A Confissao de Lucio - Mario de Sa-Carneiro
A Confissao de Lucio - Mario de Sa-Carneiro
A Confissao de Lucio - Mario de Sa-Carneiro
Mário de Sá-Carneiro
Projecto Adamastor
Ficha Técnica
Esta obra foi revista segundo o Acordo Ortográfico de 1945, com base na
digitalização disponível na Biblioteca Digital da Casa Fernando Pessoa.
Este trabalho foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-
CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.
Índice
Dedicatória
Epígrafe
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
PorParis,
1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de
ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter
tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido — sedento
de Europa, resolvera transportar-me à grande capital. Logo me embrenhei por
meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal conhecia de
Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade
essa de grande artista falido, ou antes, predestinado para a falência.
Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e o seu corpo de linhas
quebradas tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado, umas
vezes — outras, contrariamente, de ascetismo amarelo. Os cabelos compridos, se
lhe descobriam a testa ampla e dura, terrível, evocavam cilícios, abstenções
roxas; se lhes escondiam a fronte, ondeadamente, eram só ternura, perturbadora
ternura de espasmos dourados e beijos subtis. Trajava sempre de preto, fatos
largos, onde havia o seu quê de sacerdotal — nota mais frisantemente dada pelo
colarinho direito, baixo, fechado. Não era enigmático o seu rosto — muito pelo
contrário, se lhe cobriam a testa os cabelos ou o chapéu. Entanto, coisa bizarra,
no seu corpo havia mistério — corpo de esfinge, talvez, em noites de luar. Aquela
criatura não se nos gravava na memória pelos seus traços fisionómicos, mas sim
pelo seu estranho perfil. Em todas as multidões ele se destacava, era olhado,
comentado — embora, em realidade, a sua silhueta à primeira vista parecesse
não se dever salientar notavelmente: pois o fato era negro — apenas dum talhe
um pouco exagerado — os cabelos não escandalosos, ainda que longos; e o
chapéu, um bonet de fazenda — esquisito, era certo — mas que em todo o caso
muitos artistas usavam, quase idêntico.
Porém, a verdade é que em redor da sua figura havia uma auréola. Gervásio
Vila-Nova era aquele que nós olhamos na rua dizendo: ali, deve ir alguém.
Todo ele encantava as mulheres. Tanta rapariguinha que o seguia de olhos
fascinados quando o artista, sobranceiro e esguio, investigava os cafés… Mas
esse olhar, no fundo, era mais o que as mulheres lançam a uma criatura do seu
sexo, formosíssima e luxuosa, cheia de pedrarias…
— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez — não sou eu
nunca que possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…
Ao falar-nos, brilhava ainda mais a sua chama. Era um conversador
admirável, adorável nos seus erros, nas suas ignorâncias, que sabia defender
intensamente, sempre vitorioso; nas suas opiniões revoltantes e belíssimas, nos
seus paradoxos, nas suas blagues. Uma criatura superior — ah! sem dúvida. Uma
destas criaturas que se enclavinham na memória — e nos perturbam, nos
obcecam. Todo fogo! todo fogo!
Entretanto, se o examinávamos com a nossa inteligência, e não apenas com a
nossa vibratilidade, logo víamos que, infelizmente, tudo se cifrava nessa auréola,
que o seu génio — talvez por demasiado luminoso — se consumiria a si próprio,
incapaz de se condensar numa obra — disperso, quebrado, ardido. E assim
aconteceu, com efeito. Não foi um falhado porque teve a coragem de se
despedaçar.
A uma criatura como aquela não se podia ter afecto, embora no fundo ele
fosse um excelente rapaz; mas ainda hoje evoco com saudade as nossas
palestras, as nossas noites de café — e chego a convencer-me que, sim,
realmente, o destino de Gervásio Vila-Nova foi o mais belo; e ele um grande, um
genial artista.
Durante uma semana — o que raro acontecia — estive sem ver Gervásio.
Ao fim dela, apareceu-me e contou-me:
— Sabe, tenho estreitado relações com a nossa americana. É na verdade uma
criatura interessantíssima. E muito artista… Aquelas duas pequenas são amantes
dela. É uma grande sádica.
— Não…
— Asseguro-lhe.
E não falámos mais da estrangeira.
Tomámos um fiacre.
Pelo caminho, ao atravessarmos não sei que praça, chegaram-nos ao ouvido
os sons de um violino de cego, estropiando uma linda ária. E Ricardo comentou:
— Ouve esta música? É a expressão da minha vida: uma partitura admirável,
estragada por um horrível, por um infame executante...
III
Noestranha
dia seguinte, de novo nos encontrámos, como sempre, mas não aludimos à
conversa da véspera. Nem no dia seguinte, nem nunca mais… até
ao desenlace da minha vida…
Entretanto, a perturbadora confidência do artista não se me varrera da
memória. Pelo contrário — dia algum eu deixava de a relembrar, inquieto, quase
numa obsessão.
Sem incidentes notáveis — na mesma harmonia, no mesmo convívio d’alma
— a nossa amizade foi prosseguindo, foi-se estreitando. Após dez meses, nos fins
de 1896, embora o seu grande amor por Paris, Ricardo resolveu regressar a
Portugal — a Lisboa, onde em realidade coisa alguma o devia chamar.
Estivemos um ano separados.
Durante ele, a nossa correspondência foi nula: três cartas minhas; duas do
poeta — quando muito.
Circunstâncias materiais e as saudades do meu amigo, levaram-me a sair de
Paris, definitivamente, por meu turno. E em Dezembro de noventa e sete
chegava a Lisboa.
Ricardo esperava-me na estação.
Mas como o seu aspecto físico mudara nesse ano que estivéramos sem nos
ver!
As suas feições bruscas haviam-se amenizado, acetinado — feminilizado, eis a
verdade — e, detalhe que mais me impressionou, a cor dos seus cabelos
esbatera-se também. Era mesmo talvez desta última alteração que provinha,
fundamentalmente, a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo —
fisionomia que se tinha difundido. Sim, porque fora esta a minha impressão total:
os seus traços fisionómicos haviam-se dispersado — eram hoje menores.
E o tom da sua voz alterara-se identicamente, e os seus gestos: todo ele, enfim,
se esbatera.
Eu sabia já, é claro, que o poeta se casara há pouco, durante a minha
ausência. Ele escrevera-mo na sua primeira carta; mas sem juntar pormenores,
muito brumosamente — como se se tratasse duma irrealidade. Pelo meu lado,
respondera com vagos cumprimentos, sem pedir detalhes, sem estranhar muito o
facto — também como se se tratasse duma irrealidade; de qualquer coisa que eu
já soubesse, que fosse um desenlace.
