Coleção Primeiros Passos O Que É Arte
Coleção Primeiros Passos O Que É Arte
Coleção Primeiros Passos O Que É Arte
Jorge Coli
COLI, Jorge. O que é Arte. 15ª ed., Editora Brasiliense, São Paulo – SP, 1995
ISBN 85-11-01046-7
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ou de artistas, ficaremos certamente satisfeitos. Todos sabemos que a
Mona Lisa, que a Nona Sinfonia de Beethoven, que a Divina Comédia,
que Guernica de Picasso ou o Davi de Michelangelo são,
indiscutivelmente, obras de arte. Assim, mesmo sem possuirmos uma
definição clara e lógica do conceito, somos capazes de identificar
algumas produções da cultura em que vivemos como sendo "arte" (a
palavra cultura é empregada não no sentido de um aprimoramento
individual do espírito, mas do "conjunto complexo dos padrões de
comportamento, das crenças, instituições e outros valores espirituais e
materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade",
para darmos a palavra ao Novo Aurélio). Além disso, a nossa atitude
diante da idéia "arte" é de admiração: sabemos que Leonardo ou Dante
são gênios e, de antemão, diante deles, predispomo-nos a tirar o chapéu.
É possível dizer, então, que arte, são certas manifestações da
atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo, isto é:
nossa cultura possui uma noção que denomina solidamente algumas de
suas atividades e as privilegia. Portanto, podemos ficar tranquilos: se não
conseguimos saber o que a arte é, pelo menos sabemos quais coisas
correspondem a essa idéia e como devemos nos comportar diante delas.
Infelizmente, esta tranquilidade não dura se quisermos escapar ao
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A INSTAURAÇÃO DA ARTE E OS
MODOS DO DISCURSO
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mais bem realizada, ou mais rica, ou mais profunda que outra.
A crítica, portanto, tem o poder não só de atribuir o estatuto de arte
a um objeto, mas de o classificar numa ordem de excelências, segundo
critérios próprios. Existe mesmo uma noção em nossa cultura, que
designa a posição máxima de uma obra de arte nessa ordem: o conceito
de obra-prima.
Esta noção é antiga, e ela não possuía exatamente o sentido que
assumiu com o tempo. Os dicionários nos dirão que obra-prima é a obra
perfeita, a obra capital, a produção mais alta de um autor. Se
consideramos que Os Lusíadas são uma obra perfeita, que a Ilíada é
uma obra capital, que o Ateneu é a melhor obra de Pompéia, diremos
que nos três casos estamos diante de obras-primas da literatura. Por
razões ligeiramente diferentes: Os Lusíadas podem não ser essenciais,
por exemplo, para a cultura de um americano, na Ilíada talvez
encontremos irregularidades de construção, dizemos que O Ateneu é a
obra-prima de um autor, Pompéia; mas nos três casos estamos diante de
obras de qualidade que julgamos excepcional em relação a outras.
No passado, entretanto, a obra-prima era aquela que coroava o
aprendizado de um ofício, que testemunhava a competência de seu autor.
Não se tratava de uma realização forçosamente inovadora, original, e era
com frequência um produto utilitário, saído das mãos de um carpinteiro,
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Os caminhos do discurso
Se um carpinteiro aprecia a qualidade de um móvel, ele o faz a partir
de um saber concreto, digamos, quase indiscutível. Verificará a qualidade
da madeira empregada, a sua adequação à forma que se exige dela,
verá se os elementos que constituem os pés, os braços, o encosto
de uma cadeira foram bem talhados e ajustados. Admirará uma proeza
qualquer de feitura — por exemplo, a solidez da cadeira repousando
sobre pernas delgadas —, a fineza do entalhe e a delicadeza dos
ornamentos. No fazer que ele conhece, encontra os critérios para julgar
o fazer de outrem.
O crítico, entretanto, não tem recurso à objetividade do puro
domínio técnico. Sabemos que a pintura de Leonardo, de Watteau
ou Prud'hon são "mal feitas", que o material e as técnicas
empregadas, por desleixo ou vontade experimental, não são
adequados, que certos pigmentos não poderiam ter entrado em
contacto entre si, que a execução foi apressada e não esperou a camada
inferior secar para dispor, sobre ela, a camada seguinte, que se
abusou do betume nas sombras. E, finalmente, que o produto uma vez
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A BUSCA DO RIGOR
A ideia de estilo
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segundo e a menosprezar o primeiro. Entretanto, a visão do litoral
paulista que Calixto oferece é insubstituível; poética e serena, ela possui
uma sensibilidade própria, rica e enriquecedora. Entretanto, a afirmação
de que a Gioconda é uma obra-prima serve apenas para consagra-la, sem
que a nossa apreensão da arte – e do mundo – melhore em alguma
coisa.
