Ian Bonze Projeto Dissertação
Ian Bonze Projeto Dissertação
Ian Bonze Projeto Dissertação
INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC
Poder e discurso
Rio de Janeiro
2021
I. Apresentação do objeto e da problemática da pesquisa
A proposta deste projeto de pesquisa é analisar o impacto da progressiva cristianização
do Império Romano sobre as relações financeiras ligadas ao crédito, especialmente o
empréstimo de dinheiro a juros. Dessa forma, o objeto desse estudo é o cruzamento entre as
ideologias cristã e da elite romana, entre os séculos IV e V d.C.1, a partir das leis compiladas
no livro II do Código Teodosiano, tendo em vista o caráter pragmático do direito romano.2 Não
nos restam dúvidas de que o termo “ideologia” é problemático no que concerne à sua aplicação
nos estudos históricos, tendo em vista os múltiplos significados que podem ser conferidos a este
conceito, desde a sua criação durante a Revolução Francesa, com Antoine Destutt de Tracy, até
sua reinterpretação a partir das obras de Karl Marx e os estudos sociológicos subsequentes. 3
Contudo, no que se refere ao objeto de nosso estudo, compreendemos como ideologia a
estrutura mental, o modelo de sociedade e de poder que é globalmente aceita. 4 Para essa
pesquisa, porém, aplicaremos o conceito de ideologia seguindo o modelo do historiador Jean-
Michel Carrié em seu artigo intitulado Pratique et Idéologie Chrétiennes de L’Économique (IVe
– Ve Siècles)5, no qual ao discutir a transformação da ideologia econômica da sociedade tardo-
antiga, apresenta o conceito como um modelo cultural que é compartilhado entre a elite, do qual
exclui qualquer conhecimento que não seja moral e técnico.6
1
Todas as datações apresentadas nesse projeto de pesquisa correspondem ao período depois de Cristo.
2
Uma das principais características do direito romano era seu pragmatismo, isto é, em geral não havia uma
discussão jurídica teórica em Roma, pois as decisões legais eram o resultado de questões práticas. Para o debate
sobre o pragmatismo do direito romano, ver SPAGNOLO, Benjamin; SAMPSON, Joe. Principle and Pragmatism.
In: SPAGNOLO, Benjamin; SAMPSON, Joe. (eds.). Principle and Pragmatism in Roman Law. Oxford: Hart,
2020. p. 1 – 26.
3
Ver EAGLETON, Terry. Ideology: An Introduction. Londres: Verso, 1991.
4
INGLEBERT, Hervé. Introdution. In: INGLEBERT, Helvé. (org.). Ideólogies et valeurs civiques dans le Monde
Romain. Hommage à Claude Lapelley. Paris: Picard, 2002. p. 21.
5
CARRIÉ, Jean-Michel. Pratique et Idéologie Chrétiennes de L’Économique (IV e – Ve Siècles). AnTard, 14 : 17
– 26, 2006.
6
Ibidem. p. 18.
1
culturais. Isso é um dado importante nos estudos de História Econômica, porque permite ao
pesquisador conhecer os elementos que formavam a ideologia de determinados grupos sociais
e nos oferecem uma ideia, com maior precisão, das próprias relações sociais entre os diferentes
grupos na Antiguidade.
Nossa compreensão acerca da economia, nesse caso, não está restrita às relações de
mercado. Consideramos como econômico qualquer sistema que envolva a sociedade em suas
relações produtivas – distribuição de bens voltados ao bem estar e à sobrevivência do homem
em sociedade. Assim, toda relação que compreenda os conceitos de produção, distribuição,
compra, venda, gestão, lucro, preço, moeda, crédito, oferta versus demanda, entre outros, é uma
relação econômica.7 Precisamos considerar que a formação do homem mediterrânico, em
especial o grego e o romano, estava mais voltada para a retórica, a filosofia, a história, a
literatura e para a filologia. Teorizar sobre preço, contabilidade e comércio não era, portanto,
uma prioridade dos antigos.8 Dessa forma, consideramos que todo e qualquer texto antigo pode
apresentar importantes informações sobre a economia no mundo antigo, basta um olhar atento
e treinado, pelo que elencamos o texto jurídico para nossa análise.
