Musseques e Favelas, Devaneios Da Esperança

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novembro de 2007 - Nº 2

Musseques e favelas: devaneios da esperança

Oluemi Aparecido dos Santos1

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo expor, à luz de Bachelard em


seu A Poética do Espaço (1989), um breve estudo sobre a construção de
imagens poéticas na obra dos poetas Solano Trindade (1908-1974) e Agostinho
Neto (1922-1979), que tomam como espaço privilegiado de criação a favela e o
musseque. Para tanto serão abordados textos de Sagrada Esperança (1979) de
Neto e Cantares ao meu povo de Solano Trindade. Esperamos demonstrar
como esses espaços contribuem na formação de imagens populares na obra
dos dois poetas.

ABSTRACT: In accordance with The Poetics of Space, by Gaston Bachelard,


this essay will discuss briefly about musseques and slums as places of artistic
creation as represented in poetic works Sagrada Esperança (1979) by
Agostinho Neto (1922-1979), and Cantares ao meu Povo (1961) by Solano
Trindade (1908-1974). We intend to demonstrate how these spaces concur in
the formation of popular images in those works.

PALAVRAS-CHAVE: Devaneio; devir; esperança; musseque; favela.


KEYWORDS: Reverie; devenir; hope; musseque; slums.

Ngendele ku museke,
Uenzengue-uiu,
mukatula ji kajú
pó-pó-po, marimbondo ua-ngi-lumata.2

Ao analisar os espaços de nossas solidões, diz Gaston Bachelard


que nossas lembranças têm refúgios cada vez mais característicos. A
estes refúgios regressamos durante toda a vida e, para tal, conta-nos o
autor que os devaneios são mais úteis do que os sonhos. Dentro dessa
perspectiva, o espaço tem papel fundamental, pois o tempo já não mais
anima a memória. Para Bachelard, é pelo espaço que podemos

1 Mestrando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. FFLCH.


USP. Bolsista FAPESP. Pesquisa: Sendas da Revolução: a poesia de Agostinho Neto e
Solano Trindade. E-mail: oluemi@gmail.com
2 “Eu fui ao musseque numa chácara colher uns cajus, e os marimbondos me

morderam” (folclore angolano).


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encontrar “os belos fósseis de duração concretizados por longas


permanências. O inconsciente permanece nos locais” (1989, p. 29).
Assim, para o filósofo, “mais urgente que a determinação das
datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços
da nossa intimidade” (1989, p. 29).
Localizar alguns espaços da intimidade nas poesias do angolano
Agostinho Neto (1922-1979) e do brasileiro Solano Trindade (1908-
1974) é o que pretendemos estudar neste artigo.
Enfatizamos um elemento que, ao nosso ver, justifica a
aproximação dos autores mencionados. Em 1958, Mário de Andrade,
um dos maiores críticos literários de Angola, organiza e publica
Antologia da Poesia Negra de Expressão Portuguesa. O crítico e
organizador da antologia destaca em seu texto “Cultura Negro-africana
e Assimilação” o fato de o debate sobre a cultura negro-africana
ultrapassar as fronteiras de uma afirmação pura e simples dos valores
negros ou, ainda, da contribuição desses valores para o enriquecimento
de outras culturas, sendo que os intelectuais e escritores negros, no seu
entender, situariam tais questões em outro plano e perspectiva que
seriam os das: “a) relações entre o poder e a cultura, isto é, do
condicionamento político das culturas negras; b) possibilidades duma
renascença dos valores culturais negros e sua integração no patrimônio
universal” (Andrade, 1958, p. VII-VIII).
Vale ressaltar que, tanto Agostinho Neto quanto Solano Trindade,
trazem a marca de autores empenhados na luta pela emancipação e
igualdade de direitos das populações mais sofridas e oprimidas. Ou
seja, conscientes de seus papéis, pesa nestes dois poetas o ato de
escrever como um movimento de insubordinação. Insubordinação esta
contra as inúmeras barreiras que no curso da história estreitaram
desde o início da colonização de Angola e Brasil as sendas da população
negra, o que acabou também por limitar a ela as possibilidades da
construção de sua identidade com inteireza, ou seja: homem, negro e
angolano/brasileiro. Não por acaso, dentre os poetas que figuram na

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antologia, Solano Trindade foi o único poeta negro brasileiro escolhido


por Mário de Andrade para compor a seleção.
Sagrada Esperança (1985) e Cantares ao meu povo (1961),
respectivamente de Neto e de Trindade, são obras de referência dos dois
autores e trazem quase que a totalidade de suas obras em poesia.

