Transadas
Transadas
Transadas
Elea
Copyright © 2021 Elea
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha irmã mais nova, leitora fiel, à querida (e 100 % hetero) amiga
Samira, que imprimiu o original registrado na Biblioteca Nacional, às amigas lindas
Jessica e Savina, pelas contribuições em Escaleno, à companheira sáfica Sara
Rodrigues Lavandeira, que revisou as falas em espanhol de Mercedes, Alba e Lupita, ao
Lincoln, amigo querido e doutor em linguística, que eu aluguei para tirar dúvidas, à
amiga virtual Damiana, pela leitura de um conto, aos meus pais, pela vida, e a Clara,
que leu tudo, palpitou, revisou junto comigo, diagramou o e-book, fez o design da capa,
aturou minhas crises existenciais e cuidou dos nossos três gatos enquanto eu escrevia.
Uma das possíveis origens da palavra “safada” é atribuída a Safo, poetisa grega
da Ilha de Lesbos. Versos mencionando suas amantes em contextos eróticos foram
encontrados em muitos fragmentos de sua obra.
#credoquedelícia
Contents
Title Page
Copyright
Dedication
Epigraph
FOGO
LUA DE MEL
ECLIPSE
ESCALENO
A EX
A MELHOR POUSADA DO MUNDO
A CARTOMANTE
PRINCESA
RETRATO
About The Author
CONHEÇA OS PRÓXIMOS LIVROS DA AUTORA
FOGO
Maria Luiza olhou-se no espelho retrovisor do Fusca azul. A cor preta dos
olhos, contornados com lápis de olho, começava a derreter. Secou o suor,
passando os dedos pelas pálpebras, e contou o dinheiro que tinha. Separando
o que restava de pedágio, sobravam oito reais. Desceu na lanchonete de beira
de estrada, atraindo olhares de todos os presentes, e saiu de lá com uma água
e um minúsculo pacote de biscoito superfaturado. De volta ao carro, ajeitou
a espuma do banco rasgado para dentro do couro e olhou o celular.
“Mãe, estou indo visitar vocês. Saudades. Te amo”.
Depois da sua mensagem, nenhuma resposta. Comeu o biscoito de
sabor duvidoso, engoliu a água e, antes de seguir pela Rio-Santos em direção
a Paraty, retocou o batom vermelho no único espelho de que dispunha.
Estava linda.
Quando Diana chegou na Pousada das Flores, não viu nada que a fizesse
merecedora do pretenso epíteto que lhe acompanhava o nome. Era um local
bonito, com muito verde, pássaros e, claro, flores; além da recepção
calorosa, quartos aconchegantes e um café da manhã que parecia ter sido
preparado por uma avó quituteira e amorosa. Como tantas outras. Cães e
gatos circulavam livremente entre as hóspedes. Sim, era uma pousada só
para mulheres e anunciava uma experiência segura – sobretudo para as
viajantes solos.
A propriedade contava com trilhas de dificuldades variadas, duas
cachoeiras, piscinas naturais, árvores centenárias com cipós convidativos às
mais aventureiras, um pomar farto, almoços preparados com folhas e
legumes orgânicos da horta, cavalos para passeios, galinhas felizes vivendo
em um espaço grande e com refeição de verdade. Os laticínios vinham do
leite de duas vaquinhas igualmente bem tratadas, que atendiam pelos nomes
de “Prin” e “Cesinha”. Os chalés eram espaçados, proporcionando
privacidade e silêncio às viajantes. A casa principal tinha dois andares: o
térreo abrigava as áreas comuns, com restaurante, sala de estar, uma saleta
menor para leitura, outra maior com um vasto catálogo de filmes, um ateliê
aberto a qualquer visitante e um aposento menor, onde repousavam diversos
instrumentos musicais. O andar de cima, único espaço vedado às
frequentadoras, parecia ser o local de descanso das mulheres que
trabalhavam na casa.