Um elemento que não deve ser negligenciado é o fato de que as atividades financeiras
faziam parte da vida da elite romana. Tanto as questões intrínsecas às finanças – tipos de
empréstimo e pagamento, endividamento, dentre outros – quanto externas a elas – questões
regionais, crise financeira, empreendimentos etc. – faziam parte da ideologia da elite imperial
e estavam relacionados com a oferta e demanda do mercado de crédito responsáveis por
estabelecer o preço da moeda, que é a taxa de juros.9 É importante ressaltar, ainda, que há
outros elementos capazes de promover alterações nas taxas de juros: a conjuntura política
existente10, bem a própria a vida social e econômica da elite – que nesse estudo chamamos de
ideologia.11 Quando a riqueza patrimonial da elite romana não era suficiente para a manutenção
7
GAIA, Deivid Valério. Les sources, Tome II. Les crises financières et le taux d’intérêt dans le monde romain,
Ie siècle av. J.-C. – IIe siècle ap. J.-C. (tese de doutorado), Paris, EHESS, 2013. p. 40 – 68.
8
Para um entendimento mais aprofundado, ver a discussão sobre otium e negotium em GAIA, Deivid. Profissionais
das finanças na Antiguidade romana: os faeneratores no final da República e no início do Império. História
Unisinos. 22 (4): 651 – 660, 2018.
9
ANDREAU, Jean. A economia romana era uma economia de mercado? Phoînix, Rio de Janeiro, 21-2: 99-116,
2015. p. 111.
10
Ibidem. p. 112.
11
Para compreender o impacto das bases ideológicas da elite sobre a vida financeira, ver GAIA, Deivid V.
Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare Nostrum, v. 1, 2010. p. 85.
2
de seu status nas cidades, recorriam, então, ao crédito, o que descreve bem a ligação entre as
relações financeiras e as bases ideológicas da vida político-administrativa dessa elite.12
Uma vez que a lei era a ferramenta utilizada para estabelecer as balizas das relações
econômicas e financeiras na Roma Antiga, o texto jurídico é a documentação que será analisada
nessa pesquisa. Ademais, tendo em vista que os aspectos econômicos também estão ligados aos
julgamentos morais, investigaremos se a mudança no Império Romano a partir da incidência da
ideologia cristã alterou a ideologia da elite acerca das relações financeiras, a partir da
documentação jurídica. Como o direito romano era pragmático, isto é, não teorizava acerca da
vida prática, mas que era por ela determinado, temos no texto jurídico uma próspera e
importante fonte para o estudo da História Econômica. É na jurisprudência, por exemplo, que
encontramos a conceituação e definição das relações financeiras ligadas ao crédito, tais como
os diversos tipos de empréstimo de dinheiro, as taxas de juros, as limitações das taxas pelos
poderes públicos, dentre outros.13 Também podemos encontrar uma forte tendência de
sistematização – mais empírica do que abstrata – dos fenômenos econômicos, etc.14 Além disso,
era por meio da promulgação de leis que os poderes públicos romanos resolviam os conflitos
referentes à vida financeira, embora devemos frisar que isso não implica em um Império que
intervinha na economia, mas que atuava na resolução de conflitos entre credores e devedores.15
Eram as cidades, com sua autonomia garantida pelos romanos, que eram responsáveis por mais
restrições, sobretudo na regulação do mercado, controle dos preços de produtos básicos etc.16
A partir do século IV, com a monetização cada vez maior da economia romana, a riqueza
da elite foi aumentando ainda mais. A ordem senatorial, por ser detentora de terras e ter sido
ainda mais enriquecida com a supervalorização do ouro e a consequente desvalorização das
moedas de bronze, concentrou ainda mais riquezas.17 Esse fortalecimento de poder, no entanto,
12
GAIA, Deivid Valério. Taxas de juros e mercado de crédito no mundo romano: breves considerações. Philía, n.
46, 2013. p. 02.
13
Ver Dig. 12; Dig. 13.4.2.8 (Ulpiano); Dig.19.1.13.26 (Papiniano); Dig. 22.1.1pr. (Papiniano); Dig. 22.1.9 pr.
(Papiniano); Dig. 26.7.47.4 (Scaevola); Dig. 45.1.90 (Pomponio), dentre outros exemplos.