Abraçámo-nos com efusão. O artista acompanhou-me ao hotel, ficando
assente que nessa mesma tarde eu jantaria em sua casa.
De sua mulher, nem uma palavra… Lembro-me bem da minha perturbação
quando, ao chegarmos ao meu hotel, reparei que ainda lhe não perguntara por
ela. E essa perturbação foi tão forte, que ainda menos ousei balbuciar uma
palavra a seu respeito, num enleio em verdade inexplicável…
Mas, quando à noite me dirigia para o palacete que o meu amigo habitava
numa das avenidas novas, recentemente abertas, eu — coisa esquisita —
esquecera-me até já de que ele casara, de que ia conhecer agora a sua mulher...
Cheguei. Um criado estilizado conduziu-me a uma grande sala escura, pesada,
ainda que jorros de luz a iluminassem: ao entrar com efeito nessa sala
resplandecente, eu tive a mesma sensação que sofremos se, vindos do sol,
penetramos numa casa imersa em penumbra.
Fui pouco a pouco distinguindo os objectos… E, de súbito, sem saber como,
num rodopio nevoento, encontrei-me sentado em um sofá, conversando com o
poeta e a sua companheira…
Sim. Ainda hoje me é impossível dizer se, quando entrei no salão, já lá estava
alguém, ou se foi só após instantes que os dois apareceram. Da mesma forma,
nunca pude lembrar-me das primeiras palavras que troquei com Marta — era
este o nome da esposa de Ricardo.
Enfim, eu entrara naquela sala tal como se, ao transpor o seu limiar, tivesse
regressado a um mundo de sonhos.
Eis pelo que as minhas reminiscências de toda essa noite são as mais ténues.
Entretanto, durante ela, creio que nada de singular aconteceu. Jantou-se;
conversou-se largamente, por certo…
À meia-noite despedi-me.
Mal cheguei ao meu quarto, deitei-me, adormeci… E foi só então que me
tornaram os sentidos. Efectivamente, ao adormecer, tive a sensação estonteada
de acordar dum longo desmaio, regressando agora à vida… Não posso descrever
melhor esta incoerência, mas foi assim.
(E, entre parênteses, convém-me acentuar que meço muito bem a estranheza
de quanto deixo escrito. Logo no princípio referi que a minha coragem seria a de
dizer toda a verdade, ainda quando ela não fosse verosímil.)
Fui de súbito acordado da miragem pelos aplausos dos auditores que a música
genial transportara, fizera fremir, quase delirar…
E, velada, a voz de Ricardo alteou-se:
— Nunca vibrei sensações mais intensas do que perante esta música
admirável. Não se pode exceder a emoção angustiante, perturbadora, que ela
suscita. São véus rasgados sobre o além — o que a sua harmonia soçobra… Tive
a impressão de que tudo quanto me constitui em alma, se precisou condensar
para a estremecer — se reuniu dentro de mim, ansiosamente, em um globo de
luz…
Calou-se. Olhei…
Marta regressara. Erguia-se do fauteuil nesse instante…
Não podendo mais resistir à ideia fixa; adivinhando que o meu espírito
soçobraria se não vencesse lançar enfim alguma luz sobre o mistério — sabendo
que, nesse sentido, nada me esperava junto de Ricardo ou de Marta — decidi
valer-me de qualquer outro meio, fosse ele qual fosse.
E eis como principiou uma série de baixezas, de interrogações mal
dissimuladas, junto de todos os conhecidos do poeta — dos que deviam ter estado
em Lisboa quando do seu casamento.
Para as minhas primeiras diligências escolhi Luís de Monforte.
Dirigi-me a sua casa, no pretexto de o consultar sobre se deveria conceder a
minha autorização a certo dramaturgo que pensava em extrair um drama duma
das minhas mais célebres novelas. Mas logo de começo não tive mãos em mim,
e, interrompendo-me, me pus a fazer-lhe perguntas directas, ainda que um tanto
vagas, sobre a mulher do meu amigo. Luís de Monforte ouviu-as como se as
estranhasse — mas não por elas próprias, só por virem da minha parte; e
respondeu-me chocado, iludindo-as, como se as minhas perguntas fossem
indiscrições a que seria pouco correcto responder.
O mesmo — coisa curiosa — me sucedeu junto de todos quantos interroguei.
Apenas Aniceto Sarzedas foi um pouco mais explícito, volvendo-me com uma
infâmia e uma obscenidade — segundo o seu costume, de resto.
Ah! como me senti humilhado, sujo, nesse instante — que difícil me foi suster
a minha raiva e não o esbofetear, estender-lhe amavelmente a mão, na noite
seguinte, ao encontrá-lo em casa do poeta…
Estas diligências torpes, porém, foram vantajosas para mim. Com efeito se,
durante elas, não averiguara coisa alguma — concluíra pelo menos isto: que
ninguém se admirava do que eu me admirava; que ninguém notara o que eu
tinha notado. Pois todos me ouviram como se nada de propriamente estranho, de
misterioso, houvesse no assunto sobre o qual as minhas perguntas recaíam —
apenas como se fosse indelicado, como se fosse estranho da minha parte tocar
nesse assunto. Isto é: ninguém me compreendera… E assim me cheguei a
convencer de que eu próprio não teria razão…
De novo, por algum tempo, as ideias se me desanuviaram; de novo,
serenamente, me pude sentar junto de Marta.
A
tordoaram-me, positivamente me atordoaram, as palavras do russo.
Pois seria possível? Ricardo trouxera-a de Paris?… Mas como não a
conhecera eu, sendo assim? Acaso não o teria acompanhado à gare do Quai
d’Orsay ? Fora verdade, fora, não o acompanhara — lembrei-me de súbito.
Estava doente, com um fortíssimo ataque de gripe… E ele… Não; era
impossível… não podia ser…
Mas logo, procurando melhor nas minhas reminiscências, me ocorreram pela
primeira vez, nitidamente me ocorreram, certos detalhes obscuros que se
prendiam com o regresso do artista a Portugal.
Ele amava tanto Paris… e decidira regressar a Portugal… Declarara-mo, e eu
não me tinha admirado — não me tinha admirado como se houvesse uma razão
que justificasse, que exigisse esse regresso.
Ai, como me arrependia hoje de, com efeito, o não ter acompanhado à
estação, embora o meu incómodo, e talvez ainda outro motivo, que eu depois
esquecera. Entretanto recordava-me de que, apesar da minha febre, das minhas
violentas dores de garganta, estivera prestes a erguer-me e a ir despedir-me do
meu amigo… Porém, em face dum torpor físico que me invadira todo, deixara-
me ficar estendido no leito, imerso numa profunda modorra, numa estranha
modorra de penumbra…
Mais do que nunca o mistério subsistia pois; entretanto divergido para outra
direcção. Isto é: a ideia fixa que ele me enclavinhava no espírito, alterara-se
essencialmente:
Outrora o mistério apenas me obcecava como mistério: evidenciando-se,
também a minha alma se desensombraria. Era ele só a minha angústia. E hoje
— meu Deus! — a tortura volvera-se em quebranto; o segredo que velava a
minha desconhecida, só me atraía hoje, só me embriagava de champanhe — era
a beleza única da minha existência.
