Disserta o Patricia Da Silva Gomes PPGP
Disserta o Patricia Da Silva Gomes PPGP
Disserta o Patricia Da Silva Gomes PPGP
Belo Horizonte
2018
1
PATRICIA DA SILVA GOMES
Belo Horizonte
2018
2
150
G633a
Gomes, Patricia da Silva
2018
Adolescentes na internet [manuscrito] : o risco como
aposta / Patricia da Silva Gomes. - 2018.
101 f. : il.
Inclui bibliografia
3
4
Para Clara e todos os outros adolescentes que têm feito do risco uma aposta.
5
AGRADECIMENTOS
6
Ao meu amor e companheiro de jornada pela vida a fora, Flávio.
Aos filhos Dora e Théo, que me ensinam diariamente a amar.
Aos meus pais, Maria e Didio, pela transmissão de amor.
Às queridas irmãs: Paula, pelo exemplo de disciplina, e Daniela, pela presença tão
constante e carinhosa.
Ao meu amigo e companheiro de conversas acadêmicas, Neyfsom.
À amiga e “Cumadi” do coração, Silvia.
À minha amiga, leitora do projeto e companheira de conversas (em voz baixa) sobre
Freud e Lacan, nos finais de semana, Rúbia.
À querida Thereza Bruzzi, pela delicadeza, incentivo radical e ricos seminários no
Iepsi.
À minha querida analista Suzana Braga, pela escuta precisa e fundamental.
Agradeço ao CNPQ, pelo apoio financeiro que sustentou essa pesquisa.
E, finalmente, aos adolescentes, que além de viabilizarem essa dissertação, me
ensinaram que a vida é uma aposta cujo lance se renova a cada dia e que o “que ela quer da
gente é coragem” para apostar.
7
O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
Guimarães Rosa
8
RESUMO
Gomes, P.S. (2018). Adolescentes e Internet: o risco como aposta. Dissertação de Mestrado.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
Essa pesquisa tem por objetivo investigar o estatuto das condutas de risco para os
adolescentes na contemporaneidade. A investigação surgiu da escuta de jovens que
participavam do projeto de pesquisa e extensão “Conversação na escola: Adolescentes e
Redes Sociais”, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Além da Tela: Psicanálise e Cultura
Digital”, da UFMG. Esse projeto nasceu para responder a uma demanda escolar em função de
queixas relativas ao uso excessivo e inadequado dos dispositivos eletrônicos. Na escuta dos
jovens, chamou-nos a atenção o fato de relatarem situações que nos pareciam de risco, tais
como conflitos que vivenciam na internet, comentários ofensivos, publicação de fotos íntimas
de colegas, a invasão de hackers em seus perfis de jogos, as abordagens de desconhecidos nos
chats de jogos e nas redes sociais, marcação de “brigas” pela internet, bem como o
envolvimento em jogos do tipo desafio, como o da Baleia Azul, entre outros. Entretanto,
muitas dessas situações eram consideradas por eles como perfeitamente normais e
corriqueiras, levando-nos a interrogação sobre o caráter adjacente desses comportamentos.
Nossa hipótese foi sustentada pelo apoio teórico da psicanálise a partir, principalmente, da
leitura do Seminário 16, de um Outro ao outro, de Jacques Lacan (1968-1969/2008), e
consiste na suposição de que na adolescência, o ato, que se manifesta por meio das condutas
de risco, constitui-se como uma aposta na ex-sistência do Outro. Para esse estudo, partimos de
um levantamento antropológico e histórico da adolescência, relacionando-o às condutas de
risco, segundo a antropologia, e ao ato, na perspectiva psicanalítica. Em seguida, ao
examinarmos as características da contemporaneidade, estabelecemos uma relação entre esses
atos e o desvelamento da inconsistência do Outro em nossos dias.
9
ABSTRACT
Gomes, P.S. (2018). Teens and the Internet: the risk as a bet. Masters dissertation. Faculty of
Philosophy and Human Sciences, Federal University of Minas Gerais, Belo Horizonte.
This research aims to investigate the status of risk behaviors for adolescents in the
contemporary world. The research came from listening to young people who participated in
the research and extension project "Conversation in school: Adolescents and Social
Networks", linked to the Research Group "Beyond the Screen: Psychoanalysis and Digital
Culture", UFMG. This project was created to respond to a school demand due to complaints
about the excessive and inappropriate use of electronic devices. When listening to young
people, we were struck by the fact that they reported situations that seemed risky to us, such
as conflicts on the Internet, offensive comments, the publication of intimate photos of
colleagues, hacking into their game profiles, approaches to strangers in game chats and social
networks, scheduling "fights" over the internet, as well as involvement in challenge-type
games such as the Blue Whale, among others. However, many of these situations were
considered by them to be perfectly normal and ordinary, leading us to question the adjacency
of these behaviors. Our hypothesis was supported by the theoretical support of
psychoanalysis, mainly based on the reading of Jacques Lacan's Seminar 16, from Another to
Another, and consists in the assumption that in adolescence, the act, which is manifested
through risk behaviors, constitutes a bet on the ex-sistence of the Other. For this study, we
start with an anthropological and historical survey of adolescence, relating it to risk behaviors,
according to anthropology, and to the act, in the psychoanalytic perspective. Then, as we
examine the characteristics of contemporaneity, we establish a relationship between these acts
and the unveiling of the inconsistency of the Other in our day.
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................................11
11
1. INTRODUÇÃO
Não sabemos exatamente o motivo para a escolha dessa imagem para ilustrar a capa
do seminário, mas a impressão que ela causou no momento da sua percepção foi imediata e
marcante. Ela pareceu condensar aquilo que a leitura do seminário proporcionou nos meses
precedentes. Havia ali a ideia de algo que, imageticamente, se repetia, na própria repetição
das faces, destacando-se a partir das suas cavidades, de forma infinita e assustadora, ao
mesmo tempo que completava a figura. Era parte do todo, todo da parte.
Freud (1930/1974 sublinha que a arte nos proporciona uma satisfação substitutiva,
enquanto Lacan (1959-1960/2008) ressalta a função do belo ao velar a Coisa. O encontro com
a ilustração da obra de Dali teve o efeito de um despertar, do encontro com o que há de mais
estranho e familiar, a Coisa, e com o movimento de repetição, nos remetendo à relação dos
jovens com o risco. Há algo de estrutural na relação do sujeito com o risco, em especial, na
adolescência. O despertar na adolescência é o encontro com o real, com o sem sentido, com o
sexo e a morte.
13
As redes sociais reverberam as experiências dos jovens fora da virtualidade, e as
experimentações na rede, por sua vez, são efeitos das subjetividades e incidem na vida social
e subjetiva. O ambiente virtual oferece um campo fértil para a experimentação dos riscos, em
virtude do avanço tecnológico e das suas inúmeras possibilidades de uso. Esse avanço, aliado
a uma maior velocidade e abrangência das transmissões de dados, possibilitou o acesso
maciço das pessoas às redes sociais.
As pesquisas realizadas pelo Cetic.br1, TIK Kids Online, informam que em 2016, 8
em cada 10 crianças e adolescentes com idades entre 9 e 17 anos eram usuários de internet no
Brasil. Outros dados dessa pesquisa também merecem destaque e nos ajudam a ter uma
dimensão do tipo de uso feito da internet por crianças e adolescentes. Por exemplo, o tipo de
postagem compartilhada nas redes sociais: compartilhamento de textos, imagens ou vídeos,
reportado por 54% dos usuários, o compartilhamento de textos, imagens ou vídeos de autoria
própria por 40%, a postagem de fotos das próprias crianças ou adolescentes por 56% e o
compartilhamento do lugar em que estavam 31% da amostra entrevistada (Cetic – TIK Kids
Online Brasil, 2016).
A pesquisa TIK Kids Online (2016) investigou também os riscos associados ao uso da
internet. Para realizar a análise dos dados, a instituição utilizou critérios estabelecidos na
literatura específica que definem os riscos segundo as seguintes categorias:
a) O risco relativo ao conteúdo a que o usuário se expõe;
b) O risco de contato numa situação de interação virtual;
c) O risco de conduta, em interações que podem ser iniciadas na rede e incidir fora
dela.
Os resultados da pesquisa indicam que 20% dos adolescentes tiveram contato com
conteúdos e informações sobre “como ficar muito magros”, 13% dos adolescentes tiveram
contato com conteúdos sobre “formas de se machucar”, 10% com conteúdo relativo ao uso de
drogas, e, ainda, os conteúdos sobre “as formas de cometer suicídio” foram acessadas por
10% da amostra (TIK Kids Online, 2016).
Os dados sobre os riscos ligados à conduta e ao contato revelam que cerca de 23% dos
usuários nos 12 meses anteriores à pesquisa foram tratados on-line de forma ofensiva, e o
recebimento de tratamentos ofensivos foi prevalente entre usuários de 15 a 17 anos (TIK Kids
Online, 2016).
1
Dados obtidos através da consulta ao site do Centro de Estudos da Tecnologia da Informação do Brasil – Cetic.
Recuperado a partir de http://cetic.br/pesquisa/kids-online
14
Em relação ao contato com desconhecidos, 42% dos jovens relataram que se
relacionaram com desconhecidos, 22% chegaram a se encontrar pessoalmente com alguém
que conheceram nas redes sociais, e 4% dos usuários declararam que se sentiram
incomodados, com medo ou constrangidos após esse encontro (TIK Kids Online, 2016).
Em relação à exposição a conteúdos de natureza intolerante e ao discurso de ódio na
rede, os dados encontrados na TIK Kids Online (2016) sugerem que 41% dos usuários entre 9
e 17 anos presenciaram alguém sendo discriminado na rede. O testemunho de situações
discriminatórias foi mais mencionado por adolescentes mais velhos – 15% dos usuários entre
9 e 10 anos declararam ter visto conteúdos desse tipo na Internet, enquanto o mesmo ocorreu
com mais da metade daqueles com idades de 15 a 17 anos (53%).
Os dados apresentados nos fornecem uma ideia da dimensão da internet na vida desses
jovens, além das formas de uso que eles fazem dela. O celular, principalmente o smartphone
com acesso à internet, torna-se quase inseparável do adolescente na atualidade, como se fosse
parte do seu corpo. Priscila, uma adolescente, comenta na conversação que “morre se ficar
sem o seu celular”, e acrescenta que quando sua mãe quer puni-la, ela a impede de usar o
smartphone.
Consideramos que esse objeto inseparável do corpo, entretanto, pode se constituir não
somente como uma via de risco, mas também como possibilidade de invenção para os jovens.
Não podemos desconhecer as inúmeras oportunidades que a internet promove. O alcance e a
rapidez da transmissão das informações levam à mobilização de grandes grupos de pessoas.
As redes sociais têm importante força política e abrem perspectivas em diferentes campos,
como, social, profissional e educacional.
A internet está presente massivamente no cotidiano das pessoas, assumindo um papel
de destaque nas atividades rotineiras, desde as mais simples – como pagar uma conta, agendar
um exame ou uma consulta médica – até as mais complexas, como o compartilhamento de
informações entre nações seja em tempos de guerra ou de paz.
A conversação permite identificar os diferentes usos desses dispositivos tecnológicos
digitais pelos jovens. Alguns fazem um uso bastante criativo desses objetos, como, por
exemplo, um adolescente que idealizou um jogo e solicitou à escola um espaço para
desenvolvê-lo. Por outro lado, os adolescentes têm compartilhado todo tipo de conteúdo na
web, como, por exemplo: listas difamatórias, fotos íntimas de colegas e imagens de violência.
Ao mesmo tempo que são produtores desses conteúdos, eles são receptores e transmissores
deles.
15
Alguns jovens explicam que fazem compartilhamentos de forma impulsiva, sem
ponderar sobre as suas possíveis consequências, além de encontrarem-se despreparados para
lidar com elas. Sabemos que o que é lançado na rede afeta os sujeitos fora da virtualidade.
Imagens e palavras publicadas na rede despertam emoções, tocam os corpos, desencadeiam
afetos e podem gerar conflitos sociais de toda ordem.
As conversações e os atendimentos clínicos individuais nos levam a pensar que há
algo de novo na atualidade, que incide sobre a adolescência. Se a pesquisa/intervenção parte
de uma questão sobre o uso que os jovens fazem das redes sociais, a associação livre, mesmo
na forma coletivizada, permite ir além desse tema. A nossa hipótese é a de que o tempo atual
tem favorecido o desvelamento da inconsistência do Outro. Esse desvelamento incide sobre as
subjetividades e sobre o tempo lógico da adolescência, favorecendo as condutas de risco.
Para discutir essa hipótese, aproximaremos a leitura sobre as condutas de risco da
noção de ato na teoria psicanalítica, relacionando a tendência ao ato com o tempo lógico da
adolescência. Em seguida, realizaremos uma discussão sobre a aposta de Pascal para
analisarmos a relação do risco na adolescência com a inconsistência do Outro. Desse modo,
os capítulos da dissertação serão assim divididos:
O primeiro capítulo discorrerá sobre a adolescência e os desafios que ela nos coloca na
atualidade. A adolescência será abordada numa perspectiva histórica, antropológica e
psicanalítica. Em seguida, discutiremos algumas características da contemporaneidade e suas
incidências sobre a adolescência.
No segundo capítulo, abordaremos a noção de conduta de risco segundo o antropólogo
David Le Breton, construindo uma articulação entre ato, risco e adolescência. Em seguida,
apresentaremos uma reflexão sobre a aposta de Pascal, para relacioná-la com as condutas de
risco e com o desvelamento da inconsistência do Outro na contemporaneidade.
No último capítulo, “Com a palavra, os adolescentes”, apresentaremos alguns
fragmentos das conversações, além de um fragmento clínico, analisando-os segundo as
discussões realizadas nos capítulos anteriores.
16
2. A ADOLESCÊNCIA E OS DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
Será mesmo possível afirmar que “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos
pais?”. Esta estrofe da canção de Belchior, de 1976, eternizada pela interpretação de Elis
Regina, nos remete ao movimento cíclico que ocorre no deslocamento das gerações,
ressaltando que a transmissão de pai para filho leva a certa repetição ritmada do tempo.
Apesar da constante tensão entre o velho e o novo, algo do passado se reatualiza a cada nova
geração.
Pouco mais de 40 anos depois, temos a impressão de que essa música não está
adequada aos novos tempos. Observamos que os pais têm ocupado outra posição, de modo a
que talvez pudéssemos substituir a estrofe do compositor cearense por “ainda somos os
mesmos e vivemos como nossos filhos”. Isto nos levaria a concluir que, ao que parece, na
atualidade somos todos jovens, pais e filhos, numa grande fraternidade órfã (Kehl, 2016). No
mesmo sentido, segundo Pereira e Gursky (2014), estamos diante da vacuidade do lugar do
adulto.
Mas, o que seria esse lugar de adulto? Para Arendt, os adultos são responsáveis por
fazer da família um lugar seguro, protegido do aspecto público do mundo, um espaço de
preservação da intimidade (Arendt, 1950/2011).
Em Nota sobre a criança, Lacan (1969/2003) destaca a irredutibilidade da transmissão
– dada a partir de um desejo que se mostra singular, não anônimo – encarnado pelo par
parental. Em Alocuções sobre a Psicose da criança, Lacan (1969/2003) sublinhou a
importância da função da família para refrear o gozo. Essas atribuições que são conferidas à
família, encontram na hipermodernidade, alguns desafios: a sociedade se apresenta
desvinculada dos antigos referenciais simbólicos e da tradição, bem como se vê às voltas com
o imperativo de gozo imposto pelo discurso capitalista por meio de uma avalanche de objetos
de consumo ofertados pelo mercado.
O imperativo de gozo e a vacuidade do lugar de adulto na contemporaneidade não são
sem consequências para crianças e adolescentes. No tempo lógico da adolescência, os sujeitos
precisam inventar saídas para lidar com o mal-estar decorrente do encontro com o real do
sexo. Na atualidade, eles encontram-se sozinhos nessa empreitada, sem o amparo de um
Outro.
Frente a tais premissas, faremos dois percursos para tratarmos desse tema. No
primeiro, refletiremos sobre a adolescência como uma resposta do sujeito à ausência de ritos
17
de passagem, comuns em algumas sociedades tradicionais. O segundo percurso abordará
algumas características da sociedade contemporânea e seus efeitos sobre o tempo lógico da
adolescência, em especial, sobre as identificações. O fio condutor que atravessa toda a nossa
reflexão é a hipótese de que a época atual é marcada pelo desvelamento da inconsistência do
Outro. Tal desvelamento incide sobre as identificações e o laço social, deixando o sujeito
adolescente à deriva e favorecendo as atuações e as passagens ao ato.
É assim, nas palavras de Fernando Sabino, que a adolescência chega para Geraldo
Viramundo. Essa passagem de não ser mais menino para ser um homem nos remete essa
“delicada transição”2 que caracteriza esta etapa da vida e envolve um trabalho psíquico
complexo e árduo, mas necessário para o sujeito e para a sociedade.
Há um caráter provocativo no tema adolescência: ele coloca em cheque vários
aspectos de uma determinada cultura e serve como indicativo dos valores vigentes de uma
época, apontando seus contornos, muitas vezes paradoxais. Um rápido e desavisado olhar
sobre o tema na atualidade nos parece indicar que a adolescência ocupa um lugar central e
inédito nas preocupações da sociedade.
2
Lacadée (2011) considera ser a adolescência a mais delicada das transições.
18
O adolescente representa o novo, com o seu potencial transformador. Daí o caráter
paradoxal da adolescência: por um lado, ela impulsiona a transformação social, por outro
lado, e por isso mesmo, ela representa uma ameaça para a sociedade. Lesourd (2004) ressalta
que “construir uma história do adolescente seria, pois, construir a história das relações sociais
e dos mitos que a organizam” (p. 15). Assim, para trazer o adolescente contemporâneo para a
nossa discussão, optamos por fazer uma breve incursão pela antropologia, que traz
contribuições importantes para essa reflexão.
“A adolescência não é um acontecimento, mas antes uma questão que atravessa o
tempo e o espaço das sociedades humanas” (Le Breton, 2017, p. 19). É com essa afirmação
que o antropólogo abre o seu livro Uma breve história da Adolescência, e nos coloca em
contato com a complexidade que abarca o tema. O autor destaca a ausência de um consenso
na forma de abordar a adolescência nas diversas culturas. As sociedades diferem, de maneira
precisa ou difusa, na forma de percepção e de definição desse período intermediário entre a
infância e a maturidade social (Le Breton, 2017).
Essa grande variedade de perspectivas e de abordagens pode ser observada, por
exemplo, nas sociedades ditas tradicionais. Entretanto, em várias delas Le Breton (2017)
identifica um elemento fundamental: a instituição de ritos de passagem entre a infância e a
maturidade social. A presença dos ritos nessas sociedades torna desnecessário o tempo da
adolescência: a transição da condição de criança para a de adulto se dá diretamente, sem uma
fase intermediária. Le Breton demonstra que a passagem de uma condição a outra requer
somente o tempo do rito de passagem.
19
passagem postulada como inevitável, difícil, problemática e conflituosa em qualquer
sociedade humana” (DaMatta, 2009, p. 11).
A outra possibilidade interpretativa dos ritos é aquela que muda o foco do plano
individual para o plano coletivo, tomando o simbolismo dos ritos como uma “dramatização de
valores, axiomas e contradições sociais” (DaMatta, 2009, p. 12). Nessas cerimônias, há uma
licença ritual, em que a sociedade não segue prescrições político-legais, momentos em que
“ela permite ler-se a si própria de ponta-cabeça”. (2009, p. 12). Esse viés interpretativo
justifica práticas ritualísticas pouco comuns aos olhos de outros povos.
