A Miseria Do Instrumentalismo

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A Miséria do Instrumentalismo na

Tradição Neoclássica
Mário Duayer Professor da Universidade Federal Fluminense -UFF
João Leonardo Medeiros Doutorando do Instituto de Economia - UFRJ
Juan Pablo Painceira Mestre pelo Instituto de Economia - UFRJ; Analista - BACEN

RESUMO
O presente artigo discute algumas ressonâncias do anti-realismo e do relativismo na ciência
econômica. Em particular, consiste de uma crítica da idéia atualmente em voga de que o
instrumentalismo constitui um fundamento filosófico suficiente para a Economia. Uma
desassombrada defesa desta posição é elaborada por Lisboa (FGV/RJ). Ao considerar que a
falência do positivismo pode ser exclusivamente creditada aos trabalhos de Kuhn e Lakatos,
Lisboa parece acreditar que o relativismo (ontológico) subjacente às concepções daqueles
autores representa um fundamento incontroverso de todo empreendimento científico. Por isso
seu esforço em demonstrar que a prática científica da tradição neoclássica sempre foi consisten-
te com tal fundamento. Porém, uma vez que o relativismo ontológico pressupõe o caráter
completamente discursivo da realidade social, deduz-se daí que qualquer discurso científico
“constrói” os fins dos quais é um instrumento. Sob tal ótica, o artigo procura mostrar que a
legitimação instrumentalista da tradição neoclássica tentada por Lisboa é inconsistente.

PALAVRAS-CHAVE
tradição neoclássica, instrumentalismo, relativismo, ontologia

ABSTRACT
This paper discusses some echoes of anti-realist and relativist attitudes in economic
science. In particular, it is a critique of the presently fashionable idea that instrumentalism
suffices as philosophical support to economics. Such a stance is put forward by Lisboa
(FGV/RJ) in a strikingly outspoken defense of the neoclassical tradition. Taking for granted
that the demise of positivism should be exclusively credited to the works of Kuhn and
Lakatos, Lisboa seems to believe that the relativism (ontological) underlying their
conceptions constitutes an undisputable foundation of all scientific endeavor; hence his
efforts to demonstrate that the scientific practice of neoclassical tradition had been
throughout consistent with that foundation. Yet as ontological relativism means that the
social reality is out-and-out discursive, it follows that any scientific discourse “constructs”
the ends of which it is an instrument. On this basis, the article tries to argue that the
instrumentalist legitimation of the neoclassical tradition attempted by Lisboa is flawed.

KEY WORDS
neoclassical tradition, instrumentalism, relativism, ontology

JEL Classification
B41

EST. ECON., SÃO PAULO, V. 31, N. 4, P. 723-783, OUTUBRO-DEZEMBRO 2001


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I venture the judgement, however, that currently in the Western


world, and especially in the United States, differences about eco-
nomic policy among disinterested citizens derive predominantly from
different predictions about economic consequences of taking action
– differences that in principle can be eliminated by the progress of
positive economics – rather than from fundamental differences in
basic values, differences about which men can ultimately only
fight. (FRIEDMAN, 1994, p. 182; itálico negrito adicionado)

Social scientists, like everyone else, have class interests, ideological


commitments, and values of all kinds. But all social science research,
unlike research on the strength of materials or the structure of
hemoglobine molecule, lies very close to the content of those ideolo-
gies, interests and values. Whether, the social scientist wills it or
knows it, perhaps even if he fights it, his choice of research problem,
the questions he asks, the questions he doesn’t ask, his analytical
framework, the very words he uses are all likely to be, in some meas-
ure, a reflection of his interests, ideologies and values. (SOLOW,
1994, p. 243)

INTRODUÇÃO

Talvez os “valores consensuais” do fim da história e do fim da ideologia já


não sejam mais tão consensuais. Talvez a história real - que continuou apesar
de advertida sobre o seu fim - tenha deixado claro que o “fim da história”
era o fim de uma ideologia e não o “fim da ideologia”. No entanto, a
despeito do dissenso se multiplicar em vários planos e âmbitos, a crítica se
defronta ainda com a persistência de um dos traços mais curiosos e
paradoxais decantados pelo ambiente teórico e cultural das últimas décadas,
a saber: por um lado, a afirmação do caráter aistórico e, por isso, absoluto
da ordem do capital; por outro, a afirmação do caráter contextual e
contingente de todo conhecimento. Trata-se de uma incongruência que
expressa, a uma só vez, tanto o domínio intensivo e extensivo de um sistema
social objetivo de cuja lógica parece impossível escapar quanto a

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subjetividade pragmático-utilitária que tal aparência supostamente


recomenda.

O presente artigo tematiza uma manifestação desta surpreendente


conjugação de convicção e ceticismo que distingue o pensamento contem-
porâneo, tal como expresso nas correntes ou escolas de pensamento de maior
circulação: pós-modernismo, pós-estruturalismo, neopragmatismo, constru-
tivismo, entre outras. Em particular, interessa-nos investigar a ressonância
na ciência econômica daquilo que Habermas qualifica neo-historicismo -
“o predomínio de certa disposição contextualista” -, marca distintiva do
presente estado da filosofia.1 A influência desta “certa disposição contex-
tualista” na ciência econômica é tão mais admirável porque, como se sabe,
dentre as ciências sociais a Economia foi a que com mais empenho e zelo
procurou garantir o seu estatuto de conhecimento científico com a caução
do positivismo. Por esta razão, quando hoje o conhecimento, científico e
qualquer outro, foi completamente “linguistificado” ou “culturalizado” -
de acordo com a “certa disposição contextualista” -, coloca-se a questão de
como e onde a Economia, órfã agora do certificado de cientificidade
positivista, busca validação do conhecimento especializado que produz.

Como foi dito, o artigo elabora uma crítica a uma tentativa, a nosso ver
paradigmática, de buscar amparo para a Economia nesses tempos de
contingencialismo ou ceticismo epistemológico. Tal tarefa foi realizada por
Lisboa (FGV/RJ) em dois extensos artigos (1997 e 1998). De fato, dentre
as contribuições de autores brasileiros às questões de fundamentação
filosófica da ciência econômica, Lisboa é o autor que procurou, de maneira
mais sistemática, ajustar a tradição neoclássica às mudanças substantivas
nas concepções de ciência e explicação científica experimentadas na filosofia
da ciência, em geral associadas a teóricos como Kuhn, Feyerabend e Lakatos.
Os dois artigos promovem uma desassombrada defesa da ortodoxia.
Contrapõem, às críticas heterodoxas, as razões da supremacia da tradição

1 HABERMAS (1996, p. 29). Para DUAYER & MORAES esta atitude envolve uma concepção
de história enquanto absoluta contingência (1997, p. 27-8). SOFIANOU (1995, p. 379), na
mesma direção, sugere que o pós-modernismo subentende a defesa da tese do pan-
contingencialismo.

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neoclássica. Talvez por que a hegemonia da tradição neoclássica na vida


teórica e prática da ciência econômica seja insuficiente para justificar tal
superioridade, Lisboa procura reafirmá-la no plano da fundamentação
filosófica. Como o faz, neste caso, tentando acomodar a ortodoxia
neoclássica à aragem filosófica recente, constitui instância exemplar de uma
atitude bastante difundida - embora nem sempre consciente. Especifi-
camente, o ambiente filosófico acima aludido, por desqualificar a
racionalidade, a verdade, o conhecimento justificado, tem alimentado uma
visão de ciência baseada no mais estreito instrumentalismo. Lisboa defende
tal idéia aberta e conscientemente. O que não chega a surpreender, consi-
derando que a tradição neoclássica sempre se caracterizou, com diferentes
fundamentações, pelo instrumentalismo. No entanto, a inopinada adesão
de autores heterodoxos ao instrumentalismo parece dever menos a
convicções filosóficas fundamentadas do que à capitulação mais ou menos
inconsciente ao ceticismo que marca o pensamento contemporâneo. Por
isso, desde uma ótica heterodoxa, parece-nos fundamental e urgente criticar
o instrumentalismo e o ceticismo que o funda.

Os artigos de Lisboa suscitaram poucas respostas – e, assim mesmo,


telegráficas e, a nosso ver, insuficientes.2 Mas seria equivocado interpretar
este fato como prova do impacto desprezível que produziram, pois seria
igualmente possível especular que a ausência de resposta deveu-se quer à
incapacidade crítica das heterodoxias quer à sua velada receptividade à tese
instrumentalista. De todo modo, não deixa de ser surpreendente que as
heterodoxias não esbocem reação contra tal defesa ostensiva da tradição
neoclássica publicada em um periódico reconhecidamente heterodoxo, con-
tra a ortodoxia hegemônica no discurso da academia, da mídia e da política.3
Surpreende, portanto, o silêncio heterodoxo. É bem verdade que as
heterodoxias não estão obrigadas a dar resposta a todo pronunciamento

2 CARVALHO (1998).
3 Discurso hegemônico conservador que, na opinião de Derrida, “procura instalar sua orquestração
dogmática em condições suspeitas e paradoxais, [antes de tudo] porque esta conjuração triunfante se
empenha na verdade em negar e, neste sentido, encobrir, o fato de que nunca, nunca na história, o
horizonte da coisa cuja sobrevivência é celebrada (a saber, todos os velhos modelos do mundo capitalista e
liberal) foi tão sombrio, ameaçador e ameaçado.” (DERRIDA, 1994, p. 38)

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ortodoxo. Por um lado, é natural que priorizem a construção do próprio


discurso, o desenvolvimento da própria agenda. Por outro, por serem
minoritárias, seus quadros (e recursos) são por definição insuficientes para
oferecer contra-argumento para cada artigo autorizado pela ortodoxia.
Entretanto, é evidente que a crítica tem de se apresentar em certas instâncias,
sob pena de não ingressar na esfera pública dos discursos. Tampouco se
pode imaginar que a ausência de reação é parte da estratégia do silêncio,
deveras comum na academia. Da prática, enfim, que recomenda não re-
sponder ao adversário, não citá-lo, reduzi-lo ao silêncio, ao anonimato, não
favorecer a circulação de suas idéias,4 pois esta estratégia, no geral, só tem
sentido para quem detém a hegemonia.

Quaisquer que sejam as razões a explicar a ausência de resposta, acreditamos


que é necessário suspender este embargo crítico em relação a Lisboa. Não
há porque sonegar uma resposta, que o autor merece nos planos teórico e
ideológico. De fato, julgamos que os artigos de Lisboa têm direito à resposta
em virtude da relevância das questões filosóficas que afloram, tanto para a
teoria quanto para a política.5 Além disso, o empenho do autor em
sistematizar, como dissemos, uma fundamentação filosófica atualizada da
tradição neoclássica constitui, sem dúvida, um estímulo ao debate e à
reflexão sobre os problemas filosóficos da ciência econômica, ciência na
qual tais problemas são freqüentemente encarados, quando muito, como
inútil diletantismo. 6 As contribuições de Lisboa oferecem, portanto, a
oportunidade para uma discussão mais organizada de temas que, entre os
economistas do País, têm sido aflorados com uma assistematicidade que
não promove a difusão esclarecida e informada dos problemas filosóficos
(epistemológicos, éticos etc.) inerentes a todas as ciências, incluindo a
Economia, é claro.

4 Há muitas ilustrações de tal expediente, mas parece-nos que o caso paradigmático continua sen-
do a extraordinária proeza de elaborar uma “arqueologia” do dinheiro (da troca, do preço) sem
citar Marx uma única vez.
5 Sobre a relevância das teorias filosóficas não somente para a teoria mas em todos os aspectos de
nossas vidas, ver SEARLE (1995, p. 197) e NORRIS, (1996, p. viii).
6 “[…] os economistas do mainstream concluem freqüentemente que ‘metodologia’ e ‘filosofia’ são
irrelevantes para (o progresso da) a ciência econômica, desencorajando-as abertamente…” (LAWSON,
1997, p. 11)

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Em síntese, apesar de discordarmos talvez de cada uma das posições


substantivas de Lisboa, acreditamos ser necessário registrar desde logo que
consideramos seus artigos relevantes e oportunos. E, ao elaborar uma crítica
a suas posições, não alimentamos qualquer expectativa de convencê-lo ou
“convertê-lo”. Nessas circunstâncias, diria Kuhn, as conversões, por serem
quase religiosas, são bastante raras. Ao contrário de Kuhn, acreditamos
que as conversões são improváveis porque são profanas, mundanas,
envolvendo, por isso, muito mais do que um intercâmbio desinteressado e
esclarecido de idéias. Mas as idéias, como o dinheiro, têm de circular, ganhar
o mundo, e os artigos de Lisboa servem aqui de veículo (pretexto) para a
circulação de idéias em tudo opostas às suas.

Dito isso, cabe ainda delinear nesta Introdução a estratégia geral da


abordagem de Lisboa. E o termo estratégia vem aqui empregado sem
qualquer implicação de necessária deliberação por parte do autor, visto que,
muitas vezes, o próprio objeto impõe determinada estrutura expositiva. Os
dois artigos, a despeito do sugerido pelos títulos, convergem no propósito
quase exclusivo de apresentar e justificar a fundamentação filosófica da
tradição neoclássica. Naturalmente, tal sustentação necessita da sanção da
filosofia da ciência, e nela Lisboa acredita encontrar amparo para o que
considera as três características distintivas da posição filosófica daquela
tradição. Em primeiro lugar, trata de mostrar que o instrumentalismo
praticado pela tradição neoclássica é plenamente justificável do ponto de
vista filosófico. Contra, portanto, o realismo reclamado pelas heterodoxias,
insiste no argumento de que a ciência se legitima mais por sua capacidade
preditiva, ou instrumental, do que pelo realismo de suas teorias, modelos,
hipóteses etc. Em segundo lugar, como o instrumentalismo a seco desfruta
de péssima reputação, Lisboa procura persuadir-nos de que a tradição
neoclássica o pratica em providencial conjugação com as bem-comportadas
prescrições popperianas destinadas a coibir práticas convencionalistas pouco
recomendáveis de ajuste a posteriori da teoria aos fatos. Finalmente, Lisboa
nos assevera que a aderência dos praticantes da tradição neoclássica aos
dois “princípios metodológicos” anteriores é possível graças ao caráter for-
mal, leia-se matemático, das construções teóricas no interior da tradição.
(LISBOA, 1998, p. 116)

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Se esta interpretação é adequada e, de fato, esses são elementos ou instâncias


fundamentais do argumento do autor, então fica mais ou menos delineado
o roteiro da crítica aqui proposta. O argumento filosófico em favor de (ou
contra) uma ciência, dito seja à guisa de ênfase, equivale a defender ou
sustentar uma determinada concepção de ciência, de conhecimento
produzido pela ciência. No caso de Lisboa, o argumento filosófico consiste
basicamente em defender a concepção de ciência que acredita ser adotada e
praticada pela tradição neoclássica, o instrumentalismo. Por isso, vai ser
preciso indagar, preliminarmente, se os desenvolvimentos recentes na
filosofia da ciência confluem para tornar o instrumentalismo o fundamento
filosófico exclusivo e inquestionável da ciência. A maioria dos diagnósticos,
no entanto, sublinha que na filosofia da ciência, sob o influxo das críticas à
tradição positivista, impera o mais completo caos.7 À primeira vista,
portanto, parece teoricamente pouco prudente imaginar que evocar o
instrumentalismo é expediente bastante para sustentar filosoficamente uma
ciência. Além disso, será necessário examinar se os debates contemporâneos
em filosofia da ciência facultam, sem problemas, a indigesta combinação
de instrumentalismo friedmaniano (anti-realista, relativista) com bom
comportamento anticonvencionalista popperiano (realista, não-relativista)
preconizada por Lisboa.8 Por último, caberá verificar se a linguagem
matemática, independente de todas as suas outras qualidades, de fato
constitui este meio translúcido, no qual, ao contrário da linguagem natu-
ral, é coisa trivial distinguir hipóteses singulares e, ademais, separar sem
dificuldade proposições analíticas (teóricas) e sintéticas (empíricas). Em
outras palavras, a linguagem matemática é realmente, como parece desejar
Lisboa, este meio no qual a consciência está em pleno controle de si mesma,

7 Para tal diagnóstico, ver BHASKAR (1998, p. 649).


8 Para indicar o grau de incompatibilidade entre essas duas posições basta recorrer a uma das
inúmeras citações de Popper a propósito do instrumentalismo: “o instrumentalismo pode ser formu-
lado como a tese de que as teorias científicas - as teorias das assim chamadas ciências ‘puras’ - nada mais
são do que regras computacionais (ou regras de inferência); fundamentalmente do mesmo caráter das
regras computacionais das assim chamadas ciências ‘aplicadas’. […] A minha resposta ao instrumentalismo
consiste em mostrar que há profundas diferenças entre teorias ‘puras’ e regras tecnológicas computacionais,
e que o instrumentalismo pode dar uma descrição perfeita dessas regras mas é totalmente incapaz de
explicar a diferença entre elas e as teorias. Por essa razão o instrumentalismo colapsa.“ (POPPER,
1963, p. 111) Pheby prestou o serviço de produzir uma fieira destas objeções de Popper ao
instrumentalismo. (PHEBY, 1988, p. 82-4)

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de modo que não lhe escapam, para usar o vocabulário da época, os fios de
nossas malhas de crenças?