Daí por diante seria eu próprio a esforçar-me por que ele permanecesse,
impedindo que luz alguma o viesse iluminar. E quando desabasse, a minha dor
seria infinita. Mais: se ele soçobrasse, apesar de tudo, numa ilusão, talvez eu
ainda o fizesse prosseguir!
O meu espírito adaptara-se ao mistério — e esse mistério ia ser a armadura, a
chama e o rastro d’ouro da minha vida…
Isto, entretanto, não o avistei imediatamente; levou-me muitas semanas o
aprendê-lo — e, ao descobri-lo, recuei horrorizado. Tive medo; um grande
medo… O mistério era essa mulher. Eu só amava o mistério…
…Eu amava essa mulher! Eu queria-a! eu queria-a!...
Foi duas noites após o meu regresso que as suas mãos, naturalmente, pela
primeira vez encontraram as minhas…
Ah! como as horas que passávamos solitários eram hoje magentas… As
nossas palavras tinham-se volvido — pelo menos julgo que se tinham volvido —
frases sem nexo, sob as quais ocultávamos aquilo que sentíamos e não queríamos
ainda desvendar, não por qualquer receio, mas sim, unicamente, num desejo
perverso de sensualidade.
Tanto que uma noite, sem me dizer coisa alguma, ela pegou nos meus dedos e
com eles acariciou as pontas dos seios — a acerá-las, para que enfolassem
agrestemente o tecido ruivo do quimono de seda.
E cada noite era uma nova voluptuosidade silenciosa.
Assim, ora nos beijávamos os dentes, ora ela me estendia os pés descalços
para que lhos roesse — me soltava os cabelos; me dava a trincar o seu sexo
maquilado, o seu ventre obsceno de tatuagens roxas…
E só depois de tantos requintes de brasa, de tantos êxtases perdidos — sem
forças para prolongarmos mais as nossas perversões — nos possuímos
realmente.
Foi uma tarde triste, chuvosa e negra de Fevereiro. Eram quatro horas. Eu
sonhava dela quando, de súbito, a encantadora surgiu na minha frente…
Tive um grito de surpresa. Marta porém logo me fez calar com um beijo
mordido…
Era a primeira vez que vinha a minha casa, e eu admirava-me, receoso da sua
audácia. Mas não lho podia dizer: ela mordia-me sempre…
AAh!
nossa ligação, sem uma sombra, foi prosseguindo.
como eu, ascendido, me orgulhava do meu amor… Vivia em sortilégio,
no contínuo deslumbramento duma apoteose branca de carne…
Que delírios estrebuchavam os nossos corpos doidos… como eu me sentia
pouca coisa quando ela se atravessava sobre mim, iriada e sombria, toda nua e
litúrgica…
Caminhava sempre aturdido do seu encanto — do meu triunfo. Eu tinha-a! Eu
tinha-a!… E erguia-se tão longe o meu entusiasmo, era tamanha a minha ânsia
que às vezes — como os amorosos baratos escrevem nas suas cartas romanescas
e patetas — eu não podia crer na minha glória, chegava a recear que tudo aquilo
fosse apenas um sonho.
Porém — coisa estranha — este amor pleno, este amor sem remorsos; eu
vibrava-o insatisfeito, dolorosamente. Fazia-me sofrer muito, muito. Mas porquê,
meu Deus? Cruel enigma…
Amava-a, e ela queria-me também, decerto… dava-se-me toda em luz…
Que me faltava?
Não tinha súbitos caprichos, recusas súbitas, como as outras amantes. Nem me
fugia, nem me torturava. Que me doía então?
Mistério…
O certo é que ao possuí-la eu era todo medo — medo inquieto e agonia: agonia
de ascensão, medo raiado de azul; entanto morte e pavor.
Longe dela, recordando os nossos espasmos, vinham-me de súbito
incompreensíveis náuseas. Longe dela? Mesmo até no momento dourado da
posse essas repugnâncias me nasciam a alastrarem-me, não a resumirem-me, a
enclavinharem-me os êxtases arfados: e — cúmulo da singularidade — essas
repugnâncias eu não sabia, mas adivinhava, serem apenas repugnâncias físicas.
Sim, ao esvaí-la, ao lembrar-me de a ter esvaído, subia-me sempre um além-
gosto a doença, a monstruosidade, como se possuíra uma criança, um ser doutra
espécie ou um cadáver…
Ah! e o seu corpo era um triunfo; o seu corpo glorioso… o seu corpo bêbedo
de carne — aromático e lustral, evidente… salutar…
As lutas em que eu hoje tinha de me debater para que ela não suspeitasse as
minhas repugnâncias, repugnâncias que — já disse e acentuo — apenas vinham
contorcer os meus desejos, aumentá-los…
Elançava-me agora sobre o seu corpo nu, como quem se arremessasse a um
abismo encapelado de sombras, tilintante de fogo e gumes de punhais — ou
como quem bebesse um veneno subtil de maldição eterna, por uma taça d’ouro,
heráldica, ancestral…
Cheguei a recear-me, não a fosse um dia estrangular — e o meu cérebro, por
vezes de misticismos incoerentes, logo pensou, num rodopio, se essa mulher
fantástica não seria apenas um demónio: o demónio da minha expiação, noutra
vida a que eu já houvesse baixado.
E as tardes iam passando…
Por mais que diligenciasse referir toda a minha tortura à nossa mentira, ao
nosso crime — não me lograva enganar. Coisa alguma eu lastimava; não podia
ter remorsos… Tudo aquilo era quimera!
Volvido tempo, porém, à força de as querer descer, de tanto meditar nestas
estranhezas, como que enfim me adaptei a elas. E a tranquilidade regressou-me.
Mas este novo período de calma bem pouco durou. Em face do mistério não
se pode ser calmo — e eu depressa me lembrei de que ainda não sabia coisa
alguma dessa mulher que todas as tardes emaranhava.
Nas suas conversas mais íntimas, nos seus amplexos mais doidos, ela era
sempre a mesma esfinge. Nem uma vez se abrira comigo numa confidência —
e continuava a ser a que não tinha uma recordação.
