Diario de Um Louco - Nikolai Gogol

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"Quando o mundo estiver


unido na busca do
conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder,
então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um
novo nível."
Diário de um Louco
Nikolai Gogol
Tradução: Claud Field e Renato Perricone
Sobre o Autor
 
Nikolai Vasilievich Gogol (1º de abril de 1809 – 4 de março de
1852) foi um dramaturgo e novelista russo de etnia ucraniana.
Embora seus primeiros trabalhos tenham sido amplamente
influenciados pela cultura ucraniana, ele escreveu em russo e sua
obra pertence à literatura tradicional russa. A novela Almas Mortas
(1842), a peça Revizor (1836, 1842) e o conto O Casaco (1842)
estão entre as suas obras-primas.
Ele é considerado uma das figuras proeminentes da escola
naturalista do realismo russo, com fortes elementos do surrealismo
e do grotesco em sua obra.
Suas críticas à corrupção e à burocracia russa (O Inspetor do
Governo e Almas Mortas) o levaram ao exílio espontâneo na
Alemanha e Suíça (1836-1848). Até sua morte em 1852, Gogol foi
celebrado como o maior mestre da prosa da língua russa.   
Dia 3 de Outubro.
 
Ocorreu um fato estranho hoje. Eu me levantei bem tarde, e
quando Mawra trouxe as minhas botas limpas, eu lhe perguntei
quão tarde era. Quando escutei que já eram dez horas há tempos,
me vesti o mais rápido possível.
Para dizer a verdade, eu preferiria nem ir ao escritório hoje, já
sabendo que o nosso Escriturário Chefe estaria azedo como
vinagre. Há algum tempo ele tem o hábito de me dizer, “Veja, amigo;
há algo errado com a sua cabeça. Você vive correndo como um
possuído. E você resume os documentos de uma forma tão confusa
que nem o próprio diabo os entenderia; você escreve o título sem
letras maiúsculas, e não coloca data ou o número da súmula.” Esse
canalha de pernas finas! Certamente ele tem inveja de mim, por que
eu me sento na mesma sala que o Diretor e aponto os lápis de Sua
Excelência. Em resumo, eu não teria ido ao escritório senão na
esperança de encontrar o contador e talvez espremer algum
adiantamento do meu salário daquele mão de vaca.
Um homem terrível, esse contador! Se for para adiantar o
salário de alguém vez ou outra – pode esperar o céu se abrir. Você
pode implorar e suplicar para ele e estar à beira da ruína – esse
canalha cinza não cede um centímetro. Enquanto isso, todo mundo
sabe que ele toma uns sopapos da patroa em casa.
Eu realmente não entendo de que adianta servir no nosso
departamento. Não há facilidades ali. Nos departamentos fiscal e
judicial a coisa é bem diferente. Lá um sujeito deselegante senta-se
em um canto e escreve e escreve; ele usa um casaco tão gasto e é
tão feio que alguém cuspiria nos dois. Mas você precisa ver que
casa de campo esplêndida que ele alugou. Ele não seria
condescendente a ponto de aceitar uma xícara de porcelana
trabalhada em ouro como um presente. “Você pode dar isso para o
seu médico”, ele diria. Nada menos que um belo par de cavalos,
uma fina carruagem ou um casaco de pele de castor de trezentos
rublos seria bom o suficiente para ele. E mesmo assim pode se
fazer de gentil e suave, pedindo amigavelmente “por favor, posso
pegar seu estilete emprestado? Eu gostaria de apontar o meu lápis”.
No entanto, ele sabe atormentar um cidadão até que mal lhe sobre a
costura dos bolsos.
No nosso escritório tudo é feito da maneira apropriada e
cavalheiresca; há mais limpeza e elegância do que jamais se verá
em qualquer escritório do Governo. As mesas são de mogno e todos
são tratados por “senhor”. E a bem dizer, não fosse por este
maneirismo oficial, eu já teria entregado minha carta de demissão
há tempos.
Eu vesti minha velha capa e peguei meu guarda chuva, já que
uma leve garoa estava caindo. Não havia ninguém na rua exceto
umas mulheres cobrindo as cabeças com seus casacos. Aqui e ali
se podia ver um cocheiro ou um vendedor com seu guarda chuva.
Da classe alta só havia um oficial aqui e ali. Um dos que eu vi em
um cruzamento me fez pensar “Ah! Meu amigo, você não está indo
ao trabalho, mas atrás dessa mocinha andando à sua frente. Você é
como os outros oficiais que correm atrás de cada rabo de saia que
veem”.
E enquanto eu seguia essa trilha de pensamentos, vi uma
carruagem parar em frente a uma loja bem enquanto eu passava.
Eu a reconheci imediatamente. Era a carruagem do nosso Diretor.
“Ele não tem nada a fazer nessa loja”, eu disse para mim mesmo;
“deve ser a filha dele”.
Encostei-me na parede. Um serviçal abriu a porta da
carruagem, e, como eu esperava, ela saltitou para fora como um
passarinho. Como ela olhou orgulha para a direita e para a
esquerda; Como ela mexeu as sobrancelhas e atirou raios com os
olhos – pelos céus! Eu estou perdido, desesperadamente perdido!
Mas por que ela teria que sair de casa com um clima tão
abominável? E ainda dizem que as mulheres são loucas por manter
a elegância!
Ela não me reconheceu. Eu tinha me enrolado em minha capa.
Estava suja e era antiquada e eu não gostaria de ser visto por ela
vestindo-a. Agora se usa capas com golas longas, mas a minha é
uma dessas de colarinho duplo curto e o tecido é de qualidade
inferior.
A cadelinha dela não pode entrar na loja e ficou do lado de
fora. Eu conheço essa cadela; o nome dela é “Meggy”.
Antes que eu estivesse parado ali por um minuto, eu ouvi uma
voz chamar “Bom dia, Meggy!”
Quem diabos disse isto? Eu olhei em volta e vi duas mulheres
andando apressadas com guarda chuvas – uma mais velha e a
outra bem jovem. Elas já haviam passado por mim quando eu ouvi a
mesma voz dizendo novamente “Que pena, Meggy!”
O que era isso? Eu vi a Meggy farejar uma outra cadela que foi
atrás das mulheres. Diabos! Eu pensei “Será que eu estou bêbado?
Pois acontece, às vezes.”
“Não, Fidel, você está enganada” eu ouvi claramente a Meggy
dizer. “Eu estava-au-au! Eu estava-au! au! au! muito doente.”
Mas que cadela extraordinária! Eu fiquei boquiaberto ao ouvir
ela falar na linguagem humana. Mas após considerar melhor o fato,
deixei de estar impressionado. Na verdade, essas coisas já
ocorreram pelo mundo. Diz-se que na Inglaterra um peixe colocou a
cabeça fora da água e disse uma palavra ou duas em uma
linguagem tão extraordinária que homens estudados estão
quebrando a cabeça há três anos e ainda não conseguiram
interpretá-las. Eu também li no jornal que duas vacas entraram em
uma loja e pediram meio quilo de chá.
Entretanto o que a Meggy disse em seguida me pareceu ainda
mais notável. Ela continuou “Eu escrevi para você recentemente,
Fidel; Talvez o Polkan não lhe tenha entregado as cartas.”
Ora, eu aposto um mês do meu salário se alguém já ouviu falar
de cães escrevendo cartas antes. Eu certamente fiquei abismado.
Durante esses momentos eu ouvi e vi coisas que nenhum outro
homem ouviu ou viu.
“Eu vou” pensei “seguir aquela cadela para chegar ao fundo
disso”.  Por conseguinte, abri o meu guarda chuva e fui atrás das
duas senhoras. Elas desceram a Rua do Feijão, viraram na Rua do
Cidadão e na Rua do Carpinteiro, parando finalmente na Ponte do
Cuco, de frente a um prédio. Eu conheço esse prédio; ele pertence
ao Sverkoff. E que monstro ele é! Que tipo de gente vive ali!
Cozinheiros e viajantes! Há também oficiais como eu, amontoados
como sardinhas. E eu tenho um amigo morando ali, um ótimo
tocador de corneta.
As senhoras subiram até o quinto andar. “Muito bem”, eu
pensei; “Vou tomar nota do número da residência, para voltar e
esclarecer a questão na primeira oportunidade”.
Dia 4 de Outubro.
 