Lembranças do lar

Dentro do percurso proposto por Gaston Bachelard em A Poética


do Espaço (1989), ateremo-nos particularmente às questões referentes à
casa. Convém, porém antes, uma explicação: não tomaremos aqui a
casa (o vocábulo) apenas em seu sentido mais estrito, ou seja, o espaço
ou edificação no qual se mora. Logo, neste estudo ao nos referirmos á
casa pensaremos nela tanto como sendo o espaço privado quanto como
metáfora de musseques e favelas — espaço geográfico público — visto
que nos estudos de Bachelard a própria dimensão da casa ultrapassa
seus compartimentos indo além do espaço físico. Assim, nos diz
Bachelard que “o complexo realidade-sonho nunca é definitivamente
resolvido. (...) É preciso analisar melhor como se apresentam, na
geometria do sonho, as casas do passado, as casas onde vamos
reencontrar, em nossos devaneios, a intimidade do passado” (1989, p.
64). Entendemos que, para o estudo dos valores de intimidade do
espaço interior, a casa é um “ser” privilegiado, desde que considerada
ao mesmo tempo em sua unidade e complexidade, tentando integrar
todos os seus valores particulares num valor fundamental.
Assim como há nas poesias de Neto um comprometimento com os
musseques de Luanda, há também um registro das favelas da periferia
brasileira bastante perceptível em Solano Trindade.
Ao transformar em suas poesias os espaços dos musseques e das
favelas (em suma das periferias) em “seres” privilegiados Neto e Solano
nos fazem percorrer essas sendas. Afinal, na aparente ingenuidade
encontrada, seja “num banco do Kinaxixi”, seja num “trem sujo da
Leopoldina”, há um forte tom de crítica e insubordinação.

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Ainda que as favelas e os musseques sejam geralmente tomados


pejorativamente como espaços de degradação, é aqui que os dois poetas
se encontram e se sentem à vontade, “porque a casa é o nosso canto do
mundo” (Bachelard, 1989, p. 24). Assim podemos entender o quanto é
complexo determinar a realidade de nosso apego a um lugar predileto,
um local que se identifica com a origem do ser.
Logo, não é de surpreender que os espaços geográficos
privilegiados nas obras dos dois autores estejam recorrentemente
relacionados com a periferia.
Diz Solano:

Quando eu nasci
meu pai batia sola
minha mana pisava milho no pilão
para o angu das manhãs.

Eu sou um trabalhador
ouvi o ritmo das caldeiras...
obedeci ao chamado das sirenes...
morei num mocambo do “Bode”
e hoje moro num barraco na Saúde...
Não mudei nada...
(Poema Autobiográfico, p. 177)

E Agostinho Neto:

Gostava de estar sentado


num banco do Kinaxixi
às seis horas duma tarde muito quente
e ficar...

Alguém viria
talvez sentar-se
sentar-se ao meu lado

E veria as faces negras da gente


a subir a calçada
vagarosamente
exprimindo ausência no kimbundo mestiço
das conversas

Veria os passos fatigados


dos servos de pais também servos
buscando aqui amor ali glória
além uma embriaguez em cada álcool

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Nem felicidade nem ódio

Depois do sol posto


acenderiam as luzes
e eu
iria sem rumo
a pensar que a nossa vida é simples afinal
demasiado simples
para quem está cansada e precisa de marchar.
(Kinaxixi, 1985, p. 48)

Podemos, juntos com os poetas, vivenciar os espaços vitais para


eles. Tanto a casa privada, que, aliás, está localizada na periferia
quanto o musseque. Podemos dizer que em tais espaços nossos poetas
encontram “as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia num
canto do mundo” (Bachelard, 1989 p. 24).
“Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz
amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmo” (ib.). E é
desse cosmo — independentemente de como ele seja — que Neto e
Trindade extraem também poesia.
Nos dois poemas, o centro da imagem e do devaneio é a nostalgia
de um lugar querido. Os poemas oferecem imagens que nos fazem
voltar ao tempo da infância, no primeiro caso, e ao de uma paz
aparente, da tranqüilidade do musseque, no segundo texto.
Os escritores nos atraem para fontes de suas intimidades. A vida
simples e sofrida de Solano não impede que, através de seu eu lírico, a
primeira moradia seja abordada. O poema marca a passagem de vida
rural para a urbana. Mesmo esse trânsito não retira do poeta a
simplicidade e mesmo a ousadia de assumir suas origens.
Em “Kinaxixi”, temos um movimento semelhante de lembrança,
visto que o eu lírico emprega logo no início do poema o verbo no
pretérito imperfeito, enquanto que nos versos seguintes há uma
predominância do futuro do pretérito. Recorrendo a dados
extratextuais, verificamos que Neto deixara Angola para estudar
medicina em Portugal. Mesmo assim, o espaço de intimidade que marca

