A Cortesa - Nahra Mestre
A Cortesa - Nahra Mestre
A Cortesa - Nahra Mestre
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Criado no Brasil.
A Cortesã é o segundo livro da série Damas Perfeitas.
Apesar de independentes, as histórias se interligam ao
longo da série e, assim, aconselha-se a leitura do primeiro
livro, A Marquesa, disponível no Amazon e em formato
impresso, na editoraportal.com.br
Prólogo
***
***
Desde que abrigara Marie em seu imóvel comercial, havia quase uma
semana, David a visitava diariamente. Sua mão já estava quase curada, mas
ele sempre encontrava uma oportunidade para que a jovem o examinasse. Ela
era fascinante, e ele desconfiava de que já estivesse maravilhosamente
acostumado com sua companhia.
Ela limpara e organizara a pequena casa nos fundos da loja,
reformando os móveis com os tecidos que encontrara. Preparava os próprios
alimentos na pequena cozinha, e David se encantava com suas habilidades
culinárias.
O tempo que passavam juntos era extremamente agradável. David se
sentia um patife cada vez que a via, desejando vê-la novamente somente com
roupas de baixo.
Naquela tarde quando entrou no antigo atelier, surpreendeu-se com o
que viu. Marie estava organizando tecidos, fitas e linhas. O lugar parecia a
loja de uma modista renomada em pleno funcionamento. O balcão fora
lustrado com perfeição, e ela exibia um sorriso encantador nos lábios.
— Que bom que chegou! — O sorriso dela era tão esplendoroso que
para David foi impossível não sorrir também. — Tive um lampejo e creio que
aprovará.
Avaliando os olhos verdes brilhantes, David constatou que nunca a
vira daquela maneira, radiante, com um humor muito diferente da melancolia
constante que marcava suas expressões mesmo nos momentos mais leves.
— Proponho que me conte lá dentro — sugeriu estendendo-lhe uma
caixa. — Trouxe bolinhos. Por que não nos prepara um chá? Assim pode me
contar sua ideia.
O chá de Marie não era lá essas coisas, o que era compreensível
tratando-se de uma francesa, pensou ele com ironia. A estranha mistura de
ervas deixava a bebida amarga, mas David não revelou isso, elogiou e bebeu
concentrando-se para não fazer careta. Ela parecia ansiosa, batia os pés no
assoalho, e ele postergou a conversa saboreando um bolinho. David a
contemplou divertido, Marie era linda, e sua agitação a deixava ainda mais
sedutora.
— Pois bem — ela se sentou de frente para ele —, você tem uma loja
montada e muito bem-localizada, pelo que pude perceber. Eu preciso de
trabalho, tenho que pagar pela minha estada e conseguir recursos. — Ela
parou por um instante para avaliá-lo, David sorria enquanto lambia o creme
que escorria pelos dedos esguios. — Não deixe cair na ferida, ainda pode
infeccionar — recriminou-o e continuou a expor sua ideia, animada. — Em
Paris eu costurava as roupas das dançarinas e das cortesãs, mas, depois que
saí do Palais des Plaisirs, trabalhei com uma modista renomada. —
Entrelaçou os dedos, mas ele percebeu que ela tremelicava as pernas num ato
de nervosismo. — Posso abrir a loja para você. Eu recebo um pequeno
salário, assim posso pagar pela minha hospedagem, e você pode lucrar um
bom dinheiro.
David sentiu o coração afundar. Seria uma ideia maravilhosa, e ela
realmente parecia empolgada. Lamentou negar-lhe um pedido feito de forma
tão espontânea. Levantou-se e sentou-se ao lado dela, a uma distância que
não poderia ser considerada respeitável. Tocou as mãos dela, que se
entrelaçavam em um movimento repetitivo, temendo decepcioná-la.
— Sinto muito, Marie. A loja entrará em reforma em breve, há anos
tenho planejado abrir uma livraria. — Ele percebeu que o olhar radiante de
segundos atrás havia desaparecido. — Em breve preciso voltar para
Cambridge, e você não poderá ficar aqui. Mas não quero que se preocupe, eu
a deixarei em segurança. Conseguirei um trabalho para você. Só preciso que
me diga o que houve, para que eu possa ajudá-la.
Marie respirou fundo, sabia que, mais cedo ou mais tarde, ele a
confrontaria. Havia abusado da confiança daquele homem que a acolhera sem
perguntar o que havia acontecido. Respirou fundo, já havia ensaiado mil
vezes as meias-verdades que contaria. E, mesmo sabendo que não poderia lhe
dizer tudo, seria justo que lhe contasse parte de sua história.
— Sou neta da famosa madame Bourdon; não da que cuida do Palais
des Plaisirs hoje, mas da que fundou a maison close. Eu não a conheci. —
Deu de ombros e continuou. — Pelo que sei, minha mãe nunca se prostituiu,
ela encontrou um conde inglês e se apaixonou. Acabou engravidando e,
quando nasci, deixou-me com minha tia, para ir atrás do meu pai. Sei muito
pouco da história, a única coisa que sei é que ela partiu me deixando para
trás. — Respirou fundo tentando conter as lágrimas. — Eu nunca quis vender
o corpo e nunca o fiz, não conscientemente. Trabalhava costurando,
limpando, servindo, mas nunca me deitei com ninguém... — Uma lágrima
escorreu involuntariamente. — Até o dia em que fui enganada por um inglês
que me pediu em casamento, eu tola acreditei. Ele disse que voltaria para me
buscar, mas demorou, e não pude esperar. Assim que encontrei uma maneira,
fugi. Trabalhei dia e noite para conseguir dinheiro para vir para Londres. —
Ela sentiu as mãos de David sobre as dela. — Vim atrás dele, e foi quando
descobri que ele se casara com outra. A mulher dele pareceu se comover
comigo e me jogou uma bolsa com muitas moedas, logo depois que deixei a
casa; era tão pesada. Mas não tive tempo de contar, eu nem aceitaria o
dinheiro — ela respirou fundo —, fui roubada por um menino. Um homem
tentou alcançá-lo, mas não sei se conseguiu pegá-lo, pois não voltou para me
devolver. — Enquanto Marie relatava os acontecimentos, David percebeu
que ela parecia reviver o ocorrido. — Fiquei apavorada, levaram tudo que eu
tinha, inclusive minhas roupas. — Ela apertava o relicário que ornava seu
pescoço, como se agarrasse a única coisa que lhe restava. — Logo depois
você me encontrou.
David fechou as mãos em punho, tentando controlar a raiva que
sentia. Teve vontade de desfigurar o rosto do demônio que a iludira, de
estrangular o covarde que a saqueara. Sem se importar com o que era
apropriado, ele a puxou entre os braços e acariciou os cabelos ruivos que se
soltavam em cachos.
Marie nunca havia sido abraçada antes, não daquela maneira. A única
experiência que tivera com um corpo masculino fora na noite em que se
deitara com Phillip, que só cobrira seu corpo com o dele em busca de prazer.
Sentindo-se estranhamente protegida, fechou os olhos desfrutando do
carinho doce e terno. Sua consciência gritava para que ela não se iludisse,
mas a sensação de ser amparada era tão sublime que Marie se entregou. Não
estava se iludindo, mas somente desfrutando de um pouco de acolhimento.
Sabia que David partiria e, embora ele prometesse ajudá-la, era possível que
nunca mais o visse.
— Meu tio, o duque de Sutherland tem uma casa em Shropshire. Ele
tem duas filhas, e você certamente encontrará trabalho lá. Ele não negará um
pedido meu. Partiremos no final da semana.
Por mais que Marie não quisesse ficar longe de Londres, não tinha
como negar a oferta. David era o único que poderia ajudá-la. Quem sabe,
trabalhando na casa do tio de David, pudesse vê-lo novamente.
Capítulo II
***
***
***
Sem saber que estavam sendo observados por Sarah pela janela,
David e Marie se encontraram no jardim leste, lá pelas tantas. Ele havia lhe
enviado uma nota marcando o encontro. Ao ver o bilhete, Marie deixou-se
iludir com a possibilidade de que ele também ansiava por vê-la.
David caminhava ansioso, somente a possibilidade de estar na
companhia de Marie acalmava seu coração. Iluminada pela luz da lua, lá
estava ela. Com os cabelos presos, mas com cachos caindo sobre os ombros.
Ele teve vontade de correr para abraçá-la, ansiava tocar nos fios cor de cobre
mais uma vez.
Foi surpreendido quando ela, que pareceu ler seus pensamentos,
sorrindo como uma menina, jogou-se em seus braços. David a abraçou
demoradamente e, incapaz de se controlar, deixou que os cachos sedosos
escorressem pelos dedos.
— Desculpe. — Ela se afastou de repente, com as bochechas coradas
e o olhar envergonhado.
— Não se desculpe — ele chegou mais perto —, também tive vontade
abraçá-la logo que a vi.
Juntos caminharam entre os teixos, contornando o caminho que
levava até uma pérgola, longe das vistas curiosas de quem estivesse na janela.
— Nunca tinha abraçado ninguém na minha vida antes, somente você
naquele dia. Acho que agi por impulso, pardon, monsieur...
Marie estava confusa, não sabia se aquele comportamento era
adequado; poucas vezes vira, no tempo em que estivera naquela casa, as
pessoas demonstrando tamanho afeto publicamente. Com exceção de lady
Sarah, que surpreendia a todos com seu comportamento irreverente.
— Já pedi que não se desculpe — tocou-lhe o pulso nu, Marie não
usava luvas —, espero que esse não seja o único abraço desta noite. — Ele a
olhava intensamente. — Por favor, preciso saciar minha curiosidade, nunca
ninguém a abraçou antes?
— Não. Nunca deixei as pessoas se aproximarem dessa maneira.
Contei-lhe um pouco de minha história, acredito que tenho motivos
suficientes para desconfiar das pessoas. Afinal, meu destino é ser
abandonada.
— Acredita em destino?
— Não, mas me parece a explicação mais razoável. — Ela parou e se
sentou em um banco. Percebeu que estava no meio de um roseiral, que,
apesar de não ter nenhuma flor, deixava ver botões discretos entre os
espinhos.
— Eu não a abandonei. — Ele se sentou ao seu lado.
— O senhor foi a pessoa mais benevolente que encontrei em minha
vida. Nunca poderei retribuir tudo que fez por mim.
— Talvez com uns dois ou três abraços — falou sorrindo e
recostando-se ao assento. — Bem, pelo que percebi você sobreviveu à lady
Sarah Anson.
— Ah! Ela é encantadora, o senhor tem motivos para nutrir tamanha
admiração. Hoje entendo perfeitamente o que disse, que qualquer cavalheiro
gostaria de se casar com ela.
— Menos meu irmão — pensou alto.
Marie queria fingir que não ouvira, tinha consciência de que era uma
reles criada naquela casa. Mas desejava a felicidade de sua senhora.
— Ela parece tão apaixonada; apesar de tão nova, estuda dia e noite.
Tudo que faz é pensando em lorde Thomas.
Desconfortável com aquele assunto, David resolveu colocar um fim
no passeio.
— Ficarei uma semana em Lilleshall, espero que possamos passear
novamente. — Tocou-lhe a mão com carinho. — Ficaria feliz se ganhasse
mais um abraço agora.
Ele se levantou e estendeu a mão para ajudá-la. Levando as mãos de
Marie aos lábios, aspirou seu perfume e as beijou com reverência. Em
seguida abraçou-a, sentindo o cheiro de jasmim que emanava de seus cabelos.
