Safranski, R. A - Morte - de - Socrates

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Rüdiger Safranski

A MORTE DE SÓCRATES
DER TOD DES SOKRATES

Do livro:
Wieviel Wahrheit braucht der Mensch?
Über das Denkbare und das Lebbare

Tradução de Moritz Todeschinni


A MORTE DE SÓCRATES

Somos seres que não somente morrem como todos os outros seres vivos, mas
que, além disso, sabem que vão morrer. À nossa vida não somente um limite é
imposto; além disso, conhecemos este limite.
Somente posso reconhecer o limite de minha vida se de algum modo me ponho
para além do que me limita. Tenho assim sempre que transcender meu fim para
poder contemplar meu fim. Posso fazer uma idéia de meu corpo – como cadáver.
Posso fazer uma idéia de meu enterro, da tristeza dos familiares que sobreviverão
a mim. Sobretudo dos sobreviventes. Tudo continuará depois de minha morte, do
mesmo modo que tudo já havia começado antes de meu nascimento.
Do mesmo modo que posso fazer uma idéia de um conjunto de homens entre os
quais eu mesmo não me encontro, posso fazer uma idéia de uma vida que continua
sem que eu dela tome parte.
Posso conceber um mundo sem minha presença.
Posso fazer abstração de mim mesmo.
Posso realmente?
No momento em que concebo tudo isso – minha morte, meu cadáver, meu
enterro, meus familiares, um mundo sem mim – subsiste, porém, um ineludível
vestígio do eu que pensa e abstrai. Eu abstraio a mim mesmo. Eu tenho que
permanecer para que possa fazer abstração de mim mesmo.
Freud certa vez exprimiu isso da seguinte maneira: “A própria morte é na
verdade inimaginável, e todas as vezes que empreendemos a tentativa de imaginá-
la, podemos observar que no fundo permanecemos como seus espectadores”. Daí
extraiu a tese segundo a qual “no inconsciente cada um de nós está convencido de
sua imortalidade”.
Mas por que somos obrigados a recorrer ao “inconsciente” se é um fato da
consciência o fato de que um eu pensante deve subsistir sempre que procuramos
fazer abstração de nós mesmos? Que se tente então uma vez sequer pensar a
ausência da consciência. A consciência tem que estar presente sempre que se tenta
pensar sua ausência. Pois não existe pensamento algum sem consciência.
Naturalmente, a consciência cessa, por exemplo, a cada noite quando
adormecemos. Mas sua extinção não é para mim consciente. Quando me proponho
vivenciar de modo consciente o adormecer, não consigo adormecer, e quando
consigo enfim adormecer, não o vivencio. Somente quando não me proponho

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presenciar meu próprio adormecer é que sou agraciado com os favores do sono. O
sono chega quando o “eu penso” se vai. Posso “fazer uma idéia” de meu sono, mas
então não durmo. Posso fazer dele uma idéia por duas razões: em primeiro lugar,
porque já contemplei outros adormecidos e, em segundo lugar, porque já sobrevivi
a meu próprio sono, visto que despertei de novo. Posso fazer uma idéia de minha
morte. Em primeiro lugar, porque já contemplei outros mortos; e, em segundo
lugar... Existe este segundo lugar? Existe a experiência de ter sobrevivido à minha
morte, de ter “despertado” de novo?
Naturalmente, não.
Mas existe algo diferente. Existe aquele fato extraordinário de nossa consciência
que acabamos de indicar: que ela não permite fazer abstração de si mesma, que
posso muito bem pensar meu fim, mas que este eu pensante de meu fim precisa
sempre subsistir para poder pensar esse fim.
Com essas reflexões atingimos o âmago da antiga metafísica.
A idéia da imortalidade não se deve a nenhuma especulação supra-terrena ou
transcendente, mas sim a uma íntima familiaridade com os extraordinários
paradoxos de nosso espírito. A forma como Sócrates se prepara para a morte e
como finalmente morre compõe, na exposição platônica do Fédon, a cena
primordial dessa antiga metafísica, a qual, muito tempo antes do nascimento de
Cristo, proclamara de modo triunfal: “morte, onde está teu aguilhão?” Nossa vida
corporal encontra-se destinada à morte e por isso a teme. O pensamento,
consubstanciado agora como espírito, ousa desafiar a morte. Uma vida destinada à
morte seria capaz de, graças tão somente à potência de seu espírito, viver seu fim
com dignidade? Seria ela capaz de, por obra e graça do espírito, não somente
acolher a morte sem angústia, mas mesmo ansiar por ela? Para tanto, porém, esse
espírito precisaria se encontrar “vivo” de uma forma inteiramente diferente.
A história da morte de Sócrates é também um experimento de ordenamento
mental: o pensamento é submetido à provação de transformar a vida de modo que
ela se torne capaz de morrer sem angústia e até mesmo de modo triunfante. Bem
entendido: morrer não pelo prazer da aniquilação, mas pela certeza de um ser
ainda mais vivo, que é mais forte que a morte e que a suplanta.
A antiga metafísica assevera a existência de um espírito que encontro em mim,
mas que me suporta como pode me suportar algo que eu mesmo não preparei
como base de apoio. A antiga metafísica assevera um espírito para o qual vale: não
fui eu que o concebi, mas sim o contrário, foi ele que me concebeu. Eu penso
porque fui pensado. Em meu pensamento, participo de uma potência que me
faculta pensar. E ela me possibilita encarar a vida – apesar da morte –
serenamente, sem revolta.
Sócrates foi condenado a beber o cálice de cicuta. No dia de sua morte, seus
discípulos reúnem-se uma vez mais a seu redor. A esposa e a criança, ele as
despacha: filosofando ele quer despender inclusive suas últimas horas. O
carcereiro adverte: falar em demasia aquece o corpo e isso retarda o efeito do
veneno, de modo que, tendo que beber mais do veneno, ele talvez aumente seu