Depois, olhando melhor, nem era só do seu passado que eu ignorava tudo —
também duvidava do seu presente. Que faria Marta durante as horas que não
vivíamos juntos? Era extraordinário! Nunca me falara delas; nem para me
contar o mais pequenino episódio — qualquer desses episódios fúteis que todas as
mulheres, que todos nós nos apressamos a narrar, narramos maquinalmente,
ainda os mais reservados… Sim, em verdade, era como se não vivesse quando
estava longe de mim.
Passou-me esta ideia pelo espírito, e logo encontrei outro facto muito estranho:
Marta parecia não viver quando estava longe de mim. Pois bem, pela minha
parte, quando a não tinha ao meu lado, coisa alguma me restava que,
materialmente, me pudesse provar a sua existência: nem uma carta, um véu,
uma flor seca — nem retratos, nem madeixas. Apenas o seu perfume, que ela
deixava penetrante no meu leito, que bailava subtil em minha volta. Mas um
perfume é uma irrealidade. Por isso, como outrora, descia-me a mesma ânsia de
a ver, de a ter junto de mim para estar bem certo de que, pelo menos, ela existia.
Evocando-a, nunca a lograra entrever. As suas feições escapavam-me como
nos fogem as das personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por
força, as únicas que conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto
por ser o artista quem vivia mais perto dela.
Ah! bem forte, sem dúvida, o meu espírito, para resistir ao turbilhão que o
silvava…
(Entre parênteses observe-se, porém, que estas obsessões reais que descrevo
nunca foram contínuas no meu espírito. Durante semanas desapareciam por
completo e, mesmo nos períodos em que me varavam, tinham fluxos e refluxos.)
Juntamente com o que deixo exposto, e era o mais frisante das minhas
torturas, outras pequeninas coisas, traiçoeiras ninharias, me vinham fustigar.
Coloca-se até aqui um episódio curioso que, embora sem grande importância, é
conveniente referir:
Apesar de grandes amigos e de íntimos amigos, eu e Ricardo não nos
tratávamos por tu, devido com certeza à nossa intimidade ter principiado
relativamente tarde — não sermos companheiros de infância. De resto, nunca
sequer atentáramos no facto.
Ora, por esta época, eu encontrei-me por vezes de súbito a tratar o meu amigo
por tu. E quando o fazia, logo me emendava, corando como se viesse de praticar
uma imprudência. E isto repetia-se tão amiudadamente que o poeta uma noite me
observou com a maior naturalidade:
— Homem, escusas de ficar todo atrapalhado, titubeante, vermelho como
uma malagueta, quando te enganas e me tratas por tu. Isso é ridículo entre nós. E
olha, fica combinado: de hoje em diante acabou-se o « você» . Viva o « tu» ! É
muito mais natural…
E assim se fez. Contudo, nos primeiros dias, eu não soube retrair um certo
embaraço ao empregar o novo tratamento — tratamento que me fora permitido.
Ricardo, virando-se para Marta, mais de uma vez me troçou, dizendo-lhe:
— Este Lúcio sempre tem cada esquisitice… Não vês? Parece uma noiva
lirial… uma pombinha sem fel… Que marocas!…
Entretanto este meu embaraço tinha um motivo — complicado esse, por sinal:
Nas nossas entrevistas íntimas, nos nossos amplexos, eu e Marta tratávamo-nos
por tu.
Ora, sabendo-me muito distraído, eu receava que alguma vez, em frente de
Ricardo, me enganasse e a fosse tratar assim.
Este receio converteu-se por último numa ideia fixa, e por isso mesmo, por
esse excesso de atenção, comecei um dia a ter súbitos descuidos. Porém, dessas
vezes, eu encontrava-me sempre a tratar por tu, não Marta, mas Ricardo.
E embora depois tivéssemos assentado usar esse tratamento, o meu embaraço
continuou durante alguns dias como se ingenuamente, confiadamente, Ricardo
houvesse exigido que eu e a sua companheira nos tratássemos por tu.
As minhas entrevistas amorosas com Marta, realizavam-se sempre em minha
casa, à tarde.
Com efeito ela nunca se me quisera entregar em sua casa. Em sua casa
apenas me dava os lábios a morder e consentia vícios prateados.
Eu admirava-me até muito da facilidade evidente que ela tinha em se
encontrar comigo todas as tardes à mesma hora, em se demorar largo tempo.
Uma vez recomendei-lhe prudência. Ela riu. Pedi-lhe explicações: como não
eram estranhadas as suas longas ausências, como me chegava sempre tranquila,
caminhando pelas ruas desensombradamente, nunca se preocupando com as
horas… E ela então soltou uma gargalhada, mordeu-me a boca… fugiu…
Nunca mais a interroguei sobre tal assunto. Seria mau gosto insistir.
Entretanto fora mais um segredo que se viera juntar à minha obsessão, a
excitá-la…
Aliás, se havia alguém bem confiante, era o poeta. Bastava olhá-lo para logo
se ver que nenhuma preocupação o torturava. Nunca o vira tão satisfeito, tão
bem disposto.
Um vago ar de tristeza, de amargura, que após o seu casamento ainda de vez
em quando o anuviava, esse mesmo desaparecera hoje por completo — como
se, com o decorrer dos dias, ele já tivesse esquecido o acontecimento cuja
lembrança lhe suscitava aquela ligeira nuvem.
As suas antigas complicações d’alma, essas, mal eu chegara a Lisboa logo ele
me dissera que já não o desolavam — pois que, nesse sentido, a sua vida se
limpara.
E — facto curioso — justamente depois de Marta ser minha amante é que
tinham cessado todas as nuvens, é que eu via melhor a sua boa disposição — o
seu orgulho, o seu júbilo, o seu triunfo…
O beijo de Ricardo fora igual, exactamente igual, tivera a mesma cor, a mesma
perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira.
VI
Por este tempo, houve também uma época muito interessante na minha crise
que não quero deixar de mencionar: durante ela eu pensava muito no meu caso,
mas sem de forma alguma me atribular — friamente, desinteressadamente,
como se esse caso se não desse comigo.
E punha-me sobretudo a percorrer o começo da nossa ligação. De que modo
se iniciara ela? Mistério… Sim, por muito estranho que pareça, a verdade é que
eu me esquecera de todos os pequenos episódios que a deviam forçosamente ter
antecedido. Pois decerto não começáramos logo por beijos, por carícias viciosas
— houvera sem dúvida qualquer coisa antes, que hoje não me podia recordar.
E o meu esquecimento era tão grande que, a bem dizer, eu não tinha a
sensação de haver esquecido esses episódios: parecia-me impossível recordá-los,
como impossível é recordarmo-nos de coisas que nunca sucederam...
Mas estas bizarrias não me dilaceravam, repito: durante esta época eu
examinei-me sempre de fora, num deslumbramento — num deslumbramento
lúcido, donde provinha o meu alívio actual.