Marie se deliciou com o carinho, nos braços de David sentia-se
protegida, amparada. Aconchegou-se temendo que aquele momento
terminasse logo e sentiu uma doce agonia contorcê-la por dentro. Seu coração
parecia um cavalo desgovernado, trotando a caminho do abismo e, incapaz de
suportar tamanho descontrole, ela se afastou. Iludida de que estaria salva,
sentiu os lábios de David sobre a testa e fechou os olhos aturdida.
— Preciso descansar, foi uma viagem longa.
— Claro, ficarei mais um pouco.
Sem olhar para trás, David caminhou de volta para a casa. Estar com
Marie era um bálsamo, o momento em que ele não era o protetor de Sarah, o
amigo de John ou o conselheiro de Thomas. Ali, nos braços da francesa, era
ele mesmo, pleno. Mas sabia que tinha obrigações, sua família dependia de
seu bom senso e de seu apoio. Mesmo que não enxergassem, David se tornara
aquele que era chamado para apartar desavenças, oferecer consolo, ou
simplesmente para estar perto dos que precisavam. Às vezes, sentia-se farto
de ser o porto seguro de todos. Queria alguém para ampará-lo, alguém que
cuidasse de suas feridas, não só as do corpo, mas também da alma. E, nos
braços de Marie, encontrara algo muito além do que paz, encontrara aquilo
que sempre oferecera e que jamais recebera.
Tão logo entrou no casarão, seguiu para o gabinete do tio, sabia que o
duque de Sutherland estaria lá àquela hora.
— Entre, meu filho — o duque o convidou quando o viu, pensativo,
parado junto à porta. — Já estava indo me recolher, Lucy acha que tenho
trabalhado muito durante a noite.
— Conversamos amanhã, então. — Ele fez menção de se retirar.
— Sente-se. — O duque serviu duas taças de vinho do Porto e
ofereceu uma ao sobrinho. Em seguida, colocando a garrafa sobre a mesa,
olhou-o interrogativo. — O que o aflige? John aprontou alguma coisa?
— Não, ele tem se mantido distante de tudo e de todos.
— Encontrando uma forma de lidar com os próprios sentimentos.
— Sempre sábio, querido tio. — David ergueu a taça num brinde e
virou o conteúdo em um só gole. — Eu me preocupo com Sarah.
— Seu avô mandou uma carta, e Thomas mandou outra. Eles pedem
que o debute de Sarah seja adiado. Eu me pergunto se não está na hora de
desfazer esse acordo de casamento estúpido.
— Caso o senhor se decida por isso, gostaria de deixar claro que
tenho a intenção de reparar os erros de meu irmão. Se Thomas não se casar
com Sarah, eu me casarei e farei tudo o que estiver ao meu alcance para fazê-
la feliz.
— Você lembra muito a sua tia. — O duque coçou o queixo
pensativo. — Julliet era altruísta assim como você, colocava todos à frente de
si mesma. Ela não foi feliz, David.
— Acredito que isso não seja algo que eu possa mudar, está na minha
natureza.
— Sei disso — ele serviu as duas taças novamente —, sei que será um
ótimo marido para minha filha, mas nós dois sabemos que não existe
ninguém mais teimoso no mundo do que Sarah. Então vamos aguardar para
ver qual será a reação dela quando souber que sua primeira temporada será
adiada. Antes disso, não temos nada a fazer.
— Como consegue manter tanta calma diante do caos?
— Lucy, meu querido sobrinho. Ela é meu porto, meu recanto, meu
refúgio, é nos braços dela que encontro minha paz e forças para enfrentar
cada dia.
— Desconhecia seu lado romântico — zombou, serviu-se de mais um
pouco de vinho e virou o cálice mais uma vez.
— Não sou um homem romântico, diante de minha situação não
poderia ser, mas, no dia em que casar meus filhos, vou retribuir o amor e o
carinho que recebo de Lucy e me tornarei motivo de chacota em todo o Reino
Unido.
Dito isso, o duque se levantou e bateu no ombro do sobrinho. David
sorriu pensativo, ele se parecia mais do que imaginava com o tio, apesar de
não haver qualquer relação de consanguinidade entre eles; também esperaria
que todos a sua volta se resolvessem, quem sabe assim poderia encontrar um
amor como o de Augustus e Lucy.
Capítulo III
***
***
Uma semana havia se passado desde que David estivera a sós com
Marie. Todas as noites ele se vira parado no corredor que dava acesso aos
aposentos dos criados, sempre buscando coragem para entrar no quarto dela.
Passara quase todo o tempo tentando controlar a vontade de estar ao
lado da mulher que lhe roubara o sono. Agora se rendia, da maneira mais
inapropriada, parado junto à porta do quarto de uma dama, àquela hora da
noite.
David passou a pequena nota pela fresta da porta, era um pedido, uma
súplica para um encontro. Os dias anteriores tinham sido tensos e carregados
de incertezas. Seu futuro estava nas mãos dos caprichos do irmão. Tivera que
lidar com o mau humor crônico e com as tendências autodestrutivas de John,
os poucos momentos de calmaria aconteciam quando conversava com o tio
ou com Lucy, que sempre fora como uma tia para ele.
David não seria hipócrita de negar que sua inquietação vinha
principalmente pela sensação de ter experimentado algo tão sublime num
curto espaço de tempo. A sensação de ser ele mesmo, e não o escudo protetor
de sua família.
E era exatamente aquilo de que precisava, mesmo sem saber. Alguém
com quem pudesse conversar sobre o tempo, ou até mesmo acerca de seus
tormentos. Abriu a porta que dava acesso ao jardim de hortênsias, caminhou
sem pressa, talvez até sem esperanças de que Marie aparecesse, mas para sua
surpresa a viu sentada em um dos bancos mais afastados, alimentando o gato
de Ann.
— Acabei de deixar, debaixo de sua porta, uma nota pedindo que me
encontrasse — anunciou assim que se aproximou.
Como se alguém tivesse ouvido as súplicas de Marie, ela o viu.
Elegante como sempre, trazendo consigo um sorriso contagiante e com
olheiras escuras que marcavam o rosto de querubim. Num ímpeto de
completo desembaraço, ela se colocou de pé e o abraçou.
O mundo parou. Marie fechou os olhos saboreando a sensação de
torpor. Cada centímetro de seu corpo formigava com o contato, roubando-lhe
os sentidos. Ela deitou a cabeça no ombro forte, e ele afagou os cabelos cor
de cobre que se soltavam do coque apertado. Passaram segundos, minutos,
mas a sensação era de que, mesmo que se passasse uma eternidade, não seria
suficiente.
David se afastou para olhá-la, segurou a mão delicada e juntos se
sentaram.
— Senti falta do seu abraço — ele revelou depois de beijar a mão dela
com carinho. — Não deveria lhe contar, mas estive na porta de seu quarto
todos os dias.
— Também senti sua falta — confessou num sussurro, olhando para
baixo, a intensidade do olhar dele era desconcertante.
— Depois daquela noite, eu me dei conta do quanto sou sozinho...
— Não diga isso, monsieur está sempre cercado de pessoas, é tão
querido por todos.
— Somos amigos, por favor, dispense as formalidades. — Envolveu a
mão dela com a sua. — David, me chame de David. — Ele deixou o polegar
deslizar pelo pulso de Marie. — Muitas vezes as pessoas me cercam para
resolver suas próprias questões, sou bem mais invisível do que parece.
— Um cavalheiro como o senhor dificilmente passaria despercebido
onde quer que fosse.
— Acredite, muitas vezes sou uma tapeçaria jogada no chão, por onde
as pessoas passam e que dificilmente notam. — Ele levou a mão ao queixo.
— Acho que já me acostumei. Soará estranho o que vou dizer, mas, mesmo
que ninguém me cobre, eu me sinto responsável pela felicidade das pessoas e,
na noite em que cuidou de mim, pela primeira vez enxerguei que tenho
necessidades...
— Necessidades? — Ela tirou a mão rapidamente.
— Por favor, não me interprete mal, não quis ofendê-la, muito menos
faltar-lhe com o respeito. — Ele passou as mãos pelos cabelos. — Estou
sempre a postos para ouvir e ajudar as pessoas e muitas vezes me esqueço de
falar.
— E o que tem vontade de dizer?
— Sobre a situação de Sarah, por exemplo. Tenho consciência de
minhas obrigações, e, se fosse ouvir meus sentimentos, não me casaria com
ela, mas a minha razão me obriga a tal feito, caso meu irmão não o faça.
— Não é um pensamento comum aos homens, bem, eu acho, não
conheço muito sobre pessoas.
— Tem razão, andei refletindo sobre isso. Por causa da livraria, tenho
lido muitos romances para senhoras. Confesso que esse tipo de literatura traz
à tona algumas contradições sobre o conceito de amor.
— Não seriam visões diferentes? Homens e mulheres?
— Talvez — ele parou pensativo —, então me responda. Para você, o
que é o amor?
— Sinto-me em desvantagem nesses questionamentos, não tenho
parâmetros e os poucos livros que li a respeito tinham um conteúdo um tanto
quanto inadequado, por assim dizer. Madame Bourdon não investiria em
livros para iludir corações, temia perder suas meninas para as ilusões sobre
sentimentos.
— Um bom ponto. Mas, por favor, diga-me. Nem que seja com uma
breve divagação.
— Lamento decepcioná-lo. Mas não faço a mínima ideia do que possa
ser. — Ela sorriu se divertindo com a conversa. — Diga-me você.
— Pois bem — ele se recostou levando as mãos à nuca —, sempre
acreditei que o amor fosse respeito, cuidado. Mas recentemente tenho
observado certo fanatismo de Sarah em relação ao meu irmão; ela fala em
cumplicidade, companheirismo, carinho, contato físico, mesmo que tudo isso
seja inadequado. Acredito que seja um novo conceito do amor romântico.
— Lady Sarah costuma dizer que existem duas vidas, uma na
sociedade e outra fora dela. Confesso que acho os ingleses bastante
controversos — ela o fitou curiosa —, isso me faz questionar, como o
conceito de amor pode se relacionar com sua questão com mademoiselle
Sarah?
Depois que as palavras deixaram sua boca, Marie se deu conta de que
havia ido longe demais. Ela era uma reles criada, e aquele assunto
definitivamente não lhe dizia respeito. Mas David permaneceu relaxado ao
seu lado e não hesitou em responder:
— Bem, levando em conta o conceito clássico de amor, eu não faria
objeções se tivesse que me casar com minha prima, mas, do ponto de vista
romântico, temo não conseguir corresponder a tais anseios. Não falo na parte
da amizade, cumplicidade, mas na questão que compete a sentimentos
intensos. Ela é como uma irmã para mim.
— Alguma dama já despertou tais sentimentos desconcertantes no
senhor? — mais uma vez tomada pelo impulso, ela deixou escapar os
pensamentos.
David se ajeitou no banco e a fitou intensamente, como se buscasse
respostas.
— Não — correu o polegar pelo queixo dela sem desviar os olhos —,
não que eu tenha consciência. E você?
— Como disse, não tenho parâmetros para tal avaliação. — Baixou o
olhar sentindo-se em brasas pelo toque.
