Dataficação Da Vida
Dataficação Da Vida
Dataficação Da Vida
CIVITAS
Revista de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.39638
Dataficação da vida
Dataficación de la vida
Datafication of life
André Lemos1 Resumo: Este artigo discute a dataficação da vida na atual fase de desenvol-
orcid.org/0000-0001-9291-6494 vimento da cultura digital a partir de três eixos: relações sociais, conhecimento
almlemos@gmail.com e natureza. A dataficação se dá no rastreamento das relações sociais mediadas
por plataformas digitais e como “requisição” do mundo sob a forma de dados
operacionalizáveis em dois amplos domínios: a natureza e o conhecimento. A
primeira forma de requisição é produzida pela retirada de minério e de energia
para a produção de equipamentos e para alimentar a captura, o tratamento, a
Recebido: 30 nov. 2020 circulação de dados. A segunda é a tradução do mundo em dados, gerando
Aprovado: 1 abr. 2021 uma algocracia epistocrática que pode decidir sobre o conhecimento e a ges-
Publicado: 24 ago. 2021 tão da coisa pública. Relacionando a dataficação da vida como os quatro bios
aristotélicos e com a comunicação a partir do seu modo de existência, podemos
concluir que ela não pode ser reduzida nem a toda a esfera da comunicação,
nem ser identificada a um bios midiático. A dataficação da vida está na base da
comunicação contemporânea e é transversal aos quatro bios.
Palavras-chave: Bios. Comunicação. Dataficação. Plataformas.
Abstract: This paper aims to discuss the datafication of life in the current pha-
se of the development of digital culture based on three axes: social relations,
knowledge and nature. Datafication takes place in the tracking of social relations
mediated by digital platforms, and as “requisition” of the world in the form of data
that can be operated in two main domains: nature and knowledge. The first form
of requisition is produced by the harvesting of mineral and energy to produce
machines and devices and to feed the capture, treatment, and circulation of data.
The second is a world translation into data, generating an epistocratic algocracy
that can decide on the knowledge and management of public affairs. Relating
datafication of life as the four Aristotelian bios and communication based on their
mode of existence, we can conclude that it cannot be reduced to the whole sphere
of communication, nor to be identified to a bios of mediatization. Datafication of life
is at the base of contemporary communication and is transversal to the four bios.
Keywords: Bios. Communication. Datafication. Platforms.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir la datificación de la vida en
la fase actual del desarrollo de la cultura digital a partir de tres ejes: relaciones
sociales, conocimiento y naturaleza. La datificación tiene lugar en el seguimiento
de las relaciones sociales mediadas por plataformas digitales y como “requisición”
del mundo en forma de datos que pueden ser operados en dos dominios prin-
cipales: naturaleza y conocimiento. La primera forma de requisición se produce
mediante la recolección de minerales y energía para producir máquinas y dispo-
sitivos y para alimentar la captura, tratamiento y circulación de datos. El segundo
es una traducción del mundo en datos, generando una algocracia epistocrática
que puede decidir sobre el conocimiento y la gestión de los asuntos públicos.
Relacionando la datificación de la vida como los cuatro bios aristotélicos y la
comunicación en función de su modo de existencia, podemos concluir que ella
no puede reducirse al ámbito de la comunicación en su conjunto, ni identificarse
a un bios de la mediatización. La datificación de la vida está en la base de la
Artigo está licenciado sob forma de uma licença comunicación contemporánea y es transversal a los cuatro bios.
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
Palabras clave: Bios. Comunicación. Dataficación. Plataformas.
1
Universidade Federal da Bahia (Ufba), Salvador, BA, Brasil.
194 Civitas 21 (2): 193-202, maio-ago. 2021
2
Todas as traduções no corpo do texto são minhas.
3
“datafication allows analysis of information in more sophisticated ways and allows analyses across large datasets.”
4
“the process whereby life-processes must be converted into streams of […]”.
5
“it can concurrently be regarded as a user practice”.
6
Sobre o exemplo do livro ver Mayer-Schönberger e Cukier (2013).
André Lemos
Dataficação da vida 195
7
“software or hardware infrastructure on which users, companies, and even governments build applications, services, and communities.
8
“datafication”, “commodification”, and “selection”.
9
“the routinisation of surveillance and the collection of personal data”.
196 Civitas 21 (2): 193-202, maio-ago. 2021
10
A vida dos dados é entendida como trânsito e prática de dados (“places where people are engaged in practices of data production,
processing, distribution and use”) (Bates, Lin e Goodale 2016, 2).
11
“are programming our environment”.
12
“climate extraction”.
13
Ge-stell é a essência da técnica moderna para Heidegger, “dispositivo” baseado na ciência que toma a natureza como um reservató-
rio de energia e matéria. Para Heidegger (1958, 37), essa é a diferença da técnica moderna em relação às técnicas pré-científicas. Ge-stell
é uma “provocação científica da natureza” que coloca o homem em meio a um novo “destino” (Geschick) e perigo” (Gefahr). Como afirma
o filósofo, “C’est l’essence de la technique, en tant qu’elle est un destin de dévoilement, qui est le danger” (“É a essência da técnica,
enquanto destino de desvelamento, que é o perigo”).