E só me lembrava — conforme narrei — do primeiro encontro das nossas
mãos, do nosso primeiro beijo… Nem de tanto, sequer. A verdade simples era
esta: eu sabia apenas que devera ter havido seguramente um primeiro encontro
de mãos, uma primeira mordedura nas bocas… como em todos os romances…
Quando a saudade desse primeiro beijo me acudia mais nítida — ele surgia-
me sempre como se fora a coisa mais natural, a menos criminosa, ainda que
dado na boca… Na boca? Mas é que eu nem mesmo disso estava seguro. Pelo
contrário: era até muito possível que esse beijo mo tivessem dado na face —
como o beijo de Ricardo, o beijo semelhante aos de Marta…
Meu Deus, meu Deus, quem me diria entretanto que estava ainda a meio do
meu calvário, que tudo o que eu já sofrera nada valeria em face duma nova
tortura — ai, desta vez, tortura bem real, não simples obsessão…
Com efeito um dia comecei observando uma certa mudança na atitude de
Marta — nos seus gestos, no seu rosto: um vago constrangimento, um alheamento
singular, devidos sem dúvida a qualquer preocupação. Ao mesmo tempo reparei
que já não se me entregava com a mesma intensidade.
Demorava-se agora menos em minha casa e uma tarde, pela primeira vez
faltou.
No dia seguinte não aludiu à sua ausência, nem eu tão-pouco me atrevi a
perguntar-lhe coisa alguma. Entretanto notei que a expressão do seu rosto
mudara ainda: voltara a serenidade melancólica do seu rosto — mas essa
serenidade era hoje diferente: mais loira, mais sensual, mais esbatida…
E desde aí, principiou a não me aparecer amiudadas vezes — ou chegando
fora das horas habituais, entrando e logo saindo, sem se me entregar.
De maneira que eu vivia agora num martírio incessante. Cada dia que se
levantava, era cheio do medo de que ela me faltasse. E desde a manhã a
esperava, fechado em casa, numa excitação indomável que me quebrava, que
me ardia.
Por seu lado, Marta nunca tinha pensado em justificar-me as suas ausências,
as suas recusas. E eu, embora o quisesse, ardentemente o quisesse, não lhe
ousava fazer a mais ligeira pergunta.
De resto, devo explicar que, desde o início da nossa ligação, terminara a nossa
intimidade. Com efeito, desde que Marta fora minha — eu olhava-a como se
olha alguém que nos é muito superior e a quem tudo devemos. Recebera o seu
amor como uma esmola de rainha — como aquilo que menos poderia esperar,
como uma impossibilidade.
Eis pelo que não arriscava uma palavra.
Eu era apenas o seu escravo — um escravo a quem se prostituíra a patrícia
debochada… Mas, por ser assim, tanto mais contorcida se enclavinhava a minha
angústia.
Muitas vezes repeti a experiência de correr a sua casa nas tardes em que ela
não vinha. Mas sempre encontrava Ricardo. Marta não aparecia senão ao
jantar… E eu, na minha incrível timidez, nunca perguntava por ela — esquecia-
me mesmo de o fazer, como se não fosse para isso só que viera procurar o meu
amigo àquela hora…
Porém, um dia o poeta admirou-se das minhas visitas intempestivas, do ar
febril com que eu chegava e, desde então, nunca mais ousei repetir essas
experiências, aliás inúteis.
Decidi espioná-la.
Uma tarde tomei um coupé e, descidas as cortinas, mandei-o parar perto de
sua casa… Esperei algum tempo. Por fim ela saiu. Ordenei ao cocheiro que a
seguisse a distância…
Marta tomou por uma rua transversal, dobrou à esquerda, enveredou por uma
avenida paralela àquela em que habitava e onde as construções eram ainda
raras. Dirigiu-se a um pequeno prédio de azulejos verdes. Entrou sem bater…
Ah! como eu sofria! como eu sofria!… Fora buscar a prova evidente de que
ela tinha outro amante… Louco que eu era em a ter ido procurar… Hoje, nem
mesmo que quisesse, me poderia já iludir…
E como eu me enganara outrora pensando que não seria sensível à traição
carnal duma minha amante, que pouco me faria que ela pertencesse a outros…
Numa derradeira vontade tentei ainda provocar uma explicação com Marta
— descrever-lhe sinceramente todo o meu martírio, ou, pelo menos, insultá-la.
Enfim, pôr um termo qualquer à minha situação infernal.
Mas não o consegui nunca. Quando ia a dizer-lhe a primeira palavra, via os
seus olhos de infinito… o seu olhar fascinava-me. E como um medium no estado
hipnótico eram outras as frases que eu proferia — talvez só as que ela me
obrigava a pronunciar.
Então resolvi, pelo menos, saber de qualquer forma quem era o habitante do
prediozinho verde. Repugnavam-me muito as diligências suspeitas, mas não
descera eu já a seguir Marta?
Assim, enchi-me de arrojo e determinei ir perguntar pelas cercanias
informações sobre o que eu desejava averiguar, recorrendo mesmo em último
caso ao porteiro — se é que o prédio tinha guarda-portão.
Escolhi a manhã dum domingo para as minhas investigações, dia em que eu e
Marta só nos encontrávamos em casa do poeta, que todas as tardes de domingo
nos levava a passear no seu automóvel, o qual então — estávamos em 1899 —
fazia grande sucesso em Lisboa.
Porém, ao dobrar a rua transversal que levava à avenida onde era o prédio
misterioso, tive um gesto de despeito: Ricardo caminhava na minha frente. Não
me pude esconder. Ele vira-me já, não sei como:
— Hein? Tu por aqui a estas horas?… — gritou admirado.
Reuni todas as minhas forças para balbuciar:
— É verdade… Ia a tua casa… Mas lembrei-me de ver estas ruas novas…
Ando tão aborrecido…
— Do calor?
— Não… E tu próprio… diz-me… Nunca costumas sair de manhã…
sobretudo aos domingos…
— Ah! uma madureza como outra qualquer. Concluí agora mesmo uns versos.
E na ânsia de os ler a alguém, ia a casa do Sérgio Warginsky para lhos mostrar…
É aqui perto… Anda comigo… Fazemos horas para o almoço...
A estas palavras todo eu tremi num arrepio. Silencioso, pus-me a acompanhá-
lo, maquinalmente.
O artista quebrou o silêncio:
— Então, e a tua peça?
— Terminei-a a semana passada.
— O quê!? Mas ainda não me tinhas dito coisa alguma!…
Desculpei-me murmurando:
— É que me esqueci, talvez…
— Homem! tens cada resposta que não lembra ao diabo!… — recordo-me
perfeitamente de que ele exclamara rindo. E prosseguiu:
— Mas conta-me depressa… Estás satisfeito com a tua obra?… Como
resolveste afinal aquela dificuldade do segundo acto? O escultor sempre morre?