David não iria desistir. Queria que os olhos de Marie dissessem a ele
aquilo que a boca não verbalizara. Desejou ouvir o próprio nome sendo
pronunciado num delicioso sotaque francês, pelos lábios rosados e
absurdamente sensuais dela. Mas nada foi dito, apenas o chirriar de uma
coruja não muito distante. Estavam conectados somente pelo olhar
silenciosamente barulhento. Incapaz de resistir, ele a beijou no canto dos
lábios demoradamente.
— Obrigado — agradeceu num sussurro —, até as conversas mais
desconexas, com você, são tranquilizadoras.
— Lamento decepcioná-lo, mas não achei sua divagação desconexa.
— Ela sorriu, ainda hipnotizada pela onda de intimidade. — Não que eu
possa me permitir devaneios sobre tais sentimentos. De onde vim, a realidade
é cruel e impiedosa.
— Talvez você deva se permitir leituras sentimentais.
— Talvez. — Ela se levantou e ajeitou as saias do vestido.
Antes que o breve encontro terminasse, David se levantou e a abraçou
mais uma vez. Deixou de lado as inquietações, os questionamentos e
mergulhou no prazer insano que sentia cada vez que o corpo de Marie estava
próximo ao seu.
***
Capítulo IV
Havia se passado um ano desde a última vez que David vira Marie.
Tentou se manter distante, tanto dela como de Sarah. Fazia contato com a
prima somente através de cartas, sempre focando nas contas da livraria. Sarah
era incrivelmente habilidosa com os números.
A indecisão de Thomas em se casar acorrentava David, que, mesmo
que se sentisse preso às suas responsabilidades, não conseguia parar de
pensar nos controversos sentimentos que nutria pela camareira da prima.
Antes julgava que Marie era a única a quem não precisava amparar, mas
estivera equivocado. Ele a amparara, garantira sua segurança, sustento, e em
contrapartida ela o confortava em cada gesto.
Bastava um simples sorriso para que o jovem tivesse certeza de que
ela havia feito muito mais por ele, do que ele por ela. Quando os olhos cor de
jade reluziam, o peito dele inflava. Uma sensação estranhamente assustadora,
um acalanto para o fardo que carregava.
E, mesmo que seus sentimentos continuassem nublados,
desesperadoramente confusos, David já não poderia fugir. Elas chegariam
naquela tarde, e a única certeza de que tinha era de que ficaria para sempre
com uma das duas. Marie ou Sarah. Poderia cunhar o retrato das duas, um em
cada lado de uma moeda e entregar ao irmão; Thomas, que decidiria o futuro
de todos eles.
Divagava alheio, enquanto cavalgava. Quando chegou ao seu destino,
desmontou e entregou o cavalo a um cavalariço. Diante da loja do florista
mais renomado do Reino Unido, providenciaria flores para Sarah, em nome
de Thomas. Era o mínimo que seu irmão podia oferecer à possível futura
noiva. Um senhor grisalho, trajado com esmero, porém em tecidos modestos,
recebeu-o com polidez. Nenhum aristocrata passava despercebido nas lojas
de Londres. David fora recebido com pompa pelo senhor, que parecia já estar
acostumado com os mais exigentes clientes.
— Como posso servi-lo, milorde?
— Venho a pedido de meu irmão, com o encargo de enviar flores a
sua prometida.
— Alguma em especial, milorde?
— O que sugere?
— Cada flor é única e tem um significado especial. As rosas são o
símbolo do amor, mas creio que não tenha brancas o suficiente para fazer um
arranjo à altura de uma futura marquesa. — David esperou que ele
continuasse, ciente de que não era apropriado usar qualquer outro tom senão
o branco para presentear uma dama solteira. — Os narcisos, apesar de sua
beleza, significam amor não correspondido; nesse caso o mais adequado
seriam orquídeas, que simbolizam amor, fertilidade, consideração e encanto.
David não tinha dúvidas, as flores deveriam dar algum sinal a Sarah.
— Por favor, entregue, na casa do duque de Sutherland, um arranjo de
narcisos. — Tateou o bolso à procura do cartão que praticamente obrigara o
irmão a assinar e o entregou ao homem.
— Perfeitamente, milorde.
Antes que pudesse pagar as flores e deixar a loja, David foi atraído
por um perfume inebriante, seus olhos pararam em uma flor robusta, de
pétalas largas e folhas de um tom de verde escruto que lembrava os olhos de
Marie.
— Que flores são essas?
— Gardênias, milorde. Simbolizam amor secreto.
— Por favor, prepare um arranjo. Peça para entregar em minha
livraria. — Queria entregá-las a Marie pessoalmente, não daria a nenhum
mensageiro o prazer de ver as íris cor de jade reluzirem. Queria aquele prazer
somente para si.
À tarde na livraria, não conseguiu se concentrar em nada.
Principalmente depois que sua encomenda chegara. Ornando sua
escrivaninha, as gardênias lembravam-no dela a todo momento. David já
havia enviado uma nota marcando um encontro com Marie após o jantar.
Faria a refeição com os familiares e depois a levaria até a livraria; queria lhe
mostrar como havia ficado a loja depois da reforma. No ano anterior, quando
ela estivera em Londres, não tivera oportunidade.
***
***
***
***
***
***
Naquela noite David acompanhou Marie até Anson’s House e ficou para
o jantar. Precisava conversar com o tio sobre a situação de John e aproveitaria
para pedir um pequeno favor a Sarah. Sua intenção era sair de lá
acompanhado de Marie. O pedido dela martelava a mente de David; “gostaria
de experimentar com você o que ensino para minha senhora durante as
aulas”. Sentiu um desconforto entre as pernas e se ajeitou na poltrona.
Já havia resolvido metade de seus compromissos naquela casa, John
parecia mais domesticado, David já havia conversado com o tio, só lhe
restava trocar meia dúzia de palavras com Sarah. Estava ansioso para partir.
Logo que os cavalheiros se juntaram, as damas na sala íntima, David se
aproximou de Sarah, que brincava distraída com as peças de xadrez.
— Uma partida? — ela ofereceu assim que percebeu o primo aproximar-
se.
— Lamento despontá-la, mas hoje não deixaria você ganhar, portanto
fica para próxima oportunidade — brincou tentando arrancar um sorriso dela.
— Soube que está reclusa, pouco falou durante o jantar.
— Estou decerto apreensiva, mas isso não é novidade, sei que sou o
assunto desta casa nos últimos dias. Tenho pensado no que irá me acontecer
se não me casar.
— Certamente irá frequentar bailes e soirées para ser cortejada pelos
melhores partidos de Londres. — Ela olhou para o primo com desgosto. —
Não me olhe assim, você dispensou minha proposta.
David ficou feliz por ter arrancado um sorriso da prima. Mas percebeu
algo que nunca havia notado, o peso de uma paixão não correspondida.
Colocou-se no lugar dela e sentiu um vazio que não conseguia compreender.
De fato, o amor romântico era algo incompreensível, diferente das
convenções impostas, ditadas por uma sociedade que sobrevivia de
aparências, tudo pelo bem da coroa.
— Conversarei com Thomas, não é justo prolongar sua agonia —
prometeu sabendo o que precisava ser feito. — Preciso de sua ajuda.
Isso fez com que Sarah ficasse alerta, David nunca pedia ajuda, sempre
estava disponível para todos a qualquer hora, mas ela jamais o vira em um
momento de fragilidade ou necessidade.
— Jamais negaria qualquer pedido seu. — Ela sorria, curiosa e feliz por
encontrar alguma distração.
— Marie, quero que a preserve, que não apareça com ela como sua
criada.
— Quer inseri-la na sociedade? — perguntou animada.
— Tudo a seu tempo, há muita coisa em jogo. Mas quero que a
mantenha vestida de forma aceitável; se for preciso encomende tudo de que
ela precisar e lhe dê, eu arco com os custos. Nunca a apresente a ninguém,
sequer revele sua ocupação. O que estou pedindo é que, se for sair com
Marie, que faça como se estivesse saindo com uma dama, e não com uma
criada. Não diga nada a ela.
— Já pensou numa nova identidade? Posso fazer pesquisas...
— Sarah, minha querida, como eu disse há muito a ser resolvido, não aja
como um potro indomado.
Certo de que seria uma tarefa quase impossível para Sarah manter
alguma discrição sobre o assunto, ele resolveu não se preocupar; estava
ansioso demais e não perderia tempo, queria ter Marie nos braços, sentir seu
gosto doce.
Ela já o aguardava dentro da carruagem fechada. David notou o meio
sorriso cúmplice do jovem cavalariço e lhe deu uma moeda. Sentou-se ao
lado de Marie e a envolveu nos braços; ela reclinou a cabeça e fechou os
olhos. Durante todo o trajeto permaneceram em silêncio.
Cada vez que visitava a pequena casa nos fundos da livraria, Marie se
deparava com algo novo, havia flores, que perfumavam toda a modesta sala,
e a lareira parecia ter sido revitalizada.
— Obrigada por hoje, sempre que me conforta me sinto melhor — ela
declarou, aproximando-se da lareira.
— Estarei sempre ao seu lado, ma chéri — David sussurrou as últimas
palavras com a boca colada ao ouvido de Marie.
Ele a abraçava por trás, acariciando preguiçosamente os ombros
delicados. Marie teve vontade de contestar, de implorar a ele que não lhe
prometesse nada, promessas eram quebradas e sempre deixavam marcas. Mas
se conteve. Aquelas carícias faziam com que ela se esquecesse de tudo. Já
não pensava mais em Phillip, nem na tia e em todos os outros problemas.
Concentrava-se nas sensações maravilhosas que desfrutava com um simples
toque dele.
— Devo confessar que você deixou muito para minha imaginação
quando disse que gostaria de experimentar algumas coisas que leciona.
Marie se virou, os olhos expectantes de uma criança que ouvia uma
história de aventura. Com um sorriso travesso nos lábios deixou que a mão
vagasse até o meio das pernas de David.
— Oh! — Ela recuou ao sentir o volume, mas voltou a tocar com
curiosidade. — Eu sabia que..., mas não imaginava que fosse...
— Nunca havia tocado? — ele perguntou hipnotizado, deliciando-se
com a carícia inexperiente.
— Só estive uma única vez com um homem e não tive a oportunidade...
— Ela fechou os olhos tentando esquecer o momento desagradável. — Se
formos... você vai me amarrar? — perguntou alarmada.
— Jamais faria qualquer mal a você. — Ele pegou a mão dela e beijou a
palma com carinho. — Continue, pode saciar toda a sua curiosidade.
Ela voltou a tocar David, que fechou os olhos.
— O que sente? — ela perguntou enquanto testava os movimentos que
aprendera ainda nova.
David engoliu em seco, tentando se recompor para que pudesse
responder; ela não parou e parecia observar-lhe as reações testando o que
mais agradava.
— Nenhuma palavra faria jus a essa sensação. — Ele tomou o pulso de
Marie para que ela parasse. — Já fui tocado por outras mulheres, mas nada
comparado ao que sinto agora. — Ele a beijou com paixão. — Por favor,
temo não conseguir me controlar, eu a desejo como nunca desejei nada em
minha vida.
Marie deu um passo para trás e começou a desabotoar o vestido.
— Tome-me, faz tanto por mim, que eu não seria capaz de negar-lhe o
que deseja.
— Não! Não assim, quero que me deseje também. — Ele a beijou
novamente, com delicadeza. — Quero que sinta o que estou sentindo. Deixe-
me tentar?
Marie assentiu apreensiva, uma coisa era se despir e se oferecer a ele,
outra coisa era se entregar para que ele lhe fizesse o que bem entendesse; já
fizera aquilo uma vez. Não fora bom, fora doloroso e deixara marcas.