Tudo parecia harmonioso no lugar. No dia em que chegou, Diana foi
saudada por um pôr-do-sol alaranjado, que deu vazão a uma lua crescente
igualmente colorida. Ainda assim, não estava convencida de que aquela era a
“melhor pousada do mundo”. Depois de um sono restaurador, foi ter com
uma das mulheres que trabalhavam no local, a fim de escolher o passeio do
dia. Estava tentada a se arriscar na trilha do Pico do Jacaré.
— O que devo esperar de uma trilha “moderada superior”?
— Um passeio delicioso para mulheres experientes, com bom
condicionamento físico e equipamento adequado. – Respondeu Zoé.
— Talvez eu não deva me aventurar, então.
— Comece por um passeio mais leve e veja como se sai. Se, depois,
ainda estiver curiosa, posso guiá-la. Até quando ficará aqui?
— Passarei a semana. Já estou tentada a aceitar sua oferta. O que
quer dizer com equipamentos especiais?
— Se for comigo, um bom par de botas de trilha e calças flexíveis
serão suficientes. Eu me encarrego do resto. – Zoé deu uma pequena pausa.
– Você tem medo de altura?
Diana pensou um pouco, antes de responder.
— Deveria?
— Tem um trecho nesta trilha em que é necessário escalar. São
poucos metros e o visual é lindo. Se não quiser se aventurar, há um caminho
alternativo.
— Acho que posso sobreviver.
Zoé sorriu para ela e voltou aos afazeres. Diana optou por uma trilha
moderada e, como saía cedo, imaginou que voltaria a tempo de dar um
mergulho. Na mochila, levava água, lanches, protetor solar e repelente,
conforme indicação da pousada. Tinha um calçado adequado e não era tão
inexperiente assim, afinal de contas.
Quando retornou, no final do dia, encontrou um bolo com cheiro de
recém assado e uma mesa com vários tipos de chá, numa convidativa oferta
ao descanso. Sentou-se numa das mesas e viu a moça do café da manhã
decorando rodelas de abacaxi com raspas de limão. Zoé lavava a louça e, vez
ou outra, substituía os pratos usados por limpos. Numa dessas ocasiões, foi
até Diana.
— Como foi o passeio?
— Acho que me saí bem. Quando puder, ficarei feliz em subir o Pico
do Jacaré.
— Está bem. Te direi o melhor dia.
A hóspede observou a troca de olhares entre ela e Luna, a moça que
servira o desjejum e, agora, cuidava do lanche vespertino. Ficou curiosa ao
sentir que elas partilhavam algo além das tarefas diárias. Foi para seu chalé
e, depois de um bom banho, encontrou outras mulheres que trabalhavam na
pousada ao redor de uma fogueira. Duas delas tocavam e as visitantes
acompanhavam.
O clima anunciava outra noite estrelada e agradável. Zoé e Luna se
juntaram à roda. Algumas moças brincavam com pinceis em telas oferecidas
pela pousada, casais apaixonados namoravam em pontos mais distantes e
havia aquelas que apenas jogavam conversa fora. Diana caminhou na
direção da fogueira e encontrou um lugar para si. Olhou para as mulheres
que vira trabalhando desde que chegara e pensou em qual delas seria a
proprietária do local. Mais tarde, quando a música cessou e as conversas
paralelas ganharam força, perguntou à mulher de longas tranças, que parecia
ser a mais velha, embora não tivesse muita certeza, se a pousada era dela.
— Nós dividimos a propriedade, a administração e as tarefas deste
lugar. – Respondeu sorrindo e dando a questão por encerrada.
— Desculpe, não sei o seu nome.
— Ísis. Aquela que estava no violão é a Sara e a moça de cabelos
escuros, ao lado dela, é Penélope.
— Então a pousada é de todas vocês?
— Sim e não. Zoé e Luna fundaram esta casa e seu propósito.
Podemos dizer que elas detêm a posse legal. Ana Terra, que faz os melhores
almoços do mundo, veio para cá pouco depois. Eu me juntei em seguida e
começamos a construir os chalés. Até então, as salas do térreo – ela apontou
para a construção principal – eram os quartos e, no andar de cima, havia
algumas hospedagens também. Depois, vieram Penélope e Tulipa.
