Fortunas Críticas - Caio Fernando Abreu

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA
ALUNA: GABRIELA BROINIZI PEREIRA BRANCO

MORANGOS MOFADOS ATRAVÉS DA CRÍTICA

Neste trabalho irei analisar três textos críticos sobre a obra “Morangos Mofados” do
escritor Caio Fernando Abreu, sendo eles o capítulo “Morangos mofados: Uma história social
a contrapelo”, parte da tese de doutorado “Fragmentos e diálogos: História e Intertextualidade
no conto de Caio Fernando Abreu” de Luana Teixeira Porto pela UFRGS, a crítica de Leland
R. Guyer publicada no livro World Literature Today. Vol. 57. No 2 e a parte II intitulada
“Narrativa e Experiência em Morangos Mofados” da tese de doutorado “Verbalizando
morcegos estritamente pessoais e intransferíveis: Narrativa e Experiência em Morangos
Mofados de Caio Fernando Abreu” de Rosicley Andrade Coimbra pela Universidade Federal
de Goiás.

O capítulo “Morangos Mofados: uma história social a contrapelo” de Luana Teixeira


Porto, se encontra na terceira parte de sua tese, intitulada “O conto de Caio Fernando Abreu:
Um diálogo entre literatura e história” e, como o próprio nome anuncia, sugere uma leitura
histórica da obra de Caio Fernando Abreu, mas que acaba sendo política e social também, uma
vez que como a autora coloca, as personagens se veem numa situação em que avaliar seus
princípios políticos e ideológicos, assim como seus projetos, é extremamente necessário, por se
tratar de um livro escrito num momento de repressão e autoritarismo no Brasil. Porém, ao
mesmo tempo que Luana se propõe a uma análise pelo viés político e social, ela também busca
não descartar os elementos estéticos-formais, os colocando como parte integrante da obra, já
que sem eles não seria possível verificar como matérias de diferentes ordens se relacionam e
contribuem para a autonomia da obra e de sua relevância enquanto crítica social.

Para ela, a leitura de Morangos Mofados não indica nenhum sentido de unidade e
significado totalizante à primeira vista, por se tratar de um livro construído a partir de
fragmentos, que se forem olhados de modo independente, por entrecruzarem formas,
linguagens e diferentes estilos de escrita, assim como temas que percorrem desde o
homoerotismo até a repressão política e o processo de escrita, não parecem indicar uma unidade
formal.

Para a autora, as personagens centrais do livro são seres marginalizados social e


sexualmente, de modo que ela utiliza o texto “Estar entre o lixo e a esperança: Morangos
Mofados de Caio Fernando Abreu” de Fernando Arenas para embasar sua opinião de que os
contos dão espaço a vozes “ex-cêntricas” como expressa Arenas (1992), para argumentar que
Morangos Mofados questiona as ideologias e posições preconceituosas daquela sociedade
através dessas vozes que, inclusive, convidam o leitor a fazer parte das histórias e se posicionar
criticamente diante das situações descortinadas. Segundo Luana, os contos mostram que Caio
Fernando Abreu queria explorar uma visão de mundo que contrariasse a conduta moral definida
como correta.
2

Para Luana, o tema do conto final da obra é a problematização da dor vivida por uma
personagem circunscrita num mal tempo social, que Caio Fernando Abreu narra dividindo a
história em cinco partes relacionadas a diferentes segmentos da música clássica: “Prelúdio”,
“Allegro agitato, “Adágio sostenuto”, “Andante ostinato” e “Minueto e rondó”, reforçando a
ideia de fragmentação e formando, como pontua a autora, peças de um mosaico.

Trata-se de um conto que escancara a percepção do sujeito diante de suas limitações e


de sua condição melancólica, embora para a autora da tese, o personagem não se configure
propriamente como um ser melancólico, já que esse sentimento é visto como consequência da
conjuntura social e histórica que abalou não só o personagem central, mas todos aqueles que
viveram nessa época, se tratando, portanto, de um sentimento coletivo. Luana coloca ainda o
mofo dos morangos como sendo uma metáfora da perda de projetos e sonhos de ordem social
que desapareceram diante da situação repressora do país. Para ela, a última parte do conto “
minueto e rondó” retoma a ideia de esperança, simbolizada pela palavra “sim” do final, mas
sem que essa anule a melancolia da narrativa, simbolizando apenas a tentativa de o sujeito
elaborar novas experiências no futuro a partir do aprendizado com as experiências passadas, de
forma que o saldo disso, para a autora, pode ser positivo.

