DISSERTAÇÃO_CriseIconoclastaImpério

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CAROLINE COELHO FERNANDES

A CRISE ICONOCLASTA NO IMPÉRIO BIZANTINO E A DEFESA DAS


IMAGENS DE SÃO JOÃO DAMASCENO: UM DEBATE SOBRE
AUTORIDADE POLÍTICA

MARIANA
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CAROLINE COELHO FERNANDES

A CRISE ICONOCLASTA NO IMPÉRIO BIZANTINO E A DEFESA DAS


IMAGENS DE SÃO JOÃO DAMASCENO: UM DEBATE SOBRE
AUTORIDADE POLÍTICA

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História do Instituto
de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Ouro Preto,
como requisito parcial à obtenção do
grau de Mestre em História.
Área de concentração: Ideias,
Linguagens e Historiografia.

Orientador: Prof. Dr. Fábio Duarte Joly

MARIANA
Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFOP
2016
À minha mãe Maria Aparecida e ao meu irmão Caio.
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço a Deus pelo dom da vida e por poder estar
completando mais uma fase de minha vida profissional. Agradeço à Universidade
Federal de Ouro Preto por mais uma vez fazer parte da minha formação nessa
incansável busca pelo aprimoramento enquanto docente e historiadora. Agradeço
também ao querido e maravilhoso Instituto de Ciências Humanas e Sociais por
esses maravilhosos anos que aqui passei. Serei eternamente grata por ter feito
parte desse lugar encantador e pelos amigos que aqui fiz. Jamais me esquecerei
das rodas de conversas no famoso “redondo” e da paz encontrada nas horas de
descanso no “Machu Picchu”.
Ao meu orientador, o professor Fábio Duarte Joly, imprescindível para a
realização deste trabalho, faço um agradecimento especial por ter aceitado partir
comigo nessa “empreitada”, mesmo sem termos trabalhados juntos anteriormente.
Os meus sinceros agradecimentos pela confiança depositada em mim nesses dois
últimos anos de convívio, pelas horas de orientação, pelas tantas dúvidas tiradas,
por todo conhecimento transmitido, pela paz e serenidade que sempre me passou
nas horas de desespero, pelo companheirismo, amizade, apoio e estímulo nesse
árduo ofício de historiador.
Ao professor Fábio Faversani pela presença constante na realização deste
trabalho, pela minuciosa leitura e avaliação em minha banca de qualificação em
2015, que muito me auxiliou e contribuiu para os resultados finais deste trabalho,
pela amizade, auxílio e por fazer parte, agora, dessa banca avaliadora de defesa.
Ao professor e amigo Celso Taveira por ter me iniciado nos estudos
bizantinos, por ter me orientado no bacharelado concluído em 2014 e por ter me
ajudado a desenvolver o projeto para a seleção de mestrado neste programa.
Agradeço também pelo carinho, apoio, amizade e atenção demonstrada aos meus
estudos desde o primeiro contato que tive com a história bizantina em 2011. Um
enorme obrigado por ser membro dessa banca avaliadora e por ter sido membro
da banca avaliadora de minha qualificação em 2015.
Ao professor Renato Viana Boy por ter aceitado fazer parte dessa banca
avaliadora de defesa e pela sua contribuição bibliográfica, afinal, o meu primeiro
contato com a temática da iconoclastia bizantina e o nascimento do amor e
admiração pela mesma, surgiu a partir da leitura de sua monografia de
bacharelado e sua dissertação de mestrado.
A todos os docentes que fazem parte dessa maravilhosa instituição pela
sua dedicação e pela forma que conduzem o trabalho de vocês. Sem vocês não
poderia ter chegado até aqui. Em especial, agradeço aos professores Álvaro
Antunes e Marco Antônio Silveira, pessoas que sempre me auxiliaram e foram
essenciais na minha formação. Agradeço também ao saudoso José Arnaldo
Coêlho de Aguiar Lima, exemplo de amor pela docência, exemplo de amor pela
vida.
Ao LEIR-UFOP (Laboratório de Estudos sobre o Império Romano) pela
acolhida e oportunidade de crescimento intelectual. Obrigada a todos os seus
coordenadores e membros, em especial aos professores Fábio Duarte Joly, Fábio
Faversani e Alexandre Agnolon, por me permitirem fazer parte desse grupo, no
qual pude aprender e crescer como historiadora. Agradeço também no âmbito do
LEIR, aos amigos e companheiros de trabalho que ali fiz.
Agradeço também aos membros do grupo de Medieval pelos inúmeros
debates construtivos durante nossas reuniões. Que apesar da dispersão do grupo, o
mesmo não se acabe e que as excepcionais pesquisas tenham continuidade.
Gostaria também de agradecer à dedicação dos funcionários do ICHS,
indispensáveis para a nossa formação, principalmente à secretária Janaína Tette,
do Programa de Pós-Graduação em História, por todo auxílio no decorrer desses
dois anos.
Os meus sinceros agradecimentos à minha mãe, Maria Aparecida, pelos
esforços e auxílios incondicionais para que eu conseguisse chegar até aqui. Sem o
seu amor, carinho, compreensão, apoio, jamais conseguiria esse feito. Obrigada
por ter sido em todos os momentos de minha vida minha mãe, meu pai, minha
amiga e companheira. Agradeço também ao meu irmão Caio, principalmente
pelas horas de distração no decorrer do caminho solitário e tortuoso da escrita.
À toda a minha família, aos meus queridos primos e amigos, mas em
especial a Leonardo Corrêa pelo carinho, amizade, força, conhecimento e auxílio
nos momentos difíceis durante a jornada da escrita; à minha querida prima Stella
Cardoso, que não conheço pessoalmente, mas é como se conhecesse, pelo apoio,
amizade, sugestões e momentos ímpares de lazer pelo Whatsapp. À minha querida
prima Camila Rosado, meu Xuxu, pela amizade, carinho e por ser a minha
corretora favorita de abstracts e traduções, inclusive deste trabalho. Às minhas
queridas primas Carla Corrêa, Gisele Grijó e Milena Fernandes que mesmo de
longe me deram apoio e torceram por mim. À minha avó Ana Corrêa Coelho. Ao
meu querido primo Luciano Corrêa pelos momentos ímpares que passamos juntos
e pelo apoio de sempre. Aos meus tios e tias, mas em especial à tia Péia pela
preocupação com meu trabalho, apoio e auxílio nos momentos difíceis. Agradeço
também àqueles familiares que já não estão mais entre nós, mas foram
fundamentais para a moldagem da pessoa que sou, do caráter que tenho hoje. A
lembrança de cada momento alegre ou triste carrego comigo. Em especial
agradeço à dona da mais gostosa gargalhada do mundo e ao meu avô José Coelho.
Saudade eterna!!
Aos amigos historiadores especiais que aqui na melhor das federais fiz:
Stephanie Martins, Rodrigo Cordeiro, Luzia Izidoro, Deisiane Pereira, Ana Paula
Scarpa, João Victor Lanna, obrigada pelo apoio incondicional nesses últimos anos
de jornada histórica. Obrigada pela amizade, paciência, carinho e força nos
momentos difíceis.
A Rita pelo apoio incansável nos momentos difíceis nessa reta final da
dissertação. Obrigada por tudo. Ao Diogo e ao Diego pela força, amizade,
momentos de distração e pelos incontáveis momentos de abstração e debates
intelectuais (ou não - risos)!!!
À República do Arco da Velha que há três anos tem sido a minha segunda
casa. Como não agradecer a vocês, meninos, que estiveram comigo no momento
mais feliz de minha vida acadêmica, quando vi o resultado da seleção de
Mestrado. Um grande obrigado pelos momentos ímpares de lazer e rock’s
inesquecíveis.
Um agradecimento especial ao Douglas Thadeu, que presenciou o
nascimento desta pesquisa, pela paciência, dedicação, carinho, compreensão e
apoio nos momentos difíceis. Só você sabe o quanto foi difícil chegar até aqui,
apesar das circunstâncias. Espero te ter sempre por perto. Essa conquista é nossa!!
E que venham outras!!!
À CAPES por ter financiado esse projeto e por ter me dado essa
oportunidade única de auxílio para os meus estudos. Graças à instituição pude me
dedicar inteiramente ao meu trabalho e conseguir os melhores resultados
possíveis.
“(...) pois pintura, mesmo se silenciosa sabe como falar a partir do muro.

(MAGUIRE, 1994, p. 9)

“Nós nos submetemos a ti, ó imperador, nos assuntos dessa


vida, os impostos, as receitas, divídas comerciais, em que
nossas preocupações são confiadas a você. Para a
constituição eclesiástica temos pastores que falam a nós a
Palavra e representam a ordenança eclesiástica”.
(DAMASCENO, Tratado sobre as imagens, II, 12)

“(...) ‘honra a quem a honra é devida’ e ‘ao imperador


como soberano’, e aos governantes como nomeados através
deles, a cada um de acordo com a medida de seu valor”.
(DAMASCENO, Tratado sobre as imagens, III, 10)
RESUMO

A controvérsia iconoclasta no Império Bizantino foi uma batalha em torno das


imagens religiosas que ocorreu entre os séculos VIII e IX e que culminou na
proibição das mesmas pelo então imperador Leão III. Essa batalha dividiu-se em
dois períodos, sendo o primeiro de 726 a 787 com o primeiro restabelecimento do
culto das imagens e, o segundo de 815 a 843 com o restabelecimento definitivo do
culto das imagens, no que ficou conhecido como o “Triunfo da Ortodoxia”. Nossa
ênfase neste trabalho será dada ao primeiro período, no qual surgiu o então monge
João Damasceno que escreveu três tratados em defesa das imagens, obras estas
que serão aqui analisadas por nós em conjunto com outras fontes do período.
Dessa forma, nosso objetivo é situar essas obras em um debate da imagem e da
natureza do poder em Bizâncio, procurando compreender a representação imperial
do ponto de vista de Damasceno e como ele utiliza dos mesmos argumentos em
defesa das imagens para a defesa do poder imperial. Para tanto, é preciso
compreender a complexa relação existente entre os dois tipos de regime atribuídos
a Bizâncio por pesquisadores: a monarquia por direito divino e a herança
republicana romana.

Palavras-chave: Bizâncio; Império Romano; Oriente Medieval; Poder; Imagem;


João Damasceno; Iconoclasmo; Cristianismo; Imperador.
ABSTRACT

The iconoclastic controversy in the Byzantine Empire was a battle around the
religious images that occurred between the eighth and ninth centuries, culminating
in the prohibition of the same by the then emperor Leo III. This battle was divided
into two periods, the first 726-787 with the first restoration of the image worship
and the second 815-843 with the definitive restoration of images worship, in what
became known as the "Triumph of Orthodoxy". Our emphasis in this work will be
given to the first period, represented by the monk John Damascene who wrote
three treatises in defense of images. These works will be analyzed here in
conjunction with other sources of the period. Thus, our objective is to situate these
works in a debate of the image and the nature of power in Byzantium, trying to
understand the imperial representation from the point of view of Damascene and
how he used the same arguments in defense of the images as well as in the
defense of imperial power. Therefore, it is necessary to understand the complex
relationship between the two types of regime attributed to Byzantium by
investigators: the monarchy by divine right and the Roman republican heritage.

Key-words: Byzantium; Roman Empire; Medieval East; Power; Image; John


Damascene; Iconoclasm; Christianity; Emperor.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mãe de Deus em pé com o menino Jesus e a cruz iconoclasta.............58


Figura 2: Ícone com o Triunfo da Ortodoxia........................................................63
Sumário

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 9
CAPÍTULO 1. A CRISE ICONOCLASTA: ANTECEDENTES E ECLOSÃO
.......................................................................................................................... 20
1.1. Primeiros concílios: definições cristãs e heresias ..................................... 22
1.2. O ícone na história do cristianismo e na história bizantina ....................... 28
1.3. O caráter autocrático do poder imperial ................................................... 30
1.4. O monacato bizantino .............................................................................. 38
1.5. A expansão islâmica e a crise do século VII ............................................ 42
1.6. A ascensão do imperador Leão III e a eclosão da iconoclastia .................. 46
CAPÍTULO 2. SÃO JOÃO DAMASCENO E OS TRÊS TRATADOS EM
DEFESA DAS IMAGENS NO PRIMEIRO PERÍODO ICONOCLASTA ... 65
2.1. São João Damasceno: breve biografia ...................................................... 65
2.2. Principais obras e tradição ....................................................................... 69
2.3. Os três tratados em defesa das imagens divinas ....................................... 70
2.3.1. O Primeiro Tratado ........................................................................... 71
2.3.2. O Segundo Tratado ........................................................................... 82
2.3.3. O Terceiro Tratado ........................................................................... 91
2.4. Considerações sobre Damasceno e os três tratados em defesa das imagens
...................................................................................................................... 96
CAPÍTULO 3. A DEFESA DAS IMAGENS DE SÃO JOÃO DAMASCENO:
CRÍTICA E FUNDAMENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DO PODER
IMPERIAL EM BIZÂNCIO ......................................................................... 102
3.1. Além da questão teocrática: a república bizantina .................................. 103
3.2. Imagens religiosas versus retratos imperiais em Damasceno: um debate
sobre o sagrado e a autoridade política. ........................................................ 111
3.3. Damasceno e sua perspectiva sobre a representação imperial: a visão de
quem está longe do centro do poder bizantino. ............................................. 127
CONCLUSÃO ................................................................................................ 131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 134
9

INTRODUÇÃO

No início do século VIII surgiu no Império Bizantino um movimento


contrário às imagens religiosas, intitulado movimento iconoclasta, termo este que
de acordo com o The Oxford Dictionary of Byzantium, provém da palavra grega
εικονοκλάστης, que significa o ato de destruir imagens.1 Esse movimento dividiu-
se em dois períodos, sendo o primeiro com início em 726 sob o comando do
imperador Leão III (717-741), fundador da dinastia isáurica, com o primeiro
restabelecimento do culto das imagens em 787 no Concílio de Nicéia II,
convocado pela então imperatriz ateniense Irene (797-802)2. E o segundo período
com a restauração do iconoclasmo em 815 sob o comando do imperador Leão V,
o Armênio (813-820), com o restabelecimento definitivo do culto das imagens em
843, no chamado “Triunfo da Ortodoxia”3, sob o comando da imperatriz Teodora
(842-856).
Esse movimento teve como adversários e adeptos importantes seguimentos
da sociedade bizantina como um todo, ou seja, elementos da própria Igreja, da
administração do Império, a população comum – apesar de não termos nenhum
documento que comprove sua ação favorável ou contrária às imagens -, entre
outros, além, de envolver também a Igreja de Roma, contrária à política
iconoclasta de Leão III e os carolíngios que emitiram seu parecer através dos Libri
Carolini (porém, sabemos que estes tratados nunca chegaram a Bizâncio)4. Por
isso, é importante destacar o nome de dois monges na defesa dos ícones: São João
Damasceno, na primeira fase, e Teodoro Estudita, na segunda.
Neste sentido, é preciso salientar que o nosso objeto de estudo não é a
crise iconoclasta em si, mas sim os três tratados em defesa das imagens escritos

1
KAZHDAN, 1991, p. 975
2
É preciso ressaltar que a imperatriz Irene governou por duas vezes, sendo a primeira à época do
concílio de Nicéia II, de 780 a 797, como imperatriz regente e a segunda, como citado acima,
como imperatriz, de 797 a 802.
3
Conhecido também como o “Domingo da Ortodoxia”, o dia 11 de março de 843 ficou marcado
como o dia da condenação oficial do Iconoclasmo, no qual em uma procissão solene, o documento
intitulado “Sinodykon da Ortodoxia” foi depositado no altar da Igreja de Santa Sofia, em
Constantinopla. Neste documento há uma lista de anátemas contra os hereges, particularmente, os
líderes da Iconoclastia, além de outros fundadores de heresias. Todos os anos no dia 11 de março é
comemorado o “Triunfo da Ortodoxia” na Igreja grega. KAZHDAN, 1991, pp. 2122-2123.
4
Cf. BAJJANI, 2009.
10

pelo monge e santo João Damasceno, no intuito de abordar suas obras a partir da
defesa de uma concepção do poder imperial, perspectiva que diferencia nosso
trabalho frente às outras pesquisas sobre essas obras, pois a maioria trata as
mesmas do ponto de vista da defesa das imagens e da teologia cristã.
Abordaremos aqui então o movimento iconoclasta no sentido de situar o leitor no
contexto de produção dessas obras.
Ressaltamos também a relevância do estudo deste tema uma vez que
estamos lidando com um assunto de grande valor não só para a sociedade romana
ocidental e oriental, mas também para toda comunidade cristã, visto que o
movimento iconoclasta constituiu-se na proibição do culto e na destruição dos
ícones, considerados como o maior meio de transmissão e ensinamento do dever
cristão. No entanto, Renato Viana Boy5 nos relata acerca da existência de algumas
províncias orientais de Bizâncio que apresentavam tremenda repulsa em relação
aos ícones, como por exemplo, o caso de Isáuria, região da qual provinha o
imperador Leão III (717-741), o qual fundou a dinastia Isaúrica, e como foi dito
anteriormente, deu início à iconoclastia. Boy salienta ainda o fato de que o retorno
do iconoclasmo foi também conduzido por outro imperador asiático, Leão V (813-
820), o Armênio, da dinastia Amórica. Dessa forma, é possível perceber que
dentro do próprio Império existiam correntes contrárias ao uso das imagens.
Isso pode ser também observado na existência de movimentos divergentes
iniciados dentro da própria Igreja bizantina, em relação às questões dogmáticas
que foram discutidas de forma recorrente entre os séculos IV e V, acerca da dupla
natureza de Cristo e das três pessoas da Santíssima Trindade, que serão analisadas
para a compreensão dos principais argumentos construídos no século VIII para a
defesa das imagens por João Damasceno.
Como estamos tratando de um tema complexo, no qual não há grupos bem
definidos no que se refere à divisão daqueles que são contrários ou defendem as
imagens, utilizaremos os termos já definidos pela historiografia bizantina, tais
como iconófilos (εικονοφίλoi) para designar aqueles que são “adoradores das
imagens” e iconoclastas (εικονοκλάσται) para designar aqueles que são
“adversários das imagens”.6 Isso porque, ao longo de nosso trabalho, apontaremos
enquanto iconoclastas os imperadores que deram início e apoiaram o movimento,

5
BOY, 2007. p. 24.
6
Cf. KAZHDAN, 1991, p. 977.
11

tais como Leão III e seu filho Constantino V na primeira fase, e Leão V na
segunda e, iconófilos, aqueles que defenderam as imagens, como o monge João
Damasceno e a imperatriz Irene na primeira fase e, o monge Teodoro Estudita e a
imperatriz Teodora na segunda, uma vez que, de acordo com os documentos que
temos acesso para o estudo do período, o iconoclasmo foi disputado apenas entre
as principais esferas de poder em Bizâncio, ou seja, entre as esferas política e
religiosa.
Sendo assim, no que se refere às fontes existentes para o estudo do período
iconoclasta (726-843), as informações são um tanto quanto obscuras, devido à
falta de informação do que teria levado de fato à eclosão da iconcolastia,
proveniente da destruição proposital de importantes documentos, tanto por parte
dos iconoclastas quanto por parte dos iconófilos, mas principalmente da parte
iconófila, já que após a derrota do iconoclasmo, foi estabelecido que os
documentos iconoclastas fossem destruídos o que fez com que a história do
período fosse produzida apenas do ponto de vista da parte vitoriosa. Além disso,
temos também o problema relacionado às fontes imagéticas do período que foram
os principais alvos da política iconoclasta, fazendo com que tenhamos acesso
somente às imagens antecedentes que sobreviveram e àquelas posteriores ao
período.
Sobre a documentação a qual podemos ter acesso, Ostrogorsky7 ressalta a
possibilidade de se conhecer as decisões do concílio iconoclasta de 754, em
Hieria, através das atas do concílio iconófilo de 787, em Nicéia, e as decisões do
concílio de 815, que marcou o retorno da iconoclastia após o primeiro
restabelecimento do culto das imagens, através da obra do patriarca Nicéforo
(806-815), já que não restou nenhum escrito iconoclasta em sua forma original,
apenas fragmentos que podem ser encontrados nessas fontes, utilizados para a
condenação da iconoclastia.
Outra dificuldade que diz respeito às fontes do período é o fato de que as
mesmas são em sua maioria eclesiásticas, o que segundo Auzépy 8 é um problema,
pois é preciso que o historiador esteja atento ao caráter tendencioso desses
documentos que são frutos do ponto de vista clerical ou monástico, ou seja, foram

7
OSTROGORSKY, 1984, pp. 157-216.
8
AUZÉPY, In: SHEPARD, 2008, pp. 251-291.
12

produzidos a partir dos ideais iconófilos, retratando a política iconoclasta e os


seus adeptos sempre de forma negativa.
Além disso, havia ainda o problema da falsificação de documentos do
período, o que era muito recorrente devido à necessidade de apelo à autoridade
para a comprovação de algo, pois foi durante o período iconoclasta que surgiu
“uma enorme quantidade de argumentação polêmica, controle de textos usados
como provas, reunião de citações e refinamento das técnicas da controvérsia” 9.
Segundo Cameron, era frequente o uso de debates formais nessas disputas, nas
quais eram apresentadas as maiores preocupações da época através de textos que
tinham a necessidade do uso de citações comprobatórias retiradas muitas vezes
das Escrituras com o objetivo de apelar para a autoridade e tradição como forma
de argumentação. Com isso, muitos autores desses textos polêmicos da época,
principalmente os autores de textos eclesiásticos, tendiam a recorrer a
falsificações e adulterações para imbuir seus textos de autoridade. A questão
referente à falsificação só foi levantada a partir do Sexto Concílio de 680-681, no
qual as atas do Quinto Concílio de Constantinopla foram postas em dúvida,
descobrindo-se então que as mesmas foram adulteradas, o que levou as
autoridades da época à conferência de todos os documentos posteriores. Dessa
forma, é preciso que o historiador esteja atento aos problemas relacionados às
falsificações e adulterações de documentos do período iconoclasta, já que

estabelecer um discurso autoritário é uma técnica importante, e


a condenação dos oponentes, quando se lida com inimigos reais
ou potenciais distribuindo-os pelas velhas e familiares
categorias de abuso, ou mesmo criar oponentes imaginários, são
todos boas maneiras de se lidar com uma ameaça percebida.10

Assim, as fontes primárias para o estudo da iconoclastia são os escritos


teológicos deixados pelo monge João Damasceno na primeira fase do
iconoclasmo, e os escritos deixados pelo também monge Teodoro Studita na
segunda fase, ambos grandes defensores das imagens. Além disso, é possível
também ter acesso às atas do patriarcado de Constantinopla que contém atas de
concílios realizados no período, além de cartas entre patriarcas, o papa e
imperadores, e outros documentos. Há ainda a História breve do patriarca

9
CAMERON, In: BOWMAN; WOOLF (Org), 1998, p. 247.
10
Ibidem, p. 256.
13

Nicéforo (769) e a Crônica de Teófanes (escrita entre 810-814); a Ecloga, obra


jurídica da época promulgada pelo imperador Leão III em 726, e o ponto de vista
do Ocidente em relação à política iconoclasta contra as imagens que pode ser
encontrado nos Libri Carolini, famoso tratado da época atribuído ao imperador
Carlos Magno, redigido provavelmente entre 791-794. É possível observar, assim,
que a maioria dessas fontes são eclesiásticas ou religiosas, já que “praticamente
nada foi escrito em Constantinopla antes da década de 780”11.
Posto isso, nosso ponto de partida se encontra no edito promulgado pelo
imperador Leão III em 726 e que marca o início do iconoclasmo 12, quando o
imperador ordenou que fosse retirada a imagem monumental de Cristo da porta de
bronze do Palácio Imperial, a Chalké, provocando a ira da população bizantina e
dando início, assim, à iconoclastia13. Este documento pode ser encontrado na
Crônica de Teófanes, ainda que seja alvo de questionamento pelos historiadores
devido à sua tendência iconófila. Segundo Bryer e Haldon 14, é preciso que o
historiador seja cuidadoso ao utilizar tanto essa fonte quanto a História Breve do
patriarca Nicéforo, pois ambas foram escritas por contemporâneos desses
acontecimentos, ou seja, por testemunhas oculares de muitos dos episódios
ocorridos no século VIII que, ao escreverem sobre esses acontecimentos poucos
anos depois e refletiam nos textos suas próprias atitudes políticas e/ou religiosas,
além de invocar para o documento suas próprias memórias ou as de outras
testemunhas oculares que passavam essas informações oralmente. Além disso, os
autores ainda chamam a atenção para o fato de que tanto Nicéforo quanto
Teófanes teriam utilizado, na maioria das vezes, fontes comuns, sendo que a
diferença entre seus trabalhos pode ser vista no uso de outras tradições ou
crônicas e na visão de cada autor sobre o acontecido.

11
CAMERON, In: BOWMAN; WOOLF (Org), 1998, p. 244.
12
A questão referente à data de início do Iconoclasmo é bem divergente entre os estudiosos do
período uma vez que alguns autores como Steven Runciman (1978) e Renato Viana Boy (2007)
atribuem como o ponto de partida do iconoclasmo a ordem de retirada da imagem de Cristo da
porta de bronze do Palácio Imperial, a Chalkê, em 726, pelo então imperador Leão III, enquanto
outros como Fernanda Espinosa (1972) e Paul Lemerle (1991) apontam a data inicial como 730, na
qual o mesmo imperador convocou um sínodo condenando oficialmente a iconoclastia. Neste
trabalho usaremos como a data oficial 726, por acreditarmos que a crise iconoclasta teve início
antes mesmo da convocação do sínodo, devido às atitudes já hostis do imperador em relação às
imagens.
13
O documento referente à retirada do Cristo da Chalké faz parte da Crônica de Teófanes e pode
ser encontrado in: MANGO, 1993, pp. 151-152.
14
BRYER; HALDON, 2001.
14

Muito importante também para a compreensão do período iconoclasta são


os registros das atas do patriarcado de Constantinopla 15, que contém cartas
trocadas entre imperadores, patriarcas e papas, documentos sobre assuntos
teológicos, atas de concílios e mais ainda, documentos que remetem à
administração imperial, decretos imperiais, entre outros assuntos que não dizem
respeito somente às questões de cunho religioso. Porém, como toda fonte sobre o
período da crise iconoclasta, segundo Bryer e Haldon, as atas também são
problemáticas para os historiadores, no sentido de que elas foram por diversas
vezes adulteradas posteriormente ou elaboradas com o intuito de refletir um
determinado seguimento da opinião eclesiástica.
Nesse conjunto de uma grande variedade de documentos que podem ser
encontrados nessa importante fonte referente ao patriarcado de Constantinopla, é
preciso estarmos atentos não somente para os documentos dos séculos VIII e IX,
mas também para os de séculos anteriores, principalmente os que dizem respeito a
concílios, pois esses registros proporcionam importantes informações acerca das
imagens no século VII, como as atas do chamado Concílio Quinissexto de 692,
realizado em Constantinopla, que aprovou oficialmente as imagens, ordenando
que Cristo deixasse de ser representado como um cordeiro para ser retratado como
uma pessoa para dar ênfase à Sua natureza humana16 , o que nos mostra que, antes
mesmo do início da crise iconoclasta, já havia debates em torno das imagens.
Em relação às atas referentes ao século VIII, ou seja, período referente à
primeira fase da iconoclastia, um documento de extrema importância é, sem
dúvida, o que diz respeito às decisões do Segundo Concílio de Nicéia, de 787, no
qual o culto das imagens foi legitimado e restabelecido, e onde também é possível
encontrar extratos e fragmentos das decisões contrárias ao culto das imagens
defendidas no concílio iconoclasta de 754, mais conhecido como o concílio de
Hieria, que contém importantes informações acerca da política iconoclasta. Já em
relação às decisões do concílio iconoclasta de 815, que marca o início da segunda
fase do iconoclasmo, Bryer e Haldon apontam que as suas atas também
sobreviveram apenas em forma de fragmentos que podem ser encontrados na obra
do patriarca Nicéforo.

15
GRUMEL, 1989.
16
Cf. RUNCIMAN, 1978.
15

Temos ainda em relação à segunda fase da crise iconoclasta, o concílio de


843 que ficou conhecido como o “Triunfo da Ortodoxia” ou “Domingo da
Ortodoxia”, no qual a iconoclastia foi condenada e considerada uma grande
heresia. Foram ainda restabelecidas todas as decisões do Segundo Concílio de
Nicéia de 787, no qual o culto das imagens foi restaurado pela primeira vez.
Segundo Bryer e Haldon, a ata original de 843 não sobreviveu, porém, podemos
ter acesso a essas decisões tomadas no sínodo através do documento chamado
Synodikon da Ortodoxia, lido no dia 11 de março de 843.17
Além das fontes já citadas acima temos também acesso às que se referem a
cartas e tratados teológicos polêmicos acerca da legitimidade ou não do culto das
imagens e que também dizem respeito às questões que envolvem dogmas e
crenças que são fundamentais para o estudo dos séculos VIII e IX. Porém, Bryer e
Haldon nos chamam a atenção para uma série de dificuldades que também podem
ser encontradas nesses documentos, dificuldades estas que se referem ao problema
da atribuição, em especial, de textos teológicos polêmicos cujas datas de
composição ainda são incertas. Além disso, há o problema do que os autores
chamam de “interpolação”, que ocorre com a maioria dos textos do período,
exigindo do historiador um exame mais atento e cuidadoso desses documentos,
mesmo os que dizem respeito aos escritos originais de São João Damasceno.
Neste sentido, podemos encontrar nesse tipo de fonte documentos
referentes a indivíduos que tinham relação direta com a crise iconoclasta, tais
como escritos produzidos pelos monges João Damasceno e Teodoro Estudita,
grandes defensores das imagens, além dos escritos teológicos atribuídos ao
imperador Constantino V, que defendeu sua política iconoclasta não somente pela
força física, mas também através de seus textos que foram utilizados como base
para o concílio de Hieria de 754, no qual condenava as imagens.
Aos documentos dessa espécie que se referem ao primeiro período
iconoclasta temos os polêmicos tratados teológicos de São João Damasceno,
grande defensor das imagens e do culto das mesmas, que afirmava que através da
matéria, ou seja, da imagem, era possível chegar às realidades intransitáveis.
Temos acesso também a fragmentos dos escritos teológicos atribuídos ao
imperador Constantino V, que podem ser encontrados no horos do concílio de

17
Este documento, considerado suspeito, pode ser encontrado em uma versão em francês em
GRUMEL, 1989, p. 65-66, N. 416.
16

754, presente nas atas do concílio de 787, devido, como já dissemos


anteriormente, à destruição da documentação original referente ao partido
iconoclasta, o que nos faz ter acesso a essas fontes somente de forma indireta. Em
seus escritos, Constantino V rejeitava as imagens e seu culto, defendendo que, ao
se fazer uma imagem e chamá-la de Cristo, consequentemente pinta-se a natureza
divina de Cristo (que é homem e Deus) e não pode ser representada18. Apesar de
termos acesso a essa fonte apenas de forma indireta, ela é de extrema importância
para nós, pois é através dela que podemos ter acesso ao que Constantino V e os
adeptos da iconoclastia defendiam.
Outro importante tratado teológico do período, mas que se refere à
segunda fase da iconoclastia, é a defesa das imagens feita pelo também monge
Teodoro Estudita, que defendia que a veneração oferecida a uma imagem é o
mesmo que a veneração oferecida a quem era representado na mesma, devido à
semelhança entre o protótipo e o que é representado, defendendo assim, a
possibilidade de produção e culto da imagem19.
Apesar de a política iconoclasta ter seu início decretado somente no século
VIII, o problema relacionado à legitimidade da imagem ou não, já se apresentava
no século IV através da condenação de Eusébio de Cesaréia 20 sobre o pedido da
irmã do imperador Constantino, Constância, para que o primeiro lhe enviasse um
retrato de Cristo. Eusébio de Cesaréia não somente negou o seu pedido, como
também chamou a atenção de Constância para o fato de que era não era possível a
produção de uma imagem de Cristo, devido à impossibilidade de se representar
aquilo que é inatingível. Essa carta é relevante para o entendimento do período,
visto que é possível perceber através da mesma que já havia uma preocupação
com o estatuto da imagem no Oriente medieval séculos antes da eclosão do
iconoclasmo.
Não menos importante há ainda a possibilidade de saber o ponto de vista
ocidental em relação à querela iconoclasta através do tratado franco intitulado
Libri Carolini, composto por quatro livros, escrito por Teodulfo, em nome do Rei
Carlos Magno. Segundo Lucy Cavallini Bajjani21, é possível perceber que, em um

18
Documento referente à condenação das imagens em Bizâncio. ESPINOSA, 1972, p. 63.
19
Fragmentos dos tratados de Teodoro Estudita podem ser encontrados em MANGO, 1993, pp.
173-175.
20
Essa carta pode ser encontrada em uma versão em inglês em MANGO, 1993, pp. 16-18.
21
A discussão em torno dos Libri Carolini pode ser encontrada em BAJJANI, 2009.
17

primeiro momento, que se refere à primeira fase do iconoclasmo, os francos


apoiaram Roma condenando a iconoclastia, porém, em um segundo momento os
francos passaram a se colocar contra as imagens através dos Libri Carolini, onde
defendem que as imagens não deveriam ser cultuadas e tão pouco destruídas. É
considerado um tratado político já que se coloca no centro das relações entre os
imperadores orientais e francos, mas também entre as relações entre esses dois
primeiros e Roma. A autora afirma ainda que esse tratado é apresentado enquanto
uma refutação às decisões tomadas no Segundo Concílio de Nicéia de 787.
Como já foi destacado anteriormente, apesar de não ter sobrevivido
imagens referentes ao período iconoclasta, é possível ainda fazer uso de imagens
produzidas nos séculos anteriores que sobreviveram ao período e também
daquelas produzidas posteriormente, já que as mesmas podem nos fornecer uma
ideia de sua importância para os bizantinos. Isso pode ser visto, principalmente,
após o Triunfo da Ortodoxia em 843, fato este que deu origem ao apogeu da arte
cristã bizantina entre os séculos IX e XI.
Tendo em vista esse conjunto documental, nosso trabalho terá um escopo
mais restrito pois baseado nos tratados escritos por São João Damasceno 22. A
nossa escolha por esses documentos se deu em decorrência da ênfase que
procuramos dar ao primeiro período e também por Damasceno e seus tratados
serem contemporâneos à crise. Assim, o nosso objetivo ao trabalhar essas obras é
situá-las tanto no debate acerca das imagens quanto da natureza do poder imperial
em Bizâncio.
Para tanto, a nossa abordagem metodológica será centrada nas obras de
São João Damasceno 23, a partir da leitura e análise sistemática das mesmas, em
conjunto com outras fontes que nos permitam compreender melhor a primeira fase
da crise iconoclasta. Essas fontes auxiliares são as atas do patriarcado de
Constantinopla24, a carta de Eusébio a Constância 25, fragmentos dos escritos de
Teodoro Estudita26, além da definição do concílio iconoclasta de Hieria (754) 27 e
o decreto do concílio iconófilo de Nicéia (787) 28.

22
DAMASCENO, In: LOUTH, 2003.
23
Para as obras de Damasceno usaremos, para a tradução, a versão traduzida para o inglês
encontrada em: DAMASCENO, In: LOUTH, 2003 e a versão grega das mesmas em Patrologiae
Graecae, Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. Disponível em http://patristica.net/graeca/.
24
GRUMEL, 1989.
25
MANGO, 1993.
26
Ibidem.
18

Examinaremos então esses documentos e a respectiva bibliografia sobre os


pontos e temas que envolvem as questões antecedentes ao iconoclasmo, à sua
eclosão, à sua primeira fase e os argumentos de São João Damasceno acerca das
imagens e da expressão do poder em Bizâncio. Quanto à bibliografia geral, nos
parecem fundamentais trabalhos como o de Louth29 sobre vida e obra de
Damasceno, o de Cardoso30 que nos apresenta uma análise dos argumentos de
Damasceno através de uma perspectiva teológica, o de Anthony 31 que remete à
biografia de Damasceno e uma análise de sua linhagem familiar, bem como os
trabalhos de Boy32 acerca da crise iconoclasta e sobre a contribuição dos
argumentos de Damasceno para a produção iconográfica cristã ortodoxa medieval.
Destacam-se ainda os três volumes do The Oxford Dictionary of
Byzantium33 e as obras de Dagron34 e Taveira35 sobre a natureza autocrática do
poder imperial bizantino e, em contrapartida, o trabalho de Kaldellis36 acerca do
caráter republiacano de Bizâncio herdado de Roma.
Dessa forma, o tema proposto por nós será abordado da seguinte forma: o
primeiro capítulo da dissertação é composto por questões referentes à crise
iconoclasta, com ênfase em seus antecedentes e no seu primeiro período (726-
787), com destaque para temáticas relativas às definições cristãs e heresias, à
história do ícone no cristianismo e na sociedade bizantina, ao caráter autocrático
do poder imperial, ao monacato bizantino, à expansão islâmica e a crise bizantina
do século VII e, por último, à ascensão do imperador Leão III e a eclosão da crise
iconoclasta.
O segundo capítulo será dedicado a São João Damasceno e os seus três
tratados em defesa das imagens divinas, no qual será exposta uma pequena
biografia de Damasceno e de suas principais obras e a tradição à qual pertence.
Nesse capítulo faremos ainda uma análise minunciosa dos seus três tratados de

27
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A. D. 754.
In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
28
Decree of Secound Concil of Nicea, 787. The decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the
Second of Nicea. In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
29
LOUTH, 2002.
30
CARDOSO, 2013.
31
ANTHONY, 2015.
32
BOY, 2007; BOY, 2008.
33
KAZHDAN, 1991.
34
DAGRON, 2007.
35
TAVEIRA, 2002.
36
KALDELLIS, 2015.
19

forma separada, com o intuito de compreender os seus argumentos para defender a


legitimidade das imagens, concluindo com algumas considerações acerca do
monge e seus escritos.
No terceiro e último capítulo será discutida a hipótese de nossa dissertação
referente à percepção de São João Damasceno quanto à autoridade política em
Bizâncio. Esse capítulo será composto por uma exposição sobre a herança
republicana romana, por um debate acerca das imagens sagradas e dos retratos
imperiais e, por último, por uma análise do ponto de vista de Damasceno sobre a
crise iconcolasta, enquanto a percepção de quem está distante do centro de poder
bizantino.
Neste sentido, esperamos que nosso trabalho colabore para uma tentativa
maior de compreensão não apenas dos escritos de São João Damasceno, mas
também para uma maior compreensão da crise iconoclasta e de seus opositores,
pois, além do que se sabe sobre os imperadores que a iniciaram, é difícil obter
uma percepção mais ampla, completa e correta acerca da opinião bizantina sobre o
ocorrido, se esta foi contrária ou favorável à nova política dos isaúricos.
Finalizamos destacando que buscamos aqui compreender Damasceno e suas obras
em defesa das imagens a partir de uma outra perspectiva que não aquela
exclusivamente religiosa, enfatizando também sua posição política.
20

CAPÍTULO 1

A CRISE ICONOCLASTA: ANTECEDENTES E ECLOSÃO

A denominada crise iconoclasta foi uma batalha em torno das imagens


religiosas em Bizâncio, iniciada pelo então imperador Leão III (717-741) da
dinastia isaúrica no século VIII, que acarretou na proibição do culto e destruição
dos ícones. Essa batalha, que perdurou por mais de um século, dividiu-se em dois
períodos, sendo o primeiro de 726 a 787, no qual se deu o primeiro
restabelecimento do culto das imagens, e o segundo período com início em 815 e
término em 843 com o restabelecimento definitivo do culto das imagens, no que
ficou conhecido como o Triunfo da Ortodoxia.
Segundo o cronista Teófanes, o Confessor (760-817), o ponto de partida
para o início da batalha contra as imagens foi a ordem dada pelo imperador Leão
III em 726, de que fosse retirada do portão do palácio imperial, a Chalkê, uma
imagem monumental de Cristo, que teria levado à revolta a população bizantina. 37
É certo que esse documento tem sido alvo de questionamentos pelos
pesquisadores do tema, devido à sua tendência iconófila; contudo, consideramos a
data por volta de 726 para a eclosão da iconoclastia, por acreditarmos que o seu
início ocorreu mesmo antes da convocação do sínodo, devido às atitudes hostis
que o imperador já havia demonstrado em relação às imagens, como pode ser
observado nos documentos encontrados nos registros das atas do patriarcado de
Constantinopla38, como o documento N.33139, de janeiro de 730, no qual há uma
advertência feita ao imperador Leão III sobre a legitimidade do culto das imagens.
Este documento se refere ao período do patriarcado de Germano I (715-730).
Logo depois é possível encontrar também os documentos N.34340, do final
de janeiro de 730, que se refere a uma menção de uma ordem do imperador Leão
III contra as imagens e o N.34441, que não se sabe se é do fim de janeiro ou início
de fevereiro de 730, no qual temos a menção de uma carta sinodal escrita ao papa

37
Cf. MANGO, 1993, pp. 151-152.
38
GRUMEL, 1989.
39
Ibidem, p. 6.
40
Ibidem, p. 12.
41
Ibidem.
21

Gregório II contra as imagens, que pode ser encontrada entre os documentos do


patriarcado de Anastácio (730-754), escolhido pelo próprio imperador após a
destituição do patriarca Germano I. Esses documentos ajudam a comprovar a
teoria da instituição da iconoclastia por volta dos anos de 720, defendida por
tantos autores e por nós, apesar da desconfiança em relação ao que se encontra na
crônica de Teófanes.
A política iconoclasta de Leão III se intensifica após a sua morte com o
seu filho Constantino V (741-775), o qual convocou um concílio em Hieria em
754, reiterando a proibição do culto aos ícones. O fim desse primeiro período se
deu em 787 com a convocação do concílio de Nicéia II, pela então imperatriz
regente Irene (780-789), já que o mesmo não pode se realizar em Constantinopla,
devido à posição do exército, no qual se deu o restabelecimento do culto das
imagens.
O segundo período iniciou-se com o imperador Leão V (813-820) através
de um concílio realizado em Constantinopla em 815, quando as imagens foram
mais uma vez condenadas. Porém, em 842 Teodora (842-855) tornou-se
imperatriz e proclamou o restabelecimento definitivo das imagens através de um
concílio realizado em Constantinopla em 843, juntamente com o patriarca
Metódio I (843-847), renovando todas as disposições do concílio de Nicéia II
(787). O dia 11 de março de 843 ficou marcado devido à cerimônia solene
realizada na Igreja de Santa Sofia, em Constantinopla, onde foi celebrado o
Triunfo da Ortodoxia, que é até os dias atuais comemorado pela Igreja grega. 42
Nesse contexto, é necessário destacar a importância de duas grandes
figuras monásticas na defesa das imagens, São João Damasceno na primeira fase e
Teodoro Estudita na segunda. Ambos contribuíram, com seus escritos, para a
legitimação das imagens, recorrendo a argumentos oriundos das Escrituras e dos
santos Padres da Igreja. Como nossa pesquisa se concentra na análise das obras de
Damasceno, é preciso salientar a importância de se voltar alguns séculos antes e
compreender alguns acontecimentos referentes aos dogmas da Igreja e às imagens,
como forma de entender o período e os argumentos de João Damasceno,
permeados pela questão cristológica e trinitária.