Hoje é quinta-feira e como é usual estive no escritório. Cheguei
cedo de propósito, me sentei e apontei todos os lápis.
Nosso Diretor deve ser um homem muito inteligente. A sala
toda está repleta de estantes. Eu li o título de alguns dos livros; eles
eram muito técnicos, além da compreensão de gente da minha
classe, e todos em francês ou alemão. Eu olho em seu rosto e oh!
quanta dignidade há em seus olhos. Eu nunca ouvi uma única
palavra supérflua sair de sua boca, exceto quando ele me entrega
os documentos e pergunta “Como está o tempo lá fora?”
Não, ele não é um homem da nossa classe; ele é um
verdadeiro homem de Estado. Eu já percebi que sou um favorito
dele. Agora se também o fosse de sua filha – ah! Que besteira – não
direi mais sobre isso!
Eu li o Abelha do Norte. Que povo besta são os franceses!
Céus! Eu gostaria de pegar todos eles e lhes dar uma bela surra. Eu
também li uma bela descrição de um baile promovido por um
proprietário de terras em Kursk. Os proprietários de terras em Kursk
têm muito estilo.
Então eu percebi que já era meio dia e meio e o Diretor ainda
não havia saído de seu gabinete. Mas lá pela uma e meia aconteceu
algo que lápis algum pode descrever.
A porta se abriu. Eu pensei que fosse o Diretor; saltei do meu
lugar com os documentos, e-então-ela-mesma-entrou-na-sala.
Deuses! Como ela estava lindamente vestida. Suas vestes eram
mais brancas que as penas de um cisne – oh, esplêndida! O brilho
de um Sol, em verdade!
Ela me cumprimentou e perguntou “Meu pai ainda não saiu?”
Ah! Que voz. Um canário! Um verdadeiro rouxinol!
“Sua Excelência” eu queria gritar “não mande que me
executem, mas se deve ser feito, mate-me com suas mãos
angelicais”. Mas, sabe Deus porque, eu não consegui falar. Então
eu disse “Não, ele não saiu ainda”.
Ela me olhou de relance, olhou para os livros nas estantes e
deixou cair o seu lenço. No mesmo instante eu pulei, mas
escorreguei no chão infernalmente encerado e quase quebrei o meu
nariz. Mesmo assim, consegui pegar o lenço. Pelos corais do
paraíso, que lenço! Tão macio e suave, do melhor linho. Tinha um
perfume digno de reis!
Ela me agradeceu, e sorriu tão amigavelmente que seus lábios
de açúcar quase derreteram. Então ela saiu.
Depois que eu me sentei por quase uma hora, um serviçal
entrou e me disse “Você pode ir para casa, Sr. Ivanovitch; o Diretor
já foi embora!”
Eu não suporto esses serviçais! Eles perambulam pelos
vestíbulos e mal se dignam a cumprimentar alguém com um aceno.
Sim, às vezes é até pior; um desses patifes me ofereceu sua caixa
de rapé sem nem mesmo se levantar. “Você não sabe, seu caipira
simplório, que eu sou um oficial e nascido na aristocracia?”
Dessa vez, no entanto, eu peguei meu chapéu e meu casaco
em silêncio; Essas pessoas naturalmente nunca pensam em ajudar
os outros. Fui para a minha casa e fiquei um bom tempo deitado, e
escrevi alguns versos no meu caderno:
“Faz uma hora desde que te vi,
E parece um longo ano;
Se eu sofro com a minha própria existência,
Como posso seguir vivendo, minha querida?”
Acho que são de Pushkin.
Durante a noite eu me enrolei em minha capa e corri para a
casa do Diretor, e esperei ali por muito tempo para ver se ela sairia
e entraria na carruagem. Eu só queria vê-la uma vez, mas ela não
veio.
Dia 6 de Novembro.
 