Dispensa dizer que a discussão das questões anteriores terá, de algum modo,
que tratar da disjuntiva que permeia todos os debates contemporâneos em
filosofia da ciência - realismo versus anti-realismo. Tentaremos expor as
características mais salientes de ambas as posições sem, obviamente, pre-
tender esgotar o assunto. Interessa-nos sublinhar, antes de tudo, que na
filosofia da ciência, onde predominam hoje as posturas anti-realistas, como
a de Lisboa, não é mais possível ingressar neste terreno propriamente
filosófico sem considerar explicitamente os problemas ontológicos. Em
outros termos, a ninguém é concedido atualmente, como se fazia nos
“auspiciosos” tempos positivistas, desqualificar posições rivais pela simples
tática de denegri-las como “metafísicas”, isto é, ontológicas.9 Nos dias
atuais, realistas e anti-realistas, a despeito de sua polaridade, concordam
que não se pode erradicar a ontologia do discurso científico, como pretendeu
o positivismo. Por isso, sua diferença está determinada pelo papel que
atribuem à ontologia na prática científica. Os realistas tendem a defender a
noção de que as ciências buscam e propiciam um conhecimento (ontológico)
cada vez mais adequado do mundo.10 Os anti-realistas tendem a identificar
a ontologia como um produto (necessário) da consciência, um construto
arbitrário, um esquema conceitual ou ontológico, sem, portanto, qualquer
compromisso com a representação adequada da realidade. Se este é o
consenso mínimo na filosofia da ciência, parece-nos então que a linha
argumentativa de Lisboa padece desta debilidade básica: enruste a ontologia
da tradição neoclássica sob a forma de um batido - e discutível -
instrumentalismo conjugado com um bom-mocismo popperiano.
Manifestação flagrante de tal debilidade é a sua tentativa de especificar o
que denomina de tradição neoclássica. Salvo melhor juízo, a tradição
neoclássica, na variante de Lisboa, aparece desprovida de qualquer

9 Para modalidades mais mitigadas e/ou ambíguas desta atitude, ver, por exemplo, SCHUMPETER
(1976, parte I) e JOAN ROBINSON (1973, 39 p.)
10 Sobre tal perspectiva e o debate contemporâneo, ver DUAYER (1999), VASCONCELLOS et
alii (1999) e OLIVEIRA et alii (2001).

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compromisso ontológico, pondo-se na contramão, portanto, do único ponto


consensual entre as várias correntes da filosofia da ciência: toda teoria
pressupõe (e põe) uma ontologia.11

Para se ter uma idéia da absurdidade da tese central dos artigos de Lisboa,
a saber, o desapego da tradição neoclássica por qualquer princípio, visão de
mundo, hipótese, pressuposto, em uma palavra, a obliteração da ontologia,
basta considerar a verdadeira coqueluche de estudos sobre pobreza, exclusão
social, miséria e temas afins, diretamente inspirados naquela tradição. Apesar
de ser programa nada agradável, não seria difícil delinear, pelo exame das
categorias que empregam (“pobre”, “miserável”, “rico” etc.), a concepção
(ontológica) de mundo social que tais exercícios macrofilantrópicos
subentendem. Quanto às suas motivações, descontada a deliberada
manipulação retórico-política, haveria que recorrer às competências da teoria
psicossocial para explorar a possibilidade de que alguma espécie de
consciência culpada explique este recente surto de compaixão pelos pobres.12

Esta é a interpretação. Cumpre, em seguida, sustentá-la.

A TRADIÇÃO NEOCLÁSSICA E O INSTRUMENTALISMO

Em outro texto, um dos autores do presente trabalho sublinhava uma atitude


sem dúvida curiosa nos discursos metodológicos da ciência econômica. Nas
ciências da natureza, a se descrever seu desenvolvimento sob a ótica
kuhniana, o mundo em suas legalidades imanentes é concebido como
imutável. As mudanças paradigmáticas experimentadas por essas ciências

11 Lisboa questiona veementemente a existência de princípios, valores, hipóteses fundamentais que


possam caracterizar a tradição neoclássica: “Em que medida a tradição neoclássica pode ser caracteri-
zada como uma teoria? Afinal há alguma hipótese comum a toda essa tradição neoclássica? O uso de
equilíbrio? Mas qual conceito de equilíbrio? […] Ao contrário do que defendem diversos heterodoxos,
parece não haver qualquer princípio fundamental óbvio que caracterize esta vasta tradição.” (LISBOA,
1998, p. 131) Este argumento é reproduzido em LISBOA (1997, p. 10; 1998, p. 141).
12 Naturalmente, ninguém nega o valor da solidariedade. Isso é um truísmo. Porém, há uma dife-
rença crucial entre empenhar solidariedade em situações específicas e contingentes e analisar a
sociedade (ou a economia) como se a filantropia fosse uma categoria constitutiva.

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em seu desenvolvimento seriam, assim, manifestação de uma apreensão


cada vez mais abrangente da complexidade do mundo natural. A ciência
deve mudar para dar conta de novos aspectos do mundo natural
descortinados pela dilatação da prática humano-social. Enfim, a ciência
muda diante de um mundo em si mesmo imutável. E, à medida que assiste
à prática, muda para mudar o imutável. Na ciência econômica, e em espe-
cial na tradição neoclássica, a explicação kuhniana experimenta uma
surpreendente reinterpretação. O desenvolvimento da ciência se manifestaria
não nas revoluções paradigmáticas (mudanças substantivas de concepção
de mundo), mas nas sucessivas reformulações da fundamentação filosófica
de uma mesma concepção de mundo, na confecção de diferentes ornamentos
verbais para um mesmo conteúdo. Desse modo, as revoluções kuhnianas
na Economia apresentam-se como revoluções “metodológicas”. Neste par-
ticular, a ciência econômica, diferentemente da física, por exemplo, apesar
de ter como objeto um mundo mutável, plástico, o mundo social, mantém-
se imutável para conservar um mundo mutável. (DUAYER, 1998, p. 149)

De certo modo, parece-nos que este é o propósito último, consciente ou


não, dos artigos de Lisboa. A tradição neoclássica, que durante os longos
anos de predomínio positivista vinha invariavelmente lustrada com verniz
filosófico daquela corrente, agora, com a falência do positivismo (ver
próxima seção), apressa-se em encontrar uma indumentária mais de acordo
com a moda filosófica. O conteúdo, por suposto, permanece o de sempre.
E a moda, nestes tempos pós-modernos do pastiche, por tolerar as mais
extravagantes e inusitadas combinações e misturas, resolve-se numa total
ausência de moda. Na moda filosófica, a moda é o instrumentalismo. A
moda é o relativismo, a ausência de moda, de padrão. Para continuar com a
metáfora, diríamos que Lisboa tenta vestir a tradição neoclássica com
modelos da alta-costura relativista. Nesta seção procuramos indicar as linhas
com que cose tal propósito.13

A orientação que o autor procura imprimir à sua análise da fundamentação


filosófica da tradição neoclássica já se deixa entrever na abertura de um de

13 Nesta síntese do argumento de Lisboa, optamos por evitar referências recorrentes aos seus arti-
gos de modo a não sobrecarregar o texto com excessivas notas e citações.

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seus artigos. Referindo-se aos críticos, Lisboa reclama que fustigam a


tradição neoclássica sobretudo em virtude do irrealismo de suas hipóteses,
em particular do conceito de equilíbrio. A crítica da crítica, portanto, teria
duas alternativas: defender, contra as heterodoxias, o realismo das hipóteses
ou, ao contrário, sustentar que o realismo das hipóteses é impossível e/ou
dispensável. Lisboa opta pela segunda alternativa.14

Naturalmente, o autor reconhece que os debates filosóficos (metodológicos)


na Economia reproduzem os debates na filosofia da ciência. E adianta, o
que não é irrelevante, como se verá, que a influência mais significativa vem
de autores relativistas (Kuhn e Feyerabend). Neste particular, dito seja de
passagem, a Economia não chega a constituir um caso especial, dada a
ampla difusão do pensamento daqueles autores. Em todo caso, consignado
o impacto dos debates na filosofia da ciência sobre a Economia, Lisboa
assegura que as “principais referências metodológicas da tradição
neoclássica” são o instrumentalismo e o popperianismo, dos quais oferece
uma primeira imagem. O instrumentalismo se caracterizaria por um
pessimismo quanto à possibilidade de se conhecer a realidade. Na verdade,
o cientista que, por antecipação, é pessimista em relação a todo esforço
sistemático de conhecer a realidade, só pode racionalizar sua prática
(científica) desde uma perspectiva pragmática. Conhecer para manipular,
seria a máxima do instrumentalista. Não obstante, como é um truísmo
afirmar que a manipulação deve estar sob controle, pois a notória
promiscuidade entre saber e poder pode se voltar contra qualquer um, a
ética popperiana aparece como dispositivo capaz de conter a manipulação
dentro de limites tidos como respeitáveis. Em suma, a ciência econômica é
uma ciência de resultados e a permanente vigilância popperiana impede
que ela se autolegitime por meio da “fabricação” de resultados.15

14 Considerando-se a implausibilidade, muitas vezes anedótica, da maioria das hipóteses da tradição


neoclássica, é perfeitamente compreensível que Lisboa tenha “optado” pela defesa do irrealismo.
15 Uma ilustração do tipo de problema aqui envolvido é oferecida por Solow: “Não há dúvidas de
que algumas pesquisas são tendenciosas; os resultados são decididos antes que os dados estejam à mão, ou
os dados são cuidadosamente selecionados para provar argumento. Espera-se que a crítica profissional irá
detectar este tipo de coisa, mas inevitavelmente uma parte passa despercebida. Onde poderosos interesses
estiverem presentes, parte da pesquisa estará conscientemente ou inconscientemente pervertida e o meca-
nismo crítico estará embotado ou desativado.” (SOLOW, 1994, p. 243)

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Como será indicado na próxima seção, atualmente a referência ao


positivismo lógico é um imperativo sempre que se deseja defender uma
determinada concepção de ciência. Portanto, para sustentar a posição
filosófica supostamente adotada pela tradição neoclássica, como dissemos,
instrumentalismo popperianamente contido, Lisboa procede a uma rápida
inspeção do positivismo lógico. Rápida porque se trata de afirmar o
instrumentalismo e o popperianismo como alternativas críticas ao
positivismo lógico. A falência do programa lógico-positivista, somos
informados, deve ser atribuída à sua tentativa de fundar o conhecimento
científico na experiência. Como a validação do conhecimento por meio da
experiência (sensorial) sofre objeções aparentemente insuperáveis desde
Hume (século XVIII), que pretendeu ter demonstrado que o raciocínio
indutivo padece de uma circularidade incontornável, a falência do
positivismo lógico seria inevitável.

Tendo em vista que os aspectos mais relevantes da tradição positivista e as


prováveis razões de seu colapso serão tratados com mais detalhe em seção
posterior, neste ponto nos interessa apenas ressaltar que não é tão tranqüila,
como Lisboa parece acreditar, a apresentação do instrumentalismo como
superação crítica do positivismo lógico. Em primeiro lugar, há interpretações
de acordo com as quais o positivismo lógico, sobretudo em sua última
variante, o método hipotético-dedutivo (H-D) da estrutura das teorias
científicas (ver na próxima seção), é compatível indistintamente com as
visões realista e instrumentalista do conhecimento científico.16

Além disso, seria perfeitamente plausível argumentar que o instrumen-


talismo constitui o desfecho previsível do positivismo lógico e que, por
esta razão, ao contrário do que imagina Lisboa, longe está de representar a
sua superação crítica. Para isso, bastaria considerar o princípio programático
central da tradição positivista: conhecimento científico é conhecimento
fundado no empírico (na experiência sensível), do qual devem ser purgadas
todas as noções “metafísicas” (ontológicas). No entanto, após um longo

16 Caldwell, para ilustrar com um “metodólogo” da ciência econômica, defende esta interpretação.
(CALDWELL, 1982, p. 26)

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processo de críticas e autocríticas, a própria tradição veio a reconhecer que


sequer se pode garantir a pureza do mais trivial fato empírico. Em razão
disso, parece que a conclusão lógica do programa foi a de declarar que o
conhecimento científico não possui as qualidades e propriedades
inicialmente presumidas ou postuladas. Não é mais conhecimento que se
circunscreve, que se constrói, que se estrutura, apenas sobre os fatos. Foi
necessário admitir que o conhecimento científico, em poucas palavras, não
diz a “verdade dos fatos”. Pelo contrário, é uma interpretação dos fatos
que, como toda interpretação, revela, contém, carrega ou subentende uma
determinada perspectiva. Enfim, que conhecimento científico é uma
“leitura” dos fatos. Finalmente, foi preciso confessar que os fatos, assim
como os textos, comportam infinitas leituras. Desprovido, portanto, da
sustentação segura e insofismável dos “fatos”, o conhecimento científico,
que agora os interpreta, em lugar de revelar sua verdade, só poderia então
se legitimar por sua adequação empírica. No entanto, a própria adequação
empírica é insuficiente para prover tal autenticação. Sendo o conhecimento
uma interpretação dos fatos, sua adequação está evidentemente pressuposta.
Melhor dizendo, sendo leitura dos fatos realizada a partir de determinada
ótica, sua adequação (empírica) aos fatos está assegurada por antecipação,
a menos, é evidente, de ajustes quantitativos. Neste sentido, como a leitura
dos fatos é interna à perspectiva adotada, a sua legitimação pela adequação
empírica constituiria um procedimento tautológico. Em virtude disso, a
legitimação do conhecimento científico enquanto adequação empírica só
pode ser coerentemente defendida se estiver predicada a alguma finalidade,
propósito. O conhecimento científico se legitima, portanto, por produzir
não uma mera interpretação dos fatos (adequação empírica), mas uma
interpretação útil dos fatos. Legitima-se, então, por ser instrumental. Desse
modo, se o fracasso da profilaxia antimetafísica da ciência prometida pelo
positivismo lógico significa, como pretendem os relativistas como Lisboa,
o ceticismo terminal da ciência - sua proclamação de que o conhecimento
objetivo é inatingível -, então o instrumentalismo pode ser visto como a
resolução anunciada do programa da tradição positivista, o desenlace
previsível de uma missão impossível. Se o conhecimento livre de “valores”
mostrou-se impossível, então fica justificado o conhecimento a serviço dos
valores - prático-instrumental. Essa questão, fundamental para a

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736 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

interpretação aqui defendida, será tratada com mais detalhe nas seções
subseqüentes. Por ora, acreditamos que bastam essas sumárias considerações
para deixar claro que Lisboa trafega sem a devida prudência em terreno
bastante acidentado.

Feito o parêntese, retomamos o fio da argumentação de Lisboa. Em sua


opinião, como já foi dito, instrumentalismo e popperianismo são as fontes
de inspiração filosófica da tradição neoclássica. Precisam, por isso, ser
justificados. Antes de tudo, seriam concepções que emergem do fracasso
do positivismo lógico, em particular da subdeterminação empírica dos
termos teóricos (o já aludido problema da indução de Hume). O
instrumentalismo, na opinião de seus patronos na Economia, Friedman e
Machlup, já o sabemos por Lisboa, resulta de um “profundo ceticismo sobre a
possibilidade de compreensão do funcionamento da realidade econômica.”
(LISBOA, 1998, p. 118) Como o real é inapreensível pela consciência em
sua totalidade, complexidade e infinitude, todo conhecimento, por
definição, é “uma construção idealizada do real.” (Ibid.) Se, de fato,
imaginamos que a tarefa do conhecimento é reproduzir idealmente toda a
realidade, então, naturalmente, todo pensamento é falso. Desta pseudo-
aporia, que baralha conhecimento objetivo com conhecimento absoluto,
conclui-se que a verdade não pode ser o critério da ciência.17 Daí a
necessidade de projetar critérios alternativos. O instrumentalismo, sublinha
Lisboa, propõe dois desses critérios - explicação e previsão. O critério da
explicação, no entanto, colapsa no problema da subdeterminação, que já
respondera pela decadência do positivismo lógico. De fato, este último não
teria sido capaz de oferecer réplica ao argumento, devido a Quine, segundo
o qual para um mesmo conjunto de dados empíricos é possível construir
uma infinidade de teorias (explicações) diferentes. Outra maneira de dizer
que o empírico está sempre predicado a determinado esquema ontológico.18

17 Trata-se, no caso, da difundida tendência de confundir questões epistemológicas (limites da com-


preensão humana) com questões ontológicas (existência dos objetos e acontecimentos no mundo
real), denominada por Bhaskar de “falácia epistêmica” . (BHASKAR, 1997, cap. 1). Cf. também
NORRIS (1997, 210 p.) para uma interessante crítica baseada, curiosamente, em Nagel.
18 Para uma crítica ao relativismo ontológico de Quine, ver (entre outros): BHASKAR (1991, p.
27-8), NORRIS (1997b, 62p.; 1996b). Para um contraste, ver a utilização do relativismo
ontológico quineano pelo neopragmatismo em RORTY (1991, 175p.).