Porto conclui dizendo que os contos de Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu
constroem uma história a contrapelo porque propõem “a liberdade individual e social e
condições pacíficas de sobrevivência num contexto de opressão, repressão e violência como
alternativa para a harmonia das relações humanas” (PORTO, 2011, p. 139). Ou seja, para ela,
as histórias vão na direção contrária de sugerir uma resposta também violenta à um período
extremamente bruto.

A crítica de Leland R. Guyer no livro World Literature Today. Vol. 57. No 2 foi
publicada em 1983, isto é, um ano após o lançamento de Morangos Mofados e trata-se de um
texto curto sobre a obra de Caio Fernando Abreu, enquadrada numa seção intitulada Portuguese
fiction. Nesse texto, escrito em inglês, Leland parece aproximar sua análise de uma crítica
jornalística e começa dizendo que o movimento de Caio em dedicar seu livro à John Lennon,
assim como a presença da música Strawberry Fields Forever dos Beatles na última parte, traz
à tona a memória de alguém que foi vítima de seu próprio tempo, numa espécie de tentativa de
descrever e descortinar alguns dos fracassos sociais da civilização ocidental que ocorreram nas
duas décadas que antecederam a publicação dos contos.

O crítico então prossegue pensando a obra segundo sua divisão formal em três partes O
mofo, Os morangos e Morangos Mofados, sendo o primeiro fragmento, a revelação dos restos
de experimentações da classe média e a tentativa desses personagens encontrarem um sentido
na vida. Usando como exemplo o conto “Os sobreviventes”, Guyer compara as personagens da
primeira parte do livro com frutos apodrecidos na terra, ja a segunda parte da obra oferece, para
ele, a imagem dessas mesmas pessoas suspensas no que o crítico chama de estado de graça
(GUYER, 1983, p. 262), como frutos maduros flagrados minutos antes de caírem no chão. A
terceira parte, ele reconhece como uma narrativa única composta por muitos subtítulos e que se
relaciona com histórias das seções anteriores.

Para Leland, a ideia de expor retratos e autorretratos de pessoas perdidas e fracassadas


não confere originalidade à obra, ainda que para ele, Caio consiga ser bastante convincente,
tanto por se tratarem de situações e estados com os quais conseguimos nos identificar, como
também porque o escritor conduz essas situações através de diferentes estilos narrativos, gírias,
monólogos interiores e mudanças de ponto de vista dentro de um mesmo conto que acabam
3

conferindo o que o crítico irá chamar de “a growing segment of modern Brazil” (GUYER, 1983,
p. 262), isto é, um segmento do Brasil moderno que estava em ascensão.

Já a parte II intitulada “Narrativa e Experiência em Morangos Mofados” da tese de


doutorado “Verbalizando morcegos estritamente pessoais e intransferíveis: Narrativa e
Experiência em Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu” de Rosicley Andrade Coimbra,
faz uma análise bastante detalhada de cada uma das partes que compõe o livro de contos,
partindo sua leitura da ideia de que a obra se assemelha a um mosaico, numa espécie de romance
desmontável na qual os personagens tentam inicialmente dar voz a seus traumas e elaborar suas
angustias dentro de espaços fechados como casas e apartamentos, ensaiando, na segunda parte
do livro, movimentos de mudança na direção de reagir à imobilidade que os dominava, sendo
a terceira parte do livro uma tentativa de equilibrar esse impasse buscando, através do conto
final, que leva o nome do livro, amarrar o que tenha ficado solto nas histórias anteriores, no
sentido de recombinar os restos que o autor da tese coloca como sendo partes deixadas por um
passado interrompido sem, entretanto, condensar a obra.

Segundo Rosicley não existe unidade no livro, ainda que nós leitores tentemos buscar
esse sentido de totalidade, havendo apenas elementos diversos que apontam para um desfecho
temporário. Ele ainda apresenta os contos como criações autônomas, apesar de reconhecer
existir um constante diálogo entre eles conduzido pelo título Morangos Mofados, que dá conta
de estabelecer essas ligações. Para fazer valer sua argumentação o autor cita o texto “Caio
Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro” de Bruno Souza Leal (2002) que afirma
haver entre os contos de Caio uma organicidade no movimento dos textos que garante a união
dos fragmentos.

Sem ignorar o contexto no qual a obra foi publicada, o autor da tese reforça o fato de
Morangos Mofados estar situado historicamente na passagem da ditadura para a
redemocratização do país, elaborando de algum modo, no meio das narrativas traumáticas,
críticas que revelam o impacto do regime assim como a permanência de certas ideias daquele
período, que o faz definir a reunião de contos como um livro limiar.