Nosso Escriturário Chefe ficou louco. Quando eu cheguei hoje
no escritório ele me chamou para a sua sala e disse o seguinte:
“Olha aqui, meu amigo, o que você tem na cabeça?”
“O que? Como? Nada demais” eu respondi.
“Pense bem. Você já passou dos quarenta; é hora de ser
razoável. Está pensando o quê? Acha que eu não conheço todos os
seus truques? Você está tentando cortejar a filha do Diretor? Olhe
para si mesmo e veja o que você é! Um insignificante, nada mais.
Eu não daria um tostão por você. Se olhe no espelho. Como você
pode ter uma ideia dessas com um rosto de caricatura desses?”
Ele que vá para o Diabo! Só por que a cara dele parece um
pote de remédios, por que ele tem uma moita crespa no lugar de
cabelos na cabeça, e às vezes a penteia para cima, e às vezes a
cola para baixo em vários penteados esquisitos, ele pensa que pode
tudo. Eu sei bem, eu sei por que ele ficou bravo comigo. Ele tem
inveja; talvez ele tenha percebido os favores que eu graciosamente
tenho recebido. Mas por que eu me importaria com ele? Um mero
escriturário! Que tipo de animal importante é esse? Ele usa uma
corrente de ouro em seu relógio, compra para si botas de trinta
rublos o par; para o diabo com ele! Seria eu o filho de um reles
alfaiate ou de outra origem obscura? Eu sou um nobre! Eu também
posso subir na vida. Eu tenho apenas quarenta e dois anos – uma
idade em que a verdadeira carreira de um homem geralmente está
começando. Espere um momento, meu amigo! Eu também posso
chegar a um cargo de supervisor; ou talvez, com a graça de Deus,
até mais alto. Eu terei um nome que superará em muito o seu. Você
acha que não há outros homens capazes além de você? Eu só
preciso encomendar um casaco da moda e usar uma gravata como
a sua, e você será eclipsado.
Mas eu não tenho dinheiro – essa é a pior parte!
Dia 8 de Novembro.
 
Eu fui ao teatro. “O Bobo Doméstico Russo” foi encenado. Eu ri
de todo coração. Havia também uma comédia musical com ótimas
piadas sobre os contabilistas. A linguagem foi bastante liberal; eu
imagino qual censor que aprovou o texto. Fizeram uma piada
acusando os mercadores de serem trapaceiros; disseram que seus
filhos levam vidas imorais e agem sem respeito para com a nobreza.
Os críticos também foram criticados; deles foi dito que somente
encontram falhas, levando os autores a buscar o apoio do público. 
Nossos dramaturgos modernos certamente escrevem coisas
divertidas. Eu gosto muito do teatro. Se eu tivesse um tostão no
bolso, eu iria sempre. A maioria dos meus colegas oficiais são
burros sem educação e nunca entram em um teatro a não ser que
alguém lhes atire os ingressos de graça na cabeça.
Uma atriz cantou divinamente. Eu pensei na–mas silêncio!
Dia 9 de Novembro.
 
Por volta das oito horas eu fui para o escritório. O Escriturário
Chefe fingiu não perceber a minha chegada. Eu, por minha vez,
também agi como se ele não existisse. Eu analisei e conferi
documentos. Lá pelas quatro eu saí. Eu passei pela casa do Diretor,
mas não havia ninguém a vista. Depois do jantar eu fiquei um bom
tempo deitado na cama.
Dia 11 de Novembro.
 
Hoje eu me sentei na sala do Diretor, apontei vinte e três lápis
para ele, e para ela – para Sua Excelência, Ela – apontei mais
quatro.
O Diretor gosta de ver muitos lápis sobre a sua mesa. Que
cabeça ele deve ter! Ele continuamente se envolve em silêncio, mas
eu não acho que o menor detalhe lhe escape. Eu gostaria de saber
o que ele pensa, o que lhe passa pelo cérebro; eu gostaria de
conhecer todas as maneiras desses cavalheiros, e ter uma vista de
perto da arte da astúcia na Corte, e todas as atividades desses
círculos. Eu já pensei em perguntar para Sua Excelência algumas
vezes; mas – Deus sabe o porquê – toda as vezes minha língua me
falhou e eu não consegui nada além do relatório meteorológico.
Eu gostaria de dar uma olhada no gabinete do qual eu tanto
vejo a porta se abrir. E um segundo aposento após o gabinete atiça
a minha curiosidade. Que mobília esplêndida; que qualidade de
espelhos e que escolha de porcelanas contém! Eu também gostaria
de ver os aposentos que Sua Excelência, a filha, reside. Eu gostaria
de ver como todos os vidros de perfume e caixas estão arrumados
em seu vestíbulo, e as flores que exalam um perfume tão delicioso
que me dariam receio de respirar. E as roupas dela caídas pelo
lugar, que são tão etéreas que mal podem ser chamadas de roupas-
mas silêncio!
Hoje me ocorreu o que pareceu uma inspiração divina. Eu me
lembrei da conversa entre os dois cachorros que eu ouvi na
Alameda Nevsky. “Muito bem” eu pensei; “agora eu vejo claramente.
Eu preciso obter a correspondência que aquelas cadelinhas
trocaram entre si. Nela eu devo obter muitas explicações”.
Eu já tinha chamado a Meggy e dito para ela “Ouça, Meggy!
Agora nós estamos sós, juntos; se você quiser, eu posso fechar a
porta para que ninguém nos veja. Agora me conte tudo que você
sabe sobre a sua dona. Eu juro para você que não contarei a
ninguém.”
Mas a cadela astuta agitou a sua cauda no ar e andou em
silêncio até a porta, como se não tivesse me ouvido.
Eu já era há tempos da opinião de que cães são mais espertos
do que homens. Eu também acreditava que eles podiam falar, e que
apenas uma certa obstinação os impedia. Eles são animais
especialmente vigilantes e nada lhes escapa à observação. Agora,
custe o que custar, amanhã eu vou ao prédio do Sverkoff para
questionar a Fidel, e se eu tiver sorte, obter as cartas que a Meggy
lhe escreveu.
Dia 12 de Novembro.
 