André Lemos
Dataficação da vida 197
giram, na verdade, pelo vento, permanecem 22 milhões de toneladas de emissões de CO2 por
imediatamente familiarizadas ao seu soprar.
ano, o que equivale a toda a pegada de carbono
O moinho de vento, entretanto, não retira a
energia da corrente de ar para armazená-la da Jordânia;15 (ii) a energia consumida pelos data-
(Heidegger 2007, 381). centers do Facebook, só para uso dos brasileiros,
equivale ao consumo de energia de mais de 15 mil
A dataficação da vida é a expansão dessa residências no país pelo mesmo período.16
provocação traduzindo agora o mundo em da- Em artigo recente (Lemos 2020), mostramos
dos digitais. Esse processo exige a extração de como para a produção e a veiculação de Fake
minério e energia para produzir equipamentos e News no YouTube sobre o vazamento de óleo no
alimentar os datacenters das plataformas. Dife- Nordeste brasileiro foram emitidos 1.42 MtCO2 e
rentemente da idílica imagem da “computação (equivalentes ao derramamento de 3,30 barris
nas nuvens” (Peters 2015), a coleta, a análise e de petróleo). A dataficação pelas cadeias de
o processamento de dados tem consequências desinformação ampliaram o desastre ambiental
bem materiais sobre a vida no planeta, seja pela pelo efeito material no ambiente e ajudaram a
retirada de matéria e de energia, seja pela pro- deterioração do debate público sobre a questão.
dução de lixo eletrônico. Pensar a dataficação da vida a partir de sua
A cloud nada mais é do que uma metáfora materialidade (Lemos 2020), ou seja, dos minerais
para essa datastructure (Plantin e Punatham- embarcados, dos processos químicos, do seu
bekar 2019). Estudos atuais têm mostrando as descarte na natureza e na geração de pegada de
dimensões dessa “geologia da mídia” (Parikka carbono pelo nosso uso nas diversas plataformas
2012; 2015), ou seja, da materialidade da pro- é uma forma de visualizar uma toxicidade como
dução, do uso e do descarte relacionados aos implicações éticas e políticas planetárias.
processos de dataficação, tanto para a produção
de equipamentos, como no consumo de energia
Dataficação do conhecimento
nos datacenters.14 Cada computador, Smart TV,
Além da transformação das relações sociais e
tablet ou smartphone é composto por cerca de
da ampliação do consumo de energia no planeta,
dezenas minerais extraídos da terra (Thylstrup
a dataficação é uma nova forma de produção do
2019). Eles demandam energia na confecção e
conhecimento. Ela implica uma requisição/tradução
à terra voltam como lixo eletrônico (Frantzen e
digital do mundo, possibilitando o domínio sobre
Bjering 2020; Jennifer Gabrys 2011). A produção de
objetos ou ações com o intuito de simulá-los e
dispositivos e o uso da internet é responsável por
testá-los em sistemas computacionais avançados
3,7% das emissões de efeito estufa (Cubitt 2017).
com inteligência artificial (IA). Temos, assim, uma
O uso dos dados na internet exige também gran-
forma hegemônica do conhecer e de gerir a vida
de consumo de combustíveis fósseis nos datacen-
no planeta, sendo, como explica Mattelart (2006, 18)
ters e na infraestrutura urbana, apesar dos esforços
sobre a sociedade da informação, uma “nova maneira
atuais de algumas empresas para neutralizarem a
de pensar ao mesmo tempo a razão e as palavras,
pegada de carbono. O consumo é crescente, pro-
o projeto do conhecimento e da racionalidade uni-
duzindo desperdício com a rápida obsolescência
versais alimenta a crença na transparência perfeita”.
programada na necessidade de upgrade constante
Todas as áreas das ciências, incluindo as ci-
dos equipamentos. Alguns exemplos são: (i) para
ências da vida, como a medicina, a engenharia
movimentar a moeda virtual BitCoin, são necessários
genética, a biologia, são influenciadas pelo avanço
14
Danilak, Radoslav. Why energy is a big and rapidly growing problem for data centers. Forbes, 15 dez. 2017. Acessado 15 jul. 2020. ht-
tps://www.forbes.com/sites/forbestechcouncil/2017/12/15/why-energy-is-a-big-and-rapidly-growing-problem-for-data-centers/#-
2fb9908f5a30.
15
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out. 2020. https://www.bbc.com/future/article/20200305-why-your-internet-habits-are-not-as-clean-as-you-think.
16
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https://www.akatu.org.br/noticia/qual-o-impacto-ambiental-de-um-post-nas-redes-sociais.
