Passado. Instrucciones
9

tema. A maioria dos críticos é tributária das revisões desenvolvidas, inicialmente, por Anton
Blok14 e Richard Slatta15. Esses autores, estrangeiros e nacionais, produziram críticas
importantes e bem documentadas empiricamente aos textos de Hobsbawm, ao ponto de este
alterar alguns aspectos de sua argumentação e realizar uma autocrítica da insuficiência da
relação que havia desenvolvido entre o banditismo e a política e o poder16.
Slatta17, na introdução de sua obra, expõe alguns dos problemas na interpretação de
Hobsbawm em relação às fontes usadas nos seus livros Bandidos e Rebeldes Primitivos.
Segundo Slatta, o trabalho de Hobsbawm precisaria de um tratamento adequado a um corpo
documental específico, composto de cordéis, baladas, literaturas, entre outras memórias
produzidas posteriormente à existência dos bandidos18. O marxista britânico, por não ter dado
esse tratamento adequado às fontes, teria tido uma visão anacrônica dos sujeitos pesquisados
que o confundiu no trato da realidade, através de documentos ficcionais ou amparados na
tradição oral popular.
Além dessa crítica, Slatta afirma que seria da máxima importância entender que “os
laços apertados de classe e camaradagem que teoricamente vinculam bandidos sociais e
camponeses não estariam na superfície do contexto da América Latina” 19. Uma das razões

de uso. Historia, memória, política. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2007).
Para ele, postular correntes de revisionistas é de alguma forma defender a ideia de história oficial. No entanto,
como aponta Josep Fontana, a historiografia revisionista é hoje a historiografia oficial. Durante e depois da
Guerra Fria, aparelhos de hegemonia, como as diversas fundações, em sintonia com agências políticas, se
tornaram hegemônicas, especialmente depois da derrocada do muro de Berlim e da crise do Leste Europeu.
Notadamente, a historiografia revisionista entrou em sintonia com o antimarxismo, o anticomunismo e com o
liberalismo. FONTANA, Josep. “As Guerras da História”. In: ____. A História dos Homens. Bauru, SP:
EDUSC, 2004). Assim o revisionismo é aqui entendido, como uma interpretação que retira, e até mesmo nega, a
luta de classes como aspecto importante da História. Entendemos que novas fontes, técnicas e tecnologias
informacionais permitiram aos historiadores mudarem e avançarem em diferentes posições sobre a História,
tornando as revisões das interpretações salutares para a não estagnação da disciplina. Sobre esse debate ver ainda
o livro: MELO, Demian Bezerra de (org.). A Miséria da Historiografia: Uma crítica ao revisionismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.
14
BLOK, Anton. Peasant and the Brigand: social banditry reconsidered. Comparative Studies in Society and
history. Vol. 14, nº 4 (sep, 1972), pp. 494-503.
15
SLATTA, Richard W. Bandidos. The varieties of latin american banditry. Connecticut: Greenwood Press,
1987.
16
Em edições posteriores ele chegou a acrescentar um capítulo específico para tratar do tema. Na edição que
utilizamos, trata-se do primeiro capítulo, chamado “Bandidos, Estados e poder”. Ver Hobsbawm. Op. cit., p. 21-
34.
17
Tradução feita livremente por mim, o que pode incorrer em perda de estilo e plena fidedignidade ao texto do
autor, mas não da ideia geral.
18
Essa também é uma das críticas de Slatta, que afirma que Hobsbawm não se ateve ao fato de que parte daquela
documentação com a qual trabalhou foi produzida em contextos em que a classe média, especialmente os
intelectuais, buscava produzir uma visão de mundo nacional, oposta às modernizações urbanas, que, para eles,
descaracterizavam a essência do povo, confundindo o povo com a nação. Assim, esses bandidos, verdadeiros ou
ficcionais, cumpriam um papel de resgatar os brios nacionais e populares autênticos. Aliás, o próprio Slatta
destaca isso. Op. cit., p. 03.
19
SLATTA. Op. cit., p. 192.
10

para isso seria o fato de que os bandidos não viviam nas áreas camponesas, mas “na fina
população fronteiriça das regiões”20.
Segundo ele, era mais importante para os bandidos os laços com as elites locais do
que com as massas camponesas. Estariam eles longe de serem inimigos de classe dos senhores
rurais, uma vez que trabalhavam com as oligarquias e até mesmo com os governos e seus
representantes, afinal, os bandidos latino-americanos, “barrados nos caminhos legítimos da
riqueza”, buscavam uma possibilidade de ascensão social ou material em uma sociedade
obstaculizada pelas estruturas de poder e pela opressão de classe. A opressão de classe, no
entanto, não seria o motivo do banditismo, mas, antes, as “possibilidades de ganhos
individuais”21. Assim, “em alguns casos, então, a opressiva estrutura das sociedades rurais
latino-americanas, não individuais atos de opressão, forçaram homens para atos
criminosos”22.
No entanto, ele concordava com a “apreciação das raízes do significado social do
comportamento desviante na América Latina, incluindo o banditismo” 23 que está no texto de
Hobsbawm. Assim, é possível entender que o significado da ação bandoleira era contra o
sistema, mas não no sentido de romper ou resistir, mas de abrir brechas para a sua inserção
nele. O sistema social, reconhecidamente opressor, levou os homens ao banditismo, e não os
atos de opressão e/ou a rejeição a eles por parte dos grupos sociais subalternizados. Ao invés
do programa de luta de classes sem classes, típico da tradição do materialismo histórico dos
historiadores do PC britânico – no qual a teoria da rebeldia primitiva é ainda uma experiência
informe de um objeto que seria mais bem definido posteriormente por Edward Thompson 24 –,
temos a adoção de um sistema de classe sem luta de classe. É como se o conceito de lutas de
classe tivesse validade apenas quando as classes se confrontassem tete a tete. O sistema de
opressão parece, segundo esta análise, não ter sido feito por opressores, parece não necessitar
subsumir o trabalho, as vontades e as reivindicações dos homens e mulheres rurais pobres. O
banditismo era, para ele, uma estratégia de melhoria das condições de vida opressivas
daqueles que eram obstaculizados pelo sistema, mas um sistema que aparece sem as práticas

20
Idem.
21
Idem, p. 194.
22
Idem, p. 195
23
Idem, p. 191.
24
THOMPSON, E. P. “La sociedad inglesa del siglo XVIII: Lucha de clase sin clase?” In:____. Tradición,
Revuelta y Consciencia de clase. Estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial
Crítica. s/d.
11

das classes dominantes. Um sistema de classe sem classe, que se configura num sistema de
organização da vida social de “uma classe só” 25.
O livro de Slatta abriu fértil caminho nos estudos brasileiros sobre o banditismo. Em
sua conclusão, ele faz uma sugestão que pode ser encontrada de forma menos sistematizada
nos dois textos do livro que tratam do banditismo no Brasil. Ao encadear as discussões dos
textos dos autores, ele arremata com a possibilidade de entender a violência do nordeste
brasileiro através de uma “culture of violence”26. O conceito não é perfeitamente
desenvolvido, mas, ao lermos os textos, podemos caracterizar essa cultura através de uma
utilização da violência genericamente compartilhada pelos homens e mulheres como
identidade que define a aceitação social, o respeito e o pertencimento uns para com os outros
em determinadas sociedades, independente de classe, cor e outras condições sociais. Valentia
e honra, virilidade e respeito, vingança e defesa do nome seriam o repertório cultural dessa
“civilização”.
A maioria dos estudos brasileiros sobre a violência e sobre o banditismo, grande
parte deles concentrados no período colonial e imperial, não apresenta grandes diferenças em
relação às críticas internacionais. Ambas se utilizam da noção de “cultura política” para
refutar os estudos da relação entre banditismo e lutas de classes 27. Não haveria prismas de
classe no banditismo, pois este fenômeno estaria diretamente vinculado às sociedades,
majoritariamente rurais, que possuiriam uma mesma “cultura da violência” compartilhada por
homens e mulheres livres e pobres, patrões das diversas classes senhoriais, vaqueiros e, em
alguns casos, até mesmo escravos. Esses sujeitos fariam parte de “um sistema de crenças e
significados” (honra, valentia, virilidade). O banditismo não seria uma resposta política de
resistência e nem mesmo de acomodação dos grupos sociais subalternos, mas uma espécie de
linguagem política em que os sujeitos produziam, inescapavelmente, suas interações. Essa
tese foi “provada” por estudiosos através das análises de inúmeras contendas familiares, de

25
Essa foi a forma irônica que Thompson usou para definir criticamente a historiografia sobre o século XVIII
inglês em “Patrícios e Plebeus”. Seria uma sociedade que os historiadores pintaram como de proximidade
calorosa entre ricos e pobres, entre a gentry e os camponeses e artesãos, tendo deixado por isso de ver um sem
número de resistências e movimentos autônomos possíveis dos subalternizados dentro de uma ordem
paternalista. Ver: THOMPSON, E. P. “Patrícios e Plebeus”. In: ____. Costumes em Comum. Estudos sobre a
cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 25-85.
26
SLATTA, op. cit., p. 197.
27
Os autores que se utilizam dessa conceituação serão citados ao longo da exposição. Citarei aqui alguns textos
que explicam as origens e o enraizamento desse conceito na Historiografia Brasileira. MATTOS, Marcelo
Badaró. “As bases teóricas do revisionismo brasileiro: o culturalismo e a historiografia brasileira
contemporânea”. In: Melo, Demian Bezerra. A Miséria da Historiografia: uma crítica ao revisionismo
contemporâneo. Consequência: Rio de Janeiro, 2014. CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e Poder: uma nova
história política?”. In: ____; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
FONTES, Virgínia; MENDONÇA, Sônia Regina de. “História e Teoria Política”. In: Idem.
12

vinganças e disputas de postos de comando da sociedade que redundariam em uma sequência


de mortes feitas por grupos armados em parceria com ou a mando de membros das elites
políticas e econômicas locais. Contavam com as “vistas grossas” e com o apoio ativo de
burocratas e oficiais militares na realização dessas violências, sem falar na leva de jagunços,
cabras, capangas, peões e gente da plebe, sempre disponíveis a pegar em armas em tais
resoluções violentas dos grupos senhoriais ao longo dos tempos e dos contextos.
Apesar dessas descobertas e de novas interpretações sobre o tema, Hobsbawm
continuou a achar pertinente os seus escritos. Para ele, o principal não seria constatar a
existência do bandido social tal qual ele próprio ou os camponeses pensavam que existissem
ou atuassem, mas aquilo que ele considerava central no argumento era “a função do protesto
social do bandido”28.
E qual seria a função do protesto social do bandido se não a de representar, de
alguma maneira, um determinado estágio das lutas de classes de grupos sociais, em sua
maioria oriundos do campesinato, em um determinado contexto de transição econômica ou
crise social? Para Hobsbawm, isso não implicava pensar os bandidos, sociais ou não, como
figuras ideologicamente sempre opostas às elites rurais, mas compreender que, mesmo esses
“barões do crime”29 ou potentados locais, quando lutavam em determinados contextos, na
forma do banditismo, podiam atrair o desejo de luta e de fantasia dos camponeses sobre
determinadas noções de costumes, culturas, segurança, honra, valentia, autonomia e liberdade,
sobretudo em conjunturas de acomodação e equilíbrio social afetado. Para ele, essas
associações pluriclassistas de bandidos eram, por si, um atestado da correlação de forças entre
as classes sociais. Para ele, nos lugares onde camponeses e senhores vinham de situações de
tensões sociais era muito raro que os senhores armassem os camponeses para suas ações. Bem
menos provável seria que armassem bandidos comuns que se prestavam ao serviço da guerra
por soldo, prestígio e outras condições.
Paul Vanderwood, estudioso do banditismo mexicano, parece concordar com
Hobsbawm quando afirma que, apesar das relações de enriquecimento mútuo de criminosos
de origens pobres e ricos estancieiros no cenário político conturbado após as lutas de
independência no México, “las élites preferían exterminar a los facinerosos, no transar con
ellos, pero no siempre les era posible hacerlo”30, porque os bandidos controlavam o comércio
tão bem quanto eles, além de oferecerem uma forma segura de conseguir transportar suas
28
HOBSBAWM, Op. cit., p. 198.
29
HOBSBAWM, op. Cit., p. 61.
30
VANDERWOOD, Paul. “El bandidaje en el siglo XIX: una forma de subsistir”. In: Historia Mexicana, v. 34,
n. 1 (Jul. - Sep., 1984), p. 42.
13

mercadorias em estradas povoadas de ladrões. O fato de ter existido o colaboracionismo prova


a força dos bandidos e da gente pobre comum, e só por conta dessa correlação de classe
desfavorável as elites aceitaram até onde puderam a colaboração.
Outro ponto criticado pelos cientistas sociais são as noções de “pré-político” e
“arcaico” expostas nas obras em que Hobsbawm tratou do banditismo. Para eles, o historiador
europeu não conseguiria apreender a política desenvolvida por esses grupos sociais porque
estabelecia um modelo superior, ocidental, etapista, calcado na teoria da modernização.
Fiquemos com as palavras de uma crítica dirigida ao autor num debate na Universidade de
São Paulo:

Os defeitos que apontamos nos conceitos de pré-político estão, a nosso ver,


relacionados a julgamentos de valor depreciativos que persistem
relativamente às sociedades consideradas pouco desenvolvidas, às camadas
sociais inferiores, aos grupos que são classificados como marginais. Embora
o Hobsbawm se defenda no início do artigo, de qualquer julgamento de
valor, este julgamento é parte intrínseca da preposição “pré” que significa
“anterior”, mas com conotação de “antigo”, de “arcaico”, até mesmo de
anterior à “civilização”, como é o caso de seu emprego no termo “pré-
história”. Numa sociedade e cultura como as atuais, em que a valorização
recai sobre o que é moderno, o emprego de um termo que encerra o sentido
de “antigo” dá forçosamente um sentido negativo e desprestigiado àquilo
que foi qualificado por ele. Assim, não é apenas pelas confusões que os
termos “pré-político” e “político” trazem ao estudioso da sociologia e da
ciência política, que seu emprego deve ser abandonado; é também – e
principalmente – devido aos juízos de valor negativos que contêm, e que
caracterizam, já dentro de uma perspectiva, os fatos por ele qualificados31.

Apesar do uso desse termo infeliz, que causa mais constrangimentos do que
explicações, Hobsbawm teorizou a respeito de uma ação “política pré-política” em contextos
em que não existia uma estrutura estatal de tipo “ocidental” 32, isto é, uma institucionalidade

31
A crítica foi feita por Maria Isaura Pereira de Queiroz em um evento na USP, como debatedora do texto de
Hobsbawm que foi publicado e que seguiu com o anexo da intervenção da socióloga. HOBSBAWM, Eric.
“Movimentos pré-políticos em áreas periféricas”. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (org.). Estados Autoritários e
Movimentos Populares. São Paulo: Paz e Terra, 1979, p. 285.
32
Na fórmula de Gramsci, as sociedades ocidentais do final do XIX e século XX são aquelas em que o governo
das pessoas e das coisas se dava através da busca de consentimento ativo da sociedade civil, da margem de
manobra e negociação que emerge da sociedade civil e de suas pautas e agendas políticas. Diferentemente da
sociedade de tipo oriental, em que o Estado é tudo e não se abre à agenda de nenhum grupo social e a dominação
precisa ser imposta, por força, armas e manobras militares. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 262-264. A divisão entre Ocidente e Oriente parece novamente
caracterizar uma divisão eurocentrista, mas Gramsci parece estar atento à mesma interpretação que Perry
Anderson desenvolveu em Linhagens do Estado Absolutista (São Paulo: Brasiliense, 2004. Especialmente a
segunda parte do livro). Para o autor, enquanto as relações feudais no ocidente iam se desconfigurando – com o
absolutismo tornando-se uma compensação da burguesia para os aristocratas do antigo regime, que viam o
crescimento das lutas urbanas e o esfacelamento da servidão com o crescimento das expropriações do
capitalismo –, no Oriente o absolutismo se fortalecia, junto com o crescimento da violência contra os
14

voltada para a aceitação e manipulação da agenda dos grupos sociais subalternos. Pensamos
que, para ele, a hipertrofia da “sociedade política” dos Estados anteriores às revoluções
burguesas não permitiam, do ponto de vista do poder, uma ação de demarcação de agenda, de
acúmulo de forças e criações de pautas oriundas dos movimentos das “classes inferiores”. Os
Estados “pré-industriais”, que tinham menos esferas civis de produção de consensos, tendiam
a resolver seus dissensos através de resoluções mais violentas.
Assim mesmo, os movimentos “pré-políticos” buscavam afirmar seus direitos,
normalmente costumeiros, através de manifestações de ações diretas que demarcavam os
limites daquilo que os subalternos consideravam inaceitáveis. Colocavam-se na arena de
forma explosiva, em ações de curta duração, através de movimentos de turba, com o fim de
destruir e vencer e não de iniciar uma mesa de negociação, mesmo que isso pudesse, algumas
vezes, sacrificar o próprio movimento. Esse fenômeno foi, não poucas vezes, definido pelo
historiador inglês como uma “ação política antes da política”33.
O interessante é que a crítica inicial dos historiadores culturalistas a Eric Hobsbawm
parte de um aspecto para o qual, contraditoriamente, eles convergem em seus próprios
estudos: a ideia de que a ausência de um Estado que agisse na mediação entre poder e direitos
sociais ou que se realizasse através de obrigações de reciprocidade institucionais e com regras
previstas entre ele e o povo era um dos aspectos fundamentais para o surgimento do
banditismo.
No caso de Hobsbawm, os bandidos agiam no intuito de reagir às diversas situações
de instabilidade e insegurança da comunidade frente a invasores ou às novas regras
institucionais impostas pelo Estado Nação, de cima para baixo. Combatiam, vingavam e
expropriavam as pessoas e coisas que eram consideradas pelos camponeses como motivadoras
dos desmandos e inquietações de seus costumes. Nessa perspectiva, os bandidos atacavam a
aparência do fenômeno, mas não a essência do problema, que seria a própria dominação de
classe de que o Estado era parte fundamental. Já para seus críticos, os bandidos eram parte do
exército de potentados ou senhores ávidos pelas brechas de poder deixadas pelo Estado. Na
ausência de uma lógica política institucional, teriam os bandidos agido com base em uma
“cultura política” específica de sociedades de “imprevisibilidade da ordem social” ou de
excessivo poder privado: a “cultura da violência”. Esta nasceria do fato de que, sem as regras
institucionais e racionais do Estado, o poder privado e o mandonismo prevaleceriam sobre a

camponeses que reivindicavam o fim da servidão. O absolutismo era um mecanismo para consolidação da
servidão. Isto é, enquanto num tipo de Estado passava-se a ceder tanto às classes dirigentes não hegemônicas
como também aos seus pobres, no outro o que acontecia era exatamente o inverso.
33
Ver: HOBSBAWM, Eric.; RUDÉ, George. Capitão Swing. Rio de Janeiro; Francisco Alves, 1982.
15

presença central estatizadora. O mandonismo era a expressão política da força do mais forte.
Para que um potentado mandasse e controlasse os recursos e bens simbólicos de poder e do
dinheiro, era necessário que montar uma grande rede de bandidos e jagunços que defenderiam
a ordem do mandatário local. Todos, ou a maioria dos fazendeiros, procediam dessa maneira,
criando, com efeito, uma “cultura política da violência” em que os bandidos agiam como
agentes, mediadores e cabos eleitorais.
O mais importante intelectual brasileiro desse grupo de críticos culturalistas,
que abriu frutífero caminho para outros pesquisadores, é Frederico Pernambucano de Mello 34.
Este autor criou uma explicação para compreender a prática de violência nos sertões que foi
largamente utilizada pela historiografia do banditismo e das ações armadas coletivas aqui no
Brasil. Sua tese versa sobre o que o autor denominou “escudo ético”. Para ele, a explicação
para a proliferação do cangaço no sertão nordestino teria a ver com a tradição cultural do
homem do Nordeste de aceitar a violência como aspecto positivo de demonstração de valor,
moral e honra. Isso explicaria os motivos pelos quais inúmeros coronéis e médios
proprietários de terra tiveram tão boa relação com tantos agrupamentos de cangaceiros,
dando-lhes abrigo e cultivando sua amizade. O prestígio dos coronéis era reforçado pela
relação com os grupos de cangaceiros valentes que, por sua vez, enriqueciam ou ganhavam
prestígio realizando serviços de gatilhos aos coronéis e legitimando seus atos ilegais pelo
poder político municipalista. Apesar dessa troca material de poder e fortuna por crimes, o que
soldava a “normalidade” da convivência entre bandidos (oriundos do campesinato, como
lavradores pobres, pequenos e médios proprietários de terras) era uma cultura comum ou uma
linguagem social e política única, a violência.
Outra autora importante, e a que mais radicalizou as intenções de Mello, foi
Célia Nonata. Seu livro “Territórios de Mando” 35 faz largo uso dessas noções de cultura:
“cultura política mestiça”, “zona bandida”, “cultura sertaneja”, “cultura da violência”,
“cultura mestiça da violência”, são algumas das variações de cultura usadas pela
pesquisadora. Para ela, a autoridade no sertão se constituiria a partir de um potentado, um
mandão, que se alinhava a diversos “valentões” (ou estes se alinhavam aquele), compondo
territórios onde o mandonismo prevalecia sobre qualquer outro tipo de autoridade ou grupo
social. Era a capacidade de fazer uso de forma precisa dessa “linguagem ritual”36 que

34
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol. Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil.
Massangá: Recife, São Paulo: A Girafa, 2004.
35
SILVA, Célia Nonata da. Territórios de Mando: banditismo em Minas Gerais, século XVIII. Belo Horizonte:
Editora, 2007.
36
Idem, p. 41.
16

habilitava um senhor rural à condição de mandatário de partes dos sertões mineiros. O


banditismo, “fundamentado e agregado à cultura política do mando” 37, foi um dos “vários
elementos culturais [que] faziam uma comunhão cultural [“dos homens de vontade e mando”]
com os grupos mais baixos da comunidade”38.
“Cultura da violência” também é o termo utilizado por Ivan Vellascos para
explicar “uma cultura [que] (...) permeava as relações sociais” e interpretava “os significados
da violência e sua racionalidade enquanto forma legitimada de expressão de valores sociais,
tais como honra e dignidade, e manutenção de prerrogativas em contextos sociais
competitivos”39. A “violência constitui um ethos, que atravessa as relações sociais, fossem
verticais ou horizontais, fossem entre estranhos ou próximos, entre amantes, parentes ou
inimigos”40. Nada muito diferente do que poderíamos dizer de nossa sociedade atual. Para ele,
a crescente participação de homens e mulheres pobres nos processos judiciais, como réus ou
como vítimas e testemunhas, afirmava as situações em que “noções de legitimidade” se
submetiam “aos limites da violência justificável e necessária” 41, o que provocava um contexto
em que a sociedade, sob a égide de uma ”cultura da violência” pluriclassista, não poderia ser
compreendida pelo prisma do crime como resistência42.
Perguntamo-nos o que seria justificável, necessário e tolerável para um senhor
escravista e para um pobre lavrador? Seria mesmo essa uma “cultura da violência” ou uma
“hegemonia cultural”43 da violência? Responder essa pergunta exige buscar compreender
quando, por que, como e quais foram os elementos culturais dos grupos sociais diferentes que
prevaleceram um sobre o outro. Nos termos propostos para os estudos da cultura
empreendidos por Raymond Williams44, seria necessário, para entender as dinâmicas culturais
que envolviam tantos encontros e sujeitos de classes sociais e raças diferentes, além de
territórios diferenciados, capturar aquilo que é “dominante”, “residual” e “emergente”45 na
configuração das práticas culturais, aspectos que essas pesquisas culturalistas silenciam.

37
Idem, p. 43, grifos meus.
38
Idem, p. 45.
39
VELLASCO, Ivan de Andrade. “A Cultura da Violência: os crimes na Comarca do Rio das Mortes - Minas
Gerais no século XIX”. In: Tempo, Rio de Janeiro, n. 18, pp. 171-195, 2003.
40
Idem.
41
Idem, p. 175.
42
Idem, p. 187.
43
THOMPSON, E. P. “Patrícios e Plebeus”. In: ____. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
44
WILLIAMS, Raymond. Literatura e Marxismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
45
Idem, p. 124-129.
17

Para Parrela46 e Anastasia47, a formação social do Brasil, extremamente vinculada ao


poder privado, relegou determinados lugares, principalmente as zonas proibidas de moradia
do sertão de Minas Gerais no século XVIII, a um estado de “imprevisibilidade da ordem
social”48 e de falta de institucionalização do poder, criando, assim, um mundo onde os
arranjos particularistas, a montagem de bandos e de “territórios de mando” construíram uma
cultura política de desgoverno em que os agrupamentos de criminosos eram quase cogestores.
Nestes lugares imperaria a ordem do mais forte, da aliança entre potentados e criminosos,
jagunços e garimpeiros. O povoamento e a consolidação das leis e regras estavam submetidos
a estes poderes locais, que estabeleciam costumes e sistemas de convívios adaptados à
violência. Estas autoras, em nossa opinião, perderam de vista a própria forma violenta da
colonização, que distribuiu o poder de usufruir da violência de forma desigual e seletiva.
Parecem não conceber o caráter inerente da violência colonial como parte do sistema de
governo metropolitano no Novo Mundo. Parece-nos que essa “cultura política” teria surgido,
segundo essas interpretações, da ausência do Leviatã, ou da manutenção dos homens e
mulheres no estado de natureza, regulando, como cultura, o homem como lobo do homem. No
entanto, não foi a fraca presença do poder colonial que gerou violências, mandonismos e
banditismos. É possível pensar que o contrário também resultou em outros conflitos. Quando
se intensificou a fiscalização dos impostos, especialmente na mineração, foram obstaculizados
os costumeiros descaminhos quase que consentidos dos contrabandos de ouro nas minas
setecentistas49. Como demonstrou Paulo Cavalcante, a cada aperto do controle do fisco sobre
a extração de ouro ampliavam-se as práticas ilegais, contraventoras e bandidas (violentas) por
parte dos proprietários de escravos e mineradores.
Há outros problemas teóricos e metodológicos no uso dessa conceitualização.
Ela parece se submeter muito facilmente à dança das fontes dos pesquisadores, transformando
em cultura dados quantitativos dos documentos pesquisados, como, por exemplo, o fato de
numericamente haver mais absolvição do que prisão efetuada pelos júris nos sertões de
Minas. Para Velasco50, essas absolvições seguiam a lógica da “cultura da violência” das

46
PARRELA, Ivana. O Teatro das desordens: garimpo, contrabando e violência no Sertão Diamantino. 1768-
1800. Minas Gerais: FAPEMIG, São Paulo: Anablume, 2009. ANASTASIA, Carla Maria Junho. A Geografia do
crime: violência nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
47
ANASTASIA, Carla Maria Junho. A Geografia do crime: violência nas Minas setecentistas. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
48
Idem, p. 27-52.
49
CAVALCANTE, Paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750).
São Paulo: FAPESP; Hucitec, 2006, p. 106-122.
50
VELLASCO, Ivan de Andrade. Justiça, violência e honra – A atuação do júri nos crimes violentos em Minas
Gerais 1830-1930. Simpósio ANPUH-SC. 2015. Anais eletrônicos.
18

relações sociais do sertão, diferentemente da prática civilizatória e disciplinadora dos poderes


institucionais emanados do centro. O autor descarta toda uma multiplicidade de fatores como
as vinganças familiares, que poderiam suceder após o júri decidir pela culpa de uma pessoa; a
fragilidade das cadeias, de onde os criminosos fugiam; as distâncias e tocaias a que estavam
submetidas autoridades judiciais e júri; as vontades políticas em torno de tipos diferenciados
de criminosos; o critério seletivo, racial e preventivo de algumas prisões; a política envolvida
na própria escolha dos júris.
Não negamos a relevância da violência no desfecho daquelas solturas, mas não
se trata de uma regra dos nove em que a “cultura da violência” rivalizava necessariamente
com a cultura jurídica, mas de entender que o ato de julgar e ser julgado nos sertões do século
XIX contava com uma multiplicidade de fenômenos que se sobrepõem sem se anular. O
próprio fato de que a justiça em si era violenta não pode ser descartado. O fato de que o
exercício da repressão seletiva e preventiva – no recrutamento e no controle policial, militar e
“partidário” sobre grupos políticos rivais – faz das absolvições muito mais uma reação de
resistência e descrença naquelas autoridades do que uma violência cultural entranhada e
arbitrada acima de outros valores. O problema está em nem sequer se levar em consideração a
possibilidade de que os grupos sociais subalternos tivessem algum tipo de percepção de que
aquela justiça era violenta e classista e de que, por parte dos poderosos locais, não existisse
uma disputa pelos aparatos de controle judiciais que transcorriam, notadamente, pela
inviabilização do exercício da justiça através de conflitos armados e por pressões exercidas
em jurados para a absolvição de presos. Esta tática de obstaculizar as autoridades
institucionais funcionava como uma tentativa de demonstrar o fracasso daqueles que
controlavam o aparelho judicial, com o intuito, premeditado, de substituí-los por alguém de
seu controle.
Para agravar a utilização dessa ferramenta teórica, não há um consenso entre os
autores que trabalham com essas noções sobre a cultura como um “sistema de significados”.
Uma das precursoras da análise da violência entre os pobres livres, Maria Sílvia de Carvalho
Franco51, afirma haver um “código do sertão”, profundamente violento, nas relações
cotidianas que regulavam e acomodavam as relações comunitárias. A autora criticou a forma
como a sociologia deu atenção às relações comunitárias. Para ela, essa literatura se
concentrava muito no enfoque dos padrões associativos e costumeiros, dando à comunidade
sempre um tom de unidade e de homogeneidade. Franco, por sua vez, analisou como se

51
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Kayrós, 1983.
19

estruturou um código no sertão (paulista) a partir do qual a comunidade se estruturou pela


cobrança ríspida, violenta e definitiva em torno dos cumprimentos de obrigações recíprocas
que, em comunidades de “cultura pobre e um sistema social simples” 52, eram fundamentais
para que este microcosmo não se desorganizasse. O papel dos senhores seria o de tentar
regular essas contendas, devolvendo-lhes o equilíbrio. Contudo, quando essa intervenção não
surtia efeito, eram necessárias a força e a violência senhorial, que podia ser reconhecida como
legítima pelos pobres livres.
Não obstante, a autora pensou essa relação entre senhores e pobres como um
mecanismo de dominação social. Na sua explicação não existia a valentia, a honra e a
masculinidade como forças motrizes da história – apesar de elas serem fatores importantes.
Importava a compreensão de que, quando essas relações recíprocas eram desafiadas ou
descumpridas por seus membros, eles sofriam sanções (violências) culturalmente aceitas e
generalizadas entre um mesmo grupo social, mediadas entre homens de classes sociais
diferentes em circunstâncias específicas.
Esses trabalhos que denominei de culturalistas são de qualidades insuspeitas,
contudo, a “determinação em última instância” da cultura, dos valores, do imaginário, cria
certa aparência – com as exceções que aqui serão apresentadas. Onde estes autores veem
“cultura sertaneja” como uma unidade horizontal da sociedade, onde se vê um escudo moral
de todo um modo de vida, Thompson, leitor de Gramsci, talvez visse a “hegemonia cultural”
de uma classe sobre a outra. Este é também o nosso ponto de vista.
Aliás, é o próprio Thompson quem nos alerta do perigo de conceber o conceito de
cultura como uma conceitualização dócil de ser aplicável a um povo, uma nação e a um
território. O historiador poderia ser levado a entender a sociedade pretérita como uma “forma
de sistema” “ultra consensual”53. Ainda assim, Thompson não achava o conceito inútil, mas
buscava entendê-lo como uma dinâmica de múltiplos “feixes” em que as formas como estes
se apresentavam na arena social eram “localizada[s] dentro de um equilíbrio particular de
relações sociais, um ambiente de trabalho, de exploração, de relações de poder mascaradas
pelos ritos do paternalismo e da deferência”54.
Essa ultra consensualidade no “universo cultural” sertanejo é relativizada por

52
Idem, p. 26.
53
Sobre as sugestões de Thompson acerca da aplicação do conceito de cultura, ver especialmente o primeiro
capítulo de Costumes em Comum. Op. cit.
54
Idem, p. 13-24.
20

Joana Medrado55 quando ela analisa, no sertão da Bahia, através do mesmo conceito de
“cultura política”, as relações entre vaqueiros e fazendeiros. Mas, apesar de usar a mesma
noção conceitual, Medrado chega a conclusões diametralmente opostas às da maioria dos
autores acima destacados. Essa historiografia que definiu uma cultura política comum entre
grupos sociais diferentes no sertão ressaltou com frequência a lida com o gado como um dos
aspectos centrais para essa horizontalidade cultural na vida social sertaneja: demonstração de
valentia na pega dos bois; patrões que aboiavam; a suposta ausência de escravidão entre os
vaqueiros; o fato de que o vaqueiro deveria ser um homem de total confiança do fazendeiro,
pois circulava com seus bens livremente pelas estradas; a ascensão social que poderia vir a ter
o vaqueiro com a quinta parte dos bois, por exemplo, foram argumentos que diversos
historiadores usaram para justificar os supostos laços de fidelidade, companheirismo e
confiança na relação entre vaqueiros e fazendeiros56.
Muitos aspectos colaboravam para que de fato se pensasse assim. Um deles foi
a prática de se acharem bois perdidos e devolvê-los aos proprietários com base nos ferros
queimados no couro do animal. Mas Joana Medrado viu nesse horizonte cultural uma relação
de negociação política, pois essa possibilidade só estava aberta com base no temor contínuo
que os fazendeiros tinham dos ladrões de gado, dos indígenas rebeldes que atacavam as
fazendas e dos forasteiros que circulavam nos arredores das povoações. Essa relevância fez
com que o trabalho com o gado não fosse “precarizado” ou colocado sob a lida dos escravos.
Foi nessas brechas que os laços de “dominação pessoal”57 e a negociação política se
estabeleceram. Segundo a autora, formou-se uma “cultura política” atuante e estruturante das
relações sociais entre classes diferentes. A cultura, para ela, não foi utilizada como um
sistema de crenças e significados em que todos os grupos sociais tinham papéis isonômicos e
se acomodavam na aceitabilidade de papéis a desempenhar dentro desse sistema. A cultura foi
tratada como o resultado de um processo conflituoso em que as classes dominantes buscaram
fortalecer certos símbolos de horizontalidade entre trabalhadores e patrões, mas que, em
contrapartida, forneceram signos que os grupos sociais subalternizados também agiram e
manipularam em seu próprio benefício. No dizer do prefaciador do seu livro58: “a noção de

55
MEDRADO, Joana. Terra de vaqueiros: relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia, 1880, 1900.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2012.
56
Um dos maiores divulgadores dessa honra e moral sertaneja foi “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Em
“Fidalgos e Vaqueiros”, Eurico Alves Boaventura também perfaz seu universo mítico através dessa bondade,
amizade e moral dos vaqueiros e dos homens do sertão.
57
Aqui o conceito de cultura política atende aos mesmos intentos que o de Nonata, ou seja, à ênfase nas relações
pessoais.
58
FRAGA, Walter. “Préfacio”: In. MEDRADO. Op. Cit., p. 19.
21

solidariedade perpassava o interior das elites nordestinas, que dependiam de redes sólidas de
cumplicidade no governo de propriedades imensas, onde o gado se espalha por fronteiras
dilatadas e quase indefinidas. O compromisso em torno da ideia de honestidade e fidelidade
eram fundamentais para o sucesso da economia pecuária”. Essas ideias perpassavam as elites,
para o governo das propriedades, forjando um compromisso.
Mitos de bois encantados e de bois valentes que desapareciam e que não eram
domáveis eram narrativas que serviam para desviar o tema do descaminho por parte dos
vaqueiros dessas riquezas senhoriais. A autora mostra, através das trocas de cartas do Barão
de Geremoabo, grande proprietário de bois, com outros fazendeiros e administradores de
gado, como a confiança andava de mãos dadas com a desconfiança todo o tempo. A autora
flagrou esse grande fazendeiro pedindo ajuda e vigilância a outros proprietários para que
ficassem no encalço dos seus vaqueiros, fugidos ou não. Medrado conclui que, ao “analisar
os conflitos em torno do furto de animais, observamos que o estabelecimento de confiança e
fidelidade entre indivíduos de diferentes classes sociais é um terreno movediço,
especialmente se estamos tratando de uma comunidade cuja necessidade de sobrevivência era
mais importante do que a de ascensão social”59.
Outra autora, aqui já citada, Luitgarde Barros, percebeu, com base nas análises
de Gramsci sobre os folhetins, a literatura popular e o folclore, que uma identidade cultural se
formou como parte do imaginário e da identidade do sertanejo pobre. Para essa autora, a
valentia, a honra e a masculinidade, geradoras de diversas práticas de violência e guerras entre
famílias, era “necessária à preservação da ordem assimétrica das camadas sociais, aparece[ria]
como instrumento de defesa da honra (...), na defesa de princípios embasados em valores
culturais antagônicos [ao das classes senhorias], articulados nos códigos de honra sertaneja” 60.
Segundo ela, diferentemente do que conclui a teoria do “escudo ético” de Mello, os
cangaceiros quebraram essa cultura e os valores fundamentais do sertanejo quando passaram,
em nome dos grandes proprietários que ganharam politicamente e financeiramente com a
”guerra cangaceira”61, a estuprar, roubar, atacar as genitálias masculinas, se relacionar com
policiais corruptos, matar inocentes e praticar diversas violações anais, dentre outras coisas.
Há nessa autora um prisma de que as identidades culturais também são perpassadas por
identidades de classe. Os valores dos sertanejos, que incluíam a valentia por vezes violenta,

59
MEDRADO. Op. cit., p. 116.
60
BARROS. Op. cit., p. 11.
61
Que seria diferente da “guerra sertaneja”, esta sim baseada em valores como valentia, masculinidade e honra,
visando a acomodações políticas, à defesa da propriedade – especialmente as pequenas e médias – e a segurança
das famílias.
22

era um código cultural que permitia, frente à fraqueza dos poderes institucionais, uma justiça
costumeira, uma justiça popular, em um universo que mantinha certa rejeição ou desconfiança
em relação ao arbítrio estatal, visto como opressor e comandado pelos de cima. Contudo,
também viu na ação dos cangaceiros excessos para além do que a justiça “violenta” da cultura
sertaneja permitiria.
A nosso ver, o mérito de Luitgarde consiste em identificar o que é dominante, ou
hegemônico, residual e emergente nessa suposta “cultura da violência”. Ela demonstrou as
diversas clivagens internas e a tensão existente na forma como essa cultura teria sido
absorvida, transformada e generalizada por um setor específico da sociedade. Se aquela
“cultura da violência” praticada pelos cangaceiros teve origem na cultura tradicional da
valentia e da honra, ela se deu através da combinação de valores e intenções fortemente
classistas das autocráticas classes dominantes brasileiras. Estamos de acordo com essa
proposição: a de uma justiça popular costumeira que foi universalizada através de rituais e
tradições semelhantes às populares, mas que se confirmaram institucionalmente através do
mando do potentado da casa da fazenda enquanto hegemonia. A autora conseguiu capturar e
resgatar os sentidos populares da cultura “localizada dentro de um equilíbrio particular de
relações sociais (...) [e] de relações de poder mascaradas” 62, fugindo de uma leitura
paternalista da história dos grupos sociais subalternos.
Naturalizou-se o que é conflituoso e diverso em consensual. Essa é, aliás, a crítica
feita por um historiador mineiro, Alyson Jesus63, que criticou Parrela, Nonata e Anastasia
(todas elas também estudiosas da capitania e da província de Minas Gerais). Para ele, a
“insistência em características como valentia, mandonismo local, violência e defesa da honra
ajuda a explicar parte desse mundo, mas analisados apenas por esses espectros os autores
acabam empobrecendo esse universo”64. A violência, segundo ele,

não pode ser jamais vista apenas como um aspecto inerente à ação sertaneja,
o que muitas vezes transmite a impressão de que esses homens teriam uma
predisposição natural para praticar delitos, ao contrário dos homens
“civilizados” do restante do país. A violência é um subproduto do processo
político e, como tal, não é inerente a ninguém 65.

O autor demonstra que muitas variáveis são relevantes para caracterizar o


“universo cultural norte mineiro” e sua assídua prática de violência, sendo uma delas pouco
62
THOMPSON, E. P. Op. cit., p. 13-24.
63
JESUS, Alyson. No sertão das Minas: escravidão, violência e liberdade (1830-1888). São Paulo: Annablume,
2007.
64
Idem, p. 44.
65
Idem, p. 45.
23

ou nada abordada pelas historiadoras das Minas Gerais citadas acima. Entre essas questões
estariam as disputas e violências em torno da reescravização e pendências em torno das
alforrias que muitas vezes envolveram brancos pobres, livres negros e escravizados. Somente
o determinismo cultural poderia afirmar que o fato de os sujeitos compartilharem um mesmo
sistema de signos culturais produziria uma mesma práxis social.
Esse também foi o tema de alguns historiadores da escravidão que abordaram
as práticas de crime e criminalidade escravas em territórios de baixa presença demográfica
escrava. Diferentemente das conclusões da historiadora Maria Helena Machado no seu
clássico Crime e Escravidão66 – que notou uma acentuada prática de crime contra os senhores
e feitores nas grandes lavouras, além de furtos e roubos praticados por escravos de objetos de
reconhecido valor para a sociedade escravocrata –, Ricardo Alexandre67 e Alyson Jesus68
perceberam que, em lugares de poucos escravos (respectivamente no sertão paulista de Franca
e no sertão norte mineiro), sem o predomínio do latifúndio monocultor, o padrão do crime
escravo não tinha a feição de se voltar contra os símbolos máximos da autoridade
escravocrata. A violência era praticada muitas vezes em situações em que escravos, libertos,
livres, brancos pobres (a maioria dos proprietários de escravos dessas localidades) estavam
conjuntamente em localidades públicas, às vezes se divertindo, jogando, roubando e
trabalhando conjuntamente. A violência, para eles, era uma forma encontrada de hierarquizar
as relações que às vezes se desequilibravam. Também podia ser fruto das relações sociais de
maior proximidade, como empréstimos de dinheiro, amores, jogos e outras coisas cotidianas.
Se, por um lado, havia uma horizontalidade que marcava os conflitos, crimes, violências e
roubos, por outro, havia também a necessidade de lavar a honra “superior” (com a profundeza
classista que essa noção podia ter) de homens brancos ou de mulheres e homens negros que se
consideravam injustiçados.
A crítica teórica das fontes é um dos problemas de alguns dos autores que aqui
foram apontados. Vimos como suas próprias definições conceituais geram contradições
dentro da análise do mesmo fenômeno e se prestam a pontos de vista inteiramente
discordantes. Poderíamos até mesmo dar boas vindas a essa multifacetada possibilidade
conceitual, porém, a cultura continua nesses estudos, ou na maioria deles, a ser tratada como

66
MACHADO, Maria H. P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-
1888). São Paulo: Brasiliense, 1987.
67
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade num ambiente rural
(1830-1888). São Paulo: Editora UNESP, 2005 e ____. Crimes em comum: escravidão e liberdade sob a pena do
Estado imperial brasileiro (1830-1888). São Paulo: Editora da UNESP, 2011.
68
JESUS, Alyson. Op. cit., 2007.
24

uma esfera superestrutural, com pouco ou nenhum diálogo com os aspectos sociais de todo o
sistema. A maioria desses autores deixa de investigar e se perguntar sobre alguns aspectos do
governo dos homens, da economia, das ideologias, enfim, da hegemonia e das possibilidades
abertas pelas suas constantes crises. Esses autores escreveram sobre política sem discutir a
política e sua estrutura fundamental, o Estado.
Uma introdução que sirva para apresentar ao leitor o texto não poderia deixar
de abordar por onde tudo começou, no caso, com uma insatisfação teórica com a literatura,
aliada ao cotejamento metodológico das fontes.
Se o interesse sobre o tema na maioria das vezes recaía sobre a análise de uma
“cultura política”, imaginávamos que a política deveria ser um alvo da investigação. A
maioria desses autores afirmava uma cultura política com base em fontes em que as
autoridades da política eram figurantes. Estavam mais interessados no estudo dos processos
crimes, onde invariavelmente os réus citavam ou chamavam por homens de bens da
sociedade para testemunharem a seu favor ou para provarem sua relação com figuras de proa
da sociedade oitocentista com o intuito de atestar os laços e nexos de familiaridade,
camaradagem, compadrio ou clientela que em tese os isentariam da prisão, como de fato em
algumas situações funcionou. O roteiro que um bandido preso descrevia sobre sua relação
com um potentado, para um juiz, era apenas uma peça de todo o quebra-cabeça. Era, a nosso
ver, necessário entender o significado das lutas eleitorais, os laços de clientela estabelecidos
entre Estado, classes senhorias e cargos públicos, e, principalmente, compreender o modo
como bandidos se inseriam nessa luta. O que lucravam? Quais demandas eram contempladas
ao intervirem nesses conflitos entre senhores? Quais costumes se fortaleciam e quais se
quebravam nessa relação, num contexto de formação do Estado Nacional e centralização do
poder de Estado? Quais as respostas que as frações dirigentes deram para a relação entre
bandidos e facinorosos com senhores ou autoridades locais ao desafiarem o poder de juízes,
delegados e chefes de polícia, prepostos desse projeto de nação e classe?
Estávamos interessados em verificar a relação que esses bandidos desenvolviam com
a sociedade que lhes envolvia, especialmente com as autoridades estatais e com o universo
político mais estrito. Optamos então pelo trabalho com as correspondências entre autoridades
locais – especialmente juízes, delegados, subdelegados de polícia –, além das
correspondências das câmaras de vereadores, com as diversas autoridades centrais
provinciais, como o presidente da província, e nacionais, como o Ministério da Justiça e
chefes de polícia. Em alguns casos trabalhamos também com jornais.
25

Todas as fontes oferecem limites e possibilidades. Nos casos das aqui trabalhadas,
elas podem oferecer uma imagem muito dual da realidade histórica apresentada. Ora ela pode
maximizar o problema do crime e da violência com o intuito de fortalecer o aparato policial
armado à sua disposição, ora essas mesmas autoridades podem minimizar os problemas com
o fim de não divulgar o sucesso dos maus exemplos ou mesmo de não demonstrar suas
fraquezas na administração dos povos, o que poderia lhes retirar da fila de preferidos do
Governo Central durante os processos eleitorais. Não obstante, com essas fontes tivemos uma
representação interessante sobre a forma oficial, institucional e sistêmica de agir contra os
bandidos e seus aliados, sendo eles ricos ou pobres, aliados ou não do governo. Os bandidos
estavam em uma dupla situação. Por um lado, eles eram parte do sistema de dominação
política das classes senhoriais, compondo o quadro mais amplo da hegemonia política destas
em suas resoluções violentas de poder. Por outro, podiam servir ao mesmo esquema de
desmantelamento do domínio, fosse quando estavam ao lado de um mandatário “rebelde” ou
quando adquiriam ousadia suficiente para ações autônomas que inviabilizavam o comércio,
que destruíam as propriedades e deslocavam o poder das autoridades.
A presença maciça de bandidos numa dada região era um indicativo de que a
administração dos povos à maneira que o Estado nacional em formação exigia não seria uma
realização tão simples. A presença bandoleira produzia possibilidades de disputas mais
abertas, como de esconder ações políticas travestidas de ações comuns, de criminalizar
pessoas e grupos sociais, de proporcionar um recrutamento muito mais impiedoso, da adesão
dos grupos sociais subalternos a práticas de rebeldias cotidianas ou armadas, do recrutamento
como fonte de pagamento para homens pobres, entre outras tantas coisas.
Ao mesmo tempo em que emprestavam poder aos seus parceiros e sócios das classes
mais abastadas, os bandidos também ganhavam poder para viver de suas ações armadas, em
territórios onde a parceria lhes permitia livre circulação para as práticas delituosas. Esses
homens tinham poder e negociavam sua proteção. Este é o assunto de que tratamos em toda a
segunda parte da tese. Destacamos nessa parte que o estudo do Estado, de suas eleições, de
suas formas de condução do poder, abriram passagem para a formação de banditismos.
Argumentamos que não era o fato da sua ausência ou fraqueza que criava a prática
“epidêmica” de crimes respaldados pelo mandonismo local, mas, ao contrário, a criação de
poderes e cargos estatais criava uma corrida pela disputa armada por eles. Juízes, delegados,
policiais eram, em grande parte, relacionados com grupos de “facinorosos”. A consolidação
do Estado nacional, ao contrário do que foi amplamente afirmado pela historiografia, foi
26

forjada com a ajuda de forças bandoleiras. Essa presença bandida na construção do poder
variou ao longo da formação do Império, mas foi parte ativa tanto nas fases liberais regenciais
como no processo de centralização do poder, ou o chamado “regresso”. No entanto, ao
participarem dessa engrenagem, os bandidos não o faziam sem contrapartidas, negociações e,
por assim dizer, até mesmo uma pauta muda, demarcada nas ações e na liberdade que
obtinham ao longo dos conflitos. Possuíam um território a explorar, ficavam fora dos
esquemas de recrutamento (sem falar na perseguição dos destacamentos policiais), ganhavam
butins de guerra, conseguiam acoitamento em diversos locais, prestígio e, enquanto
perdurasse a necessidade de seus braços armados, gozavam de uma liberdade diferenciada
daquela da maioria dos homens pobres.
Concordando com Maria Silvia Carvalho, a liberdade dos homens livres será tratada
aqui como uma “presença ausente”69. Uma sociedade entranhada no escravismo, precarizava
a vivência de todos os modos de vida subalternos. Os homens livres também negociavam sua
liberdade, porque, a depender das determinações das classes senhoriais, eles também
deveriam ser presos à terra ou a um patrão, ainda que não fossem presos juridicamente como
propriedade de alguém. Por isso criaram-se mecanismos de cerceamento dessa liberdade,
como o recrutamento, códigos posturais draconianos, um sistema eleitoral vigilante e uma
relação política com a gente pobre bastante opressora. Para não serem enquadrados como
vadios, ociosos, turbulentos, entre tantas outras adjetivações, precisam ser casados, possuir
terras onde plantassem produtos necessários à reprodução do sistema comercial do Império,
ter moradia fixa ou uma relação de dependência e apadrinhamento com os “homens de bens”.
Os homens pobres de diversas cores, especialmente mestiços, negociavam a sua liberdade
continuamente, e o banditismo ou a prática de crimes, pressionados por essas formas de
criminalização, eram parte das situações determinantes para a forma de gozar sua liberdade. A
presença de bandidos incitava um roteiro alternativo de vida. Na iminência do recrutamento,
a fuga criminalizava o sujeito que algumas vezes optava por adentrar em pequenas ou grandes
ações armadas para viver. Essa discussão é abordada na terceira parte da tese, que também
discute o significado das cadeias e a relevância que cumpriam na formação de “comunidades
de fugitivos”.
Uma “comunidade volante” que invariavelmente praticava crimes, sendo o primeiro
deles já a fuga, era a comunidade dos soldados. Trataremos de seus crimes e de suas
deserções, normalmente acompanhadas de furtos e roubos, em capítulos da primeira parte da

69
FRANCO, Maria Silvia Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983, p. 09.
27

tese. Em um contexto político de desorganização e indisciplina militar, bem como de várias


lutas contra a feição que o Estado ganhou após a independência, os soldados foram fonte de
preocupação constante, tanto por parte das autoridades do recôncavo baiano como das
autoridades e proprietários do sertão da província. Ao fugirem para longe do controle das
patrulhas, que lhes empurravam para dentro dos matos e para o interior, onde a vigilância era
menos ostensiva e o risco de ser reconhecido também, eles causavam medo e confusão, tendo
tido especial atenção para com isso o Estado em suas tentativas de reestabelecimento da paz
na província.
Esse deslocamento produzido entre os bandidos, que os caracterizou como
“comunidades volantes”, foi mais um dos aspectos que nos inclinaram a problematizar a
“cultura da violência”. Era notório que, numa lista de presos de determinadas cadeias, estava
compactada uma multiplicidade de lugares, linguagens, ofícios e raças; e que a relação entre
bandidos e escravizados, entre bandidos e índios, bandidos e elites, bandidos e desertores,
como explicamos na quarta parte da tese, não era possível de ser amalgamada numa só
cultura atribuída à sertanidade, a não ser os limites de uma cultura de classe que testava no
banditismo um embrião de luta camponesa e subalterna dos homens pobres do sertão. Pois, se
é verdade que o banditismo emprestava sua força às ações armadas das elites locais e centrais
da província, é também verdade que emprestavam sua força militar à parceria com os grupos
sociais subalternos da Bahia do século XIX.
Os deslocamentos de homens livres e pobres, seus encontros em feiras, em estradas e
tabernas, era um elemento que por si só parecia ameaçar as classes dominantes de
proprietários de escravos, terras, animais e comércios. Quando esses homens pobres se
armavam para quaisquer fins e circulavam misteriosamente pelos campos e sertões do interior
da província, causavam ainda mais temor. A circulação desses homens é algo que também
pudemos perceber, e por este motivo o recorte territorial desta tese é mais amplo do que o
comum e obedeceu muito aos encontros e desencontros da empiria. O recorte segue algumas
das estradas, picadas e caminhos fluviais da província que mais atraíam os homens que
viviam dos crimes e das guerras políticas: o território do Rio São Francisco (centro e norte da
província) e do Rio Paraguaçú (que vai do centro até o recôncavo); as estradas de gados que
levavam até Feira de Santana mercadorias vindas do norte e até de outras províncias do norte,
como Piauí, Pernambuco e Goiás; e, obviamente, a Chapada Diamantina, circuito igualmente
importante pela exploração de minérios, para onde uma parte grande de ociosos migrou no
auge do diamante.
28

Figura1:
https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/13309/1/Tese%20Teresinha%20Marcis.pdf 70.
Mapa da Bahia de 1868.
Essas foram coincidentemente as localidades mais agitadas da província no período
de formação do Estado Nacional. Figuras como Lucas da Feira e a guerra do comendador
Militão contra os Guerreiros, por exemplo, foram acontecimentos que tomaram muito tempo
do presidente da província.
O controle do crime, fosse ele o contrabando, a moeda falsa, o roubo que impede a
circulação do comércio ou o assassinato que atenta contra a vida do cidadão, era aspecto
central da formação de um Estado Nação. Sem o controle desses desafios à ordem, os
impostos não são arrecadados, o comercio míngua, a liquidez é derrubada e o cidadão não

70
O triângulo vermelho está marcando a região do Rio São Francisco. Várias vilas como Barra, Sento Sé,
Chique-Chique, Pilão Arcado, Carinhanha, Vila Nova da Rainha e Juazeiro estão nela. No triângulo menor e
roxo está uma parte do recôncavo. Nele estão algumas vilas e comarcas citadas ao longo da tese, como Santo
Amaro, Cachoeira, São Francisco, Nazaré e mais outras. Na circunferência oval, em Azul, está a região de Feira
de Santana e seus termos e distritos, incluindo aí algumas regiões mais ao sertão e mais ao recôncavo, como São
Gonçalo, Pedrão, Camisão e uma parte da região de Orobó. No quadrado amarelo está a região da Chapada
Diamantina. Deixei propositadamente as áreas definidas pelas formas geométricas de maneira que elas se
encontrassem, tornando assim mais fácil a visualização de um argumento que levarei adiante ao longo da tese,
qual seja, o de que a mobilidade desses sujeitos ultrapassam os limites das definições municipais, conformando
uma área de passagem de uma região a outra em roteiros de fuga e ação. O rio Paraguaçu, por exemplo, corta a
região da Chapada Diamantina até o recôncavo. Fora das figuras geométricas estão lugares que também
aparecerão inevitavelmente na tese, como Valença, Tucano, entre outros. Em 1868, a quantidade das comarcas já
havia sofrido algumas modificações em relação aos anos que estudamos, quando algumas das divisões acima não
existiam.
29

pode ser “livre”. O Estado não se realiza.


A ação de Lucas “da Feira” quase inviabilizou o comércio da “Comercial vila de
Feira de Santana”, como foi chamada durante um tempo. O caso de Lucas sintetiza muitos
dos aspectos que estamos defendendo neste texto. Um escravo fugido que constituiu, em
meio aos impactos que tiveram as lutas federalistas e a Sabinada em Feira de Santana, bem
como ao crescimento da circulação econômica e comercial nas estradas devido à sua famosa
feira, um grupo de escravos foragidos de outros lugares do agreste e do recôncavo durante
dez anos e que se relacionou com membros tanto dos grupos dirigentes da vila como dos
grupos sociais subalternos, obtendo ajuda e apoio, além de ajudar e apoiar a ambos. Suas
ações serviram nas disputas políticas eleitorais e comerciais, mas também alcançaram e
influenciaram outros setores “inferiores” da sociedade. Por esses motivos, esse grupo foi
escolhido para fechar a tese, afinal, ele retoma argumentos de outros capítulos, como as más
condições das cadeias, as relações políticas entre classes senhoriais e bandidos, bem como as
relações destes com os grupos sociais subalternos. O exemplo do bando de Lucas da Feira
vincula a desorganização militar com a localidade de fuga de recrutados e desertores, além de
destacar a participação de escravos fugidos e escravizados na composição da horda
heterogênea do crime.
Os bandidos são complexos. Não são heróis, não são vítimas, não são os vilões da
sociedade, mas podem ser todas essas coisas. Apesar disto, são sujeitos históricos, que no
contexto que analisamos foram parte importante das ações de grupos sociais diversos, de
descontentes até mantenedores da ordem. Se prestavam à criminalização de indivíduos e
grupos, da mesma forma que eram a face oculta, e às vezes nada oculta, de “homens de bens”
que queriam enriquecer a todo modo, que desejavam o poder às custas da vida dos
adversários, bem como podiam ser parte da insatisfação de negros, índios, gente pobre
comum, que convergiam com eles no seu ódio a políticas de criminalização de modos de
vida, como o recrutamento. Formavam um setor da sociedade que, a despeito do que
escreviam nos documentos os juízes, delegados e policiais – negando sua relação com eles ou
sempre afirmando que estavam nos encalços dos bandidos –, fazia parte do processo de
disputas, perdas e ganhos na construção do império e não era simplesmente uma plebe
marginal e de costas para a sociedade.
O banditismo e as ações armadas com fins ilícitos foram parte do sistema de
hierarquias, mando e insurgências da província da Bahia de 1822 até a metade da década do
30

século XIX. Linebaugh e Rediker discutiram no livro a Hidra de Muitas Cabeças71 como o
mercado atlântico precisou, para se constituir, de um sem número de trabalhadores
desclassificados, originalmente “vagabundos”, ladrões, gente de raças e nacionalidades
subalternizadas, que foram concentradas em campos, fábricas e construções por todo o Novo
Mundo. Contraditoriamente, para manter o sistema capitalista internacional atlântico, passou
a sistematicamente oprimir, vigiar e desfazer qualquer vontade de ação autônoma ou coletiva
desse grupo social. Na analogia que os próprios homens de negócios e os prepostos imperiais
fizeram na época e que os autores usam como motivo para sua argumentação, a Hidra era um
monstro com muitas cabeças que ao ser cortada uma nascia outra. Ela representa, na analogia
dos autores, uma multiplicidade de pessoas, grupos, não necessariamente identificados entre
si, sem centralização, mas que cumpriam o mesmo propósito espontâneo de desordenar e
descumprir o seu papel subalterno de força de trabalho pobre, barata, semiescrava, quando
não escravizada. Toda vez que a repressão caía sobre ela, ao invés de pôr-lhe um fim, ela
aumentava. Do mesmo modo, Hércules serviu de analogia para representar a destruição da
Hidra, através de uma simbologia do domínio imperial sobre as colônias.
Uma “horda heterogênea” foi comprimida a construir o sistema atlântico de poderes
e trocas econômicas, mas, ao mesmo tempo, a concentração da riqueza, do poder, do controle
dos meios de produção, criava uma massa de relegados, insatisfeitos, não assimilados,
explorados e expropriados (marinheiros recrutados, criminosos do velho continente,
degredados, prostitutas, escravizados negros do continente africano, escravizados brancos
irlandeses, povos originários)72, que incessantemente buscava alternativas autônomas de
organização social, buscavam direitos, liberdades, questionando a todo instante o domínio
comercial capitalista nos dois lados do mundo. Em alguns casos, a via de ação deles se dava
através de práticas bandidas, salteadoras, furtivas e terroristas. Isso lhes colocava na rota da
repressão, o que continuamente lhes aproximava de elementos rebeldes que fugiam ou
tensionavam essa repressão, criando laços de companheirismo nas cadeias, nos submundos
das tavernas, nos navios, nas senzalas, estradas e campos de trabalho. Essa arraia miúda de
pequenos “facínoras” esteve presente em vários desenlaces políticos do Atlântico
revolucionário. Era parte da sua base social e poltica.
Para consolidar a construção do Estado Nacional no Brasil foi necessário combater
ou cooptar essa arraia miúda muitas vezes. Ela servia de braço armado para os lados em
71
LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A Hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a
história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
72
Para a discussão desse fenômeno no Brasil, ver: SOUZA, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro: a
pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 84-90.
31

contenda em pequenas guerras civis cuja soma dos homens em luta podia ser maior que todo
o contingente policial de várias comarcas juntas; era também usada na repressão a quilombos
e povoamentos indígenas. Colaborou com a resistência dos grupos sociais subalternos em
diversos episódios de lutas, antes mesmo do período imperial (como no caso do movimento
do Reino da Pedra Encantada do Rodeador73), nos conflitos dos anos regenciais e mesmo
depois, em lutas como as de Canudos74, nas Revoltas da Vacina, em greves portuárias.
Mesmo a cooptação por vezes servia como um exercício em que os bandidos
fomentavam a paranoia da insegurança das classes dominantes. Numa sociedade escravista,
rodeada por um grupo social tratado como inimigo do Estado e das classes proprietárias, além
dos homens livres andarilhos, em que os limites das propriedades eram às vezes definidos
pelos mais fortes, essa paranoia de segurança era real. Em alguns momentos ela se mostrava
mais forte e em outros menos. Os bandidos com suas ações apenas aumentavam
propositadamente esse pavor, obrigando as elites locais a ceder espaço para eles até, em
alguns casos, a sua institucionalização privada ou pública.
Destruir o banditismo e o patronato de guerra, que apadrinhava, protegia e recebia
proteção desses bandidos, foi uma tarefa hercúlea que o Estado Nacional se lançou. Estado
Nacional esse que se construiu através de um aparato de controle da violência, com juizados,
delegacias, subdelegacias, chefias de polícia, inspetores de quarteirões, Código Criminal e
Código Penal.
Diferentemente do conto grego de Hércules, essa luta não teve ainda fim. Continua a
fazer vítimas, a criminalizar modos de vida, penetrar no poder de Estado, corromper
instituições policiais e judiciárias. Homens poderosos e seus capangas contra movimentos
sociais nas lutas pelas terras no Brasil, crimes policiais continuamente são nossas manchetes,
sem falar na já afamada corrupção dentro dessa corporação. Abundam os crimes contra todas

73
Ver: PALÁCIOS, Guillermo. Uma nova expedição ao Reino da Pedra Encantada do Rodeador: Pernambuco,
1820. In: DANTAS, Monica Duarte (org.). Revolta Motins Revoluções: homens livres pobres e libertos no
Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011, p. 97-130.
74
Mario Maestri e José Rivair Macedo são dos poucos que descrevem a composição do movimento de Canudos
como formada também por “perseguidos pelas autoridades”. Ver: MAESTRI, Mario; MACEDO, José Rivair.
Belo Monte: uma história da Guerra de Canudos. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 34. “Perseguidos pelas
autoridades” é um eufemismo para descrever gente criminalizada, mas também bandidos e jagunços. Durante a
pesquisa, encontrei várias vezes a caracterização de lugares tomados por banditismos em que as autoridades
temiam que aquela situação virasse uma “balaiada”, “uma rebelião”, “uma Cabanada”. A nosso ver, não eram
fortuitas as associações. Ela caracteriza, obviamente, a criminalização dos movimentos sociais dos pobres, mas
também o potencial que aqueles banditismos tinham de chegar ao nível da contestação social. Paira certo bom
mocismo acadêmico na caracterização dos indivíduos participantes dos movimentos sociais do Brasil no século
XIX. Eles são definidos através da sua autodescrição sócio profissional. Mas a verdade é que muitos deles eram
homens pronunciados e foragidos da justiça por muitos motivos em suas localidades de origem. Pude perceber
isto através de alguns documentos de refugiados capturados nas fronteiras da Bahia com o Piauí durante os
desenlaces da Balaiada nesta província.
32

as populações, inclusive com modalidades típicas do século XIX, como o cerco a pequenas
cidades, assaltantes de bancos que fogem para outros estados, falta de equipamento,
armamento, fardas e remuneração adequada para todas as forças policiais, problemas de
cadeias inadequadas e sem segurança, sendo a ideologia antipobre e o racismo contra as
pessoas de cor a base de sustentação da dominação social violenta.
33

Parte 1

Independência e banditismo: Indisciplina, insubordinação e


(des)organização política e militar

Todas as armas que estão aqui devolveremos em guerra!

Artista: Z’África Brasil.

Musica: Antigamente Quilombos Hoje Periferia

Disco:Antigamente Quilombos Hoje Periferia


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Capítulo 1

“É o soldado pior inimigo público”

O início do século XIX na Bahia foi marcado por contraditórios desejos de mudança
na ordem social vigente. Soldados e oficiais inferiores, de batalhões e tropas de primeira e
segunda linha75, estiveram presentes em alguns dos acontecimentos políticos e sociais mais
marcantes desse período. Seu ativismo foi devido às também múltiplas contradições que
durante o período aqui estudado houve na província da Bahia 76. Por um lado, havia uma
desorganização política causada por um contexto de lutas entre frações dominantes do período
colonial que disputavam os caminhos formais de direção política do Estado; por outro, mas
com inteira conexão com o primeiro, um processo de crise nas relações sociais de produção
na América Portuguesa que estavam associadas pelo sistema de trocas da “economia-mundo”.
A culminância desses dois aspectos foi um rastilho de pólvora, barricadas e lutas intestinas
que consolidaram processos de independência nas Américas77.

75
No Brasil Imperial a 1ª e 2ª linhas designavam situações diferenciadas do exercício das forças armadas. A
primeira era a tropa permanente, seus soldados recebiam vencimentos e era de controle absolutamente militar. A
segunda linha era formada por voluntários ou recrutados que não ganhavam soldos, além de serem comandadas
por civis. Nelas estavam aptos, para o serviço nas armas, todos os homens, com exceção dos estrangeiros –
incluindo os escravos africanos e também crioulos –, que estivessem dentro das condições e qualidades de honra,
de riqueza e cor, estabelecidas. A segunda linha era mais convocada para a patrulha e a primeira linha para ações
de defesa das fronteiras, ameaças externas e manutenção da ordem monárquica. Para ver mais sobre as
transformações do Exército no período de transição da colônia para o Império ver: SODRÉ, Nelson Werneck.
“História Militar do Brasil”. São Paulo: Expressão Popular, 2010; HOLANDA, Sergio Buarque de. Historia da
Civilização Brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico. 1º volume. Livro terceiro. O processo de Emancipação,
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965, p. 269-271; BEATTIE, Peter M. Tributo de Sangue. Exército,
honra, raça e nação no Brasil, 1864-1945. São Paulo: EDUSP, 2009.
76
E certamente também nas demais províncias, afinal, se tratavam de determinações de origens econômicas e
sociais mais oblíquas que o terreno do local, incluindo, nesse mesmo debate, o próprio processo de formação
nacional.
77
Sobre essa dupla crise ver NOVAIS, Fernando. “Dimensões da Independência”. In:____. Aproximações.
Estudos de História e Historiografia. São Paulo: Cosacnaify, 2005, p. 195-204, e WALLERSTEIN, Imamnuel.
Capitalismo Histórico e Civilização Capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. Para o primeiro, a crise do
Antigo Sistema Colonial decorre do fato de um funcionamento exitoso da acumulação primitiva sob domínio dos
Estados absolutistas, que impulsionavam, as vezes na base da guerra entre reinos, o mercantilismo. Porém, esse
mesmo êxito teria levado ao crescimento da burguesia como classe dominante e dirigente dos reinos europeus,
proporcionando base econômica e de mercados para a impulsão da revolução industrial e uma reconfiguração
das relações de dependência política e econômica das colônias com suas metrópoles. O fim do exclusivo
mercantil seria uma das primeiras e importantes exigências dessa nova reconfiguração mundial dos mercados.
Para esse autor, a luta de independência foi um resultado da reconfiguração política e econômica impulsionada
pelo aperfeiçoamento das relações e troca mercantis. É nesse ponto que Novais converge com Wallerstein. Para
esse autor, os sistemas históricos de trocas do “capitalismo histórico” não consguiam completar o circuito do
capital. O fato de que em alguns contextos históricos “detentores da autoridade política e moral considera[rem]
irracionais e/ou imorais muitos elos dessas cadeias”. O “processo era geralmente abortado por causa da não
disponibilidade de um ou mais elementos: estoque de dinheiro acumulado, mão de obra disponível para ser usada
pelo produtor, rede de distribuidores, consumidores com poder de compra” entre outras coisas. A completude
dessa cadeia, especialmente com o advento da industrialização concentrada no continente europeu, se deu após o
circuito mundial da mercantilização conseguir superar alguns daqueles obstáculos ditos acima, o que não
35

O processo de criação e consolidação do Estado Brasileiro78 foi, especialmente para


os homens que vestiam fardas e empunhavam armas, de diversas transformações. Houve
resistências por parte deles contra os impedimentos e imposições que sofriam devido às
hierarquias coloniais; em relação às condições de restrição da liberdade, dentro e fora da
caserna; lutas contra os maus salários e soldos. Esses homens estiveram em movimentos
reivindicatórios e levantes que alteraram a ordem social e o poder vigente. Foram parte
importante das ações dos grupos sociais subalternos que sacudiram a primeira metade do
século XIX na Bahia79. Estas, discutiremos aqui, abriram brechas para que outras inumeráveis
ações de sobrevivências e resistências dos soldados ou recrutados pudessem acontecer.
Algumas dessas ações, como a deserção, o contrabando de armas e a utilização das fardas e
das armas do Estado para ações consideradas fora da lei, contrariavam o próprio sentido de
segurança social e nacional que deveriam representar.
Em um contexto de guerra civil, alguns desses homens fardados fizeram uso de
brechas abertas pela desorganização militar para constituir comunidades voltadas às práticas
de delinquências. Outros apenas viviam no limite possível das necessidades e imposições da
sociedade civil, burlando-as em algumas eventualidades. A deserção de indivíduos de uma
tropa ou destacamento, bem como a fuga do recrutamento forçado, assim como as
possibilidades abertas para alguns desses sujeitos a partir dos seus encontros na instituição
militar, contribuíram para constituir aquilo que chamaremos, ao longo deste escrito, de
“comunidade volantes”. Alguns desses homens tinham um passado vinculado a delitos contra
a propriedade e à vida das pessoas. Alguns tinham fugido de cadeias ou eram simplesmente

aconteceu sem rupturas e conflitos no “sistema-mundo”, especialmente na “periferia” do “capitalismo histórico”,


isto é nas colônias do Novo Mundo. Muitos historiadores refutam as teses de Novaes mostrando o período
virtuoso da economia brasileira nos anos finais do século XVIII até a terceira década do XIX e sua interação
crescente no comércio do Atlântico, mas, para ele, esse mesmo fenômeno expansivo e integrativo, foi o mesmo
que quebrou algumas cadeias e entraves do sistema colonial, integrando o Brasil no sistema mundial maior e
mais complexo de decisões, rotas de comércio e produção, criando novas exigências políticas para as classes
dominantes locais.
78
Sobre as diferentes discussões sobre formação do Estado Nacional, ler: JANCSÓ, Istvan. Brasil: formação do
estado e da nação. São Paulo: FAPESP, Hucitec, editora Unijuí, 2003. COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia
à República. Momentos decisivos. São Paulo: Editora da UNESP, 1999, especialmente o cap. 1. DIAS, Maria
Odila Leite da Silva. A interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
79
Há uma quantidade significativa de bibliografia acerca da relação entre o engajamento da tropa com aspectos
populares de resistências e projetos políticos alternativos na primeira metade do século XIX na Bahia. Ver entre
outros: GUERRA FILHO, Sergio Armando Diniz. O povo e Guerra. Participação das camadas populares nas
lutas pela independência do Brasil na Bahia. Salvador: Dissertação de mestrado UFBA, 2004, p. 101-114.
ARAÚJO, Ubiratan de Castro. A Bahia no Tempo dos Alfaiates. In: Academia de Letras da Bahia. II centenário
da sedição de 1798 na Bahia. Bahia: Academia de Letras da Bahia, Brasília: MINC, 1999. SOUZA, Paulo César
de. A Sabinada. A revolta separatista da Bahia – 1837. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. REIS, João
José. Cor, Classe, Ocupação etc: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1823 – 1833. In:
AZEVEDO, Elciene; REIS, João José. Escravidão e suas sombras. Salvador: EDUFBA, 2012. REIS, João José.
Rebelião Escrava no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, especialmente o cap. 2.
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homens que, apenas por sua condição de livre numa sociedade escravista, recebiam um
enquadramento social de acordo com o temor autocrático e antipopular das classes senhoriais
em reformação nesse período.
Ao fazer uso contínuo das forças armadas em um período de crise da ordem social e
de reconfiguração do poder de Estado, as frações das classes dominantes armaram a
população para combater em guerras e sublevações. Ao cessar fogo, ou mesmo durante os
períodos nos fronts de batalhas, muitos soldados evadiram para viver uma vida sob seus
próprios controles ou para combater as suas próprias guerras, longe de uma disciplina feroz de
violências e castigos físicos, de punições, baixos salários e falta de vestimentas. Desertaram
do recrutamento em grupos, para os matos, sertões e lugares menos acessíveis. Outras vezes o
fizeram individualmente. O mato80 podia ter a dupla função de causar medo e temor aos
habitantes das suas circunvizinhanças, mas também de ser um local onde, principalmente os
homens livres e pobres, se refugiavam em busca de segurança e liberdade contra o
recrutamento ou depois da deserção, por exemplo. Uma parte fugiu para voltar às suas
famílias, para achar um trabalho ou mesmo um “coiteiro” que lhe desse abrigo. Outros
escaparam para continuar a vida considerada de ócio, sem família, turbulenta, facinorosa,
pelas veias abertas das boiadas, da mineração e das tocaias.
O problema para esses homens, independente de suas pretensões, era que, ao fugirem
do recrutamento ou desertarem, tornavam-se criminosos frente às autoridades, restando-lhes
muitas vezes poucas opções a não ser a vida “à margem” da sociedade da propriedade, do
casamento, da moradia fixa e do trabalho contínuo.
Na Bahia da primeira metade do século XIX, e também em muitos outros lugares,
essa “horda heterogênea” de homens foi compactada, na maiora das vezes contra a sua
vontade, nas instituição militares e para-militares. Combateram seus próprios colegas de
farda, quando não aderiram a eles, em diversos levantes de tropa e povo, como nas sedições
federalistas, na Sabinada e no assassinato de um Governador das Armas.
Esta situação aumentou a exigência dos comandantes de que o Estado lhes desse
carta branca para impor a subordinação e o temor às tropas, como podemos ver em um
documento de 182481 que mostra que na reunião do Conselho do governo decidiu-se, em tom
“conciliatório”, fazer uma proclamação à tropa “ausente”. Após a aprovação de algumas

80
Ver: RIBEIRO, José Iran. “O mato como local de insegurança”. In: História Unisinos. Nº10. Vol. 02. Maio e
Agosto de 2006, p. 226-231.
81
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série: Atos
normativos (1822-1832). Livro 007 (antigo 635). Bahia, 27 de outubro de 1824.
37

resoluções, o Sargento Mor José Antonio da Silva Castro, exigiu para a tomada de posse do
terceiro batalhão, o batalhão dos Periquitos, levantado após o assassinato do Governador das
Armas Felisberto Gomes Caldeiras, que, entre outras coisas, se achassem e punissem os
culpados pela morte do Governador das Armas. Que não se tolerassem incidentes como o
acontecido no primeiro e segundo batalhão de 1º linha (que haviam se negado a aceitar as
ordens do conselho do governo), pois, se aquela “licenciosidade” voltasse a acontecer, ele não
se responsabilizaria pela disciplina e subordinação do seu batalhão, visto que o exemplo ruim
havia sido dado e, segundo ele, nada de concreto havia sido feito 82. No documento acima,
podemos ver exército contra exército, quartéis politizados, insubordinação contra as
autoridades militares máximas, necessidade de forçar a disciplina, a subordinação e combater
a “licenciosidade”. São amostras de como a situação nos quartéis estava tensa. Em outro
documento, enviado da Corte, tomamos conhecimento de que “os comandantes teriam [que
ter] muita vigilância em manter a disciplina dos seus respectivos corpos, e fazer guardar os
cartuxames em depósitos seguros, ocupar os soldados em contínuos exercícios militares, e
promover a conciliação entre os diferentes corpos, que se acham em desconfiança” 83.
Organização desorganizada das forças de repressão na Bahia
Desde antes da luta de Independência os quartéis da Bahia davam demonstrações de
que seria neles que aconteceria parte das lutas sociais do século vindouro. No ocaso do século
XVIII, mais precisamente em 1798, panfletos foram colados em diversos pontos importantes
da capital. No folheto subscreviam 676 pessoas, sendo que, destas, “pertenciam à tropa 513

82
O Batalhão dos Periquitos, conhecido assim pela cor verde de seu fardamento, se levantou no dia 25 de outubro
de 1824. Mas como nos informa Luis Henrique Dias Tavares, não foi essa “sedição” apenas encampada pelo 3º
batalhão, mas também o “4º batalhão, o corpo de artilharia, dois oficiais, e quarenta soldados do 2º batalhão, e
alguns civis”. Num contexto de profundas desconfianças de recrudescimento do poder absolutista do Imperador
D. Pedro I, de suspeitas e notícias de invasão de Portugal ao Brasil, de implantação da Confederação do Equador,
que se sabia ter membros ativos na Bahia entre o oficialato, e de uma série de dispensas, rebaixamento de
patentes e mudança de batalhão de diversos oficiais, foi cercada e invadida a residência do Governador das
Armas. Após o assassinato, a tropa se dirigiu para o Forte São Pedro onde foi acolhida por outros insurretos. Foi
nesse contexto que se deu o documento citado acima. Ele demonstra a vacilação final de José Antonio da Silva
Castro, que teria sido mandado para o Rio de Janeiro, dias antes, pelo Governador das armas interino,
supostamente com fim de desmobilizar os Periquitos, já bastante agitados. José Antônio da Silva Castro era
considerado um possível aderente à Confederação do Equador pelas autoridades. Os soldados achavam que
vingavam a falseta feita contra ele, mas este, desde o primeiro momento, vacilou se uma agitação política era
mesmo seu propósito e entregou o comando do Batalhão às autoridades. Depois foi colocado de novo no
comando dele, de onde norteou, com essas afirmações acima citadas, a pacificação do terceiro batalhão.
TAVARES, Luis Henrique Dias. Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia. Salvador; São Paulo:
EDUFBA e Editora da UNESP, 2003, especialmente o cap. 6.
83
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série: Atos
normativos (1822-1832). Livro 007 (antigo 635). Corte, 26 de outubro de 1824.
38

indivíduos (75,9%)” 84. Destes, a maioria eram soldados e oficiais de baixa patente, apesar do
nome da revolta ter entrado para a posterioridade através da designação de uma categoria de
trabalhadores artesãos, os alfaiates85. Ainda que esse número possa ser exagerado – pois
muitos deles deviam possuir segundos e terceiros empregos, o que era comum dada a
transitoriedade da condição de soldado nesse período, principalmente entre os milicianos ou
os de 2ª linha – é possível, ainda assim, afirmar que a experiência militar constituiu
importante fator de “experiências em comum” entre estes sujeitos na Bahia Colonial.
Ainda que a maioria deles não fosse guiada pelos ideais que na época ficaram
conhecidos como “francesias” (a depender da situação ou condição dos sujeitos envolvidos,
podiam receber a designação de haitianismo), muitos provavelmente compartilharam das
mesmas insatisfações sociais e podiam ter sonhado com um mundo diferente, ainda que pela
negação daquela sociedade estamentalizada, hierarquicamente definida por critérios não
competitivos, ou não meritocráticos, e permeada pela influência do poder econômico, da qual
o exército era a reprodução mais fidedigna. Mas, de algum modo, como sugere Ubiratan
Castro, certa pauta anti-sistêmica estava ali posta. Ele considera que 1798 teria sido apenas a
primeira demonstração latente de um grande ciclo de insatisfação social dos grupos
subalternos, “que convulsiona a Bahia até 1838”86. Eles teriam formulado “um programa
político popular”87 mais ou menos atualizado por outros revolucionários entre 1821 e 1838
(do início do processo de independência ao fim da repressão à Sabinada). Para ele, o
programa dos alfaiates era um programa político que visava dar resposta à crise do antigo
sistema colonial português88. Este programa seria definido em torno de eixos gerais e
genéricos tais quais: “República, democracia representativa, autonomia regional, igualdade
racial no acesso ao emprego público, reforma econômica pela fronteira agrícola e distribuição
de sesmarias”89. Além destas, podemos perceber uma pauta constante dos soldados e oficiais
inferiores que se arrastou por mais tempo, como: questões salariais, preços de alimentos e
vestimentas, contraposição a práticas autoritárias de governos e comandantes e a guerras

84
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Conflitos raciais e sociais na Sedição de 1798 na Bahia. In: IIº Centenário da
sedição da Bahia de 1798. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Secretaria da Cultura e de Turismo, 1999, p.
40.
85
Sobre as controvérsias no nome dado a esse evento sedicioso e as implicações políticas da historiografia em
enfatizar determinados protagonistas desse evento sedicioso ver: JANCSÓ, Istvan. Na Bahia contra o Império.
História do ensaio de sedição de 1798. Salvador: EDUFBA; São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 13-34.
86
ARAÚJO, Ubiratan Castro. A Bahia no Tempo dos Alfaiates. In: II Centenário... Op. Cit, p. 07-19.
87
Idem, p. 17.
88
JANCSÓ, István. Op. Cit, 1996, cap. V e do mesmo autor ver: “O 1798 baiano e a crise do antigo regime
português”. In: II centenário. Op. Ci.t, p. 51-75.
89
ARAÚJO... II Centenário...Op. Cit., p. 19.
39

intestinas para as quais eram levados junto com os recrutados. Não por acaso, uma das
reivindicações dos Alfaiates era o aumento para 200 réis da diária que naquela época era de
50 réis. Muitas testemunhas do processo da sedição ouviram das principais cabeças do
movimento reclamações dos salários, da falta de oportunidade, do treinamento militar que os
impedia de trabalhar, da falta de uma política clara de promoções internas. Outros que foram
devassados apresentaram total condição de miserabilidade. Moravam de favor, deviam
aluguéis e alguns só tinham como bens trapos de roupa.
Alguns anos depois, uma década para sermos mais precisos, finda a repressão e a
punição seletiva dos sediciosos90 – dos quais foram condenados a pena capital e às piores
penas os “homens de cor” e pobres. Eventos internacionais haveriam de modificar
significativamente o rumo da ordem social neste canto do Império Português, entre eles o
bloqueio internacional de Bonaparte aos aliados comerciais ingleses e a vinda da família real
para o Brasil.
A vinda da família real para o “Brasil”, que deslocou temporariamente o centro
administrativo do Império Português, trouxe para este território muitos cargos, mercês,
prestígio simbólico, além da tão intencionada flexibilização comercial, que agradou aos
setores comerciais e aos produtores de mercadorias de ampla aceitação no mercado
internacional, que ameaçavam ensaios oposicionistas ao regime colonial. Os preços e o
consumo do açúcar brasileiro no mercado mundial após a revolução haitiana também
ajudaram o curto período de maior silêncio público de certas vozes oposicionistas. Mesmo
chefes militares “nativos”, outrora insatisfeitos, passaram a ser privilegiados e foram
promovidos. Criaram-se companhias novas91 e, consequentemente, muitos oficiais preteridos
pelos portugueses no comando dos batalhões alçaram postos desejados. O encontro entre
subalternos e figuras das elites, constituição social historicamente verificada em alguns dos
movimentos de contestação ao regime colonial português na América 92, foi razoavelmente
fragilizado, aparentando certa pacificação social, fruto dos “progressos” e da nova engenharia
estatal aqui aportada.
Mas as alterações no sistema colonial e no sistema mundial de troca e produção, sem
falar das consequências dos embargos continentais napoleônicos, foram colocando Portugal
em uma situação precária, aguçando novamente os conflitos entre setores das frações

90
Op. Cit, JANCSÓ, I. 1996.
91
HOLANDA, Sergio Buarque de. Historia da Civilização Brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico. 1º volume.
Livro terceiro. O processo de Emancipação. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965, p. 269-271.
92
Sobre esse tema ver JANCSÓ, István. Op. cit., 1996, especialmente cap. 5. Teoria e prática da contestação na
colônia.
40

dirigentes de uma ponta e outra do Atlântico em torno da questão da recolonização do Reino


Unido.
A Bahia – que até então tinha um posicionamento tendente ao de aceitar a decisão
das cortes portuguesas reunidas após o levante do Porto de 1820 – quando foi intimidada a
substituir seu Comandante Geral de Armas, um brasileiro, pelo General Madeira de Melo,
português, passou a exortar o príncipe regente a declarar a independência. O caminho era sem
volta. Parte da população civil acorreu para o recôncavo e a deserção do exército, tido como
português, foi grandiosa; a desordem urbana e nas estradas foi eminente. A plebe urbana
odiava os portugueses, que monopolizavam o comércio de varejo, controlavam os preços e
empregavam parentes vindos de Portugal em suas lojas. Odiavam o racismo contra os “quase
brancos”, isto é, aqueles de cor clara que tinham ascendência entre famílias pobres e ou
mestiças (sem falar, obviamente, do racismo contra os negros, mormente os africanos). Não
gostavam da forma com que os oficiais portugueses ainda recebiam maiores promoções 93. O
antilusitanismo se espalhou como uma ação espontânea dos subalternos, criando mil
trincheiras de desordem social94.
Durante pouco mais de um ano a guerra civil se desenrolou nas trincheiras, rios,
mares e estradas entre o recôncavo e a Cidade da Bahia, causando mais desespero e fugas em
massa daqueles que não haviam fugido antes. Seguiu-se a isso uma situação de grande
vexação no suprimento das condições materiais elementares de sobrevivência95. Uma das
táticas guerrilheiras do “Exército Pacificador” foi o bloqueio por água e terra de qualquer
suprimento que chegasse àquela cidade. O intuito era deixar o inimigo arruinado moralmente,
sem fardamento, sem comida, sem munição, isto é, sem aquela “moral da tropa” tão
necessária para os combates de longa duração e para uma guerra que por muitas vezes ficou
imóvel, sem avanços do inimigo uns sobre os outros.
Para os fins do nosso texto, essa baixa moral da tropa que, diga-se logo, não atingiu
apenas o exército português, mas também incomodou e fez com que oficiais brasileiros por
muitas vezes se desesperassem, é importante para que capturemos os flagrantes em que

93
Sobre os conflitos com os portugueses e anti-lusitanismo nas forças armadas ver: KRAAY, Hendrick. KRAAY,
Hendrik. Política Racial, Estado e Forças Armadas na Época da Independência da Bahia, 1790 - 1850. São
Paulo: Hucitec, 2011, op. cit, p. 181-186. Veremos como que no Levante dos Periquitos, já citado, o
antilusitanismo é parte ainda daquele movimento.
94
Ver REIS, João José. “Cor, Classe, Ocupação etc.: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1823-
1833”. In: REIS, J. J; AZEVEDO, E. Escravidão e suas Sombras. Salvador: EDUFBA, 2012. E sobre o debate
político que envolveu o anti-lusitanismo ver: GUERRA FILHO, S. A. D. “O joio e o trigo: debates anti-lusitanos
e as (in) definições nacionais na Bahia de 1831”. In: ARAÚJO, Dilton Oliveira; MASCARENHAS, Maria José
Rapassi. Sociedade e Relações de Poder na Bahia. Séculos XVII-XX. Salvador: EDUFBA, 2014.
95
AMARAL, Braz. História da Independência da Bahia. Salvador: Progresso Editora, 1957.
41

podemos perceber a passagem de uma guerra civil para uma guerra social que, por vezes, terá
o banditismo e o crime – aqui destacado o dos militares – como forma de ação.
Voltemos aos episódios do Batalhão dos Periquitos, citado há algumas páginas.
Falávamos de como durante e após a guerra civil baiana de 1822-23 os comandantes das
tropas exigiram dos governantes carta branca para tomar as ações de endurecimento
disciplinar para conter aquilo que o sargento-mor Castro considerava “licenciosidade”,
“indisciplina” e insubordinação, até mesmo entre os oficiais de altas patentes. O documento
citado falava também de manter em local afastado aquelas tropas convulsionadas. Nessa fase
ficou patente que existiam muitas dissidências. Três partidos já foram citados pelos
historiadores: o dos portugueses, o dos brasileiros e o dos negros 96. Pensamos que haveria,
talvez, mais um partido, o dos grupos sociais subalternos de diversas cores e origens que
apostaram na desordem social como forma de obtenção de alguma garantia para conduzir a
vida fora do controle disciplinar escravista, militar e político tão estreito da Bahia do século
XIX. Nesse período, os soldados e, em alguns casos, oficiais fizeram sem dúvida a sua parte.
O “ciclo de indisciplina militar”, que foi de 1821 até, imprecisamente, o final da
década de 3097, aconteceu não só por conta dos conflitos em torno da independência da Bahia,
nem apenas da Sabinada, mas também por insatisfações de caráter mais tipicamente
trabalhistas, como o atraso dos soldos, fardamentos e direitos de descanso. A intensificação
dos recrutamentos, motivada pela necessidade do Estado de obter homens para lutar contra os
movimentos sociais no período da regência, fortalecia a deserção. A indisciplina vinha
também do perfil de soldado que era recrutado. Além dos voluntários “patriotas”, “homens de
bem”, havia os “vadios”, “ociosos”, “turbulentos”, “facinorosos” e criminosos condenados
que obtiveram o perdão98 para lutar na guerra. Havia também, como demonstramos, uma
linha de contato entre as dificuldades populares e a vida do soldado, sendo este, muitas vezes,
a personificação da população nas insatisfações do momento.

96
REIS, João José; SILVA, Eduardo. O Jogo Duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na Independência da
Bahia. In: ______. Negociação e Conflito. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 49 e 179.
97
Claro que escaramuças aqui e acolá sempre aconteceram ao longo da história da Bahia, mesmo nos dias
recentes, como as famosas greves de polícia que na Bahia aconteceram na década de 1980 e nas primeiras
décadas do século XXI. Mas ressaltamos o protagonismo dos militares nesse período, concordando com
Wanderley Pinho.
98
Segundo Brás do Amaral, o Aljube, por ser dirigido por entusiastas da revolução constitucional “em lugar de
detenção, isto é, de perda de liberdade para uns, se tornara para outros um centro de propagação de ideias
liberais”. Isto sugere, apenas sugere, uma troca política entre presos políticos, presos comuns e militares no
período. Op. Cit., p. 13.
42

É necessário lembrar que estamos diante do nascimento das forças armadas


brasileiras99. Uma instituição que, obviamente, nasceu com muito do velho preso a si, mas
que precisou inventar uma nova forma de ser 100. Novos postos, comandos, novas formatações
de batalhões e mudança no seu caráter. Nesse período, as tarefas repressivas começaram a ser
dividas entre tipos diferentes: militares e policiais, o que gerou ainda mais confusão e conflito
de jurisdição e autoridade nas antigas demandas não resolvidas.
No período colonial a Bahia tinha “o grosso das forças armadas (...) por ser ela, até
101
1763, o centro político e administrativo da colônia” . Essa organização do contingente foi
sendo alterada na capitania, e depois na província, à medida que a Corte, no Rio de Janeiro,
reorganizou a administração e as forças armadas a um modelo mais condizente com a nova
realidade que se delinou à sua frente. Mas foi com a condição de Reino Unido que o Brasil
102
passou a ter seu “próprio” exército, recebendo “fardamentos e distintivos novos” ,
diferentes dos de Portugal. Contudo, mesmo depois da aprovação da constituição de 1824

a estrutura militar oficial [obedecia] aos moldes coloniais que haviam


estabelecido as três linhas: a primeira, composta de tropa regular e paga; a
segunda e a terceira, composta de milícias e ordenanças, simplesmente
auxiliares e gratuitas. Daí as três categorias militares, exército, milícias e
guardas policiais, com efetivos fixados anualmente e, ainda, o processo de
recrutamento103.

Os oficias das últimas duas linhas eram eleitos. Oficialmente cada uma delas tinha
sua tarefa: o exército patrulhava as fronteiras e nelas estacionavam; as milícias vigiavam a
ordem pública das comarcas; e às ordenanças cabia o papel policial de segurança dos
indivíduos e propriedade104. Sabemos que nem sempre funcionaram assim.
Essa embaralhação de atribuições foi reconhecida no decreto de 1º de dezembro de
1824, com o qual o exército passava a centralizar todas essas funções, dividindo-se, contudo,

99
Segundo Kraay (Op. Cit., Introdução) o Exército brasileiro vai se constituir mesmo apenas em 1840, até então
haveria, para ele, o exército baiano.
100
Uma amostra disso foi a política de recrutamento durante a luta de independência que exigiu que os homens
mesmo paisanos e registrados em algumas das forças da província (ordenanças) se alistassem no “Exercito
nacional”. Arquivo Nacional (doravante A.N.). Ministério do Interior, AA IJJ9 329. Cachoeira, 23 de março de
1823. Do Conselho da província para o Ministro do Interior.
101
PAULA, Eurípedes Simões de. A organização do Exército Brasileiro. In: HOLANDA, S. B. de. Op. Cit., p.
267.
102
Idem, p. 271.
103
SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 114.
104
Idem.
43

em duas linhas105. A primeira, que seria a regular, contava com infantaria, cavalaria, além de
mercenários, oficialmente reconhecidos após a independência. A segunda linha seria a tropa
auxiliar com infantaria e cavalaria, tendo a artilharia apenas como possibilidade. Segundo
106
Sodré, a primeira linha, a despeito de ser a “regular”, teria existido sempre “aos cascos” , já
que seria na segunda linha, que trabalharia na segurança interna no nível das Comarcas, que
havia mais contingente e maior armamento, pois cuidava dos interesses diretamente
vinculados à propriedade, aos fins políticos dos poderes diretamente locais. As tropas de tipo
irregulares que vinham da colônia viraram o 13º, 14º e 15º batalhões de caçadores. As de
artilharia viraram o 7º batalhão. Mas Eurípedes de Paula reforça a tese da permanência e
afirma que várias das práticas da 2ª linha foram marcadas por tradições oriundas das milícias
coloniais. Imaginamos que este autor trate da mesma situação para a qual Sodré chamou
atenção107.
Em 1831, o decreto de 04 de maio dissolveu outros batalhões por todo o país,
fazendo com que o 13º e o 14º passassem a ser respectivamente o 9º e o 10º, enquanto o 15º e
o 16º foram fundidos num só batalhão em Alagoas, o 11º. Essa redução esteve diretamente
vinculada aos conflitos políticos nos quais os militares tiveram papel importante, sobretudo os
eventos que culminaram no 07 de abril de 1831, isto é, na confirmação da abdicação
(expulsão) do trono por D. Pedro I, colocando na linha de sucessão o seu filho, ainda com 5
anos de idade. Desde 1823, quando se negou a assinar a Constituição, as agitações em torno
do crescente absolutismo reinol deram vazão a velhos revanchismos de origem territorial
(provincial) e nacional. Se aproximando cada vez mais dos portugueses, mais tendentes ao
conservadorismo em termos de sistema político – não apenas no Brasil, mas também para os
negócios de além-mar –, Pedro I manipulou a política nacional e os cofres brasileiros para que
Portugal não saísse de sua órbita. Mas, para os brasileiros, isso estava custando caro ao jovem
“país”.
O sete de abril agitou novamente os quartéis. Liberais exaltados, liberais moderados
e conservadores passaram a se digladiar numa arena política pública. Federalismo e República
voltaram a ser temas discutidos como solução para a nação. A predominância naquela
conjuntura dos liberais, que resgataram sua força impulsionados pela retomada das lutas em
1830 na França (onde Luis Filipe, o rei burguês, chegava ao poder inspirado pelo sentimento
político de 1789), fez com que eles dirigissem os primeiros anos do período regencial.

105
PAULA, Eurípedes Simões de... Op. Cit, p.272-274 e SODRÉ, N. W... Op. Cit, p. 115 e 116.
106
SODRÉ...Op. Cit, p. 116.
107
PAULA... Op. Cit., p. 274 e 275.
44

Aplicaram algumas de suas receitas liberais de redução do poder do Estado centralizado,


incluindo nessa fornada a diminuição do exército.
Com apenas uma tacada atingiam dois alvos: redução de custos estatais e
desmobilização política de uma instituição na qual a política era o segundo ofício, senão o
primeiro. Como contrapartida à redução do exército em efetivo, receitas e prestígio, foi
implantada, através da lei de 18 agosto de 1831, a Guarda Nacional, que passaria a exercer as
atribuições mais próximas das tropas de 2ª linha, oficializando as suspeitas de Sodré, visto
que esta era sim oficialmente uma tropa construída no intuito de ser atrelada ao poder
provincial e local dentro das comarcas e vilas108.
Mas isso não aconteceu sem resistências; muitos oficiais portugueses, exonerados ou
não de seus postos, reagiram ao poder regencial. Em 1831, na Bahia, por exemplo, houve
alguns motins em fortes ocupados por tropas realistas, seguidos por agitações de tropas
baianas defensoras da nova situação política do país109.
Em Caetité houve resistência por parte dos portuguesses seguida de reações
antilusitanas que terminaram gerando um conflito bélico. Segundo os relatos dos documentos,
os portugueses armaram uma resistência nas vilas de Caetité até Rio de Contas, onde haviam
muitos deles que, desde o berço, “gravam em seus corações, a exemplo de seus
progenitores”110, o absolutismo como forma de organização política. Segundo outro
documento, a “facção luso-escravizadora”, composta por portugueses naturalizados e não
naturalizados, se organizou em armas na fazenda Tolda, no lugar da Canabraba, e só não fez
sua revolta porque foi impedida por uma medida que prendia todos os portugueses,
preventivamente, sem exceções111.
Essa resistência descambou numa reação violenta, antilusitana, que fez o governo
perder o controle sobre a população rural daquela comarca. Saques e salteadores tomaram a
vez na cena, atacando especificamente as casas e fazendas de portugueses acanhados e pouco
protegidos. Um dos motivos da disposição dos portugueses de abaixarem as armas na região

108
Sobre a Guarda Nacional ver URICOECHEA, Fernando. O Minotauro Imperial. A burocratização do Estado
Patrimonial brasileiro no século XIX. São Paulo: DIFEL, 1978 e FERTIG, André. Clientelismo Político em
tempos Belicosos. A Guarda Nacional da província de ao Pedro do Sul na defesa do Império do Brasil. (1850-
1873). Santa Maria: Editora UFSM, 2010.
109
KRAAY, Hendrik. Política Racial, Estado e Força Armadas na Época da Independência da Bahia, 1790 -
1850. São Paulo: Hucitec, 2011, p. 232 e 233.
110
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: serie justiça correspondência recebida de juízes. 1827-1847.
Maço 2284. Vila de Caetité, 18 de maio de 1831. De Joaquim Venâncio de Azevedo, Para presidente da
província.
111
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: serie justiça correspondência recebida de juízes. 1827-1847.
Maço 2284. Carinhanha, 27 de maio de 1831. De Francisco Gonçalves do Rego para Joaquim Venâncio de
Azevedo.
45

foi “para defenderem suas fazendas, contra uma quadrilha de salteadores, que de improviso se
uniram em número de 9, e com arrebatamento de portas e caixas, roubaram a um português
velho, casado, morador neste distrito, que felizmente escapou com vida” 112.
A desorganização militar era tamanha que as autoridades pediam pressa na
montagem da Guarda Nacional para que impedisse as continuadas hostilidades da primeira
linha contra os habitantes da região (sem especificar se se tratava de hostilidade apenas contra
a população portuguesa) e “promover seus interesses”113. É importante que se diga, a tropa se
dividiu nesse conflito, uma parte dela seguindo o partido “desorganizador”114.
Em outros lugares do Brasil aconteceu a mesma situação. No Rio de Janeiro ficou
clara a relação entre as tropas e a política em 1831.
Em 1834, o Ato Adicional115 veio para confirmar a situação política do país. Houve
uma nova diminuição do efetivo, restando na Bahia apenas o terceiro Batalhão. Essa situação
exigia maior presença e atuação da Guarda Nacional.
Porém, como analisou Hendrik Kraay, as condições de implantação da Guarda
Nacional em Salvador e no interior eram muito diferentes116, mas em ambas as dificuldades
eram latentes. Em comum havia a rejeição dos oficiais tradicionais em relação à constituição
de uma guarda de civis, comandada por oficiais também civis, que obtiveram as patentes não
por mérito militar e destreza nas artes bélicas, mas por um processo eleitoral típico da
sociedade civil. Também havia rejeição daqueles antigos oficiais de milícias, tanto dos que
foram incorporados como dos que não foram incorporados à Guarda. Os que foram
incorporados tinham uma tendência a tratá-la de modo muito parecido com as antigas milícias
e ordenanças, fazendo consertos, aqui e acolá, de acordo com algumas de suas experiências.
Por outro lado, os impulsos “anticoloniais” trazidos pelo sentido da construção da guarda
conflitaram com essas experiências antigas.
No interior da Bahia (veremos mais à frente) acrescentaram-se outras confusões na
implantação dessa milícia. Os pleitos que elegiam os oficiais tinham dificuldades de serem

112
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: serie justiça correspondência recebida de juízes. 1827-1847.
Maço 2284. Caetité; Vila Velha, 30 de julho de 1831; 03 de julho de 1831. De Joaquim Venâncio de Azevedo,
juiz de paz suplente para presidente da província; de Joaquim Pereira de Castro, juiz de paz de vila velha, para
juiz de paz de Caetité.
113
Idem.
114
Idem.
115
Dentre tantas coisas, legislou em prol de maior controle administrativo, fiscal e militar pelo presidente da
província, contudo, esse era escolhido pelo poder central. Gerando uma tensão entre centro e periferia e uma
simbiótica dialética entre poder local e central, da qual falaremos mais na terceira parte dessa tese, nos capítulos
sobre o banditismo, popularizado como “lutas de família”.
116
Op. Cit, p. 318.
46

realizados, e a Guarda Nacional foi o eixo de muitas disputas políticas que degeneraram em
conflitos armados entre “partidos”. Não são poucos os relatos que nos legaram os arquivos de
lamentos que situaram a Guarda Nacional no centro de um motim, de uma desobediência à
lei, à ordem e de acobertamento de bandidos e corruptores.
Os sabinos, liderados por alguns homens da tradição militar desde a independência,
também a rejeitaram e trataram de excluí-la do seu governo de poucos meses, retomando o
sistema miliciano117.
Mas mesmo as milícias e os corpos policiais estavam sendo sistematicamente
reduzidos. No relatório do presidente para o ano de 1842 ele reclamou da diminuição do
efetivo armado disponibilizado para toda a província. O presidente possuía à sua disposição:

um corpo de polícia que foi reduzido para 437 praças, um esquadrão de


cavalaria de linha com 156; companhia de artífices com 100 e o batalhão
provisório com 639, 200 praças de marinhagem que se podia levar a alguns
lugares da província, além da G.N. [Guarda Nacional] que poderia, apesar
das dificuldades apresentar um efetivo de 600 praças, chegando com mais
tempo a 100 ou 1500118.

O número de soldados caiu ainda mais no ano seguinte, pelo que percebemos no
relatório de 1843. Demonstrou o presidente da província que contava com apenas 96 praças
da Companhia de Artífices, 64 da Cavalaria e “depósito de recrutas, dos quais somente os
voluntários prestam serviços”119. Para agravar, dizia ressentir ainda mais a segurança pública
devido à lei de 11 de Abril de 1842, a qual já tinha criticado no ano anterior. Esta lei, além de
reduzir o contingente policial, deu “baixa em valorosos oficiais”. Os novos oficiais, que
substituíram os antigos, não tinham os traquejos e experiências necessários para impor a
ordem e a disciplina, “embora” fossem “corajosos e fiéis” 120.

117
Além disso, os sabinos trataram de aumentar os soldos dos soldados, resgatar oficiais afastados e implementar
uma minirreforma militar. O Conselho que assumiu o poder na cidade de Cachoeira no período da Independência
também aumentou o soldo dos soldados.
118
Relatório presidente da Província 1842 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 07.
119
Relatório presidente da Província 1843 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 06-07.
120
Idem.
47

Vejamos aqui a relação entre uma situação de desorganização ou precariedade militar


e de “insubordinação generalizada”121 com as formas de crime e de organização de
comunidades voltadas às delinquências.
“Brava gente brasileira!”
Quando a guerra de independência estava nos seus primeiros dias foram “soltos os
presos, e os criminosos condenados à pena última, para a terrível faina da guerra de
libertação”122. Além desses, correu ao recôncavo uma multiplicidade ainda maior de gente que
se juntou aos que lá estavam. Muitos “oficiais e praças que se evadiram da fortaleza (S.
Pedro) foram para o recôncavo e para o Norte da Província”123; também homens importantes,
como Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, “conhecido por Santinho (depois Visconde
de Pirajá)”, que era “tenente coronel de milícias” e chegou ao recôncavo “trazendo índios
armados de flechas” entre os homens que o acompanhavam. Eram os chamados Batalhões da
Torre, organizados na Feira de Capuame, os quais começaram a perseguir a gente de Madeira
até as vizinhanças da Lapinha124. Braz do Amaral nos informa que o “padre José Maria
Brayner organizou a companhia de Couraças ou do padre dos couros. Homens fardados de
couro, como os vaqueiros do sertão, que prestaram imensos serviços fazendo o penoso
trabalho de correios e transportes, através de regiões ínvias, alagadiças e carrascais”125.

121
Sobre insubordinação estamos compreendendo como um leque bem amplo de ações, atitudes e idéias que, ao
fim, concorrem para que a tropa desobedeça, ataque, afronte ou despreze os códigos de conduta da instituição,
promovendo menor margem de obediência às liturgias e às autoridades instituídas para o seu controle. Já a
desorganização militar tem como maior preocupação o estado material das forças militares, ou seja, a capacidade
de alimentar os homens, pagá-los, vesti-los, obter o número necessário de homens para cobrir determinadas
territórios, bons armamentos, cartuchos, pólvora e respeito às legislações, editais e bandos das autoridades
militares e civis superiores. Ambas as coisas, insubordinações e desorganização, confluem para um quadro mais
amplo de pouca eficiência dos organismos militares para aquilo que foram designados. Esse conjunto teceu, em
algumas circunstâncias, uma negação prática (crime, banditismo, corrupção) daquilo que seria sua função:
proteger a propriedade, o Estado e a vida dos homens de bem (ou bens).
122
AMARAL... Op. Cit, p. 07.
123
Idem, p. 274.
124
Idem, p. 238.
125
Idem. Fizeram o trabalho também de levar e trazer alimentos, principalmente o gado, para as tropas
estacionadas.
48

Figura 2: Fardamento militar durante o período da guerra de Indepenência. Notar que o autor da
pintura, inseriu um cabloco de couraça e um negro, sem vestimenta militar, como parte do exército pacificador.
Fonte: Art and Picture Collection, The New York Public Library. "Brazilian Military Uniforms, 1824-1825." The
New York Public Library Digital Collections. 1922. http://digitalcollections.nypl.org/items/510d47e1-0a5a-a3d9-
e040-e00a18064a99.
49

Figura 3: Entrada do Exército Pacificador na Cidade da Bahia – Litografia de Bento Capinam, 1830.
Notar a presença indígena bem no canto direito da imagem, bem como em alguns soldados negros postados
abaixo do adro. Fonte: https://reconcavo.wordpress.com/tag/guerra-da-independencia/.

Ao longo da bibliografia sobre a independência, um tema tem sido sempre abordado,


qual seja, o da participação dos escravos e libertos em ambos os lados na luta que seguiu de
1821 a 1823. Fala-se do temor que houve entre os proprietários, e também entre as
autoridades estatais, de que a “briga de brancos” pudesse abrir brechas para levantes escravos
como os que apavoraram o recôncavo e Salvador durante as duas primeiras décadas do século
XIX. Esses temores não parecem ser baseados em teorias da conspiração ou alarde de gente
branca. Em uma relação de recolhidos às cadeias dos anos de 1823, 24 e 25, um dos nomes
listados foi o de um homem escravo chamado Joaquim Ussá. Teria ele aliciado portugueses a
“irem para o recôncavo”, onde se encontravam as tropas de libertação126. O documento não
informa qual a sua pretensão, se era a de colocar os portugueses numa cilada ou, vice versa, se
era conseguir combater posições do exército pacificador com o intuito de aproveitar brechas
para quem sabe realizar um levante ou uma ação individual em determinada área. O que
sabemos é que os escravos estavam obviamente cientes, como a maioria dos moradores da

126
AN. Série Justiça. IJJ1 706. Salvador. 1825.
50

Bahia, das confusões políticas e militares e mais ciosos de que poderiam intervir de algum
modo, fosse a mando ou por motivação própria127.
No Riacho Fundo, da vila de Nossa Senhora do Urubú, os moradores, sobretudo os
portugueses, tentaram rebelar seus escravos, prometendo-lhes liberdade. O documento,
recebido pelo Conselho Provisório de Governo e que foi remetido a uma autoridade militar,
afirmava que era necessário eleger alguém como delegado, ou coisa semelhante, para que se
viesse a “prevenir males, prender facinorosos, e não consentir vadios e mal feitores que ali se
refugiam, e poder subdelegar em mais alguns outros, que forem presos, atenta a grande
extensão de 80 léguas que tem o mesmo termo”128. Parecia que a conspiração se enredara
numa situação mais genérica, em que diversos outros agentes (vadios, malfeitores e
facinorosos) se somariam em um arco de alianças para que os escravos atuassem sobre as
dificuldades ali postas129.
Restou uma situação em que as brechas para a fuga se ampliaram e puderam ser
muito utilizadas. Em toda a província o alerta contra a presença de escravos fugitivos pelo
interior foi dado e chegou às autoridades locais, como podemos confirmar através da
publicação do bando que conclamava a todos para que entregassem e devolvessem aos seus
donos os escravos “extraviados pelas povoações, lugares e matos do recôncavo” 130. Com esse
mesmo sentido, o Palácio do Governo da Bahia publicou um ofício que regulamentava a
situação dos escravos fugidos após a guerra de independência. Ressaltava-se naquele ofício
que ele seria publicado em “lugares mais públicos e estradas” 131. O governo parecia atento à
mobilidade desses sujeitos e a suas rotas de fuga e, por que não, à possibilidade de encontros e
confrontos.

