Hélio Estado Fundamental Problema Dois
Hélio Estado Fundamental Problema Dois
Hélio Estado Fundamental Problema Dois
1 Introdução
O Hélio é, depois do Hidrogênio, o átomo mais simples da tabela periódica, contendo dois
elétrons e um núcleo com Z = 2 prótons (e um ou dois nêutrons dependendo do isótopo).
Sendo um problema de três corpos, ele já é bastante difı́cil de resolver a nı́vel clássico, o que já
causou problemas na velha teoria quântica. Na mecânica quântica, sua análise não pode ser feita
pela solução analı́tica da equação de Schrödinger, a não ser usando métodos de aproximação
como a teoria de perturbação e o método variacional, que são os objetos da presente nota
didática.
Considerando um núcleo com Z prótons (Z = 2 para o hélio) e os dois elétrons nas posições
r1 e r2 em relação aos prótons, o Hamiltoniano do átomo de Hélio terá a seguinte forma
~2 Ze2 Ze2 e2
H=− ∇21 + ∇22 − − + , (1)
2µ r1 r1 r12
onde r12 = |r1 −r2 | é a distância mútua entre os elétrons [Fig. 1]. Nesta expressão consideramos
o movimento de cada elétron no referencial do centro de massa, sendo que o movimento relativo
é associado à massa reduzida
me mp
µ= (2)
me + mp
e os laplacianos referem-se às coordenadas de cada elétron em separado
∂2 ∂2 ∂2 ∂2 ∂2 ∂2
∇21 = + + , ∇22 = + + , (3)
∂x21 ∂y12 ∂z12 ∂x22 ∂y22 ∂z22
1
Figura 1: Geometria no átomo de Hélio
onde o sinal positivo (negativo) refere-se ao ket totalmente simétrico (anti-simétrico) na troca
1 ↔ 2. Já os kets fı́sicos normalizados associados ao spin (|S, Mi) são dados pela adição de
dois spins 1/2, que vimos no Capı́tulo III: um estado singleto com S = M = 0:
1
|0, 0i = √ [|1 : +; 2 : −i − |1 : −; 2 : +i] , (5)
2
que é anti-simétrico na troca 1 ↔ 2 e três estados (tripleto) com S = 1 e M = −1, 0, 1:
|1, 1i = |1 : +; 2 : +i, (6)
1
|1, 0i = √ [|1 : +; 2 : −i + |1 : −; 2 : +i] , (7)
2
|1, −1i = |1 : −; 2 : −i (8)
que são simétricos na troca 1 ↔ 2.
Combinando os estados espaciais e de spin, os kets fı́sicos para o sistema, simétricos e
anti-simétricos, são respectivamente:
|ψS i = |ϕ, χi+ ⊗ |S = 1, Mi, ou |ϕ, χi− ⊗ |S = 0, 0i, (9)
|ψA i = |ϕ, χi+ ⊗ |S = 0, 0i, ou |ϕ, χi− ⊗ |S = 1, Mi, (10)
Como os elétrons são férmions, o ket fı́sico deve ser anti-simétrico, de forma que temos
apenas as combinações dadas por (10):
1
√ [|1 : ϕ; 2 : χi + |1 : χ; 2 : ϕi] ⊗ |0, 0i, (11)
2
1
√ [|1 : ϕ; 2 : χi − |1 : χ; 2 : ϕi] ⊗ |1, Mi, (12)
2
Para o caso especial em que os dois estados espaciais são iguais (|ϕi = |χi) a parte espacial
do segundo ket é nula, de modo que o estado tripleto |1, Mi não existe. Portanto, somente o
primeiro ket pode existir, que corresponde ao singleto de spin:
2
√ |1 : ϕ; 2 : ϕi ⊗ |0, 0i.
2
2
Observe que, como o spin total do sistema S = S1 + S2 comuta com o hamiltoniano (1), a
equação de Heisenberg fornece
dS
= [S, H] = 0,
dt
donde o spin total é uma constante de movimento. Isto significa que o estado de spin perma-
necerá um singleto ao longo do tempo.
