A Miseria Do Instrumentalismo
A Miseria Do Instrumentalismo
A Miseria Do Instrumentalismo
Tradição Neoclássica
Mário Duayer Professor da Universidade Federal Fluminense -UFF
João Leonardo Medeiros Doutorando do Instituto de Economia - UFRJ
Juan Pablo Painceira Mestre pelo Instituto de Economia - UFRJ; Analista - BACEN
RESUMO
O presente artigo discute algumas ressonâncias do anti-realismo e do relativismo na ciência
econômica. Em particular, consiste de uma crítica da idéia atualmente em voga de que o
instrumentalismo constitui um fundamento filosófico suficiente para a Economia. Uma
desassombrada defesa desta posição é elaborada por Lisboa (FGV/RJ). Ao considerar que a
falência do positivismo pode ser exclusivamente creditada aos trabalhos de Kuhn e Lakatos,
Lisboa parece acreditar que o relativismo (ontológico) subjacente às concepções daqueles
autores representa um fundamento incontroverso de todo empreendimento científico. Por isso
seu esforço em demonstrar que a prática científica da tradição neoclássica sempre foi consisten-
te com tal fundamento. Porém, uma vez que o relativismo ontológico pressupõe o caráter
completamente discursivo da realidade social, deduz-se daí que qualquer discurso científico
constrói os fins dos quais é um instrumento. Sob tal ótica, o artigo procura mostrar que a
legitimação instrumentalista da tradição neoclássica tentada por Lisboa é inconsistente.
PALAVRAS-CHAVE
tradição neoclássica, instrumentalismo, relativismo, ontologia
ABSTRACT
This paper discusses some echoes of anti-realist and relativist attitudes in economic
science. In particular, it is a critique of the presently fashionable idea that instrumentalism
suffices as philosophical support to economics. Such a stance is put forward by Lisboa
(FGV/RJ) in a strikingly outspoken defense of the neoclassical tradition. Taking for granted
that the demise of positivism should be exclusively credited to the works of Kuhn and
Lakatos, Lisboa seems to believe that the relativism (ontological) underlying their
conceptions constitutes an undisputable foundation of all scientific endeavor; hence his
efforts to demonstrate that the scientific practice of neoclassical tradition had been
throughout consistent with that foundation. Yet as ontological relativism means that the
social reality is out-and-out discursive, it follows that any scientific discourse constructs
the ends of which it is an instrument. On this basis, the article tries to argue that the
instrumentalist legitimation of the neoclassical tradition attempted by Lisboa is flawed.
KEY WORDS
neoclassical tradition, instrumentalism, relativism, ontology
JEL Classification
B41
INTRODUÇÃO
Como foi dito, o artigo elabora uma crítica a uma tentativa, a nosso ver
paradigmática, de buscar amparo para a Economia nesses tempos de
contingencialismo ou ceticismo epistemológico. Tal tarefa foi realizada por
Lisboa (FGV/RJ) em dois extensos artigos (1997 e 1998). De fato, dentre
as contribuições de autores brasileiros às questões de fundamentação
filosófica da ciência econômica, Lisboa é o autor que procurou, de maneira
mais sistemática, ajustar a tradição neoclássica às mudanças substantivas
nas concepções de ciência e explicação científica experimentadas na filosofia
da ciência, em geral associadas a teóricos como Kuhn, Feyerabend e Lakatos.
Os dois artigos promovem uma desassombrada defesa da ortodoxia.
Contrapõem, às críticas heterodoxas, as razões da supremacia da tradição
1 HABERMAS (1996, p. 29). Para DUAYER & MORAES esta atitude envolve uma concepção
de história enquanto absoluta contingência (1997, p. 27-8). SOFIANOU (1995, p. 379), na
mesma direção, sugere que o pós-modernismo subentende a defesa da tese do pan-
contingencialismo.