A história da arte e a crítica não se contentam, porém, em
determinar, com um veredicto sem justificações, a qualidade do objeto
artístico. Elas trazem, ligados a esse julgamento, o discorrer sobre o
objeto, o suporte que leva ao julgamento. Ora, a situação de divergências
não é satisfatória para o próprio discurso. Nada mais irritante para sua
autoridade que a negação por um outro discurso. Surge então o desejo de
uma objetividade.
Os discursos sobre as artes parecem, com freqüência, ter a nostalgia
do rigor científico, a vontade de atingir uma objetividade de análise que
lhes garanta as conclusões. E na história do discurso, na história da
crítica, na história da história da arte, constantemente encontramos
esforços para atingir algumas bases sólidas sobre as quais se possa apoiar
uma construção rigorosa.
O instrumento primeiro e mais freqüente desse desejo de rigor é o
das categorias de classificações estilísticas. Se conseguirmos definir
estilos, no interior dos quais encaixarmos a totalidade da produção
artística, começamos a pisar terreno mais seguro. E a palavra sobre
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Os estilos
Falando de arte, referimo-nos a impressionismo, surrealismo,
romantismo, rococó, a um estilo cretense, helenístico ou egípcio. Na
maior parte das vezes, atribuímos a essas palavras um poder excessivo: o
de encarnarem uma espécie de essência à qual a obra se refere. De que
estilo é tal pintor? Enquanto não colamos uma etiqueta em cima, não
sossegamos: é hiper-realista, é abstracionista, é impressionista, é
surrealista. Isso nos tranquiliza, pois supomos conhecer o essencial sobre
a obra; supomos saber o que significam as classificações, e que a obra
corresponde a uma delas.
Essa atitude pode ser pacificadora, mas não é satisfatória. Pois as
obras são complexas, e é de sua natureza escapar às classificações; pois as
classificações são complexas e nunca se reduzem a uma definição formal
e lógica; pois a relação entre as obras e os conceitos classificatórios é,
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sobretudo, complexa.
Dissemos que as denominações estilísticas extravasam o domínio da
definição formal, que, inicialmente, parecia constituir seu núcleo de base.
Elas não são lógicas, são históricas, viveram no tempo e tiveram
caminhos e funções diferentes. Elas evoluíram, e não são forçosamente
as mesmas segundo as épocas que as empregam. Algumas foram criadas
por homens que se reconheciam nelas: Breton e Dali diziam-se
surrealistas, Alberti e Masaccio sabiam-se homens da Renascença,
Courbet colocou na entrada de uma das suas exposições uma tabuleta:
"Pavilhão do Realismo". Em outros casos, a atribuição de um epíteto a
um grupo de artistas é exterior a ele: os "impressionistas", os fauve, foram
assim chamados de maneira pejorativa, por jornalistas do tempo, embora
em seguida tenham assumido, por pirraça ou paixão, as denominações.
E, ainda, há conceitos inventados a posteriori para localizar, na história, tal
ou qual grupo de artistas que, evidentemente, não suspeitavam da
classificação: Bernini não sabia que era "barroco", nem Simone Martini
que era "gótico".
Ainda: a relação entre os denominadores e as obras nunca se dá da
mesma maneira. A idéia de romantismo refere-se a uma renovação das
técnicas artísticas, na medida em que compreende uma ruptura e uma
oposição com um passado "clássico", mas nos encaminha — o que é
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Fig. 1 - Michelangelo Buonarroti - A Sagrada Família (tondo Doni). Cerca de
1504/5. Galeria dos Ofícios,
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Fig. 2 - Pieter Paul Rubens - A Sagrada Família.
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Fig. 3 - Rafael Sanzio - A Escola de Atenas. 1509/10. Palácio do Vaticano,
Câmara da Assinatura, Roma.
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Fig. 4 – Pieter Paul Rubens O Rapto das Sabinas 1635 - National Gallery, Londres
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Fig.5 – Jean Louis David – As Sabinas. 1794/99. Museu do Louvre, Paris
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se encontra na National Gallery de Londres. É claro que o contraste
rnais agudo entre essas duas obras, que salta aos olhos numa evidência
gritante, é a total serenidade de um, meditativa, calma, e a frenética
violência do outro. Mas, além disso, no primeiro caso, existe uma
construção em planos sucessivos num espaço organizado geo-
metricamente, com o auxilio de um desenho rigoroso. O primeiro,
segundo e terceiro planos, claros e paralelos, são reforçados pela própria
representação do solo: no primeiríssimo plano os motivos quadrados do
piso em mármore, em seguida os degraus e enfim o plano superior.