…
E eu:
— Resolveu-se tudo muito bem. O escultor…
Chegáramos defronte do prediozinho verde. Interrompi-me de súbito…
Não! não era ilusão: em face de nós, no outro passeio, Marta sempre nos seus
passos leves, indecisos mas rápidos, silenciosos — sem nos ver, sem reparar em
redor de si, dirigia-se ao prédio misterioso, batia à porta desta vez, entrava…
E, ao mesmo tempo, apertando-me o braço bruscamente, dizia-me o poeta:
— No fim de contas é um disparate irmos incomodar o russo. O que eu estou é
ansioso por conhecer o teu drama. Vamos buscá-lo os dois a tua casa. Quero
ouvi-lo esta tarde. Tanto mais que o automóvel precisa conserto. Aquilo, dia sim
dia não, é uma peça que se parte…
Vivi todo o resto desse dia como que envolto num denso véu de bruma.
Entanto pude ler o meu drama a Ricardo e a Marta. Sim, quando voltámos ao
palacete, após termos passado por minha casa, já Marta regressara, e notei
mesmo que já tinha mudado de vestido — embora contra o seu costume, não
vestisse um traje de interior, mas sim uma toilette de passeio.
Lembro-me também de que durante toda a leitura da minha peça só tive esta
sensação lúcida: que era bizarro como eu, no meu estado de espírito podia
entretanto trabalhar.
De resto, conforme observei, as minhas dores, as minhas angústias, as minhas
obsessões eram intermitentes, tinham fluxos e refluxos: como nos dias de revolta
social, entre os tiros de canhão e o tiroteio nas praças, a vida diária prossegue —
também, no meio da minha tortura, seguia a minha vida intelectual. Por isso
mesmo lograra esconder de todos, até hoje, a atribulação do meu espírito.
Mas, juntamente com a ideia lúcida que descrevi, sugerira-se-me durante a
leitura outra ideia muito estrambótica. Fora isto: pareceu-me vagamente que eu
era o meu drama — a coisa artificial — e o meu drama a realidade.
Um parêntese:
Quem me tiver seguido deve, pelo menos, reconhecer a minha
imparcialidade, a minha inteira franqueza. Com efeito, nesta simples exposição
da minha inocência, não me poupo nunca a descrever as minhas ideias fixas, os
meus aparentes desvairos que, interpretados com estreiteza, poderiam levar a
concluir, não pela minha culpabilidade, mas pela minha embustice ou — critério
mais estreito — pela minha loucura. Sim, pela minha loucura; não receio
escrevê-lo. Que isto fique bem frisado, porquanto eu necessito de todo o crédito
para o final da minha exposição, tão misterioso e alucinador ele é.
Ricardo e Marta felicitaram-me muito pela minha obra — creio. Mas não o
posso afirmar, em virtude do denso véu de bruma cinzenta que me envolvera, e
que só me deixou nítidas as lembranças que já referi.
Jantei com os meus amigos. Despedi-me cedo pretextando um ligeiro
incómodo.
Corri para minha casa. Deitei-me logo… Mas antes de adormecer, revendo a
cena culminante do dia, observei esta estranha coisa:
Ao pararmos em face do prédio verde, de súbito eu vira Marta avançar
distraída até bater à porta… Ora, segundo a direcção em que ela me aparecera,
era fatal que tinha vindo sempre atrás de nós. Logo, ela devia-me ter visto; logo
eu devia-a ter visto quando — lembrava-me muito bem — olhara para trás, por
sinal em frente dum grande prédio em construção…
E ao mesmo tempo — ignoro por que motivo — lembrei-me de que o meu
amigo, quando decidira de repente não ir a casa de Warginsky, terminara a sua
frase com estas palavras:
— … o automóvel precisa conserto. Aquilo, dia sim, dia não, é uma peça que
se parte…
E eram as únicas palavras de que me lembrava frisantemente — mesmo as
únicas que eu estava certo de lhe ter ouvido. Entretanto as únicas que eu não
podia admitir que ele tivesse pronunciado…
Demorei-me ainda largas horas a rever o meu estranho dia. Mas por fim
adormeci, levado num sono até alta manhã…
Dois dias depois, sem prevenir ninguém, sem escrever uma palavra a Ricardo,
eu tive finalmente a coragem de partir…
Ah! a sensação de alívio que experimentei ao descer enfim na gare do Quai
d’Orsay : respirava, desenastrara-se-me a alma!…
Com efeito eu sofri sempre as dores morais na minha alma, fisicamente. E a
impressão horrível que há muito me debelava era esta: que a minha alma se
havia dobrado, contorcido, confundido…
Mas agora, ao ver-me longe de tudo quanto me misturara, essa dor estranha
diluíra-se: o meu espírito, sentia-o destrinçado como outrora.
Durante a viagem, pelo contrário, numa ânsia de chegar a Paris, as minhas
torturas tinham-se enrubescido. Eu pensava que nunca chegaria a Paris, que era
impossível haver triunfado, que sonhava com certeza — ou então que me
prenderiam no caminho por engano; que me obrigariam a tornar a Lisboa, que
vinham no meu encalço Marta, Ricardo, todos os meus amigos, todos os meus
conhecidos…
E um calafrio de horror me ziguezagueara ao ver entrar em Biarritz um
homem alto e loiro, no qual, de súbito, eu julguei reconhecer Sérgio Warginsky.
Mas olhando-o melhor — olhando-o pela primeira vez realmente — sorri para
mim próprio: o desconhecido apenas tinha do conde russo o ser alto e loiro…
O mais infame, o mais inacreditável, porém, era que sabendo ele, a sua
amizade, as suas atenções, por mim e pelo russo aumentassem cada dia…
Que ele soubesse e entanto se calasse, por muito amar a sua companheira e,
acima de tudo, não a querer perder — ainda se admitia. Mas então, ao menos,
que mostrasse uma atitude nobre — que nos não adulasse, que não nos
acariciasse…
Ah! como tudo isto me revoltava! Não propriamente pela sua atitude; antes
pela sua falta de orgulho. Eu não soube nunca desculpar uma falta de orgulho. E
sentia que toda a minha amizade por Ricardo de Loureiro, soçobrara hoje em
face da sua baixeza. A sua baixeza! Ele que tanto me gritara ser o orgulho a
única qualidade cuja ausência não perdoava em um carácter…
Mas devo esclarecer: ao pensar no extraordinário procedimento do meu
amigo, nunca me confrangiam as reminiscências das minhas antigas obsessões.
Esquecera-as por completo. Mesmo que as recordasse, importância alguma já
daria ao mistério — seguramente mistério de pacotilha — ao meu ciúme, a tudo
mais…
Apenas às vezes, quando muito, me assaltava uma saudade vaga, esvaída em
melancolia, por tudo o que outrora me torturara.