127
Sobre as estratégias dos negros escravizados nas guerras de independência ver CARVALHO, Marcus J. M. de.
“Os negros armados pelos brancos e suas independências no nordeste (1817-1848)”. In: JANCSÓ, István (org.).
Independência: História e Historiografia. São Paulo: FAPESP; Hucitec, 2005.
128
APB. Manuscritos Seção de arquivo colonial e provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Série:
correspondências (1821-1823). Maço 002. Antigo 633-1. Sala da sessão da vila de Cachoeira, 27 de setembro de
1822. De Francisco Eslebão Pires de Carvalho e Albuquerque, Francisco Gomes Brandão Montezuma, Manuel
Muniz Bittencourt, Manoel José de Freitas, Simão Gomes Ferreira Veloso, José de Melo Varjão, para, Tenente
Coronel das Forças de Pirajá, Joaquim Pires Carvalho de Albuquerque.
129
No sugestivo livro de María Camila Diaz Casas, intitulado “salteadores e malhechores” (Popayán: Editorial
Universidade Del Cauca, 2015), ela sugere que os s facinorosos e malfeitores podiam ser os mesmos escravos, já
que no contexto de luta por independência de Granada (futuramente parte da Colômbia) essa foi a forma de
criminalizar e reprimir preventivamente toda as ações dos escravizados e grupos sociais próximos, como os de
brancos pobres e pardos, como de também impedir que esse encontro acontecesse.
130
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série: Atos
normativos (1822-1832). Livro 007 (antigo 635). Vila de Jacobina, 16 de setembro de 1823. Francisco Aires de
Almeida Freitas para Juiz de fora e demais oficiais da Comarca do Rio de Contas.
131
AMARAL... Op. Cit., p. 294 e 295.
51

Não apenas atento a fugas escravas, mas também a outras ações dos grupos sociais
subalternos, como podemos ver em outro documento, que visava não aceitar que as
ordenanças fossem também colocadas sob o controle de Pedro Labatut. O conselho repeliu
sua proposição de controlar três diligências em lugares diferentes em prol da segurança
pública da província. Uma para “repelir os índios ‘Aramarizes’ que atacaram com mão
armada o arraial do ‘Pedrão’, outra para o lugar denominado ‘Cedro’, para prevenir um
levante de escravos que ali se prepara[va], e o último, para levar os presos europeus para
Pernambuco132”. A resposta do conselho foi dura e recusou que se cedessem as ordenanças
para aquelas tarefas, pois o comando de Pedro Labatut deveria ser apenas militar – as
ordenanças eram de controle de civis – e caso fosse dado o controle das ordenanças a ele, o
conselho consentiria com o “absurdo de ser vossa senhoria comandante universal” 133.
Índios, negros – sem falar nos europeus134, em tese o inimigo – surgiram como
outros inimigos a incomodar o pleno fausto da brava gente brasileira patriótica. Sem “temor
servil”, agiram em seus grupos, ora homogêneos ora heterogêneos, ou mesmo sozinhos, no
intuito de tirar proveito daquele momento de crise, como sugerido aqui.
As ordenanças, ou milícias civis, cumpriram esse papel importante de tentar manter a
segurança local nas vilas e termos das comarcas. Elas representavam também a manutenção
do poder dos fazendeiros, comerciantes e plantadores nas suas localidades de mando. Eram as
milícias privadas que asseguravam a ordem e as propriedades num contexto de desordem. Por
isso não descuidavam delas, pois sempre estavam observando a necessidade de que os
combates não deixassem os municípios desguarnecidos de homens por conta da necessidade
de “conter malfeitores”135.

132
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 13 de
dezembro de 1822. De Francisco Du Pin e Almeida, secretário interino, para coronel comandante da força
armada da vila de Cachoeira.
133
Idem. Essa passagem exemplifica um pouco o estado de indisciplina e de fragilidade hierárquica.
134
Os europeus citados não eram os mercenários, mas vale dizer que estes também foram muitas vezes
rechaçados pela população pelos seus maus hábitos, mais de piratas do que de soldados. Roubavam moradores,
abatiam seus animais, expulsavam-nos das suas casas, agrediam pessoas. Existiu, durante algum tempo,
batalhões de mercenários, mas depois de criar tantos problemas de indisciplina a Coroa os desfez. Eram
compostos por nobres decaídos, militares sem ocupação, desocupados e criminosos da Europa e da América
Espanhola. TAVARES, L. H. Op. Cit, 273. Marx os enquadrava na categoria do lumpenproletariado: setores
decaídos de sua condição social original, seja ela de pobreza, riqueza, ofício ou estamento, das diversas classes,
comumente disponíveis às contendas políticas em troca de favores e barganhas. MARX, K. O 18 de Brumário de
Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 91.
135
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 02
de novembro de 1822. De Francisco Gomes Brandão Montezuma, secretário interino, para coronel do regimento
de infantaria miliciana da vila de Santo Amaro.
52

Se a preocupação em torno dos planos despóticos de Labatut era crível ou se, ao


contrário, não passava do ciúme de senhores poderosos dados ao mando e ao não recebimento
de ordens, o que sem dúvida se pode afirmar é que, do ponto de vista da segurança individual,
da propriedade e da disciplina na tropa, antes da chegada desse estrangeiro a situação era
ainda pior. Braz do Amaral afirmou que antes “da chegada de Labatut, a reunião de tantos
homens armados, vindos de pontos distantes, havia produzido desordens e crimes”136.
Alguns autores chegam a falar em “êxodo” da população urbana soteropolitana.
Êxodo esse provocado pelas péssimas condições de higiene, alimentação, vestimenta e
segurança causadas pelo bloqueio à cidade ou pela livre iniciativa de quem pretendia
participar do exército pacificador ou mesmo aproveitar as brechas na ordem para pôr em
plano outras vontades. A população da qual estamos falando era majoritariamente negra ou
mestiça, pobre, trabalhadora.
Como podemos ver, as estradas que ligavam a Cidade da Bahia e os ditos sertões ao
recôncavo, onde estava concentrado o foco da resistência nacional à permanência portuguesa
na Bahia, ganhou volumoso fluxo de gente de todas as cores, classes e profissões. Aquelas
estradas já conheciam boa movimentação de pessoas. Elas eram detentoras da maior
movimentação de riquezas da Bahia 137, que confluíam para um dos principais portos de
exportação do Brasil. Mas não eram os negócios que a maioria daquelas pessoas procurava
naqueles anos, ainda que alguns tenham obviamente aproveitado para negociar a preços muito
maiores do que o comum produtos tão caros à vida das pessoas em tais condições de escassez;
uma boa parte dessa população enveredou por transações ainda menos legais.
Uma parte estava ali porque queria estar; outra foi até ali constrangida por algum
patrão e/ou autoridade; mas uma boa parte estava naquelas condições fugindo. As estradas
que iam ao recôncavo tornaram-se um local propício para a formação de diversas
“comunidades volantes”, constituídas por uma “horda heterogênea”, que levaram ajuda,
desconfiança ou terror para onde iam.
Muitas dessas pessoas foram utilizadas nas tropas de combate dos exércitos em
contenda. Algumas voluntariamente, outras recrutadas à força e algumas, em menor número,
foram libertadas para isso, como no caso dos prisioneiros citados. Uma boa parte delas não
era adestrada na arte da guerra. Ainda que a manipulação de armas fosse uma prática comum

136
AMARAL... Op. Cit., p. 290.
137
MATTOSO, Kátia M. de Queiróz. Bahia século XIX. Uma província no império. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1992, p. 59-61.
53

entre as pessoas não militares, a maioria não era capaz de manter a rígida disciplina militar em
meio a uma guerra.
Uma carta citada por Braz do Amaral revela que as autoridades tinham conhecimento
dos efeitos reversos que isso poderia trazer para a boa recepção da causa.

O conselho reconhece que por aí há muita gente, porém sentindo, como V.


Sª., a falta não só de armas mas de soldados amestrados na arte da guerra,
não pode deixar de reconhecer quando vai ser vantajosa a medida que tem
tomado [aumentar o número de tropas] sem todavia, se poder lembrar que 50
homens debaixo do comando de V. Sª. motivaram com seus crimes o
desgosto desses habitantes, caso este em que cumpre V. Sª. castigá-los com
todo o rigor das leis militares, mui positivas a este respeito”138.

Homens sem capacitação militar, longe de suas famílias, armados, vivendo na


penúria e sob o autoritarismo típico da hierarquia militar mostravam realmente que não eram
soldados. A carta lembrava que mais 50 homens destreinados, sem disciplina militar, sem a
“exemplificação” da punição, poderiam vir a ser mais 50 homens que utilizavam das armas
para outros fins que não aqueles que as forças armadas pretendiam dar. O desgosto dos
habitantes poderia se reverter na recusa de prestar socorro de mantimentos, em motins nas
vilas contra o estacionamento das tropas, no acobertamento de inimigos perseguidos, entre
outras coisas.
“A segurança pessoal era nenhuma”
O primeiro relatório do Conselho de Governo Provisório depois da guerra de
desocupação dizia: “E, se aquela dificuldade [de governar] é notável em dias tranquilos, e
serenos, na posse dos meios consentâneos à prospera conservação do Estado, ela deve ser
insuperável em épocas de agitação, e alarmes, e na ausência de quanto for mister a
manutenção da ordem pública”139.
Tinha toda a razão o conselho, afinal, pelos relatos, alguns listados acima, não havia
segurança individual e das propriedades dos cidadãos naqueles tempos de guerra. Boa parte
dos homens responsáveis pelo policiamento foi remanejada para a batalha, e essa medida de
arrastar para dentro do exército muitos homens “paisanos” teve efeitos colaterais. Para
agravar as condições, a guerra começou a ser travada de forma não planejada e precipitada,
criando uma situação de duplicidade de poder ainda prematura. Ainda não se sabia, por

138
AMARAL... Op. Cit., p. 257.
139
Relatório presidente da Província 1823 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html , site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 01.
54

exemplo, “exatamente o número de praças, e armas dos corpos milicianos; que arrecadasse a
pólvora, e chumbo, expostos a venda nas diferentes vilas; que se examinassem as peças de
artilharia empregadas no vai e vem dos engenhos”140. O “vai e vem” levou e trouxe muitas
armas de um lado ao outro da província, concentrando nos caminhos do recôncavo alto
poderio bélico. A quantidade de armas e munições que circulava, a bem da verdade, era
considerada de má qualidade e insuficiente para os fins de uma guerra militar. Via-se “no dia
décimo, ou duodécimo da Revolução, espingardas sem pederneiras, e desmanteladas nas mãos
dos soldados da guarda principal de certa vila notável”141. Pouca munição, ausência de peças
de artilharia e tudo o mais parecia faltar. Contudo, como o mesmo documento informa, era
com essas mesmas armas que os engenhos pareciam fazer sua segurança: com os rifles,
pistolas, garruchas e espadas oriundas da generalização de uma classe senhorial armada.
Esse armamento chegou aos responsáveis pela organização bélica do exército
pacificador através de trens militares organizados localmente por “comandantes militares
[que] eram independentes entre si; e a idéia de independência passada d’estes para os chefes
de pequenos Corpos, as companhias de novo criadas” (...), produziam “a geral
insubordinação, que aguardava o horror da verdadeira, e já existente anarquia militar” 142.
Muitos chefes e comandantes eram sérios e honrados, mas alguns pareciam como “Regulos
Orientaes a frente da Soldadesca Infrene e animada pelo espírito da rapacidade”143 (...). “A
segurança pessoal era nenhuma”144.
Segundo o relatório, com a consolidação do conselho de governo, centralizado em
Cachoeira, e, posteriormente, com a chegada de Pedro Labatut, se restabeleceu “a ordem
assaz perturbada (...) e insultos produzidos pela indisciplina dos soldados, e insubordinação de
alguns chefes”, e foi possível pôr fim à “licença das tropas”145.
Numa troca de cartas entre o Conselho de Governo e o Major do Batalhão
Cachoeirense e adido ao Regimento de Itaparica, foram relatadas as desobediências do tenente
da segunda companhia, Cláudio José Ramos. O conselho informava da prisão do tenente, que
deveria entregar sua própria carta de prisão ao Major já citado. Com aquela medida o
Conselho queria dar a todos uma demonstração contra a indisciplina que grassava nas tropas.

140
Idem.
141
Idem, p. 02.
142
Idem, p. 03. (grifos meus).
143
Segundo o dicionário virtual http://www.dicio.com.br/rapacidade/, rapacidade significa furto, latrocínio,
pilhagem, rapina e rapinagem. Acessado em 04/12/2015.
144
Relatório presidente da Província 1823 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html , site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 03.
145
Idem, p. 04 e 05.
55

Sua conclusão não poderia ser mais sintomática do que sofriam nas duas frentes de batalhas –
contra o exército português e contra os próprios problemas de uma guerra civil que, vez ou
outra, deu lances de uma guerra social anterior e mais prolongada que a expulsão dos
portugueses: sem a disciplina militar, “é o soldado pior inimigo público”146.
E o soldado esfomeado podia ainda ser muito pior. Estava sempre pronto a não
obedecer às ordens dos superiores – às vezes mesmo por impossibilidade física –, estava
pronto a desertar, a se insubordinar, ou simplesmente a praticar crimes para satisfazer
imediatamente sua barriga e voltar à farda.
Em uma das muitas reclamações feitas pelos comandantes das tropas aos governantes
provisórios, listavam-se alguns pontos que chamaram a atenção, especialmente o terceiro e o
oitavo, em que está escrito: “3°, que tem sofrido e experimentado muita insubordinação da
tropa” e “8°, que sofre falta de gados para a sustentação das tropas”147. Continuava o
documento sugerindo algumas resoluções para os problemas acima elencados:

que V. Sª. faça cumprir com a autoridade própria da lei em governos


constitucionais o Regulamento Militar, aplicando quantos meios lhe forem
permitidos por ele afim de manter a disciplina e subordinação das Tropas
que comandar” (...)“que na data de hoje expediu ordem ao capitão mór
competente para fazer descer boiadas pelas estradas que conduzem da Feira
de Santa Anna ao Pirajá, afim de que aí sejam compradas e aplicadas ao
consumo das Tropas148.

Em outro documento, um comandante diferente participou a Labatut que recebeu


vinte bois e noventa e oito espingardas “apenas”, que teriam sido conduzidos por 104 índios.
Pediu mais gado, mais farinha, mais armas e relatou que não tinha nem metade das armas em
relação à quantidade de soldados (tinha mais de 1200 homens e em torno de 400 armas) 149.
A insubordinação poderia se dar por qualquer motivo, mas certamente a falta de
alimentos agravou a situação. Em um cenário, o comandante tentou buscar mais alimentos, o
que não era fácil, pois muitos bois estavam sendo escondidos dos ladrões pelos habitantes,

146
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, sem
data. De Francisco Gomes Brandão Montezuma, Secretário, para o Major do Batalhão Cachoeirense e adido ao
Regimento de Itaparica.
147
AMARAL... Op. Cit., p. 253.
148
Idem.
149
APB. Manuscritos Seção de arquivo colonial e provincial. Coleção Independência do Brasil na Bahia. Série:
correspondências (1922-1823). Livro 001. Antigo 633. Quartel de Itaparica, 06 de outubro de 1822. De
Felisberto Gomes Caldeira, Tenente Coronel Comandante, para Tenente Coronel Comandante, José Freire de
Carvalho.
56

que escondiam também os bois das expropriações promovidas pelo Estado para alimentar as
tropas. Em outro cenário, para acabar com as reclamações de fome dos soldados, o
comandante sugeriu apertar a disciplina, o que certamente poderia levar à subordinação, mas
também poderia aumentar a tensão entre soldados e comando, abrindo brecha para a deserção
e outras ações. Podemos ver que a proporção de armas por soldados era menor que a metade,
o que sugere também evasão de armas. Falaremos disso mais adiante.
Um documento anteriormente citado e usado por muitos historiadores, que destaca a
questão do negro e do escravizado na luta pela independência, tem muitas linhas preocupadas
com questões militares e com a subordinação da tropa. José Antônio Fiuza, após afirmar a
existência de três partidos, disse que se estava fabricando muita bala e pólvora, vendida
também em demasia pela região do conflito, e “que muitas casas se acham munidas de muitas
armas de toda a qualidade, e mesmo peças de artilharia” 150. As armas poderiam ser
apreendidas, mas ele preferia não acirrar os ânimos. Ele dizia não saber se “[os] do meu
comando me serão fiéis em desastrosos acontecimentos, atento o grande veneno que se tem
espalhado por muitas vias, e no que respeita as tropas milicianas não vejo providências
nenhumas, e da parte da justiça, da mesma forma; sendo certo que a relaxação da parte da
polícia tem sido a causa de muitos danos”151.
O oficial estava nitidamente preocupado com o “veneno” que poderia ser facilmente
inoculado nos seus soldados, preferindo não tentar aplicar nenhum tipo de vacina ao veneno
dada a instabilidade da situação: armas circulando em número significativo; muita pólvora;
muita deserção; muito crime; pouca polícia; muita gente pobre, livre e escrava circulando
“ociosa”, faminta e desenraizada. O Cenário era explosivo. Havia receios de que essa situação
se voltasse contra o exército patriótico. A ausência daquelas armas pode sugerir que foram
vendidas pelos soldados ou que teriam sido extraviadas através de deserções simples em que
os fugidos levaram as armas do Estado.
As situações de crise política em que os homens recorriam às armas tendiam a
agravar sempre essa situação de desorganização militar. Situação deveras tensa nos quartéis
da Bahia no pós-independência. E turbulência nesses anos não faltou. Após a independência,
militares, juntamente com civis, promoveram em 1828, 1831, 1832 e 1833 “conspirações e

150
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série
correspondência (1822-1823). Livro 005 (antigo 634). Cachoeira, 16 de abril de 1822. (Documento datilografado
em 1923 pelo Arquivo histórico Militar de Lisboa. Portugal.) De José Antonio Fiuza de Almeida.
151
Idem.
57

revoltas federalistas”. “Em alguns desses episódios os militares abriram os portões de seus
quartéis e distribuíram armas, como em 1824 e 1831”152.
Em 1834, uma carta foi enviada pelo presidente do senado da câmara de Cachoeira e
pelo Juiz de Fora ao presidente da província pedindo-lhe que tirasse de Cachoeira um
destacamento ali estacionado. Esta carta foi respondida de modo negativo em relação aos
anseios de seus autores. Ordenou o presidente da província

a conservação do destacamento nesta vila, que, servindo ele de perturbar a


boa ordem, era mandado retirar [pelas autoridades locais], substituindo-se-
lhe um de milicianos que venceram soldos bem como os das vilas de São
Francisco e Santo Amaro, cujo comando foi confiado a oficiais escolhidos
[sugestão das mesmas autoridades]153.

O que nos parece é que a agitação política do batalhão incomodava os cidadãos e


autoridades políticas de Cachoeira, que, deste modo, pediram que se passasse o controle
militar da região para as milícias, que, em sua maioria, estiveram sob o controle das
autoridades e das classes senhoriais, recebendo a negativa por parte do presidente da
província que, naquele contexto de incertezas políticas e instituições fragilizadas, pareceu
preferir uma tropa sem subordinação a um controle territorial pelas tropas civis. Durante a
guerra de independência ficou muito claro que alguns dos homens que a comandaram tinham
pretensões políticas muito maiores, alguns deles desestabilizando outros para conseguir
ascensão e poder.
Em 1831, no contexto dos levantes federalistas antilusitanos abertos pela vaga
política de 7 de Abril, o juiz de direito da Comarca de Jacobina José Manuel Espínola, ao
tratar da resolução da Assembleia Provincial que criava uma guarda policial nas Comarcas,
com direito de organização de cavalaria e artilharia e de responsabilidade dos juízes de
direito, pediu, com máxima urgência, a sua implantação naquele local, com o acréscimo no
número de praças de 24, como sugeria a lei, para o número de 40. A necessidade do reforço
vinha do fato de que, para o juiz, a guarda nacional para nada prestava, dado que os “bandos
de ladrões e assassinos atravessam impunemente por esse município e até armados com armas

152
REIS, J. J. Cor, Classe Social, Ocupação etc: o perfil social (às vezes pessoal) dos rebeldes baianos, 1834-
1833. REIS, J. J; AZEVEDO, A. In: A Escravidão e suas Sombras. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 293.
153
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial; Governo da Província. Câmara de vereadores de Cachoeira.
Maço 1269. Cachoeira, 22 de novembro de 1824. Pg/fl: 01, 02, 03, 04, 05.
58

da nação, que se descaminharam em 1831” 154. Ordenou que se apreendessem todas as armas
da nação, mandando proceder contra todos os possuidores delas. Segundo ele, era sabido que
na comarca do Rio de São Francisco existiam mais de mil armas nas mãos de particulares.
Essas medidas foram tomadas no município e, como relatado, resultaram em efeito positivo,
ainda que boa parte das armas tenha sido cortada ou feita de bacamartes155.
Os desvios de apetrechos das forças armadas está registrado mesmo antes numa lista
de presos dos anos de 1823-1825, em que aparece um homem chamado Manoel Gomes,
condenado por usar farda sem ser militar, além de outros presos por porte de armas proibidas
e de outros ainda que foram flagrados com pólvora nas estradas 156. Em 1836, um Corneta da
Guarda policial desertou com dois rifles com baionetas. Ele, segundo supunham as
autoridades, teria se deslocada para a região da Comarca do Rio São Francisco, notória área
de banditismo e de lutas entre frações de elites, que empregavam o gatilho de homens pobres,
livres e armados157.
Também durante e depois da Sabinada as armas trocaram de mãos ou foram em
abundância extraviadas. É o que se pode afirmar a partir da leitura de três documentos citados
a seguir.
O Coronel Comandante da comarca de Cachoeira, após oficiar, no dia 27 de
dezembro de 1837, que faria uma marcha com as forças constitucionais por ele chefiadas pelo
arraial de São Gonçalo até a vila de Feira de Santana, com o intuito de combater tropas
inimigas (sabinas) que conseguiram cortar aquela vila e se evadiram sertão adentro, pediu
para que as autoridades municipais tentassem lhe proporcionar o máximo de sigilo na sua
empreitada, pois “desejaria fazê-la sem ser provocado pelos facciosos a pôr a vila em assédio

154
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 –1885. Maço 2430. Bahia; Jacobina, 17 de setembro de 1835. De Manoel José Espínola,
Juiz de Direito da comarca de Jacobina, para o Vice-presidente da Província, Visconde do Rio Vermelho.
155
Idem. No caso as armas seriam cerradas para que ficassem com cano menor, mais fácil de serem escondidas e
manuseadas em confrontos de menor espaço. Cabia maior quantidade de pólvora, pois se cerrava o cano fino da
espingarda. Com isso ela ganhava maior letalidade. Muito usada por bandidos e para acertos de contas em
emboscadas de curta distância. João Reis discute um caso que mostra bem que algumas armas e equipamentos
militares em geral que foram parar nas mãos de gente não militar, no caso três pessoas – 2 pessoas do povo, em
nada envolvidas em negócios militares, mas envolvidas em motins, levantes e resistências políticas: “Victoriano
Joaquim, crioulo carpina, tinha uma arma, uma patrona com quatro cartuchos, cinco balas, uma baioneta, um
cinturão; Josefa, preta jeje, guardava em casa uma baioneta e dois cinturões; e um cabo, cujo nome sequer se
sabia, corneta de um batalhão de milicianos (2ª linha), com quem foram encontrados um cinturão, uma baioneta,
tudo material do exército de 1ª linha)”. REIS... Op. Cit., 2012, p. 293.
156
A.N. Ministério da Justiça, IJ1 706. Salvador.
157
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juizes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430, fls. 209. Jacobina, 30 de junho de 1836. De Manoel José Espinola,
Juiz de Direito, para presidente da província.
59

e que utilizada a tropa de seu comando então não responderia pelos estragos que
aparecessem”158, já que

as guardas aquartelados haviam se ausentado levando os armamentos e


cartuchames, e que por esse motivo não podia assegurar a entrada feliz e
franca como desejavam os honrados habitantes, cuja informação parece ter
utilizado porque então foram queimados os matos pela estrada, convieram
todas as cautelas na entrada das forças da legalidade159.

Antes deste depoimento, no mesmo documento, afirma-se ter sido a entrada dos
rebeldes na vila bem sucedida através de um disfarce realizado por soldados e oficiais que
simularam uma ação voltada para recrutar e prender criminosos nas redondezas da mesma.
Tendo recebido ordens para levar um destacamento “de Guarda Nacional nesta vila para
manter o sossego público, o contrário aconteceu”160, e este destacamento se converteu no
baluarte da sedição e no único cerco rompido dos sabinos para fora de Salvador.
Para nós, por hora, importa notar a debandada de armas e cartuchos por soldados da
Guarda Nacional e ressaltar que esses mesmos cartuchos e armas que se voltaram contra o
Estado – após serem dispersados em Feira de Santana e se refugiarem nas serras da Pedra
d’Água e Serra Dura – poderiam também ser encontrados em outras ações armadas realizadas
por homens famintos, com medo, cansados e com sede, que poderiam fazer de tudo para
aplacar tais condições. Muitos rebeldes foram encontrados nos matos e campos das
redondezas, sendo que os mais “incautos ainda mantinham fuga” 161, enquanto outros se
entregaram e passaram a servir ao lado das forças legalistas como voluntários. A presença dos
rebeldes gerou uma reação entre a população, que se uniu às tropas que os caçavam: “os
lavradores e pacíficos habitantes se viram na necessidade de [se] unirem [à] tropa que Vossa
Excelência mandar estacionar por terem justos receios de suas vidas e fortunas, continuando
os grupos de amotinadores pelos atos refugiados” 162.
Provavelmente o peso de outras experiências, nas quais o recôncavo e suas saídas
para o sertão (a exemplo de São Gonçalo e Feira de Santana) se encheram de desertores
belicosos convertidos em salteadores que muitas vezes depredavam, roubavam e matavam no

158
APB. Manuscritos. Seção Colonial e Provincial. Corres. Câmara de vereadores de Feira de Santana. Maço
1309. 17 de janeiro de 1838. Pg/fl: 01. João Chrisóstosomo Correia, Luis José pinto se Sampaio, Francisco da
Silva Moraes, Antônio Neves, Raimundo da silva Pinto, Joaquim José Pedreira Mangabeira para Antonio Pereira
Barreto Pedro, Presidente da Província. Feira de Santana.
159
Idem.
160
Idem.
161
Idem.
162
Idem.
60

entorno das propriedades dos homens livres e pobres, deve ter sido decisivo para engrossar
preventivamente o caldo da repressão.
Alguns meses depois, ainda em consequência da “demandada” dos revoltosos
(sabinos) da Vila de Feira de Santana, o juiz de direito colocou uma força de 16 (ou 26)
homens a cavalo a fim de “bater, dispersar, ou capturar alguns magotes [sinônimo de bando]
que me constavam viver pela estrada do morro do chapéu”163. Queria especialmente prender o
“caudilho”, Manoel José de Souza, que, segundo ele, havia se refugiado na fazenda
Gameleira. Segundo o mesmo juiz, o “resultado desta marcha foi de três miseráveis que
haviam desertado da bandeira da revolta com o armamento que se lhes deu” 164. O Souza,
recebendo avisos da patrulha, teria fugido pela vila do Camisão para se ocultar no Curralinho.
Relatou o juiz que alguns fugidos tinham sido encontrados nas estradas de Coité e concluiu o
documento afirmando que ser um guarda nacional significava isentar-se do serviço, pois
quando eram convocados pelas autoridades não atendiam ao pedido a mando dos seus chefes.
Nenhum dos oficiais comandantes da Guarda Nacional inspirava confiança ao autor do
documento, pois o que ocorria, segundo ele, entre as pessoas era que estariam de
“inteligências com os da Feira de Santana”165, e terminava o documento com a sugestão de
que se retirassem as armas e cartuchos das mãos de algumas companhias.
Em Cachoeira, um quartel de arrecadação de armas apreendidas dos rebeldes e de
outros batalhões patrióticos foi arrombado no início do ano de 1838, aparentemente ainda
durante os conflitos da Sabinada ou logo após o seu fim. Sobre as armas que lá haviam
chegado, os responsáveis por elas assumiam não saber precisar quais eram de batalhões
dissolvidos, quais eram dos rebeldes e muito menos quais foram capturadas em extravios 166.
Essas armas pareciam ser reclamadas por alguns comandantes de tropas que, durante ou após
o levante, queriam fazer uma repartição desse arsenal guardado. O único documento que nos
chegou sobre a redistribuição, sem grandes explicações, relata um cálculo do comandante da
polícia, Thomaz Gomes de Azevedo, indicando que mais de 200 espingardas e mais algumas
patronas haviam de ser entregues ao coronel Jerônimo Vieira. Algumas apresentavam
defeitos, e mais ou menos umas trinta iriam “restritas” ao Juiz de Direito da Comarca do Rio

163
APB. Manuscritos. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 –1885. Maço 2430. Jacobina, 26 de janeiro de 1838. Fls. 288-289. De Juiz de Direito
Angelo Muniz de Ferraz para Antonio Pereira Barreto Pedrosa.
164
Idem.
165
Idem.
166
APB. Manuscritos. Seção Colonial e Provincial. Governo da província: Judiciário - Juízes de Cachoeira. Maço
2273. Cachoeira, 17 de Maio de 1838. De Francisco Xavier Oliveira para Presidente da Província.
61

de Contas. Dez dessas armas foram por ele “tomadas a alguns indivíduos que individualmente
possuíam ‘o título de compradas a nossos soldados’, havendo estes tomado aos rebeldes” 167.
O mercado clandestino de armas preocupava as autoridades, que estavam atentas ao
ir e vir de tais mercadorias pelas inseguras estradas da Bahia, ainda mais naquele contexto em
que armamento significava uma peça fundamental no jogo político. Quando uma remessa de
armas chegou à vila de Pedrão, levada por um homem que, após as devidas averiguações,
conseguiu entregá-las ao Comandante Geral (aproximadamente 200 armas, correiames e
munições), causou estranhezas, pois quando este respondeu sobre o recebido das armas
deixou claro o risco do trânsito delas sem maiores seguranças. Para ele,

sendo a Feira de Santana tal como eu acabo de dizer a vossa excelência (...)
um forte ponto de apoio para os rebeldes que existem nas circunvizinhanças,
e muito principalmente para os do Pedrão, onde paira o dito Marinho, o qual
se correspondendo com o Higino, podem fazer uma perfeita Cabanada,
sobretudo com a grande quantidade de armamento que se tem passado para o
centro, não só pelos diferentes distritos dessa comarca, como pelos das de
Santo Amaro 168.

O comandante teria dado ordens para que fossem tomadas todas as armas e reumas
que passassem por aquela região, “embora digam os seus portadores, que são compradas aos
nossos soldados, que tomaram-nas dos rebeldes”. Importava coibir a generalização de
armamentos nas mãos de uma população ainda não inteiramente catalogada, controlada e
manipulada. Sem falar do temor dos projetos de independências, repúblicas, entre outros, que
ora ou outra podiam aparecer entre senhores ricos e importantes, como Higino Pires
Gomes169.
A vigilância chegou ao ponto de mandar fiscalizar nas estradas e caminhos por onde
as pessoas transitavam malas em que coubessem armas e munições, especialmente após a
ruptura dos cercos pelos rebeldes, que teriam se alojado em Feira de Santana 170.
Feira de Santana se notabilizou pela acolhida aos rebeldes da Sabinada após a
167
Idem. 06 de agosto de 1838. Enviada para presidente da província.
168
APB. Seção Colonial Provincial. Governo da província- Judiciário - Juízes de Cachoeira. Maço 2273.
Cachoeira, 23 de maio de 1838. Para o presidente da província, sem autor.
169
Higino Pires Gomes é figura controversa da história política da Bahia do século XIX. Mesmo estando do lado
dos sabinos em 1837, foi perdoado e ocupou cargos importantes na Bahia nas décadas seguintes. Foi traficante
de escravos e falsificador de moedas, o que sempre lhe rendeu problemas com a polícia e com o Estado. Mesmo
assim, parece nunca ter sido preso, ao contrário, parece ter contado sempre com a benevolência dos homens de
poder.
170
APB. Manuscritos. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6392. Santo
Amaro, 14 de março de 1838. De João José de Moura Magalhães, juiz de direito, para juiz de paz de Montes.
62

pequena ruptura do cerco feita no Recôncavo. Mas essa fenda foi logo fechada, e Feira se
transformou numa ilha rebelde em meio às forças do Estado, o que fez Higino liberar seus
homens de qualquer compromisso com ele e com a causa. Esses homens dipersados
constituíram pequenas comunidades volantes de salteadores das quais até o ano de 1841 têm-
se notícias de suas ações. Mas, antes da dispersão, uma das ações desse agrupamento rebelde
foi o de ter escondido aproximadamente 500 armas171.
Muitas diligências foram feitas para buscar esse armamento, até que o próprio Higino
Pires Gomes, até então um foragido, colaborou com as buscas através de uma negociação
direta com o Juiz de Direito Augusto Novais. Higino ditou o termo da negociação: as armas
seriam entregues ao delegado por envio dele e quem pagaria os custos do transporte seria o
mesmo juiz. O juiz atestou que as armas estavam ruins de tal modo que nem consertos fariam
com que elas tivessem uso172. Durante alguns anos o Governo temeu um levante no interior da
província com base nessas armas.
Muitas armas foram guardadas em diversas casas, cadeias e quartéis. Em alguns
lugares onde havia mais proteção, chegaram ao ponto de ficarem velhas, mas muitas foram
extraviadas pelas “deserções de guardas que levaram as armas”173.
Isto nos parece a demonstração mais inequívoca de que as armas do Estado em
algum momento se voltaram contra ele mesmo. Homens compraram armas das mãos de
soldados, provavelmente desertores ou soldados espertos, que usavam deste artifício para
complementar seus soldos após arrombarem o quartel. Podia também se tratar de armas que
foram para as mãos de salteadores e/ou de grupos armados diversos, que, a mando ou por
livre vontade, decidiram se engajar no exército rebelde. É possível também que se tratasse
apenas de uma justificativa, que aqueles sujeitos entendiam como plausível e aceitável por
algum costume ou frequência naquele tipo de transação, para justificar o fato de se ter em
mãos armas militares de rebeldes. Um artifício para não se comprometer com a causa. De
todo modo, as armas do Estado foram parar em mãos “adversárias”.
Nove anos depois desse acontecimento que tumultuou a Cidade da Bahia, o
recôncavo baiano e as entradas para o sertão, podemos ver pelo relato do presidente da

171
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário - Juízes de Cachoeira. Maço
2273. Cachoeira, 22 de abril de 1838. Para o Presidente da Província.
172
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário - Juízes de Cachoeira.
Maço 2274. Cachoeira, 19 de novembro de 1841. Do juiz de direito, Albino Augusto Novais, para presidente da
província.
173
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-
1846. Maço 2558. Rio de Contas, 28 de julho de 1842. De Francisco José Lisboa, juiz de direito, para Joaquim
José Pinheiro de Vasconcelos, presidente da província.
63

província ao ministro da justiça da época, Nicolau Pereira Campos Vergueiro, as sequelas do


episódio para o descontrole da segurança privada e das propriedades na província. O
presidente, neste documento, lamentava o estado da Guarda Nacional baiana. A guarda não
possuía armamento suficiente, pois parte dele fora quebrado, transformado em clavinote, ou
mesmo extraviado, principalmente depois do sete de novembro de 1837. Além disso, a
Guarda Nacional possuía graves defeitos, os quais discutiremos mais à frente, entre eles a
disciplina precária e o pouco controle que exerciam os comandantes sobre seus subordinados.
Para agravar a situação, o problema da unidade nacional custava caro aos cofres das
províncias: segundo o missivista, mais de mil e oitocentas armas foram remetidas com
recrutas para o Rio Grande do Sul; existiam batalhões que perduravam com apenas um terço
das armas que deveriam estar à disposição; e mesmo assim as raras armas que se tinham eram
“más” e de “diferentes adarmes” (calibre)174.
Fosse pela negociação meramente financeira, como parte de um complemento
extrassalarial175, fosse pela expropriação revolucionária e pelas fugas decorrentes da vitória da
contrarrevolução, ou ainda pela pura e simples deserção, em magotes ou individualmente, o
certo é que as armas do Estado alimentaram várias rebeldias e práticas fora das leis.
Como se sabe até os tempos atuais, nada disto passava desapercebido pelas
autoridades. Se há nesses documentos pistas para esse entendimento, que transparecem
também que se tratava de um problema de difícil solução para as autoridades, num outro
documento fica quase explícita a relação de conivência que se tinha com o desvio e
contrabando de armas do Estado para a posse de autoridades políticas, militares e poderosos
dos vilarejos do interior.
Em setembro de 1839 as notícias que chegavam ao norte da Bahia preocupavam os
governos locais e provinciais. Por conta dos conflitos políticos que assolaram o norte da
província, especialmente nas divisas com Piauí e Pernambuco, as fronteiras constantemente
precisavam de proteção. No Piauí, os rebeldes vinham obtendo vitórias atrás de vitórias e

174
AN. Ministério da Justiça. AI, IJJ¹404. Palácio do Governo da Bahia, 18 de outubro de 1847. De João José de
Moura Magalhães para Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Em 1833 provavelmente já havia tido uma
transferência de armas para mãos de rebeldes, deixando as tropas da nação desguarnecidas. É o que nos sugere a
informação colhida num documento desse ano, em que o Tenente Coronel perguntou ao juiz de paz como ele
devia proceder a frente do pedido de revistar a cadeia de Cachoeira, que parecia haver presos com “armas
ofensivas” dentro delas, se ele mesmo não tinha armas para confrontá-los. Ver: APB. Manuscritos Seção
Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6392. Cachoeira, 09 de setembro de 1833. De
João Francisco Moreira, Tenente Coronel Comandante, para Sebastião Gomes ribeiro Goes, Juiz de paz.
175
Sobre as formas de complementações salariais através da venda ou apropriação para consumo de produtos e
utensílios de trabalhos descaminhados ver: LINEBAUGH, Peter. “Crime e Industrialização: a Grã-Bretanha no
século XVIII”. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio. Crime, violência e poder. São Paulo, Brasiliense. 1983.
64

avançavam em direção ao sul dessa província, ameaçando a Bahia. Em Pilão Arcado parecia
que todas as medidas tinham sido tomadas para conter o avanço dos rebeldes, porém elas
eram consideradas de pouca serventia dado que os comandantes dos batalhões da Guarda
Nacional teriam que fazer tudo o que pudessem para vencer a dificuldade de montar corpos e
até mesmo de adquirir armamentos. Uma das soluções propostas para atacar o problema das
armas foi o de se “suprir e remediar com o que existe em mãos de particulares extraviadas dos
depósitos públicos, o qual pode repentinamente ser apreendido como permite o art. 211 do
Código Criminal”176. Em outro documento177 sobre o mesmo assunto, pedia-se que se
prendesse qualquer pessoa que espalhasse notícias sobre o levante do Maranhão e do Piauí,
bem como que se colocassem destacamentos em todos os lugares fronteiriços, impedindo
qualquer enviado dos rebeldes para verificar a situação da província. Além disso, sugeria-se
que se averiguassem todos os passaportes, documentos, e que se prendessem aqueles que não
estivessem com eles em mãos. O mesmo deveria ser feito com aqueles que pretendiam ir em
direção à província do Piauí. Ao fim, autorizava-se aquela “Guarda a tomada das armas
nacionais, vulgarmente chamadas de reimas ainda mesmo que estejam cortadas”178.

Figura 4: Bacamarte com o cano cerrado para facilitar o movimento e evitar o engasgue da pólvora
e do chumbo na deflegração do tiro. Fonte:
https://l.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fwww.ehow.com.br%2Fdeixar-cano-espingarda-curto-
como_46517%2F&h=ATNHMflN2oitYFx1eD21c03Oj_zEycxBIMqOtC-9ogoG5x-VTO-
EiVkmhMjEzoKBbq5JN5WemLxLXE0mg96czwThKxNQrWx0KYI8WCzci4ozumfnfw3xbcInxzIg-

176
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 09 de setembro de 1839. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, para Antonio
Marianni, Coronel da legião desta comarca; Idem. para Juiz de paz da freguesia de santo Antonio do Pilão
Arcado. O parágrafo citado do Código Criminal é: “2º Nos casos, em que na conformidade das leis se devem
proceder à prisão dos delinquentes; à busca, ou apreensão de objetos roubados, furtados, ou havidos por meios
criminosos; à investigação de instrumentos, ou vestígios de delito, ou de contrabandos, e à penhora, ou sequestro
de bens, que se ocultam, ou negam”. Ver em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-
1830.htm. Acessado em 10/11/205.
177
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Pilão Arcado, 15 de setembro de 1839. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, para juiz de paz
da freguesia de Santo Antônio do Pilão Arcado.
178
Idem.
65

SCSQl3HNIJOQjepfJ4fJZlggZZT.

Essas armas, por mais lesivas que pudessem parecer em determinados contextos ao
Estado, em algumas circunstâncias foram muito eficazes em protegê-lo. A demasiada
autonomia que parte da historiografia atribui ao poder local, visto normalmente como um
poder privado, absoluto e acima do Estado, desvia a atenção do fato de que, em diversos
momentos, este poder cumpriu o papel de ser a primeira contenção de rebeldias e de outras
ações contra a propriedade, as pessoas e os negócios, deixando-as como complemento
extralegal e paraoficial do desorganizado exército e das diversas experiências atribuladas de
guardas policiais (municipais, provinciais ou nacionais). Boa parte do poder dos mandões
locais tinha uma relação material e simbólica com as estruturas de poder estatal. Ter o
reconhecimento de uma entidade maior e superior que governa a todos, às vezes
popularmente entendida como divina, como se até mesmo esta entidade o reconhecesse 179,
conferia sentido simbólico àquele poder real exercido pelo dinheiro, pelas armas e pelas
relações familiares. Isto é, oferecia uma justificativa litúrgica, aristocrática, da materialidade
que lhes conferia esse reconhecimento burocrático; afinal, conseguiam institucionalmente
manipular homens, armas, recrutamento e colocar à sua disposição privativa o aparelho de
Estado.
Dezessete anos depois, as armas da luta da Sabinada – desta vez da resistência aos
sabinos – foram utilizadas para criar um grande incêndio na casa do proprietário Joaquim
Ferreira de Brito, no termo de São Gonçalo. O incêndio aconteceu na ocasião em que a casa
deste senhor foi cercada por “uma escolta comandada por Joaquim José de Santana, apelidado
de Batepau”180, quem, ao encontrar dois caixotes de cartuchos e pólvora “pregados”
(imaginamos que estavam fechados), os abriu e os espalhou por toda a casa, “o que deu
ocasião a um incêndio” que vitimou três filhas e dois escravos daquele homem. O mais
importante no episódio é que os cartuchos haviam sido deixados lá pelo juiz de direito,
Manoel Vieira Torta, “desde a Sabinada”, numa ocasião em se dirigia para Feira de Santana.
Por falta de transporte apropriado, o material terminou ficando na casa do proprietário. O juiz

179
Ver em Eric Hobsbawm (Rebeldes Primitivos. Estudos de formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos
XIX e XX. São Paulo: Zahar editores, 1978; e Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2010) um debate que, a despeito
dos seus muitos críticos, parece ser bastante pertinente sobre a relação dos grupos sociais subalternos com as
autoridades. A existência de uma crença no poder divino das autoridades, de um rei justo e sobre os patamares
costumeiros de dominação social tolerável pela cultura subalterna e os limites para a insurgência.
180
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. São Gonçalo dos Campos, 01 de agosto de 1854. De Luiz Machado da Silva, Juiz de Paz, para
Tibério Moncorvo Lima, vice-presidente da Província.
66

de paz, autor do documento, parecia muito preocupado em afirmar, por diversas vezes, que as
caixas estavam lacradas, como querendo salientar que Joaquim Ferreira apenas cumpria seu
dever e não tirava proveito ilícito do armamento ali depositado, como também não os vendia
na clandestinidade. Mas importa ressaltar que os restos de guerra, espalhados aqui e acolá,
mais uma vez estavam presentes nos conflitos entre grupos armados contra as autoridades, as
propriedades ou “simplesmente” contra a vida das pessoas181.
Ao fim da primeira metade do século XIX, findadas algumas rebeliões, mas com o
cheiro de pólvora ainda no ar, o senhor Sílvio, certamente um pseudônimo, escreveu para um
jornal uma carta direcionada a um amigo seu, sem nome, explicando-lhe um plano de
recrutamento. Antes de tecer inúmeras críticas aos liberais, que pregavam a igualdade, mas
submetiam os soldados às piores explorações e a uma vida pior que a de criminosos sem
liberdade alguma, aproveitou para palpitar sobre os motivos das desconfianças dos governos
com os militares, dentre eles o fato de as armas se voltarem contra si nos contextos bélicos
pelos quais passava o Brasil:

As execrandas revoltas têm trazido mais esse atrocíssimo mal de fazer do


homem soldado um indivíduo sem pátria, sem parentes, sem direitos sociais,
finalmente sem coração, porque aqueles mesmos, a quem a força militar
eleva pelo meio das armas revoltadas, são os que depois receiam dele, e
procuram, por conseguinte todos os meios de a reduzirem a simples
máquina, somente manejável ao seu aceno e direção 182 (grifos do autor).

Se a deserção com as armas do Estado e as condições deploráveis de trabalho – sem


soldos, “etapes”, sofrendo a férrea disciplina militar – transformavam os soldados do exército,
fossem de primeira ou segunda linha, em potenciais problemas para a ordem e a segurança
individual e da propriedade, a tentativa de construir uma guarda de feições civis, de cidadãos
armados, não resolveu plenamente a situação. Ao contrário, politizou ainda mais as
contradições de seu tempo.
A Guarda Nacional, exatamente por se compor de cidadãos, isto é, pessoas com
rendimentos que as habilitavam a participar em determinados pleitos eleitorais, como votantes
e votados, rapidamente se transformou em parte importantíssima da relação de mando e poder
político armado.

181
Idem em relação às citações de todo o parágrafo.
182
BN Hemeroteca. SILVIO. O Mercantil. 18 de julho de 1851. Sexta feira, ano VIII. Nº157, p. 02.
67

Abundam nos documentos os casos de comandantes de batalhões em clara disputa


com poderes representativos dos governos centrais (provincial e nacional) e locais, algumas
vezes com seus próprios oficiais. As guardas eram compostas de um alistamento que trazia
para as fileiras dessa instituição muitos agregados, compadres e amigos dos comandantes. A
consequência disso, principalmente no interior da província, era a incidência de soldados
agitados, desobedientes e insubordinados, usando do poder público para fins privados.
Em alguns lugares, especialmente nas chamadas vilas do centro da província, a
guarda era muito mal organizada, padecendo de todos os tipos de necessidades. O governo
parecia desconfiar dos senhores/comandantes que regiam os batalhões, afinal, esta era uma
região tradicional de conflito entre senhores de vilas importantes, e a Guarda Nacional e
outras forças policiais costumavam ser utilizadas nesse território para fazer a guerra civil
sertaneja, a guerra entre famílias183. Em uma troca de correspondências com a Corte, o
Presidente da província, contestando a decisão do Ministério da Justiça, responsável pela
fiscalização das guardas policiais e nacionais, decidiu por não pagar, apesar da ordem
recebida, aquilo que lhe era pedido pelos distritos, incluindo compras de armas, cartuchos e
fardas. Alegava na defesa de seu ponto de vista não haver condições financeiras de atender a
tantos pedidos e, ao mesmo tempo, saber que o funcionamento das guardas policias e
nacionais no sertão da província “tinha muitas falhas”184.
O presidente provavelmente não quis dar nomes, nem dizer diretamente em quais
lugares e situações isso ocorria, haja vista as redes políticas de via dupla entre mandatários
sertanejos e governos litorâneos. Havia uma grita geral e contínua das classes senhorias e de
seus aparelhos de poder militar para o investimento em recrutamento e o envio de mais
soldados para suas comarcas e vilas. Era com essas armas e com esses soldados que muitos
dos senhores abasteciam seus exércitos “privados”, colocando-os em luta contra “partidos
rebeldes”, “sediciosos”, “anarquistas” e “facinorosos”. Em alguns casos esse tipo de pedido
não passava de dissidências por mais poder local de controle das verbas públicas e influência
militar, que em nada contrariava os desígnios vindos de cima.
Seus usos e abusos eram tamanhos que, em alguns lugares e em determinados
contextos, sobretudo contextos de lutas entre famílias (algumas das quais chegaram a durar

183
Ver, por exemplo, o registro em documento de um reclamo do presidente da província alegando não ter e não
conseguir fazer o censo da guarda nacional, devido a tradicional desorganização das vilas do centro da província.
A. N. Série Ministério da Justiça, AI. IJ¹400. Palácio do governo da Bahia. 12 de junho de 1844. Presidente da
província, Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos.
184
A.N. Ministério da Justiça. AI, IJ¹400. Cidade da Bahia, 24 de outubro de 1842. De Joaquim José Pinheiro de
Vasconcelos, governador da província; Idem. 20 de outubro de 1842. De Antonio Simões as Silva, Chefe de
polícia para o governador da província.
68

mais de uma década), os recrutados, ou aqueles em condições para tal, optavam por serem
recrutados para a Marinha, particularmente conhecida pelo seu maltrato aos marinheiros e
pelas condições insalubres para quem permanecia muito tempo embarcado, submetendo-se à
umidade e a uma vida quase de prisão, conforme se pode observar em uma fonte sobre
Jaguaripe de 1855, assinada por dois tenentes-coronéis da região185. Obviamente, muitos
homens fugiam e morriam nessas contendas. Além do mais, alguns agrupamentos de fora da
lei eram absurdamente maiores que as tropas e forças colocadas em seus encalços. Na maioria
das vezes, estas contavam apenas com o fator surpresa para obter o seu fim, resultando daí
muitas mortes e poucas prisões, pois atiravam antes de perguntar. Por isso os homens fugiam
da guarda, e se pedia muitos mais deles (eram recrutados) para morrerem no front de luta das
classes senhorias, fossem elas “saquaremas” ou dissidências.
Também por isso alguns desses homens resistiam em modalidades quase grevistas ao
se recusarem a desempenhar seus papéis por falta de soldo. Arriscavam a vida em nome de
um Estado que não poucas vezes não lhes pagava, não lhes vestia, não os alimentava e nem se
importava que morressem tais quais os que viviam à margem da lei. Recusavam-se a atender à
convocação dos seus superiores, fugindo para os matos, para a casa de padrinhos importantes
ou simplesmente recusavam-se com base nos códigos da guarda.
O juiz municipal de Vila da Barra confrontou-se com uma situação deste tipo.
Segundo ele, a Guarda Nacional parou de atender ao seu chamado por falta de soldo,
deixando assim a situação na região bastante tensa, pois a quantidade de tropa da guarda
policial era insuficiente para policiar a região de Santo Inácio (isto aconteceu depois da lei
que reduziu as tropas em 1842), de recente exploração de minérios, sobretudo pela
necessidade de se fazerem buscas e patrulhas em serras e matos distantes186. Sem o auxílio da
guarda nacional aconteceu aquilo que ele temia: uma série de assassinatos e roubos. Deste

185
A.N. Ministério do Interior, AZ, IXM 108 (Intendência da Marinha). Jaguaripe, quartel do 19º batalhão, 10 de
fevereiro de 1855. Fls.49. Do Tenente Coronel Comandante Joaquim José da Silva Galvão e tenente coronel
Theodoro José da Silva Santos. Uma série de documentos e cópia de documentos dirigidos ao governo central
sobre a possibilidade ou não de se dar dispensa a homens alistados na segunda linha para ocuparem o cargo de
inspetor de quarteirão, nomeados pelos juízes de Paz, mostra que as alternativas institucionais para se refugiarem
dos alistamentos e ou recrutamento era prática comum desde antes da Guarda Nacional. No caso desses
documentos, a reclamação se direciona à polêmica função de Juiz de paz, concentradora de muitas prerrogativas
jurídicas, policiais e políticas. Alegava alguns documentos a dificuldade de recrutamento depois da lei de 1827
que criou esse cargo. Ver: A.N. Ministério da Justiça AI, IJ¹1076. Salvador, 09 de outubro de 1828. Manoel
Ignácio da Cunha de Menezes, presidente da província; Idem. 30 de setembro de 1828; Idem. 1º de outubro de
1828. De José de Sá Bithencourt Camara, Vice-presidente da província; Idem. 05 de outubro de 1828. De José
Gordilho de Barbuda.
186
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra. 28 de novembro de 1841. De Sergio Martiniano da Costa, juiz municipal, para
Thomaz Xavier Garcia d’Almeida.
69

modo, como ele continuou a informar, outros “cidadãos inteligentes e civilizados” iriam
embora dali, deixando a vila como uma “aldeia de selvagens” pela falta de segurança
individual187.
Em outros casos a situação poderia parecer mais um lockout. O juiz de direito da vila
da Barra negava o reforço de 10 homens pedido pelo juiz municipal de Chique-Chique. Ele
informava ao presidente da província que a negativa ao juiz municipal se dera porque os
guardas nacionais daquela comarca estavam sem pagamento de soldo desde o período anterior
ao daquele presidente de província e finalizava afirmando que não trabalham as pessoas que
não recebem soldo. É preciso dizer que nessa região da comarca do Rio de São Francisco, em
que estavam as vilas da Barra e de Chique-Chique, aconteciam muitos conflitos armados entre
seus “potentados” e seus “jagunços”. A negativa neste caso pode ser um pêndulo para um dos
lados das várias guerras civis travadas na região nas décadas de 30 e 40 do século XIX 188 ou
mesmo o reconhecimento de um movimento deste tipo – por parte do juiz de direito –
encetado pelo juiz municipal. Não obstante, ao ampliar a dimensão dos seus distúrbios, essa
autoridade poderia tentar prevenir as autoridades locais da evidência de que um soldado não
pago poderia se tornar mais perigoso do que o habitual.
Doze anos depois, o delegado João Lustosa Paranaguá escreveu que muito
dificilmente poderia reunir a força requisitada para algumas tarefas pedidas pelo presidente da
província, dado o grau de

desorganização em que se acha a Guarda Nacional, sendo preciso que


fornecesse o batalhão de Muritiba, assim, pois faltando a força de polícia
para o serviço ordinário da guarnição e não sendo possível que para esse
serviço no estado atual das coisas seja chamada diariamente a Guarda
Nacional observando-se a escala na ordem de serviço 189.

Por conta dos levantes no Piauí, já citados aqui, para onde acorreram muitos soldados
baianos devido à circulação de “facinorosos” naquelas fronteiras, pediu o juiz de direito da

187
Idem. 10 de fevereiro de 1842.
188
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra. 22 de dezembro de 1837. De José de Souza (ou silva) Rabello, juiz de direito interino,
para Antonio Pereira Barreto Pedroso, presidente da província.
189
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial: Polícia - Correspondência de autoridades policiais. Maço
2990. Cachoeira, 17 de janeiro de 1853. Pg/fl: 01, 2, 3. De João Lustosa Paranaguá.
70

vila da Barra que fosse retirada a tropa destacada na fronteira com Paranaguá, pois os riscos
de uma tropa sem soldo nem etape poderiam ser fatais para o sossego público 190.
Em 1854, ao fim do recorte cronológico desta pesquisa, o delegado da vila de
Itapicurú escreveu um texto bastante honesto sobre o estado da tropa que deveria combater o
crime, proteger a população e a propriedade dos baianos:

Chamo novamente a atenção de Vossa Excelência para o deplorável estado


da companhia, ou do antro! Os soldados dos Destacamentos andam todos
mendigando pão para puderem se vestir. E assim que serviços poderá prestar
uma tal polícia, ou que melhor se poderá se servir hum tal desconcerto? E
não será por esse modo as instruções do governo de 27, 28 de Novembro de
1852 um joguete de companhia? De que serve a lei quando se não há
respeito? Nem sempre ilustríssimos senhores Delegados nestes miseráveis
lugares estão munidos (...) e estando eles 2, 3 meses, como tem acontecido,
sem soldo qual não será o estado de relaxamento e de penúria?191

O “antro” nada poderia fazer caso fosse impelido a agir. E, se fosse, muito
provavelmente os soldados se recusariam a fazê-lo porque simplesmente não dispunham de
condições para tal. Eis um exemplo das tropas baianas que, em determinados lugares, eram
responsáveis pela segurança.
A Guarda Nacional, pela sua recusa, pela sua politização e debilidade organizativa,
em diversos lugares exigiu que outra instituição, normalmente as Guardas Policiais e/ou
municipais192, lhe fizesse um complemento ou lhe servisse como um contrapeso armado e
legal. Isto gerou ocasiões em que elas terminaram por se confrontar.
Em Santo Amaro, no mês de maio de 1846, os atritos frequentes entre a guarda
policial e a população, e a necessária intervenção da Guarda Nacional na resolução desses

190
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 28 de julho de 1840. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, Thomaz Xavier
Garcia de Almeida, presidente da província.
191
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência de autoridades polícias. Maço 2990.
Delegacia do Itapicuru, 04 de abril de 1854. Pg/fl: 01, 02. Delegado Francisco (...).
192
Foram criadas em 1831, inicialmente no Rio de Janeiro, mas depois em todas as províncias. Era uma resposta
para acudir a segurança dos distritos, sob controle do juiz de paz, enquanto se organizava a Guarda Nacional. A
incorporação a ela podia ser através de alistamento voluntário de membros, sem antecedentes criminais, e através
da comprovação de determinada renda, mas não atingindo o contingente necessário, poderia ser promovido o
recrutamento forçado. Essa foi a principal forma de acesso ao serviço da Guarda. Ver: SILVA, Wellington
Barbosa da. Entre a Liturgia e o Salário. A formação dos Aparatos Policiais no Recife do Século XIX. Jundiaí:
Paco Editorial, 2014, p. 57-70. Na Bahia ela funcionou mais especificamente a partir de 5 de junho de 1831.
Após o ato institucional de 1834 a municipalidade perde certa força e essas guardas vão sofrer arranjos até se
transformarem numa polícia mais centralizada sob a fiscalização do chefe de polícia e depois dos delegados.
MATTOSO... Op. Cit., p. 243-246.
71

problemas, gerou a prisão de todo o destacamento policial colocado naquela vila. Foram
presos dentro do quartel com a retirada de suas armas pela Guarda Nacional. O motivo da
prisão do destacamento foi um pequeno desentendimento entre sargentos de ambas as forças.
Um por prender sem maiores cuidados um caixeiro que andava com um punhal nos arredores
do quartel, e o outro por não cumprir a ordem de prisão do primeiro e soltar o caixeiro,
levando a um acirrado teste e medição de forças por parte de ambos e de suas respectivas
instituições. Após a prisão do sargento do destacamento policial, surgiu a notícia,
aparentemente difundida pelo sargento da Guarda Nacional, de que o destacamento estaria
sublevado e de armas em mãos para promover um conflito entre as forças e retirar o sargento
da prisão.
A presença do chefe de polícia, que rapidamente se deslocou para o local, resultou
num relatório em que o próprio registrou não haver nenhuma sublevação da tropa e a
aceitação pacífica da tomada das armas pela Guarda Nacional, além da afirmação de ter dado
liberdade ao sargento do destacamento. O chefe de polícia relatou a rixa que vinha se
acirrando entre as autoridades de ambas as forças e consequentemente entre seus
subordinados, decidindo-se pela retirada do destacamento de polícia da região de Santo
Amaro, que já tinha feito muitas querelas com a Guarda Nacional e com muitas outras
pessoas ali residentes. Segundo ele, algumas pessoas interessadas naquela situação,
percebendo o conflito, criavam a todo instante motivos e pretextos para a desordem. Esperava
ele que a medida servisse “para manter o necessário sossego, visto que pessoas mal
intencionadas nutrem esperanças de tirar algum lucro da desarmonia entre os habitantes
daquela cidade”193.
A Guarda Municipal era um grande problema para a autoridade central, na mesma
medida em que era uma solução para tentar dar resposta a situações em que a Guarda
Nacional fazia corpo mole ou, simplesmente, se recusava a cumprir as ordens. Era
basicamente uma guarda de patrulha policial que era usada para tentar responder aos
pequenos crimes feitos nas localidades. Apesar de ter pouca projeção nos estudos dos
historiadores, foi importante para o combate aos banditismos, quando também não entrou nos
capítulos do próprio banditismo.
Por apresentar os mesmos defeitos que se seguiram aos da Guarda Nacional,
principalmente o de se converter em objeto político, com o agravante de que o recrutamento

193
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹402. Palácio do Governo da Bahia, 08 de maio de 1846. De Francisco
d’Andrea para Paulino Limpo de Abreu ministro da justiça; Idem, 14 de maio de 1846; Idem, 13 de maio de
1846; Idem, secretaria de policia para presidência da província.
72

para essa força era feito de modo mais desleixado e mais suscetível à penetração de homens
considerados perigosos, jagunços e “vadios”, foi necessário reduzir a sua força, da mesma
forma que fez o Império com o exército. Em 1842, houve uma redução de quatro soldados por
delegado, como impunha a lei de 11 de abril de 1842, deixando delegados e juízes municipais
completamente desarmados frente aos fora da lei e sem a capacidade, quando era o caso, de
rivalizar em armas com o poder de mando dos oficiais/senhores de algumas localidades. Sem
falar nas atribuições que continuamente os guardas nacionais se recusavam a fazer, como o
patrulhamento de cadeias, transferência de presos, entre outras coisas.
A ausência dos guardas policiais podia comprometer ainda mais a capacidade do
poder do Estado de realizar suas funções. Era o que parecia fazer crer o documento do juiz
municipal de Rio de Contas, enviado para a presidência da província em 29 de outubro de
1842194. Para aquele juiz, a diminuição da tropa era um “passo para alimentar a perpetração de
crimes”, pois, numa comarca que distava oitenta léguas da capital, com treze subdelegacias, a
uma distância de “vinte, trinta, quarenta léguas da vila” e que “possui uma cadeia com um
número não pequeno de presos”, com “muitos criminosos de morte”, seria impossível garantir
o policiamento com apenas quatro soldados195.
A guarda policial sofria, portanto, dos mesmos males que todas as outras196. A sua
ausência era um problema, afinal parte da segurança pública foi colocada à sua disposição,
mas, ao mesmo tempo, a sua existência, de tão precária, pouco influía na ordem e no
patrulhamento. Às vezes podia virar uma dor de cabeça para o poder provincial, pois com ela
se armavam algumas autoridades não controladas pelo Estado. Em 1845, por exemplo, a
guarda foi considerada pelo presidente da província da Bahia como “corpos de paisanos
armados sem subordinação, e sem disciplinas [que] não podem servir ao serviço público” 197.
Segundo ele, ninguém sabia “qual [era] o serviço, que elas presta[vam], porque não tem feito
nem ao menos as guardas das cadeias, ou evitado a fuga dos presos. É coisa da última

194
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-
1846. Maço 2558. Rio de Contas, 29 de outubro de 1842. Herculano Antonio Pereira da Cunha, uiz municipal e
de orfãos e delegado do termo, para Joaquim José de Vasconcelos.
195
Idem.
196
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 26 de julho de 1838. De Francisco José Telles, juiz de paz, para Thomaz Garcia de
Almeida, presidente da província. Até os problemas que dizem respeito a fardamento, pagamento de soldos,
entre outras condições materiais de sobrevivência. Em 1838, por exemplo, um juiz de paz empossado relatou que
não conseguia tirar as guardas da policia para realizar nenhuma ação, fora ou no interior da vila, pois que eles
estavam a cair nas ruas de miseráveis e a mendigar para se manterem. Pede providências ou “qualquer” quantia
de dinheiro para pagar algum soldo àqueles homens.
197
Relatório presidente da Província 1828 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 27.
73

urgência acabar já com este engano, e tomar outras medidas” 198. Propôs ele que elas se
centralizassem em pontos específicos e estratégicos, definidos pelo poder provincial, em
“lugar de se manter um pequeno destacamento em cada Comarca”199. Assim, ficariam menos
suscetíveis ao poder local que os empregava como “ordenanças de ostentação” e agiriam com
maior celeridade nas “remessas de presos que tiverem de enviar, sem que seja preciso terem
um ano inteiro em ociosidade 6 ou 8 homens para lhe deitarem a perder uma, ou outra
diligência, que intentem”200. Uma maior quantidade de homens a cada período se moveria
para um ou outro polo estratégico, ficando mais tempo em movimento e submetida a muitas
autoridades diferentes, evitando seu uso particular e o parco desempenho de poucos gatos
pingados espalhados por tantas comarcas201.
Em 1847 o relatório era conclusivo quanto à temeridade da organização policial.
“Tem a experiência mais de uma vez mostrado o defeito da desorganização atual do corpo de
polícia. Muitos delegados [se] acham [na] impossibilidade de engajar nos termos respectivos,
pessoas aptas para servirem de guardas policiais”202, pois não podem “convir de maneira
alguma armar paisanos, e conservá-los assim armados sem disciplina no meio da população
pacífica”203; “muitos hão de ser os abusos e as relaxações nos serviços”. Para acirrar o
problema, a “Guarda Nacional de fora da capital ainda se acha no deplorável estado de
desorganização que vos tem relatado meus antecessores” 204, especialmente “fora de Salvador,
como Santo Amaro, Cachoeira, Nazaré, Maragogipe, Rio de Contas e Caetité, não estariam
em condições de manter a quantidade de recrutados na forma da lei”205.
No relatório de 1849 ela foi assim definida pelo presidente da província: “não tenho
boas informações dos estados das polícias locais, em muitos lugares são antes criaturas de

198
Idem, p. 28.
199
Idem.
200
Idem.
201
Idem, p. 29. Até onde sei essa proposta não foi aprovada, pois nos anos seguintes mesmas queixas seguiram.
202
Relatório presidente da Província 1847 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 27. Idem, p. 10 e 11.
Sobre a Guarda Nacional para o ano seguinte o parecer parecia ser inalterado: “A guarda nacional, criada para
fins tão importantes, que os descritos em sua lei orgânica, acha-se nessa província em péssimo estado. Em
Itapicuru, conforme informa o respectivo Comandante Superior, não existe um só batalhão (ilegível). Na vila da
Barra existe um batalhão com alguma organização e em Santo Amaro, segundo informa o Juiz Municipal, apenas
três companhias fazem o serviço (...) achando-se, como ele diz a Guarda Nacional em perfeito abandono. O que
foi dito vale para quase todos os lugares”. Ver: Relatório presidente da Província 1848 (Bahia). In:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do Center for Research Libraries. Global Resources
Networks. Acessado em 22/11/2013.
203
Idem.
204
Idem.
205
Idem.
74

certas influências do que soldados da província que os sustenta; e vivem na maior


relaxação”206.
Fosse pela confusão criada devido às estruturas militares e de repressão recém
nascidas, mas mal disfarçadas num velho corpo colonial; pela falta de bons equipamentos de
trabalho; pela falta de soldos; pelos constantes conflitos e usos políticos dentro da caserna;
pelo contrabando das armas; o que fica claro é que as possibilidades de viver às margens da
lei foram deveras ampliadas para as pessoas, com múltiplos motivos, interessadas e atentas
em agir nas brechas abertas pela desorganização militar do Brasil e da Bahia na primeira
metade do século XIX. Viver no “crime” e para o “crime”, seja no sertão ou no litoral,
significava levar em consideração a capacidade de enfrentar seus inimigos e de compor
alianças. Conhecer a capacidade de um e outro lado no momento do confronto bélico,
entender as possibilidades de agir sem ser capturado, de fazer a vendeta sem sequer ser
incomodado, utilizar territórios onde a corrupção ou falta de entendimento de oficiais e tropas
que o controlam é confortante, ter ciência de onde a população tinha ojeriza dos
destacamentos para compor alianças e conseguir acoitadores eram elementos fundamentais
para os bandidos.
Com isso estamos tentando mostrar que em alguns lugares, principalmente nas vilas
do centro da província, como foi destacado aqui, condições políticas e materiais
proporcionaram uma ampla margem para a ação dos que viviam fora da lei. Em outros lugares
o momento histórico proporcionou também esta margem de ação, mesmo no litoral mais bem
patrulhado e fiscalizado pela política e pela presença do Estado.

206
Relatório presidente da Província 1849 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 08.
75

Capítulo 2
Deserção: armas, fardas e crimes

Um dos primeiros sintomas de que a guerra civil baiana estava prestes a acontecer
foram as contínuas deserções ou insubordinações de brasileiros das tropas comandadas por
oficiais portugueses. Em julho de 1822 a deserção era narrada de forma patriótica pelos
brasileiros ao governo que se gestava no Rio de Janeiro: “tão grandes os desejos que os povos
têm de que V. A. R governe o Brasil que ansiosamente as tropas desarmadas têm abandonado
esta província e os bravos caçadores arrombando a prisão fugiram levando armamento só a
fim de darem a vida por V. A. R” 207.
Mas as deserções das tropas portuguesas, exaltadas pelo patrotismo, também
ocorriam nas tropas brasileiras. Contudo, o que era visto nas tropas dos inimigos como
positivo, nas tropas do Brasil se tornava, além de um ato antipatriótico, um crime que
potencialmente trazia dores de cabeça para os comandantes. Os desertores dispersavam,
levando consigo a sensação de uma tropa desorganizada, sem comando, desarmada e sem
propósitos. O Recôncavo se encheu deles. Circulavam de ponta a ponta os territórios, gozando
algumas vezes do fato de terem farda e armas. Os desertores eram perseguidos para serem
presos também por outros motivos que não apenas o da demonstração da desorganização
militar. Eram perseguidos, pois criavam muitas algazarras e incômodos para as populações
dos lugares por onde passavam, das quais normalmente furtavam coisas para viver. Nas
sessões do governo interino foram expedidas, várias vezes, ordens, como as que foram
designadas ao Coronel Comandante Interino de Jaguaripe, Pereira da Costa, para que fizessem
“prender os desertores pertencentes ao seu distrito”208.
No Relatório de 1823 do Conselho Interino de Governo 209, a deserção figurava como
um dos problemas de segurança interna para que o estado de paz pudesse se estabelecer na
província. Dizia que “finalmente com a prisão de muitos desertores, que espargidos pelo
interior da Província, e pavoneadas pela anarquia militar faziam roubos, e toda a casta de
malfeitoria, o Conselho tem a ufania de haver restabelecido, e mantido a Pública

207
A.N. Ministério do Interior AA, IJJ9 329. 06 de julho de 1822. Isso não significa que em período de “paz” não
havia deserções muito grandes nas forças armadas. A Historiadora Kátia Mattoso escreve que em 1808 “20% dos
efetivos da guarnição de Salvador fugiram, em geral para o sertão, em cujo povoamento os desertores acabaram
por desempenhar importante papel”. Op. Cit., p. 225.
208
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636-1. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 01
de março de 1823. Do secretário para o capitão comandante Victor da Silva Torres.
209
Op. Cit, p. 17.
76

seguridade”210. De forma ufanista concluía que “jamais província alguma, recheada de


inimigos internos, e além disso em estado de guerra aberta, foi menos vítima de motins
populares, nem hoje mais pacífica, do que a da Bahia”211.
Um ano depois de finalizada a guerra, o rastro de ameaça à ordem, à propriedade e
aos “homens bons” ainda podia ser acompanhado. Em Novembro de 1824, em uma reunião
de que participaram o

Doutor Juiz de Fora, vereadores, procurador (...) e juntamente as


autoridades eclesiásticas, civis e militares, e cidadãos, que para este ato
foram convocados por ofício e edital do senado da câmara e estando assim
todos reunidos pelo Doutor Presidente 212, [para que um conjunto de]
medidas de segurança pública, com as quais se repelissem quaisquer
insultos que a esta vila, ou seu termo, pudessem fazer, ou os desertores, que
debandados haviam emigrados da capital, quer sós, quer em ajuntamento,
ou quaisquer outras pessoas, porquanto era notório e público, que um
grande número deles vagaram, não só pelo termo, mas ainda nesta vila e
seus arrabaldes, disfarçados em paisanos, ou com insígnias militares (...) 213.

A relação entre crimes e deserção aparece com facilidade na documentação, ainda


que algumas vezes de maneira não explícita. Em São Gonçalo dos Campos, região limítrofe
do recôncavo, o juiz de paz pediu, por recomendação do Vigário, ao presidente da província
mais forças para o distrito que teve sua igreja mais uma vez roubada. Essa tropa deveria
combater os vadios e perturbadores do sossego público, bem como “prender os desertores de
primeira linha dessa cidade [de Cachoeira], que por aqui se acharem refugiados” 214. Em
determinado momento o documento ganha um teor voltado para uma ação de repressão
preventiva por parte das autoridades policiais, sugerindo uma fiscalização dos comandantes e
oficiais de quarteirões para que revistassem a todos, principalmente os “desconhecidos”. O
desconhecido era um inimigo em potencial até que provasse o contrário. Num contexto de
aliança entre desertores, “vadios” e “criminosos”, mais ainda havia a se temer.

210
Idem.
211
Idem.
212
APB. Manuscrito Seção Colonial e provincial. Câmara de vereadores de Cachoeira. Maço 1269. Cachoeira, 15
de novembro de 1824. Pg/fl: 01, 02, 03, 04, 05.
213
Idem.
214
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. São Gonçalo dos Campos, 22 de setembro de 1829. De Juiz de Paz para presidente da Província.
77

A aliança entre desertores e outros grupos sociais foi uma questão que também
enfrentaram as autoridades de outros países da América. Na Argentina215, no contexto das
lutas de independência, Fradkin e Rato demonstram como desertores, bandidos e índios, nas
fronteiras de Buenos Aires, criaram comunidades “heterogéneas, procedentes de regiones muy
diferentes, poco disciplinadas, atravesadas por múltiplas lealdades”216, para praticar crimes e
roubos. Segundo os autores, uma quantidade grande de militares e milicianos desertaram com
armas oficiais e as voltaram contra a segurança pública e privada. Para agravar o problema
das autoridades centrais de Buenos Aires, havia uma tradição de povos indígenas de
“incorporación a sus filas de cautivos y renegados de la sociedad hispano-criolla, y el uso
selectivo e productivo de los saberes que podrían suministrar”217. Nos períodos de guerra essa
heterogeneidade tendia a crescer218.
No contexto Peruano, ao invés dos indígenas, existiu a associação entre militares
milicianos desertores e bandoleiros com os quilombolas. Segundo Hunefeldt 219, os pardos e
negros peruanos, ao menos alguns deles, tinham alguma experiência militar desde o século
XVII, adquirida através de milícias urbanas que faziam um trabalho parecido com o de
polícia. Estas experiências lhes proporcionaram, ao longo dos anos, além da óbvia experiência
militar, a integração social, mesmo que subalterna, dentro de uma hierarquia social demarcada
pela cor. Contudo, os movimentos sociais da população não europeia e não branca foi
demonstrando para as autoridades que em algum momento seria prudente desativar essas
milícias, fontes de constantes instabilidades políticas. Quando essas medidas foram
implementadas em prol de uma força militar mais centralizada, mais nacional, os escravizados
foram obrigados a tomar muitos caminhos diferentes, sendo um deles as “cimarronajes”, que
se ampliaram muito nesse período, afinal, as lutas de

independencia desataron los antiguos lazos de sujeción social, y las bandas


formadas por cimarrones crecieron y en casos aislados llegaron a integrarse

215
FRADKIN, Raúl; RATO, Silvia. Desertores, bandidos e índios em la frontera de Buenos Aires. Secuencia, nº
75 (set-Dez). 2009, p. 10-41.
216
Idem, p. 16.
217
Idem, p. 14.
218
Idem, p. 31. Essa interpretação é, de tal forma, uma crítica ao modelo “culturalista”, mas também uma crítica
à própria interpretação do bandido social de Hobsbawm, já que, com base em tal heterogeneidade, não era
possível verificar uma consciência social camponesa tão autêntica quanto achou Hobsbawm nas “rebeldias
primitivas” da America do Sul. No entanto, demonstrava que a “negociación y el conflito fueron las dos caras de
una misma realidad en estos espacios donde el control del Estado aún no se había firmado” (idem, p. 30.). Os
autores concluem que esse contexto viu, sem precedentes, a quebra da “disciplina social” através de alianças
muito heterogêneas e frutos de “fuertes desestabilización de relações interétnicas”. Idem, p. 37.
219
HÜNEFELDT, Christine. “Cimarrones, bandoleros e milicianos”: 1821. Historica, vol III, nº 2 (dez). 1979.
78

a bandas de un espectro étnico mucho más amplio de bandoleros. Con ello


se convirtieron a lo largo del periodo de lucha en una fuerza consistente, y
peligrosamente autónoma220.

Eram combatentes treinados nas armas, por isso eram disputados pelos lados da
guerra. Mas uma quantidade significativa buscou a deserção, deixando ao seu redor um rastro
grande de bandolerismo através de “asociaciones de fugados, huidos y vagos”221.
Voltando à Bahia oitocentista, em 9 de janeiro de 1825 um tenente coronel escreveu
para o presidente da província:

Remeto a vossa excelência os desertores Manoel da Paixão, da artilharia,


Isidoro Martins, do extinto 3º Batalhão, José Ribeiro, do extinto 1º
Regimento, e além de vários crimes de mortes de que o acusam, e
arrombamento de prisões, é ladrão de estrada: ultimamente foi preso
atacando uma casa para roubar onde o espancaram para assim o pudesse
prender. E se ele achou uma espingarda que conheci ser da nação; cortada
para ficar a maneira de clavina, duas pistolas de alcance, todas carregadas e
uma faca de ponta, aqui tudo fica em meu poder 222.

O documento começa a narrativa sobre os três “criminosos” parecendo fazer menção


a um grupo armado, pois usa do singular para descrever atos de um sujeito não identificado
entre os três. Não é possível identificar se se trata de uma comunidade de desertores fugitivos
voltada para a ação armada, o que acreditamos ser bem provável. De qualquer maneira, ainda
que individualmente, estavam eles agindo em lugares próximos, com modos de operação
idênticos ou parecidos, roubando, furtando e portando muitas armas, uma delas identificada
como da nação, extraviadas para os fins das ações contra as propriedades, a ordem e a vida
das pessoas da nação.
Nesse mesmo ano, o desertor Antônio Roberto, do primeiro batalhão de milícias da
cidade de Cachoeira, “foi capturado com uma ruma carregada”223 andando pelas estradas.
O vai e vem dos desertores era uma das sequelas deixadas pelos persistentes
confrontos dos quais foi palco o Recôncavo baiano na primeira metade do século XIX. Havia
um pavor dos desertores, não equivalente ao pavor das insurreições escravas, mas que
assustava os moradores. Exageravam sua existência, perseguiam-nos, passavam-se descrições

220
Idem, p. 83.
221
Idem, p. 84.
222
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Correspondências Recebidas. Maço 3749. Cachoeira, 09 de
janeiro de 1825. Do Tenente Coronel, (ilegível) Antonio Brandão, para Presidente da Província.
223
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Correspondência de Capitão Mor. 3749. Cachoeira, 02 de
Janeiro de 1825. De Francisco Paes Cardoso da Silva, major comandante interino, para presidente da província.
79

às autoridades, incutia-se o medo na população livre. Disseminavam a suspeita e o controle,


como nesse documento de 1826:

Participo a vossa excelência o que me parece de necessidade e talvez nunca


lembrado exigisse dos corpos militares um mapa dos desertores com suas
competentes notas a fim de se espalhar em ordens por toda Comarca para
capturação dos ditos, visto ser gente bem conhecida pelos seus
procedimentos, e quando mais não seja para exemplar os outros (...) 224.

Em Camamu, ainda em 1826, a população fez uma “representação” para o presidente


da província, que estranhava o fato de o capitão mor permitir a livre circulação de desertores
das tropas de 1ª linha naquelas localidades. O presidente lhe ordenava que prendesse “todos
os ditos desertores que constam do rol junto a sobredita representação e recrutar os que são
paisanos (...) a fim de evitar-se com esta providência as perturbações e insultos de que se
queixam os povos”225.
Em 1827 a deserção ainda era objeto de trabalho e preocupação específica do
presidente da província, que enviava ofícios para as autoridades resolveram o problema.
Afirmava o juiz que não poderia capturar mais desses desertores, pois que eles estariam
“ausentes e espalhados por diversos distritos” 226.
Bem próximo de São Gonçalo, a menos de 10 léguas de distância, no termo de Feira
de Santana, uma patrulha se deparou com quatro homens fortemente armados. “Confessaram
ser todos soldados do batalhão nº 9” que se dirigiam para Feira de Santana depois de terem
evadido da Fortaleza que os rebeldes os haviam mandado guardar. Os rebeldes,
provavelmente descritos por esses soldados, eram militantes das causas federalistas que entre
1828 e 1832 fizeram algumas tentativas de chegar ao poder. Ao que parece pela descrição, os
soldados estavam presos e foram soltos pelos federalistas para que cumprissem a função de
guardar a fortaleza, mas não cumpriram esta tarefa, desertaram do conflito, optando por não
levantar as armas nem para um nem para o outro lado227.

224
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Correspondências Recebidas. Maço 3749. Cachoeira, 31 de
agosto de 1826. De Joaquim José Ribeiro de Magalhães, para, presidente da província.
225
APB. Manuscritos. Seção Colonial e Provincial. Governo da Província, Polícia do Porto. Maço 3497.
Camamu, 1826.
226
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Correspondências Recebidas referentes a desertores. Maço
3749. Cachoeira. 28 de fevereiro de 1828. De Estevão Simões da Silva, capitão Mor, para presidente da
província.
227
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. São Gonçalo, 02 de maio de 1833. De João Pedreira de Couto, Juiz de Paz, para Joaquim José
Pinheiro de Nascimento, presidente da província.
80

Em 1834 o alarme contra os desertores ainda estava em pleno vigor. Escrito por
cinco vereadores da Câmara de Feira de Santana, um documento afirma que havia

chegado a esta vila notícias assustadoras dessa capital, e vendo este senado
que um grande número de desertores tem desembarcado nos diversos pontos
que oferece o rio que o banha, receoso que venha a perigar a tranquilidade
pública, de que por hora agora goza, não somente tem deliberado convocar
os seus concidadãos para com eles tomar medidas capazes de repelir
qualquer insulto, que da parte deles, ou de outros quaisquer se possa recear, e
pretendam fazer228.

O trecho parece ressaltar o entendimento das autoridades de enquadrar no âmbito das


classes perigosas os desertores, quando afirma que elas pretendiam reagir aos insultos
promovidos por eles ou “de outros quaisquer”. Os desertores eram um dos alvos da
maquinaria da ação repressiva preventiva. A presença da ação da deserção liberava a
prevenção com repressão voltada contra “outros quaisquer”, tornando os territórios, sejam
eles rios ou terras, alvo da limpeza em nome da propriedade e dos homens de bens.
Desertar com armas era um problema para as autoridades não apenas pela perda de
armas importantes e preciosas, além de escassas, para a prática da segurança pessoal, da
propriedade ou das fronteiras, mas também porque possibilitava armar grupos de “vadios” e
“facinorosos” que colocavam suas armas à mercê de disputas políticas locais ou à disposição
da formação de comunidades voltadas para as ações fora da lei. É o que podemos ver no caso
de um corneta da Guarda Nacional que desertou com dois rifles com baionetas. Ele
aparentemente tomou o rumo do Rio São Francisco, lugar notório pela prática do jaguncismo,
local de fuga de facinorosos de todos os tipos, onde grupos armados ora ou outra se
refugiavam para retornarem à cena mais fortes e ferozes após o recrutamento por aquelas
regiões229.
A aliança entre desertores e “bandidos” muitas vezes antecedia a deserção. Aliás,
podia ser o impulso para a deserção. Quando quatro presos fugiram com dois guardas da
polícia, encarregados de cuidarem deles, e se evadiram com as armas guardadas na enxovia,

228
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Corres. Câmara de vereadores Feira de Santana. Maço 1309.
03 de novembro de 1834.Pg/fl: 01, 02. De José Ricardo da Costa Dormund, Francisco Paes Cardoso da Silva,
Simão da Rosa, Francisco Antônio Fernando Pereira, José Manoel de Oliveira para o Presidente da Província.
229
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 –1885. Maço 2430. Jacobina, 30 de junho de 1836. De Manoel José Espínola, Juiz de
Direito, para presidente da província.
81

podemos suspeitar afirmativamente dessa sugestão 230. Como vimos, muitos guardas,
sobretudo os recrutados à força, podiam ter um passado bem recente na vida autônoma dos
que viviam das ações armadas, achando ali uma oportunidade de retornar a ela.
Feira de Santana, em 1838, foi palco de desenlaces finais dos sabinos na tentativa de
romper o cerco do recôncavo. Além disso, Feira de Santana foi um local para o qual muitos
soldados foram deslocados, ocorrendo aí uma deserção e uma dispersão bastante acentuada,
fosse para o sertão e seus distritos centrais, fosse para o recôncavo. Nessa região, em 1839,
foi encontrado e preso Manoel Victorino do Espírito Santo, desertor da 1ª linha, com todo o
equipamento de guerra dele e de outros colegas que havia roubado. Depois de ter sido
destacado por Feira, desertou em Cachoeira. Seguiram na deserção, em Cachoeira, mais três
soldados do 7º batalhão da 1º linha. Na retirada soube-se que tinham roubado uma casa em
São Félix231.
Em Pilão Arcado, lugar em que desde a década de 30 até a década de 50 do século
XIX houve uma intensa guerra entre diversas famílias das elites locais, a deserção (quando
havia quem desertar, pois conseguir recrutas nessa região era uma tarefa das mais ingratas)
era muito grande. Chega a nós a notícia de uma deserção seguida do roubo de seis baionetas,
oito patronas e seis cinturões, que deixou metade da guarda policial desarmada. Os recrutas
roubaram ainda 9 rumas na estrada da Bahia, deixando o comandante com 9 guardas
desarmados. Depois, o mesmo Juiz que informava ao chefe de polícia desse roubo, recebeu a
notícia de que mais 10 recrutas desertaram junto com um condenado a galés232.
Mais tarde ficamos sabendo que, na mesma região, mais dois guardas desertaram, e
novamente com armas do governo, pois se pedia a reposição de armas no mesmo documento
que dava conhecimento da fuga para as autoridades233.
Em 1841, na mesma Pilão Arcado, temos a notícia, via ofício para o presidente da
província, de mais três deserções da força expedida para lá. Os desertores eram fuzileiros
armados e fardados234.

230
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 –1885. Maço 2430. Jacobina, 24 de junho de 1838. Fls. 332. De Juiz Municipal José
Emigdio de Figueiredo para presidente da província.
231
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 –1885. Maço 2430. Quartel da Guarda policial de Jacobina. 351. 10 de novembro de
1839. José Ramos de Araújo, sargento da guarda policial.
232
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 03 de abril de 1840. De Francisco José Portela, Alferes Comandante, para Francisco
Pereira Dutra, Juiz de Direito da Comarca.
233
Idem.
82

Havia deserções ainda maiores do que essas relatadas acima. Chegando à Jacobina,
relatou o presidente da província para o ministro que uma tropa teria perdido 40 homens na
deserção. Essas deserções teriam acontecido em Feira de Santana e, segundo o presidente, se
deram por culpa do “gênio da maldade sempre disposto a contrariar as medidas de
providência a ordem pública”235. Esse gênio da maldade, desconfiamos seriamente, era a
tradição oposicionista que persistia na vila de Feira de Santana 236. Provavelmente se tratava
de uma tropa que se deslocava para as vilas do centro da província. Os soldados certamente
sabiam que estavam a caminhar para situações de extrema violência e debilidades materiais de
toda ordem237. Feira de Santana era uma vila que em parte da semana se via tomada por
milhares de pessoas que circulavam pelas suas estradas para se dirigirem à sua grande e
famosa feira de gado (onde se comerciavam muitos outros produtos). É possível que os
soldados tenham-se utilizado desse volume de pessoas e contado com a ajuda de gente
interessada na desmoralização do poder público ou, quem sabe, em ajudar a léguas de
distância alguns dos “partidos” perseguidos pelo governo nas guerras de família.
Outros que vinham de longe e acabavam desertando para tentar um novo rumo na
vida ou quem sabe para voltar aos seus locais de origem eram os soldados das tropas vindas
de outras províncias. Em 1840 se colocou em prática o pedido de apreensão dos desertores da
“companhia de operários engajados” da província de Pernambuco238. A presença desses
batalhões de outras províncias, nesse período, provavelmente se devia aos acontecimentos do
Paranaguá, que deixavam as vilas “desassombradas” com o aumento da “deserção e do
desalento” dos sediciosos que se refugiavam na Bahia em grupos “para destruir a propriedade
dos habitantes dessa comarca”239 (Jacobina), segundo documento escrito pelo juiz de direito.
Apesar de pedir mais reforço de homens para combater esses desgarrados das forças de
combate, o juiz pediu também que seus soldos fossem pagos em dia, pois as autoridades
sabiam como era “perigoso uma força armada, como esta que aqui está em serviço (...) sem
234
APB. Manuscritos Policia Assuntos diversos. Governo da província. Maço 3111. 1841. João Joaquim da Silva,
Presidente da província.
235
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹399. Salvador, 18 de maio de 1840. Para Thomaz Xavier Garcia Almeida.
236
Falaremos mais sobre esse tema em um capítulo desenvolvido mais a frente.
237
Um ofício informando o envio de duas cavalgaduras para a condução de objetos pertencentes às praças que
iriam marchar para Pilão Arcado destaca a deserção de três praças que ainda não haviam sido encontrados. A ida
dos recrutas para essa região parecia causar medo neles, aumentando a deserção dessas tropas para que lá se
dirigiam. Ver em: APB. Manuscritos Juízes de Cachoeira. Governo da província- Judiciário. Cachoeira. Maço
2274. 1844. Antonio Rodrigues Navarro para Presidente da Província.
238
Manuscritos APB. Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 12 de março de 1840. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, Thomaz Xavier
Garcia de Almeida, presidente da província. Não sei precisar porque essa tropa estava na Bahia ou se os
desertores dessa companhia simplesmente para a Bahia se refugiaram.
239
Idem.
83

meios de subsistência”. Pagando esses soldos se evitaria qualquer “desajuizado ou uma


espantosa deserção”240.
Os conflitos entre partidos na região central da Bahia envolveram tantas autoridades
e membros das classes senhoriais, detentores de grande importância e influência, que não era
incomum que as autoridades – aquelas poucas que tentavam manter-se neutras – apelassem ao
presidente da província para que fossem combater em defesa da ordem soldados da capital ou
de outras províncias, o que às vezes era mais fácil dada a distância de Salvador. Mas a
deserção, como dito, provocada pelas dificuldades dessas tropas, era facilitada pelo fato de
elas serem circundadas por vários rios oriundos do São Francisco. Cada afluente e desvio
desse rio era uma estrada hídrica para a fuga. Este parece ser o caso do desertor Carlos de
Oliveira Carvalho, da Companhia de Pedestres da província de Minas, que foi achado
descendo “Rio abaixo”, em uma “canoinha”, próximo a Vila de Urubú 241. Essa rota de fuga
parecia ser comum aos desertores e fora da lei242.
A região norte-central da Bahia de fato era habituada à deserção de suas tropas, tanto
que, para justificar a insubordinação seguida de deserção que aconteceu em Cachoeira, o juiz
municipal fez questão de ressaltar para o presidente da província que, dos nove recrutas
desertados, quatro eram de Sento Sé e outros quatro de Jacobina, sendo apenas um daquele
lugar. Frisou que a guarda daquela comarca era disciplinada e subordinada, certamente
deixando explícita, e reafirmando a caricatura, a diferenciação entre os dois pólos

240
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra. 03 de junho de 1840. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, para Thomaz Xavier
Garcia d’Almeida.
241
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência de autoridades polícias. Maço 2990.
Subdelegacia de Macaúbas, 06 de Novembro de 1854. Pg/fl: 01. Jerônimo Borges de Barros. Delegado e Juiz
municipal do termo de Macaúbas.
242
A relação entre rios e companhias de outras províncias parece importante. Parece que foi também o caso de
Silvano Pereira, guarda policial, que após estar destacado em Feira de Santana, em fevereiro de 1843, evadiu do
serviço das armas junto com a Companhia de Sergipe. Ele foi visto por outro soldado e preso por outro
“companheiro” que já o tinha preso por deserção a pedido do seu comandante. Silvano havia sido visto no
“vapor”, em direção a Nagé, quando foi abordado pelo soldado Antonio Vieira e preso. A ordem do alferes
responsável pela aquela companhia foi para que Silvano fosse entregue a força daquela localidade, para que
fizessem o procedimento. Ao fim do documento o Juiz de direito relata que o desertor fora visto, depois da sua
prisão por Vieira, indo “embarcado”, com a mesma companhia sergipana, em direção ao Sul da Bahia. Parece
que a opção de deserção da guarda policial incluía a possibilidade de fugir daquele espaço, a comarca de
Cachoeira, pelos rios, nem que isso lhe valesse outra vinculação militar, agora por uma companhia “estrangeira”,
mas quem sabe com o intuito da deserção em outros lugares onde fosse menos conhecido por seus
“companheiros” e por uma rota menos populosa. Ver: APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. 2275. 21
de fevereiro de 1841. Pg/fl: 01. Albino Augusto Novaes, juiz de direito interino, para o pres. da Prov. Paulo José
de Melo e Azevedo.
84

civilizacionais existentes, além do estigma sobre o tipo de gente do sertão ou sobre os


desgovernos típicos dessas regiões sertanejas distantes do recôncavo243.
Uma Guarda Nacional disciplinada e ordeira não era o que se encontrava na vila do
Rio de Contas. O juiz de direito alegava que era quase impossível conseguir apoio dessa
instituição e de seus guardas para o cumprimento de suas funções, incluindo a de transporte
dos recrutas e de presos. Quando este veio a conseguir suporte, depois de pedir ajuda
diretamente ao tenente coronel interino, obteve três homens para levar dois recrutados à
Capital, mas no meio do caminho estes mesmos homens os libertaram e fugiram com o
dinheiro do pagamento dos soldos que estava sendo levado para sanar outra dívida. Dizia o
juiz não dispor de guardas municipais para realizar aquele serviço, pois os que havia estavam
empregados em tomar conta das cadeias e das rondas noturnas244. O tenente coronel informa
em outro documento que o valor roubado foi de 13 mil réis e que o destino dos ladrões teria
sido o de Conquista ou de Bom Jesus245. Itinerário não tão comum para esse tipo de fugitivo
que buscava se abrigar nas regiões mais centrais, onde parecia haver mais possibilidades de se
viver fora do encalço das forças repressivas ou de se conseguir abrigo para suas armas, além
de se ter seu trabalho contratado mais facilmente. Num terceiro documento, o tenente da
companhia, cansado de tentar impor sua autoridade, vai buscar recrutas onde lhe parece que
sua autoridade de fato era importante. Avisa que voltaria em alguns dias para sua morada (não
diz onde), onde pretendia, como um bom potentado, arranjar alguns homens para o serviço da
guarda246.
Nesse mesmo ano, o juiz acima mencionado dava conta ao presidente de que
existiam poucas armas usáveis guardadas na vila do Rio de Contas. Ou elas estavam velhas ou
haviam sido extraviadas pelas “deserções de guardas que levaram as armas” 247.
Os indícios de que os desertores encontravam abrigos em grupos armados podem ser
confirmados pelo ataque audacioso de um desses grupos à cadeia da Vila Nova da Rainha,
para onde se dirigiram a fim de libertar um “desertor” de nome Joaquim Gonçalves Valadão –

243
APB. Manuscritos, Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra. 13 de junho de 1841. De Francisco José Telles, juiz municipal interino, José de Melo
Azevedo e Brito, presidente da província Pereira Dutra.
244
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-
1846. Maço 2558. Rio de Contas, 15 de abril de 1842. Francisco José Lisboa para Joaquim José Pinheiro de
Vasconcelos, presidente da província.
245
Idem. 11 de Abril de 1842. De José Manoel do Bonfim para, tenente comandante da 1ª companhia, para
Francisco José Lisboa, juiz de direito.
246
Idem.
247
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-
1846. Maço 2558. Rio de Contas, 28 de julho de 1842. Francisco José Lisboa, juiz de direito, para Joaquim José
Pinheiro de Vasconcelos, presidente da província.
85

assim aparece o motivo da sua prisão, o seu crime – recém-preso pela força policial. O grupo,
além de libertar Joaquim Valadão – momento do qual se aproveitou um escravo que estava
preso para fugir –, roubou seis armas do destacamento (dois dias depois fugiriam mais quinze
“facinorosos” da cadeia de Rio de Contas)248. O tal Valadão devia ser gente importante para
que homens planejassem e se arriscassem para lhe retirar da cadeia. Ou seria apenas
solidariedade de membros de um grupo que levavam em conta sua maior capacidade e poder
de fogo, aproveitando para passar um recado às autoridades? Ambas as respostas podem nos
satisfazer, pois, de fato, o que se constata é que desertores se abrigavam antes ou após a fuga
em comunidades armadas, participando de uma coletividade na qual eram aceitos e
protegidos. De modo diferente, na sociedade civil eles seriam criminalizados, estigmatizados,
fugitivos, acoitados numa fazenda, escondidos. Essas comunidades possibilitavam a essas
pessoas a manutenção de uma vida ativa, “livre”, aberta a escolhas e mais ou menos
autônoma.
O último documento citado afirma que as ações de fuga e deserção pareciam não ter
tido “apoio externo”. Em outro caso, não foi o que pareceu crer o subdelegado de Tucano, que
lançou muitas desconfianças na escolha do juiz em mandar para Salvador um preso, de nome
Braz Francisco de Moura, com dois guardas “estranhamente” escolhidos para a escolta. O que
ele considerou estranho foi o fato dos dois guardas serem da vila para a qual o preso estava
sendo deslocado para ser julgado. A queixa do subdelegado era um lamento posterior à fuga
do preso249. Mesmo protestando depois, o subdelegado devia saber que os laços entre guardas
recrutados, autoridades locais e grupos (ou indivíduos) armados eram uma combinação tensa
no universo social dos sertões. Os guardas e as gentes livres e pobres do sertão, que viviam ou
não da prática de furtos, crimes encomendados, do salteamento, entre outros delitos,
conviviam num universo muito próximo. Estavam em alguns casos submetidos a um mesmo
patrocinador ou patrão, às vezes às mesmas relações de reciprocidade.

248
A. N. Série ministério da Justiça, AIIJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia. 21 de dezembro de 1844. De
Francisco d’Andrea para Manuel Antônio Falcão.
249
APB. Manuscritos seção Colonial e Provincial. Policia Assuntos diversos. Governo da província. Maço 3111.
Tucano, 1848. Subdelegado para Presidente da província.
86

Capítulo 3

A farda do crime

A desorganização militar durante e após a independência, além dos tradicionais


problemas militares (como a insubordinação, o tipo de gente que era escopo do recrutamento,
as deserções das forças repressivas e o apoio ou conluio de autoridades militares e civis com
os grupos armados, que serviam de abrigo para esses desertados dos serviços das armas, mais
a combinação de todas essas ações com o extravio de armas e fardas) descambavam numa
acentuada ação de grupos armados de fora das leis, dos quais alguns dos que deveriam estar
encarregados da segurança da propriedade, do comércio e das pessoas, fizeram parte. Optaram
muitos deles pelas ações fora da lei, que preferiam a ter de empunhar armas para defender a
pátria, a propriedade ou as pessoas. Algumas vezes uma coisa não se opunha a outra.
Em plena campanha contra as força de Portugal, um destacamento de milicianos foi
retirado de algum lugar do recôncavo porque estava “se comportando sem nenhum respeito às
250
leis e postergando toda a disciplina” , inclusive atacando outros destacamentos aliados,
como o do capitão Victor da Silva Torres. Provavelmente o desrespeito às leis obrigou outro
destacamento a intervir na proteção aos moradores, o que resultou num conflito entre forças,
sendo que uma delas, certamente, não podia ser compreendida como parte integrante do
exército patriota de libertação.
A pressuposição de que os habitantes eram os alvos daquele destacamento é
correspondida pela quantidade de documentos legados à posterioridade. As autoridades civis e
militares se corresponderam estabelecendo entre as prioridades o cuidado com os habitantes
durante a guerra civil de independência: “cuidará mais vossa senhoria em manter a maior
ordem e disciplina nas praças de seu comando, a fim de que nos lugares onde passarem não
sofram nada os habitantes, nem a agricultura, nem o gado, criação e os edifícios e para dizer
tudo: as pessoas e as propriedades dos cidadãos é sagrada”251.
“Pessoas e propriedades” que poderiam “sofrer”, em tradução, roubos, furtos,
assassinatos, castigos, torturas, maus tratos de homens armados e fardados contra a própria
população pela qual a guerra era feita, em nome de sua salvação. Não bastassem as contínuas

250
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636. Vila de Cachoeira, 16 de setembro de 1822.
De Francisco Gomes Brandão Montezuma, secretário, para o Alferes Ildefonso Alvarenga da Silveira.
251
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 15 de
outubro 1822. De Francisco Gomes Brandão Montezuma, secretário.
87

expropriações que o exército pacificador realizava e que era visto por muitos habitantes como
roubo às suas propriedades. Como não bastassem também os recrutamentos “ilimitados”, que
fazia parte da população fugir para os matos para evitá-los, pois achava a vida militar
torturante, cheia de maus tratos. Além dos riscos de perder a vida, havia, ainda, os
desgarrados armados que optavam por agir nas brechas da ordem.
Este parece ser o caso sofrido por Maria Joaquina da Conceição que, na ausência de
seu marido, respondeu a uma carta em que lamentava não poder ajudar mais com a “santa
causa”, porque na sua “roça” já havia passado o comandante Germano da Silva Pinto, junto
com outros, que só deixaram “destroços, ruínas, prejuízos, e roubos em tanta forma que não
ficou nas minhas roças e fazendas de gado. Nem estes e nem algodões, e mantimentos, porque
aquilo que não podia os satélites daquele comandante roubar, destroçaram”252.
Aquele sofrimento não era o primeiro; seu marido já havia sido acometido por roubo
e só não foi morto porque dera cinco mil e tantos cruzados em dinheiro de ouro para seus
“inimigos”. A forma da narrativa aparentava que os inimigos de que se falava eram os
mesmos citados em ação anterior. Possivelmente seu marido estava recrutado, combatendo
patrioticamente nas tropas “libertadoras”, ou fugira de outras ações contra si desses seus
“inimigos”, como mais um dos tantos fugitivos que compunham a “horda heterogênea” que
fugiu do ou para o recôncavo baiano. A outra face dessa “horda heterogênea” estava dentro
dos batalhões combatentes da guerra civil.
Não foi por outro motivo que Labatut, quando foi acusado por Montezuma e outros
civis e militares que dirigiram as iniciativas baianas de independência de autoritário e de levar
as tropas a antagonizar com seus comandos, usou a desorganização militar que reinava antes
dele (e menos durante seu comando) para se justificar. Afirmou que era conhecido do povo da
Bahia como seu libertador e amigo e que estaria ali para libertar a Bahia do jugo lusitano e
“tranquilizá-los dos motins militares da Cachoeira, São Francisco, e livrá-los das dilapidações
da tropa”253. As mesmas autoridades que acusavam Labatut atiçavam a insubordinação na
tropa, levando a uma guerra interna.
Labatut falava das dilapidações, isto é, dos roubos e furtos aos quais foram
submetidos os habitantes da região pelas tropas desgovernadas e pelas pessoas que fugiam de

252
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série:
correspondências recebidas do conselho interino de governo (1821-1823). Maço: 023, antigo 637-4. Arraial de
Santo Antônio. 27 de maio de 1823. De Maria Joaquina de Conceição para Capitão José da Rocha Bastos.
253
A. N. Ministério do Interior. AA , IJJ9 329. Congurungú, 16 de abril de 1823. Fls. 87-92. Pedro Labatut para
José Bonifácio.
88

Salvador, sitiada, cercada e exaurida de alimentos. A existência e persistência do crime de


homens fardados era mesmo grave.
Num outro documento, as “desgraças, injustiças e roubos praticados pela segunda
tropa, que antes se deveria chamar agressora, e não auxiliadora” foram relatados. O Alferes
José Clarque Lobo, José Godinho Sousa e o Capitão Mor Brás José Sousa, junto com colegas
patrulhas, fizeram tantas “sevícias e roubos”, que o comandante Henrique Glayson se viu
compelido a relatar o estado em que ficaram os “pacíficos habitantes” da região próxima a
Cachoeira. Após um conluio em que aqueles conseguiram destituir o antigo capitão mor e
passar o cargo para o tal Brás José Sousa, ficaram livres para serem “os agentes e pacientes
dos imensos furtos que se tem feito dos infelizes cidadãos e partilharem-nos pela regra de
três”. Afirmavam os mesmos que quando a tropa cachoeirana entrasse na vila, iriam
“bombiar” [explodir] toda ela, conseguindo assim que as pessoas de todos os “feixos”
corressem à procura de abrigo nas matas. Independente deste plano ter se concretizado ou
não, eles realizaram uma queima nos arquivos de um distrito chamado Igrapiúna e
Camurugipe, roubaram todo o ouro e alfaias da viúva Maria Ribeiro, roubaram um pescador
de Itaparica que ali estava e lhe levaram 600 mil réis. O documento registra muitos relatos de
roubos e ataques às pessoas. Chegaram a roubar a única roupa de um homem que teve de
trabalhar nu na lavoura durante um tempo. Diz-se ainda que os grapiunenses e os
camamuenses estavam todos subordinados a um “triunvirato composto [de] filhos e netos de
uns sapateiros e meirinhos”. Seguia o documento com um anexo detalhado de todos “que se
sabem” que foram furtados254.
Acontecimentos como esse parecem mais raros no Brasil do que nos países da
América Espanhola em contextos de luta de indepenência. No México, por exemplo, sabemos
que generais realistas lideravam saques às propriedades tal qual os bandidos. E em
determinados momentos preferiram o prolongamento do conflito devido a suas alianças com
agrupamentos de salteadores que controlavam quase todas as rotas comerciais importantes
durante a guerra de liberação255.
Em Santo Amaro um oficial e dois soldados, todos da guarda policial, foram presos
por retirar “o preso da mão, e poder de qualquer pessoa do povo, que o tenha prendido em

254
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série
correspondência (1822-1824). Livro 004 (antigo 634). Sem local. Sem data.
255
VANDERWOOD, Paul. El bandidage em el siglo XIX: uma forma de subsistir. In: História Mexicana. Vol. 34,
No. 1 (Jul. - Sep., 1984), p, 42.
89

flagrante, ou por estar condenado por sentença”256, segundo o artigo 121 do Código Criminal.
A prisão se deu também com base no artigo 201, que versa sobre causar ferimentos ou corte a
outro ser humano – que não fosse escravo. Certamente os policiais usaram do poder das
fardas para praticar para tal ato, contudo, deve ter havido alguma resistência, e eles acabaram
infringindo leis, pelas quais foram denunciados. Havia anteriormente outras denúncias contra
eles257.
Um soldado mineiro que se encontrava estacionado na Bahia, provavelmente para
participar sob o controle do exército imperial da repressão aos movimentos federalistas, em
alguma oportunidade decidiu fugir, levando consigo, “no dia 31 de março do corrente ano,
uma criolinha de nome Libania”258. O nome do soldado era João da Costa Porto, do Batalhão
de Minas, e “na ocasião em que desertou, (…) seguiu viagem para a Freguesia do Morro de
Paulo Soares no Sertão”259. Na notícia do jornal vinha a descrição da escrava: era “alta, seca
de corpo, peitos grandes, e já caídos; olhos pequenos, e dentes todos podres, idade de 14 a 16
anos, com muitos sinais de bexigas, pouco retinta na cor, tendo uma grande cicatriz no
cotovelo de um dos braços; e levou saia de chita, e camisa de algodão fino, ou de
cambraia”260. Não há maiores informações sobre essa ação: se foi vendida, se era uma relação
amorosa, ou em que situação se deu. Contudo, somos informados pela historiografia que, nos
casos de roubos de escravos, algumas vezes havia certa colaboração prévia com o não-objeto
roubado. O sertão, como um destino tanto de desertores como de escravos “roubados” e
fugidos – consequentemente de “criminosos” e de gente criminalizada pelas suas escolhas –,
ao nosso entender, foi um espaço propício para a constituição das “comunidades volantes”,
sendo algumas delas voltadas à prática das ações armadas como modo de sobrevivência. O
que também tornava o sertão um local no qual o patronato podia vir a se servir de relações de
reciprocidade que envolviam protetores e protegidos, numa troca de papéis constante, que se
encontra muitas vezes na origem de práticas de banditismos e outras ações armadas.
O rapto de uma mulher e a prática de ações armadas em localidades que não eram
originalmente as suas foi o saldo da presença de um destacamento na divisa da Bahia com o
Piauí, mais especificamente em Juazeiro. Nesse local, o delegado se queixava de que os

256
Código Criminal de 1830. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm. Visto em
03/12/2015.
257
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário. Juízes de Cachoeira,
Cachoeira. Maço 2273. 03 de outubro de 1838. Presidente da Província.
258
BN Hemeroteca. O Baiano/edição n 36. Fundo/ Título: Hemeroteca. Sábado, 6 de Junho de 1829Pg/fl: 03.
Salvador /BA. Site: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=749770.
259
Idem.
260
Idem.
90

soldados passavam de um território a outro, sempre lhe pedindo auxílio, e, apesar de ele na
maioria das vezes não negá-lo, continuavam a praticar excessos de matar os gados

com as granadeiras, passando o tempo de sua demora neste lugar em


continuadas funções, jogos e bebedeiras que de ordinário motivam desordens
e mortes. Ainda não há seis dias que me participaram que cinco soldados que
passaram desta província para a do Piauí assim o fizeram mataram duas [...]
a tiro e depois de alguns dias de demora se retiraram levando uma mulher
em sua companhia e na saída [...] deram muitos tiros dentro da povoação
insultaram com palavras as autoridades que tudo só fizeram por ignorarem o
que deviam obrar em semelhantes261.