Terminamos os chalés e, quando Sara, que chegou há um ano, se juntou a
nós, fizemos o espaço para as galinhas, adotamos a Prin e a Cesinha e, como
era da vontade de todas, os cães e gatos. Mas vivemos aqui sem que o
conceito de propriedade nos atravesse. A casa é de todas nós, assim como
suas responsabilidades.
Diana deixou transparecer alguma desconfiança.
— Como fica a divisão dos lucros, se é que me permite a
intromissão?
— Lucro não é exatamente o que nos move, embora seja importante
ganharmos bem. Mensalmente, pagamos as contas e dividimos em partes
iguais o restante.
— Luna e Zoé não ganham mais do que vocês?
Ísis sorriu.
— Incrível, não é?
A mulher se levantou, cochichou alguma coisa com Sara e foram
atrás de dois filhotes que, aparentemente, tinham de dormir do lado de
dentro e já passava da hora de voltarem para casa. Recolheram-se com eles.
Ana Terra, a moça famosa pelos almoços deliciosos, sem qualquer
constrangimento, depositou um beijo no pescoço de outra e deixou que sua
mão escorregasse pelo braço dela, numa troca de olhares que não escondia
as intenções de nenhuma das duas. Diana sentiu um frio na barriga e foi
dormir.
O canto alegre dos pássaros saudou-a para o novo dia. Sentiu o
cheiro do café recém passado e deixou o quarto vestindo apenas a camisola
com a qual dormira – uma das vantagens de se estar num lugar frequentado
exclusivamente por mulheres. Ao passar pelo chalé Girassol, notou Zoé
entrando com lençóis limpos e entregando-os à moça que recebera a carícia
no pescoço na noite anterior. Deteve-se na fresta da janela e tomou um susto
ao registrar o beijo apaixonado que trocaram. Constrangida e certa de ter
testemunhado uma traição, já que a moça que preparava o chalé estava
claramente envolvida com Ana Terra, foi para o restaurante. Não deixou de
se surpreender, novamente, ao ver Zoé entrar na cozinha e cumprimentar
Luna com um selinho. Atordoada, serviu-se e foi comer do lado de fora.
A moça terminou de preparar o chalé e o deixou arejando. Ao passar
por Diana, sorriu. Foi até um pessegueiro carregado e apanhou alguns frutos.
Ao voltar, parou para lhe falar.
— Ainda não fomos apresentadas. Eu sou Tulipa. Prazer.
— Diana.
— Aceita? Estão deliciosos?
Tulipa mordeu um dos pêssegos, deixando que a língua escorregasse
pelo talho no meio da fruta. A visão provocou alguma coisa na hóspede que
a fez corar. Recebeu dois pêssegos das mãos dela, agradeceu e não disse
mais nada. Ainda pensava no envolvimento entre ela e Zoé e, decidida a não
se intrometer num problema que não era seu, vestiu um biquíni e saiu para
aproveitar a cachoeira. O dia prometia altas temperaturas.
Retornou pouco depois do meio-dia. O almoço tinha um aroma que a
hipnotizou até o restaurante. Ao entrar, avistou Ana Terra e Tulipa
trabalhando sem qualquer indício de animosidade entre as duas. Às 13hs,
ambas deixaram a cozinha e sentaram-se para comer, partilhando a mesa
com Luna, Penélope e Sara. Zoé e Ísis pararam para lavar o rosto e juntaram-
se a elas logo depois. Estavam suadas, nitidamente voltando de alguma
empreitada ao sol.
Depois do almoço, Diana deitou-se na rede em frente ao chalé e
pegou um livro. Não chegou a ler uma página completa. Sua atenção foi
desviada para o funcionamento da pousada. Luna e Penélope cuidavam do
jardim em seus mínimos detalhes. Recolhiam frutas do pomar e livravam-se
daquelas que já tinham passado do ponto e poderiam se tornar incômodas ao
apodrecer. Tulipa, depois de deixar a cozinha impecável, recolhia os dejetos,
levando-os para servir de compostagem na horta. Ísis e Zoé justificavam o
suor ao trabalhar num reparo da calha na casa principal. Sara chegava de
Saveiro, descarregando as compras que abasteciam o lugar, e Ana Terra
escovava os cavalos. Sara e Penélope, mais tarde, foram até ela e as três
saíram para cavalgar.