Confiava em David, mas as lembranças a traíam.
David percebeu o pânico nos olhos de Marie, beijou atrás da orelha dela,
desceu pelo pescoço, roçou os dentes no queixo e a ouviu soltar o ar. Aos
poucos ela se entregava, e ele desabotoava o vestido. Entre beijos, ele retirou
o espartilho deixando-a somente com as roupas de baixo. Sentou-se no sofá e
a trouxe para o seu lado.
— Quero que me diga, caso não goste de alguma coisa. Basta pedir para
parar.
David não podia negar que não sabia como fazer. Nunca estivera com
uma virgem, não que fosse o caso de Marie, mas a experiência que ela tivera
parecia ter sido dolorosa e desagradável. Queria que ela o desejasse,
precisava ver nos olhos cor de jade a lascívia. Queria fazê-la dele.
Por cima do fino tecido, ele acariciava as pernas esguias. Os olhos
expectantes de Marie acompanhavam cada movimento.
— Vou poder falar? — ela perguntou num fio de voz.
— Oh, ma chéri! O que fizeram com você? — Ele a colocou no colo
com delicadeza. — Pode fazer o que quiser.
— Gosto quando me toca assim, é bem parecido com a sensação de
quando me beija.
Apenas saber da mínima possibilidade de dar prazer a Marie fez David
perder a razão. Ele a beijou com vontade enquanto suas mãos deslizavam
pelo tecido. Subiu a camisola tocando-lhe a pele, ouviu um gemido abafado
escapar dos lábios dela.
Sentir as mãos de David vagarem pelo seu corpo era uma sensação
maravilhosa, pensou Marie. Nada comparado à noite em que se entregara a
Phillip. Ela desconhecia cada sensação que experimentava. Era como se
perdesse os sentidos, a sanidade, e cada toque era saboreado. Com muita
delicadeza, arrastou-se até se sentar no sofá, precisava tocá-lo, desejava
despi-lo. Senti-lo. Sentia-se diferente, já não mais se oferecia para que ele se
servisse de seu corpo, apenas se entregava.
Ele cessou o beijo, sem ar, para avaliá-la. Marie estava corada, ofegante,
com os olhos cerrados. David sabia que o certo era perguntar-lhe se desejava
continuar, mas não podia, temia que ela desistisse.
— Tem camisa inglesa? — ela perguntou, fazendo com que ele se
sentisse aliviado, ela o desejava.
Não era algo que David carregava nos bolsos, bem, não até aquele dia.
Depois daquela noite, não deixaria faltar na lista de suprimentos que
carregava consigo, mas não imaginava que chegariam tão longe.
— Não esperava... — parou de falar quando sentiu Marie montada em
suas pernas, desabotoando sua camisa. — Você é surpreendente, tão inocente
para a vida, tão inexperiente e tão luxuriosa.
— Foi o que aprendi, mesmo que não tenha experiência...
— Diga-me, o que sente?
— Quero despi-lo, quero senti-lo. É como se eu precisasse...
Ele não a deixou continuar, tomou-a no colo e a levou ao pequeno
quarto. David a tomaria na cama, com cuidado, com carinho, da forma como
ela merecia ser amada. E ele viu, em cada gemido, em cada suspiro, que ela
também o desejava. Esperou que Marie se libertasse e se retirou, quando
chegou próximo de sua libertação.
Ela era uma lareira em brasas; mesmo depois de todo o prazer que
desfrutaram, ainda o desejava e, em sua inocência audaz, não escondia o
desejo.
Capítulo VIII
***
A dia do debute de Sarah, havia chegado. Certo de que ela passaria o dia
ocupada com sua senhora, David se esgueirou pela lateral da casa e entrou no
pequeno aposento de Marie. O cômodo tinha o cheiro dela. Viu tecidos
metodicamente organizados em um canto, bordados de flores e uma renda
fina primorosa que estava sobre a cama. Ele não teve dúvidas de que ela tinha
um dom; com tamanha habilidade poderia perfeitamente vestir a rainha
Vitória.
Marie tinha pressa. Mesmo que lady Sarah já estivesse pronta e tivesse
descido para seu debute, ela poderia precisar de algum remendo ou costura de
emergência, precisava estar a postos. Lucy ordenou que somente os lacaios
transitassem entre os convidados, mas ressaltou que todos seriam convidados
para o famoso baile da criadagem ao final.
Os criados estavam em polvorosa, ajeitavam os cabelos, vestiam as
melhores roupas. Na cozinha, comida e bebida à vontade. Naquela noite,
plebeus e nobres desfrutariam os mesmos prazeres. Marie vestiria qualquer
vestido que ganhara de Sarah, tinha muito mais do que precisava, sua senhora
se tornara generosa em demasia. Algum vestido ao qual nunca a vira usar e
que, desconfiava, não lhe coubesse, ficaria comprido demais e um pouco
folgado.
Quando abriu a porta do quarto, viu David com traje completo. Uma
tentação para seus sentidos, o cheiro de colônia masculina estava impregnado
por todo o ambiente. Ela correu e se jogou em seus braços.
— Perdeu o juízo! Se a Sra. Turner o pega aqui...
— Ela está ocupada demais — ele a beijou nos lábios —, não posso me
demorar, vim lhe trazer isso. Quero que use hoje à noite e, por favor, guarde
todas as suas danças para mim.
E, depois de um beijo demorado, ele a deixou. Sobre a cama Marie
encontrou algumas caixas, um exagero, pensou, comparadas às compras de
sua senhora. Na primeira caixa encontrou um vestido e, à medida que o
esticava em cima da pequena cama, sentiu o peito arder, uma alegria infantil
a tomou. Era um vestido que ela havia desenhado. Lembrou-se dos papéis
que deixara espalhados no escritório de David. Ele a surpreendera, mandara
confeccionar um de seus desenhos com os melhores tecidos que podiam
existir. Tocou as mangas primorosamente trabalhadas com rendas francesas,
e, como uma boa costureira, virou o vestido do avesso para conferir os
pontos.
— Não é possível! — Contemplou admirada.
Conhecia aquele acabamento. Ou seria mera coincidência? Os arremates
trabalhados com esmero, com uma fita de veludo, nunca vira nada parecido
antes, enquanto trabalhara como camareira. Nem mesmo nos vestidos de
Ann. Sentou-se para controlar a emoção, um único nome vagava por sua
mente, Heloise Morrice, a modista. Quando fugira do Palais des Plaisirs, fora
ela quem a acolhera. A mulher de poucas palavras que a ajudara a melhorar
seu trabalho na costura e que se encantava com seus desenhos.
Quando Marie partira, prometeram que se encontrariam em Londres.
Madame Morrice sonhava em abrir um atelier naquela cidade e revolucionar
a moda inglesa.
Ao pegar o pequeno cartão no fundo da caixa, Marie deixou-se tomar
pela emoção. Era ela, ela havia conseguido.
Flashes dos momentos que passara ao lado de sua benfeitora inundaram-
lhe os olhos e a mente. Será que Heloise a procurara na casa de Phillip como
prometera? Dúvidas rondavam sua mente, perguntas sem respostas e a
vontade de reencontrá-la. Decidiu que no dia seguinte iria procurá-la.
Ainda emocionada com a grata surpresa, abriu os outros embrulhos,
encontrando sapatos novos e roupas de baixo. Sorriu ao pensar em David as
tirando. Tornara-se uma libertina, uma cortesã, uma amante. Experimentara
dos prazeres da carne e apreciara. David a transformava cada vez que
estavam juntos.
O último pacote a pegou de surpresa, um conjunto completo de desenho.
Papéis, tinta, carvões e tudo o mais de que pudesse precisar. Nunca imaginara
ter algo tão valioso como aquilo.
David era seu anjo, trazia-lhe alegria nos simples gestos, nos grandiosos,
nos pequenos momentos que passavam juntos e até mesmo quando
compartilhavam o leito. Todos os dias, desde a primeira noite que passaram
juntos, ela esperava ansiosa por encontrá-lo, tocá-lo, beijá-lo e entregar seu
corpo a ele.
Uma leve batida à porta a trouxe para o presente. Sra. Turner entrou
cautelosa, parecia um pouco sem jeito, e fechou a porta atrás de si.
— Marie, poderia arrumar meus cabelos? — pediu sem graça, mas logo
a expressão mudou ao ver os embrulhos espalhados pelo quarto.
Marie se assustou, o que a Sra. Turner pensaria? Jamais poderia pagar
por tudo aquilo. Será que pensaria que roubara ou...
— Foi David? — Lucy perguntou com um meio sorriso.
— Sra. Turner, por favor, eu...
Lucy se aproximou devagar. Seu rosto era sereno, não demonstrava
reprovação.
— Querida, eu sei que se encontra com David, nada passa despercebido
nesta casa. É minha obrigação. Imagino que saiba que tenho motivos
suficientes para não a julgar. — Sentou-se na pequena cama, retirando os
embrulhos para que Marie se sentasse também. — Tenho uma dívida enorme
com você, pelo que fez por minha Ann. Somente com sua ajuda, consegui
tirar aquele médico desta casa, nunca poderei retribuir.
— Não diga isso, Sra. Turner. Só fiz o que era certo.
— Sim, eu sei — Lucy colocou a mão sobre a dela —, mas nem todos
fazem o que é certo, e você o fez. — Ela alisou o vestido sobre a cama. —
David tem muito bom gosto, nunca vi nada parecido. — Sorriu tímida. —
Augustus também me deu um vestido, mas eu não tenho mais idade e nem
mesmo elegância para usar essas coisas.
— A senhora é tão bonita. Daria uma duquesa encantadora. — Marie se
levantou e arrastou o velho banco para o lado da cama. — Por favor, sente-se
aqui. — Com habilidade, soltou as tranças da governanta e começou a
pentear seus cabelos. — As inglesas não usam rouge, mademoiselle Sarah me
explicou que há uma convenção em se parecer adoentada, pois mulheres
coradas não são bem-vistas. — Continuava seu trabalho minucioso trançando
a lateral dos cabelos. — Mas um pouco de unguento nos lábios é aceitável. O
que acha de experimentar?
— Não vai ficar demais? É só um baile para os criados e ...
— Senhora Turner, desculpe a franqueza, mas é a senhora desta casa. É
como uma mãe para lady Sarah, ela mesma não esconde a vontade de vê-la
duquesa. A senhora merece, e tenho certeza de que o duque ficará
maravilhado.
Lucy segurou o sorriso, e Marie se concentrou em transformar a
governanta em uma verdadeira aristocrata inglesa. Em retribuição, Lucy
ajudou Marie a se trocar e, quando estavam prontas, viram-se de mãos dadas,
ansiosas para o baile.
Na cozinha os criados comiam e bebiam, ansiosos, enquanto esperavam
os últimos convidados partirem. Já era tarde da noite, mas a Sra. Turner
avisara que não precisariam estar a postos logo cedo.
Marie sentia-se maravilhada por vestir algo que ela mesma havia criado,
bem diferente do vestido que tivera que usar no bordel em que crescera.
Sentia-se uma dama, mesmo que soubesse que isso não passava de uma
ilusão boba.
O duque fora pessoalmente buscar seus funcionários e deu como
oficialmente aberto o baile da criadagem. Não passou despercebido aos
olhares curiosos o quanto ele parecia ansioso e a forma carinhosa com que
tratava Lucy.