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sofrimento. Sócrates faz ouvidos moucos para a admoestação: nada deve dissuadi-
lo de filosofar no último momento. Para um filósofo que não se encontra presente,
ele propõe erguer um brinde. Euenos, assim se chama este homem, deveria parar
de lamentar sua sorte e, mostrando-se inteligente, acompanhá-lo na morte. Os
discípulos ficam chocados. Que uma disposição filosófica possa auxiliar a morrer
de modo confiante, disso estão eles convencidos; mas Sócrates radicaliza sua
posição: “Aqueles que se ocupam com a filosofia da maneira correta deveriam
ansiar, sem ostentação, a nada senão morrer e estar morto”. Na hipótese de assim
não se portar ao filosofar, o filósofo tornar-se-ia pouco convincente, pois na hora
de sua morte, no momento, pois, de maior seriedade, ele se mostraria fraco e
angustiado, queixoso da vida, ao invés de demonstrar um ânimo sereno e até
mesmo alegre. Sócrates argumenta com o ethos da filosofia: praticada
corretamente, ela não apenas prepararia para o morrer, mas seria já um ato de
morrer em vida.
Nietzsche pretendeu descobrir nessa figura de argumentação toda a debilidade,
todo o cansaço vital do espírito defensivo da antiga metafísica. Esta metafísica
recomenda, segundo Nietzsche, contra o morrer ao final de nosso prazo de vida,
morrer antes do prazo. Para que a menor quantia possível de vida seja afetada ao
final com a morte, seria melhor, desde já, começar a desvanecer e a se extinguir:
quando a morte enfim chegar de fato, restará a ela bem pouco a fazer.
Contra a morte, apenas a morte pode nos valer – é esta, realmente, a
recomendação dos metafísicos?
Não é apenas para nosso pensamento anti-metafísico atual que tal
recomendação parece masoquista. Também os discípulos de Sócrates protestam.
Por isso, Sócrates procura fazê-los compreender que o “morrer” filosófico não
significa uma diminuição, mas sim uma intensificação do vital. Ele só é capaz disso
porquanto pode recorrer à concepção religiosa convencional vigente à época,
segundo a qual a morte não significa um fim absoluto da vida individual, mas pura
e simplesmente uma separação de duas substâncias: a do corpo e a da alma. O
corpo é o que morre. Ele é passível da cambiante alternância entre saúde e doença.
Ele nos envolve nas paixões destrutivas: “Pois mesmo guerras, desordens e
matanças, não é senão o corpo que as suscita em nós”. Antes de tudo, porém, os
sentidos do corpo nos mantêm atrelados a um mundo aparente. Estamos
condenados ao engano e à ilusão e, como seres corporais, não seremos jamais
capazes de reconhecer devidamente o que o ser é na verdade. Nosso ser corpóreo
nos separa do verdadeiro ser. Não apenas somos abatidos com nosso corpo, mas
dançamos ao ritmo do seu batimento1. “Porque todo prazer e desprazer têm,
ambos, um aguilhão e estão entranhados no corpo de tal forma que acreditamos
ser verdadeiro o que o corpo assim proclama ser”.
A felicidade do conhecimento como triunfo sobre o corpo significa, para o
Sócrates platônico, não só a satisfação de uma curiosidade teórica ou a aquisição

1 „Wir sind nicht nur mit unserem Leib geschlagen, wir sind auch an ihn geschlagen”.