Sobre eles, ordenadamente, dispõem-se os personagens. Como,
entretanto, distinguir planos no quadro de Rubens? Não conseguimos
mais fazer caminhar nosso olhar por etapas; ele circula sem repouso, pois
tudo está ligado, e passamos do primeiro plano ao último sem transições.
A terceira oposição, forma fechada e forma aberta, ou tectônica e
atectônica, como Wölfflin também diz, referindo-se a uma estrutura
simétrica e sólida, repousa sobre a idéia de que os quadros clássicos
possuem eixos de construção estáveis e claros, verticais e horizontais, e
que os quadros barrocos preferem o dinamismo das diagonais. Mas, além
disso, a forma fechada pressupõe uma suficiência da composição, a
aberta um extravasamento dos limites físicos da tela: isto é, num caso
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a imagem foi feita para ser vista na sua totalidade e, no outro, como um
fragmento. No tondo Doni, na Escola de Atenas, temos não somente essa
axialidade equilibrada, como também a ideia da suficiência da
representação, enquanto em Rubens prevalece a impressão de
surpreender, por um acaso maravilhoso, um fragmento do mundo
visível. Os limites físicos do quadro, sua margem, sua moldura, não
contêm mais a cena, que transborda para o exterior. Num caso, a
construção pictural é suficiente, no outro, ela pressupõe o espaço do
espectador. E, nesta categoria, Wölfflin introduz também a ideia de que
o classicismo mostra os objetos numa permanência atemporal, enquanto
o barroco procura o instante que passa.
Na quarta oposição temos multiplicidade e unidade, ou, como
propõe o autor, unidade múltipla e unidade indivisível. Num caso, cada
elemento do quadro existe por si e se articula de acordo com a
organização clara do todo: cada personagem da Escola de Atenas é tratado
individualmente dentro de subgrupos dispostos simetricamente, inscritos
num todo perfeitamente estruturado. No Rapto das Sabinas essa vida
autônoma dos elementos inexiste: "as formas, guardando sua função
diretriz, emergem de um fluxo único; para o olho, não significam nada
que possa ser considerado à parte, que possa ser destacado do resto". A
vida de cada uma das partes só existe se subordinada ao conjunto.
Finalmente, a luz absoluta e relativa opõe obras como os exemplos
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clássica. Dessa ideia de modelo-mestre, ela passa a significar equilíbrio,
rigor, tranqüilidade, racionalidade. Pouco a pouco, durante os séculos
XIX e XX, esse sentido afirma-se cada vez mais e tem repercussões
profundas.
A França, por exemplo, constrói uma imagem "clássica" de si
mesma, de seu gênio o mais legítimo, presente em todos os momentos
da história do espírito francês. Essa visão é sobretudo cimentada no
começo da Terceira República (a partir de 1870), momento em que a
ideologia do poder é leiga, positiva, clara, científica: Descartes fica sendo
então um filósofo "clássico", Le Brun, Girardon, Mansart, Racine,
artistas "clássicos". Foi preciso esperar Tapiès com seu admirável livro
Classicismo e Barroco, confirmado no recente e genial ensaio de Philippe
Beaussant intitulado Versalhes, Opera, para se descobrir que o classicismo
francês do século XVII é apenas uma manifestação local e específica de
um movimento internacional de arte e civilização que habituamo-nos a
chamar barroco . . .
Focillon e o evolucionismo
autônomo das formas
Para um espírito rigoroso, essas universalizações são insatisfatórias.
E sentindo as dificuldades das categorias, um esteta e historiador da arte
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desta etapa, o artista não tem mais o que buscar e, retomando os meios
formais já perfeitamente dominados, só pode acrescentar, complicar,
reelaborar: é o esplendor luxuriante das formas, o desequilíbrio, o
excesso. É o barroco.
Etapa primitiva, clássica, barroca: todos os períodos artísticos,
segundo Focillon, passam - pelo menos virtualmente - por elas. Assim, a
arte da Grécia arcaica até Miron representaria a elaboração primitiva,
Fídias seria a plenitude clássica; a produção do período helenístico, o
barroco. Focillon estabelece subevoluções, entroncamentos genealógicos
que tornam complexa a universalidade do processo evolutivo, mas essa
universalidade é a base essencial de seu pensamento.
Uma das características de sua concepção é que tenta instaurar uma
história das formas independente da história. Nada de sociologia, de
psicologia, de relação entre arte e história. As formas possuem suas leis
próprias de transformação no tempo, que só podem ser encontradas na
busca da própria forma. O tempo da história da arte é assim autônomo, e
possui leis específicas.