No estado fundamental do átomo de Hélio ambos os elétrons estão no mesmo estado 1s do
hidrogênio: |ϕi = |100i, de modo que temos apenas o estado singleto, onde o spin total é zero.
O ket espacial normalizado será
|1 : 100; 2 : 100i = |1 : 100i ⊗ |2 : 100i,
cuja função de onda é
ϕ1 (r1 , r2 ) = ϕ100 (r1 )ϕ100 (r2 ), (13)
onde, para um núcleo com número atômico Z,
s
Z 3 −Zr/a0
ϕ100 (r) = e , (14)
πa30
e definimos o raio de Bohr como
~2
a0 = = 0, 51Å, (15)
µe2
A energia dos nı́veis de um átomo hidrogenóide é dada por
EI
En = −Z 2 , (16)
n2
onde n = 1, 2, . . . é o número quântico principal e
µe4 e2
EI = = = 13, 6eV (17)
2~2 2a0
é a energia de ionização do hidrogênio.
3
e a energia do estado fundamental será obtida a partir de (16):
Para o Hélio (Z = 2) teremos E10 = −8EI = −109eV , um número cerca de 40% maior do que
o valor experimental.
Considerando a interação entre os dois elétrons uma perturbação do problema anterior,
teremos
e2
W = . (21)
r12
A correção de primeira ordem na energia do estado fundamental do Hélio será
Z Z
e2
ε = hϕ1 |W ϕ1 h= d r1 d3 r2 ϕ∗1 (r1 , r2 ) ϕ1 (r1 , r2)
3
(22)
r12
Escolhendo o sistema de coordenadas de forma que r1 coincida com o eixo z2 , a lei dos
cossenos nos diz que q
r12 = r12 + r22 − 2r1 r2 cos θ2 ,
tal que (23) seja reescrita como
Z
Z 6 e2
ε= 2 6 d3 r1 e−2Zr1 /a0 I2 (r1 ) (24)
π a0
onde
Z
e−2Zr2 /a0
I2 (r1 ) = d 3 r2 p 2 (25)
r1 + r22 − 2r1 r2 cos θ2
Z 2π Z ∞ Z π
2 −2Zr2 /a0 sin θ2 dθ2
= dφ2 r2 dr2 e p .
0 0 0 r1 + r22 − 2r1 r2 cos θ2
2
| {z }
=J
4
onde r> = max(r1 , r2 ). Levando em conta os dois casos diferentes que se apresentam (r1 < r2
e r1 > r2 ) a integral (25) é dividida em duas:
Z r1 Z ∞
1 2 −2Zr2 /a0 −2Zr2 /a0
I2 (r1 ) = 4π r dr2 e + r2 dr2 e
r1 0 2 r1
πa30 r1 Z −2Zr1 /a0
= 1− 1+ e
r1 Z 3 a0
que, ao ser substituida em (24), nos dá
5 Ze2 5
ǫ= = ZEI , (26)
4 a0 4
tal que a energia do estado fundamental, em primeira ordem de perturbação, é
0 5
E1 = E1 + ǫ = −2Z + ZEI . (27)
4
A energia de ionização do Hélio é a energia necessária para retirar os dois elétrons do átomo,
e é conhecida experimentalmente com grande precisão:
Eexp = 78, 975eV.
de modo que a energia do estado fundamental é E = −78, 975eV . Para o Hélio (Z = 2) a teoria
de perturbação prevê uma energia de E1 = −109 + 34 = −75eV , um valor cerca de 5% menor
que o observado experimentalmente.
Na verdade, este é um resultado surpreendentemente bom, pois a hipótese básica da teoria
de perturbação é a de que o termo perturbador |W | ≪ |H0 |, o que deixa de ser válido se os
elétrons estiverem muito próximos entre si.