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de um saber instrumental dominador da natureza e útil a fins pragmáticos. A
“verdade” não é uma relação de conhecimento no sentido atual da expressão: ela
não é apenas um correto juízo predicativo sobre um “objeto”. O “verdadeiro”
conhecimento é, antes, uma passagem: de um ser mais pobre e espectral para um
ser mais pleno e real. Por meio da “verdade” não é somente a “realidade” que é
reconhecida; mais ainda, conhecer significa tornar-se mais real e verdadeiro.
Para Sócrates, o órgão de tal conhecer é a alma. Se nos apropriamos de nossa
alma, participamos desse ser mais verdadeiro. Filosofar seria, afirma Sócrates, um
retirar-se da alma da “comunhão com o corpo”; seria a tentativa de, ainda no
estado de fusão da alma com o corpo, “possuir a alma só para si”.
Mas o que se “possui”, exatamente, quando se possui assim a “alma” só para si?
A “alma” não é, para Sócrates, aquilo que hoje entendemos por alma: os
sentimentos, as sensações, as impressões psíquicas. Não é a “psyqué” que é assim
designada, mas sim a vida do espírito. Na realidade corporal, ocorre um vir-a-ser e
um perecer constantes, uma incessante mudança. Nada permanece idêntico. O
contrário ocorre na realidade do espírito: ele se furta à mudança. Um pensamento
permanece idêntico a si mesmo, ele não se transforma e só pode ser afetado por
outro pensamento a ele associado. Eu concebo um pensamento em determinado
momento e em determinado lugar, é certo, mas o próprio pensamento não se
vincula a nenhum lugar e a nenhum momento. Um pensamento nutre-se de
impressões sensoriais, é certo, mas ele possui a forte tendência de dissociar-se
delas. Ele é dotado de uma dinâmica independente da sensibilidade. Ele é capaz de,
retroagindo, voltar-se sobre a sensibilidade como “senhor”. Mas o mais decisivo é:
o pensamento, embora ele suspenda a atividade corrente da vida e não se ponha a
seu serviço de forma imediata, se encontra acompanhado por uma notável
impressão vital. Xenofonte conta como Sócrates certa vez, em pleno campo de
treinamento militar para o qual fora convocado, permaneceu vinte e quatro horas
seguidas sem se mover, numa mesma posição, profundamente absorto em
pensamentos, como costumamos dizer. Segundo Xenofonte, ele tinha o costume de,
“voltando seu espírito para si mesmo”, interromper o contato com os outros e,
onde quer que estivesse, tornar-se “surdo perante as demandas mais insistentes”.
Essa vida do espírito é experimentada de forma extraordinariamente “real”, e é,
contudo, invisível, porquanto incorpórea. E porque é incorpórea, é independente
dos limites do corporal. Os corpos delimitam-se uns dos outros, o espírito não se
deixa delimitar. Ele é receptivo, o que significa: ele apreende o que se encontra fora
dele. Ele é reflexivo, sendo capaz de relacionar-se consigo mesmo. Ele não conhece
nenhuma irreversibilidade, podendo se dirigir para frente e para trás no tempo.
Ele possui espontaneidade, sendo não só capaz de continuar a operar como antes,
mas principiar algo novo.
Em suma, tudo isso significa: o espírito está sempre para além daquilo que “se
dá” na dimensão do mundo corporal. Este estar para além é experimentado mais
claramente na meditação sobre a morte e sobre o não-ser. Trata-se daquela
notável peculiaridade de nossa consciência mencionada há pouco, segundo a qual é