2 CARVALHO (1998).
3 Discurso hegemônico conservador que, na opinião de Derrida, procura instalar sua orquestração
dogmática em condições suspeitas e paradoxais, [antes de tudo] porque esta conjuração triunfante se
empenha na verdade em negar e, neste sentido, encobrir, o fato de que nunca, nunca na história, o
horizonte da coisa cuja sobrevivência é celebrada (a saber, todos os velhos modelos do mundo capitalista e
liberal) foi tão sombrio, ameaçador e ameaçado. (DERRIDA, 1994, p. 38)
4 Há muitas ilustrações de tal expediente, mas parece-nos que o caso paradigmático continua sen-
do a extraordinária proeza de elaborar uma arqueologia do dinheiro (da troca, do preço) sem
citar Marx uma única vez.
5 Sobre a relevância das teorias filosóficas não somente para a teoria mas em todos os aspectos de
nossas vidas, ver SEARLE (1995, p. 197) e NORRIS, (1996, p. viii).
6 [
] os economistas do mainstream concluem freqüentemente que metodologia e filosofia são
irrelevantes para (o progresso da) a ciência econômica, desencorajando-as abertamente
(LAWSON,
1997, p. 11)
de modo que não lhe escapam, para usar o vocabulário da época, os fios de
nossas malhas de crenças?
Dispensa dizer que a discussão das questões anteriores terá, de algum modo,
que tratar da disjuntiva que permeia todos os debates contemporâneos em
filosofia da ciência - realismo versus anti-realismo. Tentaremos expor as
características mais salientes de ambas as posições sem, obviamente, pre-
tender esgotar o assunto. Interessa-nos sublinhar, antes de tudo, que na
filosofia da ciência, onde predominam hoje as posturas anti-realistas, como
a de Lisboa, não é mais possível ingressar neste terreno propriamente
filosófico sem considerar explicitamente os problemas ontológicos. Em
outros termos, a ninguém é concedido atualmente, como se fazia nos
auspiciosos tempos positivistas, desqualificar posições rivais pela simples
tática de denegri-las como metafísicas, isto é, ontológicas.9 Nos dias
atuais, realistas e anti-realistas, a despeito de sua polaridade, concordam
que não se pode erradicar a ontologia do discurso científico, como pretendeu
o positivismo. Por isso, sua diferença está determinada pelo papel que
atribuem à ontologia na prática científica. Os realistas tendem a defender a
noção de que as ciências buscam e propiciam um conhecimento (ontológico)
cada vez mais adequado do mundo.10 Os anti-realistas tendem a identificar
a ontologia como um produto (necessário) da consciência, um construto
arbitrário, um esquema conceitual ou ontológico, sem, portanto, qualquer
compromisso com a representação adequada da realidade. Se este é o
consenso mínimo na filosofia da ciência, parece-nos então que a linha
argumentativa de Lisboa padece desta debilidade básica: enruste a ontologia
da tradição neoclássica sob a forma de um batido - e discutível -
instrumentalismo conjugado com um bom-mocismo popperiano.
Manifestação flagrante de tal debilidade é a sua tentativa de especificar o
que denomina de tradição neoclássica. Salvo melhor juízo, a tradição
neoclássica, na variante de Lisboa, aparece desprovida de qualquer
9 Para modalidades mais mitigadas e/ou ambíguas desta atitude, ver, por exemplo, SCHUMPETER
(1976, parte I) e JOAN ROBINSON (1973, 39 p.)
10 Sobre tal perspectiva e o debate contemporâneo, ver DUAYER (1999), VASCONCELLOS et
alii (1999) e OLIVEIRA et alii (2001).