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 737

Restaria, assim, o critério da previsão, supostamente menos suscetível à


manipulação ad hoc. Ao contrário da explicação, que daria conta de eventos
passados e, por isso, suscetíveis à manipulação, a predição é corroborada
ou não por eventos futuros e, em virtude disso, estreitaria a margem de
manobra para ajustes post festum da teoria aos fatos. De modo que,
esquematicamente, a ciência para o instrumentalismo operaria da seguinte
maneira. O primeiro passo consiste da criação de modelos ou teorias capazes
de gerar previsões empiricamente testáveis. Em seguida, seleciona-se aquele
modelo ou teoria que apresente maior corroboração pelos dados. Em tal
interpretação, como a realidade objetiva é por princípio inapreensível, a
criação de modelos e teorias encerra um momento de irredutível
arbitrariedade.19 O que equivale a dizer que, em última análise, o fator decisivo
na aceitação ou não de uma teoria é a eficácia preditiva. (Ibid., p. 119)

Desafortunadamente, o critério da eficácia preditiva apresenta problemas


tão insuperáveis e insolúveis quanto o da explicação, pouco antes descartado.
Disso tem consciência Lisboa, uma vez que aponta a circularidade envolvida
na adoção do critério:

“a escolha dos critérios utilizados para avaliar empiricamente


os diversos modelos não pode ser feita independentemente de
uma teoria que a anteceda: a escolha do critério, ou testes
empíricos, depende da abordagem teórica utilizada, que de-
fine quais os problemas relevantes, as variáveis a serem testadas
e como mensurar estatisticamente o relativo sucesso ou fracasso
dos resultados obtidos.” (Ibid., p. 120)

Enfim, o critério da previsão afirmava que o valor da teoria dependia do


sucesso das previsões. Mas, por outro lado, o sucesso das previsões depende
da teoria utilizada para fazer as predições que, por sua vez, depende do

19 A extensão angustiante dessa arbitrariedade é expressa da seguinte maneira: “[no instrumentalismo


é] irrelevante se as hipóteses utilizadas pelo modelo são inconsistentes com alguma observação ou mesmo as
hipóteses utilizadas por outros modelos que estudam problemas empíricos. Cada problema empírico estu-
dado pode, no limite, requerer um modelo alternativo.” (LISBOA, 1998, p. 119)

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738 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

sucesso de suas previsões que, por seu lado, depende etc., etc., etc. Lisboa
procura contornar esta regressão infinita por intermédio do expediente auto-
indulgente do comedimento. Os autores que, na Economia, adotam o
instrumentalismo, como Friedman, Lucas e Prescott, conscientes dessa
circularidade e, no melhor estilo popperiano, supostamente procedem com
muita cautela nesse terreno. Prova desse zelo seriam os resultados
contrafactuais que amiúde infirmam seus modelos e hipóteses, levando-os,
assim, a permanentes reformulações e descartes de suas teorias, modelos e
hipóteses.

Assim entendido, o instrumentalismo posto em prática pelos autores


representativos da tradição neoclássica seria uma encarnação particular das
prescrições defendidas por Popper. A se acreditar na leitura de Lisboa, Pop-
per, ao propor a substituição do princípio da verificação pelo da falsificação,
resolve a circularidade do critério da eficácia preditiva acima apontado.
Adotado o popperianismo, o instrumentalismo não mais objetivaria a
verificação empírica de suas hipóteses, modelos ou teorias, mas sim sua
falsificação. Em lugar do “testar para verificar”, adotaria a máxima “testar
para falsificar”. Mudança de ênfase que, mais do que mero jogo de palavras,
indicaria uma alteração substantiva no fazer da ciência. Como verificar se
mostrara um procedimento impossível, posto que não há como testar as
infinitas instâncias empíricas de qualquer proposição universal, o
instrumentalismo fica bem servido com uma concepção filosófica que
sustenta que a ciência nada mais é do que o conjunto de proposições
falseáveis, porém ainda não falseadas.

Popper parece, portanto, nas mãos de Lisboa, providencial ao


instrumentalismo.20 Primeiro, porque presumivelmente contorna o
problema da indução e, de bônus, oferece suporte à idéia instrumentalista
de que a verdade objetiva é inatingível e, por conseguinte, irrelevante. A
ciência, nessa visão, é uma prática que consiste na formulação de conjecturas
a partir das quais são deduzidas proposições testáveis. As teorias são retidas

20 É preciso lembrar, aqui, que esta interpretação instrumentalista de Popper por parte de Lisboa
está longe de ser consensual. Afinal de contas, o próprio Popper, ao manter que a verdade cons-
titui o “princípio regulador” da prática científica, parece guardar uma prudente distância do
instrumentalismo. (Cf. nota 5, acima).

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 739

enquanto são corroboradas e descartadas tão logo sejam falsificadas pelos


testes empíricos. Em síntese, a adequação empírica constitui o objetivo, o
critério e o princípio regulador da ciência.

Não obstante, como tudo aqui gira em torno da adequação empírica, é


preciso recordar que o falsificacionismo popperiano padece das mesmas
dificuldades de demarcação do empírico enfrentadas por todas as variantes
do positivismo. Por esta razão, aliás, alguns autores sugerem que o
popperianismo ainda está preso a uma problemática tipicamente positivista.
(LAWSON, 1997, p. xv) Trata-se da questão, já aludida e por demais
conhecida, de que os fatos são carregados de teoria (theory laden). Se os
fatos são carregados de teoria, a delimitação do empírico está
antecipadamente determinada pela própria teoria, que, por isso mesmo,
disporia de meios para contornar eventuais falsificações pelos dados
empíricos. Os testes, neste caso, em lugar de ilustrarem na prática a ética
popperiana de falsificação, seriam antes instâncias de autolegitimação das
teorias. As estratégias anticonvencionalistas de Popper são projetadas como
suposta solução para tais dificuldades. Consistem de um “conjunto de regras
metodológicas”, recorda Lisboa, destinado a evitar que os cientistas
introduzam hipóteses ad hoc com a finalidade de burlar os testes empíricos.
Lisboa, juntamente com muitos outros comentaristas, sublinha que Pop-
per transita, com este movimento, de uma teoria descritiva para uma teoria
normativa da ciência (LISBOA, 1998, p. 124) - enfim, de uma teoria da
ciência a uma ética para a ciência. Por isso caracterizamos acima o
instrumentalismo defendido por Lisboa como um instrumentalismo
popperianamente contido. Digamos, um instrumentalismo “ético”.

Dentre as várias objeções dirigidas às idéias de Popper, Lisboa destaca o


caráter “ingênuo” de seu falsificacionismo. A teoria é ingênua porque
minimiza os efeitos da inter-relação entre teoria e “fatos” empíricos e, em
conseqüência, não leva em conta a natureza “inercial” das próprias tradições
científicas. Por desprezar, portanto, a força institucional das teorias
estabelecidas, Popper oferece uma ética científica que opera num vazio ideal,
livre de qualquer condicionamento histórico-social. Por isso, sua teoria
subentende a imagem de cientistas sempre prontos para se despojarem de
suas mais caras teorias. Daí a ingenuidade de sua teoria normativa da ciência

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740 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

e a necessidade, enfatizada por Lisboa, de superar as limitações de sua


concepção. Limites que, numa leitura corrente da história recente da filosofia
da ciência, são ultrapassados nas formulações de Kuhn e Lakatos.

Kuhn e Lakatos, nesta interpretação muito difundida e reproduzida por


Lisboa, são integrados na análise para transformar o falsificacionismo
“ingênuo” de Popper em falsificacionismo “sofisticado” de Lakatos. O
primeiro autor, Kuhn, em suas investigações sobre a história das ciências,
refuta a idéia de Popper de que os cientistas são zelosos praticantes do
falsificacionismo. Segundo Kuhn, a história empírica das ciências mostra
com fartura práticas de autovalidação ou autolegitimação da teoria que a
cada vez é hegemônica. Tais práticas caracterizariam aquilo que denomina
de ciência normal. A ciência normal pressupõe o compartilhar de um mesmo
paradigma, que compreende desde noções mais gerais sobre a estrutura e a
configuração do mundo até a definição do campo fenomênico relevante, bem
como técnicas e critérios de tratamento e teste dos dados. Tais paradigmas
constituiriam a base de tradições internas a cada ciência, cujo desenvolvimento
seria marcado por uma sucessão de paradigmas (tradições) radicalmente
distintos e, neste sentido, incomensuráveis. O ponto a enfatizar é que, assim
entendidas, as ciências obviamente excluem a suposta ética popperiana, uma
vez que os testes empíricos são sempre internos ao paradigma. (A concepção
de Kuhn será tratada com mais detalhe na próxima seção.)

Do ponto de vista da interpretação alinhavada por Lisboa, uma das


conclusões de Kuhn é particularmente proveitosa. A rigor, Lisboa está
interessado na afirmação de Kuhn de que a ciência, em última instância, se
resolve - e, por conseguinte, se legitima - em técnicas preditivas. Por isso,
destaca passagem da obra daquele autor na qual a relevância da teoria
consiste basicamente das técnicas preditivas que implica e envolve. O papel
da teoria, neste particular, seria o de explicar e justificar o sucesso de suas
técnicas preditivas e, sobretudo, o de servir de meio para seu permanente
aperfeiçoamento, em abrangência e precisão.21 É perfeitamente

21 Lisboa exprime do seguinte modo essa concepção de teoria: “Cabe à análise teórica procurar
restringir o conjunto dos resultados teóricos possíveis gerando proposições que explicitem quais as hipóteses
adotadas e cujas conclusões possam ser testadas. Os testes empíricos levam a uma eventual rejeição, ou não,
dos modelos e permitem uma melhor avaliação das conseqüências das políticas econômicas e da interven-
ção dos mercados.” (LISBOA, 1997, p. 36)

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compreensível que o papel da teoria seja tão deflacionado, uma vez que,
sob a ótica kuhniana, a teoria tem um caráter assumidamente “metafísico”,
e se estrutura sob a base, em geral inexplícita, de um paradigma. Por esta
razão, a teoria kuhniana parece emprestar sustentação ao critério da
predição, agora não em termos positivistas ou popperianos, mas relativistas.
Relativista porque “os princípios fundamentais que caracterizam os diferentes
paradigmas podem ser incomparáveis, impossibilitando qualquer discurso sobre o
desenvolvimento científico. No jargão relativista, paradigmas distintos podem ser
incomensuráveis.” (LISBOA, 1998, p. 126) Em outras palavras, Lisboa
recorre aqui à conhecida equação de inspiração kuhniana: como a ciência
evolui pela sucessão de paradigmas incomensuráveis (relativismo), cada
tradição teórica (paradigma) se legitima enquanto for capaz de prover
técnicas preditivas para o complexo de fenômenos por ela mesma delimitado
e priorizado. Significa dizer, legitima-se por sua capacidade preditiva. Por
conseguinte, as mudanças paradigmáticas são eventos estritamente
empíricos, insubmissas a toda e qualquer racionalidade. Paradoxalmente,
no entanto, tais mundanos eventos empíricos sempre transbordam na
“metafísica”, no transempírico, uma vez que envolvem a troca radical e
substantiva de uma visão de mundo por outra. Sobre essa questão, cuja
irrelevância constitui, por assim dizer, o núcleo da tese de Lisboa, nos
estendemos em outros momentos do trabalho, posto que defendemos tese
justamente oposta.

Se Kuhn é o teórico que afirma a natureza “metafísica” do discurso científico,


é fácil perceber que com isso subtrai da ciência aquela que seria sua marca
distintiva e fonte de seu prestígio social, a saber, a sua capacidade de
apreender a realidade objetiva. Se a noção de paradigma denota, entre outras
coisas, o conjunto complexo de noções compartilhadas pelos cientistas, e
se estas últimas são expressão, entre outras coisas, de uma cultura, de uma
época, de uma situação de classe, gênero, etnia, então a diferença entre o
discurso científico e o discurso cotidiano, com suas injustificadas
superstições e preconceitos, seria mais uma questão de grau do que de
natureza. O conhecimento, para colocá-lo cruamente, consistiria sempre
no rebatimento ou projeção na realidade de nossos interesses, valores,
preconceitos, e assim por diante. A depreciação do status da ciência

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742 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

implicada em tal concepção dispensa maiores comentários. De acordo com


o filósofo pragmático americano R. Rorty, por exemplo, a sensação de perda
de prestígio que implica responde, em parte, pela recepção negativa das
idéias de Kuhn por setores da comunidade científica.22

Considerando, portanto, o potencial destrutivo das idéias de Kuhn para o


prestígio da ciência e suas instituições, Lakatos talvez possa ser encarado
como o teórico que reconduziu a polêmica para os marcos tratáveis da
moderna ciência, amplamente institucionalizada. Sob este ponto de vista, é
o teórico que, mais do que Kuhn, serve aos propósitos da estratégia de
argumentação de Lisboa. Sobretudo porque forneceria a teoria da ciência
“atualizada” capaz de justificar a prática científica da tradição neoclássica.
Uma teoria que combina as regras metodológicas de Popper com as
qualificações de Kuhn sobre o condicionamento social, político, cultural e
institucional da ciência sem, contudo, conceder espaço para interpretações
“anarquistas” do progresso da ciência. O desenvolvimento da ciência que,
nos marcos conceituais de Kuhn, possui uma dinâmica interparadigmática
insondável, quando arrumado no quadro claramente institucionalizado dos
PPCs (Programas de Pesquisa Científicos) de Lakatos adquire uma imediata
inteligibilidade. Os PPCs constituem tradições científicas compostas por
núcleos rígidos (de concepções substantivas) cercados de teorias deles
deduzidas (cinturão protetor). A dinâmica da ciência consiste da expansão
das teorias que circundam o núcleo rígido, numa lógica que se explica pelo
imperativo de colonizar, sob as condições e limites interpretativos postos e
impostos pela tradição, territórios cada vez mais extensos do empírico.

Nesta descrição desde logo institucional da ciência não há lugar, é claro,


para o descarte imediato de teorias pressuposto pelo falsificacionismo
“ingênuo” de Popper. Ocupa seu lugar o pretenso falsificacionismo
sofisticado de Lakatos, que “reconhece a impossibilidade de diferenciar entre
argumentos teóricos e fatos empíricos, assim como a possibilidade de manutenção

22 De acordo com Rorty, Kuhn procura se retratar diante de tais reservas desbastando os resultados
mais heterodoxos de sua teoria. Rorty lamenta, naturalmente, este recuo tático de Kuhn e,
intitulando-se “kuhniano de esquerda”, leva a proposta de Kuhn à sua radical conclusão: a refuta-
ção da epistemologia. Sobre a reclamada herança kuhniana de Rorty, ver (MORAES et alii,
1997). Críticas à corrente lingüística na Economia, ver PAULANI (1996).

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 743

da teoria mesmo quando esta é falsificada através do uso de hipóteses auxiliares.”


(LISBOA, 1998, p. 126) Por isso, ao contrário de Popper, para Lakatos
“uma teoria é falsificada apenas quando uma teoria alternativa com maior grau
de falseabilidade é desenvolvida.” (Ibid.) A falsificação “sofisticada” depende,
portanto, da existência de uma teoria alternativa com conteúdo empírico
que excederia o da predecessora. Esquema interpretativo, como se vê,
tremendamente oportuno, pois explica a dinâmica da ciência como um
movimento autônomo no interior de cada tradição e sujeito a um critério
exclusivamente empírico. Uma tradição subsiste à medida que mantenha
sua capacidade de colonização do empírico ou, para dizê-lo sem metáforas,
quando sua capacidade preditiva é atestada por novos e novos fenômenos
empíricos.

Esse tipo de idéia traz dilemas terríveis para concepções hegemônicas que
não enxergam alternativas teóricas fora de si mesmas, tal como ilustra
Lisboa:

“Na ausência de uma teoria alternativa e dada a existência


de observação que contradiz o argumento utilizado, como dar
prosseguimento à teoria? Lakatos […] essencialmente segue
Popper, utilizando o conjunto de regras metodológicas que
restringem as alterações e hipóteses auxiliares aceitáveis a fim
de evitar as estratégias convencionalistas [de autolegi-
timação]. Essencialmente, essas regras impõem que as
alternativas teóricas propostas [no interior de um mesmo PPC]
não reduzam o conjunto de observações que falsifiquem a teoria
original.” (Ibid., p. 127)

Naturalmente, do ponto de vista da teoria de Lakatos, essa incapacidade de


uma teoria olhar para fora de si mesma é um truísmo, porque a noção de
paradigmas (Kuhn) ou programas de pesquisa científicos (Lakatos)
incomensuráveis cancela por princípio a possibilidade de se descortinar,
desde o interior de um paradigma ou PPC, a(s) sua(s) possível(is)
superação(ões). Está subentendida aqui, como se pode perceber, uma
concepção de progresso da ciência fundada no exame empírico da história
das ciências, mas que, surpreendentemente, compreende a história como

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744 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

uma sucessão absolutamente contingente de eventos. Desta concepção


aistórica da história da ciência resulta o dilema assinalado, pois qualquer
tradição tem justa consciência de seu caráter efêmero e, apesar disso, mas
também por isso mesmo, pratica estratégias “honradas” - não conven-
cionalistas - de sobrevivência. Teoria do progresso que, a rigor, não explica
o progresso, mas dispõe-se apenas a elucidar as práticas de manutenção
(sobrevivência). Teoria da mudança que, espantosamente, se desobriga da
necessidade de explicar a mudança.