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pura e simplesmente impossível pensar no próprio não-ser, no não-ser da própria
consciência e, portanto, na própria morte.
Para o Sócrates platônico e para todos os seguidores da grande tradição
metafísica ocidental, a certeza e a evidência mais decisivas a respeito da
imoralidade da alma residem nesta própria experiência do espírito. A certeza se
baseia antes na própria experiência do pensamento [Denken], e não nos
pensamentos que se podem particularmente “conceber” [ausdenken] para
demonstrar a imortalidade da alma. O Sócrates platônico concebe, é verdade,
alguns pensamentos: ele fornece quatro “provas” da imortalidade da alma (depois
de sua separação do corpo), mas ele é modesto o bastante para lhes conceder uma
mera “plausibilidade”. Fiquemos, portanto, com isto: a certeza primordial reside no
próprio ato do pensamento, e não nas provas particulares concebidas pelo
pensamento.
Aquilo que o Sócrates platônico concebeu em particular foi reformulado,
modificado e contestado pela metafísica dos séculos subseqüentes. Mas já os
discípulos de Sócrates manifestaram suas dúvidas neste último diálogo antes da
morte.
A primeira “prova” resulta de um curto-circuito do lógico com o ontológico. No
domínio do lógico vale: os opostos condicionam-se reciprocamente. Ao “bem”
contraponho seu contrário, o “mal”; ao “belo”, o “feio”; ao “correto”, o “incorreto”, e
assim por diante. À “vida” contraponho igualmente a “morte”. E então sucede a
passagem do lógico para o ontológico, pois Sócrates prossegue: assim sendo, não
apenas o vivo transita para a morte, mas também o contrário, o morto torna-se
vivo novamente. Por conseguinte – e assim se conclui a “prova” –, posso esperar
que minha passagem para ser morto seja acompanhada de uma passagem para ser
vivo de novo.
A segunda “prova” recorre, na sua argumentação, à menina-dos-olhos da teoria
do conhecimento platônica: a doutrina da reminiscência. Cada conhecimento é um
reconhecimento de algo já conhecido. Existe uma provisão de “entes conhecidos”
que não adquirimos por conta própria, e com o qual viemos ao mundo: idéias
inatas. O Sócrates platônico conclui: minha alma, portanto, é mais antiga que sua
atual união com meu corpo. Por isso, posso supor que ela continuará a existir
depois da separação de meu corpo e que mesmo busque, então, a união com outro
corpo.
A terceira “prova” apóia-se na classificação dos seres entre visíveis e invisíveis.
Vir-a-ser e perecer, união e partição é algo que ocorre apenas entre seres visíveis.
Como a alma, no entanto, pertence aos seres invisíveis, ela permanece incólume ao
vir-a-ser e ao perecer, à concepção e à destruição.
A quarta “prova” elabora sua argumentação por meio da essência. A “essência”
própria da alma seria dar vida ao corpo. A vida é atributo essencial da alma.
Portanto, a alma não poderia acolher em si a essência oposta, isto é, a morte.
O simples fato de que várias “provas” sejam aventadas é sinal de que cada uma
delas individualmente não se afigura confiável. No Fédon, elas são comparadas a

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um “bote salva-vidas” com o qual se procura “não soçobrar em meio à vida”. Fiável
e segura é, como afirmamos, a própria experiência do espírito. Essa experiência diz
respeito à potência do espírito, a despeito da certeza que a contagia resultante das
provas particulares fornecidas pelo pensamento.
Esta própria experiência do espírito – Sócrates a designa como um “possuir a
alma só para si” – seria profundamente mal-entendida se a interpretássemos com
nossos conceitos atuais de interioridade e exterioridade. É verdade que Sócrates
fala em “separar o quanto for possível a alma do corpo, deixá-la habitualmente à
parte do corpo e tomá-la só para si”. Mas isto não configura nenhuma interioridade
privada em que a alma habita. O individual reside antes no corpo: ele nos separa
uns dos outros e também nos une uns com os outros. Quando nos voltamos para a
alma, porém, entramos em contato com um ser universal do qual o corpo nos
separa, e nos separa porquanto, singular e isolado, é um ser inferior.
Expresso com nossos conceitos atuais: a alma representa o “objetivo” e, por isso
mesmo, o substancial e propriamente universal. O corpo e nossa sensibilidade são
o meramente “subjetivo”, efêmero. O corpo é inessencial e, por isso mesmo,
também não universal. Quando, portanto, nos recolhemos em nossa alma não
ficamos, por assim dizer, fora do mundo, mas justamente o contrário: é apenas
então que realmente ocorre nosso vir ao mundo, é apenas então que ocorre nosso
vir ao mundo real.
A exposição platônica da morte de Sócrates pretende demonstrar o seguinte:
não é verdade que cada um de nós morre solitária e individualmente. A morte não
é o momento da mais extrema solidão. Sob três aspectos o Sócrates moribundo não
se encontra sozinho.
Primeiro aspecto. Pela própria experiência do pensamento, ele se assegura de
um ser que o sustém e do qual ele participa mesmo para além da morte individual.
Este ser perene e indefectível, Sócrates, o filósofo da praça do mercado e da
conversação pública, é capaz de representá-lo apenas mediante uma versão
espiritualizada do mercado ateniense e da vida pública. Como gostaria de
continuar a questionar os homens, assim ele se pinta para seus ouvintes: “Saibam
que eu espero apenas me tornar um homem honrado”.
Segundo aspecto. Embora Sócrates se atenha à sua razão individual, ele não
abandona o vínculo com a comunidade religiosa. A comunidade religiosa funda-se
por meio de um mito. Quando nos servimos principalmente de nossa razão,
podemos ainda “ousar” acreditar nos mitos. Sócrates designa a crença nos mitos –
sobretudo, para ele, o mito da transmigração das almas – como sendo uma “bela
ousadia”; sobre “mitos assim” devemos como que confabular. Entre a própria
experiência do pensamento – a razão, portanto – e o mito não existe nenhuma
contradição fundamental. A razão o conduziu ao pensamento da imortalidade e o
mito o confirma. Trata-se de uma confirmação por meio do espírito coletivo.
Terceiro aspecto. Sócrates despende suas últimas horas dialogando com amigos
e discípulos.