4 Método variacional
No átomo de Hélio, cada elétron representa uma nuvem de carga negativa que blinda parcial-
mente a carga positiva Ze do núcleo. Logo, os elétrons “sentem” uma carga nuclear efetiva Zef
que é seguramente menor do que Z. O sucesso da teoria de perturbação nos anima a tentar
melhorar o resultado (27), usando o método variacional: neste caso podemos usar Zef como
parâmetro variacional, a ser minimizado para obtermos um limite superior na energia do es-
tado fundamental que seja mais próximo do valor real. Assim, como função tentativa, usamos
novamente o produto de duas autofunções hidrogenóides (19), mas substituindo Z por Zef :
3
Zef
ϕ1 (r1 , r2 ) = 3 e−Z(r1 +r2 )/a0 . (28)
πa0
Vamos calcular inicialmente o valor esperado do hamiltoniano (1) em relação a esta função
tentativa:
~2
2
2 2 1 1 2 1
hHi = − ∇1 + ∇2 − Ze + +e (29)
2µ r1 r2 r12
5
onde lembramos que a função tentativa já é normalizada (hϕ1 |ϕ1 i = 1). Começando pelas
integrais:
Z Z
2
2
∇1 = ϕ1 ∇1 ϕ1 = d r2 d3 r1 ϕ1 ∇21 ϕ1
3
(30)
Z Z
2
2
∇2 = ϕ1 ∇2 ϕ1 = d r1 d3 r2 ϕ1 ∇22 ϕ1
3
(31)
onde usamos o teorema do divergente. Jogando a superfı́cie S para o infinito, V torna-se todo
o espaço. Como ϕ se anula no infinito escrevemos assim
Z Z 2π Z π Z ∞ Z ∞ 2
3 2 2 2 2 ∂ϕ
d rϕ∇ ϕ = − dφ sin θdθ r dr|∇ϕ| = −4π r dr . (32)
0 0 0 0 ∂r
Como os papéis de ∇1 e ∇2 são simétricos é natural que também tenhamos o mesmo resultado
para o outro termo:
2
2 Zef
∇2 = − 2 . (34)
a0
6
enquanto que a terceira integral já foi calculada na seção anterior, bastando para nós trocar Z
por Zef em (26): 2
e 5
= Zef EI (38)
r12 4
Substituindo tudo em (29) teremos
~2 Zef
2
e2 5
hHi = − 2ZZ ef + Zef EI . (39)
µa20 a0 4
36
E1 = − EI = −77, 45eV,
27
que é menos de 2% maior que o valor experimental.
Na década de 1930 diversos autores, como Eckart e Hylleraas, usaram diferentes funções
tentativa com Zef como parâmetro variacional, obtendo valores para a energia do estado fun-
damental com erro da ordem de 0, 01% [2]. Atualmente as funções tentativa são suficientes
para determinar o valor de E1 dentro da precisão experimental.
5 Estados excitados
Vamos considerar, agora, um estado excitado do Hélio, para o qual um dos elétrons encontra-se
no estado fundamental: |ϕi = |1, 0, 0i, e o outro no estado |χi = |n, ℓ, mi, onde n > 1. Como os
7
dois estados individuais são diferentes, os possı́veis kets fı́sicos anti-simétricos na troca 1 ↔ 2
são dados por (11)-(45):
1
√ [|1 : 100; 2 : nℓmi + |1 : nℓm; 2 : 100i] ⊗ |0, 0i, (44)
2
1
√ [|1 : 100; 2 : nℓmi − |1 : nℓm; 2 : 100i] ⊗ |1, Mi. (45)
2
Dessa maneira, para usar a teoria de perturbações, temos de considerar duas funções de onda
espaciais possı́veis:
1
ϕ± (r1 , r2) = √ [ϕ100 (r1 )ϕnℓm (r2 ) ± ϕnℓm (r1 )ϕ100 (r2 )] , (46)
2
onde o sinal positivo (negativo) corresponde ao singleto (tripleto) de spin.