Reconhecemos aqui a marca wolffliniana: a especificidade das artes
encontra-se nas formas, são elas que permitem um sistema classificatório
estático ou evolutivo. O princípio de uma história formal das artes
marcou profundamente o século XX. De um modo ou de outro, até
muito recentemente, os historiadores da arte, mesmo espíritos notáveis
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como Pierre Francastel, que reivindicava uma sociologia das artes, lhe
foram devedores. Isso conduziu a uma desvalorização das signifi-
cações do objeto artístico, de seu aspecto semântico. Foram raros os
historiadores das artes que se preocuparam com o problema do sentido,
da significação do objeto - eles se reduzem a um grande nome (ou a dois,
para não esquecermos o trabalho, menos conhecido mas não menos
importante, de Émile Mâle): o de Panofsky, que estuda a "iconologia",
isto é, a ciência da significação das imagens. Mas Panofsky, por assim
dizer, assume a separação entre os campos formais e os signifícativos e
não se preocupa com formas ou estilos - só se interessa pelas
significações.
Simplificando — se retomarmos o exemplo do tondo Doni, a Wölfflin
e aos formalistas caberia a preocupação com linhas, cores, volumes,
composição, com o "estilo"; enquanto Panofsky e os iconologistas
tratariam do "sentido" das imagens: o murinho significando, por
exemplo, a separação entre as duas idades, a antiga e a cristã. São João
Batista servindo de intermediário na medida em que traz o meio — o
batismo — para salvar os pagãos, etc.
O rigor das categorias é forçosamente simples e simplificador. A
própria idéia de "estilo", definida como um sistema de constantes
formais, parece insuficiente para cobrir a complexidade dos objetos: o
surrealismo é mais que um estilo surrealista, a bem dizer inexistente. A
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ARTE PARA NÓS
O museu imaginário
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natureza humana.
Ora, é importante ter em mente que a ideia de arte não é própria a todas
as culturas e que a nossa possui uma maneira muito específica de
concebê-la. Quando nos referimos à arte africana, quando dizemos arte
Ekoi, Batshioko ou Wobé, remetemos a esculturas, máscaras realizadas
por tribos africanas da Nigéria, Angola ou da Costa do Marfim: isto é,
selecionamos algumas manifestações materiais dessas tribos e damos a
elas uma denominação desconhecida dos homens que as produziram.
Esses objetos, culturais não são para os Ekoi, Batshioko, Wobé, objetos
de arte. Para eles, não teria sentido conservá-los em museu, rastrear
constantes estilísticas ou compor análises formais, como nós fazemos,
porque sao instrumentos de culto, de rituais, de magia, de encantacão.
Para elas não são arte. Para nós, sim.
A noção de arte que hoje possuímos - leiga, enciclopédica - não teria
sentido para o artesão-artista que esculpia os portais românicos ou
fabricava os vitrais góticos. Nem para o escultor que realizava Apolo no
mármore ou Poseidon no bronze. Nem para o pintor que decorava as
grutas de Altamira ou Lascaux.
Desse modo, o "em si" da obra de arte, ao qual nos referimos, não é
uma imanência, é uma projeção. Somos nós que enunciamos o "em si"
da arte, aquilo que nos objetos é, para nós, arte.
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Os sucessores de Duchamp se multiplicam ainda hoje pelo mundo afora.
É o caso de um Ben, na França, que vive do papel de herdeiro de
Duchamp: sua produção — pequenos quadros negros nos quais escreve
frases do gênero: Ben é um gênio, tudo é arte, faça você mesmo, etc. —
encontra-se em museus de arte moderna e, cúmulo de contradição
irônica, esse antiartista é professor numa escola de Belas-Artes. A
negação da arte, sua irrisão, recuperadas pelas instituições competentes,
tornam-se arte.
Duchamp mostra muito bem uma das conseqüências importantes do
"para pós" em arte: originários de outras épocas e de culturas distantes,
mas agora disponíveis e ao alcance de nossa percepção, os objetos
artísticos mudaram ou modificaram seus estatutos, funções, sentidos. A
máscara africana deixou de ser, para nós, instrumento mágico, é arte; o
cartaz publicitário já não é instrumento de venda, é arte; a imagem do
santo perdeu a sua função religiosa, é arte.
Assim, se o "para nós" recupera um número sem fim de objetos,
introduz ao mesmo tempo uma distância entre nós e a obra, pois
perdemos sua destinação primeira, seu papel de origem. Mas podemos ir
ainda mais longe, pois verificamos perturbações semelhantes mesmo em
obras que sempre existiram como arte e cuja razão de ser foi sempre
determinada pelo estatuto "artístico".