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Num sentido extremamente concreto, Sócrates não morre solitariamente. Até o
último instante, ele compartilha com os outros o mundo comum. Não há nenhuma
recaída na ausência de mundo, nenhuma caverna da interioridade. Até mesmo na
última hora, o filosofar de Sócrates continua sendo uma atividade pública. Seu
pensamento nasceu neste meio público. Mesmo os pensamentos dos moribundos
são mais que pensamentos “íntimos”. Mantido pela comunidade, Sócrates assume,
como que em dívida de gratidão, responsabilidade perante a comunidade – e isto
até mesmo no último momento.
Bem pode ser – assim fala Sócrates ao fim do diálogo – que seus pensamentos
sobre a imortalidade da alma sejam falsos, mas, ainda assim, poderão ter alguma
serventia para a vida em comunidade: “Caso nada mais exista para os mortos, ao
menos consegui ser para os presentes, nesse lapso de tempo que precede a morte,
menos desagradável do que teria sido se me queixasse”.
Por um momento abre-se o abismo da dúvida; mas Sócrates nele não se
precipita. O fato de reunir-se com os outros, por meio do pensamento, tanto quanto
consigo mesmo, lhe concede a certeza moral de ter oferecido um exemplo
edificante. Poderíamos dizer: a superação da angústia da morte é, para ele,
também uma tarefa social. Procurando oferecer consolo, ele se encontra imbuído
da responsabilidade pública de sua morte. A morte não é, para Sócrates, nenhuma
situação existencial limite a ser defrontada solitariamente consigo mesmo. Não
deixamos de pertencer a uma grande ordem do ser, que abarca inclusive a vida
comunitária.
Imbuído desse espírito, Sócrates argumenta contra o suicídio. Já o “puro”
pensamento nos leva a concluir que não pertencemos apenas a nós mesmos, mas
sim ao Ser, ao qual se deve a idéia do bem, do justo, etc. Por isso, não podemos
dispor absoluta e livremente de nossa própria vida. Mas, com esse pensamento, ele
não faz senão reafirmar o preceito mítico-religioso segundo o qual pertencemos ao
rebanho de Deus e, por isso, não temos o direito de deitar a mão sobre nós
mesmos.
Sócrates, como se sabe, poderia ter escapado da prisão. Mas ele não o fez. Até o
fim, ele permanece vinculado às leis da comunidade que o julgou. Ele se submete a
elas e as obedece, mesmo quando está convencido de que, como no seu caso, foi
injustamente tratado por elas. O cumprimento da forma da lei é o bastante: uma
maioria se pronunciou contra ele, e por isso ele se recusa a responder a injustiça
contra ele cometida com uma desobediência à lei da comunidade.
Ele pode morrer sem receio, posto que se encontra triplamente reassegurado:
pelo Ser comprovado pela experiência do pensamento, por Deus e pela comunidade.
Para a antiga metafísica, porém, estas três dimensões pertencem a uma só. O
conhecimento da verdade não é senão a experiência de pertencer desse modo
tríplice e, no entanto, único. O conhecimento da verdade me concede a certeza
serena e sem traço de angústia de pertencer a uma ordem grandiosa.

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SOBRE A PRESENTE TRADUÇÃO

O ensaio “Der Tod des Sokrates” integra o livro Wieviel Wahrheit braucht der
Mensch? Über das Denkbare und das Lebbare, de Rüdiger Safranski, publicado pela
Fischer Verlag em 2005. É o primeiro ensaio da secção “Metaphysik oder Der
Versuch, nach Hause zu kommen”. A presente tradução foi concluída no ano de
2008, em Schwartzbach.

Do autor da tradução,
sob o pseudônimo de Mortiz Todeschinni.

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