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o poeta, e conseqüentemente o eu lírico, é justamente o Kinaxixi, o


musseque.
Dessa forma, podemos dizer que os espaços realmente habitados
são os que trazem a essência da casa bem como, deste nosso canto no
mundo. Por isso não vemos, por exemplo, Copacabana ser exaltada na
poesia de Solano ou Lisboa na de Neto. Em seu lugar, temos os espaços
que abrigam de fato o devaneio, ou seja, o espaço da periferia. “O
devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui
diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio
reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente
porque as lembranças das antigas moradas são revividas como
devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”
(Bachelard, 1989, p. 26)
Ao trazer à tona o Kinaxixi e o barraco na Saúde, os dois eus
líricos revelam “concretamente os valores do espaço habitado, o não-eu
que protege o eu” (ib., p. 24). Mais, “em suma, na mais interminável das
dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a
casa em sua realidade e em sua virtude, através do pensamento e dos
sonhos” (ib., p. 25)
Há nos dois poemas, é verdade, a nostalgia, mas há também o
imperativo de mudança conferido pelo tom seco do poema de Solano e
também pela angústia no eu lírico sujeito poético de Agostinho Neto
devido à lentidão com que se marcha para a mudança. Em suma, as
menções à pobreza e à submissão dos angolanos provocada pelo
sistema colonial não são tomadas como uma nostalgia melancólica e
sim como o ar da denúncia e da insubordinação, conforme já dissemos
antes. Elementos externos ao poema nos ajudam a confirmar a
impressão. No prefácio de Cantares, Solano Trindade revela:

Agradam-me profundamente os títulos de “poeta negro”, “poeta


do povo”, “poeta popular”, às vezes ditos de modo depreciativo —
mas que me dão uma consciência exata do meu papel de poeta
na defesa das tradições culturais do meu povo, na luta por um
mundo melhor. (1961, p. 25)

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Sobre o papel do escritor, defende Neto:

Todos nós, creio, que concordamos em que o escritor se deve


situar na sua época e exercer a sua função de formador de
consciência, que seja agente ativo de um aperfeiçoamento da
humanidade. (...) Se temos de nos situar por um lado no fato
independência e por outro no fato proletariado-campesinato,
podemos perguntar-nos qual a posição do escritor diante do novo
homem angolano, resultante da vitória histórica sobre um dos
elementos da contradição colonial? (1978, p. 10-11)

Outros dois poemas que trazem de forma mais marcada a


insubordinação e a denúncia são “Civilização Ocidental”, de Neto, e
“Civilização Branca”, de Solano. Ao passo que as reminiscências em
“Kinaxixi” e “Poema Autobiográfico”, ainda que tristes, trazem também
boas lembranças, nesses dois outros poemas lemos um tom muito mais
agressivo.
O poema de Solano Trindade, curto e direto, refere-se a um
espaço que é hostil à presença do homem negro: os arranha-céus,
símbolos da sociedade burguesa, logo, brancos e ocidentais. Retirado do
jornal (como não lembrar de Bandeira?), o poema espalha o clamor de
um eu lírico que aparentemente apenas noticia o ocorrido. Contudo, o
título aponta os responsáveis pelo crime que recai, sobretudo, na
intolerância da camada dominante da sociedade:

LINCHARAM um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme... (1961, p. 37)

Em “Civilização Ocidental", o espaço é ainda o dos musseques,


mas o ultrapassa. À primeira vista, temos a imagem de um barraco de
favela ou uma cubata. “Latas pregadas em paus fixados na terra fazem
a casa”. Mais adiante, vemos que se trata na verdade de um campo de
contratados. Novamente encontramos a recusa dessa “civilização”, que
reserva após o trabalho forçado apenas a recompensa da morte.

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Latas pregadas em paus


fixados na terra
fazem a casa
Os farrapos completam
a paisagem íntima
O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante
Depois das doze horas de trabalho
escravo
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras


basta para ele morrer
grato
e de fome. (1985, p. 31)

Fica evidente nos dois poemas as mazelas deixadas pela


colonização e por um sistema opressor em relação ás chamadas
minorias, mas isto não impede que musseques e favelas ocupem
posição privilegiada na poesias dos dois poetas.