No final da tarde, os incensos de citronela tomavam conta do ar.
Diana ouviu alguém comentar que eram feitos por Penélope e que havia
alguns pacotinhos à venda. Tulipa preparava a fogueira e Zoé, com os
cabelos secando no sol do fim de tarde, pintava com algumas hóspedes.
Penélope e Ísis saíram da casa principal abraçadas e de banho tomado.
Tulipa afastou-se do fogo e entrou, seguida por Zoé, que voltou depois de
alguns minutos, retomando a pintura. As cavaleiras retornaram do passeio e
também adentraram na propriedade. Diana se sentou ao lado de Ísis.
— Teremos música de novo?
— Terá de perguntar a Sara ou Ana Terra. Luna também arrisca um
violão. Se quiser tocar, sinta-se à vontade para usar os instrumentos.
— Acho que, sóbria, não arrisco nada. – E riu.
— Podemos resolver isso. Venha comigo.
Foram para a cozinha. Ísis preparou duas caipirinhas. Diana aprovou
e, na sala de música, escolheu um cajon. Saíam para o jardim, quando
cruzaram com Sara e Luna descendo as escadas. Elas não fizeram nada, mas
a maneira como se olharam, carregada de tensão sexual, fez Diana sentir um
arrepio. Ísis também percebeu e riu, sem graça, apressando a ida da hóspede
para a fogueira.
Quando voltou a si, nada mais fazia sentido. Tinha resolvido a
equação das moradoras da pousada da seguinte maneira: Luna e Zoé eram
um casal. Ana Terra e Tulipa, outro. Zoé e Tulipa tinham um caso e eram
pessoas horríveis. Seria possível que Luna e Sara também fossem amantes?
Como conseguiam conviver na mesma residência e agir assim? Ísis, pelo
visto, sabia e acobertava.
O que quer que acontecesse entre aquelas mulheres, não lhe dizia
respeito. Mas Diana estava incomodada e não conseguia parar de pensar
nelas. O cajon foi deixado de lado e ela se envolveu numa conversa
desinteressada com outras visitantes.
De madrugada, foi assombrada pela insônia. Acordou com imagens
desconexas de um sonho do qual não conseguia se lembrar, mas que a
enchera de tesão. Lutou contra, tentando voltar a dormir, mas, depois de
rolar na cama por quase uma hora, rendeu-se, tirando a calcinha e colocando
o travesseiro entre as pernas. Foi invadida por imagens das mulheres da
pousada: Tulipa acariciando lascivamente o pêssego, a troca de olhares
desconcertante entre Sara e Luna, o beijo furtivo de Zoé e Tulipa no chalé,
as mãos de Ísis tocando-a na cintura quando saíam da cozinha, Ana Terra
deslizando seus dedos pelas costas de Tulipa, Penélope, em sua delicadeza
apenas aparente, empinando a égua mais feroz do lugar. De repente, o quarto
esquentou e Diana se contorceu na cama.
Relaxada, achou que voltaria a dormir, mas a temperatura se elevara
o suficiente para impeli-la ao lado de fora. Resolveu dar uma volta. E, para
sua surpresa, o termômetro, marcando 23 graus, não coincida com o calor
que a arrebatava. Mais alerta, recordou-se de como chegara ao orgasmo.
Engoliu em seco.
Diana havia se relacionado com mulheres somente em duas ocasiões.
Uma delas talvez nem contasse. Ainda adolescente, saiu escondido com uma
amiga para fumar e, na euforia provocada pelo ato proibido, acabaram se
beijando. A outra vez, mais intensa, aconteceu na viagem de formatura da
graduação em veterinária. Em um hotel charmoso, no coração de Punta
Ballena, foi para a cama com a orientadora. Passaram uma noite
maravilhosa, mas o dia seguinte e tornou uma crise de consciência ética,
sobretudo por parte da professora, que acabou com qualquer clima existente
entre as duas. Nunca mais se falaram. Diana sofreu e tratou de direcionar seu
interesse para os homens. O que acontecera no quarto, portanto, era
surpreendente e inquietante.