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A dança é ainda mais frágil. As indicações do coreógrafo só servem
para ele mesmo e seus próximos; são sumárias, e sua releitura é sempre
de exatidão duvidosa. No caso do ballet tradicional a tarefa é um pouco
mais simples, pois há um repertório convencional de passos. Mas nas
formas mais livres da dança, os movimentos do corpo, variados e
inesperados, dificultam a reconstituição. No entanto, apesar desses
problemas de conservação, conhecemos coreografias que se mantêm no
repertório há mais de um século. É claro que elas não são hoje idênticas
ao que foram no momento da criação, mas guardam o núcleo central
concebido pelo coreógrafo.
Não nos enganemos. As artes não são imutáveis. Lembremo-nos
antes que elas se modificam incessantemente: é o preço que pagamos por
esse “para nós”, que as dispõe sempre ao nosso alcance. Contudo, elas se
vingam. O quadro, o concerto, o filme nos pregam peças, através de
metamorfoses lentas, mas insidiosas e seguras. E não é tudo. Elas vão
mais longe, e nos provocam, nos desafiam, nos iludem.
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O falso
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falsário. Mas eles são relativamente raros. O que não impede que
inúmeros quadros "falsos" continuem enriquecendo as melhores
coleções de museus.
Bernard Berenson, um dos mais célebres peritos do século, dizia
ironicamente que noventa por cento das obras que se encontram em
museus são falsas. Frase de efeito, exagerada, mas que traduz um fundo
de verdade. Não só porque restaurações duvidosas muitas vezes
"falsificaram" os quadros. E nem falemos nas mistificações de pequeno
porte, miseráveis, que ocupam e fazem viver antiquários inescrupulosos
no mundo inteiro. Estas não vão para os museus.
Mas, quando dispomos os objetos artísticos "para nós", entra uma
ordem hierárquica. Os quadros de Leonardo ou Rembrandt fazem deles,
gênios. Conseqüentemente, um quadro, qualquer quadro, de Leonardo
ou Rembrandt, é tomado como um quadro genial. Uma coleção que
possua um Rembrandt tem prestígio — mais do que se possuísse apenas
um "anônimo holandês do século XVIII", ou um "discípulo de Rem-
brandt". Se a obra não é assinada, se não há documentos de época que
confirmem a autoria do pintor, ela precisa da confirmação de
especialistas que certifiquem sua autenticidade. Como se pode imaginar,
esses especialistas raramente estão de acordo. Mas, obtendo-se o
assentimento de uma autoridade de peso ou a concordância de uma
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especialistas. Mas é preciso não esquecer que o princípio mesmo da
atribuição repousa sobre a incerteza, e que a decisão definitiva depende,
em última análise, de um ato de autoridade: confiamos no especialista. E
a importância assumida pela autoria às vezes turva as águas e, se não nos
faz, a todo instante, engolir gato por lebre, muitas vezes nos serve
coelhos.
Queremos obras de todas as culturas e de todas as épocas, queremos
obras ordenadas em museus, bibliotecas, catálogos, estudos, queremos
obras dispostas em sua hierarquia de valores. Ali, para nós, ao nosso
alcance. E obtemos esse corpus organizado. Mas nele as obras perdem
alguma coisa de si mesmas, e ele não é nem puro, nem imóvel, nem
anti-séptico. Ao contrário, abandonando o "em si", a extratemporalidade
incólume da arte transcendente, introduzimos os vícios próprios do
"para nós", concreto. O conjunto das obras faz pensar numa grande
geleira: aparentemente imutável, ela se desloca, no entanto, e possui
contínuos movimentos interiores. E impossível domesticar a geleira.
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NÓS E A ARTE
O supérfluo
Mário de Andrade disse uma vez que a arte não é um elemento vital,
mas um elemento da vida. Não nos é imediatamente necessária como a
comida, as roupas, o transporte e descobrimos nela a constante do
supérfluo, do inútil. Uma lâmina num cabo é uma faca, mas é preciso
que o cabo seja esculpido, que a lâmina seja gravada, para que a faca,
objeto de um trabalho supérfluo, exprima o amor e a atenção que o
homem consagrou a ela. Se a arte é associada a um objeto útil, ela é, nele,
o supérfluo.
Benvenuto Cellini, em 1540, realiza, para o rei Francisco I da França,
um saleiro. Mas "um saleiro que em nada se assemelha aos saleiros
comuns", como diz o próprio artista em suas memórias, pois se
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trata de uma extraordinária escultura dos deuses do mar e da terra,
Netuno e Ops, sobre um pedestal ricamente ornado (figura 6). Os
recipientes do sal e da pimenta têm a forma de uma barca e de um arco
de triunfo. A desproporçao entre a função banal e o trabalho artístico é
evidente e assinala fortemente o quanto a arte significa supérfluo.