Hoje lá pelas duas da tarde eu decidi, de um jeito ou de outro,
encontrar a Fidel e questioná-la.
Eu não suporto o cheiro de chucrute que vem de todas as lojas
da Rua do Cidadão e que me ataca os nervos olfativos. Ali também
é exalado um odor por debaixo das portas de cada construção que
se deve tampar o nariz e apertar o passo. Ali também sopra tanta
fumaça e cinzas das oficinas dos artesãos que é quase impossível
atravessar.
Quando eu subi até o sexto andar e toquei a campainha, uma
garota até bem bonita com sardas no rosto saiu. Eu a reconheci
como a acompanhante da senhora. Ela ficou um pouco vermelha e
perguntou “O que você quer?”
“Eu quero ter uma pequena conversa com a sua cadela.”
Ela era apenas uma garota simplória, como eu percebi
imediatamente. A cadela veio correndo e latindo alto. Eu queria
segurá-la, mas a besta abominável quase me pegou o nariz com os
dentes. Mas no canto do cômodo eu vi a sua cesta de dormir. Ah!
Era isso o que eu queria. Eu fui até ela, vasculhando na palha, e
para minha grande satisfação encontrei um punhado de pedaços de
papel. Quando a cadelinha horrível viu isso, primeiro ela me mordeu
na panturrilha de uma perna, e então, assim que percebeu o meu
furto, começou a choramingar e a se roçar em mim; mas eu disse
“Não, sua pequena fera; Adeus!” e me apressei a sair.
Eu acredito que a garota me tomou por um louco; de qualquer
forma ela ficou bastante assustada.
Quando eu cheguei no meu quarto eu quis passar ao trabalho
de uma vez, e ler todas as cartas à luz do dia, já que eu não
enxergo muito bem à luz de velas; mas a terrível Mawra teve a
brilhante ideia de esfregar o chão. Essas mulheres finlandesas
cabeças-duras estão sempre limpando onde não há necessidade.
Eu então fui dar uma caminhada e passei a refletir sobre o que
ocorreu. Agora pelo menos eu poderia chegar à verdade dos fatos,
ideias e intenções! Essas cartas explicariam tudo. Cães são sujeitos
espertos; eles sabem tudo sobre política, e eu certamente
encontrarei o que eu busco nas cartas, especialmente o caráter do
Diretor e todos os seus relacionamentos. E por meio dessas cartas
eu vou obter toda a informação sobre ela que-mas silêncio!
Mais a tarde eu cheguei em casa e me deitei por um bom
tempo na cama.
Dia 13 de Novembro.
 