No entanto, Rosicley se propõe a ir além do contexto meramente político e observar na


obra elementos que revelam a desarmonia entre homem e mundo, enxergando nas narrativas de
Caio, problematizações que ultrapassam a ordem política, isto é, relacionadas apenas ao regime
vigente no Brasil na época de sua publicação, identificando também demandas relacionadas à
existência do homem moderno, como a crise de identidade dos sujeitos da contemporaneidade.

Há ainda um direcionamento, segundo Coimbra, de elementos que “apontam para a


representação de uma realidade na qual as experiências coletivas não são mais possíveis, posto
estarmos no ápice de uma crise inerente à própria condição da modernidade” (COIMBRA,
2019, p.91) e, para sustentar essa ideia, o autor se apoia no filósofo Giorgio Agamben, em
Walter Beijamin e Adorno, isto é, ele se utiliza de outras áreas do conhecimento para embasar
sua análise literária.

Trata-se para Rosicley, de uma perspectiva importante para entender a obra de Caio
Fernando Abreu, uma vez que seus personagens se acham num mundo onde o individualismo
é regra e onde o autor de Morangos Mofados tenta superar o impasse de tentar narrar em uma
sociedade na qual as experiências não parecem mais ser transmissíveis porque isentas do
sentido de coletividade. Para o autor da tese, a obra se encontra justamente nessa fronteira entre
não ser mais possível construir uma narrativa que dê conta de desvendar a realidade, mas ao
4

mesmo tempo ser indispensável narrar. De modo que para ele, a tentativa empreendida por Caio
Fernando Abreu em Morangos Mofados, é justamente a de construir uma narrativa que
incorpore os traumas e fracassos de uma geração que teve seus sonhos interrompidos por um
regime autoritário e por questões intrínsecas à própria modernidade, como parte de uma
experiência que se mostre coletiva, permitindo, assim, a narração de uma história que
permaneça aberta, sem se encerrar em ideias totalizantes.

Quanto a análise do texto “Morangos Mofados: uma história social a contrapelo, Luana
Teixeira Porto anuncia já no primeiro parágrafo o enfoque histórico, ao denominar a obra de
Caio Fernando Abreu como uma “manifestação literária” (PORTO, 2011, p. 126), isto porque
na expressão escolhida pela autora, reside a ideia de que alguma coisa será expressa através da
literariedade da obra, o que se confirma em seguida quando ela explica que o trabalho irá
estabelecer relações entre os elementos de ordem sócio-política e de ordem estético-formal.

Ao se deter de maneira mais demorada no conto que leva o mesmo nome da obra, Luana
afirma ser a problematização da dor o tema central da narrativa, porém a autora não expande a
ideia buscando embasar seu argumento, ela apenas reafirma esse sentimento como algo vivido
pelo personagem, mudando o foco da análise no parágrafo seguinte e deixando, dessa forma,
uma ideia genérica solta no texto.

A mesma coisa acontece ao falar sobre o traço estético do conto, no qual Porto destaca
a fragmentação formal de maneira associada ao que ela chama de “desordenamento em relação
ao enredo e as personagens” (PORTO, 2011, p. 132), pois sobre a ideia de “desordenamento do
enredo” a autora não acrescenta nenhuma exemplificação sobre essa afirmação, que na verdade
parece não se sustentar já que é possível observar no conto Morangos Mofados um enredo que
se organiza justamente a partir da divisão da história em cinco blocos que aludem à música
clássica, fornecendo sentido para cada um desses pedaços fragmentados, além da utilização de
expressões como “quando acordou”, “o telefone parou”, “levantou de repente”, “amanhecia”,
que conferem certo grau de organicidade à narrativa, subvertendo a aparente desorganização do
conto.

Quando se propõe a falar do conceito de melancolia, ao afirmar que o esfacelamento


psíquico no qual a personagem se encontra “alude à ideia de “doença da alma” explorada por
teóricos antigos (PORTO, 2011, p. 132), a autora traz a ideia da melancolia como algo já
estudado em outros tempos, porém por não nomear nenhum dos teóricos “mencionados” que
abordaram essa condição humana, ela deixa os leitores sem referências concretas sobre o
assunto que introduziu.

Em termos de vocabulário, é bastante recorrente o uso das palavras “conservador” e


“conservadorismo” aludindo aos comportamentos sociais da época, assim como a palavra
“experiência” se referindo tanto a vivências individuais das personagens dos contos, como às
experiências coletivas relacionadas a noção do “mal do tempo”. Isto é, a ideia de experiência
proposta por Luana parece avançar na direção de elaborar o trauma social como algo coletivo.