Para se ter uma idéia da absurdidade da tese central dos artigos de Lisboa,
a saber, o desapego da tradição neoclássica por qualquer princípio, visão de
mundo, hipótese, pressuposto, em uma palavra, a obliteração da ontologia,
basta considerar a verdadeira coqueluche de estudos sobre pobreza, exclusão
social, miséria e temas afins, diretamente inspirados naquela tradição. Apesar
de ser programa nada agradável, não seria difícil delinear, pelo exame das
categorias que empregam (pobre, miserável, rico etc.), a concepção
(ontológica) de mundo social que tais exercícios macrofilantrópicos
subentendem. Quanto às suas motivações, descontada a deliberada
manipulação retórico-política, haveria que recorrer às competências da teoria
psicossocial para explorar a possibilidade de que alguma espécie de
consciência culpada explique este recente surto de compaixão pelos pobres.12
13 Nesta síntese do argumento de Lisboa, optamos por evitar referências recorrentes aos seus arti-
gos de modo a não sobrecarregar o texto com excessivas notas e citações.
16 Caldwell, para ilustrar com um metodólogo da ciência econômica, defende esta interpretação.
(CALDWELL, 1982, p. 26)
interpretação aqui defendida, será tratada com mais detalhe nas seções
subseqüentes. Por ora, acreditamos que bastam essas sumárias considerações
para deixar claro que Lisboa trafega sem a devida prudência em terreno
bastante acidentado.
sucesso de suas previsões que, por seu lado, depende etc., etc., etc. Lisboa
procura contornar esta regressão infinita por intermédio do expediente auto-
indulgente do comedimento. Os autores que, na Economia, adotam o
instrumentalismo, como Friedman, Lucas e Prescott, conscientes dessa
circularidade e, no melhor estilo popperiano, supostamente procedem com
muita cautela nesse terreno. Prova desse zelo seriam os resultados
contrafactuais que amiúde infirmam seus modelos e hipóteses, levando-os,
assim, a permanentes reformulações e descartes de suas teorias, modelos e
hipóteses.
20 É preciso lembrar, aqui, que esta interpretação instrumentalista de Popper por parte de Lisboa
está longe de ser consensual. Afinal de contas, o próprio Popper, ao manter que a verdade cons-
titui o princípio regulador da prática científica, parece guardar uma prudente distância do
instrumentalismo. (Cf. nota 5, acima).
21 Lisboa exprime do seguinte modo essa concepção de teoria: Cabe à análise teórica procurar
restringir o conjunto dos resultados teóricos possíveis gerando proposições que explicitem quais as hipóteses
adotadas e cujas conclusões possam ser testadas. Os testes empíricos levam a uma eventual rejeição, ou não,
dos modelos e permitem uma melhor avaliação das conseqüências das políticas econômicas e da interven-
ção dos mercados. (LISBOA, 1997, p. 36)
compreensível que o papel da teoria seja tão deflacionado, uma vez que,
sob a ótica kuhniana, a teoria tem um caráter assumidamente metafísico,
e se estrutura sob a base, em geral inexplícita, de um paradigma. Por esta
razão, a teoria kuhniana parece emprestar sustentação ao critério da
predição, agora não em termos positivistas ou popperianos, mas relativistas.
Relativista porque os princípios fundamentais que caracterizam os diferentes
paradigmas podem ser incomparáveis, impossibilitando qualquer discurso sobre o
desenvolvimento científico. No jargão relativista, paradigmas distintos podem ser
incomensuráveis. (LISBOA, 1998, p. 126) Em outras palavras, Lisboa
recorre aqui à conhecida equação de inspiração kuhniana: como a ciência
evolui pela sucessão de paradigmas incomensuráveis (relativismo), cada
tradição teórica (paradigma) se legitima enquanto for capaz de prover
técnicas preditivas para o complexo de fenômenos por ela mesma delimitado
e priorizado. Significa dizer, legitima-se por sua capacidade preditiva. Por
conseguinte, as mudanças paradigmáticas são eventos estritamente
empíricos, insubmissas a toda e qualquer racionalidade. Paradoxalmente,
no entanto, tais mundanos eventos empíricos sempre transbordam na
metafísica, no transempírico, uma vez que envolvem a troca radical e
substantiva de uma visão de mundo por outra. Sobre essa questão, cuja
irrelevância constitui, por assim dizer, o núcleo da tese de Lisboa, nos
estendemos em outros momentos do trabalho, posto que defendemos tese
justamente oposta.