Nas sociedades tradicionais em que os ritos de passagem estão presentes, o tempo da
adolescência, se é que podemos localizá-lo, dura somente o tempo dessas cerimônias. Ao final
delas, “a antiga criança se tornou, de acordo com as indicações culturais próprias a cada sexo,
um homem ou uma mulher de sua comunidade.” (Le Breton, 2017, p. 23). Contudo, muitas
sociedades ignoram os ritos de iniciação à idade adulta e a própria noção de adolescência nem
sempre é identificada (Le Breton, 2017).
Em algumas sociedades a puberdade não está associada somente aos aspectos
biológicos. Quando recorremos ao texto de Arnold Van Gennep, antropólogo pioneiro no
estudo dos ritos de passagem e cuja produção ainda constitui um ponto de partida para muitas
pesquisas, somos advertidos de que a puberdade biológica não é coincidente com a puberdade
social, não sendo conveniente nomear os ritos de iniciação3 como ritos de puberdade, mesmo
que existam casos em que ambas as situações sejam concomitantes (Gennep, 2011).
Nas observações de Gennep, algumas sociedades diferenciavam os aspectos biológicos
dos aspectos sociais da puberdade (2011). Assim, não bastava o aparecimento dos primeiros
caracteres sexuais secundários ou da primeira menstruação, no caso da menina, para
considerar a sua entrada na vida adulta, o que justificava a presença do rito ou da cerimônia
como critério de passagem. Como exemplo, cita o caso da tribo Thomson, em que as meninas
são dadas em casamento a homens vinte anos mais velhos e passam por cerimônias que
abrangem tabus, lavagens, cerimônias, entre outros ritos, permanecendo por grande período
longe da aldeia, em uma cabana especial. Só depois de muitos anos e ao término de todas as
cerimônias ligadas à chegada da puberdade é que estas meninas são consideradas aptas a se
casar, por volta dos 17 ou 18 anos. Em alguns casos elas permanecem nesse processo até os
23 anos (Gennep, 2011).
3
Ritos de iniciação e ritos de puberdade são subdivisões do que o autor chama de rito de passagem. (Gennep,
2011)
20
As cerimônias relativas aos meninos dessa tribo carregam consigo uma ligação com a
profissão a ser exercida posteriormente e ocorre entre o décimo segundo e o décimo sexto
ano, ou seja, quando ele “sonhou pela primeira vez com uma flecha, uma canoa ou uma
mulher” (Gennep, 2011, p. 74).
O autor estabelece diversos exemplos da diferença existente entre puberdade social e
puberdade física, dos quais citamos:
Os ritos duram um dia ou mais ou se estendem por ciclos mais ou menos longos. Algumas
sociedades aborígenes os instituem em 12 anos. Os homens não podem se casar antes de terem
concluído o percurso, quer dizer em torno de 30-40 anos. Ao contrário, as meninas estão
casadas entre 10-15 anos, mas têm ainda etapas para atravessar antes de serem consideradas
mulheres plenas. (Le Breton citando Glowczewski, 2017, p. 27)
Durante os ritos, os sujeitos são exilados de suas famílias e entregues aos mais velhos,
num processo de redefinição social que os torna aptos às novas responsabilidades e passam
4
No caso de meninas, o autor não deixa claro se a circuncisão é um corte do clitóris, perfuração do hímen ou
secção do períneo.
21
por uma espécie de morte simbólica. DaMatta (2000) ressalta que esse processo conjuga
individualidade e coletividade, uma vez que o rito reafirma que:
22
mudanças, elas se dão de forma muito lenta e sem questionar os fundamentos do laço social
(Le Breton, 2017).
Le Breton ressalta o aspecto coletivo dos ritos de passagem das sociedades
tradicionais. Nelas, o homem:
[...] não pertence a si mesmo, seu status de pessoa imerge, com seu estilo próprio, no seio
da comunidade, mesmo que ele disponha de sua singularidade, de seu estilo. [...] Numa
sociedade na qual o indivíduo não existe, as normas coletivas se impõem a todos. Sociedades
de “nós outros”, e não do “pessoalmente eu”, determinam de maneira rigorosa as formas
coletivas de comportamento de acordo com gênero, idade, pertencimento ao sistema de
parentesco, etc. (2017, p. 31).
Há uma eficácia simbólica instaurada pelo grupo que confere ao rito o caráter de
simulação da morte para que haja um renascimento. O homem renasce a partir de então, com
uma identidade diferente, modificada. O sentido e o valor da sua vida ficam estabelecidos e o
laço social se constitui segundo o seu papel de gênero (Le Breton, 2017).
Ao contrário do que ocorre nas sociedades tradicionais, a experiência do indivíduo na
sociedade ocidental passou a ser uma instituição central e normativa. Em nenhuma outra o
indivíduo foi tão autônomo e tão independente como na sociedade ocidental contemporânea
(DaMatta, 2009).
O rito de passagem nas sociedades tradicionais assegurava aos adolescentes um saber
sobre ser homem ou ser mulher, inseria o jovem no laço social e atribuía um sentido à sua
vida. A sociedade contemporânea não dispõe mais dessa ferramenta e o sujeito precisa
atravessar essa passagem da vida infantil à vida adulta, e em algumas vezes sem o apoio
simbólico de um Outro. O adolescente precisa construir uma resposta própria ao que a
puberdade incita e põe em cheque, já que a comunidade ou, mais amplamente, o meio social,
não vêm em seu socorro.
Para prosseguir nesta reflexão, faremos um breve percurso histórico sobre a
construção social da adolescência.
23
em sua educação. É notório o papel pedagógico da retórica de Sócrates, Platão, Aristóteles e
Isócrates, que exercia uma função educativa junto aos efebos5 (Lesourd, 2004).
A educação grega se voltava para o efebo, que representava tanto a beleza própria e
tentadora da juventude, quanto a honra, um valor fundamental para o cidadão grego. Esse
cruzamento de valores, marcado por apresentar, de um lado, tanto o que desperta a presença
da beleza do corpo do jovem e, do outro, o seu comportamento moral honrado, sinaliza uma
tensão própria à Grécia Antiga que os filósofos educadores buscavam amainar. De forma
sucinta, podemos dizer que, em nome de uma formação moral e ética desses jovens, os
educadores-filósofos “defendem e ensinam uma ética da honra e uma gestão do prazer”
(Lesourd, 2004, p. 23).
Para tornar-se efebo, o jovem, com a idade aproximada de 18 anos, devia se submeter
a um duro processo que durava aproximadamente dois anos. Nesse período, ele era raptado
por seu amante e passava por um treinamento para aprender habilidades ligadas à guerra,
roubar ou caçar para se alimentar, devendo se comportar de maneira astuta e até trapaceira.
Os efebos realizavam a maior parte de suas atividades no período noturno, ao contrário dos
seus costumes, e mantinham relações homossexuais, cuja escolha se baseava na igualdade de
classe e não em atrativos físicos. Essa prática homossexual tinha um aspecto contingente,
sendo restrito a esse período:
Após dois anos dessa convivência entre pares e da preparação guerreira, os jovens se
tornam cidadãos plenos. A virilidade é, portanto, o resultado de um aprendizado no seio de um
coletivo no qual todos estão no mesmo barco. O pai não intervém na educação de seus filhos,
exceto como cidadão contribuindo para a educação dos meninos da cidade. (Le Breton, 2017,
p. 38)
Nesse contexto, a cidade era um assunto masculino e aristocrático, cuja ênfase recaía
sobre os planos político e militar. Às mulheres, que não eram vistas como cidadãs, eram
conferidos papéis tidos como secundários, como, por exemplo, o casamento e a maternidade
(Le Breton, 2017). A educação feminina visava, sobretudo, à preparação para a união
conjugal.
Lesourd (2004) destacou que foi a partir desse período da história grega, no século V
a.C., que foi instaurada, sob a forma tradicional, a educação dos jovens entre 14 e 21 anos,
modelo que se estendeu até o século XIV, no império do Oriente, e que está na origem da
filosofia escolástica, surgida na Europa. Assim, os valores gregos foram propagados em larga
5
Em Atenas, a efebia era uma instituição voltada apenas aos cidadãos da pólis que consistia na preparação dos
jovens cidadãos para a vida cívica e militar.
24
escala por todo o mundo, graças à convicção de Alexandre, o Grande, cuja formação se deu
com Aristóteles. Ele acreditava que, por seu intermédio, a “Grécia devia cumprir uma missão
civilizatória sobre todos os povos da terra” (Chauí, 2010, p. 13).
Esse século se configurou como o período de transição entre um modelo democrático,
que se baseava na tradição e no espírito cívico, e o império, que tinha como valores o
individualismo e a razão. A educação dos adolescentes assumiu um valor central nas
sociedades. Segundo Lesourd, os filósofos criaram a educação baseada na ética política:
“Sócrates como Isócrates são pedagogos, professores que formam a juventude, mas antes de
tudo são políticos que defendem a república” (2004, p. 18).
Se na Grécia Antiga a preocupação com a educação era uma atribuição do Estado,
conforme atesta o tratamento dado aos efebos, no império Romano ela foi deslocada para a
família, ou melhor, para a figura do pai, que passa a ter o direito de decidir sobre a vida ou a
morte de seus filhos. Le Breton (2017) elucida que essa é uma peculiaridade romana,
conhecida como patria potestas, que se caracteriza pelo arbítrio do pai sobre todas as questões
referentes à vida dos filhos e que é transmitida na sucessão das gerações.
Nesta perspectiva, o filho só adquire total autonomia com a morte do pai. Para reduzir
esse período, a sociedade passa a dispor de ritos intermediários que permitem consagrar o
avanço da idade. O que se consegue com esses ritos é um acesso à posição de homem livre,
respeitando a sua posição social, mas ainda são mantidas algumas restrições oriundas do
poder paterno (Le Breton, 2017).
Outro aspecto que difere a sexualidade dos romanos daquela dos gregos efebos é a
presença da ambiguidade nas relações homossexuais. Nos romanos tal prática é mais
contestada, contudo não deixa de existir. Le Breton citando Fraschetti: “(...) essa prevenção
remete à patria potestas: o pai não tolera que outro homem represente um papel tão íntimo na
educação de seu filho” (Le Breton, 2017, p. 39).
Em relação às meninas romanas, pode-se dizer que a educação pouco difere em
relação às gregas: são “virgens antes do casamento e esposas em seguida” (Le Breton, 2017,
p. 39). A passagem da adolescência para a idade adulta está relacionada com o casamento.
Passando da antiguidade para a Idade Média, Philippe Ariès (1981) aponta que as
idades da vida são um tema abundante nos textos desse período, e que seus autores empregam
uma terminologia específica para designar as diferentes fases. Segundo ele: “infância e
puerilidade, juventude e adolescência, velhice e senilidade – cada uma dessas palavras
designa um período diferente da vida” (Ariès, 1981, p. 33).
25
Ariès buscou em uma publicação do ano de 1556, conhecida como Le Grand
Proprietaire de toutes choises6, as divisões da vida para o homem medieval e suas respectivas
justificativas. Em relação à infância e adolescência, ele ressalta:
As idades da vida representavam para o homem da sua época uma linha contínua, que
o historiador adjetiva como humorística ou melancólica. Mais do que se inscrever na
realidade das coisas, elas mantinham seu caráter abstrato, uma vez que muitos homens não
experimentavam todas essas fases, em função do alto índice de mortalidade. Ariès (1981)
ressalta que apesar dessa iconografia só vir a se fixar a partir do século XIV, ela permaneceu
inalterada até o século XVIII.
O termo juventude significava força da idade e idade média e não havia, portanto, um
lugar para a adolescência, que, por sua vez, se confundia com a infância até o século XVII:
“No latim dos colégios, empregava-se indiferentemente a palavra puer e a palavra
adolescens” (Ariès, p. 41). Ainda no século XVII surgiu um novo hábito na burguesia e a
palavra infância, que antes tinha um significado muito amplo, designando tanto o putto7,
como o adolescente e o menino grande, passa a ter o mesmo significado moderno, sendo
associado à dependência (Ariès, 1981).
O limiar da idade infantil, do enfant, é a independência: enquanto o sujeito mostra-se
dependente, ele ainda é uma criança. Ariès, no seu exame histórico do termo, indica que as
palavras de origem francesa fils, valets e garçons, utilizadas para se referir às crianças,
estavam presentes no vocabulário feudal, associadas às relações de dependência nos feudos
(Ariès, 1981).
6
Segundo Ariès (1981), trata-se de uma compilação latina de textos do século XIII que retomava todos os dados
dos escritores do Império Bizantino, traduzida para o francês e difundida.
7
Representação da criança na arte a partir do século XVI. Nessas produções ela aparece nua e Ariès (1981) a
relaciona a uma revivescência do Eros helenístico.
26
Le Breton (2017) assinala o desconhecimento e a indiferença que as sociedades,
durante muito tempo, tiveram em relação à infância e à adolescência, exceto nos casos de
debilidade física, em que exigiam o cuidado de outrem. Excetuando esse período, a criança
participava das atividades dos adultos na medida daquilo que conseguia realizar.
A única coisa que impedia as crianças de ocuparem as funções no campo era a sua
condição física inadequada para o esforço que tal atividade exigia. Como “um adulto em
espera” (Le Breton, 2017, p. 40), elas aprendiam os seus afazeres no campo ao acompanhar os
mais velhos em suas tarefas e, tão logo estivessem fisicamente aptas ao trabalho, tornavam-se
adultos.
Segundo Ariès (1981), havia uma carência linguística no século XVII para diferenciar
as crianças pequenas das maiores. O francês emprestava palavras de outras línguas ou gírias
para designar criança pequena, como no exemplo do termo “bambino”, que se transformou no
bambin francês. Contudo, apesar da ampliação do vocabulário para se referir à primeira
infância, ainda existia uma ambiguidade entre a infância e a adolescência, assim como entre a
adolescência e a juventude (Ariès, 1981). O historiador menciona que, embora a descoberta
da infância tenha se iniciado no século XIII e sua evolução observada na arte e na iconografia
dos séculos XV e XVI, é somente depois dos séculos XVI e XVII que os sinais do seu
desenvolvimento se tornam mais evidentes. Ele ressalta ainda a inter-relação entre o
surgimento da infância e da família:
Nascemos por assim dizer duas vezes: uma para existir e outra para viver; uma para a
espécie e outra para o sexo [...]. Mas o homem em geral não é feito para permanecer sempre
na infância. Ele a deixa no momento prescrito pela natureza, e esse momento de crise, embora
bastante curto, exerce duradouras influências. Assim como o mugido do mar precede, de longe
a tempestade, essa tumultuosa revolução se anuncia pelo murmúrio das paixões nascentes:
uma fermentação surda alerta para a aproximação do perigo. (Rousseau, 1762/2017, p. 247)
27
Se a invenção da adolescência esteve atrelada ao surgimento da família moderna no
final do século XVIII, ela permanece como privilégio dos filhos da burguesia. Nessas
famílias, a maioria das alianças matrimoniais acontece entre pares que se elegem priorizando
a afeição recíproca. A organização familiar se altera e passa a ter como eixo central a criança,
cujo investimento afetivo se acentua juntamente com a diferença entre as gerações.
Entretanto, essas mudanças só irão afetar significativamente as famílias das classes mais
pobres a partir do final do século XIX (Le Breton, 2017).
Da emergência do sentimento de adolescência à sua constituição tal qual a entendemos
hoje, algum tempo decorreu. Para Ariès (1981), o primeiro adolescente moderno foi o
Siegfried de Wagner8. “A música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza
(provisória), de força física, de naturalismo, de espontaneidade e de alegria de viver que faria
do adolescente o herói do nosso século XX, o século da adolescência” (p. 46).
O ingresso à escola primária, que se constituiu como um projeto de futuro, era uma
proposta comum a todas as crianças do século XX, seja com apelo impositivo ou não. Nos
tempos anteriores ao século XIX, entrar na adolescência era tanto uma consequência da
infância quanto o tempo de uma integração parcial ao papel e à função social a qual o sujeito
havia se preparado desde sempre (Lesourd, 2004).
Le Breton (2017) relata que a cristalização da adolescência se deu ao longo do século
XIX com a instauração da escola obrigatória pelas Leis Ferry9, mas permaneceu muito tempo
como privilégio dos jovens burgueses, que podiam continuar os seus estudos nas escolas de
ensino médio. Esses jovens eram tratados com dureza, monitorados e vigiados.
Desde a época medieval até o século XIX, o adolescente teve a função de denunciar as
disfuncionalidades dos adultos e de promover a ligação entre as aldeias. A partir do século
XIX, duas “inovações” começam a incidir diretamente sobre os jovens. A primeira diz
respeito “ao aparecimento da criança pequena como um ser a educar”, que a mercê de uma
sociedade que a perverterá, deveria ser educada. Nessa mesma perspectiva, o adolescente
crítico é um pervertido a ser corrigido (Lesourd, 2004,p.25). A segunda se relaciona à forma
utilizada pela sociedade para lidar com aquilo que considera desviante – a exclusão – e para
isso inventa espaços para acolher, ou melhor, encarcerar esses desvios, tais como: asilos de
loucos, prisões, reformatórios, etc. (Lesourd, 2004).
8
Siegfried é o herói e personagem principal da terceira saga da Ópera “O anel dos Nibelungos”, composta pelo
compositor alemão Wagner, entre os anos 1813 e 1883 (Pereira, 2015).
9
Lei promulgada em 8 de março de 1882 na França que estabeleceu a obrigatoriedade escolar e a laicidade no
ensino público primário.
28
A sociedade do início do século XIX, marcada por uma estabilização nas famílias,
reforçava o controle dos adolescentes. O período marca a substituição do cavaleiro da idade
medieval, bravo, em busca do Graal, pelo vagabundo perigoso, a ser controlado. Essa
substituição trouxe consigo a ideia da crise da adolescência (Lacadée, 2011). Desse modo, é
possível observar o caráter transformador dos jovens: “no momento em que a sociedade aspira
a calma, a juventude sobe nas barricadas e ameaça a ordem estabelecida” (Lacadée, 2011, p.
17).
Observamos, novamente, a posição central do adolescente em nossa sociedade.
Lesourd (2004) ressalta que a presença desses sujeitos no centro dos discursos carrega uma
estreita relação com períodos de transformações nas relações sociais, marcam épocas de
transição entre um poder antigo e um poder novo. O autor considera que algumas mudanças
recentes como a presença de novos arranjos familiares, a assunção de novos papéis sociais
pelas mulheres, a liberalização sexual, dentre outros aspectos, são alguns dos atuais
responsáveis por centralizar a adolescência no discurso contemporâneo (Lesourd, 2004).
A adolescência se mostra em toda a sua complexidade a partir do século XX. Ao
mesmo tempo que a adolescência envolve o rompimento com o velho para dar lugar ao novo,
ela implica um intervalo, uma hiância, uma vez que as referências antigas desaparecem sem
deixar substitutos. Para Le Breton (2009), o jovem é expulso de um mundo sem equívocos,
em que os pais têm um saber sobre tudo, para ingressar em um mundo sem respostas ou
garantias. Por vezes, o adolescente sente-se situado entre os dois mundos, em constante
tensão.