No canto do grande salão, observando uma dança animada que acabara
de começar, Marie sentia-se deslocada. Tudo aquilo parecia muito diferente
do que conhecia. Ela já tinha observado dois bailes da criadagem em
Lilleshall, mas em Londres tudo parecia diferente. Talvez porque David lhe
prometera uma dança; ela não sabia dançar, mas queria a companhia dele.
Mesmo estando entre os plebeus, percebeu como as pessoas se portavam. Até
que uma voz doce e familiar chamou sua atenção.
— Marie! Que vestido lindo, você está encantadora, minha amiga. —
Ann a abraçou sem se importar com as pessoas, que na verdade estavam
entretidas demais para reparar naquela demonstração de afeto.
A criada contou que havia sido um presente e da surpresa que David
havia lhe preparado. Ann estava radiante e trocava olhares com Dr. Anthony,
que conversava com John e David no canto do salão. Balançava o leque e o
fechava, o que chamou a atenção de Marie.
— Está sentindo calores? Quer se deitar? — a criada perguntou,
preocupada.
Ann levou a mão aos lábios para esconder o sorriso e tossiu
discretamente.
— Isso é um código, para que Anthony me leve para um passeio. —
Deu uma piscadela com absoluta discrição.
— Mas não pode ir até ele e falar? Como ele sabe o que está dizendo?
— Pela forma como fechei o leque — explicou repetindo o movimento.
— Não posso convidá-lo, muito menos poderia sair com ele pelos jardins.
Por isso precisamos de códigos, para sermos discretos.
Marie parou pensativa, tentando compreender.
— Vocês, ingleses, são estranhos, comunicam-se através da roupa, do
cabelo, das flores e até do leque. Não seria mais fácil dizer?
— Talvez — Ann guardou o leque no bolso —, mas é indecoroso falar o
que pensa e, além do mais, os códigos são mais instigantes.
Indecoroso e instigante! Quanta contradição entre ações e pensamentos,
meditou. No bordel também havia códigos, mas não eram tão antagônicos. A
dama quer, mas não pode dizer, refletia sem se dar conta de que Dr. Anthony
havia tirado Ann para dançar, mas, mesmo assim, diz através de um leque.
— Concede-me a honra de uma dança, mademoiselle? — David
reverenciou, trazendo-a de volta para o presente.
— Eu não sei dançar — falou tão baixo que ele quase não a ouviu. — Só
sei dançar o cancã, mas os ingleses não mostram os tornozelos, é indecoroso
— falou seriamente.
David gargalhou.
— Vou lhe ensinar. — Tomou-a pela mão e deu-lhe um beijo casto. —
Está linda, uma verdadeira dama.
— Obrigada, você não deveria. Eu fiquei tão... deve ter custado uma
fortuna, e o conjunto de desenho...
— Não precisa dizer nada, se continuar atropelando as palavras assim,
não conseguirei controlar o impulso de beijá-la. — Ele chegou bem perto do
ouvido de Marie e sussurrou. — Quando fala dessa maneira, eu me lembro
das nossas travessuras, de quando você implora que eu não pare.
Naquele momento, Marie experimentou a vergonha e o medo de que
fossem ouvidos. Entendeu o que era constrangedor e o quanto não gostaria
que alguém ouvisse sobre suas peripécias com David.
Um pouco desajeitada mas atenta a cada movimento, deixou que ele a
conduzisse e descobriu o quanto era divertido apreciar uma boa dança; só
parou quando sentiu os pés dormentes.
— Vamos tomar alguma coisa — ele convidou, estendendo o braço para
que ela segurasse.
— Posso? Não estou em uma situação de perigo.
— Estamos em um baile, meu dever é acompanhá-la; fique tranquila,
mademoiselle, é perfeitamente apropriado.
Ao longo do baile, David ensinava cada detalhe sobre danças e
comportamentos. Ela não vira mais Ann, muito menos Sarah, e o duque
estava ocupado demais para se dar conta do sumiço das filhas.
***
***
***
***
***
***
O desjejum farto era servido por uma única criada. Marie se sentia
culpada por não ter ajudado Emily com as tarefas da casa nos últimos dias;
fazia questão, ainda que a criada não permitisse. Em uma semana morando
com David, pôde dedicar todo o seu tempo aos desenhos.
— Irei ao atelier de Heloise à tarde — informou enquanto ele comia
uma generosa fatia de presunto.
— Leve Emily com você. Precisamos contratar uma dama de
companhia.
— Isso é um exagero, David. Embora a veja sobrecarregada, eu devia tê-
la ajudado...
David a fitou, não entraria novamente no assunto de que Marie não
precisava se preocupar com os afazeres domésticos. Ela sequer precisava
trabalhar, ele era um homem abastado e jamais deixaria algo lhe faltar. Mas
Marie se negava a compactuar com aquela ideia, e ele conhecia suas
habilidades; seria um desperdício privar as damas inglesas de tamanho
talento.
— Quando chegar, mande me chamar. Trarei alguns livros de poesias
novos que chegaram. Podemos fazer como ontem, tomamos um bom vinho
enquanto você me seduz com seu sotaque francês.
— Você tem negligenciado seu trabalho — ela o recriminou com ironia.
— Mademoiselle é uma distração e tanto. Não posso trabalhar em paz
quando sei que está a poucos metros de distância.
David se levantou e puxou a cadeira para ajudá-la. Marie se posicionou
a sua frente e refez o laço da gravata. David fechou os olhos saboreando o
toque delicado no pescoço. Era algo trivial, um simples nó de gravata,
normalmente feito pelo valete, mas que na última semana era sempre ajeitado
por Marie, algo tão íntimo que fazia com que ele se sentisse amado.
— Bom trabalho, mon amour. — Ela beijou os lábios dele com
delicadeza. — Preciso terminar alguns desenhos, e você precisa cuidar de
seus negócios. Antes de sair, caso não esteja ocupado, passarei em seu
escritório para me despedir.
— Nunca estarei ocupado para você — e, como já havia se acostumado,
compartilhou suas preocupações. — O duque mandou uma carta, está
preocupado com John e solicitou minha ajuda.
— Lorde John é tão irreverente, cheio de vida, mas, às vezes, parece tão
sombrio.
— É o amor, minha querida. Ele pode ser o antídoto, mas também o
veneno. Se um dia você me deixar, certamente ficarei como ele.
Marie tomou a mão de David e a colocou sobre o coração.
— Jamais o deixarei. Você sempre estará aqui, para sempre.
Depois de se despedirem, Marie foi para o pequeno quarto que foi
reformado para ser seu atelier. Cada detalhe fora feito para agradá-la. O
mesmo tom de rosa do quarto de Ann fora usado no cômodo. David
lembrara-se de cada detalhe que ela havia mencionado em alguma de suas
conversas. Ah! Como seria maravilhoso viver para sempre ao lado de David,
fosse como amante ou como esposa, já não mais importava. Contanto que
estivessem juntos.
***
***
Joana ensaiava sua entrada triunfal no novo lar de seu filho. Seu alvo
estava lá. Era só jogar a isca. Foi recepcionada por um mordomo insolente,
que pareceu treinado para seguir o protocolo à risca, mas não se intimidaria
por um criado. Exigiu ser encaminhada até onde a nora estava.
Ao bater o olho em seu alvo, demorou certo tempo analisando-a, olhos
verdes, cabelos ruivos, lembrava alguém, mas Joana não poderia dizer com
certeza quem. Não havia visto Marie de tão perto. Sem tempo para procurar
familiaridades na camareira intrometida que mexera onde não devia, vestiu
sua melhor máscara social para cumprimentar a nora.
— Quem é essa dama encantadora?
— A Srta. Delage é filha de um velho amigo de meu pai. Seu irmão é
um arquiteto muito importante na França, é o responsável pela reforma de
Groove House.
Por um instante Joana quase acreditou que Phillip havia mentido sobre a
origem daquela mulher, cogitou a possibilidade de seu informante ser um
patife incompetente, mas, ao ver a ruiva engasgar com os olhos
esbugalhados, percebeu que Sarah jogava. Observou enquanto a nora ajudava
a camareira, que sussurrou:
— Desculpe, senhora.
— Não precisa se desculpar, querida. — Sarah interveio mais uma vez a
favor da criada. — A Srta. Delage está se recuperando de um forte resfriado.
Foi muito atencioso da parte dela vir pessoalmente trazer rendas primorosas
para as almofadas do quarto. A avó dela tece rendas como ninguém.
Mesmo que não tivesse tempo para frivolidades, a estranha
familiaridade da farsante a sua frente era algo que instigava Joana, mas,
apesar disso, ela tentou se concentrar na conversa.
— Quanta delicadeza, Srta. Delage. Receio já termos sido apresentadas,
mas não me recordo de onde.
— É minha primeira vez em Londres. Era um desejo antigo passar uma
temporada no Reino Unido e, como meu irmão veio atender a um pedido de
lady Hervey, resolvi acompanhá-lo.
— Adoraria conhecer um arquiteto tão importante — instigou-a
esperando que ela se enrolasse. — Creio que ele faria maravilhas em Hervey
House.
— Infelizmente, será impossível — mais uma vez sua nora irritante
respondeu pela criada. — Tive que insistir muito para que ele me atendesse,
está de mudança para a Itália.
— A senhorita pretende acompanhá-lo? — Joana questionou
interessada.
— Estou tentando convencê-la a passar um tempo em Londres. — Joana
desejou que alguém calasse Sarah.
— É bem tímida para uma francesa — Joana resolveu trocar a estratégia
da conversa. — Chamará a atenção dos cavalheiros ingleses. Desculpe a
observação, mas as francesas são tão vulgares, e você parece uma dama de
respeito.
— Obrigada, lady Hervey. Não acredito que possamos ser julgados pelo
lugar de onde viemos. Cada pessoa é única, diferente.
Joana tentou controlar o impulso de responder e resolveu utilizar outras
armas.
— Ah! Que encantadora. Precisa conhecer meu filho mais novo, ele
também aprecia divagações existenciais — resolveu encerrar o assunto, antes
que perdesse a paciência com a serviçal, e virou-se para a nora tentando
parecer cordial. — Onde está Thomas?
Depois de descobrir que o filho viajara a negócios, Joana não se
demorou. Sua visita estava paga, convidara a serviçal para o “abate” e, se
tudo corresse bem, se livraria de dois diabos com um mesmo frasco.
Já Marie, ficou um pouco mais em Groove House, aguardando que
David a buscasse. Quando chegou a casa, depois de se encontrar com a mãe
de David, foi direto para o atelier, a fim de encontrar um pouco de paz.
Condenou-se por ter ido a Groove House, onde estava com a cabeça ao
cogitar a hipótese de se abrir com Sarah? Ela já tinha os próprios problemas,
e a aparição de Joana fora algo controverso. Marie não negaria que a simpatia
da mãe de David a deixara surpresa; será que já sabia se portar como uma
dama?
Tinha lido os livros de etiqueta que Sarah enviara depois de sua visita,
utilizara os ensinamentos em seus desenhos, mas não imaginava que seu
comportamento havia mudado a ponto de impressionar uma marquesa. Além
do mais, a cada vez que olhava para Joana, sentia embrulhar o estômago; por
trás daquela pele de ovelha havia um lobo pronto para dar o bote. Fora ela
que mantivera a pobre Ann dopada durante anos.
***
Treze dias haviam se passado desde que Phillip a ameaçara e nem mais
um sinal, nada. O silêncio dele a preocupava. Joana a havia convidado para
jantar em Hervey House, mas Marie nem cogitava a possibilidade de ir.