Durante os distúrbios dos movimentos federalistas foram contínuos os “horrores” dos


assassinatos e roubos realizados “pelos desertores da 1ª linha que unidos aos ladrões de toda a
prata e ouro dessa matriz o ano atrasado e fugidos das cadeias dessa cidade e do hospital onde
se achavam estão aqui fazendo o que querem”262. Segundo o documento, os desertores
ficavam sabendo de tudo o que acontecia em torno de possíveis repressões a eles e, quando
alguma tropa estava por chegar, ainda a léguas de distância, se movimentam do lugar e
fugiam do alcance da repressão. Roubavam primordialmente cavalos e escravos e ameaçavam
aqueles que os perseguiam e também o reverendo, um dos principais entusiastas de sua prisão,
posto que sua igreja havia sido roubada.
A presença de soldados podia ser incômoda para as autoridades, principalmente
quando eles viviam metidos com ladrões de galinhas, cavalos e em jogos com escravos. Em
uma lista de seis homens com essas caracterizações em Cachoeira, quatro eram recrutas que
ali estavam destacados, o que obrigou o juiz de direito a pedir que fossem retirados dali para
que o presidente da província fizesse o “que melhor julga[sse] conveniente”, alegando serem
os quatro recrutas “e principalmente Antonio Bonifácio (...) inteiramente inúteis e até
prejudiciais” àquela localidade263.
Antonio Bonifácio foi descrito como “réu de polícia muito perigoso, foi rebelde na
vila da Feira, pegou em armas contra a legalidade, sob o comando de Braúna, e depois de

261
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial Governo da Província: Fundo Polícia do Porto: Capitão Mor.
Maço 3794. Sento Sé, 1826. Para o Presidente da Província.
262
Manuscritos APB. Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. Fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos / Fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos. 18 de
fevereiro de 1831. De João Pedreira de Couto, Juiz de Paz, para Luiz Paulo de Antonio Boito, presidente da
província.
263
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário (Juízes de Cachoeira). Maço
2273. Cachoeira, 26 de Abril de 1839. De Camilo de Oliveira, Juiz de direito, para Presidente da província.
91

Higino [Pires Gomes], e pouco tempo quis matar a Arcino Barbosa, oficial de marceneiro”264.
Dois dos listados eram voluntários e foram para o 2º Batalhão de Artilharia, assim como
Antônio Bonifácio; outros dois eram “recrutas e réus de polícia265”, sendo que um destes
conseguiu evadir e o outro foi também para o 2º Batalhão de Artilharia; o sexto era um
“desertor da artilharia de Pernambuco”266, e foi deslocado para o Comando das Armas.
Uma comunidade de fugitivos volantes, bastante heterogênea, associada por
interesses e ações, embora pequena, que incomodava as autoridades e desmoralizava a tropa.
Quando não solicitava a saída da tropa, como no caso acima, as recomendações para
evitar a generalização de ações armadas por parte dos soldados listavam ordens que
expunham a preocupação com a inclinação de certas tropas ao crime ou ao distúrbio:

1) manter a segurança da população e das propriedades contras


as insurreições de escravos.
2) manter a segurança individual e da propriedade contra os
ataques dos facinorosos, que nestes últimos tempos tem incutido na
população daquele município contínuos terrores e profundas desconfianças.
11) Vigiará o senhor comandante, com o maior escrúpulo na
conduta dos soldados, não consentindo relações individuais com os
moradores da terra, com especialidade aqueles que a opinião pública indigita
como facinorosos, ou protetores destes, e quando o soldado se torne suspeito
nesse ponto, o remeterá imediatamente para o senhor comandante das armas,
motivando a remessa.
12) De acordo com o delegado recrutará encarregado deste serviço
algum superior de confiança, ao qual o Governo não duvidará a gratificar na
proporção das vantagens que apresentar nesse ramo de serviço, preferindo
especialmente recrutar os indigitados como guarda costas, espoletas, ou
peitos largos dos indigitados valentões, ou facinorosos267.

O engraçado desta passagem é que as resoluções, ao mesmo tempo em que tentam


evitar o contato do soldado com a gente que a opinião percebe como criminosos ou de maus
procedimentos, finalizam com a possibilidade de recrutamento dessa mesma categoria de
pessoas, o que de algum modo realimenta o círculo conflituoso: recrutamento, fuga, deserção,
crime. O pacote da segurança das pessoas e das propriedades está montado: reprimir e

264
Idem.
265
Esse termo que aparece em muitas situações e localidades serve não apenas para descrever uma pessoa com
passagem na polícia, mas também para designar preventivamente sua condição de apto, por sua índole, para o
recrutamento, antecipando a condição inevitável de fazer mal a sociedade, colocando-o em alguma força armada
pública. Sobre esse termo e os abusos em torno dele falaremos na sessão destinada aos homens pobres livres.
266
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário (Juízes de Cachoeira). Maço
2273. Cachoeira, 26 de Abril de 1839. De Camilo de Oliveira, Juiz de direito, para Presidente da província.
267
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção polícia 1844-1866. Maço 6466. Palácio do Governo
da Bahia, 08 de janeiro de 1849.
92

fiscalizar escravos, bandidos e soldados. Impediam-se assim as ações moleculares dos grupos
sociais e as combatiam de maneira independente, ao mesmo tempo em que se previa a
possibilidade de aliança e fusão entre eles. O que não nos parece ser uma visão meramente
conspiratória. As autoridades responsáveis sabiam o que estavam combatendo, isto é, uma
hidra que não se cansava de se realimentar da desordem, das divisões políticas dos senhores,
das repressões às gentes diversas e aos escravizados.
Em outro caso, um homem, Mário de Tal, que logo depois vai se saber ser soldado da
polícia, em uma ação solitária, foi preso por furtos de dinheiro com cartas falsas.
Posteriormente soube o juiz de direito que “esse indivíduo tinha vendido uma arma
pertencente à mesma polícia, o que ele negou, e por isso nada pude fazer, pelo que bom será
que para essa cidade se possa saber se, com efeito, fugiu ele com as ditas armas para que aqui
se dêem as necessárias ordens”268. Estava desertado havia mais de três meses, vivendo
provavelmente de serviços ilícitos. Foi recrutado para aquela região e evadiu ao receber
alguma licença de seu comandante. Como mencionamos, muitos interessados existiam nas
armas possivelmente vendidas, trocadas ou dadas por ele.
Mesmo em períodos mais pacíficos, alguns homens agiam sob o abrigo da farda, no
caso da Guarda Nacional, e da proteção de homens que possivelmente os alistaram com a
intenção de praticar ações armadas. Em junho de 1841, o Coronel da 3ª Legião da Guarda
Nacional de Cachoeira, agindo no sentido contrário de alguns homens influentes e até mesmo
do comandante superior da guarda, prendeu algumas pessoas, alguns deles soldados da
Guarda Nacional. Alegava ele que

como coronel chefe da 3ª legião de Guarda Nacional deste Município e a


qual ele pertencia [no caso o José Cândido], os conheço perfeitamente,
sempre foram de péssimas condutas e indignos até de vestirem a farda
nacional, e como chefe de Polícia fui informado de todos os roubos,
desordens e continuados delitos que caracterizam suas vidas (...) e que esses
produtores de tudo levem avante seus fins, que tendem a enfraquecer a força
moral de qualquer autoridade que se mostra solícita em manter o sossego e
ordem no lugar de sua jurisdição. Os recrutas de que falo são: Manoel José,
pardo; José Candido, cabra; Manoel Simão, Lázaro Rodrigues, Manoel
Ernesto, pardo, Manoel Antônio do Espírito Santo, branco, Domingos
Antônio de Cartage, crioulo 269.

268
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário (Juízes de Cachoeira). Maço
2273. Cachoeira. 22 de setembro de 1839. Do Juiz de direito para Presidente da província.
269
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário (Juízes de Cachoeira). Maço
2275. Cachoeira, 10 de junho de 1841. Pg/fl: 01, 02. Albino Augusto Novaes de Albuquerque para o Presidente
da Província. Cachoeira.
93

Ao que parece, José Cândido fazia uso da proteção da farda e de autoridades para
praticar ações que atentavam contra a vida e a propriedade em conjunto com outros homens.
O crioulo Themoteo Pereira foi preso na vila de Itapicuru, onde estava assentado
como Guarda Municipal. O pedido de sua prisão foi feito pelas autoridades da vila de Santa
Luzia, onde era famoso criminoso270. Parece que o sertão e a farda funcionavam como um
abrigo para criminosos que estavam dispostos a se regenerar ou a escapar dos olhares
suspeitos das autoridades. Essa tática parece não ter dado certo para Themoteo, que se
deparou ainda com a mobilidade das forças repressoras e das autoridades policiais.
Esses criminosos fardados atestam a multiplicidade e heterogeneidade de
experiências de alguns agrupamentos armados de foras da lei. Em determinados contextos,
através de suas fugas, eles transitaram de um lado ao outro da província. Em outras
oportunidades, o confronto do Estado com forças deliquentes, ou mesmo com potentados
rurais, os levaram para outros lugares em que interagiram com a ambiência social local e
puderam analisar sua capacidade de viver, fugir e de constituir um roteiro de suas vidas
diferente daquele que as autoridades militares e provinciais gostariam de lhes ter dado. O
crime, para alguns deles, pareceu uma alternativa na qual encontraram outros parceiros para
testá-la.
Se num contexto de desorganização militar e política – da guerra de independência às
lutas federalistas e Sabinada – sujeitos que estavam dentro das forças armadas e policiais do
Estado se aproveitaram para promover ações armadas contra a propriedade e contra as
pessoas, em outros contextos e localidades, onde a ordem foi alguns anos depois novamente
abalada, outros sujeitos repetiram a dose. Contudo, alistavam-se ou eram recutados para
exércitos não oficiais, apesar de algumas vezes oficiosos. Praticavam suas ações armadas
vinculados a homens que usavam de suas prerrogativas como chefes políticos da nação ou
como autoridades judiciais e policiais. Se por um lado não usavam fardas, por outro podiam
usar das armas da nação tais quais os desertores. Aproveitavam-se de novas situações de
guerras abertas entre setores das classes dominantes para agir de forma autônoma.
Diferentemente dos sujeitos estudados na primeira parte, esses homens buscaram o abrigo das
armas ao se refugiarem para dentro de milícias privadas, onde tinham seu gatilho contratado.
Como parte importante de um sistema de dominação específico, que funcionava através ou
contra a burocracia estatal, conseguiram, por vezes, obter uma condição de acomodação social
em que gozavam de prestígio, proteção e certa liberdade.
270
A.N. Série ministério da Justiça, AI, IJ¹ 407. Secretaria de polícia da Bahia, 29 de novembro de 1852.
94

Mais uma vez o doloroso processo de consolidação da nação e do Estado se


encontrava com o banditismo.
95
96

Segunda parte:
“Sem temor divino nem humano”: ações armadas entre a
autonomia e a acomodação

Um dia sonhei que um campinho da quebrada era uma fábrica da


Taurus Ainda bem que era um sonho e aì fiquei um pouco aliviado
Mas algo em meu pensamento dizia pra mim Porra! Se na periferia
ninguém fabrica arma quem abastece isso aqui?

Música: Antigamente quilombos hoje periferia.


Disco: Antigamente Quilombos Hoje Periferia (2002).
97

Capítulo 4
Burocracia da Violência:
Estado, clientelismo e banditismo

Após decretada a independência, era chegado o momento, na formulação de


Florestan Fernandes271, de uma elite de proprietários institucionalizar o seu mando. A criação
de uma Sociedade Nacional, mesmo antes de uma nacionalidade, era imperativo para
desenvolver aquilo que, para ele, foi a primeira fase de uma revolução burguesa no Brasil 272.
Em outros termos, foi necessário forjar um Estado-Nação, com suas leis, sistema de governo e
funções administrativas. Ao romper com uma estrutura assemelhada ao móvel colonialista
português, foi necessário forjar uma nova, voltada para as exigências competitivas de um
amplo mercado internacional de mercadorias. Os setores dirigentes desse processo
revolucionário, os grandes proprietários de escravos e produtores de bens primários para
exportação, passaram a produzir um tipo de economia que, ainda que fincada na
especialização de tipo mercantil colonial, fazia uso dessa acumulação para “crescimento
econômico interno” e não mais para a metrópole, “permitindo o esforço concentrado da
fundação de um Estado Nacional”273. Essa classe de proprietários, outrora dispersa,
heteronômica, foi convocada a participar através de múltiplos cargos e funções – litúrgicas ou
não – a sair de seu “isolamento”. Foi chamada a azeitar uma máquina administrativa, jurídica,
fiscal, policial, à sua feição e imagem. Para tais funções, necessitou agregar ao seu lado um
contingente substancial de homens de letras, cálculos e armas. Estes homens dependiam, se
não os fossem eles mesmos, dos senhores rurais. Suas perspectivas de sucesso estavam
diretamente vinvuladas a eles, criando uma reciprocidade entre a possibilidade de modernizar
a óptica do senhor rural e a sua própria tendência a aceitar e legitimar o status quo através de
laços personalistas e aristocratizantes, com os quais alcançavam notoriedade 274.
Não nos importa tanto aqui – e nem mesmo concordamos totalmente com – a
portabilidade dos móveis capitalistas, supostamente modernizantes e urbanos, desses agentes

271
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaios de Interpretação Sociológica. Rio de
Janeiro: Editora Globo, 2005. Especialmente a primeira parte.
272
Para um modelo de revolução burguesa sem direção burguesa ver HILL, Christopher. Revolução Burguesa?.
Revista Brasileira de História, n. 7, p. 7-32, mar. 1984.
273
FERNANDES... Op. cit., p. 44.
274
Essa tese está também discutida em MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema. A formação do Estado
Imperial. São Paulo: HUCITEC, 2011. Especialmente na parte 3.
98

tal como colocado por Florestan Fernandes, que visualiza neles o protótipo inicial da
insatisfação com a escravidão, com o atraso rural, entre outras coisas – o que ele chamou de
“espítito burguês”275 –, mas ressaltar um aspecto neste autor que é o da ruptura da
interpretação monoexplicativa do poder no Brasil, empreendida por muitos historiadores,
ensaistas e politólogos.
Para uma determinada corrente interpretativa, a formação estatal e do poder no Brasil
seria patrimonialista, dominada pelo poder público e obstaculizadora das iniciativas que não
sofressem o controle estatal. Para outras interpretações, a dominação social, ou a governança
brasileira, seria de tipo privatista, sob controle de mandatários locais, resultado de um Estado
fraco e ausente desde os tempos coloniais.
Para Fernandes, as “formas de poder político criadas através da implantação de um
Estado Nacional, foram assimiladas pelos estamentos senhoriais e convertidas, desse modo,
em dominação estamental”276. Ele designa esse aspecto de “dualismo estrutural”, isto é, a
permanência de um tipo de tradição política e econômica de tipo colonial (estamental) que se
manteve ativa e guiaria toda iniciativa de modernização do Estado e das relação sociais
liberalizantes burguesas.
A função ideológica do liberalismo brasileiro, aplicada desde a colônia na área
econômica, cumpriu um papel de tensionamento com o centralismo do poder do imperador
após a independência. Essa ideologia liberal, assimilada de maneira que os senhores rurais
não perdessem sua importância na direção política, exigiu, após a independência, que muitas
funções de governo do Estado fossem alcançadas por pleitos eleitorais277. As redes de poderes
locais, asseguradas pelas relações clientelistas típicas da tradição das classes dominantes
locais, garantiam que a “ideologia” liberal, que havia cumprindo um papel importante, não se
constituísse como mola de ação política para estes senhores no seu mando.
Florestan chamou esse senhor rural, forjado em meio às tensões evidentes da

275
Uma crítica a uma parte dessa interpretação encontra-se em MATTOS, Ilmar Rohloff. O Tempo Saquarema.
São Paulo: Hucitec Editora, p. 127, 137 e 138.
276
FERNANDES, F. Op. Cit., p. 59. Aqui não estamos de total acordo com a definição de Florestan de que os
senhores rurais brasileiros eram um Estamento. No entanto nos interessa a lógica do seu argumento, isto é, o
procedimento explicativo que vê as classes senhoriais como agentes centrais de um projeto de constituição de
um poder de Estado que assimila, para seu controle, grupos sociais em funções de mando nas localidades das
províncias, constituindo de tal modo uma dialética entre centro e periferia, capitais e interior, localidades e
nacionalidades, na constituição da unidade nacional.
277
Obviamente essa situação não se deu antes de muitos conflitos com as concepções absolutistas mal escondidas
do Imperador Pedro I, que já havia dissolvido um projeto de constituição que, segundo ele, lhe retirava muitos
poderes. Para uma análise da “persistência federalista”, seus avanços e contramarchas extremamente importantes
para entender a formação do Estado Nacional, ver: HOLANDA, Sergio Buarque de Holanda. História Geral da
Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico. 1º volume, tomo II, livro 3. In: ____. A Herança Colonial – sua
desagregação. São Paulo: DIFEL, 1965, p. 9-39.
99

reformação do controle político, de “senhor-cidadão”. Ele era um elemento que, em teoria,


cumpria deveres e direitos para com a “sociedade nacional”, assim como tantos outros
homens, contudo, as regras políticas para o exercício dessa cidadania eram forjadas por
critérios censitários, racias, familiares e tradicionais que os legavam como mandatários quase
naturais. Deste modo, a “sociedade civil” se confundia com a “socidade nacional” dirigida
pelos homens bons, proprietários de terras e de escravos e seus auxiliares administrativos, que
ocupavam os postos da reformada burocracia. Para Mattos, que chega a conclusão parecida,
mas por termos conceituais diferenciados, “a diferença entre o cidadão não ativo e cidadão
ativo é a própria diferença entre sociedade política e sociedade civil, sendo a sociedade
política uma parte da nacionalidade que reunia, com exclusividade quase, aqueles que
gozavam das prerrogativas constitucionais para dirigir o jogo político” 278. “A sociedade civil,
onde estavam politicamente os homens livres, não significava igualdade, muito menos
política”279.
Teria sido essa confusão da ideologia liberal que transformara o mando local e
privatista do senhor rural em “poder político especificamente falando” 280. A “burocratização
da dominação senhorial” foi o passo que forjou esse grupo social para se constituir como uma
classe. Foi por este motivo que os senhores precisaram do “aparato administrativo, policial,
militar, jurídico e político inerente à ordem legal. Precisavam dele não privada e localmente,
mas no âmbito da nação como um todo” 281. Por isso “o governo da Casa e o governo do
Estado [operam] como uma relação dialética, e não como uma relação dicotômica”282.
Voltemos ao nosso tema. Apesar das muitas críticas sofridas por Hobsbawm em seus
estudos sobre o banditismo, parece haver uma confluência entre ele e seus críticos. Ambos
localizam na ausência de um Estado forte e centralizador, ou que se realizasse através de
obrigações de reciprocidade institucionais e com regras previstas entre ele e o povo, um dos
aspectos para o surgimento de um banditismo epidêmico. Na ausência de uma lógica política
institucional, teriam os bandidos agido com base em uma “cultura política” específica de
sociedades de “imprevisibilidade da ordem social” ou de excessivo poder privado: a “cultura
da violência”. Esta nasceria do fato de que sem as regras ou a presença institucional e racional
do Estado, o poder privado e o mandonismo prevaleceriam sobre a presença central

278
MATTOS... Op. Cit., p. 130.
279
MATTOS... Op. Cit., p. 156. Os escravos sequer tem lugar na Constituição.
280
FERNANDES... Op. cit, p. 60.
281
Idem, p. 64 e 65.
282
MATTOS. Op. Cit., p. 150. Poder da casa é uma alusão ao poder local.
100

estatizadora283.
O mandonismo era a expressão política do mais forte. Para um potentado mandar e
controlar os recursos, bens simbólicos de poder e o dinheiro, era necessário que montasse uma
grande rede de bandidos e jagunços que defendessem a ordem do mandatário local. Todos, ou
a maioria dos fazendeiros, procediam dessa maneira, criando, com efeito, uma “cultura
política da violência” em que os bandidos eram agentes, mediadores e cabos eleitorais284.
Não negamos a relação que havia entre esses potentados e o banditismo, mas
sugerimos uma visão menos unilateral desse fenômeno. Os banditismos não aconteciam
necessariamente pela ausência do Estado ou porque este estivesse de costas para as instâncias
locais. Ao contrário, no século XIX, eles aconteceram, num primeiro momento, em
decorrência das conflituosas acomodações políticas desencadeadas a partir de 1822; num
segundo momento, pela relevância que adquire para os potentados rurais essa mesma estrutura
de centralização do poder como parte da legitimação de seu controle, levando-os a conflitos
por esses cargos.
Nos primeiros anos após a independência, além da gritante desorganização e
indisciplina militar e policial, que proporcionou um banditismo oportunista, que agiu nas
margens da ordem, muitos cargos de comando, civis ou militares, foram extintos, dando lugar
a outros postos, sob uma tentativa, ainda não estabilizada, de uma nova cultura de mando e
governo, como já explicitamos com as teses de Florestan Fernandes. A nação surgia, como
não podia deixar de ser, entre atores que conservavam muito do velho sistema colonial, mas
necessitando produzir uma nova forma de governo dos povos. Listas eram feitas para
comprovação dos verdadeiros patriotas da causa. Levantavam-se os nomes daqueles que
realmente haviam apoiado – com dinheiro, gado, ouro, armas, tropas – a independência. Estes
ganharam oportunidades de mando e mercês de gratidão do imperador. Velhos nomes de
autoridades coloniais perderam prestígio; e, se não voltaram para Portugal, deixando, em
alguns casos, vácuos de poder, perderam prestígio estatal, mas não necessariamente dinheiro e
influência entre seus pares. A busca pelo poder deixou um rastro de pólvora. Em alguns casos,

283
Na definição de José Murilo de Carvalho, o mandonismo é uma atividade política que atravessa toda a história
do Brasil. Esse “traço da política tradicional”, para ele não era um sistema, mas uma organização para controlar
“algum recurso estratégico, em geral a posse da terra [que] exerce sobre a população um domínio pessoal e
arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedade política”. O mandonismo pode ser uma
técnica de domínio usado em sistemas políticos diversos, mas tendente a decrescer na medida em que cresce os
direitos. Ver: CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma discussão
conceitual”. Dados, vol. 40, nº 2, Rio de Janeiro, 1997. Para Graham, outro autor, que será discutido aqui, “só
uma revolução poderia ter destruído” o clientelismo. GRAHAM, Richard. Clientelismo e poder no Brasil do
século XIX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 23.
284
Alguns autores apresentam o mandonismo como uma cultura política. É o caso de NONATA... Op. cit.
101

o banditismo se associou ao antilusitanismo, como no caso dos Mucunãs na região do Alto


Sertão da Bahia, como demonstração da insatisfação pela manutenção de cargos e poder de
portugueses tidos como inimigos dos “brasileiros”.
Durante o processo de consolidação do poder central, após muitas dissidências e
conflitos ao longo do período regencial, notamos o crescimento de um banditismo
influenciado pelas disputas políticas eleitorais 285. Que fique claro: o intuito das eleições não
era gerar a violência, pelo contrário, ela servia como uma demonstração da possibilidade da
alternância de poder por mecanismos consensuais. No entanto, o resultado das eleições
demonstrava a capacidade material e simbólica daqueles que produziam as melhores
condições de vencer, usando e demonstrando a possibilidade de uso de força armada privada
ou pública a seu favor, além da influência em cargos provinciais e nacionais decisivos, que
reforçassem a estima, o medo e a autoridade de chefes locais, para que não fossem desafiados.
Isso exigia o controle do voto de agregados, de pessoas pobres, de diversos dependentes das
redes de clientela exercidas pelos senhores de determinado “partido”, incluindo-se no jogo
também muitos outros proprietários menores e maiores, para quem cargos e prestígios eram
distribuídos segundo a vitória eleitoral daquele que havia sido apoiado. “Em suma elas [as
eleições] deveriam ser honestas e ordeiras, mas o partido governante deveria vencer
sempre”286.
Segundo Graham, o Brasil era um país em que a população apta ao voto vivia um
calendário eleitoral movimentado. Uma parte considerável do tempo das pessoas que estavam
aptas a votar e principalmente dos votados era gasta com calendários e preparativos políticos
para o exercício do voto287. Isso abria uma brecha contínua para a possibilidade do
aparecimento de um desafiante ao poder de algum chefe local. Assim, “eleições e violência
caminhavam juntos”288. Porque para desafiar uma liderança tradicional era preciso denunciar
as eleições fraudulentas, além de ter disponível capacidade material de resistência: arsenal,
capangas, jagunços, cavalos, esconderijos, entre outras coisas. Era necessário desmontar uma
“política de dominação”289 para substituí-la por outra, e para isso era preciso ter “bala na

285
Essa tese já está, não da mesma maneira aqui colocada, na dissertação de SILVA, Rafael Sancho Carvalho da.
“E de Mato faria fogo”: O Banditismo no sertão do São Francisco, 1848-1884. Salvador: Mestrado em História
– UFBA, 2011, p. 66.
286
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997,
p. 104 e 105.
287
GRAHAM... 1997. Op. cit., p. 141, 1663-164.
288
Idem, p. 165.
289
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Sociabilidades sem História: Votantes Pobres no Império, 1824 – 1881. In:
FREITAS, Marco Cezar. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2010, p. 60. A autora
dá essa designação ao sistema eleitoral brasileiro.
102

agulha”, como se diz popularmente.


Conflitos eleitorais entre dois “partidos”, como em Vila Nova da Rainha, que fez
mais de uma centena de vítimas, eram corriqueiros. Após o conflito principal, o anseio de
vingança dos ramos dos principais troncos familiares da vila fazia de “cada pé de pau uma
trincheira para o avisado assassino”290. Naquela vila, um juiz de direito, se quisesse manter a
ordem, correria risco de vida, pois ali imperava “a faca de ponta (e aparelhada de prata) e o
bacamarte (que tem no coice tantos broxas, quanto as mortes, tem feito, e isto para
ostentação)”.
Um dos cargos que mais instigou os conflitos entre poderosos locais foi o cargo de
Juiz de Paz, instituído por D. Pedro I em 1827. Suas tarefas eram múltiplas, indo da
conciliação à repressão, passando também pela vigilância e julgamento. Era um cargo
concentrador de muitos poderes, sobretudo no nível da localidade 291. Na apreciação de

290
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Fls 134. Jacobina, 10 de junho de 1835. De Manoel José Espínola,
Juiz de Direito, para Francisco de Souza Paraíso, presidente da Província.
291
Art. 5º Ao Juiz de Paz compete:
§ 1º Conciliar as partes, que pretendem demandar, por todos os meios pacíficos, que estiverem ao seu alcance:
mandando lavrar termo do resultado, que assinará com as partes e Escrivão. Para a conciliação não se admitirá
procurador, salvo por impedimento da parte, provado tal, que a impossibilite de comparecer pessoalmente e
sendo outrossim o procurador munido de poderes ilimitados.
§ 2º Julgar pequenas demandas, cujo valor não exceda a 16$000, ouvindo as partes, e á vista das provas
apresentadas por elas; reduzindo-se tudo a termo na forma do parágrafo antecedente.
§ 3º Fazer separar os ajuntamentos, em que ha manifesto perigo de desordem; ou fazer vigiá-los a fim de que
neles se mantenha a ordem; e em caso motim deprecar a força armada para rebatê-lo, sendo necessário. A ação
porém da tropa não terá lugar, senão por ordem expressa do Juiz de Paz, e depois de serem os amotinadores
admoestados pelo menos três vezes para se recolherem as suas casas, e não obedecem.
§ 4º Fazer pôr em custodia o bêbedo, durante a bebedice.
§ 5º Evitar as rixas, procurando conciliar as partes; fazer que não haja vadios, nem mendigos, obrigando-os a
viver de honesto trabalho, e corrigir os bêbados por vicio, turbulentos, e meretriz escandalosas, que perturbam o
sossego publico, obrigando-os a assinar termo de bem viver, com culminação de pena; e vigiando sobre seu
procedimento ulterior. § 6º Fazer destruir os quilombos, e providenciar a que se não formem.
§ 7º Fazer auto de corpo de delito nos casos, e pelo modo marcados na lei.
§ 8º Sendo indicado o delinquente, fazer conduzi-lo a sua presença para interrogá-lo á vista dos fatos existentes,
e das testemunhas, mandando escrever o resultado do interrogatório. E provado com evidencia quem seja o
delinquente, fazer prendê-lo na conformidade da lei, remetendo-o imediatamente com o interrogatório ao juiz
Criminal respectivo.
§ 9º Ter uma relação dos criminosos para fazer prendê-lo, quando se acharem no seu distrito; podendo em
noticia de algum criminoso em outro distrito, avisar disso ao Juiz de Paz, e ao Juiz Criminal respectivo.
§ 10º Fazer observar posturas policias das Câmaras, impondo as penas delas aos seus violadores.
§ 11º Informar ao Juiz dos Órfãos acerca do menor, ou desacisado, a quem falecer o pai, ou que se achar
abandonado pela ausência ou desleixo do mesmo. Informar igualmente ao mesmo Juiz acerca de direitos, que
comecem a existir a favor de pessoas, que não exercerem plenamente a administração de seus bens; e acerca dos
bens abandonados pela ausência de seus donos, falta, ou desleixo de seus procuradores. E enquanto o Juiz dos
Órfãos não providenciar, acautelar o perigo, que possa haver tanto sobre as pessoas, como sobre os bens,
remetendo imediatamente ao respectivo Juiz o auto que a tal assumpto praticar.
§ 12º Vigiar sobre a conservação das matas e Florestas publicas, onde as houver, e obstar nas particulares ao
corte de madeiras reservadas por lei.
§ 13º Participar ao Presidente da província todas as descobertas, que ou casualmente, ou em virtude de
diligencias publicas ou particulares, se fizerem no seu distrito; de quaisquer produções uteis do reino mineral,
vegetal ou animal, remetendo-lhe as amostras.
§ 14º Procurar a composição de todas as contendas, e dúvidas, que se suscitarem entre moradores do seu
103

Marcus Carvalho,

o cargo serviu para absorver ao corpo do Estado ao menos uma parte dos
quadros das elites locais excluídos dos arranjos institucionais do antigo
regime (...). A justiça de paz absorveu ao corpo do Estado um grande número
de homens sedentos por cargos e posições (...) aos atos dos chefes locais,
portanto era concedida legitimidade do Estado Imperial. E o Estado Imperial
em si, saía fortalecido, ampliando suas bases de sustentação e
legitimidade292.

Em 1832, o Código do Processo Criminal não alterou a forma eleitoral de acesso ao


cargo, mas reduziu seus deveres, tornando-o substancialmente um cargo voltado para a
repressão e combate à violência293.
O recém-formado cargo permitiu que um proprietário conseguisse enfim rivalizar
com o poder, por exemplo, de um capitão mor, um juiz de fora ou outros funcionários todo-
poderosos a serviço do Estado no âmbito da localidade. O cargo permitiu que as elites
brasileiras se reorganizassem e conspirassem em torno da forma de conquistar votos, e dessa
articulação decorreram muitas lutas entre elas mesmas294. Vez ou outra um juiz de paz recém-

distrito, acerca de caminhos particulares, atravessadouros, e passagens de rios ou ribeiros; acerca do uso das
águas empregadas na agricultura ou mineração; dos pastos, pescas, e caçadas; dos limites, tapagens, e cercados
das fazendas e campos; e acerca finalmente dos danos feitos por escravos, familiares, ou animais domésticos.
§ 15º Dividir o distrito em quarteirões, que não conterão mais de 25 fogos; e nomear para cada um deles um
Oficial, que o avise de todos os acontecimentos, e execute suas ordens. Ver:
file:///D:/crime%20Bahia%20documentos/pesquisa%20bandidos/Documentos%20digitalizados%20pesquisa/cod
igo%20criminal.pdf. Acessado em 01/03/2017.
292
CARVALHO, Marcus J. M. de. “Eu Também sou Juiz de Paz” – quilombos, estado e resistência no primeiro
reinado. In: MENDONÇA, Sônia Regina de (org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: EDUFF, 2006, p.
24.
293
Art. 12. Aos Juízes de Paz compete:
§ 1º Tomar conhecimento das pessoas, que de novo vierem habitar no seu Distrito, sendo desconhecidas, ou
suspeitas; e conceder passaporte às pessoas que lhes o requererem.
§ 2º Obrigar a assinar termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por habito, prostitutas, que
perturbam o sossego publico, aos turbulentos, que por palavras, ou ações ofendem os bons costumes, a
tranquilidade publica, e a paz das famílias.
§ 3º Obrigar a assinar termo de segurança aos legalmente suspeitos da pretensão de cometer algum crime,
podendo cominar neste caso, assim como aos compreendidos no parágrafo antecedente, multa até trinta mil réis,
prisão até trinta dias, e três meses de Casa de Correção, ou Oficinas publicas.
§ 4º Proceder a Auto de Corpo de delito, e formar a culpa aos delinquentes.
§ 5º Prender os culpados, ou o sejam no seu, ou em qualquer outro Juízo.
§ 6º Conceder fiança na forma da Lei, aos declarados culpados no Juízo de Paz.
§ 7º Julgar: 1º as contravenções ás Posturas das Câmaras Municipais: 2º os crimes, a que não esteja imposta
pena maior, que a multa até cem mil réis, prisão, degredo, ou desterro até seis meses, com multa correspondente
á metade deste tempo, ou sem ela, e três meses de Casa de Correção, ou Oficinas publicas onde as houver.
§ 8º Dividir o seu Distrito em Quarteirões, contendo cada um pelo menos vinte e cinco casas habitadas.
Art. 13. Sancionado, e publicado o presente Código, proceder-se-á logo á eleição dos Juízes de Paz nos
Distritos que forem novamente criados, ou alterados, os quais durarão até ás eleições gerais somente. Ver:
file:///D:/crime%20Bahia%20documentos/pesquisa%20bandidos/Documentos%20digitalizados%20pesquisa/cod
igo%20criminal.pdf. Acessado em 01/03/2017.
294
CARVALHO. Op. Cit., p. 25.
104

empossado se colocava no encalço ou obstaculizava alguma outra autoridade estabelecida


pelo poder de Estado.
Na vila de São Francisco, Santo Amaro e São Sebastião, conflitos de jurisdição
foram um disfarce para práticas de rivalização de poder. Quando o juiz de paz da freguesia de
São Sebastião, termo de S. Francisco, mandou uma representação para o presidente da
província contra o juiz de fora, Manoel Alves Branco, pelos

abusos de poder, atos arbitrários e infrações, que acabava de praticar,


mandando ao cartório do seu juízo, oficiais de justiça, tropa e mais gente,
para tirar, como tiraram, por meio da força, e com insulto e assudada, livro
dos selos dos papéis, que havia criado, e outros processos do mesmo juízo,
assim como um cavalo, que havia sido penhorado295.

Ele levou ao conhecimento do imperador, pedindo que mandasse restituir os papéis.


Por sua vez, o juiz de fora também enviou uma representação em que afirmava que o juiz de
paz transcendia os limites da lei quando colocava bens de desavisados em penhora,

que dava partilhas, admitia como requerentes pessoas não habilitadas por
autoridade legítima, proferia com longas sentenças sobre objetos contestados
pelas partes e de valor excedente a sua alçada, formava processos
executivos, executava penas por ele impostas, sem a confirmação da lei, e
que finalmente cercou um recebedor de selos de papéis, deixando entretanto
de praticar atos de seu dever, como os de fazer os necessários corpos de
delitos, e as indagações suficientes para descobrir os delinquentes, como
tudo constava dos documentos inclusos 296.

O julgamento de tais requerimentos constatou os excessos do juiz ordinário e


concluiu que o juiz de paz combatia excessos com mais outros. Muitas vezes esses conflitos
terminavam em armas, pois ali estava o prelúdio de uma disputa eleitoral e política mais à
frente. A demonstração de força era parte importante desse jogo. Isso fazia o pêndulo da
balança oscilar a favor dos chefes centrais.
Algumas vezes o capitão mor e juízes de paz podiam fazer parte do mesmo
“partido”. Nesse caso, havia uma superconcetração de poder em mãos de poderosos locais.
Em algumas situações, eles desafiavam seus superiores, como ouvidores e juízes de fora e,
com o controle das armas locais em mãos, praticavam o exercício do domínio no mais alto
despotismo.
295
A.N. Ministério da Justiça AI, IJ¹ 1077. 30 de junho de 1829. Resposta do procurador da Coroa.
296
Idem.
105

Em 1827, o capitão mor do distrito de Chique Chique, Alvaro Antonio de Campos,


junto com o juiz de paz, Francisco Xavier, foram acusados de atentar contra a vida de Thomaz
de Aquino297. O motivo desse atentado não é explicado. Mas ficamos sabendo através das
correspondências dos ouvidores mores e juízes de fora da vila do Rio de São Francisco e
Jacobina que nenhum deles foi pronunciado, exceto a vítima. A razão dessa inversão de
procedimentos é o controle dos cargos como os de juiz de paz e capitão mor. Quando estes
seriam pronunciados, homens interceptaram as correspondências e eles nunca chegaram a ser
notificados. Eles eram cercados de bons amigos, que imputaram a Thomaz de Aquino a
condição de agitador contrário àquelas autoridades, pois consta que a 12 de junho de 1826,
procedeu um ouvidor a “um sumário contra Thomaz de Aquino por interter sinistras
comunicações com algumas pessoas daquela comarca para o fim de prenderem aquele
ministro (capitão mor), e ensinarem aquele povo a não lhe obedecer”298.
Desconfiado dos pareceres que chegavam até ele, o ministro da justiça, por conta
daquele sumário, foi obrigado a espalhar desconfiança por todos os lados, tanto dos que
reclamavam do procedimento daqueles dois “ministros”, como deles mesmo. Mandou aquele
corregedor prender Thomaz de Aquino, Manoel do Rego Silva e Feliz Soares de Albuquerque
por pronúncia lançada a 14 de junho de 1826. Mas mandou esse mesmo corregedor soltar os
dois últimos, pois tinha receio, já que havia escutado que “uma porção de gente armada” 299
estava do outro lado do rio São Francisco pronta para invadir a cidade para soltá-los. Numa
outra portaria da secretaria de negócios e justiça, o ministro mandou prender o capitão mor de
Chique-Chique e o juiz Francisco Xavier, além de outros có-reus implicados no ato de tentar
tirar à força da justiça os dois presos.
Sabe-se que o processo de organização das listas eleitorais era por demais propício à
montagem de um eleitorado baseado na coerção, na violência e no clientelismo. Não raras
vezes, famílias e/ou “partidos” fizeram uso de “facinorosos” para resolver suas contendas
eleitorais, roubar cédulas, coagir o lado adversário até o ponto de a situação degenerar para as
ações armadas.
Não menos conflituosas foram as eleições para a Guarda Nacional. Seguindo o
modelo francês de cidadãos armados, os soldados, e especialmente os oficiais, ao se alistarem

297
A.N. Ministério da Justiça, IJ1 706. Bahia; Rio de São Francisco; Chique chique, 02 de outubro de 1827. De
Antonio José de Carvalho Chaves; Idem, 12 de fevereiro de 1827; Idem, 26 de abril de 1827. Felix Garcia
Silveira; Idem, 02 de agosto de 1827. De Miguel Joaquim de Cerqueira e Silva; Idem, Joaquim José Ribeiro de
Magalhães.
298
Idem.
299
Idem.
106

precisavam provar rendas e bom comportamento para pleitear um posto nela. Ocorria que
para alguns postos da alta oficialidade era necessária uma eleição para a escolha dos seus
comandantes. As tropas eram obrigadas a estacionar, fardadas, em local delimitado pelo juiz
de Paz, onde os soldados e outros oficiais votavam em seus Tenentes-Coronéis, Comandantes
e Majores300. Em alguns casos, a Guarda proporcionava prestígio e hierarquia para os que
faziam parte dela, para não falar do poder armado, que ficava sob o controle de oficiais
interessados em política e controle da população livre e escrava das suas regiões. Em outros
casos, especialmente para os soldados, nem sempre se tratava de um posto disputado. Em
alguns casos até se fugia do compromisso, como veremos mais à frente.
Também podemos ver, principalmente a partir da década de 1840, um banditismo, ou
demoradas contendas armadas, em que o usufruto de um cargo de juiz, delegado, inspetor e
até mesmo Desembargador e Ouvidor foi importantíssimo para o surgimento de uma
resolução bandoleira, fosse para assegurar o livre trânsito e salvo conduto para os bandidos,
fosse como ação ilegal respaldada pela autoridade investida em algum cargo, ou mesmo na
disputa pelo cargo através de contínuos ataques e desmoralizações de uma autoridade frente a
outra. A partir da década de 1840 a centralização do poder ficou mais incisiva, e o Imperador,
junto com os presidentes de província, passaram a intervir mais efetivamente no controle dos
cargos públicos. O preterimento de um importante proprietário local em favor de outro
poderia facilmente desencadear uma sucessão de conflitos e banditismo, fosse como acerto de
contas entre as partes em disputa dos cargos ou pela tentativa de minar e demonstrar a
fraqueza de um oponente através da promoção de ataques criminosos em alguma localidade.
Esse processo já havia sido deflagarado em 1834, quando, em meio a tantos conflitos em todo
o Brasil, os liberais deram seu primeiro passo atrás. O Ato Adicional de 1834 atribuiu poderes
à Assembleia legislativa que antes competiam às Câmaras Municipais, levando o foco da
disputa de poder para a capital da província. As elites temiam mais “a desordem do que o
poder central”301.
A “ordem” passou a ser a “palavra de ordem” de todas as elites que finalmente
cederam à institucionalização do poder central nas localidades, mas não sem contrapartida. Os
mais poderosos que quisessem manter o controle das localidades, deveriam fazer isso, naquele
momento, recorrendo ao poder central pelas vias dos seus muitos cargos. Cargos esses
voltados para dar-lhes poder ao mesmo tempo em que empoderavam o Estado Nação. Uma

300
Ver: SILVA, Wellington Barbosa da. Entre a Litúrgia e o Salário. A formação dos aparatos policiais no Recife
do século XIX (1830-1850). Jundiaí: Paco Editorial, 2014, espcialmente cap. 1.
301
GRAHAM... Op. Cit., p. 77.
107

reinterpretação do Ato adicional, em 1840, levou a uma série de conflitos entre conservadores
e liberais que foi resolvida com a posse do Imperador Pedro II, ainda com quinze anos. Daí
em diante formou-se o ciclo do que se convencionou chamar de “regresso”, isto é, o paulatino
caminho da centralização do poder, com um maior espaço de ação das ideias dos
conservadores mesmo entre os liberais. Construir a nação com unidade, escravidão e
latifúndio.
Em 1841, a reforma do código Penal deu mais poderes aos juízes de direito;
proporcionou ao Ministério da Justiça nomear os juízes municipais, que teriam de ser
bacharéis; minou também o poder dos juízes de paz, o mais aferrado ao processo eleitoral
local, transferindo, assim, parte dos seus poderes para os delegados e subdelegados. Estes,
oficiais de polícia, por sua vez,

tinham poder não apenas de prender os suspeitos de crimes, mas emitir


ordens de busca, ouvir testemunhas e redigir o processo contra os acusados –
a única base para julgamentos, assim como julgar casos menores. A nova lei
também autorizava à polícia, ao invés de aos juízes de paz eleitos, nomear os
inspetores de quarteirão, levando assim a autoridade do governo central, pelo
menos em teoria, a todos os cantos do império 302.

A lógica era simples, presidentes de província escolhidos pelo Imperador, que


já havia escolhido o Ministro da justiça, a quem cabia nomear juízes de direito e juízes
municipais. O presidente da província também escolhia um chefe de polícia, que fiscalizava
todas as autoridades, como delegados e subdelegados, também escolhidos pelo centro. Na
base da pirâmide, os inspetores de quarteirão eram designados pelos agentes policiais. Toda
uma estrutura de punição, policiamento e combate ao crime foi um dos aspectos centrais da
formação do Estado Nacional Brasileiro. Eles eram importantes no processo de escolhas
eleitorais de deputados provinciais e da corte. Eleger uma assembleia legislativa alinhada ao
poder central assegurava ao imperador uma assembleia central sob seu controle. Os cargos
que controlavam as formalidades das eleições, como os juízes, e os de controle direto da
repressão, como os delegados e subdelegados, garantiam que as localidades não mais
entrassem como fonte de discórdia e distúrbios na governabilidade imperial, mas como
agentes da paz e unidade nacional.
Mas é óbvio que essa lógica funcionava em teoria – ou na prática era assegurada de
modo não tão funcionalista. O divergente sempre aparecia com sede de conquistar alguns
302
GRAHAM... Op. Cit., 79-80.
108

desses cargos que lhe abririam a possibilidade de controlar disputas de bens testamentários, de
terras, de controle institucional das armas, ou melhor, da institucionalização burocrática de
suas milícias, de assegurar um recrutamento que lhes favorecesse, entre outras situações.
Ao invés de “cultura da violência”, temos uma burocracia estatal da violência. Não
era ausência do Estado central, nem excessivo poder privado, e nem tão pouco desgoverno,
que gerava conflitos entre potentados ou famílias ou banditismos, mas o que estava em
questão era a importância de que se revestia o sujeito que entrava em contenda por estes
cargos de controle e poder. Alguns postos eram tão importantes que o governo oscilava o
modo de conduzir o acesso a eles para melhor controlar essas autoridades, ora o tornando
eletivo, ora através de indicações desde cima. Nos interiores das províncias notamos que na
maioria das vezes os cargos responsáveis pela repressão, prisão e violência “legal” eram as
únicas presenças estatais que certos distritos conheciam. A esta estrutura de poder
chamaremos, de maneira parecida com a que Florestan designou, de burocracia da violência.
Ela era o alvo principal das disputas das famílias, potentados e poderosos locais. Muito do
que conhecemos como guerra de famílias, foi antes de tudo uma luta pelo controle legal do
poderio armado, oportunizado pelos movimentos de cima para baixo, e vice versa, de
construção da unidade nacional.
Essa estrutura tentava conciliar pelo alto, e com os do alto, uma via mais consensual
de governança da nação, no entanto, era a partir da violência e da coerção que ela se revestia
propriamente de poder político.
Prova do papel central da coerção e da construção policialesca do Estado é o fato de
que a nação foi construída sem um código civil, mas, ao contrário, tendo um código criminal e
um código penal concebido e pensado desde a constituição de 1824, que foi sendo retocado
até 1842303. Uma relação que fazia da cidadania do sujeito oitocentista, principalmente os
homens pobres e livres, um acontecimento apenas para aqueles que conseguiam escapar das
diversas formas de criminalização social.
Segundo Américo Jacobina Lacombe, os códigos, como fruto de uma “vitória do
espírito liberal”304, foram desde o primeiro dia de sua implementação atacados pelos
conservadores, que conseguiram alterá-los nos primeiros anos da década de 1840. O Código
Criminal e o Código do Processo eram, de fato, uma das trincheiras fundamentais do poder de

303
Sobre esse processo ler a introdução de DANTAS, Monica Duarte. Introdução: Revoltas, Motins, Revoluções:
das Ordenações ao Código Criminal. In: ____ (org.). Revoltas Motins Revoluções. Homens livres pobres e
libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
304
LACOMBE, A. J. A Cultura Jurídica. In: HOLANDA, S. B. De. 1965. Op. Cit.
109

Estado. Com a implementação deles, além de parte das Ordenações Filipinas 305, vários outros
cargos coloniais foram substituídos: desapareceram os ouvidores, os juízes de fora, entre
outras magistraturas que foram substituídas pelos juízes de paz, juízes municipais, juízes de
direito, entre outros que procediam de forma muito mais incisiva no controle das localidades.
O motivo pelo qual o Código Criminal foi tão duramente combatido, até a sua
reforma em 1842, foi o seu caráter descentralizador de poderes. Os juízes eram eleitos
diretamente por homens listados a votar, como no caso de juízes de paz, ou, como no caso dos
juízes municipais, escolhidos pela Câmara de Vereadores. O Juiz de direito era escolhido pelo
imperador ou presidente da província, mas era obrigado a circular por várias comarcas
durante o período de exercício das suas funções. Esta era uma das formas, entre tantas, com
que o poder central tentava se resguardar do liberalismo descentralizador, ao passo que a
descentralização cedia espaço para a unidade escravista e ordeira que também era desejada.
Era tão notória a necessidade de se administrar esses poderes com vistas a evitar o
conflito ou a concentração de poder nas mãos dos mandatários locais que, no seu capítulo três,
existia uma disposição que regulamentava sobre as “suspeições e recusações”:

Art. 61. Quando os Juízes forem inimigos capitais, ou íntimos amigos,


parentes, consanguíneos, ou afins até segundo grau de alguma das partes,
seus amos, senhores, Tutores, ou Curadores; ou tiverem com alguma delas
demandas, ou forem particularmente interessados na decisão da causa,
poderão ser recusados. E eles são obrigados a darem-se de suspeitos, ainda
quando não sejam recusados306.

Essas relações de inimizades e amizades eram percebidas pelos governos centrais,


que, de acordo com Richard Graham307, jogava com elas na constituição do poder central
através de uma rede clientelista que agia de modo horizontal, como é típico do clientelismo,
mas também de modo a verticalizar a estrutura do poder no Brasil. Para este autor, que aqui
acompanhamos no nosso argumento, o clientelismo era uma rede de apoios mútuos entre
senhores rurais em escala nacional e local. Nessas relações políticas, os cargos públicos
cumpriam um papel de reforço da “liderança natural” desses senhores ao mesmo tempo em
que permitiam a penetração da autoridade estatal através da sua personificação nessa mesma

305
Código de leis civis e penais implantado no governo de Filipe II, por volta da última década do século XVI.
Para ler mais sobre esse código leis ver LARA, Silvia. Ordenações Filipinas. Livro 5. In: ____. introdução. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
306
ver:file:///D:/crime%20Bahia%20documentos/pesquisa%20bandidos/Documentos%20digitalizados%20pesqui
sa/codigo%20criminal.pdf. Acessado em 01/03/2017.
307
GRAHAM... Op. Cit. 1997.
110

liderança patriarcal entre sua profunda rede clientelar composta de outros senhores,
agregados, familiares de diversos graus, entre outros. Claro que esse processo não era simples
e sem tensões. Muitas vezes, ocupantes de

cargos, em diferentes níveis do governo, chocavam-se frequentemente uns


com os outros, tanto que as autoridades centrais algumas vezes lutavam
contra os donos do poder local, mas, nos dois extremos e em todo o sistema
político, fosse qual fosse o seu partido (...)308.

Essas autoridades se encontravam em aliança através da defesa dos interesses


agrários e escravocratas, o que incluía o controle da população livre. Contudo, esse era um
sistema com ampla aceitabilidade entre as classes senhoriais, pois se assentava em uma
tradição de conduta aceitável por muita gente, mesmo fora desse universo elitista. Tratava-se
de uma maneira de montar alianças intraclasse e extraclasse. Assim, um conflito entre esses
senhores era visto muito facilmente como uma guerra de famílias ou uma “cultura política” de
um universo “sem política” e sem Estado. O que Graham, e nós, estamos tentando demonstrar
é que o clientelismo, que de fato é uma relação à primeira vista assentada entre indivíduos que
desigualmente trocam “favores” desiguais numa esfera aparentemente privada, foi o
mecanismo fundamental na consolidação de um tipo de dominação estatal. O século XIX é
uma tentativa perene de aperfeiçoar e pôr em funcionamento, com o menor risco possível para
os grandes proprietários, essa “técnica de dominação”309.
Entre os riscos evidentes que corriam os proprietários, estava o “faccionalismo” entre
famílias e grupos sociais. As eleições acirravam estas disputas. Eles disputavam o poder
simbólico do Estado, isto é, “um efeito específico de mobilização (...) reconhecido, quer dizer,
ignorado como arbitrário”310 pelos grupos sociais em contenda. Isso significa dizer que as
tensões tinham que ser dirimidas num palco aceitável para todos, desde os grupos sociais
subalternos até as elites imperiais, senão o palco tenderia abertamente para o dissenso e a
desordem que aquele Estado não tolerava. Era preciso ser mais cirúrgico na forma de intervir
nos bens simbólicos e materiais do Estado. Era preciso delegar, através de figuras chaves nas
localidades, o papel de conquistar e agregar lideranças fundamentais para a constituição de
um bloco de poder nas regionalidades e consequentemente nas municipalidades 311 que

308
Idem, p. 21.
309
Idem, p. 43.
310
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 14.
311
Dilton Araújo chamou esse processo de formação de “grupos hegemônicos regionais”. O momento fundador
desse propósito do poder central, para ele, é o Ato Adicional de 1834. ARAÚJO, Dilton. “O Estado brasileiro
ante os conflito políticos no sertão da Bahia do século XIX”. In: NEGRO, Antonio Luigi; SOUZA, Evergton
111

pusesse fim a tantos conflitos geradores de crimes, banditismos e guerras intestinas.


A governabilidade imperial se deu num processo em que os gabinetes regenciais
quase não governavam mais contra as lideranças locais, mas buscavam liderar através delas,
num cálculo que levava em conta quem era o chefe mais forte e poderoso para contar com o
apoio do governo central. E estes potentados, por sua vez, tentavam não se opor ao governo,
mas participar dele312.
Desde 1822 que a conformação do Estado abriu a possibilidade para vários tipos de
conflitos, insurreições, lutas federalistas, rebeliões escravas, entre outros. A estruturação desse
Estado passou por percalços e formas variadas. Desde o Estado quase que descentralizado até
o Estado na sua forma dos anos 1840 em diante, as modificações sofridas abriram brechas
para conflitos internos entre grandes senhores, que usaram de ações armadas para alcançar
suas posições políticas desejadas. Ora lutavam contra eleições que consideravam injustas –
“injustiça” aqui pode significar apenas a derrota numérica nas eleições – ora lutavam para
enfraquecer seus opositores e se constituírem como alternativa de mando para o Governo
central. O certo é que recorreram às armas sob o pretexto de pleitos que deveriam apassivar a
vontade de poder pela força e, com isso, geraram um banditismo que incomodou o Estado,
pois seus conflitos, que por si só já representavam um grande incômodo, abriam ainda brechas
para que surgisse um outro banditismo, de feição mais subalterna, com ações independentes
de homens livres e pobres que negociavam suas ações e mantinham reivindicões e inimigos
que atacavam nas frestas dos conflitos senhoriais.
Este é o foco que lançamos sobre esse objeto. Ao invés de focar nas lutas de famílias
enquanto representação dos conflitos típicos do poder privado, pensamos os conflitos
enquanto lutas de frações das classes senhoriais pelo poder de Estado. E através desse mesmo
olhar, deixamos de lado a forma típica de narrar as ações dos “capangas”, “jagunços”,
“agregados”, “satélites”, “peito largos e “valentões”, vinculados às frações em guerra. O
modo tradicional de interpretação dos historiadores fez com que a historiografia normalmente
narrasse várias ações armadas sob o manto de “luta entre famílias”. Ao entender esses
conflitos como lutas familiares tratavam esses sujeitos como gentes das casas do lado A ou do
lado B do conflito. Assim suas histórias são narradas: como as de sujeitos sem vontade
própria, sem agência. Entrando em guerras de outras pessoas, por uma cultura da valentia, da
honra, da fidelidade, entre outras explicações que explicam pouco além das determinações

Sales; BELLINI, Lígia. (org.). Tecendo Histórias. Espaço, política e identidade. Salvador: EDUFBA, 2009, p.
148.
312
GRAHAM... Op. cit., 1997, p. 17-18.
112

culturais.
Sugerimos neste texto que a relação entre facinorosos, bandidos e mesmo gente das
casas de fazenda que entram no exército privado de um dos lados é uma negociação, ou, no
máximo, uma relação que existe com contrapartidas. Obviamente se trata de uma relação
subalternizada, mas há na forma de organização dos grupos sociais subalternos uma prosa
própria que é preciso ser compreendida, ainda que contemos com poucos registros para isso.
Impressiona na documentação a quantidade de vezes que os bandidos aparecem tanto
como protetores como protegidos. Estar na condição de protegido abre brecha para uma
negociação silenciosa. Revela motivos para o envolvimento desses homens em disputas
políticas e familiares de proprietários e políticos. Estar sob a proteção destes últimos permitiu
que esses bandidos algumas vezes gozassem de uma liberdade que não teriam como ter no
modo de vida que levavam. Passavam com isso a frequentar o universo das pequenas e
médias cidades. Flanavam pelas ruas, onde bebiam cachaça com outros homens de sua
condição, frequentavam as feiras, tinham liberdade para, ocasionalmente, realizar ações
armadas individuais autônomas sem serem por demais molestados, afinal se tratava de alguém
protegido por algum poderoso. A sensação de impunidade permitia-os usufruir de certa
liberdade. Era como um proscrito ser inscrito.
Vejamos um caso que nos chamou a atenção. Sinfrônio Olímpio, juiz municipal
recém-empossado de Jacobina, relatou para o presidente da província que, ao chegar àquele
local para cumprir suas funções, “ganhou a inimizade”313 de um senhor chamado João José de
Souza Rabello, bastante conhecido segundo o autor por crimes praticados em lugares
próximos. Sinfrônio Olímpio alegou que a desconfiança por parte daquele homem se devia ao
fato de o mesmo Sinfrônio ser declaradamente inimigo do Tabelião Nicandro 314, outro sujeito
“conhecido igualmente, nesta vila, pelo seu gênio perverso” 315. Desde a sua posse, o Juiz
Municipal passou a ver circundando sua residência e frequentando a casa de Rabello um
“cabra bastante robusto, desconhecido no lugar, mal encarado”, reparando-lhe muito. Esse
cabra era conhecido por João, com o apelido de Boa Fazenda, e seria capaz de realizar
diversas “empresas incumbidas por malvados”. O tal homem passou a cumprimentar
Sinfrônio com muita alegria e destrezas, acompanhado por outro cabra “vestido de gibão de

313
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Jacobina, 02 de janeiro de 1847. De Sinfrônio Olimpio Cambuiz, 2º
substituto do juiz Municipal, e do delegado, Manoel Fernandes Barreto, para presidente da província.
314
Falaremos dele mais a frente em outro capítulo.
315
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Jacobina, 02 de janeiro de 1847. De Sinfrônio Olimpio Cambuiz, 2º
substituto do juiz Municipal, e do delegado, Manoel Fernandes Barreto, para presidente da província.
113

couro e também desconhecido”316, quando perguntavam às pessoas “pelo irmão Olímpio”317.


O Boa Fazenda recebeu mais três homens vindos de Vila Nova da Rainha e não deu
conhecimento, como de costume, às autoridades, o que fez o juiz municipal perguntar ao
inspetor Licínio o motivo de ele não ter cumprido com suas obrigações. Quando o inspetor foi
averiguar a situação, foi informado de que aqueles homens tinham ido tratar de negócios e
haviam permanecido ali para as festas. Sinfrônio pediu destacamento. Quando este chegou o
tal Boa Fazenda foi preso, e com ele foi encontrada uma grande faca de ponta dentro de seu
colete, o que foi testemunhado por várias autoridades. Ao ser perguntado por seus
acompanhantes, Boa Fazenda disse que um deles se chamava Sertão e o outro João Francisco.
Segundo Sinfrônio Olímpio, as vítimas de Boa Fazenda seriam ele e mais duas autoridades,
embora ele afirmasse também que as respostas do inquirido eram equívocas e não diretas.
Importa menos, por hora, sabermos se se tratava de uma teoria da conspiração
criada pelo Sinfrônio Olímpio para, de forma antecipada, prevenir qualquer retaliação por
parte de seus inimigos, retirando-lhes previamente seus jagunços. De todo modo, é notória a
liberdade de ir e vir de que gozava Boa fazenda. Inclusive trazendo outros de seus aliados
para a vila sem que passassem pelo crivo da autoridade local. Cumprimentos, passagens
próximas à casa do alvo, a prática de um terrorismo cínico que só era possível para quem se
sentia de algum modo seguro e respaldado para atacar no momento mais apropriado. O
pequeno grupo de bandidos até deve ter ido à festa antes dos “negócios”. Provavelmente, a
ordem não era para matar, mas para “colocar no lugar”; o ritual de ameças veladas devia
servir para esse fim. Mas Sinfrônio Olímpio, escolado como era, pois vinha de conflitos com
outro peso pesado do banditismo senhorial, Nicandro Albino, deve ter se antecipado a esse
jogo.
O juiz municipal parecia ser escolado não apenas no combate aos criminosos, mas
também na arte de conhecê-los e de agir como eles, o que gera as suspeitas de que se utilizava
com frequência de expedientes criminosos, ou criminalizantes, para atuar politicamente
através de seus cargos.
Em 1845, antes, portanto, da querela descrita acima, Olímpio foi acusado de incitar,
na condição de primeiro tabelião de Jacobina, o ódio entre famílias por conta do espólio de
herança de uma viúva. A briga pelo dinheiro levou à tentativa de morte de um homem. Os
acusados foram um juiz Municipal e o delegado de polícia, que há cinco meses tinham
acoitado um foragido de nome João José, que dizia ser tangedor de boiada e que havia
316
Idem.
317
Idem.
114

aparecido por ali cinco meses antes. Eles o “tomaram como camaradas” 318. Os criminosos –
havia também um escravo na participação do ato – foram identificados por terem deixado no
local alguns apetrechos que foram reconhecidos por várias pessoas como seus. As armas
foram conhecidas por ferreiros e marceneiros que haviam realizado consertos recentes nelas.
O tabelião Olímpio, segundo o autor do documento, havia se tornado “mandarim” 319 do lugar,
pois intervia nas eleições há muito tempo e, com a ajuda daquele juiz Municipal, escolhia e
tirava gente da lista de alistados da Guarda Nacional. Quando estava para ser preso, conseguiu
ajuda da Guarda Nacional, do subdelegado e de parentes e se safou da situação.
Juiz e delegado se acamaradaram de um fugitivo, deram-lhe proteção e abrigo, ao
ponto de tornarem-se figuras conhecidas na localidade por seus pertences pessoais, e na hora
em que precisaram dele a negociação entre as partes parece ter se consolidado.
Em outro caso, após ter sido acusado por um grupo de proprietários, o juiz municipal
Joaquim de Azevedo Monteiro, respondeu ao presidente da província, para quem fora
mandada a queixa sobre ele, que as acusações que aquelas pessoas lhe faziam, em destaque a
de “que criminosos de todas as classes vagavam pelo município, e mesmo por toda a vila, sem
que haja providências para suas capturas, antes apoio a eles”, eram falsas e fruto do fato de
que ele, ao proceder corretamente, desorganizou esquemas de corrupção, roubos de terras,
entre outras ações praticadas por aqueles senhores.
Em sua resposta, Joaquim de Azevedo afirmou categoricamente o modo seguro de
vida daqueles bandidos, protegidos pelos mesmos senhores que lhe acusavam de defender
criminosos:

a increpação é vaga, mas desgraçadamente é tal a imoralidade e o nenhum


respeito às autoridades nestes lugares, onde não tem força alguma a sua
disposição, que qualquer dos queixosos se apresenta com criminosos em sua
sequela, e sem que eu possa providenciar, porque sendo eles os oficiais da
Guarda Nacional e suplentes das autoridades policiais, tudo fazem confiando
em que o delegado não tem outra força mais do que a dita guarda que eles
dirigem, e quando faz qualquer diligência eles as destroem quando entram na
vara de suplentes e processam as autoridades efetivas para poder levar a
efeito seus planos acintosos as ditas autoridades e prejudiciais a causa
pública320.

318
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1840-1846. Maço 2431. Jacobina, 08 de março de 1845. De Manuel Fulgêncio de Figueredo,
Juiz Municipal e delegado de policia, para presidente da província.
319
Idem.
320
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Vila da Purificação dos Campos, comarca do Inhambupe. 12 de
novembro de 1845. De Joaquim de Azevedo Monteiro, Juiz municipal da vila de Inhampube, para Presidente da
115

Os criminosos não teriam com o que se preocupar, afinal, polícia ali não tinha; a
Guarda Nacional estava do lado deles; e o julgamento era controlado por suplentes escolhidos
pelos poderosos locais. Porque então não se juntar a algum poderoso e usufruir de uma vida
sem estrada, perseguição, recrutamento? Se tudo desse certo nos planos daqueles senhores, até
mesmo a possibilidade de confrontos em um tiroteio era baixa. Sobressai o fato de que o Juiz
Municipal não nega andar com criminosos, seus protegidos, ressaltando apenas que todos “em
sua sequela” andavam com homens como aqueles. Parece como se o juiz se protegesse do fato
de que não havia ali força policial, sendo que a que havia era corrompida, acoitando
criminosos também.
Seus protetores não permitiam que fossem presos nem recrutados. Quando eram
presos, tentavam dar um jeito de soltá-los; e, quando não conseguiam, arrombavam prisões e
promoviam fugas.
Um juiz de paz, Antonio Mello da Cunha, enviou para outro juiz de paz, Ildelfonso
de Alvarenga Silveira, uma notificação esclarecendo os motivos pelos quais não atendeu à
ordem de habeas corpus para livrar da cadeia um réu chamado Amaro do Sacramento, “cuja
ordem me acaba de justificar para com o público de que vossa senhoria, seu irmão, José
Marcolino, Luiz Antonio da Costa Coelho, o Vigário Jacinto de Freitas, ligando-se a canalha
malvada e perversa”321 tentavam de todo modo “e de propósito tornar coacta a minha
jurisdição. E perder o município”322. O crime do reú foi o de tentar arrancar a faixa de Juiz de
Paz de Antonio Mello. Disse este que o “cabeça” de tudo o que se passava era o juiz
municipal, que tem “abusado de todas as autoridades constitucionais, passando a seduzir os
povos com maiores escândalos possível” [...]; “Louva-lhe muito (ilegível) os senhores do seu
partido a proteção que dão aos malvados e a canalha perversa” 323.
Também era comum que essas autoridades empregassem nas forças policias os
jagunços que cooptavam. Em Jacobina, um cidadão, Eduardo Dias de Moraes, denunciou um
juiz de direito por ter acumulado diversos cargos, usando-os todos para se beneficiar
ilegalmente. O juiz intervinha bastante na Guarda Nacional, impedindo o autor da denúncia de
ocupar cargos nela. Por conta dessa situação, uma série de assassinatos e roubos voltou a
acontecer na vila, o que segundo Eduardo Dias não acontecia há mais de vinte anos, ficando

província.
321
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6392. Vila de
Belmonte, 13 de maio de 1833. De Antônio da Cunha de Melo, Juiz de Paz, para Juiz de paz, Ildefonso de
Alvarenga Silveira.
322
Idem.
323
Idem.
116

os indiciados com livre circulação e armados pela cidade. O juiz de direito, nas palavras do
acusador, nomeou para corneta um parente que não sabia tocar o instrumento; estabeleceu
“dois [guarda] costas nunca vistos”, mas pertencentes ao seu estado maior, para sargento de
armada, trabalhando privadamente para ele; mandava também prender guardas e até mesmo
oficias da Guarda Nacional324.
Em Santo Amaro vemos uma autoridade policial, o major Manoel Domingues de
Menezes Dória, controlar um grande número de malfeitores para praticar roubos e outras
ações armadas. Segundo o documento, ele tinha “por sua conta a lista dos valentões e
assassinos”325 daquele lugar, e não havia juiz que abrisse processo contra ele. O presidente da
província nada podia fazer, a não ser tirá-lo da ativa, como sucedia também a tantos outros
oficiais da guarda que usavam a farda para cometer crimes. No entanto, sendo o major
também fazendeiro, “restam-lhe ainda grandes meios de conservar a sua influência, e de ir
dando cabo de quem quiser”326. Mesmo as tentativas de recrutamento podiam atacar seus
comparsas, mas não ele propriamente.
Quando ocorreu um dos assassinatos perpetrados pelo Major, nenhum médico quis
ou pôde fazer o corpo de delito, com medo daquele agrupamento de foras da lei. Nenhum
inquérito foi aberto, pois não havia homem nem mulher para desafiá-lo e testemunhar contra
ele327, e, como de “costume”328, não seria possível fazer justiça.
O major Domingues era, segundo outro documento, o “protetor da turba maléfica” 329
de “réus de polícia conhecidos, que servem só de cometer crimes por mandados de outros, ou
de motivos próprios, e constituem pela maior parte uma clientela, comandada” 330 por ele, que
quer resolver as vinganças suas e alheias. Às suas ordens executavam-se pessoas, soltavam-se
presos ou se liberava da prisão, e para combatê-lo somente uma guarda vinda de fora seria
eficiente.
Entre seus protegidos estavam vários notórios criminosos daquela região:

324
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1840-1846. Maço 2431. Jacobina, 10 de setembro de 1842. De Eduardo Dias de Moraes, para
presidente da província.
325
A.N. Ministério da Justiça, AI IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia. Santo Amaro, 27 de junho de 1846. João
Lourenço Athaide Seixas, Delegado, para o Chefe de Polícia da província.
326
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Santo Amaro, 11 de junho de 1846. João Lourenço Athaide Seixas,
Delegado, para o Chefe de Polícia da província.
327
Idem. Santo Amaro, 20 de junho de 1846. João Lourenço Athaide Seixas, Delegado, para o Chefe de Polícia
da província.
328
Idem. Santo Amaro, 11 de junho de 1846. João Lourenço Athaide Seixas, Delegado, para o Chefe de Polícia
da província.
329
Idem. Palacio do Governo, 08 de julho de 1846. Do presidente da província para o ministro da Justiça.
330
Idem.
117

“Cléto pardo, mandatário de tudo; O Cara Preta – Pardo; Manoel Joaquim,


companheiro do cara preta; Eslebão, pardo, sapateiro e solteiro; Januário,
crioulo aparecido; José Camilo, pardo casado, não vive com a mulher; Luiz
Matheus – cabra, solteiro; Victor, crioulo – sapateiro; José Tresena,
sapateiro, solteiro; Francisco Tresena, Ferreiro, solteiro; José Gregório,
pardo, ferreiro, solteiro; José Domingues, que dizem dera um tiro [em um]
guarda policial – achase afiançado por Manoel Domingues Menezes Dória;
Manoel José do Espírito Santo; Dourado, pardo, filho único que não quer
saber da mãe; Bernadino Monteiro – pardo, solteiro; Luiz Funileiro, pardo,
solteiro; José (Lelé) do Calolé, pardo, solteiro; Antonio – da estrada do
Jericó, pardo, solteiro; Dodó Theodózio, liberto da irmã do Padre Luiz
Antônio; José Bonifácio – companheiro do Cara Preta; Bernadino, crioulo da
estrada do Jericó; Marcolino da Purificação; O irmão de José Gregório –
ferreiro 331.

Os desmandos do Major mereceram um comentário que enfatizava a ideologia


centralista e dualista entre o governo dos sertões e do recôncavo: “o que se diz hoje de Santo
Amaro nada mais é que o sistema do Sertão ao mais aproximado da Capital, porque a mesma
impunidade, e pelos mesmos motivos, formam o estado normal das comarcas do interior” 332.
Qual seria o sistema dos sertões? E qual seriam esses motivos? É possível observar que o
presidente da província afirmara que aquele grupo de bandidos servia a uma “clientela”. No
caso, provavelmente uma relação de clientela política do Major e seus aliados em busca de
poder político, cargos e autoridades. Para isso, como estamos tentando mostrar, era preciso
dispor de uma rede de apoio político, jurídico, policial, além de milícias de homens
“facinorosos” que estavam por ali para proteger seus clientes e serem protegidos quando
cometessem seus atos “a mando de outros” ou, faz-se importante lembrar, “de motivos
próprios”.
Quando os poderes centrais, nacionais e provinciais, determinaram que novos cargos,
como chefes de polícia, delegados, subdelegados, entre outros, seriam de prerrogativa da sua
escolha, alteraram a correlação de forças nas localidades gerando sentimentos de
arbitrariedade entre os pleiteantes e, consequentemente, conflitos. Este foi o caso trabalhado
por Dilton Araújo para entender o conflito duradouro entre o “séquito” do Comendador
Militão França Antunes e os Guerreiros na Vila de Pilão Arcado que tomou conta de boa parte
da região central e norte da província da Bahia na década de 1840333. Quando o governo
escolheu familiares dos Guerreiros para postos da Guarda Nacional, vedando-a às redes
clientelares de Militão, este se insurgiu através de uma guerra prolongada contra a família
331
Idem.
332
Idem. Palácio do Governo da Bahia, 27 de junho de 1846. João Lourenço Athaide Seixas, Delegado, para o
Chefe de Polícia da província.
333
ARAÚJO... Op. cit., 2009, p. 149.
118

daqueles Guerreiros334.
Ambas as famílias e seus aliados se debatiam em torno dos espólios estatais de
governança e poder armado. O que confirma a tese de Richard Graham de que “quem retinha
o poder”, ainda que um poder emanado do centro, eram os organismos burocráticos nacionais
que se instalavam no controle populacional das localidades: delegados, subdelegados, juízes
municipais e juízes de direitos335.
A relação entre poder central e poder local era uma negociação contínua, como já
explicamos. Isso pode ser entendido se pensamos no caso acima ilustrado: a posição do
governo federal, no conflito entre Militão e Guerreiros, se movimentou de início no sentido de
apoiar e fortalecer a família Guerreiro e sua clientela com cargos e apoio militar para
perseguir Militão e, progressivamente, evoluiu para uma posição que perdoou Militão pelo
seu banditismo, tendo-o presenteado ainda com cargos estatais. O Governo central buscava se
tornar forte e hegemônico e, para tal, fazia uso das clientelas locais, normalmente se
fortalecendo junto àquelas que já possuíam poder, votos e espectro amplos. Os senhores, por
sua vez, conseguiam equipamentos, armas nacionais, tropas provinciais, guardas nacionais,
além do “poder simbólico” necessário para sua empresa, fundindo tudo num só interesse das
classes senhoriais escravocratas, do qual o Estado era, com todas as tensões, seu condottiere.
A Guerra entre Militão e Guerreiros, e outras que serão aqui também discutidas,
nunca se converteu por nenhum dos dois lados em um conflito contra o Estado. Foram
episódios descritos por quase todos seus pesquisadores como um conflito familiar. Não
obstante, foram conflitos pelo Estado, pelo poder de se apropriar e de usufruir dele e de suas
funções em nome de suas clientelas.
Vale destacar que mesmo quando as disputas estavam vinculadas a aspectos mais
relacionados ao âmbito da vida privada, como no caso do conflito entre os Canguçus e os
Mouras e os Castros, o poder dessas funções estatais foram notavelmente usados para angariar
apoios, evitar processos e proteger bandidos, que eram parte do sistema de luta política dos
territórios rurais da província.
No mais, é possível notar um banditismo autônomo, federalista, que marcha com
autonomia e independência em relação a seus patrões de guerra, mas que cumpre uma unidade
de propósito com a destruição dos inimigos dos seus aliados.

334
Idem, p. 141.
335
“Quem retinha o poder?” é o título de um dos capítulos do livro já citado aqui de Graham. Op. Cit., p. 77-102.
119

Capítulo 5
A guerra entre Militão e Guerreiros. Do banditismo da política à política
do banditismo.

Os poucos autores que escreveram sobre a “guerra civil” sertaneja entre a família
França Antunes, encabeçada por Militão Plácido de França Antunes, e a família Guerreiro têm
certo consenso em estabelecer que o motivo para o estopim do conflito foi a designação para
postos importantes da Guarda Nacional de familiares dos Guerreiros, o que alijou os França
Antunes de tais posições no iniciar da década de 40 do século XIX 336. A exceção a essa
explicação fica por conta de Wilson Lins 337, que afirma ter sido a desavença pela perda de
postos da Guarda Nacional apenas o primeiro dos entreveros, ainda em 1832. Para esse autor,
teriam sido os França Antunes desprestigiados nos cargos para a Guarda, mas o estopim do
conflito teria sido o fato de o Vigário da Freguesia, Dom Félix Castelo Branco, ter deixado
(com o seu falecimento) como tutor do seu filho o patriarca Bernardo Guerreiro.
Esse sistema de guarda de menores e suas heranças geravam muitos conflitos, é bem
verdade. Administrar recursos de órfãos era uma maneira rápida e direta de enriquecer, ou
aumentar a riqueza, com poucos esforços, bastando para isso gerir os bens dos menores de
forma a valorizar os seus próprios ou mesmo, de forma subreptícia, confundi-los com os seus
através de uma anexação ilegal338. Receoso pelo crescimento daquele “maroto” e desejoso
daquelas riquezas que, esperava, fossem parar em suas mãos, sentiu-se traído o Militão
Antunes e exigiu uma audiência com as autoridades para chegar a um termo que não o
excluísse. Teria nessa reunião, ainda segundo Lins, acontecido uma ofensa física a Militão
Antunes que o fez jurar de morte os familiares daquele senhor Bernardo Guerreiro.
Para Lins, os anos de 1830-1832, em que o Brasil se viu engolido por novos conflitos
de feições antilusitanas, foram o pano de fundo, o “condimento” para o conflito entre aqueles
familiares. A família França Antunes vinha de tradição de orgulho antilusitano, já que havia
sido uma das grandes famílias sertanejas a levar homens para o recôncavo para lutar ao lado

336
ARAÚJO, Dilton. Op. cit., p. 141 afirma ter sido em 1842. Já NEVES, Erivaldo Fagundes. Poder Local
Oligárquico: Alto Sertão da Bahia. Revista Sitientibus, n. 15, Feira de Santana, 1996, p. 238, afirma ter sido em
1843.
337
O Médio São Francisco uma Sociedade de Pastores Guerreiros. Coleção Brasiliana. Vol. 377. São Paulo;
Editora Nacional; Brasília: INL, 1983, p. 41-58. Ele basicamente acompanha a narrativa de outro autor;
ROCHA, Geraldo. O Rio São Francisco. Fator precípuo da Existência do Brasil. Coleção Brasiliana. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.
338
Veremos mais a frente quando tratarmos da família dos Cangussús um sistema de corrupção que envolveria
bens de órfãos.
120

do “Exercito pacificador” e pela independência do Brasil.


Como já dissemos, uma das formas de o Imperador demonstrar sua gratidão e alçar
uma elite local ao poder, após a vitória de julho de 1823, foram as benesses de cargos. Perder
cargos importantes, especialmente aqueles voltados para o controle armado da população, era
um desprestígio para uma elite que se associava às esferas mais centrais de poder – e que por
isso mesmo conservava seu poder local – através deles. Erivaldo Fagundes Neves chamou
essa classe senhorial sertaneja de “oligarquia fardada”. Ele mostra como ela era sedenta pela
ocupação militar e miliciana do poder político e econômico desde o período colonial,
permanecendo assim até a República339.
Os Guerreiros passaram a ganhar as predileções imperiais por conta da maneira
como o Estado parecia querer conduzir dali em diante seus negócios para com os potentados
locais: mais obediência, maior confraternização com autoridades designadas do centro, maior
rotatividade com aqueles que ocupam poderes em determinados territórios, menos autonomia
militar, etc. Faz parte desse movimento a resolução do Estado de escolher os comandantes e
oficiais da Guarda Nacional.
A Família Antunes tinha uma longa lista de crimes, desmandos e conflitos
intraoligárquicos. Lideranças locais deste tipo desvaneciam os planos imperiais de
centralização e unidade entre as elites em uma classe que dirigisse o Império. Os Guerreiros
parecem ter surgido como substitutos eminentes. Prósperos, ricos, anexando terras e escravos
através de casamentos e alianças familiares menos turbulentas. Pareciam estar mais
disponíveis aos planos de agregação e captação das elites interioranas.
Para o governo central, o ideal seria manter a relação com todos os grandes
potentados dentro de seu arco de aliança, mas nem sempre “o sistema [clientelista] tinha
capacidade de absorver a todos que pretendiam (...). E isso podia, também, constituir-se em
elemento de instabilidade”340. Como havia muita variação política entre os ocupantes do
Gabinete de Governo Imperial, que ora buscavam aliança com os liberais e ora com os
conservadores, era muito comum que os conflitos políticos degenerassem em conflitos
armados que envolviam bandidos, “vadios”, agregados, jagunços, “peitos largos”, enfim, uma
grande variedade de desclassificados sociais. Na ânsia de manter algum controle político e
econômico local, quando perdiam postos públicos ou eram derrotados eleitoralmente pela
máquina de Estado, esses potentados se associavam diretamente às suas redes clientelares

339
NEVES, Op. Cit., 1996, p. 321-340.
340
ARAÚJO... Op. Cit., 2009, p. 300.
121

para angariar, através da compra, da troca ou do aluguel, o gatilho de homens livres, de


diversas cores e condições sociais, para impor o seu respeito e sua força sem o aparato
burocrático e militar da violência até que a dança das cadeiras se mexesse de modo que
pudessem, enfim, novamente, fazer uso dessa mesma clientela de modo burocratizado em
nome do poder de Estado. Um cálculo equivocado sobre a correlação de forças locais poderia
levar a região de uma província a muitos conflitos. Um homem poderoso podia perder postos
da Guarda Nacional, mas se esta não estivesse bem organizada a favor da nova correlação de
forças, com juízes autônomos, delegados bem orientados, etc., nada se poderia fazer de
tamanha eficiência e destreza que resolvesse o conflito. Ao contrário, ele poderia ser
prolongado, dado o equilíbrio entre as forças leais e legais e as outras.
Frente a tudo isto, não podia ser verdadeira a afirmação do presidente da província da
Bahia de que ele não enxergava nenhum caráter político no “bando de assassinos” de Pilão
Arcado341. Muito provavelmente a afirmativa tinha a intenção de colocar panos mornos sobre
um conflito mal gerenciado por ele. Outros missivistas, como o Comandante Antonio Mariani
da Guarda Nacional, quando escreviam documentos de modo incessante com pedidos de
ajudas militares, davam outros nomes àqueles acontecimentos: usavam o termo “rebelião” e
“Facciosos”, por exemplo342. Tinham o entendimento de que Militão escondia por trás de
crimes de vingança uma rebelião343.
Em um dos primeiros ataques de Militão contra a cidade de Pilão Arcado, nota-se
que ele possuía uma rede muito grande de funcionários do Estado que, na emergência da luta,
criaram inúmeras dificuldades para a defesa da vila. Um Juiz Municipal, segundo a “voz
pública”, estava a “animar a canalha, para que unidas aos malvados, persegui[ssem] os
cidadãos pacíficos, já os processando, já ajuntando gente para o título de prisões os
assassinarem”344. Este juiz, quando soube que Militão estava cercado, mandou ordens de
“notificar gente”, “mesmo à noite”, para se juntar a ele. Para agravar a situação dos moradores
que nada tinham a ver com a refrega, o Coletor da Vila, cujo acesso era necessário para dispor
de recursos públicos para o combate, tinha se evadido da guerra. Aquele Juiz Municipal ainda
reunia em si, desde Novembro, “as funções de juiz de direito interino dessa comarca [e vinha]

341
A.N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia; De Joaquim José Pinheiro de
Vasconcelos, presidente da província, para Manoel Álvares Branco, em 06 de abril de 1844.
342
A.N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹ 400. Vila do Rio de São Francisco. De Antonio Mariani, comandante da
Guarda Nacional. 31 de dezembro de 1843.
343
Idem.
344
Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia, 06 de abril de 1844De Joaquim José
Pinheiro de Vasconcelos, presidente da província, para Manoel Álvares Branco.
122

deixando a comarca acéfala”345 e “no exercício do seu emprego mandando, segundo consta,
notificar gente para engrossar as forças de Militão”346. Para o Comandante da Guarda
Nacional da Barra, não importava a “aparência de legalidade que se procure dar a um fato tão
escandaloso como o de ver um homem que se inculca potentado por cerco a uma vila” 347.
A “aparência de legalidade” mencionada deve ter sido a tentativa do Juiz Municipal e
de Direito da Vila de usar de meios respaldados pelo sistema penal ou constitucional para
fazer de suas ações algo à primeira vista legal, aliado a ordem, ou até mesmo a possibilidade
de ter empreendido tal ação em nome de uma suposta reacomodação de forças em nome do
Estado.
Quando em uma reunião várias autoridades civis e militares provinciais deliberaram
subir para Pilão Arcado mais de 500 homens em um plano que os dividia em duas colunas
iguais, cercando a cidade pelos dois lados do rio, sempre em comunicação uma com a outra,
caso precisassem se socorrer, a justificativa foi que

os facinorosos, a cuja frente ainda se acha o famigerado Bacharel Emílio


com as suas jurisdições de juiz de direito interino, e municipal, órfãos e
delegado dessa cidade (que ele entende que são inseparáveis, e que por um
privilégio especial a ele é permitido reunir ambas as varas, e executar ao
mesmo tempo) tem se entrincheirado em uma e outra margem do rio com a
intenção firme de resistir a todas as forças e ordens do governo (...) [além de
que estavam recebendo] munições reunidas de Pilão Arcado , da vila de
Santo Antônio de Jacobina, das vilas de Santo Ignácio de Assunção e de
outras partes, assim como gente da vila de Santa Rita do Rio Preto, das
cabeceira do Piauí, e do Urubu de onde dizem que podem conseguir formar
um grupo de 300 homens348.

Está claro nessa citação que o facinoroso, que é também um bacharel em exercício de
seu cargo, usa de suas jurisdições para manter contato, não sabemos se com base na
legalidade ou na ilegalidade, com outras localidades e autoridades que se constituem perfeitos
territórios de escapada e acúmulo de força bélica e humana.
Esse ataque foi formado por “vivo fogo de 600 a 700 sequazes do comendador

345
Idem.
346
Idem.
347
Idem.
348
Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Vila de Sento Sé, 20 de março de 1844. De Pedro da Costa Lobo, juiz de
direito, para presidência da província. O plano era montar um cerco aos jagunços de Militão. Pela margem
ocidental do rio (lado de Pernambuco) iriam o major Kelly e outros tantos oficiais da Guarda, já na margem
oriental, o lado da Bahia, iriam à frente da tropa o tenente Coronel Manoel Luiz da Costa, com outros oficias da
Guarda, além do delegado Luiz Antônio.
123

Militão França Plácido Antunes”349, e durou mais ou menos “oito dias e oito noites (...) a
peleja sangrenta e bárbara”350. As investidas das autoridades contra Militão eram abundantes,
mas lentas, dispersas e empenhadas por uma Guarda Nacional indisciplinada. No montante, o
governo conseguiu, ou pretendia juntar para essa primeira contraofensiva, 150 praças daquela
localidade que precisavam ainda de cartuchos e armas; além de mais 100 a 200 guardas
nacionais da vila Nova da Rainha e de Jacobina; “150 espingardas, dez mil cartuchos e seis
contos de réis para soldos”351. Num outro documento fala-se de um reforço de tropa do
governo central de 160 praças, que, juntas com as que lá estavam, contabilizavam mais de 300
praças de primeira linha, mais 200 da guarda nacional, mais 300 guardas de Sento Sé. A
Província do Piauí cedeu 6000 cartuchos e cinquenta espingardas352.
Do outro lado, Militão tentava conseguir mais gente para suas hostes. Com um
capitão de Caetité, chamado Anacleto, havia a promessa de 200 homens “sem falta e sem
demora”353, o que o autor da carta considerou infundado, pois que esse mesmo capitão
precisava de muitos capangas para sua luta com o major do local, Silva Castro, por conta de
disputas de terras que lá se travavam. Militão, Emílio (ilegível) e Francisco Luiz “não
descansam, antes se preparam para resistir ao governo, para o que tem mandado buscar
munição a Oeiras, Minas ou Lavras de Santo Ignácio da Assunção e a outras muitas partes” 354.
Segundo o mesmo documento, Militão passou 120 cavalos para o lado da Bahia do rio e fez
um cercado na sua fazenda para aqueles mesmo cavalos. Realmente se desenhava um cenário
de “guerra civil”355, como diz no documento o juiz de direito Pedro da Costa Lobo.
Em Sento Sé o grupo de Militão foi contido, mas não houve captura do seu líder.
Muitas pessoas, entre elas as autoridades dos locais onde se travaram as lutas armadas, se
mudaram para outras localidades. Aconteceu uma verdadeira diáspora naquelas bandas do
sertão baiano. Essas localidades de supostas fugas, com o avançar da luta foram palcos de
várias outras contendas. Essa guerra era móvel e seguia o roteiro das redes clientelares entre
as autoridades e os grupos sociais subalternos. A guerra buscava apoio em algumas fazendas
há léguas de distância do conflito original, onde poderiam receber apoio material e logístico;

349
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Vila de Sento Sé, 20 de março de 1844. De Pedro da Costa Lobo, juiz
de direito, para presidência da província..
350
LINS... Op. cit., p. 49.
351
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia, 06 de abril de 1844. De Joaquim José
Pinheiro de Vasconcelos, presidente da província, para Manoel Álvares Branco.
352
A.N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹ 400. Vila de Sento Sé, 20 de março de 1844. De Pedro da Costa Lobo, juiz
de direito, para presidência da província.
353
Idem.
354
Idem.
355
Idem.
124

podia caminhar para outras fazendas dos principais contendores, ou de seus familiares; podia
seguir o rumo de um povoado onde se descobrira recente jazida de minérios preciosos, onde
se recrutava muita gente para as ações armadas empreendidas.
Mais de um ano após esses conflitos iniciais, Pilão Arcado continuava sem
autoridades judiciárias. Em setembro de 1844, o juiz e delegado que deveria assumir as
funções em Pilão Arcado não se apresentou, pois, segundo ele, estava doente antes mesmo da
sua convocação. A vaga foi oferecida a pessoas de fora de região, pois os que a haviam
pleiteado eram aliados ou de Militão ou dos Guerreiros356.
Apesar daquele indicado afirmar que estava doente antes mesmo da convocação, foi
muito comum a negativa ou a invenção de desculpas para não se trabalhar na justiça nem na
polícia naquela região. Antes haviam sido indicados ou se ofereceram para a posição outros
homens que foram sistematicamente rechaçados ou não apareceram para ocupar a vaga
naquela região central da província.
Em maio de 1844 se ofereceram para ocupar os cargos de tabelião e escrivão da vila
Luiz Coelho Tupinã e Manoel Francisco Fernandes. Ambos tiveram sua solicitação negada,
pois estavam ambos implicados no “partido do comendador Militão”357. O primeiro, a
despeito de ter qualificações para o cargo, “todavia é de conduta bastante irregular o que bem
mostra o ato de acompanhar o comendador Militão Plácido de França Antunes em seus
desvarios”358 e, por esse mesmo motivo, achava-se processado na justiça criminal da vila de
Sento Sé e também fora daquela vila. O segundo não teria habilidades para tal, mas teria
conduta boa, família e seria tranquilo, “se bem que processado nesta vila pelo partido do dito
Comendador Militão”. Parecia que, estando do lado de Militão ou sendo o seu alvo, as
chances de alguém da região ocupar aqueles cargos eram muito limitadas, devido ao
tensionamento entre os dois “partidos”. Havia muita gente envolvida no conflito e a
desconfiança ganhava espaço.
Em 1844, Militão nem mesmo estava na Vila de Pilão Arcado, mas tudo ainda girava
em torno dele e de sua sede de vingança contra os Guerreiros. Em maio desse ano ele havia

356
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia, 08 de setembro de 1844. De Manoel
Messias de Leão, vice-presidente, para Manuel Antonio Galvão.
357
A.N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 400. Pilão Arcado, 11 de maio de 1844. De Manoel Filipe Monteiro,
juiz da comarca, para Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, presidente da província; Ministério da Justiça, AI,
IJ¹ 400. Palácio do governo da Bahia, 12 junho de 1844. Presidente da província, Joaquim José Pinheiro de
Vasconcelos, para Manoel Alvares Branco, ministro da Justiça.
358
Idem.
125

sido visto na Fazenda Bom Jardim359 com parte da sua “tropa” dispensada, ficando apenas
com o que era necessário para se defender. Havia antes passado na Fazenda Jatobá, quando
soube da aproximação das forças do governo, e depois na vila de Chique-Chique, de onde
seguiu para a vila de Urubu em procura de parentes que lá tinha 360. A população de Chique-
Chique informou ao suplente de delegado que Militão tinha sido visto próximo da Vila da
Barra do Rio de São Francisco361. Havia a suspeita de que ele teria ido para a Fazenda
Angical, de sua propriedade, mas lá ele não foi encontrado362.
A essa altura, depois de tantas idas e vindas atrás de Militão, o Major Kely,
comandante responsável por um dos destacamentos que devia perseguir o séquito daquele,
destacou para outras autoridades que um dos principais problemas que encontrava na
perseguição era que a coadjuvação das tropas que o seguia era composta de homens de fora
daqueles lugares, desconhecedores de tudo e todos, além de que os homens daquelas
localidades, como os das Guardas Nacionais, estavam comprometidos nos mesmos ódios que
a maior parte da gente daquela região363, deixando-o com poucas opções. Obviamente os
guardas nacionais repercutiam de algum modo a predileção de seus comandantes, haja vista
que a Guarda Nacional era um dos espaços de clientelas gerenciadas por senhores rurais
dessas localidades.
Em suas andanças, Militão fazia questão de afirmar que estava dispersando suas
milícias e que não tinha pretensão de entrar em combate com as tropas do Governo. Essa
informação chegava ao presidente da província através de vários documentos. Em um deles, o
subdelegado de Mata Fome, José Antônio da Rocha, descreve uma conversa com o mesmo
Militão, que afirmava não querer se opor às ordens do governo. Afirmava o subdelegado que
Militão estava levando toda a família para a Fazenda Bom Jardim e que seguiria para Urubu,
levando pouca gente, entre eles “filhos, sobrinhos, afilhados, vaqueiros de suas fazendas,
pessoas estas consideradas como família” 364. Nitidamente o subdelegado queria demonstrar
que ele estava se desarmando e buscando uma vida normal entre seus familiares. As
aparências de não estar contra o governo abria a possibilidade para o entendimento, dos

359
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia, 08 de setembro de 1844; De Manoel
Messias de Leão, vice-presidente, para Manuel Antonio Galvão.
360
Chique-Chique e Urubu eram os principais locai de fugas do seu agrupamento.
361
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Fazenda das Pedras, 09 de julho de 1844. Ernesto Augusto da Rocha
Medrado, 2º suplente do delegado de polícia para Joaquim Rodrigues Coelho Kelly.
362
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Vila da Barra, 15 de julho de 1844. Coelho Kelly para presidente da
província
363
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Pilão Arcado, 23 de Julho de 1844. De Álvaro Tibério de Moncorvo e
Lima, para presidente da província.
364
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Distrito de Mata Fome, 13 de julho de 1844.
126

grupos sociais mais subalternizados às outras autoridades, de que o problema era o mando
local em mãos de pessoas erradas. Não se tratava de uma sedição contra as autoridades, mas
contra uma autoridade ruim, personalizada naquela família inimiga e em seus aliados.
Buscava-se, de algum modo, algum tipo de justiça ou reparação. Ao discursar assim, Militão
pretendia ganhar tempo ou quem sabe criar uma espécie de paz tácita e não declarada com o
Governo.
Muitas autoridades mentiam, ou faziam o discurso pretendido por Militão, quando
afirmavam que ele não se encontrava em seus distritos ou que era impossível persegui-lo,
“porque todos lhes dão os meios de que ele precisa para se pôr em marcha, e todos os negam
às tropas quando o quer seguir”365. Esse foi o caso do delegado Benigno Tavares, de Pilão
Arcado, que afirmava que estavam os seguidores de Militão França Antunes em paz,
desarmados, no Bom Jardim, com gente ao seu redor, mas também desarmadas. Segundo esse
delegado, não seria possível alcançá-lo, pois ele tinha um plano de fuga que a polícia não
conseguiria seguir por falta de cavalos, gentes e mantimentos. É possível pensar ao ler esse
documento que há nele um pouco de verdade de algumas formas: 1) o documento poderia ser
uma tentativa de amainar os ímpetos do governo a favor do Militão; 2) o documento seria
uma descrição nua e crua das condições de busca do criminoso e 3) uma meia verdade. Era
custoso, dispendioso e tenso gerenciar tantos homens armados em permanente prontidão. A
não ser que se recorresse, como recorreram, ao uso crescente de razias, saques e outros crimes
para autoprovimento material. Além de que as queixas dos perseguidores governamentais
eram muito grandes. Não possuíam cavalos suficientes, a reserva alimentar acabava
rapidamente, ou era exígua, o soldo faltava, além de não contarem com o apoio popular, seja
por desafeto da força policial, seja por medo de retaliação dos facinorosos.
Mas enquanto os relatos de pacificação chegavam até o governo, outros relatórios
indicavam a entrada definitiva de Militão nas ações armadas contra comerciantes, negociantes
e pessoas que passavam por onde ele se postava, junto com seus seguidores. Os crimes não
políticos eram uma crescente.
A Fazenda Bom Jardim virou local estratégico para essas ações, de onde “se
conservava cercado de todos os seus comparsas e corréus, embaraçando a navegação do Rio
de São Francisco do lugar chamado Bom Jardim, onde se acha habilitado a passar-se para as
Minas ou para Goiás, se lhe for preciso” 366. O irônico nesse documento é que ao mesmo

365
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Vila do Rio de Contas, 27 de novembro de 1844; Herculano Antonio
Pereira da Cunha, Delegado, para João Joaquim da Silva, chefe de polícia.
366
Idem.
127

tempo em que ele atesta a consolidação de Militão e seu grupo como um bando de ladrões, ele
também informa que a existência daquele senhor, vivendo livre, era um “germe de maiores
desordens, porque os amigos de Militão, segundo se diz, já o têm mandado aconselhar que se
dê uma cor política aos seus crimes, e estes amigos vivem entre nós” 367.
Algumas autoridades, temerosas com o grande arco de aliança de Militão Plácido de
França Antunes, desejava vê-lo enquadrado em uma categoria política sediciosa. A de Liberal
foi algumas vezes sentenciada a ele. Em um documento, seu nome foi associado ao de um ex-
aliado de Sabino – líder da Sabinada, insurreição que aconteceu em Salvador, no final de 1837
e início de 1838 – em Juazeiro, extremo Norte da província368.
As redes clientelares de Militão Antunes foram a sua principal tática de guerra.
Segundo consta, por diversos documentos, as autoridades não lhe davam busca, e apenas uma
força teria sido deslocada para Pilão Arcado, mesmo assim uma força auxiliar. “Não é sem
exemplo [quando as forças se encontram por perto de Militão] que as autoridades judiciárias
ou policiais se tornem convenientes, a força torna-se inútil e um homem a quem se devem
incêndios, mortes e roubos tem zombado dessas medidas fracas”369.
Buscar tropas de fora era a solução mais eficiente, se é que se pode dizer isso, para o
governo. As tropas locais, de um e de outro lado, estavam muito contaminadas pelos desafetos
políticos, mortes em famílias, roubos e incêndios feitos nas suas casas e de seus familiares. Os
comandantes e autoridades sempre que podiam pediam tropas de fora da região, ao menos de
fora do centro e norte da província. Em meados de 1847 subiram 52 praças de Salvador para
substituir as que lá estavam. Além de elas já estarem há muito tempo destacadas naqueles
lugares dos conflitos, o que, segundo o delegado, criava afeições com o local e com as
pessoas da localidade, ele os considerava inaptos370. Esse mesmo delegado, Benevito Augusto
de Magalhães Taquis, em resposta à ordem da presidência da província de que se pegassem
guardas nacionais na comarca da Barra e Jacobina, contestou que isto não resolveria o
problema, pois as guardas ou tinham medo do confronto com os bandos ou estavam cheia de

367
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do Governo da Bahia, 21 de dezembro de 1844. De José de
Souza Soares d’Andrea, presidente da Província para Manuel Antonio Galvão.
368
A.N. Série ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Juazeiro, 30 de dezembro de 1845. Do Juiz Municipal para o
presidente da província
369
A.N. Série ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Vila do Rio de Contas, 27 de novembro de 184. De Herculano
Antonio Pereira da Cunha, Delegado, para João Joaquim da Silva, chefe de polícia; Idem, Palácio do Governo da
Bahia, 21 e de dezembro de 1844. De Francisco José de Souza Soares d’Andrea, presidente da Província para
Manuel Antonio Galvão.
370
A.N. Série Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Pilão Arcado, 15 de maio de 1847. De Benevito Augusto de
Magalhães Taquis, delegado de polícia, para João Joaquim da Silva, Chefe de Polícia.
128

partidarismos371. Enquanto isso, Militão, segundo ele, possuía 200 homens armados prontos
para fugir para a vila de Urubu mais uma vez.
A fragilidade das autoridades em confrontar certos potentados, com toda a sua rede
clientelar, que incluía muitas outras autoridades, levou a população desses locais a extremados
ódios, aliando-se conjunturalmente com aqueles que podiam oferecer capacidade de
resistência e proteção. No caso de Pilão Arcado, a situação era ainda mais grave, pois sequer
as autoridades policiais e militares se mantiveram ali durante os conflitos. Agir como se não
houvesse Estado ou organismos políticos de controle da força não era uma cultura, mas uma
necessidade imposta pela situação beligerante. Os contendores provocavam essa
generalização da violência. Era preciso escolher os lados. Sem tomar partido no conflito, uma
família poderia estar por si só. Uma estratégia de sobrevivência não é uma cultura. A “cultura
política” do clientelismo (não da violência), mais fortalecida nas localidades interioranas,
produzia maiores graus de tensionamento entre chefes com pouca disposição a perder o
“poder simbólico” e material estatal, gerando mais conflitos, dando uma sensação na
documentação de que o sertão era um “estado de natureza”, onde a violência reinava e o
homem era lobo do homem todo o tempo.
A generalização da violência nessas conjunturas obviamente atraía para determinados
lugares muitos bandidos e gente disposta a ganhar a vida do aluguel do gatilho. Também
atraía muitos criminosos comuns que se aproveitavam das debilidades na segurança do local,
quando não eram estes mesmos facinorosos que atuavam nos bandos dos “partidos”. Não
havia cultura, havia negociação, conflito e acomodação, isto é, uma política bandida a que a
historiografia parece recusar dar qualquer estatuto de autonomia.
Naquela altura, o agrupamento liderado por Militão já vivia de ataques aos habitantes
das proximidades que se cruzavam com eles. As escaramuças com os Guerreiros já não eram
constantes, não só porque havia uma perseguição intensa ao seu agrupamento, mas porque os
Guerreiros buscaram se fortalecer e se mostravam bem mais agressivos em suas ações. Esse
fortalecimento dos inimigos e o crescente mal que faziam às populações circunvizinhas
aumentaram a hostilidade que havia contra eles, fazendo com que “apelidassem”372 todas as
autoridades, ligadas ou não aos conflitos, a gente pobre rural e todo e qualquer guarda
nacional, de “partidário dos Guerreiros” 373. Isto parecia indicar certa paranoia compulsiva e

371
A.N. Série Ministério da Justiça, AI IJ¹ 404. Pilão Arcado, 21 de maio de 1847. De Benevito Augusto de
Magalhães Taquis, delegado de polícia, para João Joaquim da Silva, Chefe de Polícia.
372
A. N. Ministério da Justiça, AI, Fundo, IJ¹ 404, Palácio do Governo da Bahia, 08 de outubro de 1847.
373
Idem.
129

violenta de ver inimigos por todos os lados, o que podia ser verdade, ainda que o reverso
também o fosse.
Militão tinha muitos amigos e aliados, e a “guerra civil” pareceu ser uma
demonstração disso ou uma disputa pelas influências. Elas compareceram com ajuda estatal,
miliciana, bélica e moral. Alguns não apareceram, mas também não comprometeram.
Francisco Gonçalves Martins, ao tomar posse como presidente da província, dedicou
uma parte do seu discurso de posse ao conflito em Pilão Arcado. Nesse discurso, ao propor a
demissão e substituição de vários postos de juízes e promotores, ele entregou que a correlação
de forças para o Governo não era tão favorável. Destacou que queria a punição dos
comandantes das tropas estacionadas em Pilão Arcado por terem permitido ou terem até sido
participantes na destruição dos Guerreiros por Militão e seu grupo. Afirmou inúmeras vezes
que, no estado em que se encontrava a justiça na província, não haveria exercício dos órgãos
da justiça e nem tampouco o sentido moral da Justiça374.
Terreno limpo para os Guerreiros: a revanche
Nada tão diferente faziam os Guerreiros dos França Antunes. Logo que a contenção
às ações do grupo de Militão aumentaram, com a ajuda dos poderes estatais, foi a vez daquela
família colocar em ação a sua clientela também poderosa.
Em 1845, depois que as forças estatais e de Militão diminuíram sua presença, os
Guerreiros ficaram “desesperados e insuportáveis”. Mataram algumas pessoas e até
estupraram. Pedro Antonio Veloso afirmou para o juiz de direito da Comarca de Pilão Arcado
que nada se podia fazer, pois o juiz municipal era conivente com aqueles crimes. Relatou para
o juiz uma série deles, em que se utilizaram da guarda nacional (controlada pelos Guerreiros,
como já vimos) e de alguns “peitos largos”, dispostos a seu mando. Pedia Veloso mais
efetivos para daquela vez para dar conta do outro lado da discórdia375.
Um ano depois os Guerreiros chegaram ao ponto de recusar a presença de tropas da
Guarda Nacional comandada pelo Major Galvão em Juazeiro. Queriam naquela região a
presença do chefe de polícia em pessoa para dar conta dos diversos crimes que, segundo eles,
aconteciam ainda ali por obra de Militão e seus apaniguados. Só uma boa relação com as

374
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo, 07 de novembro de 1848. De Francisco
Gonçalves Martins, presidente da província, para Eusébio de Queiroz Coitinho Mattoso da Camara, ministro da
justiça.
375
A. N. Série Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Pilão Arcado, 27 de outubro de 1845. De Pedro Antonio Velloso
da Silveira Major Comandante da Força para Antonio Joaquim da S. Gomes Juiz de Direito da Comarca de Pilão
Arcado.
130

autoridades provinciais poderiam permitir tal grau de petulância 376. Provavelmente a presença
do Major atrapalhava seus planos numa região em que mantinham amplos poderes e relações
com senhores rurais e políticos.
O Major Pedro Antônio da Silveira denunciou os crimes que eles vinham praticando
naquelas regiões e arredores: teriam eles dado tiros em Eugenio Ferreira; teriam matado um
homem, filho de um senhor de mais de cinquenta anos; espancaram uma mulher chamada
Águida, ao ponto de a deixarem em coma. Realizaram mais de nove mortes feitas pelas
fazendas “das caatingas”. O Major supunha que os Guerreiros se achavam com mais de 20
homens com armas clavinotes, “donde mandam de noite furtivamente seus satélites aos
assassínios”377. Na fazenda Tabuleiro estava, segundo ele, Joaquim Guerreiro, primo dos
mesmos guerreiros, com muitas armas, que expedia para seus “satélites” matarem e roubarem.
Este e outros primos possuíam já mais de 50 mortes. Na fazenda Zabelê, segundo o mesmo
major, habitava um homem chamado Valeriano Barreto Lima, primo do Guimarães mesmo,
com muitas porções de armas e “peitos largos”, de onde saíam quase sempre “para os
assassínios e pilhagens”. Outro, Clemente, possuía em sua fazenda “Pau a Pique” mais de 100
armas e outros tantos facinorosos e, junto com Valeriano, já teriam realizado mais de 40
mortes378.
No ano seguinte, um dos Guerreiros foi morto por um dos grupos de Militão. O
Capitão da Guarda Nacional, Bernardo José Guerreiro, quando foi averiguar a presença de
“malfeitores ocultos do lado de Sento Sé”379, num determinado lugar chamado Alagadiço, foi
alvejado por mais ou menos “dezesseis a vinte malfeitores e criminosos, faccionários de
Militão”380. O grupo foi “capitaneado nessa ação por um filho do mesmo Militão de nome
Cornélio, sem dúvida muito assinalado pela sua maldade”. Ao se dirigir para a captura de
criminosos, não sabemos se do grupo de Militão, o capitão passou perto de uma fazenda de
uma das irmãs deste homem e foi seguido pelo rio adentro, até que, ao parar em um dos
pequenos portos do Rio São Francisco, foi alvejado por três tiros dados por facinorosos
conhecidos “pelos nomes de Firmino, Desidério, Duque, Antônio dos Santos e Manoel

376
A. N. Série Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Quartel em Pilão Arcado, 25 de janeiro de 1846. De Pedro
Antonio da Silveira, comandante do destacamento interino, para Presidente da província Francisco d’Andrea.
377
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Quartel em Pilão Arcado, 26 de janeiro de 1846. De Pedro Antonio
Velloso da Silveira, Major comandante do destacamento, para Presidente da província Francisco d’Andrea.
378
Idem.
379
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia, 22 de fevereiro de 1847. De Antonio
Ignácio de Azevedo, presidente da província, para José Joaquim Fernandes de Torres; e outra, em anexo, do
delegado de polícia Benevito Augusto de Magalhães Taques, para o presidente da província, João Joaquim da
Silva.
380
Idem.
131

Francisco”381.
Vale notar que, quando se deu essa emboscada, ele se encontrara antes com outros
dois irmãos, um deles subdelegado em alguma localidade daquelas paragens, e sendo o
próprio Capitão da Guarda Nacional, isto é, gozavam ambos de prerrogativas oficiais
designadas por autoridades locais e provinciais.
O banditismo da política
Em um documento de 23 de abril de 1845, o presidente da província subiu um
382
registro para conhecimento do Ministro da Justiça sobre a resposta dada ao presidente por
um Juiz Municipal de Pilão Arcado acerca dos procedimentos adotados naquela região de
Chique-Chique e Pilão Arcado. A resposta revelava, nitidamente, o medo das autoridades de
procederam contra Militão: o juiz havia respondido a ele dizendo que não realizara nenhum
processo contra tais indivíduos por ter ele mesmo “sofrido a perda de duas moradas de casas
incendiadas nesta vila, além do roubo que me fizeram para mais de dois contos de réis, e não
quer que atribuíssem à vingança esses processos tirados por mim(...)” 383. Se não era verdade o
motivo, ao menos achava o juiz municipal que essa artimanha seria de plausível compreensão
por parte do presidente da província.
Os signos da ordem estavam de cabeça para baixo. A vítima, que era nada mais nada
menos que um juiz, não prosseguiria com o processo criminal para que o seu ato não fosse
interpretado pelos criminosos como um ato de não justiça, isto é, uma vingança ou um crime.
Essa era a força da ação bandida exercida por parte de grandes chefes políticos locais. Eles
causavam medo e paralisia naqueles que não tinham maiores proteções, especialmente quando
outras autoridades não as guarneciam de poder. Alguns desses potentados, ou mesmo
criminosos comuns, quando se deparavam com a justiça, não tinham nada que os
incriminasse, pois não se abriam processos contra eles. Este foi o caso dos crimes de Leolino
Cangussú na região de Caetité, como veremos mais à frente, que, quando foi finalmente
capturado e julgado, por um júri tendencioso, terminou absolvido por não constar nada contra
ele nos autos do processo, nem mesmo uma testemunha.
Se não se contava com aliados nos postos fundamentais da burocracia da violência,
era preciso amedrontá-los. Mostrar-lhes que estavam desamparados. Deixar-lhes cientes de

381
Idem.
382
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Palácio do Governo da Bahia, Pilão Arcado, 12 junho de 1845 e 23 de
abril de 1845. De Francisco d’Andrea para ministro da justiça.
383
Idem.
132

que o pleno funcionamento da justiça colocá-los-ia do outro lado da luta, como aliados dos
seus inimigos.
Em uma troca de correspondências384, o major comandante de Pilão Arcado
informou ao juiz de direito da comarca de São Francisco que sob seu comando possuía 44
praças de linhas, e que mais 200, sob outro comando, se juntariam a ele caso fosse necessário.
Havia mais 100 que estavam com o comandante da guarda de polícia que poderia vir a
acionar. Mas destacava que era uma quantidade insuficiente de homens para cobrir todas as
frentes de ações armadas do banditismo. A resposta do Juiz foi desanimadora para o Major.
Disse que nem com toda a força seria ele capaz de ser exitoso em suas ações, e que não era
por falta de praças que não se fazia nem justiça nem policiamento, mas porque eram
“partidistas” ou dos Antunes ou dos Guerreiros os policiais e autoridades da região. Esses
“partidistas” usavam as armas para perseguirem, imunes às autoridades judiciais ou policiais,
somente os partidos que lhes eram contrários. Em anexo seguia outro documento em que o
Juiz de Direito da comarca da Barra basicamente entregava os pontos, afirmando não poder
fazer nada contra o que acontecia naquela região porque todas as autoridades eram coniventes
em alguma medida com aquelas lutas.
Os juízes de direito eram funcionários designados pelo presidente da província para
alguma localidade e permaneciam nela durante pouco tempo. Eram prepostos das vontades do
poder central, já que o presidente da província era, desde o Ato Adicional de 1834, escolhido
pelo Imperador. O presidente podia demitir sumariamente um Juiz de Direito que o estivesse
contrariando, logo, se quisessem se manter no cargo teriam que dissimular bastante suas
pretensões oposicionistas ou cumprir bem as funções dadas. Mas como cuidavam de comarcas
com vilas com muitas léguas de distância umas das outras, não era possível acompanhar tudo
de perto, além de que quem lhes relatava os acontecidos nas municipalidades eram os juízes
municipais, responsáveis por abrir os processos contras os crimes. Os juízes de direito
fiscalizavam as ações dos juízes municipais, para isso contavam com a ajuda dos delegados de
polícia, também escolhidos pelos presidentes das províncias. Mas, como suas instâncias eram
um tanto diferentes, judiciais e policias, nem sempre esse auxílio era tão prontamente

384
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio da Bahia, 24 de janeiro de 1846. De Francisco José de Sousa
Soares d’Andrea, presidente da província, para Antonio paulino Limpo de Abreu ministro da justiça: Idem. 17
de novembro de 1845, Vila da Barra. De Joaquim da Silva Gomes, Juiz de Direito de pilão arcado, para
presidente da província; Idem. Quartel de Pilão Arcado, 27 de outubro de 1845 de Pedro Antonio Velloso da
Silveira, Major Comandante da Força, para Antonio Joaquim da S. Gomes, Juiz de Direito da Comarca de Pilão
Arcado.
133

assegurado. Os delegados estavam mais diretamente em contato com o chefe de polícia. Dessa
interdependência, mal equilibrada, é que reclamavam esses juízes de direito. Ainda que “todas
as autoridades”, como nos falou o juiz acima, fosse um exagero, aquelas mais solidificadas às
clientelas locais, como os juízes municipais, de fato estavam deveras imiscuídas na política
local e cotidiana.
Para muitos juízes de direito, convocar a presença do chefe de polícia era uma forma
de garantir a realização da ação policial livre das hierarquias da burocracia entre delegados,
subdelegados e juízes. A presença do chefe de polícia garantia uma autoridade com maior
liberdade de ação, sem constrangimentos de jurisdição territorial. Ele era capaz de centralizar
as ações, passando mesmo por cima de autoridades e de suas limitações e fronteiras. O chefe
de polícia era obrigado a periodicamente enviar para o presidente da província os relatórios
sobre “sucessos e violências” da província, e este, por sua vez, os encaminhava para o
Ministério da Justiça, que podia deliberar sobre questões que os poderes provinciais se
achavam intimidados a fazer. Como a boa administração da clientela era uma garantia da
ordem social, muitas vezes esses relatórios chegavam à corte, numa espécie de prestação de
contas ou de pedido de intervenção de um poder maior sobre os conflitos nas localidades que
poderiam vir a alterar a correlação de forças do momento. O chefe de polícia era um
funcionário da ordem. Esse poder de acompanhamento da administração da clientela política
capacitava alguns deles a se tornarem presidentes da província ou Ministro da Justiça, para
aqueles mais vinculados à corte.
Quando as autoridades locais ameaçavam as forças públicas, e outras autoridades
locais nada podiam fazer para contê-las, o chefe de polícia podia vir a ser uma salvaguarda da
obediência à autoridade máxima do Imperador, configurando a desobediência a ele um ato
sedicioso.
Em Juazeiro, o comandante do destacamento interino solicitou ao chefe de polícia a
sua presença, pois naquele termo havia muitos homens com mais de 40 ou 50 crimes que não
haviam sido nem ao menos pronunciados por algum deles. Como os Guerreiros em Juazeiro
afirmavam que não aceitariam as ações de homens enviados pelo Major Galvão, era
necessária, segundo o Comandante, a presença do chefe de polícia “nestes sertões” para que
se corressem os processos contra os assassinatos e roubos perpetrados naquela região. Para
ele, mesmo que alguma autoridade decidisse fazer justiça, não existia um só homem que
testemunhasse contra aqueles criminosos (“tigres sedentos de sangue humanos”) 385.