Musseques e quilombos

Antes de irmos ao próximo poema, vejamos mais uma perspectiva


dada por Gaston Bachelard à casa e sobre a função de habitar. “Na vida
do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de
continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o
homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É
corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano” (1989, p. 26).
Em “Canto aos Palmares” (Trindade, 1961, p. 29-35), desde que
feitas algumas inferências, podemos ver retomada a questão da casa.
Sem dúvida, o poema, que abre o livro, é um dos mais longos e

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enfáticos no combate à discriminação e injustiças. Seus versos são


livres e brancos, com estrofes curtas e vibrantes, tendo o poema o tom
épico.
Assim nos colocamos a pensar: qual a relação que pode ter esse
poema com a questão da casa? Primeiro será preciso traçar uma
dialética de pares opositivos: Lar vs. Cárcere, e Quilombo vs. Senzala.
Podemos assim perceber que lar e quilombo fazem parte de um
paradigma, enquanto cárcere e senzala formam outro. É aí que
podemos pousar nossa breve interpretação. É no devaneio de sua alma
que o poeta encontra seu lar, é lá que se encontra com os seus (no
quilombo), é lá que se sente protegido, lá é o seu refúgio. No quilombo, o
poeta pode encontrar o “benefício mais precioso da casa”, “a casa abriga
o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”.
(Bachelard, 1989, p. 26)
Em “Canto aos Palmares”, a casa — o quilombo — estende-se e
participa da luta de libertação, ela acaba por também aspirar à
libertação. Referimo-nos neste momento a todo o espaço do quilombo,
que assim como o eu lírico se revolta contra os opressores de todos os
povos.

meu poema libertador


é cantado por todos,
até pelo rio. (...)
o opressor convoca novas forças
(...) os tambores
não são mais pacíficos.
até as palmeiras
têm amor à liberdade...

Num jogo de oposições, é mostrada a degradação da “civilização”


em contrapartida com a materialização de um mundo mais humano no
interior do quilombo. Como nos diz Benjamin Abdala Jr., essa
degradação é mostrada “através de seus instrumentos de dominação
(coloniais, neocoloniais, sociais), dentro da estratégia do confronto”
(Abdala Jr., 2002, p. 37):

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o opressor convoca novas forças


vem de novo
ao meu acampamento...
Nova luta.
As Palmeiras
ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam as minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto,
para salvar
a civilização
e a fé ...

Contudo o eu lírico, juntamente com o espaço, se faz como centro


de convergência, ator profético ou prometéico cantando a vitória:

Entre as palmeiras nascem


os frutos do amor
dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...

Vemos aí novamente a presença do espaço, do quilombo, da casa


que abriga e dá possibilidades de sonhos aos seus. Observemos que um
outro elemento de constituição do quilombo está bastante presente —
as palmeiras, como também possuem um lugar especial nas poesias de
Agostinho Neto. Elas protegem, alimentam, assistem e colaboram na
resistência, não por acaso essa árvore é tomada como símbolo pelos
dois poetas. Peguemos apenas como exemplo o poema “O verde das
palmeiras da minha mocidade” (Neto, 1985, p. 78), que traz várias
lembranças ao poeta e revela a perda dos costumes angolanos por conta
da nova “civilização” que se ergue em África. Vemos ainda, nos dois
casos, que a aspiração de plenitude libertária se materializa e se fixa
também no agora. O eu lírico, que “fugia do verde/ do verde-negro das
palmeiras”, agora vê que “o verde das palmeira/ tem beleza”.
Vemos por conta das imagens até aqui exploradas que há uma
verdadeira simbiose entre o ser e a casa nas imagens referidas. Como
diz Bachelard, quanto mais atacado é o lar mais amado ele é, ou seja,

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ele se fortalece: “Nessa comunhão dinâmica entre o homem e a casa,


nessa rivalidade dinâmica entre a casa e o universo, estamos longe de
qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é
uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico”
(1989, p. 62).
Assim a casa (quilombo), o ser e o poema sobrevivem sendo
cantados ao longo dos séculos redimindo Zumbi e todos os ancestrais
que deram suas vidas para se verem livres e humanizados.
Acreditamos que nesse poema, bem como em “O verde das
palmeiras da minha mocidade”, fica evidente a transformação do ser da
casa em valores humanos, convidando o homem ao heroísmo.