Agora vejamos! A carta é até que legível mas a letra é um
pouco canina.
“Querida Fidel! Eu não consigo me acostumar ao seu nome,
como se eles não pudessem ter te colocado um nome melhor! Fidel!
Que mal gosto! Que comum! Mas essa não é a ocasião para
conversar a respeito disso. Eu fico muito contente por termos
decidido nos corresponder.”
(A carta é escrita muito corretamente. A pontuação e a
gramática estão perfeitas. Nem o nosso Escriturário Chefe escreve
de forma tão simples e clara, apesar dele insistir que frequentou a
Universidade. Continuemos)
“Eu acredito que seja uma das alegrias mais refinadas deste
mundo o poder trocar pensamentos, sentimentos e impressões.”
(Hum... Essa opinião vem de um livro que foi traduzido do
alemão. Eu não consigo lembrar-me do título.)
“Eu falo por experiência própria, apesar de que eu não tenha
ido muito longe nesse mundo do que pouco além da nossa porta da
frente. Não é que a minha vida corre feliz e confortável? Minha
dona, a qual seu pai chama Sophie, me ama claramente”.
(Ah! Ah! – mas é melhor ficar quieto!)
“Seu pai também me acaricia as vezes. Eu bebo chá e tomo
café com creme. Sim, minha querida, eu devo confessar que não
vejo graça naqueles ossos grandes, meio roídos que o Polkan
devora na cozinha. Apenas os ossos de faisão selvagem são bons,
e apenas quando o tutano ainda não lhes foi sugado. Eles ficam
muito saborosos com um pouco de molho, mas não se deve
acrescentar nada verde na receita. Mas eu não conheço hábito pior
do que dar aos cães bolas de miolo de pão amassado. Alguém se
senta à mesa, amassa uma bolinha de miolo de pão com dedos
imundos, te chama e a enfia na sua boca. As boas maneiras te
impedem de recusar, então você come – com nojo, é verdade, mas
você come.”
(Que diabo! O que é isso? Que besteira! Como se ela não
tivesse nada melhor para escrever! Eu verei se não há nada melhor
na segunda página.)
“Eu te contarei de boa vontade tudo o que acontece aqui. Eu já
mencionei a pessoa mais importante da casa, a quem a Sophie
chama de ‘Papa’. Ele é um homem muito estranho.”
(Ah! Até que enfim! Sim, eu sabia; cães têm o olhar penetrante
de um político sobre todas as coisas. Vejamos o que ela diz sobre o
“Papa”.)
“...muito estranho. Normalmente ele fica quieto; fala muito
raramente, mas cerca de uma semana atrás ele ficou repetindo
sozinho ‘Devo comprar ou não?’ Em uma das mãos ele segurava
uma folha de papel; a outra ele esticou como se para receber algo, e
repetiu ‘Devo comprar ou não?’ Então ele se virou para mim e
perguntou, ‘O que você acha, Meggy?’ Eu não entendi nada do que
ele quis dizer, farejei as suas botas e saí. Uma semana depois ele
chegou em casa com o rosto brilhando. Naquela manhã ele foi
visitado por diversos oficiais de uniforme que o parabenizaram. Na
mesa de jantar ele estava com um humor melhor do que eu jamais
vira antes”.
(Ah! Então ele é ambicioso! Eu deverei me lembrar disso.)
“Desculpe-me, querida, eu preciso encerrar, etc. etc.. Amanhã
eu terminarei a carta.”
... ...
“Ora, bom dia; Aqui estou eu novamente. Hoje a minha dona
Sophie...”
(Ah! Vejamos o que ela diz da Sophie. Vamos em frente!)
 “... estava de um humor estranhamente animado. Ela foi a um
baile, e eu aproveitei para te escrever em sua ausência. Ela gosta
de ir a bailes, ainda que ela fique terrivelmente nervosa para
escolher uma roupa. Eu não entendo, minha querida, qual a graça
de ir a um baile. Ela volta para casa às seis da manhã, e, a julgar
por sua face pálida e emaciada, sem ter comido nada. Para dizer
bem a verdade, eu não suportaria uma experiência dessas. Se eu
não pudesse comer uma perdiz com molho, ou a asa de uma
galinha assada, não sei o que eu faria. Um mingau com molho até
seria tolerável, mas eu não me empolgo com cenouras, nabos e
alcachofras.”
O estilo é muito peculiar! Dá para ver que não foi escrito por
um homem. O começo até que é bastante inteligente, mas ao final a
natureza canina desperta. Eu lerei outra carta; é bem comprida e
não possui data.
“Ah, minha querida, como é agradável a chegada da
primavera! Meu coração bate forte de expectativa. Há um zunido
contínuo nos meus ouvidos, então eu fico com um pé erguido, por
vários minutos, escutando na direção da porta. Eu confesso que
tenho alguns admiradores. Às vezes eu me sento à janela e os
deixo desfilar. Ah! Se você soubesse as aberrações que há entre
eles; um deles, um cão desajeitado com a estupidez estampada na
testa, anda pela rua com um ar de soberba e se imagina uma
pessoa extremamente importante, e que todos os olhares do mundo
estão fixos nele. Eu não lhe dou a menor atenção e até finjo não vê-
lo.”
“E que buldogue horrendo fica de guarda do lado oposto à
minha janela! Se ele se erguesse sobre as patas traseiras, como o
monstrengo provavelmente não consegue, ele seria mais alto que o
Papa da minha dona, que já é uma pessoa alta. E esse palhaço
parece, além disso, ser muito insolente. Eu rosno para ele, mas ele
parece não se importar nem um pouco. Se ele pelo menos se
mexesse! Ao invés disso, ele fica com a língua estendida, pendura
as grandes orelhas, e encara a janela – esse brutamontes rude! Mas
você pensa, minha querida, que meu coração resiste a todas
tentações? Ai de mim, não! Se você ao menos tivesse visto o cão
cavalheiresco que se insinuou pela cerca do vizinho.”
“’Tesouro’ é o seu nome. Ah, minha querida, que belo focinho
ele tem!”
(Ao diabo com essas coisas! Que besteira é isto! Como alguém
pode gastar papel com esses absurdos. Dê-me um homem. Eu
quero ver um homem! Eu preciso de comida para alimentar e
refrescar a minha mente, mas recebo essa baboseira no lugar. Vou
virar a página para ver se há algo melhor do outro lado.)
“Sophie se sentou à mesa e bordava alguma coisa. Eu olhei
pela janela e me diverti vendo os transeuntes. De repente um
serviçal entrou e anunciou uma visita – ‘O Sr. Teploff’”
“Deixe-o entrar!’ disse Sophie, e me abraçou ‘Ah! Meggy,
Meggy, você sabe quem é esse? Ele é moreno e é o Comissário da
Residência Real; e que olhos ele tem! Negros, mas brilhantes como
um fogo.’”
“Sophie correu para o seu quarto. Um minuto depois um jovem
cavalheiro de bigode entrou. Ele foi até o espelho, ajeitou o cabelo e
olhou pela sala. Eu me virei e sentei no meu lugar.”
“Sophie entrou e retribuiu o cumprimento dele de forma
amigável.”
“Eu fingi não observar nada e continuei olhando para fora da
janela. Mas inclinei a minha cabeça para o lado da conversa deles.
Ah, minha querida! Mas que coisas tolas eles conversaram – como
uma moça fez um passo de dança errado; como um tal Boboff, com
uma camisa de mangas estufadas parecia uma cegonha e quase
caiu; como uma tal Lidina pensa que tem olhos azuis quando na
verdade são verdes, etc.”
“Eu não sei, minha querida, qual charme especial ela vê nesse
Sr. Teploff, e por que ela está tão encantada com ele.”
(Parece-me que há algo errado aqui. É impossível que esse
Teploff a tenha cativado. Nós veremos adiante.)
“Se esse Comissário da Residência Real a agrada, então ela
também deve se divertir, a meu ver, daquele oficial que se senta no
escritório do Papa. Ah, minha querida, se você conhecesse a figura!
Um verdadeiro palhaço!”
(A que oficial ela se refere?)
“Ele tem um nome esquisito. Ele sempre se senta ali e aponta
os lápis. O cabelo dele parece um fardo de feno. O Papa dela
sempre o emprega ao invés de utilizar um outro servo qualquer.”
(Eu acredito que esta besta abominável esteja se referindo a
mim. Mas o que o meu cabelo tem a ver com feno?)
“Sophie nunca consegue segurar a risada quando o vê.”
Você mente, maldita cadela! Mas que língua infame! Como se
eu não soubesse que é a inveja que te motiva, e que é uma
armação – sim, uma armação do Escriturário Chefe. O ódio que
aquele homem sente por mim é implacável; ele trama contra mim,
ele sempre procura me prejudicar. Eu vou analisar mais uma carta;
talvez esta esclareça o caso.
“Fidel, minha querida, me perdoe se não escrevi todo esse
tempo. Eu estava voando em um sonho de encanto! Na verdade,
um escritor disse que ‘o amor é uma segunda vida’. Além disso, há
grandes mudanças ocorrendo nessa casa. O jovem Comissário está
sempre aqui. Sophie está perdidamente apaixonada por ele. O Papa
dela está satisfeito. Eu ouvi de Gregor, que varre o chão aqui e tem
o hábito de falar sozinho, que o casamento logo será celebrado. O
Papa dela a terá casada a qualquer custo com um general, coronel
ou comissário.”
Diabos! Eu não posso ler mais. É tudo sobre comissários e
generais. Eu gostaria de ser um general – não para ter a mão dela e
essas coisas – não, não mesmo; eu gostaria de ser general apenas
para poder ver as pessoas se contorcendo, se enroscando e
tramando para mim.
E eu gostaria de dizer aos dois que eles não valem um cuspe.
Como é irritante! Eu rasguei a carta da cadela idiota em mil
pedaços.
 