385
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Quartel em Pilão Arcado, 25 de janeiro de 1846. Pedro Antonio da
134

Quando o juiz de direito Pedro da Costa Lobo escreveu para o presidente da


província, no início de 1846, ele relatou estar “completamente desmoralizada” 386 a província.
Na oportunidade em que escreveu esta nota, acabava de acontecer um caso, na mesma vila de
Juazeiro, muito revelador da dinâmica do banditismo da política.
Segundo relatou ao presidente da província, correu até ele a informação de que o
alferes do destacamento, que também era o comandante do destacamento, “vinha fugido”, de
onde se encontrava para a vila de Juazeiro. Ele já havia recebido notícias, através de ofícios
do delegado de polícia, de que o juiz de direito havia sublevado o povo contra o
destacamento. Também tinha recebido cartas do juiz de direito, do juiz municipal e do
comandante superior, acusando o alferes e o enchendo de “baldões”, dando-o como principal
causador das sublevações do povo contra o destacamento. Havia dois ou três meses que
chegara o Alferes João Alexandrino Trinchão à vila de Juazeiro, “encarregado por vossa
excelência de engajar praças de polícia, de as organizar, e comandar”. O alferes, segundo a
carta, “inexperiente”, foi morar na casa do Tabelião Josefino da Silva Moraes, travando
amizade com uma das personalidades mais desacreditadas do lugar, por ter sido grande
“figura nessa cidade, na revolução de Sabino” e por ser distinguido como figura favorável a
Militão. Vale lembrar que a vila de Juazeiro nesse momento era de domínio político e bélico
da família dos Guerreiros. Para agravar tal situação, afirmava o alferes que o presidente da
província havia lhe dado carta aberta para realizar suas funções sem precisar consultar a
nenhuma autoridade local e que lhe dava poder de tudo fazer. Passou a ter como conselheiro o
tabelião Josefino e depois de alguns dias tomou como seus os inimigos do mesmo.
Segundo um dos documentos anexos a esse ofício, o corpo de polícia organizado por
Alexandrino era todo composto de pessoas “vagabundas, criminosas, peraltas e vadios, [que
principiaram] a causar sustos aos habitantes do lugar, que não podiam ver, sem reparo, uma
força tão mal composta, tão inabilmente dirigida”. Essa tropa era, ao ver do autor do
documento, uma tropa de um comandante completamente divorciado de “todas as
autoridades, e homens principais, uma polícia de bandidos”, que enchia “de terror todos os

Silveira, comandante do destacamento interino, para Presidente da província Francisco d’Andrea.


386
Os parágrafos seguintes foram elaborados com base na série de documentos citadas a seguir: A.N. Ministério
da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia, Juazeiro 16 de janeiro de 1846. De Pedro da Costa Lobo,
Juiz de Direito, para Presidente da Província; Idem, Juazeiro, 29 de dezembro de 1845. Francisco d’Andrea e
juiz de direito de Sento sé; Idem, Juazeiro, 30 de dezembro de 1845. Do Juiz Municipal para o presidente da
província; Idem, Juazeiro, 29 de dezembro de 1845. Antonio Joaquim da Costa, comandante superior da Guarda
nacional para presidente da Província; Idem, Juazeiro 31 de dezembro de 1845. De Antonio Luiz Ferreira para
presidente da província; Idem, 13 de janeiro de 1846. De João Alexandrino Trinchão para o Comandante Geral
Interino da Guarda Nacional.
135

corações”. As pessoas que haviam se prostrado contra as ações armadas de Militão foram as
primeiras a serem perseguidas. O Alferes praticava todo insulto à Guarda Nacional. Prisões
arbitrárias eram práticas cotidianas. O autor de um dos ofícios, segundo ele, até mesmo
inventou estórias mentirosas para acalmar o povo, como a promessa da transferência do
destacamento feita pelo presidente da província.
O banditismo quando atacava sistematicamente uma região e suas autoridades
deixava essas localidades muito dependentes das forças policiais e dos destacamentos que
nela paravam para guarnecê-las. Quando um comandante ou oficial que a controlava se
envolvia nas “paixões”, como era dito, muito facilmente ela passava a ser uma personificação
daquele banditismo, enquadrando e endurecendo para seus inimigos, quando não era ele
mesmo o chefe de ações armadas contra seus rivais. Era devido a essas possibilidades, que por
diversas vezes se concretizavam, que os destacamentos não deviam ficar estacionados muito
tempo nos lugares dos conflitos.
A fuga do Alferes, narrada pelos seus inimigos, se deu quando ele decidiu impedir
uma dança marcada em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, quando os “velhos” da
cidade dançariam com bastões (disse o Alferes que “subiria e daria com os bastões nos
velhos”). Na hora da apresentação dos “velhos” um apito de polícia ecoou, juntando a esse
apito outros, dando a impressão às famílias que estavam presentes de que elas estavam sendo
cercadas. Durante o tumulto, houve um encontro entre o juiz municipal, um sargento e um
soldado que, segundo ele, era um cabra do Alferes. Ao perguntar de que se tratava aquela
movimentação, e se era obra do Alferes para assustar o povo, o sargento lhe disse que não
sabia de nada; foi quando “o cabra”, no caso o soldado, numa quebra de hierarquia, respondeu
pelo sargento que a “polícia não havia prendido nenhum criminoso, não fez a menor
diligência”.
No meio desse conflito entre “os velhos”, a população e a polícia, a banda passou a
tocar o Hino da Independência da Bahia, música feita no período da expulsão dos portugueses
durante a guerra de independência no Recôncavo. Um dos trechos da música que diz que
“nunca mais o despotismo regerá nossas ações” foi cantado em voz alta pela população, com
incentivo por parte do juiz de direito. Ao findar a música ouviram-se gritos e risadas, e
quando este juiz foi conferir, o povo estava a se divertir com a fuga do Alferes e do soldado,
seu cabra. Fugiram para os matos.
Como bom chefe de bando, os soldados do destacamento foram atrás dele em direção
a Juazeiro Velho, mas não o acharam. Então decidiram voltar para a vila, pois estavam sem
136

soldos e sem chefe.


O governo, após prender o Alferes, que depois de grande peregrinação pelos sertões
conseguiu chegar até Salvador por Vila Nova da Rainha, “sujo e mal vestido pelas estradas”,
negou que lhe houvesse dado carta branca para passar por cima das prerrogativas das
autoridades locais. Os soldados, todo o tempo chamados de cabras do Alferes, foram expulsos
da vila.
O único a defender o Alferes foi o delegado de polícia. Ele narrou uma versão em
que o povo foi insuflado pelo Juiz, provavelmente o municipal, a se enfurecer contra o alferes
(chamou o ato de um teatro), que aos gritos de “morra!” foram à casa onde este se encontrava.
O delegado, sem armas nem munição, não pôde defender o alferes, que se viu obrigado a fugir
para os matos, e disse que os que deviam dar o exemplo eram os que insubordinavam o povo.
Provavelmente por ser visto como aliado do Alferes, que, por sua vez, era um aliado do
Militão, pediria demissão do cargo caso o governo não agisse em favor dele, já que ele era um
funcionário do governo. Para ele, no “Centro [da província] só grande força é respeitada, e
esta deve ser estranha ao lugar”.
A versão do delegado, que foi feita após tomar conhecimento da versão do juiz
municipal, dizia que na novena, isto é, na festa aqui relatada, as pessoas chegaram com paus.
Ele, portanto, deu ordens para que fossem recolhidos, pois soube que naquela noite haviam
sido comprados cacetes para atacar as patrulhas quando estas fossem recolhê-los. Escreveu
que tinha sido ele quem pediu ao alferes para juntar toda a patrulha.
A narrativa do delegado, toda pormenorizada, incluía um negro que esbarrava de
propósito no alferes, tendo sido por isto que ele tocou o apito. Esse “negro”, assim, no
indefinido, conseguiu fugir. Teria sido nesse momento que aos berros chegou o juiz dizendo
ao sargento e a um soldado que o alferes não deixava o povo se divertir.
A resposta do presidente da província é implicitamente reveladora da posição política
de administradora de conflitos entre clientelas: o alferes foi despedido não pela sua suposta
atitude, mas por ter abandonado a tropa. O presidente achou uma justificativa para agradar as
autoridades juazeirenses e, usando da disciplina hierárquica, deixou também sem argumentos
o delegado. Não teria sido pelas queixas, “carentes de provas”, das autoridades locais, que ele
foi demitido, mas por não cumprir suas funções. Desse modo, tentava se mostrar duro em
relação às funções que cabiam a cada um dos seus prepostos mas também evitar que fosse
visto como uma marionete de Guimarães e seus possíveis desmandos.
Ao fim, num documento que tentava reverter sua demissão, o Alferes explicou que
137

“o negro” que o esbarrou estava vestido de couro e que, ao pedir o reforço da Guarda
Nacional, soube que era ela mesma que estava a realizar a sedição por ordem do juiz de
direito. O alferes, em seu documento, afirma ter o juiz de direito, para incitar o povo “à
sedição”, gritado que livraria qualquer um de qualquer processo se atacassem o alferes ou o
sargento.
Por conta de conflitos que envolviam as autoridades e a população, que se remetiam
às ações armadas de Militão contra os Guerreiros e sua clientela, havia uma tensão flagrante
entre autoridades locais e aqueles que possuíam o controle das armas naquela região. Esse
conflito fica por demais explicitado no medo do delegado e do alferes do uso de paus e
cacetes nas festas religiosas.
Há indícios de um clima político sob forte tensão. Lembremos o caso da não
aceitação dos Guerreiros, na mesma vila de Juazeiro, da presença da tropa do major Galvão.
Não ter o controle de um destacamento era um revés importante para um potentado ligado ao
poder central, pois o uso das armas do Estado para cumprir suas funções de repressões
preventivas, administração e acerto privado de contas eram fundamentais para a manutenção
da reciprocidade entre a clientela e o chefe local. No entanto, para o Estado, pôr fim aos
conflitos localistas era importante, e para isso deslocava tropas, algumas de gente não
envolvida nos atritos locais, com o propósito de conter ou dispersar os acertos de contas,
mantendo firme o propósito de cooptar através da rede clientelista do Estado o máximo de
chefes locais para seus planos. A coação, o medo, a constante quebra de hierarquia e os rituais
populares de insatisfação social, como um esbarrão numa festa 387, onde a segurança pública,
submetida à multidão, fica mais fragilizada no anonimato das ações individuais – como a de
um certo “negro” vestido de couro, o que obviamente aponta para um agregado de fazenda,
vestido com os trajes de quem lida com bois – bem como através da multidão anônima e sua
turbulência rápida e imprevisível388.

387
Sobre as possibilidades de insurgências em festas ver MITCHELL, Reid. Significando: O carnaval afro creole
em New Orleans do século XIX e início do XX. In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e
Outras F(r)estas. Campinas: Editora Unicamp, 2005. REIS, João José. Tambores e Tremores: a festa negra na
Bahia na primeira metade do século XIX. In: Idem. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Festa e Violência: os
capoeiras e as festas populares na corte do Rio de Janeiro. SANTA BÁRBARA, Reginilde Rodrigues. O
Caminho da Autonomia na conquista da dignidade: sociabilidades e conflitos entre lavadoras em Feira de
Santana – Bahia (1929-1964). Dissertação de Mestrado. UFBA. 2007; discute, em alguns trechos as formas
ameaçadoras dos bons costumes causados por um cordão de lavadeiras quando participavam das festas de Nossa
Senhora de Santana.
388
Sobre as ações anônimas como parte de uma tradição de rebeldia popular ver THOMPSOM, E. P. Patrícios e
Plebeus. In:_____Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional, 1998, p. 25-85 e ____.
Senhores e Caçadores. São Paulo: Paz e Terra, 1997. E sobre as ações das multidões ver: RUDÉ, George. A
Multidão na História. Estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra 1730-1848. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1991. HOBSBAWM, Eric; RUDÉ, George. Capitão Swing. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
138

Ao tocar a música de independência da Bahia, o que pretendiam aqueles homens?


Levantar a população contra o autoritarismo de Militão França Antunes, que vivia como um
déspota no sertão, contando com a colaboração de diversas autoridades, como se aquele não
fosse um país constitucional? Ou um protesto contra as autoridades centrais que, em pleno
movimento de centralização, chamado de regresso, não atendia às autoridades locais,
dispondo ali funcionários que em nada obedeciam às autoridades locais, reavivando certo
sentimento regionalista, federalista, que, segundo Sergio Buarque de Holanda, foi forte
influenciador na formação da noção de autonomia nacional e provincial das elites regionais
brasileiras no pós-independência? Não é possível responder por ora, e nos inclinaríamos até
mesmo pela primeira possibilidade como a mais acertada, mas o fato é que o banditismo
político se revelava um impasse na unidade dessa classe senhorial que resgatava mitos de
origem da unidade nacional, como um hino, para revelar que não era o imperador que reinava
naqueles sertões através de seus representantes escolhidos ou eleitos. O hino também poderia
resgatar um sentimento de uma localidade contra a permanência de um poder, seja um
bandido ou autoridades que governavam e ou policiavam à revelia dos seus cidadãos.
O tipo de policiais que compunha o destacamento do alferes era, apesar das queixas
dos juízes, o tipo comum de destacamento policial na região naquela época. A composição
social dos destacamentos era o resultado dos recrutamentos que faziam os delegados e
subdelegados de polícia em toda a província. Nessa mesma ocasião do conflito com o Alferes
na vila de Juazeiro, um comandante afirmava que estava na região e veio a saber do que ali
acontecia através de notícias que lhe chegavam enquanto efetuava recrutamentos em Pilão
Arcado, que no momento que estava sendo cercada por bandidos. Se pensarmos que os
recrutamentos estavam sendo feito em vilas, e seus arredores, tomadas pelas rivalidades entre
potentados, o recrutamento de pessoas livres, pobres, “vadias”, “ociosas”, que viviam sem
moradia e sem a vida ordeira, como lhes definiam os homens da ordem, ampliava ainda mais
o potencial daqueles conflitos, através dos destacamentos dos quais passariam a fazer parte. É
possível dizer que determinados recrutamentos eram realizados justamente para ampliar o
séquito, com fardamento legal e armas do Estado, com agregados, clientes pobres, bandidos
de aluguel, de um ou outro lado da contenda através da ação direta de delegados,
subdelegados e párocos envolvidos nos conflitos locais.
As eleições eram momentos singulares para percebermos como essa burocracia da

1982. THOMPSON. E. P. Rough Music. In:____. Op. cit., 1998, p. 353-406. São obras complementares, nem
sempre concordantes, mas que priorizam aspectos da cultura popular como elemento da formação de uma
tradição rebelde autônoma e com propósitos coerentes para a identidade política desses grupos sociais.
139

violência estatal funcionava levando em conta, a seu favor, o uso eficaz da violência. Claro
que muitos homens desafiaram o poder através de candidaturas também violentas, e que em
algumas situações até chegaram a vencer. Esta é, aliás, uma sugestão que corrobora nossa
tese, qual seja, que a disputa pelo controle estatal em pleno processo de formação de um tipo
de unidade nacional e de classe foi fundamental para a formação de banditismos. Não se trata
apenas de uma sobreposição do poder privado ao Estado, mas também da utilização do Estado
para revestir a violência e o banditismo da ideia de manutenção da ordem. Graham, em outras
palavras, afirmou que, ao lado da crença da liberdade eleitoral, havia uma crença ainda maior:
a do direito do império de manutenção da ordem a qualquer custo, mesmo por meios violentos
e fora da lei389. Eleições, numa sociedade hierárquica, estratificada e plutocrática, rimavam
com violência. Obviamente o clientelismo tem os seus próprios meios consensuais ou
cooptativos de tentar eliminar o conflito, mantendo o domínio dos que mandam. Esta é, em
tese, a função primordial dele, agregando e antecipando ao arco da clientela os possíveis
rasgos oposicionistas e de insatisfação, desde os subalternos até as frações derrotadas e ou
menos poderosas das elites. Os cargos de juízes cumpriam essas funções; mantinham o
domínio social através do que pudesse parecer simples operações administrativas, escolhendo
presidentes de mesas eleitorais, espalhando policiais por Termos supostamente beligerantes,
usando do alcance da polícia e de inspetores para “fazer” listas eleitorais, orientando os
poderes centrais nas distribuições de cargos, etc. Era por esse mesmo motivo que os cargos
eram tão disputados e que se brigava tanto por eles, até de forma armada em pequenas
insurreições bandoleiras.
Caso os meios mais passivos de controle não funcionassem, o Estado assegurava,
através de algumas modificações como as do Ato Adicional e as do Código do Processo
Criminal, meios de nomear os cargos que “eram capazes de usar a força contra eles
[votantes]: em primeiro lugar o chefe de polícia, delegados, subdelegados e inspetores de
quarteirão”390. Mesmo a Guarda Nacional, a partir da centralização empreendida na década de
quarenta do século XIX, deixou de ser um instrumento absolutamente controlado pelos
cidadãos proprietários e passou a ter sua máxima oficialidade controlada pelo Estado.
Os conflitos eram previsíveis e se davam em lugares em que chefes locais obtinham
uma rede de alianças, que incluía uma malha bandoleira, como em Sento Sé, local em que o
cheiro de pólvora ainda estava no ar após os conflitos entre Guerreiros e França Antunes.
Logo, a conclusão seria certamente esta:
389
GRAHAM, op. Cit., p. 105.
390
Idem, p. 130.
140

o tempo da reunião de eleitores e suplentes nesta vila para organização da


junta de qualificação eleitoral era muito próprio para espalhar o terror e a
desordem no termo. O transtorno dos trabalhos eleitorais, em que o mesmo
furioso procura influir pelos meios mais estupendos, não podia deixar de
entrar em seus cálculos391.

O “furioso” era, obviamente, o Militão França Antunes, e não podia deixar de entrar
nos cálculos daquelas autoridades que ele haveria, através de algum aliado, de obter o poder
estatal de algum modo, mesmo já se passando quatro anos desde a sua perda de cargos na
Guarda Nacional.
Ainda em Sento Sé, alguns meses depois do desabafo do delegado acima citado, um
homem chamado Luiz Antonio Ribeiro, “que se tornou insuportável, por só viver bêbado”392,
concebeu um projeto de fazer eleições em Sento Sé. Seus planos não foram bem sucedidos,
mas parece que promoveram meios para que outro homem, chamado Antonio Martins de
Deus, “consórcio de Militão”, viesse a pôr fim às eleições daquele lugar. Naquela
oportunidade, a própria população de Sento Sé pôs-se a lutar contra ele e trocaram-se tiros
durante todo um dia, até que a tropa do de Deus recuou e a população retornou. Temia-se que
Militão aparecesse em auxílio de seu aliado, pois se encontrava, como se sabia, com mais de
200 homens a quatro léguas de Pilão Arcado. Com a impunidade, os facinorosos tornaram-se
mais audazes e “reúnem maior séquito do outro lado” [provavelmente do Rio São Francisco,
em Pilão Arcado]. Os indigitados de morrer não tinham remédio se não procurar meios de sua
segurança individual, visto que não havia providências. A guarda nacional, que já fora
obediente, se tornara insubordinada “pelas insinuações e divergências de partidos” e também
por tantas reuniões e tantas marchas que se mostravam infrutíferas, pois, ao chegar à porta de
Pilão Arcado, os destacamentos encontravam à sua frente facinorosos que “nunca mandam
ordem de ataque”393.
Pilão Arcado a essa altura parecia mesmo sitiada. Um território onde o banditismo
tinha conseguido se sobrepor à ordem estatal, “quer judiciária, quer policial”. O Poder de
juizado municipal e de órfãos estava sob controle dos vereadores, o que seria visto com
ressalvas em qualquer situação, mas mais ainda em Pilão Arcado, onde ainda não haviam
cessado as hostilidades e desconfianças entre seus habitantes394. A Câmara de vereadores

391
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia, 22 de fevereiro de 1847. De Antonio
Ignácio de Azevedo, presidente da província, para José Joaquim Fernandes de Torres/ do delegado de polícia
Benvenuto Augusto de Magalhães Taques, para o presidente da província, João Joaquim da Silva.
392
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia, 08 de outubro de 1847.
393
Idem.
394
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 406. Juazeiro, 06 de maio de 1851. De Juiz de direito da Comarca de sento
141

sobrevivia muito provavelmente por ser o organismo local que mais dispensava o poder
central. As Câmaras municipais vinham num processo crescente de perda de poder político
desde antes da independência e no rastro da centralização restauracionista.
A obra do banditismo criava barreiras para a consolidação da tão desejada unidade
nacional.
A política do Banditismo
Se os potentados entravam em conflito entre si e com o poder central, eles
certamente não poderiam levá-lo adiante colocando em luta apenas seus familiares contra
outros familiares. Mesmo na acepção estendida de família do Brasil oitocentista – aquela das
relações clientelistas e patriarcalistas, em que cabem, além dos familiares consanguíneos,
outros tantos agregados, apadrinhados e familiares indiretos –, para que as lutas acontecessem
essas redes familiares precisavam se alimentar de outros circuitos exógenos às famílias. Para
conseguir 600 e 700 homens para fazer cerco a uma cidade inteira durante alguns dias, era
necessária a contratação e a cooptação de outros homens em relações extrafamiliares.
Esta subseção vai tentar mostrar que os conflitos políticos ocorridos foram propícios
para que as ações de homens livres e pobres, individual ou coletivamente, traçassem
estratégias de sobrevivência, autonomia e resistência ao controle e imposição social sobre os
modos de vida das populações rurais, ribeirinhas e urbanas. Eles souberam fazer cálculos e
agir nas brechas da desordem social para conquistar territórios, circular livremente e obter
segurança e apoio, na mesma medida em que proporcionavam aos seus “chefes” outras
possibilidades. Normalmente essas figuras aparecem na historiografia como jagunços de
alguém, sempre dispostos a fazer o que lhes é ordenado, como seres desprovidos de vontade
própria, entrando o tempo todo na briga política de outros, como que por instinto natural da
índole dos subalternos rurais.
Tentarei mostrar algumas estratégias desses sujeitos e dar-lhes um tratamento que a
historiografia vem tentando ofertar aos mais diversos sujeitos dos grupos sociais subalternos.
É uma proposição arriscada, pois corremos o risco de hiperracionalizar as suas ações, dando-
lhes um sentido que talvez não fosse pensado por eles tal como o historiador
retrospectivamente analisa.
Já falamos anteriormente a respeito da passagem do bando de Militão de um
banditismo político para um banditismo comum. Após as medidas de repressão às suas ações,
era preciso fugir com os homens, conseguir alimentos, cavalgadura, alimentá-las, substituir o

Sé, Leovigildo de Amorim Filgueiras, para Presidente da província.


142

dinheiro que entrava como negociante e fazendeiro, obter armas, munição, o que devia ser
custoso. Notamos que de 1845 em diante a maior parte das notícias sobre o grupo que seguia
Militão França Antunes era de ataques não relacionados diretamente à família Guerreiro. Eles
passaram a se concentrar ao redor dos seus domínios, especialmente em certas beiradas do
Rio São Francisco, ao redor de seus sítios, ou realizando atos criminosos como forma
manifesta de terror aos seus inimigos em cidades vizinhas às que eles tinham presença.
Em Março de 1845 o presidente da província notifica o ministro sobre o retorno das
ações de Militão, impedindo a livre circulação “em hostilidades efetivas” nas margens do Rio
São Francisco e nos arredores das fazendas em que ele e seu irmão moravam. Militão não era
capturado a despeito dos seus trabalhos. Nenhum plano resultaria efetivo, tendo Militão à sua
disposição boas companhias (seja lá o que isso signifique) e tendo em volta de si os “sertões
incultos para lhe servirem de retiro”395.
Alguns meses antes, o presidente da província já havia recebido um abaixo-assinado
de vereadores de Pilão Arcado pedindo providências para que se findassem os “roubos,
assassínios, e até incêndios [que] tudo escandaliza e [é] desapiedadamente praticado por
Militão Plácido de França Antunes e Francisco de França Luiz Antunes e seus, em tudo
semelhantes, satélites”396. O documento afirmava que os habitantes não podiam mais transitar
por fora da vila para não “sofrerem a morte e o roubo, como já tem sofrido algumas vítimas,
que desviando-se algum tanto para procurarem os meios de subsistência deste município
tiveram a desgraça de serem surpreendidos por aqueles malvados” 397. O comércio do Rio São
Francisco se achava empatado

por ter pronto o primeiro mencionado [Militão] com um grosso de seus


sequazes em sua residência no Bom Jardim, termo do Urubú, nas margens
desse rio, e o segundo achar-se residindo na fazenda da Malhada, termo de
Chique-Chique, sem que as autoridades daqueles lugares tomem
conhecimento disto, antes vivendo em boa harmonia com eles. A navegação
ficava restrita para os abaixo assinados e todos demais indivíduos que não
partilham com as malvadezas e procedimentos criminosos daqueles
sanguinários opressores da humanidade, porquanto conservando-se estes
com bastantes armas da Nação, e com dinheiro dos seus cofres, pelos seus
roubos, que a ela tem feito, e na distância não muito longe deste município,
sem que sejam perseguidos das justiças, antes achando abrigo delas, ei-los

395
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Palácio do Governo da Bahia, 12 de março de 1845. De Francisco de
Souza D’Andrea, presidente da província para ministro da justiça, Manoel Antonio Galvão, palácio do governo
da Bahia.
396
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Câmara de Pilão Arcado, 15 de janeiro de 1845. Documento assinado
por vários vereadores.
397
Idem.
143

hábeis, ei-los prontos, para novamente invadirem esta vila, matarem seus
pacíficos habitantes, roubarem quanto nela existir, como já praticaram e
afinal incendiarem os restos das propriedades que ainda existem e que
escaparam da sua ferocidade anterior398.

Autoridades e “armas da nação” não era uma infeliz coincidência. É muito provável
que boa parte do armamento desse conflito tenha vindo do controle que determinadas
autoridades tinham de arsenais das forças públicas. Os oficiais da Guarda Nacional foram
responsáveis, durante muito tempo, pelo armamento dessa milícia. Era costume que as armas
ficassem depositadas nas casas de capitães, majores e coronéis da Guarda. Sem falar, como já
discutimos, das armas que saíram do controle do Estado através dos desertores.
Pilão Arcado parecia sitiada e ritualmente aterrorizada, restando às únicas
autoridades ali ainda existentes pedir ajuda ao presidente da província. Os habitantes, sem ter
como fazer seus comércios pelo rio, tinham que, necessariamente, se arriscar pelas
redondezas, estradas e picadas ao redor da região, tornando-se presas fáceis para as ações dos
bandidos.
Nesse informe podemos também perceber que os “sequazes” do Militão já são
apresentados em grupos divididos, atacando e atuando em frentes diferenciadas. Uma sob sua
direção e outra sob a direção da bandeira do seu irmão, na vila de Chique-Chique.
Notamos sempre nesses informes a afirmação de que o agrupamento sempre tendia a
crescer quando saía em suas ações. Em abril de 1845 o grupo é visto com mais de cinquenta
homens armados, com Militão, há oito léguas das Cabeceiras do Paraguaçu. O estado de
espírito dessa tropa foi descrito pelo subdelegado como bastante aguerrido e com fácil
disposição de “arregimentar mais homens”, pois “o número dos malvados é extraordinário e
não se poupam a coadjuvação de seus consócios” 399.
Quem são estes tais “consócios”? Consócios do Militão? Outras autoridades? Ou
esse relato era a constatação de certa solidariedade ou, ao menos, de uma rede de contato
entre grupos de “facinorosos” que atuavam maciçamente naqueles lugares onde as autoridades
já se provaram lenientes com as leis e com a segurança da propriedade e da vida das pessoas?
Esta última interrogação parece ser a mais provável. A região do Rio São Francisco, como
notamos em capítulo anterior, sempre foi um dos roteiros principais de fuga de criminosos e

398
Idem.
399
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Rio de Contas, 20 de abril de 1845. De Manoel da Silva Baraúna,
oficial maior servindo de secreto, para Herculano Antonio Pereira da Cunha, presidente da província.
144

negros escravizados. Cheia de afluentes e fronteiras provinciais que obstaculizavam


jurisdições, pequenos distritos surgidos pelas pequenas lavouras, além das de pecuária,
espalhados por toda sua margem, o Rio São Francisco foi uma região produtora e produto
dessa violência. A presença dessa gente parece ter facilitado a cotenda armada entre grandes
potentados, e, sendo assim, para lá se dirigiam muitos homens fugitivos, criminosos e
procurados, em busca de acoitamento.
Frederico de Castro Neves400 percebeu ao estudar os retirantes da seca que, ao longo
do tempo, eles desenvolveram um comportamento ritualístico que envolvia sua maciça
presença física nos arredores da cidade. O medo dos crimes, que ao longo do tempo foram se
tornando saques, através de um ritual muito bem desenhado por parte dos pobres rurais,
obrigou o poder público e as autoridades a ceder-lhes ocupação e abrigo em frentes de
trabalho. Quando aquela presença, silenciosa como a fome, passou a perambular pelos
arredores da cidade e finalmente adentrou nela, personificada nos moleques de rua,
salteadores, saqueadores, fez-se necessário não mais ignorar sua presença ou simplesmente
reprimi-la, mas de todo modo criar uma dinâmica social paternalista, através de obrigações
governamentais e privadas necessárias à pacificação e à disciplina social requerida pelas
elites.
Esse parece ser o caso do Rio São Francisco. A presença maciça de desclassificados
sociais de toda espécie parece ter forçado uma relação com os proprietários a cederem o
acoitamento para esses sujeitos numa relação de reciprocidade paternalista, criando assim um
tipo de dominação social com a contrapartida da segurança e do controle contra as
indisciplinas e ataques realizados por esses sujeitos em grupo ou coletivamente.
Aqueles que viviam como foras da lei se beneficiavam da discórdia que aquele
conflito gerava. O destacamento colocado à disposição de Pilão Arcado – em torno de 150
homens – em meados de 1847 não era suficiente para combater ambos “os bandos dos dois
facinorosos”401 (imagino que Guerreiros e França Antunes) “e perseguir os grupos que
vagueiam em diferentes direções, cometendo crimes contra a propriedade, e vida de
cidadãos”402. Além do que parece evidente que os mais diversos criminosos estavam fazendo
a festa devido às dificuldade das forças policias em darem conta apenas dos agrupamentos de
ambos os lados da contenda, vale a pena ao menos se perguntar se não se tratavam de grupos

400
A Multidão e a História. Saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
401
A.N. Ministério da Justiça, AI IJ¹ 404, Palácio do governo da Bahia, 28 de julho de 1847. Do presidente da
província. Idem. Pilão Arcado, 15 de maio de 1847. De Bemveneto Augusto de Magalhães Taquis, delegado de
polícia, para João Joaquim da Silva, Chefe de Polícia; Idem. 21 de maio de 1847.
402
Idem.
145

com uma autonomia ou que se autonomizaram da liderança de Militão ou dos Guerreiros,


resultados de dispersões e de impossibilidades de prover a todos das necessárias condições
materiais de se manterem em campanha, mas que, em determinadas circunstâncias, podiam
voltar a compor o front das razias com aqueles potentados?
Essa, aliás, foi uma tática muito comum dos cangaceiros liderados por Lampião. Na
maioria das vezes, eles, apesar da identidade grupal, constituíam volantes com subchefes que
se separavam para realizar tarefas emergenciais ou por motivo de proteção e discrição. Sob
algumas condições, normalmente revezes, ou iniciativas maiores, sob o comando de Lampião,
se juntavam para ações ofensivas ou defensivas 403.
Esses grupos que atuaram nesse período do século XIX parecem ter gozado de certo
federalismo bandoleiro. Atuavam numa unidade descentralizada e podiam ter autonomia de
atuação. Mas agiam, de acordo com as circunstâncias, orientados pelas ações de um centro
político do qual eram protegidos e guardiões.
Escrevendo de Remanso, onde se encontrava foragido, o delegado de polícia
Benevito Augusto Magalhães escreveu para o chefe de polícia acusando duas situações que
estavam agravando o conflito na região de Pilão Arcado: o movimento bélico de milícias
privadas e a desenvoltura do “bando dos Columins”404. Esses grupos de milicianos,
organizados em fazendas, criavam, segundo ele, muitos transtornos, roubando e matando
inocentes. Viravam jagunços de fazendas com o intuito certamente de protegê-las naqueles
tempos de caos social, mas agiam, quando podiam, em ações autônomas de banditismo
(discutiremos esse aspecto mais à frente). Já o segundo problema, o bando dos Columins,
estavam mais próximos disto que chamei de federalismo bandoleiro. Eles atacavam
viandantes e fazendeiros, “de sorte que tem quase tornado incomunicável o termo”. Para
capturá-los, o delegado de Aricori preparou uma força para ir até a fazenda de um dos
principais membros do “partido-militão”, onde pegaram um vaqueiro que os levou até o
esconderijo dos “ladrões”, onde houve troca de tiros. O delegado afirmou que aqueles
Columins eram uma “retaguarda de Militão”. Enquanto Militão tentava invadir as cidades, as
quadrilhas de ladrões assolavam as fazendas.

403
CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. São Paulo: Paz e Terra, 2003; PERICÁS, Luiz
Bernardo. Os Cangaceiros. Ensaio de interpretação historiográfica. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
404
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia, Remanso. 06 de abril de 1847. De
Antonio Ignácio de Azevedo, presidente da província, para José Joaquim Fernandes de Torres; Idem, Secretaria
de polícia, 29 de fevereiro de 1847. De Benevito Augusto de Magalhães, delegado de polícia para João Joaquim
da Silva, chefe de Polícia.
146

Não dá para entender se a ação era conjunta e programada para o mesmo momento,
como uma distração ou um cinturão de defesa, como uma retaguarda mesmo, ou se se tratava
de uma divisão geopolítica cidade/campo entre aliados para que não se cruzassem nem
invadissem a jurisdição um do outro. De todo modo, eram grupos que agiam articuladamente,
apesar de não serem, necessariamente, controlados um pelo outro.
Em agosto do mesmo ano, o juiz municipal de Vila Nova da Rainha fez saber ao
chefe de polícia que a vila seria invadida para ser saqueada pela quadrilha intitulada Passos,
um grupo de mais de trinta homens armados e dirigidos por José Marcus da Cunha e Felix
Medrado, vindos da comarca de Sento Sé, onde residiam405. Eles iriam para lá junto com
Militão, confirmando, além da ação federativa – pois parece se tratar de outro agrupamento
vinculado à clientela dos França Antunes –, a ideia acima exposta de que Militão atuava no
saque às cidades. A sua escolha pelas cidades, pela polis, talvez se devesse ao fato de que
estas geravam mais publicidade, medo e disseminação do nome de quem dirigia a ação de
terror, reservando às fazendas as pilhagens mais anônimas, de grupos e bandidos diversos.
Lins escreveu que era “hábito, na vida do vale [do São Francisco], os chefes
deixarem os seus homens em liberdade depois de uma luta” 406, deixando os guerreiros, como
ele chamava a gente do vale do São Francisco, se divertirem “no passatempo lucrativo dos
saques”407. O caso a seguir ilustra essa situação: as “razias” que fizeram os Guerreiros na
região de Sento Sé, pela suspeita de que um dos filhos de Militão andava por ali, possibilitou
um ataque generalizado às fazendas da área, onde os seus homens mataram e roubaram com
tamanho apetite que os fez perder apoio de parentes e amigos que antes os apoiavam e que
então pareciam dispostos a dar apoio à justiça408.
Será que perderam o controle? Ou se tratava de uma dessas ações que o federalismo
bandoleiro permitia? De todo modo, precisamos admitir que, para esses homens, entrar para a
história como jagunço de alguém, como mero braço armado, sem vontade ou autonomia
alguma, está aqui fora de questão. Parece que a recompensa para os bandidos que atuavam
junto com esses potentados era a proclamação de um livre território para suas ações após o
trabalho cumprido. A autoridade de um nome, como a dos Guerreiros ou dos França Antunes,

405
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia, 19 de agosto de 1847. De Antonio
Ignácio de Azevedo presidente da província para Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, ministro da justiça.
406
LINS... Op. cit., p. 49.
407
Idem.
408
A.N. Ministério da Justiça, AI IJ¹ 404, Palácio do governo da Bahia, 28 de julho de 1847. Do presidente da
província. Idem. Pilão Arcado, 15 de maio de 1847. De Bemveneto Augusto de Magalhães Taquis, delegado de
polícia, para João Joaquim da Silva, Chefe de Polícia; Idem. 21 de maio de 1847.
147

permitia mais ainda essa livre ação, afinal, como vimos, nem mesmo juízes queriam se
indispor com esses homens por medo de retaliações e vinganças. Assim como esses senhores
rurais se debatiam pelos bens simbólicos e materiais que lhes possibilitavam ostentar e fazer
uso do poder de Estado, às vezes até trilhando os excessos da legalidade, esses jagunços
também viam no nome dos potentados a representação simbólica que podiam alcançar para
usufruir de proteção em determinadas fazendas ou para serem deixados em paz em nome do
temor que a evocação dos nomes dos seus chefes políticos podia provocar.
Nesse caso, os Guerreiros parecem ter perdido o controle ou fiscalizado muito pouco
seus homens, gerando insatisfações e desejos de ordem em alguns dos seus aliados. A
intensidade desses conflitos narrados atrapalhou os negócios e a segurança individual, além da
propriedade, facilitou a adesão dessas elites aos planos centrais de unidade nacional e a
aceitação das autoridades monopolizadoras da justiça e da violência. Esses homens e suas
ações armadas, ao mesmo tempo em que eram obstáculos à consolidação da unidade, ao se
colocarem à disposição de pequenas guerras civis, ou de pequenas insurreições, motivavam
também os proprietários a cederem às autoridades legais o controle da burocracia da
violência, maior responsável pela unidade nacional do Brasil.
Famílias que não tinham nenhuma simpatia pelo Militão estavam sendo atacadas.
Como informou o delegado da vila de Pilão Arcado, a fazenda Alagadiço era uma das que
estavam sendo constantemente atacadas409. Seus proprietários abandonaram as plantações
novas e venderam seus animais. Ela estava sendo atacada “por bandos que não respeitam as
leis, nem os mais sagrados direitos alheios, uns aderentes a Militão, outros a Antonio
Guerreiro”410. Para ele, era preciso acabar de modo enérgico com os bandos que atuavam nas
regiões limítrofes, procedendo “a prisão dos criminosos, e o recrutamento dos vagabundos e
vagantes que os compõem”411. O recrutamento deveria proceder em “algumas cabeceiras
cercadas de miseráveis que sustentam a custa de suas correrias, e da licença do roubo, prontas
a cometer todos os atentados (...) a população mais honesta e laboriosa que encolhe-se e deixa
o campo livre a perversidade”412.
Se, como temos visto, era verdade que o poder das autoridades legais era quase nulo
nessas regiões de conflitos intensos entre potentados, era muito lógico que a população livre

409
A.N. Ministério da Justiça, AI IJ¹ 404, Palácio do governo da Bahia, 28 de julho de 1847. Do presidente da
província. Idem. Pilão Arcado, 15 de maio de 1847. De Benevito Augusto de Magalhães Taquis, delegado de
polícia, para João Joaquim da Silva, Chefe de Polícia; Idem. 21 de maio de 1847.
410
Idem.
411
Idem.
412
Idem.
148

ou fugida, que sempre fora o alvo das autoridades e de suas ações de repressões preventivas,
buscasse os grupos armados para se acoitar ou para se aproveitar da desordem social e
barganhar sua força de trabalho. Não era por nada que os homens do governo tinham pavor
das populações que ali se alojavam.
Em um determinado momento, pelos idos de 1845 em diante, a perseguição a Militão
e a contenção das ações dos Guerreiros começaram a se confundir progressivamente com o
combate ao crime comum. A linguagem deixava de ser polida pela política, pelas relações de
fiscalização, censura e elogios às autoridades envolvidas em ambos os lados do cerco e
passava a ser uma linguagem mais diretamente criminológica, da que tipicamente fazem uso
as elites do país para tratar dos grupos sociais subalternos. Seria o caso de extirpar não mais o
dissenso intraoligárquico, mas de conter a pavorosa hidra, que a cada cabeça cortada
multiplicava-se.
Uma força de 40 homens foi deslocada para o comandante superior da Guarda em
Barra, para tentar “perseguir os criminosos e desordeiros que penetram por diversos
lugares”413. Em outro lugar, uma força teve que ser colocada à margem do rio, pois que ela era
um “ponto importante para onde converg[iam] desordeiros e malfeitores” 414. O presidente da
província autorizou o “Tenente Sebastião da Silva Gomes, reunindo algumas pessoas
armadas, a fazer uma exploração até o centro, onde tem eles fazendas, perseguindo eles os
criminosos e homens armados que encontrar”415. Esses trechos se encontram incluídos na
documentação que trata das desordens colaterais produzidas pelas ações de Militão França
Antunes e sua guerra com os Guerreiros. Ela retrata a escalada criminalizadora sobre a
população do centro da província, que estabeleceu como objetivo tático não mais a captura de
Militão França Antunes, mas a repressão sobre a sua suposta clientela armada, seus peões de
guerra, aqueles que lhe davam proteção.
O delegado da Barra tentou fazer o presidente da província perceber que era
necessário que se colocassem homens ao norte do rio e no centro, para que se “impedisse os
facinorosos de passar de um para o outro distrito”416, criando para tal um “um sistema de
repressão e perseguição”, para “varrê-los mais longe”. A ideia era que eles não entrassem em
Chique-Chique, que, para ele, era um verdadeiro “arraial de desordeiros”. Cada vez mais, a
preocupação com as autoridades diminuía e cada vez mais crescia a preocupação com os

413
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Palácio do Governo, 08 de maio de 1845. De Francisco José de Sousa
d’Andrea, presidente da província, para Manoel Antonio Galvão, Ministro da Justiça.
414
Idem.
415
Idem.
416
Idem.
149

grupos sociais subalternos e os criminosos comuns. Para esse mesmo delegado, os conflitos
só acabariam quando “os principais autores de atentados extraordinários (...) fo[ss]em
arrancados dos bandos que capitaneiam contra a ordem pública” 417. A grande questão não era
mais como arrancá-los da influência perniciosa de autoridades corruptas, mas dessas
“comunidades volantes” que eles capitaneavam.
Muito provavelmente, com as demissões e perseguições de autoridades vinculadas
aos grupos beligerantes, uma rede de clientela poderia estar se fechando, como vimos
acontecer no caso citado dos Guerreiros. A consequência era o crescimento da dependência
desses potentados para com os criminosos comuns. Viver se tornava cada vez mais uma
condição à margem da ordem, da propriedade e da família. Esse “à margem” configurava o
lugar social de identificação dos desclassificados, que cada vez mais os aproximava dos fora
da lei e vice-versa. O centro da província passou a ser, especialmente para os grupos sociais
subalternos, um permanente estado de exceção não declarado.
Um estado de exceção na construção do Estado Nação
O filósofo e jurista Giorgio Agamben, em uma de suas definições sobre o “estado de
exceção”, nos explica que são medidas usadas para justificar a salvaguarda da democracia e
da ordem ou mesmo do sistema constitucional, através da supressão do ordenamento limitante
da normalidade constitucional. O “estado de exceção” foi previsto em diversas constituições
de países democráticos contemporâneos. Contudo, essa fórmula jurídica, que aponta para o
“direito” de suspensão das garantias constitucionais, se ampara numa constituição que perde o
valor ao ser decretado o mesmo “estado de exceção”. Trata-se de uma forma jurídica não
jurídica ou de uma ditadura constitucional. Não é à toa que, para ele, o “estado de exceção”
“encontra, certamente, sua estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência”418.
Ele é “uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos,
mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político”419.
A ironia dessa medida é que, como nos informa Walter Benjamim, autor
influenciador de Agamben, a “tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’
em que vivemos é na verdade a regra geral”420. Se para um conjunto da nação há todo um
ordenamento constitucional para aplicá-lo, para os grupos sociais subalternos ele é uma forma

417
Idem.
418
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 12.
419
Idem, p. 13.
420
BENJAMIM, Walter. “Teses sobre o Conceito da História”. In:____. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e
técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 225.
150

de técnica de dominação contínua e permanente.


A primeira metade do século XIX foi as duas coisas. Do ponto de vista da nação, ela
não conseguia se realizar como tal, devido aos tantos levantes, insurreições, desanexações,
guerras civis e rebeliões escravas que aconteceram ao longo do período. Do ponto de vista dos
subalternos, a situação se agravava ainda mais. Além das técnicas de controle e domínio
cotidianos – que acontecem dentro da casa, na senzala, no campo, nas estradas, nos
aldeamentos, entre outros – toda essa agitação política acirrava ainda mais o desejo de
controle, na maioria das vezes violento, que os poderes em consolidação tinham dos seus
governados. Mesmo alguns dos mais famosos rebeldes e rebeliões, ao pressentirem certo
anseio popular em participar daquele “momento de perigo” 421, optaram pela “tradição do
conformismo” e se colocaram à disposição das classes dominantes para, juntas, destruirem a
emergência política das classes subalternas.
A “hidra de muitas cabeças”, composta pela horda heterogênea, não podia ser
destruída através dos métodos constitucionais normais; aliás, vimos que eles podiam, em
algumas circunstâncias, ajudar os homens que chefiavam certos agrupamentos de fora da lei.
A essa constatação chegou o major Pedro Veloso quando escreveu para o presidente da
província afirmando que leis não eram feitas “para os anjos” e que, se não era possível tomar
medidas extraordinárias às leis, elas também não deveriam deixar os crimes impunes422. Ele
pediu a suspensão de garantias por algum tempo nas três comarcas onde agiam os Militão e os
Guerreiros (Sento Sé, Urubú e São Francisco), pois, sem a suspensão de rituais públicos
constitucionais, nenhuma proposta de qualquer autoridade poderia ter sucesso. O major,
mostrando a sua confiança, escreveu que, com a autorização de não cumprir certos rituais da
justiça, estaria pronto a responder em tribunal por elas, bastava o parecer do presidente da
província, que, infelizmente não conseguimos colher.
Após discorrer sobre vários fatos atrozes na província, dentre eles a guerra civil dos
Cangussús em Caetité e o conflito entre os irmãos Guimarães em Urubu, um ofício do
delegado para o chefe de polícia, transcrito para o presidente da província e o ministro da
justiça, afirmava que “só medidas tão fora das regras ordinárias, como são os crimes que se
cometem é que podem pôr termo a tanta maldade e proteger a honra e a vida da gente
pacífica”423.

421
Idem, p. 228 e 229.
422
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Quartel em Pilão Arcado, 26 de janeiro de 1846. Pedro Antonio
Velloso da Silveira, Major comandante do destacamento, para Presidente da província Francisco d’Andrea.
423
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Vila do rio de Contas, 27 de novembro de 1844. Herculano Antonio
Pereira da Cunha, Delegado, para João Joaquim da Silva, chefe de polícia. Idem. Palácio do Governo da Bahia,
151

Sem subterfúgios, o delegado basicamente conclama, ou só informa, às autoridades


que a lei do “olho por olho dente por dente” seria ou já estaria sendo aplicada pela província.
As regras ordinárias não alteravam o status quo da situação política e do banditismo. Esses
documentos são decepcionantes para a crença de que o banditismo é um resultado da ausência
de Estado. O Estado e seus rituais oficiais, burocráticos, podiam aumentar os conflitos, ou
simplesmente não resolvê-los. Parecia haver uma sedução à barbárie, ao estado de sítio, ao
estado de exceção, mas não uma sedução à ordem, como chega à conclusão Ivan Velasco
Cruz, quando afirma que o século XIX se caracterizou pelo reconhecimento dos sujeitos
pobres e ricos nas resoluções judiciais para mediar seus conflitos424.
Levar ao conhecimento do Estado uma querela, um crime, entre outras coisas, não
assegurava que a população não visse aquela instância como classista ou ineficiente. Na
maioria das vezes, acionar a justiça não eximia a querela de continuar pelas vias de fato.
Aliás, muitas vezes a formalização funcionava como um recurso quase retórico para que o
Estado, ou a justiça, não tratasse o autor desde já como a parte inimiga, exigindo a
investigação e o tratamento das outras partes também como possíveis réus, criando-se, assim,
uma dificuldade a menos na luta ordinária contra os inimigos. Submeter-se aos pés da justiça
do império era um aceno simbólico para não ser compreendido como sedicioso, o que
permitia, no caso dos potentados, conseguir que personalidades do próprio Estado os
defendessem por dentro e também por fora, sem ofender a autoridade imperial.
Desse modo, cedendo à lógica da barbárie, ou ciente do permanente “estado de
exceção”, a promessa que o juiz de direito fez para o presidente da província seria cumprida a
depender da liberdade de cumpri-la: eles poderiam até perder algumas batalhas, “mas não a
causa”425, nem que isso custasse a perseguição de todo um modo de produção da vida social
por meio do combate ao banditismo.

21 de dezembro de 1844. De Francisco José de Souza Soares d’Andrea, presidente da Província para Manuel
Antonio Galvão.
424
VELLASCOS, Ivan Andrade. As Seduções da Ordem. Violência, criminalidade e administração da justiça.
Minas gerais, século 19. São Paulo: EDUSC; ANPOCS, 2004, p. 24-31.
425
A.N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹ 400. Vila de Sento Sé, 20 de março de 1844, de Pedro da Costa Lobo, juiz
de direito, para presidência da província.
152

Capítulo 6
Os Canguçús “vão se tornando em salteadores”

O rapto e seus motivos


Nos anos finais do século XVIII, provavelmente preocupado com as questões
militares de defesa contra índios, “cabras malfeitores e bandidos acoitados na caatinga”426,
Antonio Pinheiro começou a construir uma casa que era quase um quartel de defesa, segundo
relatos dos contemporâneos dos sertões próximos de Caetité 427. A casa, até onde se sabe,
nunca sofreu nenhum ataque desses inimigos, mas algumas décadas depois ela viria a ser
atacada por outros inimigos daquela família, quando o casarão estava em posse do filho de
Antonio Pinheiro, Inácio Canguçu.
O conflito entre três famílias que se voltaram contra a família Canguçu teve como
estopim o sequestro de uma menor chamada Pórcia Carolina da Silva Castro, que foi retida no
final do ano de 1844 pelo filho de Inácio Canguçu e neto de Antonio Pinheiro, Leonelino
Canguçu.
Existem muitas controvérsias sobre o momento do sequestro, quantos dias ela passou
em posse de Leolino, e até mesmo sobre seu consentimento ao ato428. Não é o objetivo deste
capítulo investigar os pormenores desses acontecimentos, mas apenas traçar linhas gerais que
sejam suficientes para discutir o que fato que nos interessa: a relação entre os poderes
públicos e o banditismo rural.
Quando o tenente coronel José Antonio da Silva Castro faleceu, deixou como tutor
de suas seis filhas seu cunhado João Evangelista dos Santos. Este senhor, juntamente com o
tenente coronel Clemente Antunes da Silva Castro e Feliciano de Tanajura, capitanearam uma
comitiva que incluía alguns escravos e outros agregados, além de guardas nacionais, para
conduzir as garotas. No caminho, decidiram se hospedar na casa-forte de propriedade do pai
de Leolino Canguçu. Nos dias inicias foram muito bem tratados, até que “sem ocorrência

426
FILHO, Lycurgo Santos. Uma Comunidade Rural do Brasil Antigo. Aspectos da vida patriarcal no sertão da
Bahia nos séculos XVIII e XIX. Feira de Santana: UEFS Editora; Fundação Pedro Calmon: Salvador, 2012, p. 33-
45
427
Havia até espaços específicos para colocar os canos das armas e fazer mira nos prováveis inimigos. Idem, p.
40.
428
Sobre as diversas versões do rapto e das subsequentes colisões entre os familiares, incluindo, as divergências
sobre a retomada de Pórcia pelos seus familiares e um suposto filho dos dois ver: SOUZA, Luisa Campos.
Conflito de família e banditismo rural na primeira metade do século XIX: Canguçus e “peitos largos” contra
Castros e Mouras nos sertões da Bahia. Salvador: Mestrado em História. UFBA, 2014, p. 56-64.
153

alguma anterior foi Clemente Antunes atacado por ordem de Leolino” 429. Leolino então
“tomou mão da mais velha que terá 16430 anos e a desonrou violentamente, conservando-a em
seu poder, e de mão armada, porque está acompanhado de muitos peitos largos, ou assassinos
de sua escolha”431.
Os autores divergem sobre por quantos dias Pórcia permaneceu com Leolino. Alguns
falam em cinco dias e outros em algumas semanas. Importa para nós que o fato de Leolino ter
retido uma garota menor, virgem, sem nenhuma conversa com seus pais, desencadeou uma
guerra entre quatro famílias que repercutiu até na capital do Império.
Após o cárcere privado de Pórcia, Feliciano de Aquino Tanajura, junto com o
sobrinho de Clemente Cunha Silva Castro, com vinte homens armados e mais um cunhado do
finado, João Evangelista dos Santos, não conseguiram naquela “ocasião tirar a infeliz Pórcia
do poder do malvado Cangussú, por não ter gente bastante para semelhante empresa, foi de
mister acompanharem todos da família a uma distância de quarenta e tantas léguas, a fim de
ficarem a salvo do malvado”432. No lugar Passagem da Santana, conseguiram trinta e quatro
pessoas armadas para livrar Pórcia. A fazenda se encontrava fechada, e seis portas foram
arrombadas, dois homens de Canguçu foram mortos e nenhum dos Tanajura. Voltando da
fazenda, encontraram-se com a tropa mandada pelo presidente da província, que da capital
dava todo apoio à caçada, além de escrever textos duríssimos contra a família Canguçu.
Em meio a tantos acontecimentos, uma autoridade local ressaltou algo que foi muito
relevante nos anos seguintes dessa guerra: nenhuma providência havia sido tomada pelo
subdelegado e juiz municipal do lugar. Apenas um homem (Manoel Justiniano de Moura 433)
encaminhou um pedido de averiguação ao juiz de direito da Comarca (Luiz Antonio Barbosa),
429
A.N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 401. Caetité, 27 de novembro de 1844. Delegado Herculano Pereira
da Cunha.
430
Outro documento fala que ela teria 14 anos. Ver: A.N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 401. Caetité, João
Evangelista, sem data, mas respondido em 05 de março de 1845. Paira também uma controvérsia sobre a idade
de Leolino. Filho afirma que ele teria 18 anos quando do acontecido e a pesquisadora Luiza Souza, fala em 23
anos. Ambos concordam que ele era casado quando manteve em cárcere privado a garota.
431
Idem. Luisa Souza cita trechos de uma matéria publicada no jornal o Guaycuru em que o próprio se defende.
Ele defendeu para o público que tudo aquilo não passava de uma tentativa de incriminá-lo por parte de seus
inimigos. Pórcia teria pedido socorro a ele para ver-se livre da posse dos seus tios e amigos e teria, segundo ele,
demonstrado reciprocidade nos seus sentimentos. Ele disse, ainda, que tudo foi conversado com o Tenente
Clemente Castro que teria concordado em deixar a garota sob sua responsabilidade. SOUZA... Op. Cit., 2014, p.
94 e 95.
432
A.N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 401. Caetité, João Evangelista, sem data, mas respondido em 05 de
março de 1845.
433
Idem. As principais vítimas dos Canguçus foram os Moura entre as três famílias que se envolveram no
conflito. Segundo eles os Castro e os Meira tinham motivos evidentes para se envolverem na luta, afinal, Porcia
era parente direta de uns e indireta de outros, mas os Mouras nada tinham a ver com a situação. Luiza Souza
afirma que o motivo do envolvimento dos Moura, o que fez a guerra entre eles se prolongarem, foi o fato de
litígios por terras que já haviam colocado em rota de colisão essas famílias. Falaremos mais um pouco sobre isso
à frente.
154

que solicitou o devido esclarecimento do juiz municipal (Antiocho dos Santos Faure), que,
mais uma vez, nada fez a respeito. Ao contrário, deu toda assistência a Leolino Canguçu na
vila de Caetité434. O comandante da tropa ali instalada apelava para que as forças públicas
chegassem antes do conflito, para que prevalecessem as leis, e ficasse demonstrado para todos
os “perversos desse nosso sertão que nem sempre eles cometem os maiores crimes e
barbaridades impunemente e que apesar da distância para a capital, alguma vez a lei é
respeitada e observada”435. O Comandante não podia prever que os anos que viriam o
contrariariam profundamente.
A ordem seduzida
Quando o juiz de direito tentou assumir todas as ações junto com o juiz municipal e
promotor do termo, Antiocho dos Santos Faure, afirmou, em relato ao presidente da província,
que todas as medidas eram vãs, já que o “réu mantém as mais estreitas relações com o juiz
delegado, e, coadjuvado por ele, tem conseguido escapar ao pronto castigo e iludido as vistas
da justiça”436. Ao chegar a Caetité, pediria que o funcionário fosse processado pelo promotor,
como já devia ter sido feito.
Esse foi um dos primeiros documentos a trazer à tona a relação entre o Juiz
Municipal citado e a família Canguçu. Eles tinham uma história antiga de desmandos na
região, que foi resgatada por várias autoridades no período dos conflitos entre as famílias.
Quando o segundo suplente de Juiz Municipal assumiu o cargo, ele fez questão de
relatar para as autoridades provinciais o tamanho da situação em que estava metido. Para isso,
foi preciso fazer uma retrospectiva do juiz municipal Antiocho Faure. Citemos o juiz suplente
sobre a “indulgência do Dr. Juiz Municipal Delegado para com os desordeiros”437:

A ano e meio por falecimento da viúva Ana Xavier, sendo herdeiros


Inocêncio Pinheiro Cangussú e seus cunhado Messias, alojou-se o referido
juiz na casa daquele, tolerando que fosse inventariante Leolino Pinheiro
Cangussú, neto, sem direito a herança, e houve inventário único neste
gênero, porque entraram até propriedades alheias, que sem seres seus
compradores ricos, digo, ouvidos, foram partilhados ao bel prazer dos
Cangussús” (...) “tanta privança daí para cá tomou com o dito juiz438.

434
Idem.
435
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401. Caetité, 12 de dezembro de 1844. Do major comandante José Rocha
Galvão.
436
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 401, Palácio do Governo da Bahia, 11 de março de 1845. De Francisco José
de Sousa soares d’Andrea, presidente da província para Manoel Antonio Galvão, ministro da Justiça, palácio do
governo da Bahia
437
Idem..
438
A.N. Série Ministério da Justiça, AI IJ¹ 401 Bom Jesus do Meira ; 13 de abril de 1845. De Martiniano de
Sousa Albuquerque, Tenente General.
155

Por esse motivo o juiz já havia sido chamado até Cachoeira para responder perante o
governo da província sobre um atestado falso. Ele tinha sido denunciado, através de alguém
de Caetité, por colocar a preços bem mais custosos os bens das pessoas que com quem
mantinha relações escusas, recebendo em troca agrados e parte dos lucros, tendo se tornado
ele mesmo “possuidor de escravos e crias, do que veio ordem do juiz de direito da comarca
chamasse a responsabilidade o referido juiz de órfãos, Faure”. Quando retornou daqueles
esclarecimentos prestados à presidência da província, passou a suspeitar de todos e passou a
abrir processos contra qualquer um de quem suspeitava de ter qualquer motivação contra ele.
Mas isto lhe custou muito caro, afinal, o fato de haver suspeitas do governo contra ele não o
fazia a pessoa mais indicada para tais atos de corrupção. “Dessa época para cá tornou-se a
privança recíproca com os Cangussús a ser uma necessidade” 439. Segundo o juiz suplente, ele
ficou completamente dependente dos Canguçu, já que “aquela roda de desordeiros” era
necessária para “aterrorizar a qualquer um que pretendesse levar queixas tais, ou denuncias à
presença do governo”440.
Antiocho Faure acumulou muitas funções importantes, provavelmente designadas
por uma rede de poderosos locais com influências no poder provincial e central, para que
agisse sob seu mando. Apenas quando essa rede foi descoberta ele pareceu se dedicar
exclusivamente, ou quase, aos Canguçu.
Segundo o juiz, Leolino chegou alguns dias depois do rapto “pela vila de Caetité com
destino de herdar por parte da deflorada, na Vila de Monte Alto, teve relações, tomando seu
conselho o mesmo delegado”441. Ao que parece, Leolino atribuiu ao defloramento de Pórcia
algum grau de legitimidade para que ele herdasse alguma coisa que estaria no nome dela ou
de seu pai falecido. Tudo isso contando com o apoio do delegado local. Os delitos ficaram de
quatro a seis meses sem serem pronunciados pela justiça.
O juiz municipal e delegado demorou oito meses para fazer pronúncias, quando as
fazia. A não ser quando se tratava de algo do seu interesse; então ele, “a seu grito”, fazia o
sumário rapidamente andar, como se viu no caso da prisão de um homem em Caetité, em que
tomou das mãos do subdelegado das Umburanas o caso. E apesar de ser criminoso de morte o
tal rapaz, em poucos dias já estava livre “ao andar das ruas”. Nem mesmo ao governo Faure
obedecia, como se viu no caso em que mostrava as ordens do excelentíssimo Senhor Pinheiro

439
Idem.
440
Idem. Idem todo o paragrafo.
441
Idem.
156

[presidente da província] ao Padre Amador Felício Guieiro, cabeça da revolta do Mendanha


em Minas Gerais, quando este era perseguido pelas autoridades, mas tendo na verdade sempre
permanecido dentro da vila de Caetité, exercendo a advocacia perante as audiências do
mesmo Dr. Juiz Municipal, que o acolhia com muita liberdade442.
Podemos notar nos trechos acima um elemento importante para nossa argumentação.
A inversão da relação entre protegidos e protetores. Proteger bandidos contra a sanha da
polícia e da justiça era uma maneira de contar com as armas daqueles em momentos
oportunos, como no conflito com as outras famílias ou com qualquer desafeto. Em algumas
situações se podia fazer demorar o julgamento e em outras se podia acelerá-lo para dar como
livres figuras consideradas perigosas. Mas a intervenção em prol de criminosos não era uma
benevolência ou uma prática de um homem inato à maldade, mas um cálculo importante num
contexto em que poder privado e poder público estavam em plena acomodação conflituosa.
Em outro documento, a mesma situação é relatada pelo delegado suplente. Segundo
ele, Leolino Canguçu dizia para quem quisesse ouvir que cobrava as coisas litigiosas com “o
punho do seu bacamarte” e andava por aí com um sujeito chamado João, vulgo “Cara
Larga”443. Cara larga era um réu procurado pela justiça pela morte do juiz de direito Luis
Antonio Barbosa. Leolino e o séquito do acusado ameaçavam de morte qualquer suplente que
se envolvesse com aquele ocorrido, “e então entravam no arraial, davam descargas de tiros de
clavinote e em altas vozes desafiavam ricos e pobres, que se quisessem tomar com eles”. Os
bandidos sabiam os motivos de escolher os seus “protegidos”, pois também sabiam se
proteger. Não era um negócio tão unilateral a formação desses banditismos: clientela mais
parentela, mais agregados, mais falta de autoridades sertanejas, igual a jagunços protetores de
potentados. Eles estavam ali para garantir que suas demandas de proteção, numa sociedade
em que crescia o ímpeto estatal por centralização judicial e policial, fossem lembradas. Se não
conseguissem com um podiam conseguir com outros, mas eles eram importantes nesse
entrave em torno da centralização do poder.
Assim parecia ao presidente da província que mais perseguiu os bandidos na
primeira metade do século XIX na Bahia, Francisco d’Andrea. Quando ele decide dar um
basta nas tentativas de Leolino Canguçu de organizar um “partido levantado contra as leis e
contra os homens, pegando em armas e reunindo gente”444, escreve um documento que
ressalta a cidadania diferenciada conquistada pelos bandidos nos lugares onde havia
442
Idem.
443
Idem.
444
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia, 15 de junho de 1846. Do presidente da
província, Francisco d’Andrea, para José Joaquim Fernandes Torres.
157

constantes ou intensos conflitos armados de forças privadas contra forças públicas, de forças
públicas contra si mesmas ou mesmo de forças privadas se debatendo umas contra as outras.
Seria necessário ensinar

aos homens ricos e poderosos daqueles lugares que as leis também foram
feitas para eles, pois que até hoje há todos os motivos para crer que assim
nenhum deles o entendeu, e sim que eles e os peitos largos estão acima de
tudo, pertencendo o efeito das leis em casos crimes unicamente aos
miseráveis sem proteção 445.

Peitos largos se encontravam protegidos acima das leis nos lugares em que esses
homens conseguiam dominar. Acima das pessoas comuns que sofriam as sanções das leis.
Essa lógica não era notada apenas pelo presidente Francisco d’Andrea, mas penso que
também pelos bandidos que usufruíam de liberdade para atuar e negociar espaços de atuação
enquanto protegidos das leis dos patrões das guerras. A presença bandida não era ocasionada
pelo inevitável controle do território e do poder privado que a tudo mandava e subjugava, até
mesmo os fora da lei. Ao contrário, os bandidos giravam em suas órbitas porque assim
obtinham a proteção necessária para gozar de uma vida bandoleira sem que fossem totalmente
proscritos, afinal, todos os povos passavam a viver sob a égide do “estado de exceção”.
Generalizado esse estado de exceção, os bandidos eram mais sujeitos do que os homens
comuns, acuados entre a barbárie de Estado e das forças em contenda que os viam com a
desconfiança de fazerem parte da clientela de um ou outro lado das disputas446.
Ter o apoio ou a simples leniência da justiça era um elemento importante para
considerar a quem proteger e de quem ser protegido. Faure parecia ser bastante poderoso e
inescrupuloso para fazer com que Leolino Canguçu, além das bravatas que professava, se
sentisse seguro ao ponto de raptar a primogênita menor de idade de uma família não pouco
prestigiada.
Aliás, seus planos em parte deram certo. Quando Leolino foi preso, nada havia
constando contra ele, pois os autos que foram feitos, depois de muitos meses sem abrir
processo para averiguar o ocorrido, tinham tantas brechas, exclusões, faltas de circunstâncias,

445
Idem.
446
Os relatos de morte, acusação, ameaças e roubos de moradores dos distritos próximos aos locais de
perseguição de Leolino Canguçu, podem ser vistos em A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Rio de Contas, 10
de maio de 1842. De Herculano Antonio Pereira da Cunha, Juiz Municipal e de Direito Interino para Francisco
d’Ándrea Presidente da província; Idem, Caetité, 06 de maio de 1846. Do Juiz Municipal Antiocho dos Santos,
para presidente da provincia, Francisco d ‘Andrea.
158

entre outras, que acabou absolvido por falta de provas, tamanha a precariedade do processo447.
Antiocho Faure foi despedido do cargo em março de 1845, mas o seu trabalho já estava bem
feito448. Evitou a prisão de Leolino Canguçu e possibilitou a abertura de uma vaga de
banditismo que cruzou dos sertões de Caetité até o Recôncavo. Quando não era a própria
disputa pelos cargos do Estado que gerava os conflitos, era a absolutização de poderes
estatais, controlados pelo Estado e geridos por clientelas locais, que criava novas perspectivas
para o banditismo tornar-se uma via de ação política de homens ricos e pobres.
O major comandante de um batalhão que perseguia o Leolino Canguçu afirmou que
ele vinha fugindo “por desvios e matos”, vestido de “couro como um vaqueiro”, da vila de
Caetité. Com dificuldade de encontrar apoio fora dos circuitos que passaram a ser fiscalizados
pelo poder central, ele se travestia para, diferentemente de outros tempos, não ser visto nem
lembrado. Ainda assim, a rede de apoio do juiz municipal Antiocho dos Santos Faure – que
conseguiu cavalos para o Canguçu e não cedeu cavalos ao batalhão –, por exemplo,
funcionava. O Comandante, já ressabiado da “coadjuvação” do juiz com os criminosos,
afirmou:

seguirei tanto quanto for possível as fórmulas legais pois que a infelicidade
dessa comarca quer que as autoridades sejam as que mais estorvos procurem
pôr à execução da lei, sendo os primeiros a visitar o réu nesta vila, e
acoitando-o em sua casa durante a noite” [com] “correspondência secreta,
quanto o governo faz para punir um criminoso, que já se vai tornando
perigoso para a paz do sertão, e talvez breve um salteador”449.

447
A.N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 401. Palácio do governo, 15 de outubro de 1845. De Francisco
d’Andrea, presidente da província, para ministro da justiça.
448
Idem. palácio do governo da Bahia, 11 de março de 1845. De Francisco José de Sousa soares d’Andrea,
presidente da província para Manoel Antonio Galvão, ministro da Justiça, palácio do governo da Bahia, 11 de
março de 1845
449
Idem. Caetité, 18 de janeiro de 1845, de José da Rocha Galvão, Major comandante, para o presidente da
província.
159

O comandante, ao seu modo, reafirmava mais uma vez o “estado de exceção”. “Tanto
quanto for possível seguir as regras legais” era um recado sobre a quebra das regras legais. As
regras legais serviam, simbolicamente, para que o “estado de exceção” não fosse considerado,
contraditoriamente, um estado de exceção de fato. A existência da lei era a existência das
autoridades que representavam a lei, ainda que a todo momento operassem acima da lei, por
isso a necessidade de unir autoridades locais, fortes, violentas, dispostas à manutenção da
ordem em nome da lei de Estado, ainda que ela fosse apenas um “estado de exceção” não
declarado. Ao fim da citação acima, quando o comandante joga a toalha para o procedimento
legal, ele sugere que o grupo de Canguçu se converteria em breve em salteadores que
apavorariam os sertões. Esta é a senha para que a lei seja quebrada, combater bandidos como
bandidos, sem lei nem regra.
160

Capítulo 7
Antônio Guimarães e seus peitos largos: dispersão e federalismo
bandoleiro

Motivados por questões pessoais ainda não definidas com exatidão pelos
pesquisadores e pela documentação, os irmãos José Antônio Guimarães Araújo e Antônio José
Guimarães romperam relações políticas, provavelmente pelos idos de 1843. Passaram então a
integrar partidos diferentes na Vila de Urubu, situada no Médio São Francisco. José Antônio
tinha uma carreira política sólida e crescente na comarca de Urubu. De 1834 a 1848, data da
sua morte em conflito com o irmão, foi de vereador a delegado, o que revela seu prestígio
junto às autoridades provinciais. Quanto ao seu irmão, as informações são as de que foi eleito
Juiz de Paz em 1847, num contexto já conflituoso450.
Pelo que podemos depreender, tanto das fontes como da narrativa de Rafael Sancho
Silva, naquele momento, na vila de Urubu, apesar da tradição de José Antônio Guimarães na
política, ele estava acuado. Silva afirma que o presidente da Câmara de Vereadores era rival
de José Antônio Guimarães e que foi nesse período que um dos pivôs do conflito, Nicandro
Albino Lopes, foi residir em Urubu, depois de ser despedido do seu cargo na comarca de
Jacobina para assumir o cargo de Coletor em Urubu. Nicandro era primo dos Guimarães, mas
sua aproximação no tempo em que esteve em Urubu se deu com Antonio Guimarães. Como
os dois irmãos divergiam politicamente, imagino que Nicandro Albino tenha ido trabalhar em
Urubu a pedido do partido de Antonio Guimarães, o que gerou a insatisfação do seu outro
primo, até que eles entraram em rota de colisão política.
O cargo de Coletor era de suma importância para controlar, fazer uso e desvios de
recursos públicos e privados. Mas não sabemos se foi por este motivo que José Antônio
Guimarães mandou prender Nicandro sob acusação injúria. O certo é que as disputas pelos
recursos da vila estavam em questão, e a sugestão de que o conflito entre os irmãos tenha se
iniciado por conta da administração dos recursos da irmandade Bom Jesus da Lapa aponta
para isso. Ademais, Antônio Guimarães nunca exercera seu cargo de Juiz de Paz, pois ele era
nessa época pronunciado por crimes, o que lhe retirava o direito do cargo 451.
Daí em diante o conflito se transformou em luta armada, que durou muitos anos.
Uma das primeiras ações do grupo que a partir de então foi chefiado por Antônio
450
SILVA, 2011, op. cit., p. 90 e 91.
451
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes – Urubu. 1829-1864. Maço
2623. Sítio da Pedra Comprida, 08 de fevereiro de 1848.
161

Guimarães foi a de tentar libertar o Nicandro Albino. Nos meses finais de 1847, ele tentou
atacar a cadeia para libertar o coletor. Não conseguiu naquela oportunidade retirar o preso
porque o subdelegado tomou as providências necessárias para evitar a sua libertação 452.
Antonio José Guimarães não desistiu da sua empreitada e, algumas semanas depois, ele
atacou a vila e conseguiu retirar Nicandro Albino da cadeia. Meses depois, ao relatar a
situação daquele conflito para as autoridades provinciais, Inácio Carlos Freires de Carvalho,
Juiz Municipal e Delegado de Urubu, disse que, naquela ocasião, quando adentrou a vila de
Macaúbas para capturar os fugitivos e os do agrupamento de Antonio Guimarães, encontrou-a
completamente aterrorizada. Antônio Guimarães estava na época do relato a mais ou menos
14 léguas de onde o juiz e delegado se encontrava, no arraial da Lapa, reunindo e armando
muitas pessoas para tirar Nicandro e matar seus desafetos, especialmente o subdelegado que
impedira o primeiro plano, além do próprio juiz municipal. Sua estratégia de defesa foi a de
colocar algumas praças para cercar a cadeia, algumas rondas nas estradas, mas mesmo assim
considerava que essas ações poderiam não funcionar, pois como de costume lhe faltava força
militar em quantidade e bem armada para a luta453.
Nessa segunda batalha, que durou dias, segundo vários relatos, seu irmão, José
Antônio Guimarães, foi assassinado. O juiz de paz afirmou em documento escrito para o
presidente da província que, se ele e outros homens de prestígio e poder na vila não tivessem
fugido, teriam morrido todos454.
Dispersão e banditismo
Quando uma força de bom porte chegou até a vila de Urubu, comandada pelo major
Gustavo Adolfo de Menezes, o delegado informou que não foi necessário disparar nenhum
tiro para restaurá-la do “poder dos sicários que a instavam no espaço de mais de três
meses”455. Segundo ele, quando souberam que a tropa se aproximava da região ocupada por
eles, se evadiram para a Lapa, para Pernambuco, Mangal e Boa Vista. A vila foi deixada em
ruínas, muitas casas “foram arrombadas e saqueadas e também o cartório” 456. Acharam-se

452
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo, 18 de janeiro 1848. Cópia enviada pelo
presidente da província para o ministério de um relatório produzido pelo chefe de polícia.
453
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes – Urubu (1829-1864). Maço
2623. Vila do Urubu,14 de novembro de 1848. De Ignácio Carlos Freire de Carvalho, Juiz municipal e delegado
de Urubu, para Francisco Gonçalves Martins, presidente da província.
454
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes – Urubu (1829-1864). Maço
2623. Sítio da Pedra Comprida, 08 de fevereiro de 1848. De Francisco Pereira Nunes, Juiz de paz, presidente da
junta de classificação da vila do Urubu, para presidente da província.
455
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da Província. Juízes – Urubu (1829-1864). Maço
2623. Vila do Urubu, 02 de maio de 1849. De Ignácio Carlos Freire de Carvalho, juiz municipal e delegado do
termo, para Juiz de direito da comarca, João Antonio de Sampaio Viana.
456
Idem.
162

vários papéis de autos pelo chão e tantos outros papéis que não se sabia onde foram parar.
Quando a força entrou na vila fez 58 prisões. Entre elas uma pessoa com cartuchos e “rumas”
do falecido comandante superior (José Antônio Guimarães), assassinado na ocupação daquela
vila pelos agrupamentos de seu irmão. Três dos assassinos ainda estavam lá poucas horas
antes da entrada da força. Alguns foram soltos depois de feitas “indagações”, e alguns
prometiam assaltar a vila novamente depois de recomposta pelas autoridades. Ainda corriam,
armados e municiados, muitos dos facinorosos pelas redondezas. Nicandro, segundo
informações que obteve o delegado, tinha ido para a Lapa; Antonio Guimarães para Boa
Vista; Manuel Herculano de Oliveira (Subdelegado de Urubu) e Francisco Macário Pereira da
Rocha (Vice-Presidente da Câmara da vila de Urubu) teriam ido para Pernambuco457.
A estratégia, durante os primeiros anos de ação do grupo de Antônio Guimarães,
parecia ser a de ocupar durante um tempo alguns distritos e vilas. Ao chegar a repressão ou
findado o que se podia tirar daquele local ou feita a vingança para com suas autoridades e
moradores, seguia-se em frente. Alguns lugares chegaram a ficar sob seu controle durante três
meses. Atacavam sempre autoridades vinculadas às lutas político partidárias, além das
cadeias, para libertar criminosos do seu séquito, bem como cartórios para apagar seus crimes,
além de listas eleitorais458.
Mas com o crescimento da repressão do Estado, com mais homens – inclusive
aqueles vindos de Pilão Arcado, já calejados das lutas dos Guerreiros contra os França
Antunes –, mais armas e mais recrutamento, a tática dos “peitos largos” de Guimarães passou
a ser a de dividir o grupo entre a sua força maior, isto é, federalizá-lo. Cada um dos citados
parecia dirigir um destacamento que continuava atuando, seja nas vinganças, seja nos saques e
roubos necessários para a manutenção do grupo 459.
Em Maio de 1849, o juiz de direito José Antônio de Sampaio Viana partiu com uma
força expedicionária para tentar capturar os criminosos do Guimarães, como eram descritos,

457
Idem.
458
Apesar da complexa situação que cada vez mais se afundava Antonio Guimarães e seu Estado Maior, parece
que sua vontade era de esmagar à força o inimigo, não apenas para lavar a honra e a moral segundo os costumes
da “cultura da violência”, mas aniquilar o inimigo para não sobrar autoridade que lhe opusesse tomar, junto com
seus outros aliados, o controle político perdido no final da década de 30. Intitulou-se Governador do sertão de
Urubu, e em pelo menos uma oportunidade que esteve de frente com as forças do Governo, sugeriu uma
negociação, com base no perdão de seus crimes, o que lhe permitia pelo menos tentar se reeleger a algum cargo
político da sua região, onde exerceu força e coerção suficiente para conseguir se eleger. Sobre essas duas
situações ver: SILVA, Rafael Sancho. Op. cit., p. 94, 100.
459
No dizer de uma autoridade, apesar de não ser mais um homem rico, ele poderia sobreviver com o
agrupamento de mais de 200 homens durante muito tempo, afinal não lhe faltaria grande “quantidade de gado,
acesso a farinha e a cachaça”. O acesso aqui certamente é através de roubos, furtos e invasões a fazendas e
moradias. Ver APUD SILVA, Rafael Sancho. Op. cit., p. 105.
163

“nos diversos pontos onde se acham” (...) “com seus grupos armados”460. “Não há por hora
notícia de ter sido atacado nenhum dos redutos que se acham acoitados os criminosos. Correm
por aqui muitos boatos de ataque próximos a esta vila para o assassinato de muitas
autoridades e pessoas indigitadas”461. Como já afirmamos, ele relata apenas que, por onde
passavam, os do Guimarães atacavam os autos de processos. Tinham sido roubados, nas
redondezas da vila de Urubu, mais de 60 autos e livros de cartórios.
Sessenta autos de processos poderiam conter acusações contra eles nessas várias
vilas; poderiam ser autos dos criminosos e de gente que contratavam nas estradas e que os
acompanhavam; poderia tratar-se de livros cuja destruição apagasse provas de posse de terras,
projetando jogadas econômicas posteriores, caso conseguissem se livrar da justiça; e o mais
óbvio, certamente, era destruir a memória judicial e eleitoral das localidades, criando uma
instabilidade legal. No caso de ser uma forma de apagar o registro dos homens que os
acompanhavam ou eram contratados por eles, estaria aí uma amostra da relação de proteção
que os bandidos também obtinham desses homens ao decidir lhe emprestar o seu gatilho.
Haveria uma negociação e/ou uma contrapartida para que se engajassem nessas lutas.
Outras notícias sobre as ações dos bandos de Guimarães (agora no plural)
continuavam chegando. Além de desnortear os seus perseguidores, aumentavam a incidência
de crimes contra as pessoas comuns e não envolvidas nos conflitos políticos. Algumas vezes
chegavam a realizar duas ações em dias muito próximos, conforme foi registrado num
documento que relatava o assassinato, em Carinhanha, de um Tenente Coronel da Guarda
Nacional de Goiás, “Braulino de tal”, e mais dois fâmulos “da sua casa, sendo esta saqueada
por um braço do séquito do facínora Antônio Guimarães”462. Segundo o documento, outra
parte do grupo, no distrito do Rio das Éguas, assassinou Joaquim Pereira Passos, o juiz de paz
Joaquim Bernardes, Antonio José da Silva e outros, “para tomar uma fazenda que Passos
estava de posse”463. Não há maiores detalhes do porquê de haverem tomado a casa de Passos,
se era para reaver a terra de alguém, como um crime por encomenda, ou se se tratava apenas
de tomar a casa para fazê-la de abrigo temporário. De todo modo, o grupo já não era mais
puramente uma facção política armada, disputando através dos seus meios o poder, isto é, não

460
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes – Urubu (1829-1864). Maço
2623. Vila de Urubu, 14 de maio de 1849. De João Antônio de Sampaio Viana, juiz de direito, para presidente da
província.
461
Idem.
462
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Sem local, sem data; APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial.
Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas enviados pelo chefe de polícia para a presidência
da província. Maço 568. Secretaria de polícia da Bahia, 03 de abril de 1850. Do chefe de polícia para presidência
da província.
463
Idem.
164

se tratava mais de um banditismo político simplesmente, como parece insistir Rafael Sancho
Silva, quando diferencia o grupo dos Guimarães dos modelos de banditismos estudados por
Hobsbawm e Slata. Se a meta política nunca deixou de ser perseguida, e por diversas vezes
tentaram enquadrar o grupo como sedicioso – um dos modelos de criminalização política
previsto no processo Código Criminal de 1831 –, eles também passaram a outras modalidades
criminosas que nada tinham a ver com os alvos propriamente políticos. “O fato que o
banditismo [de Guimarães e seu agrupamento] apresentou-se através de sua feição política,
[pois] não tinha como proposta sobreviver de saques, mas [que] sua atuação visava combater
inimigos políticos”464, não apaga o fato de que crimes comuns foram cometidos, que os
saques foram uma das principais formas de manutenção material do grupo e que muitos que
não estavam na sua mira política foram vitimados por ele.
Não podemos crer que homens armados, divididos em muitos territórios, longe
daqueles com mais firmeza de propósitos políticos – se é que os tinham –, alguns deles já
criminosos, vadios e capangas conhecidos da região, como atestam alguns documentos, não
passariam à condição mais autônoma de salteadores e saqueadores com propósitos de
subsistência e necessidades imediatas. Essa ideia de um agrupamento político, ou de um
banditismo político, só pode ser assim explicada quando a narrativa é vista apenas pelos
meios e fins dos de cima.
Muitas vezes a separação do agrupamento não era tão racional e desejada. Era fruto
simplesmente de dispersões após combates com as forças policiais, milícias privadas e
populações em armas. Deixando um rastro de ações armadas sem vínculos necessários com as
questões políticas dos seus patrões.
Quando aconteceu a morte de Nicandro Albino, em julho de 1850, nas imediações de
Carinhanha, ele, junto com outros do grupo, tentavam impedir os procedimentos eleitorais de
serem realizados, mas receberam forte oposição, não apenas dos destacamentos ali postados,
mas também dos moradores daquelas vilas e adjacências. Mesmo em menor número,
Nicandro decidiu ir para o ataque e acabou, bem como outros de seus camaradas de armas,
morrendo465. Após o confronto, seus “jagunços” ficaram dispersos e foram caçados com vivo
interesse pela mesma multidão e tropas que os expulsaram de Carinhanha. Eles decidiram por
ocupar os pontos onde presumiam que estariam os “salteadores e assassinos”. Ao mesmo
tempo, um destacamento foi enviado para Boa Vista, onde ficava a fazenda do Antonio
Guimarães, pois se suspeitava de que pudessem para lá se dirigir. Pelo lado da nascente ia o
464
SILVA, Rafel Sancho. Op. cit., p. 105.
465
SILVA, Rafael Sancho. Op. cit., p. 100-101.
165

capitão Bento e pelo outro lado ia o juiz de direito da Comarca, Francisco Jorge Monteiro.
Depois de “varejado os matos, foram capturados vários criminosos, sendo destes [alguns] dos
chamados Jagunços”. Foram apreendidas munições, armas e apetrechos “dos assassinos”, que
os haviam escondido nas matas. Diz-se que os criminosos estariam sendo “perseguidos,
debandados e dispersos”466.
A intenção desses “salteadores e assassinos” podia ser a de fugir e não mais voltar
para a batalha em nome daquele patronato guerreiro, mas o fato de que as autoridades
estivessem preocupadas com a fazenda de Guimarães sugere que ela ou outro local fosse um
ponto de reagrupamento dos bandidos. A questão é que, até chegar lá, necessitavam
sobreviver, e para isso roubavam, invadiam casas e atacavam pessoas, causando terror na
população.
O chefe de polícia quando escreveu para o presidente da província afirmou que os
“assassinos e roubos que continuam a ser perpetrados pelo séquito de Antônio José
Guimarães” chegariam ao fim, pois ele estava colocando todos os delegados e subdelegados
em marcha para evitar a “perpetração de novos crimes, interessando contra eles a população
laboriosa e pacífica daqueles lugares”467.
Repetidas vezes as ações armadas do grupo de Antônio Guimarães são associadas ao
roubo, ao furto, à rapina e ao salteamento. E tanto na morte de Nicandro como na citação
anterior a população já aparecia na defesa da sua segurança e tranquilidade. Em várias
disputas políticas que debandaram para confrontos armados, a população, sempre a menos
protegida, evitava entrar em conflitos para não sofrer posteriores vinganças do patronato em
armas. Mesmo várias autoridades da burocracia da violência não se metiam em determinadas
querelas para não virarem novos alvos de um ou outro lado. A população da região de Montes
Altos, Carinhanha, Urubu, já se mostrava reagindo ao fato de que a dispersão do agrupamento
estava se voltando contra a segurança da propriedade e da vida de muitos, para além dos
inimigos políticos.
Obviamente a população parecia querer dar um fim àquilo tudo, afinal, como já
discutimos aqui, a perseguição aos criminosos sempre serve de pretexto para perseguir os
modos de vida e costumes de uma população considerada potencialmente perigosa ou não

466
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes-Urubu (1829-1864). Maço
2623. Vila do Urubu, 14 de agosto de 1850. De Francisco Jorge Monteiro, Juiz de direito da comarca para
Álvaro Tibério de Moncorvo Lima, vice-presidente da província.
467
APB. Manuscritos. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6150. Palácio do
Governo da Bahia, 16 de Agosto de 1850. Do desembargador Chefe de Polícia para Antonio Ozório de Azevedo,
presidente da província.
166

enquadrada nas diretrizes da construção de uma nação e civilização para o “progresso”. A


perseguição aos “séquitos” de Guimarães deixou um rastro grande de prisões, recrutamento
forçado e vigilância aos homens e mulheres livres. Numa incursão para pegar um dos grupos
de Antônio Guimarães, o capitão comandante Bento José Gonçalves explicava as blitz nos
povoados da beira do Rio São Francisco, locais considerados por ele como de acoitamento
dos agrupamentos vinculados à Guimarães.
Indo em direção à fazenda Manga, para onde Guimarães teria fugido “rio abaixo”
junto com seu “séquito”, o capitão pegou uma barca com mais 27 praças e chegando lá soube
que aquele havia descido ainda mais o Rio, lotando três barcas com muita “gente armada”. Ao
chegar ao Bom Jardim, onde fez “um cerco”, achou um condenado a morte, chamado Antonio
dos Santos. Este havia matado um negociante português das lavras de Lençóis. O assassino
estava com um clavinote e um facão. Prendeu também um recrutado chamado Anacleto
Pereira. Desceu ainda mais o Rio para uma ilha também chamada de Bom Jardim, porque
havia o Antonio Guimarães estado ali, apesar de ter fugido desta vez com cinco canoas.
Naquela ilha ele deu outro cerco e prendeu outro condenado por assassinato, João Antônio, e
mais outros que “ali estavam acoitados”. Segundo ele, João Antônio estava com um facão nas
mãos e o clavinote ele havia jogado na escuridão e não foi achado. Seguiu para a fazenda
Roçado e lá, às quatro horas da manhã, fez um cerco e revistou a casa pela manhã. O
proprietário da fazenda, Felipe Neves de Oliveira, disse que Guimarães havia aportado ali, no
dia 12, com o cunhado daquele proprietário, Theodozio Antunes de Oliveira, e um filho do
Guimarães, com mais “16 jagunços armados”. Foram embora por terra esses três citados e
mais um jagunço. O resto seguiu embarcado. Segundo soube, Guimarães já havia passado
pela fazenda Caraíba, em Morro do Chapéu ou em direção à Jacobina velha. Na Fazenda
Grande, segundo disse o mesmo Neves, estavam 8 jagunços, para onde seguiu o comandante
da expedição. Cercou esta fazenda às quatro da tarde e prendeu três jagunços (Praxedes José,
Sabino José e Aneto Pinto), além de Francisco Faustino e Faustino Manuel, “que
acompanhavam os mesmos”. Estes foram presos para serem recrutados. Também foram
recrutados Manoel Moreira e Delfino Alves, que estavam naquela fazenda, mas não diz os
motivos para tais recrutamentos e nem diz o que aqueles que acompanhavam os “jagunços”
estavam fazendo com eles. Continuando a sua marcha, no dia 23 chegaram à fazenda Riacho.
Lá encontraram Crispim Vieira (segundo ele assassino) e João Vieira, que entraram numa
canoa ao avistar a tropa. Os soldados acharam que eram jagunços e atiraram. Ambos foram
167

feridos e presos468.
Além do fato de a perseguição aos bandidos servir como mecanismo de repressão
preventiva, aparentemente, os “jagunços” estavam ao longo das suas fugas e dispersões
fazendo aliados ou recrutando pessoas para o agrupamento de Antônio Guimarães. Sabemos
que o Rio São Francisco sempre foi um local de refúgio de rebeldes, proscritos e criminosos
(mesmo porque os sucessivos grandes conflitos entre grandes famílias, conflitos eleitorais,
por cargos, entre outros, que aconteciam no entorno de todo o rio, tornava a região de fácil
empregabilidade para esse tipo de ofício de valentões e jagunços. Era uma região para onde
podiam acorrer e encontrar proteção de gente graúda e de detentores de funções de Estado,
especialmente da Justiça). Em um determinado momento Guimarães lotou três canoas e em
outra oportunidade lotou cinco. Se supomos que essas canoas tinham medidas aproximadas, o
que é bem provável, baseado nas condições de navegação, na tradição de fabrico desses
utensílios, no tamanho das madeiras usadas para fazê-los, etc.469, pode-se concluir que
Guimarães e seus subgrupos iam recrutando novos homens para as lutas que estariam por vir.
Em uma oportunidade, um desses grupos atacou a casa de uma pessoa e roubou 32
oitavas de ouro em pó, oito contos de réis e outras coisas de valor. Isso se deu no termo de
Carinhanha470. Em outra situação, logo após a morte de Nicandro e da dispersão dos seus
aliados em Cariranha, “foram presos no lugar da Passagem (também em Cariranha) cinco
salteadores que viviam de roubar e matar” os viadantes471 e se suspeitava serem resquícios
dos combates naquela vila.
Guimarães foi morto no ano de 1854, quando, depois de circular bastante pelo Médio
São Francisco, passou a se refugiar com intensa periodicidade nos sertões de Goiás 472. Lá ele
teria investido contra autoridades que tentavam lhe capturar. O desconhecimento da geografia
do local e a menor rede de relações podem ter influenciado na sua morte, além do fato de que
as autoridades de Goiás se uniram às da Bahia para capturá-lo, aumentando o efetivo e a
circulação dos destacamentos. Segundo Rafael Sancho Silva, ele chegou a ter em seu grupo

468
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes-Urubu (1829-1864). Maço
2623. Quartel da Vila do Urubu, 25 de agosto de 1850. De Bento José Gonçalves, capitão comandante, para
Francisco Jorge Monteiro, Juiz de direito da comarca.
469
Há uma descrição dessas barcas em Wilson Lins. Ele sugere certa padronização desses meios de comunicação
e transporte, sugerindo certa proximidade com os saveiros do recôncavo. Op. cit, p, 43 e 44.
470
APB. Manuscritos Seção colonial provincial. Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Maço 5689. Fls. 69 – 72. Secretaria de polícia da
Bahia, 02 de setembro de 1850. André Corcino Pinto de Chichorro, chefe de polícia interino para, o vice-
presidente da província, Álvaro Tibério de Moncorvo e Lima.
471
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 406. Secretaria de Polícia, 10 de Fevereiro de 1851. Do Chefe de Polícia,
João Maurício Wanderley, para o Presidente da província.
472
SILVA, Rafael Sancho. Op. cit., p. 104 e 105.
168

mais de 100 homens473. Certamente nem sempre andavam todos juntos. Seus crimes e lutas
duraram mais de seis anos, mudando sempre de lugar, mas circundando o Rio São Francisco,
onde recrutava muita gente para as suas investidas.
Guimarães e seus aliados, alguns deles homens de proa da sociedade, lutaram pelo
poder de Estado, por ocupar cargos que os permitia ampliar seus poderes, prestígios, negócios
legais e ilegais. Lutou não contra outra família, mas contra a sua própria, o que contrariava a
suposta “moral”, os “valores”, a “cultura” sertaneja, clânica e guerreira. A cultura em defesa
da honra familiar nem sempre estava à frente do poder material que fazia os homens se
confrontarem.
Ao tentar fazer com que seu poder fosse aceito pela força, certamente Guimarães
supunha que, como sugere Graham, a posição do poder de Estado se voltaria a favor dele,
através da máxima política de que o Estado se aliava com quem tinha mais força para
estabilizar e garantir eleições que reduzissem ao menor barulho possível as oposições.
Contudo, seus planos não saíram como gostaria, e o “séquito” de Guimarães passou a ser
composto por bandidos comuns, vadios e ociosos agrupados em torno de suas ações. Se o
banditismo de Guimarães sempre teve fins de perseguição política, não deixou de ceder às
necessidades de botins, saques e outras violações mais ordinárias, típicas dos salteadores.
O estudo do centro e do norte da Bahia oitocentista é um duro golpe no entendimento
de que o Estado do século XIX brasileiro era um organismo de imenso domínio burocrático
patrimonial. Do mesmo modo vemos como o poder de Estado é algo fundamentalmente
importante para o controle e o descontrole da ordem. Essas redes privadas e patrimoniais
pareciam ainda se testarem, se medirem, disputarem e negociarem seu papel e sua importância
para as classes sociais e frações das classes senhorias brasileiras. O conflito passava por
dentro do Estado, ainda que se apresentasse como disputa privada e familiar. Militão e seus
aliados são prova disto. Conseguiram durante muito tempo não serem capturados, mesmo
quando todas as autoridades tinham plena consciência de onde estavam escondidos e onde
normalmente atacavam. Quando os prepostos públicos avançavam de fato sobre eles,
recebiam informações privilegiadas e conseguiam fugir. Não obstante, na maioria das vezes o
pega-pega ou o polícia e ladrão nem começava, pois uma das partes, a responsável pela
ordem, não atuava como teoricamente deveria fazer. Mas isso não significa que o Estado não
se realizou ou se ausentou; o Estado estava ali todo o tempo, fazendo funcionar toda a sua
rede política clientelista e policial em nome do chefe político que ele achava que deveria

473
Idem, p. 97.
169

também ser chefe de estado, ainda que às vezes na contramão do que o poder central desejava.
O banditismo, como já afirmei anteriormente, não surge da ausência do Estado; o que
surge da ausência do Estado é a auto-organização das pessoas livremente associadas, como
em Canudos, Pau-de-Colher, Palmares, entre outros. Quando, historicamente, o Estado foi
muito “forte”, o que se revelou foi o contrário: a máxima presença estatal transformou-se,
através do monopólio da burocracia para fins privados e da monopolização da política de
grupos controladores desse aparato, em Estados extremamente violentos e espoliadores. Já
nos Estados em que a população, seja ela qual for, dividida em muitos aspectos por si só
conflituosos, e mesmo que nem seja toda ela, participou de formas múltiplas das esferas
decisórias, como a do século XIX brasileiro 474, o conflito, a violência e o banditismo podiam
ser produtos e produtores dessa conflitualidade.
Mas para não perder o controle de um “estado de exceção” ordinário e silencioso
como modalidade de domínio dos subalternos, foi preciso colocar arestas às liberdades dos
homens livres. Criminalizá-los parece ter sido um meio fundamental para isso.

474
Sobre a tentativa do Estado fazer aparentar para as suas redes clientelares, compostas das classes senhoriais
rurais, uma aparência democrática e inclusiva, mesmo das oposições, ver GRAHAM... Op. cit.
170

Parte Três
Criminalização: a liberdade dos livres em questão.

“Se parar eu nem sei, você não pode confiar na lei


A repressão destrói famílias também
Em vários lugar, beco favela e bar
Forjam um 12 se pá, pra vagabundo assina e lotar
Na detenção sangue bom é mato
Quem pode troca quem não troca sai voado”

Música: A Blazer – RZO.


Disco: Todos são Hu(manos).
Letra: RZO.
171

Capítulo 8

Recrutamento e repressão preventiva

O recrutamento forçado é um fenômeno social dos mais antigos no Brasil. Quando,


no século XVI, o uso maciço de armas de fogo pôs em crise o modelo de cooptação dos
homens para as milícias feudais – fundadas no estilo fidalgo e hierárquico das “gentes de
armas” (e brasões), bem como na necessidade comercial de uma tropa mais regular e
disciplinada, voltada para a defesa de fortes, portos e fronteiras na África e Espanha – os
modos de cooptação dos homens para servirem ao reino tiveram que ceder espaço a outro
modo de organização militar e de guerra475. Lutar ao desembarcar ou a bordo das
embarcações marítimas portuguesas que atravessavam os continentes atrás de especiarias,
além do confronto com outros inimigos que travavam outros métodos de luta no oriente e na
África, por exemplo, mudou os aspectos centrais da luta, antes vinculadas a laços de
feudalidade. Exigia mais homens, mais treinamentos, novas hierarquias e armamentos. Vários
decretos e regimentos foram produzidos do fim do século XV ao início do XVII para adequar
as tropas feudais a uma tropa mais nacional, sob novos comandantes, mais diretamente
vinculados aos planos do Reino, isto é, aos projetos das colonizações modernas 476.
A generalização do serviço às armas do reino passou a ser a regra geral. Todos os
homens em determinadas idades, com raras exceções, como os fidalgos e homens da Igreja,
eram obrigatoriamente cadastrados e possivelmente recrutados quando de uma necessidade de
luta e guerra. Para alistar todos os homens foram criados, além de uma tropa regular, com
soldo, fardamento e critérios sociais definidos para o ingresso no serviço da arma, os corpos
de ordenança e corpos auxiliares. O primeiro era voltado mais especificamente para o
policiamento e serviços internos, e o segundo para o auxílio às tropas regulares em conflitos
com outras nações e na defesa das fronteiras.
Essa estrutura foi trazida para a América Portuguesa, sem maiores modificações.
Mas, diferentemente de Portugal, onde houve bastante resistência por parte dos homens
poderosos, devido ao fato de essa nova modalidade organizativa desfazer paulatinamente a
estrutura hierárquica do poder feudal477, no Brasil as autoridades político-administrativas da
colônia souberam aliar e reforçar sua autoridade individual com a utilização dessas forças,

475
GOMES, José Eudes. As Milícias de D’El Rey. Tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de
Janeiro: FGV Editora, 2010, p. 57-122.
476
Idem.
477
Idem, p. 79.
172

especialmente as últimas.
Mas, de maneira semelhante, o recrutamento forçado sempre contou com a
insatisfação popular e com bastante violência contra os homens livres e semilivres de Brasil e
Portugal para alcançar seus fins, o que gerava, em resposta, violências e fugas para os matos,
criminalização e crime nas comunidades em que ele era levado adiante. Além das deserções
daqueles que não conseguiam fugir dos recrutadores.
Alguns autores destacam que o serviço nas tropas podia possibilitar aos recrutados e
alistados algum tipo de integração social e cidadania normalmente negada aos homens livres e
pobres, especialmente aos de cor, que conviviam constantemente com a dúvida da sociedade
sobre sua condição de livre. A farda podia servir de abrigo a escravizados brasileiros, já que
era negado o serviço a estrangeiros, para contornarem o cativeiro, até que obtivessem a
liberdade ou vivessem como livres mesmo sem o ser, como forma de obrigar a uma
renegociação da exploração com seus senhores, entre outros mecanismos táticos de conflitos e
negociação estabelecidos por eles478. Para os homens livres, esse podia ser um dos poucos
meios de obtenção de ascensão social, fosse por bravura em batalha, por tempo de serviço ou
por laços criados com militares de maior patente479.
No nosso caso de estudo, ressaltamos, e a documentação também ressaltou, o fato de
o recrutamento e instituições militares do Império serem extremamente odiados pelos homens
e mulheres480. As narrativas de motins contrários ao recrutamento, da associação do
recrutamento com condições análogas às da escravidão, do recrutamento utilizado como
mecanismo de baixa demográfica em possíveis votantes contrários às autoridades instituídas,
de punição para desafetos de autoridades, de preservação de modos de vida, como o
cristianismo e o casamento, como disciplina do corpo expropriado para o trabalho ou do
simples controle do direito de ir e vir de homens livres são os aspectos que aqui iremos
enfatizar.
Essa repressão preventiva podia aparecer nas formas diversificadas que apontamos
acima, mas podia aparecer também na forma de cerceamento às liberdades dos homens livres.