Não se trata apenas de embelezamento, de ornamento. Trata-se de
algo próprio à ideia que possuímos da arte. Em nossa cultura, ela se
encontra no domínio da pura gratuidade. Há algum tempo, houve uma
corrente de gosto que buscava nas formas exigidas pelas funções dos
objetos a manifestação da arte: ela foi chamada, por vezes imprópria ou
obscuramente, de funcionalismo. Este, embora se quisesse
fundamentado numa reflexão racional sobre as funções, era, em verdade,
uma poética do funcional. Não somente as funções manifestavam-se
além delas mesmas (o aerodinâmico desenho das carrocerias de
automóveis era mais uma imagem dessa função que uma verdadeira
exigência), como se buscava, nas marcas das funções, a arte. E as marcas
geradas pela função, mas independentes dela no interesse artístico que
provocavam, iam assim investidas pela gratuidade.
Já vimos como a instalação de um objeto em museus transforma-o
em arte. A colher de pau de minha avó, o porta-garrafas, a roda de
bicicleta, o mictório de Duchamp, colocados em pedestal ou vitrina,
permitem a eclosão de sentimentos, de intuições evocadoras.
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Fig.6 – Benvenuto Cellini – Saleiro de Francisco I. 1543. Kunsthistorisches
Museum, Viena.
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A forma da colher, os traços que o tempo nela deixou, o eriçamento do
porta-garrafas, a beleza abstrata da roda de bicicleta, a estranheza do
mictório, surgem como por encanto. Mas, ao mesmo tempo, note-se que
esses objetos perderam sua função utilitária: "artística", a colher de pau
deixou de fazer sabão. Sua transformação em arte acarretou o gratuito:
ela não faz mais parte de um sistema racional de utilidade. E, livre, o
supérfluo emerge como essencial.
Mas, fruto do gesto gratuito, a arte possui uma existência frágil, pois
não é necessária. Podemos constatar em nossa cultura dois registros
diferentes que a alimentam. Num deles, o objeto artístico encontra-se
instalado no interior de funções econômicas ou sociais: embora
enquanto arte o objeto continue sendo não utilitário, enquanto elemento
de um vasto mecanismo é empregado para outros fins. Esse emprego
garante-lhe a sobrevivência. No outro registro, o objeto artístico reduz-se
à gratuidade; esvaziado de toda função, ele depende de uma assistência
ao mesmo tempo intencional e artificial, provocada unicamente pelo seu
prestígio de ser arte.
Tentemos explicitar melhor. No passado, e ainda hoje, os objetos
artísticos possuíram funções sociais e econômicas que permitiram sua
constituição e seu desenvolvimento: antes de ser arte, o crucifixo foi
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Fig. 7 – Garcia Redondo – Teatro João Caetano, inaugurado em 1890, com a
ópera La Traviata de Verdi, em Amparo (SP). Gravura de época de V.Steigel.
Museu Histórico (...)
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O duplo registro e o mercado da pintura
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oficialíssimo Centro das Artes Georges Pompidou (Beaubourg) em Paris
abriga todas as novas formas de experimentação em arte: é a consagração
solene das vanguardas. A primeira das grandes exposições do Centro foi
em homenagem ao terrível Marcel Duchamp: meio século depois de seus
escândalos, o antiartista, antimuseu, anticultura Duchamp é reconhecido
como patrono das revoltas e vanguardas, e celebrado como emérito valor
cultural.
Que tem tudo isso a ver com o mercado das artes? Muita coisa. A
institucionalização das vanguardas não pode ser vista apenas como um
processo assumido de renovação cultural. Pois, se não existirem pintores
"malditos", movimentos "marginais" que mais tarde serão consagrados,
como investir na obra de arte visando futuros lucros fabulosos? Queiram
ou não, as vanguardas são cúmplices dos marchands.
Do mesmo modo, os pintores mudam de "fases". Nunca, na história
da arte, houve tão grande número de artistas que modificassem,
sucessivamente, seus modos de pintar, seus estilos. Isso também é
compreensível: o colecionador tem que ser estimulado para novas
compras — as fases, os movimentos novos existem para atraí-lo. Do
mesmo modo que os modelos incessantemente renovados de
automóveis, como bem lembra Otto Maria Carpeaux num artigo sobre
Utrillo.