22 De acordo com Rorty, Kuhn procura se retratar diante de tais reservas desbastando os resultados
mais heterodoxos de sua teoria. Rorty lamenta, naturalmente, este recuo tático de Kuhn e,
intitulando-se kuhniano de esquerda, leva a proposta de Kuhn à sua radical conclusão: a refuta-
ção da epistemologia. Sobre a reclamada herança kuhniana de Rorty, ver (MORAES et alii,
1997). Críticas à corrente lingüística na Economia, ver PAULANI (1996).
Esse tipo de idéia traz dilemas terríveis para concepções hegemônicas que
não enxergam alternativas teóricas fora de si mesmas, tal como ilustra
Lisboa:
23 Incidentalmente, é preciso salientar que não é possível falar em causalidade no âmbito da aborda-
gem instrumentalista, apesar do farto uso que Lisboa faz do termo. A relação de causalidade
pressupõe uma concepção realista de conhecimento científico. Se o ponto de partida da análise de
Lisboa é a postulação de que o real é inapreensível, parece trivial concluir que não se pode, neste
caso, aludir a relações de causalidade. Como falar de uma coisa como causa de outra se nada
posso saber da realidade objetiva? Em outras palavras, na perspectiva que adota o autor, o máxi-
mo que se pode afirmar é que duas coisas, fatos, fenômenos ou variáveis são contíguos,
concomitantes, ou correlacionados. Este é o grau máximo de associação que sua abordagem
admite afirmar.
realismo, mas sim por seu caráter instrumental. Cabe-nos frisar agora que,
em toda essa discussão, o que fica posto de lado, convenientemente ocluído
por Lisboa, é o nexo existente entre a determinação última das teorias pelo
paradigma, no caso de Kuhn, ou pelo núcleo rígido, no caso de Lakatos, e
a adequação empírica. Por mais heróico que seja o desprendimento de uma
teoria por seus postulados e axiomas fundamentais, o mínimo ensinamento
que se tira daqueles autores é que qualquer ciência, queira ou não,
conscientemente ou não, pressupõe (e põe) uma visão de mundo. Se as
teorias, na leitura relativista daqueles autores, são enfim construtos, se estão
predicadas a esquemas ontológicos, então é um truísmo afirmar que a ciência
está sempre constituída por uma visão de mundo, ou malha de crenças,
que determina suas noções de eficácia, de utilidade, de delimitação do
empírico etc.
Esta é a razão pela qual afirmamos antes que, a despeito de suas posições
em tudo antitéticas, realistas e anti-realistas partem do consenso mínimo
de que a ontologia é momento constitutivo da prática das ciências e,
portanto, de sua investigação. Realistas e anti-realistas divergem sobre a
objetividade ou não das imagens que a ciência oferece do mundo, digamos,
de seus construtos, mas de modo algum negam que sejam momentos
imanentes de qualquer teoria científica e muito menos minimizam seu
impacto na vida social enquanto visões de mundo (ontologias) afiançadas
pela ciência, abonadas por sua autoridade. Para suprimir essa que é a
característica mais saliente do moderno debate na filosofia da ciência, Lisboa
desbastou completamente essas implicações óbvias do pensamento dos
autores que trouxe à discussão para referendar seu argumento. Precisamente
por isso indaga, entre naïve e surpreso, se
Essa soma de razões talvez explique por que hoje em dia toda intervenção
no debate filosófico sobre a ciência parte de uma determinada interpretação
do positivismo lógico. Na verdade, há em circulação uma interpretação
amplamente aceita e reproduzida, sobre a qual se estrutura a maioria das
teorias alternativas, críticas do positivismo lógico. Por isso, para
compreender o debate contemporâneo na filosofia da ciência, é condição
indispensável entender a concepção de ciência e de explicação científica da
tradição positivista. Pretendemos mostrar no decorrer desta seção que a
falência do positivismo lógico está associada à sua denegação por princípio
27 Nas primeiras formulações do critério da verificação, atribuídas a Hempel, requeria-se que uma
sentença fosse completamente verificada, ao menos em princípio, pela evidência empírica para
possuir significado cognitivo. Embora o critério da testabilidade tenha sofrido alterações ao lon-
go do tempo, a insistência no caráter decisivo da evidência observacional está presente em todas
as definições alternativas de critério de significância cognitiva.