14
No que se refere às taxas de juros no Principado, por exemplo, é por meio da jurisprudência que podemos
constatar os juros como parte do costume local de cada região (mos regionis), de forma que o legitimus modus
usurarum, nunca se referia ao conjunto do Império. Os governadores de província observavam, primeiro, o
costume local para, então, aplicar os juros da capital, ou não. Para essa discussão, ver GAIA (2016 e 2018).
15
Ver GAIA, Deivid Valério. Os poderes públicos e o empréstimo de dinheiro a juros na Roma Antiga. Phoînix,
n. 22, v.1: 123 -133, 2016.
16
CARRIÉ, Jean-Michel. Were Late Roman and Byzantine Economies Market Economies? A Comparative Look
at Historiography. In: MORRISON, C. (ed.). Trade and Markets in Byzantium. Washington D.C.: Dumbartion
Oaks Research Library and Collection, 2012. p. 14.
17
CAMERON, Averil. Late Roman Society and Economy. In: AVERIL, Cameron. The Mediterranean World of
Late Antiquity 395 – 700 AD. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2012. p. 87.
3
também ocorreu nas cidades, onde os bispos assumiam protagonismo.18 No século V, eles se
tornaram os principais conselheiros da administração das cidades19, e, como resultado da
expansão da própria ordem senatorial, muitos passaram a fazer parte dela, principalmente na
parte oriental do Império, a partir do estabelecimento do Senado de Constantinopla.20 Ademais,
tornaram-se participantes diretos da corte do imperador, e, portanto, das decisões imperiais.21
Contudo, no que se refere às práticas financeiras, esses líderes religiosos se posicionavam de
forma a recomendar o rompimento dos acordos legais assinados pelo credor e pelo devedor,
independentemente de serem considerados justos ou não.22 O mercado era considerado como
perigoso aos olhos desses pregadores, pois quem o frequentasse era considerado como
escravizado às necessidades às quais as ambições deram origem. Para eles, todos estavam
obcecados pela manutenção do seu status e, por causa disso, a aristocracia se endividava.23
Assim, os bispos condenavam não somente a usura, mas qualquer prática do empréstimo de
dinheiro a juros, sobretudo porque a tentativa dos menos favorecidos em emular os gostos caros
da elite fazia com que, perpetuamente, estivessem escravizados à matéria e, com isso, aos seus
próprios credores.24
18
Nos séculos IV e V, fazer parte da ordem dos curiales facilitava a ascensão social, e muitos bispos faziam parte
dela. Além disso, alguns bispos eram herdeiros da antiga elite latifundiária romana e, portanto, deram continuidade
à mentalidade característica das ordens dirigentes (RAPP, 2000, p. 387).
19
RAPP, Claudia. The Elite Status of Bishops in Late Antiquity in Ecclesiastical, Spiritual, and Social Contexts.
Arethusa, vol. 33, n. 3: 379 – 399, 2000. p. 391.
20
Ibidem. p. 392.
21
Ibidem. p. 396.
22
SAMELLAS, A. The Anti-Usury Arguments of the Church Fathers of the East in their Historical Context and
the Accomodation of the Church to the Prevailing “Credit Economy” in Late Antiquity. Journal of Ancient History,
vol. 5, n. 1: 134 – 178, 2017. p. 135.
23
Ibidem. p. 139.
24
Ibidem. p. 145.
25
Que pode ser exemplificada com a convocação do Concílio de Nicéia, em 313, por Constantino, ou pela
interferência do poder político na escolha de bispos, etc. Ver HUNT, D. The Church as a Public Institution. In:
CAMERON, A.; GARNSEY, P. (eds.). The Cambridge Ancient History – Volume XIII: The Late Empire, A.D.
337 – 425. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 238 – 276.
4
Teodósio II, compiladas no Código Teodosiano, mais especificamente o livro II, sem
desconsiderar a dificuldade intrínseca ao estudo da documentação jurídica da Antiguidade.
Com relação à metodologia de análise a ser empregada em nossa pesquisa, mobilizaremos a
história cruzada, que nos fornecerá subsídios para compreender o cruzamento entre o
cristianismo e as práticas da vida econômica e financeira, no âmbito da própria cristianização
da elite.