478
KRAAY, Hendrik. “O abrigo da farda”: o Exercito brasileiro e os escravos fugitivos, 1800 – 1881. Revista
Afro-Ásia. Nº. 17, 1996.
479
Ver, por exemplo: MUGGE, Miquéias H.; COMISSOLI, Adriano (org.). Homens e Armas. Recrutamento
militar no Brasil século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2011; KRAAY, op. Cit. 2011, cap. 1.
480
Parece que as “fontes mineiras, fluminenses e paulistas” tendem a também concordar com essa perspectiva.
Ao menos foi assim que Maria Odila Dias descreveu. Segundo elas, as fontes pesquisadas dessas localidades
“comentam o horror do roceiro ao serviço militar”. Op. cit., p. 68. Na página seguinte ela fala que era entendido
como castigo pelos homens.
173

No caso estudado por Guillermo Palacios481, ele notou um aumento significativo do


recrutamento em algumas conjunturas de paz da América Portuguesa, tanto internamente
quanto nas suas fronteiras. Para ele, a resposta para esse acréscimo no recrutamento seria o
fato de que o Estado o utilizava como meio de impedir que os camponeses, homens livres e
pobres, ou escravizados, com certa autonomia nas suas roças, abandonassem o plantio dos
produtos voltados para o abastecimento alimentar interno da colônia. Essas conjunturas, não
por coincidência, se deram em períodos de demandas altas do mercado exterior sobre o
algodão brasileiro.
Ele mostra como as autoridades percebiam esse movimento de abandono da
produção de alimentos por parte dos lavradores, que se voltavam à lavoura de algodão,
aproveitando a escassez internacional do produto. Para suplantar a carência de algodão dos
grandes produtores, pequenos camponeses entraram nesse comércio, revendendo seus
produtos para produtores maiores. As autoridades também percebiam que os alimentos
estavam escasseando e o seu preço aumentando, gerando perdas orçamentárias para grandes
senhores que necessitavam alimentar grandes contingentes de escravos, atingindo ainda as
populações urbanas que ora ou outra gritavam e ameçavam se levantar contra a carestia e a
inflação alimentar.
A resposta do Governo Geral foi a repressão através do recrutamento forçado de todo
aquele homem que não estivesse trabalhando em lavouras alimentares nem em monoculturas
exportadoras. Eram enquadrados como vadios os agricultores de algodão, como inúteis para a
nação, entre outras repressões específicas.
O recrutamento era uma forma preventiva de castrar a liberdade de homens que iam
e vinham, que se moviam pelas estradas, que não eram fixados nas terras como agregados,
posseiros ou escravos. Parte do esforço das classes senhorias no século XIX era de fixar os
homens livres e escravizados na terra. De preferência na terra de homens de posse, grandes
plantadores e proprietários de escravos. Torná-los presos ao sistema de uso da terra voltado
para a monocultura ou abastecimento alimentar da colônia e do Império 482. Não alcançando
esse objetivo em proporção satisfatória e considerada segura, mecanismos outros, como leis,
códigos e ações, intencionavam restringir a condição de deslocamento dos homens e mulheres

481
PALACIOS, Guillermo. Campesinato e Escravidão no Brasil: agricultores livres e pobres na Capitania
Geral de Pernambuco (1700-1817). Brasília: Editora UNB, 2004.
482
Maria Odila Dias afirma que essa é uma constatação já verificada pela historiografia que se debruça sobre a
ocupação e hábitos dos homens e mulheres livres e pobres. Segundo ela os “costumes ancestrais de roças
volantes, transformavam-se em recursos de resistência a fixação, à dependência pessoal, ao trabalho
permanente”. Op. cit. 62.
174

pobres. Não possuir moradia, trabalho, família, nem fazer parte de uma rede de proteção
clientelar entre autoridades e grandes proprietários era perigoso para o sujeito que vivia de
modo itinerante. O recrutamento era uma dessas peças “de destruição da autonomia social” 483
dos lavradores e sujeitos itinerantes. Vale ressaltar que o recrutamento significava uma prisão
sem julgamento.
Em comunidades dos sertões da província da Bahia, que, em alguns casos, possuíam
baixos índices demográficos de escravos, na ausência de um inimigo declarado, público e
notório, como eram os escravos, todos eram potencialmente inimigos, especialmente os
forasteiros, os andarilhos, os nômades, os jornaleiros, que se convertiam na pena das
autoridades em vadios, ociosos e sem empregos, portanto suscetíveis aos desígnios da lei, e
mesmo fora da lei, do recrutamento como prevenção da estabilidade social. O recrutamento
aqui será entendido como um dos mecanismos mais eficazes de um sistema de controle social
sobre os homens livres e pobres, especialmente os de cor e do interior da província.
Nas palavras de Graham, o rerutamento era um modo de aprendizado das hierarquias
sociais para os sujeitos recém-chegados a uma localidade. Era com aqueles que controlavam o
recrutamento que os homens livres itinerantes deveriam buscar laços, com o fim de evitar o
recrutamento e a criminalização através do enquadramento como vagabundos, forasteiros e
ociosos, que era o modo como “a ideologia do trabalho na sociedade escravista discriminava
os andarilhos, tropeiros, roceiros”484.
Justifica-se assim esta seção sobre recrutados num estudo acerca do banditismo:
homens livres eram tratados como ameças à ordem, à propriedade e à segurança individual,
isto é, como criminosos e potenciais salteadores, ou mesmo como jagunços. Justifica-se o
capítulo porque, ao fugir da ação preventiva do recrutamento, eles de fato entravam na
ciranda de um sistema que os caçava como criminosos e muitas vezes sua opção era a aliança
temporária ou duradoura com os indivíduos postos nas “margens” da sociedade. Justifica-se
também, assim espero mostrar, porque por trás de toda caçada aos fora da lei estava embutido
outro propósito, mais velado, mas não menos importante, que era o de atacar os modos de
vida das populações pobres e de cor, produzindo uma territorialização preventiva da ordem,
transformando grupos sociais subalternos em criminosos e efetuando sobre eles um contínuo
grau de violência e abstenções de direitos, a não ser que se passasse pelo caminho do grande
chefe, do patrão e das autoridades estatais, promovendo assim um discurso de defesa dos
homens e mulheres pobres de si mesmos.
483
PALACIOS... Op. cit., 2004, p. 205.
484
DIAS... Op. cit., p. 63.
175

O recrutamento, além de tudo, juntou no exército e em outras tantas formações


policiais uma combinação diversa de homens livres e pobres, sem antecedentes, com outros
de “maus” comportamentos, com outros ainda considerados perigosos, fora da lei,
“turbulentos” e “facinorosos”. Adentrar nessas forças significava entrar em contato com
vários tipos sociais de diferentes cores, qualidades, fortunas – ou infortunas. Significava
também o contato entre “criminosos” perigosos, gente comum e ordeira e soldados indignados
com a situação da farda. Uma mistura heterogênea que diversas vezes terminou em conflitos e
em ações armadas diversas.
Criminalização dos modos de vida dos homens livres: “verdadeiros réus de
polícia”
Se Palacios fazia questão de ressaltar o período de paz em que se efetivava o
recrutamento dos agricultores livres na capitania de Pernambuco, não podemos dizer o mesmo
da Bahia nos anos de 1820, quando se processava um conflito entre “brasileiros” e
portugueses. Mesmo assim, os agricultores voltados para a produção de alimentos no bando
de recrutamento de 03 de junho de 1823 mantinham-se com isenção. Os agricultores que
estivessem empregados, “efetivamente, e privativamente na lavoura da mandioca, milho,
arroz, feijão, e os vaqueiros indispensáveis para o custeio das fazendas de criar gados, e
condução destes para o mercado”485. Vale ressaltar que, durante os conflitos pela
independência na Bahia, uma das estratégias de guerra de ambos os lados foi exaurir de fome
o inimigo através de bloqueios alimentares efetuados pelo mar e pela terra.
Além dessas definições o recrutamento não podia ser imposto às pessoas com
emprego civil e com provimento legítimo; casados com dois ou mais filhos menores, cujo
sustento dependia do trabalho dos pais; quando metade dos filhos estivesse empregada na
lavoura e a família não possuísse mais do que dois escravos. Aquele que fosse para a vila por
livre e espontânea vontade “deverá ser tratado no exército com distinção, e receberão baixas
no fim da guerra”486. Mas para aqueles que não foram ao alistamento no prazo estabelecido
pelas autoridades era aconselhável procederem “com todo o segredo e brevidade a um
recrutamento de todo indivíduo natural do Brasil de 15 até 40 anos que estejam em estado de
pegar em armas”487.
O recrutamento, como veremos, não seguia um padrão. A cada novo decreto

485
APB. Manuscritos Governo da província. Seção Colonial e provincial: série militares. Recrutamento. 1823-
1851. Maço: 3486. Ribeira (distrito), 03 de junho de 1823. Do capitão Manoel Joaquim Pereira de Castro para
José Antonio Gomes, coronel.
486
Idem.
487
Idem.
176

mudavam-se os sujeitos recrutáveis. O recrutamento excluía e incluía da sociedade civil


aqueles de quem o Estado precisava obter algum fruto do seu trabalho ou aqueles que
consideravam desnecessários à construção da nação488.
Alguns anos depois, uma autoridade encarregada do recrutamento, ao responder a
uma súplica de liberdade de um recrutado encaminhada ao presidente da província, produziu
uma resposta extremamente paradoxal que nos serve a contento para iniciarmos a explicação
que queremos proceder489. Mas antes vejamos a súplica: o recrutado alegava que não estava
em condições de recrutamento porque era considerado por todos um cidadão de bem, além de
possuir dois bois, seis escravos, uma idade fora dos termos legais, bem como parentes que
dependiam dele, no caso uma tia. Para o recrutador tudo não passava de mentira daquele
homem, afinal, sua tia era casada com um homem chamado Cosme Ferreira, que nem morava
naquela região. Ela residia, segundo ele, na Comarca do Rio de São Francisco. Refutou a
alegação de que o suplicante era “lavrador abastado”, pois que

como todos os moradores desta comarca, planta algumas vezes sua


mandioca, ou milho, ou feijão; mas nem disso faz seu modo de viver, nem
emprego certo tem; por quanto ora se lança a plantar unicamente com o
recurso de seus braços, ora se emprega a vender alguns garrafões de
aguardente, e em outras ocasiões se emprega de conduzir da cidade de
Cachoeira e Santo Amaro, ou da vila de Feira de Santana, gêneros de outros.
Não tem o suplicante os instrumentos necessários para a lavoura, não tem
casa de fazer farinha, roda de ralar a mandioca, alguidar, fornalhas, e outros
pertences dos lavradores, não tem terra própria, nem aforada, não emprega
braços livres ou escravos, e apenas possui pequena casa de palha, onde
habita!490

Terminou afirmando, para não bastar, que o recrutado era de má conduta, apesar de
não especificá-la. Não importa, nesse momento, para o fim do nosso argumento, quem está
certo ou faltando com a verdade, mas a possibilidade de se extrair desse documento as noções
de vadiagem, trabalho e conduta socialmente adotadas.
Mesmo os produtos da horticultura de agricultores pobres, nesse momento, pareciam
fazer parte de um modo de vida dispensável ao Estado, logo, passível de recrutamento.
Diferentemente dos anos anteriores, quando os produtos alimentares fornecidos por esses

488
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província – Série Militares. Recrutamento. 1840-
1881. Maço 3494-1. Corte, Varias datas. O documento é uma compilação de decretos sobre recrutamentos. A de
1841 dá plenos poderes às autoridades civis efetivarem o recrutamento.
489
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Jacobina, sem data. Sem autor e receptor.
490
Idem.
177

lavradores pobres foram importantes para a manutenção do abastecimento da guerra.


Nesse novo contexto, o que contava para o recrutador era o fato de aquele homem
não possuir nada que lhe prendesse à terra nem nenhuma disciplina voltada para o trabalho
fixo. Sem patrão, sem apetrechos de propriedades rurais, sem família, aquele sujeito não
poderia andar por aí livre. Ele não era empregado nem agregado de ninguém, mas
aparentemente trabalhava muito e em muitas frentes de trabalho. Ele era um desses
representantes individuais da “classe que vive do trabalho” 491, apesar de sua empregabilidade
não existir. Por não dispor de realmente nada que formalizasse um emprego, um patrão ou
uma propriedade à qual deveria se dedicar e para os quais retornar, seu trabalho se expandia
para formas múltiplas de obtenção de subsistência. Plantava uma variedade de coisas, como
tantos outros homens e mulheres da região. Comprava e vendia coisas entre um município e
outro, indo provavelmente de feira em feira para vender seus produtos e os de outras pessoas.
Mas o que então incomodava tanto a autoridade, a ponto de recrutar esse cidadão? O
que se queria cercear com esse recrutamento? A resposta mais provável talvez seja a restrição
da liberdade dos homens livres, especialmente sua mobilidade e independência.
Casos como o de Antonio Francisco do Rosário, homem pardo, de 46 anos, morador
da Fazenda do Macaco da vila de Penêdo, que afirmava ter sido preso injustamente “nos
subúrbios da dita Vila, andando em giro do seu negócio”492, eram muito frequentes. Antonio
Francisco, após chegar ao destino do seu recolhimento, na fortaleza do Mar (uma prisão),
escreveu a alguém para que conseguisse provar a injustiça que estava sendo feita contra ele.
Na carta, pediu para que fosse posto em liberdade. No documento que seguiu para as
autoridades, de onde colhemos as informações sobre a sua carta, constava, em anexo, um
abaixo-assinado que atestava ser verdadeiro tudo o que ele afirmava, com base em relatos
colhidos dos negociantes daquela praça, que já haviam comprado muitas sacas de algodão nas

491
Essa é uma definição tomada de empréstimo de Ricardo Antunes, para definir os processos de expansão do
trabalho em sociedades em crise da empregabilidade formal. Ele argumenta que o desemprego e a reestruturação
produtiva, apesar de ter reduzido os postos de empregos fabris, até mesmo no setor terciário da economia,
obrigou os trabalhadores a buscarem vias outras de trabalho, como os diversos trabalhos informais. Alguns
destes trabalhos são realizados ao lado de empregos formais ou levados até para os horários de lazer. Em síntese,
o fato de não estar empregado, para uma soma grande de pessoas, não significava o fim do trabalho, como foi
afirmado por alguns sociólogos, mas afirmava as inúmeras formas e tempos de trabalho que subsumia o
trabalhador e que se expandiam e acompanhavam ele a todo o tempo, independente da forma hegemônica e
oficial de vê-lo. Os sujeitos trabalhavam mais, mais duro e em condições mais difíceis para manter sua
sobrevivência. Ver: ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do
mundo do trabalho. Campinas: Editora Unicamp, 2002; ____. O Caracol e sua Concha. Ensaios sobre a nova
morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, especialmente cap. 1.
492
APB. Manuscritos Governo da província. Seção Colonial e provincial: série militares. Recrutamento. 1823-
1851. Maço: 3486. 17 de novembro de 1826. De Polidoro Henrique de Lemos, capitão, para João Victor da
Silva Lobo, 2º tenente e Antonio Roiz Alves Baraúna, Alferes, para Francisco Lopes Jequiriça, tenente.
178

mãos de Rosário. Atestavam que ele tinha dois filhos e quatro filhas, que era amante da ordem
pública e bom cidadão. O fato de ele plantar algodão por si só não o isentava, e por isso
usavam de vários expedientes morais e do recurso de acionar pessoas protetoras, incluindo
alferes e tenentes.
Para nós, não é por acaso que a sua prisão tenha acontecido quando, segundo suas
palavras, ele estava “andando em giro”. E que o termo que reivindica sua soltura seja o uso da
palavra “liberdade”. Para andar e girar é preciso gozar de certa liberdade, e foi justamente
pelo giro e pelas andanças que Rosário foi preso.
A dinâmica da escravidão urbana, que permitia maior margem de mobilidade aos
escravizados, não deixava de manter sobre eles diversos mecanismos de controle e vigilância
do Estado e das classes senhorias493. No caso dos homens livres de cor nas vilas mais rurais, o
recrutamento era um desses mecanismos de contenção preventiva dos usos da liberdade. A
liberdade não os devia fazer sentirem-se “livres como pássaros”, mas submetê-los ao trabalho
adequado no universo escravocrata, aos planos de construção da cidadania subalternizada e
heteronômica ao Estado e seus dirigentes locais, e também aos moldes da família cristã
ocidental. Fora desses limites não poderia haver liberdade sem condição ou sem repreensão.
A preocupação com os giros e andanças de determinados sujeitos era mais
importante do que os aspectos legais para o recrutamento. Isso pode ser verificado através da
contínua prática de recrutamento de vaqueiros494, figura social em que a mobilidade era marca
essencial da profissão.
Em 1838, três homens que se reivindicavam negociantes e boiadeiros foram
recrutados em Maragogipe, aonde tinham ido, segundo eles, cobrar dívidas de uns bois que
haviam vendido em Maracás, apesar de serem de Caetité. Na versão deles, ao serem
recrutados, estavam sofrendo de “caprichosas intrigas”495. O seu destino foi o de sentar praça
no batalhão três. Outro documento, sobre o mesmo caso, informou que dois deles eram
negociantes, e os outros boiadeiros. Esse documento continha também informes sobre a
conduta dos recrutados. Nada constava de negativo contra eles. Um processo que foi aberto
493
Sobre escravidão urbana ver: SOARES, Luis Carlos. O Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão
urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ; Sete letras, 2007; REIS, Liana Maria. Crimes
e Escravos na Capitania de Todos os Negros (Minas Gerais, 1720-1800). São Paulo: HUCITEC, 2008, p. 44-60.
494
Isso para não entramos no mérito dos tantos pedidos de soltura que alegam recrutamentos ilegais através de
motivos variados, que podem ser verificados nos maços específicos de recrutamento do Arquivo Público do
Estado da Bahia. Os tropeiros e caixeiros também estão nessa categoria de comunidades volantes sempre
vigiados. Ver GRAHAM... Op. cit., p. 54 e 55. A exceção era para aqueles tidos como figuras de confiança de
algum poderoso local. Ver. DIAS, Op. cit., p.
495
APB. Manuscritos Governo da província. Seção Colonial e provincial: série militares. Recrutamento. 1823-
1851. Maço: 3486. Quartel do Comandando das Armas, 18 de setembro de 1838. Para o Coronel comandante
geral das armas.
179

para averiguar o caso, que veio anexo aos documentos acima citados 496, dizia que eles haviam
morado na casa de uma de uma mulher durante três meses. Parece ter sido este o fato que
chamou a atenção das autoridades recrutadoras: a presença, durante tanto tempo, de três ou
mais figuras não conhecidas da comunidade que pareciam ali nada fazer, quando na verdade
esperavam a finalização de negócios para receberem seu pagamento e voltar para suas casas.
O valor da venda dos bois contou com uma parcela de 300 mil réis, paga ainda em outra
localidade, e em Maragogipe os homens aguardavam o pagamento da segunda parcela, como
parecia ser o caso. Não sabemos o motivo de tamanha demora. O proprietário da boiada era
Sargento da Guarda Nacional, e os vaqueiros eram soldados dessa mesma Guarda. As pessoas
que testemunharam arroladas no processo conheciam-nos pelo comércio nas vilas do
recôncavo ou porque eram vizinhos ou moradores de Caetité num determinado período.
A sanha do recrutamento para com os forasteiros, ou figuras volantes, mal
conhecidos pela comunidade, optou pelo recrutamento de homens com serviços isentos do
recrutamento e vinculados à Guarda Nacional. Optaram por crer que podia se tratar de
homens rondando a região para efetivar uma vendeta ou vadios, simplesmente. A
pressuposição do que seriam já justificava o recrutamento.
Muitas pessoas, como nos casos de Cirilo Sodré, que vivia “nos trabalhos de
vaquejar gado vacum e animal cavalar, juntamente nos diversos da lavoura”497, e de José
Batista e Atanásio Soares, “tangedores de boiadas”498, eram constrangidas pelo recrutamento.
Precisavam sempre que alguém atestasse sua idoneidade, residência e empregabilidade. Como
os sujeitos recrutados eram, em algumas situações, pegos em outras vilas que não as da sua
moradia ou em estradas e picadas, eram sempre, de antemão, vistos como recrutáveis, isto é:
sem família, sem domicílio e sem emprego (vadio, ocioso, suspeito). Especialmente se o caso
fosse o de tangedores de boiadas e vaqueiros. Como o crime de abigeato era um dos mais
comuns nas localidades rurais, aqueles que tangiam gado eram sempre suspeitos,
especialmente quando se tratava de quantidades pequenas.

As atividades de pequeno comércio também eram muito dificultadas pela


falta de liberdade de que dispunham quando se aventuravam por regiões
mais densamente povoadas, principalmente junto às vilas. Desde a época da
independência, as autoridades interessadas em organizar feiras e fomentar o

496
Idem.
497
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial Governo da província. série militares. Recrutamento. 1826-
1851. Maço: 3487. 22 de janeiro de 1840. Abaixo assinado.
498
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial Governo da Província. Assuntos Diversos. Feira de Santana;
Chique-Chique, 1839. Para Presidente da Província.
180

comércio local tinham de prometer a suspensaão de eventuais recrutamentos


ou de quaisquer formas usuais de arbritariedade ou violência, a que se viam
usualmente expostas as populações pobres no Império 499.

Este não parece ter sido o caso da vila de Feira de Santana e seus arredores.
No segundo dos casos citados acima, os vaqueiros vinham de Chique-Chique em
direção à vila de Feira de Santana500, que possuía uma tradicional feira de bois e cavalos.
Alguns dos animais vendidos nessa feira, ou antes mesmo de chegarem a ela – pois havia
muitos atravessadores atuando nos caminhos –, eram animais furtados e roubados. Sem falar
do aumento da repressão nos arrabaldes da vila, já que eram os primeiros anos de anúncio das
ações do grupo de Lucas Evangelista e da frequência de gente considerada turbulenta, vadia e
facinorosa entre a multidão que invadia o município no período de feira.
Essa situação, com maior destaque para Feira de Santana, gerava muitos incômodos
e controvérsias entre as autoridades e negociantes. Ainda em 1839, um mesmo documento501
informava a alta incidência de furtos de gado e o subsequente recrutamento do “ladrão”, como
estamos argumentando, e o recrutamento de forma “ilegal” de um homem suspeito de roubar
bois. Vejamos: o primeiro, Antonio dos Santos, solteiro e pardo, preso com um cavalo furtado,
pediu para ser recrutado. As autoridades, ao concordarem com o recrutamento, sugeriram que
ele fosse para a primeira linha e para fora da Bahia, o que podia ser considerado uma vitória
para o bandido que buscava a farda para provavelmente se abrigar de alguma situação502. O
outro caso conta que um homem chamado Adriano de Souza Estrela foi recrutado
ilegalmente, pois ele seria vaqueiro de uma fazenda de Feira de Santana. Isso, segundo o
documento, foi afirmado por diversas pessoas “sérias” daquela vila. Mas o documento não
encerra sem antes desferir uma crítica ao recrutamento forçado efetivado ali, pois, para o
autor do documento, era por este hábito que se tinha um preço do gado maior do que seria
normal. Ele ignorava “se com efeito no lugar da Feira de Santana se acrescentem os vaqueiros

499
DIAS... Op. cit., p. 65.
500
Idem.
501
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Judiciário – Cachoeira. 1838 -
1841. Maço 2273. Cachoeira, 19 de setembro de 1839. De Francisco Xavier Oliveira Pereira, Juiz de direito
interino, para presidente da província da Bahia;
502
Pedir para ser recrutado podia incluir muitas estratégias para o homem apreendido. Se fosse escravo, afinal
não sabemos sua cor e nem sua condição social, como os recrutadores às vezes não sabiam, podia ser uma das
estratégias de adquirir a liberdade. Podia ser um homem de muitos inimigos, jurado de morte ou endividado.
Sobre isso ver KRAAY, Hendrik. “O abrigo da Farda”. O exéxito brasileiro e os escravos fugidos, 1800 – 1888.
Afro-Ásia, nº 17, 1996, p. 29-56.
181

e mais indivíduos isentos por lei”503.


O documento é explícito em reconhecer o tratamento dado ao ofício de vaqueiro. Os
vaqueiros eram figuras que iam de estrada em estrada, passando por muitos lugares,
conduzindo propriedade alheia. Eram de muitas cores: brancos, pardos, caboclos e negros.
Apesar de uma historiografia mais tradicional afirmar a não presença do escravo, e mesmo do
negro em alguns casos, é muito fácil demonstrar, no cotejamento das fontes, como esse ofício
era aberto para muitas cores. Muitos indivíduos objetivavam o ofício, pois ele permitia a
ascensão social, supostos laços mais fraternais ou privilégios com os senhores da fazenda,
além de certa liberdade504. Mas o fato de o gado ser criado solto, fugindo com frequência de
cercas mal postadas, tornava o boi um animal muito fácil de se furtar, motivo pelo qual esse
crime era às vezes invisível e generalizado. Também por isto o furto de gado foi usado como
estratégia de acusação por parte de proprietários quando queriam se ver livres de um vizinho
incômodo, de um forasteiro ou desafeto. Na dúvida, acusava-se o sujeito que tivesse
notoriedade em “maus hábitos”, tornando-o soldado via recrutamento, através de uma medida
de repressão preventiva.
Deve ter sido esse provavelmente o caso de Matheus Brandão, pardo, natural de
Santo Estevam de Jacuípe, solteiro e sem profissão, preso na cadeia de Jacobina por ser tido
como vadio e por andar com um famoso ladrão de cavalo, Joaquim Moreira de Freitas. Seu
irmão, Manoel Félix Brandão, foi quem o processou, e por este motivo a pronúncia como
ladrão não foi aceita pelo juiz. No entanto, o juiz o submeteu aos termos do recrutamento505.
A acusação de seu irmão, embasada em nenhuma prova, provavelmente motivada por
alguma rixa familiar, atacava-o pelo fato de ele andar com um notório ladrão de animais. Se
ele andava com pessoas deste tipo, devia também fazer o mesmo. Um raciocínio certamente
partilhado por muitos naquela situação, ainda mais em se tratando do crime de que fora
acusado, muito comum então. O estigma de andar com ladrão, além do fato de ser vadio, por
não ter trabalho, ser solteiro e homem de cor, o enquadrava perfeitamente na definição
503
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Judiciário – Cachoeira. 1838 - 1841.
Maço 2273. Cachoeira, 19 de setembro de 1839. De Francisco Xavier Oliveira Pereira, Juiz de direito interino,
para presidente da província da Bahia.
504
Um estudo importante sobre o os vaqueiros é o de MEDRADO, Joana. Terra de Vaqueiros. Relações de
trabalho e cultura política no sertão da Bahia, 1880-1900. Campinas: Editora Unicamp, 2012. Nessa obra a
autora além de tratar sobre o perfil social dos vaqueiros de uma parte do sertão da Bahia, também discute essa
historiografia que romantizou a relação horizontal e sem dominação que certos historiadores - especialmente
Euclides da Cunha, Câmara Cascudo, Eurico Alves Boaventura, Caio Prado Jr., entre outros - cristalizaram em
suas obras. Ela vê nesses atributos uma cultura política que os vaqueiros impuseram, através de uma série de
práticas cotidianas de resistências.
505
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Quartel da Guarda policial de Jacobina, 12 de junho de 1839. De
Luiz Pereira da Rocha, juiz de paz, para Juiz de direito Interino.
182

criminalizante de “completo réu de polícia”. O perfeito réu de polícia era uma definição da
época que muito se assemelhava ao das classes perigosas 506.
O completo réu de polícia era aquele indivíduo cujo único crime era o de não
satisfazer às expectativas sociais das elites burocráticas e senhoriais da construção da
identidade nacional. Ele era um sujeito a ser preso preventivamente para recrutamento. Ele
podia ser vadio, sem família, sem trabalho, sem patrono, praticante de pequenos delitos, sem
religião, tudo isso junto ou apresentar apenas uma, duas ou três dessas atribuições. Podiam ser
presos a qualquer hora sob essas justificativas, como José Frederico da Cunha e Ignácio
Veigas, recrutados na 1ª linha do exército, sob a acusação de serem “dois vagabundos e
completos réus de policia”, já que viveriam de “iludir as pessoas incautas”507. Não se diz
como praticavam essas ilusões, mas o fato de serem réus de polícia bastava para recrutá-los
pela criminalização.
Sob o manto da defesa da sociedade todo um modo de vida ia sendo criminalizado 508,
reforçando a sociedade do homem agarrado ao latifúndio, a uma clientela patronal, a uma
igreja política.
Em diversos momentos o recrutamento se confundia com o combate ao crime. Ao
invés de se prenderem os acoitadores, mandões locais que contratavam o gatilho de diversos

506
Alberto Passos Guimarães (As Classes Perigosas. Banditismo urbano e rural. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2008.) foi o primeiro a tornar esse conceito uma obra de explicação sociológica e histórica no Brasil. Discutiu o
surgimento desse conceito na Inglaterra e na França, e sua utilização no Brasil. Mostrou que apesar de uma
definição genérica de “um conjunto social formado à margem da sociedade civil” (p. 21), o surgimento dele se
deu num contexto global determinado, isto é, quando o crescimento da industrialização possibilitou o surgimento
de um exercito industrial de reserva e de uma superpopulação relativa vivendo como sobras não agregáveis ao
desenvolvimento capitalista. No entanto esse entendimento global não ofusca o autor de compreender que a
recepção e utilização desse conceito sofreu modificações e acréscimos nos contextos nacionais, como na
Inglaterra e na França e no Brasil. Na Inglaterra o conceito se revestiria para ser aplicado em figuras que tinham
passagens nas cadeias e que praticavam crimes. Já na França, onde a industrialização tardou e onde até metade
do século XIX o campesinato é demograficamente muito expressivo, o conceito misturou trabalhadores e
pobreza. A França que possuía intensa tradição jacobina, não necessariamente operária, mas uma tradição
socialista, de rua, de sans cullotes, de gente pobre, se diferenciava da Inglaterra que tinha uma tradição mais
nitidamente operária. No Brasil o termo serviu para enquadrar, disciplinar e reprimir os “semilivres” oriundos de
um sistema social escravista, que rejeitavam as condições de integração no capitalismo industrial, sem acesso a
direitos sociais e trabalho digno. Em todos os casos o termo serviu para produzir um discurso de medo e
criminalização sobre os grupos sociais subalternos, que ameaçavam o progresso da ordem, seja pela sua
resistência ou pela sua suposta incapacidade de se adaptar à modernidade. É nesse aspecto que o conceito será
aqui trabalhado, bem como fez Sidney Chalhoub em seu livro Trabalho, Lar e Botequim (O cotidiano dos
trabalhadores na no Rio de Janeiro na belle époque. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001).
507
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Governo da província - Judiciário. Juízes de Cachoeira. Maço
2275. Cachoeira, 02 de novembro de 1843. De Antonio Ladislau Figueiredo da Rocha, juiz Municipal e
delegado de Cachoeira, para presidente da província.
508
Essa é a sugestão de Christopher Hill quando discutiu as ações de defesa das florestas pelo Rei no final do
século XVII inglês. Drenar os pântanos, cercar a floresta e desmatá-la, apesar da retórica de segurança e
produtividade implicava deliberadamente na “destruição de todo um modo de vida, em brutal desconsideração
pelso direitos da plebe”. HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça. Ideias radicais durante a Revolução
Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 69.
183

sujeitos, obstruir o tráfico de armas, que saíam do Estado para o poder privado, que, por sua
vez, as distribuía para sua clientela bandoleira, ou requerer forças suficientes para um
confronto com os salteadores, o caminho tomado era o da repressão ao modo de produção da
vida social daquelas pessoas, destruindo suas colheitas, separando familiares, acabando com a
autonomia social de pequenos produtores, vendedores, jornaleiros e trabalhadores itinerantes.
Estrangulava-se, assim, a liberdade do homem livre e sua possibilidade de construção de
ações e lógicas sociais autônomas e independentes.
Quando o Juiz de Sento Sé reclamava da falta de combate ao crime, ele reclamava na
verdade da ausência de recrutamento para apreender indivíduos “inúteis para comarca”509 que,
segundo ele, eram quem proliferava os crimes na região. Sabemos bem, desde as primeiras
páginas deste capítulo, quem podiam ser os inúteis de que fala o juiz.
Homens como Bernardino, que não tinham “ofício nem benefício” 510, eram
designados como malfeitores. No caso de Bernardino, seu melhor ofício era o de “pegar o
gado alheio [...] no arraial de Pojuca”. Ser malfeitor era mais importante para as autoridades
do que não ter ofício nem benefício? Aparentemente não. Ambas condições integravam a
mesma lógica punitiva, como se uma estivesse diretamente relacionada à outra.
No contexto da guerra dos Farrapos, quando a Bahia foi uma das províncias que mais
enviou recrutas para o Sul511, três homens foram recrutados por serem solteiros, não
possuírem emprego e por, de alguma forma, “inquietarem o público”512. Inquietar o público,
como já vimos, podia significar apenas serem forasteiros desconhecidos, trabalhadores de
jornal, andar com armas de caça, enfim.
Até o controle do tempo de trabalho era uma justificativa passível de recrutamento.
Ao afirmar que estava fazendo esforços para acabar com a circulação de armas, o subdelegado

509
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 406. Juazeiro, 06 de maio de 1851. De Juiz de direito da Comarca de sento
Sé, Leovigildo de Amorim Filgueiras, para Presidente da província.
510
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial, Governo da Província. Polícia do porto: Capitão-Mor. Maço
3794. 1826. Para o Presidente da Província. Não seria forçoso fazer uma relação com o contexto de implantação
dos direitos trabalhistas abordados por Angela de Castro Gomes no capítulo “Quem tem Ofício tem Benefício”,
do seu livro “A invenção do Trabalhismo” (3ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 175-188) afinal
nesse contexto a prova de ofício, provado pela carteira de trabalho, ou pela filiação sindical, era uma atestado de
ser um “trabalhador brasileiro”, por isso não suscetível a certos constrangimentos, como as amolações policiais,
além de inseridos num contexto de integração. Da mesma forma parece que o termo aparece citado pelo
documento de 1826. Ter ofício era o passaporte para gozar do benefício de não ser um caso de polícia, isto é, de
recrutamento forçado. O que quero ressaltar é uma permanência presente que opõe trabalho a vadiagem e
trabalho a crime, exigindo de forma compulsória, através de mecanismos estatais nada sutis de repressão e
enquadramento das pessoas ao trabalho. Se não é trabalhador é vadio.
511
Ver: RIBEIRO, José Iran. O Império das Revoltas. Estado e nação nas trajetórias dos militares do exercito
imperial no contexto da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2013, p. 39-42.
512
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. São Gonçalo dos Campos, 16 de julho de 1839. De João Borges..., juiz de paz, para presidente da
Província, Thomaz Xavier Garcia de Almeida.
184

de Brejo Grande, em Rio de Contas, acionou como mecanismo para tal o recrutamento. Com
isso conseguiu obter um recruta, José Antonio de Souza, pardo e solteiro, que estava
acompanhado por duas pessoas (não sabemos se foram recrutadas). O pecado deste recrutado
à força foi ser de conhecimento do subdelegado que se “emprega[va] pouco no trabalho”513.
Fuga e criminalização
Criminalizar modos de vida, do nosso ponto de vista, era parte importante da política
de recrutamento desenvolvida ao longo da primeira metade do século XIX. Especialmente o
modo de vida dos homens livres pobres sem patrão das vilas rurais. A operação de formação
do Estado Nacional e a centralização operada para isso exigiam dos poderosos locais a
firmeza sobre o controle do tempo, disciplina e trabalho dos grupos sociais subalternos.
Quando um conjunto de homens, ou mesmo um indivíduo, tomavam a decisão de
fugir do recrutamento, a “população [era] transformada, pelo simples ato de resistir, em um
agrupamento de desertores fora da lei”514. Palacios informa que, no século XVIII e início do
XIX, verdadeiros “santuários” dessas populações eram formados depois de notícias ou ações
visando o recrutamento de povos rurais. Esses povoados, em casos extremos, como o do Rio
Grande do Sul citado por Ribeiro, chegavam a constituir verdadeiras comunidades de
fugitivos, que viraram na sequência pequenos distritos. Nos casos expostos por Palacios, os
grupos de fugitivos nos matos “passaram a viver na clandestinidade, muitos deles
encaminhando-se para delinquência real empurrados pelo Estado”515. Essas comunidades
foram destruídas pelas autoridades coloniais em expedições semelhantes às que faziam para
destruir os quilombos.
Historiadores, como Hendrik Kraay, analisaram que “o discurso anti-recrutamento
era, no entanto, bastante limitado, pois o recrutamento à força era uma característica bem
estabelecida, e na prática amplamente aceita, das relações patrono-cliente”516. Segundo ele, as
críticas provinham mais dos patrões quando seus clientes eram recrutados, desgastando e
deslocando sua autoridade frente à comunidade local517. As queixas eram pontuais, apenas
daqueles que eram capturados.
Não é verdade que não conhecemos nenhum grande movimento social ou levante

513
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-
1846. Maço 2558. Distrito de Brejo Grande, 23 de agosto de 1842. De José de Oliveira Alvarez, sub delegado do
distrito de Brejo Grande, para Herculano Antonio Pereira da Cunha, Juiz Municipal e de Órfãos e delegado do
termo.
514
PALACIOS... Op. cit., 2004, p.190.
515
Idem, p. 193.
516
KRAAY... Op. cit., 2011, p. 96.
517
Idem.
185

realizado pelos homens livres pobres contra o recrutamento. A Balaiada foi um dos mais
famosos, que teve como uma de suas características uma insatisfação frente à política de
recrutamento efetuada entre a camada de pobres livres e libertos no Maranhão518. Por outro
lado, as queixas dos senhores contra o recrutamento, nos casos em que este poderia
comprometer seus núcleos clientelares, nunca constituíram um movimento das classes
senhoriais. As queixas desse grupo social eram feitas através de petições, abaixo-assinados,
discursos parlamentares e, em alguns momentos, um confronto aberto e armado com
autoridades estatais que ousavam se intrometer no seu reduto clientelar. Também se
mobilizavam na medida em que o recrutamento afetava suas próprias vidas, afinal, como o
Kraay reconhece, ele era um recurso bastante utilizado pelo patronato para desmobilizar as
clientelas alheias e favorecer com isso suas pretensões políticas. Uma análise dos maços
dedicados ao recrutamento no Arquivo Público da Bahia deixa ver inúmeras petições, abaixo-
assinados, cartas (algumas escritas de próprio punho) de mães, irmãs, pais e amigos
requisitando a retirada e denunciando a injustiça dos recrutamentos. Algumas das
manifestações de senhores contra determinados recrutamentos – porque eles nunca se
opuseram politicamente, isto é, como classe, contra essa prática – eram pressionados por um
clamor vindo de baixo. Afinal, para que serviria um protetor se ele não protege?
Podemos ver correspondências entre autoridades que apontam para situações em que
motins poderiam ocorrer caso o recrutamento fosse levado adiante. A distribuição
indiscriminada da convocatória para recrutamento num local que já havia passado por
problemas anteriores com a prática – quando ele havia sido realizado de maneira
completamente fora dos seus termos regulares – agravou o problema já existente, quase
produzindo uma revolta nas imediações, segundo um juiz da localidade. A “revolta” foi
evitada com o perdão daqueles que não se haviam apresentado e isentando os que provaram
estar fora das condições de recrutamento519. Passagens como essas realmente confirmam
debates teóricos acerca das inúmeras motivações para as lutas sociais dos grupos subalternos.
Algumas delas surgem devido a uma percepção dos abusos das autoridades, e não contra as
autoridades e os privilégios advindos dela. A ordem é aceita contanto que ela pareça atuar

518
ASSUNÇÃO, Mathias Röhring. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a pátria e o
Imperador”. Liberalismo Popular e o ideário da Balaiada no Maranhão. In: DANTAS, Mônica Duarte (org.).
Revolta Motins Revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011,
p. 308-309.
519
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-
1846. Maço 2558. Rio de Contas, respondido em 15 de julho de 1842. Do juiz de direito da comarca para
presidente da província.
186

dentro dos padrões costumeiros de exercício do poder520. O repetido problema com o


recrutamento e a forma como ele foi resolvido, apenas reestabelecendo-se os critérios legais,
mostram que havia abusos.
Apesar de usar um exemplo, uma exceção, que confirmaria a regra, isto é, de que a
insatisfação só veio devido ao abuso, é preciso dizer que o abuso era a regra. E por isso a
reação ao recrutamento também era a regra e não a exceção. A fuga era a maior dessas reações
de resistências.
Se as fugas de escravos nos períodos finais do escravismo no Brasil foram entendidas
como uma entre tantas ações conscientes levadas à frente pelos escravos e seus aliados, além
de terem sido encaradas pela historiografia da escravidão como parte de estratégias de um
movimento social mais amplo do abolicionismo521, por que as fugas dos recrutamentos
forçados não expressariam, de algum modo, um movimento mais amplo de rejeição a essa
prática?
A fuga, invariavelmente para o mato522, tinha dois desdobramentos. Por um lado,
tornava o homem um proscrito, que causava medo e temor aos habitantes das suas
circunvizinhanças, que normalmente viam suas pequenas propriedades serem furtadas e suas
coisas desaparecidas. Por outro, o mato se tornava um local onde, principalmente os homens
livres e pobres, se refugiavam em busca de segurança e liberdade contra o recrutamento ou
como desertor, por exemplo. Algumas fugas eram momentâneas, mas outras podiam não ter
volta.
A fuga para o mato sugere a fuga de alguém que parece fazer não parte de redes de
solidariedades verticais. Homens livres e pobres que não queriam ou não puderam fazer
aliança com protetores locais ou que tinham protetores locais errados na dança dos cargos que
controlavam a burocracia da violência e o recrutamento. Por isso eram homens sempre sob
suspeita. O mato os abrigava e os mantinha independentes até onde se pudesse tirar das suas
picadas o sustento e as condições de existência elementares.
No mato, mesmo submetidos ao recrutamento, a possibilidade de fugir dele era
grande. Por isso invariavelmente o debate sobre o uso de ferros nos recrutados era tema entre
as autoridades. Para chegar até as vilas ou até a capital da província, esses homens tinham que

520
Sobre esse tema ver GRAMSCI... Op. cit., Vol. 05, 2002, p. 29-146 e HOBSBAW... Op. cit., 1978,
especialmente a introdução.
521
Ver. MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. São
Paulo: EDUSP; UFRJ Editora, 1994.
522
Ver: RIBEIRO, José Iran. O mato como local de (in)segurança. In: História Unisinos. Nº 10. Vol. 02. Maio e
Agosto de 2006, p. 226-231.
187

cruzar muitas e muitas léguas. Nesses ambientes urbanos era mais frequente o encontro com
tropas, com guarnições, munições e cadeias, mas quando eles estavam atravessando os
“desertos e precisando os condutores dormir”, se temia que nessas situações os recrutados,
“de braços livres”, fugissem ou tomassem as armas dos condutores523.
Em 16 de abril de 1823, o secretário da Junta de Governo da Bahia enviou um
documento para Francisco Bitencourt avisando da aprovação da política de recrutamento em
meio à guerra de independência na Bahia. No documento ele pedia sigilo às autoridades
encarregadas do recrutamento, pois, se não fosse assim, a captura dos vadios não funcionaria,
pois eles tendiam a se extraviar ou “embrenharem-se” nos matos524. A ausência de soldados
para guarnecer a prisão da vila de Jacobina foi o argumento usado pelo Juiz Municipal para
que os soldados não perdessem seu tempo recrutando os indivíduos aptos fora da cidade
porque “tais indivíduos fariam com eles como fazem os veados com os caçadores”525. O
recrutamento só seria bem efetivado na região caso outros juízes deixassem de fazer corpo
mole para promover o recrutamento e evitassem que os homens “fugissem para os bosques”.
E, para não haver “maiores distúrbios”, ia procedendo “com a maior cautela possível”526.
Havia uma rede intensa de boataria e comunicação que visava a antecipar os homens
em relação aos seus recrutadores. O capitão da Guarda Nacional, Quintino Soares da Costa,
avisava o juiz municipal de que não havia conseguido recrutar ninguém, pois os homens já
estavam “escaldados pelas notícias que correm” do recrutamento 527. “Tão público aviso”, que
permitiu “serem todos avisados”, impediu também o recrutamento de ser realizado no Morro
do Chapéu no início de 1835528.
A passagem do Alferes Miguel Barbosa, responsável pela instalação de correios
necessários à guerra de independência, se submeteu a uma dificuldade inusitada. Não havia
quem vendesse milhos para os animais comerem, “pois que uma vaga notícia, que corria de

523
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes – Urubu. 1829-1864. Maço
2623. Vila do Urubu, 24 de setembro de 1838. De Pedro de Souza Marques, Juiz de direito, para presidente da
província.
524
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636-1. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 16
de abril de 1823. Do secretário, José Luiz de Ornelas, para Francisco Bitencourt Junqueira.
525
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Jacobina, 28 de fevereiro de 1836.
526
Idem.
527
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6392. Quartel do
Morro do Chapéu, 18 de fevereiro de 1836. De Quintino Soares da Costa, capitão, para Juiz municipal e direito
de Jacobina.
528
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6392. Morro do
Chapéu, 15 de fevereiro de 1836. De Manoel Joaquim (rasgado), capitão, para Juiz municipal e de direito de
Jacobina.
188

marchar tropa de Minas, e que por ordem de vossa majestade, vinha recrutando pelo caminho,
e tomando-se cavalos, fez com que quase todos os habitantes do Gavião e Rio de Contas se
metesse naquelas catingas”529.
O Capitão Mor de Água Fria, não conseguindo recrutar os doze que lhe foram
pedidos pelas autoridades provinciais, alegou que o motivo de não ter obtido sucesso nessa
empreitada havia sido o fato de que o bando do recrutamento chegara primeiro nas cidades
vizinhas e deixou todos em alerta para a fuga para os matos. Ele tinha conseguido recrutar, até
aquele momento, apenas cinco indivíduos. Além disso, a região já se encontrava esvaziada
porque a seca fazia com que as pessoas fossem procurar opções de vida em cidades longe dali.
Ele dizia: “consta-me haver alguns que se tem entranhado aos matos, estão munidos de armas,
e acompanhado de criminosos”. Finalizando o documento, afirmava não saber “como se há de
recrutar sem força, ou violências?”530.
Criminalizados passavam a se relacionar com outros proscritos que viviam das ações
armadas para obter seu sustento, especialmente em épocas magras para a maioria dos homens
livres e pobres. O mato também podia servir de lugar para encontros e formações de
comunidades efêmeras.
Em 1826, o dilema já era o mesmo. Como recrutar os homens sem que eles
soubessem do recrutamento com antecedência e com isso fugissem para os matos? Antônio
Rocha de Bastos, o Sargento Mor de Rio de Contas, fazia essa pergunta a outras autoridades:
quando presos os primeiros recrutados à força, seria necessário manter o recrutamento aberto,
já que quando se prendiam os primeiros a notícia se espalhava? “(...) os mais fogem e
desaparecem por não poder haver uma exata combinação pelas diferentes povoações e
fazendas de lavradores espalhadas neste termo, e que só com vagar se podem recolher”531.
Nesse documento, o tema referente às alianças dos recrutados também volta a
aparecer. Se no documento de 1826 a aliança era explícita entre criminosos armados e
recrutados, no segundo documento essa ligação aparece de forma mais velada. Os recrutados
– perguntou o sargento mor – que iam

529
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Independência do Brasil na Bahia. Série:
correspondências recebidas do conselho interino de governo (1821-1823). Maço: 023, antigo 637-4. Rio Pardo,
10 de janeiro de 1823. De Miguel Barbosa Calezal, Alferes, para Governadores interinos.
530
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Militares: Recrutamento. 1827-1859. Maço 3488. Quartel em
Água Fria, 01 de outubro de 1828. De João Gomes de Carvalho, capitão mor, para Presidente da Província,
Manoel Ignácio e Menezes.
531
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial Governo da Província. Polícia do Porto: Capitão Mor. Maço
3794. Rio de Contas, 14 de dezembro de 1826. De Antonio Rocha de Bastos, sargento mor comandantes das
ordenanças, para o presidente da província da Bahia.
189

servir a nação e a Sua Majestade Imperial, não sendo criminosos, deveriam


ser conduzidos acorrentados e algemados, quando ao mesmo tempo se
conhece que indo soltos não chega lá um só, pois distando esta vila dessa
cidade cem léguas, tem de transitarem por lugares a maior parte ermos? 532.

Eles não chegavam aos seus destinos, porque, na maioria das vezes, eram soltos por
moradores dos povoados, bandidos e, em algumas circunstâncias, por autoridades e homens
poderosos, interessados na manutenção de sua clientela. Algumas vezes travavam alianças
com outros soldados, alguns também recrutados à força. Uniam as infrações dos sujeitos, a
fuga do recrutamento e a deserção. Fugir em dupla ou em coletivo podia aumentar as chances
de sobrevivência de uma nova cabeça da hidra que se formava naquele instante.
Os contínuos ataques às cadeias, como demonstraremos, eram também uma maneira
de livrar os recrutas dos seus destinos. Grupos armados se aproveitavam da fragilidade e da
falta de soldados que tomavam conta das prisões para libertar esses homens, junto com tantos
outros bandidos, o que lhes dava tempo para fugir. No dia 19 de julho de 1847, por exemplo,
o chefe de polícia Antônio Ozório comunicou ao presidente da província que fugiram da
cadeia de Feira de Santana, após arrombamento, alguns recrutas533. Em 1836, o juiz municipal
e de direito afirmava que as respostas referentes às questões sobre os recrutados à força não
podiam demorar de chegar, afinal “ele não poderia esperar a resposta chegar, porque uma vez
presos [aqueles recrutas] não podia se demorar ali na prisão” e que, para se adiantar frente
àquele perigo, ele custearia com o próprio bolso a ida dos recrutados para a capital 534.
A utilização do recrutamento para desbaratar uma quadrilha de salteadores causava
esses temores de ações violentas de retiradas de recrutados da posse das autoridades.
Quadrilhas como as que se refugiavam na Serraria, local de frequência de desertores,
salteadores e criminosos em geral535, sofria intensa ação de recrutamento. Quando recrutaram
Joaquim Gomes, um dos atuantes criminosos que ali frequentavam, uma das ações possíveis
que temiam as autoridades era que seus comparsas tentassem retirá-lo da cadeia536.
Em Catetité, no ano de 1828, seis facinorosos soltaram “uma porção de recrutados”

532
Idem.
533
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6150. Palácio do
Governo da Bahia, 21 de junho de 1847. Do desembargador Chefe de Polícia para Antonio Ozório de Azevedo,
presidente da província.
534
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Jacobina, 28 de fevereiro de 1836. De José Emigdio de Figueiredo,
Juiz Municipal e de Direito interino, para vice-presidente da província.
535
Ver capítulo sobre os salteadores e suas ações.
536
APB. Série ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 407. Delegacia de Maragogipe, 30 de novembro de 1851. Do
delegado José Antônio de Araújo Freitas Henrique, para o chefe de polícia da província da Bahia.
190

que iam para Salvador desde aquela vila. Esses mesmos seis bandidos, em outro arraial
daquele mesmo termo, vizinho da vila, atacaram uma tropa de primeira linha e pessoas das
ordenanças que compunham aquela tropa em número de mais ou menos 60 a 70 pessoas.
Mataram e feriram alguns homens daquele destacamento. Segundo o documento, as tropas
encarregadas da defesa daquela região viviam insubordinadas, fazendo com que aqueles e
outros bandidos “se animem a atacar os pacíficos habitantes, e por estes princípios percam as
autoridades seus postos”. Os livramentos de recrutas das cadeias e da posse das tropas fariam
com que nunca tivesse “fim tantas desordens” 537.
O Juiz de Paz de São Gonçalo, em 1839, verificou e informou às autoridades
provinciais que os vadios e valentões que estavam sendo recrutados acabavam se evadindo e
voltavam para insultar e até mesmo assassinar aqueles que os prendiam 538. Relatou um caso
em que os soldados ficaram apavorados com as ameaças de um recrutado que tinha evadido e
se vingado do seu recrutador. Terminava o documento revelando todo o deslocamento de
autoridade que a presença dos bandidos gerava: “porém se vossa senhoria me assegurar que
eles não fugirão, também prometo a vossa excelência de mandar bons recrutas o quanto me
for possível”. Além do medo causado nos próprios soldados, estava também com muito medo
o próprio juiz, que não tinha sua autoridade instituída no poder nacional respeitada 539.
Esses valentões podiam receber os soldados e as autoridades encarregadas do
recrutamento com todo o seu arsenal a lhes fazer fogo 540. E, no caso de ter algum dos seus
membros capturados, a tentativa de tirá-los das mãos da justiça era uma possibilidade, como
atesta um documento enviado pelo Capitão Mor de Cachoeira:

Acabam de serem violentamente tomados em caminho, dois


recrutas remetidos, um do Curralinho, e outro da freguesia de Pedrão: e fica
retido nas cadeias desta vila para ser processado o recruta José Ferreira, o
qual teve o arrojo de dar um tiro em um ‘ordenança’ que logo morreu,
esfaqueando a outro: o que tudo verá V. Ex. das partes que junto ofereço, em
circunstância tais ve[jo]-me afinal na impossibilidade de continuar na
execução das ordens para o recrutamento, atento e manifesto insubordinação
e resistência do povo que não duvida cometer as maiores violências para

537
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: serie justiça correspondência recebida de juízes. 1827-1847.
Maço 2284. Vila de Caetité, 04 de janeiro de 1828. De Sebastião José Soares, para presidente da província.
538
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. Engenho de São Gonçalo do Cedro no Curato do Almeida, 11 de setembro de 1839. De Antonio
Barbosa Cedro, juiz de paz para presidente da Província.
539
Idem.
540
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Jacobina, 01 de agosto de 1836. De Manoel José Espínola para
presidente da província.
191

frustrar as diligências a ‘bem’ de que pelo perigo 541.

A retirada dos recrutadas das mãos da escolta foi encarada pelo capitão mor como
uma insubordinação do povo ou como uma ambiência propícia para que os sócios dos
recrutados conseguissem respaldo e coragem suficiente para agir daquela forma contra as
tropas? De um ou outro modo, é a relação tênue entre crime e criminalização que se destaca
nessa passagem. O povo, em resistência a uma política odiosa, podia apoiar e ajudar
criminosos a confrontar autoridades para livrar os seus daquela ação, ou podia ele mesmo
confrontar as autoridades, agindo com práticas semelhantes a dos grupos envolvidos em ações
armadas. O certo é que nem sempre aquela população livre pobre via com parcimônia o
recrutamento.
Essa relação entre as ações bandidas e o aprendizado popular de luta contra o
recrutamento fica evidente num depoimento dado pelo Capitão Comandante Interino Álvaro
Reis Pereira, em 1828542. No documento ele relatava como, mais uma vez, os recrutas e os
réus de morte estavam se escondendo nos matos, de onde regressavam para os subúrbios da
vila, quando, “com outros sócios”, cometiam “delitos os mais atrozes”. Queimaram casas,
arrombaram casas para roubar, queimaram cercas de lavradores, ameaçaram e mataram
pessoas. Eles agiam “matando animais e carregando outros e publicando que desta vila não
vai mais recrutas ou preso algum, porque eles os tirarão em caminho”. O Capitão escreveu
que aqueles “privilégios por eles arbitrados muita parte do povo o tem adotado e se tem, por
este motivo, tanto que se prende o primeiro para recruta se unam a eles, tanto que ficam as
coisas em pior figura”.
A presença do recrutamento incomodava os bandidos, sobre quem essa ação incidia
fortemente, e também incomodava a população, que via o recrutamento como um
cerceamento da liberdade. Muitos dos “facinorosos” que agiam tentando bloquear o
recrutamento podem ter sido alvo dele, como parece crer o capitão ao falar em recrutados e
réus de morte atuando juntos. Constata que uma das vias do fugido do recrutamento podiam
ser as ações fora da lei, mas, sobretudo, a ideia de uma relação, ainda que não totalmente
direta, como heróis do povo, mas indireta, através da percepção da fragilidade e fraqueza do
sistema de proteção e controle das classes senhoriais, e, logo, do Estado Nacional. Sem a
541
APB. Seção Colonial e Provincial Governo da Província. Fundo Polícia do Porto: Capitão-mor maço 3794.
Quartel da Cachoeira, 27 de agosto de 1826. José Paes Cardoso e Silva, Capitão Mor, para o Presidente da
Província.
542
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Militares: Recrutamento. 1827-1859. Maço 3488. Vila do
Rio de Contas, 02 de fevereiro de 1828. De Álvaro Reis Pereira Manoel, Capitão comandante Interino, para o
Presidente da Província.
192

consagração dessa autoridade os homens pobres e livres podiam se mostrar mais perigosos do
que o comum.
Em algumas situações, o roubo dos recrutas era uma ação desenvolvida pelos
senhores rurais, que entendiam o recrutamento como uma forma de desorganizar suas
clientelas ou mesmo suas milícias privadas, com quem eles desenvolviam uma relação de
reciprocidade. Ao defender homens livres e pobres que faziam parte de suas clientelas e
milícias privadas, ou mesmo bandidos da região, um retorno político e simbólico era
vislumbrado. A proteção dos fazendeiros aos bandidos podia se reverter na proteção de suas
propriedades por parte dos protegidos, podia lhes fazer parecerem poderosos e inatacáveis e,
ainda, em momentos de tensão, como em pleitos eleitorais conflituosos, permitia contar com a
colaboração política de outras armas e homens. Os fazendeiros podiam, com determinado
poder, controlar o recrutamento ou impedi-lo em algumas circunstâncias, o que beneficiava
diretamente grupos de bandidos e homens livres e pobres que estavam sob sua órbita e
lealdade. Que eles evitassem o recrutamento, ou pelo menos evitassem que ele recaísse sobre
alguns aliados da plebe, era a exigência praticada pelos homens livres e pobres nos atos de
fuga, insubordinações, roubos de recrutas, entre outras ações. Era este o seu recado.
Provavelmente era essa a motivação de autoridades como o capitão Francisco Pereira
Salgado, que arrebatou à força um recrutado das mãos da força policial no Distrito de Catu, na
Vila de São Francisco. O recrutado em questão era um notório vadio e solteiro da região e foi
retirado numa “estrada erma de Mata de São João”543.
Combate ao crime
A retirada à força de um sujeito do recrutamento acontecia quando este estava fora
dos critérios legais do procedimento, o que invariavelmente acontecia, e a população se sentia
com força suficiente para fazê-lo, ou quando se tratava de um sujeito que interessava a algum
grupo social (para a elite ou para membros de agrupamentos armados ou sócios de crimes).
Como já dissemos, ao definir os bandidos ou suspeitos de crime – que era uma

543
APB. Manuscritos Seção colonial provincial. Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Nº 5689. Secretaria de polícia da Bahia, 30 de
agosto de 1849. De João Mauricio Wanderley, chefe de polícia, para João Gonçalves Martins, presidente da
província. É possível que o recruta fosse algum soldado do batalhão do capitão que, em ultima instância, atacou
a frota de recrutamento. Casos de recrutamento de soldados da Guarda Nacional aconteciam com alguma
frequência, mas normalmente eram contornados através de documentos e às autoridades competentes, que
também não tinham interesse em Guardas Nacionais sendo recrutados a esmo, afinal isso enfraquecia a
hierarquia do poder local e por sua vez o poder nacional. Sobre guardas recrutados e reclamados por seus chefes
os documentos. APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciários – Juízes de
Cachoeira. Maço 2275. Quartel do comando do 6º Batalhão, 08 de novembro de 1842. De Francisco Vieira
Costa, para Juiz Municipal e Delegado de Cachoeira; Idem. 10 de dezembro de 1842. De Francisco Vieira Costa,
tenente coronel, para Antonio Ladislau de Figueiredo Rocha, juiz Municipal e delegado de Cachoeira.
193

definição bastante generalizada – como alvos centrais do recrutamento, as autoridades


acreditavam estar resolvendo preventivamente o problema da criminalidade. O recrutamento
não atuava, assim, como inclusão dos homens na construção da colonização, tampouco da
formação da nação, mas, ao contrário, na seleção daqueles que eram imprestáveis para elas.
Os criminosos eram seu alvo preferido; atacavam a propriedade, os cidadãos de bem,
impediam o comércio e às vezes decidiam politicamente situações em que o poder local
tentava ameaçar o Estado – ainda que também fizessem uso dele, mas sempre veladamente e
nunca reconhecendo este uso. O recrutamento constituía um verdadeiro “instrumento policial
de controle social”544.
Ainda que o uso de armas fosse bastante generalizado nos sertões, homens armados
eram uma das vítimas centrais do recrutamento, que usava isto como justificativa para a
prisão de recrutas, como José Tiburcio e Eduardo Alves de Carvalho, que, como sugere o
documento, “sempre andavam armados” em Vila Nova da Rainha545.
Não há como duvidar da função policialesca e criminalizante do recrutamento
quando lemos as instruções para o comandante da cavalaria aquartelado na vila de Santo
Amaro. Dentre elas estavam as seguintes recomendações:

1) “manter a segurança da população das propriedades contra as insurreições


de escravos” (...) 2) “manter a segurança individual e da propriedade contra
os ataques dos facinorosos, que nestes últimos tempos têm incutido na
população daquele município contínuos terrores e profundas desconfianças”
(...) 11)“Vigiará o senhor comandante, com o maior escrúpulo na conduta
dos soldados, não consentindo relações individuais com os moradores da
terra, com especialidade aqueles que a opinião pública indigita como
facinorosos, ou protetores destes, e quando o soldado se torne suspeito nesse
ponto, o remeterá imediatamente para o senhor comandante das armas,
motivando a remessa” (...) 12)“De acordo com o delegado recrutará
encarregado deste serviço algum superior de confiança, ao qual o Governo
não duvidará a gratificar na proporção das vantagens que apresentar nesse
ramo de serviço, preferindo especialmente recrutar os indigitados como
guarda costas, espoletas, ou peitos largos dos indigitados valentões, ou

544
Esse termo é de RIBEIRO... Op. cit., 2013, p. 39-49. Nessas páginas ele trava um debate com Kraay, que,
para ele, discorda sobre o papel policial de controle social do recrutamento. Infelizmente a data citada no livro,
não corresponde a nenhuma data dos livros citados na bibliografia do seu livro. Mas boa parte dos argumentos
dos artigos de Kraay, publicados no Brasil, estão no seu livro Política Racial, Estado e Forças Armadas na
época da Independência da Bahia, 1790-1850. São Paulo: HUCITEC, 2011. Essa passagem é idêntica a uma da
página 285. Lá, diferente do que sugere Ribeiro, ele afirma que a utilização do recrutamento como “instrumento
policial de controle social” era “uma medida de ultimo recurso” e que o “papel do recrutamento no policiamento
não deve ser exagerado”. Não refuta, mas atenua essa função social do recrutamento.
545
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 407. Palácio do Governo da Bahia, 04 de novembro de 1852. De João
Mauricio Wanderley para José Ildefonso de Souza Ramos, Ministro dos negócios e da justiça.
194

facinorosos”546.

O recrutamento tinha duas medidas: a primeira era a de recrutar os sujeitos


considerados das classes perigosas para a sociedade de Santo Amaro. Promover a repressão
preventiva, evitando inclusive qualquer tipo de relação entre soldados e pessoas da terra,
especialmente aquelas consideradas suspeitas de serem facinorosos. Como discutimos no
primeiro capítulo, a aliança entre bandidos e soldados era uma preocupação contínua entre as
autoridades militares, até mesmo porque essa aliança de fato acontecia. O recrutamento tinha
um sujeito alvo, em que pese, dessa vez, ter deliberado sobre a vigilância em torno da questão
das rebeliões escravas. Sabemos que os escravos não podiam ser recrutados, mas os negros
livres e alforriados, além da gente pobre criminosa, ou criminalizada, que vivia nas barras das
leis, podiam, e eram entendidas como uma ponte entre criminosos e rebeliões escravas, entre
crime e insubordinação geral dos povos. A segunda atividade elucida ainda mais a situação do
recrutamento enquanto um mecanismo de controle social e policial. Na falta de uma guerra
externa ou de uma ameaça política concreta, o recrutamento servia para produzir uma guerra
intestina contra a população pobre sem patrão, quando, na mesma proporção, era ela mesma
quem abastecia as fileiras dessa guerra. Elas estavam nas duas pontas do recrutamento. Como
ponto de lança e bucha de canhão das forças de captura e como sujeito alvo dessa ação.
Também no recôncavo, mais especificamente em Maragogipe, aconteceu, em 1842,
um “rigoroso recrutamento” dedicado às classes perigosas no distrito de Cruz das Almas, “a
fim de expurgar dele grande número de vadios e valentões, que segundo o subdelegado, ali
abundam”547.
Em meio aos tumultuosos conflitos em Vila Nova da Rainha, espalhou-se um boato,
antes da reunião do Júri, de que, vindo os criminosos para a Vila Nova, os habitantes
tentariam livrá-los da cadeia. Com base nesse boato, aumentou-se a força que iria buscá-los e
acomodaram-nos com intensa segurança na câmara, pois a cadeia não pareceu segura.
Novamente um “rigoroso recrutamento” foi a resposta à situação, com a promessa de que em
breve se levariam até as autoridades policiais e militares os “homens que [por] não terem o

546
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção polícia. Maço 6466. 1844-1866. Palácio do Governo
da Bahia, 08 de janeiro de 1849. Sem autor.
547
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciários – Juízes de Cachoeira.
Maço 2275. Quartel do comando do 6º Batalhão, 08 de novembro de 1842. De Francisco Vieira Costa, para Juiz
Municipal e Delegado de Cachoeira;
195

que fazer, em bando e de praticar crimes estão bem no caso de prestar serviços” 548.
Contraditoriamente, a presença de um grande grupo de bandidos, como os
Mucunams, na região do alto sertão da Bahia, podia evitar o recrutamento de ser realizado,
pois tantos os recrutadores como os recrutados, sabendo da disposição de recrutar gente para
lutar contra determinados agrupamentos, não apareciam e fugiam para não prestarem o
serviço ou para nem sequer sofrer a chance de ser recrutado para o mesmo.

o estado deste sertão não permite que por ora se proceda o


recrutamento, mesmo para evitar dispensas da Farda Nacional, pois os
recrutas de Caetité e outros daqui, e três de morte, que iam para essa cidade
chegaram a esta vila em outubro passado e ainda estão em razão das notícias
que correm que os facciosos tentam ir soltá-los, bem como já aconteceu com
um recrutamento que daqui foi para perto do Corralinho [que] foi atacado e
morreram alguns dos recrutas549.

Os Mucunams certamente atacariam o transporte de recrutas, livrando provavelmente


alguns dos seus aliados, além de deixarem soltos outros homens a quem o governo deveria
reaver e perder tempo na sua captura, deixando o agrupamento com menos perseguição. Os
soldados disponíveis para realizar o recrutamento e desbaratar as redes de aliança dos
Mucunams pelo sertão se recusavam a seguir em tal empresa, revelando a força do banditismo
em enfraquecer os laços de hierarquia e poder dos homens sobre os outros.
Recrutados e a horda heterogênea
Numa lista de recrutados à força composta por 21 homens, além de outros
documentos avulsos sobre recrutas, é possível extrair alguns detalhes a respeito do perfil dos
recrutados na Bahia da primeira metade do século XIX. Segundo Kraay, a maior quantidade
de homens recrutados na Bahia era do recôncavo e Salvador, formando quase 70% deles550. A
maior incidência de recrutamentos nessa região se devia ao fato de que a manutenção da
segurança da grande propriedade e do círculo mercantil mais poderoso da província
justificava a prevenção operada pelo recrutamento. A necessidade de repelir qualquer reação
entre os sujeitos considerados turbulentos, facinorosos, vadios, criminosos e facciosos dos
escravos também deve ter sido um dos principais motivos para que o recrutamento recaísse

548
APB. Manuscritos seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Jacobina, 18 de dezembro de 1850. De José Antonio Viana, Juiz de
direito interino de jacobina para Francisco Gonçalves Martins, presidente da província.
549
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Militares: Recrutamento. 1827-1859. Maço 3488. Cachoeira,
15 de novembro de 1842, do delegado de polícia de Cachoeira, para José Joaquim Pinheiro de Vasconcelos,
presidente da província.
550
KRAAY... Op. cit., 2011, p. 285.
196

sobre essa região, especialmente a partir do grande levante de 1835. Como destacaremos no
capítulo sobre os salteadores, o roubo de escravos era um dos principais motivos que levavam
as pessoas para as cadeias nesse período.
A maciça presença de homens de cor entre os recrutados, portanto, não era uma
fatalidade, mas sim uma indicação de que o crime estava na cor. E que a cor era um dos
mecanismos usados para os critérios de repressão preventiva551.
Na lista citada acima, dos 21 recrutados, três não tinham cor definida (e todos eram
desertores) e apenas um era definido como branco. Todos os outros eram homens não
brancos: sete pardos, quatro cabras, cinco crioulos, um índio552. Apesar das suas capturas
terem se dado na comarca de Cachoeira, a maioria era dos sertões e agreste da província, um
total de dez. A maioria ampla era de homens sem ofício e vadios. Constando um que vivia de
enxada, um ferrador, três desertores e três que “viviam em quadrilha”553.
Entre os recrutas, muita gente de cor e um índio, além de homens tidos como
criminosos. O recrutamento absorvia uma “horda heterogênea”. Talvez fosse por isso que um
documento afirmava que, se não fossem recrutados determinados homens, que sempre alegam
inocência e violências para ficarem suscetíveis “de escapula [e assim] terão os sócios da
ladroeira, de escravos, mais esse exemplo para continuarem e se revoltarem contra os que não
as consente”554. Se os escravos não eram suscetíveis à fuga do recrutamento porque nem
sequer lhes era permitido serem recrutados, qual o sentido de incluí-los no meio dessa crítica
às fugas do recrutamento operados pela gente de cor livre? A eminente relação entre
escravizados e fora da lei que viviam a fugir do policiamento e recrutamento era uma relação
indireta e simbólica com a fuga dos negros escravizados. Se um grupo social vivia de usar
armas, sobrevivendo fora da lei, correndo para os matos para fugir da perseguição das

551
Sobre a criminalização, legislação e posturas municipais que visavam especificamente a população negra no
alto sertão da Bahia, ver PIRES, Maria de Fátima Novaes. O Crime na cor. Escravos e forros no Alto Sertão da
Bahia (1830-1888). São Paulo: FAPESP; Annablume, 2003. E para o caso dos africanos em Salvador ver
BRITO, Luciana da Cruz. Temores da África. Segurança, legislação e população africana na Bahia otocentista.
Salvador: EDUFBA, 2016.
552
A maioria de pardos entre os recrutados já havia sido comprovada por Kraay em relação as últimas três
décadas da primeira metade do século XIX. Ver: Op. Cit., 2011, p. 291. Os agitados anos logo após a guerra de
independência e a desconfiança acerca da presença negra entre as lideranças militares rebeldes, promoveu uma
expulsão do exército desse grupo racial. Nesse período os pardos chegaram a ter uma representação de 75% dos
recrutados, diminuindo, após 1837, para 42,8%. Em 1822 o bando de recrutamento mantinha um critério racial
para o recrutamento, o que foi usado largamente em 1824 para expulsar os indesejados até 1837, quando esse
critério foi abolido. Idem, p. 290.
553
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial Governo da província. Polícia do porto: Capitão mor. Maço
3794. Cachoeira, 13 de agosto de 1826. De José Paes Silva para presidente da província.
554
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província. Série militares. Recrutamento. 1823-
1851. Maço: 3486. Bahia, 17 de novembro de 1840. De José Nobre para presidente da província, Paulo José de
Mello Azevedo e Brito. Idem. Distrito das Caveiras, 23 de novembro de 1840.
197

autoridades, por que não conseguiriam também os escravos? Ainda poderiam contar com a
ajuda dos bandidos que já tinham os atalhos e caminhos da liberdade abertos.
O recrutamento como mecanismo de desorganização de laços afetivos e sociais entre
escravos e pessoas consideradas aptas ao recrutamento (vagabundos, vadios, ociosos,
jogadores) pode ser observado no informe dado pelo juiz de direito interino da comarca de
Cachoeira quando decidiu por recrutar um homem chamado Domingos, que vivia sempre de
jogar com “os escravos, sendo afeito a desordens e vive vagabundando pelas ruas”, apesar de
ser marinheiro555. Aliás, esse tipo de homem que vivia nos barcos que circulavam pelo
Paraguaçu, Rio São Francisco, eram muito mal vistos pela sociedade e suscetíveis ao
recrutamento. Domingos, para agravar, já havia entrado em conflito com autoridades pelo fato
de morar com uma escrava e de ter tentado matar o capitão do mato que tentou retirá-la de sua
casa. Ele foi recrutado quando estava de conversas com mais dois sujeitos “perfeitos réus de
polícia”: Antonio Bonifácio e Manoel Bispo, “que vivem de roubar galinhas e carneiros nos
quintais e roças”.
Domingos era um caso que caracterizava o perigo dessa horda de gente. Andava com
bandidos, se enamorou de uma escrava, a raptou e costumava, além disso, beber e jogar com
outros escravos. Não sabemos a cor de Domingos, mas, independente disto, ele podia, durante
essas bebidas e jogos, conspirar, planejar assaltos ou apenas se divertir. De toda maneira,
Domingos era a expressão daquilo que precisava ser encarcerado ou levado ao front de
batalha para viver ou morrer. Era um homem livre, provavelmente de cor, valente ao ponto de
atacar um capitão do mar e de viver com uma escrava raptada, apesar de ser reconhecido
como um homem de ofício, mesmo que este não lhe prendesse a nenhuma terra, nem a patrão
ou família.

555
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial Governo da província- Judiciário. Maço 2273. Cachoeira, 26
de abril de 1839. Emilio de Oliveira, juiz de direito interino, para Presidente da província.
198

Capítulo 9

Cadeia e fuga

O ano de 1833, aquele em que o termo de Feira de Santana passou a ter status oficial
de vila, foi o mesmo em que começaram as reclamações quanto à sua cadeia. Lugar de muita
passagem de mercadorias devido à sua famosa feira de gados – aliás, um dos motivos de ter
conquistado tal condição política –, Feira rapidamente atraiu e se tornou um espaço para ações
armadas de grupos sociais diversos. Porém, como a maioria das vilas criadas naquele período,
sofria da falta de uma cadeia apropriada556 para guardar suspeitos de crimes e sujeitos “pegos
em flagrantes”.

Não havendo neste novo município ora criado, cadeia para segurança de
presos, requisita esta câmara a vossa excelência queiram coadjuvar
semelhante fim marcada na lei do orçamento para suceder ao menos
construir uma casa forte; que possa remediar a acusada falta; o que háde
esperar se efetue com urgência557.

Um ano depois o relato era mais dramático:

Esta mesma Câmara aproveita esta ocasião para apresentar a vossa


excelência o terrível mal que sofrem os habitantes deste município com a
demora que tem havido a respeito do lugar onde terá [de] edificar-se a cadeia
e casa de Câmara por ter sido este negócio posto em chicana em razão de
uma extravagante representação assinada por indivíduo procurador dos
habitantes desta Vila (ilegível) motivando esta câmara lhe apresente sem
puder dar princípio a cadeia que é de primeira necessidade, atenta o grande
aumento que tem tido este município tanto em comércio como em população
e por consequência tem se aumentado o número de pessoas criminosas que
devem ser retidas na prisão, já como réus de polícia já pronunciados, e já
finalmente sentenciados e mais que tudo se tem frustrado por se evadirem a
cada instante de uma casa por muito fraca, que hora serve de cadeia, como
aconteceu na noite do dia 22 do mês passado que fugiram todos os presos,

556
Quando falamos de “cadeias apropriadas” seguimos as condições estabelecidas pela reforma prisional de 1832
que garantia algumas condições de existência para os presos. A partir daí a perspectiva da cadeia como local de
regeneração passou a ser ao menos legalmente aceita, não que fosse praticamente viabilizada, como veremos. O
Estado passava a ser o responsável para com algumas garantias constitucionais com o preso, diferentemente do
período colonial, regido pelas Ordenações Filipinas, segundo as quais a maioria dos presos, sobretudo os “presos
pobres”, viviam das esmolas ofertadas a eles pela população transeunte. As obrigações pelo Estado de vestir e
alimentar ao menos passou a existir. Quando falamos de cadeias apropriadas, os documentos fazem referência
também à condição de manter o preso encarcerado e sem condições de fuga até o fim da sua pena ou seu
julgamento. Ver: TRINDADE, Claudia M. A casa de Prisão com Trabalho da Bahia. 1833-1865. Mestrado em
História. Salvador: Programa de Pós-Graduação em História Social. UFBA, 2007.
557
APB. Manuscrito. Seção Colonial e Provincial. Corres. Câmara de vereadores de Feira de Santana. 1309.
Feira de Santana, 19 de setembro de 1833. De João Caribé Morotova, Manoel Paulino Maciel, Manoel da Paixão
e Castro para o presidente da província.
199

sem que as autoridades pudessem acautelar. Mesmo ontem tornaram a fugir,


três pela mesma forma, visto que a guarda nacional não se tem prestado
como se deve. A vista do que existido no cofre desta Câmara quantia de
2.100§000 reis recebido na tesouraria, espera esta mesma câmara que Vossa
Excelência em conselho tome todas as medidas concernentes a tão justos
fins, decidindo como lhes compete um negócio de santa ponderação e que de
sua decisão depende a paz a tranquilidade deste município visto que estão a
cada momento sendo assaltados seus habitantes por ladrões que fogem das
prisões558.

Em 1835, dois anos depois, a cadeia continuava em estado de “urgência”, “com


arrombamentos sucessivos de uma fraca prisão em casa particular alugada, evadindo-se os
réus pronunciados, policiais, e mesmo sentenciados”559. A cadeia era tão desmoralizante que
nem mesmo os recrutas ali ficavam, evadiam junto com os bandidos ou os deixavam sem
vigilância para que por si realizassem as fugas. A cadeia de Feira de Santana continuou sendo
um problema crônico pelas décadas seguintes e só veio a ficar pronta em 1860560.
Uma alternativa para a cadeia de Feira de Santana era a de Cachoeira, considerada,
durante todo o período estudado, a melhor, juntamente com as de Salvador, ainda que seus
administradores sempre reclamassem dela. Não obstante, em 1838, após a Sabinada, essa
cadeia não podia mais oferecer abrigo aos presos de nenhuma comarca porque ela estava
“abarrotada” de presos da rebelião de novembro de 1837 – cinquenta estavam sendo enviados
só na primeira semana de 1838 – e sem praças para fiscalizá-la pois os guardas responsáveis
por essas funções estavam ainda a perseguir os rebeldes dispersados pelo agreste baiano 561.
Em 1837, o juiz de direito da Comarca de Urubu faz uma descrição à justiça das
cadeias de duas vilas da região que ele administrava562. A da vila do Urubu seria “um pequeno
telheiro envasado e mal coberto, cujas paredes laterais feitas de enchimentos e barro se acham
arrombadas e sem a menor segurança, a qual serve frequentemente de habitação de cabras”. Já
a de Carinhanha foi descrita da seguinte forma: “é a pior de todas desta vila: a sua cobertura é

558
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Corresp. Câmara de Vreadores de Feira de Santana. 1309.
Feira de Santana, 27 de agosto de 1834. Manuel da Paixão e Castro.
559
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Corresp. Câmara de Vereadores de Feira de Santana. 1309.
Feira de Santana, 23 de março 1835. Manoel Paixão e Castro e Antonio Manoel Vitória, Raimundo de Souza
Pinto, José Avelino, Joaquim José Pedreira Mangabeira.
560
POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Corrupio: Salvador, 1968, p. 32. Voltaremos mais tarde a falar da cadeia
de Feira de Santana em um capítulo exclusivo sobre o salteador Lucas Evangelista.
561
Manuscritos APB. Seção Colonial e Provincial. Governo da província- Judiciário. Juízes de Cachoeira.
Maço 2273. Cachoeira. 31 de abril de1838. De Álvaro Tibério de Moncorvo Lima, Juiz interino de Direito, para
presidente da província; Idem. 19 de Novembro de 1838. Francisco Xavier Oliveira Pereira, Juiz de Direito
Interino, para Presidente da Província.
562
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Juízes – Urubu 1829-1864. Maço
2623. Vila do Urubu, 23 de setembro de 1837. De Pedro de Souza Marques, Juiz de direito, para presidente da
província.
200

tão baixa que qualquer pessoa de estatura ordinária a alcança. As paredes são de varas e barro
e de tão pouca consistência que por ocasião de uma desordem que houve entre dois presos
sendo arremessado um deles sobre a parede, parte desta caiu” 563.
Essa cadeia do jeito que estava permaneceria durante um tempo, pois a proprietária
de quem o município a alugava nenhum interesse tinha em fazer benfeitorias na casa. A casa
de cadeia permanecia sendo arranjada para abrigar presos, e não uma estrutura com o
necessário acabamento próprio para seu fim. Concluiu o juiz afirmando que não poderia evitar
nenhuma fuga da cadeia da forma como ela estava.
Como agravante, a falta de estrutura material para manter a cadeia era acrescida de
muitos outros problemas: comarcas que não viam acontecer um júri sequer para julgar os
presos; comarcas sem Juiz de Direito, pois muitos deles, principalmente no centro da
província, não aceitavam o cargo ou tentavam de toda sorte alguma licença por conta do
estado de guerra civil e desrespeito completo a algumas autoridades estabelecidas desde o
centro do Império ou da Província. Na Comarca da Vila Nova da Rainha, também no centro
da província, faltava Juiz de Direito havia mais de três anos; consequentemente, não se podia
realizar júri para dar as penas aos réus. Segundo Francisco de Sousa Paz, Juiz de Paz da vila
da Barra, “é por isso que os facinorosos não temem” cometer seus crimes564.
No mesmo documento, Francisco de Sousa relatou uma fuga acontecida no dia 21 de
abril, quando, depois de colocar duas sentinelas na cadeia, chegou a ordem do juiz de direito
interino para que se retirassem aqueles recrutas de lá. Quatro dias depois ocorreu a fuga. O
juiz de paz disse estar temeroso, pois alguns daqueles presos haviam jurado vingança contra
ele por cumprir com suas funções de combate ao crime. A guarda policial, segundo ele, não
fazia nenhum trabalho, nem sequer fazia a ronda da cadeia.
O motivo pelo qual os recrutas foram retirados de lá pode ter sido desde um conluio
entre o juiz interino com aqueles presos (ou de gente de fora da cadeia que tinha interesses nas
solturas daqueles homens), até a necessidade de combater os fora da lei em outro distrito ou
vila, deixando desguarnecida aquela cadeia. O documento não informa, mas a probabilidade
de uma dessas justificativas é grande.
Em 1841, o caso de um subdelegado que já tinha sido processado por conveniência
com o crime, isto é, por não cumprir com suas funções, parece poder ser enquadrado na
primeira das suposições acima, pois foi novamente acusado pelo chefe de polícia de ser
563
Idem.
564
Manuscritos APB. Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 30 de abril de 1837. De Francisco da Silva Marques, Juiz de paz, para presidente da
província.
201

conveniente com a fuga de três “criminosos” que arrombaram a cadeia de Urubu565. Em outro
momento aconteceu uma fuga de presos da cadeia da Vila Nova. Aproveitando-se dos dias de
chuva, que deixavam as paredes de barro úmidas, os presos usaram uma faca para arrombar a
parede, apesar de seus três palmos de largura e de fazer divisa com o quartel, pelo qual os
presos saíram pela janela. O antigo delegado, confiando que a cadeia era boa, nunca a visitara.
Este delegado, por conta das chuvas que incomodavam as tropas ali depositadas, mandou que
elas se retirassem e nunca mais as mandou de volta. Nas averiguações das falhas para
descobrir as culpas do evento foram interrogados os guardas. Eles afirmaram que o delegado,
além de não os querer ali, deu ordens para que os presos cozinhassem, dando-lhes acesso a
apetrechos de cozinha, de onde teria saído a faca. De forma velada os guardas colocaram a
culpa no delegado e sugeriram certa conveniência dele com a fuga. Ao mesmo tempo tiravam
a suspeita que pudesse pairar sobre eles e sugeriam algo que, mesmo que não fosse verdade,
parecia muito crível para as autoridades que procediam as investigações 566.
Em um relatório datado de 1844567, as prisões da Bahia são descritas como incapazes
de dar o mínimo que um ser humano tem direito, nem mesmo “ar puro e saudável”. Ali se
dizia que “elas eram mais adaptadas para o extermínio do preso do que para sua detenção
temporária ou perpétua”.

Das cadeias existentes são apenas consideradas seguras, e em bom estado as


duas dessa cidade, as de Cachoeira 568, Jacobina e Urubu569. As de Camamú,
Jaguaripe, Inhambupe e Rio de Contas estão em reparo; as de Santo Amaro,
São Francisco, Maragogipe, Porto Seguro, Monte Alto, Abadia e Jequiriça
em ruinoso estado; a de Valença é mal segura; e as de Caetité, Carinhanha,
Vila Nova da Rainha, acham-se em abandono. Além do exposto cumpre
notar que na vila de Itaparica são os réus conservados em duas abóbadas
úmidas e escuras da fortaleza; em Caravelas em uma pequena sala pouco
arejada; em Belmonte serve de prisão uma casa particular mal construída; na
Feira de Santana dois quartos sob a vigilância de guardas; em Macaúbas e

565
A.N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹406. Secretária de Polícia, 12 de agosto de 1841. Do chefe de polícia, João
Joaquim da Silva, para o presidente da Província, Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos.
566
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juízes
– Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Jacobina, 11 de fevereiro de 1851. José Antonio Viana, Juiz de direito de
jacobina, para o presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins.
567
A. N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹401. Secretaria da polícia da Bahia, 06 de setembro de 1844. João Joaquim
da Silva, chefe de polícia, para o ministro da justiça.
568
Apesar de em 1844 ser considerada uma boa cadeia, em 1831, os vereadores de Cachoeira respondiam ao
presidente da província que não receberiam os presos que seriam enviados para lá, porque a cadeia estava em
completo estado de degradação. Ver: APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Corresp. Câmara de
vereadores Cachoeira. Maço 1269, 13 de outubro de 1831. De Luiz Ferreira (?), Manoel Ferráz, Bernardo
Miguel (?) Mineiro, Joaquim José Bacelar, Francisco da Silveira e Souza, José Bernardino de Magalhães,
Anselmo Dias para o Presidente da Província Honorato José de Barros Paim. Cachoeira.
569
A do Urubu recentemente reformada.
202

Tucano faz-se uso de tronco; e em Itapicurú são detidos os criminosos no


quartel das praças policiais570.

Num total de 27 cadeias comentadas, cinco são consideradas em boas condições para
os presos e para a segurança pública. Por isso faz-se notar que a “polícia perde algum tanto de
sua força atenta a convicção dos criminosos relativamente a facilidade de se evadirem”571, isto
é, não podia sair à procura de “criminosos” por não dispor de quem guardasse a cadeia. A
análise em sentido contrário parece óbvia: quando saíam em buscas deixavam o espaço aberto
para as fugas. No caso do relato podemos ver que algumas cadeias eram classificadas como
abandonadas. Infelizmente não podemos saber se isso implicava em ausência de réus e presos
ou se isso significava que eles ali estavam sem vigilância nem assistência do poder do Estado.
Como estamos destacando, essas cadeias abandonadas eram as do centro da província.
A alternativa era, portanto, a de levar os presos para essas cinco prisões consideradas
boas. Mas em meio aos caminhos de muitas léguas de distância, ocorriam, como relatamos em
outra oportunidade, muitas fugas desses presos, algumas em consórcio com os guardas
responsáveis para levá-los à prisão. No meio do caminho, o valor pago para levar o preso
podia se esgotar; podia acontecer de o destacamento se deparar com uma enchente e não
conseguir fazer o trajeto, esgotando suas provisões, ser objeto de roubo de armas e fardas ou
simplesmente relaxar em algum momento da longa viagem e o preso escapulir de seu poder.
Se mesmo nas cadeias consideradas de boa qualidade, como a de Jacobina, as fugas
ainda aconteciam com certa frequência, como vemos no mesmo ano do relatório em que
fugiram seis presos dela572, podemos imaginar a situação em cadeias consideradas propícias à
fuga pelos presos, como as do centro da província. Podemos ter algumas informações sobre
elas através de um relato específico que as declarava não aptas a receber preso nenhum e que
por esse motivo o tempo todo as fazia remeter criminosos para a capital, lotando as prisões de
Salvador. Ademais, o documento fala das diversas fugas que se deram nelas e que, apesar dos

570
Idem.
571
Idem.
572
A. N. IJ¹404. Documento incompleto. Sem local. Sem data. Em outro documento, datado de 8 anos antes, há
um relato de uma fuga de prisioneiros da enxovia da cadeia de Jacobina. Os presos trabalhavam na enxovia com
um pouco de barulho, o que abafou o som provocado pelas escavações que vinha fazendo há um tempo. O
detalhe é que o buraco foi feito no mesmo lugar onde outros já haviam feito aberturas para escapar. Manuscritos
APB. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juízes – Jacobina.
1828 –1885. Maço 2430. Jacobina.
203

dez contos de réis oferecidos pela Assembléia provincial para os seus consertos, essa quantia
não seria suficiente573.
As cadeias pareciam ser uma demonstração notória da fraqueza das autoridades de
determinadas localidades. Não raramente, quando um grupo armado de “facinorosos”
adentrava alguma vila, uma das primeiras ações tomadas era o ataque direto às cadeias e a
libertação de presos ou apenas a depredação pura e simples dela. Uma cidade sem cadeia era
uma espécie de garantia de que a vida de um preso não estava decidida naquela detenção
sofrida por ele. As autoridades locais teriam que dar um jeito de mantê-lo sob sua posse, o
que, normalmente, não era nada fácil, não apenas pela pouca colaboração oferecida pelas
guardas, mas também porque livrar o preso que ia em direção a outra cadeia pelas estradas e
picadas do sertão tornava a tarefa ainda mais fácil para os grupos armados. A ausência de uma
cadeia ou a existência de uma cadeia que não garantisse a prisão do sujeito era um trunfo a
mais para o “potentado” conseguir alistar em suas fileiras homens para lutarem ao seu lado,
afinal, sem cadeias, as possibilidades restantes eram as de morrer em batalha ou de seguir uma
disciplina rígida como recruta forçado. A prisão era uma probabilidade a menos na trajetória
da carreira. A certeza do não aprisionamento era o que fazia várias autoridades temerem por
suas vidas e até mesmo se mudarem do local do seu exercício.
Desse modo, estamos aqui flertando com a noção de E. P Thompson574 de um ritual
teatral de dominação por parte das ações das classes senhoriais, e do contrateatro – que é
também um ritual teatral – que fazia a plebe pelas ações das turbas, continuamente lembrando
os ricos e poderosos de suas obrigações para com os pobres, pequenos e fracos. Thompson
sugere que a gentry, no século XVIII inglês, era uma nobreza sem tradição aristocrática, que
adquiriu poder pela via de uma economia já amplamente monetarizada, em um contexto de
transição entre as antigas relações sociais de produção servis e as novas relações fundadas no
trabalho livre. Ela fazia uso de rituais demasiadamente ensaiados que visavam delimitar
lugares sociais, posições, respeito e deferência em relação à plebe, mantendo um controle
simulado por uma proximidade calorosa. Essa proximidade era, para ele, uma tentativa de
controle e vigilância da vida dos trabalhadores pobres. Mas o teatro da plebe também se fazia
valer através da “linguagem do simbolismo da multidão”: “queimas de efígies, o

573
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Maço 5689. Secretaria de polícia da Bahia, 10 de
novembro de 1849. Do conselheiro desembargador, para ministro da justiça.
574
THOMSON, E. P. Patrícios e Plebeus. In: ____. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 50-79. Sobre esse tema do teatro do poder e da
dominação, forma ritualizada daquilo que ele definiu como “hegemonia cultural”, voltaremos a tratar ainda em
outro capítulo.
204

enforcamento de uma bota no patíbulo (...) o destelhamento de uma casa (...) tinha um
575
significado quase ritualístico” . Desse modo, em uma sociedade (a do século XIX, no pós-
independência no Brasil) na qual proprietários ganhavam e perdiam postos armados e
policiais, através de eleições intensamente armadas, nos parece que os ataques às cadeias
eram uma forma de ataque direto a essas autoridades controladoras da justiça e da polícia.
Atacavam uma instituição odiosa, onde os recrutados ficavam esperando a hora de irem para
Salvador para adentrar à força no exército. Ao mesmo tempo, lembravam as obrigações
senhoriais de acoitar o foragido e os fora da lei nas fazendas, revigorando uma tradição entre
grupos sociais subalternos e classes senhoriais sempre vista como um ato dos fazendeiros
benevolentes ou valentes.
Pensamos no acoitamento como uma exigência também dos grupos sociais
subalternos, através de uma clara mensagem de reciprocidade para o bom estabelecimento do
mando, afinal, figuras das classes senhoriais em contenda com o poder privado ou de Estado
praticavam e incentivavam ações como essa. O quebra-quebra das cadeias era, a nosso ver, a
deslegitimação do poder de Estado em regulamentar os costumes estabelecidos da justiça,
uma reação à crescente intervenção dos poderes centrais na organização dos cargos de
repressão, prisão e polícia submetidos ao Estado.
Por conta do arrombamento da enxovia da Cadeia do Rio de Contas, Herculano
Pereira da Cunha, Delegado desta vila, relatou a fuga de alguns presos no ano de 1844. Apesar
de não dizer o número exato de fugitivos, escreveu ele que alguns dos foragidos pretendiam
voltar para o Rio de Janeiro, de onde alguns deles diziam ter naturalidade. Teria fugido, junto
com eles, um homem pardo de nome Marcelino que se dizia liberto. Segundo as informações
colhidas, fugiriam para o Rio pela Província de Minas Gerais em direção à Serra do Grão
Major. O delegado atribuiu a fuga ao desleixo da Guarda Nacional e à repugnância que têm os
subordinados de seus comandantes, além do corpo mole que estes faziam aos pedidos das
autoridades locais. Na ocasião da fuga eram quatro os guardas policiais responsáveis em
cuidar de duas cadeias com 26 presos.
No documento o delegado lamentava o fato de que a vida do magistrado era mais
perigosa no centro da província, já que ali não poderia se contar com a menor garantia de sua
integridade física, pois mesmo homens poderosos acoitavam em suas fazendas os que vivem à
margem das leis e todo tipo de fugitivo, inclusive os das cadeias 576.

575
Idem, p. 65.
576
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹400. Rio de Contas, 27 de novembro de 1844, do delegado Herculano
Antônio Pereira da Cunha para o chefe de polícia João Joaquim da Silva.
205

Em 1845, a cadeia de Juazeiro foi destacada como preocupação da presidência da


província, exatamente por ser esta vila um dos pontos de fuga, pelo Rio São Francisco, das
vilas do centro da província. Essa cadeia foi considerada “muito ruim para as necessidades
que comportam o fato de ser fronteira com outras províncias e ter um dos maiores
577
escoadouros do Rio São Francisco” . Em Inhambupe, parte da região central, apesar dos
investimentos feitos desde 1839, não havia cadeia pronta. Em Vila Nova da Rainha a cadeia
parecia estar pronta, e o delegado ressaltou que, pelo fato de sua localização no caminho para
Juazeiro, ela deveria ser da maior serventia.
Quatro anos depois, dizia outro relatório que as “cadeias da província em geral estão
em péssimo estado: em algumas vilas não existem senão uma pequena casa de detenção sem
segurança alguma, de forma que a fuga dos criminosos sucede-se imediatamente após a
prisão, como se essas duas coisas fossem inseparáveis em si”578.
Em outros lugares nenhuma casa existia, nem as pequenas e fracas. O governo
recebia muitos pedidos de construção e consertos de cadeias, mas só tinha recursos para
efetivar reparos suficientes “para evitar a repetida evasão de criminosos” 579.
O problema das cadeias era tão simbólico da representação da ordem e da autoridade
que alguns chegavam a afirmar, em tom grave, que o problema da segurança pública, da vida
e da propriedade dos seus moradores (no caso Vila Nova da Rainha) seria resolvido quando a
reforma da cadeia se findasse e quando fosse enviado para ela um contingente suficiente de
força da capital, pois os que estavam ali policiando eram “uma burla, pois que só se encontra
para ser engajada gente da pior condição, malvada e cúmplice de imensos crimes” 580. No
documento, dizia o juiz de direito interino de Jacobina, José Antônio da Rocha, que era
continuamente obrigado a remeter pessoas para as cadeias da capital, mesmo as que
aguardavam apelação ou mesmo sem serem julgadas, pois, devido à fraqueza da cadeia e à
falta de vigilância, alguns “parentes deles [criminosos] iriam arrombar a prisão e dar fuga a
todos”581.
Não se tratava apenas de dar fuga aos seus, era necessário dar fuga a todos, pois isto,
além de manter as autoridades policiais ocupadas, desmoralizava a cadeia e o símbolo de

577
Relatório presidente da Província 1848 (Bahia). In: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u002/000003.html, site do
Center for Research Libraries. Global Resources Networks. Acessado em 22/11/2013, p. 22.
578
Idem.
579
Idem.
580
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juízes
– Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Jacobina. 21 de outubro de 1851. José Antonio Rocha Viana, Juiz de direito
interino de jacobina, para o presidente da Província, Francisco Gonçalves Martins.
581
Idem.
206

poder que se pretendia dar a ela. Uma cadeia sem presos, um território sem controle policial,
uma zona livre para ações armadas de diversos sujeitos.
Ao observar as cadeias enquanto um espaço coletivo em que diversas pessoas, não
poucas vezes, fugiam, podemos vê-las também como um local possível e aberto para a ação
de caráter coletivo. Podemos dizer que nesse ínterim entre ser preso e fugir, solidariedades
podiam se constituir – óbvio que rixas também. Parece ser o que aconteceu algumas vezes,
como no caso já aludido dos fugitivos que iam em direção ao Rio de Janeiro e levaram
consigo um homem pardo. O próprio ato de fazer um buraco, dobrar ou serrar uma grade, não
delatar os companheiros de cela, mostra que algumas solidariedades se constituíam. Em
alguns casos é possível pensar que juntos eram mais eficientes em fugir e seriam mais bem
sucedidos contra a repressão, e que sozinhos a margem de sucesso poderia ser bem
prejudicada.
Ao fugir em grupo, uma “comunidade de fugitivos” imediatamente se configurava,
ainda que pudesse ser desfeita tão rapidamente quanto se formou. Podemos tornar essa
suposição mais concreta quando analisamos o relato de alguns homens que foram capturados
numa fuga da cadeia do Barbalho em Salvador, de onde no total fugiram 39 homens 582.
Dois dos capturados afirmaram que a maioria dos homens intencionava fugir por
Itapuã – tradicional reduto de quilombos e roteiro de fuga de vários escravizados, palco
também de alguns levantes escravos no início do século XIX 583 – em busca das vilas do norte
da província, rumo à “beira do Rio de São Francisco” (podemos dizer que algumas delas são
partes da famosa região central da Bahia). As autoridades rapidamente expediram cartas “para
pessoas influentes que podem por [em] ação indivíduos das mesmas paragens, práticos nas
estradas e matos”, além de corpos de polícia para todas as localidades citadas. Há entre os
presos maior presença de pessoas oriundas de Santo Amaro e da região dos sertões do São
Francisco584.

582
A. N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹ 404. Secretaria de polícia; cadeia do barbalho; Salvador; secretaria de
polícia. 10 de junho de 1850. Do chefe de polícia para vice-governador da província. Manoel José Espólito, Juiz
de Direito, para presidente da província.
583
Ver REIS, J. J. A tradição rebelde: revoltas escravas na Bahia portuguesa, 1807-1821. In: ____. Rebelião
Escrava no Brasil A história do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003;
SCHWARTZ, Stuart B. Tapanhuns, Negros da Terra e Curibocas: causas comuns e confrontos entre negros e
indígenas. In: Afroásia. Salvador, nº29-30, p. 13-40, http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n29_30_p13.pdf.
Acesso em 14 de Dezembro. 2015.
584
A. N. Ministério da Justiça, AI. IJ¹404. Secretaria de policia; cadeia do barbalho; Salvador; secretaria de
polícia. 10 de junho de 1850. Do chefe de polícia para vice-governador da província. Manoel José Espólito, Juiz
de Direito, para presidente da província.
207

Em outro documento585, sobre o mesmo assunto, há um relatório sobre os


procedimentos para reaver os presos. Aí podemos ver que algumas das ações das autoridades
gerararam informações sobre os foragidos. Estariam em embarcações, prontos para viajar para
fora de Salvador. Um dos procedimentos repressivos foi o de revistar todas as embarcações,
postar corpos de polícia em várias estradas para as vilas do norte e do sul. Em um terceiro
documento586, afirmava-se que era conhecida a existência de homens acoitados na casa de um
potentado no sertão.
Os roteiros de fuga não são aleatórios: Rio de São Francisco, norte e centro da
província. Uma parte dos fugitivos buscou distanciar-se da região de Salvador e Recôncavo,
mais bem patrulhadas, mas procurou lugares em que sua condição de fora da lei pudesse lhe
dar alguma margem de ação. As regiões do São Francisco e do norte da província eram
aquelas em que as ações de mandatários locais permitiam abrigo e recrutamento em milícias
particulares ou oficiosas para homens dispostos a pegar em armas. Excelente acoitamento
para foragidos da polícia. Esses potentados, ao redor de si, constituíam “comunidades de
fugitivos”. Mesmo que não permanecessem sob a batuta de um grande fazendeiro, poderiam
viver de suas próprias ações, conquanto não incomodassem algum mandatário do território, e,
quando a polícia os incomodasse, podiam correr para as fazendas desses homens, algumas
vezes – apenas algumas vezes – tornando-se seus jagunços, verdadeiros valentões tão falados
na historiografia.
Essas comunidades de acoitados e de foragidos eram racialmente variadas, múltiplas
na sua condição e culturalmente diversas, porque assim também o eram as prisões. A partir de
uma evasão, ficamos sabendo de uma fuga conjunta de um desertor, um assassino e nove
escravos, que estavam esperando litígios. Não sabemos quais seus paradeiros, mas isso nos
permite voltar à questão sobre quem são os personagens dessas comunidades armadas.