No que se refere à interpretação final do conto, a opinião da autora, que lê as


experiências sociais traumáticas como algo favorável, parece não se sustentar. Isto porque
estamos falando de um livro escrito e publicado num contexto político de extrema violência,
sendo questionável a ideia de ser realmente possível ter um saldo de experiências positivas
durante uma ditadura militar. Isto é, o que a autora coloca como “a necessidade do sujeito de
aprender com as experiências” (PORTO, 2011, p. 138) não seria apenas a necessidade de
5

encontrar maneiras de seguir em frente apesar de toda a experiência de sofrimento


experimentado num estado de coibição? A afirmação de “condições pacíficas de sobrevivência
num contexto de repressão” (PORTO, 2011, p. 138) como resposta do livro ao momento
histórico do país, parece também não se sustentar, pois dentro de uma situação de
silenciamento, não é possível reagir e, portanto, não parece se tratar de uma situação de “propor
uma condição pacifica de sobrevivência”, mas de aceitar a única que era possível naquele
momento.

Já a crítica de Leland R. Guyer, constrói uma análise mais concisa de Morangos


Mofados, o que o aproxima de uma proposta mais jornalística da crítica sem deixar de trazer
elementos interessantes de serem pensados. Seu texto, publicado um ano depois do lançamento
do livro de Caio Fernando Abreu, aborda a obra por uma perspectiva existencial que relaciona
texto-contexto, porém, o que se observa é que esse contexto faz referência a sociedade ocidental
como um todo, não ao Brasil especifico daquele tempo. Talvez, o fato de Leland ser um
acadêmico estrangeiro, colabore para que o olhar que ele dirige à obra seja mais distanciado se
comparado com aqueles que estavam inseridos naquela conjuntura nacional ou que, por serem
também brasileiros, demonstram ter uma relação mais pessoal com a história do país.

Sinal disso seria o início de seu texto, que antes de mais nada, destaca a presença no
livro de elementos do universo da banda Beatles e a referência ao assassinato de John Lennon,
acontecimento que por ter repercutido em todo o mundo, leva Leland a sugerir que Caio
Fernando Abreu pretendia descortinar os fracassos sociais da década de 60 e 70 que, para o
crítico, foram inerentes à toda sociedade ocidental.

Além disso, o autor também parece não considerar que as personagens da maioria dos
contos são marginalizadas, as caracterizando, pelo menos ao que se refere a primeira parte do
livro, como pessoas de classe média padrão "In the first part the reader observes the detritus of
middle-class experimentation and search for meaning in life" (GUYER, 1983, P. 261-262) Isso,
apesar de citar que no conto "Os sobreviventes" há uma discussão entre as personagens que vai
desde Marx até a questão da homossexualidade. Assim, é possível dizer que apesar de
mencionar a presença de questões de sexualidade na obra, ele não demonstra em seu texto serem
essas questões parte fundamental do trabalho de Caio, ideia que não se sustenta se olharmos
para a maneira como a busca pelo sentido da vida de alguns personagens passa por esse lugar
de forma crítica, como no conto "Terça Feira Gorda", por exemplo.

Por outro lado, algo bastante interessante que o autor fez foi analisar, através da
condição dos frutos, a maneira na qual os títulos de cada parte traduzem metaforicamente as
condições das personagens, como na seguinte comparação "As the title of the book sugegests,
they are the overripened decayed fruits of the land"(GUYER, 1982, p. 262) em referência a
parte "Mofo" da obra e a segunda parte "Os morangos" que "offers an image of similar persons
in state of suspended grace, moments before the fall, ripened fruit about to be picked and
allowed to rot"(GUYER, 1982, p. 262).

Por não considerar o contexto especifico da ditadura militar brasileira, Leland acaba
interpretando o último conto por uma perspectiva filosófica-existencial, na qual o
desaparecimento do gosto de morangos mofados é consequência de uma espécie de epifania
que leva o personagem a perceber que "the answer is the question - or the quest" (GUYER,
1982, p. 262), mas sem, no entanto, elaborar mais detalhadamente essa ideia colocada. Assim,
a ação de plantar morangos frescos, na perspectiva do crítico, pode ser lida como apenas uma
6

abertura pessoal na direção de novos sonhos e de uma nova estrada, sem considerar traumas
sociais específicos de uma geração que sobreviveu à repressão política.

Rosicley Andrade Coimbra, por sua vez, utiliza uma abordagem que é ao mesmo tempo
histórica, política e filosófica ao denominar Morangos Mofados como "um livro limiar"
(COIMBRA, 2019, p. 91) capaz de, ao mesmo tempo, resgatar o contexto político dos anos
1980 e se abrir para uma nova perspectiva, uma vez que se trata de uma narrativa que levanta
questões existenciais inerentes ao homem contemporâneo. Ideia que se afirma pois, as histórias
de Caio revelam de fato uma dificuldade em articular o mundo externo e interno das
personagens, de modo que para sustentar seu posicionamento, o autor se apoia em filósofos e
sociólogos, trazendo a noção de "experiência" como um vocabulário central de sua análise.