Naquela tarde enviou uma nota a Heloise pedindo que a amiga lhe
fizesse companhia à noite. Não explicara muito, mas conhecia a modista o
suficiente para saber que ela iria ao seu encontro e que não faria uma só
pergunta.
Quando David chegou à sala, viu Marie concentrada em um bordado.
Ele já não a via como antes, algo havia mudado, e isso o incomodava.
— Está certa de que não deseja ir? — perguntou com cautela,
ajoelhando-se entre as saias do vestido de Marie.
— Não me sentiria confortável, prefiro ficar aqui. — Sentiu que os
olhos se enchiam de lágrimas e tentou conter as emoções.
— Meu amor, desde que encontrou minha mãe está assim. Ela lhe fez
alguma coisa?
— Não! A marquesa foi educada, não me destratou. — Como de
costume, ajeitou o lenço dele carinhosamente. — Só não me sinto preparada.
— Eu entendo você. Gostaria de declinar o convite, mas, conhecendo
Thomas como conheço, sou capaz de jurar que ele aproveitará esse jantar
para travar uma guerra. Prometo não me demorar. Já mandei que alguém
buscasse Heloise, ficará bem?
— Sempre pensando em todos a sua volta. — Ela lhe acariciou os
cabelos. — Isso é o que mais amo em você, está sempre disponível para
ajudar, amparar. É um exemplo para mim, desde o dia em que me acolheu.
— Eu a amo, minha bela. Cuida de mim nos pequenos gestos. Sou capaz
de qualquer coisa para vê-la sorrir; por favor, diga-me o que posso fazer para
ter seus olhos brilhando de volta.
Marie parou, pensativa, por alguns instantes.
— Não deixe que ninguém lhe faça nenhum mal. Se eu tiver certeza de
que está bem, estarei também.
David a tomou em um beijo apaixonado, parou somente quando Heloise
chegou. Marie se levantou para se despedir, abraçou David apertado e, com
os lábios colados ao ouvido dele, suplicou:
— Não tome nenhum remédio.
Ele partiu, intrigado com aquele pedido. Quando chegou à casa dos pais,
o clima familiar, pesado, fez com que ele se esquecesse de tudo. Sempre que
estava ali dentro, mantinha-se em estado de alerta. David não foi recebido
calorosamente, o marquês e sua esposa sequer pareciam se dar conta de que o
filho caçula tinha saído daquela casa havia um mês.
Quando Sarah e Thomas chegaram, David se viu ainda mais tenso. Seria
tolice acreditar em intuição, mas ele sabia que aquele dia seria marcado pela
discórdia. Assim que seu irmão pediu a palavra, David olhou para o pai e
percebeu que ele não parecia bem.
Enquanto Thomas anunciava os próprios anseios políticos, David se
posicionou de forma que tivesse a situação sob controle. Entrou em alerta
quando o pai tentou atacar o herdeiro do marquesado, mas George caiu no
sofá quase sem forças. A marquesa levou a mão ao bolso e tirou algo, que
David não conseguiu identificar. Ela virou-se de costas, e ele a viu destampar
uma das garrafas no aparador. Do ângulo em que estava, pôde notar o sorriso
maligno que ocupava a face da marquesa, e isso o fez gelar. Thomas tentou
se aproximar do pai, que o empurrou bradando com toda força que tinha.
— Saia daqui! — o marquês expulsou o filho depois de declarar que o
deserdaria.
Thomas permaneceu estático, com Sarah ao seu lado, tocando seu
braço. Percebendo que algo estava errado, David se aproximou do pai,
cauteloso.
— Vá, eu cuido dele — pediu num tom firme, enquanto ajudava o
marquês a se ajeitar no sofá.
— Vou mandar chamar Dr. Lewis. — Joana saiu apressada.
Assim que a viu sair, David chamou o mordomo e pediu a ele que
mandasse buscar lorde Granville. Mesmo respirando com dificuldade, o
marquês parecia um pouco mais calmo.
— Eu devia ter apostado em você — lamentou o pai falando com
dificuldade. — Confiei naquele bastardo e na meretriz da sua mãe. —
Respirou como dificuldade. — Criei Thomas como um filho.
— Por favor, acalme-se. O médico já está a caminho.
— Traga meu material de escrita — ordenou com arrogância, mesmo
quase sem forças.
— Não está em condições de...
— Não ouse me afrontar você também — a voz dele era quase um
sussurro. — Vou deserdar seu irmão, escreverei o nome de cada testemunha
de que Joana já estava grávida de um criado quando se casou, e ninguém vai
me impedir. Nem que isso seja a última coisa que eu faça na minha vida.
E assim o fez, com dificuldade e a frieza familiar, George redigiu, de
próprio punho, o documento que deserdaria Thomas e revelaria para toda a
sociedade que ele era um bastardo. Assim que terminou, fez com que David
secasse a tinta e, com os olhos turvos, pediu ao filho:
— Não negue este último pedido de seu pai, David. Estou lhe dando a
única chance de fazer algo certo na vida e honrar o sangue Hervey que leva.
Será o marquês de Bristol e tem a obrigação de honrar o nome que carrega.
Não contrariaria o pai, não diante de seu estado. David guardou o
documento no bolso, agradecendo que ninguém tivesse presenciado aquela
cena. Não demorou muito para que Joana entrasse na sala com Dr. Lewis, o
que causou certo estranhamento, uma vez que o médico morava a certa
distância.
Nada foi dito, nem uma explicação, Joana sequer o olhou. No bolso de
David, o peso de um pedido do pai. A sua frente, uma cena que desejaria
esquecer.
Quando o médico retirou um frasco do bolso e pediu que o marquês
tomasse, as palavras de Marie vieram à mente de David. Não tome nenhum
remédio. E, antes que pudesse alcançar o pai para impedi-lo de tomar, Joana
virou o frasco de uma só vez na boca do marido.
Enquanto via o marquês agonizar a sua frente e as tentativas fingidas do
médico em salvá-lo, David permaneceu sem reação, assim como sua mãe,
que expectava com muito mais curiosidade do que desespero.
Quando lorde Granville chegou, George já havia falecido. Joana se
jogou ao chão, num pranto fingido, para impressionar o pai. Dr. Lewis se
adiantou tentando explicar as possíveis causas da morte do marquês. Alegou
um ataque apoplético fulminante e sugeriu que Thomas poderia ser o
responsável.
Diante daquela cena, David viu a mãe implorar ao Dr. Lewis que
ocultasse a participação do filho mais velho, temendo causar um escândalo na
família do duque de Sutherland, uma vez que sua nora era filha dele.
Não tome nenhum remédio. As palavras de Marie martelavam
incessantemente na cabeça de David. Ann, a troca de médico, o casamento.
Sem pensar duas vezes, David voou sobre o ancião, pegando-o de surpresa.
— Confesse que o matou, diga o que lhe deu. Ele parecia melhor e, logo
depois do medicamento, morreu — esbravejou, apertando a glote do médico.
— Solte-o! — lorde Granville ordenou, e David afrouxou a mão.
— Foi ela... — o médico confessou quase sem voz. — Lady Hervey me
chantageou, eu não...
Lorde Granville se aproximou e, com um olhar fulminante, ordenou que
David se afastasse.
— Foi isso o que fizeram com minha Julliet? — perguntou entre dentes.
— Ann... — o médico tentou falar, mas lorde Granville o acertou.
— David, mande uma nota para seu irmão, peça a ele que providencie o
funeral. Eu resolvo tudo por aqui.
— Mas ...
— Não me contradiga! Vá, eu o vejo mais tarde.
Sem forças para contestar, David partiu. Quando entrou na carruagem,
sentiu-se estranhamente aliviado e se condenou.
Capítulo XII
***
Cinco dias haviam se passado desde a morte do marquês. Marie dedicou
todo o seu tempo a David. O silêncio de Phillip lhe dava esperanças de que
ele tivesse desistido de cumprir sua promessa.
David ouvia Marie ler poesias em francês, enquanto saboreava um
brandy; ela tinha o poder de fazer com que o mundo lá fora não existisse,
com que os momentos de névoa fossem tomados pelo sol.
Foram surpreendidos pela presença imponente de Thomas, que
cumprimentou Marie com uma reverência e um beijo na mão.
— Peço perdão por vir assim, mas trouxe algo para você. — Entregou
para Marie os documentos que trazia. — Sarah me disse recentemente que a
senhorita foi carinhosamente batizada, por ela, como Srta. Delage. Agora é
oficialmente Marie Delage e, com as ideias mirabolantes de minha esposa,
poderá se casar com meu irmão.
David abraçou o irmão agradecido, e Marie se emocionou com o gesto.
— Você me disse que temos a chance de fazer diferente — Thomas
declarou emocionado —, e iremos fazer, temos mulheres maravilhosas ao
nosso lado, que nos darão uma família de verdade.
Para Marie tudo estaria perfeito, só faltava uma única coisa. Os últimos
acontecimentos a fizeram esquecer quase por completo a ameaça de Phillip, e
ele tinha o que ela mais desejava. Naquela tarde, Thomas lhe dera um
sobrenome, uma identidade, mas nada parecia ter importância sem o pedaço
que lhe faltava, pulsava dentro de seu coração todos os dias.
Em um papel em branco, começou a rabiscar, não um vestido como
sempre fazia, mas um bilhete, uma declaração de amor, algo que tentasse
traduzir em palavras todo o amor que ela sentia, sua descoberta sobre o amor
romântico.
***
***
***
Sentiu a cabeça latejar antes mesmo de abrir os olhos. Seus movimentos
estavam lentos, ela remexeu-se na cama à procura do corpo de David, como
sempre fazia ao acordar, mas não o encontrou. Abriu os olhos e a claridade
era tamanha que parecia ferir suas retinas. Marie as fechou novamente e logo
tentou abri-las aos poucos. Sua visão estava embaçada, mas era possível
sentir um vulto ao pé da cama. Ela sentou-se com dificuldade, seu corpo doía.
Mirou o borrão esperando que a imagem se fizesse nítida.
Uma mulher. A viscondessa a observava. Em suas feições, dor, e Marie
poderia jurar que via piedade naqueles olhos negros.
— Está segura, ele saiu — Viollet falou baixo, e Marie olhou em torno
do cômodo assustada. — Deve voltar somente ao entardecer.
— Onde estou? David...
— Phillip a trouxe para cá. — A viscondessa se levantou. — Acredito
que queira ver alguém.
O coração de Marie parou. A sensação era de que toda a dor acumulada
nos últimos anos estivesse presa em sua garganta. Lágrimas grossas
banharam seu rosto, não pelo pavor de ter sido raptada, mas pela emoção.
Dois anos, dois meses e um dia, esse fora o tempo durante o qual orara
desesperadamente, esperando aquele reencontro.
Tempo que parecera uma eternidade, tempo que não fora capaz de
apagar a dor que Marie carregava dentro de si, ainda que ela sorrisse.
Quando a porta se abriu, Marie sentiu o peito transbordar, queria
levantar-se, mas seu corpo não respondia. Passinhos descompassados e
hesitantes romperam o batente da porta, aproximando-se cautelosos,
revelando cabelos acobreados como os dela e os olhos mais verdes que ela já
vira.
— Mon petit — era difícil controlar a emoção.
Uma gargalhada gostosa, infantil, invadiu o quarto, Marie poderia jurar
que ele a reconhecera. Tentou levantar-se mais uma vez, mas sentiu-se tonta.