Tudo isso é bem triste. Mas não se pode esquecer que esse sistema,
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A razão
“Diferentemente do filósofo,
o artista não nos dá suas razões:
ele se contenta em admirar e revelar."
(Émile Male)
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em nossa cultura um espaço único onde as emoções e intuições do
homem contemporâneo podem desenvolver-se de modo privilegiado e
específico. Isso não significa que, em nossa relação com a arte, a razão
deixe de intervir. Está presente na fabricação do objeto artístico, pois
para tanto precisamos de uma organização material e de um aprendizado
técnico impossível sem ela. Dependemos também de um encadeamento
lógico para ordenarmos nossas idéias quando queremos exprimir o
resultado do nosso contacto com a obra de arte.
A razão está assim intrinsecamente presente no objeto artístico, mas
a obra enfeixa elementos que escapam ao domínio do racional e sua
comunicação conosco se faz por outros canais: da emoção, do espanto,
da intuição, das associações, das evocações, das seduções. Posso
descrever uma obra, desenvolver uma análise, assinalar este ou aquele
problema, propor relações e comparações. Entretanto, tudo isso significa
apenas indicar alguns modos de aproximação do objeto artístico, nunca
esgotá-lo. O artista nos dá a perceber sua obra por modos que posso
talvez nomear, mas que escapam ao discurso, pois jamais deixarão de
pertencer ao campo do não racional.
Há exemplos de artistas que se apoiam na ciência para a realização de
seus projetos. Seurat, no fim do século passado, concebe seu método
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A não-razão
"Já me aconteceu, tentando ler numa língua que eu não conhecia
muito bem, não captar o sentido de uma passagem em prosa, até que
procurei compreende-la segundo as regras ensinadas na escola: isto é, foi
preciso que eu me assegurasse
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A FREQÜENTAÇÃO
A "sensibilidade inata"
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estaremos insistindo bastante sobre esse ponto – é mutável e complexo,
ambíguo e polissêmico. Com a arte não se pode aprender "regras" de
apreciação. E a percepção artística não se dá espontaneamente.
Com frequência, a complexidade do objeto artístico faz com que ele
não seja imediatamente acessível. É claro que nos poderão objetar:
"todos" gostam de Renoir ou de Van Gogh; "todos" são sensíveis a
Chopin. Na realidade, a sedução "imediata", a adesão espontânea que
Renoir ou Chopin provocam, já foi mediatizada por um gosto geral que,
num dado momento, nossa cultura engendrou. Não será necessário
tornar a discutir a variação dessas preferências no tempo. Lembremos
apenas que elas também podem variar segundo o meio sócio-cultural:
Renoir é hoje preferido por um grande número de pessoas, Chopin
também, mas uma elite mais sofisticada poderá, justamente em reação a
essa popularidade, desprezá-los, numa atitude de pedantismo.
O fato de uma grande obra ter sido consumida por um largo
público significa apenas que ela possuía elementos capazes de seduzir
um grande número de pessoas num momento determinado. O Falcão
Maltês, de John Huston, é um filme notável na história do cinema
e bateu recordes de bilheteria. Quarenta anos depois de seu lançamento
transformou-se em peça de museu, programa de cine-clubes e de
cinemas de arte: as convenções que atraíram multidões em 1941, hoje
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O discurso e a freqüentação
Nessa relação intervém o discurso "autorizado". Já vimos suas
misérias, contradições, e seria possível insistir ainda sobre suas
pretensões freqüentes a uma "objetividade" interpretativa, a uma "ver-
dade". Mas, múltiplo em seus sentidos, o objeto artístico mantém uma
relação tão complexa com a cultura que se mostra inesgotável e
inapreensível. Quer queiram, quer não, os textos são sempre
"incidentais": iluminam certos aspectos, chamam atenção para outros,
constroem relações ligando as obras entre si, ou à história, à sociologia, à
psicologia, à filosofia; mas tais análises são sempre parciais, porque a
obra acaba sempre escapando ao desvendamento total. Os textos nunca
são transparências através das quais pode-se "ver" melhor a obra, cuja
riqueza zomba dos cientificismos: qualquer método de análise pode ser
eficiente, trazer informações úteis, mas não esgota, nem traduz a
"verdade" da obra. O discurso sobre a arte exprime unicamente a relação
da cultura do autor com o objeto cultural que é a obra de arte. Não
esgota o objeto artístico - pode eventualmente enriquecê-lo.
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O texto só adquire sua verdadeira dimensão se o colocamos no
interior de um movimento em que a abordagem da obra repousa sobre a
idéia de freqüentação.