Somos sempre assim: o tempo vai passando, e tudo se nos volve saudoso —
sofrimentos, dores até, desilusões…
Com efeito, ainda hoje, às tardes maceradas, eu não sei evitar numa
reminiscência longínqua a saudade violeta de certa criaturinha indecisa que
nunca tive, e mal roçou pela minha vida. Por isto só: porque ela me beijou os
dedos; e um dia, a sorrir, defronte dos nossos amigos, me colocou em segredo o
braço nu, mordorado, sobre a mão…
E depois logo fugiu da minha vida, esguiamente, embora eu, por piedade —
doido que fui! — ainda a quisesse dourar de mim, num enternecimento azul pelas
suas carícias…
E sofri… ela era tão pouca coisa, mas a verdade é que sofri… sofri de
ternura… Nunca lhe tive amor. Apenas ternura... uma ternura muito suave…
penetrante… aquática…
Os meus afectos, mesmo, foram sempre ternuras…
Nessa tarde, pela primeira vez desde que cheguei a Paris, tive algumas horas
realmente alucinadas.
Durante elas embrenhei-me a pensar em Ricardo, no seu procedimento
inqualificável, na sua inadmissível falta de orgulho.
Meditei em todos os pequenos episódios que atrás referi, descortinei outros
ainda mais significativos, perdendo-me a querer descobrir todos os amantes
possíveis de Marta… E numa alucinação, não podia conceber que nenhum dos
homens que eu vira um dia junto dela, não tivesse passado pelo seu corpo — e
sabendo-o o marido: Luís de Monforte, Narciso do Amaral, Raul Vilar… todos,
enfim, todos…
Entretanto, no meio disto, ainda havia qualquer coisa mais bizarra: era que
nesta revolta, neste asco, neste ódio — sim, neste ódio! — por Ricardo,
misturava-se como que um vago despeito, um ciúme, um verdadeiro ciúme dele
próprio. Invejava-o! Invejava-o por ela me haver pertencido… a mim, ao conde
russo, a todos mais!…
E esta sensação descera-me tão forte, essa tarde, que num relâmpago me
voou pelo cérebro a ideia rubra de o assassinar — para satisfazer a minha inveja,
o meu ciúme: para me vingar dele!…
Mas voltei por fim à minha calma, e, perante o meu antigo amigo, só me
restou o meu nojo, o meu tédio, e um desejo ardente de lhe escarrar na cara todo
a sua indignidade, toda a sua baixeza, clamando-lhe:
— Olha que fomos amantes dela… eu e todos nós, ouves? E todos sabemos que
tu já o sabes!…
OUma
utubro de novecentos principiara.
tarde, no Boulevard des Capucines, alguém de súbito me gritou, batendo-
me no ombro:
— Ora até que enfim! Andava exactamente à sua procura…
Era Santa-Cruz de Vilalva, o grande empresário.
Tomou-me por um braço, fez-me à viva força sentar junto dele no terraço do
La Paix, e pôs-se a barafustar-me o espanto que a minha falta de notícias lhe
causara, tanto mais que, poucos dias antes de desaparecer, eu lhe falara da
minha nova peça. Disse-me que em Lisboa muita gente perguntava por mim,
que apenas vagamente se sabia que eu estava em Paris por alguns portugueses
que tinham vindo à Exposição. Em suma: « Que demónio era isso, homem?
neurasténico pelo último correio?…»
Como sucedia sempre quando alguém me fazia perguntas sobre a minha
forma de viver, fiquei todo perturbado — corei e titubeei quaisquer razões.
O grande empresário atalhou, exclamando-me:
— Bom. Mas antes de mais nada, vamos ao importante: dê-me a sua peça.
Que não a concluíra ainda, que não me satisfazia…
E ele:
— Espero-o esta noite no meu hotel… ali, no Scribe… Traga-me a obra.
Quero ouvi-la hoje… Que título?
— A Chama.
— Óptimo. Até logo… Primeira em Abril. Última récita de assinatura. Preciso
fechar a minha estação com chave de ouro…
Chegámos por fim diante da sua casa. Entrámos… galgámos a escada dum
salto…
Ao atravessarmos o vestíbulo do primeiro andar, houve um pormenor
insignificante, o qual, não sei porquê, nunca olvidei: em cima dum móvel onde os
criados, habitualmente, punham a correspondência, estava uma carta… Era um
grande sobrescrito timbrado com um brasão a ouro…
É estranho que num minuto culminante como este, eu pudesse reparar em tais
ninharias. Mas o certo foi que o brasão dourado me bailou alucinador em frente
dos olhos. Entretanto não pude ver o seu desenho — vi só que era um brasão
dourado e, ao mesmo tempo – coisa mais estranha — pareceu-me que eu próprio
já recebera um sobrescrito igual àquele.
O meu amigo — ainda que preso duma grande excitação — abriu a carta, leu-
a rapidamente, e logo a amarfanhou arremessando-a para o sobrado…
Depois, torceu-me o braço com maior violência.
Em redor de mim tudo oscilou… Sentia-me disperso d’alma e corpo entre o
rodopio que me silvava… tinha receio de haver caído nas mãos dum louco…
E numa voz ainda mais velada, mais singular, mais falsa — isto é: melhor do
que nunca parecendo vir doutra garganta — Ricardo gritava-me num delírio:
— Vamos ver! Vamos ver!… Chegou a hora de dissipar os fantasmas… Ela é
só tua! é só tua… hás-de me acreditar!… Repito-te: foi como se a minha alma,
sendo sexualizada, se materializasse para te possuir… Ela é só minha! É só
minha! Só para ti a procurei… Mas não consinto que nos separe… Verás…
Verás!…
E no meio destas frases incoerentes, impossíveis, arrastava-me correndo numa
fúria para os aposentos da sua esposa, que ficavam no segundo andar.
(Pormenor curioso: nesse momento eu não tinha a sensação de que eram
impossíveis as palavras que ele me dizia; apenas as julgava cheias da maior
angústia…)
Tínhamos chegado. Ricardo empurrou a porta brutalmente…
Em pé, ao fundo da casa, diante duma janela, Marta folheava um livro…
A desventurada mal teve tempo para se voltar… Ricardo puxou dum revólver
que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um
gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à queima-roupa…
Marta tombou inanimada no solo… Eu não arredara pé do limiar…
E então foi o Mistério… o fantástico Mistério da minha vida…
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era
Marta — não! — era o meu amigo, era Ricardo… E aos meus pés — sim, aos meus
pés! — caíra o seu revólver ainda fumegante!…
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma
chama…
Aterrado, soltei um grande grito — um grito estridente, despedaçador — e,
possesso de medo, de olhos fora das órbitas e cabelos erguidos, precipitei-me
numa carreira louca… por entre corredores e salões… por escadarias…
Mas os criados acudiram...