Se o rito de passagem tinha o caráter apaziguador dessa transição, a adolescência
como uma construção social, parece surgir como resposta à ausência desses ritos. Para a
passagem de um mundo ao outro, há um túnel a atravessar, contemporaneamente isso parece
ocorrer sem nenhum apoio de um Outro consistente.
A adolescência pode ser pensada tanto como uma construção social, quanto como uma
construção psíquica. Num contexto social que não oferece balizas simbólicas claras para a
passagem da condição de criança à de adulto, a adolescência surge tanto como uma
construção da sociedade, que estabelece uma fase da vida intermediária entre as duas
condições, quanto como uma resposta individual a essa convocação de mudança social.
Para Stevens (2004), a adolescência pode ser tomada como o “sintoma da puberdade”.
No tempo em que o corpo sofre intensas transformações fisiológicas e hormonais que o
retiram da condição de criança, o adolescente se depara com a questão sobre o que é ser
29
adulto. Se os ritos de passagem ofereciam respostas precisas para essa questão, a adolescência
se apresenta como um tempo lógico, marcado pela ausência de saber, em que o sujeito precisa
elaborar a própria resposta.
Mesmo que um homem inteligente odeie o seu tempo, ele sabe que ele lhe pertence,
numa relação inevitável e singular que pode ser concebida como contemporaneidade. Essa
relação tem como característica fundamental a possibilidade de dissociação e de anacronismo
entre ambos, o homem e seu tempo. Assim, não são contemporâneos aqueles que vivem em
uma coincidência plena ou em aderência perfeita com sua época, uma vez que não há um
distanciamento que possibilite dirigir o olhar sobre ela (Agamben, 2006).
Desse modo, é a partir desta relação tanto de proximidade quanto de distanciamento
assinalados por Freud e Agamben que acreditamos ser possível levar adiante a proposta dessa
30
pesquisa. Assim, nessa trajetória, apresentamos a leitura de alguns pensadores sobre a
contemporaneidade.
Nosso tempo é marcado por profundas transformações sociais, despertando o interesse
por investigação de pensadores de diversas áreas, principalmente dos campos da filosofia e
das ciências sociais. Tais pensadores nomeiam de formas distintas esse conjunto de
transformações. Nicolaci-da-Costa (2004) destaca alguns exemplos de “nomes de batismo”
conferidos a esses conjuntos de fenômenos: “Revolução das tecnologias da informação
(Castells, 2000), pós-modernidade ou pós-modernismo (Lyotard, 1979; Vattimo, 1985;
Jameson, 1991; Bauman, 1998, 2001; Harvey,1989; Eagleton, 1996), modernidade líquida
(Bauman, 2001), capitalismo tardio (Jameson, 1991), capitalismo flexível (Sennet, 1998,
Bauman, 2001), etc.” (p. 83). A esses nomes elencados pela autora, acrescentamos o termo
hipermodernidade, proposto por Lipovetsky (2004).
Para Nicolaci-da-Costa (2004), as diferentes nomeações relacionam-se com a ênfase
dada por cada autor a determinados fatores presentes no contexto das transformações
estudadas. Enquanto para determinado grupo a ênfase pode recair em aspectos ligados aos
avanços tecnológicos, para outros o foco estaria voltado para aspectos econômicos. Tais
mudanças podem representar um corte com o modelo precedente ou serem uma nova etapa da
situação antiga.
A hipermodernidade10 é marcada por aproximações e distanciamentos em relação à
modernidade. Na visão dos diferentes autores a modernidade foi marcada, em linhas gerais,
por valores cujo ideário principal era marcado por “ordem, progresso, verdade, razão,
objetividade, emancipação universal, sistemas únicos de leitura da realidade, grandes
narrativas, teorias universalistas, fundamentos definidos de explicação, fronteiras, barreiras,
longo prazo, hierarquia, instituições sólidas, poder central, claras distinções entre público e
privado, etc.” (Nicolaci-da-Costa, 2004, p. 83).
Para Nicolaci-da-Costa (2004), após a II Guerra Mundial havia uma vaga sensação de
um mundo ainda estável e confortável, o que gradativamente foi abalado por processos de
mudanças que conferiram ao mundo as características as quais se refere como pós-modernas.
A autora ressalta que algumas mudanças são tão evidentes e se contrapõem de forma tão
contundente ao estado anterior que mesmo observadas por diferentes perspectivas políticas ou
teóricas encontram um consenso entre os autores (Nicolaci-da-Costa, 2004).
10
Nesta dissertação, optamos pelo termo hipermodernidade para nos referirmos ao conjunto de fenômenos da
contemporaneidade. Quando se tratar de uma referência a determinado trabalho ou autor, manteremos a
terminologia utilizada no original.
31
As mudanças que fazem contraponto à modernidade, segundo Nicolaci-da-Costa, são
eventos e aspectos como “a globalização, as comunicações eletrônicas, a mobilidade, a
flexibilidade, a fluidez, a relativização, os pequenos relatos, a fragmentação, as rupturas de
fronteiras e barreiras, as fusões, o curto prazo, o imediatismo, a descentralização e a
extraterritorialidade do poder, a imprevisibilidade e o consumo.” (2004, p. 83).
Tais mudanças sugerem uma ruptura de um modelo ao outro, de forma acelerada e
intensa e sem uma transição gradativa. A história nos indica que as mudanças sociais se dão a
partir de processos que se desenrolam de forma complexa, coexistindo, numa mesma época,
características que às vezes se mostram antagônicas.
Um breve exame histórico das transformações, numa linha do tempo, talvez nos
permita uma metáfora. Se inicialmente o homem se locomovia por meio de carroças, a
invenção posterior do motor incrementou a força fazendo a roda girar com maior velocidade e
percorrer maiores distâncias. A ciência segue o seu rumo, aperfeiçoa essas engenhocas
mecânicas, alterando a relação entre tempo e distância, até chegar ao desenvolvimento de
trens magnéticos que dispensam as rodas e levitam sobre os trilhos alcançando altíssimas
velocidades. Assim, se anteriormente as mudanças demoravam a se consolidar, como as
distâncias a serem vencidas pelas carroças, hoje elas têm a velocidade dos trens com
magnetos.
A hipermodernidade traz, entre outras coisas, a marca da velocidade. Bauman (2005)
defende a hipótese de que a velocidade impregna o nosso tempo promovendo a liquidez. Para
Bauman, na sociedade líquida “as condições sob as quais agem seus membros mudam num
tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação em hábitos e rotinas das
formas de agir” (p. 7). Tal situação tende a conduzir a um modo de vida também fluido
(Bauman, 2005). Podemos pensar que em tempos de fluidez, os trens não se apegam aos
trilhos.
Lipovestky (2016), na mesma perspectiva, destaca que nunca “vivemos num mundo
material tão leve, fluido e móvel” (p. 7). Nesse universo, o pesado, outrora privilegiado, dá
lugar à valorização da leveza, que representa a mobilidade, o virtual, o respeito ao meio
ambiente. A hipermodernidade passa a ser condensadora de sonhos e promessas, bem como
também representa grandes ameaças.
Essa configuração se apresenta como um modo de funcionamento global nos âmbitos
cultural e econômico. Lipovetsky aponta o capitalismo do hiperconsumo como responsável
por estruturar “uma lógica frívola de mudança perpétua da inconsistência e da sedução”
32
(Lipovetsky, 2016, p. 9). Ele ressalta que esse capitalismo faz uso de objetos, lazeres, meios
de comunicação, publicidade, entre outros, para proteger a ideia da diversão sem fim e para
incitar ao “gozo dos prazeres imediatos e fáceis” (p. 10).
O tempo social tem um novo regime, marcado pela passagem do capitalismo de
produção para uma economia de consumo e de comunicação em massa. A sociedade migra do
modelo do rigor disciplinar para uma “sociedade-moda” (Lipovetsky, 2004, p. 60). Tal
sociedade é regida pelo efêmero, pelo novo, pela sedução. Enquanto nas sociedades
tradicionais os modelos mantinham-se estáveis, na sociedade hipermoderna o presente é
organizado pela novidade:
O autor acentua que a partir dos anos 1980 e, sobretudo, nos anos 1990, há um
presentismo de segundo tipo relacionado à globalização neoliberal e à revolução informática
(Lipovetsky, 2004). Ele ressalta que há um desencantamento com a pós-modernidade. A vida
no presente é confrontada com um aumento das inseguranças e o hedonismo é afetado por
temores. Ao mesmo tempo que a sociedade-moda estimula os gozos ligados ao consumo, a
despreocupação dá lugar a insegurança tornando a vida menos “frívola, mais estressante, mais
apreensiva” (Lipovetsky, 2004, p. 65). Novas nuances tingem a vida das pessoas, tirando-as
de uma aparente estabilidade:
Na hipermodernidade, a fé no progresso foi substituída não pela desesperança nem pelo niilismo,
mas por uma confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias.
Motor da dinâmica dos investimentos e do consumo, o otimismo em face do futuro se reduziu – mas
não está morto. Assim como o resto, a sensação de confiança se desinstitucionalizou, desregulamentou-
se, só manifestando-se na forma de variações externas. (Lipovetsky, 2004, p. 70)
33
nas diferenças sexuais e nas relações dentro das famílias. Esse corte pode ser observado na
diferença entre as duas épocas e a partir da educação e das relações de poder estabelecidas
entre adultos e crianças:
Ainda em relação a essa mudança de modelo, Hannah Arendt (1950/2011) destaca que
na vida pública e política a autoridade não representa mais nada, e explica:
Isso, contudo, simplesmente significa, em essência, que as pessoas não querem mais exigir
ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais, pois sempre que a
autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas
no mundo. (p. 240)
Para a autora, isso pode significar que as exigências do mundo, por exemplo, sua
demanda por ordem, podem estar sendo conscientemente ou inconscientemente negadas e a
responsabilidade pelo mundo esteja sendo recusada. Na educação, as crianças não poderiam
derrubar a autoridade presente na escola como se estivessem sendo oprimidas. Contudo,
foram os adultos que se recusaram a ocupar esse lugar deixando de assumir a
responsabilidade pelo mundo para o qual essas crianças foram trazidas (Arendt, 1950/2011).
Lipovetsky (2016) não desconsidera que dessa mudança advenham aspectos positivos.
Contudo, sugere que os aspectos negativos não sejam ocultados e entre eles destaca os efeitos
do que denomina “educação permissiva” (p. 268), a saber, crianças agitadas, hiperativas,
ansiosas. Destaca ainda que, educados em ambientes sem regras ou limites, sem figuras de
autoridade ou sem clareza sobre a atribuição de papéis, as crianças tornam-se frágeis, uma vez
que deixam de viver constrangimentos necessários para a construção da estrutura da
personalidade (Lipovetsky, 2016).
O contexto social hipermoderno analisado por Lipovetsky nos indica a condição de
maior instabilidade na qual o adolescente está inserido na atualidade. Para o autor, o
hiperconsumo desconstruiu as formas de socialização que serviam de referência aos sujeitos.
O autor retoma a ideia de Durkheim de que não é uma sociedade mais severa que precipita
uma epidemia de suicídios, e sim o abandono dos sujeitos a si mesmos, tornando-os menos
equipados para suportar as adversidades da vida (Lipovetsky, 2004).
34
Os tempos hipermodernos são marcados por uma experiência de perda de sentido. Em
seu livro, A Era do Vazio, Lipovetsky (2005) argumenta que o homem hipermoderno vive
para si mesmo, sem se preocupar com as tradições ou com a posteridade. Ele abandonou o
sentido histórico tanto quanto os valores e as instituições sociais. Para o autor, há uma
descrença e uma desconfiança nos líderes políticos e como o futuro parece incerto, os homens
são levados a se fixar no tempo atual, protegendo o presente e permanecendo presos à ideia da
juventude sem fim (Lipovetsky, 2005).
Se os sujeitos permanecem na juventude evitando adentrar na maturidade, podemos
nos questionar sobre a capacidade dos “adultos” de se responsabilizarem pelas crianças ou
ainda de se apresentarem como figuras de referência para os adolescentes na
contemporaneidade. A discussão sobre a perda (Lipovetsky, 2004) ou a crise (Arendt, 2011)
da autoridade nos convida a uma interlocução com a psicanálise.
Uma das imagens fundamentais da relação humana com o mundo é o véu, a cortina,
afirmou Lacan (1956-1957/1995). A presença do véu permite que aquilo que esteja mais
além, como falta, possa se realizar como imagem e sobre ele “pintar-se a ausência” (p. 157).
O véu aparece como alguma coisa a ser posta entre o sujeito e aquilo que não pode ser visto.
Lacan articula o véu com a ilusão. Ele relaciona o uso da metáfora do véu de Maia a
uma ilusão fundamental da qual o homem não escaparia em suas relações tecidas pelo desejo
(Lacan, 1956-1957/1995). Para o autor, se o véu pode iludir, ele pode fazê-lo em função do
belo.
No Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan (1959-1960/2008) destaca que o
fenômeno estético, por ser identificável como a experiência do belo, pode se constituir como
uma verdadeira barreira para deter o sujeito diante do campo inominável: “É evidentemente
por ser o verdadeiro não muito bonito de se ver, que o belo é, se não seu esplendor, pelo
menos sua cobertura” (p. 260).
35
A época que vivemos parece não dispor mais desse véu. O discurso capitalista
proporcionou a ascensão do objeto pequeno a ao zênite social, ponto em que deveria existir
um ideal (Lacan, 1970/2003). Esse astro no céu social – sociel, como objeto a, está
relacionado sempre a um mais, a algo que não tem medida, que se renova e se inova de forma
acelerada (Miller, 2004). A ciência produz objetos desenfreadamente, gadgets, de acordo com
uma “ideologia de supressão do sujeito” (Lacan, 1970/2003, p. 436).Nesse contexto, o sujeito
vivencia a lógica do hiperconsumo.
Para Brousse (2007), o mercado “é a forma contemporânea do Um” (p. 1), cujo lucro
permanece como o princípio da troca num mundo de consumidores. Todo elemento que entra
nesse mundo torna-se objeto e pode ser consumido, e, se é consumível, é considerado útil.
Contudo, são objetos de gozo que produzem um engodo: prometem a satisfação plena e
entregam a satisfação provisória, incitando a busca pelo próximo objeto e o descarte do
anterior.
Brousse (2007) observa que o descarte do objeto demonstra a perda do valor intrínseco
e agalmático que o sujeito lhe conferia. Seu valor em relação à satisfação só é dado porque ele
está à venda, é comprável. Mas esse atributo não o salva de seu destino que é certeiro: será
esquecido, se tornará lixo. Há uma mudança no estatuto do objeto, que se torna dejeto -
inclusive o objeto de arte - , e cuja consequência é o levantamento do véu: “nossa época é esta
do desvelamento” (Brousse, 2007, p. 5). Entretanto, o véu, quando levantado, deixa ver que
por trás dele não há nada, conforme afirmou Lacan em Prefácio a O despertar da primavera
(1974/2003).
Há uma ilusão de transparência, já que não se tem acesso direto ao real. Se o véu,
como um semblante, confere um tratamento do gozo e faz existir o Outro, a queda do véu
deixa lugar à supremacia do gozo sem sentido e revela uma inconsistência do Outro. Laurent
e Miller (1998) referem-se à época atual como a do Outro que não existe. Para os autores,
vivemos uma descrença no Outro, o que seria a fonte da neurose na contemporaneidade. Os
sintomas contemporâneos demonstram que o sujeito, no lugar de ser guiado pelo ideal, é
ordenado a gozar.
O interdito, o dever e a culpa, substratos do supereu freudiano, eram responsáveis por
fazer o Outro existir (Laurent & Miller, 1998). Entretanto, o supereu lacaniano produz algo
muito diferente: um imperativo de gozo próprio da nossa civilização: “Homens e mulheres
são determinados pelo isolamento, cada um em seu gozo. Esse isolamento está na base da
escalada do objeto a ao zênite social” (Laurent & Miller, 1998, p. 15).
36
Se o ideal foi substituído pelo objeto a, padecemos de uma nostalgia da sua presença,
sendo confrontados com uma perda de confiança nos significantes mestres. Miller (2004)
nomeia nossa civilização como desbussolada e alega que a moral civilizada lhe servia de
bússola, “dava um corrimão aos desamparados porque ela inibia” (p. 1). Havia nesta moral
uma crueldade que, segundo ele, poderia se caracterizar como uma resposta a uma fenda que
já se abria na civilização: “Pode ser que essa moral civilizada, enquanto esteve em vigor nos
nossos corações, já fosse, como se diz, uma formação reativa” (Miller, 2004, p. 1).
Segundo Miller (2011), o supereu freudiano produziu o interdito, sob o reinado do pai,
e a sociedade globalizada, que deixou de viver sob o reinado do pai, submete-se ao regime do
não todo. O não todo se posiciona do lado feminino da partilha sexual, que indica a ausência
de algo que faria limite e produziria o todo. A sociedade regida pelo “não todo” é marcada
pela instabilidade e pela precariedade: “Não se tem a segurança do atributo, mas seus
atributos, suas propriedades, suas aquisições são precárias. O não todo comporta a
precariedade como elemento” (p. 11).
Na submissão da sociedade globalizada ao “não todo”, a tradição cede diante da
atração pelo novo. Como a tradição representava um dos grandes filtros do saber, há uma
perda do que poderia representar uma simplificação e uma formalização da realidade, ou seja,
uma perda daquilo que difundia modelos coerentes a partir de instâncias habilitadas e
conhecidas (Miller, 2011).
Em seu texto Contribuições para uma discussão acerca do suicídio (1910/1969),
Freud destaca que a escola tem uma missão: ela deveria oferecer ao sujeito adolescente o
desejo de viver, o apoio e o amparo numa fase da vida em que as condições de
desenvolvimento o impelem a um afrouxamento dos vínculos familiares. Entretanto, já em
sua época, ela falhava nessa missão. Miller (2011), por sua vez, afirma que gostaria que nessa
época de desestruturação dos filtros de saber a escola fosse capaz de simplificar e formalizar a
realidade, uma vez que os aparelhos que poderiam suportar esse saber encontram-se, segundo
ele, “fraturados, abalados, pressionados, no mínimo em declínio” (p. 14). A globalização se
faz acompanhar da individuação, abalando o laço social e produzindo sujeitos desarticulados,
dispersos, induzidos, ao mesmo tempo, a um dever social e a uma exigência subjetiva de
invenção (Miller, 2011).
O laço social é abalado na hipermodernidade pelo discurso capitalista. Os sujeitos
hipermodernos, inseridos na lógica do hiperconsumo, estão cada vez mais ligados aos objetos
produzidos por esse discurso, que não faz laço social, ao contrário dos demais. O discurso
37
capitalista, aqui apontado, surge como um desdobramento posterior à formulação lacaniana da
teoria dos quatro discursos (Lacan, 1969-1970/1998). Para essa construção, Lacan utiliza
estruturas que consideram a relação entre um significante e outro e, da qual, o sujeito vem a
ser o resultado.
Dessa maneira, constituído pela articulação dos elementos da cadeia significante com
o objeto a, o discurso é apresentado como algo que vai além da palavra sendo, contudo,
dependente da linguagem e assimilado ao laço social. É a própria linguagem que possibilita
que “um certo número de relações estáveis no interior das quais certamente pode-se inscrever
algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas” (Lacan, 1969-
1970/1998, p. 11) e estabelece o laço social, ou seja, um “vínculo social instaurado pela
palavra” (Lima, 2013).