Justificativa
No que se refere à relação entre a cristianização e a economia na Antiguidade Tardia,
houve uma mudança na ideologia da elite tanto de Roma quanto das cidades. O historiador
Jean-Michel Carrié discute que a perspectiva econômica moral do cristianismo apresentava-se
contrária à obtenção do lucro com base na exploração dos menos favorecidos, sobretudo a partir
das práticas usurárias.26 No entanto, embora haja na historiografia recente diversas discussões
relacionadas às finanças na Antiguidade Romana, à cristianização da elite e ao papel social
desempenhado pelos bispos cristãos nos séculos IV e V, não há um trabalho específico acerca
da relação existente entre esses fenômenos no período tardio.
26
Para essa discussão, ver CARRIÉ, Jean-Michel. Pratique et Idéologie Chrétienne de L’Économie (IVe – VIe
Siècles). AnTard, 14: 17 – 26, 2006.
27
Acerca das obras contrárias ao empréstimo de dinheiro a juros, podemos citar: Gr. Nyss. Usur. 198, 21-23;
Chrys, Hom. Rom., 18, 6; Chrys. Hom. Matt., 56, 5; Chrys. Exp. Ps. 59., 4; Bas. Hom. Ps., 14, 1.; Ambr., Ep., 19;
Ambr. Tob., dentre outros.
5
financeiras no Império Romano vinham enfatizando, nas últimas décadas, as documentações
do período republicano e do início do Principado, tais como epistolografias, tratados, epigrafias
etc. No que se refere à documentação jurídica, o Digesto foi o objeto da maioria das análises.
Pesquisas sobre esse tema a partir da mobilização do Código Teodosiano, além de difíceis de
serem realizadas, são pouco conhecidas, e nenhuma foi realizada em Língua Portuguesa; as
existentes, no entanto, são realizadas por juristas e não por historiadores. É nesse campo,
portanto, que nossa pesquisa se insere, a fim de investigar as possíveis influências do
cristianismo sobre as finanças no período tardo-antigo.
II. Objetivos
O objetivo geral dessa pesquisa é analisar o cruzamento entre a ideologia cristã e a
ideologia da elite acerca da vida financeira, a partir da legislação compilada no livro II do
Código Teodosiano, com ênfase na relação entre direito romano e o mercado de crédito entre
os séculos IV e V. Nossos objetivos específicos são:
III. Hipóteses
A hipótese geral dessa pesquisa é que a progressiva cristianização do Império Romano,
intensificada a partir do século IV com a chegada de Constantino ao poder, impactou a ideologia
da elite romana acerca do crédito, incidindo diretamente sobre as leis acerca das relações
financeiras. Nossas hipóteses específicas são:
6
IV. Discussão bibliográfica e pressupostos teóricos
O estudo mais amplo acerca do empréstimo de dinheiro e as taxas de juros no mundo
romano ainda é, nos dias atuais, um livro em alemão datado do final do século XIX, escrito
pelo historiador Gustav Billeter. 28 Sem dúvidas, trata-se de um estudo importante para o seu
tempo. Contudo, essa obra já não responde mais aos questionamentos e exigências atuais,
principalmente porque a partir da segunda metade do século XX novas interpretações foram
desenvolvidas acerca da economia antiga que ampliaram as possibilidades de estudo. As
recentes pesquisas são devedoras, principalmente, das contribuições dadas pelas obras de
Raymond Bogaert29 – para a Grécia Antiga – e de Jean Andreau30 – para a Roma Antiga. Os
estudos desses autores são fundamentais porque renovaram a historiografia da História
Econômica, sendo Andreau, até os dias atuais, a principal autoridade no estudo dos argentarii,
banqueiros profissionais de depósitos na Antiguidade romana. Ampliando o recorte temático
das finanças, o historiador Deivid Gaia, buscou estudar outros profissionais das finanças em
Roma, cuja atividade estava fora do escopo dos banqueiros. Em sua tese de doutorado, Gaia
analisou o empréstimo de dinheiro a juros praticado pelos faeneratores, em toda a
documentação produzida em Roma, desde o século I a.C. até o século II d.C.. Nessa pesquisa,
o historiador ainda contribuiu para a temática ao apontar a diferença tácita entre os faeneratores
enquanto emprestadores profissionais de dinheiro a juros e a prática do empréstimo realizada
pelos senadores e equestres romanos.31
28
BILLETER, Gustav. Geschichte des Zinsfusses im griechisch-römischen Altertum bis auf Justinian. Leipzig: B.