Assim, através do conceito de “experiência”, o autor anuncia que as vivências


traumáticas das personagens não podem ser vistas apenas como consequência do regime militar,
pois para ele a impossibilidade de transmitir experiências é algo inerente ao homem
contemporâneo. Citando Agamben, o autor afirma que a "incapacidade de fazer e transmitir
experiências" é a única forma de existência disponível (COIMBRA, 2019, p. 92). Com isso, ele
parece minimizar o impacto específico de um regime autoritário, já que por essa perspectiva,
ainda que não houvesse um capítulo repressivo na história do Brasil, as personagens
continuariam condenadas a não conseguir traduzir quase nada em experiência coletiva por causa
da condição do homem contemporâneo.

Dessa forma, ao afirmar que existe urgência em construir uma narrativa capaz de
traduzir o trauma em experiência coletiva, é que Rosicley expande, se apoiando em Giorgio
Agamben, Walter Benjamin e Adorno, a noção do trauma para além da realidade especifica do
Brasil, alçando esse choque a uma realidade comum e compartilhada da sociedade moderna.

Sobre o conto Morangos Mofados, Rosicley diz que "a função da última história parece
ser a de re-unir as várias outras histórias em um mesmo vértice, mas sem estabelecer uma
unidade. Fazer isso seria cair no artificialismo das totalizações. Em outras palavras, seria
compactuar com uma ordem que não existia e não existe" (COIMBRA, 2019, p. 90). Porém, ao
recorrer ao texto de LEAL (2002) para embasar seu argumento, parece que o autor se contradiz,
já que Leal afirma, na verdade, que "há entre eles [os textos] uma coerência, uma espécie de
organicidade manifesta em recorrências e movimentos que unem os fragmentos (...) levando a
pensar num texto que se formaria a partir de vários outros" (LEAL, 2002, p. 45).

Ou seja, ao mencionar o movimento que une os fragmentos, o autor citado no artigo está
de alguma forma rompendo com a ideia de Morangos Mofados ser apenas uma colcha de
retalhos e afirmando existir uma ordem na disposição dos elementos, uma vez que existe a
possibilidade de construir um último conto a partir dos outros, revelando algum nível de união
entre as partes, ainda que não de modo a fechar o livro numa totalidade absoluta.

A ideia dessa construção final a partir das duas primeiras, pode ser confirmada através
do uso recorrente de certas palavras. "Ruína", por exemplo, aparece de forma insistente
na análise da primeira parte do livro (O mofo) e é utilizada para inserir as narrativas num
contexto de degradação. Essa escolha parece ser a maneira que o autor encontrou de minar com
a imagem primeira que o título da obra evoca, ao colocar, como ele diz, a vida – representada
pela imagem dos morangos e a morte – imagem trazida pelo mofo, num mesmo nível. Já em
relação a segunda parte de sua análise, a palavra “limiar” e a ideia de travessia estão
intensamente presentes.
7

Para Rosicley "Os morangos evocam o limiar no momento em que suas histórias,
permeadas por passagens e transformações, sugerem a restauração da vitalidade do fruto em
questão, outrora mofado" (COIMBRA, 2019, p. 142). O que significa que ao definir essa
segunda parte como algo limiar, o autor busca colocar essa narrativa como o intermediário entre
"a experiência que não pode ser esquecida" (COIMBRA, 2019, p.143) da primeira parte e o
enfrentamento da realidade da última, por isso também a ideia de travessia que ele resgata e
que é tão presente em Os morangos, que, por ser a parte intermediária da obra, traça um
caminho capaz de conectar a degradação das experiências coletivas de O mofo com "os restos
dos sonhos sonhados e não vividos" (COIMBRA, 2019, p.193) que emerge na última parte do
livro de forma recombinada, reunindo e dispersando os fragmentos estilhaçados, algo que só
foi possível graças ao espaço de respiro que o "índice de positividade" (COIMBRA, 2019,
p.184) de Os Morangos permitiu, sem, no entanto, abandonar a ideia de melancolia.