Lacan não deixa de nos advertir sobre as limitações da linguagem, que não pode
abarcar tudo, deixando sempre um resto: “desde que o ser humano é falante, está ferrado,
acabou-se a coisa perfeita, harmoniosa da copulação, aliás impossível de situar em qualquer
lugar da natureza” (Lacan, 1969-1970/1998, p. 31). É a essa impossibilidade, a da relação
sexual, que os discursos visam oferecer alguma saída.
Utilizando-se da estrutura do matema, Lacan apresenta os discursos como “aparelhos
de quatro patas, com quatro posições que pode servir para definir quatro discursos radicais”
(Lacan, 1969-1970/1998, p. 18) e que através de certo posicionamento estabelecem a relação
entre seus elementos. Assim, o matema se apresenta na seguinte forma:
o agente o outro
a verdade a produção
38
Discurso do Mestre
S1 → S2
$ ← a
Discurso da Histérica
$ → S1
a ← S2
Lacan afirmou que se houvesse a ideia de designar aquilo que em cada discurso se
apresenta como seguro, o sintoma se caracterizaria como exemplar no discurso da histérica.
“É em torno do sintoma que se situa e se ordena tudo o que é do discurso da histérica.” (1969-
1970/1998, p. 41). A histérica, para Lacan, expressa a divisão do sujeito, sustenta as perguntas
sobre o que vem a ser a relação sexual e a possibilidade ou impossibilidade de sustentar essa
relação.
Nesse discurso, ela “quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas
coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio
máximo de seu saber.” (Lacan, 1969-1970/1998, p. 122). Nessa operação, ela convoca o
Outro para que produza um saber sobre o gozo (Lima, 2013).
39
Discurso Universitário
S2 → a
S1 ← $
Discurso do Analista
a → $
S2 ← S1
No discurso do analista o lugar do agente vem a ser ocupado pelo objeto a. É então,
por esse movimento, que o analista, como tal, “se faz de causa de desejo do analisante.”
(Lacan, 1969-1970/1998, p. 36). O analista, nesse lugar em que faz semblante do objeto,
solicita ao sujeito que ele produza seus significantes mestres, e aja por meio de um saber,
saber este que vem “funcionar no registro da verdade.” (Lacan, 1969-1970/1998, p. 101).
Lima (2013) aponta que nessa operação o sujeito produz um significante da sua singularidade.
Discurso Capitalista
$ S2
S1 a
40
Apenas cerca de dois anos depois, em sua conferência de 12 de maio de 1972, Lacan
(1978)11 apresenta uma formalização do discurso capitalista. Na ocasião, aponta que este
discurso vem a ser um substituto do mestre, indicando que, diferente dos demais, sua
formação se dá por uma inversão de posições entre o S1 e o $ do discurso do mestre. Essa
mudança ocorre porque, se em certo momento da evolução do conhecimento o mestre se
apropriou do saber produzido pelo escravo, posteriormente, quando o saber ocupa o lugar de
agente no discurso universitário, é o próprio capitalismo quem se apropria dos efeitos dessa
operação. As ciências e a própria universidade determinaram uma mudança dessa relação, ao
universalizarem o saber do escravo (Lima, 2013).
Para Alberti (2012), Lacan já se interrogava sobre os efeitos do capitalismo que
incidiam no discurso do mestre: no capitalismo temos a maximização do lucro proveniente da
divisão entre o sujeito e o Outro, o sujeito pode sonhar tornar-se o Outro e para isso vale tudo,
desde que ele não se dê conta da sua posição de sujeito, querendo aquilo que o capitalista quer
que ele queira. Essa parece ser uma tarefa fácil para o neurótico, ele é pego desde o inicio na
armadilha de confundir a demanda do Outro como desejo: “Ele tentará, mais paradoxalmente
ainda, satisfazer pela conformação de seu desejo à demanda do outro.” (Lacan, 1961-
1962/2003, p. 199-200). Assim, com esse engano, ele entra na lógica do discurso capitalista,
consumindo seus objetos:
E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as
esquinas, através de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo
de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa, pensem neles como latusas.
(Lacan, 1969-1970/2003, p. 153)
11
Texto ainda sem versão oficial em português. Foi utilizada uma tradução livre realizada por Sandra Regina
Felgueiras. Recuperado a partir de https://mega.nz/#!kMt0lYSL!B--NMkyiweRzehdbowo4CQDeuDPlAf1K56
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41
Os tipos de laços são distintos, um da natureza do objeto sexual, que é com a mãe , e
outro que toma o pai como modelo, mas que acabam por reunir-se com o desenvolvimento do
complexo de Édipo. “O menino nota que o pai se coloca em seu caminho, em relação à mãe
(Freud, 1921/1976, p. 133). Dessa forma, podemos notar a ambiguidade da identificação: ao
mesmo tempo que há uma hostilidade em relação ao pai há um desejo de ser igual a ele e
tomar o seu lugar.
A segunda forma de identificação, chamada de regressiva, é parcial e toma um traço
isolado da pessoa que para o sujeito está no lugar de objeto. Como exemplo, Freud retoma o
caso de Dora, sua paciente, destacando a tosse como um traço tomado do pai: “A
identificação apareceu no lugar da escolha de objeto e a escolha de objeto regrediu para a
identificação.” (1921/1976, p. 135).
Uma terceira forma de identificação, em que não há uma relação de objeto com a
pessoa a ser copiada, parte de uma qualidade emocional comum, por exemplo, em um grupo.
Freud exemplifica com no caso da carta recebida por uma das moças de um internato, cujo
conteúdo lhe desperta intensos ciúmes e, por contágio, causa nas demais moças uma crise
coletiva de histeria. Motivadas por um desejo inconsciente de também terem um romance
secreto, ou seja, de estarem no lugar da destinatária da carta, as outras moças manifestam a
mesma reação da jovem numa identificação com a colega. Esta modalidade, denominada
identificação histérica, é a responsável pelo laço horizontal entre os membros de um grupo
(Freud, 1921/1976).
Lacan, em seu seminário sobre a identificação, ressalta a importância desta teorização
de Freud: “a partir de um certo momento da obra freudiana, a questão da identificação vem ao
primeiro plano, vem dominar, vem remanejar toda a teoria freudiana.” (1961-1962/2003, p.
148). As identificações propiciam o laço social, conferindo um lugar ao sujeito no campo do
Outro.
Ao retomar a teorização freudiana referente aos três tipos de identificação, Lacan vem
indicar que ainda que tenham o mesmo tipo de nome, não chegam a formar uma classe, mas
sim “uma sombra de conceito” (Lacan, 1961-1962/2003, p. 70). Nesse estudo, considerou a
identificação ao pai como uma incorporação ao outro e a identificação regressiva como
relativa ao traço unário do objeto que, uma vez perdido, pode assim ser restabelecido no
sujeito. (Lacan, 1961-1962/2003). Segundo Laurent (2003, p. 61), Lacan efetua uma leitura
da primeira identificação considerando os aspectos da segunda: “A intervenção de Lacan vai
consistir em substituir, se assim posso dizer, o espesso pai da primeira identificação por um
42
nome do pai, por um traço”. E, ainda, ao tratar da terceira forma de identificação, “a que
conhecemos bem que é a histérica” (Lacan, 1961-1962/2003, p. 69), sugere que esta pode ser
apontada como imaginária, do desejo como desejo do Outro.
Contudo, interessa-nos destacar a identificação que se encontra no cerne da formação
dos grupos, conforme já anunciou Freud: a identificação ao traço. É importante destacar que o
traço é o que faz a referência da permanência do sujeito e não a sua presença. É aquilo que dá
suporte à diferença:
[...] designei da última vez, em nosso traço unário, nessa função de bastão como figura do
um enquanto ele não é senão traço distintivo, traço justamente tanto mais distintivo quanto
está apagado quase tudo que ele distingue, exceto ser um traço, acentuando esse fato de que
mais ele é semelhante, mais ele funciona, eu não digo absolutamente como signo, mas como
suporte da diferença. (Lacan, 1961-1962/2003, p. 75)
A transformação do grito em chamado é operada por S2, o significante que faz emergir o
sujeito ali onde seu lugar original era uma ausência. Não pensem, porém, que existe uma
direção única que só conduz a emergência do sujeito. Está em jogo também o nascimento do
Outro. [...] Se a resposta do Outro faz emergir o sujeito, é igualmente certo que o grito cria o
Outro; isso cria um espaço de ressonância. (Miller, 1998, p. 113, tradução nossa)
43
A partir da díade S1-S2, Miller (1998) propôs duas formas de identificação: a
constituída e a constituinte. A primeira foi enunciada como aquela que, mesmo contendo uma
parte escondida, é a mais aparente, formada pelos efeitos engendrados pela resposta do Outro.
Nela o autor localiza a categoria freudiana do eu ideal. Por sua vez, a identificação
constituinte é apresentada como S2, significante que faz emergir o sujeito a partir de um lugar
que era uma ausência, sendo relacionada ao ideal do eu.
Na adolescência a identificação constituinte é abalada. Para Lacadée, o adolescente, de
modo análogo ao exilado, experimenta a dor da privação de sua língua (infantil), que outrora
proporcionava sustentação à identificação constituinte do seu ser e do seu sentimento de vida.
Ao jovem, se faz necessário traçar um caminho, criar uma nova abertura significante a partir
do “ponto de onde” (Lacadée, 2011) não é mais a criança aprisionada no desejo do Outro,
construir novas identificações.
O que fazia funcionar os efeitos do ideal do eu se localizou onde o significante unário
incidiu sobre o campo da identificação primária narcísica: “Ao se agarrar à referência daquele
que o olha num espelho, o sujeito vê aparecer, não seu ideal do eu, mas seu eu ideal, esse
ponto em que ele deseja comprazer-se em si mesmo” (Lacan, 1964/1985, pp. 248-249). Esse
ponto se refere àquele em que o sujeito pode se sentir de forma satisfatória e amado (Lacan,
1964/1985). Esse “ponto de onde” tem uma importância fundamental: tal como o ideal do eu,
evoca ao sujeito algum eixo, sobre como ser homem ou mulher, e o mantém à distância da
pulsão de morte (Lacadée, 2011).
Se considerarmos que o ideal representa o Outro, as identificações que se estabelecem
em tempos em que o Outro se mostra desvelado em sua inconsistência podem ser afetadas.
Para Lima (2011), as identificações na época da inconsistência do Outro ocorrem de forma
horizontal, sem a figura do líder. Sob esse pano de fundo, grupos são formados, e, sem terem
algo na posição de ideal, como o Nome-do-Pai, colocam ali os objetos de seu gozo.
Nesse quadro, observa-se um isomorfismo em alguns grupos. Neles os jovens têm
atitudes, gestos e vestimentas semelhantes, que parecem se enquadrar num padrão prescrito
que apaga as diferenças, empobrece o laço enquanto generaliza os excessos, tal como
prescreve a ordem capitalista (Pereira & Gursky, 2014).
As identificações sem a referência a um ideal do eu não são sem efeitos sobre os
adolescentes. Por um lado, observam-se identificações ordenadas pelo eu ideal, marcadamente
imaginárias, especulares, com todas as suas consequências, como, por exemplo, a
44
exacerbação do narcisismo e da agressividade. Por outro lado, encontramos agrupamentos
ordenados por um modo de gozo comum a todos, que apaga as singularidades. Como
exemplo, podemos citar os grupos formados por jovens anoréxicas, bulímicas, por jovens que
se mutilam, etc.
Assim, na atualidade, as identificações demonstram alguns efeitos do desvelamento da
inconsistência do Outro, este fenômeno contemporâneo que contribui para que o sujeito
adolescente fique à deriva. No próximo capítulo discutiremos as condutas de risco como
tentativas de forjar saídas para essa travessia rumo ao tornar-se adulto.
45
3. RISCOS NA INTERNET: INSERIR-SE OU SAIR DA CENA DO MUNDO
A forte presença das tecnologias digitais na sociedade contemporânea torna cada vez
mais tênue a linha divisória que separa o espaço virtual do não virtual. O sujeito é afetado por
palavras e imagens do ambiente virtual, da mesma forma como as experiências vividas fora da
virtualidade podem ter nele seus prolongamentos. As redes sociais têm sido um campo
propício para a projeção de fantasias e para as mais diversas experimentações, especialmente
por adolescentes. Se o mal-estar na civilização é algo incurável, a internet pode ser utilizada
de forma sintomática na atualidade.
A inserção na rede da internet tem sido uma fonte de preocupação cada vez maior para
pais e educadores, por representar possibilidades de risco para crianças e adolescentes. Neste
contexto, faz-se necessário problematizar a noção de risco, considerando suas implicações
políticas, culturais e subjetivas.
O antropólogo David Le Breton articula a travessia da adolescência à experiência do
risco. Se a adolescência é um passaporte para a idade adulta, o risco, para Le Breton, é
associado à “palavra valise, um cruzamento onde se encontram as preocupações que não
deixam ninguém indiferente, dada a extrema relevância que têm em nossa sociedade” (2009,
p. 16).
A perspectiva do risco na sociedade atual pode ser também analisada do ponto de vista
político a partir da noção de biopolítica, proposta por Michel Foucault. Para Foucault (1975-
1976/2008), a biopolítica se constitui como uma tecnologia científica e política que se exerce
sobre as populações compreendidas como uma multiplicidade biológica. A biopolítica se
refere aos processos vitais e visa antecipar os riscos. Para cada risco ou perigo que possa vir a
ocorrer, devem-se instalar mecanismos de segurança, que funcionem de forma semelhante aos
mecanismos disciplinares, visando maximizar a vitalidade das populações: “Uma tecnologia
de poder sobre a população enquanto tal, sobre o homem como ser vivo, um poder contínuo,
científico, que é o poder de fazer viver” (Foucault 1975-1976/2008, p. 294).
Esse “fazer viver” tem como objetivo: manter os indivíduos em condições de
exercerem sua força de trabalho. Em seu texto o Nascimento da biopolítica (1978-
1979/2008), Foucault indica que não se trata de uma política que inclua a socialização do
consumo e da renda, mas uma privatização da própria sociedade, que individualizada, passa a
ter recursos para construir instrumentos que a afastem do risco, dentro da lógica capitalista,
em que o mercado controla o Estado:
46
Vai se pedir à sociedade, ou antes, à economia, simplesmente para fazer com que todo
indivíduo tenha rendimentos suficientemente elevados de modo que possa, seja diretamente e
a título individual, seja pela intermediação coletiva das sociedades de ajuda mútua, se garantir
contra os mesmos riscos que existem, ou também, contra os riscos da existência, ou também
contra a fatalidade da existência que são a velhice e a morte, a partir do que constitui sua
reserva privada. (Foucault, 1978-1979/2008, p. 197)
Não é certo que se trate de “vigiar e punir”, mas é uma sociedade onde a palavra de ordem
é “vigiar e prevenir” [...]. O sujeito, no começo do século vinte e um, está em perigo. Comer,
respirar, se deslocar, se cuidar, se faz sob a égide do perigo e da precaução a tomar. (Miller,
2005-2006, p. 04)
47
condutas, uma vez que tocam no ponto sensível da sociedade atual, como já citado
anteriormente, que é a tentativa de controle sobre a vida, prevenindo contra tudo que possa
representar algum perigo (Le Breton, 2009).
Lacadée (2011), apoiado em Le Breton, analisa o risco a partir da ideia de “valise”,
numa referencia à passagem, viagem, e associada a um trajeto em que se deixa uma coisa para
aceder à outra. O sujeito, ao portar essa valise de contrabando, se engana ao se achar isento do
encontro com o furo do saber. A ideia de que é possível portar uma valise fechada a qualquer
declaração ao Outro e que, de posse dela, o sujeito possa passar da infância a outra existência
sem pagar o preço dessa passagem é equivocada. É preciso pagar um preço por essa travessia
e a valise pode comportar uma solução singular (Lacadée, 2011).
Os adolescentes têm uma relação especial com o risco. Ao se lançarem em condutas
de risco, os jovens “testemunham uma falta a ser, o sofrimento e a necessidade interior de um
confronto com o mundo, com o intuito de se livrarem do que não está bem em suas vidas e de
reconhecerem limites necessários ao desenvolvimento de sua existência.” (Lacadée, 2011, p.
56).
Alguns adolescentes identificam-se com o vazio descoberto, com um nada ou um
dejeto, ao passo que outros preferem o desafio do corpo como um lugar da sensação fora do
sentido, lugar da força viva (Lacadée, 2011-2012). Nessa busca por um novo lugar em que o
jovem poderia ser autenticado, o ato pode surgir de forma inédita na relação do sujeito com o
seu corpo. Nessa perspectiva, podemos considerar que as redes sociais podem ser um lugar
para a busca da autenticação, favorecendo o ato.
Segundo Queirós (n.d.), o corpo liberta em cor, canto ou palavra aquilo que fica
guardado. A investigação clínica freudiana revelou-nos que os sujeitos libertam em seus atos
o que esperavam guardar. Em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901/1976), Freud
demonstra por meio de vários exemplos como, no ato, os significados ultrapassam aquilo que
o próprio sujeito gostaria de revelar e que escapam ao seu controle consciente. É nessa
perspectiva, a do “ato falho ou do ato sintomático que o ato surge na psicanálise freudiana”
(Brodsky, 2004, p. 12).
48
Freud (1901-1976) os nomeia como “atos descuidados” ou “casuais sintomáticos” (p.
235). A diferenciação entre os dois tipos de ato se dá a partir do caráter intencional ou não do
ato consciente. Os atos descuidados são reconhecidos pela efetivação de uma intenção
inconsciente, surgidos sob a perturbação de outros atos intencionados e que se ocultam sob o
pretexto de uma inabilidade. Já os atos casuais desprezam uma intenção consciente. São
realizados sem se pensar muito sobre eles e, apesar dessa diferenciação, a fronteira entre os
dois tipos se apresenta de forma pouco nítida (Freud, 1901/1976).
Freud (1901/1976), ao se referir aos atos descuidados, descreve situações em que o
sujeito atua de forma a colocar a sua integridade física em risco. O autor ressalta o caráter
autopunitivo ou sacrificial de tais atos, que são impulsionados por motivações que não se
tornam conscientes. Numa nota de rodapé acrescentada em 1924, Freud descreve o caso
clínico de uma senhora que queimara acidentalmente o pulso com caldo quente. Afirma ele:
Ele está preparado para uma luta perpétua com o paciente, para manter na esfera psíquica
todos os impulsos que este último gostaria de dirigir para a esfera motora; e comemora como
um triunfo para o tratamento o fato de poder ocasionar que algo que o paciente deseja
descarregar em ação seja utilizado através do trabalho de recordar. (1914/1969, p. 200)
Para Brodsky (2004), Freud conferiu ao ato duas perspectivas: uma interpretável,
como a citada em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901/1976), e outra que faria
oposição ao inconsciente, como a presente em Recordar, repetir e elaborar (1914/1969). Para
Lacan , existe uma verdade subjacente ao ato falho:
49
Nossos atos falhados são atos bem sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras
que confessam. Eles, elas, revelam uma verdade detrás. No interior do que se chamam
associações livres, imagens do sonho, sintoma, manifesta-se uma palavra que traz a verdade.
Se a descoberta de Freud tem um sentido é este – a verdade pega o erro pelo cangote, na
equivocação. (1953-1954/2009, p. 345)
Lacan destaca o valor da palavra no ato, mas ressalta que o ato ultrapassa a dimensão
da palavra: “[...] o que fala no homem vai bem além da palavra até penetrar nos seus sonhos,
seu ser e seu organismo mesmo.” (Lacan, 1953-1954/2009, p. 338).