585
Idem. 08 de junho de 1850. Do secretario de policia para o vice-presidente da província, Álvaro Moncôrvo de
Tibério e Silva
586
Idem. 08 de agosto de 1850.
208

Parte 4
“A horda heterogênea” e o “deslocamento de autoridade”
209

Capítulo 10

“Quilombos de ladrões” e outros “covis de criminosos”

Entretanto, como o leitor até aqui já deve ter percebido, a horda era multiétnica e
multifacetada, embora apareçam mais referências a uma população masculina, de cor,
especialmente parda, jovem, com idades que preponderantemente variavam entre 16 e 40 anos
e solteira. Trabalhavam em profissões diversas, mas os lavradores estão em destaque, assim
como um conjunto de pequenos ofícios artesanais (sapateiros, ferreiros, entre outros). Suas
regiões de nascimento e moradias eram fluídas, mas em alguns documentos é possível notar a
presença marcante de homens das regiões onde abundavam as plantações de cana de açúcar,
como Santo Amaro, e criminosos oriundos das vilas e distritos dos sertões do Rio São
Francisco587. Trata-se, em geral, de pessoas de extrema mobilidade territorial, tal qual o grupo
social de que são originários, de homens livres e pobres das comarcas rurais. Os objetos mais
furtados eram o gado e os cavalos, mas notamos a incidência forte de roubos de escravos,
além de arrombamentos de casas, roubos588 de mercadorias e dinheiro nas estradas. Mesmo
com dados não quantificados é possível apreender um pouco sobre essa população de

587
Chegamos a estas constatações com base em documentos diversos de informes sobre prisões e fugas de
presos, recrutamento forçados e cadeias. As informações em cada documento são bem diferentes, algumas
descrevem apenas o crime, outras são mais detalhadas e revelam até hábitos dos “criminosos”. Os documentos
foram: A.N. Série Justiça. Fundo IJ¹ 399. Feira de Santana, 26 de dezembro de 1839. Mapa de presos e julgados
na Vila de Feira de Santana. Esse documento informa cor, profissão, estado civil e idade; A.N. Série justiça. IJ1
706. Salvador, 10 de fevereiro de 1827. Do escrivão da ouvidoria geral dos crimes da relação da cidade da Bahia,
Herculano Pereira da Cunha. Relação dos presos recolhidos às cadeias da relação da cidade de Salvador nos anos
de 1823, 24 e 25. Lista dos que foram acusados, as sentenças, se inocentados ou pena cumprida. Foram 341
presos listados. Desses trabalhamos basicamente com os crimes relacionados a furtos, roubos, quadrilhas, armas
proibidas e arrombamentos; A.N. Série Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 401. 06 de junho de 1845, Secretaria
de polícia. O documento trata de uma sequência de documentos sobre uma fuga de presos em salvador de, ao
todo, 31 presos. Segue nesse documento uma lista com descrição física de presos e localidades de onde eram
procedentes; A.N. Série ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 404. Secretaria de policia; cadeia do barbalho;
Salvador; secretaria de polícia. 10 de junho de 1850/ idem/ 07 de junho de 1850/ 08 de junho de 1850/ 08 de
agosto de 1850. Do chefe de polícia para vice-presidente da província/ do secretario de policia para o vice-
presidente da província, Alvaro Moncôrvo de Tibério e Silva; idem. Documento trata de evasão de presos na
cadeia do barbalho; APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça.
Correspondência de Juizes – Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. 1836, Jacobina. Do Juiz de direito Angelo
Moniz Ferraz/ Idem. Mapa de crimes 1836 de Jacobina. Nesse documento vem relato apenas os crimes
praticados; APB. Seção, Governo da província- Judiciário. Juízes de Cachoeira. 23 de maio de 1841, Cachoeira.
Maço 2274. De Albino Augusto de Novais e Albuquerque, juiz de direito, para Presidente da província Paulo
José de Mello. Descreve estado civil, cor, apelidos de alguns ladrões; APB. Manuscritos Seção Colonial e
provincial: Governo da província. Série justiça – Rio de Contas. 1841-1846. Maço 2558. 03 de abril de 1846 / 01
de abril de 1846, Rio de Contas/ idem. De Herculano Antonio Pereira da Cunha, juiz municipal e de direito
interino, para Francisco Soares Souza de D’Andrea, presidente da província / De Bento Mendes Oliva, delegado
suplente, para presidente da província.
588
Até o Código Criminal de 1831 não havia distinções entre roubo e furto. A partir de então o furto foi
caracterizado como aquele tipo de supressão da propriedade alheia sem constrangimento físico e direto ou lesão
para a vítima, já o roubo é aquele em que a propriedade suprimida é feita através de constrangimentos físicos e
ou morais, como ameaças e tomada do objeto a contragosto do usurpado.
210

acusados e criminosos julgados, além de compreender quão importantes foram suas ações
para legitimar ou deslegitimar o poder e as autoridades imperiais locais num contexto de
construção da licitude de um Estado que se fazia forte através do enraizamento de
determinada malha institucional de poder bélico, civil, militar e das leis, necessária à
construção do Estado Nacional.
Como já discutimos em outro momento deste texto, a presença de tal hidra de
facinorosos repelia a ideia de ordem, paz, tranquilidade e prosperidade idealizada por
governantes e proprietários. Estes, em suas correspondências, deixavam claro que o país
precisava de gente trabalhadora, politicamente obediente e pacífica, disposta à luta patriótica e
a sacrifícios em prol da lavoura e dos homens de bens. Pretendiam construir um país para
determinados “homens livres” à custa de sua liberdade política, civil e militar e do suor
extenuante e exaustivo dos seus trabalhos. Construir uma nação independente com homens
dependentes.
Mas os propósitos de muitos homens e mulheres eram outros. Iam exatamente no
contrafluxo dessa ideia de país. Suas ações paralisavam o fluxo de pessoas e comércios entre
vilas, impedia a correspondência pública e política de circular, impedia eleições, incitava
diretamente e indiretamente as desobediências, desmonopolizavam as armas de combate 589 e
se mantinham homens livres, com toda a precariedade que esse termo já postulava no Brasil
do século XIX.
O tipo de documentação consultada não permitiu, e nem era nosso interesse,
debruçarmo-nos por completo na experiência, ou agência, como alguns preferem chamar, dos
sujeitos. A ideia aqui é tentar entender que tipo de incômodo social esses agrupamentos e
indivíduos trouxeram para os projetos de estabilização dos poderes e analisar o tratamento
dispensado a eles por parte daqueles que tinham as funções de reproduzir o sistema social de
produção e comercialização do Brasil. Em última instância, refletir sobre as possibilidades de
esses crimes constituírem parte de uma tradição maior de protesto de grupos subalternizados
de homens e mulheres livres e escravizados de diversas cores e hierarquias.
Quando, numa estradinha, um tiro era dado em um soldado que passava
acompanhado por mais dois colegas em revistas aos subúrbios de uma vila, certamente isto

589
No Brasil do século XIX, especialmente longe das capitais, a generalização de armas era de certa forma
comum, especialmente aquelas voltadas para caça. As classes senhoriais também detinham o controle de amplo
armamento, mas como já argumentamos, elas os tinham através de uma burocracia jurídica e militar que
controlavam por meio de eleições, indicações e práticas clientelísticas. Desse modo estavam diretamente
vinculadas ao Estado Nação em vias de fazer-se, o que nos permite ainda afirmar o monopólio das armas nas
mãos do Estado.
211

obrigava algum juiz a, apressadamente ou morosamente, registrar o ocorrido para seus


superiores, tentando preveni-los das inúmeras possibilidades do caso: vingança? Salteadores?
Quantos seriam? A verdade é que em grande quantidade de vezes esses crimes permaneciam
ocultos. O inimigo do sossego poderia estar em vários lugares, invisível, inesperado, maior do
que se pensava. Esse podia até ser o prelúdio de uma série de outros crimes, de dias inteiros
de falta de sossego para os moradores590. Podia se tratar de figuras de outras vilas e até
mesmo de outras províncias, o que despertava sempre o temor em torno dos “forasteiros”. Em
alguns casos, os bandidos eram muito conhecidos das autoridades. Eram vizinhos das vilas,
homens que viviam sob a vigilância cotidiana das autoridades, mesmo a vigilância
paternalista que os protegia em determinadas circunstâncias, quando não eram fugitivos das
autoridades civis e dos recrutamentos impostos pelas mesmas.
Os dados dispostos são bastante dispersos e assimétricos, a maior parte das fontes
consultadas para traçar o perfil desses criminosos são rol de presos e algumas descrições
emitidas por juízes, delegados e subdelegados para as diversas autoridades provinciais e
nacionais. Estes relatos são cheios de preconceitos quanto aos modos de vida dessas
populações criminalizadas e criminosas, sobretudo em relação às suas famílias e seus ofícios.
Como Thompson afirmou, “o mesmo homem que faz referência ao fidalgo de dia – e que
entra na história como exemplo de deferência – pode à noite matar as suas ovelhas, roubar os
seus faisões ou envenenar os seus cães” 591. O cometimento de um crime não excluía,
necessariamente, os homens e mulheres do mundo do trabalho. Mas, de modo geral, esses
homens passavam a um lugar comum típico para legitimar sua repressão preventiva ou
recrutamento e aprisionamento. São caracterizados pelas autoridades imperiais como
selvagens, sem honra, imprestáveis, dispensando qualquer tipo de descrição mais
pormenorizada das suas vidas. Mas em alguns momentos essas descrições existiram,
especialmente em listas de presos, como já dito. Depurando uma coisa ou outra é possível
traçar linhas gerais para a compreensão do perfil desses homens.
Suas armas eram bem diversas. Podiam usar clavinotes, facas de ponta, terços, arco e
flecha592 e lanças, além de materiais improvisados como paus e cacetes. A posse das “armas
proibidas” foi uma das formas de visualização na documentação, e das próprias autoridades

590
Manuscritos APB. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1840-1846. Maço 2431.Jacobina, 01 de fevereiro de 1840. De Justiniano Cézar, juiz de
Jacobina, para presidente da província.
591
THOMPSON, E. P... Op. cit; 1988, p. 64
592
É o caso de Apolinário, escravo, encontrado com “arco e setas” em uma casa, condenado a cem açoites e
devolvido ao seu senhor, e de Rufino, escravo, que parece ter sido absolvido pelo primeiro assumir a
responsabilidade pela arma.
212

do período, de achar os salteadores e criminosos. O porte delas ocasionou a prisão de alguns


“criminosos” de determinadas regiões, pois a sua posse chamava muita atenção dos
moradores e autoridades. Este parece ter sido o motivo para que prendessem Joaquim José
Gomes, além de Antonio Domingues Pereira, “por achada de armas proibidas” 593, sendo que,
no caso do segundo, as armas estavam escondidas em sua própria casa. João Gamaxo, ao ser
preso por furto, também se encontrava com tais armas. Albino, cabra, e Joaquim Alvarez,
foram presos por furtos e “achada de duas pistolas” 594.
Aqueles que usavam armas de fogo, como as clavinas e os trabucos, tinham que
obter de todo modo pólvora e frequentemente eram presos durante essas tentativas, uma vez
que essas pólvoras não eram facilmente compradas, pois havia razoável fiscalização
governamental em torno delas, sendo mais facilmente obtidas no assalto a fazendas que
guardavam algum arsenal ou atacando algumas vezes pequenas tropas ou os trens que
levavam esse material solicitado por autoridades militares e judiciais. Em determinadas
situações, a pólvora chegava através de acordo com algum fazendeiro ou da compra do
produto com comerciantes que, ocasionalmente, também sofriam perseguições por parte da
polícia. Cercar o acesso de alguns “bandos” à pólvora foi uma das formas de combatê-los.
Joaquim José Marques, por exemplo, foi condenado a trinta dias de prisão, com o
“prendimento do gênero para a fazenda nacional”, e ao pagamento da multa de 20 mil réis por
“extravio de pólvora”595.
As feiras eram lugares propícios para que esses homens conseguissem fazer seus
negócios; era um bom lugar para comprar, trocar e vender produtos lícitos e ilícitos, como a
pólvora. O ir e vir nas estradas nos dias de feira facilitava consideravelmente a chance de não
serem vistos em meio à multidão de vaqueiros, cavalos, bois, mercadorias, caixas, sacos e
gente de todas as cores, muitos deles portando armas inevitáveis para sua defesa nas estradas.
Na bibliografia sobre o banditismo, quilombolas e fugas escravas, fala-se muito no
papel que as tabernas cumprem. Não sei se por uma diferença de linguagem, ou se por uma
tradição nordestina, oriunda das grandes feiras de bois dos grandes currais do São Francisco,
Feira de Santana e da feira de Capuame, as feiras parecem cumprir esse local de ponto de
encontro para as trocas comerciais e de informações que as tabernas cumpriram no eixo do
atual sudeste. Isso parecia causar muita apreensão nas autoridades, pois, como o próprio

593
594
A.N. Série justiça. IJ1 706. Salvador, 10 de fevereiro de 1827. Do escrivão da ouvidoria geral dos crimes da
relação da cidade da Bahia, Herculano Pereira da Cunha. Relação dos presos recolhidos às cadeias da relação da
cidade de Salvador nos anos de 1823, 24 e 25.
595
Idem.
213

596
Arnizáu já destacava, junto com essa leva de gente que se dirigia até ela, muitos
criminosos e quilombolas seguiam o seu fluxo.
Em 1830, “homens malvados e ladrões, perturbadores do sossego público, que
açoitados em diferentes lugares, ou casas de pessoas livres, ainda mesmo em senzalas de
escravos de senhores mau administradores (...) faziam roubos, insultos e assassínios” em São
Gonçalo dos Campos597. Além da população de livres e escravos nessa vila, agravado pela
ausência quase que completa de destacamento, lá ocorria uma feira aos sábados frequentada
por cerca de 1500 a 2000 pessoas. Para o autor do documento, era certo que iria aparecer
“(como tem acontecido) toda a sorte de crimes”598 sem que ele pudesse dar providencia
alguma. O destacamento provavelmente já não era suficiente para a fiscalização dos
problemas ordinários da localidade, e com o inchaço provocado pela presença de tantos
forasteiros a situação se agravava.
Nove anos depois desse documento, a feira da vila de São Gonçalo ainda era um
problema para as autoridades por conta dos crimes que ela provocava e pelos criminosos que
por ali agiam. A solução para se proteger pelas estradas até chegar à vila, se você não era um
dos criminosos, era todo o povo se dirigir até a feira “de bacamarte, punhal e sem respeito
algum às autoridades”599 que tentavam impedir a livre circulação daquelas armas. “Bandidos”,
comerciantes, feirantes e moradores, sabiam que nesse período, era necessário se armar.
Ainda mais que essas feiras estavam acontecendo após os conflitos da Sabinada, quando São
Gonçalo se tornou roteiro dos desertores e dos “anarquistas”600 que romperam o cerco para a
Feira de Santana.
Não tão distante dali, saindo do recôncavo sul, os fazendeiros e negociantes de
Nazaré, dois anos antes, em 1837, pediam aumento da força policial em decorrência da feira
que se formava semanalmente na cidade. Seu argumento era bastante revelador do perfil dos
homens que incomodavam esses proprietários: “sendo ali uma das maiores feiras, onde por
isso concorre numeroso povo de diversas condições e temperamentos, cercados de engenhos

596
ARNIZÁU, José Joaquim Almeida de. Memória Topographica, histórica, comercial e política da Villa de
cachoeira da Província da Bahia. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1861.
597
APB. Manuscritos. Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889. Maço
2600. Fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos / fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos. 16 de julho de
1830. De João Pedreira de Couto, Juiz de Paz, para presidente da província. Capitulo
598
Idem.
599
Manuscritos APB. Seção Colonial e provincial: Governo da Província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. 11 de setembro de 1839, São Gonçalo dos Campos. Do Juiz de Paz para presidente da Província.
600
Idem.
214

com bastante escravatura, [que davam] passagem para o mar e para o sertão por diversos
portos e estradas”601, era necessário patrulhá-los.
O perigo eminente da confraternização dessas gentes de “temperamento e condições”
diferenciadas com os escravizados se agravava com a possibilidade de fuga tanto dos
bandidos quanto dos escravos devido à facilidade estratégica e territorial da vila. O
documento não seria o primeiro a fazer essa revelação sobre o medo do contato entre
bandidos, ou sujeitos criminalizados preventivamente, e escravos nos dias de feira. O mesmo
documento, anteriormente citado, sobre a feira de São Gonçalo em 1830, destaca o pavor e o
trabalho que vinha tendo o destacamento de polícia para frear as ações em conjunto de ambos
os grupos sociais (escravos e bandidos) que, juntos, formavam uma “horda heterogênea”
pavorosa aos olhos dos homens de bens. O documento destaca o estado de “terror” contínuo
que, de “comum acordo com os escravos fugitivos, e mesmo com alguns dos de casa”, era
implantado ao “fazerem roubos, insultos e assassínios”602. Na correspondência, o juiz
destacou o caso de uma fazenda pertencente a um homem identificado como Correa, que tinha
mais de 80 anos, sem filhos, que não tinha feitor e que possuía mais de 300 escravos, não
conseguindo impor a ordem a estes, “que vivem continuadamente soltos e carregados de
armas proibidas a roubarem, insultarem e assassinarem”603. Num outro documento604, que
respondia uma carta enviada para o presidente da província pelo senhor Correa, o juiz
afirmava que agia constantemente naquela fazenda para tirar dela escravos de outras pessoas
que residiam ali há meses e, sobretudo, para dar buscas a ladrões que sabiam ali ser
acoitamento seguro, além de capturar cavalos furtados que ficavam nos pastos da fazenda
daquele senhor.
Para o subdelegado de um distrito de Abrantes, as feiras, especialmente a daquela
vila, atraíam “uma grande parte [de pessoas] desmoralizadas e perversas”605. Na perspectiva
dessas autoridades, as feiras funcionavam como um acoitamento de desordeiros, de pessoas
que viviam de trabalhos e pequenas colheitas esporádicas, roceiros negros, por vezes

601
APB. Manuscritos. Colonial provincial. Série: Policia. Maço 3114. Nazaré, 22 de maio de 1837. Abaixo
assinado.
602
APB. Manuscritos. Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889. Maço
2600. Fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos / fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos. 16 de julho de
1830. De João Pedreira de Couto, Juiz de Paz, para presidente da província.
603
Idem.
604
APB. Manuscritos. Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889. Maço
2600. Fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos / fazenda Murici de São Gonçalo dos Campos. 14 de
setembro de 1830. De João Pedreira de Couto, Juiz de Paz, para presidente da província.
605
APB. Manuscritos Governo da província. Seção Colonial e provincial: polícia-subdelegados. 1842-1859.
Maço 3004. Engenho Timbó, 12 de maio de 1851. De Manuel João de Meireles, subdelegado do distrito da
freguesia do Catu, para presidente da província.
215

escravizados, vaqueiros, criminosos, dentre outros. Muitas posturas municipais que visavam
regulamentar o ir e vir dessas pessoas foram aprovadas nas localidades com o objetivo exato
de criminalizar e constranger certos tipos de intervenção nas vilas desses povos 606.
Mas outras situações podiam também aglomerar essa horda heterogênea. Uma delas
foi a extração de pedras preciosas na Chapada Diamantina, que concentrou indivíduos vindos
de todos os lugares para tentar a sorte como faiscadores ou como escravizados de alguém. Em
Lençóis, um boato de levante escravo foi movido “pela canalha que se compõe de criminosos
de todos os lugares”607, segundo os dizeres de um juiz municipal dessa localidade. Não foi
possível, por falta de outros documentos, saber o alcance dessa aliança, se é que configurava
de fato uma aliança, ou se era apenas um boato. Não sendo verdade, os criminosos que
pareciam atacar as estradas ganhavam tempo para uma fuga ou mesmo para deixar longe dos
seus calcanhares a repressão muito mais preocupada com um levante escravo numa região em
que o contingente de escravizados era numericamente grande.
É possível que essa aliança entre bandidos e escravizados seja um relato das relações
travadas entre cativos e “ladrões de escravos”. Como constatei no início deste capítulo, uma
das modalidades de crime que aparece com razoável frequência é a de roubos de escravos.
Sabemos, através dos historiadores da escravidão, que muito do que se considerava roubo de
escravos era uma negociação entre o ladrão e possíveis compradores e/ou revendedores. Essa
relação algumas vezes era fomentada ativamente pelos escravos que pretendiam trocar de
dono, se reaproximar de entes em outros territórios, entre outras motivações. No caso da
chapada Diamantina, as ações dos bandidos pareciam tratar de articulação bem montada, pois
os ataques dos bandidos eram, algumas vezes, acompanhados de incêndios no comércio, tática
que não era incomum aos escravos das Américas nas suas formas de lutas608.
Nas brechas da desorganização militar no pós-independência Miguel Ataíde e Seixas,
morador do Mapendipe, termo da vila de Valença, pedia para que as forças policiais
existentes tentassem evitar “os roubos de gado perpetrados por vários negros armados, que
606
Clovis Ramayana demonstra esse aspecto das cidades que possuem grandes feiras, explicando o caso de Feira
de Santana em fins do século XIX, em que uma série de posturas municipais visava regulamentar, disciplinar e
coibir a entrada do vaqueiro na cidade. Ele era considerado como parte de um grupo de pessoas oriundas dos
distritos e vilas circunvizinhas e rurais tidas como “classes perigosas”. RAMAIANA, Clovis Frederico. Do
Empório a Princesinha do Sertão. Utopias civilizadoras em Feira de Santana. Dissertação de Mestrado em
História. FFCH/UFBA. Salvador, S/D. E para um estudo sobre Posturas Municipais que regulamentavam a vida
social, especialmente dos escravos, nas vilas, ver: PIRES, Maria de Fátima Novaes. O Crime na cor. Escravos e
forros no alto sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Ana Blume; FAPESP, 2003, p. 49-59.
607
A.N. Série ministério da Justiça,AI, Fundo IJ¹ 402. Rio de Contas, 17 de janeiro de 1846. Herculano Antonio
Pereira da Cunha, Juiz Municipal e de Direito, Interino para o Presidente da província.
608
JAMES, C. L. R. Jacobinos Negros. São Paulo: Boitempo, 2007. NAVARRO, Imilcy Balboa. La Protesta
Rural em Cuba. Resistencia cotidiana, bandoleirismo y Revolucion (1878-1902). Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 2003, p. 21-53.
216

fugidos do poder de seus senhores causam grande dano ao suplicante e aos demais
senhores”609 daquele lugar. Pedia para que evitassem que eles, se “juntando em maior
número, seja ao depois muito difícil conseguir a sua dispersão e restituir o sossego e
tranquilidade aqueles moradores” 610.
O ajuntamento podia se dar entre os escravos e mesmo com outros grupos sociais
que também se aproveitavam da brecha da desordem para praticar ações armadas.
Uma relação entre aquilombados, bandidos e escravizados nas senzalas era
perfeitamente viável, especialmente quando estes se encontravam

levantados e fugitivos pelos matos, e até mesmo de conluio com parceiros de


algumas propriedades mal administradas, cujos pretos reunidos, como
andam, quase sempre com armas de fogo, trazem aos proprietários e mais
habitantes desse lugar no maior desassossego possível, fazendo roubos de
gados e cavalos e até mesmo insultos nas fazendas com maior arrojo que se
pode considerar611.

A resposta dada pela autoridade da vila de São Gonçalo para esse estado de coisas foi
a de que “não eram capitães do mato para prenderem negros fugitivos e ladrões”612. Em outra
circunstância e em outra vila, na de Abadia, o capitão comandante de um batalhão informou
ao juiz de paz que não poderia fazer muito para combater os “quilombos de ladrões” 613, pois a
sua disposição, diante de uma “Barra aberta”, permitia sempre “novidades” para o combate
aos criminosos. Essa linguagem que associa a escravidão negra ao banditismo parece fazer
algum sentido quando ficamos inteirados do caso de Antonio Africano, que, segundo João
Borges, Juiz de Paz de São Gonçalo, seria um dos principais agitadores e “sedutores da
escravatura” para adesão à rebelião de 1835 (Revolta dos Malês). Este negro “tem de não
querer se empregar em trabalho algum de que possa viver” e “envenenando a escravatura
tanto para a rebelião como para furtos”614. Obviamente, nada prova a conexão entre furto e
eminência da política insurrecional dos escravos, mas proporciona uma reflexão sobre a

609
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636-1. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 01
de março de 1823. Do secretário para o capitão mor da vila de Valença.
610
Idem.
611
Manuscritos APB. Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. São Gonçalo dos Campos, 20 de julho de 1829. Documento incompleto.
612
Idem.
613
Manuscritos APB. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6151. Vila de
Abadia, 17 de agosto de 1833. De José Bernardino Pereira, capitão comandante, para Francisco Borges da Silva,
Juiz de Paz.
614
Idem.
217

relação entre crime, escravidão e resistência ao regime. Um africano provavelmente fugitivo,


isto é, que se negou a viver submetido às formas mais diretas da escravidão e que
provavelmente se sustentava fora da senzala através de furtos, fazendo uso de sua liberdade
para seduzir outros escravos a seguir uma insurreição, podia ser, na mente dos proprietários,
uma clara mensagem para outros escravos de que o crime compensa. Ele estava se saindo tão
bem no seu “ofício” que encontrou tempo nas trocas de mercadorias roubadas, nas idas às
senzalas, nas feiras, para falar das possibilidades de uma liberdade que ele já tentava vivenciar
atacando a propriedade alheia, fugindo para outros matos, para outras vilas, comerciando o
fruto da sua expropriação aqui e acolá. A fuga, o crime escravo, podia ser a porta de entrada
para uma insurreição, afinal, esse escravizado já vivia como um pária, um proscrito em
relação à sociedade dos homens bons, mas mantinha ainda algum contato entre os seus. Não
há aqui nenhuma intenção de provar a teoria do bandido social, afinal não sabemos quem
eram as vítimas de Antônio, mas podemos relacionar o mesmo a uma vasta historiografia que
associa o crime a uma perspectiva de resistência social e, por que não, política.
Fica mais explícita a relação entre crimes e levantes dos grupos sociais subalternos
quando trabalhamos com o caso dos indígenas do diretório da vila de Pedra Branca. Em 1834,
um levante poderoso e de curta duração promovido pelos índios Kiriri Sapuyá aturdiu as
autoridades baianas. Por viverem numa entrada do Paraguaçu, rio que levava até as regiões de
mineração e, mais à frente, já no século XIX, pela expansão das plantações de fumo, os índios
viviam acossados pela contínua presença das fazendas de pecuária e, por esse motivo,
entravam constantemente em choque com os homens brancos. Ao mesmo tempo,
colaboravam com eles no combate a outros povos indígenas como guias das passagens do
Paraguaçu.
Segundo Maria Paraíso615, a expansão fumageira, a redução física dos indígenas, a
perda de importância da sua mão de obra por parte dos portugueses, que passaram a importar
cada vez mais força de trabalho africana nos anos iniciais do século XIX, e a sede por terras
para as diversas plantações alterou, em alguns casos aprofundando e em outros desfazendo,
aspectos da política dos Diretórios Indígenas, reformulando a incorporação subalterna dos
indígenas aos planos nacionais e, consequentemente, o modo de administração dos
aldeamentos, incluindo o de Pedra Branca. A expulsão dos jesuítas e a progressiva
secularização administrativa dos aldeamentos promovia um choque no padrão cultural de
615
PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os Kiriri Sapuyá de Pedra Branca. Centro e Estudos Baianos, vol. 112.
Salvador: CEB-UFBA. 1985, p. 27-29. Ver também REGO, André de Almeida. Cabilda de Facinorosos
Moradores (uma reflexão sobre a revolta dos Índios de pedra Branca de 1834). Programa de Pós Graduação em
História Social – UFBA. Mestrado, Salvador, 2009.
218

dominação em que estava assentada a relação dos índios com o mundo dos brancos. A
incorporação dos aldeamentos como uma freguesia ou vila, tal como as outras, aumentava o
contingente de membros de outras raças e culturas numa mesma unidade política. A lógica da
administração central, que buscava implantar/garantir civilização à força ou de forma pacífica
em substituição aos processos de catequese (não que estes tivessem acabado, mas se
enfraqueceram enquanto técnica de controle central), além da ideologia do trabalho livre e
assalariado, bem como a lógica capitalista de individualização da terra, empurravam os índios
para fora de suas roças e os inseria mais determinantemente nas relações de mando menos
paternalistas guiadas, naquele momento, pelos capuchinhos no lugar dos jesuítas e pelos
fazendeiros sob anuência do Estado Nacional. Era comum algum oficial militar ser o
administrador do aldeamento e geri-lo através de uma lógica disciplinar rígida aos “bárbaros”,
como era a visão hegemônica sobre os índios no período. As aldeias foram incentivadas a
serem cada vez mais proponentes do controle de proprietários de fazendas sobre os índios,
incluindo o retorno da ideologia política da guerra justa616.
Os Kiriris Sapuyás caminhavam a passos largos para sua expulsão definitiva do
resto de terras concedidas pelo império que lhes sobrava. Sua alimentação, sem acesso a terras
e à caça, estava cada vez mais precária. Para complementar sua dieta o ataque ao gado passou
a ser uma fonte possível e importante de alimentação.
Crime e criminalização foram as portas de entrada dos índios de Pedra Branca para
um levante em 1834, ao mesmo tempo que também foram o mote da repressão que se abateu
sobre eles. Ao escreverem para as autoridades provinciais, acusando o conluio entre
administradores locais para tomarem suas terras e submetê-los a trabalhos degradantes, essas
mesmas autoridades acusavam os índios de serem ladrões de gado e de atacar as pessoas nos
matos617. Seus roubos aos gados e as invasões de terras e fazendas reforçavam o discurso da
indolência e da vadiagem indígena, da selvageria e despreparo para a civilização.
O suposto despreparo para a civilização somava-se ao fato de que os índios de Pedra
Branca eram acusados de se associarem a outros homens também incapazes de convívio no
mundo civilizado. Em um dos primeiros documentos enviados ao presidente da província para

616
Sobre esse tema ver em destaque o livro de ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do
Brasil. Rio de Jeneiro: Editora FGV, 2010, especialmente cap. 6. Ver também SPOSITO, Fernanda.. Nem
cidadãoes, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de
São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.
617
PARAÍSO... Op. cit, 31.
219

relatar o levante, ele foi avisado de que os índios eram mais de 300 homens e mulheres
armados e que “entre eles se acham muitos que não são índios”618.
O estopim do conflito foi o dia das eleições para Juiz de Paz do termo, quando os
índios tentaram impedir a eleição de prosseguir, mas foram barrados por conta do excessivo
número de cidadãos presentes que os repeliram. Ao se retirarem da vila, “trataram de se
reunirem todos quantos andavam por fora, e criminosos, todos estão com eles praticando
como eles os maiores desatinos, roubando os mantimentos e gados e prometendo matarem” 619
a todos, especialmente os inspetores de quarteirões indígenas, que eram, como atesta o mesmo
documento, escolhidos entre os mais mansos e obedientes índios. O autor desse ofício
dirigido às autoridades maiores faz perceber uma espécie de frente de aliança indígena, que
vai de andarilhos e/ou trabalhadores e moradores que viviam de certa itinerância, pequenos
lavradores dos subúrbios da vila (os “que viviam por fora”) e criminosos. Em junho do
mesmo ano, outro documento ameaçava a população dos arredores da Vila de Pedra Branca
caso alguns deles, “iludidos por qualquer motivo”, protegessem aquela “cáfila de facciosos e
ladrões”, apelando para que não lhes dessem “pousada nem acolhimento” 620.
Os apelos eram uma explícita preocupação acerca de uma relação, pré-existente,
entre os grupos sociais que orbitavam o local e que deviam sofrer os mesmos ataques às suas
terras que os índios. Foi dessa maneira ao menos que em setembro de 1834, dentro da tradição
paternalista, foi imputada a agitação indígena à elementos exteriores a eles. Eram os pretextos
dos povos de São Miguel e de seus arredores que faziam os índios de “pretexto a uns [e] de
cegos instrumentos a outros”621.
Os conflitos que seguiram nas matas nos dias posteriores à expulsão dos índios
levantados agravava o quadro da aliança entre criminosos e indígenas. Era imperioso para os
poderes locais dispersá-los o quanto antes para “prevenir maiores males e mesmo
engrossarem em número, pois que são coadjuvados por réus de todos os crimes” 622, que

618
PARAÍSO... Op. cit, p. 30. APUD. José Antonio de Souza Castro, 20/05/1834.
619
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: série justiça. Correspondência recebida de juízes – Pedra
Branca. 1832-1889. Maço 2530. Pedra Branca, 23 de abril de 1834. De José Henrique dos..., Juiz de Paz, para
Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, presidente da Província.
620
PARAÍSO, op. cit., p. 32. APUD Castro, 13/06/1834.
621
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário. Revolta dos índios de Pedra Branca. 1834. Maço
2861. Pedra Branca, 13 de setembro de 1834. De Joaquim Pedro... , Capitão comandante do destacamento, para
Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, presidente da província. Esse pensamento está em sintonia com o
pensamento dominante da época de tratar o mestiço como não índio, visando a destituiçõa de algum tipo de
direito que poderia vir a ter, sobretudo os relativos às terras, a partir dessa identidade.
622
PARAÍSO, op. cit., p. 35. APUD. SANTOS, 23/06/1834. APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial:
Judiciário. Revolta dos índios de Pedra Branca. 1834. Maço 2861. Pedra Branca, 23 de junho de 1834. De José
Henrique dos Santos, Juiz de Paz.
220

“tiravam sempre partido dessas desordens” 623 “através das pilhagens”624. No texto de Paraíso,
ela afirma que nesses conflitos se envolveram “escravos fugitivos e pardos” “também
desprovidos de terra”. Poderiam ser estes escravizados e homens pobres relatados nos textos
como “malfeitores”, “réus de todos os crimes”, que colaboravam nos ataques com os índios
não só na época dos levantes, mas também nos roubos de gados às lavouras? Muito
provavelmente sim, afinal, escravos fugidos em grupos praticavam algumas vezes razias em
fazendas e individualmente também realizavam pequenos furtos. Escravizados se
aproveitavam das desordens entre grupos sociais diferentes, ou mesmo entre cisões do mesmo
grupo social, para tirar proveito para seus próprios planos. Este proveito poderia ser tanto a
ampliação da dimensão da liberdade nos dias turbulentos como os roubos e furtos com menor
intensidade repressiva, deslocadas, momentaneamente, para outros inimigos.Enquanto se
ocupavam da repressão aos índios de Pedra Branca, um capitão, um alferes e um segundo
tenente escreveram para o major comandante, Antonio da Silva Castro, que era difícil capturar
os índios já que a eles teriam se agregado, oferecendo proteção, “forças de diferentes
qualidades”625. O que seriam essas forças de diferentes qualidades? Sabemos que, na
linguagem da época, “qualidade” é um modo de designar a racialização do sujeito (preto,
africano, caboclo, mulato, negro, crioulo, cabra, etc.) ou sua condição social, de acordo com a
sua caracterização não branca (livre, alforriado, escravo). Se não for esta a implicação do
termo, sendo de fato uma maneira de descrever os tipos de organizações bélicas que
compunham a resistência, fica evidente a designação de heterogeneidade dos sujeitos que
compunham a unidade de luta contra o Estado nos matos da região de São Miguel e Ribeirão
de Pedra Branca. A designação de “qualidade” apontava para a condição racial dos sujeitos
quando, no dia 28 de setembro de 1834, uma força, “com oitenta baionetas”, recebeu “fogo
dos malvados” nas imediações do sítio de Manoel Nunes, acabando presos um pardo de nome
Manoel, morador do Ribeirão, e um escravo desse mesmo Manoel626. Depois de outras
intensas trocas de tiros com os rebeldes que estavam sendo perseguidos há dias, relatou-se que
os “malvados se acham em grande número, em várias casas de palha foram achados barris de

623
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: série justiça. Correspondência recebida de juízes – Pedra
Branca. 1832-1889. Maço 2530. Caranguejo, “vizinho a vila de Pedra branca”, 12 de junho de 1834. De José
Henrique dos Santos, Juiz de Paz de Pedra Branca; Antonio Vieira Sampaio, juiz de paz de Capela da Jibóia;
José Emídio da Rocha Medrado, Juiz de Paz do distrito da Tapera; Bernardino de Souza Queiróz, Juiz de paz do
Livrado do Sururu; Tertuliano Aquino Tanajura, Juiz de Paz do distrito do Curralinho. Sem destinatário.
624
Idem.
625
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário. Revolta dos índios de Pedra Branca. 1834. Maço
2861. Pedra Branca, 04 de julho de 1834.De Joaquim da Silva, capitão, José Pereira, alferes, Firmino Mendes, 2º
tenente, José Rocha Galvão, para Major comandante da força José Antônio da Silva Castro.
626
Idem.
221

pólvora, de que faziam uso, e disse serem coadjuvados por um partido de descontentes do
sistema atual”627. Se o governo não tomasse pé de rechaçar logo aquele movimento, teríamos
“uma segunda guerra de cabanos”628.
Exageros à parte, o lugar do Ribeirão era considerado um “covil de criminosos”,
além de ser efetivamente um local onde a presença federalista parece ter feito parte dos atos
de insurreição em Cachoeira nos conturbados anos 30 do século XIX no recôncavo 629.
Em 1839, um grupo de salteadores de mais de trinta homens agia no lugar do
Ribeirão. Eles estavam roubando e matando “até o Curralinho e Genipapo e mais
circunvizinhanças”630. Segundo diziam, aquela quadrilha era composta “em grande parte dos
rebeldes que por esses lugares ficaram”631. Provavelmente uma sequela da unidade entre
índios, homens de cor e crise social e política daquele lugar. Mesmo porque se os insurretos
de 1834 estavam ainda por ali e se juntariam aos rebeldes de 1837 e dariam também
continuidade às queixas dos índios acerca das suas terras e de sua administração.
Ainda em 1839 e em 1844 houve refregas mais uma vez entre índios e autoridades
locais motivadas pela insatisfação com essas autoridades ou pela troca delas sem a consulta
dos indígenas. Ambas foram sucedidas pelas acusações de que “os malvados comedores de
gado das fazendas alheias”632 estavam atacando novamente. Este poderia ser um artifício
óbvio de criminalização, mas, como podemos notar em alguns outros documentos, essa
realmente parecia ser uma tática de luta ou de sobrevivência desse grupo às invasões de suas
terras, de seu sistema alimentar, de trabalho e político. Vejamos: em 1841, nas imediações de
Pedra Branca, o juiz de paz pedia providências “pelo roubo que me fizeram os misturados

627
Idem.
628
Idem.
629
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário. Revolta dos índios de Pedra Branca 1834. Maço
2861. Pedra Branca, 14 de junho de 1834. De José Antonio de Souza Castro, para José Joaquim Pinheiro de
Vasconcelos, presidente da província. Em Maio desse mesmo ano, José Antonio de Souza Castro afirmou que
mais de 330 homens em armas hostilizavam a nação em São Félix. E que constava haver entre eles muitos
índios, ou seja, parecia mesmo haver uma relação de apoio mútuo entre os grupos sociais através de pautas mais
gerais e políticas e ações armadas pontuais em torno de reivindicações dos índios, mas que não deixavam de ser
um ataque aberto ao Estado e seus representantes. A natureza dessa reciprocidade merece mais investigações.
Ver: APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário. Revolta dos índios de Pedra Branca. 1834. Maço
2861. São Félix, 20 de maio de 1834. José Antonio de Souza Castro, para José Joaquim Pinheiro de
Vasconcelos, presidente da província.
630
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província Judiciário – Cachoeira. 1838 - 1841.
Maço 2273. Cachoeira, 20 de março de 1839. De Francisco Xavier Oliveira Pereira, Juiz de direito interino, para
presidente da província.
631
Idem.
632
PARAÍSO, op. cit., p. 42.
222

dessa freguesia, moradores no lugar do Tabuleiro”633. Haviam roubado um boi manso do


engenho dele, o que, somado a outros roubos, já faziam três ou quatro. Afirmava que, se não
houvesse providências, as propriedades seriam abandonadas, pois se estava trabalhando para
sustentar velhacos.
Os “misturados” aos quais fazia menção eram os índios que nos processos de
expulsão das suas terras, e consequentemente de seus costumes, abriram o leque das relações
conjugais e de parentesco. Essa mistura, que aparenta ter se iniciado politicamente – como
atesta os apelos para a população não índia dos povoados que compunham Pedra Branca de
não colaborarem com os índios durante os conflitos e nas práticas de roubos e furtos – parece
ter atingindo um caminho de solda irrevogável. Os roubos praticados pelos “misturados” eram
uma forma de manter a racialidade ainda em questão, por mais que ela não pudesse, como
antes, ser considerada também uma ação dos índios e seus sócios. A associação parecia estar
completada na ênfase que se deu à mistura.
Nas “desordens” que se seguiram à guerra civil da independência, na sala das sessões
em que se reuniram os grandes proprietários comandantes do exército baiano, discutiram-se as
providências contra os “abuseiros procedimentos dos índios, que matam gados e roubam
vizinhos e se embriagam”634.
Nas imediações do Rio de São Francisco, os índios atacavam as “populações
criadoras daquela fronteira”635, que viviam com pavor de rituais de “assovios pelos matos,
pedradas mortíferas e outros sinais que mostram que grupo de grande número deles cercam as
fazendas”636 de gado e lavoura. O banditismo aparece como uma das tantas e complexas
práticas de resistências de homens e mulheres rurais637. O roubo de gado, cavalar e bovino em
especial, não era uma ação exclusiva dos índios, ao contrário, parece ter sido a modalidade de
furto (não de roubo) mais disseminada entre o cotidiano da população pobre rural e as ações
coletivas de homens e mulheres em fuga, com destaque para os escravizados ou ex-
escravizados638.

633
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: série justiça. Correspondência recebida de juízes – Pedra
Branca. 1832-1889. Maço 2530. Jibóia, 05 de março de 1841. De José Henriques dos Santos, Juiz de paz, para
Manoel Joaquim de Sá, Juiz de paz.
634
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636-1. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 21
de janeiro de 1823. Do secretário para o juiz ordinário da vila de Santarém.
635
A.N. Série ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Santa Rita do Rio Preto, 31 de maio de 1849 e 13 de outubro de
1849. De vários autores.
636
Idem.
637
Ver: SCOTT... Op. Cit. NAVARRO, Op.Cit, 2003.
638
Sobre isso ver FLORES, Mariana Flores da cunha Thompson. “Gados Mal Havidos”: Os roubos de gado no
espaço froiteiriço. In: ___. Crimes de Fronteira. A criminalidade na Fronteira Meridional no Brasil (1845-
223

Corroborando a reflexão sobre os ataques dos escravos fugidos aos gados, citado
anteriormente, o Tenente Miguel Ataíde e Seixas, morador de um distrito do termo da vila de
Valença, pediu a intervenção militar para que se evitassem “os roubos de gado perpetrados
por vários negros armados, que fugidos do poder de seus senhores causam grande dano ao
suplicante e aos demais senhores”639 daquele lugar. Para ele, se o caso não fosse logo
combatido, os escravos se juntariam ”em maior número”, dificultando “conseguir a sua
dispersão e restituir o sossego e tranquilidade aqueles moradores” 640. Este apelo foi feito em
1823, em meio à desorganização militar que aconteceu durante os dias de luta de
independência na Bahia.
Numa fazenda do Conde da Ponte, os escravos se insurgiram em abril de 1835.
Alguns fugiram para outra fazenda do mesmo Conde, na Villa do Rio de São Francisco641,
contudo, dois escravos, Felix e Antão, segundo o autor do documento, andavam nos matos
daquele mesmo termo, roubando e vendendo gado da mesma propriedade de seu senhor e de
outras. O administrador reconhecia nada poder fazer contra esses ataques, por falta de força
privada suficiente, e que as autoridades pareciam fazer pouco caso do ocorrido para que
ficasse “livre o sertão desses malvados”. Ao falar de apenas dois dos escravos, o autor do
documento parecia minimizar o caso, pois fica difícil crer que um homem tão poderoso como
o Conde da Ponte não tivesse suficiente força para combater dois homens, além de
superestimar também, numa linguagem baluartista, o domínio do sertão naquela ocasião.
Obviamente a referência era aos ataques contínuos de negros às propriedades dos homens de
bem naquela região de Jacobina, que incluía parte da Chapada e proximidade com o Rio São
Francisco.
Os receios tanto do tenente quanto do administrador das fazendas do Conde da
Ponte, assim como de outras autoridades, eram de que os crimes revelassem a fragilidade
institucional do poder armado do Estado, abrindo as portas para outras modalidades de

1889). Porto Alegre: EDIPUCRS; ANPUH-RS, 2014. No caso dessa autora, interessada no trânsito entre as
fronteiras do Sul do Brasil, há a presença de homens mais abastados que lucram com o ataque a um rebanho de
outro proprietário. Vale ressaltar a importância do comércio de carne para aquelas regiões do sul da América,
que gerou muitas rivalidades e até mesmo conflitos nacionais como a Guerra dos Farrapos. Idem, p. 310. Sobre
as ações dos escravizados e ex-escravizados ver FILHO, Walter FRAGA. Encruzilhadas da Liberdade. História
de escravos e libertosna Bahia (1870 – 1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 197-207.
639
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Coleção: Registros de correspondências emitidas pelo
conselho interino de governo (transcrições) (1822-1823). Livro 636-1. Sala das sessões da Vila de Cachoeira, 01
de março de 1823. Para o capitão mor da vila de Valença.
640
Idem.
641
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juízes
– Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Jacobina, 30 de Abril de 1835. De José Bento Coelho, juiz de Paz, para
presidente da Província. Parece ser uma carta escrita pelo procurador do Conde da Ponte. Infelizmente não há
maiores detalhes dos motivos dessa fuga e porque a escolha de fazenda do mesmo senhor.
224

insurgência contra os proprietários, em maior número e ou dispersando suas ações por outros
pontos da província. Repressão fraca, ataques generalizados às propriedades, numa província
tomada por rebeliões escravas, poderiam ser o prelúdio de dias piores.
Mas em geral esses crimes eram do tipo que as autoridades sabiam manter sob
controle, porque sabiam quem os praticava, ou apenas suspeitavam, o que já era suficiente
para as medidas repressivas preventivas. Esses ladrões de gado eram vítimas contínuas de
recrutamento, mesmo porque o fato de roubar era normalmente associado a uma vida
supostamente desregrada, violenta, mal afamada. Os exemplos são muitos, mas ilustraremos
aqui com alguns poucos casos. Um deles é o de Vicente Ferreira de Jesus, segundo o capitão
mor, “homem devasso, malvado, de pernicioso aos lugares em que nasceu. Rebelde ao próprio
pai cuja existência ameaçou, dado aos furores do seu gênio indomável era o flagelo dos
pacíficos habitantes do Camisão, furtando-lhes seus gados acometendo-os sempre com todo
gênero de maldades”642. Em outro caso, mandou-se recrutar Bernardino “por ser o dito um
malfeitor e mal procedido sem ofício nem beneficio que o melhor oficio que tem é pegar o
gado alheio[...] no arraial de Pojuca”643.
Em ambas as situações, fica claro que se trata de homens fiscalizados pelas
autoridades e pelos aparatos de controle dos homens livres da sociedade. Sabem que ele é
mau filho, que não exerce ofício, e quando sua fama parece ultrapassar o limite do tolerado,
atacando os gados de “gente de bem”, a ação de prendê-los é imediata.
Muitos dos ataques contra os gados eram realizados por trabalhadores rurais,
vizinhos ou próximos das roças e fazendas atacadas 644. Em um caso citado acima, até mesmo
escravos voltavam para atacar a propriedade de onde haviam fugido. Em alguns casos o
ataque era político, com o fim de deslegitimar uma autoridade ou de expropriar seus poucos
bens e colocá-la em situação de dependência social e financeira, além de provocar a venda de
pequenos lotes de terra a proprietários com necessidades de agregados e vínculos de
dependência.
O fato de que muitos desses ladrões de animais pudessem ser pessoas oriundas da
lida no trabalho rural não significava que não havia aqueles que se dedicavam ao roubo de
gado como modo quase exclusivo de vida, através de quadrilhas ou individualmente.

642
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Juízes de Cachoeira, Fundo Governo da província- Judiciário.
Maço 2273. Cachoeira, 27 de maio 1839. Do Juiz de direito para o Presidente da província.
643
APB. Seção Colonial Provincial. Governo da Província, Polícia do porto:Capitão-Mor, Maço 3794. 1826. Para
presidente da província.
644
FLORES, Op. cit., p. 277-348.
225

Ao relatar o aprisionamento de uma quadrilha, Albino Novaes, juiz de direito de


Cachoeira, escreveu que dois dos capturados eram “célebres ladrões de cavalo e gado”
(Manoel da Silveira do Nascimento e João D'Araujo), enquanto o terceiro (Fernando Ferreira)
foi definido, na tipologia clássica da repressão preventiva, como um “perfeito réu de policia”,
sem oficio645. Os grupos de bandidos, em alguns casos, promoviam a possibilidade de que
homens sem emprego e socialmente estigmatizados conseguissem sobreviver sem a relação de
dependência e controle estabelecida entre proprietários e homens livres e pobres, o que parece
ter sido o caso de Fernando Ferreira. Os agrupamentos, quando se faziam presentes, rondando
feiras, travando contatos nas senzalas, negociando com algum proprietário, disputavam a
“vontade” de um sujeito de ceder seu trabalho e obediência a um proprietário ou a um
recrutamento. Este último podia se defrontar com a situação de ser socialmente um pária ou
de viver os limites possíveis de sua liberdade enquanto um proscrito. Essa era a lógica de
operação da repressão preventiva: cercar a possibilidade de o pária se dispor a uma vida
voltada contra a propriedade, a vida e o Estado, como já destacamos anteriormente.
Outro sujeito parece ter ficado bastante dividido entre a sua carreira de ladrão de
cavalos e uma vida adequada aos desígnios do homem pobre no século XIX. Antônio dos
Santos, pardo, solteiro, parece que decidiu, em algum momento de sua vida, voluntariamente
sentar praça em qualquer corpo de primeira linha do exército. Apesar dessa voluntariedade, o
responsável pelo seu alistamento, o juiz Francisco Xavier de Oliveira, fez ressalvas sobre seu
alistamento. Ele não deveria ficar na província da Bahia, porque sua conduta não era das
melhores, além de pesar contra ele o fato de já ter sido preso pelo Juiz de Paz de São Félix
com um cavalo furtado, que procurava vender por 20$000646.
Pode ser que o cerco contra as suas ações tenha dificultado suas práticas e devido a
isto ele ponderou entre ser preso, morto ou recrutado; ou, talvez, ele apenas tenha balizado
uma nova rota de vida para si. O que importa aqui é que a sua ida voluntária para o exército,
que já poderia acontecer de todo modo, veio após um período de ações como ladrão de
cavalos na região do recôncavo baiano. Algo que não podemos mensurar pela documentação
fez com que ele mudasse de ideia, mas a carreira do roubo, do crime, estava ao seu alcance tal
como a possibilidade do recrutamento, pela qual ele decidiu, por alguma estratégia individual
de vida, após ter tentado o crime como primeiro caminho.

645
APB. Manuscritos Governo da província- Judiciário Seção Colonial e Provincial, Juízes de Cachoeira. Maço
2274. Cachoeira, 1841. De Albino Novaes para Presidente da província.
646
APB. Manuscritos Governo da província- Judiciário - Juízes de Cachoeira Maço 2273. Cachoeira, 19 de
setembro de 1839. De Francisco Xavier Pereira de Oliveira, Juiz de Direito interino de Cachoeira, para
Presidente da Província.
226

O recôncavo era uma região propícia para os roubos de cavalos. Era um lugar não tão
distante do termo de Feira de Santana, conhecida pela sua grande feira de bois e menos
conhecida pela pouco comentada feira de cavalos que lá existiu647. Para chegar até lá, do
recôncavo ou dos sertões, era necessário ir a cavalo. Em Feira de Santana existiam
estabelecimentos feitos especificamente para tomar conta das montarias dos viajantes,
engordá-los e vendê-los por um melhor preço.

Figura 5: Feira de Cavalos na vila de Feira de Santana. Pintura de Julius Naher, aproximadamente
década de 70 do século XIX. Fonte: NAEHER, Julius. Uma Viagem à Bahia da segunda metade do século XIX.
Da coleção A Viagem de Naeher. Osvaldo Augusto Teixeira (Coord.). Salvador: CIAN, 2011, p. 333.

O cavalo era um objeto de grande valor, a depender do animal e em torno dele havia
toda uma ritualização de um modo de vida aristocrático que foi com minúcias descrita por
Eurico Alves Boaventura em seu livro Fidalgos e Vaqueiros:

Não gozava de pouco encantamento, propriamente, o cavalo de sela.


Impunha ternura no trato. Era só veículo de vaidade da casa da fazenda e o
cuidado por ele era a expressão, melhor, manifestação indubitável de certo
narcisismo. Bem montado, gozava o senhor de maior reputação (...). E o
bom cavalo era ainda propaganda da riqueza e do poderio do seu dono (...)
Esta arrogância da montaria luxuosa e de valor traduzia poderio, fidalguia
(...). O cavalo de sela, o boi de carro, era e é o porta voz do poderio, do
esplendor econômico da casa da fazenda 648.

647
Ver NAHER, Julius.. A Viagem de Naher. Vol. 1. Excursões na Província da Bahia (A Terra e a Gente da
Província Brasileira da Bahia). Salvador: CIAN, 2011, p. 175-176 e TEIXEIRA, Osvaldo Augusto. Uma
viagem à Bahia da segunda metade do século. In:___A Viagem de Naher. Vol. 2. Salvador: CIAN, 2011, p. 333.
648
BOAVENTURA... Op. cit., p. 251-262.
227

Atacar um cavalo não era apenas atacar a propriedade de um homem, era também
atacar a sua estratificação e respeitabilidade. Apesar dessa afronta social, que fazia desse
criminoso um homem ainda mais odiado, Feira de Santana se tornou, pelo que aparece
descrito em um documento, um local em que ladrões de cavalo poderiam se dirigir para
negociar seus frutos. Em uma ocasião um ladrão de cavalos foi preso em Cachoeira, seu nome
era Luís Bernardo, ele era pardo, e “célebre por suas façanhas, não só nos arredores deste
termo, como no do termo da Vila da Feira de Santana”649. Havia muitas queixas sobre esse
homem e as autoridades sempre pretendiam pegá-lo, mas ele escapava. Foi finalmente preso
pelo Juiz de Paz de Boa Vista, que o remeteu para o Juiz de Cachoeira. Sua fama em Feira de
Santana era, provavelmente, a de comerciante de cavalos roubados. Outro grupo, chamado de
“Cablocos”, também parecia atuar nessas mesmas imediações do recôncavo à Feira de
Santana, onde

quase sempre estão nos dias da feira na Feira de Santana, e mesmo na Vila
da Cachoeira, trilhando aquelas estradas armados a forma de facinorosos, e
daqueles lugares aqui tem vindo fazer furtos de cavalos, que os vão dispor
para a feira do Corralinho, e botarem-me tocaias de que tenho
milagrosamente escapado para vingarem-se das atividades que os têm
abatido650.

Thomas Gonçalves, “conhecido ladrão de cavalo”, foi ousado, ou desinformado o


suficiente para roubar o cavalo do delegado de polícia. Foi preso numa associação das tropas
do delegado e do subdelegado de um distrito na região de Vila Nova da Rainha. A tropa do
delegado foi ao seu encontro e se deparou com outra comandada pelo subdelegado. Na
ocasião, o procurado já estava bastante distante de onde havia praticado seu furto 651. Luis
Bernardo e Thomaz Gonçalves agiram em um lugar e fugiram por outros e foram tentar
comercializar seus produtos em distintos lugares. A itinerância era uma questão de vida ou de
morte para esses sujeitos. Assim como Luis e Thomaz, tantos outros ladrões precisavam se
mover pelas estradas e picadas nos matos, para roubar, fugir, se esconder e vender seus
produtos roubados. Em cidades pequenas, como eram aquelas vilas sertanejas, e mesmo as
649
APB. Manuscrito. Seção Colonial Provincial Governo da província- Judiciário. Juízes de Cachoeira. Maço
2273. Cachoeira, 10 de junho de 1839. De Francisco Xavier Pereira Oliveira, Juiz de direito, para Presidente da
província.
650
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial Correspondência recebidas de diversos assuntos – Policia. Maço
3108. Curato de Nossa senhora da Guia, 21 de janeiro de 1835. Juiz de Paz para Presidente da província.
651
A.N. IJ¹ 404. Palácio do Governo, 18 de janeiro 1848. Cópia enviada pelo presidente da província para o
ministério de um relatório produzido por pelo chefe de polícia.
228

que margeavam o recôncavo, a identificação do sujeito, seja como forasteiro, morador,


trabalhador de alguma fazenda, era muito fácil. Vale ressaltar que nesses dois casos os frutos
dos seus roubos eram bens moventes, que permitiam o rápido deslocamento.
Em uma discussão sobre retirada ou não de policiais da cadeia de Jacobina, o juiz de
direito afirmou para o presidente da província que na Vila Nova da Rainha, onde ficou por um
ano atuando, os crimes haviam diminuído seu ritmo, porém não podia dizer o mesmo do resto
do município porque os crimes são feitos nas “estradas, fazendas de gado e lugares ermos,
distante da vila às vezes 40 léguas” 652. Ele informava que em Jacobina a situação parecia ser
diferente. Lá ele conseguia um menor índice de ataques porque dispunha de policiais
suficientes para patrulhar minimamente as estradas, o que decorria na prisão de vários
bandidos em fuga, além de evitá-los com recrutamento e termos de bem viver.
No caso de grupos sociais subalternos demarcados especificamente pela itinerância
ou por uma vida mais nômade, como os ciganos, seu modo de vida já era alvo da
criminalização e do racismo, que andam normalmente juntos, do Estado e da sociedade. Os
ciganos tinham fama de ladrões de animais, especialmente cavalos, que lhes serviam
duplamente, para ganhar dinheiro e para promover a locomoção do clã. Por onde eles
passavam apareciam muitos boatos de roubos e confusões. Não podemos afirmar se por
prática mesmo do ataque à propriedade alheia ou por aproveitarem-se os bandidos dessas
passagens para atribuir-lhes a culpa e promoverem com tais boatos uma perseguição aos
ciganos, saindo, deste modo, ilesos. Após praticarem roubos e um assassinato no Arraial de
Riacho de Santana, um “bando de ciganos”, liderados por um homem chamado Florício, que
“andavam qual povos nômades, sem domicílio certo, roubando cavalos e tudo o mais que
pode satisfazer a sua cobiça, sem poderem jamais ser capturados por autoridades sem força
para opor que eles constituem pelo número que sempre viajam” 653, fugiram daquela região
rumo ao Rio das Éguas até chegar a Goiás.
Nesse caso, muito possivelmente a força desse agrupamento era, ao contrário de
alguns exemplos que demonstramos, a sua homogeneidade e coesão interna, sua pouca
abertura para vivenciar experiências em comum com as outras gentes das estradas, das matas,
senzalas, feiras e roças. Ainda assim, faziam parte dessa horda heterogênea que circundavam

652
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juizes
– Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Jacobina, 26 de julho de 1836. Do Juiz de direito, Ângelo Muniz de
Ferraz, para presidente da província, Thomaz Xavier Garcia D’Almeida.
653
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidencia da província. Juízes – Urubu. 1829-1864. Maço
2623. Arraial de Riacho de Santana, 30 de maio de 1848. De João Antônio de Sampaio Viana, juiz de direito da
comarca de urubu, presidente da província.
229

as vilas e ameaçavam, com sua liberdade, itinerância e independência das relações de


clientela, o processo de construção do Estado Nacional. Novamente a condição de párias
estava intimamente ligada à criminalização. A marginalização racial e social, ao criar
impedimentos de integração de grupos sociais tidos como desviantes da pretendida
universalização capitalista do Estado Moderno (tendente ao cristianismo, ao submetimento
patronal e Estatal sobre o trabalho, a fixação da moradia e da família), propiciava a entrada de
determinados grupos sociais (como ciganos, homens e mulheres “de cor”, índios) nas práticas
criminosas quando não lhes oferecia nenhuma cidadania – ou se lhes oferecia uma quase
cidadania tutelada por padres, diretórios, legislações repressivas e punitivas específicas, sem
falar das ideologias que atestavam a subalternidade daqueles sujeitos –, ao mesmo tempo em
que, mesmo não sendo criminosos, seus modos de vida já eram criminalizados.
O pavor que os homens e mulheres “de bem” e as autoridades locais tinham dos
forasteiros, dos sujeitos que vivem a margear as populações rurais, não era gratuito. Esses
bandidos rurais viviam em fuga ou de cidade em cidade furtando, roubando e vendendo os
resultados das suas ações. Para isso, não podiam se fixar num lugar, pois seriam facilmente
capturados, através de informações, ou sofreriam constrangimentos na comercialização de
seus produtos, como foi o caso em Santo Amaro em que José Pereira da Silva Mascarenhas e
Zeferino Gomes da Guerra avisaram publicamente aos “bons fazendeiros do Camisão”654 que
o negro Antônio Cadó, no dia 18 de março, juntamente com outros bandido, haviam atacado,
no meio da rua, ao meio dia, “um seu correio que trazia-lhe 1:200$000 rs” 655. O Dinheiro que
acabara de chegar das Lavras Diamantinas foi roubado de tal modo que o dedo do portador foi
decepado. Os autores do texto publicado no jornal apelaram para os fazendeiros do Camisão
que nada comprassem dos bens que até o dia 18 de março fosse de propriedade de Antonio
Cadó, sob pena de sofrerem a perda que a lei impunha, por que o roubo foi à vista de toda a
população e ninguém poderia alegar inocência. O mesmo aviso se estendia para os
“marchantes e condutores de gado que os levarem para a Feira [de Santana]” 656.
Para conseguirem viver próximos às cidades e povoados em que agiam, forjavam
uma rede de amizades e contatos para serem avisados de diligências, editais de captura, de
paisanos em perseguição, das ações menos arriscadas, das datas de saídas de comboios e

654
APB. Manuscritos. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6466. Cachoeira.
BN Hemeroteca. O Cacahoeirano. Jornal político, literário e moral: seção Anúncios. Terça feira, 14 de abril de
1848.
655
Idem.
656
Idem.
230

portadores de carteiras. Algumas pessoas dessas redes podiam ser suas esposas, “concubinas”,
parentes de senzala, amigos, sócios (das altas e baixas classes).
Era muito comum que fossem avisados de pessoas que viajariam com cargas
valiosas, como no caso em que dois homens foram mortos por outros quatro, através de uma
emboscada no meio do caminho para a vila de Juazeiro. Os quatro confessaram o crime que
teriam premeditado em Vila Nova da Rainha, onde tanto as vítimas quanto os criminosos
eram moradores657.
Quando não eram avisados se encarregavam eles mesmos de observarem suas
vítimas e se municiarem de informações que lhes permitia se anteciparem às vítimas no
intuito de um crime o mais perfeito possível. Três ações de roubo em Feira de Santana num
mesmo período e em regiões muito próximas fazem crer na viabilidade e sucesso nesse tipo
de empreitada bandoleira658. O primeiro foi um assalto a um casal de africanos libertos, que,
“fervorosos trabalhadores”, juntaram uma quantia de 400 mil réis para alforriar seu filho que
ainda era escravo. O relato do chefe de polícia afirmava que os criminosos certamente sabiam
que o casal guardava aquela quantia. Foram mortos perto da fazenda Cabeçalho, há uma légua
e meia da vila, num local considerado deserto, onde residiam. Como o chefe de polícia teve
certeza não sabemos, mas provavelmente pelo motivo de o dinheiro estar em local escondido
e ter sido achado pelos ladrões. Numa outra situação, José Joaquim Lopes foi encontrado já
em estado de putrefação há um quarto de légua da vila de Feira de Santana. Segundo relatos,
foi enganado por um homem “pardo claro”, que, a título de negociar com ele uns potros, deu-
lhe um tiro pelas costas. Foi roubado tudo o que levava consigo. E por último, no dia 05 de
junho de 1849, foi roubado e gravemente ferido o pardo Manoel Estevão, na estrada do Pau
de Légua, vindo de Cachoeira, quando regressava para sua casa em Feira de Santana. Segundo
o próprio assaltado, desde a freguesia da Tapera que um pardo magro, conhecido por ele, que
o havia visto trabalhar como carpina, o estava seguindo nas estradas e provavelmente seria o
assaltante.
Em todos esses casos da vila de Feira de Santana, os homens haviam se cruzado em
algum momento, eram conhecidos fortuitos ou de mais tempo, ou tiveram sua confiança traída
por alguém que cantou o dinheiro para um ladrão, no caso dos africanos. Vigiaram, receberam

657
A.N. Série Justiça, IJ¹ 399. Jacobina, 07 de Janeiro de 1840. Do Juiz de direito da Comarca de Jacobina,
Angelo Muniz da Silva Ferraz.
658
APB. Manuscritos. Seção colonial provincial. Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Nº 5689, p. 18-21. Secretaria de polícia da Bahia,
16 de julho de 1849. De João Mauricio Wanderley, chefe de polícia, para João Gonçalves Martins, presidente da
província.
231

e colheram informações para agir. Em dois dos casos, os realizadores dos crimes, ou talvez
mandantes, não seriam capturados, tampouco suas identidades seriam reveladas, pois que o
capricho do planejamento do ato não deixou, ao contrário do negro Cadó, testemunhas.
Em outros casos a longevidade dos bandidos pode ser significativa da colaboração
que recebiam em determinadas localidades, até mesmo das autoridades que deveriam
combater o crime. Casos como este, a seguir, que denunciam as autoridades como coniventes
de criminosos não são poucas nos arquivos: “No termo de Rio de Contas foi capturado
Honório José das Neves horror daqueles sertões a qual a mais de 20 anos zombava da justiça,
sendo protegido por aqueles mesmos a quem incumbiu o dever de prendê-lo e fazê-lo
punir”659. Em outro caso, a fazenda de um alferes servia de acoitamento e quartel general de
um grupo de salteadores que atacava na Vila do Rio Preto 660. Nessas situações fazia bastante
sentido permanecer em atividade de maneira fixa, recebendo informações privilegiadas, sendo
soltos das cadeias, outro tipo de informação que abunda na documentação, como já tratamos.
Não possuindo esses meios de informação e proteção, o melhor caminho era a
itinerância. Fugir para além das fronteiras oficiais entre vilas e províncias era um recurso
muito usado. Apesar da desconfiança que podiam gerar ao chegarem a um novo lugar, os
criminosos podiam ganhar certo tempo até que se descobrisse que eles eram foragidos ou réus
de algum crime em alguma comarca da província ou do país.
Muitos tentavam evadir para locais com proteção assegurada. Acoitadores, como o
Fazendeiro Quintino Soares da Rocha, morador de Morro do Chapéu, comarca de Jacobina,
era um dos que se beneficiavam por acoitar criminosos em suas terras. Em 20 de Novembro
de 1850, o Juiz da comarca de Paranaguá, no Piauí, fronteira turbulenta do norte da Bahia,
pediu que as autoridades das comarcas do Norte da Bahia dessem providências para a captura
de criminosos procurados naquela província. Destacava aquele juiz que as autoridades baianas
não permitissem o citado acoitador de receber aqueles criminosos, como se suspeitava. Esse
senhor, em outras oportunidades, já havia acoitado criminosos naquela província 661. Estes

de tal forma acoroçoados, roubam das autoridades limítrofes da província,


que vossa excelência tão bem administra, com prejuízo grave da segurança

659
A.N. Série ministério da Justiça, AI, IJ¹ 407, Palácio do Governo da Bahia, 05 de março de 1852. Do
Presidente da província para Eusébio de Queiroz Coutinho Matoso, Ministro da justiça.
660
A.N. Série ministério da Justiça, AI, FundoIJ¹ 401. Vila de Santa Rita do Rio Preto, 20 de setembro de 1845.
De João Rodrigues Covas Junior, Juiz Municipal Suplente, para Francisco d’Andrea, presidente da província.
661
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: polícia. Maço 6151. Palácio do
Governo da Piauí, 20 de Novembro de 1850. Do presidente da província do Piauí, José Antônio Saraiva, para
presidente da província da Bahia, Francisco Gonçalves Martins.
232

individual muito vacilante naquelas localidades em razão das causas


referidas, que vão por vossa excelência removidas em virtude de
providências acertadas e que se estendam aos municípios da Barra, Campo
Largo, Santa Rita do Rio Preto, Pilão Arcado e Juazeiro.

Os Caboclos, quadrilha já citada neste capítulo, tinham um roteiro de fuga bastante


amplo que mesclava defesa, ataque e negócios. Eram originários do município da Vila de
Inhambupe, “mas que causava terror até por longe, sendo os cabeças Paulino Ferreira Veloso,
e Bernardo Ferreira Veloso, e Domingos Ferreira Veloso, Manoel Ferreira Veloso”662. Nesse
local eram quase que intocáveis, “pois não se atrevia o juiz de capturá-los em cujo lugar
residiam”663. Depois de montada uma junta de juízes de paz de diversos distritos, eles
passaram a ser perseguidos, o que gerou prisões e dispersões. Chegaram notícias até essa
junta de que eles já se encontravam para “além da Vila da Cachoeira nas margens do Rio
Jacuípe defronte da Feira de Santana já quadrilhados, e quase sempre estão nos dias da feira
na Feira de Santana, e mesmo na Vila da Cachoeira”664. Parece que acorreram a esses lugares
para se protegerem e se refazer. Logo depois voltaram a praticar seus roubos e a vendê-los na
feira de Corralinho, como já citamos neste capítulo. Percorreram caminhos da região do
agreste, quase adentrando no sertão norte baiano, ao recôncavo, fora das jurisdições daquela
junta que os caçava.
Lugares onde a riqueza abundava e o comércio florescia também podiam ser uma
rota de fuga ou das ações armadas dos bandidos. Em consequência disto, muitas pessoas de
diversas condições sociais, especialmente a gente pobre de cor, tentavam aí buscar alguma
riqueza. A região da Chapada Diamantina, para o Promotor Público da comarca de Urubu, era
um celeiro de criminosos, especialmente algumas regiões da vila de Urubu, aonde todos iam
se refugiar. De acordo com o documento emitido por ele, no lugar chamado Arueiras existiam
cerca de 4 mil moradores, sendo que 500 destes eram criminosos. Naquele lugar, segundo ele,
não aparecia ninguém que não estivesse portando de uma a cinco armas ofensivas665.
As recentes descobertas de diamantes naquelas paragens deslocou um contingente
alto de toda a gente livre e também de escravos para a região. As regiões de minas de pedras

662
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial Correspondência recebidas de diversos assuntos – Policia. Maço
3108. Curato de Nossa senhora da Guia, 21 de janeiro de 1835. Juiz de Paz para Presidente da província.
663
Idem.
664
Idem.
665
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Governo da província. Policia Assuntos diversos. Maço 6398.
Monte Alto/Chapada Diamantina, 27 de julho de 1843. De Daniel Luis Rosa, promotor publico da comarca de
Urubu, para João Joaquim da Silva, chefe de polícia.
233

preciosas e minérios eram lugares propícios de acolhimento e formação de “hordas


heterogêneas” que geravam hidras de banditismo e jaguncismo.
As fronteiras de Goiás, Piauí, Pernambuco e Sergipe eram bastante frequentadas
pelos criminosos. Mas as fronteiras mais concorridas pelos criminosos baianos parecem ter
sido as de Minas Gerais, desde os tempos coloniais, com grupos famosos como o dos Vira
Saias666, que percorriam os territórios de Minas até a região de Jacobina com bastante
frequência, e toda a região do Rio de São Francisco na província da Bahia.
Minas e Bahia parecem ter experimentado esse trânsito justamente pela existência do
667
Rio São Francisco . O artifício de atravessar as águas do Rio era usado várias vezes nas
suas fugas e ações armadas. O Rio São Francisco era um aspecto da geopolítica bandoleira.
Ao mudar de lado no Rio podiam cruzar fronteiras provinciais e de jurisdições (oficiais e não
oficiais), afastando-se de perigos emergenciais.

666
Sobre os vira saia ver: PARRELA, Ivana. O Teatro das Desordens. Garimpo, contrabando e violência no
sertão diamantino 1768-1800. São Paulo: Anablume, 2009; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2009, p. 95-99.
667
Mas não só por isso. As regiões do Rio São Francisco era destino calculado para os bandidos, afinal lá
durante toda a primeira metade do século XIX foi palco de diversos conflitos entre facções, famílias e “partidos”,
nas disputas para se estabelecerem como representantes dos poderes de Estado, terra e heranças.
234

Figura 6: Mapa do Rio São Francisco na Bahia, de alguns de seus afluentes e vilas do seu entorno.
Fonte: Companhia de navegação do São Francisco. https://confins.revues.org/10166?lang=pt.
Originalmente em: Zanoni Neves, “Lúcio Cardoso, Maleita e Pirapora. Historicidade e cultura popular na
obra de Lúcio Cardoso”, In: Confins, n. 23, 2015. Disponível em: http://confins.revues.org/10166; DOI:
10.4000/confins.10166. Acesso em 06 de fevereiro de 2017.

O caso de José Marcos da Cunha é muito evidente para visualizarmos essa situação.
Após repetir muitos e muitos crimes desde 1835 nas Comarcas de Jacobina e Barra do Rio de
São Francisco, ele havia retornado a Vila Nova da Rainha, onde assaltou vários moradores e
autoridades, rendendo-os dentro de suas próprias casas. Nessa oportunidade o juiz municipal
escreveu que aquele homem vinha promovendo a mesma “correria” de Minas até o Rio de
São Francisco, lugares que já tinham se “tornado célebre, notável na prática de quantas sortes
de atrozes crimes se possam imaginar”668. Nessas andanças por essas regiões era fácil,
segundo o juiz, que ele obtivesse 50 homens para praticar suas ações armadas. Segundo outro

668
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juízes
– Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Vila Nova da Rainha, 13 de maio de 1848. De José Pereira Maia, 1º
substituto de Juiz Municipal e de órfãos, para Juiz de direito, José Antonio Magalhães Castro.
235

documento, esse José Marcos era morador de Sento Sé, outro lado do rio de Vila Nova da
Rainha669 e invadia vilas com sua quadrilha.
Uma “esquadra ou ajuntamento de facinorosos publicamente reunidos armados e
amocambados” estava sendo procurada após sofrer forte repressão em Vila Nova da Rainha,
por “amigos, parentes e vagabundos”670 que os têm procurado por todo o sertão do Piauí e rio
São Francisco. No entanto, como no relato da Hidra grega, ao tentarem destruir o
agrupamento em uma determinada região, ele parecia saber como se reconstituir e tornar a
praticar ações ainda maiores e diversas. Esse mesmo grupo, relata o documento, que atacando
nos “matos e fazendo espera na estrada real, ali já tem acometido a várias pessoas”, atirando,
matando e deixando outros “chumbados”, criava uma sensação de insegurança maior, pois a
“pretexto de vingança, ou de simulados pretextos desconhecidos” passaram todos a andarem
armados671.
Ao serem dispersados pelas forças públicas, os grupos pareciam ter destino certo
para novamente se reunirem com seus aliados e comparsas: o rio São Francisco. A sensação
de insegurança que já era grande naquela região, como escreve o juiz Souza Leitão, devido às
muitas armas que ali já estavam acionadas por outros foragidos da lei, por senhores rurais e
suas milícias privadas, composta por tantos outros criminosos acoitados por eles, aumentava
bastante quando esses agrupamentos de salteadores buscavam as beiras do rio para fugirem ou
se reconstituírem. Num lugar onde toda a gente andava armada, para se defender ou para
atacar, a pretendida monopolização das armas pelo Estado tinha dificuldade de se impor. O
costume de se armar abria a brecha para que o São Francisco virasse roteiro certo para escapar
de perseguições mais ostensivas. Qualquer forasteiro que chegasse armado em qualquer
região seria rapidamente enquadrado em muitas leis e chamaria muita atenção. Nas
localidades do Rio São Francisco, os homens armados eram contratados e acoitados e se
camuflavam mais facilmente para “pretextos desconhecidos” e conhecidos de todos. Ao
mesmo tempo em que atraía esses homens de gatilho, aumentava a necessidade de se armar,
defensivamente ou ostensivamente, na região.
Uma das tantas disputas entre partidos na Vila Nova da Rainha criou uma situação
em que um destacamento foi proibido de entrar na dita vila por conta de uma proibição do

669
A.N. Série Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia, 19 de agosto de 1847. De Antonio
Ignácio de Azevedo presidente da provinvia para Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, ministro da justiça.
670
APB. Manuscritos Governo da província. Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Vila Nova da
Rainha. 1830-1856. Maço 2639. Vila Nova da Rainha, 23 de dezembro de 1831. De Souza Leitão, juiz ordinário,
para presidente da província.
671
Idem.
236

Juiz de Paz. Quando o comandante ameaçou, ainda à distância, entrar à força na vila, ele foi
informado por autoridades locais de que o juiz de paz tinha ido buscar, com a ajuda de um
português de nome João Norberto, forças para resistir à sua entrada alguns “valentões no Rio
de São Francisco”672. Possivelmente se tratava de um conflito em torno dos acontecimentos a
respeito da deposição de Pedro I, que gerou algumas escaramuças pelo interior da província.
Mas vale ressaltar que o português sabia muito bem onde achar mão de obra para sua luta.
Talvez por isso a Guarda Nacional, “principalmente a do centro da província” 673,
tenha tido dificuldade de se organizar. Uma sociedade altamente armada, em que os cidadãos
promoviam sua própria forma de patrulhamento, deixava aos homens de farda um papel quase
exclusivo de alvo no tiroteio social. A propriedade e a vida dos “homens de bens”, que a
Guarda deveria defender, já contavam com exércitos maiores e mais preparados do que
aqueles que o Estado oferecia, que ainda cumpriam papéis de relevância política para esses
senhores rurais nas suas disputas por clientelas eleitorais e conflitos por cargos de
empoderamento usufruídos através do Estado. O Estado de certa forma fazia vistas grossas ou
se conformava com a sua pouca presença armada em regiões como essa. Para os governantes
bastaria garantir que os vitoriosos dessas contendas fossem aproximados ou fizessem parte
dos projetos do Gabinete Imperial e ajudassem o Governo Central a conquistar deputados para
a administração da hegemonia da Corte sobre a nação674.
A falta de policiamento organizado e estruturado facilitava a vida dos bandidos e
obrigava proprietários rurais a terem seu exército para proteger suas propriedades dos mesmos
salteadores e também de inimigos políticos e familiares. O acoitamento era um teatro que
aparentava controle social e poder dos senhores rurais, mas era uma espécie de obrigação de
salvaguarda e acolhimento imposta pelos agrupamentos armados, através de ataques e
violências sofridas por aqueles que não tinham em suas casas de fazenda “valentões” e “peitos
largos” ali acoitados. A reciprocidade de proteção era a regra e não uma via de mão única,
como normalmente é narrada a história das relações entre agregados, jagunços e fazendeiros.
Por ocasião de uma lei que criava corpos de guardas da polícia de infantaria e
cavalaria fora da comarca da cidade, o Juiz de Direito de Jacobina, responsável pela aplicação
dessa lei, pediu, com máxima urgência, a implantação dela com aumento do número de
guardas de 24 para 40, afinal, a Guarda Nacional, segundo ele, não prestava para nada, e por

672
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província Judiciário e Juízes – Vila Nova da
Rainha. 1830-1856. Maço 2639. Vila Nova da Rainha, 07 de julho de 1831. Sem autoria.
673
A.N. Série Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do governo da Bahia, 12 de junho de 1844. Presidente da
província, Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, para Ministro da Justiça.
674
GRAHAM... Op. cit., 1997.
237

esse motivo os “bandos de ladrões e assassinos atravessam impunemente por esse município e
até armados com armas da nação, que se descaminharam em 1831” 675. Segundo ele, mais de
mil armas da nação haviam ido parar nas mãos dos bandidos na Comarca do Rio São
Francisco. Provavelmente, elas chegaram até eles pelas mãos de seus acoitadores, alguns
capitães, tenentes, coronéis da Guarda Nacional, ou através da generalização das armas em
mãos dos povos em períodos de conflitos, como havia passado a província do Piauí e
Pernambuco naqueles tempos de revoltas contra o “absoltismo” de Pedro I. O fato mais
importante aqui, para o fim deste capítulo, é que esses bandidos atravessavam a comarca de
Jacobina em direção à comarca do Rio São Francisco, e era para lá que ia todo aquele
armamento.
Para tentar dar cabo desses bandidos seria necessário “um sistema de repressão e
perseguição”676 tão itinerante quanto eles, ou que pudesse combatê-los nos seus pontos de
entrada e saída do rio São Francisco, pois alguns lugares específicos eram pontos
“importantes para onde convergem desordeiros e malfeitores”677.
Destacamentos ganhavam mais mobilidade do que o comum para combater o crime
nessa região, chamada muitas vezes de “Centro” da província, como os do Tenente Sebastião
Silva Gomes, que estava deliberado a fazer uma “exploração” voltada a caçar “criminosos e
homens armados que encontrar”. Quando não ganhavam mais mobilidade, eram muitas vezes
divididos, pois, assim como o delegado da Barra do Rio de São Francisco, outros entendiam
que a necessidade de postar homens ao norte do rio e no centro, para que se “impedisse os
facinorosos de passar de um para o outro distrito, e que os perseguisse e refreasse”.
Como já destacamos em outras partes do texto, o fato de haver policiamento não
assegurava se livrar das ações armadas, mas, ainda assim, vários juízes insistiam nessa
solicitação, afinal não lhes restava muito a fazer. O Juiz substituto da Vila da Barra insistia
que lhe fosse enviada uma “esquadra” ou destacamento para tentar “acudir as contínuas
desordens e assassinos que estão acontecendo e fazer prender a muitos criminosos que de
outras partes aqui se vem acoitar por contarem no lugar lassidão e apoio por falta de polícia

675
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juizes
– Jacobina. 1828 – 1885. Maço 2430. Bahia; Jacobina, 08 de julho de 1835; 17 de setembro de 1835. De Manoel
José Espínola, Juiz de Direito da comarca de Jacobina, para o Vice-presidente da Província, Visconde do Rio
Vermelho; Idem.
676
A.N. Série Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia, 22 de fevereiro de 1847. De
Antonio Ignácio de Azevedo, presidente da província, para José Joaquim Fernandes de Torres/ do delegado de
polícia Benvenuto Augusto de Magalhães Taques, para o presidente da província, João Joaquim da Silva.
677
Idem.
238

severa”678. Ele destacava a geopolítica bandoleira quando dizia que as autoridades


provinciais, se queriam combater as desordens e crimes naquela região, deveriam se atentar
para o fato de que aquela vila e outras estavam entre dois rios, e que essa posição era
providencial para se cometerem crimes e rapidamente saírem para algum “distrito pertencente
a outra justiça”679. Aquela vila não tinha cadeia segura, a maioria que ali adentrava era
libertada por meio de força por outros criminosos. Para se combater o crime naquela região
era necessário apelar para as milícias particulares, pois quando eram acionadas forças
policiais locais para tais tarefas os bandidos se afugentavam. Imagino que com isso ele queria
dizer que os bandidos ficavam sabendo com a devida antecedência da movimentação de
forças públicas, fosse pelos soldados, muitos oriundos da classe dos homens “perfeitos réus
de polícia”, ou mesmo pelos senhores, interessados em alianças com os bandidos da região.
Para finalizar, o juiz de paz suplente escrevia que a população daquela vila crescia contínua e
rapidamente, sobretudo pelo seu porto, que recebia gente e mercadoria de várias províncias e
outras vilas baianas. Mas, para infelicidade dele, aquele crescimento populacional era feito
maciçamente através de “canoas com [a] canalha de toda a qualidade” 680.

Figura 7: Canoa típica da região do São Francisco, caracterizada por sua carranca, além das
coberturas, muito propícias para se transportar escondido. Fonte: Acervo do Núcleo de Estudos do Vale do São
Francisco. https://confins.revues.org/10166?lang=pt. Zanoni Neves, “Lúcio Cardoso, Maleita e Pirapora.
Historicidade e cultura popular na obra de Lúcio Cardoso”, In: Confins, n. 23, 2015. Disponível em:
http://confins.revues.org/10166; DOI: 10.4000/confins.10166. Acesso em 06 de fevereiro de 2017.

678
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juizes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250, Vila da Barra, 28 de agosto de 1830. De Manuel Dantas Barbosa Abrantes, juiz de paz suplente,
para Presidente da Província.
679
Idem.
680
Idem.
239

A região era tão penetrada de criminosos de toda a província que Francisco Pereira
Dutra, o juiz de direito da comarca, pediu um aumento do destacamento – maior até do que o
aumento sugerido pela lei provincial de nº 35. Ele pediu 100 praças para a comarca. Frente ao
evidente estado de ameaça que os “malfeitores” faziam às autoridades naquela e em outras
vilas, era necessário que ali tivesse mais do que isso. Segundo o mesmo, deveria haver na
Comarca do Rio São Francisco um “aumento proporcionado” de soldados e deveria haver um
destacamento em cada vila para conter os “mal intencionados” e “perseguir os celerados”681.
Essa “canalha de toda qualidade” ia para aquela região por muitos motivos, mas um
deles certamente era a certeza de que o Rio São Francisco oportunizava um espectro maior de
exercício da liberdade para homens e mulheres que compunham a “horda heterogênea” que
era criminalizada e praticava crimes, que recebia acoitamento e eventualmente poderia ter à
disposição, através do rio, alguns roteiros de fuga para continuar a praticar sua restringida
liberdade.
Em 20 de março de 1839, o juiz de direito interino de Cachoeira decidiu interceptar
um destacamento de cavalaria que por ali estava de passagem porque pretendia dispersar
trinta e tantos “suspeitos que fazem uma quadrilha nos lugares do Ribeirão, em Formosa, que
estavam roubando e matando até Curralinho e Genipabu e mais circunvizinhanças” 682. Os
proprietários e viajantes estavam aterrados com aquela quadrilha, pois não conseguiam
realizar seus negócios. “A Quadrilha dos Ladrões” 683 era, para agravar a situação, composta
pelos rebeldes da Sabinada.
A quadrilha de ladrões, que mereceu maiúsculas do juiz, poderia não ser
necessariamente uma quadrilha. Poderia se tratar de vários agrupamentos que trabalhavam
separadamente, apesar de alguma condição específica os unir em determinado lugar e
determinado momento. Um aumento do fluxo mercantil de uma estrada podia atrair esses
homens, a falta de policiamento também ou a possibilidade de fuga e esconderijos
abundantes. No caso aqui exposto fica claro que eles atacavam algum roteiro de comércio, e
que, além disso, a segurança não era das mais organizadas, já que o juiz precisou intervir na
manutenção de um destacamento na vila. Como ex-rebeldes, menos de um ano depois de a

681
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juizes - Barra de São Francisco. 1830-1886. Maço
2250. Vila da Barra, 13 de agosto de 1839. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, paraThomaz Xavier
Garcia de Almeida, presidente da província.
682
APB. Manuscritos. Seção colonial Provincial Juízes de Cachoeira, Governo da província- Judiciário. Maço
2273, Cachoeira, 20 de março de 1839. De Francisco Xavier Oliveira Pereira, Juiz de Direito interino, para
Presidente da Província.
683
Idem.
240

Sabinada ter sido debelada, devem ter se associado durante a sua fracassada tentativa de
romper o cerco do recôncavo, ou talvez como desertores do exército rebelde.
Esse agrupamento foi considerado rebelde por conta de seu passado, sua trajetória ao
lado dos Sabinos nos confrontos de 1837/1838, e não pela sua ação como salteadores. Mas,
diferentemente de Francisco Xavier, Juiz de Direito, os historiadores dentre os quais me
incluo veem nessas ações bandoleiras alguma perspectiva de resistência social. Não que
tenham sido rebeldes do tipo Bandido Social, como descrito por Eric Hobsbawm, mas as suas
ações, vistas através do número ilimitado de desacatos e infrações, constituiriam, se deixadas
à própria sorte, sem a devida repressão de um Estado centralizador, um empecilho, como
foram até certo ponto, para a consolidação de uma governança local e nacional. Impedir os
negócios, o fluxo das estradas, isto é, o perímetro da circulação, com roubos organizados,
produzir moeda falsa e atrapalhar a estabilização de uma moeda, praticar o contrabando e
evitar os impostos de serem cobrados, eram formas de desorganização inaceitáveis para a
consolidação do sistema mundo moderno e de seus estados nacionais calcados mais
amplamente nas finanças estatais, na circulação das mercadorias e no dinheiro líquido.
Assim como foi necessário disciplinar e derrotar a horda heterogênea – de homens
livres, piratas, bandidos, escravizados, “rachadores de lenha e carregadores de água” – para
consolidar o capitalismo como sistema mundial hegemônico, na acepção de Linebaugh e
Rediker, foi necessário disciplinar e enquadrar a “horda heterogênea” de que tratamos para
pacificar e promover a organização interna de trocas, organização do trabalho, das lideranças
institucionais e das leis nacionais. Essas hordas heterogêneas eram aglomerados de pessoas,
normalmente sem lideranças verticais, compostos por uma ralé multiétnica que vivia na
oposição à disciplina do trabalho escravo e também assalariado e que mantinha sua liberdade,
ainda que restringida, pela posse de armas. Podiam ou não agir contra a lei, e mesmo quando
o fizessem não necessariamente intencionavam destruir as leis, mas burlá-las, de maneira que
pudessem viver tangenciando sua integração na sociedade da propriedade, do casamento, da
religião oficial e das autoridades territoriais, à sua maneira. Por esse prisma, mesmo sem
serem rebeldes, eram sujeitos que integraram a história da resistência, ainda que muitas vezes
seus atos possam ter prejudicado muitos homens e mulheres equivalentes a eles.
Os salteadores eram um dos muitos espectros dessa horda heterogênea do Brasil do
século XIX.
Se por um lado esses bandidos não eram heróis do seu povo, por outro a sua presença
promovia uma desorganização no sistema de segurança à propriedade e à condução da
241

normalidade social. Autoridades eram desafiadas de modos bastante distintos, expondo suas
fragilidades, seus medos e a pouca capacidade de controle sobre a população livre itinerante e
armada que estava desgarrada dos laços de controles clientelares.
Esses deslocamentos de autoridade poderiam ser revelados em momentos pitorescos,
como quando o paisano Jorge Dias da Rocha foi preso porque estava de posse de uma lança.
Ele foi rapidamente liberado, pois as autoridades se convenceram de que ele estava com a
lança nas mãos para se proteger dos salteadores daquela estrada. Ao ser solto, ele foi
encontrado proferindo palavrões contra o destacamento que o havia detido temporariamente.
Para ele, o destacamento é que era uma “cambada de ladrões”, incluindo o alferes. Agostinho
Garcia, o alferes, que viu isso tudo ser pronunciado numa taverna, o mandou prender, gerando
certo tumulto. Rocha foi novamente posto em liberdade, mas deixou no ar, e constrangida, a
autoridade do alferes e de seu destacamento, que passaram a fazer às vezes dos salteadores na
narrativa de bar de Jorge Dias da Rocha 684. Se o destacamento não pegava os salteadores, ele
era muito incompetente ou era ele mesmo o salteador. Minimamente deve ter feito muita
gente rir, apesar de o alferes não ter achado nenhuma graça. A vitória momentânea dos
salteadores frente às autoridades policiais permitia a circulação desse tipo de sujeito pelas
estradas justificadamente de lança na mão, além de permitir colocar publicamente a
competência e a idoneidade ruim do destacamento em questão. A presença bandoleira
afrouxou os limites do perigo e dos costumes tradicionais de Jorge Dias Rocha, e talvez de
outros sujeitos.
Mas a infração à ordem e às autoridades poderia chegar ao extremo de os bandidos
constituírem lugares de moradia, povoados de livre trânsito de salteadores e homens do crime,
como foi o caso de um lugar chamado Serraria, no recôncavo da Bahia. Lá se escondiam
homens como Felizardo Fernandes, que era “acostumado a furtar cavalos de companhia de
outros sócios da Serraria, onde foi morador, passando depois a residir na Cachoeira para
melhor tratar desse criminoso tráfico, indo e vindo repetidas vezes” 685.
Aliás, como já discutimos anteriormente, os criminosos podiam criar problemas
políticos entre as autoridades, coisa que eles certamente levavam em conta quando migravam
de um local para outro. A presença de grupos de salteadores gerava muitos conflitos de
juridição entre juízes, delegados, subdelegados, entre outros, especialmente a partir da década
de 1830, quando um Código Criminal e um Código do Processo penal foram criados,
684
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial, Juízes de Cachoeira – Governo da Província – Judiciário.
Maço 2274. Cachoeira, 04 de março de 1841. De Agostinho Roiz Garcia, Alferes.
685
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 407. Subdelegacia de Nagé e Cajueiro, 30 de novembro de 1851.
Subdelegado Domingos Rodrigues Seixas.
242

delimitando algumas novas funções repressivas e punitivas. Na década de 40 do mesmo


século também surgiram novas atribuições, funções ou mudanças significativas de teor das
antigas funções, produzindo novos choques entre elas. Não raramente vemos nos documentos
juízes e outras autoridades atribuindo a responsabilidade do crime à dificuldade de fazer seu
serviço em distritos, termos ou comarcas de outros funcionários, apesar de serem da mesma
comarca os bandidos e suas atuações. Os principais conflitos se davam entre os juízes de paz,
que atuavam em pequenos distritos e que tinham uma delimitação pouco marcada.
Uma solicitação de destacamento para prender “facinorosos” que assombravam a
freguesia de São José das Itapororocas, feita pelo juiz de direito da comarca de Cachoeira,
produziu uma resposta do juiz municipal de Itapororocas, alegando que, além de não possuir
destacamento para ir ao distrito no qual ocorriam os ataques, ele não seria da jurisdição de
onde aconteciam os crimes, que pertenceria ao juiz de direito de Feira de Santana, que dessa
forma não procedeu, não enviando destacamento durante um bom tempo 686. Através de uma
carta como essa, certa revanche política podia ser ressuscitada, criando ainda mais boicotes,
sabotagens de ambos os lados fazendo as vontades dos salteadores, que sempre se utilizavam
das divergências dos grupos sociais
Em outra situação, antes mesmo das reformas criminais, em janeiro de 1829, o juiz
de paz do Conde se explicava ao presidente da província em relação a cobranças feitas a ele
por juízes, vereadores e habitantes da vila a respeito da falta de trabalho dele. O motivo da
cobrança era o fato de um agrupamento de salteadores ter se apoderado de dois lugares, sítio
do Timbó e Rio da Prata, para ali estabelecer sua base de ações criminosas”687. Ao pedir
providências, disseram que o combate ao crime deveria ficar com uma autoridade respeitosa e
obediente às demais autoridades. Em cópia anexa, em que se defendia de seus acusadores, o
missivista admitia que andassem ali “acoitados muitos malfeitores ladrões públicos”688, além
do fato de estarem espalhados também por toda a vila. Admitiu também que a justiça não os
podia prender, nem julgar os que já estavam com culpa formada, por não haver ali “tropa
alguma que lhes possa prestar auxílio”689. Dividia, assim, sua responsabilidade com o próprio
presidente da província.

686
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Juízes de Cachoeira Fundo Governo da província- Judiciário
Maço 2274. Cachoeira, 28 de março de 1841. Do Juiz Municipal de direito Interino de Cachoeira, Albino
Augusto Novais e Albuquerque, para Presidente da província.
687
A.N. Ministério da Justiça AI, IJ¹ 1077. Palácio do governo da Bahia, 12 de janeiro de 1829.
Para Presidente da província.
688
Idem.
689
Idem.
243

Se os dissensos eram tão altos entre a própria burocracia da violência, que dizer dos
habitantes dos lugarejos, escravos e demais grupos sociais itinerantes que viam as suas
autoridades batendo cabeça para combater algum, ou alguns, grupo de salteadores? Como
veremos no capítulo sobre Lucas, era apropriado que a população não tomasse conhecimento
de que as autoridades estavam sendo derrotadas e gastando vultosas somas de dinheiro para
dar fim aos bandidos.
Esses senhores, sem seus peitos largos, recrutados entre essa própria gente que eles
temiam, eram muito menos valentes e eficazes na repressão ao banditismo. As polícias e a
justiça se mostravam oscilantes para combater o crime. Essas relações teciam a maior ou
menor capacidade de o Estado se fazer presente no combate ao crime. Mas isso era medido
pela forma como esses chefes locais conseguiam fazer as instituições existentes funcionarem.
E o jaguncismo, entre outras formas de poder bélico privatista, foi conduzido em nome do
poder de organizar a ordem de Estado. Quando um poder local parecia não estar amplamente
amparado nesse tipo de poder bélico, parecia ter muito mais dificuldade em combater
criminosos de diversos tipos.
Algumas famílias constituíam um grupo próprio de salteadores, fosse para sobreviver
ou para conquistar posições políticas. Por exemplo, a quadrilha intitulada Passos é homônima
do sobrenome da família. Os bandoleiros ligados a ela não eram chamados de jagunços da
família Passos, mas eram integrantes da quadrilha Passos. Eles agiam preferencialmente na
região de Juazeiro, mas transitavam bastante entre vilas e províncias, segundo a descrição do
subdelegado de Itimba. Um dos membros da quadrilha era acusado de mais de 30
assassinatos, e outro de roubar e matar um Juiz Municipal. Eles eram moradores da Vila de
Sento Sé, lado oeste do rio São Francisco. A prática desse grupo era muito ousada, saqueava
cidades inteiras, prendendo as autoridades policiais e judiciais dentro de suas casas e
roubando-as, inclusive. Andavam com mais de 30 homens invariavelmente, quantidade maior
que a da maioria das forças municipais690.
Homens pobres também atuavam com seus familiares. Achamos nos róis de
membros presos em algumas cadeias toda uma família envolvida em algum esquema de furto.
Algumas vezes a referência é curta, fazendo alusão a determinado sujeito que roubava junto
com seu irmão. Nesse caso, a necessidade de complementação financeira, alimentar, ou
alguma condição de proscrição da família poderia levar a essa ação coletiva familiar.

690
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 40. Palácio do Governo da Bahia, 19 de agosto de 1847. De Antonio
Ignácio de Azevedo, presidente da província, para Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, ministro da Justiça.
244

O desprezo e a ameaça pública às autoridades locais poderiam se revelar através de


uma surra dada, por exemplo, no sargento de polícia de Itapicuru por alguns bandidos que ele
insistentemente perseguia. A surra foi dada, segundo o chefe de polícia, apenas para
“amedrontar o destacamento, que os persegue” 691. Mas, ao amedrontar o destacamento,
deixava-se também para o público ver, caso essa informação vazasse, e os próprios bandidos
podiam se encarregar de soltar boatos, como faziam, para que a população toda soubesse da
surra dada no sargento. Uma surra numa autoridade policial era um péssimo exemplo para a
população que era submetida à vigilância e perseguição desses homens. Podia ser mais um
destacamento a virar motivo de galhofa e bravata em tavernas e outros locais, desmoralizando
a segurança pública.
Os boatos em torno da presença dos bandidos era parte importante da política
imperial. Autoridades locais exageravam sobre o volume e a crueldade dos crimes em
determinada localidade para aumentar o grosso da sua tropa, receber armamento, entre outras
coisas que seriam, em algumas situações, usadas em proveito de disputas particulares ou
como recurso de demonstração de poder e afinidade com o poder central. Mas o contrário
também fazia parte do cotidiano político. Como as disputas de cargos e eleições no império,
segundo Graham692, eram definidas através da capacidade eleitoral do candidato – o que
envolvia recursos como “fraudes e força”, “o poder de coagir”, facções armadas, jagunços,
controle da Guarda Nacional, etc. –, era necessário provar pelo lado do rival político a
incapacidade de determinada liderança de conseguir resolver as contendas que exigiam força
e destreza de comando. João José de Moura, juiz de Vila Nova da Rainha, insistia em dizer
que, naquela região até a vila da Barra, próxima do Rio de São Francisco, não existia nenhum
agrupamento criminoso que precisasse ser debelado. Já vimos que essa região era um dos
destinos certos de agrupamentos em fuga, em busca de acoitamento ou para variadas ações.
Muito dificilmente aquela região estaria gozando de uma paz tão duradoura 693.
A presença de autoridades militares, normalmente vindas da capital ou de alguma
outra vila, exigia relatórios circunstanciados para o presidente da província ou chefe de
polícia para que acompanhassem a execução das tarefas, sob o risco de, ao não se relatarem os
acontecimentos, a autoridade policial deslocada ser considerada inapta ou incompetente. Caso
os relatos incidissem contra um juiz, um delegado ou outro funcionário, as autoridades

691
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404, Secretaria da Polícia, 30 de setembro de 1847. Da secretaria de polícia
para João Joaquim da Silva, presidente da província.
692
GRAHAM. Op. cit., 1997, p. 139-239.
693
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da Província, Polícia Assuntos Diversos. Vila Nova
da Rainha, 14 de abril de 1833. De João José de Moura para Presidente da Província.
245

centrais da província tinham de tomar uma atitude, pois a pressão dos inimigos era muito
forte. Não sendo assim, o Estado tentava o máximo possível deixar a resolução das
dissidências, dos crimes, do banditismo, sob o controle das autoridades locais, exceto quando
a não resolução lhe causava maiores danos do que a intervenção contra algum potentado
aliado694.
De todo modo, as autoridades locais precisavam estabelecer um artifício para se
relacionarem com autoridades outras em relação aos bandidos. O que estava em jogo era para
onde e em que grau a presença bandida gerava um “deslocamento de autoridade”. Em alguns
casos essas autoridades eram abertamente desrespeitadas, vitimadas e ou responsabilizadas
pelas ações dos bandidos. Não havia margem para negociação. Era um ou outro. Seus nomes,
valentias, espertezas e contatos era o que estava em jogo.
Em um requerimento que fizeram “os povos” da vila de Santo Antonio do Urubu,
para que as autoridades tomassem providências para obter a paz e a tranquilidade naquele
termo, eles diziam que

homens perversos e malfeitores que roubam o sossego público, e passam a


matar sem o menor temor da justiça, e empregando-se os meios de serem
punidos atrevem-se os ditos a resistirem as ordens de prisão que lhes são
intimadas, atirando com armas de fogo aos que vão prender (...) e por isso
zombam os malvados das autoridades, e continuam nos seus desacatos 695.

Os povos da vila pressionavam o capitão mor, que, sem ter o que fazer a não ser
perder sua representação de autoridade frente àqueles, pediu ajuda às autoridades provinciais.
A ação dos bandidos já ultrapassava aquilo que era considerado mais ou menos normal pelos
povos rurais daquela região, razoavelmente acostumados com esse tipo de ação. Na pena do
próprio capitão, aqueles bandidos não respeitavam nenhuma autoridade e zombavam delas. O
relato não aparece vinculado a nenhum outro informe de que tais ações armadas seriam feitas
a mando ou pelos jagunços ou peitos largos de algum potentado. Se existiam diversos grupos
de bandidos aliados às classes senhoriais sertanejas, uma miríade de tantos outros existiam
sem conexão com essas casas de fazendas, apavorando “povos” e autoridades senhoriais.
Aliás, o hábito de bandidos serem protegidos por autoridades não era exclusividade
sertaneja, como tem insistido certa historiografia do banditismo e do crime. Várias regiões do

694
GRAHAM, op. cit., 1997, p. 139-239.
695
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial, Governo da Província Policia do porto: Capitão mor- maço
3794. Urubu, 30 de julho de 1826. De Joaquim José Cardoso, Capitão Mor, para o Presidente da Província.
246

recôncavo baiano, por exemplo, como temos visto ao longo deste texto, produziam esses
mesmos vínculos. Mas o caso de uma quadrilha que atuava em Cachoeira revela que o aliado
de uma autoridade ali, podia ser o incômodo e a resistência frente a outra acolá.
O Juiz de São Félix, sobre esse caso, pedia para as autoridades a quem ele remetia os
capturados, que, após o julgamento, levassem-nos embora da província da Bahia.

pois as pessoas que roubaram, eles estavam certos que tinham sido quem os
denunciara, e juravam vingança de morte contra aqueles supostos
denunciantes. Alguns destes até foram morar em outros lugares. Avisa que
alguns [bandidos] certamente se mostraram arrependidos e terão pessoas que
iriam lhes querer ajudar, sendo um desses, o inspetor de quarteirão, que o
remetente considera ser “também da quadrilha”. Sugere que eles vão para o
exército e ou marinha e que muitos daqueles ladrões eram guardas nacionais,
por isso o comandante do batalhão auxiliou na captura de vários deles 696.

O juiz não revelava apenas a falta de confiança da população na proteção dos seus
interesses e vida por parte das autoridades, mas também uma parte do motivo dessa
desconfiança. O Inspetor de Quarteirão parecia fazer parte da quadrilha. Apesar de parecer
uma autoridade menor no esquema de repressão e segurança do Império, ele estava ali
naquela posição através de uma teia mais ou menos bem urdida entre poder central e poder
local. Segundo Soto, essa teia era o “resultado do compromisso selado entre poder local e o
central”697. Estavam ligados pelo delegado de polícia, que era quem o escolhia, e este, por sua
vez, era um escolhido direto do presidente da província. Essa escolha não era aleatória. O
Inspetor de Quarteirão atuava diretamente no âmbito da vizinhança e precisava ser
minimamente reconhecido como legítimo por aquela mesma vizinhança. Desse modo, os
inspetores eram uma “intersecção entre público e privado”698. O Estado reforçava a hierarquia
central ao se apoiar numa figura “destacada da comunidade” e, ao mesmo tempo, ela
diligenciava como cabo eleitoral, como instrumento repressivo e de quase espionagem do
cotidiano, para favorecer os laços de clientela do poder privado de que o Estado necessitava.
O Inspetor de Quarteirão obviamente era uma figura ligada a poderes bem solidificados nos
municípios imperiais.
A “quadrilha” era um empecilho para a estabilização da ordem, tão frágil naqueles
últimos anos no recôncavo baiano. Ainda mais porque ela era composta de figuras da Guarda
696
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial, Juízes de Cachoeira Governo da província- Judiciário. Maço
2274. São Félix, 1841. Do Juiz municipal para Presidente da província.
697
SOTO, Maria Cristina Martinez. Pobreza e Conflito: Taubaté 1860-1935. São Paulo: Annablume, 2001, p.
267.
698
Idem, p. 268.
247

Nacional, que deveriam combater os próprios bandidos. A fuga de moradores era algo comum
no recôncavo em épocas de confronto entre ordem e rebeldes. Os salteadores, naquele
instante, faziam para a ordem o desserviço que os rebeldes políticos haviam realizado outrora,
qual seja: a instabilidade demográfica, a dificuldade de uma sociedade nacional de se enraizar
em lares, trabalho, família e território.
Frente a determinados sujeitos, a mesma autoridade que era requisitada para reprimir
ou tranquilizar os ânimos de salteadores em uma dada circunstância podia ser aviltada pelas
ações bandidas em outras condições.
Na região de Vitória da Conquista, as autoridades clamavam pelo retorno de um Frei
que tinha sido transferido para a corte, a fim de conter as ações armadas dos índios. Os índios
vinham atacando e roubando as fazendas sistematicamente, bem como dificultando a
realização do comércio na região699. O documento afirma que os índios podiam prosseguir
“na impunidade como os demais daquelas circunvizinhanças” 700, porque não atendiam à
rendição e nem se importavam com as tentativas das autoridades de repreendê-los. Além da
dificuldade que as autoridades seculares tinham para controlar os índios, necessitando da
autoridade paternal de Estado via Igreja, ou via um frei dessa Igreja, os indígenas, mais uma
vez, faziam parte de uma grande movimentação bandoleira maior naquela localidade, pois as
autoridades sequer estavam conseguindo dar cabo da prisão daqueles outros que agiam nas
“circunvizinhanças”.
Em outra ocasião, a autoridade atacada era a da própria Igreja, que requisitava das
autoridades seculares uma providência. Em São Gonçalo, entrando para o agreste baiano, os
ladrões investiram às vezes contra a prataria das irmandades e igrejas locais. Ao todo, suas
ações já contabilizavam em roubos “uma alamada grande de prata, seis castiçais grandes, um
vazo de prata, um crucifixo, um rosário de ouro, uma toalha de renda e 13 panos considerados
nobres”701. Essa foi apenas uma das muitas reclamações deste padre que passou a ser
perseguido pelos salteadores. Os salteadores, segundo ele, eram homens negros ligados às
senzalas de São Gonçalo702. Mesmo antes, em 1829, o vigário daquela freguesia pedia tropas
pessoalmente ao presidente da província, pois ladrões vinham atacando sua igreja
costumeiramente. Naquela oportunidade os desertores da primeira linha eram os

699
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo, 21 de Setembro de 1848. De José Duarte Serra,
presidente da província, para Antonio Manoel de campos Melo.
700
Idem.
701
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-1889.
Maço 2600. São Gonçalo, 05 de abril de 1835. De João Paulo Ferreira Gomes, juiz de paz, para presidente da
Província.
702
Idem.
248

responsabilizados pelos ataques, mas ele pedia especial atenção para todos os
“desconhecidos” que ali rondavam703.
Algumas autoridades não conseguiam impor sua força sobre esses salteadores ao
ponto de eles virarem vítimas desses bandidos. Em Santa Rita do Rio Preto, Comarca do Rio
de São Francisco, 14 homens armados, vindos das lavras diamantinas, do município de Santa
Isabel, invadiram a casa do Tenente Francisco José de Oliveira e exigiram todo o dinheiro que
ele tivesse. O tenente ofereceu aos “salteadores” “uma letra” no valor de 16 contos de reis
pagável na Vila da Barra. Os bandidos se contentaram com essa resolução e foram embora,
depois de terem ferido mortalmente um escravo do dono da casa704.
O documento não informa se esse roubo foi encomendado por algum inimigo do
tenente. De todo modo, um roubo tão audacioso, dentro da casa de uma autoridade militar,
desprestigiava a autoridade e a hierarquia social.
Alguns anos antes, em 1839, frente a um estado permanente de ameaças públicas que
os “malfeitores” faziam às autoridades naquela e em outras vilas da comarca, o juiz de direito
pediu um “aumento proporcionado” de destacamento para Santa Rita e Formoso. Ele pediu,
inclusive, que o número de policiais para aquela comarca ultrapassasse a lei que designava
100 praças para as comarcas do interior (lei provincial nº 35) e queria que houvesse um
destacamento em cada vila para conter os “mal intencionados” e “perseguir os celerados” 705.
A situação de Santa Rita em 1852, quando um grupo de salteadores invadiu a casa de
um Tenente para lhe tomar dinheiro a ser descontado em outras plagas, é evidentemente a
continuidade de uma presença bandida que parecia confortável e empoderada o suficiente
para aumentar suas ações até ganhar aquela proporção.
Esses bandidos podiam não ser, nem de longe, bandidos sociais, mas suas existências
promoviam conflitos, e, pelo que parece, abriam margens para novos protagonismos de
sujeitos oriundos dos grupos sociais subalternos, do mesmo modo que usavam as brechas
abertas por eles. O banditismo estava associado diretamente à resistência, à repressão
preventiva contra sujeitos mal afamados, expunha a fragilidade de hierarquias e disciplinas
sociais, bem como deslocava publicamente o status na autoridade familiar, militar e política.

703
APB. Manuscritos. Seção Colonial e provincial: Governo da província série Juízes – São Gonçalo. 1829-
1889. Maço 2600. LocalSão Gonçalo dos Campos, 22 de setembro de 1829. Do Juiz de Paz para presidente da
Província.
704
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 407. Palácio do Governo da Bahia, 04 de novembro de 1852. De João
Mauricio Wanderley para José Ildefonso de Souza Ramos, ministro dos negócios e da justiça.
705
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Judiciário e Juízes – Barra de São Francisco. 1830-1886.
Maço 2250. Vila da Barra, 13 de agosto de 1839. De Francisco Pereira Dutra, juiz de direito, para Thomaz
Xavier Garcia de Almeida, presidente da província.
249

Era um empecilho para a realização de certos negócios fundamentais à consolidação de uma


governança territorial dentro dos modernos Estados. Era uma Hidra e uma horda
multicolorida que testava os limites das raças indo para além delas, buscando novos laços ou
novos estratagemas para ações dos de baixo, em que a movimentação das gentes livres
pobres, escravizadas, subalternizadas e submetidas, abria novas possibilidades para se testar
os limites de se viver certa liberdade restringida.
250

Capítulo 11
Lucas e sua “horda de salteadores”: entre a “associação de protetores dos
ladrões” e a feira dos “homisiados”

Rasgou a madeira num encantado desmedido, Oxossi, o grande


caçador; mas não de arco e flecha e sim de espingarda. Era um Oxossi
diferente: sendo com certeza aquele mesmo rei de Ketu e dono da Floresta,
mais parecia com Lucas da Feira, com bandido do sertão (...) 706.

Um agrupamento há muito nos chama a atenção: o “bando” de Lucas Evangelista,


707
mais conhecido por Lucas da Feira (debateremos essa alcunha mais abaixo) . Esse grupo
nos chamou a atenção por inúmeros motivos, sendo o principal deles a memória coletiva local
sobre ele que ainda perdura na região do agreste baiano, especialmente nos arredores do atual
município de Feira de Santana. São mitos, causos, invenções, cordéis, páginas na internet e
livros que ampliam o conhecimento (ou o desconhecimento) sobre Lucas e seu “bando”. Essa
produção intelectual, boa parte dela de memorialistas ou alimentada pela tradição oral,
conscientemente ou não, nutre-se de velhas e novas disputas políticas708.
Uma dessas disputas, muito cara às pretensões dos que pretendem manipular essa
memória, é sobre a possibilidade da colaboração de Lucas e seu grupo com grandes
comerciantes, políticos ou oficiais da região. Para alguns, ter sido um colaborador dos homens
graúdos da sociedade feirense minaria, de algum modo, a memória persistente do homem que
roubava os mais fortes ou que se vingava da sociedade escravista.
Temos indícios de que essa memória sobre o bando existe desde o fim do século
XIX. Em 1896, os “doutores” Virgilio Cesar Martins Reys e Arthur Cerqueira da Rocha Lima
escreviam o seu importante livro (ao menos para os pesquisadores, não sabemos nada sobre a

706
AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. 6ª edição. São Paulo: Editora Martins, 1970, p. 18.
707
Dedico este capítulo à memória de Mateus “do Feira IV” (Matheus Passos). Assim como Lucas, ganhou vulto
de resistência para muitos feirenses. Juntando ao seu nome, com orgulho ou desaprovação, o sobrenome “da
Feira”, Mateus vira, também para mim, um vulto de resistência e camaradagem de um bairro no qual tenho
outras amizades.
708
Existe ainda hoje uma ocupação de solo urbano chamado Quilombo Lucas da Feira e tem sido prática
recorrente da juventude da cidade, em parte vinculada a Universidade Estadual de Feira de Santana, de ressaltar
sua origem com uma conotação de resistência através da referência à cidade como “terra de Lucas”. Há uma
banda com esse mesmo nome. Existe há alguns anos o “Bando do Lucas” que, com seus abraços sujos de carvão,
escurecem a vida de toda a gente que acompanha o Bando Anunciador, especialmente os políticos engomados
para a ocasião. O bando anunciador é a abertura da festa de Nossa Senhora de Santana, padroeira da Cidade de
Feira de Santana. Matheus Passos foi um dos fundadores desse Bando de Lucas.
251

recepção da obra) Lucas da Feira o Salteador709, em que tentaram acabar com o mito heróico
que poderia persistir sobre tal homem 47 anos depois da sua morte.
Em que pese a experiência histórica da ação de grupos de salteadores aliados a
figurões políticos e negociantes das localidades, queremos ressaltar aqui neste trabalho a
importância de perceber, também, a relação de Lucas com os grupos sociais subalternos das
localidades em que viveu ou se escondeu. Queremos fazer notar as margens de autonomia em
meio a tantos escritos que destacam com supremacia a anomia e heteronomia social da ação
dos do seu grupo e dos grupos sociais subalternos como um todo710. Estes sujeitos estão
presentes ao longo da documentação que retrata as ações de Lucas e seu grupo, tendo sido
apenas silenciados.
A aparente excepcionalidade desse agrupamento de bandidos revelou aspectos
significativos sobre a normalidade do contexto ou da sociedade a que estavam ligados. O que
nos diz o caso do “bando” de Lucas sobre a relação com os potentados, que virou um grande
assunto da província da Bahia na metade do século XIX, quando a documentação desse
período entre chefes de polícia, ministros, presidentes de província e juízes nos atesta a
normalidade (ou ao menos a enorme frequência) de ações de grupos maiores, mais furiosos ou
mais bem armados? O que nos dizer sobre a endêmica existência do banditismo, dos
salteadores nas estradas, nos campos e mesmo nas cidades de todos os cantos da Bahia e do
Brasil? A documentação nos dá prova ainda maior de que o banditismo, principalmente nos
sertões do que hoje chamamos Nordeste brasileiro, foi motivado e algumas vezes chefiado por
senhores e potentados locais ou mesmo figuras públicas e chefes políticos de relevo. Qual a
excepcionalidade de Lucas? A excepcionalidade não estaria no bando em si, mas no contexto
político geral e econômico pelo qual passava a Bahia e a região? Não seriam as acusações de
que eles teriam padrinhos, sem perceber nas ações desses sujeitos iniciativas autônomas, a
normalidade, ou uma aceitação tácita, da relação entre foragidos, “criminosos” e gente da
mais alta qualificação social? Mas por que Lucas e seu agrupamento ganharam tal impacto, a
ponto de serem considerados uma das maiores infâmias da nação?
709
Lucas o Salteador. Histórico da sua vida até o seu julgamento e execução, acompanhado do processo dos seus
célebres companheiros Januário e Flaviano. Cachoeira: Libro Thypographia, 1896, p. 03. Essa obra é uma
compilação de muitos contos, cordéis, transcrições de parte dos processos dos membros do grupo, publicados em
jornais do período, memórias orais, entre outros tipos de fontes. O primeiro era Advogado Criminal e o segundo
Antropólogo.
710
Apesar desse argumento não defendo a ideia de que autonomia é uma conquista que se faz afastada e de costas
para a sociedade dos grupos sociais dirigentes e hegemônicos, mas sim a capacidade de manipular e manobrar
situações em contextos desiguais de poder e recursos, mesmo que para isso as metas desejadas pelos subalternos
perpassem por dentro de uma agenda ou do círculo de ações e negociações das classes dirigentes. Ver a
introdução de GOMES, Flávio dos Santos. História de Quilombolas. Mocambos e comunidades de senzala no
Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 07-24.
252

Todas as nações têm pago o inglório tributo de assombrar as suas irmãs com,
pelo menos, um espécime horripilante de uma individualidade destas.
O nome de Luigi Vampa, tão bem descrito e caracterizado na monumental
obra de Alexandre Dumas, dá uma idéia exata da natureza e índole desses
monstros que aterrorizam o gênero humano.
Pranzini, o herói sanguinário executado em Paris é um tipo fiel do quanto
podem ser pervertidos os sentimentos inerentes ao homem social.
Na Inglaterra o famigerado Jack-the ripper – o extirpador – conseguiu
consternar o mundo com sua coleção de crimes inauditos, praticados em
criaturas indefesas e frágeis, porquanto as suas vítimas eram sempre
mulheres.
O Brasil também teve a sua desdita de ser a pátria de um dos maiores
malfeitores que tem aparecido no cenário da vida: Lucas, o célebre Lucas da
Feira, o espantalho dos viajantes que demandavam o centro com escala por
esta cidade [Feira de Santana], é o protótipo exato do quanto se pode ser
cruel, perverso, sanguinário, malvado.
(...) não se pode calcular a que grau de perfeição atingiu o seu cérebro em
inventar torturas para as suas vítimas, roubadas em sua fortuna, vida e
honra711.