28 Sobre a necessidade da testabilidade das teorias, ver HUTCHISON (1994, p. 158-9).
29 Para uma exposição sintética e competente do problema da indução de Hume, ver SUPPE
(1977, p. 625).
De acordo com esta nova abordagem, a estrutura formal das teorias científicas
reduz-se a um sistema hipotético-dedutivo que nada mais representa do que um
cálculo lógico-axiomático. Sob tal ótica, a teoria é composta por axiomas com
sentenças originárias (denotando observáveis ou entidades teóricas) e teoremas
deles derivados dedutivamente. (CALDWELL, 1982, p. 25) Tal estrutura,
evidente, é necessariamente abstrata, uma vez que seu significado está
condicionado a uma interpretação empírica. Para a estrutura teórica possuir
significado empírico deve-se introduzir novas sentenças (em geral derivadas)
traduzidas na linguagem observacional. Este tipo de estrutura apresenta
31 De acordo com Suppe, na tradição positivista o único discurso significante era aquele construído em
termos da linguagem fenomênica ou usando termos que fossem abreviações para (i.e., que pudessem ser
parafraseados equivalentemente como) expressões na linguagem fenomênica; quaisquer assertivas que
não cumprissem estas condições eram considerados nonsense metafísico. (SUPPE, 1977, p. 13)
32 Essa descrição do método H-D, que sintetizamos com base em Caldwell, pode ser apreciada com
mais detalhe em alguns textos do livro compilado por SUPPE (1977), aparentemente a fonte das
considerações de Caldwell.
33 O modelo indutivo probabilístico (I-P) é uma espécie de versão fraca do modelo D-N, utilizado
para os casos em que as leis denotam fenômenos de caráter probabilístico. No contexto deste
artigo não trataremos das especificidades do modelo I-P. Para um tratamento detalhado ver
SALMON (1984, 29p.).
35 Para uma objeção à aplicação do modelo D-N à economia realizada no interior da tradição
neoclássica, ver HUTCHISON (1994).
36 Segundo Popper: é, praticamente, impossível conseguir a eliminação dos valores extra-científicos da
atividade científica. A situação é semelhante com respeito à objetividade; não podemos roubar o partidarismo
de um cientista sem também roubá-lo a humanidade, e não podemos suprimir ou destruir seus juízos de
valores sem destrui-lo como ser humano e como cientista. Nossos motivos e até nossos ideais puramente
científicos, inclusive o ideal de uma desinteressada busca da verdade, estão profundamente enraizados em
valorações extra-científicas. (POPPER, 1978, p. 25)
37 A importante idéia metodológica que podemos aprender de nossos erros não pode ser entendida sem a
idéia reguladora de verdade; qualquer erro simplesmente consiste em um fracasso em viver de acordo com
o padrão da verdade objetiva que é a nossa idéia reguladora. Denominamos verdadeira uma proposição
se ela corresponde aos fatos ou se as coisas são como descritas na proposição. É isto que é chamado de conceito
absoluto ou objetivo de verdade que cada um de nós usa constantemente. A reabilitação bem sucedida
deste conceito absoluto de verdade é um dos resultados mais importantes da lógica moderna. [
] Esta
observação alude ao fato de que o conceito de verdade tem sido desprestigiado. Realmente, este foi o quadro
que produziu as ideologias relativistas dominantes em nosso tempo. (POPPER, 1978, p. 27-8)