42
Cf. LEMERLE, 1991, p. 76.
22

Para isso, faremos uma breve contextualização, neste capítulo, acerca dos
primeiros concílios e de suas definições, passando pela importância do ícone na
história do cristianismo e na história bizantina e pela questão autocrática do poder
imperial, além de explanar um pouco acerca da história do monacato bizantino.
Trataremos ainda da expansão islâmica e da crise bizantina no século VII, para
melhor compreensão de como ocorreu a ascensão do imperador Leão III, sua
ideologia imperial e o contexto da eclosão da iconoclastia.

1.1. Primeiros concílios: definições cristãs e heresias

O Império Bizantino enquanto um império de bases cristãs teve início com o


imperador Constantino (272-337) e sua suposta visão43, que fez com que o mesmo
protegesse a fé cristã. Sua concepção de uma cópia do “Reino dos céus na terra ”44,
levou Bizâncio a se autointitular um império universal, que abarcava todos os
povos, como partes da única e verdadeira Igreja cristã: a Igreja Ortodoxa.45
O ponto de partida para a compreensão da experiência com Deus na
civilização bizantina está nas Sagradas Escrituras – o Antigo testamento e o Novo
Testamento, este como desenvolvimento e explicação para fatos ocorridos no
Antigo.46 É possível perceber a importância das Escrituras para essa civilização no
uso das mesmas para a elaboração, defesa e justificativa de argumentos, seja para
legitimar questões referentes aos dogmas da Igreja Ortodoxa, seja para
desenvolver argumentos em prol do que era considerado pela Igreja como
heresia47, como aliás veremos mais à frente no caso do movimento iconoclasta, no
qual o ataque às imagens foi feito a partir de textos da Escritura, enquanto que a

43
Há ainda entre os historiadores, dúvidas acerca da veracidade ou não da suposta visão do
imperador Constantino, na qual o mesmo teria visto Cristo em sonho e este teria ordenado que as
tropas de Constantino inscrevessem sem seus escudos o monograma cristão XP (RUNCIMAN,
1978). “Historiadores racionalistas contestam essa versão como sendo uma invenção do próprio
Constantino ou, mais provavelmente, de Eusébio, o qual consideram um bajulador digno de pouca
confiança. Cristãos piedosos veem nisso um milagre. Outros acreditam que Constantino tenha
presenciado um fenômeno natural raro, mas não excepcional, exagerando-o em sua imaginação”.
Cf. RUNCIMAN, 1978, p. 13.
44
Ibidem.
45
Ibidem.
46
Cf. CUNNINGHAM, In: JAMES, 2010, pp. 149-159
47
O termo “heresia” era utilizado pelos bizantinos para designar aqueles que eram adversários da
Igreja Ortodoxa de Constantinopla ou para designar também tendências religiosas que foram
condenadas pelo patriarcado por debaterem acerca da definição da Trindade e da dupla natureza de
Cristo. Cf. KAZHDAN, 1991, pp. 918-920.
23

defesa das imagens feita pelo monge João Damasceno na primeira fase da
iconoclastia também.
Acreditava-se, assim, a partir das Escrituras que a relação de Deus com a
humanidade teve início com a criação do universo e de tudo o que há nele como
descrito em seu primeiro capítulo, o Gênesis. Portanto, Deus é o criador – não
criatura – independente de sua criação que, assim, depende d’Ele para ser criada e
existir. Comentaristas cristãos alegavam, a partir do segundo século, que Deus,
enquanto Trindade, foi revelado tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos.48
Assim, para estar mais perto de Cristo, os fiéis se utilizavam de formas
espirituais ou físicas através, por exemplo, do sacramento do batismo,
considerado um ritual formal para a iniciação na Igreja. Havia ainda a eucaristia,
símbolo de participação em Cristo e os ícones, santos e relíquias utilizados para o
ensinamento do dever cristão, principalmente entre a população comum bizantina,
a qual era composta por uma maioria analfabeta que se instruía religiosamente
através do visual e/ou da oralidade.49
No que concerne à questão trinitária, o ponto principal era a compreensão
correta da relação existente entre Jesus Filho e Deus Pai, já que associar outro ser
a Deus no cristianismo era considerada apostasia, ao contrário do que acontecia no
mundo pagão, no qual Jesus poderia ser acrescentado ao panteão dos deuses sem
prejuízos para os seus princípios. Dessa forma, a necessidade de definir de forma
correta a relação entre Deus e Cristo se encontra em dois temas muito complexos
denominados cristologia – essa preocupação com a relação entre Pai e Filho – e
heresia – termo usado pelos cristãos para designar aqueles que professam de
forma incorreta a fé cristã.50
Porém, é preciso ressaltar que, anteriormente à evolução da definição do
dogma trinitário, se impunha o modelo cristológico que adotou o conceito de
Logos para definir a relação de Cristo com o Pai, no qual o primeiro era
subordinado ao segundo. Esse modelo era problemático, pois comprometia o
dogma da unidade de Deus. A partir de então teria surgido o dogma da Trindade
que consistia na distinção das três hipóstases divinas do Pai, Filho e Espírito
Santo. No entanto, essa definição também era problemática, já que se falava em

48
Cf. CUNNINGHAM, In: JAMES, 2010, pp. 149-159.
49
Ibidem.
50
Cf. LOUTH, In: JAMES, 2010, pp. 187-198.
24

três “substâncias” ou “essências” que também comprometiam a questão da


unidade de Deus e recaía sobre o modelo de subordinação.51
Assim sendo, Louth52 ressalta que é a partir da conversão do imperador
Constantino53 que há uma mudança significativa na história da cristologia e da
heresia, quando passou a ser considerada heresia qualquer problema cristológico.
No entanto, segundo o autor, foi a partir do século IV que teve início a
propagação de tendências religiosas relacionadas à cristologia consideradas pela
Igreja Ortodoxa como heréticas, que levou à convocação do primeiro concílio
ecumênico, no intuito de resolver essas questões e punir seus idealizadores.
É importante ressaltar que de 325 a 451 foram chamados quatro concílios
ecumênicos com o intuito de definir os dogmas cristãos relativos à Trindade e à
dupla natureza de Cristo - concílios de Nicéia (325), Constantinopolitano I (381),
Éfeso (431) e Calcedônia (451). Todos esses quatro concílios e os posteriores até
o fim do Império Bizantino foram convocados e conduzidos pelo imperador
vigente, uma vez que o imperador estava imbuído de resolver questões religiosas.
Assim, “a partir de Constantino, o instituto sinodal obtém um preciso
reconhecimento jurídico e suas decisões passam a ter efeito no âmbito das leis
imperiais”. 54
Esse concílio que foi convocado pelo imperador Constantino e ficou
conhecido como o primeiro concílio de Nicéia realizado no ano de 325, teve como
objetivo resolver a controvérsia sobre o arianismo. Sustentado pelo bispo
alexandrino Ário (288-336) e seus seguidores, o arianismo consistia na defesa de

51
Cf. ALBERIGO, 1995.
52
Cf. LOUTH, In: JAMES, 2010, pp. 187-198.
53
É preciso ressaltar que a conversão do imperador Constantino não tem evidência histórica. “Vê-
se portanto como é necessário ser prudente quando se fala da conversão de Constantino. Deve-se
evitar dois excessos contrários. Não se pode esquecer que Constantino só chegou à fé cristã
lentamente e, segundo tudo indica, mais por força de uma série de circunstâncias, senão de
considerações políticas, que por uma iluminação interior; que durante muito tempo o cristianismo
pôde lhe parecer superior às outras religiões da época, mas de modo algum essencialmente
diferente; que, aliás, ele continuou sendo pontifex maximus durante todo o seu reinado, e que,
embora tenha tentado eliminar os vícios e as superstições mais grosseiras do paganismo, não
procurou depreciá-lo. Inversamente, não se pode negar que Constantino sempre se preocupou com
o problema cristão; que desde o começo ele demonstrou uma grande tolerância, e logo uma grande
benevolência, para com os cristãos; e que enfim é bem provável que ele tenha se convertido, visto
que foi batizado. É verdade que ele protelou até a véspera de sua morte para receber o batismo;
mas talvez isso não seja um sinal de indiferença, pois esse procedimento era muito frequente
naquela ocasião: acreditava-se que desse modo apagavam-se mais completamente as faltas da vida.
Mais singular parece o fato de Constantino ter sido batizado pelas mãos de um bispo ariano.” In:
LEMERLE, 1991. pp. 12-13.
54
Cf. ALBERIGO, 1995, p. 16.
25

que somente Deus é ser não gerado, negando a consubstancialidade do Filho em


relação ao Pai. No entanto, é preciso salientar que o concílio não consistia
somente em exterminar o arianismo. “O programa de Constantino era de alcance
maior e visava realizar a pacificação geral e a nova organização da Igreja, que já
se tornara importante instituição de apoio do império romano”.55 Porém, apesar de
Ário ser excomungado e o arianismo condenado como heresia, suas ideias não
foram extintas, o que fez com que as mesmas continuassem se disseminando,
causando, assim, segundo Alberigo, uma profunda divisão no seio da Igreja
oriental, atrapalhando, assim, os planos do imperador Constantino de pacificação
geral, pois membros da própria Igreja se dividiram entre a condenação do
arianismo e seu seguimento.
Assim, o marco de Nicéia pode ser definido em dois pontos que se referem à
tentativa do imperador de definir a fé cristã ortodoxa a partir de um concílio e
excluir como hereges aqueles que fossem contrários a essas ideias e enfatizar a
consubstancialidade do Filho em relação ao Pai.56 Em 381 foi convocado outro
concílio, o Constantinopolitano I, no qual não só foram confirmadas todas as
definições de Nicéia acerca da consubstancialidade do Filho em relação ao Pai,
como também confirmou a consubstancialidade do Espírito Santo.57
As questões cristológicas e heréticas ainda teriam mais dois capítulos algum
tempo depois. Nestório (386-451), ex-sacerdote de Antioquia, torna-se Patriarca
de Constantinopla (428-31) fundando uma nova doutrina chamada nestorianismo,
na qual afirmava que em Cristo havia duas naturezas distintas, a humana e a
divina, com a prevalência da natureza humana. Sendo assim, negava, de acordo
com Alberigo, o termo Theotokos (“Mãe de Deus”) para Maria e também o termo
Anthropotókos (“Mãe do homem”), em prol da expressão Christotókos (“Mãe de
Cristo”). Assim, em 431 é convocado um concílio em Éfeso, no qual Nestório foi
deposto e o nestorianismo também foi condenado como heresia. 58
Contudo, a questão da dupla natureza de Cristo ainda não teria sido resolvida
definitivamente, o que levou ao surgimento de uma terceira doutrina conhecida
como monofisista, idealizada por Eutiques, que se recusava a reconhecer em
Cristo duas naturezas e se opunha à doutrina nestoriana e sua defesa da

55
Cf. ALBERIGO, 1995, p. 24.
56
Cf. LOUTH. In: JAMES, 2010, pp. 187-198.
57
Cf. BOY, 2004.
58
Cf. ALBERIGO, op. cit.
26

prevalência da natureza humana de Cristo, defendendo, assim, que Cristo teria


apenas uma natureza, a divina. Novamente foi convocado um concílio, conhecido
como Concílio da Calcedônia, em 451, no qual foi combatido tanto o
nestorianismo quanto o monofisismo. Nesse concílio foi ainda exposta e
destacada a doutrina correta, na qual “Jesus é reconhecido com ‘duas naturezas,
sem confusão, mudança, divisão, separação’, e a diversidade das naturezas, com
suas respectivas propriedades, não desaparece após a união, mas ambas
concorrem para formar ‘uma só pessoa e uma só hipóstase”.59
Já em relação à questão da imagem propriamente dita, temos o concílio
Quinisexto de 692, no qual foram discutidas preocupações acerca do destino do
cristianismo e dos cristãos, confirmando as decisões dos concílios anteriores, mas
também uma legislação para as imagens religiosas. Assim, temos no cânone 73 a
proibição de decorar o chão das Igrejas com o sinal da cruz e no cânone 82 a
ordem para que Cristo deixasse de ser representado simbolicamente como um
cordeiro para ser representado em forma humana.60 Havia aí, uma preocupação
em padronizar e purificar a prática ortodoxa da poluição do sagrado pelo profano,
preocupação esta que se estendeu até o século seguinte com as práticas
iconoclastas. Os ícones teriam ganhado, assim, essa nova significância no século
VII por abordar a crise espiritual que o Império estava passando e devido à
insegurança adquirida pelo sucesso da expansão islâmica. 61
Dessa forma, apesar de o iconoclasmo ter surgido somente três séculos depois,
o estudo das definições dogmáticas e heréticas são de grande relevância para a
análise do fenômeno, pois o mesmo também foi condenado e considerado uma
heresia, sendo a defesa tanto da iconoclastia quanto das imagens fundamentadas a
partir da questão cristológica discutida aqui. Os tratados em defesa das imagens
escritos por João Damasceno 62 afirmavam que era através das imagens, ou seja, da
matéria, que era possível alcançar o inatingível, pois a veneração oferecida à
imagem era transmitida ao protótipo. Já o imperador Constantino V no concílio
iconoclasta de 754 63, afirmava que era impossível representar a divindade de
Cristo e que a afirmação iconófila de representação apenas da humanidade de

59
BOY, 2004, p. 100.
60
Cf. BRUBAKER, In: JAMES, 2010, pp. 323-337.
61
Cf. MANGO, 1998. pp. 105-124.
62
DAMASCENO, In: LOUTH, 2003.
63
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A. D. 754.
In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
27

Cristo era absurda, uma vez que, ao fazê-lo, separavam naturezas humana e
divina, enfatizando a natureza humana, caindo, assim, na heresia nestoriana.
Sendo assim, no que se refere diretamente ao estatuto da imagem em Bizâncio
é importante destacar a existência de uma carta escrita pelo bispo Eusébio de
Cesaréia (265-339) para a irmã de Constantino, Constância, na qual ele a critica
por lhe pedir o envio de um retrato de Cristo, afirmando que não é possível a
produção de uma imagem de Cristo porque não é possível representar aquilo que é
ininteligível.
Você também me escreveu a respeito de uma suposta imagem
de Cristo, imagem que deseja que eu lhe envie. Agora, que tipo
de coisa é esta que vocês chamam de imagem de Cristo? Eu não
sei o que a impulsionou para pedir que uma imagem de Nosso
Salvador fosse delineada. [...] Como se pode pintar uma
imagem de algo tão maravilhoso e de inatingível forma – se o
termo "forma" é de todo aplicável à essência divina e espiritual
- a menos que, como os pagãos descrentes, uma coisa é
representar as coisas que não têm qualquer semelhança possível
a qualquer coisa ...? Pois eles também fazem tais ídolos quando
desejam moldar à semelhança o que eles consideram ser um
deus, ou, como eles poderiam dizer, um dos heróis ou qualquer
outra coisa do rei, ainda assim são incapazes até mesmo de se
aproximar de uma semelhança, e assim delineiam e representam
algumas formas humanas estranhas. Certamente, que você vai
concordar que tais práticas não são lícitas para nós. 64

Esse documento nos mostra que desde o século IV já havia problemas quanto
à legitimidade da imagem de Cristo e seu culto, neste caso por um próprio
membro da Igreja que considerava a prática de pintar retratos como pagã. Além
disso, foi possível observar também que já no século VII um concílio foi
convocado para decidir questões referentes à padronização dos ícones. Desse
modo, é preciso que estejamos atentos para esses eventos ocorridos nos primeiros
séculos, pois os mesmos podem de alguma forma nos ajudar a entender o que
poderia ter levado à eclosão da iconoclastia pelo imperador Leão III no século
VIII e, principalmente, entender como as imagens se tornaram objetos de
adoração ao ponto de se tentar aboli-las do cotidiano bizantino.

64
MANGO, 1993, pp. 16, 17
28

1.2. O ícone na história do cristianismo e na história bizantina

Quando refletimos sobre o estudo do iconoclasmo é impossível não pensar


também na forma como a imagem adquiriu importante papel não só na história
cristã, mas também na história bizantina. A questão que fica é como a imagem
passou a ser vista como objeto de idolatria a ponto de surgir no século VIII uma
legislação imperial contra a mesma.
Para tentar compreender esse problema é preciso, primeiramente, que
procuremos entender o que é o ícone e como este foi ganhando espaço na história
cristã e bizantina. Segundo o verbete ícone65 encontrado em The Oxford
Dictionary of Byzantium, o termo “ícone” ou “imagem” significa qualquer
representação de um personagem considerado sagrado, podendo ser produzido de
várias formas e tamanhos. Na maioria das vezes o ícone se refere a um painel de
madeira pintado de forma devocional. Presente nos cultos pagãos, os ícones foram
inicialmente tratados de forma hostil pelos cristãos primitivos, ganhando espaço
aos poucos na cultura cristã com sua aderência em Igrejas e cultos. Dessa forma, o
ícone pode ser considerado uma das mais importantes formas de legado de
Bizâncio, já que possui suas características próprias. 66
Assim, desde os primeiros séculos é possível perceber o desenvolvimento da
arte cristã de forma ainda muito tímida, sendo as primeiras imagens formadas por
pinturas nas catacumbas cristãs, constituídas por figuras individuais e/ou motivos
como âncoras, peixes, Noé e sua arca. Estudiosos da iconografia cristã do século
XIX dataram essas figuras do primeiro ao segundo séculos, porém, para
estudiosos do século XX há evidências que a datação seria do terceiro século, o
que é mais aceito atualmente.67
No entanto, evidências documentais acerca de cenas narrativas religiosas e de
formas raras de retratos isolados somente surgiram a partir do quarto século. Os
textos que sobreviveram do período não relatam se esses retratos sagrados eram
venerados de alguma forma, mas narram acerca de imagens que eram produzidas
para a preservação da memória da pessoa representada, que forneciam, assim, um
modelo exemplar para imitação ou homenagem dessa pessoa.68

65
Cf. KAZHDAN, 1991, pp. 977-981.
66
Cf. VASSILAKI, In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008, pp. 758-769.
67
Cf. CORRIGAN, In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008, pp. 67-76.
68
Cf. BRUBAKER, In: JAMES, 2010, pp. 323-337.
29

Assim como Brubaker69, Alain Besançon70 também defende que a arte cristã
propriamente dita somente começou a ser produzida a partir da suposta conversão
de Constantino no quarto século, quando o cristianismo deixou de ser uma
religião perseguida e passou a ser a religião tolerada no Império Bizantino,
quando os artesões teriam então passado a trabalhar para a exaltação da nova fé.
Dessa forma, Corrigan71 faz o seguinte questionamento: por que as imagens
cristãs apareceram de forma tardia? Segundo a autora, isto teria ocorrido devido à
postura anti-imagem da Igreja primitiva. Porém, a autora cita André Grabar e a
afirmação do mesmo de que as primeiras imagens produzidas pelos cristãos
poderiam ter surgido em resposta à arte figurativa que era desenvolvida por
religiões concorrentes, tais como o judaísmo e o monoteísmo. Contudo, Corrigan
destaca que estudos mais recentes indicam que a Igreja primitiva não era de fato
anti-imagem e que os cristãos podem ter produzido algo antes do terceiro século
como já fora mencionado acima.
O desenvolvimento da arte cristã se deu entre os séculos IV e VI, nos quais
eram desenvolvidas imagens abstratas ou simbólicas que faziam reverência aos
dogmas da Igreja, além de ícones do Cristo, da Virgem e dos Santos. Assim, é a
partir dos séculos VI e VII que se tem notícia de uma difusão em massa dos
ícones e de seu culto, que se destacavam cada vez mais tanto na esfera privada
quanto na esfera pública. 72
Foi apenas no sétimo século que a Igreja deu a aprovação oficial às imagens
através do Concílio Quinisexto de 692, no qual ordenou-se que Cristo fosse
representado na sua forma humana e não mais simbolicamente como um cordeiro,
o que nos mostra que aos poucos as imagens foram conquistando o seu espaço e
importância em Bizâncio, onde os próprios imperadores as utilizavam em sua
devoções pessoais e como parte dessas imagens. Era muito comum encontrar
representações do imperador junto a Cristo, à Virgem ou a algum santo. 73
Além disso, essa crescente produção e veneração dos ícones encontrava
respaldo na crença do homem comum bizantino que, assim como os seus
ancestrais que cultuavam fervorosamente estátuas de deuses e deusas, faziam o

69
BRUBAKER, In: JAMES, 2010, pp. 323-337.
70
BESANÇON, 1997.
71
Cf. CORRIGAN, In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008, pp. 67-76.
72
Ibidem.
73
Cf. RUNCIMAN, 1977.
30

mesmo com os ícones de Cristo, da Virgem e dos santos, por acreditarem que os
mesmos tinham poderes milagrosos, principalmente no que tange à proteção do
império e também à proteção individual, já que viam no culto das imagens a sua
salvação espiritual.
Todo esse valor dado às relíquias devia-se à função protetora
que elas exerciam, ajudando com seus milagres não apenas aos
bizantinos individualmente, mas garantindo a própria
sobrevivência do Império. Foi uma imagem santa da Virgem,
defensora de Constantinopla, que em procissão pelas muralhas
da cidade impediu que os persas e os ávaros a invadissem em
626, os árabes em 677 e 717.74

Porém, é entre o oitavo e nono séculos que temos uma discussão em torno da
legitimidade dos ícones que levaria à escassez dos mesmos com a entrada em
vigor da iconoclastia. O impacto da iconoclastia na arte bizantina foi profundo,
pois não restou quase nenhuma obra imagética do período ou anterior a ele.

1.3. O caráter autocrático do poder imperial

Desde a ascensão do imperador Constantino no século IV e desde que o


mesmo transformou a antiga cidade de Bizâncio na nova Roma rebatizando-a a
partir do seu próprio nome como Constantinopla, os imperadores e a religião
cristã75 passaram a compartilhar os mesmos cerimoniais. O fato ocorrido a
Constantino não teria sido uma simples conversão, pois o mesmo era um
imperador e havia recebido um sinal. Sendo assim, é possível concluir que tanto o
imperador quanto toda estrutura imperial governada por ele, teriam sido
escolhidos e consagrados por Deus.76 “O imperador e o império haviam recebido
uma bênção divina e a partir de então achavam-se sob a proteção direta da
Cruz”.77
Assim, tais mudanças também ocorreram no que concerne à titulação do
imperador e ao seu conceito, no qual o imperador passou a ser o soberano
absoluto, o autokrátor, o despótes, o basileus, o “vice-rei de Deus” na terra:

Ao contacto do Oriente, ele se tornou o autocrator, o despotes,


e, a partir do início do século VII, o basileus, isto é, o

74
JUNIOR; FILHO, 1985, pp. 23.
75
A única exceção era o imperador Juliano (363-465) que era pagão.
76
Cf. SHERRARD, 1970, p. 92-112.
77
Ibidem, p. 93
31

imperador por excelência, o senhor que dispõe de autoridade


absoluta. Enfim, o cristianismo fez dele o eleito de Deus, o
ungido do Senhor, o representante de Deus sobre a terra, seu
lugar-tenente à frente dos exércitos, e, como diziam em
Bizâncio, o isapóstolos, o príncipe igual aos apóstolos. 78

Em relação a essa questão da titulatura79, a mesma era utilizada enquanto


veículo de propaganda e em função da hierarquia que era rigidamente estabelecida
em Bizâncio. A titulatura era vista também como um aspecto marcante referente à
ideia de continuidade, alusiva aos romanos, já que, assim como os últimos, os
imperadores bizantinos ao utilizarem também esses títulos, eram vistos enquanto
representantes da tradição imperial romana. 80 Além disso, os imperadores
bizantinos enquanto herdeiros direto do trono romano eram também herdeiros da
lei romana, sendo a produção de grande codificações de direito romano, oriundas
de Constantinopla, elaboradas pelos imperadores Teodósio I (378-395) e
Justiniano I (527-565).81
A partir de sua ascensão, o imperador precisava passar por uma cerimônia
solene, na qual era coroado, mostrando, assim, a base cristã do Império e o caráter
religioso de sua autoridade, uma vez que religião e Estado estavam
intrinsecamente ligados.82 No entanto, para cada imperador havia uma
proclamação, sendo que os imperadores usurpadores eram proclamados por suas
tropas, tal como ocorreu com Leão III em 717. Ao patriarca cabia estar presente
junto ao imperador dando o seu aval religioso quanto a uma iniciativa política. 83

Era el “gran emperador” el que coronaba a su descendiente y


sucesor designado. Aunque la expresión griega resulte a veces
equívoca, hay que entender que el papel del patriarca era el que
estaba definido en el segundo protocolo del capítulo I, 47 [38]
del Libro de las cerimonias: rezaba sobre la corona y la clámide
sin proceder él mismo a coronar y a vestir. 84

No que se refere à sucessão do poder imperial em Bizâncio não havia uma


forma bem definida como no Ocidente que se fazia através da hereditariedade.
Segundo Dagron, as proclamações referentes à herança biológica como princípio

78
DIEHL, 1961, p. 82
79
Utilizamos o termo titulatura conforme as ideias de Celso Taveira, 2002.
80
Cf. TAVEIRA, 2002.
81
Cf. McCORMICK, 1998, pp. 219-239.
82
Cf. PREVITE-ORTON, 1967, p. 349.
83
Cf. DAGRON, 2007.
84
Ibidem, p. 105.
32

de sucessão não eram a maioria no Império Bizantino, já que a transmissão do


poder não era feita simplesmente através dos direitos de sangue, existindo ainda a
possibilidade de ascensão através de eleições pelo senado ou exército e através de
usurpações, como já foi observado. O autor salienta que quando o soberano queria
designar como o seu sucessor o seu filho, era preciso associá-lo ao poder como
faria caso designasse um estrangeiro, que precisaria passar a fazer parte de sua
família. No caso de usurpações, havia a necessidade de fazer aliança com a
família imperial que decaiu ou com a que a precedeu.
Já em relação à questão hereditária, o nascimento do intitulado
porfirogênito simbolizava o êxito de uma dinastia, pois ao mesmo era atribuído
um caráter sagrado, já que Deus o teria o enviado para ser imperador com a unção
da realeza. 85 Os porfirogênitos eram assim chamados, pois nasciam literalmente
da púrpura.86 Como o que caracterizava o imperador eram “(...) os tons
resplandecentes da mais fina seda púrpura ornada de fios dourados” 87 como
simbologia do seu poder, o quarto do Grande Palácio, no qual nasciam os
imperadores legítimos, era “(...) pavimentado de pórfiro, de modo que, para o
recém nascido, a primeira experiência deste mundo estava ligada a esta condição
única, reconhecida por Deus”.88 Porém, somente entre os anos de 788 e 882 foi
que o conceito de porfirogênito se revestiu de total sacralidade. 89
Ao abordarmos a questão da hereditariedade e nascimento de imperadores
legítimos, não podemos nos esquecer do papel das imperatrizes e de sua
importância na estrutural imperial, já que no processo sucessório eram elas que
davam a luz aos herdeiros legítimos, o que levou à formação de dinastias
femininas. 90 Porém, nem toda esposa de imperador tornava-se imperatriz,
principalmente no que refere-se ao primeiro período bizantino, e as que
conseguiam obtinham também privilégios. 91 Elas “emitiam moeda, autenticavam
documentos com seus selos de chumbo, usavam as insígnias imperiais, todas elas
tinham receitas e pessoal administrativo destinado a geri-las. Usavam ainda o

85
Cf. DAGRON, 2007.
86
Cf. McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, pp. 219-239.
87
Ibidem, p. 219.
88
Ibidem, p. 220.
89
Cf. DAGRON, 2007.
90
Ibidem.
91
Cf. McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, pp. 219-239.
33

título oficial de augousta”. 92 As imperatrizes somente geriram de forma direta o


Império em circunstâncias excepcionais, tais como na falta de saúde do imperador
vigente ou quando a menoridade do imperador o impedia de governar. Assim,
temos como exemplo a imperatriz regente Irene (780-789) que, para não perder o
posto, mandou cegar o filho para que pudesse assumir o poder absoluto, como o
fez de 797 a 802.93
No que concerne à questão dinástica, havia o problema da instabilidade em
relação ao poder imperial, que, nas poucas vezes que fora ocupado por dinastias,
estas não passaram no poder mais de quatro gerações, não se mantendo por mais
de um século, sendo interrompidas de forma abrupta, geralmente por usurpações.
Aquelas que tiveram maior duração foram as dinastias de Heráclio (610-711);
Isaúrica (717-802) e Macedônica (867-1056), sendo que somente a partir dos
Conmenos no fim do século XI que o Império teria dado maior importância à
legitimidade dos direitos de sangue. 94 Havia também a questão da proveniência
desses imperadores que se alterava de acordo com as mudanças geográficas do
Império, sendo que até Tibério II, com exceção de Zenão, os imperadores de
origem conhecida seriam oriundos das províncias europeias, enquanto que depois
de Focas até os últimos séculos, por causa da drástica redução territorial, a maior
parte dos soberanos nascidos fora da capital Constantinopla eram de origem
asiática, o que mostra a importância política e social da Anatólia no período. 95
É preciso que abordemos também como se dava a projeção do poder
imperial em Bizâncio, que era utilizada como veículo de propaganda. Essa função
era destinada às cerimônias públicas que serviam ainda para reforçar esse poder,
já que as procissões feitas pela corte imperial eram o meio de contato entre o
soberano e os seus súditos. Além disso, era também uma forma de mostrar o
poder, prestígio, e a riqueza do Império para os estrangeiros que se viam
fascinados pelo espetáculo e magnificência imperial. 96 “Para o imperador era a
ocasião para confirmar tudo isto e ao mesmo tempo irradiar a mensagem política
do momento: quem ascendia e quem descia, guerra ou paz, alegria ou dor”.97

92
McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, p. 232.
93
Cf. McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, pp. 219-239.
94
DAGRON, 2007.
95
McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, op. cit., pp. 219-239.
96
Ibidem.
97
Ibidem, p. 238.
34

Essa propaganda imperial era feita também a partir de imagens que


demonstravam o soberano oferecendo dádivas à Virgem e ao Menino, para
mostrar o caráter cristão do Império. 98 “Enquanto os imperadores romanos tinham
construído grandes termas, mercados e colunas triunfais, os imperadores
bizantinos preferiam construir igrejas”.99
Dessa forma, essa “fusão bizantina entre o temporal e o espiritual” 100 pode
ser comprovada principalmente na influência imperial nos assuntos religiosos,
pois os concílios da Igreja Ortodoxa eram convocados pelo imperador e não pelo
patriarca de Constantinopla.

(...) Constantino, desde o dia que elegera o cristianismo como


religião de estado, tomara o cuidado de dar ao governo imperial
o direito de intervir em todos os negócios eclesiásticos,
assegurando para si os meios de governar despoticamente a
Igreja, tanto em relação às coisas como às pessoas. A autoridade
do imperador em matéria de religião parecia, portanto, quase
absoluta. O imperador convocava os concílios, onde se fazia
representar por altos funcionários, quando não comparecia
pessoalmente, ratificando as decisões dos padres, decisões essas
que não tinham força de lei senão depois de sua ratificação. 101

Além da coroação do imperador e sua influência no que tange aos assuntos


religiosos como forma de demonstrar o seu poder absoluto e divinizado, Ernst
Kantorowicz102 chama a atenção para a ideia de “aura” como parte dessa
assimilação do imperador a Cristo. A auréola era utilizada pelos bizantinos na
representação de seus imperadores, mesmo após a queda do Império. A auréola
designava que aquele que a usava também podia ser venerado como um santo,
pois, “indicava o portador e executivo do poder perpétuo derivado de Deus e
tornava o imperador a encarnação de algum tipo de ‘protótipo’ que, por ser
imortal, era sanctus, não obstante o caráter pessoal, ou mesmo o sexo de seu
constituinte”.103 Ou seja, indicava uma mudança no que diz respeito à natureza do
tempo: aquele que trajava a auréola era imortal.
Porém, Celso Taveira atenta para a questão do caráter sacerdotal ou não do
imperador bizantino que é muito discutido ainda na historiografia, principalmente

98
McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, pp. 219-239.
99
Ibidem, p. 221.
100
Essa expressão pode ser encontrada In: JUNIOR; FILHO, 1985.
101
DIEHL, 1961, p. 91
102
Cf. KANTOROWICZ, 2000, pp. 40-169.
103
Ibidem, p. 68.
35

no que se refere à palavra cesaropapismo, tal como fez Gilbert Dagron. Este na
introdução de seu livro questiona se seria o imperador, à sua maneira, um
sacerdote, já que os próprios imperadores bizantinos se autointitulavam
imperadores e sacerdotes, tal como ocorreu com Leão III no século VIII. Sendo
assim, Taveira afirma que “é, pois, partindo da noção de teocracia que se pode
compreender o problema do cesaropapismo. Uma sociedade que Deus dirige e
tudo decide, fazendo conhecer a todos sua vontade, é uma sociedade regida pelo
governo teocrático”.104
Como já observamos, o cerne da questão está no fato de que Constantino
fez da Igreja assunto de Estado, criando uma ideia de Império cristão
acompanhada de uma teologia política, na qual a missão divina dada ao imperador
era uma espécie de sacerdócio, sendo muito problemática a articulação entre a
instituição eclesiástica em si e o sacerdócio real do soberano. A partir de então,
Constantino “santificou” todos os imperadores que vieram depois como “novos
Constantinos” e aqueles que construíram dinastias (Heráclio, Leão III, Leão V,
Teófilo, Basílio I) deram em sua homenagem o seu nome aos filhos primogênitos
em razão de sua virtude que era considerada legítima. A palavra cesaropapismo
teria, no século XIX, sido apontada para a definição dos herdeiros ortodoxos de
Bizâncio com o intervencionismo “constantiniano” como a causa principal para o
cisma entre o Oriente e o Ocidente cristãos, levando à impossibilidade de
distinguir os poderes espiritual e temporal. 105
Com isso, várias foram as discussões, segundo o Dagron, em torno da
figura de Constantino e de seu poder, como ocorreu no contexto da Reforma e da
Contra-Reforma em que Lutero distinguiu os poderes espiritual e temporal, além
de fazer crítica ao soberano que se atribuiu o direito de sentar no trono de Deus. O
autor cita também Burckhardt que rechaçou toda forma de cristianismo de Estado
e fez uma análise do que ele chamava de bizantinismo, que somente mais tarde
passou a ser o conhecido termo cesaropapismo e, também, Erok Peterson que de
crítica ao “cristianismo político” passou a fazer crítica de uma “teologia política”.
Para o autor, muitos pesquisadores do tema atribuíram a Eusébio de
Cesaréia a idealização do bizantinismo, isto é, o cesaropapismo, que opôs uma
mentalidade ocidental a uma oriental, já que

104
TAVEIRA, 2002, p. 292
105
Cf. DAGRON, 2007.
36

Desde el Edicto de Constantino hasta la formación del Imperio


Carolingio se desarrollaron dos tipos de diarquías religiosas y
políticas: el tipo cesaropapista bizantino y el tipo organizativo
latino”. El primero era el “sistema políticorreligioso por el cual
la autoridad del Estado se convertia, para la Iglesia, una
autoridad efectiva, normal y centralizadora, aunque externo a
Ella, y en cual la autoridad de la Iglesia participaba de manera
directa (aunque nada autônoma) en el ejercicio de cierto poder
temporal”. Ésa era la situación de la Iglesia oriental desde
Constantino, que desemboco en una perdida de autonomia, en el
sometimiento Al Estado, en la preservación de lós intereses
económicos y políticos de una elite de laicos y de una casta
privilegiada de clérigos. Inversamente, en la “diarquía
organizativa latina”, “la Iglesia, a la vez que invocaba la ayuda
del poder civil y daba a lós soberanos, dentro del régimen
eclesiástico, algunos poderes, algunas facultades y algunos
privilegios, reaccionaba casi siempre frente a toda dependencia
efectiva y afirmaba, según lós casos, su independencia”.106

Dessa forma, Dagron ressalta que os orientalistas tentaram de alguma


forma enfrentar esses ataques referentes ao termo, afirmando que a palavra
cesaropapismo seria um termo anacrônico e que em Bizâncio também nunca se
negou a distinção entre o temporal e o espiritual e, também, nunca se permitiu que
um imperador pudesse ser ou se intitulasse um sacerdote, pois “los autócratas que
se arriesgaron a sugerirlo fueram tratados como herejes, y lós que usurparon los
derechos de la Iglesia o, peor aún, se apoderaron de sus bienes fueron
denunciados como impíos”. 107 Segundo o autor, se de um lado os imperadores
bizantinos podiam interferir em assuntos religiosos, como convocação de
concílios, como já foi citado acima, por outro, podiam ser excomungados pelo
patriarca.
Isso mostra que por mais importante e absoluto que fosse o poder imperial
e sua influência na Igreja, esta ainda era representada pela figura do patriarca de
Constantinopla que era escolhido pelo próprio imperador e podia também ser
destituído do seu cargo pelo mesmo. No decorrer da crise iconoclasta isso pode
ser visto rotineiramente, já que os imperadores do período, independente de serem
iconoclastas ou iconófilos, precisavam contar com um homem de confiança para
ocupar o maior cargo da Igreja Ortodoxa para, assim, conseguir seus objetivos.
No início do iconoclasmo, por exemplo, Leão III destituiu o patriarca Germano I

106
DAGRON, 2007, p. 345-346.
107
Ibidem, p. 348
37

(715-730) do cargo em prol do patriarca Anastácio (730-754) que compartilhava


das mesmas convicções do imperador.
Assim, abaixo do patriarca estavam ainda os bispos, arcebispos, os párocos
e os monges, sendo o monacato bizantino um importante setor religioso durante o
período iconoclasta, devido à sua independência em relação ao poder da Igreja e
também do poder imperial e sua influência não só nas discussões teológicas como
também nos assuntos políticos e sociais. Esse poder e influência dos monges
levaram a diversos conflitos entre os mesmos e os imperadores no decorrer da
história bizantina, mas, principalmente, durante a fase iconoclasta, pois foram dois
monges, João Damasceno na primeira fase e Teodoro Estudita na segunda, que
combateram de forma mais enérgica o movimento iconoclasta através de tratados
teológicos em defesa das imagens.
Neste sentido, após analisar a constituição do modelo autocrático bizantino, é
possível perceber suas similitudes frente ao modelo ocidental, principalmente no
que concerne à continuidade da tradição referente à titulatura do imperador e a
importância da Igreja frente ao poder imperial e a forma deste último administrar
o Império, já que Igreja e Estado eram indissociáveis em Bizâncio.

Sumidade, sol, vértice do mundo político e mental dos


bizantinos, o imperador era de certa forma intrínseco à própria
existência de Bizâncio. A fidelidade ao basileus estava no
fulcro da ideologia política bizantina e mesmo do patriotismo
bizantino. A capital do Império tinha o nome do seu fundador, o
grande, o santo Constantino I, o imperador modelo. Mesmo
mais tarde, na viragem da Idade Média – quando a coincidência
de facto do poder imperial com a área de língua e cultura grega
veio juntar-se ao ressentimento pelo saque de Constantinopla
pelos Latinos e ao descontentamento pelas exigências
avançadas pelos papas, de modo a oferecer uma variante
helênica do antigo patriotismo cosmopolita do império
tradicional – o vínculo entre imperador e Bizâncio continuou a
parecer indissolúvel. Não admira, pois, que o último dia do
imperador – Constantino XI, morto em defesa das grandes
muralhas de Constantinopla, a 29 de maio de 1453 - tenha sido
também o último dia da história milenária de Bizâncio. 108

É possível concluir, assim, que o modelo autocrático bizantino é defendido


por muitos autores para explicar as diversas contradições religiosas ocorridas no
Império, pois as decisões sobre não somente aos assuntos de Estado, mas também
assuntos eclesiásticos eram tomadas pelo o imperador. No entanto, como veremos

108
McCORMICK, In: CAVALLO, 1998, p. 239.
38

mais à frente, esse não foi o único modelo político existente em Bizâncio, tão
pouco o único defendido pelos pesquisadores. Constataremos a existência não só
de outro modelo político já existente e herdado por Bizâncio, isto é, a república
romana, como também a existência de outras competências do poder imperial
bizantino.

1.4. O monacato bizantino

Importante setor na vida religiosa, econômica e social bizantina, o setor


monástico pode ser considerado, nessa sociedade, como um setor um tanto quanto
complexo no que concerne ao seu modo de vida. Iniciado no Egito, o
monasticismo teve rápida expansão no século IV com a construção do primeiro
mosteiro de Constantinopla em 382, a partir daí adquirindo a fama de “cidade dos
mosteiros”.109
A importância de estudarmos aqui a vida monástica em Bizâncio está na
participação dos monges no iconoclasmo nos séculos VIII e IX; afinal, foram dois
importantes monges que trabalharam na defesa dos ícones através de seus
tratados: João Damasceno no primeiro período e Teodoro Estudita no segundo.
Restringiremos o nosso trabalho aos tratados de Damasceno, pois a nossa ênfase
se dará na primeira fase com a eclosão da iconoclastia, deixando, assim, a análise
mais profunda dos tratados de Estudita para trabalhos futuros. No entanto, não
deixaremos de citar este último e suas principais ideias para a defesa das imagens
na segunda fase iconoclasta.
Sendo assim, é preciso chamar a atenção para a palavra grega monachós
(monge) que designa um estilo de vida solitário, que foi instituído pelos primeiros
cristãos no Egito.110 Porém, foram desenvolvidas em Bizâncio duas formas de
vida monástica, a forma de vida solitária, já citada acima, e a forma de vida
comum. 111 Os mosteiros eram autossuficientes e desenvolviam trabalhos manuais
(agrícola e artesanal) e religiosos como orações comunitárias e suas regras eram
estabelecidas pelo fundador de cada casa. É preciso também ressaltar a
importância do bispo Basílio de Cesareia (329-379) como líder no
desenvolvimento do monaquismo e de suas regras gerais, nas quais Basílio

109
Cf. McGuckin, In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008, pp. 611-620.
110
Cf. TALBOT, In: HALDON, 2009, pp. 257-278.
111
Cf. MANGO, 1998, pp. 105-124.
39

instituiu a vida cenobítica e o papel que os mosteiros deveriam ter na sociedade.