G. Teubner, 1898.
29
BOGAERT, Raymond. Banques et banquiers dans les cités grecques. Leiden: A. W. Sijthoff, 1968.
30
ANDREAU, Jean. Banking and Business in the Roman World. New York: Cambridge University Press, 1999.
31
GAIA, Deivid Valério. Les sources, Tome II. Les crises financières et le taux d’intérêt dans le monde romain,
Ie siècle av. J.-C. – IIe siècle ap. J.-C. (tese de doutorado), Paris, EHESS, 2013.
32
Dentre as obras podemos citar CARRIÉ (1999, 2006, 2007, 2012, 2018), presentes na parte destinada à
bibliografia desse projeto.
7
da Antiguidade Tardia, e, ainda, suas reflexões acerca da própria periodização desse recorte
histórico, são fundamentais para a pesquisa que pretendemos realizar.
Não ignoramos, porém, que o estudo dos fenômenos históricos e suas abordagens
sofreram diversas transformações ao longo do tempo, e o contexto no qual o historiador está
inserido é decisivo para sua opção teórico-metodológica. Sem dúvidas, a pós-modernidade
trouxe consigo profundas inovações não somente no campo tecnológico, mas também na
historiografia. Diferentemente da abordagem historiográfica característica do século XIX que,
baseada na tradição empirista, considerava a História como uma pesquisa objetiva, cuja
finalidade seria reconstruir o passado tal como ocorreu, esse novo contexto possibilitou o
surgimento daquilo que pode ser chamado de uma abordagem desconstrucionista da história,
utilizando a terminologia cunhada pelo historiador Alun Munslow.33
33
A abordagem desconstrucionista se dá sobre a origem e a interpretação dos fenômenos históricos e,
consequentemente, no inevitável relativismo da compreensão histórica. Nesse sentido, não é possível, conhecer o
passado como ele foi, tal como era defendido pela historiografia precedente. Para essa discussão das abordagens
na história ver MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.
34
GAIA, Deivid V. Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare Nostrum, v. 1,
2010. p. 85.
8
apresentam, as leis que os governam etc., a segunda se debruça sobre as atitudes e os
julgamentos que não só são constituintes, mas alimentam os aspectos que estão relacionados
com a vida econômica. Gaia argumenta que essa segunda vertente contribui para a explicação
dos fenômenos históricos, dependendo do peso que é atribuído pelo historiador às mentalidades
ou às suas representações.35
35
Ibidem. p. 88.
36
Eram assim chamadas as leis que no Império Romano tardio passaram a ser consideradas como de aplicação
geral.
37
Essa leitura do texto jurídico está baseada na metodologia aplicada pelo historiador Jean-Michel Carrié. Para
melhor compreensão da metodologia aplicada à legislação imperial romana, ver CARRIÉ, Jean-Michel. La
législation impériale sur les gouvernements municipaux dans l’Antiquité tardive. AnTard, n. 26: 85 – 125, 2018.
9
forma, analisaremos a legislação tendo em vista sua datação, os imperadores envolvidos, o
destinatário, bem como a forma das leis (rescrito, édito etc.).
No que se refere à metodologia que será aplicada nesta pesquisa, lançaremos mão de
uma metodologia de leitura e uma metodologia de análise. O estudo da economia antiga não
pode ser desvinculado, de forma alguma, da análise dos termos latinos que compõem seu campo
semântico. Dessa forma, é essencial para a nossa pesquisa a realização de um exame das
palavras latinas que remetem à prática financeira do empréstimo de dinheiro a juros:
fenus/faenus, usura, creditum, debitum, centesima, mutuum, cautio, commodatio,
chirographum, dentre outras, devido à dificuldade de algumas de serem traduzidas, bem como
sua relação com a temática proposta. Assim, nossa primeira análise do corpus documental tem
como objetivo identificar essas palavras-chave e seus significados no contexto de cada
legislação. Para isso, consideraremos a perspectiva metodológica da Análise de Conteúdo,
proposta por Laurence Bardin.38 Iniciaremos essa pesquisa com a realização de um dossiê
documental contendo as passagens em que essas palavras aparecem na documentação, processo
que Bardin denomina de categorização.39 Assim, será estabelecido um recorte semântico, a fim
de compreendermos não somente o sentido do vocabulário econômico em si, mas uma
classificação, articulando cada passagem catalogada ao seu contexto. Esse processo é de suma
importância para a presente pesquisa, haja vista que as traduções, em muitos casos, podem nos
levar a conclusões equivocadas acerca do sentido dos termos aplicados.40 Por fim, uma análise
qualitativa dos excertos inventariados será fundamental, de sorte que poderemos compreender
toda a relação entre significante e significado, bem como responderemos questões relacionadas
ao contexto de produção de cada lei, isto é, quem é que fala e sob que circunstâncias?41
38
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
39
Ibidem. p. 119.