Usando (16) a energia destes estados excitados será, em ordem zero,
0 2 1
E1 = E1 + En = −Z EI 1 + 2 . (47)
n
Para o Hélio (Z = 2) temos que E10 = −54, 4ev(1 + 1/n2 ). Considerando, como anteriormente,
a interação entre os elétrons como uma perturbação, a correção em primeira ordem à energia
dos estados excitados será:
Z Z
e2
ε = hϕ± |W ϕ± h= d r1 d3 r2 ϕ∗± (r1 , r2 ) ϕ± (r1 , r2 )
3
(48)
r12
Z
1 e2
= d3 r1 d3 r2 [ϕ∗100 (r1 )ϕ∗nℓm (r2 ) ± ϕ∗nℓm (r1 )ϕ∗100 (r2 )] [ϕ100 (r1 )ϕnℓm (r2 ) ± ϕnℓm (r1 )ϕ100 (r2 )] .
2 r12
Definiremos a integral direta de Coulomb como
Z Z 2 Z Z
2 e a0
3 3
I = d r1 d r2 |ϕ100 (r1 )| |ϕnℓm (r2 )| = 2EI d r1 d3 r2 |ϕ100 (r1 )|2 |ϕnℓm (r2 )|2 ,
2 3
r12 r12
(49)
e a integral de troca como
Z Z
e2
J = d r1 d3 r2 ϕ∗100 (r1 )ϕ∗nℓm (r2 ) ϕ100 (r2 )ϕnℓm (r1 )
3
(50)
r12
Z Z
a0
= 2EI d3 r1 d3 r2 ϕ∗100 (r1 )ϕ∗nℓm (r2 ) ϕ100 (r2 )ϕnℓm (r1 ),
r12
sendo que ambas não se alteram na troca 1 ↔ 2. Assim (48) pode ser escrita simplesmente
como
ε = I ± J, (51)
onde o sinal positivo (negativo) corresponde ao singleto (tripleto) de spin.
8
Como I > 0 e J > 0, resulta que I + J > I − J, donde a correção para o estado singleto
é maior do que para o estado tripleto. Há, portanto, uma separação entre estes dois estados
de spin. O Hélio no estado singleto (S = 0) é chamado “parahélio”, enquanto que no estado
tripleto (S +1) de “ortohélio”. Há, pois, uma diferença de energias entre os estados excitados do
parahélio e o ortohélio, igual a 2J. Observe que o hamiltoniano não depende do spin mas que,
apesar disso, aparece um efeito dependente do spin que decorre do postulado de simetrização.
O átomo de Hélio possui uma menor energia quando está no tripleto (simétrico), pois a função
de onda espacial é anti-simétrica: os elétrons não podem ocupar o mesmo estado espacial. Esta
tendência que os elétrons possuem de se evitar mutuamente reduz a intensidade da sua repulsão
eletrostática. Este efeito é denominado “interação de troca”.
Considerando um exemplo em que n = 2, ℓ = 1 e m = 0 é o estado do segundo elétron. A
energia do estado não-perturbado é dada por (47) como E10 = −5EI = −68eV . As integrais de
Coulomb e de troca resultam em [4]:
22 .59 22 .59
I= EI = 0, 9712EI , J= EI = 0, 9712EI ,
35 35
de modo que as energias do orto e do parahélio são iguais a
sendo de 2.0, 93 = 1, 86eV a diferença de energia prevista para estes dois estados.
Lembremos que, no estado fundamental do átomo de Hélio, temos somente o estado singleto
de spin. Assim o estado fundamental também é o parahélio. Já nos estados excitados pode-
mos ter ambos. Se considerássemos também o efeito da interação entre os spins dos elétrons
(como fizemos no estudo da interação hiperfina do hidrogênio) o fato do Hamiltoniano depender
também do spin faria com que o spin total não fosse mais uma constante do movimento. Assim,
haveria uma pequena probabilidade do sistema passar do estado singleto para o tripleto. Por
este motivo, o ortohélio é um estado metaestável, ou seja, tem um determinado tempo de vida.
Referências
[1] C. Cohen-Tannoudji, Diu, Lalöe, Quantum Mechanics, Vol. I