Pouco mais me resta a dizer. Pudera mesmo deter-se aqui a minha confissão.
Entretanto ainda algumas palavras juntarei.
Convém passar rapidamente sobre o processo. Ele nada apresentou que valha
a pena referir. Pela minha parte, nem por sombras tentei desculpar-me do crime
de que era acusado. Com o inverosímil, ninguém se justifica. Por isso me calei.
O apelo do meu advogado, brilhantíssimo. Deve ter dito que, no fundo, a
verdadeira culpada do meu crime fora Marta, a qual desaparecera e que a
polícia, segundo creio, procurou em vão.
No meu crime subentenderam-se causas passionais, seguramente. A minha
atitude era romanesca de esfíngica. Assim pairou sobre tudo um vago ar de
mistério. Daí, a benevolência do júri.
Entanto devo acentuar que sobre o meu julgamento conservo reminiscências
muito indecisas. A minha vida ruíra toda no instante em que o revólver de
Ricardo tombara aos meus pés. Em face a tão fantástico segredo, eu abismara-
me. Que me fazia pois o que volteava à superfície?… Hoje, a prisão surgia-me
como um descanso, um termo…
Por isso, as longas horas fastidiosas passadas no tribunal, eu só as vi em bruma
— como sobrepostas, a desenrolarem-se num cenário que não fosse precisamente
aquele em que tais horas se deveriam consumar…
Os meus « amigos» , como sempre acontece, abstiveram-se: nem Luís de
Monforte — que tanta vez me protestara a sua amizade — nem Narciso de
Amaral, em cujo afecto eu também crera. Nenhum deles, numa palavra, me
veio visitar durante o decorrer do meu processo, animar-me. Que a mim, de
resto, coisa alguma me animaria.
Porém, no meu advogado de defesa fui achar um verdadeiro amigo.
Esqueceu-me o seu nome; apenas me recordo de que era ainda novo e de que a
sua fisionomia apresentava uma semelhança notável com a de Luís de Monforte.
Mais tarde, nas audiências, havia de observar igualmente que o juiz que me
interrogava se parecia um pouco com o médico que me tinha tratado, havia oito
anos, de uma febre cerebral que me levara às portas da morte.
Curioso que o nosso espírito, sabendo abstrair de tudo numa ocasião decisiva,
não deixe entanto de frisar pequenos detalhes como estes…
Passaram velozes os meus dez anos de cárcere, já o disse.
De resto, a vida na prisão onde cumpri a minha sentença não era das mais
duras. Os meses corriam serenamente iguais.
Tínhamos uma larga cerca onde, a certas horas, podíamos passear, sempre
sob a vigilância dos guardas, que nos vigiavam misturados connosco e que às
vezes até nos dirigiam a palavra.
A cerca terminava num grande muro, um grande paredão sobre uma rua
larga — melhor: sobre uma espécie de largo onde se cruzavam várias ruas. Em
frente — pormenor que se me gravou na memória — havia um quartel amarelo
(ou talvez outra prisão).
O prazer maior de certos detidos, era de se debruçarem do alto do grande
muro, e olharem para a rua; isto é: para a vida. Mas os carcereiros, mal os
descobriam, logo brutalmente os mandavam retirar.
Eu poucas vezes me acercava do muro; apenas quando algum dos outros
prisioneiros me chamava com insistência, por grandes gestos misteriosos, pois
nada me podia interessar do que havia para lá dele.
Mesmo, nunca soubera evitar um arrepio árido de pavor ao debruçar-me a
esse paredão e ao vê-lo esgueirar-se, duma grande altura — enegrecido,
lezardento, escalavrado — sobre raros indícios de uma velha pintura amarela.
Nunca tive que me queixar dos guardas, como alguns dos meus companheiros
que, em voz baixa, me contavam os maus tratos de que eram vítimas.
E o certo é que, às vezes, se ouviam de súbito, ao longe, uns gritos estranhos —
ora roucos, ora estridentes. E um dia um prisioneiro mulato — decerto um
mistificador — disse-me que o tinham vergastado sem dó nem piedade com
umas vergastas horríveis — frias como água gelada, acrescentara na sua língua
de trapos…
Aliás, eu com raros dos outros prisioneiros me misturava. Eram — via-se bem
— criaturas pouco recomendáveis, sem ilustração nem cultura, vindas por certo
dos bas-fonds do vício e do crime.
Apenas me aprazia durante as horas de passeio na grande cerca, falando com
um rapaz louro, muito distinto, alto e elançado. Confessou-me que expiava
igualmente um crime de assassínio. Matara a sua amante: uma cantora francesa,
célebre, que trouxera para Lisboa.
Para ele como para mim, também a vida parara — ele vivera também o
momento culminante a que aludi na minha advertência. Falávamos por sinal
muita vez desses instantes grandiosos, e ele então referia-se à possibilidade de
fixar, de guardar, as horas mais belas da nossa vida — fulvas de amor ou de
angústia— e assim poder vê-las, ressenti-las. Contara-me que fora essa a sua
maior preocupação na vida — a arte da sua vida…
Escutando-o, o novelista acordava dentro de mim. Que belas páginas se
escreveriam sobre tão perturbador assunto!
Enfim, mas não quero insistir mais sobre a minha vida no cárcere, que nada
tem de interessante para os outros, nem mesmo para mim.
Os anos voaram. Devido à minha serenidade, à minha resignação, todos me
tratavam com a maior simpatia e me olhavam carinhosamente. Os próprios
directores, que muitas vezes nos chamavam aos seus gabinetes ou eles próprios
nos visitavam, a conversar connosco, a fazerem-nos perguntas — tinham por
mim as maiores atenções.
… Até que um dia chegou o termo da minha pena e as portas do cárcere se
me abriram…
Morto, sem olhar um instante em redor de mim, logo me afastei para esta
vivenda rural, isolada e perdida, donde nunca mais arredarei pé.
Acho-me tranquilo — sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o
futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado dum outro.
Permaneci, mas já não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as
horas a esgueirar-se em minha face… A morte real — apenas um sono mais
denso…
Antes, não quis porém deixar de escrever sinceramente, com a maior
simplicidade, a minha estranha aventura. Ela prova como factos que se nos
afiguram bem claros são muitas vezes os mais emaranhados; ela prova como um
inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua justificação é
inverosímil — embora verdadeira.
Assim eu para que lograsse ser acreditado, tive primeiro que expiar, em
silêncio, durante dez anos, um crime que não cometi…
A vida…
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(1890-1916)
FERNANDO PESSOA