Para obter essas respostas, um estudo sobre a vila de Feira de Santana e a relação
econômica entre ela e seus arraiais e termos vizinhos, bem como com a Comarca da
Cachoeira, foi necessário. Buscamos compreender como o bando do Lucas foi um
acontecimento que só ganhou a proporção que teve através de uma intensa reacomodação de
poder por que passava a Bahia e, principalmente, a recém empossada vila de Feira de Santana
no contexto de reordenamento político depois das guerras de independência e lutas do período
regencial, como a Sabinada. O pavor da desordem social, ainda mais quando vindo de um
agrupamento majoritariamente de negros escravizados em fuga, ampliava a insatisfação dos
“homens de bens”. A existência do grupo durante muitos anos em uma vila de grande
importância era um atestado claro para os oposicionistas da vez de que os governantes não
podiam impor a ordem e o bom governo dos cidadãos.
Por fim analisaremos como que uma memória mítica de Lucas foi sendo constituída
desde o momento em que ainda estava vivo e atuante e como ela teve múltiplas recepções
para os sujeitos e grupos sociais na Província da Bahia.
Lucas e o seu “bando”
De forma breve faremos um roteiro necessário para o leitor sobre alguns traços
biográficos de Lucas, mas tentaremos evitar cair no fatalismo das biografias tradicionais em
que o sujeito é narrado como um predestinado que seguiu aqueles traços da infância que

711
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 06 e 07.
253

inevitavelmente o tornariam aquilo que veio a ser, como um seguidor de migalhas de pães de
um destino inelutável712. Aliás, percurso muito comum na forma de narrar a vida de Lucas. Na
pena dos seus escritores, a sua infância rebelde, cheia de fugas e de violências físicas é usada
para justificar o fato de Lucas ter se tornado um salteador. Não há margem de ação autônoma
e individual em algumas dessas narrativas que consiga separar, ou ao menos ver como
processo e não como fatalidade, os dois momentos (ou o processo) que formam a história
desse sujeito: o momento de Lucas como uma criança negra, escrava, fujona e “danada”, e o
de Lucas, o salteador. Tudo é relatado como uma consequência psicológica e natural da
violência escravista. Lucas agiu como agiu porque sofreu com a condição escrava ou, como
numa versão lombrosiana levada à frente por Nina Rodrigues713, Lucas teria virado o chefe de
um bando de salteadores devido a sua proeminente estrutura corporal, típica dos europeus,
que lhe atestava o espírito de liderança, a confiança e a dignidade necessária para agir com a
inconformidade indispensável à sua suposta condição de realeza africana. De modo diferente,
esperamos mostrar que houve uma importância da ambiência social para a formação do grupo
e para o crescimento e visibilidade de suas ações, bem como as escolhas e táticas, além dos
traços de sua própria personalidade e de alguns de seus membros, para garantir a longevidade
própria e a do grupo714.
Lucas Evangelista dos Santos nasceu, como sugere a maioria dos estudiosos, na
fazenda Saco do Limão 715 no dia 18 de outubro de 1807716, dia de São Lucas – esta suposição
baseia-se no hábito de se batizarem as pessoas com o nome do santo do dia de seu
nascimento717. Essa fazenda distava “cerca de uma légua para o sul de Feira de Santana,
pertencente naquela época ao Padre José Alves Franco” 718. Este homem foi quem Lucas

712
LORIGA, Sabrina. A biografia como problema. In: REVEL, Jaques. Jogos de Escala. A experiência da
Microanálise. Editora Fundação Getúlio Vargas. 1998, p. 235-249.
713
RODRIGUES, Nina. As Collectividades Anormaes. Rio de Janeiro: Biblioteca de divulgação científica:
Civilização Brasileira, 1939, p. 160 e 161.
714
Apressamo-nos em afirmar não se tratar de uma biografia ou de um estudo de trajetória, nem como se entende
classicamente, nem das formas mais contemporâneas dessa prática historiográfica. Se assim fosse algumas
opções metodológicas não seriam as adotadas aqui e outro tipo de documentação deveria ser consultada ou
procurada. Aqui optei em trabalhar certas informações, sem grandes problematizações, através do material
empírico secundário.
715
Há uma sugestão do Monsenhor Galvão de que Lucas teria nascido em Belém de Cachoeira, lugar que foi
palco de algumas rebeliões escravas durante o período de mocidade de Lucas, mas o mesmo Lucas afirmou, na
frente do pai de José Alves Franco, que nascera em São José das Itapororocas, na fazenda Saco do Limão, o que
não foi questionado por aquele senhor. Ver: LIMA, Zélia Jesus de. Lucas Evangelista o Lucas da Feira. Estudo
sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana 1807-1849. Salvador: Mestrado em História: UFBA, 1990.
716
Idem, p. 123. Existe toda uma dificuldade de biografar Lucas, pois seu registro de batismo nunca foi
encontrado. A maioria dos traços biográficos dele está exposto em retalhos em diversos tipos de documentos,
além da tradição oral, reinventada aos sabores das disputas, esquecimentos e estratégias das memórias coletivas.
717
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 9 e 10.
718
REYS: LIMA… OP. Cit., p. 10.
254

reconheceu como seu proprietário no seu interrogatório, além de que era assim sabido pelos
habitantes da época e daquela região que já faziam menção a essa propriedade do padre,
como constatamos em diversos documentos. Contudo, sabemos por Reys e Rocha Lima, que
transcreveram o “termo de desistência” dos autos do processo 719, que o padre herdou Lucas de
sua mãe, dona Antonia Pereira dos Lagos720, mas que o deu para o seu pai, o alferes José
Alves Franco, quem nunca exerceu a posse. Lucas disse ainda no seu interrogatório que era
filho de dois africanos escravos dessa fazenda: Ignácio e Maria.
Zélia Lima afirma que Lucas teve quatro irmãos, Jabá, Pedrão, Damasceno e Félix,
além de alguns sobrinhos. Acrescenta ainda que Lucas teria tido um filho de nome Colatino,
que “viveu livre, como fruto da vida no bando”721. Zélia não dá maiores explicações para o
que significaria “viver livre, como fruto da vida do Bando”. Não teria sido esse filho
reivindicado pelo seu senhor do seu pai? Viveu como fugido ou se relacionava como livre
para a sociedade? Refugiou-se em um quilombo? Era temido ou estigmatizado por ser filho
do Lucas e nenhum senhor o queria?
Jabá e Pedrão tiveram ligações com o bando, como sugerem todos os seus
historiadores, de forma direta e indireta, fosse como informantes ou como membros ativos de
suas ações. Segundo Zélia, seus irmãos foram recrutados para a Marinha junto com alguns
outros do bando, para que deixassem de causar distúrbios na região722.
Alguns dizem que a fuga definitiva de Lucas da Fazenda Saco do Limão se deu em
723
1823 , outros em 1828, como sugere Nina Rodrigues 724, que tem a confirmação de Zélia
Lima. Pouco se sabe sobre sua adolescência – termo deveras atual – e do período de recém-
fugido. Ao ser perguntado sobre como viveu tanto tempo nos matos sem ajuda de ninguém,
respondeu que se contentava em viver com 30 a 100 mil reis e que enquanto os tinha não
precisava mexer com ninguém e que não se dava com pessoa nenhuma. O que conseguia era
comprado nas estradas e nunca ia à vila pelo dia, optando pela noite, “onde comprava em
alguma venda o que precisava”725. Obtinha armas, pólvora e chumbo, roubando esses objetos

719
Idem.
720
Sabino de Campos autor do romance folclórico, histórico e ficcional, “Lucas, o Demônio Negro” (Rio de
Janeiro: Irmãos Pongeti, 1957, p. 33) diz que ele era sobrinho e afilhado e não filho, como sugerem Reys e
Rocha Lima.
721
A fonte de Zélia parece ser o romance de Sabino de Campos, aqui citado, porém, esse autor, bem como REYS
e Rocha Lima, apenas citam dois irmãos de Lucas, Jabá e Pedrão. Sobre os outros dois, Zélia Lima não explica
quais suas fontes. Segue depois a descrição exata, tal qual escrito no Livro de Sabino Campos, dos sobrinhos e
sobrinhas e primos e primas de Lucas.
722
LIMA. Op. Cit., p. 153.
723
CAMPOS, Op. Cit., p. 41.
724
Op. Cit., p. 154.
725
REYS; LIMA. Op. Cit., p. 44 e 45.
255

nas estradas quando tinha precisão. Parecia desde sempre carecer de muito pouco, pois
quando foi preso disse do dinheiro que tinha que era “um sello e quatro”, que fora achado na
sua capanga, “não tendo ocasião de acumular, para enterrar, e nem emprestar a alguém” 726.
Já adulto, Lucas, habitualmente, trajava-se de calça e camisa de algodão, chapéu de
couro e pés descalços, e fisicamente era descrito como um

negro, grande, espadaúdo, corpulento, o rosto comprido, barbado, olhos


grandes e ferozes, o nariz achatado, a boca grande, o peito peludo, as orelhas
pequenas, como também os pés e as mãos, faltavam-lhe no maxilar inferior
um dente incisivo e alguns molares esquerdos, era canhoto e tinha ainda uma
cicatriz na mão esquerda que se supunha produzida por uma arma de fogo 727.

Algumas das descrições acima se assemelham às características físicas descritas por


gente que já havia visto Lucas em alguma ocasião, como quando foram chamados para
reconhecer um homem preso que se dizia ser o Lucas728.

726
Idem, p. 46.
727
Descrição que consta no processo verbal de reconhecimento de sua identidade, citado por Reys e Rocha, Nina
Rodrigues, Campos e Zélia Lima. Cito aqui o trecho que está em Nina Rodrigues. Op. Cit., p. 155.
728
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Ano XIV, Quinta-feira, 18 de novembro de 1847, n 268, p. 02. Acessado
em 05/01/2016. Falaremos sobre esse caso um pouco mais a frente.
256

Figura 8: Imagem de Lucas após ter sido amputado por ter recebido dois tiros no braço esquerdo.
Fonte: REYS, Virgilio Cesar Martins; LIMA, Arthur Cerqueira da Rocha. Lucas o Salteador. Histórico da sua
vida até o seu julgamento e execução, acompanhado do processo dos seus célebres companheiros Januário e
Flaviano. Cachoeira: Libro Thypographia, 1896, p. 02. Originalmente não sabemos de quem é a autoria.
Contudo como podemos ver na imagem a publicação original da mesma foi feita em 1848 em alguma revista
ilustrada do período.

Mas Lucas não agiu só. Percebe-se que entre fins da década de 30 e início da década
de 40 do século XIX o grupo pareceu se constituir. As ações ficaram mais violentas e mais
sequenciadas. Zélia sugere que o ápice da participação de membros na quadrilha foi de no
máximo oito integrantes729. Os principais, segundo Zélia Lima, eram, obviamente, Lucas
Evangelista dos Santos, considerado por ela e outros o líder da quadrilha. Nicolau, “crioulo”,
escravo de José Teixeira de Oliveira, que exerceu durante um tempo o trabalho de carregador
de água, função muito comum dos escravos urbanos de cidades de médio e grande porte.
Aparentemente era um dos mais cruéis do grupo. Diferentemente do que Zélia Lima afirma

729
OP. Cit., p. 169. Há sugestões de que a quadrilha chegou a 30 membros.
257

em sua dissertação, Nicolau não foi preso em 1844, mas sim morto em 12 de março de 1844.
Nicolau parece ter sido um dos primeiros a serem recrutados para o grupo. Sua presença e
conhecimento das coisas da cidade, já que era aguadeiro e se deslocava bastante por ela, deve
ter atraído a parceria. José, considerado um cabra730, era escravo do negociante e morador da
Feira de Santana João Gomes Ribeiro. José, antes de ser do grupo de salteadores, já era
considerado uma pessoa de proezas como ladrão. Bernardino, cabra, escravo de Maria da
Circuncisão, tinha dentes pontiagudos e argola dourada de metal em uma das orelhas.
Flaviano, cabra, escravo da menor Antonia, filha de Antônio Luiz de Medeiros. Lourenço,
conhecido como Fulô, escravo de Antônio da Cunha, morador do termo de Santo Amaro, no
recôncavo da província. Este não era de grande conhecimento público como integrante do
bando, mas sim pelos relatos policiais. Não deve ter sido um de seus membros mais ativos,
agindo apenas em momentos pontuais. Benedito do Carmo, escravo, mas não se sabia de
quem. Rezava a lenda local que não era violento com suas vítimas. Havia ainda a presença de
dois escravos, de donos não relatados, Ângelo e Joaquim, de pouca duração também no
agrupamento. Manoel, escravo de Manoel Ferraz da Mota, era parente de Januário. Existiram
outros que foram flagrados em ação com os relatados acima, mas que nada comprova uma
ação contínua como membros “fixos”731.
Infelizmente as informações fornecidas pelos pesquisadores sobre os outros membros
do grupo são muito reduzidas. Nos libelos de culpa e outros documentos produzidos depois da
prisão ou morte de alguns dos acima anotados – existem muitos sumidos – nenhum deles fala
nos sobrenomes, idades, nascimentos, entre outras informações.

730
Esse termo tem uma grande ambivalência no mundo sertanejo do século XIX. Ela diz respeito tanto a
definição racial quanto às características morais dos homens de cor. Muitos afirmam ser o “cabra” um ser
humano de diversas misturas, predominando entre eles um consenso de que eram pessoas que tinham uma
predominância fenotípica dos “sangues inferiores”. Devido a mistura de elementos índios e negros, mulatos e
negros ou de caboclos e negros, derivou um entendimento do “cabra” como a soma de características morais
degeneradas e propícias à valentia, distúrbios e crimes. Esse entendimento fez do “cabra”, em algumas regiões,
sinônimo de cangaceiro ou de jagunço. Ver: MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São
Paulo: EDUSP, 2004, p. 75 e BOAVENTURA, Eurico Alves. Fidalgos e Vaqueiros. Salvador: Conselho editorial
e Didático EDUFBA, 1989, p. 369.
731
Essas breves informações dos membros do grupo foram tiradas de LIMA. Op. Cit., p. 170-172. Ela as retirou
dos escritos que antecederam sua dissertação, como os já citados livros de Reys e Rocha Lima e Sabino de
campos. Evitei fazer descrições das características psicológicas e morais dos membros da quadrilha, presentes
nessas obras, com o intuito de evitar a fórmulas típicas da criminologia moderna de associar os crimes aos
comportamentos enquadrados como desviantes e patologizantes. Segundo Foucault, a união entre a psiquiatria e
a criminologia produziu um tipo de “organização discursiva” que visava provar a anormalidade e,
consequentemente, a inevitabilidade da prática do crime de determinados sujeitos. O resultado dessa junção não
era a condenação do sujeito pelo seu crime, mas a penalização do seu comportamento pregresso. Narrativas
comportamentais eram adicionadas com intuito de fabricar discursivamente o “monstro moral” do qual a
sociedade precisava ser protegida. Ver: FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
258

Mas podemos notar que o grupo é uma “comunidade de fugitivos”. É uma


representação microscópica das encruzilhadas e opções que muitos dos que fugiram da
escravidão fizeram. Mostra bem também o entrecruzar entre recôncavo e agreste, tão
delimitado no discurso historiográfico. Escravos urbanos e rurais, cabras e crioulos, do
recôncavo e dos sertões e agreste, de profissões variadas, compartilhando a aventura de viver
como livre e contra as autoridades de uma sociedade fundamentada nas relações de
propriedade, sendo eles próprios as primeiras de muitas propriedades retiradas, por eles
mesmos, de seus senhores.
Mas, brincando com o título do livro de Muniz Sodré, porque que esse bicho chegou
à Feira732? Quais as condições políticas, sociais, geográficas, econômicas, entre outras, para
que um grupo, não muito diferente de alguns outros que existiram na história do século XIX
escravista, chegasse a ter tamanha repercussão e longevidade?
A feira da Feira: crescimento econômico e conflitos políticos
Feira de Santana no início do século XIX, posteriormente à independência, fazia
parte da grande Comarca de Cachoeira e administrativamente era parte da freguesia de São
José das Itaporocas733. A comarca de Cachoeira ocupava quase toda a região do recôncavo
baiano, notório centro da plantation açucareira brasileira e também adentrava em territórios
de diversas freguesias da região “ambiental” do agreste baiano, zona de convergência entre a
vegetação verde e úmida com a vegetação mais seca e árida. Ao subir em direção ao norte, o
recôncavo passa a se confundir com uma espécie de “sertão verde”, na linguagem do
estudioso do banditismo Frederico Pernambucano de Melo734.

732
SODRÉ, Muniz. O bicho que chegou a Feira. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1991.
733
Apesar de inserida na Comarca de Cachoeira, os governos criaram o hábito, pelos motivos que iremos expor
abaixo, de enviar juízes de direito para atuar em Feira de Santana como se ela fosse uma Comarca.
734
Guerreiros do Sol. Violência e banditismo no agreste do Brasil. São Paulo: Girafa editora, 2004, p. 342-352.
259

Figura 9: Recorte do Mpaa da Bahia. Enfoque sobre a Vila de Feira de Santana e vilas vizinhas.
NAEHER... Op. cit., p. 310.

O arraial de Feira de Santana, em 1819, contrastava bastante com a maioria das vilas
de sua comarca. Nesse ano, os bávaros Spix e Martius, ao passarem pelo povoado de Feira de
Santana, escreveram se tratar de um vilarejo desprezível, nada tendo ali a não ser uma rua
muito pobre, com uma população também igualmente pobre735. Alguns comentaristas
afirmaram que os cientistas passaram no arraial numa época em que ainda não havia a famosa
feira de Feira de Santana e que, nesse mesmo ano, o lugar e todo o sertão teriam sido
acossados por uma das devastadoras secas do século XIX.
Foi perto desse período que o movimento de ir e vir de bois começou a fazer de Feira
de Santana uma opção de parada para descanso dos animais e para os seus vaqueiros. Feira de
Santana possuía pequenos lagos (os olhos d’água) que se formavam a partir da água que
minava do solo, tornando o local propício para as pastagens dos animais que ali ficavam a fim
de descansarem e se alimentarem antes de voltar a andar as léguas que faltavam para Salvador
ou Cachoeira (outros passaram a ficar ali parados enquanto eram curados de alguma doença e
novamente engordados). Esse ponto de parada de vaqueiros e viandantes se transformou em
menos de uma década num ponto importante de compra e venda de bois por negociantes e
atravessadores interessados em comprá-los, além de mais baratos, melhor conservados antes
da partida para a capital.

735
SPIX: MARTIUS. Viagem pelo Brasil. 1817-1820. Vol. 2. Belo Horizonte: Itatiaia, p. 200-203.
260

Boa parte da transição comercial baiana passava por essa região. “Duas das quatro
principais estradas da Capital para o interior passavam por Feira de Santana” 736, além de
caminhos e picadas, sendo uma dessas a famosa estrada das boiadas, que trazia o gado vindo
das regiões do São Francisco, do Nordeste do estado e até mesmo de outras províncias, como
Piauí e Goiás. Essas estradas seguiam direto para Salvador a pé e/ou a cavalo ou então para a
região portuária de Cachoeira, de onde as mercadorias iam para Salvador pelos caminhos do
rio Paraguaçu até chegar às águas da Baía de Todos os Santos e vice-versa737. A região norte,
central e o recôncavo estavam ligados comercialmente a Feira de Santana por estradas
construídas pelos governos provinciais entre 1837 e 1860.
Além disso, o termo de Feira de Santana, que era uma encruzilhada entre Cachoeira
no recôncavo (e suas plantações de açúcar) e as fazendas de gado do sertão, era cercado de
pequenas fazendas e roças dedicadas à policultura. Desde pequenos plantadores e roceiros de
mandioca, médios proprietários de tabaco, até grandes plantadores de algodão, sem falar das
miríades de criações de animais.
Isso fez da feira de Feira de Santana uma das mais atrativas da região, podendo-se
encontrar couro e suas manufaturas, boi em pé, cortado, frutas, farinha, fumo, feijão e toda
sorte de produtos de subsistência para os pequenos roceiros, gente livre pobre e escravaria da
região. Grandes lojas também se instalaram lá, vendendo produtos de alta estima e valor para
os grandes fazendeiros, como jóias (vindas do alto sertão da Bahia ou mesmo das lavras
diamantinas, e de ouro, vindas de Jacobina, Rio de Contas e Lençóis), botas importadas,
perfumes, vinhos, etc.738
Floresceram bem, em função disso, as fazendas das margens do rio Jacuípe. Segundo
Freire739, em 1835 eram mais ou menos 317 fazendas de gado nas margens do rio Jacuípe,
com uma média de 10 escravos por fazenda 740. Um fazendeiro como o capitão José Ferreira
da Silva, que era o segundo maior proprietário de escravos da região, possuía 71 cativos na
sua fazenda Vitória, nas margens do rio do Peixe, afluente do rio Jacuípe, distante sete léguas
de Feira de Santana741.

736
POPPINO... Op. cit., p. 68.
737
Idem.
738
Assim descreve, em diversas passagens, Eurico Alves Boaventura o comércio do século XIX e iniciar do
século XX no seu livro, Fidalgos e Vaqueiros. Op. Cit., 1989.
739
FREIRE, Luis Cleber Moares. Nem tanto ao mar nem tanto a terra: Agropecuária, escravidão e riqueza em
Feira de Santana, 1850-1888. Dissertação de mestrado em história UEFS: Feira de Santana, 2007, p. 15.
740
Idem, p. 57.
741
Idem, p. 24. Daremos certa ressalva a crescente presença escrava e negra na região, para melhor entender o
porquê dos anos 40 do século XIX, no termo da Feira de Santana, ter sido um dos aspectos motivadores do
encontro de tantos escravos fugidos que resultou, a nosso ver, a formação do grupo de salteadores.
261

Em 1828, quando Lucas já se encontrava fugido e começando a virar um adulto, a


Feira de Santana dos Olhos d'Água já havia ultrapassado a feira do Capuame (anteriormente a
maior feira de Gado da Província), constituindo-se um dos arraiais de Cachoeira de maior
importância comercial e fluxo demográfico, tendo, por volta de 1835, 14.692 habitantes,
sendo que, destes, 30,2% eram escravos742.

Figura 50: Rua tomada por populares em um dia de feira, na Vila de Feira de Santana.
Aproximadamente final do século XIX. NAEHER... Op. Cit., p. 308.

742
Op. Cit., p. 37 e 40. Um viajante estrangeiro sugeriu em torno de 16.000 moradores na vila de Feira de
Santana no final da década de 70 do século XIX. Segundo ele a população tinha “um quinto de brancos, um
quinto de negros e três quintos de cor (mulatos)”.
262

Figura 11: Mercado de Gado na feira de Feira de Santana. Primeira metade do séulo XX. NAEHER...
Op. cit., p. 309.

A importância daquele povoado cresceu bastante naqueles tempos ao ponto de, em


1833, ela se emancipar à condição de vila. Essa emancipação não foi um “fato” puramente
econômico. Ao contrário, a política teve relevante importância nessa mudança. Segundo
Rollie Poppino, participaram “da luta [de independência] muitos patriotas de Feira de
Santana”743. Não lutaram apenas do lado “patriótico”, se envolveram também com os levantes
federalistas no rastro dos “descontentamentos que sempre existiu durante o tempo de Pedro
I”744 e no período regencial brasileiro.
Poppino estabeleceu uma divisão, que não é plenamente aceitável para justificar as
posições políticas em torno da aceitação ou refutação das ações federalistas no recôncavo, que
aponta que, em geral, “os proprietários de terra que efetivamente exerciam a direção do
governo local eram a favor do staus quo, enquanto os que não eram proprietários preferiam a
federação. Em Feira de Santana, tal qual como em quase toda a área restante da comarca de
Cachoeira, o partido federalista era numeroso e agitado” 745. Esta tese não é plenamente
aceitável porque não havia essa pureza econômica em nenhum dos dois lados, ainda que o
perfil social das principais lideranças federalistas fosse de “políticos, periodistas, militares e
setores médio e, sobretudo, populares”746. Nos documentos publicados em jornais ou naqueles

743
POPPINO... Op. Cit., p. 21 e 22. Lembra ele que a mais célebre “feirense” teria sido Maria Quitéria, que se
disfarçou de homem para lutar contra os portugueses.
744
Idem, p. 23.
745
Idem.
746
REIS... Op. Cit., 2003, p. 57.
263

que chegaram a ser expostos nos jornais, nota-se um conteúdo antilusitano e com sérias
pretensões de reprimir seu domínio sobre o comércio da província. Obviamente, os setores
vinculados às grandes propriedades e à propriedade das grandes massas escravas sentiam-se
mais expostos às mudanças de regime e tendiam ao conservadorismo. Mas quase nada foi
abordado pelos federalistas em relação “ao sistema escravista e a discriminação racial” 747,
sustentáculos das classes senhorias que dirigiram o processo de unificação nacional e
formação do Estado nacional.
O fato de que em Feira os federalistas estivessem atuantes é confirmado por João
Reis, que afirma que “só em Feira de Santana o ‘partido’ federalista teve um tímido respaldo”
748
, sendo sufocado, como no restante da província, especialmente na Capital e no recôncavo,
mas voltando a reaparecer durante os dias que se seguiram à Sabinada.
Antes de entrarmos nos capítulos da Sabinada, vale dizer que, dez meses depois dos
levantes de 1832, Feira de Santana seria elevada à condição de vila, vindo a se tornar a sede
do município de Feira de Santana que abrangia, além dela, Ipirá, Riachão do Jacuípe,
Conceição do Coité, Serrinha, Irará e Coração de Maria, além de três freguesias: Santana do
Camisão, São José das Itapororocas e Coração de Jesus do Pedrão. A passagem do povoado à
condição de vila se deveu, sugere Poppino, aos desejos do governo imperial de fincar um
aparato institucional e militar mais apropriado para uma “ação mais imediata sobre uma
região conhecida por dar guarida a elementos hostis”749 a ele e, além disso, para forçar o
“novo município à obrigação de organizar dois regimentos da Guarda Nacional, que ficariam
sob o comando supremo do Presidente da província”750.
Ambos os planos saíram pela culatra: a elevação da vila gerou uma série de conflitos
internos pelo controle do aparelho municipal e provincial, se dando um desses conflitos
dentro da própria Guarda Nacional, continuadamente envolvida nos assuntos políticos, sendo
inclusive um dos focos das ações rebeldes dos sabinos.
Nas primeiras eleições, entre julho e agosto de 1833, o clima foi por demais tenso, “e
751
onde todos os temperamentos se extravasaram” devido aos protestos e rumores de que a
eleição havia sido fraudada. Três candidatos dos sete que deveriam ser escolhidos para
vereadores em Feira de Santana foram acusados de não cumprir com os critérios estabelecidos
para a posse. Dois foram acusados de serem criminosos (Manuel da Paixão Bacelar e Castro e

747
Idem. p. 63.
748
Idem, p. 61.
749
OP. Cit., p. 25.
750
Idem.
751
Idem.
264

Vicente Ferreira de Araújo Campos), e o outro, o Juiz de Paz de Santíssimo Coração de Jesus
do Pedrão, Antônio Honorato da Silva Rego, de não ter dois anos de moradia comprovada 752.
“Dois grandes partidos armados”753 se constituíram, um a favor da posse e outro
contrário. A Câmara de Cachoeira, a quem ainda cabia o fórum político sobre a nascente vila,
ignorou as acusações e emitiu os diplomas eleitorais, dando posse aos candidatos eleitos.
Contudo, esses documentos foram roubados por dois homens em Belém de Cachoeira 754,
distrito que ficava a meio caminho da vila de Feira de Santana. Começava assim, com roubos
e acusações de crime entre os grupos dirigentes, a história política e administrativa da vila.
Acusações que seriam trazidas à tona novamente quando das ações do agrupamento de Lucas.
Na Guarda Nacional os conflitos que marcaram sua trajetória têm início em 1835,
quando o Coronel Pio Lopez Cesar emitiu um documento para suspender as eleições para o
posto de Tenente Coronel e Major do Batalhão da Guarda Nacional da Vila de Feira de
Santana, mantendo os oficiais antigos em seus postos 755.
O motivo da confusão teria sido a discordância entre oficiais da guarda sobre a
definição do ponto de encontro das tropas para o procedimento do pleito para alguns dos
postos de oficiais dos batalhões da Guarda Nacional.
Na Guarda Nacional a escolha dos oficiais era feita através de pleitos eleitorais. No
caso dos oficiais inferiores, os soldados se reuniam em suas paróquias, desarmados, e
votavam de modo secreto e individual. No caso dos oficiais mais graduados, o pleito se
realizava em uma assembleia de oficiais, sargentos e furriéis. Ambos os procedimentos eram
realizados sob o controle do Juiz de Paz do local designado 756.
A eleição que havia acontecido sagrou para Tenente-Coronel o capitão Manoel
Simão Victória e o major Francisco José de Meireles e foi contestada através de uma
representação dos oficiais e inferiores do batalhão757. Eles escreveram um documento para o
presidente da Província no qual usavam a manutenção da ordem e a grande circulação de
pessoas estranhas naquela vila, especialmente durante sua feira, como pressão para uma
rápida tomada de decisão:
752
Idem. p. 26.
753
Idem.
754
Idem. Apenas o Vicente Ferreira de Araújo Campos foi considerado inapto ao cargo legislativo.
755
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço1309. Feira de Santana, 12 de agosto de 1835. Manuel da Paixão e Castro, Luiz José Pinto da Souza
Sampaio, Joaquim Pires Cerqueira, Joaquim José Pereira Mangabeira, Padre Francisco da Silva Moraes, para o
Presidente da Província, Visconde do Rio Vermelho.
756
SILVA, Wellington Barbosa da. Entre a Liturgia e o Salário. A formação dos aparatos policiais no recife do
século XIX. (1830-1850). Jundiaí: Paco Editoral, 2014, p. 44 e 45.
757
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 04 de agosto de 1835. Sem autor.
265

(...) como não esteja ainda sanado os males e frutos das discórdias,
necessário refletir que tendo avultada população e comércio nesta vila e que
pelas feiras, onde concorre grande número de indivíduos a comerciar, e por
conseguinte sendo preciso uma polícia ativa em que se veja restabelecida a
união, por quanto é bem reconhecido que as Guardas nacionais ainda de
comum acordo com as autoridades policiais (...) tem resultados quanto mais
excelentíssimo senhor no estado presente desta vila onde motivado por
ilegalidade naquelas eleições já feitas por incompetente juiz por não ser do
lugar da parada do batalhão, já votando oficiais do conselho de disciplina, já
finalmente outros motivos equivalentes que comprovados com documentos
levou-se ao conhecimento desse (...) e que agitado os ânimos, impossível é
incumbirem-se e parece que deve acrescentar que permanecendo a resolução
de vossa excelência (...) talvez ao apuro de desordem sem esta ser
patentemente as vistas a vossa excelência que só deseja a tranquilidade e boa
harmonia dos povos e é público se acharem os espírito em grande número de
habitantes deste município indispostos semelhante respeito e no estado de
dilaceração certamente a ordem social será sofredora, causado pela falta de
polícia, e tendo vigor a primeira deliberação do antecessor de vossa
excelência que decidindo a aquela falta de observância das disposições de
Direito e conflito de Jurisdição já deu princípios a remédios o mal, e
necessário é informar a vossa excelência que julgando tais faltas prescritas,
classificadas no art. 55 da lei de 18 de agosto de 1831, essa vila a ser
entregue unicamente a descrição da província, por quantos semelhante júri
revisto ainda não se organizou e bem possível se é formá-los pelas
dificuldades não estranhar vossa excelência. A vista de semelhante poderosas
como melindrosas circunstâncias, em que se acha ameaçada esta vila,
dependendo da cooperação de vossa excelência no qual se confia a fim de
aparecer a completa ordem pública, o que se espera de vossa excelência.

Pedia-se ao Pio Cezar, comandante da 1ª Legião, que procedesse com novas eleições,
pois que “recorrendo tais eleições em cidadãos que não estavam em circunstância de ser
eleitos por não ter os requisitos exigidos pelo artigo 13 da Lei das Reformas das Guardas
Nacionais” se evitasse a falta de policiamento, “evitando grandes catástrofes que tem
ameaçado e visto entre nós”758.
Faziam menção às ações de grupos de bandidos e salteadores que, sabemos, já se
desenvolviam na região por conta do crescimento vertiginoso da sua feira, além das ações de
grupos políticos rebeldes.
O Coronel Chefe da Guarda Nacional do 1º Distrito, Pio Lopez César, respondeu à
representação feita pelos oficiais inferiores através de documentos expedidos pela Câmara de
Vereadores. Nesta resposta afirmou que não procederia como a Câmara lhe mandava, pois

758
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 17 de junho de 1835. De Manuel da Paixão Barcelos e Castro; José Franscisco
Boaventura; José Teixeira de Oliveira; Francisco José de Meireles; Padre Francisco da Silva; Joaquim José
Pedreira Mangabeira para Coronel Chefe da Guarda Nacional, Pio Lopes Cesár.
266

achava que seria como agir a favor da ilegalidade no que diz respeito à lei das Guardas
Nacionais: “querendo tornar-me como cúmplice na infração feita das mesmas leis”759. Sobre a
suposta ilegalidade de ter sido o pleito feito na praça do comércio, local do 1º distrito, ao
invés de ter sido realizado pelo juiz do 2º distrito, afirmou ele que a culpa só podia recair
sobre a Câmara por ser omissa na publicação de suas resoluções, “que me devia ser
participada, assim como a todos os habitantes do Município” 760. Ele refutou também o
argumento de que os votantes não eram qualificados no artigo 13 da mesma lei citada, já que,
segundo ele, os dois eleitos, Francisco Xavier Cerqueira e Manoel Bernardino dos Santos,
tinham as qualidades necessárias por lei, sendo o primeiro advogado e detentor de renda
maior que 200 mil réis e o segundo negociante. O Coronel ainda levantou suspeita sobre a
parcialidade da Câmara, dada a forma com que vinha se pronunciando, a seu ver, de forma
pouca “airosa”. Afirmou que fazia cumprir a lei dando reconhecimento a todos da Companhia
a respeito dos eleitos. Finalizava afirmando a forma criminosa com que estavam politicamente
divergindo e lembrava a esses oficiais e à câmara seus deveres de obediência, tão necessários
à subordinação da tropa: “o seu procedimento longe de evitar a grandes catástrofes (...) nos
ameaça em razão da falta de polícia”761.
Dois dias depois os oficiais do Batalhão do 1º Distrito responderam. Mandaram outra
representação para a Câmara, por meio da qual avisavam que não obedeceriam à ordem dos
dois eleitos (major Manoel Bernadino dos Santos e o tenente coronel Francisco Xavier
Cerqueira) nas eleições que eles consideravam ilegais. Alegavam que não teriam sido
avisados em tempo suficiente para melhor organização para o pleito e que os eleitos não eram
guardas nacionais, o que, segundo os oficiais, era critério do artigo 13 da lei da Guarda
Nacional. Além disso, a eleição não teria sido presidida pelo Juiz de Paz da localidade em que
se procedeu o pleito, onde parou o batalhão, como, segundo eles, obrigava o artigo 54º da Lei
da Guarda Nacional. Afirmavam que tais eleições só podiam ter sido feitas atendendo aos
interesses e “desejos particulares”762. Assinaram essa representação 16 oficiais.
Depois de tanto imbróglio, decidiu o Presidente da província mandar o comandante
da 1ª Legião proceder às eleições para Tenente Coronel e Major da Guarda Nacional,

759
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência da Câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 19 de junho de 1835. Do Coronel Chefe da Guarda Nacional, Pio Lopes César,
para Presidente e vereadores da Câmara.
760
Idem.
761
Idem.
762
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 21 de junho de 1835. Coronel Chefe da Guarda Nacional, Pio Lopes Cesár, para
Presidente e vereadores da Câmara.
267

decretando uma vitória política para os suplicantes, através de uma decisão política, alterando
o destino da Guarda Nacional local763.
Poderia ser uma possível divisão que ficaria evidente em Feira de Santana entre
aqueles que viriam a apoiar os rebeldes da Sabinada? Não sabemos, mas com base no
documento a seguir podemos entender que a Guarda Nacional, na vila de Feira de Santana, se
destacou como um foco de ação dos rebeldes.

Tendo Vossa Excelência mandado estabelecer um destacamento de Guarda


nacional nesta vila para manter o sossego público, o contrário aconteceu;
porque alguns oficiais do batalhão unindo-se com pessoas mal
intencionadas apresentaram-se (segundo consta) no dia 24 de dezembro
findo com armas, com frívolos pretextos de vir a tropa prender a muitos e
continuando em alarme até o dia 27 a tarde retiraram-se em (ilegível) para o
Jacuípe, onde reuniram-se com mais pessoas, e chegaram ao arrojo de no dia
1º de janeiro corrente a cometerem e baterem-se com a força legal
estacionada pelo Juiz de Paz de Santa Luzia Freguesia de São Gonçalo (...)
Tendo o Coronel Comandante desta Comarca oficiado no dia 27 de
Dezembro passado, do Arraial de São Gonçalo que faria a marcha das forças
constitucionais para esta vila e que desejaria fazê-la sem ser provocado pelos
facciosos a pôr a vila em assédio e que utilizada a tropa de seu comando
então não responderia pelos estragos que aparecessem; em virtude de que
reuniu e com sacrifício esta câmara no dia 28 do mesmo mês e obedecendo-
se informações do tenente Coronel do Batalhão da Guarda Nacional desta
vila, respondeu-se ao dito Coronel que os Guardas aquartelados haviam se
ausentado levando os armamentos e cartuchames, e que por esse motivo não
podia assegurar a entrada feliz e franca como desejavam os honrados
habitantes, cuja informação parece ter utilizado porque então foram
queimados os matos pela estrada convieram todas as cautelas na entrada das
forças da legalidade764 (grifos nossos).

Depois que tropas enviadas pelo governo adentraram a vila para caçar os
inimigos, a vila se conservou em paz, porém, era considerado indispensável ficar ali por
alguns meses uma força considerável e bem dirigida a fim de pacificar completamente aquela
“infeliz” vila, porque não teriam sido completamente extinguidos tais amotinadores765.

763
APB, Manuscrito Seção Colonial Provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 16 de junho de 1835. De José Herostre da Silva Juiz de paz do segundo distrito da
vila de Feira.
764
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de
Santana. Maço 1309. Feira de Santana, 17 de janeiro de 1838. De João Chrisóstosomo Correia, Luis José pinto
de Sampaio, Francisco da silva Moraes, Antonio... Neves, Raimundo da silva Pinto, Joaquim José Pedreira
Mangabeira para Antonio Pereira Barreto Pedros, presidente da província. “As forças da legalidade” foram
calculadas em mais ou menos 280 homens, comandadas pelo Coronel Rodrigo Brandão. Os homens da Guarda
Nacional que “abertamente se opuseram” contra as forças legais eram da Guarda Nacional, como confirma
POPPINO, Op. Cit., p. 47.
765
APB. Manuscritos Op. Cit. 17 de janeiro de 1838.
268

Apesar de o município ter se mantido fiel à coroa, Feira de Santana foi palco para as
ações dos federalistas da Sabinada, que sustentaram “com fundos provenientes do Governo
rebelde, ações e uma grande batalha na região” 766.
Um dos desdobramentos das ações da Sabinada foi a confirmação de que Feira de
Santana era uma cidade de sanha oposicionista, disposta a criar distúrbios. Essa fama foi
crucial para a grande polêmica em torno das ações de Lucas que alcançaram os leitores dos
jornais em toda a província. Outro desdobramento, mais imediato, foi a formação, segundo
Zélia Lima, de uma quadrilha formada pelos desertores do movimento federalista,
comandados por Higino Pires Gomes, que atuavam nas localidades de Feira de Santana e no
Recôncavo767. Higino Pires, numa tentativa desesperada de romper o cerco feito pelos
legalistas ao recôncavo, adentrou com 500 homens em Feira de Santana, tomando por algum
tempo o controle da cidade768. Para alguns autores, ele teria sido recebido de forma
entusiástica769, para outros, nada mais passou do que uma breve ocupação militar770. Logo que
Higino precisou fugir, livrou seus “soldados” do compromisso com ele, pois a luta na Capital
se anunciava perdida. Seus soldados se espalharam em fuga pelo interior adentro 771. Há 12
léguas de distância, Higino se abrigava na fazenda de seu irmão e lá (no distrito de Humildes)
tinha uma guarda pessoal com alguns homens considerados “facinorosos”. Para lá teriam ido
muitas armas que o governo durante meses não cessou de procurar772.
Muita pólvora, muitas armas, muitas fardas e várias mercadorias de subsistência das
tropas transitavam nessa região. As fazendas de Feira de Santana e seu termo contribuíram
com muita carne e farinha para os combatentes de 1822 e, ao que parece, para ambos os lados
durante a Sabinada. Todas essas mercadorias iam e viam por estradas e picadas por onde
circulava muita gente fugitiva, desertora, salteadora, “vadia”, que percebia, sentia e,
provavelmente, se aproveitava da desestabilização da ordem, inclusive se apropriando desses
armamentos.

766
POPPINO... Op. cit., p. 46.
767
LIMA... Op. cit., 1990, p. 107.
768
ARAÚJO, Dilton Oliveira. O Tutu da Bahia. Transição conservadora e formação da nação 1838-1850.
Salvador: EDUFBA, 2009, p. 339. POPPINO. Op. cit., p. 47.
769
POPPINO... Op. Cit., p. 46.
770
FILHO, Luis Viana. A Sabinada. (A República baiana de 1837). Salvador: EDUFBA: Fundação Gregório de
Mattos, 2008, p, 90.
771
POPPINO... Op. Cit., p. 47 e 48.
772
ARAÚJO... Op. Cit., 2009, p, 340.
269

Diz-nos Araújo773 que as maiores preocupações do Presidente da província, Andréas,


pelos idos da metade da década de 40 do século XIX, eram os conflitos de famílias em Pilão
Arcado e os ataques do “bando” de Lucas. O contexto de fato não era fácil para o governante.
Após a Sabinada, o governo decidiu pôr fim às lutas locais federalistas, aos desestabilizadores
levantes de escravos, reprimindo inúmeros aspectos das liberdades políticas anteriormente
garantidas. Era constantemente forçado a isso pela imprensa situacionista que pedia as
cabeças de todos aqueles com “espírito de partido”, tradução para divisionista e incitadores de
desordens. Segundo o mesmo autor774, de 1838 em diante se desenrolou um contexto
contrarrevolucionário775 de repressão generalizada após a Sabinada, que se confundiu, não
por acaso, com o momento em que o bando de Lucas virou notícia nos jornais e alvo da
pressão da opinião pública. Um crioulo aterrorizando os caminhos das mercadorias, nas
fronteriras do sertão para o recôncavo, não era bom sinal de ordem.
Notamos que a presença de federalistas e sabinos em Feira de Santana,
especialmente na Guarda Nacional, era razoavelmente grande, pois achamos nos documentos
algumas reclamações de que estes estariam recuperando postos de relevo nesta instituição,
como Manoel José de Souza, que pleiteava o título de Major, e tantos outros que já haviam
recuperado os postos, como descreve o mesmo documento776.
Outro homem, José Maria de Carvalho, “intitulado capitão, quando não é mais do um
simples guarda nacional” 777, descrito pelo missivista como um homem que impunha o terror a
toda a população do município, “principalmente às pessoas mais abastadas”, teria conseguido,
com uma assinatura do Presidente da província, um documento que o autorizava a “requisitar
forças para certas diligencias”778. Só em uma freguesia requisitou 70 homens da Guarda
Nacional armados para o dia 08 do corrente mês. Pediu esses homens ao 4º Batalhão da 2ª
Legião do município da vila de Feira de Santana, mas em outras partes também tinha pedido
semelhante força, “além de gente da plebe”779. Este senhor, continuava a descrição, tinha

773
Idem, p. 163. “Não foi capaz até o dado momento de achar os 50 homens que supostamente acompanhavam
Higino Pires Gomes em sua passagem de São José para Emburanas. Estavam também em busca de um
armamento rebelde superior a mais de 500 armas”. APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial; Governo da
província- Judiciário – Juízes de Cachoeira. Maço 2273. Cachoeira, 22 de abril de 1838. Para o Presidente da
Província.
774
ARAÚJO. Op. Cit., 2009, p. 29.
775
Idem, p. 54.
776
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Maço 2275. 18 de setembro de 1841. De Manoel Freire Ponte,
Juiz de Direito.
777
APB. Manuscritos Governo da província. Seção colonial e provincial: policia- Correspondências recebidas dos
subdelegados (capital e interior). 1844-1889. Maço 3006-1. Freguesia do Pedrão, 03 de março de 1847. De
Manoel, nome rasgado, para Francisco de Souza d’Andrea presidente da província.
778
Idem.
779
Idem.
270

muitas inimizades entre as principais pessoas daquela cidade, e desde a época da insurreição
da Bahia de 1837 reinava “uma grande rivalidade” ali. Segundo o autor da carta, teria aquele
homem aderido à “revolução” intitulando-se “chefe forte” daquela causa na vila. Seu primo
teria sido, segundo o mesmo documento, o vice-presidente da capital sob o poder dos
rebeldes780.
Além da rivalidade política entre partidos ali localizados, o documento nos informa
da permanência de velhos rebeldes em postos de comando, com controle sobre as armas e
com relações importantes, no caso, familiares, com o governo provincial.
As eleições para vereador de São José das Itapororocas, no ano de 1840, foram tão
repletas de “ilegalidades” e “desordens”, que chegaram a se constituir, após o pleito, duas
assembleias, o que causou

um perfeito flagelo dos direitos políticos dos cidadãos, que se acham


[submetidos a] quase setenta indivíduos criminosos, como é notório, de
maneira que a paz pública tem estado alterada e consta que prepara-se
descuidadas e irrefletidamente querem perturbar a ordem no Arraial de São
José das Itapororocas781.

As armas estavam novamente sendo convocadas para resolver a política e, junto com
elas, criminosos, facinorosos, gente que certamente circulava pela abundante vila mercantil da
Feira de Santana cometendo outros pequenos (ou grandes) atentados à propriedade,
estabelecendo redes de vivências não à margem, mas nas brechas da sociedade. Os
“criminosos” estavam sendo requisitados para diversos serviços, percebendo assim, talvez,
certa fragilização nos esquemas de controle das casas de fazenda e da circulação dos produtos.
A vila e o seu termo os atraíam não apenas pelas riquezas que circulavam nas estradas, mas
pelo aluguel do gatilho como força auxiliar na vida política.
Em 1845, ainda em São José das Itapororocas, o senhor Bernardo José Marques
tornou público um pedido de proteção contra as “prepotências” feitas pelos encarregados do
recrutamento no Município da Feira de Santana. O pedido seria para sua segurança e para a de
“todos que tem a fortuna de não pertencerem a um partido que ali há conhecido com o nome

780
Idem.
781
APB. Manuscritos Sessão Colonial e provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de
Santana. Maço 1309. Feira de Santana, 11 de dezembro de 1840. De Raimundo dos Santos Pinto, João José de
Santa Rosa, Felipe de Cerqueira, Francisco de Oliveira Lopes, Antonio Joaquim do Couto para o Juiz de Direito
e Chefe de Policia da Comarca Manuel Vieira Tosta.
271

de Munheca, muito pequeno em número e muito grande em malfeitorias”782. Os recrutadores


queriam, por “vinganças ignóbeis, filhas de eleições, arrancar-lhe” um filho recrutando-o.
Esse “partido”, apesar de pequeno, parecia que detinha certo poder armado ou de controlar
instituições judiciais e militares ou milicianas responsáveis pelo recrutamento. A resposta do
Juiz de Paz de São José das Itapororocas confirmava que o filho não estaria em situação de
recrutamento, pois era ele vaqueiro dos seus gados e do gado dos seus pais, tinha 17 anos e
era filho único. Atestava que ambos viviam, de fato, em Terra Dura, e que eram de bom
comportamento moral e cívico. O documento não traz mais nada de novo sobre o partido da
Munheca, que, apesar de minoritário, parecia extremamente perturbador para a maioria, a
ponto de atacar seus correligionários. Se o autor da reclamação produziu uma farsa,
minimamente ele considerou aceitável para quem se destinava suas reclamações a existência
de tal minoria barulhenta e feroz com seus opositores.
Essa disputa acima ainda era fruto dos conflitos de 1840, ano que o grupo de Lucas
passou a ser conhecido em toda a província. Nesse ano houve uma sucessão de crises nos
processos eleitorais na vila de Feira de Santana. Vários juízes de paz foram depostos ou nem
sequer chegaram a assumir suas funções após vitórias eleitorais. Foram acusados de uma série
de “exorbitações”, que iam desde abuso de poderes até assasssinato. Um juiz acusava o outro
de cometer algum crime tipificado no Código Criminal, o que os inviabilizava de tomar posse.
As eleições de 1840 foram um momento em que as classes dominantes locais se incriminaram
como artifício de controle político. Essas contendas geravam uma turbulenta desordem
política que finalizava em diversos atentados e crimes783. Não por acaso, na metade dessa
década, Lucas e seu agrupamento eram parte do repertório de acusação política partidária, ora
desferido contra os chefes locais (de ambos os lados), ora contra o presidente da província.
De um lado estava Antônio Gomes Calmon e sua clientela, eleito em primeiro lugar
para Juiz de Paz, havendo derrotado o outro partido que tinha como seu candidato José Lopes
Menezes e Aragão. O primeiro era acusado de muitos crimes, como de chefe de quadrilha de
salteadores, assassinato, corrupção, roubo de escravos, entre outros; e o segundo, de abuso da
função pública que exercia anteriormente. Ambos, obviamente, acusados e pronunciados por
seus rivais. A disputa pelo cargo de Juiz de Paz acabou em conflito armado que envolveu
vários cidadãos, criminosos pronunciados, juízes, escrivão, destacamentos e escravos na

782
APB. Manuscritos Governo da província. Seção colonial e provincial: Série Militares. Recrutamento. 1826-
1851. Maço: 3487. São José das Itapororocas. 31 de janeiro de 1845. De Bernardo José Marques para o Juiz de
Paz. Idem. 11 de fevereiro de 1845; de José Ferreira da Silva Carneiro, juiz de paz de São José das Itapororocas,
provavelmente em resposta ao Bernardo José Marques.
783
POPPINO... Op. Cit, p. 40.
272

frente da casa de Antonio Calmon, quando este ia ser preso pelo juiz de paz que iria substituí-
lo. Esse não tinha sido o primeiro e certamente não seria o último conflito. Dali em diante
esses grupos passariam a se perseguir, a disputar terras e bens, a medir poderio bélico e
armado através de grupos de “fascinoros” encarregados de várias ações de intimidação e
assassinato. Essas ações armadas eram um misto de vingança contra os inimigos,
desapropriação de bens e fortunas de aliados dos inimigos, distribuição de butim de guerra
como recompensa para os jagunços que estavam ao redor de quem praticava a ação, além de
terror às redes de clientelas e alianças dos inimigos.
As eleições de novembro de 1840 já estavam sendo realizadas contando com o
conflito direto desses setores. Por conta dessa situação, o juiz de direito Manoel Vieira Posta,
já substituindo o juiz de direito Dionísio Cerqueira, implicado em partidarismos e também
criminalizado pela Câmara de Feira de Santana, pediu para que o destacamento de polícia do
comandante Antonio Bento se mantivesse na vila. Segundo ele, havia “bem fundados temores
de aparecer alguma desavença nesse ato entre os partidos influentes, que desde as passadas
descobriram o mais frenético e obstinado” 784 meio para influnciar as eleições. A permanência
do destacamento de Antonio Bento se dava pelo fato de que já se sabia quem eram os
protagonistas das lutas, e se poderia, assim, agir de forma preventiva.
Em 1841 a divisão “partidária” novamente gerou um conflito armado em Feira de
Santana. Por conta da ocasião, três vereadores escreveram ao Presidente da província para
reclamar “da maneira com que se tem recrutado nesta vila” que era “apraz flageladora por não
recair sobre os indivíduos que não estejam na letra da lei, servem antes de instrumento de
vingança para abatimento do comércio, Artes e Agricultura”785.

Os povos dessa vila Excelentíssimos senhores por ocasião das eleições


dividiram-se em dois partidos apraz distintos que por consequência nenhum
deles pode exercer com imparcialidades funções nas quais tinham mais ou
menos arbítrio.
Havendo o antecessor de vossa senhoria encarregado recrutamento neste
município ao Comandante superior Francisco Caribe Morotova, protetor de
um dos partidos, proferiu sentença de morte contra o já agonizante Comércio
dessa vila e derramando a consternação entre famílias, expôs as pessoas que
não fazem comunhão com aquele partido a toda sorte de sofrimentos, porque

784
APB. Manuscritos Seção colonial e Provincial. Governo da província judiciário e Juízes de Feira de Santana.
Maço 2372. Feira de Santana, 23 de novembro de 1840. De Manoel Vieira Posta, juiz de direito, para residente
da província.
785
APB. Manuscrito Sessão colonial e provincial. Correspondência da Câmara de Vereadores de Feira de
Santana. Maço 1309. Feira de Santana, 12 de agosto de 1841. De José Araújo Bacellar, Ignácio da Silva
Pimentel, Manoel Joaquim Pereira, José carneiro da Silva, Faustino Mascarenhas para o Presidente da Província
Joaquim José Pinheiro.
273

morando o dito Comandante Superior distante desta dita vila mais de cinco
léguas incumbiu semelhante comissão a José de Sá Campo, influente de um
partido, o qual para sanar, tem prendido pais de família, caixeiros, Mestres
de Tenda, boiadeiros e lavradores como aconteceu com Ambrósio Pereira de
Cristo, lavrador, casado, maior de quarenta anos, com filhos (...), entretanto
as pessoas que estão no caso de serem recrutados, vagam as ruas desta vila
apoiados e protegidos pelos encarregados do dito recrutamento para
pertencerem ao seu partido786.

Nas eleições de 1840, foi implicado e afastado o comandante do destacamento


daquela vila por ter, segundo seus detratores, tomado partido nas lutas em nome do Antonio
Calmon, junto com Dionísio Cerqueira. Depois, como vimos acima, em agosto de 1841, o
destacamento e sua política de recrutamento partidarizada voltavam a ser um dos motivos de
desordem, segundo a Câmara. Já antes, no primeiro mês do ano de 1841, a chegada de um
comanadante de destacamento, Tenente Henrique Nuno da Silva, gerou bastante desconfiança,
apesar de ele já ter trabalhado naquela vila e prestado ótimos serviços, segundo o mesmo juiz
de direito, Manoel Vieira. Ele atribuiu aquela desconfinaça ao contínuo estado de
“fermentação daquela vila”787.
A troca de comandantes de destacamentos era uma tentativa de fazer a eleição
transcorrer sem que a força armada pública pendesse para um lado, além de coibir o uso de
bandidos, jagunços e das clientelas de um dos lados a intervir de forma violenta nas eleições.
Em 1840, por exemplo, os boatos sobre homens que eram vistos “armados e com cassetetes e
outros instrumento de perigo público”788 em dias próximos às eleições eram constantes. Sem
falar das notícias de carregamento de pólvora e armas que chegavam até os ouvidos do juiz
Manoel Vieira às vésperas das eleições. Ele recebera a notícia de que estava vindo da Capital
para a casa de José de Araújo Bacellar um carregamento com “clavinas em dois caixões” 789.
Obviamente, quando o juiz falava em “estado de fermentação” da vila de Feira de
Santana ele não estava fazendo menção apenas aos conflitos eleitorais. Ele estava demarcando

786
APB. Manuscrito Sessão colonial e provincial. Correspondência da Câmara de Vereadores de Feira de
Santana. Maço 1309. Feira de Santana, 12 de agosto de 1841. De José Araújo Bacellar, Ignácio da Silva
Pimentel, Manoel Joaquim Pereira, José Carneiro da Silva, Faustino Mascarenhas para o Presidente da Província
Joaquim José Pinheiro.
787
APB. Seção Colonial Provincial. Governo da província. Judiciário – Juízes de Cachoeira. Maço 2274.
Cachoeira, 29 de janeiro de 1841. Do juiz de direito, Manoel Vieira Castro, para o presidente da província.
788
APB. Manuscritos Seção colonial e Provincial. Governo da província judiciário e Juízes de Feira de Santana.
Maço 2372. Feira de Santana, 17 de outubro de 1840. De João Chrisostomo Correia, juiz de paz, para presidente
da província.
789
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da Província Judiciário – juízes de Feira de
Santana. Maço 2372. Feira de Santana, 09 de novembro de 1840. Do Juiz de Direito Manoel Vieira Porta, para
presidente da província.
274

uma observação sobre a Feira de Santana desde os tempos das lutas federalistas e os
desdobramentos dessa situação.
Quando um alferes foi alvejado nas estradas, indo de Feira de Santana para São José
das Itapororocas, o argumento que lançou o juiz de direito para o presidente da província para
justificar aquele assassinato foi o do “espírito de resistência às autoridades, a que é propensa
uma parte da população daquele distrito”790.
Trabalhar com um destacamento para que as eleições se realizassem, ao que parece,
dava bastante dor de cabeça para os chefes de destacamentos ali estacionados – isso quando
os mesmos não faziam das suas atribuições entrar de cabeça nas disputas locais. Além do
desempenho dessas funções, eles tinham ainda de manter a ordem e a tranquilidade pública.
De 1840 em diante cada vez mais destacamentos estacionavam ali em decorrência da fama
que Lucas e seu grupo iam ganhando. Por isso, mesmo esses destacamentos e forças eram
diminutos para tantas funções. Assim, a vila não era “policiada com a precisa exatidão que
exigem as circunstâncias atuais”791. Como era “sabido (...) não poucos desertores existem no
circulo dela, sem que se possa proceder às necessárias diligências”, deixando o “cidadão
pacífico (...) exposto às violências que esses e outros vagabundos costumam cometer, e que
infelizmente se tem experimentado”792.
Foi nesse ambiente que Lucas, de “reles” ladrão de “bichinhos”, como ele mesmo
disse em seu interrogatório, passou a fazer parte de um agrupamento de salteadores de
escravos fugidos793. Além disso, foi nesse contexto que seu nome ganhou fama nacional,
afinal, uma das formas de motivar a perseguição aos rebeldes era a de publicamente
caracterizá-los como bandidos, facinorosos, assassinos e criadores de desordens. Torná-los
criminosos através de processos abertos pelo controle da burocracia da violência, no caso de
confronto intraclasse, quando não os despolitizavam criminalizando-os, como até hoje se faz
com a demanda dos grupos sociais subalternos. Lucas e seu “bando” seriam “bandidos, assim
como bandidos também seriam os rebeldes da Bahia, esses que, tendo sido absolvidos,

790
A. N. Série Justiça, Fundo IJ¹ 399, Salvador, 06 de julho de 1840. Para Thomaz Xavier Garcia Almeida
791
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da Província Judicário – juízes de Feira de
Santana. Maço 2372. Feira de Santana, 28 de maio de 1840. De Dioniso Cerqueira Pinto, juiz municipal e
interino de direito, para presidente da província Thomaz Xavier Garcia de Almeida.
792
Idem.
793
Seguindo as pistas já colocadas por duas pesquisadoras do crime e do banditismo, teria sido esse o período
que “a criminalidade escrava aumentava”, depois da guerra de independência de 1822, e que o “marco da
proliferação do banditismo [foram] as guerras de independências na Bahia e as subsequentes lutas federalistas
que tomaram conta do recôncavo até Feira de Santana”. Ver, respectivamente: FONSECA, Denise Pini Rosalem.
Cooperação e Confronto. Resistência social na periferia dos engenhos de açúcar da Bahia, 1791-1835. Rio de
Janeiro: Historia y vida; Sete Letras, 2002, p. 137 e LIMA. Op. Cit., p. 01.
275

ousavam novamente circular pelas ruas dessa cidade, contaminando-a”794. Essa linguagem se
fundiu com um duplo interesse: vilanizar a política e incluir na retaliação política o fruto da
desordem social, os bandidos comuns. Ao limpar as estradas dos salteadores, quilombos,
vadios e desordeiros, atacavam-se também, para a opinião pública, os políticos “bandidos” e
vice-versa, como se combater um fosse o mesmo que combater o outro. Se não se resolvia o
problema do Lucas, como se resolveriam os futuros bandos de Higino Gomes e sabinos,
igualmente bandidos? O bando de Lucas, nesse momento, início da década de 40 do século
XIX, ganhou notoriedade e serviu muito bem aos propósitos de criminalização de setores de
uma vila de tradição federalista e oposicionista.
Poppino afirma que, independente da falha do sistema de segurança, devido ao
federalismo da Guarda Nacional em Feira de Santana, “o crime era a regra” 795. Era uma regra
tanto pelas ações praticadas por suas autoridades quanto pelos atos individuais de salteadores,
jagunços, entre outros que por ali circulavam perigosamente.
Além dessa “regra”, Cachoeira, a vizinhança litorânea e açucareira de Feira de
Santana, passava por uma febre de levantes, motins e criminalidade escrava. João Reis 796 fala
de uma “intensificação da guerra escrava” no pós-independência, mostrando as diversas
“tradições rebeldes” dos escravos frente à complexificação do cenário político no recôncavo
baiano. Já Fonseca797 afirma que, no fim do século XVIII até a terceira metade do século XIX,
o ciclo expansivo de produção e exportação de açúcar ampliou a necesssidade de força de
trabalho escravizada. Desse modo, uma maior quantidade de escravizados se concentrou em
engenhos, senzalas e territórios, alterando as suas qualidades de vida. Aconteceu nesse
período, segundo a autora, “uma crescente exploração do trabalho – decorrente da valorização
econômica da região através da ampliação da produção açucareira” 798. Escravizados passaram
a sofrer constrangimento em exercitar determinadas práticas autônomas de vida, como acesso
a roças, tempo para festas, controle alimentar, entre outras coisas, em nome da competição do
mercado, naquele momento ainda bem favorável ao produto baiano. O controle sobre as vidas
dos escravizados se dava também para conter suas rebeldias, que tampouco cessaram de
acontecer ao longo das três primeiras décadas do século XIX, consequência dessa alta

794
ARAÚJO... Op. Cit., 2009, p. 107.
795
Op. Cit., p. 49.
796
REIS... Op. Cit., 2003, 94-121.
797
FONSECA... Op. Cit.
798
FONSECA... Op. Cit., p. 135. Essas ideias estão originalmente em um artigo de João José reis. Ver
“Recôncavo Rebelde: revoltas escravas nos engenhos baianos”. Afro-Ásia, vol. 15, 1992, p. 100.
http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n15_p100.pdf, acessado em 01/02/2017. Nesse artigo ele diz: “O
escravo do recôncavo agora trabalhava mais e comia menos”. Idem, p. 100.
276

concentração demográfica de africanos no recôncavo. Para ela, os escravos, então, reagiram à


expansão da precarização das suas condições de vida através de fugas, levantes e,
principalmente, do crime, do qual ela notou considerável aumento na época do descenso do
comércio brasileiro de açúcar.
Todos os caminhos das fugas podiam levar a Feira de Santana. “Os escravos da
região de Feira de Santana não costumavam criar núcleos [de fugitivos] oriundos da mesma
procedência. Entretanto, era muito comum aquela localidade servir de refúgio para escravos
vindos de outras regiões e de passagem para outros locais, onde vicejaram quilombos” 799.
Contudo, como já afirmamos aqui, essa região que compreende o termo da Feira de
Santana passou, no início do século XIX, por um sensível crescimento de fazendas e, com ele,
o crescimento da escravaria. Vale lembrar que muitos dos grupos eram residentes da própria
vila e termo de Feira de Santana. Acreditamos que as fugas e aquilombamentos cresciam entre
escravos da região de Feira de Santana mesmo800.
Mas, mesmo antes da segunda década do século XIX, no finalzinho do XVIII e
início do XIX, um quilombo da região de Orobó, hoje denominada Rui Barbosa, perturbava
longamente o governo da Bahia. Esse quilombo foi destruído em 1796/1797, tendo sido
necessárias algumas incursões para destruí-lo. Mesmo depois de destruído, sabe-se que
muitos que o habitavam conseguiram fugir sertão adentro ou migraram para outro quilombo,
bem próximo, chamado Tatu801. Desse quilombo sempre se ouvia falar que

diariamente saem os foragidos neles acoitados, em tropas armadas,


acometendo as estradas, ainda as mais públicas, a despojar os viandantes,
roubando muitos gados nas fazendas por onde passam, especialmente as
circunvizinhas daqueles Quilombos, assassinando, desonestando mulheres
donzelas e casadas com toda a impunidade e escândalo, e depois disto
persuadindo e conduzindo os seus semelhantes aos mesmos coitos, e isto
muitas vezes por força e vista dos seus senhores 802.

Um documento produzido para as autoridades feirenses confirmava a presença


quilombola na região em idos do século XIX. Esse documento faz um relato de todas as

799
LIMA... OP. Cit., p. 04.
800
Prova disso é a participação maciça de escravos no grupo de Lucas oriundos do termo de Feira de Santana.
801
GOMES, Flávio dos Santos. Um recôncavo, dois sertões e vários mocambos: quilombos na capitania da Bahia
(1575-1808). In: Revista de História Social, Campinas, n 02, 1995, p. 51.
802
PEDREIRA, Pedro Tom. Os quilombos baianos. In: ____. Os quilombos brasileiros. Salvador: S. E, 1973, p.
95. Orobó foi parte da freguesia de Camisão, termo de Feira de Santana, da qual distava 28 léguas. Ver:
AGUIAR, Durval Pereira de. Província da Bahia. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1979, p. 129-136.
Confirma Eurico Alves Boaventura a influência e duração dos quilombos de “Orobó e o de Camisão [que] deram
trabalho para a sua extinção” BOAVENTURA... Op. Cit., p. 83.
277

riquezas existentes e possíveis na região, mas ressalta que “em lugares menos frequentados
existem alguns quilombos de escravos que ali se vão refugiar ou para nutrirem seu criminoso
ócio, ou para se subtraírem do rigor de alguns desalmados senhores”803.
Algumas ações desses quilombolas são bastante parecidas com a dos salteadores de
Feira de Santana; estupros, roubos, ações próximas às suas antigas moradias ao ponto de se
encontrarem com seus “donos”, como era o caso de Lucas, que sempre se encontrava com seu
“proprietário” nas estradas que circundavam a vila, conseguindo dele sempre um pouco de
rapé.
No contexto imediato da independência acresceu à já continua rebeldia escrava a
rebeldia de outros agrupamentos, com destaque para as ações armadas com o objetivo da
expropriação da propriedade alheia

Cometid[a]s pelos soldados desertores, quer fossem eles os que se


recusavam a atender o recrutamento – que se intensificou por volta de 1822
–, quer fossem os ex-soldados que, a partir da segunda metade de 1820,
quando as condições políticas no recôncavo tornaram-se mais complexas,
abandonaram os quartéis e constituíram bandos armados de detratores da
ordem pública, rancorosos e violentos. Alguns destes eram ex-escravos que
participaram das guerras de independência e sentiram-se traídos com a falta
de condições materiais que lhes fora oferecido após o termino dos
conflitos804.

Sucederam intensas fugas entre 1822 e 1830 dos presídios de Cachoeira 805,
mostrando a fragilidade de certas autoridades públicas que aproveitam os desenlaces da
guerra para soltar aliados e amigos. Carcereiros, oficiais de justiça, alferes, soldados, etc.,
eram os cúmplices e parceiros dessas ações. Eles eram parte do mundo da ordem e do crime
ao mesmo tempo.

Desertores baderneiros e assaltantes; soldados corruptos, abusivos e


violentos; oficiais de justiça que favoreciam interesses pessoais e quebravam
sigilos da justiça; carcereiros corruptíveis e coniventes com criminosos, bem
como oficiais militares prepotentes e desrespeitadores da justiça civil, eram
exemplos de representantes do Estado que agiam como agressores,

803
APB. Manuscritos Sessão Colonial e Provincial. Correspondência da câmara de vereadores de Feira de
Santana. Maço 1309. Feira de Santana, 11 de janeiro de 1834. De Manuel da Paixão e Castro, Luiz José Pinto da
Souza Sampaio, José Francisco de São Boaventura, José Avelino, José Correia, Padre Francisco da Silva Moraes,
Antônio Manuel Vitória Gaspar Roiz para Presidente da Província, Joaquim José Pinheiro do Nascimento.
804
FONSECA. Op. Cit., p. 150.
805
Idem.
278

marcadamente entre 1822 e 1830, momentos das conturbadas guerras de


Independência na Bahia806.

Um interessado negociante e proprietário de Cachoeira nos deixou um belo


documento sobre o estado de segurança que atingia a região de Cachoeira até Feira de
Santana nos primeiros anos da década de 20 do século XIX. Preocupado com o fluxo
comercial dessa região, esse autor elaborou, após discorrer sobre os riscos de desenvolver
atividades comerciais pelas estradas, um plano militar para acabar com tamanhos infortúnios
comerciais:

a mantença, e sustentação de um corpo de polícia que os felicitasse, e


defendesse. Pois são inumeráveis os roubos, desordens, e assassínios que se
praticam durante as feiras, e fora delas, no meio de uma vila populosa e rica!
(...) Deste pequeno corpo: daria também segurança aos viandantes e tropeiro
nas estradas, traria tranquilidade aos senhores d'engenho que ficando a
coberto da revolta de seus escravos não se negariam de coadjuvar a
conservação d'uma tropa tão útil, que deve ser modelo da subordinação,
disciplina e bons costumes: os concorrentes às diversas feiras, e mercados
dos arraiais e vila não temeriam os ladrões e assassínios; não haveria
quilombos de pretos calhombólas (...) nem os senhores sendo rondados as
estradas, batida, as matas, visitados os barcos que largam para a cidade, ver-
se-iam prejudicados com fugidas d'escravos, que diariamente acontece; bons
lavradores alambiqueiros, lacaios, boleeiros, cozinheiros, etc, que haviam
comprado por altos preços, como é de costume; porque os diversos
destacamentos em as irradiações dos distritos, e estradas com as cautelas
sobreditas, tudo evitariam... mantenha a boa ordem n'estes lugares onde a
heterogeneidade de cores, e condições dá origem, a rixas, queixas, roubos,
assuadas, e assassínios; especialmente nas partes onde em diversos dias da
semana costumam fazer feira, e nos lugares que se comunicam com as
estradas que vão à cidade e com as diversas que partem com as mais
províncias desse imperio 807.

Quilombolas, gente indo e voltando das feiras, de diversas cores, levando para as
estradas suas rixas. Destaca o possível ponto de convergência desses sujeitos nas localidades
de importantes feiras, como viria a ser a vila do Lucas. O autor faz questão de enfatizar que
deveria ser um destacamento modelo, bem diferente da maioria que existia em diversas
regiões sem a menor disciplina e maus hábitos dos seus soldados, pois parece que de nada
surtiria efeito, pelo contrário, como temos visto. Arnizáu, então, preocupado com as

806
FONSECA. Op. Cit., p. 159.
807
ARNIZÁU, José Joaquim Almeida de. Memória Topographica, histórica, comercial e política da Villa de
cachoeira da Província da Bahia. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1861, p. 131-134.
279

encruzilhadas das lutas a que as estradas poderiam levar, lançou um olhar preocupado sobre o
ir vir das feiras, um provável ponto de contato entre diversos grupos sociais subalternos.

Há na distância de 8 léguas da cachoeira, e 4 na de S. Gonçalo, o grande


arraial de Santana dos Olhos d'Agua, onde nas terças feiras de cada semana
se ajuntam de 3 a 4 mil pessoas de todas as partes, e é rara a vez que não
cometam impunemente crimes, e atentados de toda a espécie, onde se faz
mister um bom destacamento de tropa de polícia, para coibir tais desacatos,
manter a união, e tranquilidade808.

Figura 12: Representação de mercadores nas estradas. Vários deles armados, o que os protegia dos
bandidos, ao mesmo tempo em que os faziam alvos da repressão. Fonte: Schomburg Center for Research in
Black Culture, Photographs and Prints Division, The New York Public Library. "Brèsil; Convoi de Diamantas
passant par Caïetel." The New York Public Library Digital Collections.
http://digitalcollections.nypl.org/items/510d47df-f431-a3d9-e040-e00a18064a99.

Além da vila de Feira, citou também a feira de Pedrão, Curralinho e Conceição, todas
do entorno do futuro termo de Feira de Santana. Essa feira em especial chamava a atenção do
nosso autor aqui em questão, pois, dos 100 homens ao todo que ele planejou para a comarca
de Cachoeira, 20 seriam deslocados para a feira de Feira de Santana, sendo 12 de cavalaria e
oito de infantaria, “cruzando a estrada da cidade”809.
Confirma outro historiador a fama da feira semanal de Feira de Santana: “O
subsequente mercado de gado de Feira de Santana também era descrito como lugar onde

808
Idem, p. 131.
809
Idem, p. 131-135.
280

‘ladrões de cavalos, negros aquilombados, e vagabundos’ se juntam para provocar ‘contínuas


desordens, roubos e assassínios’”810.
Alguns membros da quadrilha de Lucas eram de diversos distritos e regiões do
Termo e até mesmo do recôncavo, a exemplo da vila de Santo Amaro, de onde era Joaquim,
que Lucas dizia ser um sujeito “acoboclado”, vindo das bandas de Santo Amaro que ora lhe
dizia que era forro e outra lhe dizia que era cativo. Várias vezes esse sujeito fugia dos olhos
de Lucas, que soube de sua prisão “no engenho São Francisco, cujo senhor diziam-lhe ser o
falecido Francisco Ferreira”811. Além de mais ou menos bem informado dos eventos sobre a
prisão e sobre a propriedade do escravo, parece ser verdadeira a itinerância desse sujeito, pois,
apesar dessas informações, Lucas muitas vezes disse não saber qual o destino que ele tomava
depois de algumas ações. Será que retornava a Santo Amaro?
Eurico Alves Boaventura, afirmou, algumas vezes, que a escravaria rebelde que deu
pelas bandas de Feira de Santana era fruto do apaziguamento dos quilombos do recôncavo.
Perguntava-se: “o escravo fugido do engenho seria elemento pacífico no pastoreio? Trazia
812
fama de manso?” . A resposta obviamente negativa traz a necessidade de pensar de que
forma se deu esse encontro e quais modalidades de rebeldia possíveis se fizeram. Sugerimos
aqui que a passagem de Lucas, de escravo fugido, como tantos outros, para a condição de
salteador dos mais perigosos, se deu devido ao encontro efervescente de diversas rebeldias e
frestas na ordem social gestadas pelos elementos subalternos de dois mundos em cruzamento:
os desertores da guerra do recôncavo, as rebeldias dos facinorosos em fuga da Sabinada, os
inúmeros fugitivos da escravidão, aliado a um fluxo cada vez maior de riquezas que por lá
passavam com o crescimento da feira semanal. Armas, ideias, rumores, dinheiro e
mercadorias devem ter sido elementos para fazerem de Feira de Santana um local atrativo
para a constituição de “comunidades de fugitivos” de gente oriunda dos grupos sociais
subalternos e “vadios” que viviam nas frestas do sistema, criando uma hidra pavorosa que
atormentou durante um tempo os negociantes e os governos da província.
Para agravar a insegurança do comércio e da gente do termo de Feira de Santana,
como já vimos pelos clamores de Arnizáu, somos informados de que havia uma falta completa
de forças e destacamentos para assegurar a região e que essa condição perdurou ao longo da
metade do século. Em 1834, a falta de destacamentos militares regulares fez com que o Juiz

810
GRAHAM, Richard. Alimentar a Cidade. Das vendedoras de rua à reforma liberal (salvador, 1780 a 1860).
São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 195.
811
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 47 e 48.
812
BOAVENTURA... Op. Cit., p. 375.
281

Municipal distribuísse armas para o povo se defender contra os criminosos 813. Em 1828 havia
oito soldados de cavalaria e 12 de infantaria no destacamento estacionado no arraial de Feira
de Santana. Essa força representava um quinto de todas à disposição do Juiz de Direito da
Comarca de Cachoeira. As áreas rurais e os povoados circunvizinhos não dispunham de uma
proteção policial permanente, e só depois de 1833, quando Feira virou vila, foi criada uma
Guarda de Polícia sob o controle do Juiz Municipal, contudo, Feira perdeu o destacamento de
Cachoeira, pois virou vila. O contingente que era reduzido em 1828 ficou ainda menor em
1842, restando apenas “um tenente, um sargento, um cabo e oito soldados”. Em 1845, um
sargento apenas comandava o grupo. Já em 1850 era um cabo o comandante 814. A Guarda
Nacional era chamada para completar o efetivo, todavia, a fim de “evitar a influência nefasta
da política local, a Guarda Policial foi separada da Guarda nacional”815, o que como vimos
não surtiu o efeito esperado.
“Os homens não queriam se alistar [em feira de Santana] pelos baixos salários e
pelos bandos que atacavam a região”816. Estes “bandos” podiam ser de diversos lugares, pois
Feira parecia ser de fato conhecida nas redondezas como um local em que se abrigavam
criminosos, quilombolas e fugitivos de toda espécie, como notamos num documento citado
por Lima: “os roubos e assassinatos aqui praticados não [eram] de elementos dessa comarca,
mas do termo de Feira de Santana (...) onde os seus perpetradores encontram facílima
escapatória por falta de uma força policial” 817.
Quando a Guarda Policial se fazia presente, mesmo de outros distritos e vilas, podia
cometer as “maiores desordens”818. Assim procedeu todo um destacamento que vinha dos
combates nas fronteiras do Piauí e que ali estacionou para ajudar no combate aos criminosos.
Com essa fragilidade, Poppino afirmou que aquele território se transformou em zona
tradicional de refúgio dos escravos fugidos e dos criminosos evadidos das povoações da costa.
Podemos achar um exemplo desse tipo de foragido através da curta narrativa de um homem
pardo, chamado Manoel Domingues. Este, ao entrar em conflito com Manoel Melo por
motivos privados, deu-lhe uma facada que lhe levou a morte. Ao procurarem o assassino, as
autoridades policiais apenas relataram que ele provavelmente se achasse “homiziado na Feira

813
POPPINO... Op. Cit., p.17.
814
Toda essa informação sobre os números das forças policia estão em POPPINO... Op. Cit., p. 42.
815
Idem.
816
LIMA... Op. Cit., p. 97.
817
Idem, p. 108.
818
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 399. Cidade da Bahia, 19 de outubro de 1840. Francisco Silva (Silveira)
Martins, chefe de polícia.
282

de Santana”819.
Com o desenvolvimento do comércio, bandos de salteadores formaram-se para atacar
os boiadeiros e negociantes de gado que se dirigiam para a feira em Feira de Santana 820.
Afinal, se o esquema de segurança policial militar era frágil, “as relações de trabalho em que
se destaca a grande autonomia e independência do vaqueiro, bem como a maior liberdade de
pessoal empregado, a dispersão das fazendas e currais que constituem o domínio, limitam a
autoridade absoluta do proprietário e cercam o seu poder, comparado ao que exerce sobre o
seu humilde pessoal o senhor de engenho do litoral”821. A junção dessas duas situações
pareceu ficar explosiva em meados do século XIX.
As ações do grupo
Nesses anos, os anos 40, as tensões ocasionadas por rebeliões escravas,
intensificação de fugas, permanência de quilombos, deserção em massa, soldados revoltados,
conflitos intraclasses dominantes, guerra civil, desorganização militar, entre outras coisas,
foram propícias para o início de grandes ações dos salteadores na Feira de Santana 822.
Em 1841, podemos ver que as autoridades municipais nada sabiam ainda sobre o
grupo de salteadores que “infestavam” a região. Os salteadores ainda não tinham nome, não
se sabiam seus donos, no caso dos escravos, mas mesmo assim já se previa que podiam
representar um risco ao comércio da vila. O documento a que nos referimos é um abaixo-
assinado escrito por comerciantes e políticos da vila823, no qual se pedia que o presidente

819
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 407. Palácio do Governo da Bahia, 03 de fevereiro de 1852. Do presidente
da província para Eusébio de Queiroz Coutinho Matoso, Ministro da justiça.
820
POPPINO... OP. Cit., p. 49.
821
BOAVENTURA... Op. Cit. p, 102 e 103.
822
Para Poppino (Op. Cit., p. 50), sem maiores citações de fontes, teriam sido 150 os ataques desse grupo,
provavelmente extraído do livro “Lucas, o salteador” de Reys e Rocha Lima (Op. Cit. P. 14) que chegam ao
mesmo número, sem também citar nenhuma fonte. Contudo esses dois senhores contam como 150 ações apenas
as de Lucas, nos seus 18 anos de crime, excluído os crimes de outros do seu agrupamento. Zélia Lima chegou ao
número de 44 ações em uma tipologia que classifica os crimes entre: 1) 17 crimes “contra a pessoa, homicídios e
tentativas de homicídios”; 2) 22 “crimes contra a propriedade – objetos e dinheiro”; 3) 5 “crimes contra a pessoa
– crimes sexuais e contra a família”. Ela fez uma tabela que mostra de onde tirou as informações: jornais do
século XX, em cadernos especiais sobre fatos marcantes da memória do município e de seus moradores; os
livros de Reys e Rocha Lima, além do de Sabino de Campos; maços do APB das correspondências policiais, da
série da câmara de vereadores e juízes de Feira de Santana. Contudo, apesar da separação rígida um roubo podia
ser também um atentado contra a vida e por conta da ocasião se tornar um crime sexual. As estimativas podem
não ser superestimadas se pensarmos que foi um grupo que atuou, sem baixas, durante três a quatro anos, além
de mais seis com o grupo debilitado por mortes, defecções e prisões. Não cremos em 150 ações de 1840 até
1849.
823
APB. Manuscritos Sessão colonial e Provincial. Correspondência da câmara de vereadores Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 29 de maio 1841. De Manoel Sampaio, Ignácio da Silva Pimentel, Francisco
Pedreira França Junior Manoel Simplício, Manoel Pedro dos santos Vital para o Presidente da Província, José de
Mello Azevedo e Brito. Ver: Manuscritos APB. Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça.
Correspondência de Juízes – Jacobina. 1840-1846. Maço 2431. Jacobina, 17 de outubro de 1841. De Ângelo
Muniz de Ferraz, Juiz de Direito, para Presidente da província.
283

tomasse providências para resolver o problema criado pelo “bando de salteadores que
infestam as estradas principais desta vila”824. Acusavam que o motivo da queda do “giro
comercial” e da inevitável “decadência” da lavoura e comércio se devia à falta de solução
para aquele problema. Apesar de não fazerem ideia de qual “o número certo de quantos existe,
entre os quais escravos (o que é de supor fugitivos)” 825, pediam para que o presidente apoiasse
“uma subscrição a qual já está bem aumentada” para capturar o “bando”.
Cinco meses depois, o grupo de salteadores, denunciado pelo juiz de Jacobina,
permanecia sem nomes e sem maiores informações. É o que podemos observar do documento
expedido em 17 de outubro de 1841 que diz que as estradas de Feira de Santana se tornaram
intransitáveis pela ação “da horda de salteadores” que roubavam “não só fazendas, como os
viandantes”826.
O que estava minguando quase foi extinto. Na metade da década de 40, a feira
semanal seguiu funcionando precariamente por um longo período. Para ela se manter, ainda
em ritmo lento, passou-se a fazer o caminho de Cachoeira para Feira de Santana através de
comboios827, por conta do temor com os salteadores de Feira de Santana, em especial o
agrupamento de Lucas. Dessa data em diante o grupo de Lucas praticou diversos crimes;
narraremos aqui alguns deles, para que possamos apreender o alcance, a forma de agir, o grau
de brutalidade e os motivos de ele ter alçado a grande figura representativa do banditismo
baiano e até brasileiro no século XIX.
Se Lucas no seu interrogatório disse a verdade, e mesmo a partir das ações analisadas
por nós, conclui-se que ele era um ladrão de pequenos furtos. Seus crimes, expostos pelos
interrogadores, parecem confirmar isso: talheres de prata, armas de viajantes, jóias em uma
igreja, baú de roupas, etc. Nada tão complexo e nem tão ousado como invasões a grandes
fazendas, roubos de grandes quantidades de gados e escravos, invasões a vilarejos, como era
notório entre alguns grupos que agiam no sertão da província. Parece-nos que sua fama
advinha da longevidade, da quantidade, do contexto político da vila e da província e da
incitada formação da opinião pública828 a respeito da parceria de Lucas com pessoas do

824
Idem.
825
Idem.
826
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de
Juízes – Jacobina. 1840-1846. Maço 2431. Jacobina, 7 de outubro de 1841. De Ângelo Muniz de Ferraz, Juiz de
Direito, para Presidente da província.
826
Idem.
827
POPPINO... Op. Cit., p. 50.
828
Falaremos mais sobre a formação da opinião pública mais a frente, porém o livro do historiador Robert Darton
(Poesia e Polícia. Redes de comunicação na Paris do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.) é
um livro interessante para mostrar como redes múltiplas de comunicação podiam exaltar, construir, ou destruir
284

comércio e ou da política da vila, mas não exatamente da sua ousadia. Havia observadores da
época, e mesmo o autor de “Lucas o Salteador”, que acusavam Lucas de ser covarde, de agir
sem grandes pretensões, sem grandes exposições e sem maiores ganâncias, destacando mesmo
em figuras como Nicolau e Flaviano, parceiros de Lucas, maior propensão a ousadias, e que
por isso teriam morrido e sido pegos mais cedo. A prudência era sua marca, e alguns até
inventavam histórias sobre como ele adentrava as vilas ou sedes de distritos, apesar de ele
afirmar que quase nunca ia nessas:

Transformava-o, porém, constantemente, quando queria ir a vila ou


povoações limítrofes, o que fazia sempre a noite, com o fim de ouvir e saber
o que d’elle se dizia nas ruas, praças, e casas particulares. Ora era uma
perfeita crioula com seus trajes habituais; ora um lenhador com seu feixe na
cabeça; ora substituía o feixe de lenha por um de capim e, como estas,
diversas outras caracterizações829.

Obviamente que essas acusações de covardia, além da sugestão de que andava


vestido de mulher para entrar na vila, provavelmente colhida oralmente por Reys e Rocha
Lima, visavam a atacar os brios e a virilidade do salteador Lucas, que parecia contrariar as
expectativas dos códigos culturais tidos como sertanejos: o desagravo público, a
demonstração de força, a aceitação ao desafio armado, o enfrentamento “homem a homem”.
Lucas era mais dado ao cálculo, à oportunidade, à paciência e à tocaia. Obviamente, se não se
capturava um bandido covarde, mais covarde ainda seriam os seus capturadores, e isso, como
poderemos ver, irritava parte das autoridades locais. A existência de escravizados fugidos que
não se escondiam, mas que, ao contrário, partiam para ações armadas contra a propriedade e a
vida dos cidadãos, colocava em xeque não apenas a feira da Feira de Santana como local em
pleno crescimento para os negócios e entrocamento de viajantes, mas também a capacidade de
evidenciar a imperativa administração dos subalternos, incluindo os escravizados nas
fronteiras entre sertão e recôncavo, alguns anos após a grande revolta dos Malês.
Em 1842, o prêmio para a captura dos salteadores, ainda genericamente descritos, se
mantinha830. E o “flagelo que há tempo persegue o público, causado pelos salteadores que
infestam as estradas na circunferência da vila”, não se resolvia, pois “êxito algum

reações emotivas e políticas em torno de acontecimentos pequenos ou graves, que, aliados a contextos
conflituosos, podiam gerar decorrências significativas.
829
REYS; LIMA... Op. Cit., p.12.
830
APB. Manuscrito Seção Colonial e Provincial. Correspondência da Câmara de vereadores de Feira de Santana.
Maço 1309. Feira de Santana, 18 de março de 1842. De José de Araújo Bacellar, Manoel Joaquim Paes Sampaio,
Henrique José de Meireles, Manoel Pedro da Silva, Manoel Simplício para o Presidente da Província, Joaquim
José Pinheiro de Vasconcelos.
285

conseguindo, continuando os malfeitores cometendo atentados e roubos audaciosamente, cuja


terminação de males muito se confia com a estabilidade e nova organização judiciária e
policial”831.
Pelo que podemos ver nos fragmentos expostos por Lucas em seu interrogatório, e
por outros documentos, como o citado acima, uma de suas estratégias era a de evitar adentrar
na vila, mas se manter perto da sua circunferência, isto é, perto o bastante para saber do que se
passava por lá. Lucas parecia ter olhos e ouvidos dentro da vila. No seu interrogatório ele
mesmo falou que jamais se afastara a mais de duas ou quatro léguas dela, apesar de não
possuir morada fixa832. Diferentemente do que circula em HQ 833 recentemente publicada
sobre os salteadores do grupo de Lucas, não há registro de que andassem a cavalos, talvez em
ocasiões pontuais. Ao contrário, as informações dadas por Reys e Rocha Lima afirmam que
andavam normalmente a pé, com o hábito, inclusive, no caso de Lucas, de andar ou correr
apoiando as mãos no chão, com o intuito de se esconder atrás das matas não tão altas, típicas
do semiárido. Nos seus pontos de descanso mais comuns, segundo os mesmos autores,
existiam vários mecanismos de defesa forjados por Lucas, como cipós entrelaçados, que
disparavam para avisar quando da chegada de alguém ou de alguma vítima nas redondezas 834.
Podem não ser verdadeiras essas informações, mas comungam a ideia de um homem muito
meticuloso e precavido.
A maior quantidade de vítimas eram835 lavradores e roceiros, em número de 18, logo
seguidos pelos escravos, que totalizaram seis, normalmente acompanhantes ou cumprindo
tarefas para seus donos. Lucas assumiu a culpa pela morte de um deles, dizendo que, ao atirar
para assustar os viajantes, alvejou sem querer o escravo, criança, que ele chamou de “o
moleque do Camisão”. Outro escravo foi morto por Januário e mais um por Nicolau. Outro

831
REYS; LIMA... Op. Cit., p.12. A maioria dessas informações é confirmada num texto escrito para um Jornal
da Bahia, em que Vicente Ferreira Alves dos Santos, que havia sido delegado em Feira de Santana, descreveu
sobre as informações que havia colhido sobre Lucas no tempo que trabalhou naquele Termo. Para ele, Lucas
nunca andava “desarmado e à cavalo; circunstância que ainda mais me leva a crer não ser o preso Lucas, pois
que nunca constou que este andasse a cavalo, nem isso lhe convém com o sistema de vida que há tantos anos há
adotado, em que há adquirido o espantoso hábito o espantoso de correr com as mãos no chão, com que ao
mesmo tempo que facilita a sua carreira no mato onde constantemente vive e se refugia; dificulta a de quem o
persegue, assim como o fazer-se-lhe, e assegurar se-lhe uma uma pontaria”. Ver: BN Hemeroteca. SANTOS,
Vicente Ferreira Alves dos. Correio Mercantil, Ano XV, nº ilegível, Bahia: 4 de dezembro 1847, p. 02.
832
REYS, LIMA... Op. Cit., p. 43
833
FRANCO, Marcos; ROGÉRIO, Hélcio. Sant’ana da Feira. Terra de Lucas. Feira de Santana: S. E, 2012.
834
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 12.
835
Procedo aqui de forma bastante abusiva, pois muito crime aqui listado Lucas negou ou não foi provado, sendo
que alguns são coletas orais de pesquisadores e romancistas que nenhum documento existe. Alguns crimes fazem
parte do imaginário popular, inventados e reinventados para se tornar conto para assustar crianças, como virou os
causos sobre Lucas da Feira na região de Feira de Santana. Ver todos esses crimes detalhados em uma tabela em
Lima. Op. Cit., p. 261-268.
286

escravo foi mais um designado pela justiça como se tivesse sido morto pela quadrilha836.
Temos ainda na lista dois vaqueiros, sendo que o grupo não roubou os animais, mas em uma
oportunidade roubou 300 mil réis do vaqueiro Clementino; seis comerciantes, tendo-lhes
roubado, algumas vezes, mercadorias, mas sempre com interesse maior para o dinheiro;
assaltaram uma igreja para lhe roubar a prataria; estupraram, abusaram ou molestaram sete
mulheres; atacaram dois guardas policiais, sendo que Lucas negou o ataque a um deles; além
de três fazendeiros, para finalizar o cálculo de Zélia.
As vítimas preferenciais não devem ter nada a ver com a preferência de Lucas e seu
agrupamento de atacar determinadas categorias socioprofissionais, mas sugerem um perfil dos
habitantes do entorno da vila e daqueles que frequentavam a feira de Feira de Santana.
Roceiros, pequenos fazendeiros e lavradores que vendiam e compravam naquela região, além
do ir e vir de vaqueiros. Mas esses andavam mais protegidos, muitas vezes em grupo.
Lucas, ao ser interrogado, negou cinco desses crimes837 e assumiu três. Desses que
ele assumiu, um foi de um homem não identificado, na estrada do município da Tapera, a
nove quilômetros de Feira de Santana, de quem roubou 400 mil réis, segundo ele a maior
quantia que havia roubado838. Este roubo foi realizado junto com Nicolau e Januário, e como
o homem não reagiu, não foi agredido. O segundo teria sido perto da Lagoa Salgada, estrada
da Marafona, no município de Feira, em que ele matou, segundo ele também sem querer,
numa troca de tiros, a menina Alexandrina. Por último, o que resultou na morte do “moleque
do Camisão”, já relatado aqui, na estrada das canavieiras, quando tentou assaltar um grupo de
viajantes839.
A maior parte dos seus crimes são roubos e homicídios. Os assassinatos, em sua
grande maioria, são acertos de contas com pessoas que de alguma forma os traíram, delataram
ou que andavam à sua procura (16 casos somando os três grupos), além dos que resistiram às
suas ações. Temos registradas poucas invasões a domicílios, sendo estas mais recorrentes no
caso de crimes sexuais e em relação aos próprios acertos de contas, quando buscavam se
vingar de pessoas moradoras de locais sabidos por ele.
Como já constatamos aqui, há registros de pequenos roubos e somas não tão grandes
em dinheiro. Roupas, pratarias de casa, brincos de ouro de mulheres, armas e chumbo, um
cavalo e coisas do gênero. Por três vezes roubaram produtos que comerciantes levavam à vila,
mas sem relatos de quais eram.
836
Idem, p. 267.
837
A maioria lhe foi imputado por julgamento, perícia e investigações.
838
LIMA... Op. Cit., p. 265.
839
Idem, p. 267.
287

Em dezembro de 1844 o tom das correspondências entre as autoridades era outro. O


Presidente da província comunicava o Secretário e Ministro da Justiça para dar satisfação de
tais acontecimentos. Não se tratava mais nem de um problema local nem provincial, pois
alcançara a esfera da ordem nacional. Já se tinha conhecimento sobre o grupo ou do seu
“líder”, datando de 1838 as suas ações. “Amigos” do bando, ainda como sujeito
indeterminado, preocupavam as autoridades. Foi nesse ano que o debate sobre os amigos de
Lucas ganharam as páginas dos jornais da província.

Passarei a existência de um outro fato escandaloso. A existência de um negro


chamado Lucas. Um escravo deste nome anda há mais de 20 anos fugido a
seu senhor e parece que há mais de seis tomou o costume de se entregar ao
roubo e ao assassínio por modos altamente atrozes, e ainda está vivo, e ainda
gira pelas imediações da Feira de Santana, teatro favorito de suas
atrocidades, aonde tem amigos que lhe fazem avisos a propósito!
Apresentou-me uma mulher que anda foragida sem poder voltar a sua casa, a
quem Lucas mandou surrar como alguns senhores fazem com seus escravos,
roubou quanto tinha, socou o marido em um pilão e desonrou suas filhas.
Essa mulher que há tantos anos pede justiça ainda a pede de balde, e ainda
vive de esmolas840.

Os dias de feira, como já havia sugerido Arnizáu, pareciam ser datas mais propícias
para os salteadores agirem, ao menos é o que confirma um documento 841 que relatou mais
uma ação do grupo. Segundo este, nos dias 5 e 6 do mês de outubro de 1847, Lucas teria
aparecido nas estradas com mais um comparsa. Haveria ele chegado a um tal ponto de
ousadia que atacou cinco homens, três portugueses e dois brasileiros, saindo ferido um
estrangeiro por ter tentado revidar. Exigiram que entregassem as armas, o que, segundo o
documento, “covardemente” obedeceram. Depois disso sumiu de uma forma que ninguém
mais o encontrou, apesar de ser procurado por homens do governo. Afirmava que os dias de
segunda, terça e quarta (dias de maior intensidade da feira livre) eram os melhores para
patrulhar as estradas, mas não se conseguia fazê-lo, pois, além do pequeno destacamento, os
soldados estacionados não eram “experientes aos lugares” que costumava transitar Lucas. Em
um bilhete reservado abaixo do documento, autorizava o plano de colocar mais destacamentos
nos dias da semana em que Lucas mais atuava. Seriam acrescidos seis paisanos de confiança.
Num outro documento, também anexo, relatava que empregaria quatro pedestres em locais

840
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Palácio do governo da Bahia, 21 de dezembro de 1844. De Francisco
de Souza Soares d’Andrea para Manuel Antônio Galvão.
841
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia. 06 de outubro de 1847. De João José de
Moura Magalhães para Nicolau Pereira de Campos Vergueiro.
288

fixamente estabelecidos pelas informações que tinha sobre os locais pelos quais Lucas
passava. Segundo o missivista, com os pedestres que haviam sido colocados naquelas áreas
pré-determinadas não tinham mais acontecido os roubos nas estradas.
O ano de 1847 é o que mais conseguimos acompanhar as atividades do grupo, ou do
que sobrou dele. Seguindo a lógica infeliz dos historiadores, quanto maior a repressão, maior
a produção de documentos legados à posteridade.
Em abril desse ano, próximo à vila de Feira de Santana, um rapaz recebeu um tiro.
Dizia-se que o tiro fora dado por Lucas, porque este saberia que aquele rapaz portava uma
carteira842 escondida. Novamente ficava em evidência, de forma subreptícia, a colaboração de
alguma pessoa que teria dado a informação de que o rapaz em questão portava uma carteira.
Alguns meses depois, um documento enviado pela Câmara de Vereadores nos obriga
a lembrar que, bem como o documento citado no parágrafo anterior, muitos crimes podiam
acontecer, e, na ausência do autor, seriam colocados na conta dos salteadores do agrupamento
de Lucas. Em lugares semelhantes aos dos ataques de Lucas e seu agrupamento, com sujeitos
parecidos (negros, pardos, escravos ou não), aconteceram crimes de outros grupos e
indivíduos. Vale ressaltar que no início desse capítulo destacamos um tiro que foi dado no
Alferes em meio ao mato nos anos de 1840, sem que ninguém soubesse quem havia sido o
autor do disparo.
Logo em seguida o mesmo documento descrevia outra ação de Lucas no mesmo
lugar que o acima citado, no Limoeiro.

No dia 20 pela manhã, no caminho entre os Humildes e Limoeiro, distante


da vila três léguas, atirava ele do mato contra em uns passageiros, resultando
não só ferir os cidadãos Joaquim Ferreira da Costa e Carlos de tal, mas
também matar um cavalo, e havendo-se nessa ocasião chegado outros
indivíduos animados rastejaram o celerado e ainda o encontraram com os
companheiros no mato carregando as armas, sendo que ao pressentirem
gente sobre eles, veloz e covardemente se entranharam pelas matas, de forma
que de sete tiros, que se lhes disparara ferido saíra apenas um dos
companheiros, que, não obstante, se evadira. Nesse mesmo dia constara
particularmente ao delegado que o bandido aparecera na outra estrada e
insultara alguns cidadãos viandantes que temerosos não os puderam ofender
a despeito de estarem armados. Seis dias não eram passados e já o facinoroso
cometia novos crimes. Na tarde de 26 a uma légua de distancia da vila
aparecera ele na estrada e roubara dois baús com roupas pertencentes ao
doutor juiz de direito e promotor público da Comarca que adiante seguiam

842
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia. 26 de Abril de 1847. De Antonio
Ignácio de Azevedo, presidente da província, para José Joaquim Fernandes de Torres.
289

para aquela vila da Feira, onde iam abrir sessão de jurados. O delegado logo
que soubera do roubo de tais baús que o audaz malfeitor pareceu não ignorar
de quem eram, fizera de pronto partir 7 homens armados para rastejarem, em
cuja diligência empregaram o resto da tarde, e toda a noite, voltando, na
manhã do dia seguinte com um dos referidos baús, que fora encontrado nos
matos já arrombado, tendo o outro apenas uns livros, escovas, caixas de
chapéus, e outros pequenos objetos, menos a roupa que nenhuma fora
achada”843.

Estranhamente, Zélia Lima deixou de computar esse crime de grande repercussão na


província, já que se tratava de um crime contra uma autoridade judicial, em tese encarregada
de prender Lucas e seus seguidores. Contudo, a essa altura, os perseguidores do Lucas se
avolumavam bastante.
No final do ano, uma quantia de 400 mil réis foi retirada “reservadamente” dos
cofres da Câmara para colocar à disposição do “combate ao crime”. Assim a Câmara evitava
que o povo soubesse da sua derrota parcial, gastando mais dinheiro público com um salteador
que nem mais tinha um grupo. A presença do Lucas deslocava o status quo do poder.
Revelava a fragilidade de homens poderosos, cheios de capangas, agregados, escravos,
afilhados, para quem precisavam demonstrar sua autoridade. O pedido de mais verba
mostrava que não era infalível o sistema de proteção e repressão dos homens poderosos do
sertão. Precisavam de ajuda.
Apesar dos júbilos, festejos, honras e palavrórios bravís, nada mudará o fato de que
Lucas não foi capturado por nenhum destacamento local, provincial, nem nacional. Tampouco
foi pego por algum fazendeiro, grande comerciante ou bacharel empoderado das armas do
Estado. O sistema cultural e material de dominação /proteção/repressão do mundo
agropastoril falhou. Lucas foi pego por um oficial de Justiça, José Pereira Cazumbá, junto
com mais três homens, todos do povo – um deles em busca de vingança –, no início do ano de
1848. Não foi capturado em ação, mas pego em tocaia por gente que já havia obtido dele
proteção844 e que conhecia seus hábitos.
Colaboracionismo com as elites? Lucas da “Feira”
Em 1843, um texto que discorria sobre a relação entre o juiz Antonio Calmon e os
bandidos naquela comarca foi publicado, sem assinatura, no Jornal O comércio. Para falar dos
crimes de Calmon, o texto começa a relacionar a permissividade deste senhor com o

843
A. N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 404. Secretária de polícia da Bahia. 21 de setembro de 1847. Do
chefe de polícia para presidente da província João Joaquim da Silva. Já havia um prêmio de 2 contos de réis para
quem o capturasse vivo ou morto.
844
Narraremos melhor essa história mais a frente.
290

banditismo, fazendo uma insinuação leve de alguma relação entre ambos. O que se queria
destacar para os que liam aquele jornal eram aspectos próximos às sugestões acima descritas
por mim, para demarcar o perigo e a excepcionalidade de Lucas num local onde as
autoridades tinham relações perigosas com os bandidos.

Se o ex. snr. presidente, e o Sr. desembargador chefe de polícia quanto antes


não derem as mais salutares e prontas providências para evitarem os anos
que diariamente sofrem no termo da vila de Feira de Santana por um negro
de nome Lucas, que escravo do honrado padre José Alvares Franco, vive há
muitos anos fugido, e roubando pelas estradas aos infelizes viandantes,
praticando outros, a sombra deste dito negro iguais desatinos; um negro por
cuja prisão ou cabeça, não só o seu próprio senhor, como diversos tem
oferecidos somas, para somente expurgarem a sociedade desse monstro. Que
tão próximo da dita vila, das cidades da Cachoeira e Santo Amaro, e mesmo
pode-se dizer que do governo, sem temor das leis e de Deus, prossegue
ufano em seus desatinos, roubos e iniquidades, certamente toda a província
será vitima deste, e de outros malvados que horrorizam a humanidade e que
servem de verdugo à honra atropelada por meio das ações mais indignas que
se ufanam de praticar, como de roubar donzelas de seus pais, e mulheres
casadas matando seus maridos, e servindo-se delas violentamente enquanto
bem lhes apraz, sem haver um castigo a esses demônios, que por fim e por
(ilegível) vêm trazer às suas casas. Há porém de notar, srs. redatores, que
esse negro com seu infame bando, assassine, roube e faça tudo quanto quer
somente aos tristes viajantes que saem ou entra na vila, e não a vários
moradores quando transitam, e é por isso que geralmente se diz que ele tem
sócios e protetores na mesma vila, com quem reparte os despejos de suas
correrias, o que se torna crível, não só por ignorar-se o fim que ele dá a tanto
dinheiro que tem roubado (havendo soma de contos de réis) como pela
zombaria que passeia corre, refazendo-se do necessário à sua vida
depravada. Mas srs redatores, será somente o negro Lucas, com seu infame
bando, quem veixe, atropele, persegue e rouba os moradores daqueles
lugares?845

A sequência para a resposta foi simples: não era apenas o Lucas que apavorava
aquela vila com suas ações. Mas, então, o que fazia de Lucas uma situação
excepcional/normal846?

845
BN Hemeroteca. O Comércio. Terça Feira, 03 de Outubro de 1843, nº 214, p. 02 e 03.
http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX/BIB=749770. Consultado em 20/082014.
846
Essa formulação está originalmente em GRENDI, Edoardo. Micro-análise e história social. In: OLIVEIRA,
Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla Maria de (org.). Exercício de Micro-História. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009, p. 26-27. Ela também está discutida em GINSBURG, Carlo. O Nome e o Como. Troca desigual e
mercado historiográfico. In: A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1991, p. 176-177. Nesse texto Ginsburg sugere que um acontecimento extraordinário dentro dos grupos sociais
subalternos, leva o Estado a produzir uma documentação sobre ele, que, por sua vez, pode revelar a partir daí
todo um modo de vida documentado sobre esse mesmo grupo, isto é, é possível que, e Ginsburg usa esse mesmo
exemplo, que um evento movimento considerado excepecional, como algum tipo de revolta e resistência,
permita mais de perto perceber que esses grupos já se revoltavam através de miúdas práticas de crimes, saques e
furtos há muito tempo. No caso de Lucas, a existência de uma quadrilha de tal vulto e projeção, mostrou a
291

Em 1844, mais insinuações vinham pelas páginas dos jornais de que Lucas atuaria
em parcerias com chefes locais. Os jornais pareciam ser a fonte principal dessas denúncias. O
governador Andréas e nenhum dos que o sucederam847, muito menos nas correspondências
entre autoridades, tratavam esse assunto tão vivamente, apenas como insinuações dos povos.

pessoa bem informada nos diz, que o famigerado Lucas nos últimos dias
dera uma caçada nas estradas da Feira pilhando sempre algum dinheiro de
uns viandantes (ilegível) que cerca de cinco meses esse salteador não
aparecera, agora porém tempo de festas, despesas extraordinárias, ajuste de
contas com os sócios o obrigarão a trabalhar. O que se dirá na Europa
quando se souber que um negro muito ordinário e insignificante tem por
tanto tempo ludibriado com as autoridades locais. Fortes desgraças e
(ilegível) desleixo. Meu Deus compadeci-vos da Bahia e livrai-nos dos
Lucas848.