Posteriormente, Lacan vai abordar o ato a partir de sua característica estrutural e, para
isso, utilizará a noção de objeto a. Para realizar esse percurso, o autor tomará como ponto de
partida o texto freudiano Inibição, sintoma e angústia (1925-1926/1976). Contudo, é a partir
de outro texto freudiano que ele encontrará os argumentos para construir as noções de
passagem ao ato e de acting out, como será visto a seguir.
Para analisar as duas formas de ato, Lacan (1962-1963/2005) retoma o caso da jovem
homossexual, abordado por Freud (1920/1969). Nesse caso emblemático Freud é convidado a
atender uma jovem de 18 anos, de família de posição social privilegiada, que persegue uma
dama dez anos mais velha que ela. Segundo Freud, essa dama desfruta de má reputação em
função de viver com outra dama que, mesmo casada, mantém relações íntimas com outros
homens.
Ainda segundo o psicanalista, a jovem não questiona a reputação da dama ou permite
que tais comportamentos interfiram em seus sentimentos, mas, sua vida é totalmente tomada
pelo interesse nessa mulher. Os pais se mostram irritados pelas aparições públicas da jovem
com a dama, que por sua vez, não poupa esforços para esses encontros (Freud, 1920/1969).
Em determinada ocasião, o pai da jovem a encontra em companhia da dama e lança-
lhe um olhar furioso. Em função disso, a jovem se precipita em direção à mureta de proteção
da linha férrea. Freud relata que essa tentativa de suicídio deixou a jovem acamada por longo
tempo provocando nos pais da moça um amansamento na oposição que faziam ao romance, e,
na dama, uma redução na indiferença com que tratava a pretendente. Os pais recorrem à Freud
seis meses depois desse incidente e esperam que o psicanalista reconduza a jovem “à
normalidade”.
Segundo Lacan, a aventura da jovem com a dama de reputação duvidosa, levada à
função de objeto supremo, foi uma ação orientada para o Outro: “é aos olhos dos outros que
se exibe a conduta da moça. Quanto mais escandalosa se torna essa publicidade, mas se
acentua a sua conduta. E o que se mostra essencialmente como diferente do que é.” (Lacan,
50
1962-1963/2005, p. 137). Nesse ato da jovem, o objeto a sobe à cena juntamente com o
sujeito.
A passagem ao ato, segundo Lacan, é outra forma de ato, sendo contrária ao que ele
designa como acting out, pois, no lugar de buscar se inserir na cena, o sujeito deixa-se cair,
encaminhando-se para evadir da cena e sem deixar lugar à interpretação. Tal forma é
exemplificada pelo salto da jovem homossexual do caso freudiano sobre a barreira que separa
do canal por onde passa o bondinho (Lacan, 1962-1963/2005, p. 137).
A cena à qual Lacan se refere é o lugar onde as coisas do mundo vêm se dizer. É o
espaço no qual os sujeitos, a partir de suas construções simbólicas, encenam suas histórias, e,
assim, dão algum tratamento ao real (Lacan, 1962-1963/2005).
Podemos inferir que a interação do sujeito adolescente com o universo online propicia
o ato, que pode ser da ordem da inserção ou da evasão da cena do mundo. A adolescência se
constitui como um tempo lógico em que o ato assume um lugar fundamental. Tornar-se adulto
é uma delicada e árdua tarefa que envolve um atravessamento, com todos os seus riscos. Em
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/2016) nos apresenta uma metáfora
para designar a adolescência: “É como a perfuração de um túnel a partir dos dois lados” (p.
121). Para ele, esse túnel a ser cavado simultaneamente seria perfurado por um lado pela
corrente afetiva e por outro pela corrente sensual, ambas convergindo para o objeto e objetivo
sexual. Essa perfuração convergente teria como resultado uma vida sexual normal. Freud
destaca ainda que toda vez em que há a necessidade de reordenamentos em nexos e
composições complicadas e isso é mal sucedido, há ocorrência de distúrbios.
Na leitura lacaniana, as transformações fisiológicas e hormonais da puberdade
despertam o real traumático, confrontando o adolescente com o desamparo estrutural. Surge,
então, a angústia, como um afeto que não se engana, pois tem uma relação estrutural com o
objeto a, com o núcleo real da subjetividade (Lacan, 1962-1963/2005).
A presença do objeto a, sinalizada pela angústia, pode desencadear inibições,
sintomas, ou ainda levar à passagem ao ato e ao acting out. As diferenças entre essas duas
formas de ato são estabelecidas por Lacan (1962-1963/2005) em relação a tentativas do
sujeito de se inserir ou sair da cena do mundo e a característica estrutural em ambas guarda
relação com a presença do objeto a. Assim, Lacan discute que na passagem ao ato o sujeito se
identifica com o objeto e sai da cena sem deixar lugar para a interpretação; no acting out, ao
contrário, há uma tentativa de inserção em que o sujeito cria a própria cena de forma orientada
ao Outro, ou seja, uma “mostração” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 138).
51
Nas conversações, alguns adolescentes afirmam que fazem postagens sem pensar,
agindo de forma impulsiva. Algumas dessas postagens expõem os jovens a situações de risco,
como, por exemplo, a aliciamentos por grupos fundamentalistas e a violências de todo tipo.
As postagens feitas na urgência da pulsão exemplificam a premência do ato, apontado
por Miller (2014). Segundo ele, o ato contraria a lógica atual da ação controlada, em que o
sujeito age após a conclusão de um raciocínio e que o pensamento confere uma suspensão
temporal que antecede o “ato como a conclusão de uma demonstração” (Miller, 2014, p. 03).
O ato teria uma inscrição temporal inevitável, portando em si mesmo uma urgência e pondo
em cheque o postulado de que o sujeito do pensamento visa o seu próprio bem. Miller afirma
que: “No ponto em que estou, basta indicar que há algo no sujeito suscetível de não trabalhar
por seu bem, suscetível de não trabalhar pelo útil, mas que, pelo contrário, trabalha para a
destruição” (2014, p. 5).
No ato há de fato um suicídio do sujeito, na medida em que a noção de pulsão de
morte está envolvida nessa concepção (Miller, 2014). O ato suicida ilustra essa ambivalência:
no organismo estão envolvidos os processos para a sobrevivência orgânica e os fatores que o
corroem, ou destroem, concomitantemente. O sujeito através do gozo se sustenta no sintoma,
amando-o como a si mesmo, mesmo que o faça mal. Esse gozo, aliado à dor, traz satisfação e
coloca o organismo em perigo, podendo levar à morte se for automatizado (Miller, 2014).
Algumas atuações dos adolescentes nas redes sociais apontam para um endereçamento
ao Outro. Como exemplo, um caso divulgado amplamente pela mídia, em que um adolescente
de 13 anos, desafiado no jogo da asfixia, morre, com transmissão via webcam, diante dos
colegas. A conduta de risco praticada pelo jovem, se considerarmos o seu desfecho como
acidental, estava num contexto em que se mostrava como um ato dirigido ao Outro, na figura
aqui do seu grupo, visando o seu reconhecimento, algo tão importante para o adolescente.
O ato praticado pelo adolescente pode se apresentar com uma dupla função: dar conta
da angústia suscitada pelo encontro com o real, e/ou valer como uma autenticação do seu
lugar na cena do mundo, representado aqui pelo seu grupo. Contudo, esse jovem descrito
acima, ao tentar se inserir na cena do mundo sem se furtar ao desafio do reconhecimento do
grupo, venceu a partida, mas perdeu o jogo da vida.
Para Miller (2014), na passagem ao ato o sujeito se subtrai da cena, não se utiliza dos
equívocos da fala e o propósito do ato não é cifrável. Ao contrário, ele se mantém fora do
universo de cálculos, equivalências ou trocas, visando o definitivo, cujo cerne é um “Não!”
dirigido ao Outro. Nessa forma de ato não há um espectador. Há um desaparecimento da cena,
52
e o sujeito, apesar de eventualmente morto, olha os outros e lhes dirige sua questão, fazendo
com que sintam o porquê de seu olhar (Miller, 2014).
Para Lacan, é no momento da passagem ao ato que o sujeito tem o seu maior
embaraço e com a presença comportamental da emoção como perturbação do movimento
(Lacan, 1962-1963/2005). A esse respeito, Miller aponta que não é suficiente que haja
movimento, é preciso que exista um dizer para enquadrar e fixar o ato e o sujeito é
modificado por esse franqueamento significante – o sujeito não é o mesmo antes e depois do
ato (Miller, 2014). Mas, é a partir do lugar na cena que o sujeito ocupa como historicizado
que pode manter-se em seu status de sujeito e se precipitar, “despencar fora da cena” (Lacan,
1962-1963/2005, p. 129).
Se o sujeito se precipita e sai da cena, podemos questionar qual o destino dessa fuga.
Lacan aponta que o sujeito que está em fuga está sempre mais ou menos colocado numa
posição infantil. Assim, o sujeito parte de forma errante em direção a um mundo puro,
buscando encontrar algo rejeitado, e faz a passagem, nessa partida, “da cena para o mundo”
(Lacan, 1962-1963/2005, p. 130)
O mundo pode ser pensado como o lugar onde o real se comprime, e a cena do mundo
(do Outro) como o lugar onde o homem tem que ser sujeito. Para tanto, ele precisa assumir o
seu lugar de fala, dentro de uma estrutura que, mesmo verídica, é estrutura de ficção.
Para Lacadée (2011), na adolescência as ficções emergem dos espaços vazios gerados
pelos laços da causalidade que cederam ou foram distendidos, e pela inadequação da palavra
que perde a sua linearidade temporal e não consegue dizer das transformações que estão
acontecendo com o jovem. Segundo o autor: “Tais ficções que o adolescente constrói para sair
desse túnel são tentativas de traduzir em palavras o novo que arrebenta” (2011, p. 35). Muitas
vezes, o ato para o adolescente, tanto como passagem ao ato ou como acting out, se “mostra
mais autêntico do que as palavras” (Lacadée, 2007, p.n.d.). É assim que os jovens, tomados
pela impossibilidade de traduzir em significantes o que acontece com os seus corpos, podem
atuar no ciberespaço:
53
3.2. A adolescência e a vida em jogo: a aposta de Pascal
Os adolescentes da atualidade são navegantes de outros mares, pois viajam pelas águas
do ciberespaço. Por vezes, eles prescindem até mesmo de viver para navegar, abrindo mão do
gozo da vida, de uma parte de “seu corpo e de sua alma”, como diz o poeta Fernando Pessoa
(2016, p. 7).
Para prosseguirmos nesta reflexão, lançaremos mão de uma nova perspectiva sobre as
condutas de risco: a aposta na ex-sistência do Outro. Tal abordagem será feita a partir da
leitura lacaniana do argumento filosófico que ficou conhecido como “aposta de Pascal”,
presente no Seminário 16, de um Outro ao outro (1968-1969/2008).
Ao longo de toda a sua obra, Lacan buscou dialogar com autores de diversos campos
do saber. Um dos pensadores privilegiados em seus textos, Pascal foi sempre bastante citado
em seus seminários, tanto anteriores quanto posteriores ao livro 16. As referências às suas
contribuições científicas ou filosóficas surgem já no Seminário 2, O eu na teoria de Freud e
na técnica da psicanálise (1954-1955/1995). É o caso da questão do silêncio dos espaços
infinitos12, tema desenvolvido por Pascal e citado em dois momentos por Lacan.
No seminário seguinte, sobre As psicoses (1955-1956/1981), as afirmações lacanianas
de que há uma loucura necessária, e de que não ser louco da loucura de todo mundo é ser
louco de outra forma, são uma clara referências a Pascal13(p. 26), assim como também no
Seminário 6, O desejo e sua interpretação (1958-1959/2016).
As referências continuam no Seminário 9, A identificação (1961-1962/2003) e no
Seminário 17, O avesso da psicanálise (1969-1970/1998), bem como no Seminário 12,
Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965/2006), em que Pascal é citado em relação
ao infinito e à topologia. No Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante
(1971/2009), Lacan relaciona ao desejo as experiências sobre o vácuo feitas por Pascal. Sua
teoria dos jogos é citada no Seminário 19, ...ou pior (1971-1972/2012).
12
Pensamento número 206, “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora” (Pascal, 1984, p. 91).
13
A frase original é encontrada nos Pensamentos, sob o número 414 e assim escrita: “Os homens são tão
necessariamente loucos que seria ser louco (outro tipo de loucura) não ser louco”. (Pascal, 1984, p.134).
54
Ainda nos seminários de Lacan, Pascal é também mencionado ao abordar os temas da
transferência, no livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-1954/2009), da relação da
linguagem e o Outro, nos livros 14, 17 e 18, respectivamente A lógica da fantasia (1966-
1967/2008), O avesso da psicanálise (1969-1970/1998) e De um discurso que não fosse
semblante (1971/2009), entre outros.
A passagem conhecida como “aposta de Pascal” consiste em anotações feitas por
Pascal14 para um grande livro que, em virtude de sua morte, não pôde ser concluído. Foram os
filósofos e religiosos de Port Royal que fizeram a edição da publicação, a partir dos escritos
encontrados depois da morte do autor (Lacan, 1968-1969/2008). Nesta publicação, encontra-
se o aforismo de número 233, sob o título “Infinito”, conhecido posteriormente como “aposta
de Pascal”, transcrito a seguir:
Deus existe ou não existe? Para quê lado nos inclinaremos? A razão não pode determinar:
há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou
coroa. Em que apostareis? Pela razão, não podereis atingir nem uma, nem outra; Não acuseis,
pois, de falsidade, os que fizeram sua escolha, já que nada sabeis – “Não; acusá-los-ei, porém
de terem feito, não essa escolha, mas uma escolha; porque, embora o que toma a cruz e o outro
cometam igual erro, ambos estão em erro; o certo é não apostar.”
- Sim: mas é preciso apostar. Não é coisa que dependa da vontade, já estamos metidos
nisso. Qual escolhereis então? Vejamos. Já que é preciso escolher, vejamos o que menos vos
interessa. Tende duas coisas a perder: a verdade e o bem; e duas coisas a empenhar: vossa
razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa beatitude; e vossa natureza tem que fugir
de duas coisas: o erro e a miséria. Vossa razão não se sentirá mais atingida por terdes
escolhido uma coisa de preferência a outra, já que é preciso necessariamente escolher. Eis um
ponto liquidado.
Mas, vossa beatitude? Pesemos o ganho e a perda escolhendo a cruz, que é Deus.
Consideremos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, não perdereis
nada. Apostai, pois, que ele existe, sem hesitar – “Isso é admirável. Sim, é preciso apostar;
mas talvez eu aposte demais” – vejamos. Já que o acaso entra por igual no ganho e na perda,
se tivésseis apenas duas vidas por uma, podereis ainda apostar; mas se houvesse três a ganhar,
seria preciso jogar (já que sois obrigados a jogar), e sereis imprudente, quando forçado a jogar,
se não arriscásseis vossa vida para ganhar três, num jogo em que o acaso entra por igual no
ganho e na perda. Mas há uma eternidade de vida e felicidade. E, sendo assim, mesmo que
houvesse uma infinidade de probabilidades, das quais uma somente a vosso favor, teríeis ainda
motivo para apostar um para ter dois; e procederíeis sem tino se, obrigado a jogar, e havendo
uma infinidade de vida infinitamente feliz a ganhar, recusásseis jogar uma vida contra três
num jogo em que numa infinidade de acasos, há um vosso a favor. Ora, há aqui uma
infinidade de vida infinitamente feliz a ganhar e uma probabilidade de perda, e o que jogais é
finito. Isso exclui qualquer escolha: sempre que temos o infinito, e que não há uma infinidade
de probabilidades de perda contra a de ganho, ao há que hesitar, é preciso dar tudo. E assim,
quando se é forçado a jogar, é preciso renunciar à razão para guardar a vida, em vez de arriscá-
la pelo ganho infinito prestes a sobrevir quanto a perda do nada.
14
Apresentamos uma breve biografia do filósofo na seção apêndice desta dissertação.
55
E assim, a nossa proposição tem uma força infinita, quando há o finito a arriscar num jogo
onde há iguais probabilidades de ganho e de perda, e o infinito a ganhar. “Isso é demonstrável;
e se os homens são capazes de alguma verdade, essa é uma verdade”. (Pascal, 1988, pp. 95-
96)
1. Se você acreditar em Deus e ele existir, terá uma perda finita, dada pela vida pautada
segundo certo conjunto de crenças e valores, e um ganho infinito, as “vidas infinitamente
felizes”;
2. Se você acreditar em Deus e ele não existir, terá uma perda finita, a da vida presente, já
que não há um depois a se perder, perde-se um nada;
3. Se você não acreditar em Deus e ele de fato não existir, terá um ganho finito, da vida
vivida conforme a suas próprias regras, mas que é finita;
4. Se você não acreditar em Deus e ele existir, terá a perda infinita, das vidas infinitamente
felizes que Deus representa.
Pascal indica que não apostar não seria uma opção, pois a aposta é necessária. Um
argumento bastante semelhante já fora apresentado por Sócrates em sua defesa, em 399 a.C.
Diante da sentença já proferida de sua morte e do indecidível que há além dela, Sócrates se
pronunciou:
Morrer é uma destas duas coisas: ou a morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação
de coisa nenhuma; ou, então, como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração
da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um
sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte! [...]
Logo, se a morte é isso, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do
tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a
mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que
maior bem haveria que esse, senhores juízes? (Pessanha citando Platão, 1991, p.26 e 27)
Sobre o indecidível do além da vida ou do além da morte, Pascal propõe o que ele chama
de aposta. Para avançarmos na questão, tomaremos de empréstimo da filosofia a seguinte
definição de aposta: “convenção aleatória, pela qual, duas pessoas, de opiniões opostas,
contraem uma obrigação contratual para com aquela da qual o acontecimento der razão”
56
(Lalande, 1999, p. 79). A proposição de Pascal, se for considerada segundo essa conceituação,
possui um caráter frágil, uma vez que precisaríamos de dois adversários. O Outro enigmático
que sustenta a aposta deveria estar no lugar de A ou de A barrado, só que Deus não participa
da aposta. Assim, ela comporta, em si, um paradoxo, em virtude do valor apostado se
confundir com a existência do parceiro. Na mesa não está o homem, mas o sujeito definido
pela aposta (Lacan, 1968-1969/2008).
O Deus da aposta, para Pascal, é o Deus da revelação, não é o Deus da construção
intelectual ou o Deus da adequação do pensamento do procedimento cartesiano. Assim, crer
em sua existência exige um ato de fé (Gueguen, 2007). Pascal afirma que, se não se pode
conhecer Deus, nós temos que fazer uma aposta, uma escolha forçada. Não apostar na
existência de Deus como Outro ainda se constitui uma aposta (Gueguen, 2007).
Para Lacan, o que se aposta no início está perdido. O autor destaca que a experiência
analítica confronta-nos com um efeito simbólico de perda (1968-1969/2008). Esse efeito
simbólico inscreve-se no vazio que se produz entre o corpo e seu gozo, resultado da
incidência do significante sobre o organismo. Assim, há uma relação entre o efeito da perda, o
objeto perdido, o “a”, e o lugar chamado Outro, sem o qual o objeto não se produz. Lacan
(1968-1969/2008) esclarece que essa perda relaciona-se com o desejo, o que pode ser visto na
paixão pelo jogo.