Trata-se portanto de uma teoria que deixa entrever uma dinâmica


interparadigmática, mas não a explica, concentrando-se tão-somente na
dinâmica intraparadigmática. Daí sua importância para a linha de
argumentação de Lisboa. A rigor, com a chancela de Lakatos, Lisboa
inspeciona o programa de pesquisa científico (PPC) da tradição neoclássica
do ponto de vista da dinâmica intraparadigmática. Esse programa de
pesquisa seria caracterizado da seguinte forma:

“A tradição neoclássica não é um conjunto de modelos que


deve ser utilizado como norma nos estudos econômicos, mas
sim um projeto de pesquisa que procura mapear, teoricamente,
em que circunstância cada resultado é válido e em que
circunstância não. […] Conhecimento teórico, nesta tradição,
significa o mapeamento das relações de causalidade: quando
e sob que condições há contra-exemplos. Os casos não conhecidos
definem os campos de pesquisa. […] À medida que as relações
de causalidade são estabelecidas, e os diversos casos são
mapeados, não apenas aumentam as relações conhecidas mas,
com freqüência, novas questões são introduzidas, abrindo no-
vas áreas de pesquisa.” (LISBOA, 1997, p. 34)23

23 Incidentalmente, é preciso salientar que não é possível falar em causalidade no âmbito da aborda-
gem instrumentalista, apesar do farto uso que Lisboa faz do termo. A relação de causalidade
pressupõe uma concepção realista de conhecimento científico. Se o ponto de partida da análise de
Lisboa é a postulação de que o real é inapreensível, parece trivial concluir que não se pode, neste
caso, aludir a relações de causalidade. Como falar de uma coisa como causa de outra se nada
posso saber da realidade objetiva? Em outras palavras, na perspectiva que adota o autor, o máxi-
mo que se pode afirmar é que duas coisas, fatos, fenômenos ou variáveis são contíguos,
concomitantes, ou correlacionados. Este é o grau máximo de associação que sua abordagem
admite afirmar.

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 745

Mediante inúmeros exemplos, escandidos ao longo de seus dois artigos, o


autor procura defender o caráter progressivo da dinâmica intrapara-
digmática da tradição neoclássica, como indicado na citação. A tradição,
pela estrita observância dos procedimentos anticonvencionalistas prescritos
por Popper e Lakatos, em particular por seu total desapego a princípios
fundantes irredutíveis, teria sido capaz de aperfeiçoar continuamente suas
técnicas preditivas tanto em abrangência quanto em precisão.24 Tal
“inquestionável” sucesso preditivo explicaria a razão, nos termos de Lakatos,
da hegemonia da tradição neoclássica. Este é o argumento final de Lisboa
para silenciar a “miserável crítica heterodoxa”. A “miséria da heterodoxia”,
em síntese, é a miséria de sua capacidade preditiva.

Se a hegemonia da tradição neoclássica foi metaforicamente representada


como “cheia do mainstream” por Possas (1997), Lisboa toma essa figura
para explicar lakatosianamente a capacidade infinita da tradição de invadir
e colonizar o campo empírico da heterodoxia. Alargamento das margens e
assoreamento, efeito e causa da “cheia”, expressariam tanto a capacidade da
tradição de abarcar novos fenômenos empíricos como sua renúncia à
profundidade (seu desprendimento em relação a eventuais princípios
fundantes). Portanto, nesta disputa discursiva, o que constituía um defeito
da tradição para o crítico (Possas) é convertido em sua principal virtude
pelo crítico do crítico (Lisboa).

Salvo melhor juízo, esse parece ser o conteúdo fundamental do argumento


de Lisboa contra as diatribes heterodoxas, teimosamente centradas na falta
de realismo da tradição neoclássica. A filosofia da ciência contemporânea,
quer demonstrar sua resenha, ensina que a ciência se justifica não por seu

24 A importância do desapego da tradição em relação a princípios fundantes para o seu caráter


progressivo talvez venha bem caracterizada na seguinte passagem de Lisboa, centrada no princí-
pio do equilíbrio.
“A teoria do equilíbrio geral se desenvolve, precisamente, procurando superar as restrições apresentadas
pelo modelo Arrow-Debreu-McKenzie. Este desenvolvimento levou à construção de modelos com merca-
dos sequenciais e ativos financeiros, imperfeições no mercado de capitais e de trabalho, expectativas racio-
nais e não-racionais, bancarrota, assimetria de informação e comportamento estratégico, entre outras
generalizações. Sobretudo, este desenvolvimento se caracteriza pela multiplicidade de noções de equilíbrio
utilizadas, que com freqüência refletem restrições distintas sobre as expectativas individuais.” (LIS-
BOA, 1998, p. 137)
Em outros momentos de seus textos, o autor utiliza argumento idêntico para outros princípios
da tradição, tais como racionalidade, individualismo e convexidade.

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746 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

realismo, mas sim por seu caráter instrumental. Cabe-nos frisar agora que,
em toda essa discussão, o que fica posto de lado, convenientemente ocluído
por Lisboa, é o nexo existente entre a determinação última das teorias pelo
paradigma, no caso de Kuhn, ou pelo núcleo rígido, no caso de Lakatos, e
a adequação empírica. Por mais heróico que seja o desprendimento de uma
teoria por seus postulados e axiomas fundamentais, o mínimo ensinamento
que se tira daqueles autores é que qualquer ciência, queira ou não,
conscientemente ou não, pressupõe (e põe) uma visão de mundo. Se as
teorias, na leitura relativista daqueles autores, são enfim construtos, se estão
predicadas a esquemas ontológicos, então é um truísmo afirmar que a ciência
está sempre constituída por uma visão de mundo, ou “malha de crenças”,
que determina suas noções de eficácia, de utilidade, de delimitação do
empírico etc.

Esta é a razão pela qual afirmamos antes que, a despeito de suas posições
em tudo antitéticas, realistas e anti-realistas partem do consenso mínimo
de que a ontologia é momento constitutivo da prática das ciências e,
portanto, de sua investigação. Realistas e anti-realistas divergem sobre a
objetividade ou não das imagens que a ciência oferece do mundo, digamos,
de seus “construtos”, mas de modo algum negam que sejam momentos
imanentes de qualquer teoria científica e muito menos minimizam seu
impacto na vida social enquanto visões de mundo (ontologias) afiançadas
pela ciência, abonadas por sua autoridade. Para suprimir essa que é a
característica mais saliente do moderno debate na filosofia da ciência, Lisboa
desbastou completamente essas implicações óbvias do pensamento dos
autores que trouxe à discussão para referendar seu argumento. Precisamente
por isso indaga, entre naïve e surpreso, se

“Há um projeto invisível, que controla e justifica minha


pesquisa, e que eu ignoro? Será que faço parte de um pacto
inconsciente com Mefistófeles, que virá mais tarde reclamar o
que lhe é de direito?” (LISBOA, 1997, p. 6)

Em consonância com a tradição neoclássica, Lisboa dá voz aqui, em sua


perplexidade, ao sujeito da teoria. Indivíduo irredutível que não pode, por
isso mesmo, se pensar condicionado, em suas visões de mundo, em sua

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prática, corriqueira ou científica, por valorizações, motivações, finalidades,


preconceitos e instâncias suprapessoais, sociais. Não cabe aqui nos
estendermos sobre a curiosa sociabilidade episódica dos sujeitos da tradição
neoclássica. Importa apenas sublinhar que não faz o menor sentido, no
quadro teórico demarcado pelos autores evocados pelo próprio Lisboa,
pretender que os sujeitos do conhecimento científico não sejam agentes,
inocentes ou não, de uma atividade coletiva, social. Em termos lakatosianos,
inocente ou não, todo cientista está impregnado pelo núcleo rígido. Para
Lakatos, ao que tudo indica, o PPC é uma totalidade que se move em sua
periferia, que se expande a partir de um núcleo rígido. Para Lisboa,
diferentemente, o PPC é uma totalidade que se desloca, que se dilata sem
eixo, sem fulcro, desnucleada. O que equivale a dizer que toda tradição
científica consistiria de um aparato instrumental de processamento de dados
empíricos que funcionaria num perfeito vácuo de significação.

Talvez possamos ilustrar o caráter absurdo dessa concepção instrumentalista


de ciência se considerarmos que Lisboa apresenta uma versão “atualizada”
do instrumentalismo de Milton Friedman, autor cuja influência
metodológica na tradição neoclássica considera decisiva, como já vimos.
Em seu clássico artigo metodológico, Friedman defende a idéia de que é
possível e desejável desenvolver uma “teoria econômica positiva”. Antes de
demonstrar como se constrói tal “economia positiva”, Friedman reconhece
com espantosa franqueza (ou terá sido ingenuidade?) que “diferenças
fundamentais” em relação ao que denomina “valores básicos” só podem ser
resolvidas pela luta. Afortunadamente, no mundo ocidental, e especialmente
nos EUA, esta luta não precisaria ser travada, pois nessas ditosas regiões do
mundo (na década de 50) já prevaleceriam “valores básicos” consensuais.
Precisamente a razão pela qual seria possível, segundo Friedman,
desenvolver uma “economia positiva”, ou seja, uma teoria econômica que
trata “do que é”. Disto se pode concluir, em boa lógica (formal), que “o
que é”, ou seja, a economia positiva, é determinado pelos “valores básicos”,
supostamente consensuais no mundo ocidental. Tivesse Friedman
conhecimento de Lakatos, por exemplo, diria que “o que é” (economia
positiva) é determinado pelo “núcleo rígido” constituído, entre outras
coisas, pelos “valores básicos”. E que, neste caso, a ciência positiva é a ciência
instrumental (útil, portanto) de tais “valores básicos”. Em síntese, teria

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748 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

chegado à conclusão que a sua “economia positiva” é a ciência dos seus


“valores básicos” - ciência “normativa”. Perceberia, assim, que sua tentativa
de diferenciar entre “economia positiva” e “economia normativa” é
completamente incongruente e, por isso, falaciosa. Sem mencionar, claro,
o seu caráter ostensivamente ideológico. Lisboa, ao contrário de Fried-
man, conhece e recorre a Lakatos e, por isso, jamais poderia tentar veicular
a idéia de que a tradição neoclássica é desprovida de “valores básicos”; que
funciona, na anexação de novos territórios empíricos ao seu império, sem
“núcleo rígido”.

Certamente, pode-se concordar com Lisboa que a tradição neoclássica tem


flexibilizado, para usar um termo encantatório contemporâneo, seus axiomas
e postulados, tais como equilíbrio, racionalidade, entre outros, de modo a
atender aos imperativos do ajuste empírico, para aperfeiçoar sua “capacidade
preditiva”, sua “adequação empírica”. Mas tal flexibilidade não cancela o
fato de que a tradição neoclássica pressupõe e põe uma ontologia
perfeitamente identificável, um “núcleo rígido” que representa uma
estrutura do mundo social imediatamente reconhecível, um paradigma
inconfundível da sociedade e da economia - “valores básicos” incluídos.
Este é o mínimo que os debates das últimas décadas na filosofia da ciência
impõem admitir.

Portanto, a questão, hoje como ontem, não é a de explicar a eficácia prática


que Lisboa cobra das heterodoxias. A questão é se a “eficácia prática” é
critério bastante para determinar a natureza e o papel da ciência. Pois
admitida a ontologia como dimensão ineliminável do saber científico - tanto
por realistas como por não-realistas (relativistas) -, permanece por ser
apreciada uma questão delicada, talvez inconveniente: se a “eficácia prática”
está predicada aos valores do paradigma, do núcleo rígido, do esquema
ontológico, do construto, e assim por diante, subjacentes a cada tradição,
como comparar a sua eficácia relativa? E a questão ainda mais delicada, e
talvez mais inconveniente: como ajuizar os “valores básicos” pressupostos
e postos por cada tradição teórica e de cuja realização cada uma é
instrumento? Em poucas palavras, adotado o critério da “eficácia preditiva”,
quando chega o momento, sobretudo nas ciências sociais, de indagar sobre

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 749

os valores que uma determinada tradição científica instrumentaliza? Quando


chega a hora da pergunta: os “valores básicos” que fretam a tradição
neoclássica e que ela imagina transportar com grande eficácia são os únicos
valores socialmente apreciáveis? Procurando contornar indagações
incômodas como estas, Lisboa faz das tripas coração para não assumir a
existência de um núcleo rígido na tradição neoclássica. Para ele, a tradição
neoclássica é um objeto mutante, pois caracteriza-se por “uma permanente
construção de modelos alternativos, substituição das hipóteses utilizadas e
incorporação de novos problemas.” (LISBOA, 1998, p. 143) Não obstante,
como se legitima exclusivamente pela instrumentalidade, a tradição
neoclássica é um mutante sempre a serviço do imutável, dos “valores
básicos”. Significa dizer que todo empenho do autor não o livra nem
daquelas indagações, nem da mais fundamental de todas as questões:
adequação empírica para quem?

No entanto, Lisboa, em sua defesa apaixonada da tradição neoclássica, não


tem como oferecer resposta a tais indagações, uma vez que embarga, por
princípio, a tematização do papel da ontologia, dos “valores básicos”, da
“metafísica”, na prática da ciência. Na verdade, a mera formulação de tais
questões tem por pressuposto a admissão explícita do caráter insuprimível
da ontologia no conhecimento científico. Por isso, para defender uma outra
concepção de ciência que, ao contrário da oferecida por Lisboa, não subtraia
dela as questões realmente fundamentais, questões que têm a ver com o
proveito humano do saber científico, será necessário recontar a história
recente da filosofia da ciência desde outra ótica. Ao contrário de Lisboa,
defenderemos uma interpretação de acordo com a qual a falência do
programa lógico-positivista e as debilidades das teorias relativistas que
imaginam tê-lo superado decorrem justamente da sua tentativa de interditar
a ontologia da prática científica.

Antes de passarmos à próxima seção, entretanto, cumpre explicitar, ainda


que marginalmente, uma última objeção, aflorada na Introdução, à estratégia
discursiva de Lisboa. Indicamos, naquele ponto, que Lisboa atribui as
virtudes da análise teórica neoclássica ao seu uso da linguagem formal. Em
suas palavras:

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750 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

“Ao contrário do que propõem alguns críticos, a análise teórica


formalizada não tem como objetivo apenas demonstrar a
consistência interna de algum argumento verbal ou
generalizar exemplos. Do meu ponto de vista, a formalização
explicita a necessidade de hipóteses que podem passar
desapercebidas pela análise verbal, aponta dificuldades
conceituais imprevistas e sugere problemas em aberto. […]
Enquanto o argumento verbal se exercita em esconder as suas
limitações e fragilidades, a precisa especificação das
simplificações e reducionismos envolvidos na análise formal
delimita o alcance das contribuições e, sobretudo, revela suas
inevitáveis restrições.” (LISBOA, 1998, p. 116)

Parece-nos que esta fé demonstrada pelo autor no autocontrole da


consciência teórica, supostamente favorecido pela linguagem formal, é
pouco consistente com sua crítica ao positivismo lógico e a conseqüente
defesa do instrumentalismo. Como para o instrumentalismo a idéia de que
a representação adequada da realidade é uma questão irrelevante para a
ciência - cuja legitimidade resulta tão-somente de sua adequação empírica
e, associada a ela, sua eficácia prática -, não é possível em seu nome presumir
que uma linguagem especial faculta um controle e administração precisos,
uma sintonia fina, do conjunto das hipóteses (acerca da realidade) sobre as
quais se estrutura a teoria. Naturalmente, é aceitável admitir que a
linguagem formal é mais eficaz e conveniente do ponto de vista da
adequação empírica e da eficácia prática da teoria. No entanto, desde uma
perspectiva instrumentalista não tem sentido justificá-la por supostamente
permitir uma discriminação das hipóteses de acordo com a extensão e
acuidade de seu realismo. Em outras palavras, se consideramos que a
linguagem formal em geral se resolve em modelos que se validam pelo
isomorfismo que apresentam em relação a fenômenos empíricos, então sua
utilidade prática é um truísmo. Porém, de sua utilidade não se deduz, como
quer Lisboa, a propriedade de garantir o pleno controle das hipóteses
teóricas. Sob uma outra ótica, se admitirmos que o instrumentalismo tem
algum amparo do relativismo ontológico de Quine, para quem é possível
construir infinitos esquemas conceituais (ontológicos) capazes de explicar
qualquer conjunto de evidências empíricas, então não tem cabimento

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 751

sustentar a qualidade dos construtos teóricos do ponto de vista de qualquer


atributo especial de uma linguagem. Afinal, parece-nos, este é o conteúdo
da crítica de Quine à pretensão lógico-positivista de resolver os problemas
do conhecimento científico por meio de uma análise lingüística.

A TRADIÇÃO POSITIVISTA E SUA FALÊNCIA

Na filosofia da ciência predominam, nas últimas décadas, correntes que se


afirmam pela crítica ao positivismo lógico, concepção de ciência e de
explicação científica hegemônica desde o segundo quarto do século XX.
Tais críticas respondem em parte pela falência do positivismo lógico hoje
amplamente admitida, conforme ilustra o diagnóstico de Suppe:
“virtualmente tudo do programa positivista para a filosofia da ciência foi
repudiado pela filosofia da ciência contemporânea”, aludindo certamente a
autores como Kuhn, Feyerabend, Lakatos, Toulmin, entre outros. (Ibid., p.
632) No entanto, seja pela extensão (no tempo e no território das ciências)
do domínio da tradição positivista, seja pelo simples fato de as correntes
contemporâneas terem se construído como críticas aos seus dogmas centrais,
o positivismo lógico continua presente nas discussões atuais. Em primeiro
lugar, enquanto pano de fundo sobre o qual se tecem as distintas correntes
na filosofia da ciência contemporânea é referência obrigatória, embora
negativa, de suas construções teóricas. Além disso, apesar de teoricamente
demolido pelas críticas, parece que sua longa hegemonia fez decantar uma
espécie de consciência prática positivista difícil de erradicar.

