Boécio - de Institutione Musica
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A visão, por exemplo, está presente em todos os homens: de fato, discute-se entre os
sábios se esta se forma por figuras que chegam até os olhos ou por raios emitidos
sobre objetos sensíveis; mas essa mesma discussão escapa ao leigo. E mais, quando
alguém vê um triângulo ou um quadrado, reconhece facilmente o que vê através dos
olhos; mas deve-se perguntar ao matemático qual é a natureza do quadrado ou do
triângulo.
O mesmo se pode dizer do resto das coisas sensíveis e, acima de tudo, do arbítrio dos
ouvidos, cuja força capta de tal modo os sons, que não só forma um juízo a partir
deles e reconhece suas diferenças, mas também, com bastante frequência, encontra
prazer se os modos são doces e coerentes, e se angustia se, dispersos e incoerentes,
ferem os sentidos.
Daí, então, pode-se perceber que não é desarrazoado o dizer de Platão: a alma do
mundo foi unida de acordo com uma harmonia musical. Consequentemente, quando
nosso interior está coeso e convenientemente ajustado, percebemos o que nos sons
está ajustado de forma exata e conveniente e nos deleitamos com isso; também
comprovamos que nós mesmos somos regidos pela mesma semelhança. Essa
semelhança é, sem dúvida, agradável, e a dessemelhança é odiosa e repulsiva.
De fato, nenhuma via ao entendimento acolhe mais princípios do que a dos ouvidos.
Portanto, quando os ritmos e os modos penetram no ânimo através dos ouvidos, não
se pode duvidar que afetam e modelam as mentes da mesma maneira. Isso pode ser
observado também nos povos: os mais selvagens se comprazem com os modos mais
rudes dos Getas, enquanto os pacíficos, com modos mais moderados, ainda que,
nesses tempos, isso quase não exista. Assim, porque a raça humana é lasciva e mole,
acaba cativada, sem exceção, com os modos cênicos e teatrais.
Portanto, parece que, por agora, deve-se dizer isto àquele que examina a música:
quantos tipos de música descritos pelos estudiosos podemos descobrir. São três: a
primeira, a cósmica; a segunda, a humana; a terceira, a produzida por certos
instrumentos, como a cítara, o aulos e outros que acompanham as canções.
Em primeiro lugar, a cósmica é perceptível sobretudo pelo que é visto no próprio céu,
ou na combinação dos elementos, ou na sucessão de estações, pois como é possível
que uma máquina tão veloz como a do céu se mova em uma trajetória muda e
silenciosa? Ainda que seu som não chegue aos nossos ouvidos, porque por muitas
causas é necessário que assim seja, não é possível, contudo, que um movimento tão
veloz de corpos assim volumosos não produza absolutamente nenhum som,
principalmente porque os cursos das estrelas estão ajustados em uma harmonia tão
grande, que nada tão perfeitamente unido, nada tão perfeitamente ajustado pode ser
concebido. De fato, umas órbitas se deslizam mais acima, outras mais abaixo, e de tal
forma giram todas com o mesmo impulso que, por meio de distintas desigualdades, a
ordem desses cursos se conduz invariável. Assim, não pode faltar a essa revolução
celeste a ordem invariável de uma fixa sequência de sons.
Nas cordas graves, a afinação do som é tal que a gravidade não baixa até o silêncio;
nas agudas, mantém-se cuidadosamente a afinação da altura, de forma que as cordas,
demasiado esticadas, não se rompam com a fragilidade da nota; e tudo é congruente e
harmonioso consigo mesmo. Igualmente, observamos que na música cósmica nada
pode ser tão excessivo que destrua outra coisa com seu próprio excesso. Em verdade,
qualquer coisa é assim: ou produz os seus frutos ou ajuda as outras para que os
produzam. O que o inverno confina, a primavera liberta, o verão aquece e o outono
amadurece. As estações, uma atrás da outra, ou produzem frutos por si mesmas ou
alimentam outras para que os produzam. Esses temas devem ser discutidos adiante,
com maior profundidade.
Qualquer um que entre dentro de si mesmo percebe a música humana. De fato, o que
é que mistura ao corpo essa incorpórea vivacidade da razão, senão uma certa
coerência e uma espécie de equilíbrio de sons graves e agudos que produzem como
que uma única consonância? Que outra coisa poderá ser o que une entre si as partes
da própria alma que, de acordo com Aristóteles, é constituída pelo racional e pelo
irracional? Que outra coisa poderá ser o que combina os elementos do corpo ou
mantém unidas suas partes com uma ligação firme? Mas sobre esta também falarei
depois.
Agora se deve considerar que toda arte e toda disciplina têm a razão como
naturalmente mais honrável do que a habilidade, porque esta última é praticada pela
mão e pela obra dos artífices. É muito melhor e mais nobre saber o que faz cada um
do que executar com as próprias mãos o que alguém sabe. Assim, as habilidades
corporais servem como um escravo, enquanto a razão domina como senhor. A não ser
que a mão opere de acordo com o que a razão determina, agirá em vão.
Daí decorre que a especulação racional não depende do ato de fazer. De fato,
nenhuma obra das mãos existiria se não fosse guiada pela razão. É possível entender
quão grandes são o mérito e a glória da razão a partir do fato de que os outros
artífices, por assim dizer, de habilidades físicas, tomam seus nomes não da disciplina,
mas dos seus próprios instrumentos. Então o citarista toma seu nome da cítara, o
auletés do aulos, e os outros são chamados com os nomes dos seus instrumentos. Pelo
contrário, é músico aquele que recebe para si a ciência do canto, ponderando com a
razão, não através da servidão do trabalho, mas através da autoridade da especulação.
Sem dúvida, nós vemos isso na construção dos monumentos e na recompensa das
guerras, na contrária atribuição do vocábulo. Os monumentos são gravados ou os
triunfos são celebrados com os nomes daqueles sob cuja autoridade e razão são
obtidos, não com os nomes daqueles por cujo trabalho e servidão foram executados.
Assim, há três tipos de pessoas que estão envolvidas com a arte musical. Um tipo é o
dos que se apresentam em instrumento, outro compõe as canções e o terceiro avalia a
performance dos instrumentos e as canções. Mas aqueles que se ocupam de
instrumentos e aí consomem todo o seu esforço como os citaristas ou aqueles que
provam suas habilidades no órgão ou outro instrumento musical -, estão afastados do
entendimento da ciência musical, porque agem como escravos, como foi dito: nenhum
deles chega à razão, mas estão totalmente afastados da especulação.
O segundo gênero dos que praticam música é o dos poetas, que não tanto pela
especulação e razão, mas por um certo instinto natural, são levados para a canção. Por
esse motivo, esse gênero é separado da música.
O terceiro é aquele que adquiriu a habilidade de julgar, de forma que possa examinar
os ritmos, as melodias e as canções como um todo. Essa classe, porque está
evidentemente baseada por completo na especulação e na razão, reputar-se-á
estritamente musical.