O contacto freqüente com a obra, a proximidade do objeto artístico,
essa "predisposição amorosa" de que fala Platão referindo-se ao conheci-
mento - mas que poderíamos aqui transferir para a arte - são os únicos
meios de que dispomos para transitar pelos caminhos de não-razão,
evocados no capítulo precedente. Os diferentes modos "autorizados" do
discurso sobre a arte são, nesse sentido, utilíssimos, à condição de nos
lembrarmos sempre de que representam apenas um dos meios possíveis
dessa freqüentação. É importante não confiar nos textos como
desvendadores ou chaves do objeto artístico. Eles são instrumentos
complementares, auxiliares da freqüentação, mas não são "tradutores" ou
explicadores absolutos da obra - mesmo quando, autoritariamente,
pretendem sê-lo. É importante saber servir-se dos textos com cautela.
Freqüentar uma obra é, antes de tudo, um ato de interesse. Ouvir
uma sinfonia é escutá-la e reescutá-la; olhar um quadro é examiná-lo,
observá-lo, detalhá-lo. Conheço poucos exercícios tão fecundos quanto
descrever simplesmente uma pintura - mais ou menos como os de minha
geração faziam na escola primária, no que então se designava por
"descrição à vista de uma gravura".
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Fig. 9 – Pedro Américo – Tiradentes. 1893.
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora (MG)
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Tudo isso implica numa operação delicada que exige esforço e
humildade: é como se estivéssemos diante de um enigma a ser decifrado.
O que não quer dizer que todas as obras apresentadas pelo discurso
autorizado sejam admiráveis e profundas. Muitas vezes, o enigma
revela-se pobre, indigente, sem interesse. Mas para que a nossa crítica
não corra o mesmo risco — isto é, não seja pobre, sumária ou exterior -
é fundamental o exame, a reflexão, os argumentos, enfim, o nosso
discorrer sobre a obra. Se não "gostamos" de um objeto artístico
qualquer, se ele nos parece uma impostura, nossas justificações e
argumentos impõem-se. E se a escolha “espontânea” é pouco fecunda e
os critérios a priori que aplica-os, estéreis e esquematizados, o discurso
alheio, "autorizado", também pode nos colocar em trilhos errados.
Esta atitude "empírica" diante do objeto artístico permite, aliás, um
controle dos textos – ela nos fornece os fundamentos de uma discussão
sobre eles, de seu questionamento. E, fornecendo-nos o fundamento da
desconfiança do discurso, tende a lhes neutralizar a autoridade,
incitando-nos a não aceitá-los como veículo da palavra "competente".
Em suma, pela freqüentação evitamos delegar a outrem a nossa relação
com a obra.
Dissemos no início que a arte escapa às definições. Seu domínio,
movente e fugidio, estende-se além da razão, além das determinações
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O acesso à arte
Falar é fácil. A freqüentação da arte depende, no entanto, de
circunstâncias materiais, de meios concretos: ela não é dada a todos.
Você que me lê não é, certamente, operário nem lavrador, e prova-
velmente vive na proximidade de um grande centro. Aliás, o dado
elementar de que você é alfabetizado já o coloca numa situação
privilegiada. Basta isso para assinalar as dificuldades do acesso à cultura
num país subdesenvolvido como o nosso.
Mais ainda: o fato de ter adquirido este livrinho O que é arte, faz de
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você um caso especial. Seu interesse pela arte é ao mesmo tempo algo
raro e casual: ele não veio certamente da escola (a menos que você tenha
tido um professor excepcional); não foi estimulado por nenhuma política
cultural efetiva, coerente, ou pelos meios audiovisuais. Num sistema de
ensino voltado para a formação a mais pragmática e tecnológica, sob o
desinteresse e a incompetência dos "responsáveis", e bombardeado por
emissoras de rádio e tv regidas pelo princípio absoluto do lucro, você se
encontra numa situação de grande miséria cultural.
As parcas manifestações artísticas de algum interesse neste país são
pouco freqüentes, em geral muito caras e sempre se localizam nas
grandes capitais. Quantos podemos ir ao teatro, à ópera, ao concerto,
mesmo ao cinema? As aparições dos Baryshnikovs, dos Béjarts, as
representações suntuosas de óperas do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, os pingados espetáculos de prestígio a preços astronômicos não
são certamente capazes de preencher as enormes lacunas culturais que
vivemos. E como, evidentemente, a solução não está nas lamentáveis
operações demagógicas que aparecem de quando em quando, quem se
interessa pelas artes no Brasil continua sendo um fruto bizarro e
teimoso.
Assim, somos obrigados a um grande esforço, mergulhados que
estamos num meio indiferente, ou mesmo hostil. Apesar da ínfima parte
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CONCLUSÃO
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