Viollet pegou o pequeno Paul nos braços e o levou para o colo da mãe. A
viscondessa acariciou os cabelos do garoto, deu um beijo carinhoso na face
rechonchuda.
— Essa é sua mãe. — Visivelmente emocionada, Viollet colocou a
criança no colo de Marie e se afastou. — Flora, minha irmã, cuida muito bem
dele...
— Obrigada! — Marie agradeceu enquanto acariciava a face do filho.
Paul olhava para a mãe, curioso, e repetiu o movimento dela tocando-lhe
a face curiosamente. Incapaz de se controlar, Marie abraçou o filho entre
lágrimas. Merci, mon Dieu.
Marie passou o dia mimando o filho, tentando recuperar o tempo
perdido. Aos poucos, a tonteira melhorava, e ela já arriscava carregá-lo.
Viollet lhes dera privacidade, e Marie se esquecera por completo de que ali
era uma prisioneira, talvez nem se dera conta daquilo. A felicidade de ter o
filho nos braços era tamanha que ela sequer pensara em outra coisa.
No fim do dia, Marie foi surpreendida pela presença de uma bela jovem
e sentiu-se enciumada pelo carinho que o pequeno Paul demonstrou com ela.
— Oi, sou Flora, irmã de Viollet. — Marie sorriu fracamente, enquanto
via Paul se aninhar nos braços dela. — Preciso levá-lo. O visconde chegou,
bêbado o suficiente para precisar ser carregado. Você terá uma noite de
descanso, vou pedir que tragam algo para comer.
Foi quando seu filho deixou o quarto que a realidade assombrou Marie.
Estava presa, perto do filho, mas longe de David. Orou em silêncio, em uma
súplica para que ele estivesse bem.
“Bem” não descreveria David enquanto ele vasculhava cada canto de
Londres. Ele já havia ido à polícia, a hospitais, e a todo local a que o
aconselhavam procurar. Marie não estivera no atelier de Heloise na noite
anterior. A modista não sabia do paradeiro da amiga, e isso o fizera cair em
desespero. Passadas quase vinte horas depois que ele se dera conta do
desaparecimento, David foi até a casa do irmão, precisava de ajuda e não
tinha mais a quem recorrer.
Ao recebê-lo, o mordomo viu o quanto David estava maltrapilho e lhe
ofereceu uma dose de puro malte, enquanto chamava o marquês.
— O que houve? — Sarah desceu as escadas apressada, com Thomas
em seu encalço.
— Marie desapareceu; ontem à noite quando cheguei do baile, ela não
estava mais em casa. Não encontrei nem uma pista, nada.
Thomas se colocou ao lado do irmão.
— Está procurando por Marie há quase um dia e não me pediu ajuda?
— Eu não sei o que fazer, ela estava com medo. Afirmou ter visto a tia
nas ruas, mas eu não dei importância, eu...
— Calma — Sarah interveio —, vamos nos sentar, precisa nos dizer
tudo que sabe.
David relatou a história de Marie, contou sobre o nobre inglês que a
iludira e o pouco mais que sabia. Sarah prestava atenção em cada detalhe.
— Pois bem, tenho uma lista de todos os aristocratas do Reino Unido,
podemos trabalhar por eliminação. A começar pelos casados, com idade
aceitável, para reduzirmos a lista. — Um pouco apreensiva, voltou-se para o
marido. — Vamos precisar da ajuda dos Baldwin; Edward, como primeiro-
ministro, conseguirá informações sobre as pessoas que fizeram a travessia
para a França nas últimas horas, a tia pode tê-la raptado. E Cécile terá a
informação de todos os aristocratas da lista com o perfil que procuramos. —
Ela esperou que o marido anuísse e virou-se para David. — Fique tranquilo,
meu querido, não está sozinho. Iremos encontrá-la.
Capítulo XIII
***
***
Dois meses haviam se passado desde que Marie vira David pela última
vez. Como desejava que ele aparecesse para salvá-la, para retirá-la dali. Mas
ela já não era mais a mesma, as marcas em seu corpo jamais a deixariam
esquecer aqueles momentos de horror que vivera com Phillip. O olhar duro
de Viollet era o que lhe dava forças. A viscondessa parecia uma rocha, não
demonstrava qualquer fraqueza. Estava sempre pronta para ser castigada e, se
não fosse pela dor que fulgurava em seus olhos, Marie, ainda que
testemunhasse cada açoite ou surra de vara nos dias em que estavam juntas,
poderia jurar que ela era imune. Viollet era uma mulher guerreira, não
fraquejava.
Da janela da velha cabana, Marie observava Phillip conversar com um
homem alto e robusto, com cara de poucos amigos. Uma caixa bem-polida
era entregue ao visconde, que conferia o conteúdo com atenção. Viollet não
conseguia ver o que era.
— Como soube das esponjas? — a voz de Marie chamou a atenção de
Viollet.
Na primeira noite em que foram violentadas, pouco antes, Viollet lhe
entregara as esponjas embebidas em uma solução espermicida. Criada em um
bordel, Marie sabia que existiam métodos para evitar uma gestação. Fora tola
ao acreditar que se casaria com Phillip, e a ansiedade da primeira noite fizera
com que aquele detalhe passasse despercebido. Mas o que mais a espantava
era o fato de Viollet, uma autêntica dama da sociedade inglesa, ter
conhecimento de métodos contraceptivos, uma vez que não eram bem-vistos.
— A viscondessa viúva. A mãe de Phillip me aconselhou a não ter
filhos. — Viollet engoliu em seco e continuou. — Ela contou que o pai de
Phillip fazia com o filho o mesmo que ele faz conosco.
Ao ouvi-la, Marie olhou instintivamente para o filho adormecido, e o
medo a tomou.
— Paul... — Marie não completou as palavras, sua voz quase não saiu.
— Não se preocupe, eu não deixaria, embora não consiga proteger a
mim mesma. O pequeno Paul foi um anjo naquela casa. Phillip chorou por
dias depois que ele chegou. Ficou um bom tempo sem tocar em mim, até que
a marquesa de Bristol o procurou.
— Joana?
— Ela começou a procurá-lo com frequência no começo do ano. Eles
tinham conversas longas, e acredito que se tornaram amantes. — Marie
percebeu o sofrimento nos olhos de Viollet e se sentou ao seu lado. — Certa
vez ele me obrigou a observá-los em um momento de intimidade. Ele a
açoitava e ela pedia mais. — Pela primeira vez Marie viu Viollet fraquejar.
— Nunca imaginei que existissem mulheres que gostassem...
— O que aconteceu com a viscondessa viúva? — Marie tentou desviar o
assunto.
— Foi internada num manicômio, pouco antes da chegada de Paul. —
Parou pensativa. — Se não fosse por Flora, eu teria adorado ser internada;
qualquer coisa para me libertar dele — confessou.
— Não diga isso, vamos conseguir fugir — Marie tentou parecer
confiante.
— Não vamos, ele nos mataria. Eu tenho que cuidar de Flora, e você, de
Paul.
— Acha que lady Flora vai nos ajudar, dizer a alguém onde estamos?
— Ela não saberia, nem mesmo nós sabemos onde estamos. Phillip foi
mais esperto do que eu supunha.
***
***
***
***
Por mais que se policiasse para não alimentar esperanças, David estava
aflito dentro da carruagem. Edward comandava a diligência com atenção.
Com as anotações de Sarah no colo, acompanhava o caminho percorrido,
conferindo todas as coordenadas. John estava visivelmente tenso e parecia
esforçar-se para manter o controle.
David não permitiu que o irmão fosse. Conhecia na pele o que era estar
longe da mulher que amava. Sarah estava grávida e já abusava demais de sua
fragilidade, desdobrando-se nas buscas. Não permitiria que Thomas a
deixasse.
Refletiu sobre o quanto sua própria vida havia mudado depois da morte
do pai, como tudo poderia ser perfeito se Marie estivesse com ele. Nos
últimos meses, durante as tentativas de encontrá-la, David se vira amparado
pelos familiares de maneira que jamais pensara ser possível. Tinha
consciência de que agia de modo inconsequente, principalmente nos últimos
tempos, em que o conforto ilusório estava no fundo de cada garrafa que ele
encontrava. Temia pelo pior, sentia o peito arder ao cogitar que jamais a
veria.
Sua cabeça doía, resultado de uma sucessão de noites de bebedeira, da
longa viagem e da tensão. John respirava sonoramente, David imaginava que
era uma tentativa inútil de manter o controle sobre seus nervos.
— Ali! — Edward apontou para uma velha cabana, que parecia
abandonada.
Os primeiros raios da manhã revelavam a construção decadente, ladeada
por carvalhos. John fez menção de saltar com a carruagem ainda em
movimento, e David não hesitaria em acompanhar o primo, mas Edward os
deteve colocando o braço na porta.
— Temos um acordo — falou com a voz firme. — Eu desço primeiro.
Sentada no canto da sala, Viollet se encolhia sobre as próprias pernas,
encostada à parede. O corpo de seu marido jazia a poucos metros, mas,
àquela altura dos acontecimentos, nem a visão a sua frente a chocava.
Abaixou a cabeça, mais uma vez incomodada pela umidade das saias. Seriam
suas lágrimas? Por quanto tempo estava naquela posição? O que fizera?
As consequências de seus atos seriam o paraíso perto do inferno que ela
vivia. Mas não era consigo que se preocupava, era com a irmã, que seria
arruinada para sempre. Viollet levantou a cabeça, tentando conter o tremor de
seu corpo. Já não estava sozinha. Lorde Edward Baldwin estava ali. O
primeiro-ministro viera pessoalmente prendê-la.
Ergueu a cabeça enquanto se preparava para ser levada à Torre de
Londres, seria decapitada em praça pública.
— Flora... — somente seus lábios se moveram, nenhum som saía de sua
boca.
Encolheu-se novamente ao ver as duas armas jogadas no chão.
O homem que acompanhava Edward revirou o corpo de Phillip. Viollet
baixou novamente a cabeça. Sabia que em breve os oficiais entrariam para
prendê-la. Quando sentiu uma mão hesitante no cabelo, ergueu mais uma vez
os olhos.
— Lady Smith, está bem? — o primeiro-ministro quis se certificar.
— Let! — a voz de John ecoou pelo ambiente. — Viollet, meu amor.
Você está bem?
E pela primeira vez em anos, ela deu-se ao luxo de ter esperanças. Iria
para a Torre de Londres nos braços de John. Ele cuidaria de Flora, ela sabia
que sim. E essa elucidação foi o suficiente para que Viollet entregasse o
corpo ao delíquio o qual segurara por toda noite.
***
Dr. Anthony fora chamado a Lilleshall para cuidar de lady Viollet. Pela
distância, decidiram que permaneceriam alguns dias em Shropshire, até
seguirem viagem para Londres. A viscondessa se encontrava em estado de
choque, não dissera uma só palavra, exceto que Marie havia fugido.
Edward cuidara dos detalhes do funeral e se encarregara das questões
oficiais, postergando o máximo que pôde os interrogatórios. David percorreu
as redondezas à procura de Marie e do filho, até que o cansaço o dominou.
De certa forma, sentia-se aliviado por saber que ela já não estava sob o
jugo de Phillip Smith, mas isso não diminuía sua preocupação, muito menos
a saudade que sentia. E mais uma vez voltara à estaca zero. Sem pistas, sem
um sinal.