Dia 3 de dezembro.
 
Não é possível que o casamento se realize; é apenas conversa
fiada. De que adianta ele ser Comissário! É apenas uma honraria,
não é algo concreto, que se possa ver e pegar. O cargo de
Comissário dele não lhe dá um terceiro olho na testa. Nem é o nariz
dele feito de ouro; é igualzinho ao meu e ao nariz de todo mundo.
Ele não come e tosse por ele, mas sim cheira e espirra. Eu gostaria
de desvendar esse mistério – de onde vêm todas essas
condecorações? Por que eu sou apenas um Conselheiro Titular?
Talvez eu seja na verdade um conde ou general, e apenas
pareça ser um Conselheiro Titular. Talvez nem eu saiba o que eu
sou. Quantos casos há na história de um cavalheiro, talvez até um
burguês ou cidadão, de repente se revelar um grande senhor ou um
barão? Bem, suponhamos que eu apareça vestindo um uniforme de
general, uma dragona no ombro direito, uma dragona no ombro
esquerdo, e uma cinta azul me cruzando o peito, que tipo de música
a minha amada cantaria então? O que iria o Papa dela, o nosso
Diretor, dizer? Oh, ele é ambicioso! Ele é um maçom, certamente
um maçom; mesmo que ele tente esconder, eu descobri. Quando
ele oferece a mão a alguém, ele estica apenas dois dedos. Ora, não
poderia eu ser nomeado general ou superintendente agora mesmo?
Eu gostaria de saber por que eu sou Conselheiro Titular – por que
só isso e não mais?
Dia 5 de dezembro.
 
Hoje eu passei a manhã toda lendo os jornais. Coisas muito
estranhas têm ocorrido na Espanha. Eu não entendi todas. Estão
dizendo que o trono está vago, que os representantes populares
estão com dificuldade para encontrar um ocupante e que estão
havendo tumultos.
Tudo isso me parece muito estranho. Como pode o trono ficar
vago? Há quem diga que ele será ocupado por uma mulher. Uma
mulher não pode se sentar em um trono. Isso é impossível. Apenas
um Rei pode sentar em um trono. Dizem que não há Rei lá, mas
isso não é possível. Não pode haver um reino sem Rei. Lá deve
haver um Rei, mas ele está escondido em algum lugar, Talvez ele
esteja lá mesmo, e apenas algumas complicações internas ou
precauções com os poderes vizinhos, França e os outros, o
obriguem a permanecer escondido; Ou pode ainda haver outro
motivo.
Dia 8 de Dezembro. 
 
Eu estava quase indo ao escritório, mas algumas
considerações me impediram. Eu estive pensando no caso da
Espanha. Como é possível que uma mulher venha a reinar? Não
deveria ser permitido, especialmente pela Inglaterra. No resto da
Europa a situação também é crítica; o Imperador da Áustria—
Esses eventos, para dizer a verdade, me abalaram de tal
maneira que eu não consegui fazer nada o dia todo. Mawra me
disse que eu estava distraído à mesa. Na verdade, na minha
distração eu derrubei dois pratos no chão, que se partiram em
pedaços.
Depois do jantar eu me senti fraco e não senti vontade de fazer
esses registros abstratos. Eu passo a maior parte do tempo deitado
na minha cama e penso no caso da Espanha.
O ano 2000: Dia 43 de Abril.
 
Hoje é um dia de esplêndido triunfo. A Espanha tem um Rei;
ele foi encontrado, e eu sou ele. Eu descobri isso hoje; Do nada,
isso me atingiu como um relâmpago.
Eu não entendo como eu pude imaginar que eu seria um
Conselheiro Titular. Como pode uma ideia tola dessas entrar na
minha cabeça? Foi sorte ninguém ter pensado em me enfiar em um
hospício. Agora está claro como cristal. Antes – não sei por que –
tudo parecia envolto em um tipo de névoa. E isso se deu, creio eu,
pelo fato das pessoas pensarem que o cérebro fica na cabeça.
Nada disso; ele é carregado pelo vento desde o Mar Cáspio.
Pela primeira vez eu contei à Mawra quem sou eu. Quando ela
percebeu que estava diante do Rei da Espanha, ela levou as mãos
à cabeça e quase morreu de preocupação. A estúpida nunca havia
posto os olhos no Rei da Espanha antes!
Eu a acalmei, contudo, garantindo que não fiquei bravo com
ela por ter limpado mal as minhas botas até hoje. As mulheres são
umas coisinhas estúpidas; não se pode despertar nelas o interesse
por assuntos majestosos. Ela ficou assustada por que pensou que
todos os Reis da Espanha eram como Filipe II. Mas eu expliquei a
ela que havia uma grande diferença entre eu e ele. Eu não fui ao
escritório. Por que diabos eu deveria? Não, meus caros amigos, não
me verão lá novamente! Não vou mais me preocupar com os seus
documentos infernais.
Dia 86 de Marcembro. No meio do dia e da
noite.
 