A afirmação de que era preciso pagar as contas dos seus sócios é absolutamente sem
comprovação, como todas as outras que se seguiram, e que geraram muita polêmica na
imprensa. As acusações que se seguiram a essas ora se direcionavam sem apontar a quem ora
falavam, de modo genérico, no colaboracionismo do povo de Feira de Santana, e é a partir daí
que a pecha "da Feira" seguirá acoplado ao seu nome e substituirá o seu sobrenome,
Evangelista.
Em 1847 a fama de Lucas corria a Bahia, e o afã de querer capturá-lo, aliado ao fato
de que outros negros fugitivos talvez usassem o seu nome para fazerem-se pavorosos a suas
vítimas, gerou algumas confusões sobre a sua identidade ou sobre a sua captura. No auge do
tema sobre Lucas na imprensa, foi publicado, no Jornal Correio Mercantil, um edital que dizia
o seguinte:

Achando-se preso no quartel da polícia um preto que se diz ter o nome de


Themoteo, escravo do cidadão José Manoel de Melo, residente em Vila de
Nazareth, e que pelo Oficio do subdelegado de Alagoinhas, e do delegado de
Santo Amaro, se afirma ser o próprio Lucas, salteador da Feira de Santana,
convido à qualquer pessoa, que exato conhecimento do Escravo possa ter do
escravo Lucas mencionado, à se apresentar naquele quartel, à fim de

existência de uma normalidade das relações em Feira de Santana na primeira metade do século XIX, nas relações
de conflitos e negociações entre bandidos e demais setores sociais. O crime era algo muito mais cotidiano que a
extraordinária repercussão de um grupo de salteador poderia fazer pensar. É possível pensar a partir daí qual a
excepcionalidade real do grupo de Lucas.
847
O que veio a fazer a partir de 21 de dezembro em um relatório que enviou para o secretário dos negócios e da
Justiça em 21 de dezembro de 1844, como vimos na citação da nota de rodapé 117.
848
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. ano XI, quinta feira 14 de novembro de 1844, n. 245, p. 02.
292

reconhecer sua identidade, e ministrar-me as necessárias informações,


mediante as quais se promova o procedimento criminal.
E para que se chegue a noticia de todos mandei publicar este pelos jornais
desta cidade, Bahia e secretaria de policia 25 de setembro de 1847 849.

Numa truncada explicação, de que tomamos conhecimento apenas por um escritor,


em outro jornal, esse suposto Themoteo, ou suposto Lucas, fora capturado na vila de
Inhambupe pelo subdelegado de Alagoinhas. Ele era escravo do cidadão Manoel José de
Mello, residente em Nazaré, de onde fugira por ter cometido crime de estupro850. Ele foi
remetido a Santo Amaro, de onde se enviou uma solicitação para que autoridades das vilas de
São Fransico, Santo Amaro e Feira de Santana pudessem verificar a veridicidade de
Themoteo ser o Lucas851.
Numa situação em que se viu emboscado, esse escravo, provavelmente para colocar
medo nos seus perseguidores, reclamou para si a identidade de Lucas da Feira, ou então tudo
não passava de uma grande e descarada farsa para deixar os perseguidores de Lucas
contentes, ou apenas a opinião pública. Podia ser um truque para ganhar tempo de suprir
Lucas de alguma necessidade em meio aos anos de 1847, que foi o ano de escalada de sua
caça. De todo modo, este escravo se viu envolvido numa querela jornalística enorme. Uns
queriam provar de todas as formas ser ele Lucas, apesar de Flaviano, naquela altura preso em
Salvador, negar ser o dito Theomoteo o Lucas. Diversas pessoas e autoridades de Feira de
Santana também afirmaram que não era aquele homem o Lucas, com base em aspectos
notoriamente reconhecidos na vila, como cicatrizes, tipo de armas, pelos no corpo, entre
outros aspectos. Ao mesmo tempo em que outros afirmavam ser ele o Lucas com base nos
mesmos argumentos. Ser ou não ser o Lucas passou, no debate da imprensa, a ser uma
questão de autoridade, ou de facção política, pró ou contra o governo, principalmente
daqueles que defendiam a posição do governo.
Aqueles que defendiam que aquele era o Lucas, eram sempre os sujeitos de feições
partidárias oposicionistas ao presidente da província. Pareciam estar desesperados para provar
que aquele homem era Lucas e acusar, como acusaram, aqueles que não reconheciam ser
aquele o Lucas de estarem querendo livrá-lo da cadeia, afinal as autoridades em Feira de
Santana estavam há uma década vivendo com autoridades cercadas de bandidos, com a

849
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Ano XIV. Terça feira, 26 de agosto de 1847. n. 249. p. 02.
850
BN Hemeroteca. O Guaycuru, n 454, ano 05. Bahia, 29 de outubro de 1847. Hemeroteca Digital:
http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=749770. Consultado em 20/08/ 2014, p. 01.
851
A. N. Ministério da Justiça, AI, Fundo IJ¹ 404. Secretaria de polícia da Bahia, 10 de dezembro de 1847. João
Joaquim d Silva, chefe de Polícia, para presidência da província.
293

leniência e até mesmo autorização do presidente da província que os confirmavam em cargos,


que lhes emprestavam força, entre outras coisas. Contudo, quem sabia de fato distinguir
Lucas eram aqueles que já os haviam perseguido ou convivido de algum modo com ele na
região de Feira de Santana. E essas pessoas sucessivamente desmentiram aquele Themoteo
enquanto Lucas. O que gerava ainda mais a ira dos oposicionistas. Era claro para eles que, se
aquelas autoridades andavam de braços dados com bandidos outros, por que não andariam
com Lucas e não tentariam de todo modo tirá-lo da cadeia, inclusive mentindo sobre sua
identidade?
Um texto publicado no jornal Correio Mercantil deu o tom exato da politização que
foi feita em torno da captura falsa do Lucas. A matéria acusava todos os feirenses de maneira
intransigente e sem provas. O autor da carta escreveu que, tendo sido ele quem mandou o
edital gerador de tanta polêmica sobre a suposta prisão de Lucas, ia a público expor os pelos
quais tinha certeza ser aquele Themoteo o Lucas. Também expôs os supostos motivos pelos
quais os adversários da ordem desejaram fazer daquela prisão um erro jurídico e policial. Ao
pedir para que as autoridades da província dessem preferência para levar para as cadeias de
Salvador os presos que estavam na cadeia de Inhambupe, onde se achava “o preto” que foi
preso em Alagoinhas, pretendia, ao longo do trajeto, colher provas de que aquele era o temível
Lucas. Desse modo, aquele Themoteo foi levado pelo subdelegado de Alagoinhas para o
engenho Capimirim, para que os homens que conduziam

gado para a Feira até a Capital e reunindo-se mais gente para ver este
monstro, do que para uma procissão, ou cavalhada, como testemunhou a
tropa, foi reconhecido Lucas, por algumas pessoas de diversos lugares,
vindas uma por curiosidade, e outras por mim chamadas; mas (com pêjo e
mágoa o digo) não foi reconhecido por um único morador de Feira de
Santana, em cujo semblante se divisarão cumulativamente má fé, prevenção,
e terror, chegando a ousadia de ameaçar com apostas, e palavras pouco
comedidas a quem se animava a dizer, que o preto era Lucas. Ora Sr. redator,
não negociando eu para Feira de Santana, e não me incomodando o Lucas
nesta terra, pouco me importaria fosse, ou deixasse de ser ele o prezo, e nem
tomaria sobre mim a responsabilidade, ou para melhor dizer, a odiosidade
daquele anúncio, se não fosse por interesse público, por honra da minha
pátria, da pátria de meu filhos, dos meus parentes, e dos meus amigos, pois
muito me magoa, que havendo o governo feito (sempre debalde) tantos
sacrifícios, e despesa para a prisão daquele malvado; quando a divina
providencia por vias ocultas, não esperada o punha nas mãos da justiça,
desgraça, e grande infelicidade era para a província inteira, deixá-lo de novo
escapar para continuar a exercer seus roubos, e malvadezas.
Convencidíssimo estou, que o preso é Lucas, e comigo pensam todos os
homens honrados desta terra; mas igualmente contamos que ninguém se
animará a conhecê-lo; por que se eles não interessassem na conservação
294

desse monstro, a muito já se teria realizado a sua prisão; pois experiência


mostra, que logo que ele se separou do conluio foi agarrado como se vê.
Parte da gente da Feira de Santa Ana (salvo honrosas exceções) teme Lucas e
seus protetores, parte toma interesse em seus atos, e alguns temem a sua
confissão quando interrogado for perante a justiça. Se não é Lucas o negro,
que se acha preso, para que fim cortou, raspou, e arrancou ele, ou seus
protetores, os cabelos dos peitos para discordar dos sinais, que do Lucas
mandou para o Inhambupe o digno Juiz Municipal de Feira de Santa Ana?
Para que queimou com castanha, ou qualquer outra forma feriu, para
desfigurar, um sinal de cutilada velho, que na testa tinha, e que ainda bem se
divulga? Como combina o defeito, que tem o negro no dedo da mão direita
com os sinais que tudo lhe aliançam? Se não tem nenhum cabelo branco na
cabeça não poderiam seus protetores arrancar, sendo ainda poucos? Quem
arranca, e corta os cabelos do peito tem por ventura alguma dificuldade
arrancar alguns poucos brancos da cabeça? Nos sinais, que do Lucas dá o
interregimo Juiz Municipal, diz, que coxoa de uma perna: não se vê
sensivelmente coxear o preso? Uma raspadela no joelho não está tão
patente? Como descobrir em duas pessoas diversas, signaes tão extamente
combinados?
Não espera o Sr. Chefe de Polícia ver o salteador reconhecido por gente da
Feira de Santa Ana, porque a maior parte dela interessa em desvanecer a
ideia de ser Lucas o preso852.

O autor falava que sabia o quanto se comprometia e fazia um mea culpa assumindo
que nunca tinha visto Lucas antes de ser preso. Depois disso, tentou mostrar como que era por
conta de vaidades que se afirmava que o preso não era Lucas. Segundo o mesmo autor, o
preso Themoteo estava foragido pelas autoridades há 30 dias, porém, sua prisão data de antes
mesmo disso, tendo o negro passado uma temporada pelo recôncavo da Bahia. E perguntava:
como não podia ser aquele o Lucas? Um criminoso que pulou em cima de diversas
autoridades armadas, estando o criminoso desarmado, para matar o subdelegado da região?
Perguntava ainda onde ficara o cavalo e a mala que estavam com ele antes do ocorrido. O
subdelegado, José Joaquim Chaves, terminou o texto da seguinte maneira:

desde a feliz prisão de tal monstro não consta haver sido roubada uma só
pessoa nas estradas de Feira, apesar do que me consta, que já seus amigos se
vão lembrando de mandar dar alguns tiros de dentro do mato para fazerem
ainda crer que o Lucas existe solto, e não é esse monstro que se acha preso.
Se não se escapou da cadeia do Inhambupe, foi por ser negocio com a
família Leal, muito numerosa, e preponderante, e porque não se esperava a
imprevista ordem da polícia para remoção do preso; senão estaríamos ainda
hoje condenados ao grande Lucas853.

852
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Ano XIV, quinta feira 18 de novembro de 1847, n 268, p. 02.
853
Idem.
295

Fica implícito na afirmação do subdelegado que, se as autoridades de Feira de


Santana não prendiam Lucas, era porque tinham a intenção de criar a desordem e o caos no
comércio feirense e da província. Os cidadãos de bem, e não aqueles que personalizavam o
mal, estavam certos de que as autoridades estavam de posse de Lucas. No entanto, afirmava o
subdelegado, “a maioria” dos cidadãos feirenses, escondendo seus interesses escusos, teriam
enviado para onde se encontrava preso o escravo um representante para fazer todas as maiores
tramas para esconder quem realmente era aquela pessoa. O “artífice” do disfarce seria o Juiz
Municipal de Feira de Santana, que enviou uma carta bastante moderada e sem ataques para o
mesmo jornal, escrevendo ter explicado, naquela oportunidade, ser o escravo capturado sem
pelos no peito; que Lucas nunca andava desarmado, diferente do Themoteo; o fato de Lucas
não andar a cavalo, criando até mesmo uma forma nova de correr, com as mãos no chão para
melhor fazer mira e não ser visto na mata rasa do agreste feirense; ter Lucas cicatriz de bala,
muito antiga, numa das mãos e aquele Themoteo apenas ter ferimentos nas unhas,
provocados, provavelmente, por má cicatrização de fungos e outras tantas características. Em
sua defesa apontava que, no período em que exerceu o cargo de Juiz Municipal em Feira de
Santana, fez absolutamente de tudo para prender o bando desse salteador, conseguindo
prender Flaviano e pegar Nicolau, capturado morto, promovendo o enfraquecimento do
bando. Nessa mesma carta ao jornal escreveu que todo o esforço para capturar os membros do
bando tinha sido feito com colaboração em dinheiro, escravos e material dos negociantes da
cidade para a formação de tropas, não percebendo nenhum constrangimento por parte de
ninguém para capturar os membros do bando854.
Não adiantou. As acusações sem provas, de conluios com os negociantes e agentes da
ordem continuaram e, dessa vez, acrescentavam uma espécie de ameaça política velada:
colocava em dúvida o patriotismo e sugeria partidarismo daqueles que duvidavam da decisão
de que aquele era Lucas. Nada mais do que uma decisão política de repetir, escrever,
reescrever, polemizar, até que virassem verdades tais especulações. Usava o argumento da
sedição para pôr um fim ao assunto, afirmando, sem provas, que aquele era mesmo o Lucas,
pois assim havia sido dito por uma autoridade. Seriam rebeldes os que colocavam as
autoridades em dúvidas? O status quo das autoridades, a publicização mentirosa de suspeitos,
a criminalização das lutas sociais que se passavam naquele lugar era, como nos diz
Thompson855, o que estava em jogo. Em um comunicado publicado no jornal 856, a redação do

854
BN Hemeroteca. Correio Mercantil Ano XV Bahia 4 de dezembro 1847, nº ilegível, p. 2.
855
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. A origem da Lei Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.
246. Nesse texto Thompson afirma: “O que constituía uma emergência era a reiterada humilhação pública das
296

mesmo afirmava ser a disputa de partido o que fazia pôr em dúvida homens de tamanha
competência como o senhor Chaves. E os que duvidavam cumpriam o papel público de fazer
das autoridades policiais e judiciais da Capital desacreditadas, já que incitar a dúvida, com
base num depoimento de um criminoso como Januário, era um ato de desrespeito a uma
autoridade pública que teria suas palavras colocadas publicamente em desconfiança pelo
desmentido de um negro salteador. O texto tenta fazer crer que aquele é mesmo o Lucas e
pede que se interrogue “cotidianamente esse nosso Themoteo” até que a verdade venha à tona.
As autoridades de Feira de Santana estariam publicamente defendendo bandidos escravizados,
o que configuraria grave crime. Pior do que o ataque às autoridades, acusavam também a
população feirense de protegê-lo. Não pareciam estar erradas ambas as assertivas, mas
“como”, “quem” e “quando” era o que lhes faltavam.
Em outro jornal857, uma carta assinada por alguém intitulado “O assombrado”, após
perguntar por que não se acreditava nas autoridades policiais e se dava crédito a um
facinoroso que diz ser alguém que não é, chegava à conclusão de que era necessário perguntar
ao proprietário de Themoteo quem ele de fato era. Parecia não entender por que não era
perguntado se ele estava ou não em regiões que disse ser originado. E, por fim, o “O Correio
Mercantil”

lembra somente ao honrado desembargador chefe da polícia, seria mais


prudente, perdoe-nos a lembrança, que em silencio mandasse pessoas de sua
confiança às freguesias de São Gonçalo dos Campos, da Cachoeira, e de
Nossa Senhora de Oliveira, sob algumas vantagens e garantias, e com a
precisa sagacidade, buscar pessoas que conheçam a essa hiena na
província858.

Não sugere que se procure gente de Feira de Santana. Encerrava afirmando que só na
Bahia é que uma situação como aquela, imposta pela existência de Lucas e seu grupo, teria
acontecido. Ainda assim seria evitada se “não achasse APOIO, certo estamos, que já de há

autoridades (...) se o rei não conseguia defender suas próprias florestas e parques, e se o Comandante Chefe
interino das forças armadas não conseguiu impedir que seu parque sofresse investidas por causa dos cervos, o
estado de coisas era deplorável (...) Era esse o deslocamento da autoridade, e não o antigo delito de roubo de
cervos que constituía uma emergência aos olhos do governo”. Idem.
856
BN Hemeroteca. Correio Mercantil, Quinta Feira, 18 de Novembro de 1847, ano XV, nº 268. Bahia, p. 02 e
03.
857
BN Hemeroteca. Correio Mercantil, Sábado, 06 de Novembro de 1847, ano XIV, nº 258, p. 02.
858
BN Hemeroteca. Correio Mercantil, Terça-feira, 02 de Novembro de 1847, ano XIV, n. 254. p. 01.
297

muito estariam com as penas que em tais casos impõe as nossas leis" 859 (caixa alta no
original).
Algumas respostas de feirenses foram bastante duras, como a publicada por um autor
anônimo no jornal Correio Mercantil860. Um dia, segundo ele, acometido de problemas
intestinais, foi ao banheiro e encontrou jogado um jornal que ele sucessivamente
desqualificou ao nível de um papel higiênico (Guaycuru 861, famoso jornal oposicionista e
conservador). Apesar disso decidiu lê-lo, pois chamou sua atenção uma seção intitulada a
“Rabeca”, que acusava os moradores e autoridades da vila de Feira de Santana de serem
coniventes com o bando de Lucas. Este senhor, ou senhora, deu uma resposta em que
argumentou que todo o bando de Lucas havia sido capturado, uma a um, por feirenses e que,
por encargo do destino, Lucas conseguiu fugir todas as vezes. Destacou também que em
Santo Amaro (local onde era produzido o jornal) havia uma infinidade de bandos de
salteadores e que agiam de forma mais perversa do que o bando de Lucas, pois alguns desses
bandidos praticavam suas ações em plena circulação na cidade e livremente. Diferentemente
de Feira de Santana, alguns dos líderes desses bandos santo-amarenses negociavam na cidade
com seus taberneiros. Para bravatear, alegava que um dos líderes de um bando de Santo
Amaro havia sido preso por um feirense.
Lucas passou a ser, doravante, conhecido como o “Lucas da Feira” e não mais Lucas
Evangelista dos Santos, ou apenas o Lucas, como toda a documentação até então fazia
menção a ele.
Após ser capturado, Lucas foi chamado a reconhecer o escravo Themoteo, que ainda
se encontrava preso, quase quatro anos depois. Lucas disse não ter conhecimento algum sobre
ele e que só o conheceu no momento da prisão862.
Essas pessoas acusadas nunca foram reveladas ou vieram a público, seja por
fidelidade de Lucas ou por terem sido muito competentes nas suas armações. Talvez não
viessem a público por nunca terem existido – a não ser na cabeça e nas intenções de pessoas

859
Idem.
860
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Ano ilegível. 1847. n 210. p. 02.
861
Segundo Araújo, o Guaycuru se posicionou em frontal oposição ao governador Francisco José de Souza
D’Andréa, além de ser o que, sistematicamente cobria, de forma crítica, os banditismos na Bahia, seja ele
político, ou escravo, afinal, esse jornal era o que continuamente apontava a inevitabilidade, senão fossem
tomadas providências, de outra rebelião escrava na Bahia. ARAÚJO, Dilton Oliveira. O Estado Brasileiro ante os
Conflitos políticos no sertão da Bahia do século XIX. In: NEGRO: Antonio L; SOUZA, Evergton Sales;
BELLINI, Lígia. Tecendo Histórias, espaço, política e identidade. Salavador: EDUFBA, 2009, p. 142.
862
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Fundo Governo da província. Policia Assuntos diversos. Maço
3111. Feira de Santana, 04 de março de 1848. Autor/Receptor Subdelegado, João Joaquim da Silva para
Presidente da província.
298

que fizeram de Lucas um mecanismo de achincalhar autoridades – ou por incompetência para


prender tal bandido.
Quando Lucas foi preso foram encontradas junto com ele cartas 863. Elas eram de
Flaviano e outro preso. O teor era um pedido de dinheiro, provavelmente para tentarem
subornar alguns carcereiros, coisa bastante comum naquela época. Essas cartas não foram
andando sozinhas até às mãos de Lucas, alguém os ajudou. Especialmente quando se trata de
um documento escrito, coisa atípica para um escravo naquela época.
Em um documento apenas encontrei alguma informação que avança um pouco mais
em definições de quem eram os ajudantes de Lucas entre os “homens de bens” da sociedade
feirense. Em uma carta enviada por um cidadão de nome Edurado José Pinheiro, endereçada
para o presidente da província, ele afirmava que existia uma “sociedade protetora dos
ladrões”864 funcionando em Feira de Santana. Eles protegiam ladrões de cavalos e bois,
ladrões de escravos, jagunços, assassinos, falsificadores de documentos fundiários e
testamentos, entre tantos outros crimes. Era uma rede que agia de Serrinha até o Camisão,
destruindo inimigos dessas autoridades, roubando-lhes seus pertences e depredando suas
propriedades.
Os diretamente acusados nessas ações eram Antonio Gomes Calmon, o Juiz de Paz,
implicado em vários crimes, que ainda exercia funções outorgadas pela presidência da
província; José Joaquim Almeida, Juiz de Serrinha; Dionisio Cerqueira, antigo Juiz de Direito
da comarca de Feira de Santana – sempre acusado de aliado de Antonio Calmon; um homem
chamado Manoel Pedro dos Santos Vital. Acusava-se um 1º suplente de estar por trás de todos
esses roubos, além de ser vitalício no cargo. Para concluir, afirmava que aqueles que
usufruíram dos roubos de Lucas foram os mesmos que, para se saírem bem ao final, os
prenderam. No caso da prisão de Januário, afirmou o autor que coisas haviam sido ditas no
interrogatório, de que ele fazia parte como júri, que não entraram no processo final. Apenas
ressaltou ao longo do texto o nome do tenente coronel Domingo Joames Ferreira, que lá
estava, sem lhe atribuir culpa. Segundo ele, “por esta e outras é que tanto se fala
genericamente dos habitantes dessa Feira”865.

863
Nenhum documento fala se Lucas, Flaviano ou qualquer outro dos salteadores do grupo, soubessem ler e
escrever.
864
APB. Manuscritos seção Colonial e Provincial. Maço 3111, polícia (assuntos diversos). Feira de Santana, 30
de julho de 1848. De Eduardo José Pinheiro para Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, presidente da
província.
865
Idem.
299

Se não é possível provar as acusações do senhor Edurado José Pinheiro, ele ao menos
confirma outros documentos que atestam que essas figuras entronadas em cargos de poder
estatal agiam também como uma quadrilha associada a criminosos livres e escravizados da
região. Ela agia desde 1840, ou até mesmo antes. Podemos notar que desde 1841 já se dizia
que o grupo de Lucas tinha relação com setores das elites de Feira de Santana e região. Já
destacamos que em Feira de Santana localizamos conflitos dessas mesmas elites apoiando-se
em “facinorosos” para manter suas questões. Essa relação não diminui ao longo dos anos, ao
contrário, parece ter aumentado as acusações de colaboracionismo “das pessoas de bem” de
Feira de Santana com Lucas e outros tantos bandidos; algumas delas pareciam sequer ocultar
sua relação com os fora da lei. Se falarmos de setores das elites no interior da província, mais
especificamente na região do Rio São Francisco, essa relação pareceu ainda mais corriqueira.
Então, porque a colaboração de Lucas com membros das elites parece ter sido um tabu tão
grande na vila de Feira de Santana, a ponto de a historiografia da época e até a mais atual
ainda considerar este o assunto mais importante no estudo de seu caso? A resposta parece nos
direcionar para o fato de Lucas e seu agrupamento servir como justificativa para finalmente se
criminalizar (ou penalizar) criminosos. Explico: numa situação em que o crime praticado
pelas autoridades e seus oposionistas era tão generalizado, e em que todos eram de algum
modo criminosos pronunciados – não sendo, apesar disto, especialmente os que estavam no
poder, penalizados, continuando a gozar de seus comércios, práticas corruptas, assassinatos e
ainda da administração do bem público – uma aliança com escravos, o grande inimigo de
todas as classes senhoriais, poderia ser o fator diferencial na perda de poder de um desses
sujeitos. Ao mesmo tempo, aqueles que estavam na situação de poder alegavam que Lucas e
seu agrupamento eram uma forma que seus inimigos achavam de desestabilizar a ordem e
fazer oposição. Lembremos que Feira era uma cidade de fama oposicionista, liberal, Sabina e
federalista, que nas lutas de partido que ali se desenrolavam essa condição sempre era
lembrada. Nesses momentos os facciosos eram assemelhados aos facinorosos.
Lucas passou a servir discursivamente a todos os lados das lutas. Uns incriminavam
os outros de serem os padrastos daquele “demônio negro”. O pavor antinegro e antiescravo
parecia ser o limite possível para uma aliança com bandidos. Lucas parecia ser uma situação
limite para a relação que esses homens mantinham com criminosos. Ter escravos, negros e
pardos em seus agrupamentos de jagunços era uma coisa; apoiar, inviabilizar ações de
destacamentos, alimentar e assalariar uma comunidade volante de negros escravizados
fugidos e assassinos era outra bem diferente. Pior ainda quando as iniciativas daquele bandido
300

ganhavam notoriedade pública através de debates em jornais que alcançavam a população não
só de Feira de Sanatana, mas de toda a província, como veremos. Em meio à passagem do
recôncavo para o interior, tendo o sertão como uma das dimensões de liberdade de
escravizados, Feira de Santana não podia virar uma vila de “homisiados”, aberta à fuga para o
sertão.
O temor crescia ainda mais quando, como nos parece, não era possível evitar outras
alianças entre esses sujeitos escravizados. Quando na documentação, mesmo aquela que tenta
de todo modo provar a relação de Lucas com as elites, aparecem situações claras de apoio e
relações de troca de Lucas com outros escravizados ou homens e mulheres livres e pobres.
Sendo este, até então, um debate ausente nos estudos sobre as experiências do crime de Lucas.
Lucas e os grupos sociais subalternos
Parece-nos que há uma inclinação na maioria dos historiadores da vida e morte de
Lucas, sejam eles cordelistas, memorialistas, historiadores de ofício, jornalistas da época ou
os contemporâneos, em crer nessa relação. Contudo, em seu interrogatório, após a prisão, ele
não falou de sua relação com nenhum membro da alta sociedade da região. Algumas vezes
disse que nada falaria de outras pessoas, pois, vendo-se ele na situação em que se encontrava,
não pretendia que outros caíssem na mesma desgraça. Para a felicidade retrospectiva do
historiador, que nada pode mudar os acontecimentos do passado, apenas lhes dar nova
interpretação segundo os vestígios deixados pelos homens e mulheres, Lucas falou de
algumas pessoas sim. Não das pessoas das elites locais, estas ele manteve ocultas, ou tais
contatos eram menores do que se supunha. Esse capítulo não pretende provar ou refutar a tese
do colaboracionismo com as elites, pois até o descobrimento de novas fontes de importância,
como o processo crime866, que se acha perdido, essa tese é, supomos, menos provável do que
a que sustentaremos aqui: tão relevante quanto ter contatos com membros das elites locais (o
que pode ter acontecido), foram substancialmente importantes as relações travadas por Lucas
com moradores pobres da cidade, artesãos, negros livres e escravizados, além de relações
familiares com os contatos com a senzala da fazenda Saco do Limão, onde ele nasceu, e com
o ir e vir nas estradas que, nessa época, desde o período da sua fuga definitiva nos primeiros
anos da década de 20 do século XIX, se tornaram rota de fugas e de trânsito não só de negros
fugidos e aquilombados, mas também de desertores armados.
Em 1896, passadas já décadas da morte de Lucas, dois doutores e estudiosos do
direito criminal e da antropologia criminal escreviam um livro com o nome de “Lucas da
866
Existem transcrições desse processo em REYS e LIMA. Op. Cit. e em jornais de circulação pública da
província, sendo um deles o Municipio, jornal de circulação em Feira de Santana.
301

Feira, o Salteador”. Eles começavam o texto afirmando que, na vila de Cachoeira, havia meio
século que se davam muitos julgamentos de sentença de morte, mesma sentença que recebera
Lucas e alguns dos seus comparsas, o que sugeria o fato de que Lucas teria passado para a
posteridade como uma figura amada por aqueles que, segundo o autor, gozaram de seus
benefícios (sem dizer quais foram), pois que, para a “populaça” em geral, a “vingança era o
seu desejo”867.
Sabemos desde o início do texto que esses autores não defendem a tese da
colaboração de elementos das elites feirenses com o Lucas. Para quem, então, eles estariam a
sugerir os benefícios das ações de Lucas? E que população é essa que queria vingança? Que
grupo social produziria tal conexão e identidade com o temido Lucas e seu bando? Um breve
passeio pelas fronteiras do recôncavo pode nos ajudar nessa resposta.
É importante frisar, como destaca o historiador Flávio Gomes 868, que uma das
estratégias de quilombolas e agrupamentos de negros fugitivos, inclusive de alguns
“quilombos volantes” 869, era a de estabelecer relações com os arraiais, vilas e fazendas onde
as senzalas, e mesmo “uma extensa rede de solidariedade com taberneiros, escravos e
pequenos lavradores próximos” promoviam uma “tentativa de se integrar a economia local,
através de trocas e comércio dos excedentes produzidos nos seus mocambos"870. A estratégia
de Lucas e sua comunidade de fugitivos parecia ser a mesma, pois, segundo relatos, Lucas
sempre encontrava o seu ex-proprietário, o padre José Álvares Franco, que sempre lhe dava
algum dinheiro e um pouco de rapé871. Por isso podemos deduzir que Lucas andava pelos
caminhos que iam dar na fazenda Saco do Limão, onde nasceu e onde, talvez, pudesse manter
vínculos com a comunidade escrava dessa fazenda e até mesmo parte de sua família. Zélia
Lima nos diz que alguns irmãos de Lucas passaram pelo seu bando, coisa que os autores do
livro de 1896 duvidavam, mas a verdade é que um dos irmãos de Lucas foi constantemente
preso por desobediência de algumas ordens dadas a ele, isto é, de sair do cerco de vigilância
citadino, e terminou sendo como tantos outros típicos “réus perfeitos de polícia” recrutado
para a Marinha, certamente como ação preventiva ou como castigo 872.

867
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 03.
868
GOMES... OP. Cit., 1995, p. 35.
869
GOMES, Flávio dos Santos; MACHADO, Maria Helena P. T. Atravessando a Liberdade: deslocamentos,
migrações e comunidades volantes na década da abolição (Rio de Janeiro e São Paulo). In: GOMES, Flávio dos
Santos. Políticas da Raça. Experiências e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2014.
870
Idem.
871
REYS; LIMA… Op. Cit., p. 14.
872
LIMA... Op. Cit., p. 130
302

Chamamos a atenção para o fato de que na Vila (parte mais urbana do termo de Feira
de Santana) os escravos trabalhavam muito mais como “domésticos das residências e serviços
auxiliares do comércio, como o de carregadores”, e que um dos trabalhos dos escravizados
rurais era o de abrir picadas entre as fazendas e os caminhos e estradas que ligava a vila a
outras localidades873. Eurico Alves Boaventura afirma que nas relações mais brandas
estabelecidas entre os senhores do sertão874, no século XIX, com os seus trabalhadores, “podia
os escravos da sala e da cozinha [dormirem] na própria casa da fazenda”875.
Olhos, ouvidos e possíveis cruzamentos entre pessoas pertencentes ao mesmo grupo
social, sendo a maioria esmagadora de crioulos, como no bando de Lucas, podiam trabalhar
em prol do salteador. Não seria de espantar que, entre idas e vindas à feira, entre as picadas
construídas nos matos, esconderijo do Lucas, ou nas fontes públicas, onde se lavava o fato dos
animais, as roupas das casas, onde se carregava a água para o aguadeiro distribuir nas
residências senhoriais, acontecessem algumas trocas de informações sobre o que se discutia
na casa dos senhores fazendeiros e negociantes da Feira de Santana. Em Feira não havia
prédios públicos para a realização de alguns serviços necessários e algumas obrigações
institucionais. As reuniões e decisões eram tomadas na casa de algum dos moradores da
cidade, como, por exemplo, laudos de perícia criminal, interrogatórios, entre outros.
Descreveu ainda Eurico Alves, em outra obra 876, que nos idos do fim do século XIX e início
do XX todos se conheciam na Feira de Santana.
Começamos o texto por esse caminho como sugestão para pensarmos que Feira de
Santana, até metade do século XIX, era uma cidade de conexões muito fortes entre diversos
grupos sociais. Ao dizer que todos se conhecem, que dormem próximos, que escutam ou
ouvem falar de reuniões importantes, estamos tentando mostrar que a noção de vida privada
naquela época era muito menos privada do que os contemporâneos podem achar. Diversos
laços eram estabelecidos (e quebrados) o tempo todo. Fosse na compra do fiado na feira, nos
laços de freguesia numa vila amplamente comercial, nos segredos de negócios, no jogo
político, por si só, nessa época, uma demanda de famílias que se aliavam e desaliavam, nas
hotelarias dos viajantes, nas fontes e olhos d’água, no curral público (Campo do Gado), a feira
como um todo. Podemos dizer que Feira de Santana era (e é) uma cidade de encontros e de

873
FREIRE... Op. Cit., p, 41.
874
Sobre essa brandura na relação entre serviçais em geral, incluindo os escravos, e os fidalgos fazendeiros, ver a
crítica feita por mim em SANTOS, Igor Gomes. “Eurico Alves Boaventura: uma ‘democracia mestiça’ para uma
civilização de ‘uma classe só’”. In: SILVA, Aldo José. História Poesia Sertão. Diálogos com Eurico Alves
Boaventura. Feira de Santana: UEFS Editora, 2010, 139-150.
875
BOAVENTURA... Op. Cit., p. 204.
876
A Paisagem Urbana e o Homem. Memórias de Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS Editora, 2006.
303

contatos. Sua geografia permitiu que circulassem por ali muitos climas, muitas gentes, muitos
rios, que se transmutavam para outros ares e outras paisagens sociais.
Foi essa ambiência social que propiciou a Lucas fontes tão preciosas de informações
defensivas e ofensivas para sobreviver durante tantos anos. Sua longevidade e capacidade de
se antecipar aos acontecimentos foi sempre um dos maiores motivos para que afirmassem sua
colaboração com membros das elites locais. Porém, outros muitos universos de contatos
estavam abertos para ele, um homem com um grupo poderoso e ameaçador, em alguns
momentos com dinheiro, e naturais da região, onde tinham amigos, familiares e, por que não,
influência.
Alguns casos ilustram bem as possibilidades de contato de Lucas para obter
informações, mercadorias e outras coisas mais por parte da população subalterna, mestiça e
negra da região. No seu interrogatório ele citou algumas delas, mas a isso foi dada pouca
atenção.
Um caso é o de Benedicto de tal, conhecido como um notório valentão da região, o
que lhe rendia alguns trabalhos como acompanhante de tropeiros e viandantes. Segundo Reys
e Lima877, esse valentão andava pelos matos chamando o nome de Lucas para um acerto de
contas, demonstrando a todos bastante valentia, mas tudo não passava de um teatro
previamente ensaiado com o salteador, que ganhava a sua parte dos ganhos do negro
Benedicto.
Não foi apenas esse relato que ficou registrado da parceria entre Lucas e Benedicto.
Para Lucas ter sido preso, uma das providências que tomaram os juízes e o delegado foi de
determinar fiscalização intensa nas farmácias após ele ele ter tomado um tiro. Apesar de
certos em sua ação de cerco, não foi em uma farmácia que a pista sobre o salteador chegou.
Antes mesmo de chegar à farmácia, foi avistada pelo negro de nome Gervásio, “escravo e
amigo do coronel Dionysio Cerqueira Pinto, uma mulher da casa de Benedicto de tal, morador
na Tapera, que vinha de São Gonçalo com uma garrafa de aguardente canforada, e sabendo,
por ter-lhe perguntado, para quem era, conhecendo o interesse que o senhor tinha em agarrar a
fera, imediatamente comunica-lhe o fato”878.
O local onde Lucas estava escondido foi revelado pelo mesmo Benedicto, que foi
acossado pelas autoridades a delatar o parceiro de negócios. Lucas estava perto do Rio
Jacuípe, a uma légua da vila, em um sítio de nome Gurunga. Havia, nesse relato breve, dois

877
Op. Cit., p. 20.
878
Idem.
304

ajudantes do Lucas, um direto e um indireto, que, de todo modo, sabiam para quem era a
aguardente.
Benedicto era um homem tido como valentão, uma espécie de livre garantia de uma
viagem segura na transição entre o sertão e recôncavo. Por que alguns negociantes não o
confidenciariam, já que se comportava como inimigo público do Lucas, os planos das
autoridades e dos negociantes para agarrar o salteador e os seus outros aliados?
Temos ainda o caso da morte de José Francisco (vulgo Caboclo) em 1845, relatado
pelo processo crime aberto na ocasião de seu assassinato. Em uma das partes do processo de
Lucas há um relato que joga uma luz sobre as relações que Lucas mantinha com outros
indivíduos subalternos, em um ambiente tenso, no qual confiar e desconfiar eram
necessidades para sobreviver879. Esse Caboclo, ao que parece, era proprietário de uma
pequena roça, onde guardava cavalos de viajantes e pessoas da vila. Algumas testemunhas
apontavam para o fato de o crime ter sido cometido pelo fato de José Francisco (Caboclo) não
ter repassado a farinha que Lucas lhe deu um dinheiro para comprar, tendo sido ele morto em
desagravo a essa traição. Para outros, como o fogueteiro Caetano, sabia-se apenas que o tal
José Francisco tinha negócios com o Lucas, e sabia “por ser de público”. Para a esposa de
José Francisco, ou a mulher com quem ele vivia, Maria de tal, Lucas o teria matado por saber
que este andava junto com mais outro o perseguindo, como tantos a partir de 1847.
Os três parecem falar a verdade, pois Lucas confirmou que matou José Francisco por
fazer negócio com ele e por passar a andar atrás dele com outros para capturá-lo. Aliás, esse
era um dos motivos principais para Lucas matar alguém: andar com arma de grosso calibre,
que não fosse de caça, pela região onde notoriamente ele se escondia; ser delator ou ser quem
ele sabia estar atrás dele em caçadas para capturá-lo e entregá-lo à justiça.
Em meio a esse acontecido, Lucas, ao correr atrás da mulher de José Francisco, que
fugiu logo depois de deflagrado o primeiro tiro, se aproximou do Dr. Symphronio, médico
legista de Feira de Santana, que estava por perto caçando. O médico viu primeiro passar ao
seu lado, correndo, Maria, e logo depois o Caetano Fogueteiro, que, por coincidência, viu
Caboclo ser morto. Caetano Fogueteiro teve que responder a um atônito doutor quem era
aquele negro com arma em mãos. Ao ser respondido que era o Lucas, prontamente fugiu. Mas
é preciso deixar claro que, nessa cena relatada, apenas quem não sabia quem era Lucas era o
doutor Symphronio, membro bacharelado das classes distintas da Feira de Santana. Mesmo
quando Lucas atingiu a fonte, onde se encontravam várias pessoas, antes de desistir da

879
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 29-39.
305

perseguição aos três elementos, narrou uma das testemunhas que lá estavam para “lavar fato”,
que todos correram por saber se tratar do negro Lucas. Parece-me ilustrativo que o único a
não saber de quem se tratava o negro armado era o membro que não era das classes
proletárias, nem escravas.
No terceiro exemplo, ao responder aos interrogadores sobre as cartas que recebeu de
duas pessoas que estavam no cárcere (Flaviano e Antonio José dos Prazeres), que foram
encontradas no seu rancho quando da sua prisão, Lucas afirmou que as cartas foram entregues
a ele por um crioulo cujo nome ignorava, o qual recebera primeiramente as cartas de outra
pessoa,
um pardo de nome Gonçalo da Cunha, morador perto da igreja velha desta
vila; que este pardo lhe remetera uma por sua sobrinha Domingas, escrava
do Saco do Limão, e outra lhe fora (ao crioulo desconhecido) entregue pelo
mesmo Gonçalo, em ocasião em que ele interrogado passava por sua casa,
sendo por ele chamado para esse fim; sendo essa carta igualmente lida pelo
dito Gonçalves, e que ele interrogado não se prestara ao pedido das cartas
por não ter880.

Este exemplo é o caso mais complexo, onde se poderia afirmar a tese da relação de
Lucas com membros da alta sociedade feirense, pois esse Gonçalo bem que poderia ser um
homem de ação de algum dos negociantes e fazendeiros da vila e vizinhanças. O fato de a
carta ser escrita, o que provavelmente os presos, assim como Lucas, não sabiam fazer, prova
que gente mais letrada e estudada estava ali atuando entre eles, mas, ao mesmo tempo, mostra
de forma extremamente evidente os nexos de Lucas com sua antiga moradia, com a
comunidade da senzala da vila de Feira de Santana e de uma circulação e troca de
informações entre ele, Gonçalo, “um outro preto”, sua sobrinha e prisioneiros. Lucas tinha seu
sistema de correios, por onde lhe chegavam pedidos, mas também informações.
Os interrogadores ainda quiseram saber sobre a relação entre Lucas e um homem
pardo chamado Lourenço que havia lhe feito um patuá e que também tinha mandado consertar
com o mesmo Lourenço o mesmo patuá algum tempo depois. Lucas inicialmente disse não
saber de quem se tratava, mas logo depois se contradisse e respondeu que consertara o patuá
com Lourenço e que o mandara fazer também com o mesmo Lourenço, que morava na Pedra
do Descanso, lugar notoriamente conhecido de passagem e pouso de Lucas. Segundo o
salteador, ele teria ido apenas para aquele fim na residência daquele Lourenço, e este fizera o
serviço, pois, se não fizesse, “havia de se ver na precisão de mudar de lugar”. Diz que o

880
REYS; LIMA... Op. cit., p. 49.
306

conheceu depois que Lourenço se mudara para aquela região havia cinco meses, e que nunca
guardara nenhum fruto de roubo, nem fizera nenhum ato de crime com Lucas 881.
Lucas conhecia bastante as pessoas da região a ponto de saber que esse artesão tinha
chegado a uma nova moradia havia cinco meses ou o artesão de fato era um contato de Lucas?
Ao que tudo indica, sua relação com Lourenço era muito mais próxima do que fazia crer o
salteador, e disso sabiam as autoridades que mandaram prender o Lourenço Justiniano do
Rêgo Lima, que confirmou ser amigo de Lucas, a quem, soube-se por outras testemunhas,
como Jerônimo e José Pinheiro, ofereceu a condição de padrinho de um sobrinho, o que não
foi aceito pelo padre. O documento dizia que esse sobrinho de Lourenço Lima, José Luis, era
sócio de Lucas, porque tinha uma venda montada com dinheiro do mesmo882.
Cazumbá, o principal algoz de Lucas, era sabidamente um dos sujeitos que estamos
buscando destacar, pois andava nas fronteiras sociais entre o crime e a ordem e, sabemos, foi,
possivelmente, durante um tempo, um espião, ouvidos e olhos de Lucas na vila 883. Segundo
Reys e Lima, Cazumbá era respeitado por Lucas nas suas andanças, pela sua fama de valente.
Era alto, pardo, carapinha, de pés proporcionais ao corpo, boca e orelhas regulares, barba
raspada e feio. Era oficial de justiça, mas andava “homiziado” pelo fato de ter matado a
pauladas um sertanejo que “trocou palavras” com seu companheiro de trabalho, Marcelino
Marques da Silva. Foi preso, mas conseguiu fugir e rumou para a casa de seu ex-sogro, Luis
da Cunha Vieira, onde conseguiu acoitamento, apesar de sempre fugir ou dormir nos matos
quando se achava em perigo de retornar à cadeia. Por estas idas e vindas ao mato foi durante
um tempo aliado de Lucas884.
Por conta disso seu sogro teria tido a ideia de Cazumbá prender ou matar Lucas, já
que o governo oferecia, através do edital de 13 de maio de 1845, 4 contos de réis pela sua
captura, vivo ou morto. Procurou Leogivildo do Amorim Cerqueira, Juiz Municipal e de
órfãos, além de Delegado de Feira de Santana, que aceitou sua proposta: a de Cazumbá, seu
genro, receber o dinheiro e ainda tentar receber o perdão da justiça. Segundo o autor,

881
Idem.
882
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Maço 3111, polícia (assuntos diversos). Feira de Santana, 30
de julho de 1848. De Eduardo José Pinheiro para Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, presidente da
província.
883
LIMA... Op. Cit., p. 197.
884
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 17 e 18. Além de tudo Cazumbá era um dos que estava sempre relacionado rol de
aliados de Antônio Calmon, juiz de paz e figura das mais importantes nos relatos de relação com bandidos da
região. Calmon figura na lista dos mais importantes membros da “sociedade protetora de ladrões”. E pode ter
sido por aí o contato entre esses dois.
307

Cazumbá era sabido dos esconderijos de Lucas, pois já havia se dado com o mesmo em
relações de companheirismo885.
Hobsbawm886 sugere que alguns tipos de bandidos que mantêm relações de
proximidade com camponeses e moradores locais, seja por gratidão ou medo, ganham o
silêncio dos camponeses. Alguns destes bandidos só foram pegos através da forma clássica da
traição ou delação. Um pouco parecido o caso de Cazumbá, que gozou de certa relação com o
Lucas, e sabia onde se posicionavam seus ranchos e seus caminhos. Se voltarmos às listas de
crimes, veremos que Lucas justificou muitos assassinatos por conta de traição e de amigos
que mudaram de lado. De alguns desses Lucas “deu cabo”, como se diz, antes que
conseguissem o feito do Cazumbá, e com outros gozou de relações amistosas, aparentemente,
até ao fim.
Memória do mito Lucas
Por ter se tornado um assunto do debate público e partidário na Bahia, Lucas gerou
sobre si uma memória espontânea e imediata aos acontecimentos do entorno da vila de Feira
de Santana. O nome Lucas se associou, ainda naquele período, à representação simbólica de
desordem, caos, desobediência às autoridades e à rebeldia escrava, do temor mal disfarçado
que os senhores tinham de seus escravos, o que explica, em parte, a gritaria em torno desse
grupo de salteadores, composto em maioria absoluta de escravos fugidos. O crime e a fuga
poderiam compensar?
O nome de Lucas era em alto e baixo som amaldiçoado em diversos cantos da
província. Por pais de famílias, senhores, donzelas, governantes locais e centrais e mesmo por
escravos e gente pobre e livre que vivia pelas estradas.
Em janeiro de 1846, Manoel José Justino foi preso para recruta por ser “indigitado
ladrão de bois”; o seu próprio pai havia solicitado o recrutamento às autoridades, e na ocasião
o chamou de “Manuel Lucas Evangelista”887. Essa situação se passou na vila de Nossa
Senhora da Purificação, próximo a Santo Amaro, no “recôncavo rebelde”888. Ficamos sabendo
por outro documento, emitido no mesmo dia do citado acima, que o pai José Justiniano
Barbosa, viúvo e morador da fazenda Muganga, havia ensinado o ofício de oleiro para seu

885
Idem.
886
HOBSBAWM... Op. cit. 2010, p. 80.
887
O que confirma também que o nome Lucas “da Feira” não era ainda o nome pelo qual o salteador era
reconhecido.
888
APB. Manuscrito Sessão Colonial e Provincial. Governo da Província. Polícia, correspondência recebida sobre
diversos assuntos. Maço 3110. Vila de Nossa Senhora da Purificação. 17 de janeiro de 1846. João Joaquim da
Silva.
308

filho889. Contudo, foram em vão as tentativas desse pai de evitar que seu filho seguisse o
caminho de um modo de vida que achava inapropriado. Aos 18 anos teria aquele “Manoel
Lucas Evangelista” (o termo é repetido também nesse documento) largado a companhia da
família e havia cinco anos “que não quer sujeitar-se a trabalho algum e sim só se inclina a
fazer feitos maus, dos que causa vergonha ao suplicante e aos irmãos do suplicante que vivem
honestamente”. Manoel Justino ou Manoel Lucas foi recrutado para a 1ª linha do exército890.
Como aquele Oleiro ficara sabendo da existência de Lucas e seu grupo? Através dos
fuxicos, informações e contrainformações oriundas das feiras, das ruas, senzalas? Ou a partir
das conversas de seus patrões ou clientes, dos debates públicos de jornais, que os homens
liam e reliam para a família e correligionários?891 De todo modo, o nome de Lucas estava
ligado à desobediência, a fuga e ao crime, causando, nesse caso, vergonha para uma família
que parecia querer se mostrar ordeira e de bem.
Em outra oportunidade, alguns meses depois, o nome de Lucas não foi lembrado com
tamanho temor. Ao relatar as dificuldades de segurança em vila Nova da Rainha, onde um
“facinoroso” chamado de “José Marcos, com mais quatro de sua comitiva”, cercaram a casa
do Juiz de Paz para lhe saquear e também à vila. Esse mesmo José Marcos já havia realizado
ataques à região nos anos 1835, 1836 e 1846, às vezes com um “séquito de mais de 80
bandidos”. Na ocasião, o Juiz Municipal escrevera que “se por castigo nosso me dessem a
escolher o negro Lucas ou a José Marcos, sem medo de errar posso asseverar [que] todos
unanimemente diriam; queremos dois Lucas a vista do que achava justo que vossa senhoria
solicitasse do governo uma quantia ou um prêmio a quem o prendesse”, e terminava rogando
que se chegasse esse pedido ao Imperador892.
Não obstante o nome de Lucas não ter sido lembrado com tamanho temor, ele
continuava sendo um marco comparativo de temeridade de um bandido. Ele era a unidade de

889
No seu interrogatório disse ser também “Carpina” e viver de “catar bois”. Essa terceira profissão citada sugere
que era vaqueiro. Algumas vezes encontramos assim a designação daqueles que viviam do trato com esses
animais. Mas podia ser apenas um artifício do Manoel Justino para provocar uma confusão com o fato de ser
conhecido como ladrão de bois. Afirmou ele também naquela ocasião que vivia na casa de um Juiz. Ver: Idem.
Assinado por José Justino Barboza. Interrogatório feito pelo Doutor Delegado José Pinheiro Lisboa ao preso e
recruta Manuel José Justino.
890
Idem.
891
CRUZ, Helóisa Faria de. São Paulo em Papel e Tinta. Periodismo e Vida Urbana – 1890-1915. São Paulo:
EDUC; FAPESP, 2000, p. 135-146, explica que a marca da popularização da “cultura letrada” no país foi os
debates que os homens faziam sobre os temas dos jornais no lar, ao receber correligionários e familiares, e no
local de trabalho. Esses debates também se estendiam para as tabernas, feiras, etc. Ela afirma que esses debates
faziam com que notícias e ideias tivessem mais difusão do que os circuitos dos letrados.
892
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial, Governo da Província. Série: Justiça. Correspondência de Juízes
– Jacobina. 1847-1854. Maço 2432. Vila Nova da Rainha. 13 de maio de 1848. José Pereira Maia, 1º substituto
de Juiz Municipal e de órfãos, para Juiz de Direito, José Antonio Magalhães Castro.
309

medida da província para se falar de feitos maus dos fora da lei. O José Marcos parecia ter
uma carreira tão longeva quanto à de Lucas, ter um agrupamento muito mais numeroso, bem
mais feroz e com maior ousadia, mas não era um agrupamento de escravos fugidos (apesar de
ter alguns deles e de outros parceiros), nem tão próximo ao epicentro político da província.
Feira enforcada

Figura 13: Representação do enforcamento de Lucas em forca montada no Campo do Gado – Feira
de Santana. Fonte: REYS, Virgilio Cesar Martins; LIMA, Arthur Cerqueira da Rocha. Lucas o Salteador.
Histórico da sua vida até o seu julgamento e execução, acompanhado do processo dos seus célebres
companheiros Januário e Flaviano. Cachoeira: Libro Thypographia, 1896, p. 115. Originalmente não sabemos
de quem é a autoria. Contudo a publicação original da mesma foi feita em alguma revista ilustrada da época.

A existência do grupo não foi tão duradoura, ao menos com aqueles membros
considerados os principais e mais atuantes: José, Flaviano, Nicolau, Bernardino, Joaquim,
Manoel, Januário e Lucas.
Desde 1843 que sofreram baixas fatais ou carcerárias, como nos informa o
documento que deu satisfações sobre a prisão de Flaviano. Nesse documento afirma-se que,
apesar de “zombarem” da justiça há alguns anos, “dois dos mais notáveis membros foram
310

capturados: um morreu893 por ter sido ferido na ocasião em que a quadrilha foi encontrada e
perseguida pela força pública: o outro, e é o de que se trata, foi preso e sujeito a processo” 894.
O processo aberto foi encerrado no dia 21 de janeiro de 1843, às 22h da noite, em
Feira de Santana, quando o júri decretou a pena de morte para Januário, contudo, houve ainda
uma interpelação do Juiz de Direito da comarca de Cachoeira que, ao analisar o procedimento
do julgamento, tentou anulá-lo, o que foi negado por uma junta de autoridades, incluindo o
presidente interino da província. O que se pode entender da resposta dessa junta é que o Juiz
de Cachoeira questionou a validade das provas de culpa de todos aqueles crimes relatados, ao
que respondeu no documento: “o depoimento das testemunhas apresenta prova convincente de
ser o réu um dos autores dos crimes constantes do corpo de delito (...) que trata o artigo 271
do código penal”, finalizando com a sentença de que o proprietário do réu pagasse com os
custos do processo895.
Januário foi enforcado no dia 26 de setembro, às 10 horas da manhã896 de 1843, após
ter andado pelas “ruas mais públicas desta vila com baraço e pregão. Acompanhado de
autoridades da justiça e tropa, chegando ao campo do Gado, onde se achava colocada a forca,
aí, depois de preenchidas as formalidades do estilo, sofreu o réu a morte a que foi condenado
(...) finalizando-se todo o ato às 3 horas da tarde”897. Foi enterrado do lado de fora da “capela
mor” da vila. Contudo, na descida do corpo partiu a corda, vindo Januário ao chão sem ser
enforcado. Segundo Sabino de Campos, o juiz Vicente Ferreira Álvares do Campo “mandou o
soldado Travessa comprar outra no armazém de Luiz Antônio de Araújo, que lhe vendeu dois
cabrestos de prender e conduzir cavalgaduras e mais algumas velas de sebo para o preparo de
fazer correr facilmente o laço da nova corda”898. Apesar do costume popular da época de que
quando a corda partia o condenado merecia o perdão, assim não procedeu a justiça nem a
população “ululante”899 que assistia a tudo. Seu carrasco foi o filho de um homem de
sobrenome Correa, que ele e Lucas haviam matado. Segundo relatos do Jornal, foi colocado
dentro de um Pilão e socado até a morte900.

893
Não sabemos de quem se trata.
894
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 400. Cachoeira, 26 junho de 1843; 26 de junho de 1843. Inocêncio
Marques, juiz de direito de cachoeira.
895
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 99-100.
896
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Outubro de 1847, ano XIV, nº 247, p. 02 e 03.
897
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 100.
898
CAMPOS. Op. Cit., p. 117. Januário tentou ainda se fingir de morto, oque não deu certo, pois o juiz municipal
ordenou que se levantasse, pois senão dar-lhe-ia dói tiros na cabeça. Ao se levantar praguejou para a população
que “aqueles que se riem de me ver aqui, eu também aqui mesmo os espero”. BN Hemeroteca. Correio
Mercantil. Outubro de 1847, ano XIV, nº 247. Bahia, p. 02 e 03.
899
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 100.
900
Correio Mercantil... Op. Cit., nº 247, p. 02 e 03.
311

Não há maiores informações das circunstâncias da prisão de Januário. Sabe-se que


nessa época já estavam “diariamente” marchando “contra os facínoras, pessoas armadas e
dispostas aos riscos da aventura”901. Prêmios eram oferecidos para quem os capturassem vivos
ou mortos.
Desse modo Flaviano foi capturado, em uma emboscada realizada por um escravo de
nome Narciso, do mesmo senhor que Flaviano, Antonio Pereira Suzarte902. Com o prêmio
pela captura (algumas fontes falam em 200 mil réis, outras falam em 400 mil réis 903) comprou
sua carta de alforria em 21 de janeiro de 1847 904. Após ser sentenciado ao “grau máximo para
905
exemplo dos outros e satisfação do público” , Flaviano foi enforcado no dia 4 de março de
1849 na vila de Feira de Santana906, como atestou para o Juiz de Direito da Comarca de
Cachoeira, Manoel José de Araújo Patrício:

Certifico, eu escrivão das execuções criminais abaixo assinado, que pelas


10h do dia de hoje foi o Dr. Juiz Municipal e criminal desta vila, Leovigildo
de Amorim Filgueiras, acompanhado de mim escrivão, à cadeia a fim de
fazer sair o réu Flaviano para correr as ruas mais públicas até a forca para ser
executada a sentença de morte contra o mesmo réu, o qual foi tirado da
prisão e tomou uma alva e o juiz mandou que seguisse o o mesmo pelas ruas
mais públicas, o que se fez com todas faz formalidades recomendadas no art,
40 do código criminal até o lugar da forca, e aí depois de feitos os ofícios
religiosos por dois religiosos de São Francisco e o reverendo vigário desta
vila que acompanhavam o penitente, mandou o juiz se executasse a sentença
de morte na forca do réu Flaviano, o qual foi logo executado pelo algoz que
no seu lugar competente se achava colocado, e foi a ultimada execução com
o transporte do último suspiro de vida que deu o referido réu, depois de que
foi tirado seu corpo que estava ainda pendurado no laço, e caiu por terra, e
foi por mim bem observado que estava morto e daí foi conduzido até o adro
da Matriz onde foi sepultado na minha presença, o que tudo dou fé de
verdade907.

901
Idem, p. 151.
902
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Secretária de Polícia da Bahia, 1º de outubro de 1846. Do chefe de
polícia para o presidente da província, João Joaquim da Silva; A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do
Governo da Bahia. 12 de setembro de 1846. Do presidente da província para o ministro da justiça.
903
Provavelmente motivada pela subscrição realizada para levantar uma soma a mais de dinheiro, de 200 mil reis,
para complementar a alforria do Narcizo, feita por autoridades e comerciantes locais.
904
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 141.
905
Idem, p. 106.
906
APB. Manuscritos Seção colonial provincial. Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Nº 5689. Secretaria de polícia da Bahia. 30 de
junho de 1849. De João Mauricio Wanderley, chefe de polícia, para João Gonçalves Martins, presidente da
província. Usufruindo da distração do enforcamento de Flaviano, dois sujeitos, um “preto e um pardo”,
espancaram e roubaram o cidadão Manoel Gomes, no Pau de légua, que se dirigia para a cidade de Cachoeira.
Este reconheceu os criminosos, que foi “um preto e um cabra”, os quais de surpresa saíram da mata. Dentre estas
e outras ações armadas das populações de cor é que foi debitada na conta do Lucas e seus comparsas tantos
crimes e tantas pessoas como membros do seu grupo. Veremos, brevemente, a continuidade de ações armadas
muito semelhantes às do grupo de Lucas na vila de Feira de Santana, mesmo após a sua morte.
907
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 107-108.
312

No caso de Flaviano também houve apelação. Da mesma forma não foi acatada,
“visto que se não encontraram nulidades algumas substanciais, nem a sentença foi proferida
contra a prova dos autos”908.
As versões sobre a morte de Nicolau variam um pouco. Ambas afirmam ter
acontecido no dia 12 de março de 1844, após intensa troca de tiros na região da Lagoa
Salgada, porém divergem quanto a algumas circunstâncias. Para Sabino Campos, teria sido
ele emboscado por um grupo organizado por um sujeito de nome Manuel Pedro, mais
conhecido por Machado, “valente e disposto a acabar com aquela atmosfera de
intranquillidade”909. Teria esse mesmo Manuel abatido Nicolau com uma espingarda “Rio
Real”. Na versão de André Pereira da Silva Moraes 910, compilada no livro de Reys e Rocha
Lima, o agrupamento estava nas imediações da lagoa Salgada, assaltando “um grupo de
pessoas que regressava do comércio da Feira”, era noite, entre 20h e 21h, e estava muito
escuro; na troca de tiros foi morta por um tiro dado por Lucas 911 uma negra de nome
Alexandrina que, para Moraes, acompanhava a comitiva assaltada 912, além de Nicolau,
alvejado por um homem de nome Manuel Joaquim.
No clarear do dia seguinte o povo ficou sabendo da morte de Nicolau pelo espetáculo
de rua promovido pela turba que espetara a cabeça dele em um pedaço de pau. A exaltação
popular era tamanha que o capitão José Carlos da Silva e Araújo permitiu a festa sem
proceder a corpo de delito. O resto do corpo foi aniquilado pela população “acabando por
incinerá-lo a noite no campo do Gado”913, local dos enforcamentos de Flaviano e Januário. A
plebe produzia seu próprio espetáculo, mais feroz e sem liturgias, mas voltou-se, ao fim, para
o espaço oficial, para fazer valer seu justiçamento914.

908
Idem, p. 106.
909
CAMPOS... Op. Cit., p. 117
910
Este senhor foi apresentado para os leitores da obra como contemporâneo de Lucas, irmão do vigário de São
José das Itapororocas, do termo de Feira de Santana, onde “exerceu diversos cargos importantes, quer de
nomeação, quer de eleição popular”. Não diz a data do texto original. REYS; LIMA... Op. Cit., p. 135-143.
911
Lucas assumiu esse crime.
912
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 140. Para Sabino de Campos ela era “companheira de Nicolau no crime e na
morte” e foi com ela que Nicolau conseguiu adentrar na vila, vestido de mulher, onde se encontrou com o bando,
de onde seguiram para realizar mais um ataque, até que a emboscada os impediu. Op. Cit., p. 117 e 118.
913
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 140.
914
A narrativa do que se seguiu a destruição do corpo de Nicolau é uma forma póstuma de linchamento. O
sociólogo José de Souza Martins descreveu os enforcamentos como rituais de linchamento, tendo estruturas
próximas como o carrasco, oriundo da população, o ritual de cortar cabeças ou mãos depois do enforcamento,
salgá-lo, e expor nas ruas e vilas próximas. Ver: Linchamentos. A justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto,
2015, p. 10. Para ele, essa reação, ao contrário do que se poderia pensar, não é uma desordem, mas uma reação à
desordem, uma resposta dos valores tradicionais que variam, claro, daquilo que é considerado tradicional em
313

Já eram, até aquele momento, sete os membros do grupo presos, mortos ou


restituídos e vendidos pelos seus donos, como afirma o mesmo Moraes. Para ele, Benedito,
Manoel, Joaquim e Jabá “não chegaram às mãos das justiças, porque, presos em diligências
particulares, como é de crer, os senhores trataram de pô-los barra a fora”915.
Contudo, existe outro relato para o fim de Joaquim. Segundo um documento emitido
pelo Juiz Municipal e de Direito, Herculano Antonio Cunha, que na ocasião processava mais
16 presos, Joaquim se chamava Joaquim de Santana, conhecido como Joaquim do Candeal, e
fora condenado a galés perpétua, acusado de crimes de roubo e mortes, “perpretados no
distrito de Oliveira daquela cidade”916. No período do seu julgamento Lucas já se encontrava
preso, e não sabemos se esses crimes aconteceram ainda durante o tempo de permanância dele
no agrupamento. O que atesta o que Lucas disse saber sobre esse Joaquim: que vivia sumindo
e indo para as bandas de Santo Amaro e que não sabia mais de seus paradeiros.
O oitavo foi José; sua morte foi perpetrada na fazenda Salgado, no dia 3 de janeiro de
1848, numa ocasião “em que o perverso tencionava raptar uma rapariga honesta, achando-se
armado de bacamarte e terçado”917. José, possuído de autoconfiança e “valentia”, ao avistar
Maria Paulina, em uma de suas andanças, preveniu ao pai dela, José Joaquim Santana, de que
voltaria para pegá-la em ocasião melhor. Este pai, preocupado com a sua filha, procurou o
abrigo do Fazendeiro José Pereira Suzarte.
Em uma segunda-feira, indo fazer negócios na feira de Feira de Santana, o fazendeiro
foi avisado por moradores da região que José estava em um casebre ali perto e que afirmava
realizar seus planos no dia seguinte. Suzarte voltou a galope e, de onde estava, recrutou
homens para a luta. Ao chegar ao local indicado pelas pessoas, atirou em José, que tentava
romper o cerco sem lutar. Dessa vez parece não ter acontecido o festival sangrento semelhante
ao da morte de Nicolau. Foi levado o corpo de José em uma rede para a vila de Feira de
Santana, onde “mandaram jogar o mal-aventurado numa cova”918.
Lucas ficou bastante isolado ao fim de 1848, não conseguia mais transitar com a
liberdade de outrora, o prêmio para sua captura subia, atiçando “os voluntários do povo, os

sociedades e grupos sociais específicos, como as mudanças sociais que afligem os valores sociais, provocando
medo, insegurança, desconhecimento, abandono, etc. Idem, p. 27.
915
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 142. Sabino Campos fala em deserção de Joaquim e Manuel. Op. Cit., p.128.
916
A.N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Vila de São Francisco, 17 de agosto de 1848. De Herculano Antonio
da Cunha, juiz Municipal e de Direito Interino, para Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, Presidente da
Província.
917
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Policia Assuntos diversos. Governo da província. Maço 3111.
Feira de Santana, 04 de fevereiro de 1848. Delegado de Feira, Leovigildo de Amorim Filgueiras, para chefe da
policia da província.
918
CAMPOS... Op. Cit., p. 125.
314

soldados, os capitães do mato, os rastreadores da mata e das caatingas” 919. Índios da aldeia de
Pedra Branca foram chamados para usarem de técnicas de rastreio e perseguição. Os traidores
e ex-parceiros pareciam ter uma nova fonte de dinheiro fácil e passaram à delação e à captura,
incentivados por editais como esse abaixo que eram espalhados por toda a Feira:

O Tenente General Francisco José de Sousa Soares d’Andréa, presidente da


Província da Bahia:

Faz saber aos que este edital virem, que tendo baixado o Aviso do Ministério
da Justiça de 16 do mês passado, autorizando o prêmio de 4 contos de réis a
quem prender o escravo Lucas, que tem cometido no município da Feira toda
casta de atentados, ratifica pelo presente o Edital abaixo transcrito, que já a
semelhante respeito havia sido publicado pelo Chefe de Polícia interino Dr.
Francisco Gonçalves Martins, e declara, que este premio será dado ainda
quando o dito Lucas venha a ser morto em defesa própria por algum
viajante; ou mesmo se no ato da prisão, resistindo, ficar morto ou ferido.
Art. 1°. Todo o escravo que indicar lugar certo em que seja o crioulo Lucas
encontrado e preso, obterá sua carta de liberdade, indenizado previamente
seu senhor, que a polícia contratará, e se for livre se lhe dará um conto de
réis.
Art. 2°. Todo aquele que entregar à justiça algum dos criminosos, ou
escravos que atualmente acompanham o crioulo Lucas receberá a
gratificação de 400 mil réis.
Qual quer das gratificações acima mencionadas não será paga senão depois
de verificadas as prisões, provadas perante o chefe de polícia.
Art. 3°. Todo indivíduo que em sua casa asilar alguns dos salteadores, ou
lhes vender gêneros, principalmente armas, e munições, fazendo-o
livremente; ou se coacto, não o comunicar imediatamente à autoridade mais
próxima, será logo preso, e processado pelo crime de cumplicidade. Também
sofrerá o mesmo processo, aquele que, encontrando-os, não der logo o
mesmo aviso a qualquer hora do dia, ou da noite.
Art. 4°. Toda a autoridade que for avisada, ou qualquer pessoa a quem
chegar a notícia da presença dos salteadores em lugar certo, ou nas
proximidades de sua residência, deverá convocar imediatamente os cidadãos,
e marchar em seu seguimento: os que se recusarem serão no mesmo ato
presos, remetidos os solteiros não escusos para 1ª linha, ou Marinha, e os
escusos, e casados processados.
E para que chegue à notícia de todos, este será impresso, publicado nos
periódicos, e remetido à todas as autoridades policiais, com exclusão apenas
dos das Comarcas do Sul.
Palácio do Governo da Bahia 13 de maio de 1846.
Francisco José de Sousa Soares d’Andréa 920.

Não tardou muito depois da morte na forca de Januário e Flaviano, e do


enforcamento ritual de Nicolau, para que Lucas fosse pego.

919
CAMPOS. Op. Cit., p. 136.
920
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 402. Palácio do Governo da Bahia, 13 de maio de 1846.
315

No dia vinte e oito [de janeiro] fora felizmente preso o perverso Lucas,
havendo no dia vinte e quatro, recebido um tiro, quando passava da Mochila
para o Rio Jacuipe, como já ponderei circunstanciadamente para vossa
senhoria em ofício de vinte e nove do mesmo mês: e no dia trinta pela manhã
fora esse réu confessado e ao meio dia sofrera amputação no braço baleado
por assim julgarem o dr. Sinfrônio Olimpio Bacellar e o dr. Manoel de Assis
Freitas que fora chamado para ver o enfermo, da freguesia de São Gonçalo,
sendo ambos de opinião de que sem ela era infalível a morte do malvado,
visto o estado que estava o braço921.

Teve ainda aquele doutor a ajuda do estudante de medicina Jesuino Borges Pinto de
Meireles e o cidadão Vitorino Fernandes de Gouveia. O “perverso sofreu-a com muita
coragem, e o suponho escapo, em grande parte pelos desvelos do mesmo Dr. Bacellar, que o
922
há assistido com duas visitas por dia” . Lucas foi mantido sem comunicação durante todo
aquele tempo, recebendo os cuidados na casa do delegado.
A amputação da qual se refere o documento foi decorrente de dois tiros que tomou,
no mesmo braço esquerdo (Lucas era canhoto), por conta de duas emboscadas que sofreu dos
mesmos perseguidores. Na primeira, que resultou no primeiro tiro no ombro, estavam
presentes apenas Cazumbá e Manoel Gomes923, mas, após a notícia, no segundo encontro
estavam presentes Cazumbá, o crioulo Benedicto, o pardo Aprígio, o cabra Serafim e mais
dois crioulos, Luciano e Plácido, além de mais três que não foram registrados os nomes 924.
A maior parte da historiografia referente a Lucas deu crédito apenas a Cazumbá
como o capturador daquele salteador. Contudo, Reys e Lima, em um dos raros relatos que
incluem outros sujeitos na história da captura de Lucas, descrevem que, no dia 24 de janeiro
de 1848, numa localidade entre a região do Muchila para o Buris, onde Lucas costumava fazer
sua “sesta”, perto de uma fonte da roça do Alferes Carvalho, às 4 horas da tarde, foi disparado
um tiro por Manoel Gomes que acertou um dos braços de Lucas. O mesmo conseguiu fugir,
segundo os autores, com um braço “estilhaçado”, mas deixou um rastro de sangue que
Cazumbá, após mandar vir reforço da cidade, tentou seguir, mas sem resultados. O reforço

921
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Policia Assuntos diversos. Governo da província. Maço 3111.
Feira de Santana, 04 de fevereiro de 1848. Delegado de Feira, Leovigildo de Amorim Filgueiras, para chefe da
policia da província.
922
Idem.
923
Homem que havia sido ferido por Lucas quando este tentou tirar da posse de Lucas uma de suas filhas. Ver:
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 18.
924
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. 3111. Feira de Santana, 13 de março de 1848. De Leovigildo
de Amorim Filgueiras, delegado do termo da Feira, para o chefe de polícia da Bahia.
316

veio dos homens do “célebre Alferes Egydio Jorge Franco, conhecido por corta-pescoço” e
pela “grande massa do povo” que se pôs à disposição de caçá-lo925.
Mas, apesar da fuga, quatro dias depois,

no dia 28 [de janeiro] as 10h da manhã entrou essa fera nesta vila, trazido
pelo mesmo Cazumbá, e outros, e não me é possível pintar à V. S. o
contentamento que mostravam os habitantes deste lugar, que, sem exceção
de classe, qualidade, sexo, e posição, desprendiam repetidos vivas, e soltarão
foguetes, iluminando-se a noite todas as casas. Os armazéns amanheceram
abertos, cujos donos obsequiavam indistintamente a todos que entravam 926.

O texto acima, enviado pelas autoridades militares e civis de Feira de Santana, foi
publicado no mesmo jornal em que se travara o debate sobre os cidadãos da Feira serem
acobertadores de Lucas (por conta do caso Themoteo). Parece que existiu uma questão de
honra de destacar um quadro de total êxtase por parte dos moradores da vila, para não deixar
dúvidas sobre o contentamento dos homens de negócios daquele vilarejo, ainda que, mesmo
um aliado de Lucas, obrigatoriamente, tivesse que fazer o mesmo ou participar dos festejos
para não dar na vista.
Lucas foi capturado, depois de breve resistência, perto do rio Jacuípe, a uma légua de
distância da vila de Feira, em um sítio chamado de Gurunga 927, e chegou gravemente ferido
em uma rede tingida de vermelho pelo sangue que esvaía do braço que fora alvejado. Como já
sabemos, a amputação foi necessária e foi pago por esse serviço ao dr. Sinfrônio Olimpio
Bacellar uma quantia de 50 réis tirada do montante que seria destinado aos presos pobres da
vila928. Além disso, foi pago, à custa também dos fundos para os presos pobres, toda a duração
da prisão, cirurgia, remédios e alimentação do preso, custando, ao total, 18.200 réis, que foi
recebida pelo cirurgião-mor do corpo de policia, Manoel José de Santana929.
Outra quantidade bem maior de dinheiro foi paga pela captura de Lucas: quatro
contos de réis. Essa soma de dinheiro animou Cazumbá e muitos outros a tentarem a captura
de Lucas. Esses quatro contos de réis tiveram que ser divididos entre aqueles que capturaram
Lucas e, como já falamos, não foram poucos os seus capturadores, e todos reivindicaram sua

925
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 19.
926
BN Hemeroteca. Correio Mercantil, 03 de fevereiro de 1848, ano XV, nº. 26, p. 01.
927
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 20.
928
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Governo da província. Policia Assuntos diversos.. Maço 3111.
Secretária de polícia da Bahia, 22 de abril 1848. Do Chefe de polícia, João Joaquim da Silva, para presidente da
província.
929
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Segunda feira, 17 de julho de 1848, Ano XV, nº 157, Bahia. p. 01.
EXPEDIENTES do presidente da província do dia 13 de julho. Zélia Lima fala em 17. 450 mil réis e cita um
documento do maço 3113 do APB que comprova essa quantia.
317

porção ou mesmo o prêmio todo930, como acusou a resposta feita pelo delegado Leovigildo
Filgueiras ao chefe de polícia, a uma dúvida desse mesmo chefe sobre a maneira de repartir o
prêmio da captura de Lucas, “para que não apareçam queixas contra o governo e a polícia” 931.
O delegado, receoso com a transferência de decisão por parte do chefe de polícia, respondia
que ele também, não podendo receber as mesmas queixas, “não lhe [podia] por isso [dar] a
minha opinião com a franqueza exigida”. Relatava que ambos os suplicantes (Cazumbá e
Manoel Gomes) se achavam na tarde do dia 24 de janeiro do corrente ano amoitados à espera
do salteador, tendo sido, porém, o cidadão José Pereira Cazumbá quem lhe atirara e ferira-
o932. Ambos, ressaltando que, por mando dele, “rastejaram” durante o resto da tarde do
mesmo dia 24, e durante o dia 25, 26 e 27 do referido mês, mas “na achada do rancho” e
prisão do “malvado”, no dia 28, não estava presente o suplicante Manoel Gomes e que o
referido Cazumbá acompanhado do

crioulo Benedicto, pardo Aprígio, cabra Serafim, crioulos Luciano, Plácido,


um irmão destes, e mais dois indivíduos cujos nomes não tenho em
lembrança, sendo o dito Cazumbá o primeiro, que entrara no rancho e dera
voz de prisão ao perverso, que logo fora pegado pelo cabra Serafim (...)
cumprindo-me também ponderar a vossa senhoria, que oito indivíduos que
foram ao rancho, e auxiliaram a prisão, se julgam igualmente com direito a
alguma remuneração deduzida da mesma gratificação, e com efeito não
deixaram de prestar algum serviço, não entrando eu na moralidade da
ação933.

Ao fim sugeriu que Cazumbá ficasse “bem gratificado com dois contos de réis”,
Manoel com um conto e os outros dividiriam o um conto de réis restante.
Houve concordância com a proposição do Delegado, e assim expressou o chefe
de polícia sua decisão:

Cingindo-me inteiramente à opinião do referido delegado, me parece justo


que se gratifique ao peticionário José Pereira Cazumbá, com a quantia de
dois contos de réis, a Manoel Gomes de Oliveira com a de um conto de réis,
servindo a restante quantia de um conto de réis para as gratificações dos

930
APB. Manuscritos seção Colonial e Provincial. Policia. Feira de Santana, 13 de março de 1848, de Leovigildo
de Amorim Filgueiras, delegado do termo da Feira, para o chefe de polícia da Bahia.
931
Idem.
932
Há relatos que dizem que a ferida causada no dia 24 foi fruto do tiro dado por Manoel Gomes e a do dia 28,
sim, teria sido desferida pelo Cazumbá.
933
Idem.
318

ditos indivíduos que acompanharam aquele dito Cazumbá ao rancho e o


auxiliaram na perseguição do salteador Lucas 934.

No dia 1º de março Lucas foi condenado à pena máxima, incurso no artigo 191 e 271
do código criminal. Foi conduzido por 15 praças para a capital, já que a cadeia não oferecia
para um preso tão perigoso e com sócios, como se pensava, a segurança necessária contra uma
evasão. O responsável pela transferência do preso foi o alferes Egídio José Tronco. Segundo o
autor do documento, o

réu não fez revelação alguma, sobre que mister fosse a polícia empregar
algumas medidas, sustentando sempre que por estar perdido não perderia
alguém. Ele vai quase bom do braço amputado, devido aos curativos, que
recebera nessa vila por autorização do governo e remeteria a vossa senhoria
a conta do médico, botica, e sustento, e despesas feitas para a conservação
do malvado935.

Se havia muitos sócios, Lucas não “caguetou” nenhum deles. Repetidamente seus
interrogadores, de forma direta ou indireta, perguntaram-no sobre a existência deles e quem
seriam, mas Lucas nada falou sobre isso, ao contrário, afirmava não contar com ninguém, que
pouco entrava na cidade e fazia trocas comercias com comerciantes e pessoas nas estradas.
Ficou preso em Salvador no quartel de Santo Antônio Além do Carmo, onde esperou
o julgamento. Em seu retorno foi escoltado por outra forte força, sob o comando do Alferes
Agostinho936.
Havia pressa em julgá-lo, diferentemente de outros bandidos, que aguardavam muito
tempo; as autoridades judiciárias eram a todo tempo interpeladas por autoridades políticas,
que cobravam o andamento do processo. Qualquer político gostaria que sua administração
fosse a responsável pelo enforcamento de tal “facinoroso”, podemos constatar isso pelo
volume de documentos cobrando o andamento do processo. Em um deles, o tribunal da
relação do Rio de Janeiro responde937:

934
APB. Manuscritos Seção Colonial Provincial. Governo da província. Policia Assuntos diversos. Maço 3111.
Feira de Santana, 23 de março de 1848. Do chefe de polícia, João Joaquim da Silva, para presidente da
província.
935
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial. Governo da província. Policia assuntos diversos.. Maço 3111.
Feira de Santana, 1º de março de 1848. Do Juiz municipal, Feliciano Teixeira, para Leovigildo de Amorim
Filgueiras.
936
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 25.
937
23 de maio de 1849. Do escrivão da relação para o secretário da apelação (nome em rubrica).
319

O processo do réu o crioulo Lucas me foi distribuído em 11 de abril de 1848


e apresentado ao tribunal da relação para seu julgamento em 2 de maio do
dito ano, julgando improcedente a apelação por acórdão de 10 de junho do
mesmo ano do qual interpôs remessa de revista para o Supremo Tribunal de
Justiça em 19 daquele mês e remetidos os autos para o Tribunal em 29 de
agosto daquele ano pelo vapor S. Salvador como consta do conhecimento da
administração dos correios geral que se acha junto ao traslado documentos
(...) demais que o réu foi socorrido pela Santa Casa de Misericórdia a quem
se dirigiu para se expedir (...) por faltarem os meios para isso, e até o
presente não regressaram os autos. É o que posso informar a vossa senhoria
para fazer ponte ao Excelentíssimo senhor e ao seu presidente (...) em
sequência da ordem que por vossa senhoria me foi enviada em 22 do
corrente.

Essa resposta foi prontamente enviada para o presidente da província no dia 26 de


maio de 1849938. Mas, ainda assim, cinco dias depois, nova cobrança foi respondida pelo
chefe de polícia da corte ao chefe de polícia da Bahia e publicada nos jornais da capital. O
chefe de polícia da corte avisava que enviara o documento anterior de cobrança do chefe de
polícia para saber do andamento do processo de Lucas no supremo tribunal de justiça. E que
aquele tribunal respondeu da seguinte forma: “que o processo do facinoroso Lucas está em
andamento, e sem dúvida brevemente será julgado” 939.
Após sua petição de perdão real ter sido negada na relação, foi enforcado no dia 26
de setembro de 1849940. Vestido com uma túnica branca, foi enforcado no Campo do Gado,
“ladeado por dois frades e vigário da freguesia e acompanhado das autoridades, força pública
e grande massa do povo dentro e fora do município”941.
Nessa oportunidade, alguns dos que toparam o caminho de Lucas quando ainda era
um salteador que gozava de liberdade e saíram desse encontro com feridas, dores familiares
ou perda de patrimônio, aproveitaram para se vingar, como o Alferes Agostinho, que o levou
da cidade de Salvador para a vila de Feira de Santana. Ele havia sido, em uma de suas viagens
de Santo Amaro para Feira, alvejado nas costas pelo salteador942. O carrasco, Joaquim Corrêa,
se ofereceu para tal função por querer se vingar do negro Lucas por ter matado seu pai numa
das ações do grupo943.

938
APB. Seção Colonial e Provincial. Bahia, 26 de maio de 1849, do presidente da relação, Joaquim José
Pinheiro de Vasconcelos, para presidente da província.
939
BN Hemeroteca. Correio Mercantil. Bahia. Quinta-feira, 31 de maio de 1849, Ano XVI, nº 121, p. 01.
940
Zélia Lima fala que a execução estava marcada para o dia 25 de setembro de 1849.
941
REYS; LIMA... Op. Cit., p. 26.
942
Idem, p. 27.
943
Idem. Reys e Lima dizem que muito dos depoentes que eles entrevistaram, afirmaram que o Joaquim Corrêa
teria sido o carrasco de Januário. Idem.
320

“Estava cumprida a sentença, estava vingada a sociedade. Estava satisfeita a


944
justiça” .
Alguma questões

O roubo era o pavor da nossa fidalguia 945.


Citar-se Lucas? Tolice! Lucas era um escravo revoltado com o cativeiro (...).
Isto. Bruto e bárbaro. E onde se encontram os resultados de tanto inquérito
de desfalque de gente que ataca Lucas de Ladrão? Não era da Feira de
Santana. Apenas agiu aqui, campo amplo e foi exemplado aqui. Vamos parar,
porque se iria longe com isto...946.

Estas são as únicas palavras que Eurico Alves Boaventura, filho de grandes
fazendeiros e comerciantes de Feira de Santana, dedica a Lucas num livro de mais de 500
páginas que visava retratar, entre tantas outras coisas, as relações sociais no sertão em que
"Fidalgos e Vaqueiros" – este é o nome do livro – criaram uma sociedade de "democracia
mestiça". Tanto fidalgos como vaqueiros, isto é, auxiliares, empregados e até mesmo a
escravaria, conviviam em relações bem diferentes daquelas do recôncavo dos senhores do
açúcar. Esses senhores adquiriam o respeito dos seus escravos através de chicotes e feitores,
bem diferente do sertão em que os senhores tinham que mostrar sua valentia na lida do boi,
trabalhando junto com seus peões. As relações seriam mais horizontalizadas, e quando essa
paz social era ameaçada, sem dúvida, a culpa estava sempre pronta para ser colocada nos
sujeitos que vinham de fora, fossem os desertores, fossem os negros aquilombados em fuga
do recôncavo, fosse o comerciante do “Norte”, que passava moeda falsa.
Tolice, portanto, citar Lucas, afinal, ele foi um vulto passageiro na longuíssima paz
social dos sertões da Feira. Talvez por isso tão poucas linhas dedicou Eurico Alves a esse
sujeito. Apesar da frase acima, do pavor social do roubo nos sertões, nada falou de seus
agentes. Na certa seriam muito mais bandos e sujeitos do que a tese de Eurico Alves poderia
sustentar. Muito longe poderia ir ao discutir e polemizar sobre a existência de Lucas e seu
bando, mas os limites controversos dessa narrativa revelar-se-iam débeis pelas muitas
rebeldias e desordens no sertão. Chegaria Eurico a expor que os seus fidalgos, quase
cavaleiros medievais de romances, cheios de virtudes e coragens, precisaram se ancorar num
escravo para realizar feitos desejados por eles? Ou simplesmente assumiria que o mando, o
controle da ordem ou o arbítrio da justiça do senhor da casa da fazenda, tal como ele e outros
descreveram, era uma meia verdade?
944
CAMPO... Op. Cit., 1947, p. 180.
945
BOAVENTURA... Op. Cit., 1989, p. 111.
946
Idem, p. 109.
321

Para Eurico, a casa da fazenda era polícia, juiz e carrasco, decidindo quem se prendia
e se soltava nos sertões. E para ele, somente os que matavam em legítima defesa recebiam
guarida nos currais até o dia do júri, regra “comum a todos os solares pastoris. Deflorador,
ladrão não teriam acolhimento do patriarca”947.
Não era isso o que pensava a maioria dos moradores da província da Bahia na época
da existência do grupo de salteadores designado como o “bando de Lucas da vila de Feira de
Santana”. Os negociantes e fazendeiros da região, acusados de relações de negócios com o
salteador, teve seus defensores que negaram esse conchavo. Eurico Alves parece ser um deles,
bem como os já bastante citados nesse texto, Reys e Lima.
O que deve ser problematizado nas afirmações de Eurico é exatamente essa
contradição: se Lucas existiu e não estava sob o controle dos fazendeiros e negociantes
sertanejos, agia portanto de forma independente e com o máximo de autonomia. Era um
ladrão, solto pelas plagas de Feira de Santana, incontrolável por muitos anos, a quem a frente
campo/cidade de autoridades militares e civis demorou a destruir. Mas Eurico, ao atacar,
parece sair em defesa de Lucas: não era ladrão! Afinal, aqueles que o acusavam de ladrão
eram dados a desfalques e não podiam chamá-lo de ladrão, pois estariam superdimensionando
um “escravo revoltado com o cativeiro”, como tantos outros que não seriam dali, mas agiram
ali, por encontrar condições plenas e férteis para as ações armadas.
Ao tentar diminuir a importância da memória de Lucas e seu grupo, ele assume que:
1) muitos “ladrões”, assassinos e malfeitores, agiram na região para praticar suas ações
armadas e não a fizeram como jagunços, “cabras”, ou capangas de nenhum desses senhores da
casa da fazenda; simplesmente “agiam ali”; 2) que não havia tamanho controle das classes
senhoriais e nem tampouco tamanho controle do colaboracionismo armado dos grupos sociais
subalternos com os potentados, afinal, confirmando a sugestão thompsiana, a presença desses
grupos de facinorosos deslocava o poder de sua ritualística autoridade, revelando fragilidades
e brechas de ação, mostrando serem violáveis e menos seguras as trilhas do sertão; 3) mostra-
se que houve muitos Lucas, antes e depois daquele; que aquele grupo de salteadores não era
um ponto fora da curva das ações escravas ou subalternas naquele termo e em nenhum outro.
Dez anos antes de Lucas, um homem pardo chamado Luis Bernardo, “célebre por
suas façanhas, não só nos arredores deste termo, como no do termo da vila da Feira de
Santana”948, era procurado pela polícia que fazia muitas diligências para pegar esse homem,

947
BOAVENTURA... Op. Cit., p. 119.
948
APB. Manuscritos Seção Colonial e provincial: Presidência da província. Judiciário – Cachoeira. 1838 - 1841.
Maço 2273. Cachoeira, 10 de junho de 1839. De Francisco Xavier Oliveira Pereira, Juiz de direito interino, para
322

mas ele sempre lhe escapava, tendo sido finalmente entregue pelo Juiz de Paz do termo de
Boa Vista como recrutado para as forças armadas. Não sabemos desde quando que ele era
procurado, mas se havia muitas diligências atrás dele, significava que não era um bandido
qualquer de ocasião, mas que sua atuação vinha de alguns anos, provavelmente. Andava entre
as zonas fronteiriças do recôncavo e do agreste feirense, assaltando e, provavelmente,
matando muito viandantes. Não muito diferente do que o Lucas começaria a fazer no mesmo
período que ele.
No dia 09 de janeiro de 1848, foi preso

na persuasão de ser o indicado malfeitor Lucas, um preto, crioulo, assas mal


barbado e de boa estatura, e averiguando, vim no conhecimento de que era
cativo do cidadão Francisco da Silva Barros Junior, dono do engenho Bom
Sucesso do Termo de Santo Amaro, estando fugido há mais de cinco anos, e
fora preso pela polícia de Bacamarte, terçado e um serrão às costas 949.

O escravo de Francisco da Silva Barros Júnior estava há cinco anos fugido, portando
armadas idênticas a de todos os membros da quadrilha de Lucas e, para agravar, era barbudo e
grande como Lucas. Por mais que não fosse Lucas, ele era também Lucas. E foi em
decorrência do pavor antinegro no pós 1835 que muitos eram Lucas, que foi quem melhor
encarnou, na fronteira entre o recôncavo e o sertão, região de máxima importância militar e
nas histórias da resistência dos levantes da província da Bahia, a ira e o pavor que a Bahia
senhorial e branca tinha (e têm) dos negros e pardos rebeldes, sobretudo dos escravizados.
No mesmo dia em que foi enforcado Flaviano, como já relatamos, um crime muito
parecido com aqueles que o grupo de Lucas realizava, feito em locais muito próximos das
antigas ações armadas de Lucas e seus comparsas, veio ao conhecimento das autoridades. No
mesmo ano, em 30 de abril de 1849, quando Lucas já estava preso e julgado e a quadrilha
desfeita, um homem chamado José Pinheiro Santos atacou um oficial de justiça com papéis de
parte de processos crimes do seu irmão e, após ser preso, conseguiu evadir da cadeia, como
tantos outros950. Essa audácia de atacar autoridades Lucas nunca tivera, e quando a fez,
confessou que não sabia de quem se tratava.
Alguns meses depois, em Julho de 1849,

presidente da província.
949
APB. Manuscritos Seção Colonial e Provincial. Policia Assuntos diversos. Governo da província. na. Maço
3111. Feira de Santa, 04 de fevereiro de 1848. Delegado de Feira, Leovigildo de Amorim Filgueiras, para chefe
da policia da província.
950
A. N. Ministério da Justiça, AI, IJ¹ 404. Palácio do Governo da Bahia, 30 de abril de 1849. De Francisco
Gonçalves Martins, presidente da província, para Eusébio Queiroz, ministro da justiça.
323

na comarca de Cachoeira, Termo da Feira de Santana, em o dia primeiro, nas


terras da fazenda Cabeçalho, à légua e meia de distância da vila, foram
encontrados assassinados os africanos libertos, Domingos Moreira de 60 e
sua mulher Isabel Moreira de 50 anos de idade, achando-se o cadáver dessa
crivado de facadas e dentro de sua própria casa, e o daquele no campo
igualmente no mesmo estado. Estes pretos habitavam em lugar deserto e
fervorosos trabalhavam para adquirir meios de libertar um filho, que ainda
era escravo, e para isso já haviam acumulado a quantia de 400 mil réis, que
foram roubados pelo feroz assassino, a quem sem dúvida as vítimas haviam
mostrado o dinheiro 951.

Apareceu também no dia 4, num lugar chamado Tabuleiro, um cadáver, já


completamente pútrido, “a um quarto de légua” da vila, do cidadão José Joaquim Lopes de
Morais, casado e morador da freguesia de Oliveira, que foi até Feira de Santana fazer
negócios. Segundo consta por “informações”, teria esse cidadão caído em uma “cilada que lhe
armara um pardo claro, que a pretexto de vender uns potros, o encaminhara para o mato,
conseguindo assassiná-lo com um tiro pelas costas” e roubar-lhe tudo que trazia952. E no dia 5,
no sítio Pau de Légua, “foi roubado e gravemente ferido com 11 golpes de foice, Manoel
Estevão, pardo, quando da Cachoeira regressava para a sua casa naquela vila da Feira”. Este
percebeu que o agressor o seguia desde a freguesia da Tapera e reconheceu ser um “pardo
magro, de pouca barba, e oficial de carpina, por já o haver visto trabalhar”953.
Por trás do temeroso nome Lucas e das ações imputadas a ele, parece que se escondia
uma quantidade numerosa de salteadores, em pequenos grupos ou de gente isolada, que
praticava vários tipos de ações armadas. Como vimos nas citações do texto de Arnizáu, essa
gente não parava de desobedecer à lógica do controle senhorial sertanejo que incluía acoitar,
proteger e fazer uso de “criminosos”. Essa lógica sistêmica que é vista como horizontalidade,
valentia ou como uma cultura política da violência por muitos historiadores, aqui está sendo
vista como uma lógica de dominação senhorial, cujo funcionamento ou pleno sucesso era a
todo o tempo quebrado por essas ações, e, talvez por isso, tivesse verdadeiro pavor a elas a
fidalguia versada em “Fidalgos e Vaqueiros”.

951
APB. Manuscritos Seção Colonial provincial. Série: correspondências, registros, relatórios, ofícios e mapas
enviados pelo chefe de polícia para a presidência da província. Maço. 5689. Secretaria de polícia da Bahia. 16 de
julho de 1849. De João Mauricio Wanderley, chefe de polícia, para João Gonçalves Martins, presidente da
província.
952
Idem.
953
Idem.
324

Conclusão
Cultura, materialismo, hegemonia:
Uma “cultura política da violência” para um sertão de “uma classe só”?
325

Figura 14: Quadro "O flagelo de 'Lucas da Feira'". Fonte: Carlos Barbosa (1987). Acrílica sobre
tela; 240 x 155 cm - Centro Universitário de Cultura e Arte (museu Regional de Arte), Feira de Santana, Bahia.

A hegemonia, em uma definição bem ampla, pode ser entendida como a capacidade
que o grupo social dirigente, ou que se pretende como tal, tem de organizar “vontades
coletivas” e colocá-las de modo ativo ou passivo a favor de seu bloco, que pretende o
domínio social954. Amparamo-nos, por hora, na reformulação de Thompson sobre esse
conceito. Thompson se dedicou, em algum momento de sua produção historiográfica, a
escrever sobre o que chamou de “hegemonia cultural”. Para ele, esse era o modo de

954
Para uma definição mais precisa ver especialmente o caderno 13 de GRAMSCI, Antonio. Cadernos do
Cárcere. vol. 03. (Org.) Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
326

dominação típico da gentry955 inglesa do século XVIII que, através de diversos rituais,
pomposamente ou ardilosamente teatralizados para a visualização e participação do povo,
ensejavam o controle social através de relações de suposta proximidade entre ricos e pobres e
entre plebeus e aristocratas. Esse teatro do poder tentava minar os antagonismos dos modos
de vida e das experiências sociais em questão. Ao trazer para essa reflexão o contexto
setecentista inglês, queremos afirmar, como Thompson, que a cultura é importante e que é
possível que uma prática sistemática, hierarquizada e enraizada num determinado contexto
social possa ser experimentada e vivenciada por grupos sociais diferenciados, mas, também
como o historiador inglês, entender que ela nunca pode decretar a “simbiose” entre as classes
sociais.
Os estudos de Raymond Williams, bem como os de Thompson, ajudaram muito a
entender as nuanças das relações de autonomia e independência dos sujeitos estudados. Para
estes, a hegemonia, como um momento ético-cultural fundamental, é um processo complexo
de “experiências, relações e atividades, com limites específicos e mutáveis” 956. A hegemonia,
para se consolidar como tal, precisa ser bastante plástica, “nunca singular”; tem que ser
“recriada, defendida e modificada” por pressões culturais que vêm tanto de fora quanto de
dentro dos grupos sociais.

A realidade de qualquer hegemonia, no sentido político e cultural ampliado,


é de que embora, por definição seja sempre dominante, jamais será total ou
exclusiva. A qualquer momento, formas de política e culturas alternativas, ou
diretamente opostas, existem como elementos significativos da sociedade
(...). Uma hegemonia estática, do tipo indicado pelas definições abstratas
totalizadoras de uma ideologia dominante, ou de uma visão de mundo, pode
ignorar ou isolar essas alternativas e oposições, mas, na medida em que é
significativa, a função hegemônica decisiva é controlá-las, transformá-las, ou
mesmo incorporá-las [pois] qualquer processo hegemônico deve ser
especialmente alerta e sensível às alternativas e oposição que lhe questionam
ou ameaçam o domínio957.

A hegemonia cultural é a organização de uma unidade contraditória de diversas


expressões que interligam uma série de “valores, práticas e significados que de outro modo
estão separados e são mesmo díspares e que ela especificamente incorpora numa cultura

955
Uma nobreza devidamente incorporada ao circuito de compra e venda de terras e títulos nobiliárquicos. Foi
um grupo social fundamentalmente importante nos desdobramentos políticos da Inglaterra desde as revoluções
burguesas em meados do século XV.
956
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 116.
957
Idem, p. 116 e 117. Grifos meus.
327

significativa e numa ordem social efetiva”958. Afinal, como nos ensinou Gramsci, a prática
política dos grupos sociais subalternos é desagregada e episódica e tende a ganhar unidade
quando sofre as iniciativas das classes dominantes, seja na conciliação, na acomodação ou
mesmo na resistência959. Forma-se uma cultura hegemonicamente dominante, que compete,
comprime e unifica as demais culturas emergentes e residuais, que também estão por ali a
reivindicar seus espaços nas brechas dos sistemas. Novas e velhas linguagens políticas são
tensionadas na criação de uma nova totalidade que é a hegemonia da cultura dominante e,
logo, das classes dominantes960. Cabe aos historiadores, e demais cientistas sociais,
enxergarem os fios soltos das práticas autônomas dos grupos sociais subalternos em meio a
uma sociedade, e cultura, que produziu diversas evidências dos grupos sociais dirigentes e
tentar puxar a linha do novelo até se deparar com a prosa insurgente dos subalternos.
Levando essa sugestão para o Sertão da Bahia, penso não ser muito difícil ver o
incômodo dos senhores das casas da fazenda para com os criminosos. Um sertão em que
durante séculos a autoridade penal, política e administrativa foi a casa grande da fazenda,
inclusive acoitando “criminosos”, políticos em fuga da capital, homicidas e tantas outras
espécies de pessoas que enfrentavam o poder da lei. Tentamos evidenciar que: 1) a presença
desses criminosos, ou do banditismo, e a organização de novos grupos de foragidos da lei
abriam uma possibilidade de autonomia frente à casa da fazenda, rivalizando com o acoitador
(grande fazendeiro) a recepção dessa significativa comunidade de fugitivos 961 que,
normalmente, era transformada em cabras e jagunços; 2) que essas “comunidades volantes”
poderiam ter gerado novas fidelidades, ações e visões de mundo, isto é, uma via alternativa
de vivência social; 3) que é possível pensar em um melhor equilíbrio na balança das relações
de força para os grupos sociais subalternizados de uma determinada localidade – uma nova
força social que emergia de um ambiente supostamente sem rivais – abrindo canais de
negociação e acomodação entre outros setores subalternizados e os senhores e até mesmo
entre criminosos e senhores; 4) existiu um terror decorrente da demonstração de uma fresta
de fraqueza das camadas dominantes, tendo em vista a farta documentação que aponta a
necessidade do silêncio e do segredo entre os administradores das vilas e comarcas sobre as
ações dos grupos de salteadores com medo de “não vulgarizar” o assunto entre a população;

958
Idem, p. 118.
959
GRAMSCI. Vol. 5. Op.cit, p. 129-146.
960
GRAMSCI, Antonio. Às Margens da História. (História dos Grupos Sociais Subalternos). In. Idem. Vol. 05.
2002.
961
Esse termo se encontra em dois textos do Historiador Flávio dos Santos Gomes: Histórias de Quilombolas no
Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 e A Hidra e os Pântanos. Mocambos, quilombos e
comunidades de fugitivos no Brasil (século XVII – XIX). São Paulo: Editora UNESP; Polis, 2005.
328

5) ser possível afirmar que as ações do banditismo dos homens pobres e livres, quando
associados à casa da fazenda, são mais complexas do que a forma como que foram
cristalizados pela historiografia, isto é, ser jagunço de alguém diz muito pouco sobre as
formas de obtenção de autonomia e negociação desses sujeitos; 6) que pertencer como
agregado ou “jagunço” da casa de um “potentado” a nosso ver podia representar
impedimento ao recrutamento; 7) que a relação com grandes fazendeiros permitiu a grupos de
bandidos a aquisição de butins oriundos dos conflitos entre eles e seus rivais; 8) conseguimos
notar ações armadas autônomas e sem controle senhorial que se valiam simbolicamente do
fato de serem conhecidos valentões, aliados de algum fazendeiro, mas que faziam com que as
autoridades civis e militares pensassem duas vezes antes de tentar capturá-los; 9) esta relação
poderia gerar abrigo temporário por várias localidades onde esses senhores tinham
compadrio ou mesmo outras terras e fazendas; 10) algumas vezes podiam contar com as
armas do Estado ao seu favor.
A ideia formada, no intuito de corrigir as teses de Eric Hobsbawm, de que o
banditismo se organizava nas franjas das casas da fazenda, transformando todo o banditismo
e crimes em jaguncismo, fez com que este fenômeno, típico dos modos de dominação
senhorial sertanejo, se convertesse em uma cultura e, consequentemente, fosse apagado dos
anais da história social da resistência. Exceto quando figuraram nas ações de resistências dos
potentados locais às intromissões do poder central ou de outra família poderosa, em seus
“territórios de mando”. Apareciam apenas quando esses senhores arrebanhavam seus fiéis e
seguidores jagunços numa luta desenfreada pelo poder dominante, supostamente em nada
compartilhado pelos homens que lutavam.
A ideia de uma “cultura da violência” no sertão, que teria provocado os crimes e os
banditismos de forma mais generalizada por aqueles territórios, não se sustenta quando é
analisada a composição social desses grupos e os contextos em que floresceram. Em nossas
investigações notamos a sazonalidade e a mobilidade de muitos “criminosos”: desertores das
guerras civis da província, escravos fugidos do recôncavo, da mineração da Chapada
Diamantina, dos diversos conflitos intrafamiliares, dos encontros proporcionados nas feiras
entre uma vila e outra. Teriam estes homens, ao adentrar em um território, se despido de sua
cultura e se aventurado pela violência por uma essência violenta de tais lugares? Para alguns
deles as ações armadas eram um cálculo, uma sobrevivência ou uma forma de vida anterior
mesmo à sua entrada no sertão. Um grupo como o de Lucas pode nos dizer muito sobre a
329

relação entre controle e descontrole das ações armadas de grupos suspeitos ou comprovados
de desenvolverem relações com o senhorio local.
O que dizer da constante forma federalista de ações armadas que encontramos nos
conflitos entre grupos familiares do sertão baiano? Grupos que faziam parte dos “jagunços”
controlados pelo comendador Militão Antunes, em sua guerra contra a família dos Guerreiros,
eram continuamente descritos pelas autoridades policiais, circulando e agindo livremente.
Eram flagrados se utilizando dessa chancela para praticar diversas ações armadas. Militão foi
diversas vezes descrito pelas autoridades como um homem que estava sem seus “peitos
largos” sob seu controle, resguardado em alguma fazenda, mas, de repente, surgiam relatos de
300, 400, até 600 homens marchando com ele para alguma localidade. Enquanto marchava
sua tropa só crescia. Onde estavam esses sujeitos? Que jaguncismo era esse? Chegava a se
falar em líderes de “bandos” do Militão. Mas não deveria ser ele o líder? A dispersão desses
conflitos também gerava outros agrupamentos que viviam e se organizavam por si.
Para falar de uma “cultura da violência” e não de resistência e ou negociação é
necessário omitir determinadas práticas de roubos e mortes de bois e cavalos, praticados por
índios contra a expropriação que sofriam em suas terras devido à expansão das fazendas de
pecuária.
Recuperando um dos argumentos de Hobsbawm sobre o banditismo, afirmamos que
“o banditismo é a liberdade, mas numa sociedade camponesa [em que] poucos podem ser
livres. Em geral as pessoas estão presas ao duplo grilhão do senhor e do trabalho, um
reforçando o outro”962. Várias visões de liberdade inspiram as ações dos fora da lei; desde
aquelas dos escravizados em fuga, passando pela tentativa de lutar contra o senhor e o
trabalho impostos pela expropriação que sofrem os indígenas, mas também a liberdade do
desertor que incorre nas ações armadas para viver, além dos homens livres e pobres que vêem
sua liberdade todo o tempo ameaçada pelas imposições senhoriais e do Estado. Mas é
possível perceber, mesmo naquelas formas de ações armadas mais atreladas aos senhores de
terras e animais, uma negociação velada de liberdades e uma acomodação que os insere como
sujeitos de/e com direitos, ainda que consquistados na contramão do Direito.
Percebemos ao longo desta pesquisa que alguns significados culturais,
aparentemente mais consensuais, podiam ter, por parte dos grupos sociais subalternos, sua
própria forma de se posicionar e produzir ações. Podiam produzir certos “deslocamentos de

962
HOBSBAWM... Op. Cit., 2010, p. 53.
330

autoridade”963, afinal, em se tratando de bandidos, eram homens armados em um determinado


território em que “são eles próprios possíveis detentores de poder”964. Os bandidos eram
sujeitos “fora da ordem social que aprisiona os pobres”, eram “uma irmandade de homens
livres, não uma comunidade de pessoas submissas”, que não podiam “apartar-se inteiramente
da sociedade”. Suas necessidades e atividades, sua própria existência, “fazem com que ele[s]
mantenha[m] relações com o sistema econômico, social e político convencional” 965. Contudo,
se “não são filhos da natureza que assam veados na mata”966 e precisam de intermediários e
protetores, também não é verdade que existiam por conta de uma aceitação cultural tácita e
que eram tolerados pelo mesmo motivo. Se foram tolerados era porque constituíam “um
núcleo de força armada, sendo, portanto, uma força política”967. E se impuseram como forças
políticas por conta da desmonopolização das armas por parte do Estado e suas classes
dirigentes.
Queremos mostrar que para os estudos do banditismo e suas perspectivas de ameaças
e estabilização da ordem, aliadas ou em oposição às classes dominates, é importante localizar,
no rastro de Hobsbawm, o momento de transição pelo qual passavam essas sociedades. Esses
bandidos eram parte importante de um processo de perda e restabilização do equilíbrio social.
A explicação de Hobsbawm sobre o banditismo é parte de um estudo que coloca o debate
sobre a crise e sobre a transição e, principalmente, sobre as condições das lutas de classes em
momentos de crise e transição em primeira instância de importância. Para averiguar esses
momentos de crise histórica, o que propôs Hobsbawm não foi uma teoria, mas uma História
social que lidasse com as complexas relações de reciprocidade entre os diversos campos da
história, tal qual a história agrária, o desenvolvimento do capitalismo e suas expropriações, o
patamar das lutas de classes, a burocracia administrativa, reguladora de conflitos no campo
(como os juízes de paz ingleses no século XVIII e os nossos no século XIX), o poder militar,
as tradições e as rupturas de costumes, entre outras coisas. O fenômeno do banditismo, do
crime e da violência social é uma síntese de múltiplas determinações e não um fenômeno
explicado por uma única determinação.

963
A sugestão de que o deslocamento de poder, pela presença armada dos negros, incomodava mais a aristocracia
rural inglesa do que o crime em si, está em THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. São Paulo: Paz e Terra,
1997, p. 246.
964
HOBSBAWM... Op. Cit., p. 26.
965
Idem, p. 116.
966
Idem, p. 116.
967
Idem, p. 119.
331

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Documentação Citada

Manuscritos

1 Arquivo Público do Estado da Bahia

1.1 Independência do Brasil na Bahia

Livro 007 (antigo 635); Livro 005 (antigo 634); Maço: 023, antigo 637- 4; Livro 004
(antigo 634); livro 636; Livro 636-1; Livro 001 (Antigo 633).

1.2. Judiciário correspondências

Maços: Caetité 2284; Jacobina 2430, 2431; 2432; Juizes de Cachoeira 2275, 2273,
2274; Juizes Rio de Contas 2558; Juizes Barra de São Francisco 2250; Juízes de São Gonçalo
2600; Juízes de Urubu 2623; Juízes de Pedra Branca 2530; Juízes Vila Nova da Rainha 2639;
Juízes Feira de Santana 2372.

1.3 Polícia:

1.4 Maços: 2990; 3004; 3006-1; 3108; 3110; 3111; 3794; 6150; 6151;
6392; 6398; 6466.

1.5 Câmara de vereadores:


Maços: Cachoeira 1269; Feira de Santana 1309.

1.6 Presidente da província:

Maço 5689

1.7 Recrutamento:

Maços 3494-1; 3486; 3487; 3488;

1.8 Revolta dos índios de Pedra Branca:


Maço: 2861

2. Arquivo Nacional.
345

2.1. Ministério do Interior

(AA): IJJ9 329; I

(AZ): IXM 108

2.2. Ministério da Justiça (AI).

Maços: IJ1 399; IJ1 400; IJ1 401; IJ1 402; IJ1 404; IJ1 407; IJ1 706; IJ1 1706; IJ1 1077;
IJ¹ 406; IJ¹ 407

3 Impressos

3.1 BN (hemeroteca Digital)

Jornais: Mercantil; O Baiano; Correio Mercantil; O Gauycuru.

Relatórios presidentes da Província (1824-1849)

4 Livros

REYS, Virgilio. Lucas o Salteador. Histórico da sua vida até o seu julgamento e
execução, acompanhado do processo dos seus célebres companheiros Januário e Flaviano.
Cachoeira: Libro Thypographia, 1896.

CAMPOS, Sabino de. Lucas, o Demônio Negro. Rio de Janeiro: Irmãos Pongeti,
1957.

ARNIZÁU, José Joaquim Almeida de. Memória Topographica, histórica, comercial


e política da Villa de cachoeira da Província da Bahia. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1861.

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