Para tratar do gozo a que se renuncia na aposta, Lacan (1968-1969/2008) põe em
evidência que a própria vida que é posta em jogo é reduzida a um elemento de valor. Ele
acrescenta que é em torno do mais-de-gozar que gira a produção do objeto a. “O mais-de-
gozar é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao
objeto a” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 19).
O sujeito, ao apostar, decide se vale a pena ou não arriscar a própria vida, consentindo
com a renúncia ao gozo da vida que se tem (Coelho dos Santos, 2008). No campo do Outro há
uma promessa, e caso acreditemos e vivamos conforme essa crença, sacrificando o mais-de-
gozar, talvez possamos obter de um Deus que, não sabemos se existe e nem o que é, uma
infinidade (numérica) de vidas infinitamente felizes:
Vamos partir do Outro (A), como campo do discurso. Digamos que um sujeito aposta que
Deus existe. Se apontarmos que A existe, ou, se pretendemos que ele não existe, temos uma
alternativa. Se A existe, a vida, tal como ela é, se reduz a zero e torna-se apenas uma variável
na equação. Quando arriscamos nossa vida, começamos a perdê-la tal como ela é. É disso que
se trata na renúncia ao gozo. Do gesto de tratar a própria vida como um capital que se pode
acumular, investir e especular, visando ganhar outra coisa, uma coisa a mais. (Coelho dos
Santos, 2008, p. 10)
57
Ao contrário, se há uma aposta na existência divina, e se essa existência não se
confirmar, não se perderá nada. Para Lacan (1968-1969/2008), Pascal desconfia que um nada
não é um nada, mas alguma coisa que pode ser posta na balança.
A aposta é feita sobre um discurso ligado a Deus e sobre a promessa de vidas
infinitamente felizes. Lacan afirma que o discurso de Pascal indica claramente essa promessa
de “uma infinidade numérica” de vidas (Lacan, 1968-1969/2008, p. 141).
O sujeito investe o que dispõe no jogo, faz a aposta. Para Lacan (1968-1969/2008), o
que está em causa é, por um lado, o mais enigmático, e que coloca todos no campo de um
discurso qualquer, o a, e por outro, a infinidade de vidas infinitamente felizes, tratada por ele,
como uma série crescente e sob o sinal ∞.
O a é trabalhado por Lacan a partir da série Fibonacci e com o objetivo de “indicar a
repetição como um fenômeno no qual o repetido consiste em um série de números que
obedece a uma certa regra de formação” (Benites, 2008,p. 2). Para compreender melhor o uso
que Lacan faz dessa série, faz-se necessário um breve apontamento sobre ela.
Segundo Ramos (2013), a série ou sequência de Fibonacci é o nome dado por Edouard
Lucas para a sequência de números proposta por Leonardo Fibonacci para solucionar um dado
problema matemático. O problema em questão é apresentado no capítulo 12 do livro
Liberabaci:
Um homem pôs um par de filhotes de coelhos num lugar cercado de ambos os lados.
Quantos pares de coelhos podem ser gerados a partir desse par em um ano se, supostamente,
todo mês cada par dá à luz a um novo par, que é fértil a partir do segundo mês? (Ramos
citando Fibonacci, 2013, p. 5)
Para a solução desse problema, considerando que não haveria morte e nem migração
de coelhos, Ramos (2013) indica o seguinte raciocínio:
58
- No 5° mês, o par inicial gera o seu terceiro par de filhotes; o segundo par de adultos
gera o seu primeiro par de filhotes e o par de filhotes gerado no mês anterior, agora
adulto. Logo, temos cinco pares de coelhos (três pares de adultos mais dois pares de
filhotes), etc. (Ramos, 2013, p. 6).
Primeiro 0 1 1
Segundo 1 0 1
Terceiro 1 1 2
Quarto 2 1 3
Quinto 3 2 5
Sexto 5 3 8
Sétimo 8 5 13
Oitavo 13 8 21
Nono 21 13 34
Décimo 34 21 55
Décimo primeiro 55 34 89
Décimo segundo 89 55 144
Tabela 1: Número de coelhos em relação ao tempo (Fonte: Ramos, 2013).
fn = fn - 1 + fn + 2; com n > 2 e f1 = f2 = 1
Observa-se, nessa progressão, certa regra de formação que Lacan vai utilizar para
tratar da relação entre o a e o 1. Ele começa pela série crescente, iniciada por 1 e seguida de 1
+ a. Cada termo dessa série é formado pela soma dos dois termos que o antecedem (Lacan,
1968-1969/2008).
Diante da questão de saber como calcular o que se perde quando o 1 inaugural é
postulado arbitrariamente e reduzido à função de marca, Lacan (1968-1969/2008) afirma que
por isso escolhe, não arbitrariamente, o a. Para Lacan, a perda que constitui o mais-de-gozar é
59
“efeito da postulação do traço unário” (1968-1969/2008, p. 137). Lefort e Lefort (2017),
afirmam que é com o 1 que Lacan inicia a série, o Um inaugural do traço unário, sem
implicação com o gozo, mas em uma identificação original e cuja perda Lacan marcou com a
letra a e nomeou como mais-de-gozar. Ainda segundo os autores, o mais-de-gozar estaria
relacionado com a perda de gozo e com a divisão do sujeito.
Lacan toma, então, a série Fibonacci como uma “possível matriz”. Recorre a ela para
indicar um possível “fenômeno de repetição”, no qual o que se repete consiste em uma “série
de números que obedece a certa regra de formação e vai em direção a um limite calculável,
sempre o mesmo”: a raiz de 5 mais 1 sobre 2. [...] “Com a série Fibonacci, Lacan dá ao objeto
a um valor calculável, repetitivo que se aproxima de um limite.” (Maia, 2007, p. 4-5)
Lacan se valeu do número de ouro, que na tradição chamamos de phi, para dizer que aí se
trata do falo em função, o operador estrutural fundamental. O falo = razão áurea é uma medida
que se encontra em qualquer coisa da natureza. A natureza é fascinada pelo número de ouro, e
revela sua submissão à razão áurea da mesma forma que todo ser falante está submetido à
medida fálica. (Benites, 2008, p. 3)
15
Esse número desperta grande interesse, tendo sido utilizado tanto por Pitágoras, Euclides, Fibonacci e Kepler,
quanto por biólogos, arquitetos, artistas e vários profissionais que buscam harmonia e beleza. O número áureo
está presente, enquanto relação matemática, na natureza, nos homens e no próprio cosmos (Ramos, 2013).
60
Nesta sondagem da aposta de Pascal, Lacan (1968-1969/2008) considera como o mais
importante a abordagem do a em sua infinitude, análoga às relações do 1 com o < 1 + a >. Ou
seja, “esse a que é o único dentro do qual se pode apreender o que ocorre com o gozo em
relação ao que é criado pelo aparecimento de uma perda” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 140).
Lacan (1968-1969/2008) propõe as seguintes matrizes para abordar a aposta de Pascal:
Primeira matriz:
61
contra o que pensa. Nessa configuração, mesmo que Deus exista, ele pode querer apostar
contra, escolhendo o a e perdendo o infinito.< a,-∞ > (Lacan, 1968-1969/2008).
Segunda matriz:
62
Nessa ficção o a é reduzido a zero, pois só se pode perder o zero, já que os prazeres da
vida não são pesados diante da infinitude que se abre à frente. Mas se no jogo há a
possibilidade de comprometer algo que pode ser perdido, é porque a perda já está nele. E não
se pode anular a aposta que já foi feita, pois, o “eu já está comprometido nela” (Lacan, 1968-
1969/2008, p. 141). Para Coelho dos Santos (2008), ao arriscarmos nossa vida, já começamos
a perdê-la tal como ela é.
Pascal atesta que a misericórdia de Deus é maior que a sua justiça, uma vez que ele
extrai, daqueles que apostaram contra a sua existência, apenas alguns para lançar no inferno,
ao invés de jogar todos. Para Lacan, esse inferno nunca foi nada que pudesse ter sido
imaginado fora do que já nos acontece diariamente:
Quero dizer que no inferno nós já estamos. Essa necessidade que nos abarca, de só
podermos realizar a solidez do a num horizonte cujo limite seria preciso interrogar, e por
medição infinitamente repetida do corte do a, será que isso não basta por si só, para desanimar
os corajosos? Mas veja, não temos escolha, nosso desejo é o desejo do Outro. (Lacan, 1968-
1969/2008, p. 148)
A escolha das possibilidades que se oferecem ao apostador não inclui nenhuma linha
pertinente ao Outro, uma vez que não podemos garantir a sua existência. A escolha então se
refere ao que a sua existência promete ou a sua inexistência permite: “Nesse caso, é plausível
– se tivermos espírito matemático, é claro – apostar, e apostar no sentido proposto por
Pascal.” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 167).
Lacan ressalta que o objeto a não tem valor de uso ou de troca, mas ele anima tudo o
que está em jogo na relação do homem com a fala. Existe uma dimensão na aposta que se
relaciona com a estrutura do desejo (Lacan, 1968-1969/2008).
Lacan relembra ainda que, para Hegel, não pode haver outro jogo senão o de arriscar
tudo por tudo, sob o nome de luta de morte por puro prestígio, e afirma que a psicanálise
permite retificar essa afirmação (Lacan, 1968-1969/2008). Para ele “trata-se muito mais do
que a vida” (p. 175), uma vida de que sabemos tão pouco que não nos agarramos tanto a ela.
Lacan acrescenta que a vida só faz sentido quando o objeto a é colocado em jogo.
Essas considerações sobre a aposta de Pascal nos levam a pensar na função das
condutas de risco para os adolescentes. Será que haveria, nessa colocação da vida em risco, a
tentativa de colocar o corpo, como objeto a, em jogo?
Para Lacan, a moderação é a condição do pensamento. A partir do momento em que
eu penso alguma coisa, isso equivale a chamar essa coisa de universo, de Um. O objeto a faz
63
oposição ao fechamento desse universo. Quando o objeto a sou eu que me represento, “sou a
a mais” (1968-1969/2008, p. 175). O objeto a faz exceção ao Um. Lacan define o próprio
pensamento como “a sombra da função do objeto a” (p. 179). Aqui Lacan articula o saber
com o objeto a. O saber é completamente opaco, pois é singular, na medida em que se
relaciona com o objeto a. “O saber, como perdido, está na origem do que aparece do desejo
em sua articulação com o discurso” (p. 197).
Há uma proximidade peculiar do objeto a no tempo da adolescência. Como já foi
citado anteriormente, a puberdade coloca em questão um não saber sobre o sexo, que conduz
o jovem a uma situação que evidencia seu desamparo estrutural. O adolescente vive na pele o
paradoxo de um corpo que se torna apto ao ato sexual concomitantemente a um não saber
sobre a relação sexual.
O corpo que se modifica pode ser percebido pelo adolescente com estranheza, é
impossível encontrar palavras que expliquem essa metamorfose. A língua vacila e o
intraduzível o coloca frente a frente com um impasse, com um sentimento de vazio matizado
de vergonha (Lacadée, 2011, p 28).
Essa metamorfose carrega consigo a emergência da libido no corpo, mas não carrega
consigo uma garantia de satisfação, ao contrário, ela convoca um gozo que excede o sujeito,
relacionado a um supereu impossível de satisfazer: “Trata-se, portanto, da maturação de um
vazio, que se presentifica para o sujeito na puberdade.” (Viola, 2017, p. 247).
Lacan aponta a existência de um vínculo indissolúvel entre o funcionamento do
conceito e a maturação do objeto a na puberdade (1962-1963/2005, p. 282). Viola (2017)
acrescenta que é na adolescência que a condição de não saber se impõe de maneira mais
radical e a emergência de um vazio pode ser associada a uma capacidade de pensamento. A
autora indica uma interpelação entre o saber e o corpo no contexto em que a angústia, como o
afeto que não engana, sinaliza um objeto que é uma extração corpórea, e que remete à falta
radical. A certeza da entrada do objeto a na cena incita a angústia e pode ser tomada como
uma vertente do saber, saber que se sabe no corpo (Viola, 2017).
O objeto a está relacionado a uma perda da qual o sujeito se constitui: É um “objeto
perdido nos diferentes níveis da experiência corporal em que se produz seu corte, é ela que
constitui o suporte, o substrato autêntico, de toda e qualquer função da causa” (Lacan, 1962-
1963/2005, p. 237).
Enquanto o corpo imaginário é o corpo do Um, totalitário, o objeto a é aquele que
marca o corpo com a falta, sendo esse objeto o resto da ligação do sujeito com o campo do
64
Outro, campo designado por Lacan como um lugar (Lacan, 1968-1969/2008). Em seu
Seminário 20, Mais ainda, Lacan esclarece:
Primeiro, o a, que chamo de objeto, mas que de qualquer modo não é nada mais que uma
letra. Depois o A, que faço funcionar no que, pela proposição, não tomou fórmula senão
escrita, e que produziu a lógica-matemática. Designo com ele o que, de começo é um lugar. Eu
disse – o lugar do Outro. (Lacan, 1972-1973/2008, p. 34)
Assim, Lacan diferencia o A, lugar do Outro, do a, que marca o corpo com a falta e
deixa no campo do Outro um furo, como esclarece a seguir:
Por outro lado, eu a marquei duplicando-o com esse S que aqui quer dizer significante,
significante do A no que ele é barrado – S(A) barrado. Com isso juntei uma dimensão a esse
lugar do A, mostrando que, como lugar, ele não se aguenta, que ali há uma falha, um furo,
uma perda. O objeto a vem funcionar em relação a essa perda. (Lacan, 1972-1973/2008, p. 34)
Qual o preço que o adolescente terá de pagar para ultrapassar essa etapa de riscos [...].
Como o adolescente lidará com isso? Qual será a sua margem de manobra entre os
sobressaltos que surgem e a herança de sua infância? Arriscará toda a sua vida ou saberá
consentir com o sacrifício de uma parte do gozo que aí se mostra em jogo? (Lacadée, 2011, p.
28).
65
Alguns adolescentes parecem sacrificar algo de suas vidas, ou parte do próprio gozo,
enquanto outros colocam toda a vida em risco. Miller (2003), em seu texto “Sobre a honra e a
vergonha”, coloca que a aposta de Pascal consiste em um esforço para sustentar a ex-sistência
do Outro. O sujeito se utiliza de um ardil, de uma agitação, a fim de formular que há um Deus
com o qual vale a pena apostar todo o mais-de-gozar, o a. Nessa aposta, é preciso pôr algo de
si. Em relação aos nossos jovens, estariam eles apostando na ex-sistência do Outro, cuja
inconsistência se apresenta tão desvelada na contemporaneidade?
Lacan, em seu Seminário 22, R.S.I. (1974-1975/Inédito), ao tratar dos nós
borromeanos, aborda a ex-sistência e a caracteriza como aquilo “em que cada um dos três
termos RSI, faz buraco” (p. 12). Nesse aspecto, o autor considera a ex-sistência condicionada
ao buraco, sem o qual não é possível que algo se ate. Guerra (2013) esclarece que a ex-
sistência pode ser considerada como um efeito provocado pelo encontro de um registro sobre
o outro, cuja configuração é a de um espaço que, ao mesmo tempo que está fora, está dentro.
Para Miller (2002), o furo, a ex-sistência e a consistência se encontram entrelaçados
no último ensino de Lacan e nas três argolas, sendo o furo o que caracteriza o simbólico, a ex-
sistência ligada ao traço de real e a consistência aquilo em que se reconhece o imaginário.
É ao se apagar todo o sentido que se define a ex-sistência (Lacan, 1974-1975/Inédito).
O significante provoca o desvanecimento de um sentido e pode deixar um real ex-sistente que
se sustenta, “a ex-sistência é um resultado, mas um resultado que permanece, no exato
momento em que apagamos a operação da qual ele resulta”, afirma Miller (2002, p. 16).
Miller desenvolve a ideia de que a ex-sistência foi concebida a partir dos tempos do
matema S(A) barrado. Segundo o que ele propõe, há o Outro no primeiro tempo do matema,
mas no segundo tempo o sujeito experimenta que o Outro não pode se sustentar, que não é
substância e que, sendo inconsistente, se desmorona e se apaga, inscrevendo-se como A
barrado. No último tempo, “no desastre do Outro, subsiste um significante que não tem como
inscrever-se no lugar precedentemente designado” (Miller, 2002, p. 11). O matema
reestruturado por Miller introduz o significante ex-sistência a partir do desmoronamento do
Outro para assentar o que escapa desse “desastre obscuro.” (2002, p. 11).
Talvez os adolescentes da nossa época estejam vivendo esse desastre obscuro,
apontado por Miller, de forma mais radical. Uma vez que a adolescência, por si mesma,
carrega “uma pane do Outro” (Rassial, 1999, p. 90), a época atual corrobora a intensificação
dessa pane, à medida que desvela a inconsistência do Outro. Relembrando Freud (1905/2016),
a tarefa de se separar da autoridade dos pais é ao mesmo tempo importante e dolorosa. Em
66
termos lacanianos, o adolescente se vê às voltas com a falta de respostas do Outro para
aplacar o seu mal-estar. Seu sofrimento é intraduzível: “Ele é tomado pela nostalgia do gozo
que ficou ligado ao lugar do Outro, assim como pelo novo que vê surgir em si mesmo,
remetendo-o, diversas vezes a um real insuportável [...]” (Lacadée, 2011, p. 35).
Laurent e Miller defendem a ideia de que vivemos numa época em que o “Outro não
existe” (1998), tendo em vista não dispormos mais da crença em ideais que possam nos
orientar. Se anteriormente o adolescente desligava-se da autoridade dos pais e buscava novas
referências no campo social, na contemporaneidade a questão da autoridade encontra-se
deslocada, porque os pais não mais ocupam esse lugar (Lacadée, 2011).
Se os ritos das sociedades tradicionais tinham um caráter simbólico e implicavam o
sacrifício de uma parte de si para completar o Outro, na atualidade essa oferta pode ocorrer
para sustentar, não a existência, mas, a ex-sistência do Outro, como assinalou Miller (2005)
em sua leitura da aposta de Pascal.
Para Viola (2017), é possível observar o caráter sacrificial de alguns atos dos
adolescentes, como as automutilações, que, mesmo que tragam certo apaziguamento
momentâneo da angústia, não a aplacam definitivamente, como mostram as compulsões
desencadeadas por tais atos. Essas modalidades de sacrifício não fazem o balizamento do
Outro, ou seja, não se constituem como ritos simbólicos que poderiam conferir algum
tratamento do gozo.
Nas vivências dos jovens nas redes sociais podemos encontrar novos modos de colocar
a vida em risco. Recentemente, o “jogo” desafio, conhecido como “Baleia Azul”, mostrou a
condição de vulnerabilidade em que alguns jovens se encontram em suas interações virtuais.
Em casos extremos de condutas de risco, a escuta de adolescentes nos mostrou a
precariedade do Outro para esses jovens. A inconsistência do Outro, desvelada desde a mais
tenra infância, deixa os adolescentes mais expostos ao desamparo estrutural. Sem encontrar
apoio no campo social, arriscar a própria vida pode parecer tentador para o adolescente como
vislumbre de uma possível salvação futura. Abrir mão da vida não piora o inferno que já
pensam habitar.
Como apontou Lacan, a perda já está lá e a aposta pode trazer consigo algum ganho,
talvez não só a existência de vidas infinitamente felizes, mas um Outro que ex-sista, como
será comentado a seguir.