Hoje o mensageiro do escritório veio me convocar, já que não
estive lá em três semanas. Eu fui apenas por diversão. O
Escriturário Chefe pensou que eu fosse cumprimenta-lo
humildemente e inventar desculpas; mas eu o encarei com
indiferença, nem bravo, nem calmo, e me sentei em meu lugar como
se não tivesse notado ninguém. Eu olhei para aquela gentalha de
escrivães e pensei “Se vocês apenas soubessem quem está entre
vocês! Céus! Que bagunça vocês fariam. Até o Escriturário Chefe se
curvaria até o chão na minha frente como ele faz com o Diretor”.
Uma pilha de relatórios foi colocada à minha frente, para que
fossem feitos as ementas, mas eu não encostei um dedo sequer.
Após algum tempo houve uma agitação no escritório e se
comentou que o Diretor estava chegando. Muitos dos funcionários
competiam para chamar atenção; mas eu não me movi. Quando ele
chegou à nossa sala, cada um correu a abotoar os casacos; mas eu
nem pensei em fazer algo do tipo. O que é o Diretor para mim?
Devo me levantar perante ele? Nunca. Que tipo de Diretor ele é?
Ele é uma tampa de garrafa e não um diretor. Uma simples e
comum tampa de garrafa – nada mais.
Eu me diverti quando me trouxeram um documento para
assinar. Eles pensaram que eu simplesmente escreveria o meu
nome – “fulano de tal, Conselheiro”. E por que não? Mas no topo da
página, onde o Diretor geralmente escreve o seu nome, eu anotei,
em letras grandes “Ferdinando VIII”. Você deveria ver o silêncio
reverencial que se fez. Mas eu fiz um gesto e disse “Cavalheiros,
nada de cerimônia, por favor!”. Então eu saí e tomei o rumo da casa
do Diretor.
Ele não estava em casa. O mordomo não quis me deixar
entrar, mas eu falei com ele de um jeito que o fez ceder.
Eu fui direto ao vestíbulo da Sophie. Ela estava sentada na
frente do espelho. Quando ela me viu, pulou da cadeira e deu um
passo para trás; mas eu não contei para ela que eu era o Rei da
Espanha.
Mas eu contei para ela que a felicidade a aguardava, além do
que ela poderia imaginar; e que apesar das tramas dos nossos
adversários nós deveríamos nos unir. Isso era tudo o que eu queria
lhe dizer, e eu saí. Oh, que criaturas astutas são as mulheres! Agora
eu percebi o que a mulher realmente é. Até agora ninguém sabia
quem uma mulher ama; eu sou o primeiro a descobrir – ela ama o
demônio – e isso é tudo. Você vê uma mulher usando seus
binóculos no teatro, de um camarote na primeira fila. Alguém
pensaria que ela observa aquele cavalheiro ostentando suas
medalhas. Nem um pouco! Ela está observando o demônio que fica
atrás dele. Ele se esconde ali e acena para ela com o dedo. E ela se
casa com ele – efetivamente – ela se casa com ele!
Essa é toda a sua ambição e o motivo é que sob a língua
existe uma pequena bolha na qual há uma minhoquinha do tamanho
da cabeça de um alfinete. E isso é preparado por um médico na Rua
do Feijão; Eu não lembro o nome dele no momento, mas isso é tão
certo que, juntamente com uma parteira, ele quer espalhar o
islamismo pelo mundo todo, e em resposta um grande número de
pessoas na França já adotou a crença de Maomé.
Sem data. O dia não teve data.
 
Eu saí para uma caminhada anônima na Alameda Nevski. Eu
evitei todos os indicativos de ser o Rei da Espanha. Eu senti que ser
reconhecido por todos estaria abaixo da minha dignidade, já que
primeiro eu devo ser apresentado à Corte. E eu também fui
impedido pelo fato de ainda não ter um uniforme nacional espanhol.
Se eu ao menos conseguisse uma capa! Eu tentei uma consulta
com um alfaiate, mas são todos uns idiotas! Ademais, eles
conduzem mal os seus negócios, agem na especulação e se
tornaram vagabundos. Eu farei uma capa com o meu uniforme novo
de Conselheiro, que só usei duas vezes. Mas para evitar que esse
alfaiate remendão estrague a surpresa, eu mesmo costurarei a
portas fechadas, para que ninguém me veja. Já que o corte da capa
será mudado, eu mesmo farei os cortes.
Eu não me lembro da data. Só o diabo sabe que mês é. A capa
está pronta. Mawra se espantou quando eu vesti. Eu não vou,
contudo, me apresentar à Corte ainda; a delegação da Espanha
ainda não chegou. Não seria apropriado eu me apresentar sem eles.
Minha aparência seria então muito menos majestosa. De hora em
hora eu os espero.
Dia 1º.
 
Esse atraso extraordinário da delegação espanhola me deixa
abismado. O que poderia os estar detendo? Talvez os franceses
estejam envolvidos; eles certamente têm uma inclinação hostil. Eu
fui à agência dos correios inquirir se a delegação espanhola havia
chegado. O oficial dos correios é um cabeça-dura extraordinário que
não sabe de nada. “Não”, ele me disse, “não há nenhuma delegação
espanhola aqui; mas se você quiser lhes enviar uma carta, nós a
encaminharemos pela tarifa vigente.” Absurdo! O que eu iria querer
com uma carta? Cartas são tolice. Cartas são o que os boticários
escrevem....
Madri, dia 30 de Fevereiro.
 