Essa soma de razões talvez explique por que hoje em dia toda intervenção
no debate filosófico sobre a ciência parte de uma determinada interpretação
do positivismo lógico. Na verdade, há em circulação uma interpretação
amplamente aceita e reproduzida, sobre a qual se estrutura a maioria das
teorias alternativas, críticas do positivismo lógico. Por isso, para
compreender o debate contemporâneo na filosofia da ciência, é condição
indispensável entender a concepção de ciência e de explicação científica da
tradição positivista. Pretendemos mostrar no decorrer desta seção que a
falência do positivismo lógico está associada à sua denegação por princípio

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752 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

das questões ontológicas. Nosso objetivo é sustentar a interpretação de


que o fracasso da tradição positivista é o fracasso da impugnação à ontologia
e que, por esta razão, torna-se incompreensível que sua crítica e superação
sejam reclamadas por teorias, ligadas a Popper, Kuhn, Lakatos etc., que
também desqualificam a ontologia, ainda que de maneira oblíqua.25

Na interpretação usual da tradição positivista, seus elementos programáticos


fundamentais podem ser assim sumariados: análise lógica de seu objeto - as
ciências positivas ou empíricas. Sob esta ótica, sua concepção científica do
mundo possui duas características: por um lado, é empirista e positivista,
ou seja, o conhecimento é derivado apenas da experiência (o imediatamente
dado); por outro, consiste da aplicação de um certo método (a análise
lógica). (CALDWELL, 1982, p. 13) Por conceber o conhecimento
científico como conhecimento “empiricamente fundado”, o positivismo
lógico impõe-se forçosamente como agenda o desenvolvimento de meios
teóricos e técnicos (lógicos) capazes de assegurar que o discurso científico
satisfaça tal condição. Visto sob este prisma, consiste de uma sorte de
regulação lingüística que opera como um filtro por meio do qual só passam
proposições significativas, a saber: 1) as proposições sintéticas -
enunciados empíricos, factuais, que podem ser verificados ou falsificados
pelo experimento ou observação empírica e 2) as proposições analíticas -
enunciados que envolvem verdades lógicas, necessárias ou tautologias
(lógica e matemática), ou seja, aquelas cuja verdade é uma função de sua
estrutura lógica analítica (portanto, tautológica). É fácil entender que essa
noção de significância cognitiva implica, de imediato, a interdição das ditas
proposições “metafísicas” (ou ontológicas),26 entendidas como aquelas que
não são analíticas nem passíveis de testes empíricos. Pode-se constatar, assim,
que a impugnação da ontologia, momento central do programa lógico-
positivista, se apresenta sob a forma de uma regulação lingüística
presumidamente destinada a certificar que o conhecimento científico comece
com observação empírica e termine por ela abonado, tenha na realidade

25 Ver DOW (1997).


26 Sobre a identificação de ontologia e metafísica promovida pelo positivismo, ver LUKÁCS (1984,
p. 349).

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 753

empírica início e fim, e percorra, portanto, o circuito virtuoso e austero da


tradição positivista de se ater aos “fatos”.

Tudo isso depende, como vimos, da possibilidade de discriminar entre


proposições significativas e não-significativas. Discriminação que, é claro,
está condicionada à definição de critérios. Todavia, a própria orientação
empírica do programa traz consigo um critério latente, mais exatamente o
princípio da verificação. Sob tal critério, só seriam significativas proposições
verificáveis pela evidência observacional.27 De acordo com o princípio da
verificação, portanto, as proposições possuem significado apenas quando
são passíveis de teste (empírico), por meio do qual seria possível estabelecer
sua verdade ou falsidade.28

Não obstante, o critério de (completa) verificação pela evidência empírica


logo se revelou extremamente restritivo. As proposições universais, próprias
do discurso científico, posto que necessárias para a especificação de leis
científicas gerais, obviamente não teriam como ser completamente
verificadas pela evidência observacional. Enfim, não há como justificar a
adoção de um critério de significância cognitiva, formulado justamente para
distinguir o empreendimento científico, que desqualifica o tipo de
proposição (universal) que caracteriza a ciência. É trivial constatar que uma
proposição universal não pode ser verificada de maneira conclusiva porque,
precisamente por se referir a infinitas instâncias, não há como assegurar
que não será contraditada a despeito do número de instâncias que já a
tenham confirmado. Trata-se, nesse caso, do sempre mencionado problema
da indução, originalmente exposto por Hume.29 Não vem ao caso aqui
detalhar as propostas elaboradas com o objetivo de contornar este problema
e tampouco interessam seus pormenores técnicos. Deve-se apenas ressaltar

27 Nas primeiras formulações do critério da verificação, atribuídas a Hempel, requeria-se que uma
sentença fosse completamente verificada, ao menos em princípio, pela evidência empírica para
possuir significado cognitivo. Embora o critério da testabilidade tenha sofrido alterações ao lon-
go do tempo, a insistência no caráter decisivo da evidência observacional está presente em todas
as definições alternativas de critério de significância cognitiva.
28 Sobre a necessidade da testabilidade das teorias, ver HUTCHISON (1994, p. 158-9).
29 Para uma exposição sintética e competente do “problema da indução” de Hume, ver SUPPE
(1977, p. 625).

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754 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

que tais tentativas envolviam necessariamente algum expediente para relaxar


a exigência de completa verificação empírica das proposições. Requisito do
qual dependia, nunca é demais insistir, o propósito de depurar da ciência as
proposições cognitivamente não significativas (“metafísicas”).

A proposta que acaba por prevalecer substitui o critério da verificação pelo


critério da confirmação. Tal substituição tem a seguinte implicação: em
lugar de se adotar a verdade das proposições universais como conceito
absoluto, subentendida na noção de completa verificação pela evidência
empírica, aceita-se o conceito relativo da confirmação. Sendo impossível
verificar empiricamente as infinitas instâncias de uma lei universal, o critério
da confirmação deflaciona tal exigência e admite que a ocorrência sucessiva
de instâncias positivas aumenta seu grau de confirmação, indicativo do grau
de confiança da lei, teoria ou proposição. Expressa nesses termos, a mudança
de critério poderia parecer reduzir-se a uma questão de pormenor, mera
sutileza semântica. Mas esta aparência é totalmente enganosa.30 Na verdade,
trata-se de uma alteração substantiva, até dramática, sobretudo quando se
leva em conta que o objetivo programático da tradição positivista era o de
demarcar a ciência, o conhecimento fundado na experiência, do saber não
científico, “metafísico”. Sem dúvida, é grande a distância a separar a intenção
inicial de distinguir entre conhecimento legítimo e proposições “metafísicas”
da ampla aceitação de um critério de significância cognitiva (confirmação)
incapaz de possibilitar tal discriminação.

O critério da confirmação, para enfatizar, impossibilita a eliminação


definitiva dos chamados elementos “metafísicos” do discurso científico. Pela
lógica deste critério, se em uma proposição, antes tida como científica -
porque confirmada pela evidência disponível -, posteriormente se
identificam elementos “metafísicos”, em virtude de ter sido refutada por
novas evidências empíricas, devemos admitir, ao menos em princípio, que
o mesmo pode ocorrer no futuro com qualquer proposição tida
correntemente como científica. O que equivale a afirmar que todo
conhecimento científico é provisório, incompleto e, por isso, está sempre

30 Ver CALDWELL (1982, p. 25) para apreciação semelhante.

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 755

constituído por elementos e noções “metafísicas” - não empiricamente


fundadas. O critério da confirmação, portanto, está em flagrante contradição
com o elemento programático central do positivismo lógico: a impugnação
da ontologia.

É conveniente sublinhar neste particular a conexão existente entre a


mudança do critério de significância cognitiva, da verificação para a
confirmação, e a alteração da estrutura e função das teorias científicas e dos
termos teóricos. Prescindindo das tecnicalidades aqui envolvidas, pode-se
afirmar que a mudança de critério de significância decorre dos problemas
intratáveis envolvidos na tentativa de estabelecer uma relação biunívoca
entre termos teóricos e observacionais pretendida pelo programa original
do positivismo lógico.31 Naturalmente, esta noção de que os termos teóricos
são diretamente conectados aos termos observacionais por uma espécie de
algoritmo (regras de correspondência) implica a condição de uma verificação
completa dos termos teóricos, por princípio sempre redutíveis a termos
observacionais, condição esta que colapsa no problema da indução, antes
aludido. Na solução para tal impasse acaba predominando a formulação de
uma nova descrição da estrutura do discurso científico, incluindo o papel
dos termos teóricos, conhecido como método hipotético-dedutivo (H-D),
atribuído a Carnap e Hempel. (CALDWELL, 1982, p. 24)

De acordo com esta nova abordagem, a “estrutura formal das teorias científicas
reduz-se a um sistema hipotético-dedutivo que nada mais representa do que um
cálculo lógico-axiomático. Sob tal ótica, a teoria é composta por axiomas com
sentenças originárias (denotando observáveis ou entidades teóricas) e teoremas
deles derivados dedutivamente.” (CALDWELL, 1982, p. 25) Tal estrutura,
evidente, é necessariamente abstrata, uma vez que seu significado está
condicionado a uma interpretação empírica. Para a estrutura teórica possuir
significado empírico deve-se introduzir novas sentenças (em geral derivadas)
traduzidas na linguagem observacional. Este tipo de estrutura apresenta

31 De acordo com Suppe, na tradição positivista “o único discurso significante era aquele construído em
termos da linguagem fenomênica ou usando termos que fossem abreviações para (i.e., que pudessem ser
parafraseados equivalentemente como) expressões na linguagem fenomênica; quaisquer assertivas que
não cumprissem estas condições eram considerados nonsense metafísico.” (SUPPE, 1977, p. 13)

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756 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

uma espécie de hierarquia de hipóteses: “as hipóteses de nível superior referem-


se a entidades teóricas e as de nível inferior, deduzidas da teoria, descrevem os
fenômenos observáveis.” (Ibid., p. 25-26) Dada esta hierarquia, pode-se testar
a teoria a partir das hipóteses de nível inferior. De todas as características
do método H-D, merece destaque o fato de suprimir o requisito de relação
biunívoca direta entre os termos teóricos constitutivos da teoria e os
observáveis ou empíricos. Nele os termos teóricos e os empíricos só
adquirem significado no complexo total do sistema teórico (ou modelo).
Em conseqüência, o “teste” ou validação empírica da teoria passa a ser
indireto. Submeter uma teoria a teste, neste caso, não significa testar cada
termo teórico isoladamente (ou seja, reduzi-lo a termos empíricos), mas
sim avaliar a significância cognitiva do complexo teórico como um todo.
As instâncias de confirmação da teoria emprestam, assim, significado apenas
indireto aos termos teóricos constitutivos do sistema. O teste de uma teoria
representa a comparação das conseqüências dela deduzidas (predições) com
os dados empíricos. Como o teste é da teoria como um todo e não de cada
termo teórico, o método H-D do discurso científico admite a existência de
termos indefinidos ou parcialmente definidos do ponto de vista
observacional. (Ibid., p. 25-26)32

Sob tal descrição, a estrutura teórica apresenta claramente um maior grau


de flexibilidade, uma vez que qualquer refutação pelos dados não
necessariamente implica a rejeição da teoria como um todo. Sempre há a
possibilidade de redefinição ou alteração dos termos teóricos de modo a
ajustar a estrutura teórica à evidência observacional. O método hipotético-
dedutivo, por essa razão, torna ainda mais evidente o distanciamento das
últimas formulações do positivismo lógico em relação aos propósitos
originais da tradição positivista, a saber: depurar a linguagem da ciência
dos elementos “metafísicos”. No método H-D, como vimos, há uma total
permissividade com aquilo que de início se pretendia embargar. De fato,
neste método as teorias científicas contêm termos teóricos cuja conexão

32 Essa descrição do método H-D, que sintetizamos com base em Caldwell, pode ser apreciada com
mais detalhe em alguns textos do livro compilado por SUPPE (1977), aparentemente a fonte das
considerações de Caldwell.

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 757

com os termos observacionais é insondável. Se de início a tradição acreditava


ser possível falar da verdade de uma teoria, entendida como correspondência
com os fatos, com o H-D suprime-se a base para este tipo de postulação. A
sucessiva confirmação de uma teoria pelas instâncias (dados) nada mais
informa sobre a verdade da teoria. Não se pode assegurar, na interpretação
do método H-D, que os seus termos teóricos denotam entidades, estruturas,
objetos etc. reais, aqui entendidos como empíricos. Em virtude disso, o
teste empírico bem-sucedido de uma teoria não é suficiente para garantir
que ela é verdadeira ou se aproxima da verdade. Em uma palavra, o teste
empírico é inconclusivo para determinar o caráter realista ou não das teorias
científicas. O método H-D, quando interpretado adequadamente, sugere
apenas que o sistema teórico procura apreender e representar as relações
funcionais dos fenômenos com o objetivo de descrever, se bem-sucedido, o
comportamento provável dos fenômenos no futuro. O teste empírico, neste
caso, seria o procedimento apropriado capaz de avaliar a adequação do
sistema teórico aos fenômenos observáveis de interesse. Quando positivo,
o teste empírico seria assim mero índice do isomorfismo entre sistema
teórico e fenômenos empíricos.

O método H-D vem sempre associado a uma teoria da explicação científica


sob a forma de modelos denominados covering law: dedutivo-nomológico
(D-N) ou indutivo-probabilístico (I-P).33 Tais modelos exibem a seguinte
estrutura: (1) condições iniciais e (2) leis universais, que compõem os
axiomas (explanans), sendo (3) a explicação (explanandum) deduzida
logicamente dos axiomas. A explicação de um fenômeno ou fato consiste
então de sua subsunção à lei universal contida no explanans, derivando-se
daí a expressão covering law. Com relação ao aspecto acima destacado – a
possibilidade de o discurso científico eliminar termos, idéias, noções etc.
não-observacionais (não-empíricos) -, o modelo D-N (ou I-P) não reclama
qualquer qualificação adicional, por ser a simples expressão da teoria da

33 O modelo indutivo probabilístico (I-P) é uma espécie de versão fraca do modelo D-N, utilizado
para os casos em que as leis denotam fenômenos de caráter probabilístico. No contexto deste
artigo não trataremos das especificidades do modelo I-P. Para um tratamento detalhado ver
SALMON (1984, 29p.).

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758 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

explicação científica pressuposta pelo método H-D. Neste sentido, apresenta


igualmente os diversos problemas exibidos pelo H-D, sobretudo no que
diz respeito às questões ontológicas. Como sublinha Norris, a teoria
dedutivo-nomológica, que procura explicar os dados observacionais
subsumindo-os a alguma ordem superior (metalingüística) de relações de
vinculação lógica, está sujeita às objeções céticas inspiradas em Quine, para
quem o complexo teórico está predicado a um esquema ontológico em
última instância eletivo. (NORRIS, 1996, p. 157)34 Isto equivale a afirmar
que o ajuste dos dados observacionais propiciado por uma teoria reduz-se a
uma questão de preferência por tal ou qual esquema ontológico. Quando
se examina, portanto, o desenvolvimento da agenda da tradição positivista,
chega-se ao resultado paradoxal de uma filosofia que se obstinava, de início,
a eliminar qualquer resquício de “metafísica” (ontologia) do discurso
científico e que, por fim, se apresenta sob a forma de explicação científica
(D-N) que franqueia o discurso científico a qualquer ontologia.

É fundamental salientar, tendo em vista o objetivo deste breve exame do


positivismo lógico, que aqui se está diante de uma concepção que transita
da postulação da possibilidade e necessidade da eliminação de colocações
ontológicas para outra postulação que vindica justamente o oposto. De
fato, no modelo D-N, como se viu, toda teoria científica não pode evitar o
recurso a termos, elementos, noções, idéias ontológicos. Só que essa
admissão do caráter ineliminável da ontologia no discurso científico é
imediatamente negligenciada na medida em que sua presença é considerada
insubstancial. Essa negligência, que é controversa, mas sem conseqüências
imediatas no caso das ciências naturais, converte-se em absurdo para as
ciências sociais, Economia incluída. Neste último caso, o objeto não é imune
às concepções que dele se tem. Em outros termos, se o modelo D-N de fato
descreve como opera a explicação em uma ciência social (Economia, por
exemplo), as proposições desta ciência, inclusive as “metafísicas”, passam a
ter influência direta sobre a realidade e as práticas sociais por constituírem
uma determinada inteligibilidade do mundo sócio-humano que, com a

34 Ver, a esse propósito, nota 39 adiante.

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 759

chancela da ciência, ganha credibilidade social. O problema aqui, é preciso


frisar, não reside no fato de que uma determinada concepção do mundo
(no caso, social) subjacente a certa teoria científica seja ontologicamente
absurda, pois a história das ciências naturais e sociais ilustra com fartura tal
possibilidade. O problema está precisamente no fato de que uma teoria da
explicação científica, uma teoria, portanto, que procura dar conta da
especificidade do discurso científico, negligencie ou mesmo oblitere por
completo a dimensão ontológica do discurso da ciência, seu alcance e suas
repercussões na prática social.