Dessa forma, os mosteiros deveriam ser localizados nas cidades e no campo e
deveriam apoiar a população através da caridade. Existiam também os mosteiros
femininos que se encontravam nas cidades por estas serem mais seguras para as
mulheres. 112
É necessário ainda compreender a forma como os monastérios se estruturavam
e o seu funcionamento. O abade ou a abadessa eram vistos como pai ou mãe e
monges e monjas como filhos espirituais. Estes eram divididos em dois grupos,
nos quais os mais educados e letrados se encontravam em funções administrativas
e aqueles que não eram alfabetizados ou tiveram pouco acesso à educação eram
destinados a funções braçais. Assim, a origem social de cada membro era refletida
nos níveis de educação e alfabetização. Além disso, os nobres e aristocratas
podiam aspirar à vida monástica e possuíam alguns privilégios, como o fato de
terem seus próprios funcionários e alimentos, pois considerava-se que era difícil
que os mesmos mudassem radicalmente seu estilo de vida. Como possuíam
muitos bens, uma grande parcela desses nobres e aristocratas faziam ainda
doações generosas aos monastérios como forma de renúncia da vida secular.
Assim, os monastérios foram aos poucos tornando-se grandes proprietários de
terras e propriedades, apesar das restrições que foram impostas ao longo dos anos
por alguns imperadores para a aquisição de bens pelos monges. 113
No que tange à existência de escravos nos mosteiros, de uma forma geral a
presença dos mesmos era proibida de acordo com as regras estipuladas por Basílio
de Cesaréia no quarto século e por Teodoro Estudita no nono século. A proibição
de escravos se dava por conta da posse dos mesmos ser permitida somente aos que
estivessem fora da vida monástica.114
Neste sentido, autores como John McGuckin e Alice-Mary Talbot veem a
atividade monástica como um dos setores mais controversos da civilização
bizantina, já que, inicialmente os mosteiros foram estabelecidos para que os
cristãos pudessem abdicar dos bens e valores materiais e laços de família. Porém,
os mosteiros foram aos poucos tornando-se parte da estrutura social de Bizâncio.
Isso pode ser visto, principalmente, no que concerne à participação dos monges

112
TALBOT, In: HALDON, Op. Cit., pp. 257-278.
113
Cf. TALBOT, In: HALDON, 2009, pp. 257-278.
114
Ibidem. 57-278.
40

em sínodos, negócios, peregrinações etc., além dos mesmos enquanto confessores


e conselheiros espirituais. 115 Esse estilo de vida fez com que os monges
estivessem cada vez mais vinculados às tensões sociais e políticas do Império
Bizantino116, pois os mosteiros foram adquirindo outras funções além das sociais e
religiosas, tais como abrigar relíquias e ícones que levavam os fiéis a
peregrinações até esses objetos considerados sagrados; prestação de serviços
sociais, como caridade e serviços espirituais; papel na economia bizantina
enquanto proprietários de terras e propriedades urbanas, além da contratação de
camponeses para trabalhar nessas propriedades; impulsionar e patrocinar a
produção de arte e literatura eclesiástica. 117
Devido a essa influência no cotidiano bizantino, algumas vezes os monges
tiveram apoio na corte imperial, o que teria levado à escolha do Patriarca no meio
monástico:118

Na maior parte do tempo, porém, o partido monástico


manifestou oposição não apenas a qualquer controle imperial
sobre a Igreja, mas também à hierarquia eclesiástica mais
elevada, considerando esta demasiado mundana. Sua força
consistia na proximidade que mantinha com a opinião
pública.119

Assim sendo, no século V durante o concílio da Calcedônia no ano de 451,


foram estipuladas normas para o estilo de vida monástico no que tange à
disciplina, respeito à hierarquia eclesiástica, além de maior atenção do clero para
com o setor, levando, assim, à inserção oficial dos monastérios na estrutura
eclesiástica. Proibiu-se ainda a construção de mosteiros sem a autorização do
bispo local e120

obrigou também os monges da cidade e do campo a


permanecerem submissos ao próprio bispo, a não descurarem da
stabilitas loci para dedicar-se às atividades mundanas, e a não
deixar o mosteiro sem permissão do ordinário. Reforça-se a
proibição tradicional de admitir o escravo na vida monástica, a
não se fazer com o consenso de seu senhor, e recomenda-se

115
Cf. TALBOT, In: HALDON, 2009, pp. 257-278.
116
Cf. McGuckin, In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008.
117
TALBOT, In: HALDON, pp. 257-278.
118
Cf. RUNCIMAN, 1978.
119
Ibidem, p. 93
120
Cf. ALBERIGO, 1995.
41

também que o bispo zele pelos mosteiros da cidade. O c.3 – que


proíbe o bispo de assumir a administração de bens seculares –
também remonta a uma proposta do imperador. Ele parece visar
sobretudo aos eclesiásticos, mas inclui na proibição também os
monges. O c. 23 também faz referência ao contexto urbano, e às
suas implicações práticas, formulando para clérigos e monges a
proibição de ficarem em Constantinopla sem terem sido
autorizados pelo próprio bispo. Outro indício das preocupações
a esse respeito temos no c.18, que proíbe as associações
secretas de clérigos e monges voltadas contra o bispo ou outros
clérigos. Enfim, o c. 24 – que veda a secularização do mosteiro
– significa o controle do bispo sobre a manutenção dos
mosteiros e seus bens, mas ao mesmo tempo oferece proteção
ao mosteiro. Esse conjunto de normas constituía, pois, uma
tentativa orgânica de disciplinar o fenômeno monástico, embora
considerando sobretudo sua forma cenobítica. Elas serão
retomadas depois pela legislação justiniana, que estenderá o
controle inclusive sobre as fundações de tipo anacorético.121

Com a eclosão da iconoclastia no século VIII, devido à organização dos


monges contra a política de destruição de imagens do imperador Leão III, os
mesmos foram as maiores vítimas das perseguições contra os iconófilos,
principalmente no período de regência do imperador Constantino V, filho de Leão
III, que teria perseguido de forma violenta aqueles que fossem contra as suas
decisões e as do seu pai. Após o fim do iconoclasmo com o restabelecimento
definitivo do culto das imagens, Teodoro Estudita instituiu normas e definições
para os monastérios, além de opor-se à intromissão do imperador nos assuntos
doutrinais da Igreja, tal qual haviam feito os imperadores iconoclastas, afirmando
que o imperador deveria respeitar e obedecer às leis da Igreja. Eram contra
também que o Patriarca apoiasse o imperador nessas questões.122
Embora contassem com uma influência maior após o fim da iconoclastia,
os monges não deixaram de ser um problema para o poder imperial como pode ser
visto nas definições citadas acima. Como continuaram se intrometendo nas
decisões e desejos do imperador, Nicéforo II emitiu uma lei impedindo a criação
de novos monastérios e doações para os já existentes, o que levou à redução da
riqueza dos monges e sua influência na população mais carente, apesar do
abandono dessa política pelos sucessores de Nicéforo II.123

121
Cf. ALBERIGO, 1995, p. 104-105.
122
Cf. MANGO, 1998, pp. 105-124.
123
Cf. RUNCIMAN, 1978.
42

Portanto, é possível perceber que apesar de complicada e complexa a


relação entre monges, Patriarca e Imperador, os primeiros são de extrema
importância para o Império Bizantino, já que estavam inseridos em todas as
esferas dessa sociedade. Ao mesmo tempo em que viviam em “guerra” com o
imperador, este dependia dos monges no que concerne ao contato e influências
desses para com a população comum bizantina. Sua importância para a Igreja
Ortodoxa estava na sua função de abrigar relíquias e estimular a produção artística
e literária eclesiástica. É justamente sua produção literária eclesiástica no que
tange à defesa das imagens através dos tratados do monge João Damasceno que
será analisada no próximo capítulo.

1.5. A expansão islâmica e a crise do século VII

Para entender o contexto em que se deu a crise iconoclasta do século VIII


e consequentemente os três tratados em defesa das imagens escritos por São João
Damasceno, é preciso, primeiramente, compreender as circunstâncias que
envolveram a crise profunda por qual passou o Império Bizantino no século VII,
que pôs em jogo a sua própria existência. Desse modo, poderemos também
compreender o cenário do momento de ascensão do imperador Leão III, o
isaúrico, em 717.
Após a tentativa de unificação e romanização do Império Bizantino como
um todo pelo imperador Justiniano (527-565), observa-se que toda a estrutura
edificada por ele começa a ruir, o que não deve ser atribuído somente aos excessos
cometidos pelo então imperador, mas também aos atos e decisões tomados pelos
seus sucessores. É preciso ressaltar que vários elementos contribuíram para a
quase derrocada completa do Império, sendo difícil que qualquer um desses
imperadores tenha feito um trabalho melhor durante o período. Porém, a
importância desse momento de crise deve ser destacada, já que foi em virtude da
mesma que os imperadores posteriores conseguiram enfrentar as dificuldades
fazendo importantes transformações que levaram à sobrevivência do Império.124
É preciso ressaltar que, quando nos referimos à crise do século VII,
estamos lidando com o maior acontecimento do período: a expansão islâmica e
todos os problemas que a mesma trouxe para a então grande potência que era

124
Cf. GREGORY, pp. 202-216.
43

Bizâncio, como a perda de importantes territórios e sua quase ruína. O islamismo


mudou não somente o Império Bizantino que precisou passar por diversas
transformações para sobreviver, mas também a situação política global e a
economia do mundo mediterrâneo.125
O século VII inicia-se com a dinastia de Heráclio (610-641), a primeira
dinastia bizantina que sobreviveu por cinco gerações e durante todo um século. O
seu governo ficou marcado pela vitória sobre os Persas que deixa de ser o
principal inimigo, recuperando, assim, importantes territórios que havia perdido
para os mesmos e por problemas internos como oposições políticas e questões
relativas à corrente monofisista no campo religioso. Em 611 foi tomada a primeira
medida militar de Heráclio contra os Persas, o principal problema externo do
Império. A medida levou à derrota bizantina que perdeu em 611 Antioquia, 613
Damasco e Tarso e 614 Jesrusalém. 126 Os persas saquearam Jerusalém, destruíram
a Igreja do Santo Sepulcro e levaram a Santa Cruz.127
Em 622 houve o contrataque bizantino dirigido pelo imperador, porém,
sem conseguir reaver os territórios perdidos. Em 626 houve outra tentativa de
invasão persa que foi detida pelos bizantinos que saíram vitoriosos e conseguiram
recuperar as províncias perdidas anteriormente e conquistar novos territórios na
Armênia. O Império Persa é assim eliminado militarmente em 628 e no ano de
630 já não representava nenhum perigo a Bizâncio. Como símbolo de glória, neste
mesmo ano, o imperador Heráclio entrou em Jerusalém com a Santa cruz. No
entanto, esses conflitos tiveram como consequência a quase escassez de recursos
que não preocupava o imperador, pois este pensava que o Império viveria por um
tempo em paz e prosperidade, já que acabara por liquidar o seu inimigo.128
Entretanto, apenas seis anos após a vitória sobre os persas em 634, o
Império Bizantino foi invadido pelos árabes que em apenas dois anos invadiram e
tomaram importantes províncias bizantinas, tais como a Síria (636) e logo depois
a Palestina (637) e o Egito (641). Esse golpe foi duro para o imperador Heráclio
que veio a falecer em 641, deixando para os seus sucessores, como legado, um
império dividido e o problema árabe 129. Porém, apesar do momento difícil, foi a

125
Cf. MAIER, 1989.
126
Ibidem.
127
GREGORY, 2005, pp. 202-216.
128
Ibidem.
129
Ibidem.
44

partir de então que se iniciou em Bizâncio diversas reformas que foram essenciais
para o começo de uma história propriamente Bizantina, ou seja, o Império ganhou
suas características próprias, desligando-se das antigas tradições romanas. 130
O ponto de partida dessas reformas foi a implantação do novo regime de
administração do Império a partir de themata131, subdivisões militares das
províncias, que seriam administradas por um comandante chamado strategos,
combinando, assim, os poderes militar e civil, subordinado ao poder imperial. 132
Os themata teriam surgido com as medidas reformistas para a tentativa de
uma homogeneização política-administrativa e política-defensiva do então
imperador Justiniano (527-565), que queria unificar os poderes civil e militar nas
zonas consideradas críticas do Império. No entanto, foi somente no século VII
após a perda das províncias orientais, que foi feita a implementação do sistema de
themata na Ásia Menor. Foram essas reformas que impulsionaram a constituição
de um exército bizantino composto pelo campesinato livre, no qual os indivíduos
que pertenciam a um determinado thema, recebiam, a troco de servir o exército,
terras que poderiam ser herdadas por seus descendentes. Essa organização de
exército, diferentemente da composta por mercenários, tinha como vantagem um
maior esforço para a defesa do território, pois os interesses desses soldados/
campesinos encontrava-se dentro do mesmo.133
No âmbito religioso também houve transformações. A perda das
províncias orientais levou também à perda de opositores monofisistas, fazendo
com que a Ortodoxia oriental passasse a ser agrupada em torno do patriarca de
Constaninopla, o que garantiria maior influência sobre a população e o imperador.
Haveria, assim, uma maior homogeneidade do Império greco-asiático, o triunfo da
língua grega e a fusão da noção de Ortodoxia e nacionalidade.134 Essa nova
identidade pode ser observada no título do imperador que deixa de ser chamado
pela forma latina Augustus e passa a ser chamado pelo termo grego basileus.
Esses fatores demonstram que apesar do Império ter perdido a sua posição de
grande potência, acabou por adquirir sua nova identidade que foi crucial para a

130
Cf. MAIER, 1989.
131
Cf. LEMERLE, 1991.
132
Cf. KAZHDAN, 1991, p. 2034.
133
Cf. MAIER, 1986.
134
LEMERLE, op. cit., 1991.
45

sua resistência e sobrevivência frente à grande nova força que se tornou o


islamismo 135.
A dinastia de Heráclio foi composta ainda pelo seu filho Constâncio (641-
668) que continuou enfrentando a força árabe, porém, sem muito sucesso, já que
em 655, em uma batalha, o imperador além da mesma quase também perdeu a
vida. Só em 659 Constâncio conseguiu o acerto de um tratado de paz com os
árabes que permitiu uma certa tranquilidade no Império. Entretanto, logo depois,
em 668, foi assassinado em decorrência de um golpe.136
Seu sucessor foi seu filho Constantino IV (668-685), que teve que
continuar a luta contra os árabes e suas investidas na Ásia Menor. No entanto, o
maior problema durante o seu comando foi o grande cerco árabe a Constantinopla
em 674, no qual os árabes atacaram pelo mar, devido à impenetrável muralha da
cidade. O cerco se estendeu por quatro anos, mas os bizantinos conseguiram a
vitória quando os seus navios se encontraram com os árabes e os atingiram com o
fogo grego – arma feita por um material altamente inflamável que até os dias
atuais não se sabe como era produzida. Apesar da vitória bizantina os árabes
continuaram a contra-atacar, no entanto, essa vitória bizantina em 678 foi o ponto
de partida para a sua recuperação, sem deixar de lado a importância e papel
também da reorganização administrativa e militar que já estavam ocorrendo no
Império, cruciais também para sua recomposição. Com isso, os árabes assinaram
um acordo de paz de trinta anos em condições mais favoráveis a Bizâncio, o que
demonstrava, assim, que essa foi a maior perda árabe em quarenta anos por um
lado, mas por outro a vitória crucial para a manutenção da sobrevivência do
Império Bizantino.137
Em assuntos religiosos, Constantino IV seguiu os seus antecessores na
tentativa de colocar fim aos conflitos religiosos. Para isso, convocou o sexto
Concílio Ecumênico em Constantinopla, em 680, no qual condenou o
monotelismo e anematizou todos aqueles que o apoiaram, tais como um papa e
bispos de Constantinopla. Seu filho e sucessor Justiniano II – que governou por
duas vezes, a primeira vez de 685-695 e a segunda vez de 705-711 – seguiu as
mesmas ações do pai relativas ao campo religioso condenando também o

135
Cf. MAIER, 1989.
136
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
137
Ibidem.
46

monoteísmo e convocando um concílio em 691-2, conhecido como Concílio


Quinissexto ou Concílio de Trullo realizado no palácio imperial de
Constantinopla, no qual foi tratado assuntos relativos ao cotidiano de moralidade e
administração eclesiástica. Apesar do tratado de trinta anos de paz com os árabes,
o seu reinado foi marcado também por lutas contra investidas dos mesmos na Ásia
Menor.138
Com a deposição de Justiniano II em 695, o trono imperial passou por
diversas usurpações de curta duração com a recuperação do trono por Justiniano
em 705. No entanto, em 711 Justiniano é deposto novamente e morto, o que
arrastou Bizâncio a um período de usurpações e anarquia – graves problemas
políticos e militares – sendo o último imperador, Teodósio III (711-717) que
abdicou após a tomada do poder por Leão, o Isáurico, comandante – strategos -
do thema da Anatólia, em 717, que acabava por derrotar mais uma investida árabe
em Constantinopla (717-8), e que como imperador trouxe novamente a
estabilidade do Império.139
Neste sentido, em fins do século VII, o território bizantino estava reduzido
à Ásia Menor, algumas regiões da Itália e a zona sobre os Bálcãs. Entretanto, é
preciso destacar que foi por obra das transformações políticas, administrativas e
militares ocorridas durante sétimo século e de sua grande capacidade de adaptação
que Bizâncio conseguiu sobreviver às adversidades do período e dar continuidade
à sua civilização, com o então novo imperador que acabava de subir ao trono 140, já
que “gracias a su firmeza frente a dos rebeliones internas y a su reorganización de
la administración imperial, León III conseguió asegurar la estabilidad dinástica
durante ochenta y cinco años”.141

1.6. A ascensão do imperador Leão III e a eclosão da iconoclastia

O século VIII se inicia com uma ampla mudança no que se refere à


estrutura imperial bizantina, que como vimos, passou por grandes dificuldades no
decorrer do século VII até a chegada do novo imperador, Leão III (717-741), o
Isaúrico, no exato ano de 717. O novo imperador foi o fundador da nova dinastia,

138
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
139
HALDON, In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008, pp. 249-263.
140
Cf. MAIER, 1989.
141
Idem, p. 84
47

a isaúrica, sendo conhecido pela transformação que fez em Bizâncio,


reorganizando-o, recuperando a sua defesa e a sua unidade. Além disso, foi o
responsável também pela instituição da política iconoclasta que abalou em todos
os âmbitos o Império e, também, pela criação de uma nova legislação intitulada
Ecloga (εκλογή).
A intervenção política do novo imperador Leão III enquanto os árabes
tentavam invadir Constantinopla foi decisiva para a salvação do Império.142 Após
a vitória sobre a investida árabe, a prioridade da então nova dinastia era o exército
para a manutenção imperial, o que fez com que o imperador Leão III desse
continuidade à divisão das províncias em themata governados pelos strategoi,
definida ainda no século VII, para maior facilidade do controle territorial e a
mobilização dos recursos do Império para o exército.143 Dessa forma, assim como
os antecessores de Leão III, este teve que enfrentar várias revoltas, sendo muitas
delas levantadas pelos comandantes dos themata, o que levou o imperador a
repensar o sistema redividindo os themata maiores, o que levaria à diminuição do
poder dos comandantes individuais, já que foi assim que ele chegou ao poder
quando ainda era o strategos do grande thema da Anatólia. 144
Além disso, a administração central do império e a ideologia imperial
baseavam-se também na continuação da divisão administrativa em departamentos
estabelecidos também no século VII, os chamados logothetai, que eram uma
espécie de ministérios localizados no grande Palácio, o que proporcionava, assim,
maior habilidade ao imperador para governar. Outra característica do reinado de
Leão foi a continuidade dada à tradição do imperador guerreiro, prática esta
oriunda do reinado de Heráclio, na qual o imperador levava o seu exército até o
campo de batalha, o que teria tornado o reinado da imperatriz Irene (780-797)
anômalo, já que a mesma enquanto mulher não podia fazer o mesmo. No que se
refere às relações diplomáticas, a dinastia isaúrica teria continuado a política de
impressionar tanto os seus súditos quanto os seus vizinhos com a superioridade e
prestígio.145
Parte também da reforma imperial de Leão III foi a publicação de um livro
de códigos jurídicos, a Ecloga que teria sido escrita e publicada por ele e seu filho

142
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
143
Cf. AUZÉPY, In: SHEPARD, 2008, pp. 251-291.
144
GREGORY, op. cit., pp. 202-216.
145
AUZÉPY, In: SHEPARD, op. cit., 2008, pp. 251-291.
48

Constantino V em 726 146, contendo, segundo o The Oxford Dictionary of


Byzantium, dezoito títulos de normas legais para a vida cotidiana, que marcava o
renascimento administrativo da justiça após mais de cem anos sem a produção de
uma obra do tipo, constituindo-se em um exemplar inigualável até o fim do século
IX147.
Leão III redigiu no prefácio da Ecloga que ao imperador foi confiado por
Deus a promoção da justiça em todo o mundo, sendo assim, a obra um manual
prático de normas para o uso cotidiano e não uma base teórica para a lei. A Ecloga
é ainda composto pela restrição do direito de divórcio e proporciona uma lista
composta por vários crimes sexuais, além de introduzir o sistema de punição por
mutilação.148 Os códigos da Ecloga foram produzidos e destinados à substituição
dos códigos elaborados pelo imperador Justiniano I (527-565).149
É durante também o reinado de Leão III que se deu o início do maior
acontecimento do século VIII em Bizâncio, que afetou toda a sua estrutura
imperial: a eclosão da política iconoclasta. Esta teve início em 726 com discursos
feitos pelo imperador Leão III contra as imagens a fim de conseguir o apoio da
população e com a ordem do mesmo para a retirada de uma imagem de Cristo da
Chalké, a porta de bronze do palácio imperial, que causou grande revolta tanto em
Constantinopla quanto no Ocidente, principalmente no papa, levando à cisão das
duas Igrejas.150
Logo após, como consequência dessa oposição, Leão III teria convocado
um concílio em 730, no qual proibiu os ícones e considerou a veneração dos
mesmos como ilegal. Essa atitude do imperador foi bastante questionada pelo
patriarca da época, Germano I (715-730) que foi deposto pelo imperador, e
substituído pelo patriarca Anastácio (730-754). Este último teria enviado uma
carta sinodal para o papa Gregório II (715-731), na qual mostra o seu
posicionamento a favor do iconoclasmo, o que levou o papa Gregório III (731-

146
A data referente à publicação do ecloga por Leão III ainda é motivo de dúvida entre os
pesquisadores do tema. Alguns pesquisadores como Georg Ostrogorsky (1984); Franz Maier
(1986) e Paul Lemerle (1991) defendem a data de 726, enquanto que Timothy Gregory (2005) e
Alexander P. Kazhdan (1991) afirmam que 726 seria uma data possível, porém, 741 a data mais
provável.
147
KAZHDAN, 1991.
148
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
149
Cf. OSTROGORSKY, 1984. pp. 157-216.
150
Ibidem.
49

741) a convocar um contra concílio em 731 em Roma, onde os adversários das


imagens foram excomungados.151
Desse modo, muitas são as causas apontadas para a eclosão da iconoclastia
entre os pesquisadores do período. No entanto, até os dias atuais nenhuma foi
devidamente comprovada, devido, como já mencionamos na introdução deste
trabalho, à destruição proposital de fontes e documentos. Sendo assim, muitas são
as teorias e perspectivas acerca do início da iconoclastia. Algumas se referem às
razões religiosas, outras às razões políticas, enquanto que outras a ambas.
À vista disso, o nosso objetivo aqui é discutir essas teorias e perspectivas,
no intuito de conhecer o que os pesquisadores do tema dizem a respeito do
mesmo. Para tanto, faremos o uso do ponto de vista de uma historiografia mais
tradicional a partir de autores que escreveram sobre o assunto dos anos 1960 até a
década de 1990 e de uma historiografia mais recente, na qual encontramos estudos
publicados a partir dos anos 2000. Dentro desses estudos é preciso salientar que
são poucos os trabalhos referentes ao período iconoclasta em si, já que esses
estudos abarcam questões mais gerais acerca de Bizâncio, tais como Cristianismo,
arte, entre outros. É importante também ressaltar que as principais obras sobre o
período foram produzidas por autores estrangeiros, já que o campo de história
medieval oriental é ainda pouco explorado por historiadores brasileiros.152
Sobre as causas para o início da iconoclastia no Império Bizantino no
século VIII, podemos perceber entre os autores analisados que alguns atribuem o
fenômeno a questões puramente religiosas, outros a questões políticas e alguns a
esses dois campos simultaneamente. Uma historiografia mais clássica abarca
importantes historiadores como Georg Ostrogorsky, Franz Maier, entre outros.
Em sua obra, Ostrogorsky153 vê como possibilidade para o início do
iconoclasmo as influências semitas que Leão III pode ter sofrido, já que as duas
religiões do livro como o cristianismo, ou seja, o islamismo e o judaísmo não
eram adeptas de representações. Assim, a iconoclastia seria uma forma de buscar
para a religião cristã uma “espiritualidade pura”. Porém, o autor não descarta as
motivações políticas afirmando que os imperadores iconoclastas viam na
crescente riqueza e prestígio dos monges um problema, o que levou a uma

151
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
152
BOY, 2007.
153
OSTROGORSKY, 1984, pp. 157-216.
50

violenta perseguição aos mesmos e à destruição dos monastérios por estes


abrigarem relíquias e imagens. Além disso, Ostrogorsky vê também a política
iconoclasta como uma forma de o imperador submeter a Igreja às suas vontades e
poder.
Assim como Ostrogorsky que via o movimento iconoclasta enquanto um
movimento antimonástico, temos também Charles Diehl 154, que afirma que havia
uma tentativa dos monges de libertar a Igreja do poder imperial; Steven
Runciman155 também afirma que a origem Síria do imperador Leão III teria o
influenciado, devido ao fato de que a população dessa região tinha uma verdadeira
aversão às imagens e seu culto; e Hilário Franco Júnior e Ruy de Oliveira Filho 156,
além de afirmar que os imperadores iconoclastas viam o setor monacal como seu
adversário, ressaltam também que o problema com os monges vinha do fato de
que os mosteiros tiravam jovens dos serviços prestados ao Estado, tais como
soldados, marinheiros, que acabavam por preferir a vida monástica a correr riscos
em batalhas em prol do Império.
Paul Lemerle157, assim como os autores citados acima, também chama a
atenção para fatores políticos, além daqueles religiosos. O autor afirma que,
dentre os fatores religiosos, estava a necessidade de a religião cristã se purificar
daquilo que os imperadores iconoclastas achavam que beirava o paganismo, ou
seja, as imagens e seu culto, já que as mesmas não se encontravam nas origens do
cristianismo. Já em relação às questões políticas, além de afirmar que a
iconoclastia teria começado por problemas referentes ao monacato bizantino,
Lemerle postula que havia também uma tentativa de evitar com que a população
anicônica do Império fosse seduzida pelo Islamismo.
Já Franz Maier 158 que, além de defender a ideia de que a política
iconoclasta teria começado em decorrência dos problemas relacionados aos
monges, defende também que o início do iconoclasmo estaria relacionado com a
questão da estabilidade do Império, uma vez que o apoio à nova política de Leão
III contra as imagens existia aonde havia uma ameaça de invasão territorial. O
autor cita a Grécia como exemplo, afirmando que a população da mesma não teria

154
DIEHL, 1961, pp. 82-101.
155
RUNCIMAN, 1978, pp. 93-110.
156
JUNIOR; e FILHO, 1985, pp. 12-31.
157
LEMERLE, 1991.
158
MAIER, 1986.
51

apoiado a política iconoclasta em decorrência do baixíssimo risco de invasão que


essa região tinha. Maier ainda afirma que a importância do iconoclasmo estava no
forte governo imperial, no controle imperial sobre a Igreja e na organização das
finanças, apesar dos territórios perdidos na segunda fase da querela das imagens.
Todos os autores analisados acima, que se referem a uma historiografia
mais clássica, atribuem o início da crise iconoclasta a questões tanto políticas
quanto religiosas. Sendo assim, temos ainda um importante autor, Alain
Besançon159 que, em sua obra, faz uma análise do estatuto da imagem não
somente no decorrer do iconoclasmo bizantino, mas também no decorrer da
História. No caso bizantino que está em questão, o autor atribui o início da
iconoclastia a motivos puramente religiosos, afirmando que os imperadores
iconoclastas se apoiaram na citação bíblica do Antigo Testamento160, que proíbe a
produção e uso de imagens, na busca da “tradição verdadeira”, ou seja, as origens
do cristianismo, quando não existiam representações. O autor afirma ainda que os
imperadores iconoclastas queriam acabar com a idolatria que era considerada uma
grande heresia.
Já em relação a uma historiografia mais recente podemos perceber que
alguns autores tem o pensamento um pouco parecido com o que aparece na
historiografia tradicional, enquanto que outros procuram novas perspectivas
acerca do iconoclasmo, no intuito de tentar compreender o que ainda não ficou
claro sobre o período, devido à falta de documentação esclarecedora. Marie-
France Auzépy161, por exemplo, não acredita nos fatores relacionados à influência
semita e muito menos em um aparente aniconismo da parte oriental do Império,
pois, para a autora, não há comprovação histórica para se acreditar em tais
motivos. Porém, assim como Maier, acredita que o iconoclasmo deve ser
entendido enquanto uma forma de luta para garantir a sobrevivência do Império,
uma vez que a iconoclastia entrou em vigor justamente numa época em que a
idolatria se espalhava em todo o Império, o que leva a acreditar que a escolha de
Leão III pela política iconoclasta que proibia a idolatria, induziria a Deus para a
concessão de vitórias contra o inimigo, o que acabou por acontecer. Isto é, o

159
BESANÇON, 1997.
160
“Não tenha outros deuses diante de mim. Não faça para você ídolos, nenhuma representação
daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra”. BÍBLIA
SAGRADA, 1990. ÊXODO 20:3, 4.
161
AUZÉPY, In: SHEPARD, 2008, pp. 251-291.
52

sucesso sobre as invasões árabes teria vindo justamente quando se proibiu o culto
das imagens, era como uma recompensa de Deus. Auzépy afirma que isso pode
ser visto também quando se restabeleceu o culto das imagens pela primeira vez
em 787, o que acabou por coincidir com diversas derrotas militares bizantinas, e
que o retorno da iconoclastia em 815 foi seguido de vitórias contra os búlgaros.
Para a autora, o movimento iconoclasta pode ser considerado como um
componente religioso para auxiliar na sobrevivência do Império Bizantino.
Em contraposição, Robin Cormack 162 defende a questão da idolatria como
fator para o início do iconoclasmo, mas chama a atenção para a questão da
ascensão do islamismo e das invasões árabes que não devem ser descartadas. Para
o autor, a eclosão da iconoclastia seria uma resposta às circunstâncias relativas à
situação política do Império no século VIII.
Timothy Gregory163 é outro autor que também não acredita na influência
islâmica e judaica como um dos motivos para a guerra contra as imagens e
tampouco acredita na visão da iconoclastia enquanto um movimento
antimonástico. O autor considera plausível a ideia de que o iconoclasmo era uma
tendência autocrática do imperador, considerado, como já dissemos antes, o
representante de Deus na terra, sendo assim, uma luta entre o imperador e o ícone,
por sentir que Deus estava punindo o Império, devido à idolatria que era uma
grave heresia. Assim, a falha de Bizâncio contra as invasões árabes foi uma
resposta de Deus aos idólatras. Porém, Gregory afirma que a explicação mais
convincente seria o fato do iconoclasmo ter iniciado no século VIII devido à
crença pessoal do imperador Leão III que sentia que tinha uma responsabilidade
pessoal para com Deus e para com os seus súditos em relação ao ensino da prática
religiosa correta, na qual o caráter autocrático de seu poder o fez impor suas
próprias visões em relação às práticas religiosas sobre todo o Império sem levar
em consideração o que desejava o público mais amplo que defendeu
energeticamente as imagens no decorrer do processo.
Renato Viana Boy164 defende também a questão monástica como razão
para a eclosão da iconolastia, pois salienta o alto teor de violência que era usado
pelos iconoclastas contra os iconófilos. No entanto, compartilha também da ideia

162
CORMACK; In: CORMACK; HALDON; JEFFREYS, 2008, pp. 750-757.
163
GREGORY, 2005, pp. 202-216.
164
BOY, 2007.
53

de Dagron, na qual este defende que a autoridade imperial se sobrepunha à Igreja


de Constantinopla, exercendo ao mesmo tempo o papel de imperador, mas
também uma espécie de “sacerdócio”, colocando-se, assim, acima do Patriarca.
Para Boy, o cerne da questão iconoclasta se encontra na questão do ícone de
Cristo, que leva tanto iconoclastas quanto iconófilos a se reapropriarem dos
debates acerca da dupla natureza de Cristo dos primeiros séculos, para
fundamentar os seus argumentos. Esse conceito de “apropriação” usado pelo autor
é embasado em Chartier, que defende que um determinado texto escrito em uma
época pode ser utilizado em um novo contexto, o que leva um indivíduo a fazer
novos usos dessas ideias.
Já Michael Angold 165 afirma que Leão III via o Império Bizantino como
uma comunidade reunida que seria uma nova Israel, que somente conseguiria se
equiparar à força adquirida pelo islamismo através de uma retomada das raízes
cristãs do Antigo Testamento. Para o autor, por trás da política iconoclasta é
possível perceber um reconhecimento referente ao grande sucesso islâmico. Além
disso, afirma que os imperadores não eram contra todos os monges, já que haviam
muitos mosteiros a favor da nova política contra as imagens, mas sim contra
aqueles que enganavam a população, ou seja, os charlatões. Para o autor:

(...) o iconoclasmo foi de imenso benefício para Bizâncio. Leão


III e Constantino V usaram-no como um encobrimento para a
restauração das bases da autoridade imperial, que ficara
comprometida pelo triunfo do islamismo. Isso permitiu a
Bizâncio escapar da anarquia política na qual caíra nas
primeiras décadas do século VIII. Os imperadores iconoclastas
deixaram uma autoridade imperial eficaz, que fundamentou as
realizações da dinastia macedônia em fins dos séculos IX e X.
Os iconoclasmo também desafiou a dominação monástica da
cultura, que fora uma característica do século VII. O nível de
educação elevou-se; o ensino secular foi cultivado por si
mesmo, e deu-se uma recuperação de muitos aspectos da cultura
clássica. Ele restaurou para a cultura bizantina um equilíbrio
que se vinha perdendo.166

No que se refere às ideias de John Haldon167, este assim como Angold,


afirma que há pouca evidência em relação a uma oposição monástica à

165
ANGOLD, 2002, pp. 68-86.
166
Idem, p. 86.
167
HALDON, 2010.
54

iconoclastia e que esse acontecimento teria sido levantado pela imperatriz Irene e
pelo patriarca Tarásio, pois é fato que poucos foram os monges como Teodoro
Estudita que se colocavam publicamente contra a nova política do Império e ainda
supõe que os historiadores estejam dando muita ou mais atenção e importância a
esses monges do que eles realmente poderiam ter. Afirma também que muitos
monastérios eram a favor da iconoclastia, assim como foram recompensados pelos
imperadores por isso. Para Haldon, o iconoclasmo é mais um fenômeno de cunho
imperial e de legitimidade deste poder, do que um fenômeno ligado à teologia e à
questão de dogma, que dava muito pouca importância à opinião popular.

E na ausência de qualquer evidência para corroborar a


declaração iconófila posterior sobre a natureza da oposição
popular à iconoclastia imperial, só podemos concluir que a
iconoclastia era, para a maioria das pessoas do mundo bizantino
nos séculos VIII e IX, uma irrelevante ou insignificante forma
de praticar sua fé. A este respeito, talvez possa ser útil comparar
o monotelismo oficial do reinado de Constâncio II. E isso
significa que precisamos reescrever radicalmente a história
social e política do império nos séculos VIII e IX. 168

Observamos, assim, que a grande maioria dos autores acima atribui como
causas para o início da iconoclastia questões relativas à religião e/ou política e que
essas causas variam de acordo com a abordagem de cada autor. Os autores mais
clássicos se dividem entre causas religiosas que dizem respeito à idolatria e causas
políticas referentes ao crescimento dos monastérios e sobrevivência do Império
frente às invasões árabes. Já os autores mais recentes procuram outras abordagens
para tentar compreender o fenômeno. Entretanto, é possível perceber que também
se dividem entre razões políticas e religiosas.
De nossa parte pensamos, assim como os pesquisadores Maier, Auzépy e
Cormack, que a política iconoclasta teve início devido à necessidade de defesa do
Império frente à expansão árabe, mas também como uma forma de legitimação do
poder imperial, como também defendeu Haldon, já que o mesmo também passava
por uma crise, como foi possível constatar no decorrer do século VII. Entendemos
que essa crise só se cessa com a chegada da dinastia isaúrica. Por isso a
necessidade de maior compreensão dos tratados de João Damasceno que se
inserem nesse período e a defesa que o monge faz não só das imagens, mas

168
HALDON, 2010, p. 11.
55

também do poder imperial enquanto o poder supremo do Império e crítica ao


imperador Leão III e sua política contrária aos valores defendidos pela Igreja.
Após a morte de Leão III, o seu filho Constantino V (741-775) é coroado
imperador dando continuidade à política iconoclasta de seu pai e também ao
sucesso militar frente às incursões árabes. No entanto, ambos os imperadores
tiveram que enfrentar uma forte oposição à sua política contra as imagens: o
monge João Damasceno. Este escreveu três tratados a favor das imagens com base
no conceito de Encarnação, que nos próximos capítulos serão detalhados.
Andrew Louth169 ressalta que não se têm provas concretas de que esses
tratados tenham chegado ao conhecimento do imperador. No entanto, logo após a
escrita do último tratado, que de acordo com o autor teria ocorrido por volta de
740, Constantino V fez com que a controvérsia iconoclasta deixasse de ser,
inicialmente, um debate acerca dos usos e princípios da veneração das imagens,
para tornar-se um problema teológico, levantando questões proeminentes dos
séculos IV e V que se referiam a posições consideradas pela Igreja como
heréticas, tal como ocorreu com as correntes ariana, monofisista e nestoriana. 170
Para tanto, o imperador convocou o concílio de 754, em Hieria, com a
participação de 338 bispos declarados como iconoclastas. Constantino V além de
excelente militar foi também um grande teólogo que teria redigido três escritos em
favor da iconoclastia, dos quais se preservaram apenas fragmentos mais
importantes em conjunto com as definições do concílio iconoclasta de 754, para a
refutação dos ideais iconoclastas no concílio que seria realizado em 787 para o
restabelecimento do culto das imagens. Assim, o concílio ocorreu a partir dos
escritos do imperador e a partir de questões cristológicas.171
No que foi conservado referente à ata172 do concílio é possível encontrar
uma referência aos imperadores Constantino V e Leão III, na qual ambos são
aclamados, descritos como “piedosos”, “amados” e “ortodoxos”, além de se
afirmar que estavam a trabalho da verdade, sendo mensageiros da doutrina da
salvação “na luta contra a volta da idolatria sob a aparência de cristianismo” (p.
1). É utilizada como argumentação contra as imagens religiosas as heresias já

169
LOUTH, 2002.
170
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
171
Cf. OSTROGORSKY, 1984, pp. 157-216.
172
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A. D. 754.
In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
56

condenadas (arianismo, monofisismo e nestorianismo) e seus precursores, com a


afirmação de que é impossível a separação ou mistura das duas naturezas de
Cristo, sendo assim impossível a representação do mesmo.
De acordo com o texto, os iconófilos ao se utilizarem da desculpa de que
se representa apenas a carne de Cristo nas imagens, estariam caindo na heresia
nestoriana, já que as duas naturezas de Cristo – a humana e a divina – são
inseparáveis, isto é, são uma só. Dessa forma,

o nome Cristo significa Deus e homem. Por isso, é uma imagem


de deus e do homem, e, consequentemente, ele [o pintor] tem
em sua mente tola, em sua representação da carne criada,
descrita a divindade que não pode ser representada, e, assim,
mistura o que não deve ser misturado. Assim, ele é o culpado de
uma dupla blasfêmia – a de fazer uma imagem da Trindade, e
de outra, de misturar a divindade e a humanidade. Eles
[iconófilos] caem na blasfêmia que veneram. [...] Eles caem no
abismo da impiedade, uma vez que eles separam a carne da
divindade, atribuem a ela substância própria, uma personalidade
própria que eles descrevem e, assim, introduzem uma quarta
pessoa na trindade. 173

Portanto, a única forma admissível para representar a humanidade de


Cristo para os iconoclastas seria a imagem do pão e do vinho na Santa Ceia, que
foram escolhidos para a representação da Encarnação.
No que se refere à origem da argumentação iconoclasta, nos foi possível
observar que ela foi pautada nas Santas Escrituras, em escritos patrísticos,
culminando no combate às imagens de Cristo, da Virgem e dos Santos e da
veneração das mesmas. Como já observamos, o mesmo foi feito pelo monge João
Damasceno, entretanto, o seu objetivo foi o contrário, a defesa das imagens.
Constata-se ainda na ata do concílio iconoclasta de 754, além da ordem de
não fabricação de imagens e ensinamento de qualquer outra fé, uma ordem de não
vandalismo contra os objetos eclesiásticos, uma lista de definições do concílio que

173
“The name Christ signifies God and man. Consequently it is an image of God and man, and
consequently he has in his foolish mind, in his representation of the created flesh, depicted the
Godhead which cannot be represented, and thus mingled what should not be mingled. Thus he is
guilty of a double blasphemy--the one in making an image of the Godhead, and the other by
mingling the Godhead and manhood. Those fall into the same blasphemy who venerate. [...]They
fall into the abyss of impiety, since they separate the flesh from the Godhead, ascribe to it a
subsistence of its own, a personality of its own, which they depict, and thus introduce a fourth
person into the Trinity.” In: Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in
Constantinople, A. D. 754. In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
57

devem ser seguidas a partir de então e uma lista de anátemas, na qual se destaca os
nomes do patriarca Germano – deposto por Leão III – e do monge João
Damasceno sob o seu nome árabe, Mansur.
Como consequência desse concílio, apesar da ordem para não fabricar
imagens, há também pouca evidência real para qualquer ação por parte de
Constantino V para a destruição das mesmas, já que, como citado, também proibia
qualquer ato de vandalismo contra os ícones. Estaria, assim, por trás dessas
histórias de destruição das imagens, uma campanha de depreciação do então
imperador. Dessa forma, a única evidência que se tem acerca das ações
iconoclastas, seria a substituição de uma imagem da Virgem e do menino Jesus,
por uma cruz, localizada em uma igreja monástica, como podemos ver abaixo 174:

174
Cf. BRUBAKER, 2010. pp. 323-337.
58

FIG. 1. Mosaico da abside: Igreja do Dormitio, Iznik. Mãe de Deus


em pé com o Menino Jesus, em geral referida como Hodegetria.
Tornou-se a iconografia padrão para a abside após a derrota do
iconoclasmo. Esta figura fez parte da restauração de ícones;
podem-se apenas perceber os traços de uma cruz iconoclasta no
fundo do mosaico. (ANGOLD, 2002)

Constantino V tornou-se o foco de ataques iconófilos devido às suas ações


bem sucedidas enquanto imperador, o que teria levado os iconófilos a iniciar essa
campanha de difamação contra ele e seu pai Leão III, – precursor da política
iconoclasta – que, como consequência, levou ao erro muitos pesquisadores do
59

período que até há pouco tempo deram continuidade a essa caracterização de


Constantino como destruidor das imagens e perseguidor dos iconófilos.175
Após o concílio de 754 com a intensificação da política iconoclasta, houve
uma queda na popularidade do imperador Constantino V, que ainda teve que
enfrentar um novo inimigo exterior. Apesar de suas vitórias contra os árabes, o
problema agora se voltava para o combate aos búlgaros que durou até o fim do
reinado de Constantino em 775, quando este foi morto em uma dessas campanhas.
Seu sucessor foi seu filho Leão IV (775-780).176
Pouco se conhece sobre o reinado de Leão IV, porém, sabe-se que ele
liderou uma campanha contra os árabes e os búlgaros, falecendo em 780 enquanto
liderava, pessoalmente, seu exército contra os búlgaros. Ele deu continuidade à
política iconoclasta de seu pai, no entanto, de forma mais fraca, por influência de
sua esposa Irene de Atenas, iconófila. 177
A morte prematura de Leão IV levou o seu filho de apenas dez anos ao
poder, o que fez com que sua mãe Irene se tornasse imperatriz regente,
compartilhando o trono com o seu filho, Constantino VI.178 Segundo Gregory,
apesar da imperatriz Irene não possuir nenhuma experiência política ou militar,
ela se interessou pelos assuntos e foi a única mulher bizantina a assumir o título
masculino de imperador, basileus.179
Houve uma tentativa de golpe por parte do césar Nicéforo que levou a uma
forte reação da imperatriz Irene para se manter no poder. No ano de 784 a
imperatriz pôs a público os planos de seu governo que incluía o restabelecimento
do culto das imagens, conseguindo a renúncia do patriarca Paulo IV (780-784), e
a reunião de uma eleição popular, na qual fora eleito o patriarca Tarásio (784-
806), que juntamente com Irene deu início aos preparativos para a convocação de
um novo concílio, o qual tinha a finalidade de revogar as decisões de 754 e
restabelecer as imagens religiosas.180
Em 786 há uma tentativa por parte da imperatriz Irene de convocar o
concílio em Constantinopla, no entanto, foi impedida pelo exército e por bispos
favoráveis à iconoclastia. Não houve desânimo por parte da imperatriz que pouco

175
Cf. BRUBAKER, In: JAMES, 2010, pp. 323-337.
176
Cf. OSTROGORSKY, 1984, pp. 157-216.
177
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
178
OSTROGORSKY, op. cit., pp. 157-216.
179
GREGORY, op. cit., pp. 202-216.
180
OSTROGORSKY, op. cit., pp. 157-216.
60

tempo depois enganou o exército, mandando-o para uma suposta expedição contra
os árabes na Ásia Menor e, em 787, conseguiu junto ao patriarca Tarásio a
realização do concílio em Nicéia, local cheio de simbolismo para toda a
cristandade. Neste concílio, foram reunidos 365 bispos e 132 monges. 181
No decreto182 é possível encontrar o uso de das Sagradas Escrituras e das
tradições patrísticas, além do argumento da tradição e da verdade como
fundamentação para o restabelecimento do culto das imagens, argumentação esta
também utilizada pelos iconoclastas, o que nos mostra como um mesmo
argumento podia ser utilizado por grupos antagônicos de acordo com os seus
interesses. Há também ordem de anátema a Ário e a todos os precursores de
correntes heréticas consideradas contrárias à tradição eclesiástica, além da
afirmação de que todos aqueles que rejeitassem as tradições da Igreja seriam
excomungados sendo parte desta última ou não.