67
3.2.1 A inconsistência que permite a aposta
O Outro de Pascal é inconsistente: ele está em todo lugar e em lugar nenhum e é por
ele não existir que deve ser objeto da aposta. É a aposta que faz existir o Outro, e o não saber
é o ato do sujeito, a sua crença (Gueguen, 2007). Lacan, a partir do Seminário de um Outro ao
outro (1968-1969/2008), introduz a noção de inconsistência do Outro, em substituição ao
termo incompletude.
A incompletude do Outro é abordada desde O desejo e sua interpretação (1958-
1959/2016), em que Lacan afirma que “Em A – que é não um ser, mas o lugar da fala, o lugar
onde repousa, sob uma forma envolvida, o conjunto do sistema dos significantes, ou seja de
uma linguagem – falta alguma coisa. Essa alguma coisa que falta só pode ser um significante
[e completa] não há Outro do Outro.” (p. 322).
Em virtude dessa incompletude, o sujeito não encontra no Outro um significante que
lhe responda quem ele é (Lacan, 1958-1959/2016). Lacan diz que essa é uma verdade sem
esperança, encontrada no nível do inconsciente e sem rosto, uma verdade fechada e dobrável
em todos os sentidos e que sabemos disso: “uma verdade sem verdade” (p. 322).
No texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano
(1960/1998), Lacan explica o aforismo “não existe o Outro do Outro”, fazendo-o equivaler à
ideia da inexistência da metalinguagem. Ali retoma a concepção de que o Outro é o lugar do
significante e de que “qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão sua
própria enunciação, pois lhe é inútil procurar por esta num outro significante, que de modo
algum pode aparecer fora desse lugar.” (p. 827).
Sobre a relação do sujeito com o significante, aponta: “Se há uma formulação que
tenho repetido com insistência, ultimamente, é aquela que enraíza a determinação do sujeito
no fato de um significante o representar para outro significante.” (Lacan, 1968-1969/2008, p.
48).
Esse enunciado carrega em si outras implicações. Lacan se diz surpreendido por
ninguém ter observado que um “significante não pode representar a si mesmo” (1968-
1969/2008, p. 20) e relaciona esse “si mesmo” do significante a algo de opaco, uma vez que
“ninguém saberá algo do significante, exceto outro significante.” (p. 21). O sujeito se apaga
no mesmo momento em que é produzido e seja qual for a maneira que produza outro sujeito,
isso não ocorre sem que na sua identidade ocorra uma perda, apontada por Lacan como o
objeto a (Lacan, 1968-1969/2008).
68
Como apontam Rodrigues e Caldas (2012), nem tudo é significante. “Há, pois, o
objeto a, cuja função essencial Lacan faz questão de situar, recorrendo ao que há de inaugural
ao discurso de Marx: o que nomeia mais-valia” (p. 6). A mais valia, decifrada por Marx, é o
que representa a brecha produzida entre o sujeito do valor de troca e o valor uso, sendo
considerada por Lacan como uma perda a partir da qual o sujeito, por não ser mais idêntico a
si mesmo, não goza mais. Essa alguma coisa que se perde é o mais-de-gozar (Lacan, 1968-
1969/2008).
O mais-de-gozar é uma noção central no pensamento de Lacan: “Ele é estritamente
correlato à entrada em jogo do que determina, a partir de então, tudo o que acontece com o
pensamento” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 21). Pode-se dizer, conforme indicam Rodrigues e
Caldas (2012), que o mais de gozar é o operador que permite ir além do significante, uma vez
que a sua presença impossibilita apreender o sujeito como tal, mesmo que causado pela
relação entre significantes.
Lacan (1968-1969/2008) aponta que não há um fechamento do discurso e nem por isso
ele deve ser considerado como impossível. O discurso analítico, ao contrário do discurso
matemático que pretende “tamponar, elidir, recoser, suturar a todo instante a questão do
desejo” (p. 47), procura dar presença à função do sujeito, num movimento invertido ao
discurso lógico para se ater ao que é a falha.
A falha, segundo Lacan, não pode ser suprimida a não ser por um artifício, e essa
operação deve ser indicada quando a falta é apontada e incide sobre ela um efeito de
significação que, ao ser expressado, não poderia ser, por definição, um significante. É para
indicar essa falta que ele escreve o S(A) barrado, que vem representar uma falta no
significante.
Avançar na interpretação do campo do Outro como tal possibilita que se perceba a sua
falha numa série de níveis diferentes (Lacan, 1968-1969/2008). Lacan recorre à lógica-
matemática, através da teoria dos conjuntos, para tratar da relação do sujeito com o
significante e demonstrar a “radicalidade da inconsistência do Outro” (Rodrigues & Caldas,
2012).
O uso lacaniano da lógica matemática é possível, uma vez que ela se enquadra na
premissa de poder reduzir alguns de seus elementos de linguagem a partir da substituição por
simples letras (Rodrigues & Caldas, 2012). Lacan (1968-1969/2008) executa essa redução
considerando a conexão de um significante 1 para um significante 2 como a mais simples que
se pode formular e como aquela que não deixa “perder de vista, nem por um instante, a
69
dependência do sujeito” (1968-1969/2008, p. 48). Inserido nessa lógica, Lacan formaliza o S
como significante e o A como outro significante, compondo o par assim ordenado: S→A
Lacan esclarece que é porque existe uma demanda endereçada ao Outro que ele
mesmo já contém aquilo ao qual a própria demanda se articula. Tal assertiva lacaniana suscita
a ideia de existir um diálogo possível, ideia rechaçada por ele próprio: “É na medida em que o
campo do Outro não é consistente que a enunciação assume a função de demanda, e isso antes
mesmo que aí venha instalar seja o que for que carnalmente possa responder a ela” (Lacan,
1958-1959/2008, p. 82).
É importante mencionar que, para Lacan, o A que figura no par ordenado pode ser
considerado o mesmo que designa o conjunto. Se no conjunto houver uma substituição do A
pelo que ele é teremos uma repetição infinita de Ss que são A, conforme ilustrado abaixo:
S→A
S → S→A
E assim, sucessivamente:
S →S → S → A
70
A falha do grande A é decorrente de não se saber o que ele contém, além do seu
próprio significante. Essa é uma questão decisiva em relação à falha do saber, já que o lugar a
partir do qual o sujeito garantiria-se, ou seja, o lugar da verdade, é um lugar vazado (Lacan,
1968-1969/2008).Perante esse lugar vazado, o sujeito se vê diante de uma escolha forçada: “é
preciso apostar”, conforme Pascal nos indicou. Nessa aposta forçada, o sujeito, a partir de um
lugar no campo do Outro conferido na operação de alienação (Lacan, 1964/1985), pode se
separar ao custo de uma perda. O que se perde na operação de separação é o objeto a, cujo
valor oscila de “um bem valioso” até de “resto a ser jogado fora” (Aranha, 2016, p. 82). A
perda, entretanto, é uma via de mão dupla, porque ao mesmo tempo que instaura o sujeito,
instaura o Outro – Outro inconsistente desde sempre, como já foi apontado. O que resta desse
Outro, conforme destacou Miller (2002), pode ser a sua ex-sistência, isto é, algo que sobra do
seu desmoronamento.
A aposta a que nós estamos submetidos, desde que somos seres falantes, não se
caracteriza essencialmente como uma escolha. “Mas vejam, não temos escolha. Nosso desejo
é o desejo do Outro” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 148). Nesse sentido, podemos considerar
que diante de escolhas do tipo “a bolsa ou a vida”, como no célebre exemplo proposto por
Lacan (1964/1985), ao escolhermos a vida, entregamos a nossa bolsa ao Outro. Assim,
conforme ressalta Fernandes (2015, p.n.d), “Para que o jogo comece, cedemos ao Outro”. O
jogo começa, ou melhor, o caminho para o desejo se abre, quando entregamos a bolsa.
Conforme acentuou Lacan (1968-1969/2008), Pascal se refere a uma infinidade
numérica de vidas. Fernandes (2015), a esse respeito, menciona que a vida não é uma, mas
são várias, e em cada pequeno ato, a cada pequeno lance, ela se renova, é outra vida.
No tempo lógico da adolescência o jovem renova o lance a ser feito na aposta. O
jovem, no jogo da vida, precisa lidar com as tarefas que lhe são impostas: diante da queda das
identificações, assumir uma posição na partilha sexual, assim como encontrar suas saídas
diante do real do sexo e da inconsistência desvelada do Outro contemporâneo. Nesse lance
renovado, o ato pode ser uma escolha que comporta em si uma saída, mesmo que paradoxal,
de apostar na vida.
71
4. COM A PALAVRA, O ADOLESCENTE
16
Laboratório vinculado ao Departamento de Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Minas Gerais.
17
Durante nosso trabalho, ao identificarmos adolescentes que necessitam de atendimento individual, fazemos
seu encaminhamento para o Serviço de Psicologia Aplicada da UFMG.
18
Educador e psicanalista vienense que se ocupou de trabalhar com “jovens-problema”, na Áustria, sendo
considerado como um dos fundadores da educação psicanalítica (Fonte: Wikipédia, 2018).
72
responsabilidade e formular respostas em sua própria língua. Conforme Lacadée, “Aichhorn
orienta suas entrevistas com adolescentes a partir não da verdade, e sim do saber: saber do
real com que o adolescente se liga, aquele que não só determinou sua passagem ao ato, como
o fez sentir-se carente.” (2011, p. 134).
As conversações criam condições para o consentimento do jovem, a partir de um
trabalho de tradução do ato em palavra: “[...] podemos ler as passagens ao ato e os fenômenos
de violência como uma falta de tradução possível em palavras. Onde falta a tradução, surge o
ato como curto-circuito desta.” (Lacadée, 2011, p. 130).
A partir do lugar de não saber, o analista acolhe esse “fora do comum” singular do
adolescente (Lacadée, 2000.). Nas conversações solicita-se aos jovens que falem a partir de
suas vivências, experiências, saberes, procurando escutar o que apresentam de singular. Nesse
espaço, há uma aposta a ser feita e que “tem como princípio abrir possibilidades para
interrogar os discursos já prontos, ou seja, questionar as máximas impostas pela cultura, em
vez de concordar com a nomeação dada pelo Outro” (Miranda et al., 2006, p.n.d.).
Para Lima e Berni (2017), essa abertura dada pelas conversações pode ser capaz de
desfazer significações cristalizadas para que os significantes descolem, deslocando-se na
cadeia para construir novos sentidos. As autoras demarcam ainda que não se busca extinguir o
gozo, mas sim acolhê-lo, de modo que o sujeito possa nomeá-lo de forma própria.
A conversação opera a partir da associação livre coletivizada. Em La pareja y el amor,
Miller (2003b) afirma que “Um significante chama outro significante, e não é tão importante
quem o produz em um dado momento. Se confiamos na cadeia de significantes, vários
participam do mesmo.” (p. 15-16, tradução nossa).
Orientado pela ética do desejo, o dispositivo clínico da conversação tem flexibilidade
para se adequar às especificidades de cada instituição. Os horários dos encontros e a duração
da conversação são definidos com a escola. O número de encontros é pré-determinado pela
equipe de pesquisa, e acertado com a escola. O número limitado de encontros instaura um
limite para a conversação e impede que ela se confunda com a análise. A conversação é
conduzida por um aluno de mestrado ou de doutorado e registrada por um aluno da
graduação. Os grupos são formados por quatro a nove adolescentes, com idades entre 11 e 16
anos. Embora os grupos de alunos sejam sugeridos pela escola, os adolescentes são
convidados a participar, podendo aceitar ou recusar o convite, e podem formar o grupo de
acordo com sua escolha.
73
Nesse espaço da palavra, os adolescentes são questionados, inicialmente, sobre os usos
que fazem das redes sociais, sobre as suas preferências e especificidades. Eles também podem
mostrar esse uso através de seus dispositivos tecnológicos, como os celulares.
No primeiro encontro é estabelecido “um contrato” com os jovens: eles são
esclarecidos sobre o fato de estarem participando de um dispositivo de pesquisa/intervenção e
sobre a metodologia de trabalho. A dinâmica dos encontros é definida de acordo com o que os
adolescentes apresentam como demanda. Nesse formato de trabalho, podem ser utilizados
vídeos, músicas, produções escritas ou quaisquer materiais que precipitem a palavra. Esses
materiais podem ser previamente escolhidos pelo grupo de pesquisa ou pelos adolescentes.
Em alguns grupos, os adolescentes chegam aos encontros agitados, falando todos ao
mesmo tempo, e não se escutam (Lima, 2014). De maneira geral, os adolescentes demonstram
certo estranhamento frente a uma proposta de trabalho bastante incomum dentro da escola.
Alguns interrogam os psicólogos acerca dos motivos que os levam a querer escutar os
adolescentes e a se importarem com eles.
Ao introduzirmos a associação livre na forma coletivizada, os adolescentes passam a
abordar temas que extrapolam a internet e que estão ligados aos impasses comuns da
adolescência em temas como, por exemplo, família, amizade, sexualidade, drogas, relação
professor/aluno, entre outros. O tema das redes sociais pode ser o central ou a porta de acesso
aos conflitos e impasses que eles vivenciam nos demais campos. Acreditamos que os
problemas experimentados pelos adolescentes no uso das redes sociais estão intimamente
relacionados às questões subjetivas e sociais.
Constatamos que não basta propor um trabalho pedagógico sobre o uso das redes
sociais nas escolas para a solução dos conflitos decorrentes da inserção na internet. É preciso
escutar os adolescentes para conhecer as formas de uso e nele implicá-los. Os atos e as
palavras postadas na rede de forma impensada bem como o próprio uso excessivo ou
arriscado da virtualidade podem, em muitos momentos, representar respostas dos sujeitos ao
confronto com o real da puberdade, aos impasses subjetivos e às ofertas da cultura.
Geralmente os adolescentes encaminhados para a conversação são considerados
“problemáticos” por professores e/ou coordenadores. Um dos principais efeitos que a oferta
da palavra tem proporcionado aos jovens é a separação que eles experimentam fazer desses
significantes que os alienam, criando uma abertura para novas identificações que, ao invés de
segregá-los, favorecem a aprendizagem escolar e o laço social.
74
A partir do estabelecimento da transferência, buscamos localizar um ponto de mal-
estar no uso que cada adolescente faz das redes sociais. Acreditamos que essa forma de uso
relaciona-se com o modo de gozo de cada um (Lima et al., 2015). Ainda que a oferta do
espaço para a palavra aconteça em um coletivo, é possível, para cada adolescente, nomear de
forma própria o mal-estar que o aflige no uso das redes sociais, o que não chega sem envolver
os demais aspectos da vida do sujeito. Dessa forma “a conversação, ao dar voz ao sujeito,
pode operar como um lugar de construção de uma resposta singular, uma aposta no desejo”
(Lima et al., 2016, p. 62). Quando isso ocorre, acreditamos que alcançamos algo do singular
no coletivo, sendo este um dos mais importantes efeitos da conversação.
A seguir, destacaremos alguns fragmentos de conversação que causaram esta pesquisa.
19
Foram utilizados nomes fictícios.
75
da escola mostrou o vídeo para a mãe da garota, ela riu. E acrescenta: “A mãe incentivou mais
ainda”.
Em outros encontros surgem relatos de participação de adolescentes em grupos de
desafios na internet envolvendo riscos de morte, ou em práticas de racismo, violências, além
da marcação de encontros pessoais de jovens após contato com usuários de perfis fakes.
Também escutamos garotas que postam fotos sem roupas – os nudes – e entram em contato
com desconhecidos.
Como se pode perceber, os riscos estão muito presentes nas vidas desses adolescentes,
dentro e fora da internet. Com relação às situações de risco, Le Breton (2009) as ressalta por
um traço comum de exposição a uma probabilidade considerável de se machucar ou de morrer
ou que venham a interferir no seu futuro pessoal ou prejudicar a sua saúde.
As condutas de risco adquirem, na psicanálise, o estatuto de ato, podendo surgir tanto
nas redes sociais quanto fora delas. Se a tela do dispositivo tecnológico se interpõe entre o
sujeito e o outro, podendo oferecer certa proteção contra um Outro invasivo ou agressor, as
postagens na rede desencadeiam uma série de efeitos que podem culminar em agressões,
violências e até mesmo morte, fora do ambiente virtual.
Mas, o risco de morte não está apenas fora de casa ou longe da virtualidade dos
dispositivos tecnológicos da imagem. Alguns suicídios são cometidos diante da tela do celular
ou do computador, incitados pelos pares virtuais, na presença do olhar do Outro.
Vivemos em tempos da inconsistência do Outro. A partir dessa perspectiva, os atos
cometidos pelos jovens podem ser pensados como lances renovados na aposta da ex-sistência
do Outro (Lacan, 1968-1969/2008). Essa abordagem permite considerar que se o sujeito
aposta que Deus existe, ou melhor, que o Outro ex-siste, a vida se reduz a zero e ela então
pode entrar na equação, pode ser investida, acumulada, trocada. Ao contrário, se a aposta é
feita na não existência, o campo do discurso não se abre e não se tem a promessa de algo a
mais (Aranha, 2016).
Para que se entre no jogo da vida o sujeito deve aceder ao Outro, e, nessa alienação ao
Outro, algo se perde. A subjetividade depende disso que, de saída, se dá por perdido. É nesse
resto que se situa o que há de mais singular ao sujeito.
Na conversação os adolescentes têm a oportunidade de falar sobre os seus atos,
construindo um sentido para eles. Cada adolescente é convidado a falar sobre o que pensa
sobre eles. Para alguns, trata-se de brincadeira, de pura “zoação”. Para outros, a vida não tem
mesmo sentido, e por isso a colocam em risco. Alguns adolescentes falam sobre o abandono
76
dos pais, sobre a solidão, sobre a importância das amizades e o que fazem por elas. Esses
temas são problematizados, convidando-os à reflexão. São marcadas as diferenças de opinião
no grupo, respeitando-as. O formato de grupo e o tempo limitado para o trabalho marcam
algumas especificidades da conversação, diferenciando-a de uma análise.
Alguns adolescentes nomeiam o ponto de gozo que os coloca em risco: “gosto de
brigar”, “gosto de confusão”, “eu jogo sem parar, é um vício”. A nomeação do gozo permite
dar algum tratamento a ele. A ênfase nas respostas que vinculam o gozo ao laço social é uma
das principais funções desse trabalho, que visa à diminuição da angústia e ao encontro de
saídas mais favoráveis ao sujeito nesse laço.
A seguir, será apresentado um fragmento de caso clínico de uma adolescente,
encaminhada pela escola para o Serviço de Psicologia Aplicada da UFMG, cuja queixa era de
sua participação no desafio da Baleia Azul.
20
Foi utilizado um nome fictício e alguns dados foram omitidos ou alterados para preservar a identidade da
adolescente.
77
A automutilação é hoje impulsionada pelas redes sociais. Jovens se fotografam e
exibem na rede os seus cortes na pele. Muitas vezes, a internet é usada como forma de fazer
um apelo ao Outro, como um pedido de socorro. No caso de Clara, ela faz um apelo à prima
através da internet.
Em outra ocasião, ao retornar de uma “balada” fora do horário combinado, sua mãe
lhe diz que não dá conta dela e ameaça chamar o Conselho Tutelar. Clara comenta que a mãe
não sabe das consequências desse ato: ela pode “perder” a filha.