Compreendido desse modo, o modelo D-N, quando aplicado ao mundo


social, gera noções no mínimo controversas.35 Pela mecânica do modelo,
do mundo sócio-empírico seriam derivadas as estruturas axiomáticas que,
retroativamente, se converteriam em teorias em conformidade com a
configuração social empiricamente constatável. Porém, se de acordo com a
lógica do modelo as teorias são sempre normativas, a consonância entre
teoria e realidade, ou sua corroboração empírica, seria um resultado a priori
da própria teoria. Em outras palavras, se a teoria determina a priori como é
a configuração do mundo e, com isso, determina igualmente aquilo que é
relevante (dados, eventos, objetos, relações) e ao mesmo tempo prescreve
os critérios de corroboração empírica, parece evidente que se está então
diante de uma flagrante circularidade. Circularidade que, como assinalamos
anteriormente, é mais grave no caso da realidade social do que no caso do
mundo natural porque, de maneira velada, coleta valores sociais e os eleva
a critérios que retroativamente legitimam a teoria.

Portanto, o problema geral da tradição positivista, para o qual estamos


chamando a atenção, é a circularidade insolúvel da qual fica prisioneira
diante de sua proposta inicial de construir um discurso científico livre de
questões “metafísicas” (ontológicas). O próprio desenrolar de sua agenda
evidencia a impossibilidade de tal cometimento. Por isso mesmo, a tradição

35 Para uma objeção à aplicação do modelo D-N à economia realizada no interior da tradição
neoclássica, ver HUTCHISON (1994).

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760 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

sempre esteve a negar apenas nominalmente a ontologia, falsa profilaxia a


pretexto da qual destilava a de sua preferência. Apesar desse impasse
(impossibilidade de “purificar” o discurso científico) e dessa incongruência
(sempre pressupor tacitamente uma ontologia) a que chega o
desenvolvimento da tradição positivista, há quem imagine ter superado o
impasse transformando incongruência em virtude. A tradição do
crescimento do conhecimento, que de acordo com a literatura responde
pela derrocada do positivismo lógico, tem como ponto de partida
precisamente a inconsistência apontada. Inconsistência esta que pretendeu
contornar de forma previsível: prescrevendo um relativismo ontológico.
Admitida a impossibilidade de suprimir a ontologia, relaxar e adotar a mais
conveniente, tal parece ser a lógica do argumento. É o que pretendemos
mostrar em seguida.

A TRADIÇÃO DO CRESCIMENTO DO CONHECIMENTO

A redefinição do programa do positivismo lógico, com o reconhecimento


da presença incontornável da “metafísica” (ontologia), é percebida e
tematizada por autores que transitam, mesmo que criticamente, no inte-
rior desta tradição, dos quais destacamos Popper, Kuhn e Lakatos. No caso
de Popper, ao propor a falsificação como critério de certificação da
cientificidade de uma estrutura teórica, sobressai a ênfase no caráter
provisório do conhecimento científico já pressuposto, como vimos, na
substituição do critério da verificação pelo da confirmação. De acordo com
Popper, a nenhuma teoria ou conjunto de proposições pode ser conferido o
estatuto de verdade, mesmo que provisoriamente. Como não é possível
esgotar toda a bateria de testes concebíveis (problema da indução), o
máximo que se pode dizer de uma teoria é que ela é falsa, quando refutada
pelos dados empíricos. Nestas circunstâncias, as teorias que resistem aos
testes realizados são ditas corroboradas, consideradas como científicas até
que sejam falsificadas. Como adota o método H-D, Popper naturalmente
admite que as teorias científicas não estão livres da “nefasta” intrusão de
noções “metafísicas”, de valores e, portanto, de ideologia, mesmo que seja

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 761

utilizado o mais complexo conjunto de regras metodológicas.36 Porém, ao


contrário da confiabilidade crescente das teorias implicada pelo critério da
confirmação, de acordo com a dinâmica popperiana as teorias são
construídas para serem refutadas. No primeiro caso, a idéia envolvida é a
de que a ciência é um processo cumulativo e, no caso de Popper, fica explícito
que a ciência progride por um processo de refutações sucessivas. Num caso,
a ciência ou se aproxima progressivamente da verdade (realismo empírico)
ou apresenta uma adequação empírica crescente (instrumentalismo) e, no
outro, nunca se pode afirmar nada sobre a verdade da teoria, muito embora
Popper mantenha a verdade como princípio regulador da atividade
científica.37 Com isto se percebe que a concepção popperiana da dinâmica
da ciência é distinta da implícita no positivismo lógico. Para este autor, a
ciência é progressiva, porém não monotônica, pela simples razão de evoluir
por meio de refutações.

Enquanto alternativa crítica ao confirmacionismo lógico-positivista, o


falsificacionismo popperiano é manifestamente insuficiente.38 Em primeiro
lugar, como adota o método H-D, sua teoria está predicada à delimitação
do domínio empírico que servirá de base para o processo de falsificação.
Desse modo, sua teoria fica sujeita ao mesmo tipo de objeção dirigida ao
procedimento do positivismo lógico que se propunha a criticar, a saber:
impossibilidade de estabelecer uma distinção clara entre termos teóricos e
termos observacionais. Em segundo lugar, essa admitida ambigüidade en-
tre teoria e observação (fatos) equivale a dizer que é sempre possível

36 Segundo Popper: “é, praticamente, impossível conseguir a eliminação dos valores extra-científicos da
atividade científica. A situação é semelhante com respeito à objetividade; não podemos roubar o partidarismo
de um cientista sem também roubá-lo a humanidade, e não podemos suprimir ou destruir seus juízos de
valores sem destrui-lo como ser humano e como cientista. Nossos motivos e até nossos ideais puramente
científicos, inclusive o ideal de uma desinteressada busca da verdade, estão profundamente enraizados em
valorações extra-científicas.” (POPPER, 1978, p. 25)
37 “A importante idéia metodológica que podemos aprender de nossos erros não pode ser entendida sem a
idéia reguladora de verdade; qualquer erro simplesmente consiste em um fracasso em viver de acordo com
o padrão da verdade objetiva que é a nossa idéia reguladora. Denominamos ‘verdadeira’ uma proposição
se ela corresponde aos fatos ou se as coisas são como descritas na proposição. É isto que é chamado de conceito
absoluto ou objetivo de verdade que cada um de nós usa constantemente. A reabilitação bem sucedida
deste conceito absoluto de verdade é um dos resultados mais importantes da lógica moderna. […] Esta
observação alude ao fato de que o conceito de verdade tem sido desprestigiado. Realmente, este foi o quadro
que produziu as ideologias relativistas dominantes em nosso tempo.” (POPPER, 1978, p. 27-8)
38 Ver NORRIS (1996, p. 157).

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762 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

manipular a teoria, com adição de hipóteses ad hoc, para promover sua


adequação aos dados. Em conseqüência disto, o critério da falsificação
demanda um conjunto extra de regras destinado a coibir esta prática ou
imunizar o processo de falsificação destes procedimentos convencionalistas.
Com isto, Popper reconhece a tese de Duhem-Quine,39 que pode ser
enunciada da seguinte forma: a inexistência de experimentos cruciais para
o teste de uma teoria abre espaço para a adoção de argumentos
convencionalistas.

Portanto, a consistência do falsificacionismo requer um conjunto de regras


metodológicas com a finalidade de evitar a adoção de estratagemas
convencionalistas (de imunização) ou hipóteses ad hoc. Com tal propósito,
o falsificacionismo popperiano vem servido com diversas regras
metodológicas que, em última análise, teriam por objetivo evitar que as
teorias se tornem infalsificáveis e que as teorias já falsificadas sejam
modificadas por intermédio da introdução de hipóteses ad hoc de modo a
contornar a falsificação.40

Apesar da tentativa de Popper de salvar sua teoria da ciência por intermédio


da conjugação do falsificacionismo com regras metodológicas
anticonvencionalistas, solução essa que suscita críticas específicas,41 as

39 De acordo com Norris, o argumento de Quine “contra o empirismo lógico e outras variantes do
dualismo esquema/conteúdo, teoria/observação ou analítico/sintético baseia-se na idéia de que há um
número infinito de maneiras possíveis de ajustar uma teoria – ou redistribuir seus predicados – de modo
a levar em conta algum problema surgido no decorrer da pesquisa científica. E, por outro lado, há sempre
a possibilidade de interpretar o dado (ou proposição observacional) anômalo de uma maneira que resolve
qualquer conflito percebido com as verdades teóricas estabelecidas. Segue-se daí - na explicação holística
de Quine - que nenhuma proposição singular (nenhum item de teoria ou evidência) pode ser jamais
conclusivamente verificada ou falsificada. Porque, se o significado de uma proposição é dado por suas
condições de verdade, e se essas últimas estão entrelaçadas com o inteiro ‘tecido’ das crenças correntemente
aceitas, então se torna impossível fixar qualquer limite para a série de possíveis ajustamentos destinados a
preservar a verdade.” (NORRIS, 1997, p. 69) Ver também NORRIS (1996, capítulo 4).
40 Dentre as regras metodológicas propostas por Popper destacamos as seguintes: “adotar tais regras
que venham a assegurar a testabilidade de enunciados científicos; isso quer dizer sua falseabilidade; (...)
em caso de ameaça ao nosso sistema, não o salvaremos mediante nenhum tipo de estratagema
convencionalista; (...) somente são aceitáveis aquelas [hipóteses auxiliares] cuja introdução não venha a
diminuir o grau de falseabilidade ou testabilidade do sistema em questão, mas sim, aumentá-lo.” (BLAUG,
1993, p. 56-57)
41 Para muitos comentadores, com tal procedimento Popper transita de uma teoria descritiva da
ciência para uma teoria prescritiva para a ciência.

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 763

objeções mais contundentes à sua teoria referem-se à questão da delimitação


do domínio empírico. Tais objeções dizem respeito à ambigüidade entre
teoria e observação e aplicam-se tanto a Popper quanto à teoria com a qual
polemiza (positivismo lógico). Ambas as perspectivas constroem o
argumento em um mesmo terreno, dado que ambas partem do pressuposto,
subjacente ao H-D, de que as teorias são construídas com o objetivo de
serem empiricamente testadas (verificadas, confirmadas ou falsificadas). Por
essa razão, não conseguem oferecer resposta às criticas que sublinham a
impossibilidade de distinguir entre termos teóricos e observacionais.
(NORRIS, 1996, p. 157)

A título de recapitulação, vimos de início que, no positivismo lógico, a


suposta neutralidade da observação era o elemento central para a pretendida
distinção entre ciência e “metafísica” (ontologia). Vale dizer, a observação
é neutra e a teoria por ela verificada estaria conseqüentemente livre de
quaisquer elementos ontológicos. Ainda no interior do positivismo lógico,
com a mudança do critério da verificação para o da confirmação, a postulada
neutralidade da ciência é posta em dúvida. Nesta nova roupagem da tradição
positivista é reconhecida a impossibilidade de eliminar definitivamente os
valores ontológicos da prática da ciência, embora se considere que sua
influência pode se reduzir com as sucessivas instâncias de confirmação. O
passo seguinte é dado por Popper, quando constata que a tentativa de
eliminação dos valores ontológicos, segundo ele extracientíficos, da prática
da ciência é uma quimera. Apesar da pretendida “imunização”, mediante a
prescrição de regras metodológicas constitutivas do falsificacionismo
popperiano, a prática da ciência não pode prescindir da intrusão dos valores
extracientíficos. Isto porque as próprias prescrições anticonvencionalistas -
que serviriam ao propósito de impedir que a lógica da ciência esteja sob
influências “indevidas” (sócio-político-ideológicas), já são uma afirmação
de valores, no caso, cientificistas - pressuporiam um desenvolvimento
idealizado da ciência livre das vicissitudes da realidade social.

Com os filósofos do crescimento do conhecimento científico, dos quais


destacamos Kuhn e Lakatos, chega-se ao desfecho desta história da tentativa
de demarcação entre científico e não científico e o conseqüente expurgo da
“metafísica” (ontologia). Trata-se de um desfecho previsível das incongru-

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764 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

ências que emergem no próprio desenvolvimento da tradição positivista,


conforme já salientamos. Com estes filósofos da ciência, o objetivo inicial
do programa positivista é declarado insustentável e a ontologia, sob
diferentes denominações, passa a ser considerada elemento constitutivo do
discurso científico. Em decorrência, caem no esquecimento as antigas e
persistentes exortações à neutralidade axiológica da ciência. Entretanto,
quando seria de se esperar que tal inflexão promovesse a sua reabilitação, a
ontologia é novamente suprimida, agora sob a forma de relativismo. No
que se segue, examinamos brevemente o pensamento de Kuhn e Lakatos
para explicitar esta supressão.

A enorme difusão do pensamento de Kuhn dispensa uma apresentação mais


extensa. Como se sabe, Kuhn sugere que qualquer ciência particular existe
e se desenvolve na medida em que delimita um campo e métodos específicos
de investigação. Neste sentido, o conjunto sistemático de conhecimentos
sobre determinado assunto desfruta necessariamente, durante o período
em que exerce hegemonia, do estatuto de ciência “normal”. A história do
progresso da ciência consiste, de acordo com esta visão, da história das
revoluções por meio das quais cada ciência “normal” se instaura e vai sendo
sucessivamente suplantada. As transformações aludidas pela concepção de
Kuhn, vale dizer, as que dão lugar à superação de uma ciência “normal”,
referem-se substancialmente às concepções gerais acerca do objeto da
ciência em questão. Em outros termos, sendo o objeto neutro em relação
a todos os esforços do conhecimento, nada acontece com ele com a
passagem de uma ciência “normal” para outra. Isso significa que a noção
de ciência “normal” está predicada ao que Kuhn denominou “paradigma”.
Após diversas tentativas, Kuhn parece ter-se definido pelo seguinte conceito
de paradigma ou matriz disciplinar: “são constelações de crenças, pressuposições,
heurísticas e valores que unem cientistas que trabalham em alguma disciplina
[…] e consistem de quatro componentes principais: (1) ‘generalizações simbólicas’,
(2) compromissos metafísicos e heurísticos, (3) valores e (4) exemplares.”
(HAUSMAN, 1994, p. 198)

Sob tal perspectiva, as revoluções científicas são, no essencial, alterações


substantivas de paradigmas sobre os quais uma ciência se sustenta. (PHEBY,
1988) Nas palavras de Hands:

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 765

“A afirmação básica de Kuhn é a de que na ciência madura


os membros de uma dada comunidade científica estão sempre
cativos de um paradigma coletivamente compartilhado. Ao
‘sustentar’ um certo paradigma, o que os cientistas ‘vêem’, ou
não ‘vêem’, é determinado pelo paradigma. As observações
não são independentes e ‘livres de teoria’. Ao contrário, são
produtos do paradigma e são ‘carregadas de teoria’.”
(HANDS, 1994, p. 77)

Fica evidente nesta citação de Hands que, na concepção de Kuhn, a


ontologia é elemento constitutivo da prática científica e, portanto, não pode
ser descartada como dimensão extracientífica.42

No que diz respeito à interpretação kuhniana do progresso da ciência, vale


ressaltar que sua dinâmica se manifesta na mudança de paradigma. A
passagem da ciência “normal” à ciência revolucionária e a conseqüente
modificação de paradigma representariam um salto qualitativo no
conhecimento científico. Durante a etapa de ciência “normal” acumular-se-
iam anomalias que, a partir de determinado momento, tornar-se-iam
intratáveis dentro do paradigma vigente. O paradigma revolucionário
responderia às questões sem solução no paradigma decadente desde uma
nova perspectiva e, adicionalmente, suscitaria questões qualitativamente
novas.

Essa dinâmica multiparadigmática é objeto de intensos embates na filosofia


da ciência. Tais disputas giram em torno do reconhecimento de que a noção
de superação de um paradigma por outro envolve uma necessária
incomensurabilidade entre eles. Se as teorias em Kuhn são fundadas sobre
paradigmas e, em conseqüência, o significado de seus termos é interno ao
paradigma, segue-se que a revolução científica se reduz, em última análise,

42 Assim interpretado, o programa da tradição positivista se mostra claramente insustentável, uma


vez que a própria demarcação do objeto e a definição do método de investigação são considera-
das internas ao paradigma. O modelo D-N ilustra bem este ponto. Sob a ótica kuhniana, nele
tanto os axiomas e a explicação quanto os próprios dados que permitem o teste da estrutura
teórica são enunciados a partir de crenças, valores, técnicas etc. Em síntese, são determinados pela
ontologia implícita no paradigma.

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766 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

a uma sucessão de teorias incomensuráveis, posto que baseadas em


paradigmas que não admitem comparação. Um relativismo extremo,
acolhido e repudiado em diferentes domínios exteriores à filosofia da ciência,
é decorrência óbvia dessa idéia. Enquanto o próprio Kuhn parece ter
procurado amenizar este relativismo explícito de sua concepção, há filósofos,
como o pragmatista americano Richard Rorty, que o levam às últimas
conseqüências. (DUAYER, 1994, Cap. 2, p. 28)43

Devemos notar que a incomensurabilidade é um corolário da proposta


metodológica de Kuhn. De tal corolário, parece se derivar a desqualificação
das teorias ou correntes que afirmam a possibilidade de a ciência capturar a
realidade. Sob a ótica kuhniana, toda teoria que presuma uma compreensão
mais fidedigna, adequada, apropriada etc. de um determinado complexo de
fenômenos estaria incorrendo numa inconsistência lógica. A rigor, assim
procedendo, estaria tentando se alçar à posição de metaparadigma, capaz,
portanto, de aferir as teorias concorrentes. Desejo em tudo inconsistente
com a própria noção de incomensurabilidade e de revolução científica.
Qualquer que seja o critério em que se baseasse para afirmar sua
superioridade sobre as rivais – supostamente objetivo, ou assumidamente
subjetivo - estaria predicado a determinado paradigma (ontologia).
Conjunto de noções que equivale, em síntese, a assumir a posição de um
inescapável relativismo ontológico. Trata-se aqui, para enfatizar, de uma
supressão da ontologia sob a forma de relativismo.