38 Ver NORRIS (1996, p. 157).
39 De acordo com Norris, o argumento de Quine contra o empirismo lógico e outras variantes do
dualismo esquema/conteúdo, teoria/observação ou analítico/sintético baseia-se na idéia de que há um
número infinito de maneiras possíveis de ajustar uma teoria ou redistribuir seus predicados de modo
a levar em conta algum problema surgido no decorrer da pesquisa científica. E, por outro lado, há sempre
a possibilidade de interpretar o dado (ou proposição observacional) anômalo de uma maneira que resolve
qualquer conflito percebido com as verdades teóricas estabelecidas. Segue-se daí - na explicação holística
de Quine - que nenhuma proposição singular (nenhum item de teoria ou evidência) pode ser jamais
conclusivamente verificada ou falsificada. Porque, se o significado de uma proposição é dado por suas
condições de verdade, e se essas últimas estão entrelaçadas com o inteiro tecido das crenças correntemente
aceitas, então se torna impossível fixar qualquer limite para a série de possíveis ajustamentos destinados a
preservar a verdade. (NORRIS, 1997, p. 69) Ver também NORRIS (1996, capítulo 4).
40 Dentre as regras metodológicas propostas por Popper destacamos as seguintes: adotar tais regras
que venham a assegurar a testabilidade de enunciados científicos; isso quer dizer sua falseabilidade; (...)
em caso de ameaça ao nosso sistema, não o salvaremos mediante nenhum tipo de estratagema
convencionalista; (...) somente são aceitáveis aquelas [hipóteses auxiliares] cuja introdução não venha a
diminuir o grau de falseabilidade ou testabilidade do sistema em questão, mas sim, aumentá-lo. (BLAUG,
1993, p. 56-57)
41 Para muitos comentadores, com tal procedimento Popper transita de uma teoria descritiva da
ciência para uma teoria prescritiva para a ciência.
43 Rorty, que se auto-intitula kuhniano de esquerda, refuta a crítica de que o kuhnianismo conse-
qüente é relativista. (RORTY, 1991, p. 23-28)
46 Caldwell cita Lakatos para explicitar seu manifesto relativismo: Uma vez que a ciência progride
pela enunciação de tradições de pesquisa que são julgadas pelo seu excesso de conteúdo empírico, a proli-
feração de teorias é benéfica [...] [Nas palavras de Lakatos,] pluralismo teórico é melhor do que monismo
teórico. (CALDWELL, 1982, p. 88)
47 Como já foi feito anteriormente (ver nota 19), é preciso chamar a atenção para o uso inconsisten-
te que Lisboa faz da noção de causalidade. Quando se parte de Hume, ao menos da interpretação
corrente que se faz de seu pensamento, como fez o autor, não tem o menor cabimento falar em
causalidade. Justamente por ter partido do problema da indução atribuído a Hume é que Lisboa
concluiu que a ciência não podia ser realista e, em virtude disso, defendeu o instrumentalismo
como a única atitude coerente em relação à ciência. Por esta razão, por descartar enfim qualquer
possibilidade de conhecimento objetivo do mundo, não pode presumir que a teoria neoclássica
apanha relações de causalidade entre variáveis, fatos, fenômenos. Todas as relações propostas pela
teoria denotam tão-somente correlações (empíricas). Assim, parece-nos injusto que cobre da
heterodoxia um empreendimento que considera impossível. Para uma crítica semelhante do uso
da noção de causalidade no quadro de concepções de lei de inspiração humeneana, ver (LAWSON,
1997, capítulos 2, 3 e 7).
48 Pode-se mencionar, entre outros, os seguintes autores: Habermas, Norris, Bhaskar, Callinicos,
Anderson, Eagleton, Searle.