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do Big Data e da IA. Estamos presenciando esse Bios, comunicação e dataficação da vida
processo no desenvolvimento nas “digital huma- Vimos como a dataficação da vida se concre-
nities” e na dataficação da ciência em todos os tiza nas relações sociais mediadas por mega-
níveis.17 O conhecimento dataficado marca uma vi- plataformas, no processo de requisição digital
rada epistemológica, pois o mundo transformado do mundo como matéria prima e energia e na
em dados tornar-se mais transparente, inteligível produção do conhecimento, com o surgimento
e facilmente manipulável. Isso coloca, conse- de uma algocracia pilotada por uma epistocracia.
quentemente, um problema para o conhecimento A dataficação da vida pode assim ser entendida
já que entende os dados e a correlata análise como uma forma de agência que constitui todos
maquínica como neutros, racionais e eficientes. os bios propostos por Aristóteles, incluindo aquele
Sabemos que não há dados brutos e que o que Sodré (2002) chama de “midiático”. Como
algoritmo é uma escrita e, como toda escrita, explica o autor, após
produz enviesamentos (Couldry 2020; Kitchin
2014b; Mayer-Schönberger e Cukier 2013). Como vida contemplativa (bios theoretikos), vida pra-
zerosa (bios apolaustikos) e vida política (bios
os dados são coletados e tratados como se
politikos) – pode-se agora acrescentar, como
fossem brutos, e como esses algoritmos funcio- antes afirmamos, uma nova qualificação, uma
nam como uma inteligência técnica e racional quarta esfera: a vida midiatizada, que inclui a re-
alidade tecnológica do virtual (Sodré 2002, 125).
(logo neutra), a dataficação e a performatividade
algorítmica seriam “a” maneira de conhecer e
Sodré (2002, 24) explica que Aristóteles apon-
gerir a vida no planeta. Alguns artigos ressaltam
tava para um quarto bios, o do comércio, mas
preocupações sobre método, ontologias e epis-
por esse ser uma forma interessada, relativa aos
temologias quando confrontados à dataficação e
negócios (nec otium), ele não seria considerado
aos procedimentos algoritmos, indagando sobre
um bios, já que ação “motivada por ‘alguma coisa
potencialidades e limites (Thylstrup, Flyverbom
mais’ (entenda-se: mais do que o Bem e a feli-
e Helles 2019; Fisher 2020).
cidade), apontada como ‘algo violento’”. Mas é,
Para Danaher (2016; Danaher et al. 2017), a
paradoxalmente, nesse lugar que Sodré vai situar
coleta e o monitoramento amplo dos dados,
o seu quarto bios, o midiático. Ele corresponde
aliados ao culto dos algoritmos como a forma
à esfera da midiatização, na qual as tecnologias
de tornar o mundo mais transparente, criam
digitais estariam agindo em nome do capital.
um poder tecnocrático (“algocracia”) na mão de
Como afirma Sodré (2002, 255), “o bios midiático
especialistas (“epistocracia”) que podem decidir
implica de fato uma refiguração imaginosa da vida
sobre as coisas de interesse público (Gillespie
tradicional pela ‘narrativa’ do mercado capitalista”.
2014). A gestão a partir dos dados e a dependên-
O mercado global das tecnologias virtuais
cia de sistemas algorítmicos opacos levariam à
promove uma forte transformação nas formas
restrição da participação humana e ampliaria a
tradicionais de sociabilidade. Para Sodré(2002,
ameaça de um poder colocado nas mãos dessa
26), ele cria novos modos de produção da sub-
elite que conhece os códigos (Danaher 2016, 254).
jetividade, dos prazeres e do comum, uma “nova
A dataficação do conhecimento levaria, portanto,
condição antropológica”. Esse novo bios é, por-
ao poder uma “epistocracia” operando através de
tanto, a simbiose de uma forma abstrata do
uma “algocracia” calcada na neutralidade técnica
mercado e a neutralização do conflito social. E
da performatividade algorítmica, podendo decidir
isso é concretizado pela “técnica digital”:
sobre o fazer e o conhecer, sendo a lente que
permitiria, como a matemática para Newton no Partindo-se da classificação aristotélica, “a
século 17, “ler o grande livro da natureza”. midiatização” ser pensada como tecnologia de
Não há aqui um juízo de valor. Muito dos avanços das ciências humanas se devem às novas abordagens e métodos digitais imple-
17
mentados. Faço aqui apenas uma constatação que reforça o meu argumento sobre a dataficação do conhecimento.
André Lemos
Dataficação da vida 199
18
Ser ponto de passagem obrigatório não significa antropocentrismo. Significa entender a ação humana entrelaçada a diversos outros
objetos. O antropocentrismo inibe, justamente, de ver a real dimensão da inserção do humano nos processos sociocomunicacionais.
19
Toda comunicação humana mobiliza formas de mediação (técnica), produz subjetividade (comunicatio) e está na base do “zoom
politikom”, da atividade política.
20
Para explicações sobre os modos ver Latour (2013).
200 Civitas 21 (2): 193-202, maio-ago. 2021
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