Assim, parece que, o autor do artigo se contradiz na medida em que, afirmando se tratar
de uma obra fragmentada, o que exclui a possibilidade de organicidade ou unidade nos contos,
ele cita em seguida o texto de Leal (2002) que afirma estarem os contos “ajuntados em grupos
no interior de cada livro, sugerindo nessa divisão uma ligação entre os textos” (COIMBRA,
2019, p. 90), evidenciando assim que eles formam sim um conjunto relativamente organizado
pelas escolhas formais de Caio. Algo que, inclusive, Rosicley reforça na última parte de sua
análise quando diz que as imagens presentes nas partes anteriores de O mofo e Os morangos,
apesar de dispersarem os fragmentos, acabam também os reunindo e os recombinando
(COIMBRA, 2019, p.185) como se fossem parte do processo de incorporar a derrota “de um
passado interrompido e traumático” se não à impossibilitada experiência coletiva, ao menos à
vivência pessoal do personagem do último conto. (COIMBRA, 2019, p.186).

Em termos comparativos é possível observar que Luana denomina sua tese de "Uma
história social a contrapelo" e Rosicley retoma essa ideia da pesquisadora, suprimindo, porém,
o termo “social”, o que demonstra, quando ele a menciona como "uma história a
contrapelo", um interesse do autor por aspectos de caráter que vão além do sócio-histórico,
como, por exemplo, o filosófico-existencial também presente em sua abordagem.

Quanto a classificação das personagens, é interessante observar a divergência que se


estabelece entre os autores analisados, já que para Leland trata-se uma "middle class", isto é,
uma classe média submersa em experimentações e busca por um sentido na vida, enquanto
Luana se apoia no texto de Arenas (1992) para recuperar a ideia de Morangos Mofados dar
espaço justamente a vozes "marginalizadas ou ex-centricas" num contexto de exclusão social.
Ideia também presente em Rosicley que, ao afirmar ser possível ler nas narrativas uma reflexão
sobre a crise de identidades dos sujeitos contemporâneos, principalmente dos homossexuais em
contextos autoritários, acaba compartilhando em certa medida a noção da obra dar voz a sujeitos
marginalizados. (COIMBRA, 2019, p.91)

Rosicley, ainda, denomina a obra de Caio como um "romance - móbile" (COIMBRA,


2019, p.89), o que Luana também defende quando esta fala sobre o conto final que, ao poder
ser lido "aos pedaços, tendo em vista que a forma de composição narrativa assemelha-se a
junção de peças que configuram um mosaico (PORTO, 2011, p.131). Já Leland classifica o
livro como "collection of brief prose pieces" (GUYER, 1983, p. 261) mostrando assim que
diante da condição fragmentada de Morangos Mofados, isto é, seu aspecto formal principal, os
três autores se mostram alinhados.
8

Além disso, ao afirmar que o conto final relembra "Os sobreviventes", Leland estabelece
uma conexão interna entre a obra, que pela distância na qual os contos estão dispostos, retoma
o conceito de "romance desmontável" de Rosicley que afirma serem os "diálogos constantes
dos contos em si, arrematados pelo título do livro que carrega uma potência ratificada pelas
narrativas (COIMBRA, 2019, p.190).

A segunda parte do livro de Caio, por sua vez, se configura como um pedaço importante
para os três autores na direção de compreender a obra como um todo, fornecendo inclusive
pistas sobre o conto final. Assim, para Leland Os morangos representa o momento no qual os
personagens de O mofo outrora representados pela figura de frutos apodrecidos, surgem num
estado de graça, como se por instantes estivessem suspensos da realidade de fracasso e derrota.
Já Rosicley, diz que essa parte do livro marca "o trânsito das personagens por zonas indecisas"
(COIMBRA, 2019, p.143) anunciando a necessidade de tomada de decisões na qual os
personagens "quebram a continuidade ao mostrar instantes decisivos em que as personagens
abandonam um tempo e espaço expropriados de significados, para tomarem direções opostas,
propondo novos significados ao realocarem imagens e fragmentos" (COIMBRA, 2019,
p.147). Isto é, enquanto Leland sugere uma espécie de imobilidade positiva, na qual as
personagens se mantém suspensas numa imagem que se opõe à imagem primeira parte do livro,
Rosicley enxerga Os morangos como oposto, isto é, como movimento, o espaço de travessia
que permite recombinar as experiências.

No que concerne Luana, apesar de não tratar de Os Morangos isoladamente, a autora


traz na análise do conto Morangos Mofados, as imagens dos morangos junto com de outras
frutas vibrantes que quebram com a opacidade do ambiente médico e se opõem ao persistente
mofo como "elementos que poderiam ajudá-lo a recuperar a energia perdida, pois essas frutas
simbolizam o frescor, a vitalidade e a força necessários ao ser humano" (PORTO, 2011, p.134).
Rosicley também recupera o trecho das frutas em sua análise como pista do que o protagonista
do último conto busca, num evidente contrate, segundo o autor, entre aquilo que ele vê e aquilo
que ele procura representados pela oposição das imagens das frutas secas à pitanga madura,
maga molhada e o morango sangrento, que ele aponta também como a busca por recuperar a
vitalidade, mas não a que do ser humano como coloca Luana e sim a dos frutos pintados no
quadro.