De novo o Musseque

Tomando agora emprestado um poema de Agostinho Neto:


“Sábado nos Musseques” (1979, p. 40), podemos explorar melhor o
espaço em questão — a periferia — e registrar também a organicidade
do espaço que dialoga com o homem. Como já foi referido antes, o
musseque aparece constantemente nas poesias de Neto.
Aqui podemos também pensar em pares opositivos. O que está em
cena não é mais a escravidão no novo continente, mas a cisão de
mundos — o do colonizado e o do colonizador. A cidade alta e a cidade
baixa, e é justamente nesta segunda que vai ser focalizado o olhar do
poeta.
Dialético em sua essência, o musseque (caldo cultural
efervescente onde tudo acontece e tudo se encontra) pode e deve
também ser visto como espaço de resistência. Assim temos, em ambas
as situações, a oposição entre o cárcere e a liberdade, tendo de um lado
o colonizado e do outro o colonizador.
Também de grande fôlego, o poema agora em questão nos
apresenta mais uma imagem “viva” do musseque do que um confronto
propriamente dito, embora este esteja sempre presente. O poeta nos
apresenta o musseque em suas “ansiedades”, como um espaço vivo no

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qual a orquestração da vida segue por várias e diferentes notas; tendo,


porém, um único regente — o próprio musseque.
É ele também, apesar de suas contradições, o local onde se sofre,
luta, chora e também se colhe esperança, esperança ansiosa em ver
renascer um novo homem, um novo mundo:

Ansiedade
no esqueleto de pau a pique
ameaçadoramente inclinado
a sustentar pesado tecto de zinco (...)
Nos homens
ferve o desejo de fazer o esforço supremo
para que o Homem
renasça em cada homem
e a esperança
não mais se torne
em lamentos da multidão
(Sábado nos Musseques, 1979, p. 46)

Nesse espaço “humilde” de “gente humilde”, o sábado vem ao


encontro da vida. A organicidade está presente em todo o musseque, ou
seja, é o próprio musseque. Numa rasa analogia, se tomarmos como
referência a resistência e também a opressão, podemos dizer que o
musseque, assim como a favela, atualiza o espaço da senzala e do
quilombo. Tanto nas cubatas quanto nos barracos, ambos “latas
pregada em paus/ fixados na terra” (Neto, 1985, p. 31) temos imagens
poéticas que revelam a resistência e os devaneios de esperança no devir.

Vive a esperança

Procuramos até aqui mostrar como a periferia (musseques e


favelas) e também alguns outros espaços de opressão e resistência
podem ser vistos como um espaço privilegiado nas poesias de Solano
Trindade e Agostinho Neto. Para encerar nosso breve percurso,
gostaríamos de examinar uma última poesia de Solano Trindade que
sintetiza — acreditamos — os musseques e as favelas (e também a
infância) como espaço de solidariedade que os poetas projetam no devir.
Para tal escolhemos “Mulher Barriguda” (1961, p. 88):

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Mulher barriguda que vai ter menino


qual o destino
que ele vai ter?
que será ele
quando crescer?
Haverá guerra ainda?
tomara que não,
mulher barriguda
tomara que não...

Retomemos a questão da casa. Nos diz Bachelard (1989, p. 24)


que “nossa vida adulta é tão despojada dos primeiros bens, os vínculos
antropocósmicos são tão frouxos, que não sentimos sua primeira
ligação com o universo da casa”. Logo, não é difícil entender porque
geralmente não consideramos nosso primeiro ninho, onde de fato
começa a vida. E há uma primeira casa mais exemplar para nós que o
útero materno? “A vida começa bem, começa fechada, protegida,
agasalhada no regaço da casa” (1989, p. 26). Portanto, não é de
surpreender que o poeta deposite seu olhar, sua esperança, no devir
justamente na criança que vai nascer. É a partir dessas imagens
populares que os nossos poetas projetam espaços da universalização e
da solidariedade entre os homens e povos.
E assim, diante da “casa” que guarda a esperança, a crença no
devir que finalizamos nosso breve percurso, salientando que não
tivemos aqui a intenção de esgotar as questões levantadas. Esperamos
ter conseguido demonstrar, ainda que minimamente, que musseques e
favelas recebem especial atenção dentro das obras dos autores aqui
mencionados, transformando-se não apenas em espaço de miséria, mas
que, ao serem tomados como espaços da intimidade, esses espaços se
tornam também em devaneios de esperança, nos quais podemos ainda
sonhar com a “harmonia do mundo”.

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Referências bibliográficas

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