Então eu estou na Espanha, finalmente! Aconteceu tão rápido
que eu mal pude entender. Os dignitários espanhóis vieram esta
manhã e eu fui com eles na carruagem. Essa prontidão inesperada
me pareceu estranha. Nós guiamos tão rápido que em meia hora
nós estávamos na fronteira da Espanha. Por toda a Europa há
esses trilhos de ferro fundido e os trens são muito velozes. Um país
maravilhoso, essa Espanha!
Conforme nós entramos no primeiro salão, eu vi diversas
pessoas com as cabeças raspadas. Eu logo imaginei que eles
devem ser nobres ou soldados, a julgar pelas cabeças raspadas.
O Chanceler de Estado que me levava pelas mãos parecia se
portar de uma forma esquisita; ele me empurrou para um pequeno
cômodo e disse “Fique aqui, e se você disser se chamar ‘Rei
Ferdinando’ de novo, eu vou arrancar essas palavras de você.”
Eu sabia, contudo, que isso era apenas um teste, e eu repeti a
minha convicção; ao que o Chanceler me deu dois golpes tão fortes
com um bastão nas costas que eu poderia ter berrado de dor. Mas
eu me contive, me lembrando que essa era uma cerimônia
tradicional da nobreza para quando alguém era conduzido a um alto
posto, e que na Espanha as tradições da nobreza perduram até o
presente dia. Quando eu fiquei sozinho, me pus a estudar as
questões de Estado; eu descobri que a Espanha e a China são o
mesmo país, e é por ignorância que as pessoas acham que são
reinos separados. Eu recomendo que todos logo escrevam a
palavra “Espanha” em uma folha de papel; logo se verá que é o
mesmo que escrever “China”.
Mas eu fiquei muito incomodado por um evento que
acontecerá amanhã; às sete horas a Terra vai cair sobre a Lua. Isso
foi previsto pelo famoso químico britânico Welington. Para dizer a
verdade, eu costumo ficar inquieto quando penso na excessiva
fragilidade da Lua. A Lua é geralmente consertada em Hamburgo, e
de forma muito imperfeita. O serviço é feito por um péssimo artesão,
um sujeito estúpido que não tem ideia do que está fazendo. Ele usa
fios encerados com azeite – daí esse cheiro pungente sobre toda a
Terra que faz as pessoas cobrirem o nariz. E isso deixa a Lua tão
frágil que ninguém consegue morar nela. Logo, nós não
conseguimos ver nossos próprios narizes, já que eles estão na Lua.
Quando eu imaginei comigo mesmo como a Terra, esse corpo
maciço, esmagaria nossos narizes se caísse sobre a Lua eu fiquei
tão inquieto que imediatamente vesti minhas meias e calcei meus
sapatos e me apressei para o salão do Conselho para dar ordens à
policia para evitar que a Terra caia sobre a Lua.
Os nobres de cabeça raspada, os quais eu encontrei em
grande número no salão, eram pessoas inteligentes e quando eu
gritei “Cavalheiros! Vamos salvar a Lua, pois a Terra cairá sobre
ela!” todos trabalharam para cumprir a minha ordem imperial e
muitos treparam nas paredes para puxar a Lua para baixo. Nessa
hora o Chanceler Imperial entrou. Tão logo ele apareceu, todos se
dispersaram, mas somente eu, como Rei, permaneci. Para minha
surpresa, contudo, o Chanceler me bateu com o bastão e me
enxotou para o meus aposentos. Como é forte o respeito à tradição
na Espanha!
Janeiro do mesmo ano, seguindo após
Fevereiro.   
 
Eu nunca poderei entender que tipo de país essa Espanha
realmente é. Os costumes populares e as regras de etiqueta da
Corte são extraordinários. Eu não as entendo em nada, em nada.
Hoje a minha cabeça foi raspada, mesmo eu gritando o mais alto
que pude que não queria ser um monge. O que aconteceu em
seguida, quando eles deixaram água gelada caindo na minha
cabeça, eu não sei. Eu nunca havia experimentado tais tormentos
infernais. Eu quase fiquei louco e eles tiveram dificuldade para me
segurar. O significado deste estranho costume me é desconhecido.
É um costume muito bobo e irracional.
Tampouco posso entender a estupidez dos Reis que não
extinguiram esse costume antes. A julgar pelas circunstâncias, me
parece que caí nas mãos da Inquisição. A coisa toda pode ter sido
preparada pelos franceses – especialmente Polignac – ele é um
lobo, esse Polignac! Ele jurou arranjar a minha morte e agora ele
está me caçando. Mas eu sei, meu amigo, que você é só um
capanga dos ingleses. Eles são sujeitos espertos, e têm um dedo
em cada prato. O mundo todo sabe que a França espirra quando a
Inglaterra cheira rapé.
Dia 25.
 
Hoje o Inquisidor-Mor veio ao meu quarto; quando eu ouvi os
seus passos à distância, me escondi sob a cadeira. Quando ele não
me viu, passou a chamar. No começo ele chamou “Poprishchin!” e
eu não respondi. Então ele chamou “Axanti Ivanovich! Conselheiro
Titular! Nobre!” e eu mantive o silêncio. “Ferdinando VIII, Rei da
Espanha!” e eu estava a ponto de colocar a cabeça para fora, mas
pensei “não, meu caro, você não vai me enganar! Você não vai
despejar água gelada na minha cabeça de novo!”
Mas ele já me havia visto e me empurrou para fora com seu
bastão. O maldito bastão realmente machuca. Mas a seguinte
descoberta me recompensou toda a dor: todos os galos tem uma
Espanha sob as penas, e bem sob a cauda. O Inquisidor-Mor foi
embora nervoso e ameaçou-me com castigos. Mas eu não me
importo com o rancor dele, pois sei que ele não é mais que uma
máquina, uma ferramenta nas mãos dos ingleses.
34 de março. Fevereiro, 349.
 
Não, eu já não tenho forças para aguentar. Oh, Deus! O que
eles estão fazendo comigo? Eles jogam água gelada na minha
cabeça. Eles não se importam comigo e parecem não me ver ou
ouvir. Por que eles me torturam? O que eles querem de alguém
arruinado como eu? O que posso dar-lhes? Eu não possuo nada. Eu
não consigo suportar as torturas; minha cabeça dói como se tudo
estivesse girando ao meu redor. Salvem-me! Levem-me embora!
Deem-me três montarias rápidas como o vento! Prepare a
carruagem, cocheiro, toque os sinos, galope os cavalos e me
carregue embora deste mundo. Para longe, sempre para longe, até
não haver mais o que ver!
Ah! Os céus já se curvam sobre mim; uma estrela brilha
distante; a floresta passa por nós com suas árvores escuras à luz da
Lua; Uma névoa azulada flutua sob meus pés; música toca nas
nuvens; de um lado está o mar, do outro, a Itália; além, eu vejo as
casas dos camponeses russos. Não é a casa dos meus pais ali na
distância? Não é a minha mãe sentada à janela? Oh mãe, mãe,
salve seu infeliz filho! Deixe uma lágrima escorrer em sua cabeça
machucada! Veja como eles o torturam! Segure este pobre órfão em
seu colo! Ele não tem trégua neste mundo; eles o caçam em todos
os lugares.
Mãe, mãe, tenha dó de seu filho doente! E você sabia que o
Sultão da Algéria tem uma verruga sob seu nariz?
 
(fim)
 

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