Sobre a organização do livro, enquanto Leland menciona de forma breve a divisão dele
nas três partes O mofo, Os morangos e Morangos Mofados, colocando no último parágrafo a
diversidade de formas narrativas, uso de monólogos interiores, mudança de pontos de vista
dentro de um mesmo conto, sem remeter a ideia da obra possuir ou não unidade, Luana e
Rosicley reservam uma boa parte da análise para essa questão. Para ambos os autores não existe
sentido de unidade em Morangos Mofados, por se tratar de uma literatura fragmentada. Nesse
ponto, Luana afirma não haver significado totalizante na obra, já que as histórias "se analisadas
separadamente, não remetem a uma unidade temática nem a uma unidade formal" (PORTO,
2011, p.127). Ela destaca o entrecruzamento de formas, estilos e linguagens, como Leland,
porém faz uso desses elementos para reforçar a não homogeneidade da obra, o que Leland não
chega a expor em seu texto.

Coimbra, por sua vez, ao afirmar que não existe unidade no livro, também evidencia a
ausência de elementos homogêneos que possibilitem um ponto final definitivo, isto é, um "final
totalizante" nas palavras de Luana (2011). Com isso, ele delineia a noção de que apesar dos
contos conversarem entre si, eles também trabalham de maneira autônoma, ideia exposta por
Coimbra ao falar da análise individual dos contos, que por não possuir unidade nem temática,
9

nem formal, desmontam a noção de unidade, de modo a visão de Rosicley e Luana se


aproximam neste ponto de análise.

Sobre as abordagens dos três autores é possível dizer que na tese de Rosicley reside uma
espécie de soma dos outros dois textos. Isso porque enquanto Luana se propôs a uma abordagem
sócio histórica e política, na qual destaca a crise do sujeito como consequência da crise do
contexto nacional da época em que Morangos Mofados foi escrito e publicado e, a experiência
do trauma, como algo coletivo porque os sujeitos vivenciaram as adversidades do mal tempo,
Leland se afasta completamente da visão de um contexto específico, fazendo de seu texto um
espaço de considerações mais filosóficas e existenciais acerca da civilização ocidental como
um todo, desconsiderando a ditadura militar do Brasil como um fator de influência.

Chegando em Rosicley o que é possível observar é que ele apoia sua tese nessas duas
vertentes, se propondo a ir além do contexto político, mas sem desconsiderá-lo. Assim existe o
que ele chama de "elementos que mimetizam um descompasso entre homem e
mundo" (COIMBRA, 2019, p. 91) colocando a experiência do trauma como algo coletivo não
apenas porque esses sujeitos compartilharam um contexto autoritário, mas porque
compartilharam o fato de existirem numa sociedade moderna, a qual a crise das experiências é
inerente. Esse trauma coletivo do passado é o que justifica, segundo o autor, "a falta de
ordenação dos fatos narrados", pois uma vez que o sonho não pode ser concretizado, Caio
precisou trabalhar com o que restou de um passado interrompido" (COIMBRA, 2019, p.186).
Ideia que Luana também destaca ao mencionar que a imagem dos morangos mofados indica "a
incompatibilidade entre projeto e realização" (PORTO, 2011, p. 136). O que os diferencia seria,
portanto, o fato de como dito anteriormente, Luana atribuir a suspensão dos projetos ao contexto
político do Brasil especificamente, considerando o saldo das experiências traumáticas como
positivo. Isto é, ela não incorpora o passado como um movimento necessário para recomeçar,
assim como Leland também não. Luana sugere uma mudança de perspectiva, na qual o sujeito
que teve seu passado interrompido projeta algo novo, busca uma nova forma de elaborar as
experiências futuras (PORTO, 2011, p.137), assim como Leland que interpreta o final de
Morangos Mofados como uma abertura para viver novos sonhos e percorrer uma nova estrada.
(GUYER, 1983, p. 262).

Já Rosicley, incorpora o saldo das experiências traumáticas como "o trabalho de


elaboração do luto que está apenas começando" (COIMBRA, 2019, p.195), isto é, ele não nega
nem distorce o sentimento de derrota, antes os aceita como parte integrante do sujeito inserido
no contexto brasileiro de repressão e da modernidade ocidental, elaborando um recomeço que
se dará "abraçando os restos dos sonhos" (COIMBRA, 2019, p. 196) ou seja, olhando para os
traumas e descobrindo novas maneiras de viver apesar deles.