49
[correntes e autores que], apesar de seus muitos desacordos, enfatizaram o caráter fragmentado,
heterogêneo e plural da realidade, negaram ao pensamento humano a habilidade de atingir explicação
objetiva da realidade e reduziram o portador deste pensamento, o sujeito, a uma confusão incoerente de
impulsos e desejos sub- e transindividuais. (CALLINICOS, 1989, p. 2)
50 Em outro artigo procuramos apresentar uma síntese da crítica realizada por Bhaskar ao relativismo
ontológico contemporâneo. (DUAYER, MEDEIROS & PAINCEIRA, 1999)
Todavia, diz Searle, este argumento, apesar de muito antigo, é ainda assim
péssimo, pois o trânsito da teoria geocêntrica para a heliocêntrica não
demonstra que não existe uma realidade independente da teoria. Muito
pelo contrário, porque todo debate só é inteligível sob o pressuposto de que
existe uma tal realidade. Só entendemos o debate e sua importância se assumirmos
que ele diz respeito a objetos reais - a terra, o sol, os planetas - e suas relações
efetivas. (Ibid., p. 25) Em síntese, conclui o autor invertendo totalmente
os termos da crítica ao realismo contra ela mesma, todo o debate e sua
resolução têm por pressupostos a existência do mundo real e a idéia de que
a ciência é meio de descobrirmos verdades sobre ele. Nesta interpretação, a
escolha de uma teoria dentre outras com equivalente sustentação pela
evidência consistiria, em oposição ao pretendido pela posição anti-realista,
de uma afirmação da independência do mundo em relação ao nosso processo
de seleção de teorias. Searle ilumina de maneira primorosa esta diferença
tomando como objeto de crítica uma passagem de Quine, sempre citada
em amparo ao relativismo ontológico:
Essa crítica, juntamente com outras aqui não mencionadas, serve ao menos
para abalar a auto-suficiência das correntes anti-realistas contemporâneas
e, em conseqüência, recoloca na agenda a questão da objetividade do
conhecimento científico. Com isso, parece que qualquer continuidade do
debate tem de partir deste consenso básico: não há como expurgar, seja
como for, a ontologia. O reconhecimento do caráter objetivo do
conhecimento científico, ao lado da admissão agora generalizada de que a
ciência é sempre cultural, social, lingüisticamente mediada, sugere que
qualquer desenvolvimento na análise da natureza e do papel da ciência não
poderá mais pretender separar fatos e valores. Em outras palavras, parece
não haver mais retorno à idéia de ciência axiologicamente neutra. Como
então explicar as posições que compreendem tudo isso e ainda assim
defendem o anti-realismo?
51 Para ilustrar a diferença que faz assumir uma ou outra postura, basta pensar em uma sociedade
escravocrata ou fascista. Sob a abordagem de Lisboa, a ciência social, Economia, por exemplo,
de uma sociedade deste tipo justificar-se-ia por sua adequação empírica e, nesta medida, seria
instrumento da reprodução eficaz da escravidão ou do fascismo. Sobre a natureza dos valores da
sociedade escravocrata ou da fascista não teria que se ocupar a Economia: tais questões escapari-
am de sua esfera de competência - prática. Rorty, ao contrário, justifica o caráter instrumental da
ciência social contemporânea precisamente porque, segundo ele, as sociedades democráticas nor-
te-atlânticas são sociedades presumivelmente baseadas no consenso não coercitivo, sociedades
que presumivelmente nutrem os valores da igualdade, da liberdade e da justiça. Neste sentido, o
uso instrumental da ciência está predicado a supostas virtudes das sociedades liberais democráti-
cas, e não simplesmente, como quer Lisboa, à eficácia da ciência.
BIBLIOGRAFIA
O presente artigo, embora possua unidade por si próprio, constitui um produto parcial de um proje-
to de pesquisa mais amplo que vem sendo desenvolvido pelo GT em Filosofia da Ciência Econômica/
UFF. Registramos nosso agradecimento à profa. Maria Célia M. Moraes (UFSC) pelos comentários
e críticas ao artigo.
(Recebido em março de 2001. Aceito para publicação em julho de 2001).