Nós anematizamos a novidade introduzida dos maldizentes dos


cristãos. Saudamos as imagens veneráveis. Nós colocamos sob
anátema aqueles que não fazem isso. Anátema a eles que têm a
pretensão de aplicar às imagens veneráveis as coisas ditas na
Sagrada Escritura sobre ídolos. Anátema para aqueles que não
saudarem as imagens santas e veneráveis. Anátema para aqueles
que chamam as imagens sagradas de ídolos. Anátema para
aqueles que dizem que os cristãos recorrem às imagens sagradas
como deuses. Anátema para aqueles que dizem que qualquer
outro nos livrou dos ídolos, exceto Cristo, nosso Deus. Anátema
a quem se atreve a dizer que a qualquer momento a Igreja
Católica recebeu ídolos. 183

Como argumento há também a utilização do conceito de Encarnação, com


a afirmativa de que Cristo tem duas naturezas, sendo um perfeito Deus e um
perfeito homem. Mantêm inalteradas todas as tradições religiosas transmitidas,
sejam elas de forma escrita ou não, sendo uma delas as representações pictóricas.

181
AUZÉPY, In: SHEPARD, 2008, pp. 251-291.
182
Decree of Secound Concil of Nicea, 787. The decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the
Second of Nicea. In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
183
“We anathematize the introduced novelty of the revilers of Christians. We salute the venerable
images. We place under anathema those who do not do this. Anathema to them who presume to
apply to the venerable images the things said in Holy Scripture about. idols. Anathema to those
who do not salute the holy and venerable images. Anathema to those who call the sacred images
idols. Anathema to those who say that Christians resort to the sacred images as to gods. Anathema
to those who say that any other delivered us from idols except Christ our God. Anathema to those
who dare to say that at any time the Catholic Church received idols.” In: Decree of Secound Concil
of Nicea, 787. The decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea. In:
Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
61

É possível observar ainda a utilização dos conceitos de honra e memória para a


autenticidade do uso das imagens e a ideia de protótipo, de acordo com a qual a
veneração dada à representação é a mesma dada àquele que é representado.
Percebe-se aqui a mesma argumentação utilizada pelo monge João Damasceno em
seus três tratados em defesa das imagens 184, o que conforme Clara Maria
Suspichiatti Bacarreza185, possibilita afirmar que os textos conciliares foram
baseados nas obras do monge, apesar do mesmo não ser citado na ata do concílio,
mostrando, assim, a importância de Damasceno não somente na defesa das
imagens, mas também no que propiciou o restabelecimento das mesmas nesse ano
de 787.
Os problemas em Bizâncio haviam se resolvido, mas restavam os
problemas externos – árabes e búlgaros – que se intensificaram nos últimos anos,
após o grande poderio ostentando pelo imperador Constantino V décadas antes.
Existia também o problema carolíngio, já que Carlos Magno (742-814) havia
encerrado a autoridade bizantina em Roma e, esta última, exigia que todas as
disposições religiosas e políticas eclesiásticas anteriores à inserção da política
iconoclasta fossem restituídas, o que não chegou nem mesmo a ser abordado no
concílio de Nicéia II.186
Outro problema também se referia à coroação de Carlos Magno em 800, o
que significou grandes prejuízos aos interesses de Bizâncio, enquanto único
Império herdeiro do Império Romano, considerando-a como usurpação. Para a
realização da coroação era necessário o reconhecimento bizantino e, por outro
lado, Carlos Magno também não reconhecia o trono de Constantinopla, já que o
mesmo estava ocupado por uma mulher. Dessa forma, para acalmar os ânimos,
em 802 foram enviados a Constantinopla emissários de Carlos Magno para
resolver essa situação através de uma proposta de matrimônio entre o imperador
do Ocidente e Irene, para que, novamente, pudessem unir o Oriente e o
Ocidente.187 Entretanto, antes que a situação pudesse se resolver, houve uma
conspiração chefiada por Nicéforo (802-811) que destronou Irene e adiou a
resolução dos problemas188.

184
Cf. LOUTH, 2003.
185
BACARREZA, 2010.
186
Cf. OSTROGORSKY, 1984, pp. 157-216.
187
Ibidem.
188
Cf. GREGORY, 2005, pp. 202-216.
62

O reinado de Nicéforo pouco durou, mas ele conseguiu colocar em ordem


a situação política e econômica do Império, além de dar continuidade ao culto das
imagens. Porém, em 811 sucumbiu frente ao exército de Krum, sendo substituído
pelo imperador Miguel I (811-813) após um golpe. No entanto, da mesma forma
pouco se manteve no poder devido à derrota sofrida também frente ao Krum, o
que foi decisivo para que fosse destronado e substituído por Leão V, o Armênio
(813-820).189
Com a ascensão de Leão V temos o ressurgimento da política iconoclasta e
alguns anos de paz em relação a problemas exteriores para o Império. Em 815 o
então imperador convocou um sínodo em Santa Sofia, no qual reafirmou todas as
disposições do concílio de Hieria em 754 e obrigou o patriarca Nicéforo (806-
815) à renúncia, além de ordenar também o exílio de bispos e monges contrários à
iconoclastia, entre eles o monge Teodoro Estudita que, como Damasceno na
primeira fase, foi um grande opositor do iconoclasmo na segunda. 190 Após o seu
reinado que terminou com a sua morte em 820, o trono bizantino foi ocupado por
Michel II (820-829), que marca também o retorno das investidas árabes e a
consequente perda de territórios. Com sua morte, foi sucedido por seu filho
Teófilo (829-842).
O então imperador era considerado um exaltado iconoclasta.191 No
entanto, após sua morte em 842, o movimento iconoclasta sucumbiu. Este
processo teve término com a ocupação do trono pela sua esposa, a então
imperatriz regente de seu filho, Teodora, cujo principal objetivo foi o retorno da
veneração dos ícones192 e, que juntamente ao patriarca Metódio I (843-847),
reuniu um concílio no qual restabeleceu todas as decisões tomadas no concílio de
Nicéia de 787, entre elas, o restabelecimento do culto das imagens no evento que
ficou conhecido como o Triunfo da Ortodoxia no dia 11 de março de 843.

189
OSTROGORSKY, op. cit., pp. 157-216.
190
GREGORY, 2005, op. cit., pp. 202-216.
191
OSTROGORSKY, op. cit., pp. 157-216.
192
GREGORY, op. cit., 2005.
63

FIG. 2: Ícone com o Triunfo da Ortodoxia. Constantinopla


(?), segunda metade do século XIV. Têmpera de ovo sobre
madeira. The Trustees of the British Museum. (CORMACK,
Robin; VASSILAKI, Maria, 2008. p. 109) A imperatriz
Teodora e seu filho Miguel III estão de pé ao lado de um
ícone da Virgem Hodegetria, do outro lado encontra-se o
patriarca Methodios. As outras figuras representam heróis do
conflito contra o iconoclasmo. (The Oxford Dictionary of
Byzantium, verbete “Triumph of Orthodoxy”, vol. 3, p. 2122-
2123)

Neste sentido, finalizamos aqui a parte dedicada à controvérsia iconoclasta


e seus antecedentes, já que a mesma fora produzida com o intuito de orientar o
leitor para o estudo e análise das três obras de João Damasceno em defesa das
imagens que estão inseridas dentro do período iconoclasta bizantino. A partir de
então, iremos estudar nos dois próximos capítulos de forma minuciosa essas
obras, no intuito de provar nossa hipótese de que os textos de Damasceno são,
64

além de um tratado teológico em defesa das imagens sacras, um tratado em defesa


da autoridade política bizantina.
65

CAPÍTULO 2

SÃO JOÃO DAMASCENO E OS TRÊS TRATADOS EM


DEFESA DAS IMAGENS NO PRIMEIRO PERÍODO
ICONOCLASTA

Trataremos neste capítulo acerca da vida de São João Damasceno com


uma breve biografia sobre o mesmo, destacando quais foram as suas principais
obras e a tradição na qual estava inserido. Igualmente trataremos, de forma
sistemática, os seus três tratados em defesa das imagens religiosas escritos no
decorrer da iconoclastia.
Os três tratados serão analisados aqui de forma separada, com destaque
para os principais conceitos trabalhados pelo monge em cada um, para que
possamos, assim, compreender as suas ideias fundamentais para a defesa das
imagens.

2.1. São João Damasceno: breve biografia

Damasceno nasceu em Damasco em 675, tendo falecido por volta 749, o


que não é dado como certo. Fazia parte de uma tradicional e influente família
arábe-cristã, a Mansur, que também participava da administração do califado 193.
Teve uma educação tradicionalmente cristã e tornou-se monge no mosteiro de São
Sabas, sendo considerado um grande defensor dos dogmas cristãos. Suas
principais obras são a Exposição da Fé Ortodoxa e os três tratados em defesa das
imagens escritos durante a querela das imagens. Nesses escritos tratou de questões
referentes a Deus, à criação, à cristologia e à Encarnação.
Andrew Louth194 afirma que referências a Damasceno podem ser
encontradas na ata do concílio iconoclasta de 754195 e na obra do cronista
Teófanes, que se refere a ele como monge e sacerdote. Para Louth, as obras que
podem ser datadas com certa confiança são os três tratados em defesa das imagens

193
KAZHDAN, 1991, pp. 1063-1064.
194
LOUTH, 2002.
195
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A. D. 754.
In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
66

que pertencem a três categorias: exposição e defesa da Ortodoxia, sermões e


poesia litúrgica. Damasceno estaria, assim, comprometido com o refinamento e a
definição da tradição cristã ortodoxa.
Em relação aos seus escritos contra aos ideais iconoclastas, Andrew Louth
afirma que Damasceno se encontrava em um mosteiro na Palestina - província
esta que desde o século VII, já não pertencia mais ao Império Bizantino, pois fora
conquistada pelos árabes - de onde teria escrito os seus tratados, o que coloca em
dúvida se os seus escritos teriam ou não chegado a Bizâncio e, principalmente, ao
conhecimento do imperador. Por outro lado, é possível acreditar que sim, já que se
encontra citado na ata do concílio de Hieria de 754, convocado pelo imperador
Constantino V contra a veneração das imagens, numa lista de anátemas contra
importantes nomes da vida eclesiástica, como o Patriarca Germano e o arcebispo
de Chipre. No entanto, Louth salienta que Damasceno foi o único anematizado em
quatro linhas e que se dirigiram a ele não pelo seu nome monástico, mas sim pelo
seu nome árabe, Mansur.
Em corrente oposta a essa afirmação de que Damasceno teria sido
anematizado com seu nome pré-monástico, Sean W. Anthony196 argumenta que
Damasceno teria sido anematizado com seu nome de família, já que não se
chamava Mansur. O autor faz essa afirmação a partir da análise da vida de três
ancestrais de João Damasceno que viveram no século VII na Síria e que para ele
merecem atenção especial, isto é, Mansur, o Velho, Sarjun ibn Mansur al-Rumi
al-Nasrani e Mansur ibn Sarjun, ou Mansur o Jovem. Anthony defende que a
biografia já existente sobre Damasceno apresenta problemas de interpretação
histórica, vindo à tona novas descobertas através de pesquisas recentes, apesar de
fazer elogios a alguns autores como Andrew Louth e Vassa Kontouma.
Desse modo, são encontradas em fontes árabe-islâmicas numerosas
referências à família de João Damasceno, a Mansur. Por isso, os pesquisadores
modernos frequentemente acabam por identificar Damasceno como um escriba de
língua grega mencionado nesses documentos sob o nome de Mansur. Entretanto,
essa informação pode ser equivocada, uma vez que essas fontes não fazem
menção a Damasceno e há evidências de que este deva ser identificado como
Mansur, o Filho e não como o próprio escriba.197

196
ANTHONY, 2015, pp. 607-627.
197
Ibidem.
67

É possível encontrar, assim, informações dos três parentes de Damasceno


citados acima, que foram retiradas dessas fontes. O primeiro parente citado é
identificado como Mansur, o Velho, que de acordo com dois relatórios
preservados pelo historiador Melquita e patriarca de Alexandria, Eutiques (933-
940), viveu e trabalhou em Damasco como cobrador oficial de impostos para o
então imperador Maurício (582-602). Este Mansur teria deixado de trabalhar para
os bizantinos por um tempo no qual Damasco foi ocupado pelos árabes entre 612
a 630, com o retorno ao seu posto como cobrador para Bizâncio sob o reinado de
Heráclio de 630 até 635 com a nova conquista árabe. No entanto, a figura do
Mansur, o Velho continua sendo sombria, pois a tradição historiográfica
mulçumana o desconhece, sendo que somente Eutiques lhe deu um lugar e
notoriedade.198
Outro parente de Damasceno citado é o de nome Sarjun ibn Mansur al-
Rumi al-Nasran que seria filho de Mansur, o Velho e ao contrário de seu pai
aparece com frequência nas fontes mulçumanas como parte do alto escalão da
administração política do Estado Omíada. Serviu este último da dinastia do
califado de Muawiya ibn Abi Sufyan (661-680) até o califado de Abdal-Malik ibn
Marwan (685-705). Os cronistas descrevem Sarjun ibn Mansur al-Rumi al-Nasran
como secretário dos califas, como gerente de departamento fiscal e como gerente
da tesouraria de todos os assuntos do califado.199
O terceiro parente é o chamado Mansur, o Jovem, que sucedeu o pai
enquanto secretário administrativo e é frequentemente confundido pelos
historiadores modernos com Mansur, o Velho e com o próprio Damasceno. Essa
confusão teria sido causada por uma equívoca interpretação do grego de uma
menção de João Damasceno no concílio de 754, no qual o mesmo teria sido
anematizado com o nome de Mansur, que seria o seu nome pré-monástico.200
Porém, existem várias razões para que se seja cauteloso quanto a essa
afirmação, como, por exemplo, o fato de Teófanes, o Confessor (817-818) ter
citado o nome Manzeros que teria sido dado a Damasceno pelo imperador
Constantino V (741-775) ao invés de seu nome ancestral Mansur (Mansour). No
entanto, essa afirmação é problemática, pois o texto do concílio que sobreviveu

198
ANTHONY, 2015, pp. 607–627.
199
Ibidem.
200
Ibidem.
68

traz o nome de Mansour ao invés de Manzeros como foi afirmado por Teófanes.
Com isso, essa problemática traz duas descobertas importantes, sendo a primeira
que Teófanes afirmou que o sínodo teria anematizado Damasceno sob o seu nome
ancestral, Mansur, ou seja, indica ser Mansur um nome de família ou que
Damasceno o teria herdado de seu avô. Assim, seria correta a afirmativa de
Teófanes de que o nome ancestral de Damasceno teria sido facilmente corruptível
em Manzeros, já que o termo Manzer seria um termo aramaico que significa
“bastardo”, sendo muito usado como forma de reprovação. Já a segunda
descoberta seria a de que se se aceita o nome Mansour tanto como ancestral de
Damasceno quanto como nome de seu pai, há uma explicação para a forma como
a qual o sínodo de 754 se utilizou do nome Mansur para se referir a Damasceno e
para denegri-lo.201
Assim, o que se tem de certo sobre João Damasceno são fontes que datam
do século VIII que o associam à profissão de seus antepassados e fontes
hagiográficas que afirmam com frequência que Mansur era na verdade pai de
Damasceno e outras mais antigas que afirmam que Mansur era somente o seu
nome ancestral. O seu nome pré-monástico como é tanto explorado, seria Cyrene
bar Mansur, que pode ser encontrado no Ethicon do polímata Jacobite Gregory
Barhebraeus (1226-1286).202
Conclui-se, dessa forma, que o nome pré-monástico de João Damasceno
era provavelmente Cyrene, filho de Mansur, o Jovem, e ele certamente não teria
sido registrado sob o nome de Mansur como se imaginava ao analisar as atas do
concílio iconoclasta de 754, que o anematizou. 203
Sobre Damasceno e seus escritos é preciso ressaltar ainda, segundo Louth,
que ele não foi um gênio isolado, mas sim parte de um grupo de colaboradores e
suas obras foram escritas para um público imediato sendo rapidamente
distribuídas. O autor afirma também que enquanto membro de uma comunidade
monástica na Palestina, Damasceno teria escrito principalmente para os seus
companheiros.

201
ANTHONY, 2015, pp. 607–627.
202
Ibidem.
203
Ibidem.
69

Além disso, Clara María Suspichiatti Bacarreza204 destaca o fato de


Damasceno ser mencionado nas atas do concílio no passado, o que reforça a ideia
de sua morte por volta de 749, uma vez que o concílio ocorreu em 754. A autora
ainda defende a importância do monge não só na refutação dos ideais contrários às
imagens como também na defesa e no primeiro restabelecimento no culto das
imagens em 787. De acordo com Bacarreza, apesar de não ser citado nos textos
conciliares, é possível perceber a utilização da argumentação de Damasceno na
defesa das imagens na ata de 787 205. A autora, assim como Louth, ressalta que
Damasceno só pôde escrever seus tratados por se encontrar fora dos domínios
bizantinos.

2.2. Principais obras e tradição

Para que possamos compreender os ideais de João Damasceno para a


defesa das imagens no primeiro período iconoclasta bizantino é preciso destacar
quais foram as suas principais obras e a qual tradição fazia parte. Isabel Maria L.
C. A. Cardoso206 afirma que Damasceno escreveu somente em grego, devido ao
fato de que o grego era a língua litúrgica e utilizada para o ensino dos membros da
Igreja. Para a autora sua principal obra é a intitulada Fonte do conhecimento
(πηρή γνώσεως), composta por outros três textos, sendo estes a chamada “(...)
Dialectica, que é uma espécie de propedêutica filosófica de tipo aristotélico; o
livro De haeresibus, que apresenta cem heresias; e De Orthodoxa fidei, onde
procura recapitular a doutrina eclesiástica (...)”.207
No que se refere à tradição seguida por Damasceno, de acordo com
Andrew Louth208, há duas formas pelas quais podemos entender Damasceno e a
sua relação com a tradição, isto é, analisá-la como aquela que moldou a
experiência de Damasceno no contexto histórico e político em que ele nasceu,
cresceu e exerceu o cargo de funcionário público em Damasco, e a vida que ele
teve enquanto monge e a tradição teológica seguida por ele.

204
BACARREZA, 2010.
205
Decree of Secound Concil of Nicea, 787. The decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the
Second of Nicea. In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu.
206
CARDOSO, 2013.
207
Ibidem. p. 76.
208
LOUTH, 2002.
70

Assim, o autor afirma que João Damasceno deu continuidade a formas de


pensamentos teológicos pré-determinados e, ciente disso, não teria feito para si
nenhuma reivindicação sobre qualquer originalidade teológica. Fez parte de um
período da tradição teológica bizantina, na qual a inovação era rechaçada e a
tradição exaltada por passar uma visão de autoridade. Dessa forma, Louth afirma
que as ideias genuínas de um determinado pensador eram somente expressas sob a
forma de reflexões ou comentários e que Damasceno, como o gênio que era para a
seleção, sabia encontrar nos textos patrísticos as respostas para todas as questões
teológicas e reproduzia o que de melhor encontrava.
Louth cita ainda a edição crítica sobre as obras de João Damasceno escrita
por Dom Bonifatius Kottes e dividida em cinco volumes, nos quais trata, no
primeiro, sobre os tratados de lógica e a dialética; no segundo sobre a Fé
Ortodoxa; no terceiro, os escritos em defesa das imagens contra os iconoclastas;
no quarto, sobre polêmicas refrentes às heresias; e, no quinto, sobre as homílias de
Damasceno. Ao produzir esta edição o autor afirma que Kottes percebeu o quanto
Damasceno estava equiparado com a tradição cristã e que ele foi reconhecido
como um pregador. Afirma ainda que não há uma coleção dos sermões ou poesias
de Damasceno, sendo que seus versos sobreviveram espalhados em manuscritos
litúrgicos, sendo a edição de Kottes limitada aos seus tratados teológicos e alguns
sermões.
O novo desafio para João Damasceno com a iconoclastia, segundo Louth,
teria sido a escrita dos três tratados em defesa das imagens com o excelente uso da
retórica, pautada no apelo à tradição e acúmulo de textos patrísticos que apoiavam
a sua posição. Mas isso, veremos na medida em que analisarmos de forma
minuciosa os seus três tratados.

2.3. Os três tratados em defesa das imagens divinas

Os tratados foram escritos em épocas diferentes, sendo o primeiro escrito


posteriormente a 720, logo após o início da iconoclastia, mas antes da deposição
do patriarca Germano. O segundo teria sido escrito pouco depois de 730, após a
deposição de Germano, devido, de acordo com Louth, ao tom indignado presente
em sua escrita. E o terceiro tratado parece ter sido produzido por volta de 740.
71

Percebe-se, assim, que Damasceno teria produzido seus tratados de acordo com as
ações do imperador contra as imagens e contra a quem as defendia.
Sobre a tradução dos tratados, Louth afirma que os dois mais utilizados
pelos pesquisadores do período, ou seja, os traduzidos na língua inglesa por Mary
H. e Tomas Baker (1898) e David Anderson (1980) estão incompletos e omitem
grande parte do terceiro tratado, já que não se encontram nessas traduções de fato
os três tratados, mas sim três versões da mesma defesa dos ícones contra a
iconoclastia. Por isso, utilizamos neste trabalho a versão inglesa do próprio
Andrew Louth (2003) que consideramos mais completa e compatível em relação
ao original grego.
De forma geral, encontramos nesses tratados a forma pela qual Damasceno
procura explicar as razões pelas quais as imagens devem ser veneradas pelos
cristãos, utilizando-se dos conceitos de Encarnação, Adoração, Tradição,
Verdade, Idolatria, Arquétipo/Protótipo209, Memória, Honra, Imitação e
Salvação. Posteriormente, faremos uma análise de cada tratado de forma separada,
com o intuito de esclarecer esses conceitos utilizados por Damasceno.

2.3.1. O Primeiro Tratado

No primeiro tratado para a defesa das imagens divinas, João Damasceno


afirma que irá discorrer sobre a verdade (αλήθεια), oriunda das Sagradas
Escrituras em prol das imagens (εικόνeς), contra aqueles que são contrários às
mesmas por não conhecerem verdadeiramente as Escrituras. Assim, o apelo à
verdade (αλήθεια) seria a forma utilizada para conseguir a sua salvação
(σωτηρία). No decorrer do texto, Damasceno vai aos poucos explicando o intuito
desse primeiro tratado, no qual defende as imagens através das categorias de
tradição (παράδοσις) oral e escrita, encarnação (ενσάρκωση), idolatria
(ειδωλολατρία), adoração (λατρεία), veneração (προσκύνεσις), honra (τιμή),
memória (μνήμη), imitação (απομίμησις) e arquétipo/protótipo (πρωτότυπον)
como argumentação.

209
Inserimos aqui tanto o termo arquétipo quanto o termo protótipo, pois na versão inglesa dos
tratados traduzida por Andrew Louth, o autor utiliza o primeiro termo, enquanto que na versão
grega Damasceno utiliza o segundo termo, por isso a utilização da palavra protótipo em grego
entre parênteses, já que este é o termo original utilizado pelo monge.
72

Damasceno inicia o primeiro tratado declarando que não pode se manter


em silêncio frente ao medo, apesar de sua indignidade diante de Deus, sendo
necessário falar sob pena de que a verdade (αλήθεια) se perca, em nome da
tradição (παράδοσις) da Igreja:

É necessário para nós, sempre conscientes de nossa


indignidade, manter o silêncio e confessar os nossos pecados
diante de Deus, mas uma vez que todas as coisas são boas ao
seu tempo, e eu vejo a Igreja, a qual Deus edificou sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas, Cristo, seu Filho,
sendo a pedra angular, golpeado como pelo mar agitado
inundando onda sob onda, sacudido e incomodado pelo
doloroso ataque de espíritos maus, e a túnica de Cristo, tecida
de cima a baixo, rasgada, que os filhos de homens ímpios têm
arrogantemente perseguido para dividir, e seu corpo cortado em
pedaços, que é o povo de Deus e a tradição da igreja que tem
dominado desde o início, eu não acredito nesse direito de
manter o silêncio, um frear a língua, prestando atenção ao
julgamento ameaçador que diz: "Se retroceder, minha alma não
se agradará dele ," (Hb 10.38.) e "Se vês que vem a espada e Tu
não avisa teu irmão, vou exigir o sangue da tua mão. " (cf. Ez
33,8). Compelido a falar por um medo que não pode ser
suportado, eu me apresentei, não colocando a majestade dos reis
antes da verdade, mas ouvindo Davi, o ancestral divino, dizer,
"Eu falei diante de reis e não me envergonhei", instigado mais
e mais a falar. Porque a palavra de um rei exerce terror sobre
seus súditos. Porque há alguns que negligenciariam totalmente
as constituições reais estabelecidas por superiores, que sabem
que o rei reina sobre a terra, e assim, suas leis têm força. (I,
1)210

Observamos no trecho acima, como Damasceno se utiliza das Escrituras como


argumentação, citando Hebreus e Efésios, além de afirmar que é preciso
210
DAMASCENO, João. }Ecr%hn méen \hm%av \ae\i t%hv \eant%wn sunaivqanoméenouv \anaxtóhtov,
sig\hn !agein, kai qe%y téhn t%wn éhmarthméenwn |hm\in pros\jgein \exomológhsin. \all |epei\o|h
p\anta kal\a \en kair%%yn, |or%w dée t\hn }Ekklhsian, !hn |o Qe\ov \ykod\omhten \ep\i t%y Qemelíy
t%wn \apost\olwn ka\i profht%wn, !ontov |akrogwnia\iou Cristo%u to%u G\io%u a\uto%u,
Balloménhn %wsper Qalatt\iy kl\umasin korufouméeny, \ex \epacqest\athv for%av t%wn
ponr%wn kukwméenhn te tarattoméenhn, ka\i t\on cit%wna Cristo%u t|on %anwqen !ufant\on,
diairo\umenon, dn \ased%wn %oiele\in h\uqad\isanto pa\idev, ka\i t\o s%wma a\uto%%u eiv diaf|orouv
katatom\av temn|omenon, %o \estin to%u Qeo%u logov, kai |h t%hv }Ekkl\|hs\iav !anwqen
kekrathu%ia par\adotiv, o\uk e%ulogon |hghs|iav sig%çn, kai desm|on \epiqe%inai t%h gl\wsoh, t\hn
\hpeilmeghn \ap\ofapn |ufor\wmenov, t\hn f|askouskn. \E\an |uposte\ilh, o|uk e\udoke%i \en so\i |h
yuc\h mou. \K\ai !i%ohv t\hn |romfa\ian \ercom\ehn, kai m\h \avagg\ilhv t%y \adelf%y sou, \ek so%u
\ekzht\hsw t\o a\ima a%uto%u. J\od§ to\inun \afor\ht§ ball\omenov, \ep\i t\o lèegein \eléhluqa, o%u
basil\ewn %uyov pr\o t\hv \alhqe\iav tiqe\iv. \Elzaloun g\ar, %hkousa to%u qeop\atopov
léegontov Dadid, \enant\ion basil\ewn, kai o\uk \hscun\omhn. \allkm%allon to\uty pr\ov t\o
léegein nutt\omenov. Dei\on g\ar basil\ewv léogov \upagwg\hn t%wn \uphk\own. \oligoi g\ar %osoi
t%wn \av\ekaqen, basilik%wn katwligéwrhsan qespisr\atwn,% osoi t\on \ep\i g\hv. basiléea,
basileuéomenon o!idaten !anwqen, kaèi \wv krato%usin oi néomoi t%wn basiléewn. (I, 1) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1232-1233.
73

reconhecer que o poder terreno do rei vem de cima, mas que existem alguns reis
que negligenciam isso, ou seja, negligenciam o poder de Deus.
Posteriormente, Damasceno diz o intuito do seu texto, afirmando que roga
a Deus pela primeira vez, já que este conhecia a sua humilde intenção, para que o
povo de Deus receba seu discurso, cujo propósito é a luta pela verdade:

Portanto, rogo primeiro ao Senhor Todo-Poderoso, a quem tudo


é descoberto e às claras, de quem falamos, que conhece a
pureza da minha humilde intenção e a inocência do meu
propósito, para me dar palavras quando eu abrir minha boca e
tomar em suas próprias mãos as rédeas da minha mente e puxá-
la para si mesmo, fazendo-me prosseguir em sua presença em
um caminho honesto, nem caindo para a direita sedutora nem
conhecendo a esquerda claramente visível - e junto com ele
todo o povo de Deus, a nação santa, o sacerdócio real, com o
bom pastor do rebanho racional de Cristo, que representa em si
mesmo a hierarquia de Cristo, para receber o meu discurso com
bondade, não prestando atenção em meu pequeno valor, nem
esperando eloquência em minhas palavras, pois eu sou muito
consciente da minha imperfeição, mas preferivelmente
considerando o poder dos meus argumentos ("porque o reino
dos céus não está na Palavra, mas no poder"); pois o meu
propósito não é conquistar, mas estender a mão para lutar pela
verdade, uma mão estendida no poder do livre-arbítrio.
Invocando a ajuda daquele Que é a verdade em pessoa, eu vou
começar o meu discurso. (I, 3)211

Em seguida, afirma que acredita em Deus, único que ele adora e oferece a
sua veneração (προσκύνεσις), mas que também adora a Trindade. Alega que não
venera a criação no lugar do Criador. Além disso, descreve Deus como invisível e
como Ele tornou-se visível pelos seus filhos. É aqui que Damasceno defende o seu
argumento através do conceito de Encarnação (ενσάρκωση). Ele afirma que as

211
DAMASCENO, João. Eklipar%w toéinun, per%wton mèen pantokr\atora Kéurton, %§ gumnèa
péanta kaèi tetrachlisméena. prèov |um%av èo léogov. eidéota t%hv tapein%hv mou gnéwmhv \en toéut§
tèo \akraifnèev, kaèi skopo%u tèo e\ilikrinèev, do%unai moi léogon \en \anaéixei stéomatéov mou, kaèi
to%u no%u téav |hnéiav oikeéiain cerséin \anadéexasqai, kaèi to%uton prèov |eautèon \epispéasksqai,
prèov \enéwpiéon te kaèi e\uqeian pridon téhn \réumhn poioéumenon, méh \egkléinonta préov tèa
doko%unta dexièa, \h \aristerèa gnwrizéomena. meq dn !apanta tèon to%u Qeo%u ladn, t\o !eqnov tèo
%agion, tèo basileion \ieréateuma, a\un t%ir kal%§ poiméen t%hv logik%hv Cristo%u poéimnhv, t/%§
Cristo%u \ierarcéian \en |eant%y \upogréafonti, déexksqaéi mou tèon léogon, met e\umeneéiav. méh t%§
èelacéist§ t%hv \axéiav proséecontav, %h léogwn \epiznto%untav strféav. \ep\eèi toéutwn oéu
pantel%wv \idriv éo péenhv \egéw. \allèa t%hv t%wn nohméatwn frontéisai dunéamewv. Oéu gèar \en
léog§ \h basileéia t%wn o\urav%wn, \all’ \en dunéamei. Oéu géar nik\hsai skopèov, \allèa t%h
\alhqeéiç polemouméenh ce=ira \oréexai, t%hv proairéesewv \oregoéushv ceira \ounéamewv. \
Arwgèon toéinun t\hn \anupéostaton \epikeklhméenov \al\hqeia, \ente%uqen to%u léogou t\av \arc\av
poi\\hsomai. (I, 3) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui
Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus.
p.1233.
74

imagens (εικόνeς) não retratam a divindade de Deus, e sim, o Deus que se tornou
visível através da carne. É nesta passagem que Damasceno também afirma que
não está criando e adora uma quarta pessoa na Trindade, como mais tarde os
iconoclastas afirmarão que ele o faz:

Eu acredito em um Deus, o início de todas as coisas, ele


próprio, sem começo, não criado, incorruptível e imortal, eterno
e sem fim, incompreensível, imaterial, invisível, não
circunscrito, sem forma, sendo um deles, divindade além da
divindade, em três pessoas, Pai e Filho e Espírito Santo, e eu
louvo isso sozinho, e apenas a este eu ofereço a veneração da
minha adoração. Eu venero um só Deus, uma divindade, mas
também louvo a Santíssima Trindade, Deus, o Pai e Deus, o
Filho encarnado e Deus, o Espírito Santo, um só Deus. Eu não
venero a criação em vez do Criador, mas venero o Criador,
criado por minha causa, que desceu à sua criação sem ser
reduzido ou enfraquecido, para que pudesse glorificar a minha
natureza e trazer comunhão com a natureza divina. Venero
juntamente com o rei e Deus, o manto de púrpura de seu corpo,
não como uma peça de roupa, nem como uma quarta pessoa
(Deus me livre!), mas como chamado para se tornar
imutavelmente igual a Deus, e a fonte da unção. Porque a
natureza da carne não se tornou a divindade, mas como o Verbo
se fez carne imutavelmente, mantendo-se o que era, assim
também a carne se tornou a Palavra sem perder o que era, sendo
feito, de preferência, igual à hipóstase da Palavra. Portanto, eu
sou encorajado a descrever o Deus invisível, não como
invisível, mas como Ele se tornou visível por nossa causa, por
participação em carne e osso. Eu não retrato a divindade
invisível, mas eu retrato Deus tornado visível na carne. Pois, se
é impossível retratar a alma, quanto mais Deus, que dá à alma
sua imaterialidade? (I, 4)212

212
DAMASCENO, João. Pisteéuw eèiv \ena Qeèon, méian t%wn péantwn \arcèhn, \anarcon,
!aktiston, \anéwleqron kaèi \aqéanatou, aiéwnion kai \aidton, \akatéalhpton, \aséwmaton,
\aéoraton, \aperéigrapton, \aschméatiston. méian éuperoéusion o\uséian, \upéerqeon qeéothta, \en
prisèin éupostéasesi, Patrèi, kaèi G\i%§, kaèi \agéi§ Pneéumati, kaèi to\ut§ méo. n§ latreéuw, kaèi
toéut§ méon§ proséagw tèhv latreéiav proskéunhsin. \ Enèi Qei%§ proskun%w, m\i%ç qeéothti. allèa
kaèi Tri\éaoi latreéuw \upostéasewn, Qei%§ Patrèi, kaèi Qe%§ Gi%§ sesarkwméen§, kaèi Qe%§ \agéi§
Pneéumati, \enèi Qe%§. Oèu protkun%w t%h ktéisei paréa tèon ktéisanta, èa lléa proskun%w tèon
ktéisthn, ktisqéenta tèo kai\ \emèe, kaèi ktéisin \atapetnéwtwv kaèi \akaqairéetwv katelhqéota,
\ina téhn \emèhn doxéash féusin, kaèi qeéiav koinwnéon \apergéashtai féusewv. Sumproskun%§ t%§
basilei kaèi Qe%§, téhn \alourgéida to%u séwmatov, oéuc \wv \iméation, o\ud\\|e \wv téetarton
préosiwpon $apage. \alla\ \wv éoméoqeon crhmatéisasan, kaèi genoméenhn %oper tèo cr%isan
éametadléhtwv. Oéu gèar qeéoehv éh féusiv géegone t%hv sarcèov, \all\ !wsper éo Léogov sèarx
\atréeptwv géegone, mepéinav !oper !hn, o!utw kaèi h séar%v Léogov géegone, oéuk \apoléesasa to%uq
!oper esti, tautizoméenh %oe m%allon prèov tèon Léogon kaq\ \upéottasin. Dièoqkrr%wn, e\ikon\izw
Qeèon tèon \aéoraton, oéuk \wv \aéoraton, \all\ \wv \oratèon déi \hm%av genéomenon, meqéexei sarkéov
te kaì a\imatov. Oéu téhn \aéoraton eikonéizw qeéothtç, \all\ eikonéizw qeo\%u t\hn \oraqeisan
séarka. Ei géar yucèhn eikonéisai \améhcanon, péos§ m%allon Qeèon, tèon kaèi t%h yuc%h déonta
tèo !a=ulou; (I, 4) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui
75

Damasceno utiliza ainda da mesma passagem da Escritura que os


iconoclastas utilizaram contra as imagens, que concerne à não fabricação das
mesmas, para explicar que a mesma fora escrita para explicitar que Deus era o
único que deveria ser adorado, não devendo, assim, adorar ou venerar a criação no
lugar do Criador:

Você vê que a única finalidade disso é que não se deve louvar,


ou oferecer veneração à criação em vez do Criador, mas apenas
para Aquele que criou tudo. Portanto, toda a parte diz respeito à
adoração por veneração. Novamente ele diz: "Não haverá para
vós outros deuses além de mim, Não farás para ti imagens de
escultura, nem alguma semelhança, você não deve venerá-las
nem adorá-las, pois eu sou o Senhor vosso Deus" e, novamente,
"você deve derrubar seus altares, quebrar as suas colunas, e
cortar os bosques sagrados, e queimar até a esculpida (imagem)
de seus deuses com fogo, pois você não deve venerar qualquer
outro deus", e um pouco mais tarde "não farás para ti nenhum
deus de metal fundido". (I, 6)213

Acrescenta que essas ordens para a não fabricação de imagens teriam sido
transmitidas aos judeus, devido à propensão dos mesmos para a idolatria
(ειδωλολατρία). Explica que é impossível retratar em imagens o que não tem
forma e é invisível. No entanto, afirma que é possível retratar Cristo e sua
passagem na terra por causa de sua forma humana, sendo possível retratar aquilo
que se tornou carne e não o que é divino. Finaliza essa passagem diferenciando a
veneração de culto da veneração oferecida em honra daqueles que fizeram o bem,
algo digno em vida.