John permanecia em vigília ao lado de Viollet, que dormira quase todo o
tempo. Sua cabeça rodava tentando encontrar explicações para o que tinha
acontecido naquela cabana. As marcas no corpo da viscondessa se faziam
visíveis através do fino tecido da camisola. Dr. Anthony garantira que ela se
encontrava bem, que precisava descansar e se alimentar, e os aconselhou a
esperar que ela se reestabelecesse, para seguir viagem até Londres.
David sentia-se perdido, caminhava pelos jardins, relembrando cada
momento que vivera ao lado de Marie. Os encontros noturnos, os abraços
reconfortantes, o sorriso tímido. Jogou-se no chão de joelhos, como sempre
fazia. Rogou a Deus que protegesse sua mulher e a criança. Suplicou para que
os mantivesse em segurança.
Já não sabia o que fazer, não tinha forças para rodar de hospedaria em
hospedaria. Fizera isso tantas vezes nos últimos meses. Mas Edward havia
enviado homens para que continuassem as buscas.
— David. — Edward se aproximou e, nos olhos do outro, pôde ver uma
aflição semelhante à sua própria. — Não perca as esperanças, vamos
encontrá-la. Se ao menos soubéssemos o que aconteceu, lady Viollet não diz
uma palavra.
— Eu tentei falar com ela, a única informação que obtive foi de que
Marie fugiu, mas Viollet não disse quando, nem para onde. Não sei se posso
suportar mais.
— Não está sozinho.
E por mais que soubesse que havia pessoas ao seu lado, era a companhia
dela que desejava. Era a certeza de que Marie e seu filho estivessem bem.
***
Depois da noite em que apertara o gatilho, sua vida nunca mais seria a
mesma. Ela revivia a cena inúmeras vezes, e o que a mantinha de pé era a
responsabilidade de cuidar do filho. Cada vez que olhava para Paul, invejava
sua inocência; ele parecia não ter se dado conta de tudo o que acontecera.
Os últimos meses serviram para que ficassem próximos, ele já a
chamava de mãe, e isso fazia seu peito inflar de orgulho e desespero, pois em
breve teria que se afastar dele mais uma vez. Estava convencida de que fora
amaldiçoada, talvez por ter abandonado sua origem; se tivesse se tornado
uma cortesã, certamente sua vida seria mais fácil.
Nem todos os anos que vivera no Palais des Plaisirs se comparavam ao
remorso que agora sentia e tampouco ao que o futuro lhe reservava.
Com o prato a sua frente, observava sem apetite a comida que supunha
não merecer. Não se julgava digna de nada, sequer da própria vida. Paul
brincava em cima da cama, com tocos de madeira que uma criada da
hospedaria lhe havia dado.
A demora de Heloise a consumia pelas entranhas, Marie tinha esperança
de que a amiga a ajudasse a encontrar um caminho.
Uma batida firme à porta a fez saltar da cadeira, seriam os oficiais?
Certamente fora descoberta e precisaria se entregar. Olhou para o filho
temendo que essa fosse a última vez. Respirou fundo e destravou a porta, sem
a certeza do que a esperava.
Sentiu o coração se encher de esperanças, ao ver a amiga num elegante
traje de viagem. Mari reconheceu aquela roupa, um de seus próprios
desenhos. Foi surpreendida por um abraço caloroso, algo que jamais
esperaria de Heloise Morrice.
No corredor, diante da modista, sentiu as pernas fraquejarem com o que
via. Madame Bourdon, sem máscara, e vestida como uma dama.
Demorou poucos segundos para que caísse em si. A pessoa em que mais
confiara a traíra. Estava arruinada, Heloise a entregara para a dona do bordel,
e Marie soube que não estivera enganada; madame Bourdon conhecia seu
paradeiro o tempo todo.
***
David estava ansioso para chegar a Londres. Havia quase uma semana,
cada canto do País de Gales fora revirado, e nenhum sinal dela. Ele estava a
caminho de Groove House por insistência do irmão, que, segundo o tio,
achava que ficaria melhor instalado ali.
Augustus Anson, o duque de Sutherland, fora seu amparo nos últimos
dias, desde que David chegara a Lilleshall. Agora voltavam para Londres, na
mesma carruagem.
— Precisa descansar, David — o duque falou num tom paternal.
— Estou farto! Como uma pessoa pode desaparecer dessa maneira?
Edward parecia tão tranquilo nos últimos dias. — Ele encarou o tio
demonstrando sua dor. — Já são cinco meses, temo que as buscas estejam
caindo no esquecimento. Marie não é ninguém, se fosse uma dama da
sociedade, certamente já teria sido encontrada.
— Não diga uma sandice dessas — Augustus falou determinado. —
Acha que vou desistir de encontrá-la? Acha que gosto de vê-lo desse jeito?
Eu o tenho como a um filho, meu sentimento por você é o mesmo que tenho
por John. Às vezes, penso se ter mostrado a vocês o amor não foi o meu
maior erro.
— Não diga isso, você é um exemplo para nós.
— Não foi fácil para mim também, David. A vida não é para os fracos, e
ser um nobre não nos faz imortais, nem nos torna algo além do bem o do mal.
Somente carregamos mais responsabilidades do que imagina.
O silêncio se instalou novamente, David continuava sem saber o que
acontecera. Viollet parecia melhor, mas continuava sem dizer uma palavra
sequer. Acompanhada de John e do Dr. Anthony, seguia na carruagem,
adiante. Edward não voltara para Londres, de Lilleshall seguira direto para
uma das propriedades de sua família. David lhe seria eternamente grato, mas
não negaria que a sensação que tinha era a de que as buscas tinham sido
encerradas. De que nenhum esforço seria feito para encontrá-la. Não o
julgava, o primeiro-ministro havia se empenhado nas buscas para além do
adequado, dada a sua posição.
Quase no fim da tarde, chegaram a Groove House. Sarah estava agitada,
e Thomas tentava conter a esposa, que andava de um lado para o outro.
— Onde está Viollet? — foi a primeira pergunta que ela fez logo que
entraram.
— John e Anthony a levaram para casa — o duque se adiantou.
— Peça a alguém que a traga para cá, lady Flora está lá em cima. Já está
acomodada.
— O que está acontecendo? — David perguntou exasperado.
— Marie esteve aqui — declarou aflita. — Hoje, no começo da tarde,
entrou aqui desesperada. Pediu que eu cuidasse de Viollet e de Flora; elas
perderão a casa em breve, já que Phillip não deixou herdeiros.
— Como ela estava? Onde ela está? — David colocou as mãos nos
ombros da prima, respirando com dificuldade.
— Ela precisou partir. — Sarah desviou os olhos, tentando conter as
lágrimas. — Apesar de abatida, parecia bem. Pediu que o tranquilizasse e que
lhe entregasse isso. — Ergueu a mão, entregando-lhe uma carta.
David pegou o envelope e o levou ao peito. Rompeu pela porta,
querendo ficar sozinho. Sua vontade era sacudir a prima, condená-la por ter
deixado Marie partir. Mas ela estava bem, pelo menos no julgamento de
Sarah.
Oh, mon amour, diante de todo desespero você sempre pensando nos
outros. O que está acontecendo com você, ma chéri?
Com os dedos trêmulos e o coração descompassado, abriu o envelope e
não conteve a emoção ao ver a letra dela:
***
No dia seguinte David acordou cedo e partiu para Hervey House. Num
dos melhores pontos de Londres, a casa que carregara a desgraça de sua
família por tantos anos estava prestes a se tornar um lar. Logo que entrou,
aproveitou para descontar toda a sua fúria adormecida nos objetos que
testemunharam tanta infelicidade e discórdia.
Quadros foram arremessados, todos os papéis de parede, arrancados. Ele
nunca fora um homem violento, mas seu corpo gritava. Estivera tanto tempo
sem reação, enquanto sua mulher sofria abusos os quais jamais conheceria.
Em cada cômodo fez o estrago que julgou necessário, ali exorcizava o
ódio que sentia, não só por Phillip Smith, mas também por seu pai e sua mãe.
Marie sentia-se uma assassina, indigna de qualquer perdão. Ele lera seu
arrependimento em cada palavra, não duvidava que ela matara em defesa
própria, por tudo que precisara suportar nos meses em que estivera
desaparecida. Já Joana, a mãe dele, matara sem o menor remorso, dopara e
envenenara quem se colocara em seu caminho. David descontou toda a fúria
nos pertences da marquesa viúva.
Quando se sentiu suficientemente aliviado e certo de que ali já não
restava nada que pudesse carregar a maldição dos Hervey, deixou a casa,
determinado a contratar pessoas para a esvaziarem e a reformarem
transformando-a em um lar de verdade.
***
***
Um mês havia se passado, desde que David vira Edward pela última
vez. Na porta do gabinete do primeiro-ministro, abriu a porta, ansioso com o
pedido que faria. O parlamentar estava de pé, parecia ansioso e esfregava as
mãos umas nas outras, levando-as ao rosto sucessivas vezes. Sua apreensão
era palpável.
— Espero não ter chegado em um mau momento — David falou
cauteloso, depois de cumprimentar o amigo.
— Eu o estava aguardando — falou endireitando-se na cadeira. —
Recebi suas cartas, lamento não ter podido atendê-lo antes, precisei resolver
alguns assuntos. Como tem passado?
— Sobrevivendo aos dias, mas não me permito fraquejar — falou sem
muita convicção. — Marie e Viollet foram as responsáveis pela morte de
Phillip — anunciou e esperou a reação do amigo, que não demonstrou
surpresa. — Sei que o que vou pedir é um tanto quanto aquém das regras de
conduta, mas também sei que, com sua influência, consegue que o caso seja
arquivado e as duas não passem por constrangimentos desnecessários.
— David, isso não é algo simples a se fazer. Requer contatos e ...
— Sei disso, mas é tudo que peço. Se fizer isso, terei uma dívida eterna
com você.
— Não me deverá nada, somos muito mais que amigos, David. Somos
uma família.
Apesar de grato, David estranhou a disposição de Edward. Ele não
negara seu pedido, apesar de mostrar certa resistência.
— Isso pode demorar algum tempo, mas não pouparei esforços. Se
fossem julgadas nos métodos tradicionais, certamente seriam absolvidas.
— Elas não podem aparecer, seria a ruína de Viollet e de Flora. Marie
está acuada, sozinha, Deus sabe onde.
— Não se preocupe, meu amigo, vamos encontrar uma solução. O
visconde de Derby era conhecido por colecionar inimigos, e não será
necessário muito esforço para encontrar algum criminoso a quem
responsabilizar pelo crime, alguém que, ainda que se regenerasse, não
pudesse recuperar a liberdade nessa vida.
David sabia que não era certo, entretanto a perspectiva de tirar de
circulação um bandido não era de todo ruim. Resolveu não pensar muito no
assunto, pois sua consciência não aprovaria tal manobra. Entretanto faria
qualquer coisa para ver Marie livre da culpa.
— Há algo mais que eu possa fazer por você? — Edward perguntou,
inclinando-se para a frente.
— Depois que tudo acabar — ele olhou para baixo, tentando conter a
emoção —, rogo-lhe que revire comigo toda a Europa para encontrá-la.
Assim que tudo estiver resolvido, quero-a comigo.
— Tem minha palavra. — Edward se levantou emocionado e
surpreendeu David com um abraço.
***
***
***
***
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combo/
Table of Contents
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Capítulo XV
Capítulo XVI