Assumida a incomensurabilidade entre paradigmas, resulta incompreensível


a explicação do progresso da ciência. Não havendo como comparar duas
teorias tidas como incomensuráveis, não se pode afirmar se houve ou não
progresso ou crescimento do conhecimento científico na passagem de um
paradigma para outro, a não ser, é claro, do ponto de vista puramente
pragmático, de adequação empírica. Esta debilidade da proposta kuhniana
é objeto da crítica de Lakatos, que procura superá-la por meio de uma
conciliação das propostas metodológicas de Kuhn e Popper. Lakatos

43 Rorty, que se auto-intitula kuhniano de esquerda, refuta a crítica de que o kuhnianismo conse-
qüente é relativista. (RORTY, 1991, p. 23-28)

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 767

desenvolve um assim chamado falsificacionismo sofisticado, que tem como


objetivo “não só fornecer prescrições de como a ciência deve proceder, como prover
uma base para uma reconstrução racional descritiva da evolução científica.”
(CALDWELL, 1982, p. 86)44

A formulação de Lakatos gira em torno do conceito de programa de


pesquisa científica (PPC), “definido por um conjunto de regras, ou heurísticas,
que rege a pesquisa realizada no interior do programa.” (BACKHOUSE, 1994,
p. 174) Na abordagem de Lakatos, um PPC é composto de dois elementos:
um núcleo central e um cinturão protetor. De acordo com Blaug:

“O núcleo central é tratado como irrefutável, devido à ‘decisão


metodológica de seus protagonistas’, e contém, além de crenças
puramente metafísicas, uma ‘heurística positiva’ e uma
‘heurística negativa’ que consistem, na realidade, em uma
lista de ‘sims’ e uma lista de ‘nãos’. O cinturão protetor contém
as partes flexíveis de um PPC, e é aqui que o núcleo central se
combina com as hipóteses auxiliares para formar as teorias
específicas a serem testadas, com os quais o PPC ganha sua
reputação científica.” (BLAUG, 1993, p. 75)

Talvez fosse possível sugerir, neste particular, que a proposta de Lakatos


consiste de uma matização da teoria de Kuhn. Em sua crônica do debate
entre Kuhn e Lakatos, Blaug lembra que Kuhn responde às “calúnias” de
Lakatos sobre sua teoria relativizando as diferenças conceituais entre suas
concepções e as de Lakatos. (BLAUG, 1993, p. 77)45

44 A teoria de Lakatos envolveria um falsificacionismo sofisticado, quando contraposto ao de Popper,


porque demonstra ser implausível imaginar que as teorias sejam submetidas isoladamente aos
testes de falsificação. Caso a ciência assim procedesse, teorias científicas fecundas, porém incipientes,
seriam facilmente descartadas. Por essa razão, como mostraremos em seguida, Lakatos procura
descrever o progresso da ciência como uma constante tentativa de refutação empírica de progra-
mas de pesquisa (tradições) e não de teorias isoladas. (SUPPE, 1977, p. 660)
45 O paralelo entre as duas teorias é freqüente na literatura. Hausman, por exemplo, concede que
Lakatos, “muito embora negligencie o que Kuhn denomina ‘valores’ e pouco mencione a questão dos
‘exemplares’, apresenta ‘uma explicação da estrutura global da ciência semelhante à de Kuhn’.”
(HAUSMAN, 1994, p. 201) Ver também, neste particular, BACKHOUSE (1994, p. 175) e
SUPPE (1977, p. 660-1).

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768 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

A despeito de eventuais semelhanças, é preciso frisar que Lakatos procura


explicitamente conjugar incomensurabilidade entre paradigmas (ou núcleos
centrais) e noção de progresso científico, a partir de uma interpretação par-
ticular deste último conceito. A noção de progresso de Lakatos refere-se
apenas ao movimento interno de determinado programa de pesquisa
científica. Como o núcleo rígido deve possuir uma necessária estabilidade,
o progresso consistiria basicamente de modificações ocorridas em seu
cinturão protetor. Os programas de pesquisa são definidos em termos de
mudanças teóricas (problem shifts). Desse modo, um PPC pode ser
representado por uma série de teorias T 1, T 2,…, sendo esta sucessão
resultado, por exemplo, da introdução de hipóteses auxiliares destinadas a
acomodar eventuais anomalias. Como tais modificações, entretanto, nem
sempre são válidas, Lakatos distingue entre PPC degenerativo e PPC
progressivo. Distinção esta estabelecida para coibir a prática de acomodações
ilícitas (estratagemas de imunização). Para ser considerado teoricamente
progressivo, um programa de pesquisa científico deve exibir a seguinte
dinâmica: suas mudanças teóricas (problem shifts) sempre implicam um maior
conteúdo empírico em comparação com as teorias precedentes. Além de
teoricamente progressivo, o programa tem de ser empiricamente
progressivo, ou seja, deve corroborar o conteúdo empírico excedente
(sobreviver às tentativas de falsificação). O PPC degenerativo, por outro
lado, caracteriza-se pela adoção de hipóteses ad hoc que visam contornar os
eventuais problemas empíricos que ocorram. Tal distinção entre os
programas degenerativo e progressivo converte-se em critério de
demarcação entre ciência e não-ciência - o PPC degenerativo é considerado
não-científico.

A rigor, como se vê, Lakatos procurou identificar um critério que permitisse


dar conta da noção de progresso, a despeito da incomensurabilidade dos
PPCs. (SUPPE, 1977, p. 661) O critério considerado subentende,
evidentemente, um relativismo ontológico - de forma mais contundente e
explícita do que fizera Kuhn -, como fica patente na seguinte apreciação de
Suppe: “Lakatos nega a possibilidade de confirmar indutivamente uma teoria e
considera que todos os núcleos rígidos dos programas de pesquisa são provavelmente
falsos, posto que nenhuma quantidade de testes das mudanças de questões de um

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 769

programa de pesquisa pode determinar a validade de suas teorias. Portanto, é


irracional supor que a teoria do PPC é verdadeira. Razão pela qual a ciência
deveria encorajar a proliferação de programas de pesquisa rivais.” (SUPPE,
1977, p. 663-4)46

Considerados, portanto, os mesmos autores e lances da história da filosofia


da ciência evocados por Lisboa para justificar sua interpretação e, por
extensão, o instrumentalismo da tradição neoclássica, foi possível sacar uma
leitura diametralmente oposta. Acreditamos ter mostrado nesta reexposição,
e em patente contraste com a interpretação de Lisboa, que o relativismo
ontológico manifesto nas propostas de Kuhn e Lakatos, e igualmente
presente em outros autores não examinados aqui, pode ser encarado como
o epílogo do desenvolvimento da filosofia da ciência no interior da própria
tradição positivista. Por isso, havíamos afirmado, na segunda seção deste
trabalho, que o instrumentalismo, juntamente com o relativismo ontológico
que sempre o acompanha, é o desfecho previsível da missão impossível
perseguida pela tradição positivista: a instauração de uma ciência
axiologicamente neutra. Abortada a missão de erradicar os valores
(ontologia), relaxar e assumir uma atitude de “benigna negligência” em
relação aos valores (ontologia) parece ser a consigna relativista prescrita
para ciência. Tal postura, ilustrada cristalinamente na apreciação de Lakatos
por Suppe, acima citada, admite como premissa a idéia de que não só não
se pode falar da verdade dos núcleos rígidos (ontologias), mas que eles
“são provavelmente falsos”. Corolário desta concepção de ciência é a visão
de que o saber científico não deve nem precisa reflexionar sobre o núcleo
rígido e, por conseguinte, sobre as finalidades que instrumentaliza. Outro
corolário é o de que a ciência se legitima por sua adequação empírica. No
entanto, como conciliar estas noções com o reconhecimento, pelas correntes
contemporâneas da filosofia da ciência, de que toda ciência pressupõe (e
põe) um núcleo rígido, um paradigma, enfim uma ontologia, que nada
mais significam do que uma representação do mundo da qual depende a

46 Caldwell cita Lakatos para explicitar seu manifesto relativismo: “Uma vez que a ciência progride
pela enunciação de tradições de pesquisa que são julgadas pelo seu ‘excesso de conteúdo empírico’, a proli-
feração de teorias é benéfica [...] [Nas palavras de Lakatos,] ‘pluralismo teórico’ é melhor do que ‘monismo
teórico’.” (CALDWELL, 1982, p. 88)

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770 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

própria inteligibilidade da ciência e das finalidades cuja realização ela assiste?


Em outras palavras, como negligenciar “benignamente” as questões
ontológicas e se fixar exclusivamente na eficácia empírica quando,
admitidamente, a própria eficácia está determinada pelo núcleo rígido, pelo
paradigma, pelos “valores básicos”, enfim pela ontologia? A “benigna
negligência” do relativismo contemporâneo se apresenta como neutralidade
(inocência) axiológica quando, na verdade, representa, no melhor dos casos,
a simples naturalização inconsciente do existente. Nenhuma objeção se
poderia fazer, é evidente, contra o conformismo ou a apologia do existente,
mas outra coisa muito diferente, mesmo do ponto de vista exclusivamente
teórico, é brandir a eficácia prático-operatória como critério insofismável
da ciência e para além do qual qualquer pergunta ou inquietação é supérflua,
inoportuna - digamos, metafísica.

Caso considerássemos, à guisa de comparação, autores como Smith,


Ricardo, Keynes, Schumpeter e até mesmo de alguns neoclássicos como
realistas, no sentido de que pretendiam suas teorias como representações
da realidade, seria compreensível o nexo entre a representação (teoria) e as
prescrições práticas dela derivadas. Mas se, ao contrário, considerássemos
aqueles autores não-realistas, no sentido de que suas representações não
guardariam qualquer relação com a realidade, o nexo entre as representações
e as prescrições práticas delas derivadas, diferentes em cada caso, seria
incompreensível, à medida que a representação não representaria nada no
mundo real. Neste último caso, seria de se perguntar: qual o sentido de
uma ciência sem imagem do mundo? De uma viagem sem mapa? De uma
peça sem roteiro? De uma escola de samba sem enredo?

CONTRA O RELATIVISMO, CONTRA O INSTRUMENTALISMO:


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lisboa conclui seu segundo artigo explicitando as bases lakatosianas de sua


crítica:

“A regra metodológica/retórica do jogo, no entanto, é o


abandono de alguma teoria apenas quando é proposta uma

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 771

teoria alternativa com maior grau de falseabilidade capaz de


explicar os fatos explicados pela teoria anterior e algum fato
novo adicional. Infelizmente, parece-me, este desafio foi
ignorado pela heterodoxia, que, no melhor dos casos, se satisfaz
em apontar os limites dos modelos neoclássicos existentes e
estabelecer princípios genéricos de uma teoria ideal que jamais
se realiza. Talvez o destino inevitável da heterodoxia seja correr
da ‘cheia’ que, persistente, arrogante e imperialista, invade
nichos que se imaginavam fora do alcance neoclássico. O
fracasso da crítica que desconhece o seu inimigo é a surpresa
com a casa tomada, e, sobretudo, a necessidade permanente
de reinventar, justificar e diferenciar o seu objeto de estudo.”
(LISBOA, 1998, p. 144)

Muito seria possível dizer do destemor - ou imprudência - com que Lisboa


pretende dar por resolvidas, com a chancela de Lakatos, controvérsias
filosóficas cabeludíssimas. Para iniciar, gostaríamos de assinalar, ainda que
marginalmente, que não é possível ser um instrumentalista conseqüente e,
ao mesmo tempo, afirmar que uma teoria “explica os fatos”, pois se o critério
exclusivo reclamado pelo instrumentalismo é, como vimos, a adequação
empírica, à teoria fica vedada a priori qualquer veleidade explicativa. No
entanto, a nosso ver, esta não é a incongruência mais grave da formulação
de Lisboa. Mesmo admitindo que a adequação empírica constitua de fato o
critério exclusivo à disposição da ciência, noção que procuramos aqui
contestar, a intimação que Lisboa dirige à heterodoxia não tem lógica.
Mesmo admitindo, sem maiores qualificações, os termos de Lakatos, segue-
se que os critérios de validação de uma teoria são internos aos PPCs e,
portanto, a definição do que é empiricamente relevante está determinado
antecipadamente pelo “núcleo rígido”. Por essa razão, não teria sentido a
heterodoxia, caso se pretenda mesmo heterodoxa, perseguir os critérios de
adequação empírica fixados pelo “núcleo rígido” ortodoxo. A rigor, para
serem ortodoxamente lakatosianas, as heterodoxias, quantas fossem, teriam
cada qual de tratar de construir seus “núcleos rígidos” específicos. Afinal, o
que importa para Lakatos não é o “pluralismo teórico”? Se é assim, as
heterodoxias caem numa armadilha caso se submetam às metas, finalidades,
valores, enfim, à ontologia ortodoxa, em lugar de criarem as suas próprias.

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772 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

Parece, portanto, que as heterodoxias não teriam que se atormentar por


não estarem à altura das demandas ortodoxas verbalizadas por Lisboa:

“Mas, onde está a alternativa heterodoxa? Qual teoria têm


esses autores sobre as flutuações de emprego, produção, os preços
dos ativos financeiros e a estrutura a termo das taxas de juros?
Qual sua teoria de leilões? Qual o mecanismo mais adequado
para a venda de ativos? Qual a sua teoria sobre a relação
entre comércio internacional e taxa de câmbio? Qual a
proposta de política monetária? Quais os dados estatísticos que
justificam esta proposta de política? Quais os critérios utilizados
para mensurar a justiça social? Que testes empíricos estes
autores utilizam para verificar a validade de suas teorias?
Quais as implicações falseáveis? Em que casos essas teorias, se
existem, apresentam melhores ou piores resultados do que os
modelos neoclássicos? Além da lista dos princípios ideais que
uma teoria econômica deve satisfazer, que mais fizeram os
heterodoxos? Que argumento heterodoxo avança além de
considerações e ponderações que não propõem qualquer
proposição falseável ou analítica? Afinal, há alguma teoria
científica heterodoxa, no sentido de Popper, ou, ao menos,
algum conjunto de proposições analíticas que iluminem
diversas relações de causalidade? Ou, ainda, há algum
argumento indutivo, dedutivo empiricista, pragmático nessa
tradição? Afinal, a que vêm os heterodoxos?” (LISBOA,
1998, p. 144)47

47 Como já foi feito anteriormente (ver nota 19), é preciso chamar a atenção para o uso inconsisten-
te que Lisboa faz da noção de causalidade. Quando se parte de Hume, ao menos da interpretação
corrente que se faz de seu pensamento, como fez o autor, não tem o menor cabimento falar em
causalidade. Justamente por ter partido do problema da indução atribuído a Hume é que Lisboa
concluiu que a ciência não podia ser realista e, em virtude disso, defendeu o instrumentalismo
como a única atitude coerente em relação à ciência. Por esta razão, por descartar enfim qualquer
possibilidade de conhecimento objetivo do mundo, não pode presumir que a teoria neoclássica
apanha relações de causalidade entre variáveis, fatos, fenômenos. Todas as relações propostas pela
teoria denotam tão-somente correlações (empíricas). Assim, parece-nos injusto que cobre da
heterodoxia um empreendimento que considera impossível. Para uma crítica semelhante do uso
da noção de causalidade no quadro de concepções de lei de inspiração humeneana, ver (LAWSON,
1997, capítulos 2, 3 e 7).

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 773

Diante de tamanhas realizações, subentendidas nos desafios de Lisboa, seria


de perguntar: que mundo é esse que vem sendo tão bem servido
“empiricamente” pela ortodoxia neoclássica? Certamente não pode ser o
mundo figurado pela heterodoxia, que se caracteriza precisamente por
pressupor que o mundo pode e deve ser mudado, e não simplesmente
reverenciado e administrado. Por isso, ao contrário do auto-enlevo
neoclássico, quase autista, expresso por Lisboa, a heterodoxia ao menos
pressente a complexidade do mundo, incluída aqui sua historicidade, e a
natureza delicada da relação entre teoria e prática. Por isso é capaz de
especular sobre outros mundos possíveis e/ou desejáveis. Por isso é mais
reticente e reflexiva diante dos imperativos da prática imediata
manipulatória. Por isso tudo, heterodoxo é sinônimo de crítico. E, por isso,
não tem a heterodoxia de rivalizar com a ortodoxia no plano de suas supostas
realizações prático-operatórias. Muito pelo contrário, se instaura pela crítica
à ortodoxia, à sua imagem de mundo, ao seu “núcleo rígido”, aos seus
“valores básicos”. É justamente por isso, para repetir o senso comum, que
a ortodoxia é sinônimo universal de conservadorismo, enquanto as
heterodoxias em geral são identificadas com mudança ou transformação.