Para concluir, é importante dizer que as aulas de Fortunas Críticas, assim como a
elaboração desse trabalho modificaram bastante minha maneira de olhar para o texto literário e
que poder cursar uma disciplina focada nos discursos críticos foi de fato muito interessante, já
que, na minha experiência pessoal na graduação de Letras, posso afirmar que não houve espaço
para que os alunos se detivessem na crítica, uma vez que as propostas de trabalho sempre
objetivavam análises das obras literárias. Assim, pensar a forma do meu discurso crítico foi
algo difícil, pois tenho a sensação que ao longo da graduação fui aprendendo a analisar os textos
literários sem refletir sobre quais abordagens eu estava utilizando de fato, ainda que recorresse
a textos de apoio para embasar minhas análises.
10

Dessa forma pude perceber que sempre início a elaboração dos trabalhos partindo do
contexto histórico, por considerar que enquanto seres sociais situados historicamente, nossas
produções, ainda que inconscientemente, sempre estarão articuladas com o momento vigente.
Nesse aspecto acredito que a minha análise se aproximaria da análise de Luana e se distanciaria
de Leland, uma vez que pensar a sociedade ocidental como um todo desconsidera as
particularidades de cada cultura. Porém, me afastaria da interpretação final de Porto, uma vez
que justamente por considerar o contexto histórico, não acredito ser possível converter as
experiências traumáticas de um período em algo positivo. Percebi também que recorro a outras
áreas do conhecimento nas minhas análises apenas quando o texto literário “pede”, isto é,
quando de fato uma abordagem sociológica ou filosófica, por exemplo, se mostra necessária.
Entendo que as respostas sempre estão no texto e quando nos detemos nele, conseguimos
desenvolver a habilidade de identificar o que é necessário para interpretá-lo e, no caso de
Morangos Mofados, de fato há essa abertura no texto, o que, de alguma forma, inclusive
justifica certas escolhas de Leland e Rosicley.

De todo modo, considerando os três textos críticos, acredito que a minha análise de
Morangos Mofados teria mais afinidades com a tese de Rosicley, pois ele conseguiu de forma
bem elaborada explorar dois lados importantes da obra, isto é, conseguiu percebê-la situada
num contexto mais amplo e também mais especifico, o que de fato parece ser o que melhor
caracteriza o livro. Além disso, sua interpretação do conto final, foi justamente o que eu
apreendi, no sentido de que há uma certa esperança no impulso de decidir plantar morangos,
mas não a ponto de desconsiderar os traumas sociais coletivos para traçar um novo caminho,
mas sim porque o personagem entende a necessidade de seguir em frente apesar de todo o
contexto e, enxerga nos morangos, essa abertura para um novo recomeço, carregando as feridas
do passado.

De fato, olhar para a maneira como cada um dos autores construiu seus discursos me
fez refletir sobre como eu construo o meu, pois, por exemplo, percebi que me detinha nas
escolhas de palavras dos autores, apenas quando analisava poesia, deixando, no caso da prosa,
esse aspecto especifico de lado. Sinto que a disciplina Fortunas Críticas colaborou muito ao
nos fornecer diferentes olhares sobre o texto, de modo a ampliar nossos conhecimentos acerca
das possibilidades de escolha e organização dele, para que pudéssemos, inclusive perceber onde
geralmente residem falhas e usá-las como aprendizagem para evitar contradições, paradoxos e
inconsistências quando formos publicar nossos artigos em revistas cientificas e escrever nossas
dissertações e teses, já que, como observamos em muitas aulas, alguns erros são bastante
comuns nos textos críticos.

BIBLIOGRAFIA

ABREU, Caio Fernando. Contos completos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
11

ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados de Caio Fernando
Abreu. Brasil/Brazil. nº 8, Porto Alegre, 1992. P. 53-67.

COIMBRA, Rosicley Andrade. Verbalizando morcegos estritamente pessoais e intransferíveis:


Narrativa e Experiência em Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu. Tese (Doutorado em
Letras e Linguística) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019. Disponível em:
https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10154

GUYER, Leland R. World Literature Today, Vol. 57, No. 2, Transcending Parochial
National Literatures: Portuguese Fiction (Spring, 1983), pp. 261-262. Publicado por: Board
of Regents of the University of Oklahoma. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/40137889

LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos,
identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002.

PORTO, Luana Teixeira. Fragmentos e diálogos: História e Intertextualidade no conto de


Caio Fernando Abreu. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Disponível em:
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/29436

Você também pode gostar