Era, portanto, para os judeus devido a queda à idolatria, que


estas coisas fossem ordenadas pela Lei. [...] Como poderia o
invisível ser representado? Como poderia o inimaginável ser
retratado? Como poderia alguém sem medida ou tamanho ou
limite ser desenhado? Como poderia o sem forma ser feito?
Como poderia o imaterial ser representado na cor? Portanto, o

Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p.
1236.
213
DAMASCENO, João. | Or%çv, éwv e%iv \estin éo skopèov !wste mèh latre%nsai t%h ktéisei parèa
tèon ktéisanta, mhdèe prosagage%in tèhm t%hv latreéiav proskéuhsin, \all\ \h méony t%§
dhmiourg%§; Dièo pantac%h sunéaptei t%h proskunéhsei tèhn latreéian. Péalen géar fhsin. Oéuk
!esontaéi soi qeoèi !eteroi, pléhn emo%u. Oéu poiéhseiv \eaut%§ gluptèon, o\u%oèe t%an omoéiwma, oéudèe
proskunéhseiv a\uo!iv, o\u%o oéu mèh latreéushv aéutoiv, !oti èegéw eimi: Kéuriov éo Qeèov \um%wn. kaèi
péalen. Toèuv bwmoèuv aéut%wn kaqele\ite, kaèi tèav stéhlav a\ut%wn suntréiyete, kaèi tèa !aloh
aéut%wn \ekkéoyetv, kaèi téa gluptéa t%wn qe%wn aéut%wn katakaéusete puréi. Oéu gèar méh
proskunéhshtv Qe%§ \etéer§. Kaèi met\ qeo|uv cwneutoèuv o\u poiéhseiv seaut%§. (I, 6) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1238.
76

que se revelou em enigmas? Pois é claro que quando você vê o


imaterial tornar-se humano para o seu bem, então você pode
materializar a figura de uma forma humana; quando o invisível
se torna visível na carne, então você pode descrever a
semelhança de algo visto; [...] A veneração de culto é uma
coisa, veneração oferecida em honra àqueles que se destacam
por conta de algo digno é outra. (I, 8)214

Após essas pontuações, explica que o seu discurso é sobre imagem (εικόν)
e veneração (προσκύνεσις) e que, por isso, é necessário elucidar o seu significado,
descrevendo a imagem como uma semelhança que descreve o arquétipo/protótipo
(πρωτότυπον), mas que por outro lado não é o arquétipo/protótipo de todas as
formas:

Mas desde que este discurso é sobre a imagem e sua veneração,


deixe-nos elucidar seu significado. Uma imagem é uma
semelhança que descreve um arquétipo, mas tem alguma
diferença a partir dele; a imagem não é como o arquétipo de
todas as formas. O Filho é a vida, imagem natural e inabalável
do Pai, sustentando em si todo o Pai, igual a ele em todos os
aspectos, diferindo apenas no que está sendo causado. Porque o
Pai é causa natural, e o Filho é causado; porque o Pai não é do
Filho, mas o Filho do Pai. Pois (o Filho) é dele, que é o Pai que
o gera, sem ter sua existência depois dele. (I, 9)215

Damasceno trabalha ainda com as categorias de memória (μνήμη) e honra


(τιμή), afirmando que o que é passado é expresso por imagens para a memória,
honra, vergonha, virtude ou vício daqueles que se foram para aqueles que estão
por vir, de modo que possam acolher o que foi de mau e ser zeloso e imitar aquilo

214
DAMASCENO, João. \ Ioudaéioiv mèhn, diéa tèo prèov eéidwlolatreéian e\udlisqon ta%uta
nenomoqéethto. [...] P%wv eéikonisqéhsetai tèo \aéoraton; P%wv eikasqéhsetai tèo \aneéikaston;
P%wv graféhseta: tèu $aposon, kaèi èaméegeqev, kaèi \aéoriston; P%wv poiwqéhsetai tèo éaneideon;
P%wv crwmatourghqéhsetai tèo \aséwmaton; Téi o%un tèo mustik%wv mhnéomenon; D%hlon éwv, !otan
!i\ohv diéa dèe genéomenon !anq\wmaton, téote dréaseiv t%hv \anqrwpéinhv morf%hv tèo \ektéupwma.
!otan drotèov sarkèi éo aéoratov géenhtai, téote eikonéiseiv tèo to%u draqéentov dmoéiwma. [...] \
Eteron géar \estin èh latreéiav proskéunhsiv, kaèi !eteron |h \ek tim%hv prosagoméenh toiv katéa
\axéiwma \uperéecousin. (I, 8) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus
Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1237-1240.
215
DAMASCENO, João. \ All\ \epei!oèh perèi e\ikéonov éo léogov, kaèi proskugèhsewv, féere tèon
perèi toéutwn léogon dieukpinéhswmen. Eikéwn mèen o!un èestin dmoéiwma carakthréizon tèo
prwtéotupon, metéa to%u kaèi tinadiaforéan !ecein prèov autéo. O\u gèar kat\a patéa péanta |h
eikèwn \omoto%utai prèov tèo \arcéetupon. Eikèwn toéinun z%wsa, fusikéh kaèi \aparéallaktov to%u
\aopéatou Qeo%u, \o Gièov, %olon \en \eaut%§ féepwn tèon Patéera, katéa !ecwn tèhn prèov a\utèon
tautéothta, méoh§ dèe diaféerwn t%§ aitiat%§. Aition mèen géar fusikèon, \éo Patéhr aitiatèon dèe,
éo Giéov. Oéu géar Patéhr \ex Gio%u, \allèa Gièov \ek to%u Patpèov. Ex a\uto%u géar, ei kaèi mèh met\
a\utèon !ecei t\o e\inai !oper estin éo gennéhsar. (I, 9) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio
Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus
XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1240.
77

que foi de bom. Dessa forma, faz distinção entre dois tipos de imagens para os
nossos diversos sentidos, isto é, a escrita em livros por meio de palavras e as
produzidas para o sentido da visão:

Mais uma vez, é dito que deve ser imagem o que é passado,
tanto a memória de um certo milagre, ou honra, ou vergonha,
ou virtude, ou vício, para o benefício daqueles que as
contemplam mais tarde, de modo que possam fugir do que é
perverso e serem zelosos com o que é bom. Este tipo de
imagem é duplo: por meio de palavras escritas nos livros, como
Deus gravou a Lei e ordenou as vidas dos homens amados de
Deus a serem gravadas; e através de coisas vistas pelo sentido
da visão, como quando ele ordenou o vaso e a vara para serem
colocados na arca como um memorial. Então, agora nós
registramos as imagens e as virtudes do passado. Portanto,
destruam cada imagem e estabeleçam leis contra quem ordenou
que estas coisas deveriam ser feitas, ou recebam cada qual na
razão e forma conveniente de cada um. (I, 13)216

Logo após, discute a existência de diferentes formas de veneração, como a


veneração de culto que deve ser dada apenas a Deus e a veneração de
oferecimento (προσκύνεσις), dada a santos e servos do Senhor em sinal de honra:

A veneração (curvando-se para baixo) é um símbolo de


submissão e honra. E nós sabemos que há diferentes formas
disso. A primeira é como uma forma de culto, que oferecemos a
Deus, sozinho por natureza, digno de veneração. Depois, há a
veneração oferecida, por conta de Deus, que é venerado
naturalmente, aos seus amigos e servidores, como Jesus, filho
de Nave e Daniel, venerou o anjo; ou a locais de Deus [...] Ou,
por isso, rejeitam todos os tipos de veneração ou aceitam todas
essas formas (de veneração) com a sua boa razão e maneira. (I,
14)217

216
DAMASCENO, João. Péalin, e\ikèwn léegetai t\wn gegonéotwn, !h katéa tinov qaéumatov
mnéhmhn, !h tim%hv, %h a\icéunhv, %h \aret%hv, %h kakéiav, prèov tèhn !usteron t\wn qewméenwn
éwféeletan, éwv !an tèa mèem kakèa feéugwmen, tèav dèe \a \aretéav zhéwswmen. Dipl\h dèe a=uth. diéa
te léogou ta\iv béibloiv \eggrafoméenou, |wv éo Qeèov tèon néomov taiv plaxin \enekéolaye, kaèi
toèuv t%wn qeofil%wn \andp%wn béiouv \anagréaptouv gen\esqai pros\etaxe, kai dia qewr\iav
a\isqht%hv, wv thn st\amnon kai t\hn \r\abdon \en t%n kibwt%w teq%hnai pros\etaxen eiv
mnhm\osunon. O%utw kai n%un téav eikéonav t%wn gegonéoton, kaéi téav \aretéav diagréafomen. \ H
toinun péasan eikéona %anele, kaèi \antinomoqetei t\w taéutav prostzaxanti gevn\esqai. \ H
\ekéasthn déegou, katèa tèon \ekéasth pr\eponta léogon kai tréopon. (I, 13) In: DAMASCENI, S.
Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae
Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1241-1244.
217
DAMASCENO, João. \ H proskéunhsiv \upoptéwsewv kaèi tim%hv \esti séumbolon. kaèi
taéuthv diaféorouv !egnwmen préopouv. préwthn, t\hn katèa latreéian, !hn proséagomen méon§
t%§ féusev proskunht%§ Qe%§. \ Epeita, tèhn dièa tèon féusei proskunhtèon Qeèon prosagoméenhn
toiv aéuto%u féiloiv kaéi qeréapostn, \wv t%§ \aggéely \ Ihso%uv \o to%u Nau%h, kai Daniéhl
prosekéunhsan. \h toiv qeo%u téopoiv, \w fhsin éo Dabid. [...] \ H toéinun p\asan proskéunhsin
\anele, \h péasav déegou, metèa to%u \ofeéilontov léogou kaèi tréopou. (I, 14) In: DAMASCENI, S.
78

Em relação à materialidade das imagens, Damasceno defende que a


matéria não é desonrosa, e por isso não deve ser desprezada, pois é a partir da
mesma que se tem a possibilidade de se representar Cristo encarnado. Salienta que
não reverencia a matéria como Deus, mas como algo que irá levá-lo à salvação.
Como os iconoclastas substituíam as imagens pela cruz, Damasceno compara
ambas e afirma que a cruz, tal como as imagens, é feita a partir da matéria, e como
tal é adorada, da mesma forma que as imagens também podem ser adoradas.
Sendo assim, afirma que ou se reverencia e venera todas essas “matérias”
seguindo a tradição da Igreja, ou se abole de uma vez com toda reverência e
veneração:

Eu não venero a matéria, eu venero o criador da matéria, que se


tornou matéria por minha causa e aceitou habitar na matéria, e
através da matéria trabalhou minha salvação, e eu não deixarei
de reverenciar a matéria, através da qual a minha salvação foi
trabalhada. [...] Portanto, eu reverencio e respeito o resto da
matéria por meio da qual, veio minha salvação, porque ela está
cheia de energia divina e Graça. Não é matéria a madeira três
vezes preciosa e três vezes abençoada? Não é matéria a
montanha sagrada e majestosa, bem como o local do calvário?
Não é matéria o dom da vida e comportamento perante uma
vida árdua, o túmulo sagrado e a fonte da ressurreição? Não é
matéria a tinta e o livro santíssimo dos Evangelhos? Não é
matéria a tábua da vida, que nos oferece o Pão da vida? Não é o
ouro e a prata, dos quais cruzes, mesas e taças são moldadas? E,
antes de todas essas coisas, não é matéria o corpo e o sangue do
meu Senhor? Ou acabam com a reverência e a veneração de
tudo isso ou submetem à tradição da Igreja e permitam a
veneração de imagens de Deus e dos apóstolos, santificados
pela fé, portanto, encobertos pela graça do espírito divino. Não
abuse da matéria; pois ela não é desonrosa; esta é a visão dos
maniqueístas. (I, 16)218

Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae
Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1241.
218
DAMASCENO, João. Oéu proskun\w t\h %ulh, proskun%w dèe tèon t%hv dhmiourgèon, tèon %ulhn
di \emée genéomenon, kaèi \en %ulh katoik%hsai katadexéamenon, kaèi di %ulhv tèhn swthréian mou
\ergaséamenon, kaèi séebwn oéu paéusomai tèhn, di \hv éh swthréia mou eirgastai. [...] Tèhn dée ge
loipéhn %ulhn s\ebw, kaèi di aido%uv \agw, di \hv |h swthréia mou géegonen, éwv qeéiav \enerleeiav
kaèi céaritov \emplewn. \ H séuc %ulh tèo to%u stauro%u xéulon, tèo triséolbion kaèi
trismakéariston; \ H oéuc %ulh tèo \orov tèo septèon kaèi \alion; \ O to%u Kranéiou t\omov; \ H oéuc
\ulh |h feréesbiov péetra kaèi zwhféorov, éo téofov éo \agiov, \h phgèh \anastéasewv; \ H oéuc %ulh
tèo méelan, kaèi \h t%wn Eéuaggeléiwn panagéia béiblov; \ H oéuc %ulh |h zwhféorov tréapeza, \h tèon
%arton \hm\in t%hn; zw%hv corhgo%usa; \ H oéuc %ule, éo crudéov te kaèi éo argurov, éex \wn stauroèi
kaèi péinakev kataskenéazontai, kaèi potéhria; \ H oéuc %ulh prèo toéutwn \apéantwn tèo to%u
Kuréiou \hm%wn s\wma kaèi a\ima; \ H péantwn toéu\twn anele tèo séeba; kaèi tèhn proskéunhsin, \h
paracéwrei t%h \ekklhsiastik%h parakdéosei kaèi t\hn t%wn eikéonwn proskséunhsin, Qeo%u kaèi
féilwn Qeo%u \onéomati \agiazoméenwn, kaèi di\a to%uto qeéiou Pneéumatov \episkiazoméenwn
79

Com isso, novamente Damasceno afirma que a imagem é um memorial, e


equivale para os analfabetos o que o livro é para os alfabetizados. Dessa forma,
elas foram criadas para serem honradas e para honrar a memória daqueles que
tiveram atitudes honrosas:

Eu digo que em todos os lugares nós usamos os nossos sentidos


para produzir uma imagem do próprio Deus encarnado, e
exaltamos o primeiro dos sentidos (sendo a visão considerada o
primeiro dos sentidos), assim como pelas palavras a audição é
santificada. Pois a imagem é um memorial. O que o livro faz
para aqueles que entendem as letras, a imagem faz para os
analfabetos; a Palavra encanta os ouvidos, a imagem encanta a
visão, que transmite compreensão. [...] Porque as imagens
foram criadas como memoriais, e foram honradas, não como
Deuses, mas como levando a uma lembrança de atividades
divinas. (I, 17)219

Damasceno defende ainda, através das palavras de Santo Basílio, que “a


honra dada à imagem passa para o arquétipo”, ou seja, Deus, atribuindo, assim, às
imagens um significado que vai além da mera tarefa de representação, já que
através dela pode-se chegar a Deus:

"A honra dada à imagem passa para o arquétipo", diz o divino


Basílio. (I, 21)220

No que se refere à questão da tradição, ele explica que as resoluções da


Igreja foram transmitidas não somente através de escritos, mas também através da
tradição não escrita, seja ela oral ou outra. Faz essa afirmação a partir de Santo
Basílio que afirma que os dogmas e as pregações foram escritos e preservados na

céariti. Mh kéakize tèhn %ulhn oéu gèar \atimov. O\udèen gèar \atomon, èo paréa Qeo%u gegéenhtai.
T%wn Mavicaíwn to%uto tèo fréonhma. (I, 16) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica
Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S.
Joannes Damascenus. p. 1245.
219
DAMASCENO, João. Kaèi aisqht%wv mèen tèon aéuto%u carakt%hra protéiqemen \apantac%h,
kaèi tèhn préwthn \agiazéomeqa préwth gèar aisqéhsewn, %orasiv !wsper kaèi toiv léogoiv, tèhn
\akoééhn \upéomnhma gèar èestin \h eik\wn kai %oper toiv gréammasi memnhméenoiv éh béiblov, to%uto
kaèi toiv \agramméatoiv éh e\ikéwn kaèi %oper kaèi %oper t%h \ako%h éo léogov to%uto t\h \oréasei \h
eikéwn noht%wv dèe aéut%h \enoéumeqa. [...] Eikéonev géar !hsan préov \upéomnhsin keéimenoi, oéuc éwv
qeoéi, \all\ éwv qeéiav \energeéiav \up\omnhsin !agousai. (I, 17) In: DAMASCENI, S. Joannis.
Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae
Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1248.
220
DAMASCENO, João. \ H gèar t%hn eikéonov timèh prèov tèo prwtéotupon diabaéine, fhséin éo
qeiov Baséileiov. (I, 21) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus
Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1252.
80

Igreja, enquanto que outros foram recebidos pela tradição oral. Afirma ainda que
ambas as tradições têm a mesma importância para a Igreja:

Não só os ritos religiosos da Igreja foram transmitidos por


escrito, mas também nas tradições não escritas. Portanto, o
divino Basílio diz no vigésimo sétimo capítulo de seus trinta
capítulos sobre o Espírito Santo a Amphilochius, palavra por
palavra, deste modo: dos dogmas e pregações preservados na
Igreja, temos alguns do ensino escrito, outros recebidos da
tradição dos Apóstolos, transmitidos a nós em segredo, ambos
tendo a mesma força para a devoção. [...] Portanto, o divino
apóstolo diz: "Assim, pois, irmãos, permaneçam firmes e
conservem as tradições que vos foram ensinadas por nós, seja
por palavra da boca ou por nossas letras". Uma vez que muitas
dessas coisas foram proferidas em forma tácita na Igreja e
preservadas até agora, por que questionar as imagens? (I, 23)221

Damasceno faz também diferenciação entre o culto cristão de imagens e o


culto pagão, afirmando que não é necessário abolir a prática piedosa de cultuar
imagens devido à prática dos gregos idólatras:

As práticas que você menciona não fazem da nossa veneração


das imagens, repugnantes, mas as dos gregos idólatras. Não é
necessário, por conta do abuso pagão, abolir a prática piedosa.
Encantadores e feiticeiros praticam exorcismos, a Igreja
também exorciza catecúmenos; mas eles invocam demônios,
enquanto a Igreja clama a Deus contra os demônios. Gregos
dedicam imagens de demônios e chamam-nos deuses, enquanto
nós (dedicamos imagens) para o verdadeiro Deus encarnado e
os servos e amigos de Deus para afastar o exército dos
demônios. (I, 24)222

221
DAMASCENO, João. Oéu méonon gréammasi téhn \ekklhsiastikèhn qeo moqeséian
paréedwkan, \alléa kaèi \agréafoiv tiséi paradéoseav. Fhsi go%ur éo qeéiov Baséileiov \en
eéikost%§ \ebdéom§ t%wn prèov \ Amfiléocion perèi \agéiou pneéumatov triéakonta cefalaéiwn !epi
léexewv o%utwv. T\wn \en t%h \ Ekklhséiç pefulagméenwn dogméatwn kaèi khrugméatwn, tèa mèen \ek
t\hv \eggréafou didaskaléiav ekomen. [...] \ Apéostolov Pa%ulov fhséin. ! Ara o%un, \adelfoéi,
stéhkete kaèi krate%ite tèav paradóseiv !av \edidéacqhte, e!ite dia léogou, e!ite d\i \epistol%hv
\hm%wn. Poll%wn toigaro%un kai toso\utwn \agr\afov t\h \ekklhsia paradedom\hnwn, kai
m\ecri to%u n%un pefulagm\hvwn, t\i per\i t\av eik\onav smikrologeéiv; (I, 23) In: DAMASCENI,
S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In:
Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1256.
222
DAMASCENO, João. ! Av méentoi créhseiv paréageiv, oéu t%wn par\ \hméin eikéonwn
bdeléussontai t\hn proskéunhsin, \allèa t%wn taéutav qeopoioéuntwn \ Elléhnwn. Oéu dei
tuéinun dièa tèhn \ Elléhnwn cr%hpon, kaèi tèhn \hmepéeran e\useb%wv genoméenhn, \anaireéin. \
Eforkéizousin \epasidoéi te kaèi géohtev, eforkéizei kaèi toèuv kathcouméenouv éh \ Ekklhséia
\all\ \ekeinoi mèen \epikalo%untai daéimonav, a!ukh dèe, Qeèon daiméonwn daéimosi tèav eikéonav
\anatiqéeasin \ Ellhnev, kaèi qeoèuv taéutav prosagoréeousin, \hme!iv d\e \aleqei Qe%§
sarkwqéenti, kaèi Qeo%u doéuloiv kaèi féiloiv, daiméonwn \apelaéunousi stéifh. (I, 24) In:
81

Aqui, mais uma vez, assim como fez com os judeus, Damasceno denigre o
outro, no caso os gregos, para justificar a passagem contrária às imagens das
Escrituras. Como os iconoclastas também se apoiaram e utilizaram os textos
Sagrados e patrísticos para justificar a abolição das imagens, Damasceno alerta
para o cuidado que se deve ter ao estudar certas obras que poderiam ter sido
forjadas contra as imagens, citando Santo Epifânio como exemplo:

Se você disser que o Epifânio divino e maravilhoso claramente


proibia estas imagens, então primeiro o trabalho em questão é
talvez espúrio e forjado, sendo obra de um e com o nome de
outro, o que muitas vezes acontece. Em segundo lugar, sabemos
que o bem-aventurado Atanásio opôs-se a colocar as relíquias
dos santos em um sarcófago, ordenando sim que elas devam ser
enterradas debaixo da terra, no intuito de abolir o costume
absurdo dos egípcios, que não enterram os seus mortos debaixo
da terra, mas os colocam em camas e palhetas. Talvez, se
admitirmos que o trabalho é dele, Epifânio, o Grande queria
corrigir uma prática semelhante, proibindo a tomada de
imagens. No entanto, há o testemunho da própria igreja do
divino Epifânio, que seu propósito não era de abolir as imagens,
pois estavam decoradas até a nossa própria época. Em terceiro
lugar, na isolada instância não se fazem leis para a Igreja "uma
única andorinha não faz verão", como diz Gregório, o Teólogo,
e a verdade declara. Também não se pode uma palavra derrubar
toda a tradição da Igreja, que se estende desde uma extremidade
da terra até a outra. (I, 25)223

O tratado é finalizado com a afirmação de que se deve aceitar o ensino de


ambas as práticas bíblicas e patrísticas, com a citação de uma passagem das
Escrituras, na qual se afirma que não se deve impedir a veneração de coisas feitas

DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines


Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1256-1257.
223
DAMASCENO, João. Ei dèe féhv, tèon qeion kaèi qaumastéon \ Epiféanion, dia\r\réhdhn
taéuta; apagore%usai, pr%wton mèen tucèon pareggegramméenov kaèi \epéiplastov éo léogov,
\allou mèen %wn péonov, \etéerou dée tèhn \epwnuméian !ecwn, !o polloiv aiqistai dran. Deéuteron,
ismen tèon makéarion \ Aqanéasion, \akhgoreukéota tèo \en léarnaxi tiqéenai téa t%wn \agéiwn
leéiyana dée prostéattonta \upèo g\hn ta%uta kaléuptein, tèo !atomon %eqov t%wn Aiguptéiwn
katarg%hsai bouléomenon, o\i toéuv \eaut%wn nekroéuv, oéuc !upèo g\hn !ekrupton, \all\ \epèi
klin%wn kaèi skimto%oiwn \etibon téaca toio%utéo te kaèi \éo méegav \ Epiféaniov \epidiorqéwtasqai
qéelwn, tèo mèh cr\hnai toieéin eikéonav \enomoqéethsen, e\i gv kaèi aéuto%u d%ymen einai tèon léogon.
\ Epeèi, %oti ge éo toéotou skepèov taéutav oéuc apepéiqeto, méartuv éh aéuto%u qepéiou \ Epifanéiou \
Ekklhséia, eikéosi méecriv \hm%wn perikekosmhméenh. Tríton, oéu tèo spèanion néomov t\h \
Ekklhséiç, o\udèe méia celidéwn !ear poiei, éwv kaèi t%§ qeoléog§ Grhgoréi§ kaèi t\h éaleqeéiç dokei
o\udèe léogov e\iv dunatèov %olhv \ Ekklhséiav, t%hv peréatwn méecri t%wn aéut%hv peréatwn,
\anatréeyai paréadoten. (I, 25) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1257.
82

de matéria, pois essas foram feitas pelas mãos humanas, devendo apenas abolir
imagens de demônios, mais uma vez referindo-se às práticas gregas e judias:

Receba, portanto, o ensino firme de ambas as práticas bíblicas e


patrísticas, porque, se a Escritura diz: "os ídolos das nações são
prata e ouro, obras de mãos humanas", não, portanto, proíbe a
veneração de coisas inanimadas ou a obras de mãos humanas,
mas apenas de imagens de demônios. (I, 26)224

Como observamos neste trabalho, João Damasceno se apoia nas


Escrituras, nas tradições da Igreja, tradições escritas e não escritas e nos textos
patrísticos. Assim sendo, é possível constatar não só no corpo do seu texto, mas
também no fim do mesmo, excertos desses escritos com comentários logo em
seguida feitos pelo próprio Damasceno. Percebe-se, dessa forma, que essas
passagens são utilizadas para reafirmar os seus argumentos e dar autoridade aos
seus escritos, demonstrando o que já fora explanado por Andrew Louth225, sobre
Damasceno não ser original e saber encontrar e escolher as melhores respostas
para assuntos teológicos. Isso se repetirá nos seus dois próximos tratados que
serão analisados a seguir.

2.3.2. O Segundo Tratado

João Damasceno inicia seu segundo tratado discorrendo acerca do perdão,


que ele deve ser dado a quem pede e, novamente, se coloca em posição de
indignidade, como escravo de Deus e da Igreja. Mais uma vez também se coloca
como zelador da verdade (αλήθεια), que segundo ele é a única que pode levar à
salvação (σωτηρία). Afirma ter Deus como sua testemunha e pede que o seu
segundo discurso sobre as imagens seja aceito, pois foi necessário fazê-lo, em
razão de que alguns filhos da Igreja o teriam pedido, já que o primeiro não teria
tido a clareza necessária:

224
DAMASCENO, João. Déecou tuéinun t%wn Grafik%wn kaèi pneumatik%wn créhsewn tèon
\esmèon, %oti e\i kai léegei \h Gragéh. Tèa eidwla t%wn \eqn%wn \argéurion kaèi cruséion, erga ceir%wn
\all\ oéun oéu tèo mèh proskuneéin ayéucoiv \h !ergoiv ceir%wn kwléuei, \alléa taiv daiméonwn
eikéosin. (I, 26) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui
Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p.
1257.
225
LOUTH, 2002.
83

Concedei o perdão a quem pede, meus mestres, e recebei uma


palavra de garantia de mim, o menor e mais inútil escravo da
Igreja de Deus. Pois, como Deus é minha testemunha, não é por
causa de glória ou ostentação que eu sou instigado a falar, mas
pelo zelo pela verdade. Pois eu possuo isso como a minha
esperança de salvação, e com ela eu espero encontrar o Senhor
Cristo e rezo para que eu possa oferecer isso a ele em expiação
pela forma monstruosa em que errei. [...] Mas dê-me um
ouvido para escutar e coloque as tábuas de seus corações para
receber o meu discurso e julgar por si mesmo o poder do que eu
digo, neste segundo discurso sobre imagens que coloquei junto.
Alguns dos filhos da Igreja têm me intimado a fazer isso porque
o primeiro não estava completamente claro para todos. Mas dê
subsídios para mim, já que eu procuro ser obediente. (II, 1)226

Logo depois, salienta que só a verdade pode evitar que se seja levado ao
erro e ensina que há somente um Deus, uma natureza em três pessoas - Pai, Filho
e Espírito Santo. Afirma ainda que o mal não é um ser, mas sim um acidente
contrário à lei de Deus, tendo existência apenas no pensamento, desaparecendo
logo que este último se cessa. Ressalta que uma das partes da Trindade, isto é,
Cristo, possui duas naturezas e apenas uma pessoa:

A verdade, buscando um meio termo, nega todos estes


absurdos, e ensina a confissão de um só Deus, uma natureza em
três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Ele diz que o mal não é
o ser, mas um acidente, uma certa ideia e razão e ação contrária
à lei de Deus, tendo a sua existência no pensamento e
raciocínio, desaparecendo logo que estes cessam. E proclama
que um da Santíssima Trindade, Cristo, é duas naturezas e uma
pessoa. (II, 3)227

226
DAMASCENO, João. Déote suggnéwmhn aito%unti despéotaiv mou, kaèi déexasqe
plhroforéiav léogon, par\ \emo%u to%u \acreéiou kaèi \elacéistou doéulou t%hv Qeo%u \ Ekklhséiav.
Oéu gèar déoxhv !eneken, \h fanhtiasm\ou prèov tèo léegein %wrmhsa. Qeéov méartuv \allèa zéhl§
\alhqeéiav. A|utèon gèar méonon \elpéida swthréiav kéekthmai, kaèi séun aéut%§ \upant%hsai t%§
Despéoth Crist%§, \elpéizw kaèi e%ucomai, to%uton aéut%§ prosféerwn, t%wn \atéopwv moi
peplhmmelhméenwn gegéesqai \exéilkoma. [...] \ Alléa déote moi o\uv \akroéasewv, kaèi téav
trapéezav t%wn kardt%wn \anapetéasantev, déexasqée mou tèon léogon, kaèi eèilikrin%wv
diakréinate t%wn legoméenwn téhn déunamin. Deéuteron dèe to%uton tèon léogon perèi eikéonwn
sunéetaxa. Tinèev gèar t%wn téeknwnt%hv \ Ekklhséiav \up\eqentéo moi to%uto poi%hsai, diéa tèo mèh
péanu eéudi\agnwston toiv pallaiv tèon pr%wton einaiv \allèa kaéi \en toéut§ séuggnwtée moi,
éupako\hn \ekplhréwsanti. (II, 1) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui
Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p.
1284.
227
DAMASCENO, João. \ H dèe \aléhqeia, méeshn \odéon badéizousa, péanta ta%uta \aparneitai
tèa !atopa, kaèi didéaskei, \!ena Qeèon \omologeéin, méian féusin \en trisèin \upostéasesi, Patrèi
kaèi Gi%§ kaèi \agi%§ Pneéumati téhn dèe kakéian, oéuk o\uséian, \alléa sumbebhkéov jhsin, !ennoiéan
tina, kaèi léogon, kaèi pr%axin parèa tèon néomon to%u Qeo%u, \en t%§ \ennoeisqai, kaèi préattesqai
kaèi léegesqai, kaì préattesqai: téhn =uparxin !ecousan, kaèi !ama t%§ pkéusasqai
\afanizoméenhn. \ Eti dèe kaèi tèon !ena t%hv \agéiav Triéadov tèon Cristèon, déuo féuseiv khréuttei,
84

Damasceno alega que a ordem contra as imagens seria uma artimanha do


diabo que é o inimigo da verdade e contrário à salvação dos homens, os instruindo
a esculpir as imagens dos demônios:

Mas o inimigo da verdade, que luta contra a salvação dos seres,


que uma vez ensinou não só as nações a fazer imagens de
demônios e seres humanos maus bem como de pássaros e
animais selvagens e répteis e os veneram como deuses, mas
também muitas vezes os filhos de Israel, agora que a Igreja de
Cristo tem paz, estão ansiosos para agitá-la misturando o mal
com palavras divinas através de lábios injustos e uma língua
astuta, tentando encobrir sua escuridão e sua deformidade e
agitar os corações dos instáveis a partir dos verdadeiros
costumes transmitidos pelos Padres. [...] Alguém, que tem
conhecimento divino e compreensão espiritual, não reconhece
que esta é uma artimanha do diabo? Pois ele não deseja sua
derrota e vergonha sejam espalhadas, nem a glória de Deus e
seus santos registrada. (II, 4)228

Assim como no primeiro tratado, defende que o pecado está em produzir


uma imagem do Deus invisível, impossível de descrever por ser incorpóreo e sem
forma. Que seria sim um sacrilégio, se fizessem imagens de seres humanos e
venerassem-nas como deuses. Mais uma vez observamos a repulsa de Damasceno
pelas práticas que ele considera pagãs. Afirma ainda a possibilidade de representar
o Deus encarnado, por já ter estado na terra. Utiliza a afirmação de Gregório de
que a imagem é um espelho adequado para o intelecto cansado, incapaz de ver
além do corpo:

Porque, se fôssemos fazer uma imagem do Deus invisível, nós


realmente iríamos pecar; pois é impossível descrever aquele que
é incorpóreo e sem forma, invisível e não circunscrito. E ainda:
se tivéssemos de fazer imagens de seres humanos e considerá-
las e venerá-las como deuses, nós seríamos verdadeiramente

kaèi méian \upéostasin. (II, 3) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras
Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1285.
228
DAMASCENO, João. \ All\ éo t%hv \alhqeéiav \ecqrèov, kaèi t%hv swthréiav t%wn \anqréwpwn
poléemiov daéimwn, kaèi fqart%wn \anqréwpwn, kaèi petein%wn; kaèi knwdéalwn, kaèi \erpet%wn
eikéoiav poiein, kaèi taéutaiv éwv qeo\iv proskunein, oéu méonon tèa !eqnh, \alla kaèi toéuv uioèuv \
Israéhl polléakiv; planéhsav; n%un eirhneéuousan téhn to%u Cristo%u \ Ekklnséian
suntaréaxei, diéa ceiléewn \adéikwn, kaèi gléwsshv doléiav qeéioiv téhn kakéian parartéuwn, kaèi
taéuthv tèo !aschmon kaèi skoteinèon eidov \epikaléuptein, kaèi téav kardéiav t%wn \asthréiktwn
saleéuein \ek t%hv \alhqo%uv kaèi patropiradéotou aunhqeéiav. [...] Kaèi t\iv !ecwn gn%wsin qeéian
kaèi séunesin pneumatikéhn, oéuk !epiginéwskei, %oti \upobo\aéh to%u diabéolou \estéin; Oéu qéelei
gèar tèhn \httan kaèi tèhn aiscéunhn aéuto%u dhmosieéuesqai, o\udèe téhn to%u Qeo%u, kaèi t%wn
\aléiwn déoxan \anéagrapton géinesqai. (II, 4) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus
Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1285-1288.
85

sacrílegos. Mas nós não fazemos nenhuma dessas coisas.


Porque se fazemos uma imagem de Deus que na sua bondade
inefável se encarnou e foi visto sobre a terra em carne, e habitou
entre os seres humanos, e assumiu a natureza, a densidade, a
forma e cor da carne, nós não nos perdemos. Pois nós ansiamos
por ver a sua forma; como o apóstolo divino diz, "agora vemos
surpreendentes reflexões em um espelho". Porque a imagem é
um espelho e um quebra-cabeça, adequada para a densidade do
nosso corpo. Porque o intelecto, muito cansado, não é capaz de
passar além do corpo, como diz o divino Gregório. (II, 5)229

É nesse segundo tratado que Damasceno ataca diretamente a pessoa do


imperador enquanto precursor da iconoclastia, comparando-o ora com a serpente
que desviou Eva, ora com um anjo, com o aviso de que se qualquer um deles
proclamassem coisas que não faziam parte da tradição da Igreja, dos Santos
Apóstolos e Padres e dos sínodos, que não devesse escutá-los e que eles fossem
anematizados:

Não estamos convencidos por você, demônio invejoso,


aborrecedor da espécie humana. Ouvi, povos, tribos, línguas,
homens, mulheres, crianças, velhos e mulheres, jovens e
crianças, a nação santa dos cristãos: se alguém proclama a você
outra coisa senão a que a Igreja Católica recebeu dos Santos
Apóstolos e dos Padres e sínodos preservados até agora, não
ouça-o, nem aceite o conselho da serpente, como Eva aceitou e
colheu a morte. Se um anjo, ou um imperador, proclamarem a
você outra coisa além da que foi recebida. No momento eu
hesito em dizer, como o divino apóstolo disse: "Que ele seja
anátema"!, pois ele pode receber a correção. (II, 6)230

229
DAMASCENO, João. Ei mèen gèar to%u \aoréatou Qeo%u eikéona !epoio%umen, !ontwv
\hmartéanomen. \ Adéunaton gèar tèo \aséwmaton, kaèi \aéoraton, kaèi \aperèigrapton, kaèi
\aschméatiston eikonisq%hnai. Kaèi péalin eéi \epoto%umen eikéonav \anqréwpwn, kaèi taéutav
qeo\uv \hgoéumeqa, kaèi éwv qeoéiv !elatreéuomen, !ontwv \hsebo%umen. \ All\ o\udèen toéutwn
poio%umen. Qeo%u gèar sarkwqéentov, kaèi \ofqéentov \epèi g\hv sarkèi, kaèi \anqréwtoiv
sunastraféentov. d\i %afaton \agaqéothta kaéi féusin, kaèi péacov, kaèi oc%hma, kaèi cr%wma
sarkéov, \analabéontov, toéutou téhn eikéona poto%untev, oéu afalléomeqa. Poqo%umen gèar
a\uto%u idein tèon capakt\hra éwv géar fhsin éo qeiov. \ Apéostolov. \ Em \eséoptr§ kaèi
ainéigmati n%un bléepomen. Kaèi \h eikéwn dèe, !esoptréon \esti kaèi a\inigma, \arméozon t%h to%u
séwmatov \hm\wn pacéuthti. Polléa gèar kéamnwn éo no%uv, oéu déunatai \ekb\hnai tèa swmatikéa.
(II, 5) In DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In:
Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1288.
230
DAMASCENO, João. \ W \apèo so%u, fqsnerèe diéabolv, fqoneiv \hmin idein tèo to%u Despéotou
\hm%wn éomoiwma, kaèi di aéuto%u \agiasq%hnai, kaèi idein aéuto%u téa swtéhria péaqh, kaéi
qauméasai aéuto%u téhn sugkatéabasin, kaèi qewrein aéuto%u tèa qaéumata, kaèi doxéazein
a\uto%u tèhn t%hv qeéothtov déunamin. Fqoneiv toiv \agéioiv t%hv paréa Qeo%u de\ooméenhv a\utoiv
tim%hv. Oéu qéeleiv \or%an \hm%av téhn a\ut%wn déoxan \anéagrpton, kaèi zhlwtèav géinesqai t%hv
aéut%wn \andreéiav kaèi péistewv. Oéu peiqéomeqa soi, daimon fqunerèe kaèi miséanqrwpe. \
Akoéusate laoèi, fulaèi, gl%wssai, !an\drev, guna%ikev, kaèi paidev presbéutai, neanéiskoi te
kaèi néhpia, tèo !eqnov t%wn Cristian%wn tèo !agion e!i tiv e!uaggelizetai éum%av par\ !o paréelaben
éh kaqolik\h \ Ekklhséia parèa t%wn \agéiwn \apostéolwn, Patéerwn, kaèi sunéodwn, kaèi méecri
86

Posteriormente, através da passagem do Antigo Testamento que proíbe a


fabricação de imagens, fazendo, mais uma vez, alusão às ordens iconoclastas,
Damasceno afirma que eles não procuram o significado na Escritura e que é
preciso fazê-lo, já que Deus não mente. Se utiliza da metáfora do doente e do
remédio, na qual se diz que a cada paciente e doença cabe um determinado
remédio e dose, para defender que a proibição das imagens na Escritura foi feita
para aqueles que são propensos à doença da idolatria, que veem ídolos como
deuses e os veneram e rejeitam a veneração a Deus, oferecendo a sua glória para a
criação e não para o Criador:

Mas aqueles que não procuram o significado da Escritura,


dizem que Deus disse através de Moisés, o legislador, "Não
faça qualquer semelhança, seja de coisas no céu ou de coisas na
terra". [...] Portanto, o que é que vamos dizer a eles, o que mais,
salvo o que foi dito pelo Senhor para os judeus: "Examinais as
Escrituras"? É bom procurar na escritura. Mas tome cuidado
para fazê-lo criteriosamente. [...] Veja que Deus falou muitas
vezes e de várias maneiras. Pois, assim como o médico nem
sempre sabe dar o mesmo remédio para tudo, mas dá a cada um
o que é adequado, determinando um medicamento apropriado à
doença ao tempo e ao lugar, isto é, estação, condição e tempo
de vida, e, portanto, oferece uma coisa a um bebê, outra coisa
para alguém adulto, de acordo com o tempo de vida, uma coisa
para o doente, outra coisa para o saudável, e para cada um dos
que estão doentes não é a mesma oferta, mas algo de acordo
com sua condição e doença, e uma coisa no verão e outra no
inverno, ou no outono ou na primavera, e em cada lugar e em
conformidade com o que é adequado para o local. Portanto, o
melhor médico das almas proíbe de fazer imagens aqueles que
ainda são crianças e doentes com uma inclinação doentia para a
idolatria, suscetíveis a considerarem ídolos como deuses e
venerá-los como deuses e rejeitarem a veneração a Deus e
oferecerem a sua glória para a criação. (II, 7)231

to%u n%un dteféulaxe, méh \akoéusnte aéuto%u, mhdèe d\exhsqe téhn sumbouléhn to%u !ofewv, éwv
\edéexato E%na, kaéi \etréughse qéanaton. K%an =aggéelov, k%an basileéuv e\uaggeléizetai \um%av par\
=o pareléabete, kleéisate tèav \akéav éokn%w gèar téewv eèipein, éwv !efh éo qeiov \ Apéostolov, \
An\aqema !estw, \ekdecéomenov téhn diéorqwsin. (II, 6) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1288.
231
DAMASCENO, João. \ Allèa léegousin, o\i mèh \eren%wntev tèon no%un t%hv Graf%hv, %oti eéipen éo
Qeèov Mw%uséeuv to%u nomoqéetou. Oéu poiéhseiv p%an \omoéiwra, das èen n%§ oéuran%§, kaèi dsa éen
t%h g%h. [...] oéuk \emèov éo léogov \estéi tèo Pne%uma tèo =agion dièa Paéulou to%u \agéiou \apostéolou
\apeféhnato. Polumer%w; kaèi polutréopov; péalai éo Qeèov laléhsav toiv patréasin èen toiv
proféhtaiv. ! Ork =oti polumer%wv kaèi polutréopwv \eléalhsen éo Qeéov. ! Wsper gèar
\epistéhmwn iatrèov oéu tèo a\utèo eidov p%asi didwsin, oéud\e péantote, \all\ \ekéast§ katèa téhn
=exin paréecei tèo féarmakon, diakréinwn, kaèi céwren, kaèi néoson, kaèi kairèon, kaèi \hlikéian
kaèi t%§ mènn nhpéi§, =eteron, t%§ dèe teleéi§ katèa téhn \hlikéian, =eteron !allo t%§ asqenet, kaèi
!allo t%§ |ujgiaéinonti, kaèi \ekéast§ t%wn \asqenoéuntwn, oéu tèo a\utèo, \allèa prèov téhn =exin kaèi
téhn néoson kaèi !allo t%§ qéerei, kaèi ceim%wni %eteron. metopéwry te kaèi èen \ekéasty téopy katèa
87

Salienta que a Escritura torna-se clara para aqueles que realmente a


buscam, fazendo, novamente, apelo à verdade. Explica que todas as coisas citadas
na Escritura são de verdade, com o objetivo de se obter a glória de Deus e dos
santos, a salvação e a rejeição ao mal, aos abomináveis escritos pagãos e
maniqueístas e todos os hereges. Mais uma vez afirma que se alguém se atreve a
fazer uma imagem do Deus Todo-Poderoso que é espírito puro, seja rejeitado,
assim como aquele que fizer imagens para a honra e adoração do diabo e dos seus
anjos. Defende ainda que aquele, independente de quem seja, isto é, parte da
Igreja ou não, que substituir uma imagem de Cristo, de Sua Mãe ou dos santos por
qualquer outra imagem ou a do próprio diabo, é um inimigo de Cristo, defensor do
diabo e de sua equipe. Finaliza defendendo que a imagem é um hino de louvor,
manifestação e símbolo daqueles que lutaram contra o mal:

Você sabe como o propósito da Escritura é claro para aqueles


que a buscam de forma inteligente. Porque é necessário saber,
amados, que em cada ação, verdade, falsidade e o propósito de
quem age, sejam eles bons ou maus, estão suscetíveis a serem
procurados. Porque no Evangelho, Deus, o anjo, o ser humano,
os céus, a terra, a água, o fogo, o sol, a lua, as estrelas, a luz, a
escuridão, Satanás e seus demônios, as serpentes, os escorpiões,
a morte, Hades, as virtudes, os vícios e tudo que é bom e ruim
estão escritos. Mas uma vez que tudo dito sobre eles é
verdadeiro e o objetivo é a glória de Deus e dos santos
glorificados por ele, e nossa salvação e a derrubada e desgraça
do diabo e seus demônios, todos estes nós veneramos,
abraçamos e beijamos com os olhos e lábios e somos fiéis em
nossos corações, igualmente, à totalidade do Antigo e do Novo
Testamento e às palavras dos santos e escolhemos Padres, mas a
escrita vergonhosa e imunda dos malditos Maniqueístas e
gregos e do resto das heresias que a cospem fora e a rejeitam
como se tivesse mentiras e vazio, concebida para a glória do
diabo e seus demônios e seu prazer, ainda que tenha o nome de
Deus. Assim também na questão de imagens, é necessário
procurar a verdade e o propósito de quem as faz, e, se elas
tornam-se verdadeiras e íntegras, promovendo a glória de Deus
e de seus santos, e inspirando virtude e afastando o vício, e
conduzindo à salvação das almas, então aceitá-las e honrá-las
como imagens e cópias e semelhanças e livros para os

tèhn to%u téopou \epithdeiéothta o=utw kaèi éo =aristov t%wn yuc%wn \iatrèov, toiv =eti nhpéioiv, kaèi
\a\r\rwsto%usi tèhn prèov eidwlalatreéian néoton, kaèi téa eioula qeoéuv \hgouméenoiv, kaèi éwv
qeoiv aéutoiv proskuno%usin, kaèi aqeto%usin tèhn to%u Qeo%u proskéunhsin, kaèi tèhn aéuto%u
d\oxan t%h ktéisei proséagousin, \aphgéoreuse to%uto poie\in. (II, 7) In: DAMASCENI, S.
Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus
XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1288-1289.
88

analfabetos e venerá-las e beijá-las com olhos e lábios, e ser fiel


a elas em nossos corações, como uma semelhança de Deus
encarnado, ou de sua mãe, ou de santos que compartilharam dos
sofrimentos e da glória de Cristo e foram vencedores, que
derrubaram o diabo e os demônios e seus erros, mas se alguém
se atreve a fazer uma imagem da divindade imaterial,
incorpórea, invisível, sem forma e sem cor, nós a rejeitamos por
considerarmos falsa. (II, 10)232

Posteriormente, ataca mais uma vez a pessoa do imperador com a


afirmativa de que não é dever do imperador legislar sobre a Igreja, que para tanto
existem os seus trabalhadores:

Não é dever dos imperadores legislar para a Igreja. Olhe o que o


apóstolo divino diz: "E que Deus estabeleceu na Igreja
primeiramente os apóstolos, em segundo lugar os profetas, em
terceiro os pastores e mestres, para o equipamento dos santos", -
ele não disse imperadores - e novamente "Obedeçam aos seus
líderes e se submetam a eles; pois vigiam sobre as vossas almas,
como homens que terão de prestar contas ". (II, 12)233

232
DAMASCENO, João. Ei%oev p%wv \aneféanh éa skopèov t%hv Graf%hv to\iv sunet%wsi; De%i gèar
ginéwskein, \agaphtoéi, =oti èen pantèi préagmati éh \aléhqeia zhte%itai, kaèi tèo ye%udov, kaèi éo
skopèov to%u poio%untov, ei kaléov \estin, !h kakéov. \ Em mèen gèar t%§ E\uaggeléi§, kaèi Qeèov, kaèi
!aggelov, kaèi !anqrwpov, kaèi o\uranèov, kaèi g%h, kaèi =udwr, kaèi p%ur, kaèi \aéhr, kaèi =hliov, kaèi
seléhnh kaèi =astra, kaèi f%wv, kaèi skéotov, kaèi Satan%av, kaèi daéimonev, kaèi dfeiv, kaèi
skorpéioi, kaèi qéanatov, kaèi =çdhv, kaèi \aretaèi, kaèi kakéiai, kaèi péanta kaléa te kaèi kakéa
eéisin \eggegramméena. \ All\ =omwv, \epeid\h péanta tèa perèi aéut%wn legéomena \aleq\h eisi, kaèi éo
skopèov prèov déoxan Qeo%u èesti, kaèi t%wn éup\ aéuto%u doxazoméenwn \agéiwn, kaèi prèov swthréian
\hm%wn, kaèi kaqaéiresin, kaèi aiscéunhn to%u diabéolou kaèi t%wn daiméonwn aéuto%u,
proskuno%umen, kaèi periptusséomeqa, kaèi katafilo%umen, kaèi dfqalmo%iv, kaèi ceéilesi, kaèi
kar%oiv \aspazéomeqa %omoéiwv kaèi p%asan tèhn Palaiéan kaèi Kainèhn Diaqéhkhn, toéuv te
léogouv t%wn \agéiwn kaèi \ekkritwn Patéerwn. Tèhn d\e aiscrèan, kaèi musarèan, kaèi \akéaqarton
graféhn téhn kataréatwn Manicaéiwn te kaèi \ Ell\hnwn, kai t%wn loip%wn airéesewn, éwv
yend%h kaèi méataia periéecousan, kaèi prèovd\oxan to%u diaboléou kaèi t%wn daiméonwn aéuto%u,
kaèi caréan aéu%wn \efeureqeéisan, \apoptéuomen kaèi \apodalléomeqa, kaéioige kaèi =onama Qeo%u
periéecousan. O%utw kaèi èen t%§ préagmati t%wn eikéonwn, créh \ereun%çn téhn te \aléhqian, kaèi
tèon skopèon t%wn poioéuntwn. Kaèi ei mèen \alhqéhv kaèi \orqèov, kaèi pr\ov déoxan Qeo%u kaèi t%wn
\agéiwn aéuto%u, kaèi prèov z%hlon aret%hv, kaèi \apofugèhn kakéiav, kaèi swthréian yuc%wn
géinotai, \apodéecesqai, éwv eikéonav, kaèi miméhmata, kaèi \omoiéwmata, kaèi béiblouv t%wn
\agramméatwn, kaèi proskune%in, kaèi katafilein, kaèi \orqalmo%iv, kaèi ceéilesi, kaèi kardéiç
\aspéazesqai, éwv sesarkwméenou Qeo%u \omoéiwma, !h t%hv toéutou mhtrèov, $h t%wn \agéiwn t%wn
koinwn%wn t%wn paqhméatwn kaèi t%hn déoxhv to%u Cristo%u, kaèi nikht%wn, kaèi kaqairet%wn to%u
diabéolou kaèi t%wn daiméonwn kaèi t%hv pléanhv aéut%wn. Ei dèe Qeéothtov t%hv \a=ulou, kaèi
aswméatou, kaèi \aoréatou, kaèi \aschmatéistou, kaèi \acrwmatéistou, eikéona tiv tolméhsei
poi%hsai, éwv poi%hsai, \wv yeud%h \apoballéomeqa. (II, 10) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio
II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1293.
233
DAMASCENO, João. Oéu basiléewn \estèi nomoqetein t\h \ Ekklhséia. Téi fhsin éo qeiov \
Apéostolov; Kaèi o=uv mèhn %eqeto e Qeèov èen t%h \ Ekklhséia pr%wton, \apostoléouv deéuteron,
proféhtav tréiton, poiméenav kaèi didaskéalouv, prèov tèon katartismèon t%hv \ Ekklhséiav.
Oéuk e%ipe, basile%iv. Kaèi péalin. Peéiqesqe to=iv \hgouméenoiv \um%wn, kaèi \upeéikete. (II, 12) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae
Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1296.
89

Em seguida, assim como no primeiro tratado, ele defende que a Igreja não
proferiu Leis somente em forma de escritos, ressaltando a importância da tradição
não escrita, citando lugares santos que só se conhece através da tradição oral
como exemplos:

As testemunhas oculares e ministros da palavra, não só


transferiram a Lei da Igreja nos escritos, mas também em certas
tradições não escritas. [...] Qual é a origem do batismo tríplice,
isto é, com três imersões? Donde vem o hábito de rezarmos
voltados para o Oriente? Donde vem a veneração da cruz? Eles
não são da tradição tácita? Por isso o apóstolo divino diz:
"Assim, pois, irmãos, permaneçam firmes e conservem as
tradições que vos foram ensinadas por nós, seja por palavra de
nossas bocas ou por nossas escritas". Uma vez que muitas
coisas foram proferidas de maneira tácita na Igreja e
preservadas até agora, porque vocês discutem sobre as
imagens? (II, 16)234

Destaca outra vez que os escritos contra as imagens atribuídos a Epifânio


só podem ter sido forjados:

Se você diz que o bendito Epifânio claramente proibiu nossas


imagens, então saiba que a obra em questão é forjada, sendo o
trabalho de outro usando o nome do Epifânio divino, o que
muitas vezes acontece. (II, 18)235

Logo após, faz mais um ataque aos judeus, afirmando que se ele venera a
cruz, a lança e a esponja que os judeus utilizaram para matar o Senhor, por que
então ele não deveria venerar as imagens de Cristo? Explica ainda que, ao venerar
as imagens da cruz feita a partir de qualquer madeira, ele não estará venerando a
matéria em si, mas sim aquele que foi crucificado na mesma:

234
DAMASCENO, João. Oéu méonjn dèe gréammasi tèon \ekklhsiatikèon qesmèon paréedwkan oèi
a\utéoptai kaèi \ukhréetai to%u Léogou, \allèa kaèi \agréafoiv tisèi paradéosesi. [...] Péoqen tèo
tréiton bapéizein, toutéesti, dièa tri%wn kata%oéuewn; Péoqen tèo proskune=in stauréon; oéuk èek
t%hv \agréafou paradéosew; Dièo kaèi éo qeiov \apéostolov. Pa%uléov fhsin. ! Ara o\un \adelfoéi,
stéhkete kaèi krate%ite tèav paradéoseiv, =av \e\didéacqhte, e%ite dièa léogou, e%ite di \episeol%hv
\hm%wn. Poll%wn toigaro%un \agréafwv t%h \ Ekklhséia parademéenwn, kaèi méecri to%u n%un
pefulagméenwn, téi perèi tèav eikéona; smikrologe%ite; (II, 16) In: DAMASCENI, S. Joannis.
Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S.
Joannes Damascenus. p. 72-1301.
235
DAMASCENO, João. “Ei dèe léegeiv tèon makéarion \ Epiféonion tran%wv tèav paraéhmin
\apagore%usai eikéonav, gn%wqi éwv \epéiplastov éo léogov, =allou tinèov t%§ to%u qeéiou
‘Epifanpeéiou crhsaméhnou \onéomati, o%ia polléa sumbaéinei géinesqai. (II, 18) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae
Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1304-1305.
90

Se eu venero e reverencio a cruz e a lança e a vara e a esponja,


com os quais os judeus decididos insultaram meu Senhor e o
mataram, como a causa da minha salvação, não hei de venerar
as imagens dos sofrimentos de Cristo, formadas com um bom
propósito por aqueles que acreditam em sua glória e em sua
memória? Se eu venerar a imagem da cruz, feita de qualquer
madeira, não hei de venerar a imagem do crucificado,
mostrando a cruz salvadora? Que eu não venero a matéria é
fato. Dessa vez a cruz típica é destruída, e (dizem) é feita de
madeira, em seguida, vou entregar a madeira para o fogo, e o
mesmo farei com as imagens. (II, 19)236

Logo após, Damasceno ressalta que as imagens e sua veneração não são
práticas novas, sendo uma antiga tradição da Igreja:

Que esta invenção de imagens e sua veneração não são nada


novas, mas uma antiga tradição da Igreja, aceita a partir de uma
série de provérbios bíblicos e patrísticos. (II, 20)237

Damasceno termina o tratado com a afirmação de que tudo que se tem


feito em relação à fabricação de imagens e sua veneração está de acordo com a
Lei da Igreja e que elas são uma forma de se chegar às realidade ininteligíveis:

Veja que a Lei e tudo feito de acordo com ela, assim como a
nossa adoração, são coisas sagradas feitas à mão que nos levam
por meio da matéria ao Deus imaterial, e que a Lei e tudo feito
em conformidade com ela foi uma espécie de sombra da
imagem advinda, isto é, da nossa veneração, e que a nossa
adoração é uma imagem das coisas boas que surgem, as
próprias realidades, que é a Jerusalém elevada, imaterial e não
feita à mão, como o mesmo apóstolo divino diz, "Porque não
temos aqui nenhuma cidade permanente, mas buscamos aquela
que é de Deus". Tudo de acordo com a lei, e tudo em

236
DAMASCENO, João. Ei staurèon, kaèi léogchn, kaèi kéalamon, kaèi spéoggon, di %§n oi
qeoktéonoi. \ Iouda%ioi tèon K\uriéon mou \enéubrisan kaèi \apéekteinan, éwv a%itia swthp\iav
proskun%w kaèi séebw, tèav \epèi déoxh kaèi mnéhmh t%wn to%u Cristo%u paqhméatwn \agaq%§ skop%§
\upèo t%wn pist%wn kataskeuazoméena; eikéonav oéu proskunéhsw; Ei stauro%u eikéona \ex
oéiaso%un =ulhv kataskeuasqe=ison proskun%§, to%u staurwqéentov, kaèi tèon staurèon
swtéhrion deéixantov tèhv eikéona oéu proskunéhsw; O \apanqrwpéiav. ! Oti dée t%h =ul%h
proskun%w, d%hlon kataluqéentov gèar to%u \ektupéwmatov to%u sikuro%u, ei téucoi \ek x\ulou
kateskeuasméenou, purèi tèo xéulon paradéi%owmi, \omoéiwv kaèi t%wn eikéonwn. (II, 19) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae
Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1305.
237
DAMASCENO, João. K\ ! Otéi dèe néeon tèo t%wn eikéonwn \efeéurhma, kaèi éh toéutwn
proskéunhsiv, \all\ t%hv \ Ekklhséiav paréadosiv, déecou t%wn Gprafik%wn kaèi Patri%wn
cpéhsewn tèon \esméon. (II, 20) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras
Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1305.
91

conformidade com a nossa adoração, aconteceu para o nosso


próprio bem. A ele seja a glória para todo o sempre. (II, 23)238

É possível perceber, assim, como os dois primeiros tratados são parecidos


de uma forma geral e como Damasceno se aprofunda nos argumentos relativos à
veneração e encarnação. Em suma, o que esse segundo tratado traz de diferente é
a crítica direta à pessoa do imperador e uma crítica mais contundente aos judeus e
ao maniqueísmo.

2.3.3. O Terceiro Tratado

João Damasceno inicia o seu terceiro e último tratado reiterando a


afirmação de que não se deve receber nenhuma ordem acerca dos assuntos
eclesiásticos que não seja dada pela própria Igreja Católica, através dos Santos
Apóstolos, Padres e sínodos, mesmo que essas ordens venham a partir de um anjo
ou imperador:

Se um anjo, ou um imperador, proclamar a você, além do que


foi recebido, fechai os ouvidos. No momento eu hesito em
dizer, como o divino apóstolo disse: "Que ele seja anátema!",
Pois ele pode receber a correção. (III, 3)239

Alega também que aquele que destrói uma imagem feita em memória de
Cristo, Sua Mãe ou dos santos é um inimigo de Cristo, Sua Mãe e dos santos e,

238
DAMASCENO, João. ! Ora =oti kaèi éo néomov kaèi péanta tèa kat\ a\utèon, p%aséa te éh kaq\
\hm%av latreéia, ceiropoéintéa eéisin =agia, d\i =ulh; proséagonta \hm%av t%§ =a%ul§ Qe%§. Kaèi éo mèen
néomov, kaèi péanta tèa katèa tèon néomon, skiagraféia tiv %hn t%hv melloéushv eikéonov, toutéesti
t%hv kaq\ \hm%av latreéiav. \h dèe kaq\ \hm%av latreéia, eikèwn t%wn melléontwn \agaq%wn \agaq%wn
a\utéa dèe tèa préagmata, \h %anw \ Ierousaléhm, =a%ulov kaèi \aceiropoéintov, kaqéuiv fhsin éo
a\ut\ov qe%iov \ Apéostolov. \ Oéu gèar \ecomen %wde méenousan péolin, \alléa téhn méellousan
\epiznto%umen, =htiv \estin \h =\anw \ Ierousaléhm, \hv tecnéithv kaèi dhmiourgov éo Qeèov. Péanta
g\ar t\a te kat\a t\on n\omon, kai t\a kat\a t\hn \hmet\eran latre\ian, \ekeinhv c\arin \eg\enonto
aéut%§ \h déoxa eiv toéuv ai%wnav a \ Améhn. (II, 23) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1309.
239
DAMASCENO, João. K=an =aggelov, kan basileéuv e\uggeléizhtai \um%av par\ =o pareléadete,
kleéisata tèav \akoéav \okn%w gèar t\ewv eéipe=in, \éwv Jfh éo qe=iov \ Apéostolov, \ Anéaqema =estw,
\ekdecéomenov téhn diéorqwsin. (III, 3) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui
Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus.
p.1321.
92

defensor do Diabo e de seus demônios. Defende que a imagem é um triunfo,


manifestação e memória da vitória dos mais bravos e vergonha dos derrubados:

Que todos saibam, portanto, que qualquer um que tenta destruir


uma imagem trazida à existência fora do anseio divino e zelo
pela glória e memória de Cristo, ou de sua Mãe divina
Theotokos, ou de um dos santos, ou ainda para desgraça do
diabo, da derrota do mesmo e de seus demônios, que foi,
veementemente retratada, venerada, honrada ou saudada como
imagem tão preciosa e não como Deus, é um inimigo de Cristo
e da Santa Mãe de Deus e dos santos, é um defensor do diabo e
seus demônios, e mostra por seu ato seu infortúnio e que Deus e
seus santos são honrados e glorificados, e o diabo desonrado.
(III, 10)240

Logo após, através de uma passagem das Escrituras, Damasceno explica


que os Apóstolos viram Cristo corpóreo, o que Ele sofreu e os Seus milagres, já
que Ele estava presente para eles. Como Ele não está presente para nós de forma
corpórea, somos abençoados por Cristo através dos Seus livros, que devem ser
honrados, assim como a Sua representação por meio de imagens, pelas quais
podemos ver Cristo corporalmente, pois contemplando a Sua forma física é
possível compreender a glória de Sua divindade:

O Senhor abençoou os seus discípulos, dizendo: "Muitos reis e


profetas desejaram ver o que você vê, e eles não viram, e ouvir
o que ouvis, e não ouviram. Bem-aventurados são os vossos
olhos, porque veem, e os vossos ouvidos, porque ouvem ".
Portanto, os apóstolos viram Cristo corpóreo e o que ele sofreu
e seus milagres e ouviram as suas palavras; nós também
desejamos ver e ouvir e ser abençoados. Eles viram face a face,
uma vez que ele se fez presente para eles fisicamente; no nosso
caso, no entanto, uma vez que ele não está presente
corporalmente, mesmo quando nós ouvimos as suas palavras
através de livros e somos santificados em nossos ouvidos e
através dele nós somos abençoados em nossa alma, e
veneramos e honramos os seus livros, por meio dos quais nós
ouvimos as suas palavras, assim também por meio da
representação de imagens contemplamos a forma de seu caráter

240
DAMASCENO, João. Ginwskéeto o%un p%av =anqrwpov, éwv éo téhn eikéona tèhn prèov déoxan
kaèi \upéomnhsin to%u Cristo%u kaèi t%hv toéutou Mhtrèov t%hv \agéiav Qeotéokou, =h tinov t%wn
\agéiwn, =eti dèe prèov a\iscéunhn to%u diabéolou kaèi t%hv =htthv a\uto%u kaèi t%wn daiméonwn aéuto%u,
\ek qeéiou péoqou kaèi zéhlou genoméenhn, kataléuein \epiceir%wn, kaèi méh proskun%wn ka\èi tim%wn
kaèi \aspazéomenov péoqy to%u eikonizoméenou, ´wv eikéona, kaèi oéuc éwv Qeèon, \ecqrèov iéesti
Cristo%u, kaèi t%hv |agéiav Qeotéokou, kaèi t%wn \agéiwn, \ekdikhtéhv dèe to%u diabéolou kaèi t%wn
daiméonwn aéuto%u, =ergy \epideiknéumenov téhn léuphn, =oti éo Qeèov kaèi o\i =agioi aéuto%u tim%wntai
kaèi doxéazontai, éo dèe dièabolov kataiscéunetai. (III, 10) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio
III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S.
Joannes Damascenus. pp. 1332-1333.
93

corporal e os milagres e tudo o que ele suportou, e somos


santificados e assegurados, e nos alegramos e somos
abençoados, e reverenciamos, honramos e veneramos seu
caráter corporal. (III, 12)241

Assim como no segundo tratado, afirma que o seu discurso é sobre


imagem e veneração, e, como tal, é necessário responder a algumas questões
acerca de ambas. Dessa forma, inicia com a interrogação acerca do que é imagem,
respondendo, em seguida, que imagem é uma semelhança de algo que é retratado,
mas não de forma idêntica como um arquétipo:

Em primeiro lugar, o que é imagem? Uma imagem é, portanto,


uma semelhança, padrão e impressão de algo, mostrando em si
mesma o que é retratado; no entanto, a imagem certamente não
é como o arquétipo, isto é, o que é descrito, em todos os
aspectos - pois as imagens são uma coisa e o que ela descreve é
outra - e, certamente, a diferença é vista entre eles, uma vez que
eles não são idênticos. (III, 16)242

A segunda questão feita por Damasceno é sobre a finalidade da imagem,


entendida por ele como um manifesto que leva a algo oculto:

Em segundo lugar, qual é a finalidade da imagem? [...] a


imagem foi elaborada para nos guiar ao conhecimento e para
manifestar e abrir o que está oculto, certamente para nosso

241
DAMASCENO, João. | O Kéuriov makaréizwn toéuv maqhtéav, e=ipe. | Polloèi basile=iv kaèi
prof%htai \epeqéumhsan ide%in =a bléepete, kaèi o=uk e%idon, kaèi \ako%usai =a \akoéuete, kaèi oéuk
=hkousan. \ Gm%wn dèe makéario\i eisin o|i \ofqalmoèi, =oti bléepousi, kaèi \wta, =oti \akoéuousin. \
E\idon o%un o\i \apéostolov swmatik%wv t|on Cristèon, ka\èi tèa péaqh, kaèi tèa qaéumata aéuto%u,
kaèi =hkousan t=wn léogwn aéuto%u. \epiqumo%umen kaèi \hme=iv ide=in, kaèi \ako%usai, kaèi
makarisq%hnai. Eidon \eke=inoi préoswton prèov préoswpon, \epeidéh par%hn swmatik%wv. %hme=iv
dèe, \epeid\hswmatik%wv oéu péarestin, =wsper dièa béiblwn \akoéuomen t%wn léogwn aéuto%u, kaèi
\agiazéomeqa téhn \akoéhn, kaèi \oi a\ut%hv téhn yucéhn, kaèi makarizéomeqa, kaèi proskuno%umen,
tim%wntev tèav béiblouv, dèe éwn \akoéuomen t%wn léogwn aéuto%u. o%utwv kaèi diéa graf%hv e\ikéonwn
qewro%umen tèo \ektéupwma to%u swmatiko%u carakt%hrov aéuto%u, kaèi t%wn qauméatwn kaèi t%wn
paqhméatwn aéuto%u, kaèi \agizéomeqa, kaèi plhroforoéumeqa, kaèi caéiromen, ka\èi
makarizéomeqa, kaèi séebomen, kaèi tim%wmen, kaèi proskuno%umen tèon carakt%hra aéuto%u tèon
swmatikéon. Qewro%untev dèe tèon swmatikéon carakt%hra aéut\o%u, \enno%umen éwv dunatéon kaèi
téhn déoxan t%hv qeéothtov aéuto%u. (III, 12) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus
Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. pp. 1333-1336.
242
DAMASCENO, João. %wton, ti =esti e\ikéwn. E\ikéwn mèen o\un \estin |omoéiwma, ka\èi
paréadeigma, kaèi \ekt\upwméa tinov,\en |eaut%§ deiknéuon tèo e\ikonizéomeoi. Péantwv dèe oéu katèa
péanta éh e\ikéwn t%§ prwpotéup§, toutéesti t%§ e\ikonizoméen§. =allo géar \estin éh e\ikèwn, kaèi
=allo tèo e\ikonizéomenon, kaèi péantwv \or%atai \en aéuto\iv diaforéa, \epeèi oéuk =allo to%uto, kaèi
=allo \eke=ino. O%iéon ti léegw. | H e\ikèwn to%u \anqréwpou, e\i kaèi tèon carakt%hra \ektupu=i to%u
s\wéatov, \all\a tèav yucikéav dunéameiv oéuk \ecei o=ute gèar z\h, o=ute logéizetai, o=ute
fqéeggetai, o=ute aisqéanetai, o=ute méelov kineèi kaèi èo uéiov, e\ikèwn =wn to%u patrèov, =ecei ti
parhllagréeton prèov a\utèon. Tiéov géar \esti, kaèi oéu patéhr. (III, 16) In: DAMASCENI, S.
Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus
XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1337.
94

proveito e fazer o bem e a salvação, de modo que, à medida que


aprendemos o que está oculto nas coisas gravadas e propaladas,
estamos cheios de desejo e zelo para com o que é bom, e para
evitar e odiar o oposto, isto é, o que é mau. (III, 17)243

Em seguida, questiona os diferentes tipos de imagem, explicando a


existência de seis tipos, sendo o primeiro tipo de imagem a imagem natural, que é
o que é por natureza, ou seja, o Filho do Pai; o segundo tipo é a vontade de Deus;
o terceiro é o gerado por Deus, através da imitação, isto é, a espécie humana; o
quarto tipo é o uso nas Escrituras de formas e figuras para a transmissão da
concepção de Deus e dos anjos, descrevendo em forma corpórea o que é invisível
e imaterial, sem a utilização de formas que levam a nós; o quinto tipo de imagem
é a que prefigura e retrata antecipadamente o que está por vir; já o sexto e último
tipo é a imagem feita para a memória, glória e honra daqueles que se sobressaíram
em virtude. Explica que esse último tipo é duplo, sendo composto pelas letras que
retratam as palavras e pelas coisas que podem ser vistas através do sentido da
visão.

Em seguida, questiona o que deve ser ou não ser representado e como é


qualquer coisa representada:

Para expor de forma simples: nós podemos fazer imagens de


tudo com uma forma visível; entendemos essas coisas, assim
como elas são vistas. Pois se a partir das palavras nós
entendemos formas, porém pelo que vimos nós também
chegamos a um entendimento deste assunto, então é também
com cada um dos sentidos, a partir do olfato, paladar ou toque,
que chegamos a compreender estas coisas através de palavras.
(III, 24)244

243
DAMASCENO, João. Deéutepon, téinov céarin \estéin |h e\ikéwn. [..] kaéi fanéerwsin, kaèi
dhmoséieusin t%wn kekrumméenwn, \epenoéhqh éh eikéwn péantwv dèe prèov \wféeleian kaèi
e\uergeséian kaèi swthréian, =opwv sthliteuoméenwn kaèi qriamdeuoméenwn t%wn pragméatwn,
diagn%wmen tèa kekrumméena, kaèi kalèa poqéhswmen kaèi zhléwswmen, tèa dèe \enantéia, toutéesti
tèa kakèa, \apostraf%§men kaèi miséhswmen. (III, 17) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1337.
244
DAMASCENO, João. | Apl%§ dèe léogw eipe=in, dunéameqa poie=in e\ikéonav péantwn t%wn
schméatwn, éwn eéibomen dèe ta%uta, kaqéwv \wréaqh ei gèar kaèi \apèo t%wn léogwn, =esq =ote
katanoo%umen scéhmata, \all\ \ex éwn e=idomen, kaèi \epi téhn toéutwn \ercéomeqa katanéohsin.
O%utw kaèi \ef \ekéasthi a|isqéhsewv, \ex éwn \wsfréanqhmen, =h \egeuséameqa \hyéameqa, dièa léogwn
\epi téhn toéutwn \ercpéomeqa katanéohsin. (III, 24) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1344.
95

Sobre a imagem, a última questão feita por Damasceno é sobre quem


primeiro teria feito imagens, sendo a resposta, Deus:

Quem primeiro produziu as imagens? O próprio Deus primeiro


gerou seu Filho Unigênito e a Palavra, sua vida e imagem
natural, a impressão exata de sua eternidade; então ele fez a
espécie humana, de acordo com a sua imagem e semelhança.
(III, 26)245

Posteriormente, inicia as questões referentes à veneração, questionando,


primeiramente, o que é a mesma:

No que diz respeito à veneração: o que é veneração? Veneração,


portanto, é um sinal de submissão, de subordinação e
humildade. Os tipos de veneração são vários. (III, 27)246

Logo após, indaga quais são as formas de veneração, confirmando a


existência de cinco, que se dividem em veneração de culto, de admiração, de ação
de graça, de necessidade e de arrependimento e confissão, explicando cada uma
dessas formas.

Damasceno explana ainda acerca dos objetos de veneração que são


encontrados nas Escrituras e quais as formas de veneração que se deve dar a cada
um deles. Termina o terceiro tratado defendendo que se deve receber a tradição da
Igreja sem discussões, não se permitindo aprender uma nova fé. Novamente,
afirma que venerar as imagens não é como venerar a matéria, mas sim aquele que
nela é representado. Por fim, apresenta as citações patrísticas como foi feito nos
dois primeiros tratados:

Não vamos nos permitir aprender uma nova fé, como se


estivessémos sentados em julgamento sobre a tradição dos
santos Padres. Pois o apóstolo divino diz: "Se alguém vos
pregar outro evangelho além do que já recebestes, seja
anátema". Nós, portanto, veneramos as imagens, não

245
DAMASCENO, João. Tiv pr%wtov \epoéinsen eikéona. Aéutov éo Qeèov pr%wtov \eg\ennhse tèon
monogen%h G\iéon kaèi Léogon aéuto%u, eikéona aéuto%u z%wsan, fusikéhn, !aparéallakton
carakt%hra t%hv aéuto%u \aidièothtov. \epoéihsi te tèon !anqrwpon kaèi eikéona aéuto%u kaèi kaq\
dmoéiwsin. (III, 26) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1345.
246
DAMASCENO, João. Perèi proskunéhse§v t\èi \esti proskéuhsiv; Proskéunhsiv toéinun
\esti shme=ion upotéasewv, toutéestin, \upotéasewv kaèi tapeinéwsewv. trèopoi dèe
proskunéhsewv eéisi pleéistoi. (III, 27) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus
Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1348.
96

oferecendo veneração à matéria, mas através delas para aqueles


que são retratados nelas. "Pois a honra oferecida à imagem
chega até o arquétipo", como diz o Basílio divino. Tendo falado
da diferença entre os ídolos e imagens, e tendo ensinado a
definição de imagens, eis que agora apresentarei as [patrísticas]
citações, como temos vindo a desenvolver. (III, 41)247

Após a análise desse terceiro e último tratado é possível observar que os


três tratados expõem sobre as mesmas questões que se referem à imagem e sua
veneração. No entanto, percebemos que, nesse terceiro, Damasceno procura se
aprofundar nos temas, descrevendo-os com maior riqueza de detalhes. Podemos
afirmar, assim, que apesar de abordarem o mesmo assunto, os tratados seriam um
complemento do outro, já que em cada um pode-se notar a inclusão de um
determinado tema ou argumentos novos.

2.4. Considerações sobre Damasceno e os três tratados em defesa das imagens

De uma forma geral, os três tratados escritos por São João Damasceno no
decorrer da crise iconoclasta apresentam uma defesa das imagens através do apelo
à verdade e tradição. Para tanto, se utiliza de outros conceitos como encarnação,
veneração, memória, honra e protótipo para demonstrar a validade da fabricação e
culto da imagem. Suas obras são, assim, um discurso sobre imagem e veneração, e
sobre a definição de ambos esses termos. Para Andrew Louth248, mais do que uma
simples defesa das imagens e de sua veneração, as obras de Damasceno foram
uma defesa do lugar ocupado pelos ícones na teologia cristã.
De acordo com Isabel Maria L. C. A. Cardoso249, os escritos de João
Damasceno, integrados em um grande número de obras, têm a preocupação de
discutir polêmicas teológicas dentro dos ensinamentos e escritos dos Santos
Padres da Igreja, por isso a inclusão do Florilégio no fim de cada tratado, isto é,
as citações patríticas utilizadas para comprovar os seus argumentos. A autora
afirma que o objetivo do monge seria o de internalizar em seus leitores e nele

247
DAMASCENO, João. Mèh katadexéwmeqa néean péistin maqeéin, éwv kategnwsméenhv t%hv t%wn
\agéiwn Patéerwn paradéosewv. Fhsi gèar qeéiov \ Apéostolov. | E\i tiv \um%av e\uaggeléizetai
par\ =o pareléabete, \anéaqema =estw. \ Proskuno%umen o%un taiv e\ikéosin, oéu t%h !ulh
prosféerontev téhn proskéunhsin, \allèa di aéut%wn to=iv \en aéuto=iv eikonizoméenoiv. | H gèar
t%hv eikéonov timéh \epi tèo prwtéotupon diabaéinei, kaqéwv fhsin éo qeiov Baséileiov. (III, 41) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In:
Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1357.
248
LOUTH, 2002.
249
CARDOSO, 2013.
97

mesmo o sentimento de pertencer à comunidade cristã universal, já que


Damasceno se encontra fora dos domínios bizantinos, e em um território
dominado pela cultura e religião islâmica.
Cardoso afirma ainda que os três tratados consistiram em reconhecer e
esclarecer o problema terminológico presente na definição dos termos imagem
(εικών) e veneração (προσκύνεσις), sendo o significado de imagem a realidade
representada, sendo, por isso, impossível representar Deus por este ser invisível e
inatingível, já que sua representação seria considerada idolatria. Já o significado
de veneração, no contexto de venerar Deus, seria o de adoração, reverência esta
que só pode ser oferecida a Ele. Assim, para a autora, “a honra prestada às
imagens passa ao protótipo e que há uma distinção entre adoração (λατρεία),
somente prestada a Deus, e veneração (προσκύνεσις)”.250
Dessa forma, Cardoso salienta que a base da argumentação de João
Damasceno está na afirmação de que Deus se deixou conhecer através da
encarnação de Seu Filho, que é possível de ser representado:

São João Damasceno defende que a Encarnação implica a


possibilidade de representação, não tanto da natureza humana
de Cristo, mas sobretudo da hipóstase do Verbo. Neste sentido,
negar a representação figurativa do Senhor Jesus significa
afirmar que a Encarnação não existiu.251

Renato Viana Boy252 chama a atenção para a diferenciação que


Damasceno faz entre o ícone e a pessoa representada no mesmo, isto é, o
protótipo, procurando demonstrar a dificuldade de distinção dessas ideias para os
fiéis que nem sempre tinham conhecimento das mesmas ou as compreendiam:

Damasceno tentou frisar a diferença entre o protótipo e o ícone


que o representa, embora argumentasse que ambos se refiram a
mesma hipóstase. Mesmo que os principais teólogos dos ícones
tentassem definir de maneira clara e coerente que o protótipo é
uma coisa e sua representação outra, o próprio culto a uma
imagem depende, na consciência do fiel, dessa fusão entre a
pintura e a pessoa nele representada. Besançon faz uma crítica a
Damasceno, baseado no fato de ele não conseguir perceber o
que diferencia a valorização da matéria do ícone em seus
escritos de tais práticas supersticiosas. Era como se o ícone

250
CARDOSO, 2013, p. 69
251
Ibidem.
252
BOY, 2008.
98

tivesse os atributos da pessoa representada, como, por exemplo,


o poder de curar os fiéis.253

Além disso, Boy atenta também para a distinção entre adoração e


veneração, afirmando que o argumento de Damasceno para o discernimento dos
cristãos sobre esses termos é frágil:

Lowden observa o que esse argumento tem de superficial e


frágil. Concordamos com esse autor quando ele afirma que para
que essa diferenciação entre adoração e veneração fosse
corretamente observada, cada cristão individualmente deveria
observar essa “sutil distinção” entre as duas atitudes citadas.
Por haver evidências de que, muitas vezes na história do
Cristianismo, as práticas não coincidam com as idéias pregadas,
vale questionar se todo cristão possuía conhecimento necessário
para diferenciar um culto de veneração de uma adoração e, mais
ainda, se observava essas sutis diferenciações durante sua
prática de culto. 254

Assim como já observamos neste trabalho em relação à utilização dos


mesmos argumentos tanto pelos iconoclastas quanto por João Damasceno para a
defesa de seus diferentes propósitos, Boy também observou esse aspecto quanto à
argumentação de Damasceno de que a iconoclastia é que seria uma inovação que
fugiria às tradições eclesiásticas e não a produção e culto das imagens:

Chama a atenção o fato de João Damasceno inverter a alegação


iconoclasta de ruptura com a tradição. Os bispos iconoclastas
afirmavam que os ícones eram uma invenção dos pintores, que
iria de encontro a uma proibição bíblica. Na Apologia de
Damasceno é a iconoclastia (e não o culto dos ícones) que é
abordada como uma ruptura em relação a uma tradição cristã,
uma inovação na Igreja. E recomenda ainda aos fiéis que não
sigam esse caminho de inovações, contrárias a toda uma
tradição de costumes e ensinamentos. 255

Como se sabe, após o fim definitivo da iconoclastia em 843, podemos


observar a origem de um período de apogeu da arte religiosa bizantina entre os
séculos IX e X, no qual Boy levanta a hipótese de que

na ausência de um grande número desses ícones, os escritos do


monge de Damasco teriam se tornado importantes referenciais
teóricos para que a produção dessas imagens continuassem a

253
BOY, 2008, p. 167.
254
BOY, 2008, p. 165.
255
Ibidem, pp. 166-167.
99

seguir um mesmo padrão após o Synodikon da Ortodoxia em


843.256

O autor afirma, com isso, que não despreza a relevância das tradições não escritas
referentes à produção e culto dos ícones, mas sim, busca “valorizar essa obra
como o primeiro esforço de um cristão na busca de uma teoria em torno de um
dos mais importantes objetos da cultura material do Cristianismo Ortodoxo
bizantino”.257
Neste sentido, sobre os aspectos gerais dos três tratados, o primeiro nos
apresenta um debate acerca da imagem através dos conceitos de verdade e
salvação, tradição escrita e não escrita, idolatria em meio a um discurso anti-
judaico, veneração, honra, memória e protótipo. No Florilégio que surge no final
do tratado podemos observar o uso de vários nomes importantes da Igreja, além
das passagens citadas das Escrituras que observamos em todo o texto. O nome que
aparece por mais vezes nesse primeiro tratado, tanto de forma direta quanto de
forma indireta, pois João Damasceno opta por citar o nome em um parágrafo e no
outro apenas usar a expressão “o mesmo”, é o de São Basílio, citado treze vezes
(linhas 34; 35; 36; 37; 38; 39; 40; 42; 44; 46; 47; 51; 60); seguido por São
Gregório de Nissa, quatro vezes (linhas 48; 49; 50; 52) e São Dionísio Areopagita,
também quatro vezes (linhas 28; 29; 30; 32); por duas vezes São João Crisóstomo
(linhas 53; 61), Leôncio de Neapólis (linhas 54; 56) e Severiano de Gabala (linhas
57; 58) e uma única vez Epifânio (linha 57), Sofrônio de Jerusalém (linha 64),
Vida de Santa Eupraxia (linha 62) e Vida de Santa Maria do Egito (linha 63).258
Já o segundo tratado, apesar de abordar os mesmos conceitos utilizados no
primeiro, se difere deste por apresentar ataques diretos aos imperadores Leão III e
Constantino V, precursores do iconoclasmo, além de novamente expressar um
discurso anti-judaico, com a inserção ainda de discursos anti-pagão e anti-
maniqueísta. O florilégio é composto, de acordo com Andrew Louth259, pelo
florilégio do primeiro tratado, linhas 28 a 68, com novas passagens inseridas entre
256
Ibidem, p. 168.
257
BOY, 2008, p. 168.
258
É preciso esclarecer que na tese de Isabel Maria Cardoso podemos encontrar um quadro
composto por esses nomes com as respectivas linhas em que os mesmos podem ser encontrados
nos três tratados de São João Damasceno. No entanto, optamos por não utilizá-lo, por
encontrarmos diferenças significativas quanto aos nomes citados (ao fazer a comparação faltavam
ou sobravam autores) e à quantidade de vezes que os mesmos se manifestam. Concluímos que isso
pode ter ocorrido devido ao uso de versões e traduções diferentes das obras. Para visualização,
análise e comparação, ir em: CARDOSO, 2013, pp. 106-107.
259
LOUTH, 2003. p. 78.
100

as linhas 63 e 64 do primeiro tratado e inseridas entre as linhas 59 e 67 do


segundo tratado.
Sendo assim, o segundo tratado é composto além das citações já
mencionadas do primeiro, com as linhas 60 a 66 a mais. Os autores citados são
São Basílio por treze vezes (linhas 34; 35; 36; 37; 38; 39; 40; 42; 44; 46; 47; 51;
60); seguido por seis vezes São João Crisóstomo (linhas 53; 61/ 60*; 61*; 62*;
63*); São Gregório de Nissa, quatro vezes (linhas 48; 49; 50; 52) e também quatro
vezes, São Dionísio Areopagita (linhas 28; 29; 30; 32); por duas vezes, Leôncio
de Neapólis (linhas 54; 56) e Severiano de Gabala (linhas 57; 58) e uma única vez
Epifânio (linha 57), Sofrônio de Jerusalém (linha 64), Vida de Santa Eupraxia
(linha 62), Vida de Santa Maria do Egito (linha 63), Santo Ambrósio de Milão
(linha 64*), Máximo, o Confessor (linha 65*) e Anastácio Teópolis de Antioquia
(66*).260
O terceiro tratado segue a linha do primeiro e do segundo, porém,
podemos perceber um maior aprofundamento do assunto, principalmente no que
concerne aos problemas referentes à imagem e à veneração. Nesse tratado também
notamos que Damasceno, assim como no segundo, faz ataques aos imperadores
Leão III e Constantino, mas no geral defende a figura do imperador em si.
Percebemos que o Florilégio desse terceiro tratado é maior e também contém um
maior número de autores citados. Dentre eles, o que é mencionado por mais vezes,
sendo dezesseis no total é São João Crisóstomo (linhas 51; 60; 65; 66; 75; 93; 94;
95; 102; 103; 104; 105; 110; 120; 121; 122); seguido por oito vezes tanto Basílio
de Cesaréia (linhas 46; 47; 48; 53; 56; 58; 106; 118) quanto Eusébio de Cesaréia
(linhas 67; 69; 70; 76*; 77*; 78*; 79*; 98* 261); por seis vezes São Gregório
Nazianzo (linhas 64; 74; 107; 108; 109; 119), Teodoro (linhas 90; 97; 99; 100;
101; 130) e São Leôncio de Neapólis (linhas 84; 85; 86; 87; 88; 89); por quatro
vezes Teodoreto de Chipre (linhas 55; 80; 81; 96); por três vezes Severiano de
Gabala (linhas 52; 122; 123), Santo Atanásio de Alexandria (linhas 59; 114; 115)
e Cirilo de Alexandria (linhas 61; 62; 63); por duas vezes São Dionísio
Areopagita (linhas 43; 44), São Sofrônio de Jerusalém (linhas 132; 135), Estevão

260
Os números que se encontram marcados com (*) fazem parte das citações acrescentadas ao
Florilégio do primeiro tratado para formar o Florilégio do segundo tratado. Optamos por seguir
esses números para melhor compreensão e porque assim o autor Andrew Louth o faz na edição dos
tratados que aqui utilizamos e que ele traduziu.
261
Os números que se encontram marcados com (*) são para indicar que se trata de um menção
indireta a Eusébio de Cesaréia, por meio de sua obra Vida de São Constantino.
101

de Bostra (linhas 72; 73), Anastácio de Monte Sinai (linhas 91; 133) e Anastácio
de Antioquia (linhas 127; 128); por uma vez Ambrósio de Milão (linha 116),
Gregório de Nissa (linha 50), Isidoro diácono (linha 124), Arcádio de Chipre
(linha 92), São Metódio (linha 138), Sócrates (linha 71), São Simeão (linha 126),
Cirilo de Jerusalém (linha 117), Jerônimo de Jerusalém (linha 125), São Teodoro
de Pentápolis (linha 113), João Malalas de Antioquia (linha 68) e Clemente de
Alexandria (linha 112).
É possível perceber através desse balanço como os textos e nomes
patrísticos são importantes na composição dos três tratados em defesa das
imagens de São João Damasceno e como ele os usou de forma sistemática em sua
argumentação. O uso desses escritos mostra sua ligação com a tradição da Igreja,
a importância que ela tem em sua vida e como é necessário que ela seja defendida
até mesmo de um imperador. Assim, será no terceiro e último capítulo deste
trabalho que abordaremos de forma mais profunda a relação de Damasceno com a
imagem imperial e os imperadores Leão III e Constantino V que deram início à
política iconoclasta.
102

CAPÍTULO 3
A DEFESA DAS IMAGENS DE SÃO JOÃO DAMASCENO:
CRÍTICA E FUNDAMENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DO
PODER IMPERIAL EM BIZÂNCIO

Como pudemos observar no primeiro capítulo, no que se refere ao poder


imperial em bizantino, este geralmente é analisado pelos pesquisadores da
iconoclastia a partir do âmbito religioso, do ponto de vista teocrático, assim como
as fontes sobreviventes do período, já que as mesmas foram produzidas por
membros da Igreja. Os próprios tratados de João Damasceno também foram quase
sempre analisados pela perspectiva religiosa 262.
Por isso, nossa abordagem dessas obras será feita por meio de outra
perspectiva, no intuito de propor novas ideias que possam auxiliar na
compreensão não apenas da crise iconoclasta em si, mas também e,
principalmente, na compreensão da percepção de Damasceno sobre o período e
sobre o poder do imperador e sua atuação como tal na sociedade bizantina.
Procuramos, assim, diferentemente dos demais colegas, inserir os três
tratados de Damasceno dentro não só de uma perspectiva religiosa, mas também a
partir da perspectiva do poder, neste caso, do poder imperial. Nosso intuito é
demonstrar que mesmo uma obra vista como toda composta por um teor religioso
pode ser também uma obra sobre política/poder.
Para tanto, faremos uso das ideias de Anthony Kaldellis 263 e sua defesa da
existência de uma república bizantina e não de um governo totalmente teocrático,
o que nos mostra que o imperador possuía outras competências enquanto
representante da mais importante forma de poder em Bizâncio, além de sua
missão teocrática. Para o autor, ambos os regimes – teocrático e republicano – não
se excluíram mutuamente em Bizâncio, mas coexistiram.
Faremos uso também da obra de Hélène Ahrweiler 264 que defende a ideia
de nacionalismo por parte dos bizantinos, a partir da ascensão do imperador Leão

262
Abordagens do ponto de vista religioso dessas obras podem ser encontradas em autores como
Bacarreza (2010), Boy (2008), Cardoso (2013) e Louth (2002).
263
KALDELLIS, 2015.
264
AHRWEILER, 1975, pp. 25-36.
103

III e a eclosão da iconoclastia, que nos demonstra também uma certa percepção de
ideais republicanos existentes em Bizâncio.
Dessa forma, nosso intuito neste capítulo é, em primeiro lugar, tratar da
questão republicana bizantina, para depois mostrar essa frente do poder que
acreditamos ser defendida por João Damasceno em seus tratados para, enfim,
tentar compreender a percepção de Damasceno enquanto uma percepção de quem
está fora do Império.