É bem verdade que exortações à prática instrumental, como as de Lisboa,


não são incomuns nos dias de hoje. Pode-se assumir, aliás, que são
hegemônicas e refletem o espírito de uma época que se quer, pela voz de
muitos teóricos, pós-ideológica, pós-industrial, pós-histórica, pós-moderna.
Neste particular, é curiosa a convergência, certamente por motivações
diversas, entre conservadores e “libertários”, em seu ceticismo, em sua
rendição ao existente, ou seja, em sua naturalização da sociedade capitalista,
e em sua conseqüente defesa do instrumentalismo. Todas essas manifestações
de uma mesma postura filosófica anti-realista.

Na literatura contemporânea há inúmeros diagnósticos, elaborados a partir


de diferentes perspectivas teóricas, desse espírito de época.48 No plano
teórico e filosófico, é geralmente identificado com o pós-modernismo, o

48 Pode-se mencionar, entre outros, os seguintes autores: Habermas, Norris, Bhaskar, Callinicos,
Anderson, Eagleton, Searle.

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774 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

pós-estruturalismo e o neopragmatismo, correntes que assumem uma


doutrina ultra-relativista, que nega, baseada em idéias pós-estruturalistas
da linguagem, do discurso e da representação, qualquer possibilidade de
acesso à realidade e à verdade.49 De tais premissas segue-se a conclusão
neopragmática de que a verdade é sempre somente o que passa por verdade
no interior de uma dada “comunidade interpretativa” ou de um momento
dado da constante “conversação cultural da humanidade.” (NORRIS, 1997,
p. 80) Noções semelhantes caracterizam igualmente a influente teoria dos
shifts paradigmáticos de Kuhn, as variações de Feyerabend sobre o tema, o
pós-modernismo radical de Lyotard, com seus jogos de linguagem
incomensuráveis, como também “a abordagem ultranominalista de Foucault
das questões de significado, referência, conhecimento e verdade.” Correntes cujas
idéias convergem para a seguinte tese central: o que conta como “verdade”
ou “realidade” a qualquer tempo é sempre relativo (ou construído em) a
algum “jogo de linguagem” particular, “forma de vida”, ou contexto
culturalmente específico de significados e valores. Tese que vem apresentada
como argumento a priori para “impugnar qualquer recurso a condições de
validade para além daquelas que cumprem algum papel significante no ‘jogo de
linguagem’ ou na ‘forma de vida’ em questão.” (Ibid.)

Neste sentido, o que todas essas correntes têm em comum “é a incapacidade,


ou recusa categórica, em conceber que a ciência pode realmente fazer progresso
em alcançar uma compreensão mais adequada (causal-explanatória) de objetos,
processos e eventos ocorrendo no mundo real.” (NORRIS, 1996, p. xiii-xv) O
anti-realismo dessas concepções evidentemente se resolve numa teoria da
“verdade” como overlapping consensus, tal como ilustrado pelos “valores
básicos” de Friedman, já criticados anteriormente. Dizer que a verdade é
interna a determinado “jogo de linguagem”, “esquema interpretativo” etc.,
equivale a postular a paridade entre verdade e falsidade, e, por conseguinte,
compreender a verdade como o conjunto de crenças compartilhadas em

49 “… [correntes e autores que], apesar de seus muitos desacordos, enfatizaram o caráter fragmentado,
heterogêneo e plural da realidade, negaram ao pensamento humano a habilidade de atingir explicação
objetiva da realidade e reduziram o portador deste pensamento, o sujeito, a uma confusão incoerente de
impulsos e desejos sub- e transindividuais.” (CALLINICOS, 1989, p. 2)

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 775

determinado âmbito ou esfera, como, portanto, consenso local. Por meio


deste expediente certas tradições teóricas, que antes se imaginavam ou
pretendiam positivas - axiologicamente neutras -, agora se constroem
assumidamente a partir dos “valores básicos” (ou esquema ontológico, ou
jogo de linguagem) das “ricas democracias liberais norte-atlânticas”, para
usarmos aqui a expressão de Richard Rorty. E, como os “valores básicos”
das “ricas democracias liberais norte-atlânticas” são, por definição,
hegemônicos e, por extensão, consensuais, segue-se que as tradições que se
constroem com base em tais valores são, por definição, relevantes e
verdadeiras (empiricamente adequadas e eficazes). Por contraste, as
concepções (heterodoxas) que estão fora do overlapping consensus merecem
no máximo um indulgente desprezo, em virtude de sua incapacidade crônica
de perceberem e se adequarem às “regras do jogo”. Deriva daí precisamente
sua “ineficácia prática”, sua “inadequação empírica”.

Como assinalamos acima, essa posição cético-pragmática hegemônica não


vigora sem crítica nos planos teórico, ético e político, mais gerais, assim
como no terreno específico da filosofia da ciência.50 Evidentemente, não
caberia nestas considerações finais pretender elaborar uma síntese que fizesse
justiça às críticas desenvolvidas por autores identificados com o realismo.
Todavia, não poderíamos encerrar o artigo sem mostrar, para aqueles que
se encontram rendidos ou paralisados pela retórica relativista-instrumen-
tal, que há em circulação correntes que procuram desfazer a rede de falácias
com a qual o relativismo tem capturado os incautos.

Com esse propósito, vamos nos permitir apresentar sinteticamente a crítica


elaborada por Searle, que, a despeito de não abranger todos os aspectos do
debate, tem o mérito de ser extremamente concisa e objetiva. Searle inicia
sua crítica por aquele que talvez seja o argumento central de todas as
correntes anti-realistas. Trata-se da idéia de que todo conhecimento é
lingüística, conceitual e culturalmente mediado. Certamente, acede o autor,

50 Em outro artigo procuramos apresentar uma síntese da crítica realizada por Bhaskar ao relativismo
ontológico contemporâneo. (DUAYER, MEDEIROS & PAINCEIRA, 1999)

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776 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

todos concordam que sempre se necessita de um vocabulário para descrever


e afirmar os fatos. Porém, nem disso, nem da constatação de que precisamos
de uma linguagem para identificar e descrever os fatos, deduz-se que os
fatos identificados e descritos não têm existência independente (de tais
descrições e identificações). Em suma, constitui uma:

use-mention fallacy supor que a natureza lingüística e


conceitual da identificação de um fato exige que o fato
identificado seja ele próprio por natureza lingüística. Os fatos
são condições que tornam as proposições verdadeiras, mas não
são idênticos às suas descrições lingüísticas. Nós inventamos
as palavras para especificar os fatos e para nomear as
coisas, mas não se segue daí que nós inventamos os fatos ou
as coisas.” (SEARLE, 1998: 22. Os itálicos negritos na
última frase são nossos)

Com respeito ao argumento do relativismo conceitual, Searle assinala que


se salta da correta proposição de que todos os nossos conceitos são feitos
por nós, para a ilação de que o realismo é falso, uma vez que nosso acesso
à realidade exterior é necessariamente mediado por nossos conceitos. A
formulação standard dessa idéia é a seguinte: “não há fatos exceto relativos a
um esquema conceitual e, portanto, não há mundo real exceto relativo a um
esquema conceitual.” Na opinião de Searle, esta noção é tão medíocre a ponto
de não merecer crítica. Apesar disso, dispõe-se a oferecê-la. Abreviando seu
curto argumento, o ponto a enfatizar é que não há qualquer inconsistência
no fato de que podemos empregar diferentes esquemas conceituais para
descrever o mundo exterior. O mundo é indiferente aos nossos modos de
descrição, enumeração etc. Diferentes sistemas de contagem, como na
pesagem, por exemplo, nos oferecem descrições alternativas e verdadeiras
de um único mundo. (Ibid., p. 23)

Outra objeção ao realismo examinada por Searle, associada a Kuhn, refere-


se à subdeterminação da teoria pela evidência. No fundamental, significa
que a escolha entre teorias alternativas sobre o mesmo conjunto de
fenômenos, por exemplo, entre a teoria heliocêntrica e a geocêntrica, não
pode ser decidida com base na evidência empírica, uma vez que ambas são

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 777

subdeterminadas pelos dados empíricos. No caso dos sistemas hélio ou


geocêntricos, a evidência não teria como determinar a escolha, pois era
consistente com ambos, admitidos alguns ajustes teóricos. Deste e outros
casos da história das ciências se conclui, indevidamente segundo Searle,
que

“[a] história de tais ‘descobertas’ científicas mostra que se é


suposto que a verdade designa uma relação de correspondência
a uma realidade independente da consciência, então não existe
algo como a verdade porque não existe tal realidade e, por
conseguinte, nenhuma relação de correspondência.” (Ibid.,
p. 24)

Todavia, diz Searle, este argumento, apesar de muito antigo, é ainda assim
péssimo, pois o trânsito da teoria geocêntrica para a heliocêntrica não
demonstra que não existe uma realidade independente da teoria. Muito
pelo contrário, porque “todo debate só é inteligível sob o pressuposto de que
existe uma tal realidade. Só entendemos o debate e sua importância se assumirmos
que ele diz respeito a objetos reais - a terra, o sol, os planetas - e suas relações
efetivas.” (Ibid., p. 25) Em síntese, conclui o autor invertendo totalmente
os termos da crítica ao realismo contra ela mesma, todo o debate e sua
resolução têm por pressupostos a existência do mundo real e a idéia de que
a ciência é meio de descobrirmos verdades sobre ele. Nesta interpretação, a
escolha de uma teoria dentre outras com equivalente sustentação pela
evidência consistiria, em oposição ao pretendido pela posição anti-realista,
de uma afirmação da independência do mundo em relação ao nosso processo
de seleção de teorias. Searle ilumina de maneira primorosa esta diferença
tomando como objeto de crítica uma passagem de Quine, sempre citada
em amparo ao relativismo ontológico:

“Quine argumentou, como amplamente sabido, que a sua


aceitação da existência das partículas da física atômica era
uma postulação equivalente, como postulação, à aceitação da
existência dos deuses de Homero. Tudo bem, mas não se segue
disso que depende de nós a existência dos elétrons, de Zeus ou
de Atena. O que depende de nós é se aceitamos ou rejeitamos

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778 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

a teoria que afirma que eles existem. A teoria é verdadeira


ou falsa caso eles existam ou não, independentemente de nossa
aceitação ou rejeição da teoria.” (Ibid., p. 26)

Essa crítica, juntamente com outras aqui não mencionadas, serve ao menos
para abalar a auto-suficiência das correntes anti-realistas contemporâneas
e, em conseqüência, recoloca na agenda a questão da objetividade do
conhecimento científico. Com isso, parece que qualquer continuidade do
debate tem de partir deste consenso básico: não há como expurgar, seja
como for, a ontologia. O reconhecimento do caráter objetivo do
conhecimento científico, ao lado da admissão agora generalizada de que a
ciência é sempre cultural, social, lingüisticamente mediada, sugere que
qualquer desenvolvimento na análise da natureza e do papel da ciência não
poderá mais pretender separar fatos e valores. Em outras palavras, parece
não haver mais retorno à idéia de ciência axiologicamente neutra. Como
então explicar as posições que compreendem tudo isso e ainda assim
defendem o anti-realismo?

A conjugação de anti-realismo, relativismo e instrumentalismo procura


equacionar justamente a admissão de que a ciência não é axiologicamente
neutra com a imediata e absurda negligência desse fato. Postula a
impossibilidade do conhecimento objetivo do mundo e, por isso mesmo,
justifica a ciência pela eficácia prática. O que é velado nessa posição é que o
papel da ciência, nesse caso, se reduz a reproduzir o existente, enfim a
instrumentalizar os “valores consensuais”. No entanto, no plano da filosofia
da ciência essa postura é insustentável e não é preciso ser nenhum dissidente,
ou heterodoxo, para admitir isso. Richard Rorty, por exemplo, argumenta
que a racionalidade instrumental, de uso profícuo nas ciências da natureza,
sobretudo sob a ótica de suas aplicações tecnológicas, de modo algum pode
ser estendida mecanicamente às teorias sociais. O sucesso das aplicações
tecnológicas pode ser entendido, com as devidas reservas, como um fim
que valida os avanços das ciências da natureza. Nas ciências sociais,
entretanto, assumir fins externos equivale a adotar uma teoria da
manipulação - a idéia de que cumpre à ciência instrumentalizar cândida e
inocentemente valores, interesses e finalidades externamente postos. Essa é
a razão pela qual Rorty, quando se depara com o problema de justificar a

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Mário Duayer, João Leonardo Medeiros, Juan Pablo Painceira 779

prática instrumental, não o faz em nome da epistemologia. Muito pelo


contrário, como um relativista ontológico conseqüente, como autor que
denega o conhecimento objetivo da realidade, coerentemente trata a ciência
como um kind of writing dentre outros, sem qualquer prerrogativa em termos
de apreensão mais ou menos adequada da realidade, empírica ou não.
Conseqüentemente, por nivelar os diversos discursos, o científico, o
filosófico, o literário etc., não pode explicar a especificidade da ciência,
incluída sua eficácia prática, pela qualidade de seus métodos e linguagem
em selecionar, coletar e tratar os “fatos”, por sua superioridade
epistemológica, pois os “fatos”, para um anti-realista, são sempre criação
de um discurso. Sendo, portanto, impossível para um anti-realista explicar
a eficácia instrumental da ciência por sua superioridade epistemológica,
Rorty a justifica coerentemente no plano ético-político. Para Rorty, de-
fender o caráter instrumental da ciência não significa reconhecer a
superioridade metodológica e epistemológica do discurso científico, mas
simplesmente defender os “valores básicos” das democracias liberais norte-
atlânticas que a ciência decerto instrumentaliza - em sua opinião, os melhores
que a história humana decantou até o presente. (RORTY, 1991, p. 36-37)
Contrastando os dois autores, Lisboa e Rorty, o que se tem, a rigor, são
duas formas de legitimar a prática instrumental da ciência: uma,
epistemológica (adequação empírica), que suprime a questão dos valores,
interesses, etc. que a ciência reproduz; e outra, pragmática, que os assume
aberta e francamente. Ambas promovem uma desembaraçada apologia do
capitalismo, liberalismo etc. A segunda ao menos tem o mérito de não
dissimular as questões ontológicas sob o véu da eficácia prática. A apologia
é feita às claras.51

51 Para ilustrar a diferença que faz assumir uma ou outra postura, basta pensar em uma sociedade
escravocrata ou fascista. Sob a “abordagem” de Lisboa, a ciência social, Economia, por exemplo,
de uma sociedade deste tipo justificar-se-ia por sua adequação empírica e, nesta medida, seria
instrumento da reprodução eficaz da escravidão ou do fascismo. Sobre a natureza dos valores da
sociedade escravocrata ou da fascista não teria que se ocupar a Economia: tais questões escapari-
am de sua esfera de competência - prática. Rorty, ao contrário, justifica o caráter instrumental da
ciência social contemporânea precisamente porque, segundo ele, as sociedades democráticas nor-
te-atlânticas são sociedades presumivelmente baseadas no consenso não coercitivo, sociedades
que presumivelmente nutrem os valores da igualdade, da liberdade e da justiça. Neste sentido, o
uso instrumental da ciência está predicado a supostas virtudes das sociedades liberais democráti-
cas, e não simplesmente, como quer Lisboa, à eficácia da ciência.

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780 A Miséria do Instrumentalismo na Tradição Neoclássica

Para finalizar, e ainda com referência à ansiedade de Lisboa em relação ao


conteúdo empírico das teorias, não poderíamos nos furtar a arriscar uma
resposta à sua indagação: “[…] quantas investigações empíricas foram
produzidas a partir d’O capital?” (LISBOA, 1998, p. 117) Neste particular,
pode ser bastante lançar mão novamente da análise do primeiro autor citado
neste trabalho. De acordo com Derrida, tido como um dos maiores filósofos
contemporâneos, não-marxista,

“Não há futuro sem Marx, sem a memória e sem a herança


de Marx […]. Não é preciso ser um marxista ou um
comunista para render-se a esta evidência. Todos nós vivemos
em um mundo, alguns diriam em uma cultura, que conserva,
de modo diretamente visível ou não, em uma profundidade
incalculável, a marca desta herança. […] E por que um
discurso deste tipo [do fim da história, do fim da ideologia,
etc.] é procurado por aqueles que celebram a vitória do
capitalismo liberal e sua aliança predestinada com a
democracia somente para ocultar – em primeiro lugar de si
próprios – o fato de que este triunfo nunca foi tão crítico, frágil,
ameaçado e, até mesmo sob certos pontos de vista, catastrófico,
em uma palavra, enlutado? Triunfo enlutado pelo que o
espectro de Marx representa ainda hoje e que por isso é um
caso a conjurar de modo jubilatório e maníaco (fase necessária
de um trabalho de luto mal resolvido, segundo Freud), mas
também, virtualmente, de luto por si mesmo. Ao ocultarem se
si mesmas todos esses fracassos e todas essas ameaças, as pessoas
gostariam de se esconder do potencial - força e virtualidade -
daquilo que chamaremos o princípio e, até com ironia, de
espírito da crítica marxista.” (DERRIDA, 1994)

Se tem alguma razão o filósofo, seria de se perguntar: há algo mais empírico


do que um fantasma que assombra toda a cultura ocidental?

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O presente artigo, embora possua unidade por si próprio, constitui um produto parcial de um proje-
to de pesquisa mais amplo que vem sendo desenvolvido pelo GT em Filosofia da Ciência Econômica/
UFF. Registramos nosso agradecimento à profa. Maria Célia M. Moraes (UFSC) pelos comentários
e críticas ao artigo.
(Recebido em março de 2001. Aceito para publicação em julho de 2001).

Est. econ., São Paulo, 31(4):723-783, out-dez 2001

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