Clara se relaciona com jovens que estão sempre envolvidos em situações de risco. Seu
círculo de relações é formado, quase na sua totalidade, por jovens cujo traço comum é o
envolvimento com drogas, crimes e outros atos ilícitos. Assim, em seu cotidiano ela está
frequentemente exposta a situações de risco, apesar de parecer não se dar conta disso.
Inicialmente, em sua fala, ela não identifica nenhuma alternativa de vida fora desse contexto
em que vive.
Da mesma forma, seus pais parecem não tomar conhecimento desses riscos,
demonstrando certa apatia e mantendo-se numa posição de impotência, alegando não
conseguir exercer nenhum tipo de “controle” sobre a filha.
Um dia, Clara e sua prima são abordadas por um jovem, que agride e mata a prima
com uma faca na presença de Clara. Em virtude dessa situação, a responsabilidade sobre a
segurança da filha é delegada, pelos pais, a um amigo da garota. Os pais geralmente
transferem para outras pessoas a responsabilidade pelos cuidados dos filhos. Esse jovem, que,
por sua vez, está envolvido em atividades ilícitas, é amigo do irmão de Clara.
Ao serem escutados, os pais falam das próprias dificuldades, relatando o vínculo frágil
que mantêm com os próprios pais, descrevendo as suas histórias de abandono e os
desencontros conjugais.
78
Clara parece não dispor de referenciais simbólicos que possam conferir um tratamento
a esse real que irrompe e que é próprio da adolescência. As automutilações e as passagens ao
ato demonstram as dificuldades na construção de uma resposta à puberdade.
O sujeito se constitui em relação com o Outro, que, segundo Lacan, é o “lugar em que
se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é
o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (Lacan, 1964/1985, p. 200). É do Outro
que o sujeito recebe os significantes com os quais se identificará, localizando-se no campo
social. Entretanto, à medida que a criança se pergunta sobre o desejo do Outro, ou seja,
quando ela se dá conta de que o dito não contempla tudo, mas que deixa restos, é possível a
operação de separação: “Ele me diz isso, mas o que é que ele quer?” (Lacan, 1964/1985, p.
209).
Nos intervalos do discurso surge o enigma do desejo do Outro. Diante desse enigma,
segundo Lacan (1964/1985), o sujeito traz “a resposta da falta antecedente de seu próprio
desaparecimento, que ele vem situar no ponto da falta percebida no Outro” (p. 210). Para esse
desejo, cujo objeto é desconhecido, o sujeito propõe a sua própria perda, uma vez que o seu
desaparecimento é o primeiro objeto que ele pode colocar nessa dialética e se interrogar:
“Pode ele me perder?” (Lacan, 1964/1985, p. 210).
Assim, a fantasia de morte é comum na relação da criança com os seus pais. Essa
fantasia é sustentada pela pergunta sobre o lugar que ela ocupa no desejo dos pais. A
adolescência é marcada pelo encontro do sujeito com o desejo do Outro. Clara, ao promover o
seu desaparecimento enquanto objeto, pôde buscar inscrever uma falta no Outro para
convocar o seu desejo: “A falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à
falta suscitada pelo tempo seguinte” (Lacan, 1964/1985, p. 210).
Na puberdade, o sujeito se depara com a inexistência da relação sexual, ou seja, com o
não saber sobre o que fazer quanto ao sexo, uma vez que não dispomos, como os animais, do
instinto que dita as condutas de forma automática. Então, o jovem se embaraça com a pulsão e
encontra o vazio na relação entre homem e mulher, suscitando o despertar das fantasias
(Lacadée, 2011). Assim, as fantasias de morte, comuns na infância, podem ressurgir nesse
momento. Algumas vezes, os adolescentes se identificam com o vazio descoberto, com o
nada, e podem encontrar no ato “uma saída ao impasse da relação com o Outro, ao que é
experimentado a partir de um impossível de dizer” (Lacadée, 2011-2012, p. 263).
Aquilo que o adolescente não consegue dizer se faz ouvir a partir do ato, no caso de
um ato endereçado, o acting out. Clara diz que comete autolesões toda vez que algo dói. Uma
79
dor que ela não sabe explicar a causa nem descrever sua natureza. A dor provocada pela lesão
na pele circunscreve e localiza, no corpo, esse mal-estar difuso.
A escuta desses adolescentes encaminhados pela escola sugere um núcleo comum, que
vem a ser o envolvimento deles com algum tipo de risco, seja na internet ou fora dela. Por
vezes, o que está em questão é a colocação do corpo em risco, mutilando-o, nele inscrevendo
uma marca e cortando-o, como um objeto que deve ser cedido e ofertado ao olhar do Outro.
Outras vezes o corpo experimenta o limite entre a vida e a morte, sinalizando uma busca por
um limiar simbólico, diante de sua própria inconsistência. Haveria aí também um flerte com o
que há além da vida, e a busca por uma verdadeira vida?
A cultura digital penetrou de tal forma na realidade que nem sempre é possível separar
os dois universos, que se encontram intimamente enodados. Clara relata riscos que vivencia
dentro e fora do ambiente virtual. Na conversação, ao convidarmos os adolescentes a falarem,
a tecerem algo em torno do ato, ocorre algo como um contorno do real.
Os adolescentes hipermodernos são marcados pelo discurso capitalista e pela queda
dos ideais, conforme apontamos. Eles encontram-se à deriva, desprovidos de um Outro capaz
de se posicionar como um filtro de saber, que poderia propor uma simplificação da realidade,
ou seja, de um Outro que venha apresentar-se como um modelo de coerência (Miller, 2011).
Em suas atuações, dentro e fora da internet, os adolescentes fazem um apelo ao Outro.
Se a adolescência implica uma escolha e um preço a pagar, “a escolha do sujeito
implica pagar o preço do desligamento dos pais, assumir que o Outro é barrado, castrado”
(Alberti, 2002, p. n.d). Só há adolescência se essa falta no Outro é “enfrentada” pelo sujeito.
Nesse enfrentamento, não é necessário que exista a forclusão da falta no Outro para que o
sujeito se veja sem recursos. Basta a presença de um Outro que não dá trégua, ou, ao
contrário, a ausência de alguém que possa encarnar esse Outro para aquele sujeito em
particular (Alberti, 2002).
A partir de nossa escuta, percebemos que muitas vezes o jovem se vê diante da
ausência de um adulto que possa encarnar esse Outro para ele. A família nuclear da
modernidade, organizada em torno de papéis bem definidos, cede lugar a outros arranjos, e a
sua desconstrução foi marcada pela pós-modernidade (Lima, 2014).
No cerne dessas mudanças, Lima (2014) cita ainda que nas famílias o planejamento e
o adiamento da gravidez foram possíveis graças ao uso da pílula anticoncepcional, que levou
à diferenciação entre os papéis de mãe e de mulher, e promoveu uma inserção efetiva da
mulher no mercado de trabalho. Assim, a mulher passa a dividir o espaço público com o
80
homem, e o espaço privado, familiar, recinto do cuidado com os filhos, precisa ser
reestruturado:
A saída da mulher do espaço doméstico levou à criação de instituições para acolher as crianças. As
crianças, cada vez mais novas, passam todo o dia nas instituições educacionais, que trabalham
submetidas a uma lógica coletiva homogeneizante de controle e vigilância. (Lima, 2014, p. 125)
82
de um ponto da realidade possível de atingir. Lacan observa que se pudesse haver um
pareamento entre os princípios de realidade e o de prazer, o princípio de realidade poderia se
configurar como um prolongamento do princípio de prazer. Contudo, algo de um mais além
resultaria dessa configuração, algo que “governa, no sentido mais amplo, o conjunto de nossa
relação com o mundo” (Lacan, 1959-1960/2008, p. 31).
O que governa o sujeito não é o ideal, mas o gozo, ligado ao real, à Coisa, o das Ding.
De acordo com Lacan:
O Ding como Fremde, estranho e podendo ser hostil num dado momento, em todo caso
como primeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento do sujeito. É,
sem dúvida alguma um encaminhamento de controle, de referência, em relação a quê? - ao
mundo de seus desejos. (Lacan, 1959-1960/2008, p. 67)
83
aquilo que sobra do último tempo do matema S(A) barrado, a saber, um significante para
sustentar o que escapa ao desastre do desmoronamento do Outro. Após esse naufrágio do
Outro, os jovens podem buscar se agarrar a essa pretensa tábua de salvação.
Durante o tratamento, as condutas de risco praticadas por Clara tornam-se mais sérias,
e seus pais não parecem perceber os perigos que a jovem e a família estão correndo. Contudo,
em uma determinada sessão, Clara esboça um desejo de se salvar. Ela se queixa da situação
em que vive e que passa a perceber como fora de controle, demonstrando angústia. Sustentada
pela transferência, a analista faz uma intervenção que visa implicá-la na situação da qual se
queixa. Ela marca para a Clara que, mesmo nessa situação tão difícil, ela tem opções, e que
ela não precisa passar pelo que está passando. Essa intervenção tem efeitos sobre Clara, que
começa a se posicionar mais claramente diante das pessoas.
Clara parece sair do circuito do risco para demandar socorro. Se há um
ensurdecimento da mensagem que o ato profere, ela passa a acionar a palavra, colocando em
circuito o seu desejo. A jovem passa a demandar de forma clara o cuidado do pai, ao invés de
recorrer ao ato. Ela liga para o pai e diz: “Estou doente, venha para casa e me leve ao
médico”. Clara apresenta essa fala como uma mentira. Contudo, ao proferi-la, ela se inscreveu
no registro de algo que o sujeito revela. A jovem endereça uma clara demanda ao pai e
exprime o seu desejo de sair dessa condição de risco.
O pai responde de forma rápida e contundente ao apelo da filha, situação que a jovem
relata, com júbilo, na análise. Nos atendimentos seguintes, Clara diz que não quer mais se
relacionar com algumas pessoas e demonstra interesse por uma escolha profissional, deixando
entrever uma abertura para o desejo.
Se os jovens renovam os seus lances na aposta da ex-sistência do Outro, será que a
função do analista não deve ser a de apostar na possibilidade do jovem de virar o jogo, que, de
saída, já é perdido, mas que pode ser renovado com uma abertura para o desejo?
Que apostemos!!!!
84
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
85
Para Lacadée (2011), o adolescente constrói ficções como tentativas de traduzir em
palavras esse “novo que arrebenta” (p. 35) e, diante da impossibilidade que encontra, pode
atuar. Dessa forma, a forte presença da internet na vida dos adolescentes, associada a uma
série de condições de nossa época, colocam o ambiente virtual como um campo propício ao
ato, ou seja, às condutas de risco, como forma dos sujeitos se inserirem ou se evadirem da
cena do mundo. A leitura da aposta de Pascal empreendida por Lacan (1968-1969/2008) nos
levou a estabelecer um paralelo entre o risco e a aposta. Lacan defende que o Outro da aposta
é inconsistente, que está em todo lugar e em lugar algum, e que é a crença do sujeito que faz
com que ele exista. A falha do Outro é decorrente de não se saber o que ele contém. Desse
modo, o lugar no qual o sujeito poderia se garantir é vazado. É preciso, pois, apostar, sem
garantias.
O sujeito padece de um desamparo que é resultado da sua condição estrutural. Na
contemporaneidade, esse desamparo é descortinado em função da ascensão do objeto pequeno
a ao zênite social, em substituição aos ideais e em consequência do discurso capitalista
(Lacan, 1970/2003).
O discurso capitalista insere os sujeitos na lógica do hiperconsumo, na qual os objetos
têm valor se são consumíveis e, embora prometam uma satisfação plena, são objetos de gozo,
que não proporcionam mais do que uma sensação provisória da ordem de uma satisfação
fugaz que incita a aquisição do próximo objeto e o descarte do anterior. Esses objetos, antes
agalmáticos, ao se tornarem dejetos, propiciam o levantamento do véu na contemporaneidade
(Brousse, 2007).
Os jovens dos nossos tempos não dispõem mais do velamento da inconsistência do
Outro que a sociedade tradicional parecia oferecer. Temos observado, seja nos atendimentos
individuais ou nas conversações, certa descrença dos adolescentes no Outro. Esses jovens
parecem não encontrar referenciais claros para se apoiarem em seu trabalho psíquico de
transição do espaço familiar para o mundo social mais amplo.
Freud (1910/1969) destacou o papel da escola de oferecer suporte e apoio numa época
da vida em que o jovem se afasta da relação familiar, além de transmitir, através dos
professores, o desejo de viver. Na atualidade, a falha da escola nessa transmissão tem se
tornado cada vez mais evidente.
Nossa experiência com adolescentes tem nos mostrado a importância de se buscar
ofertar o espaço para a palavra aos sujeitos no ambiente escolar, tão adoecido pela
desmotivação dos professores e pelo desinteresse dos alunos pela aprendizagem.
86
Nesse espaço da palavra, os adolescentes são reconhecidos como tendo um saber. Eles
nos ensinam sobre seus interesses, sobre os jogos digitais, as músicas, o time e exibem seus
vídeos preferidos no YouTube. Mas, eles também nos falam dos seus impasses, dificuldades e
desafios enfrentados nesse mundo “sem adultos”.
Se, para Lacan, “desde que o ser humano é falante, está ferrado” (1969-1970/1998, p.
31), acrescentamos que é também porque fala que ele pode encontrar uma saída. Ao fazer
circular a palavra, é possível que as identificações cristalizadas cedam, dando lugar a novas
identificações que favoreçam o laço social. Esse espaço da escuta sustentado pela ética da
psicanálise não visa à cura do sintoma, mas sim à palavra que, ao bordejar o real, apazigua a
angústia. A associação livre na forma coletivizada dá lugar às diferenças, às singularidades,
mesmo no espaço coletivo. Na conversação, as palavras circulam em torno de um vazio
central, lugar da falta significante que opera como causa. É a partir da falta que o desejo
encontra lugar e que a aposta faz ganhar a vida.
87
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99
APÊNDICE
A aposta de Pascal está inserida num contexto histórico e filosófico muito particular e
se relaciona com a trajetória da vida e da obra do filósofo. Trazer à luz, ainda que de maneira
bem resumida e superficial, alguns elementos de seu percurso pode nos ajudar a compreender
melhor a proposição do autor e suas abordagens posteriores por diversas áreas do saber.
Blaise Pascal21 nasceu a 19 de junho de 1623, em Clermont-Ferrand, França, filho de
Etienne Pascal, presidente da corte de apelação, e Antoinette Bégon, que morrera quando
Blaise tinha três anos de idade. Sem a presença da esposa, o pai optou por realizar ele mesmo
a educação do filho (Périer, 1670/1988).
O patriarca era geômetra e matemático e temia que o contato do filho com a
matemática antes das outras ciências o absorvesse por completo e, com o objetivo de evitar
isso, o iniciou precocemente nas línguas grega e latina. Contudo, tal cuidado não impediu seu
envolvimento rápido e apaixonado com os números. Segundo sua irmã e também biógrafa,
Mme. Périer, aos 13 anos Pascal descobre sozinho as 32 proposições euclidianas (Périer,
1670/1988).
Seu envolvimento com a ciência se caracteriza, entre outras coisas, pela preocupação
com descobertas que, em certa medida, tivessem alguma utilidade prática. Pascal, aos 16 anos
finaliza, depois de um período de dedicação exaustiva, a construção de uma máquina de
calcular. A esse respeito, afirma Chauí (1988): “O invento de Pascal foi considerado uma
verdadeira revolução, pois transformava uma máquina em ciência, ciência que reside
inteiramente no espírito” (p. VI). O então jovem se envolvera de maneira tão visceral nesse
projeto que, em seu término, sua saúde fora comprometida de forma definitiva.
A partir de 1652, passa a se interessar por problemas relacionados aos jogos de dados,
levando-o ao cálculo de probabilidades e resultando no que ficou conhecido como “triângulo
de Pascal”. Um de seus últimos trabalhos nessa área foi sobre as potências numéricas, em que
aborda a questão dos números infinitamente pequenos (Chauí, 1988).
Pascal estabeleceu com suas irmãs uma relação de muita proximidade. Uma delas,
Jacqueline, opta por ingressar na vida religiosa, internando-se no convento de Port Royal. As
21
Muitos dos dados apresentados foram colhidos do texto “A vida de Pascal”, produzido por Mme. Périer, irmã
do filósofo, escrito em 1670 para a edição de Port Royal, que fora adiada por questões políticas, para surgir em
1684, na Holanda, segundo uma cópia pouco exata (Milliet, 1988).
100
experiências religiosas da irmã permitem-no persuadir-se de que “a salvação deveria ser
preferível a todas as coisas e que era um erro atentar para um bem passageiro do corpo
quando se tratava do bem eterno da alma” (Chauí, 1988, IX). A partir de então, o jovem se
une aos jansenistas e, aos 30 anos, desiste de todos os compromissos sociais, indo morar no
campo e dando início à fase apologética22 de sua obra.
Assim, se no começo de sua produção a obra de Pascal é marcada pela procura da
verdade científica e pela glória humana no domínio da razão e da natureza, seu interesse no
momento posterior se volta para as questões da Igreja e da revelação. Pascal desejou que a
sociedade cristã e a sociedade laica se unissem para o controle da corrupção, que para ele
surgiu com a evolução dos últimos séculos (Chauí, 1988, p. VIII).
Chauí afirma que houve um fator decisivo na trajetória de Pascal que contribuiu para o
estabelecimento de sua relação com as suas questões filosóficas e religiosas. Trata-se da cura
de uma grave enfermidade que acometera sua sobrinha, o que a irmã de Pascal, mãe da
menina, atribui a um milagre. A partir dos questionamentos do “milagre”, conhecido como o
“milagre do Santo Espinho”, Pascal passa a ver em Cristo a figura mediadora entre Deus e os
homens: “Sem Cristo, o homem está no vício e na miséria, e com Cristo está na felicidade, na
virtude e na luz.” (Chauí citando Pascal, 1988, p. IX).
O encontro com o jansenismo marca o centro da trajetória espiritual de Pascal,
permitindo-lhe exprimir sua sede de absoluto, buscar a transcendência e a vocação religiosa.
Entretanto, ainda entre os jansenistas, Pascal conclui que é importante retirar-se em definitivo
das coisas do mundo, bem como da militância política. Inicia-se, assim, a fase dos
Pensamentos (Chauí, 1988).
Com a condenação do jansenismo, Pascal volta a se dedicar aos estudos do ciclóide e
seus escritos deixam de ser apologéticos para adquirir um tom trágico. “Os Pensamentos
revelam ser escritos de um homem a quem ‘o silêncio eterno dos espaços infinitos apavora’.”
(Chauí, 1988, p. XII).
Pascal exprime, na fase final de sua vida, a certeza de que a verdadeira grandeza do
homem reside em saber seus limites e fraquezas. Seus últimos anos de vida foram muito
difíceis em função de sua debilidade física, mas dedicou-se tanto quanto possível em anotar o
que pensava. Sobre esses registros, sua irmã afirma: “Não se pode pensar nessa obra sem uma
22
Apologética é a disciplina teológica própria de certa religião que se propõe a demonstrar a verdade da própria
doutrina, defendendo-a de teses contrárias. Esta palavra deriva do nome do deus grego Apolo. (Fonte Wikipedia:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Apolog%C3%A9tica>
101
aflição grande em ver que não se terminou a coisa mais bela e mais útil para o século em que
estamos” (Périer, p. 21).
Pascal morreu em 19 de agosto de 1662 e a primeira edição de Pensamentos foi
publicada em 1670.
102
103