40
Utilizaremos a tradução em língua inglesa de 1952, realizada por Clyde Pharr, confrontando-a com o texto em
latim, estabelecido no início do século XX por Theodor Mommsen.
41
BARDIN, L. Op. cit.. p. 145.
42
WERNER, M; ZIMMERMANN, B. Beyond Comparison: Histoire Croisée and the Challenge of Reflexivity.
History and Theory, v. 45, n. 1: 30 – 50, 2006.
43
Ibidem. p. 32.
10
um ponto de interseção onde eventos podem ocorrer. Os eventos criados, por sua vez, podem,
inclusive, afetar os elementos do cruzamento, dependendo de sua resistência, permeabilidade
ou maleabilidade. Assim, o pesquisador deve observar tanto o ponto de intersecção, quanto os
elementos que compõem o cruzamento, os antecedentes e as consequências.44
VI. Bibliografia
Documentação:
Codex Theodosianus. ed. por Th. Mommsen, P. Krüger, Meyer. Berlim: Weldmannos, 1905.
The Theodosian Code and Novels and the Simordian Constitutions. trad. Clyde Pharr. New
Jersey: Princeton University Press, 1952.
Bibliografia citada:
ANDREAU, J. Banking and Business in the Roman World. New York: Cambridge University
Press, 1999.
ANDREAU, Jean. A economia romana era uma economia de mercado? Phoînix, Rio de
Janeiro, 21-2: 99-116, 2015.
ANDREAU, Jean. The Economy of the Roman World. Ann Arbor: Michigan University Press,
2015.
44
WERNER, M; ZIMMERMANN, B. Beyond Comparison: Histoire Croisée and the Challenge of Reflexivity.
History and Theory, v. 45, n. 1: 30 – 50, 2006. p. 37.
45
Ibidem. p. 39.
11
BILLETER, G. Geschichte des Zinsfusses im griechisch-römischen Altertum bis auf Justinian.
Leipzig: B. G. Teubner, 1898.
BOGAERT, Raymond. Banques et banquiers dans les cités grecques. Leiden: A. W. Sijthoff,
1968.
BRETONE, Mario. O texto jurídico. In: CAVALLO, G.; FEDELI, P.; GIARDGINA, A.
(orgs.). O espaço literário da Roma antiga. Belo Horizonte: Tessitura, 2010.
BROWN, Peter. “Treasure in Heaven”: Wealth in the Christian Church. In: BROWN, Peter.
Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the
West, 350 – 550 AD. New Jersey: Princeton University Press, 2012. p. 72 – 90.
CAMERON, Averil. Late Roman Society and Economy. In: AVERIL, Cameron. The
Mediterranean World in Late Antiquity 395 – 700 AD. Londres; Nova Iorque: Routledge,
2012. p. 84 – 103.
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(ed.). La monnaie dévoilée par ses crises. Volume 1: Crises monétaires d’hier et
d’aujourd’hui. Paris: EHESS, 2007. p. 131 – 163.
CARRIÉ, Jean-Michel. Were Late Roman and Byzantine Economies Market Economies? A
Comparative Look at Historiography. In: MORRISON, C. (ed.). Trade and Markets in
Byzantium. Washington D.C.: Dumbartion Oaks Research Library and Collection, 2012. p. 13
– 26.
GAIA, Deivid V. Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare
Nostrum, v. 1, 2010.
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Cambridge Ancient History – Volume XIII: The Late Empire, A.D. 337 – 425. New York:
Cambridge University Press, 2007. p. 238 – 276.
12
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Historical Context and the Accomodation of the Church to the Prevailing “Credit Economy”
in Late Antiquity. Journal of Ancient History, vol. 5, n. 1: 134 – 178, 2017.
SPAGNOLO, Benjamin; SAMPSON, Joe. (eds.). Principle and Pragmatism in Roman Law.
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13