3.1. Além da questão teocrática: a república bizantina

Como pudemos observar em autores como Gilbert Dagron265 no primeiro


capítulo, a “ideologia política bizantina” é quase sempre interpretada pelos
pesquisadores do tema a partir da ideia teocrática do poder imperial, muito
difundida através da obra de Eusébio de Cesaréia. O problema dessa concepção
teocrática se encontra no fato de que parte do pressuposto de que a maioria da
população bizantina compartilhava dessas crenças, ou seja, consentia a utilização
das mesmas para o funcionamento do sistema imperial. No entanto, não há
evidências que apontem que essa população compartilhava dessas concepções
teocráticas.266
Dessa forma, Anthony Kaldellis 267 faz críticas aos pesquisadores que se
utilizam do termo “ideologia” para designar a noção teocrática do poder imperial,
pois “ideologia” deve ser utilizada para a compreensão das operações reais do
âmbito político e nem sempre as “ideologias” foram ou são fabricadas para o
benefício político das elites. “Ideologia política bizantina” representaria, assim, a
sobrevivência das concepções republicanas romanas nas fontes, nos usos e na
legitimação do poder em Bizâncio. Isso quer dizer que o modelo de monarquia
bizantina seria uma monarquia republicana e não uma monarquia constituída
através do direito divino do imperador, pois a percepção de que a pessoa do
imperador era a personificação da “ideologia política bizantina” é controversa. 268
Se a legitimidade do poder imperial fosse, assim, concebida a partir do
direito divino, não haveriam regras humanas para a nomeação do imperador,

265
DAGRON, 2007.
266
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 1-14.
267
Ibidem.
268
Ibidem.
104

somente regras divinas, o que não é observável no decorrer da história bizantina.


Se os bizantinos fossem realmente tão ortodoxos, não seriam encontradas nas
fontes relatos de críticas da população aos imperadores, como também
conspirações e rebeliões tanto a favor como contrárias a eles. Vários são os relatos
que retratam a fragilidade do trono, que jamais poderiam ser explicados através da
ideologia dominante que afirma que em Bizâncio somente existia a autocracia. Há
de se concluir que os bizantinos eram romanos e, como tal, sua base política
também era romana, logo, não concebida pelo direito divino. Roma não era
apenas um nome de prestígio utilizado pelos imperadores bizantinos com fins de
propaganda ou diplomáticos, mas sim a matriz que concebeu a moral do governo
bizantino, que fazia de Bizâncio uma “politeia romana”, isto é, uma república. 269
Sendo assim, não é adequado traduzir politeia como Estado, pois o seu
sentido é bem mais amplo, apesar disso ser feito. A tradução de politeia seria
república romana. Já o Estado seria parte integrada da política, que permitiria
chegar ao bem comum. Política enquanto coletividade quer dizer que cada
profissão, cargo, pessoa ou até mesmo o próprio imperador, tinham suas funções
bem definidas para a sobrevivência de todos. Portanto, a politeia e a basileia eram
inseparáveis, pois era impossível ter política sem um Estado e este passou a ser
monárquico.270
Como já foi destacado, monarquias e repúblicas são consideradas pelas
definições modernas enquanto modelos de regimes mutuamente excludentes, já
que os termos “República” e “Império” são utilizados para distinguir duas fases
romanas. Porém, a res publica em uso romano e politeia no grego bizantino não
se referem a um modelo de regime para a organização política, mas sim ao uso do
poder do Estado em um contexto de soberania popular. Isto é, diz respeito ao
interesse do coletivo e uma monarquia pode sim ser uma república dentro desse
contexto. Neste sentido, é enganosa e ilusória a ideia de que em Bizâncio
desapareceu toda e qualquer pretensão de republicanismo, restando somente a
figura do imperador enquanto um monarca autocrático.271
Dessa forma, tem-se como consequência dessa falha referente à “ideologia
política bizantina” a ideia de que apenas o imperador era o local político

269
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 1-14.
270
Ibidem, pp. 13-31.
271
Ibidem.
105

relevante, com a idealização de uma política constituída a partir de uma


concepção divina, com um imperador e seus instrumentos de governo e uma
massa de indivíduos que se viam sem outras chances a não ser o fato de possuírem
uma religião e de que eram súditos do imperador. Essa falha estaria na negação da
identidade romana de Bizâncio.272
Parte desse problema estaria, assim, na divergência na utilização ou não do
vocábulo “Estado” e suas implicações nas eras anteriores à Era Moderna, por se
tratar de um termo moderno. No entanto, a designação de Bizâncio enquanto um
Estado é aceito por quase todos os pesquisadores, – inclusive nós – sendo o
“Estado” entendido enquanto um instrumento de governo, no qual o imperador
não governava sozinho, sendo auxiliado por seus funcionários e soldados que
tinham suas funções que visavam o bem comum dos romanos. Isto é, serviam não
só ao imperador, mas à res publica.273
Essa ideia de “Estado” em Bizâncio pode ser ilustrada com a questão
referente à divisão do público e privado que era um princípio básico para os
romanos e bizantinos, estes enquanto herdeiros dos primeiros. O que era
considerado público pertencia aos interesses da comunidade, enquanto o que era
considerado privado aos interesses individuais. Da mesma forma havia a
diferenciação do Direito público do Direito privado, na qual o Direito público
respeitava o estabelecimento da res publica e o Direito privado dos indivíduos.
Dessa maneira, os imperadores agiam de acordo com os limites de seu poder, pois
faziam parte de um sistema de governo que não pertencia a eles. É preciso
salientar que muitos tiveram a oportunidade de abusar de seu poder, e assim o
fizeram. Porém, toda ação estatal deveria ser justificada como uma ação que dizia
respeito ao bem comum, pois este era o objetivo e função do imperador. 274
No que se refere ao Direito é preciso destacar o papel da lei e os seus
limites na definição da concepção da “república bizantina romana”, já que há uma
discussão entre pesquisadores modernos acerca do consenso de que o governante
devesse ser governado pela lei, porém, ao mesmo tempo, como isso poderia
acontecer se o monarca era quem emitia, mudava, anulava ou até podia ignorar a
lei? Há de se destacar, por outro lado, que o monarca não era o único que poderia

272
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 37-33.
273
Ibidem.
274
Ibidem.
106

agir além do estabelecido nas leis, pois quando, por exemplo, a população queria
depor um imperador, ela o fazia, visto que a república era do povo.275
Neste sentido, a lei tinha como finalidade promover os valores da
comunidade e proteger o bem comum dos interesses privados, sendo essa
definição o que diferenciava os romanos dos bárbaros. O oposto da politeia
segundo esse conceito de bem comum era a escravidão, já que a mesma levava à
perda da liberdade que era garantida através da lei. 276
No que concerne à relação do imperador com a lei, como já foi destacado,
a grande questão que se faz é se o mesmo está sujeito ou acima da lei. Para ser
considerado bom imperador era preciso estar submisso às leis, enquanto que para
ser considerado mau imperador bastava agir por fora da lei. No entanto, há de se
destacar que mesmo se submetendo às leis como a maioria dos imperadores
fizeram, era certo que o imperador estava acima das mesmas, pois o imperador era
a autoridade legislativa. Para escapar dessa contradição seria preciso, assim,
aceitar a prevalência da ideia de politeia, pois no contexto da mesma, o princípio
regente não era a lei em si, mas sim o bem comum da república. Nessa
perspectiva a função do imperador também seria o bem comum e as leis seriam o
seu instrumento para proteger a república dos interesses privados. Dessa forma,
leis específicas não eram fixas, eram apenas mecanismos temporários para a
proteção dos bens comuns, sendo o mesmo válido para as leis eclesiásticas. 277
Como o princípio era o bem comum e não apenas a lei escrita, esta última
poderia ser considerada uma má lei, enquanto um ato imperial considerado ilegal
viesse a se tornar legal e elogiado pela justiça que ele representasse. 278 O contrário
também poderia se repetir, como pudemos observar na era da crise iconoclasta, na
qual a nova lei do imperador foi considerada uma lei que regia contra os
princípios eclesiásticos. Assim, tanto a lei quanto o imperador podiam ser
entendidos como agentes da república que deveriam trabalhar juntos em prol do
bem dos romanos.279
É preciso destacar ainda o que concerne à questão da soberania do povo
bizantino e como a mesma se exercia na teoria e na prática. Na teoria o povo era

275
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 62-88.
276
Ibidem.
277
Ibidem.
278
Ibidem.
279
Ibidem.
107

soberano em Bizâncio, o que era entendido pelas pessoas e por quase todos os
imperadores, menos por aqueles que queriam manter-se no poder a qualquer
custo. Assim, os imperadores eram considerados legítimos apenas quando foram
aclamados pela população, o que fazia de Bizâncio uma república, já que se
baseava no apoio popular para a legitimação de seu líder. 280
Desse modo, o termo “soberania” para Kaldellis designa a forma pela qual
uma sociedade politicamente unificada fundamenta a legitimidade das suas
instituições políticas. No entanto, no caso bizantino é muito utilizado pelos
estudiosos o termo “soberania” para se referir à figura do imperador, o que é
muito complexo, pois esse modelo não contempla o que fundamenta a
legitimidade do regime, mas apenas aquele que detém o poder, neste caso, o
imperador. Certamente era de se esperar que os indivíduos servissem o imperador,
devido à posição do mesmo na sociedade, porém, ao mesmo tempo era esperado
do imperador que ele também servisse ao povo. Constata-se, desse modo, que a
relação entre imperador e súditos era uma relação complementar e assimétrica,
visto que as duas partes eram de alguma forma desiguais. Assim, é preciso não
confundir soberania com o governo, isto é, o exercício do poder político que o
povo transmite ao imperador.281
Kaldellis faz ainda comparação entre o modelo de república e soberania
defendido tanto por Rousseau quanto por Hobbes. O primeiro teria defendido que
república seria qualquer Estado que fosse governado por leis, ou seja, todo
governo legítimo seria republicano. Defendeu ainda que para o governo ser
legítimo, o governo não deveria ser confundido com o soberano e, dessa forma, a
própria monarquia poderia ser uma república. Já o segundo, diferentemente do
primeiro, não teria pensado a soberania separada do governo, o que supõe que o
povo não poderia questionar. Bizâncio seria, assim, uma república, pois poucos
foram os imperadores que não foram questionados e acusados de injustiça. A
principal diferença entre um tirano e um basileus legítimo seria o fato de que o
tirano não recebe o poder através das pessoas, mas toma-o pela força.282
Neste sentido, como já foi observado, para ser imperador em Bizâncio era
necessário ser eleito e elevado em uma cerimônia pública, pois somente assim

280
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 87-117.
281
Ibidem.
282
Ibidem.
108

seria legítimo. No entanto, é preciso destacar que raramente o povo era ativo no
processo de eleição dos imperadores, sendo necessário somente no processo de
legitimação e/ou deposição por impopularidade. A sucessão também não era
considerada uma questão legal, mas sim uma questão política. 283
Já na prática não havia nenhuma lei que definia a finalidade e o âmbito do
exercício monárquico dentro da república e nem constituições escritas que
definissem a finalidade do poder do imperador, nem que estabelecessem limites
ao mesmo ou que regulamentavam a sucessão. O legítimo poder do povo era
extralegal e fora do funcionamento das instituições estatais. 284
Assim sendo, o imperador respondia às intervenções populares através da
submissão à vontade popular, até mesmo com pedidos de perdão para ganhar
tempo ou manter a sua legitimidade. Poucos teriam sido os que não se
submeteram à vontade do povo. Isso prova que Bizâncio se constituía em uma
monarquia republicana, já que essas ações não teriam ocorrido se o trono fosse
entendido através do modelo de monarquia pelo direito divino. Desse modo, a
história política bizantina foi a história de como os imperadores mantinham a sua
popularidade para manter-se legitimamente no poder.285
Nessa perspectiva, basear a política bizantina apenas do ponto de vista da
ideia de monarquia pelo direito divino teria dois sérios problemas, sendo o
primeiro o estabelecimento da relação entre imperador e súdito pautado apenas a
partir da ideia religiosa e o segundo, a separação de Roma e o período bizantino
feita pela maioria dos estudiosos, como se Bizâncio não fizesse parte da herança
romana.286
Assim, é preciso destacar de onde surgiu essa ideia de monarquia pelo
direito divino perpetuada pelos pesquisadores da temática política bizantina, que
praticamente exclui a politeia governada pelo imperador em prol de uma relação
deste último como Deus. Esses princípios teriam surgido a partir da análise dos
escritos de Eusébio de Cesaréia, primeiro escritor cristão a tentar dar sentido ao
que poderia significar um imperador cristão. Eusébio teria trabalhado a ideia
imperial para fazer elogios ao imperador Constantino e, após sua obra, foi
considerado enquanto o autor da “constituição bizantina”. Dessa forma, quase

283
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 87-117.
284
Ibidem, pp. 118-165.
285
Ibidem.
286
Ibidem, pp. 165-198.
109

todos os especialistas passaram a explicar e ilustrar a política bizantina através dos


escritos de Eusébio e sua defesa do imperador enquanto mentor para a
manutenção da verdadeira religião.287
Porém, o problema desses estudos encontra-se no fato de que esse modelo
se insere em um espaço teológico entre Deus e o imperador, enquanto que as
instituições estatais se inserem em um espaço histórico entre o imperador e os
seus súditos, o que é complexo e parece existir apenas em uma “bolha”, sem
interferências, já que é certo que a população bizantina, incluindo as elites, não
tinha impasses em relação a ataques ao seu imperador “divino”, se rebelando,
depondo ou até mesmo matando o mesmo. Outro problema é que não há como ter
acesso às verdadeiras crenças populares para verificar se realmente acreditavam
na ideia imperial por direito divino. 288
Como Eusébio defendia que Deus conferiu ao imperador o dever de
trabalhar em prol de seus súditos e como esse é um dos princípios fundamentais
da república, é possível constatar que a ideia imperial era apenas uma expressão
teológica das obrigações republicanas e serviu de máscara contra a
vulnerabilidade do poder do imperador.
Desse modo, Kaldellis faz críticas à utilização do termo cesaropapismo e a
Dagron afirmando que este fez uma excelente exposição sobre o assunto, mas que
não deve ser utilizada enquanto última palavra sobre a posição do imperador e sim
ser colocada em perspectiva. A ideia imperial teria surgido como resposta a uma
crise de legitimidade causada pela combinação de instabilidade política e de
derrotas militares, sendo esta ideia de “eleição divina” uma ideologia da crise.
Assim, a ideia de poder teocrático teria sido iniciada com imperadores militares
do século III que a desenvolveram para se isolar do caos que era a eleição pelos
exércitos rebeldes. No entanto, salienta que esse ideal não significava nem
garantia proteção ao imperador bizantino, que, como já observamos, sofreu com
usurpações e assassinatos.289 No caso dos imperadores iconoclastas temos duas
razões para a sua não deposição pela população: a primeira se refere ao fato
desses imperadores terem o apoio do exército e a segunda se refere à população, já

287
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 165-198.
288
Ibidem.
289
Ibidem.
110

que não temos documentos que atestam suas crenças e seu apoio ou não aos ideais
iconoclastas.
Kaldellis observa ainda que mesmo autores cristãos não compactuavam com
os ideiais defendidos por Eusébio de Cesaréia. Na primeira fase do iconoclasmo
no século VIII, São João Damasceno (como demonstramos nesse trabalho) e
Teodoro Estudita na segunda fase no século IX defendiam que não era dever do
imperador agir sobre os assuntos da Igreja, apenas sobre os assuntos do Estado,
tais como a cobrança de impostos.290
Neste sentido, a melhor forma para conseguir que esse ideal cristão na política
bizantina deixe de ser a vigente é a recuperação da identidade romana de Bizâncio
relacionada à ideia de res publica.291
Outra autora que também defende a existência de eventos que fundamentam a
ideia da presença de princípios republicanos no Império Bizantino é Hélène
Ahrweiler que defende a ideia de “nacionalismo” a partir dos eventos que ocorrem
no Império a partir da ascensão da dinastia isaúrica e a eclosão da política
iconoclasta. Dessa maneira, a obra jurídica Ecloga instituída pelo imperador Leão
III seria um esforço para simplificar a legislação bizantina considerada erudita e
muito ultrapassada em alguns aspectos, e esteve em vigor por mais de um século
até a dinastia macedônica. A Ecloga teria, assim, surgido com base na vontade de
um espírito de justiça social, segundo a sua introdução atribuída ao próprio
imperador Leão III, com o intuito de servir os mais fracos econômica e
socialmente.292
Na mesma introdução estaria descrita a ideologia defendida pelo imperador
que dizia respeito à justiça que, para o mesmo, estaria em conformidade com a
vontade divina. Nesta perspectiva, o fundo da política iconoclasta baseava-se na
criação de uma solidariedade nacional contrária à ameaça externa oriunda da
expansão árabe.293
Essa solidariedade e justiça para com os mais necessitados teria sido a forma
encontrada para conquistar a população originária da Ásia Menor, essencial para a
defesa territorial, devido à sua localização. A militarização do Império, da sua
sociedade e das instituições fazia parte da nova política e ideologia imperial

290
Cf. KALDELLIS, 2015, pp. 165-198.
291
Ibidem.
292
Cf. AHRWEILER, 1975, pp. 25-36.
293
Ibidem.
111

instituídas pela dinastia isaúrica, para a mobilizar suas forças com o intuito de
garantir a sobrevivência do Império. Para tanto, estabeleceu-se o sistema de
“temas” que dividia as Províncias em distritos militares comandados por um
oficial representante do imperador, que permitia um controle maior do território.
A partir de então, foi transformada também a forma de alistamento do exército,
que deixou de ser formado por mercenários para ser composto por cidadãos
bizantinos de todas as classes sociais que atraídos pelo ganho foram defender o
seu território. 294
Observa-se, desse modo, o nascimento do nacionalismo bizantino, a partir de
um movimento de solidariedade e justiça que uniu indivíduos de diferentes etnias
e condições sociais, com o único propósito de defender o seu Império ameaçado
pela expansão árabe.295
Sendo assim, é possível observar como Kaldellis tem uma percepção mais
direta quanto à herança republicana romana presente em Bizâncio na forma de
uma monarquia republicana e a mesma ideia de forma mais discreta em Ahrweiler
que, apesar de não defender esse ideal republicano de forma clara, consegue
perceber nos bizantinos os ideais de justiça social, um dos princípios da república,
e a ideia de nacionalismo, presente na caracterização do Estado moderno.

3.2. Imagens religiosas versus retratos imperiais em Damasceno: um debate


sobre o sagrado e a autoridade política

Como foi constatado anteriormente, as obras em defesa das imagens


escritas por São João Damasceno são, na maior parte das vezes, trabalhadas por
pesquisadores da crise iconoclasta através de uma percepção religiosa. Dessa
forma, o que pretendemos aqui é demonstrar as duas diferentes facetas de
Damasceno, nas quais, por um lado, ele defende as imagens sagradas e faz crítica
à figura imperial por esta ter iniciado a iconoclastia e, por outro, ele legitima o
imperador, sua imagem e o seu poder como tal.
Para tanto, da mesma forma que abordamos as suas obras no segundo
capítulo, faremos aqui, novamente, uma análise das passagens encontradas nos
três tratados sobre a percepção de Damasceno acerca dos poderes religiosos e

294
Cf. AHRWEILER, 1975, pp. 25-36.
295
Ibidem.
112

políticos atribuídos ao imperador bizantino. A partir dessa análise é possível notar


que Damasceno se utiliza dos mesmos argumentos para defender as imagens
sagradas e a autoridade imperial. Isso pode ser observado, principalmente, nas
diversas funções atribuídas aos retratos imperiais.
Porém, é preciso destacar que os ideais iconoclastas não eram contrários a
todos os tipos de imagens, somente às religiosas. Muitas destas eram substituídas
por motivos florais ou animais, isto é, artes as quais nenhum culto se prestava.
Apenas uma única categoria de imagens, que poderia ser cultuada, foi mantida,
sendo ela as imagens que se referiam ao imperador.296

Suas imagens não apenas subsistiram, mas os imperadores


exigiram para elas o culto tradicional. Aumentando seu estatuto
de soberano às custas de reduzir aquele do Cristo, substituem
nas moedas a cruz tradicional pelo seu retrato, que passa a
ocupar o anverso e o reverso. A proibição bíblica tomada ao pé
da letra, não teria permitido essas imagens. Acontece que os
iconoclastas usavam argumentos mais circunstanciados e
seletivos.297

É possível perceber, assim, que os imperadores iconoclastas objetivavam


colocar-se acima de Deus como soberano, por isso rejeitavam as imagens
religiosas e mantinham os retratos imperiais, já que os mesmos significavam a
expressão da presença do poder298 e eram utilizadas enquanto imagens de
propaganda299. A iconoclastia foi uma forma de legitimação do poder imperial em
uma época conturbada para os imperadores bizantinos, sendo necessário que estes
se sobressaíssem para garantir a hegemonia do Império frente às conquistas
árabes. Para Damasceno, essa era também a razão para a eclosão da querela das
imagens, já que, a todo o momento em seus tratados, como veremos
posteriormente, ele procura demonstrar que tanto as imagens religiosas quanto os
retratos imperiais eram de extrema importância para os bizantinos, de modo que
cada uma tinha o seu lugar e o seu culto, não sendo necessário, dessa forma, que o
imperador rejeitasse as imagens religiosas, apesar de o imperador ainda se
constituir abaixo de Deus, o Rei que reina de cima.
No que concerne às funções atribuídas às imagens imperiais bizantinas,
estas eram utilizadas, além de veículo de propaganda, com finalidade memorial,
296
BESANÇON, 1997, p. 203.
297
Ibidem.
298
Ibidem.
299
NEGRAU, 2011, pp. 63-75.
113

pois a pessoa histórica precisava estar visível mesmo após sua morte. O monarca
deveria ser representado como um doador generoso, além da representação de sua
relação para com Deus, com o propósito de ser um antídoto moral contra a
corrupção do poder político.300 Essas imagens eram utilizadas ainda em algumas
situações nas quais era preciso substituir a verdadeira presença do imperador.
Assim, em qualquer ausência do monarca, seus retratos deveriam receber respeito
e honra como se o mesmo estivesse presente no lugar da própria imagem301, pois a
honra prestada à imagem do imperador é passada para o protótipo, assim como
ocorria com as imagens de Cristo, da Virgem e dos santos.302
Dessa forma, o conceito de autoridade absoluta do imperador bizantino
podia ser percebido através de diferentes representações, que eram decoradas e
idealizadas conforme um protótipo de monarca ideal. As imagens imperiais eram
estampadas não só em forma de retratos, mas também em atos jurídicos, tumbas,
selos e moedas. Nestes dois últimos tipos, a representação do imperador era
concebida enquanto garantia de autenticidade e possuía validade jurídica.303
É preciso destacar que o imperador era sempre representado com objetos
próprios para a sua função, tais como a coroa, louros e seus trajes cerimoniais.
Esses objetos eram símbolos que serviam para demonstrar a verdadeira existência
e substância dos monarcas. A coroa era oferecida por Deus, e apesar de ser um
elemento pagão, simbolizava o poder de governar e legislar. Mesmo os
imperadores iconoclastas considerados como hereges foram representados as
usando.304 No caso dos trajes cerimoniais, estes eram tão importantes para a
representação do imperador, como veremos, que Damasceno também os cita
como forma de honrar o monarca em sua ausência 305.
Os principais temas ordenados pelos imperadores nas Igrejas bizantinas
eram temas que se referiam à teologia política. Era possível encontrar imagens
relativas à origem divina do poder imperial e à legitimidade desse poder através
do dever do imperador com a fé ortodoxa, além de imagens que simbolizavam a
missão do monarca de conduzir o destino de seus súditos sem desviá-los e apoiar

300
NEGRAU, 2011, pp. 73-74.
301
Ibidem, pp. 63-64.
302
LOUTH, 2003.
303
NEGRAU, 2011, pp. 63-64.
304
NEGRAU, 2011, pp. 65-66.
305
LOUTH, 2003.
114

moral e financeiramente a Igreja enquanto instituição. A arte bizantina era


influenciada ainda pela hierarquia teológica e pelo ambiente monástico. 306
Por último, em relação às funções dos retratos imperiais, é preciso destacar
que estes podiam ainda ser mutilados ou destruídos de forma proposital, devido ao
tamanho poder físico que elas adquiriam em Bizâncio. Um exemplo disso foi a
destruição que se seguiu após a crise iconoclasta das imagens dos imperadores
que deram início a ela, com a finalidade de restringir o poder desses monarcas e
apagar a memória dos mesmos. 307
Assim sendo, no que concerne aos tratados de João Damasceno em defesa
das imagens, encontramos no primeiro seis passagens que fazem referência ao
imperador, sendo que, dessas seis, apenas uma encontra-se no texto do tratado,
pois as outras cinco se encontram na parte final do texto dedicada às citações de
textos patrísticos, utilizadas pelo monge de forma comprobatória a suas ideias.
Na única passagem encontrada no texto desse primeiro tratado,
Damasceno, no primeiro parágrafo, faz crítica ao poder imperial afirmando que
um rei deve compreender que sua palavra tem força e causa temor sobre os seus
súditos, e suas leis têm influência, já que o rei somente reina na terra, devido às
constituições reais que vem do rei de cima, isto é, de Deus. Observamos aqui
como Damasceno quer demonstrar ao imperador que, apesar do poder conferido a
ele na terra ser o maior e mais importante, sua posição na hierarquia ainda está
abaixo de Deus, porém, abaixo somente D’ele, o que reforça o ideal de sagrado
atribuído ao imperador bizantino:
Pois a palavra de um rei exerce terror sobre seus súditos.
Havendo alguns reis que negligenciam totalmente as
constituições reais estabelecidas a partir de cima, que sabem
que o rei reina sobre a terra a partir de cima, e como tal, as leis
dos reis têm força. (I, 1)308

No que concerne às passagens encontradas na compilação de textos


patrísticos, primeiramente Damasceno cita São Basílio, ao afirmar que a imagem
do imperador é chamada de imperador por não existirem dois imperadores, pois o

306
NEGRAU, 2011, pp. 73.
307
Ibidem. p. 68.
308
DAMASCENO, João. Deièon gèar basiléewv léogov prèov \upagwgéhn t%wn \uphkéown. \oléigoi
gèar %osoi t%wn \avéekaqen, basilik%wn katwligéwrhsan qespisréatwn,% osoi tèon \epèi g%hv.
basiléea, basileuéomenon o!idaten !anwqen, kaèi éwv krato%usin oi néomoi t%wn basiléewn. (I,
1)In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1233.
115

poder não pode ser dividido e nem a honra pode ser compartilhada. Afirma ainda
que a honra oferecida à imagem chega ao protótipo, utilizando esse mesmo
argumento tanto para a defesa dos retratos imperiais quanto para a defesa das
imagens divinas, o que nos mostra que Damasceno não só faz crítica aos
imperadores, mas também legitima e defende o seu poder comparando-o a todo
momento ao Rei dos reis:

Porque a imagem do imperador é chamada de imperador, ainda


não existem dois imperadores, pois nem é o poder dividido nem
a glória compartilhada. Porque, assim como o princípio e
autoridade que governa sobre nós é uma, assim também é o
elogio que nós oferecemos a um e não a muitos, porque a honra
oferecida para a imagem passa para o arquétipo. O que a
imagem é por imitação aqui debaixo, há o Filho que é por
natureza. E assim como com obras de arte a semelhança é de
acordo com a forma, assim como o divino e a distinção da união
natural está em comunhão com a divindade. (I, 35)309

Em seguida, Damasceno faz um comentário sobre essa passagem, no qual


diz que cada imagem recebe a glória que merece de acordo com aquele que nela é
representado. Dessa forma, a imagem do imperador é do imperador, a de Cristo é
de Cristo e a dos santos é a dos santos. Faz crítica ao argumento iconoclasta que
afirma que Deus deve ser apreendido apenas espiritualmente, mas que, ao mesmo
tempo, substitui as imagens sagradas pela cruz que também é matéria. Para
Damasceno, ou se abolem todas as formas materiais de reverência a Deus e a
Cristo, ou se aceitem a honra prestada às imagens, pois assim como uma peça do
vestuário em si não tem honra, mas no imperador ela a adquire, as demais
matérias como a cruz, o incenso também não seriam dignos de veneração se não
fossem uma representação do divino:

Pois estes são todos os materiais: a cruz, a esponja, a cana, a


lança que feriu o lado que porta a vida. Ou retire a reverência
oferecida a todos estes, ou não rejeite a honra das imagens.
Graça Divina é dada às coisas materiais através do nome
reportado pelo que é retratado. Assim como o corante roxo e a

309
DAMASCENO, João. $ Oti basileèuv léegetai kaèi |h to%u basiléewv e\ikèwn, kaèi oéu déuo
basile=iv. O=ute gèar tèo kréatov scéizetai, o=ute |h déoxa diameréizetai. | Wv gèar |h krato%usa
|hm%wn |arcèh kaèi \exouséia méia, o=utw ka\èi |h par\ |hm%wn doxologéia, méia kaèi oéu pollaèi, diéoti |h
t%hv eikéonov timèh |epèi tèo prwtéotupon diabaéinei. $ O o%un \estin \enta%uqa mimhtik%wv |h eikèwn,
to%uto \eke=i fusik%wv éo Giéov kaèi =wsper |epèi t%wn tecnht%wn, katèa tèhn morfèhn |h \omoéiwsiv,
o=utw kaéi |epèi t%hv qeéiav kaèi \asonqéetou féusewv èen t%h koinwnéiç qeéothtéov |estin \h $enwsiv. (I,
35) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1261-1264.
116

seda do vestuário que é tecido a partir deles simplesmente por si


só não têm honra, mas se o imperador usa-os, suas roupas
compartilham da honra que pertence a quem as veste. Então, as
coisas materiais, por conta própria, não são dignas de
veneração, mas se o retratado é cheio de graça, então elas se
tornam participantes de Graça, na analogia da fé. (I, 36)310

Logo após, cita São Gregório de Nissa, que afirma também que uma
imagem representa o arquétipo e, como tal, deve ser honrada em nome daquele
que é representado. Que isso deve ser feito não somente em relação à imagem do
imperador, mas também em relação às imagens divinas.
Sobre a possibilidade de representar a natureza humana, Damasceno
comenta essa passagem explicando que a beleza divina não poder ser representada
em cores, mas o Filho de Deus sim, pois o mesmo viveu na terra semelhante a um
ser humano e que, por isso, pode ser delineado. Sendo assim, se uma imagem de
um imperador é denominada imperador e a honra prestada a ela passa para o
protótipo, ou seja, o imperador, Damasceno se pergunta como a imagem de Cristo
não deve ser respeitada e honrada enquanto a imagem do Filho de Deus que se fez
carne:
Veja, uma vez que "a beleza divina não é feita resplandecente
em uma determinada figura externa através de determinadas
cores bonitas", e, portanto, não é representada, enquanto que a
forma humana é transferida para pedras por meio de cores. Se,
então, o Filho de Deus veio a ser em forma humana, tomando a
forma de um servo, e chegando a ser em semelhança aos
homens, e sendo encontrado em figuras como um ser humano,
como ele não pode ser representado? E se é costume "chamar a
imagem de um imperador de imperador" e "a honra oferecida à
imagem passa para o arquétipo", como diz o Basílio divino,
como é que a imagem não é respeitada e venerada, não como
Deus, mas como a imagem de Deus que se fez carne? (I, 51)311

310
DAMASCENO, João. “:Ta%uta gèar péanta =ulh. éo staurèov, éo t%hv stauréwsewv spéoggov,
kaèi kéalamov, kaèi \h tèhn zwhféoron pleurèan néuxasa léogch. | H toéutwn \apéantwn !anele tèo
séebav, %oper \adéunaton, %h mèh \apanaéinou mhdèe tèhn t%wn eikéonwn timéhn. Céariv déidotai qeéia
ta%iv =ulaiv dièa t%hv t%wn eikonizoméenwn proshgoréiav. $ Wsper litèon \h kogcéulh kaq\
|eautèhn, kaèi \|h méetaxa, kaèi tèo èex \amfo%in |exufasméenon \iméation !an dèe basileéuv to%uto
peréiqhtai, èek t%hv prosoéushv t%§ \hmfiesméen§ tim%hv, t%§ \amfiéasmati metadéidotai o$utwv
kaèi a\i =ulai, aéutai mèen kaq\ |ekutéav \aproskéunhtoi, =na dèe céaritov e$ih pléhrhv éo
e\ikonizéomenov, méetocoi céaritov géinontai ka\t\ \anologéian t%hv péistewv. (I, 36) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1264.
311
DAMASCENO, João. $ Ora, éwv tèo mèen qe=ion kéallov, oéu scéhmatéi tine diéa tinov e\ucroéiav
\enagla%izetai, kaèi dièa to%uto oéuk e\ikonéizetai \h dèe \anqrwpéinh morfèh dièa crwméatwn $epèi
toèuv péinakav metaféeretai. E\i toéinun éo Gièov to%u Qeo%u èen \anqréwpou morf%h géegone,
morféhn doéulou labèwn, kaèi èen |omoiéwpown genéomenov, kaèi scéhmati e=ureqeèiv éwv $anqrwpov,
p%wv oéuk eikonisqéhsetai; kaèi e\i katèa sunéhqeian léegetai, |h to%u basiléewv eikèwn,
117

Na sexta e última passagem que encontramos no primeiro tratado,


Damasceno critica não só o imperador, mas também muitos sacerdotes por esses
terem conhecimento e sabedoria sobre as questões que estão sendo discutidas em
torno da legitimidade das imagens, devido à posição que ocupam, mas que não
fazem nenhum esforço para explicá-las. Dessa forma, afirma que os cristãos não
devem seguir essas novas leis, pois estas querem ensinar uma nova fé, objeto de
uma constituição imperial que objetiva destruir a tradição eclesiástica. Faz crítica
ao imperador com a afirmação de que os imperadores piedosos não derrubam as
leis da Igreja. Defende ainda que não foi aos imperadores que Deus deu o direito
de interferir nos assuntos religiosos, mas sim aos apóstolos e aos seus sucessores.
Assim, mesmo que um anjo anuncie outro Evangelho que não seja o ensinado pela
antiga tradição da Igreja, deve-se manter-se em silêncio no aguardo por sua
conversão. É possível observar nessa citação a percepção de Damasceno sobre o
imperador, na qual este último é considerado um tirano que age de forma contrária
aos ideais do monge e da Igreja:

Uma vez que muitos sacerdotes e imperadores foram dotados de


sabedoria que vem para os cristãos do alto, de Deus, e foram
distinguidos pela sua piedade, sua doutrina e as suas vidas, e
muitos sínodos de pais santos e divinamente inspirados têm tido
lugar, por que ninguém faz um esforço para explicar essas
coisas? Nós não experimentaremos uma nova fé para ser
ensinada. [...] Nós não sofreremos o costume dos pais de
estarem sujeitos a uma constituição imperial que visa derrubá-
los. Pois imperadores piedosos não derrubam leis eclesiásticas.
[...] Essas coisas são questões para sínodos, não para
imperadores, como disse o Senhor, "Onde dois ou três
estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles".
Não foi aos imperadores que Cristo deu a autoridade para unir e
soltar, mas aos apóstolos e aos que lhes sucederam como
pastores e professores. "E se um anjo", diz o Apóstolo Paulo,
"anunciar outro evangelho além do que recebeu": nós
manteremos o silêncio sobre o que se segue, poupando-os e
esperando por sua conversão. Mas se vemos que sua loucura
continua sem conversão, então vamos trazer o que resta; mas
pode não ser necessário! (I, 66)312

basileéuv, kaèi |h t%hv eikéonov timéh |epèi tèo prwtéotupon diabaéinei, %wv fhsin éo qeiov
Baséileiov, p%wv \h eikèwn oéu timhqéhsetai kaèi proskunhqéhsetai; oéuk éwv Qeéov, \all\ éwv
Qeo%u sesarkwméenou eikèwn. (I, 51) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1269.
312
DAMASCENO, João. Poll%wn toéinun \anéekaqéen \ieréewn te kaèi basiléewn Cristiano=iv
dedwrhméenwn, soféiç te kaèi qeosebeéiç kaèi léog§ kaèi béi§ diapreyéantwn, kaèi sunéodwn
pleéistwn gegenhméenwn |agéiwn kaèi qeopneéustwn Patéerwn, téi méhdeiv ta%uta dr%çn
118

No entanto, podemos também perceber que, ao mesmo tempo, elogia e


legitima o poder imperial, denominando de “piedosos” os imperadores que não
são contrários às tradições eclesiásticas.
Diferentemente do que encontramos no primeiro tratado, o segundo é
composto por sete citações referentes ao imperador, sendo cinco retiradas do texto
do discurso e duas da compilação de textos patrísticos. É possível observar que,
neste segundo tratado, Damasceno faz maiores menções ao poder imperial e o
ataca mais ferozmente.
Na primeira passagem encontrada, o monge destaca que independente que
um anjo ou mesmo um imperador proclamem aos cristãos ensinamentos além
daqueles que foram recebidos pelos apóstolos da Igreja, que ele seja anematizado
para que possa ser corrigido. Ou seja, mesmo um imperador não pode se colocar
contrário às antigas tradições eclesiásticas, fazendo, novamente, crítica aos
imperadores iconoclastas e às suas novas definições contrárias às imagens
sagradas:

Se um anjo, ou um imperador, proclamarem a você outra coisa


além da que foi recebida, feche seus ouvidos. No momento eu
hesito em dizer, como o divino apóstolo disse: "Que ele seja
anátema”! Pois, ele pode receber a correção. (II, 6)313

Logo após, Damasceno critica a figura imperial de forma mais direta e


contundente, afirmando que não cabe ao imperador legislar sobre a Igreja, pois
Deus estabeleceu os apóstolos em primeiro lugar e depois os profetas, pastores e
mestres para tal dever. Em seguida, muda o tom do discurso para uma clara defesa

\epeceéirhsen; oéuk \anexéomeqa néean péistin didéaskesqai. [...] Oéuk \anexéomeqa basilek%§
\upokéiptein qespéismati tèhn \ek Patéerwn peirwméen§ \anatréepein sunéhqeian. Oéu gèar
eéuseb%wn basiléewn \anatréepein |ekklhsiastikoèuv qesmoéuv. [...] Sunéodwn ta%uta, oéu
basiléewn, é§ éo Kéuriov $efhsen. $ Opou sunacq%wsi déuo %h ter%iv $epèi t%§ éonéomatéi mou, |eke=i
e\imi \en mées§ aéut%wn. Oéu basile%usi to%u desmeéuein kaèi léuein tèhn |exouséian déebwken éo
Cristèov, \all\ \apostéoloiv, kaèi to$iv toéutwn diadéocoiv, kaèi poiméesi, kaèi didaskéaloiv. K!an
!aggelov, fhsèi Pa%ulov \o \apéostolov; e\uaggeléishtai \um%av par\ !o pareléabete kaèi tèo \ex%hv
siwphséomeqa, feidoi, tèhn epistrofèhn \ek=oecéomenoi. ! Na dèe \i=owmen tèhn diastrofèhn
\anepéistrofon, %oper m\h d%§ éo Kéuriov, téote \epéaxomen kaèi tèo leipéomenon \allèa \aphéucqw
to%uto. (I, 66) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio Apologetica Prior. Adversus Eos’Qui Sacras
Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1280-
1281.
313
DAMASCENO, João. K%an =aggéelov, k%an basileéuv e\uaggeléizetai \um%av par\ $o
pareléabete, kleéisate tèav \akbéav \okn%w gèar téewv eèipein, éwv !efh éo qeiov\ Apéostolov, \
Anéaqema !estw, \ekdecéomenov tèhn diéorqwsin. (II, 6) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1288.
119

e legitimação da autoridade política do imperador, enquanto legislador das


questões terrenas, tais quais os problemas relativos aos impostos e dívidas
comerciais:

Não é dever dos imperadores de legislar sobre a Igreja. Pois


olhai o que os divinos apóstolos dizem: "E Deus estabeleceu na
Igreja primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em
terceiro pastores e mestres, para equipar aos santos", - ele não
disse imperadores - e novamente "Obedeçam aos seus líderes e
submetam-se a eles; pois vigiam sobre as vossas almas, como
homens que terão de prestar contas". E, novamente, "Lembre-se
de seus líderes, aqueles que vos pregaram a Palavra; Considere
o resultado de suas vidas, e sejam zelosos por sua fé ".
Imperadores não falam-nos da Palavra, mas apóstolos e
profetas, pastores e mestres. [...] Nós nos submetemos a ti, ó
Imperador, nos assuntos desta vida, os impostos, as receitas,
dívidas comerciais, em que nossas preocupações são confiadas
a você. Para a constituição eclesiástica temos pastores que
falam a nós a Palavra e representam a ordenança eclesiástica.
Nós não removemos os limites antigos, estabelecidos no local
pelos nossos pais, mas se apegam às tradições, como temos
recebido. Pois se começarmos a remover até mesmo uma
pequena parte da estrutura da Igreja, em pouco tempo todo o
edifício será destruído. (II, 12)314

Podemos perceber na passagem citada, como Damasceno faz a separação


do poder político e do poder religioso atribuídos ao imperador, o que demonstra
que para o monge é possível e legítima a separação de ambos os poderes e as
competências do imperador para cada um. Sendo assim, não caberia ao imperador
dar início ao movimento iconoclasta, mas sim defender a antiga tradição da Igreja.
Posteriormente, afirma que os santos são o exército do Senhor e que, assim
como o imperador tem o seu exército e não deve ser destituído dele, o Senhor

314
DAMASCENO, João. Oéu basiléewn \estèi nomoqetein t\h \ Ekklhséia. Téi fhsin éo qeiov \
Apéostolov; Kaèi oéuv mèen %eqeto e Qeèov èen t%h \ Ekklhséia pr%wton, \apostoléouv deéuteron,
proféhtav tréiton, poiméenav kaèi didaskéalouv, prèov tèon katartismèon t%hv \ Ekklhséiav.
Oéuk e%ipe, basile%iv. Kaèi péalin. Peéiqesqe toiv \hgouméenoiv \um%wn, kaèi \upepeikete. Aéutoi gèar
\agrupno%usin \upèer t%wn yuc%wn |um%wn, éwv léogon \apodéwsontev. Kaèi a\uqiv\ . Mnhmoneéuete
t%wn %hgouméenwn \um%wn, o\itinev \eléalhsan \om%en tèon léogon, éwn \anaqewro%untev tèhn
\anastrofèhn, zhlo%ute tèhn péistin. O=uk |eléalesan |hméin tèon léogon oi basileiv, \allèa
\apéostolov kaèi prof%htai, poiméenev te kaèi didéaskaloi. [...] \ Gpeéikomèen soi, éw basile%u, \en
toiv katèa tèon béion préagmasi, féoroiv, téelesi dosilhyéiaiv, èen oiv soi tèa kaq\ |hm%av
|egkeceéipistai |en dèe t%h |ekklhsiastik%h katastéasei, !ecomen toéuv poiméenav, toéuv
laléhsantav \hmin tèon léogon, kaèi tupéwsantav tèhn \ekklhsiastikéhn qesmoqeséian. Oéu
metaéiromen dria a\i\wnia, !a !eqnto oi patéerevéhm%wn, \allèa katéecomen tèav paradéoseiv,
kaqéwv pareléadomen. Ei gèar \arxéomeqa téhn oikodoméhn t%hv \ Ekklhséiav k%an |en mikr%§
kaqairein, katèa smikrèon tèo kataluqéhsetai. (II, 12) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II.
Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. pp. 1296- 1297.
120

também não deve ser destituído do seu. Os santos, enquanto exército do Senhor e
seus herdeiros, devem também ser honrados. Aqui, Damasceno faz uma crítica
clara à ordem iconoclasta de proibição às imagens dos santos e faz também alusão
ao dever do imperador de proteger o seu território através do seu exército e às
batalhas que o Império estava passando contra os árabes durante a crise
iconoclasta. Novamente, ao mesmo tempo em que critica o poder imperial, ele o
defende.
Mais adiante, Damasceno cita de forma direta, pela primeira vez, o
imperador Leão III, que deu início à crise iconoclasta. Critica-o duramente,
questionando se será escrito um novo Evangelho, segundo Leão, devido às ordens
do mesmo contra as imagens. O monge afirma ainda que não aceita que o
imperador atue tiranicamente contra as leis eclesiásticas, por Leão não possuir
autoridade para tal. Para Damasceno, a Igreja não deve ser regida por cânones
imperiais, mas sim por tradições patrísticas, sendo estas escritas e não escritas:

Maniqueístas compuseram o Evangelho de acordo com Tomás;


você vai agora escrever o Evangelho segundo Leão? Eu não
aceito um imperador que tiranicamente arrebata o sacerdócio.
Imperadores têm recebido a autoridade para unir e soltar? [...]
Não estou convencido de que a igreja deve ser constituída por
cânones imperiais, mas sim por tradições patrísticas, ambas
escritas e não escritas. Pois, assim como o Evangelho foi
proclamado em todo o mundo na forma escrita, então, em todo
o mundo ele tem sido transmitido de forma não escrita que
Cristo, o Deus encarnado deveria ser representado, e os santos,
assim como a cruz é venerada e estamos a rezar, voltados ao
leste. (II, 16)315

Damasceno cita Epifânio, afirmando que qualquer obra em nome do


mesmo, contrária às imagens é uma obra forjada, já que a própria igreja de
Epifânio é decorada com imagens, até o imperador Leão III colocar-se contra elas
e fazer com que o povo de Deus fosse em sentido contrário aos seus
ensinamentos. Destaca-se nessa passagem os adjetivos “feroz” e “selvagem”

315
DAMASCENO, João. Manica%ioi sunéegrayan tèo katèa Qwm%an E\uaggéelion grèayate kaèi
\umeiv tèo katèa Aéeonta E\uaggéelion. Oéu déecomai basiléea turannik%wv téhn éiepwséunhn
\arpéazonta. Oéu \elabon \exouséian desme!in kaèi léuein. [...] Oéu peéiqomai basiliko=i kanéosi
diatéattesqai tèhn \ Ekklhséian, \allèa patrika=iv paradéosesi, èeggréafoiv te kaèi \agréafoiv. $
Wsper gèar èen =oly t%§ kéosm§ èeggréafwv èekhréucqh tèo Eéuaggéelion, o=utwv èen $ol§ t%§ kéosmy
\agréafwv paredéoqh tèo eiikonéizein Cristèon tèon sesarkwm\enon Qeèon, kai toéuv \agéiouv,
%wsper kaèi proskune=in tèon staurèon, kaèi katéa \anatoléav \est%wtav proseéucesqai. (II, 16)
In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In:
Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1302-1304.
121

utilizados para se referir ao imperador, o que demonstra, mais uma vez, que o
monge não é contrário à figura imperial, mas sim aos imperadores considerados
por ele como “tiranos”:

Se você diz que o bem-aventurado Epifânio claramente proibiu


nossas imagens, então saiba que a obra em questão é forjada,
sendo o trabalho de outro, utilizando o nome do divino
Epifânio, o que acontece muitas vezes. Pois um pai não luta
contra seus companheiros de pais, para que todos participemos
do único Espírito Santo. Além disso, há o testemunho de sua
própria igreja, decorada com imagens, até o feroz e selvagem
Leão as devorou e agitava o rebanho de Cristo, tentando fazer
com que o povo de Deus bebesse águas poluídas. (II, 18)316

No que se refere aos textos patrísticos, encontramos uma citação de


Crisóstomo, na qual o mesmo defende que, ao se insultar as vestes ou o retrato do
imperador, estaria também insultando o próprio imperador. Ao reproduzir essa
passagem, Damasceno quer comparar os retratos e objetos imperiais com os
ícones e os objetos santos, para defender que insultar um ícone ou esses objetos é
o mesmo que insultar Deus, Cristo, a Virgem e os santos. Dessa forma, defende
também o imperador e o significado do mesmo enquanto o rei terreno, mas ao
mesmo tempo divino como o escolhido por Deus:

Se você insultar a roupa imperial, não insultas aquele então


vestido? Vocês não sabem que, se você insultar a imagem do
Imperador, você leva o seu insulto ao arquétipo desta
dignidade? O insulto dado à imagem do Imperador implica
insulto ao próprio Imperador. (II, 61)317

Por último, cita o patriarca e Arcebispo de Teópolis, Anastácio, que


também afirma que a imagem do imperador deve ser venerada e honrada na

316
DAMASCENO, João. Ei d\e léegeiv téon makéarion \ Epiféonion tran%wv t\av para\hmin
\apagore%usai eikéonav, gn%wqi \wv \epiplastov \o léogov, =allou tinèov t%§ to%u qeéiou
‘Epifanéiou crhsam\hnou \on\omati, o%ia polléa sumba\inei géinesqai. Oéu gèar to=iv
sumpatréasin éo Patéhr méacetai. | Enèov gèar |agéiou Pneéumatov péantev gegéonasi kaèi méartuv
|h toéutou èekklhséia, eikéosi kallwpizoméen %ewv o%u tinev kat\ aèut%hv \antepanéesthsan, kaéi
tèhn Cristo%u dietéaraxan poéimnhn, potéisai tèon laèon Qeo%u éepiceiréhsantev \anatropéhn
qoleréan. (II, 18) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. pp. 1304-1305.
317
DAMASCENO, João. $ Em%ouma basilikèon |eèan éubrishv, oéu tèon |endeduméenon dbrizeiv;
oéuk o\idav =oti, |eèan eikéona basiléewv $ubréishv, eiv prwtéotupon t%hv \axéiav féereiv téhn =ubrin;
oéuk o\idav %oti, èe\an tiv eikéona tèhn \apèo xéulou kaèi \andriantov calko%u kataséurh, oéuk éwv
eiv !ayucon =ulhn tolméhsav kréinetai, \all\ éwv katèa basiléewv kecrhméenov t%h =ubrei;
Eikéona dèe %olwv basiléewv féerousa, téhn |eaut%hv =ubrin eiv basiléea \anéagei. (II, 61) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae
Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1313.
122

ausência do mesmo, pois aquele que desrespeita sua imagem sofrerá punição
como se tivesse desrespeitado ao próprio imperador. Novamente compara a
imagem do imperador aos ícones:

Assim como na ausência do Imperador a sua imagem é


venerada em seu lugar, de modo que em sua presença seria
estranho negligenciar o arquétipo e venerar a imagem; mas isso
não significa que, uma vez que não é venerada quando aquele
por quem ela é venerada está presente, ele deve ser desonrado.
E um pouco mais adiante: Pois, assim como aquele que abusa
da imagem do imperador sofre punição como se tivesse
desonrado o próprio Imperador, mesmo que a imagem não seja
nada mais do que a madeira e pintada com cera, da mesma
forma aquele que desprezar a figura de alguém oferece um
insulto para aquele cuja figura é. (II, 66)318

No terceiro tratado encontramos três citações no texto do discurso e vinte e


seis nos textos patrísticos. Percebemos aqui um número maior de menções ao
imperador, porém, não analisaremos todas as passagens, pois muitas se repetem
ou repetem o tema. Analisaremos aquelas principais para o entendimento da
relação que Damasceno faz das imagens sagradas e dos retratos imperiais.
Na primeira passagem que encontramos no terceiro tratado acerca do
poder imperial, Damasceno reproduz a citação do segundo tratado, na qual
defende que não se deve receber nada de diferente dos ensinamentos eclesiásticos,
mesmo que o que for proclamado venha de um anjo ou imperador, devendo
ambos serem anematizados para serem corrigidos.
Posteriormente, o monge defende, mais uma vez, que a honra deve ser
prestada a quem é devida e deve-se honrar o imperador como um soberano.
Demonstra, assim, que o imperador jamais deve ser honrado como Deus:

É necessário "pois pagar a todos eles as suas dívidas", de acordo


com o santo apóstolo Paulo, "honra a quem honra é devida" e
"ao imperador como soberano", e aos governantes como

318
DAMASCENO, João. $ Wsper géar èapéontov méen basiléewv, \h eikèwn aèuto%u ànt\ aèuto%u
proskuneitai, paréontov dèe loipèon aéuto%u, perittèon katalipéonta téon prwtéotupon,
proskunein tèhn eikéona o\u mèhn, èepeéi mèh proskune!itai dièa tèo pare%inai tèon di\ =on
proskune%itai, \atiméazesqai oéuk $edei. \ Kaèi met\ \oliga. $ Wsper gèar |o paroin%wn eikéoni
basiléwv, timwréian éuféistatai, éwv a\utéocrhma basiléea \atiméasav, kaéitoi t%hv eikéonov
o\udèen =eteron o$ushv, %h xéulon kaèi créwmata khr%§ memigméena kaì kekraméena, téon aèutèon
préopon |o tèon téupon to%udée tinov \atiméazwn, eiv aéutèo èeke%ino o\u téupov \estin, \anafèerrei téhn
=ubrin. (II, 66) In: LOUTH DAMASCENI, S. Joannis. Oratio II. Adversus Eos’Qui Sacras
Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1316.
123

nomeados através dele, a cada um segundo a medida de seu


valor. (III, 10)319

Na terceira e última passagem do discurso referente ao poder imperial,


Damasceno faz, novamente, crítica ao mesmo afirmando que assim como os
santos são amigos escolhidos por Deus, tendo o direito de comparecer diante
D’ele, assim também acontece com os governantes nomeados pelos reis, reis estes
que são destinados, segundo o monge, para a corrupção e que, na maioria das
vezes, são ímpios e pecadores. No entanto, mais uma vez, da mesma forma que
faz crítica aos imperadores e seus comandantes, os defende afirmando que deve-se
ser submisso aos governadores e às autoridades e pagar a eles as dívidas, além de
ser temeroso a quem o temor é devido e honrar quem mereça ser honrado.
Já nos textos patrísticos encontrados ao final do terceiro tratado,
encontramos vinte e seis citações referentes ao imperador. Dessa forma,
Damasceno cita São Basílio que defende que aquele que se enfurece com o
imperador e de alguma forma desconta violentamente a sua raiva contra a imagem
do mesmo, já que não pode tocar no imperador, desrespeita a matéria que traz a
semelhança. É passível, assim, de ser julgado por desrespeitar aquilo que foi feito
à imagem e semelhança dele:
Desde que [o diabo] viu a espécie humana à imagem e
semelhança de Deus, não podendo valer-se a si mesmo a Deus,
ele derramou a sua maldade na imagem de Deus. Assim como
se alguém está enfurecido [contra o imperador], ele joga pedras
contra a imagem, já que ele não pode tocar o imperador, ele
bate na madeira que carrega a semelhança. Pois, assim como
qualquer pessoa que insulta a imagem real é julgada como se
tivesse feito de errado contra o próprio imperador, alguém tão
claramente que insulta o que foi feito à imagem é passível de
ser julgado pelo pecado. (III, 56-57)320

319
DAMASCENO, João. Crèh \apodidéonai p%asi tèav \ofeilèav, katèa téon $agion Pa%ulon tèon
\apéostolon, t%§ tèhn timéhn, kaèi basile=i mèen, éwv |uperéeconti, toiv dée $arcoisin,éwv di aéut%wn
\apostelloméenoiv |ekéast§, katèa tèo metron to%u \axéwmatov. (III, 10) In: DAMASCENI, S.
Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus
XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1333.
320
DAMASCENO, João. Epeidèh e\ide tèon $anqrwpon kat\ eikéona kaèi \omoéiwsin Qeo%u, mèh
dunéamenov eèiv Qeèon trap%hnai, eiv tèhn eikéona to%u \eauto%u ponhréian \ekéenwsen. $ Wsper e!i
tiv $anqropov \orgzéomenov, tèhn eikéona liqéazov, $epeidèh tèon basiléea o\u déunatai, tèo xéulon
téuptwn tèo tèhn méimhsin $econ. [...] $ Wsper géar éo basilikèhn eikéona kaqubréisav, éwv eìv
a\utéon \examartéhsav tèon basiléea kréinetai o$utw dhlonéoti $upéodikéov \esti t%h \amartéiç, éo
tèon kat\ eikéona gegenhméenon kaqubrizwn. (III, 56-57) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio
III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S.
Joannes Damascenus. p. 1365.
124

Em seguida, Damasceno cita Crisóstomo que afirma que as imagens são


feitas apenas para aqueles que não fogem e lutam, isto é, para aqueles que são
símbolos de boa ações:

Imperadores constroem estátuas triunfais para os comandantes


vitoriosos, e os governantes erguem colunas de vitória para
cavaleiros e atletas, e coroam-os com inscrições que tornam a
questão um arauto da vitória. Outros ainda escrevem
panegíricos de vencedores em livros e escritos, que desejam
mostrar que seu poder no panegírico é ainda maior do que
aqueles que elogiou. E escritores e pintores e escultores em
pedra e as pessoas e os seus governantes e cidades e vilas,
admiram os vencedores. Ninguém, no entanto, fez imagens para
aqueles que fogem e não lutam. (III, 60)321

Damasceno reproduz ainda duas citações da Vida de São Constantino, nas


quais trata, primeiramente, da morte da mãe do imperador e de como ele a honrou
com o grau imperial, além de estampar o seu retrato em moedas de ouro, e,
depois, da morte do próprio imperador e da forma como essa notícia parou as
atividades de todo o Império, com homenagens prestadas ao mesmo como se ele
estivesse vivo em retratos.
Logo após, cita Santo Atanásio que usa as palavras de Cristo de que Ele e
o Pai são um só, e que o Pai está N’ele e Ele no Pai, para defender que a imagem
do imperador e o imperador são um só, porque a imagem é ela nele e ele está nela,
e quem venera a imagem, venera nela o imperador:

O Filho, sendo a própria gênese da existência do Pai, diz


razoavelmente que o que é do Pai, também é seu: daí
dignamente e de forma consistente, depois de dizer "Eu e o Pai
somos um", acrescentou "que você deve saber, que eu estou no
Pai e o Pai está em mim, em mim vê o Pai ". [...] Pode-se
entender isso mais de perto a partir do exemplo da imagem do
imperador; pois a forma é a imagem do Imperador, e a forma na
imagem está no Imperador. A semelhança na imagem do
Imperador é exata, de modo que aquele que vê a imagem vê o

321
DAMASCENO, João. \ Epinikéiouv mèen \andpéiantav o|i basile=iv toiv strathgoiv
vikéhsasin \anatiqéeasi vikhféorouv dée tinav stéhlav \epegeéirousin $arcontev |hniéocouv kaèi
\aqlhtaiv, kaèi t%§ |epigréammati, éwv stéemmati kéhruka t%hv néikhv tèhn =ulhn \ergéazontai.$
Alléa péalin \en bibloiv kaèi gréammasi toéuv |epaéinouv nikhtaiv gréafousi, tèhn aéut%wn \en t%§
\epaéin§ dimin, éiscurotéeran t%wn \epainouméenwn deixai qéelontev. Kaèi logogréafov, kaèi
zwgréafov, kaèi leqogléuppai kaèi d%hmoi, kaèi !arcontev, kaèi péoleiv, kaèi c%wrsi, toéuv nikhtéav
qauméazouein. O\udeèiv dèe feéugontov kaèi mèh poleméhsantov, eikéonav !egrayen. (III, 60) In:
DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In:
Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1368.
125

imperador nela e novamente aquele que vê o Imperador entende


que esta é a imagem. (III, 114)322

Damasceno cita ainda Anastácio, o qual afirma que assim como a imagem
do imperador é honrada enquanto o mesmo está ausente, também não pode ser
desonrada em sua presença:

Pois, assim como quando o imperador está ausente a sua


imagem é venerada, então quando ele está presente seria inútil
abandonar o arquétipo e venerá-lo através de uma imagem; mas
quando [a imagem] não é venerada, por causa da presença do
que por uma questão de qual é venerado, ela não deve de forma
alguma ser desonrada. (III, 127)323

Por último, encontramos uma citação retirada do quinto sínodo ecumênico,


na qual afirma que assim como Teodoro que separou Cristo do Pai, aquele que
honrar uma imagem do imperador como se ele fosse Deus, deve ser anematizado:

Se alguém defende o Teodoro irreverente de Mopsuéstia, que


disse que Deus o Verbo é uno, enquanto outra bem diferente é
Cristo, que estava atormentado com as paixões da alma e os
desejos de carne humana, foi gradualmente separado do que é
inferior, e tornou-se melhor pelo seu progresso em boas obras, e
não poderia ser criticado em seu modo de vida, e como um
mero homem foi batizado em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo, e através deste batismo recebeu a graça do
Espírito Santo e veio a merecer filiação e ser venerado, da
mesma forma que alguém venera a estátua do imperador, como
se ele fosse Deus, o Verbo ...; seja anátema! (III, 129)324

322
DAMASCENO, João. | T%hv dèe o\uséiav to%u Patrèov Goion !wn g!ennhmeéotiv eikéotwv kaèi téa
to%u Patréov léegei $einai. prepéontwv kaì \akoloéuqwv, t%§ léegein. \ Egèw dèe Patéhr !en \esmen,
\epéhgagen. $ Ina gn%wte, !oti éh èen t%§ Patri kaèi \o Patéhr éen \emoi. [...] To%uto dèe kaèi \apèo to%u
paradeéigmatov t%hv eikéonav to%u basiléewv, prosecéesteréon tiv katano%hsai déunetai. \ Eu
géar t%h eikéoni basiléewv, tèo eidov kaèi éh morféh \esti kaèi \en t%§ basilei, tèo \en t%h eikéoni eidov
\estin. (III, 114) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui Sacras Imagines
Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p. 1404.
323
DAMASCENO, João. $ Wsper gèar, \apéontov mèen basiléewv, |h eikéwn ékto%u proskuneitai,
paréontov dèe, loipèon periton katalipéonta tèon prwtéotupon proskunein t%h eikéon o\u méhn,
\epei o\u proskuneitai diéa tèo pareinai tèon, d\e =on proskuneitai, \atiméazesqai a\utèhn de=i
to%uto ti nomizw sumb%hnai perèi téhn to%u néomou skièan, %h tèo gréamma (skièan gèar a\utèon
kale=i |o \ Apéostaiv). (III, 127) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus Eos’Qui
Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes Damascenus. p.
1412.
324
DAMASCENO, João. | Ei tiv \antipoie=itai Qeodéwrou to%u \asebo%uv ç Moyouste\iav to%u
eipéontov, $allon e\inai tèon Qeèon Aéegon, kaèi $allon tèon Cristèon, \upèo paq%wn yucik%wn kaèi
t%wn t%hv sarkèov \epiqumi%wn |enocloéumenon, kaèi t%wn ceiréonwn katèa mikrèon cwrizéomenon,
kaéi o=utwv \ek prokop%hv $ergwn beltiwqéenta, kaèi \ik paliteéiav \améwmou r katastéanta, éwv
yiléon !anqrwpon baposq%hnai, eiv $onoma to%u Patréov, kaèi Gio%u, kaèi \ag|iou Pneéumatov,
kaèi dièa to%u baptéismatov téhn céarin kaèi \ag|iou Pneéumatov labéonta, kaèi u|ioqeséiav
\axiwq%hnov kaèi katèa \iséothta basilik%hv eikéonov, eiv préoswpon to%u Qeo%u Aéogou
126

Vemos aqui uma separação clara entre imperador e Deus, mostrando que,
apesar de ser escolhido por Ele, o imperador não deve ser tratado como Deus, mas
deve ser respeitado devido ao cargo que ocupa.
Dessa forma, podemos concluir que as obras de Damasceno foram escritas
com a finalidade de fazer crítica ao imperador, neste caso, ao imperador Leão III
que além de dar início à iconoclastia, em sua única obra jurídica, a Ecloga, se auto
intitulou “rei e sacerdote”, o que para o monge era visto como um ato de tirania,
pois um rei não poderia, segundo as constituições bizantinas, ser também um
sacerdote325. “Essa apropriação sugere que se eliminou a distinção entre a
autoridade imperial e o sacerdócio, apesar de caracterizar o seu papel em termos
bastante convencionais” 326. Nas palavras de Dagron:

Como obra apenas tenemos la recopilación jurídica Écloga, y


sobre todo su prefacio, muy probablemente de autoria imperial.
Está trufada de referencias bíblicas y revela a un soberano muy
seguro de la procedencia divina de su derecho de dictar leyes y
de reformar a lós hombres. “Puesto que Dios, al confiarnos el
poder imperial, tuvo a bien aportar la prueba det tan temeroso
amor que Le profesamos, y nos há ordenado, según la expresión
de Pedro, corifeo de lós apostoles (I Pedro, V, 2), pacer a su
muy fiel rebaño [...]” (Ecloga). Aquí el emperador se definia
como una especie de obispo, directamente elegido por Dios
para gobernar la cristandad, y ya hemos visto en outra parte que
también como un Nuevo Ezequías fundiendo la serpiente
convertida en ídolo.327

É possível perceber essa crítica anti-imperial de Damasceno,


principalmente nas passagens nas quais cita o imperador Leão III chamando-o de
“selvagem” e faz uma brincadeira com o nome do imperador e o “leão”, animal
considerado “selvagem”328 e, na passagem na qual diz que está a se fazer um novo
Evangelho “segundo Leão”, o que indica que para o monge, a iconoclastia seria
uma religião dos imperadores (Leão e seu filho Constantino), uma nova fé 329.
Por outro lado, podemos também perceber em seus escritos, uma defesa do
poder imperial, desde que o imperador não aja como um tirano, contrário às

proskuneisqai, \anéaqema $estw. (III, 129) In: DAMASCENI, S. Joannis. Oratio III. Adversus
Eos’Qui Sacras Imagines Abjiciunt. In: Patrologiae Graecae Tomus XCIV. S. Joannes
Damascenus. p. 1412.
325
Cf. DAGRON, 2007.
326
Cf. CARDOSO, 2013, p. 92.
327
Cf. DAGRON, op. cit., 2007, p. 219.
328
Cf. CARDOSO, op. cit., 2013, p. 97.
329
Cf. DAGRON, op. cit., 2007, p. 24.
127

constituições eclesiásticas e nem aja como um membro da Igreja, a quem foi


conferido o dever de legislar sobre os assuntos da Igreja.

Apesar do ataque à forma de proceder do imperador ao


perseguir os costumes da Igreja, São João esforça-se por
sublinhar a lealdade dos cristãos para com o imperador no
cumprimento dos assuntos próprios do Império. O teor
fundamental deste ponto centra-se no clero bizantino, firmada
na sua lealdade ao imperador, mas esclarecido sobre os
privilégios da Igreja e do seu clero e fiel à tradição da Igreja. 330

Neste sentido, podemos constatar que mais que uma simples defesa das
imagens ou simples crítica ao poder imperial, os tratados de Damasceno podem
ser considerados um debate acerca da autoridade política em Bizâncio, nos quais
faz um tipo de manual com o intuito de lembrar ao imperador as suas funções e ao
mesmo tempo defender a legitimidade do poder imperial, pois o imperador
dependia de sua popularidade, como assinalou Kaldellis, frente aos súditos para se
manter no poder.

3.3. Damasceno e sua perspectiva sobre a representação imperial: a visão de


quem está longe do centro do poder bizantino

Após a análise dos antecedentes e da eclosão da iconoclastia, da questão


teocrática ou não do poder imperial e da vida de São João Damasceno e de seus
tratados sobre as imagens não só como uma defesa das mesmas, mas enquanto
também um debate acerca da autoridade política em Bizâncio, é necessário que se
faça considerações diante da correlação dos fatos apresentados até aqui,
juntamente com a perspectiva de Damasceno sobre a representação imperial,
diante de um ponto de vista de quem se encontrava fora dos domínios bizantinos,
pois “Damasceno viveu sob a jurisdição política do califado e, por isso, era
considerado um estrangeiro para o Império Bizantino cristão do seu tempo”. 331
A princípio é preciso recapitular o fato de que o monge João Damasceno
quando escreveu os seus três tratados em defesa das imagens divinas encontrava-
se em um mosteiro na Província da Palestina, território que já não fazia mais parte
330
CARDOSO, 2013, p. 93.
331
BOY, 2008, p. 165.
128

dos domínios bizantinos por ter sido conquistado pelos árabes no século VII.
Sendo assim, ao estudarmos as suas obras, estamos lidando com a percepção de
quem estava observando o que ocorria dentro de Bizâncio a partir de uma
perspectiva de quem estava distante e recebia informações sobre o que ocorria,
mas não vivia os acontecimentos.
Diante disso, deve-se ter cuidado ao examinar as obras de Damasceno
dentro da crise iconoclasta e tratá-las como a concepção de todos os membros
monásticos bizantinos, pois a defesa das imagens se limita às suas obras no século
VIII e às obras do também monge Teodoro Estudita no século IX. Desse modo,
não podemos afirmar que essa era a visão e a opinião de todos os monastérios,
pois como bem assinalou Michael Angold 332, muitos mosteiros encontravam-se
favoráveis à nova política contrária às imagens instituída pelo imperador Leão III.
Outro problema em relação à sua percepção estava no fato de que dentro
da própria Igreja existiam contradições referentes às constituições eclesiásticas,
principalmente no que se referia à legitimidade ou não da produção e culto das
imagens. Como já assinalamos no primeiro capítulo, um dos principais Padres da
Igreja, Eusébio de Cesaréia, mostrou-se contrário às imagens em uma carta escrita
a Constância, irmã do imperador Constantino que lhe pediu que lhe enviasse um
retrato de Cristo. Nota-se, assim, que apesar de nunca se opor às imagens havia
membros da Igreja que não as aceitavam, sendo importante lembrar também que a
posição oficial da Igreja sobre os ícones só aconteceu no século VII, três séculos
após o que foi defendido por Eusébio.
Além disso, encontramos incongruências também no que concerne ao
dever atribuído ao imperador de legislar não só sobre os interesses do Estado, mas
também sobre as questões eclesiásticas, o que foi defendido, sobretudo por
Eusébio de Cesaréia, entretanto, considerado tanto por Damasceno quanto por
Estudita como inadequado.
É preciso destacar novamente o problema das fontes do período
iconoclasta e o fato das mesmas reportarem o ponto de vista eclesiástico, já que as
fontes iconoclastas foram destruídas após o fim definitivo do período. Outro
problema diz respeito à escassez de textos que se refiram à opinião da população
bizantina e suas crenças, o que dificulta o entendimento do período, já que relatos

332
ANGOLD, 2002. pp. 68-86.
129

como o citado pela Crônica de Teófanes acerca da retirada da imagem de Cristo


da Chalké, que teria dado início às ações iconoclastas e causado revolta na
população, foram considerados questionáveis, devido também à sua tendência
iconófila. 333
Fontes questionáveis também são as que se referem a relatos de
perseguições contra os monges que teriam sido orientadas pelo imperador
Constantino V e que atribuem a eclosão do iconoclasmo a uma política
antimonástica.334 Como já foi destacado, temos acesso apenas a duas obras de
referência escritas por monges (Damasceno e Estudita) que se assumiram
contrários à iconoclastia publicamente e esse fato teria sido levantado pela
imperatriz Irene e pelo patriarca Tarásio sem provas contundentes.335
Há quem considere ainda que esses relatos faziam parte de uma campanha
de difamação contra o imperador Constantino V após o restabelecimento das
imagens em 787 e o triunfo definitivo das mesmas em 843, como forma de
afirmação, apesar de mais tarde, esses mesmos indivíduos que o difamaram terem
admitido o seu sucesso enquanto um forte líder militar frente aos problemas
externos do Império. No entanto, o maior problema estaria na disseminação dessa
imagem negativa do imperador veiculada por muitos pesquisadores modernos do
período.336
Além do mais, destaca-se a questão já defendida por Anthony Kaldellis 337
acerca dos princípios republicanos existentes em Bizâncio e acerca da deposição
de imperadores considerados tiranos ou impopulares. Como essa situação não
ocorreu no decorrer da crise iconoclasta, já que o próprio Damasceno em várias
passagens considera o imperador Leão III um tirano contrário aos ideais
eclesiásticos e às manifestações populares tal como o culto das imagens, e como
já ressaltamos não há fontes que comprovem o parecer da população sobre,
podemos concluir que a política iconoclasta e os imperadores precursores da
mesma, Leão III e seu filho Constantino V foram bem vistos no Império ao
contrário do que foi defendido por Damasceno. Ademais, sobre isso é preciso

333
BRYER; HALDON, 2001.
334
Autores como Ostrogorsky (1984), Diehl (1961), Lemerle (1991), Hilário Franco Júnior e Ruy
de Oliveira Filho (1985) e Boy (2007) defendem a iconoclastia enquanto um movimento
antimonástico.
335
HALDON, 2010, p. 11.
336
BRUBAKER. In: JAMES, 210, p. 332.
337
KALDELLIS, 2015.
130

relembrar que as imagens dos imperadores iconoclastas após o fim definitivo da


sua política contrária às imagens, foram destruídas338, o que reforça essa ideia, já
que pode-se perceber uma tentativa, por parte dos iconófilos, de encerrar a
popularidade que esses imperadores pudessem ter, principalmente em decorrência
de seus sucessos militares em um momento de crise.
Neste sentido, podemos concluir que Damasceno ao escrever os seus
tratados dentro de um território que pertencia aos árabes, mas que já havia
pertencido aos bizantinos, ao mesmo tempo que fazia uma crítica aos imperadores
iconoclastas, também advogava uma defesa da popularidade da representação
imperial bizantina frente ao momento de crise causado pela expansão árabe, como
forma de demonstrar a importância desse líder político para a defesa territorial.

338
NEGRAU, 2011, pp. 65-66.
131

CONCLUSÃO

Produzir uma pesquisa sobre a crise iconoclasta do século VIII em


Bizâncio é uma tarefa um tanto quanto complexa que envolve diversos
seguimentos da estrutura social bizantina e diversos contratempos como a falta de
documentação, como procuramos ressaltar o tempo todo neste trabalho. Ademais,
a documentação existente procurou retratar o iconoclasmo e seus precursores
sempre de forma negativa, o que fez com que tivéssemos muitas lacunas frente
aos acontecimentos. No entanto, preencher as lacunas encontradas nesse período
obscuro da era Bizantina é uma tarefa complicada e, como bem ressaltamos, esse
não era o nosso propósito.
Nosso objetivo era inserir as obras de São João Damasceno em defesa das
imagens divinas, dentro de um debate não só da imagem em si, mas também da
natureza do poder imperial em Bizâncio, com o intuito de tentar compreender os
tratados enquanto uma perspectiva de Damasceno frente ao poder imperial, de
simultânea crítica e legitimação.
Contudo, para chegar até o cerne de nossa tese foi preciso, primeiramente,
fazer um amplo estudo dos antecedentes da iconoclastia, passando pelos primeiros
séculos, discutindo os dogmas cristãos e heresias, a história de como as imagens
foram adquirindo importância para a sociedade bizantina, além da discussão em
torno do caráter autrocrático do poder imperial, tão defendido e difundido pela
maioria dos pesquisadores. Procuramos ainda demonstrar a importância do
monacato e o seu lugar na sociedade e como a crise do século VII juntamente com
a expansão islâmica levou ao poder o imperador Leão III, que logo após deu
início à política iconoclasta.
Esse primeiro passo foi importante para que pudéssemos compreender o
complexo cenário em que se iniciou o iconoclasmo em que Damasceno viveu e
escreveu suas obras contrárias ao mesmo.
Nosso segundo passo consistiu em situar o leitor sobre a vida, tradição e
obras de São João Damasceno, para uma maior compreensão de quem ele foi para
depois analisarmos os seus três tratados de forma sistemática para que
pudéssemos assimilar melhor os seus argumentos favoráveis à produção e culto
132

das imagens sagradas, para depois demonstrar como esses mesmos argumentos
foram utilizados para legitimar o poder imperial. Em seguida, fizemos algumas
considerações acerca dessas obras, em conjunto com uma bibliografia que
abarcava o estudo das mesmas.
Nosso terceiro e último passo foi, justamente, situar as obras de
Damasceno em um debate sobre autoridade política, na tentativa de demonstrar a
perspectiva do mesmo sobre a representação imperial. Procuramos,
primeiramente, fazer uma discussão acerca da herança republicana romana de
Bizâncio, para em seguida demonstrar um paralelo entre as imagens sagradas e os
retratos imperiais para, por último, refletir sobre o papel de Damasceno enquanto
um cristão em território islâmico, demonstrando a partir de seus escritos sua
percepção das decisões que estavam sendo tomadas em relação à sua crença
dentro do Império Bizantino.
Em meio ao que propomos foi possível observar que não havia consenso
entre os membros da Igreja sobre questões religiosas como a legitimidade ou não
da imagem, que vinha desde o século IV e sobre a autoridade ou não do imperador
frente aos assuntos eclesiásticos, pois enquanto Eusébio de Cesaréia defendia
atuações do imperador dentro da Igreja, como a convocação de sínodos,
Damasceno se colocava contrário a essas atuações com a afirmação de que ao
imperador só cabia os assuntos do Estado.
Percebemos também como o próprio Damasceno fazia uma clara divisão
entre Igreja e Estado, e a diferença que ele fazia das funções do imperador em
ambas as esferas, o que nos faz presumir que suas obras seriam também um
debate sobre a popularidade e a impopularidade do imperador e sua função
enquanto líder supremo e defensor do Império.
Destacamos que este foi mais um trabalho que estudou o iconoclasmo sob
a perspectiva imperial, clerical, monacal e não a partir das manifestações
populares, devido à escassez de fontes sobre as mesmas. No entanto,
reconhecendo o Império enquanto um herdeiro da república romana, como assim
defendeu Kaldellis, é possível não afirmar, mas tirar algumas conclusões, como o
fato de que a popularidade ou impopularidade e possível deposição dos
imperadores iconoclastas não ocorreu, já que eles eram considerados tiranos por
Damasceno, o que nos leva a crer que a população não era contrária aos mesmos e
sua política.
133

Ressaltamos também que os poucos relatos sobre manifestações populares


do período foram considerados documentos questionáveis, devido às intenções
que esses documentos poderiam conter, já que foram escritos a partir do ponto de
vista iconófilo e apresentam a iconoclastia e seus adeptos sempre de forma
negativa. Dessa forma, mesmo as obras de Damasceno foram analisadas por nós
com cuidado, devido a essas tendências negativas.
No que concerne aos escritos de São João Damasceno demonstramos o uso
que ele fez do conceito de protótipo para explicar como o culto às imagens é
importante para venerar Deus, pois através das mesmas era possível chegar N’ele.
Ademais, o monge utilizou ainda do conceito de tradição para apresentar a
importância das tradições eclesiásticas escritas e não escritas; do conceito de
encarnação para expressar a possibilidade de representar Cristo por ele já ter sido
homem; do conceito de idolatria que, em sua perspectiva, se referia aos cultos
pagãos e aos cultos judaicos; de adoração que ele explicou que poderia ser
oferecida somente a Deus; de veneração que poderia ser oferecida a Cristo, à
Virgem e aos santos; de honra e memória que deveria ser dada a todos aqueles
que tenham tido boa conduta e feito boas obras em vida e de imitação para a
defesa de que se imitem os bons atos feitos em vida.
A partir da utilização desses conceitos para defender as imagens divinas
foi possível perceber como Damasceno se utilizou de alguns deles, como os de
protótipo, honra e memória para também defender o poder imperial e suas
funções.
Assim, acreditamos que conseguimos chegar ao objetivo de nosso trabalho
em situar os tratados de Damasceno em um debate sobre a autoridade política
bizantina, desviando da análise religiosa dos mesmos, feita pelos nossos demais
colegas. Nosso intuito era o de explorar outras frentes e possibilidades de textos
tão importantes e grandiosos sobre o período iconoclasta. Esperamos, dessa
forma, que outras possibilidades possam ainda ser exploradas para que
consigamos compreender ao máximo esse período obscuro da história bizantina,
devido à escassez de fontes.
134

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