Caminhava pelo jardim quando ouviu vozes. Espichou o pescoço,
tentando identificar quem era, e avistou, ao longe, uma lanterna indo na
direção da cachoeira. Curiosa, foi atrás. A trilha era fácil e a noite estava
bem iluminada. Poderia ser divertido se juntar a alguma aventura noturna.
Como uma criança que faz algo errado, em vez de acusar sua
presença, caminhou em silêncio, espiando quem quer que fossem as
notívagas. A temperatura estava mais fria e Diana se surpreendeu com o
barulho de corpos na água. Escondida por trás das árvores, aproximou-se. As
sete mulheres da pousada nadavam completamente nuas e se tocavam em
carícias íntimas.
Diana paralisou ao ver Zoé e Tulipa se atracarem na frente de Luna.
A mulher que preparava seu café da manhã sorriu para elas e recebeu as
mãos de Sara em seu corpo. Penélope a beijou e, a menos de um metro de
distância, Zoé e Tulipa pareciam ter avançado no que faziam: claramente,
Tulipa a tocava por baixo d’água. Ísis e Ana Terra assistiam de longe. Ísis
nadou até Zoé e a agarrou, beijando seu corpo. A hóspede lembrou-se das
duas, mais cedo, debaixo do sol, consertando a calha. Toques sutis entre elas,
registrados apenas pelo seu inconsciente, vieram à tona, como se o que
estivesse acontecendo na água fosse óbvio a um olhar mais atento.
Ana Terra puxou Penélope para si. Naquele caos harmônico de
corpos e desejos se saciando, Diana sentiu um calafrio invadi-la. Notou que
estava molhada, um líquido que não vinha da cachoeira e que, em vez de
esfriar, a colocava febril outra vez.
Movida pela imagem gozosa da mulher que se oferecera para guiá-la
numa trilha, levantou a camisola e abriu caminho por entre os grandes e
pequenos lábios. Imaginou-se possuindo a anfitriã que era levada ao delírio
na água e, com a excitação crescente dela, a sua também aumentou.
Sufocando os gemidos e deliciando-se com a mistura da imaginação e da
realidade, encontrou sua satisfação logo depois de Zoé. Mas foi traída por
um grito que escapou à tentativa de contê-lo. Assustou as mulheres na água.
Suas pernas não obedeciam à vontade de sair dali antes de ser
descoberta. Sara e Ísis deixaram a cachoeira e se vestiram, acompanhadas
pelos olhares apreensivos das demais.
— Tem alguém aí? – Sara caminhou na direção de onde estava.
Diana não respondeu. Em seu lugar, dois cachorros latiram um para o
outro e atraíram as atenções para o lado oposto. Aproveitou a algazarra para
fazer o caminho de volta ao seu chalé.
Na cama, o corpo descansava saciado. Riu para si mesma da
travessura. Pelas frestas da janela, o dia deu as boas-vindas. Luna e Zoé
passaram, abraçadas, a caminho da cozinha.
Dormiu até tarde. Quando resolveu sair da cama, tomou um banho
refrescante. Tinha um sorriso mal contido toda vez que se deparava com uma
das donas – ou não donas – da pousada. Ao entrar no restaurante, a mesa de
café da manhã havia sido recolhida e Luna não estava na cozinha. Mas
Tulipa passou por ela e, embora o horário do desjejum já tivesse sido
ultrapassado em uma hora, ofereceu-lhe o que comer.
— Venha aqui na cozinha. – Abriu a geladeira e mostrou a ela. –
Luna fez um sorbet de banana que está divino. Quer experimentar? E acho
que ainda temos os brioches da padaria Santo Glúten.
Acompanhada pela mulher que não cessava de lhe oferecer mais e
mais quitutes, Diana comeu na cozinha mesmo.
— Precisamos de um limite para o café da manhã por conta do
horário de almoço. Já, já, a cozinha será de Ana Terra e ela não gosta de
nada, ou ninguém, atrapalhando.
— Eu estou satisfeita. – Falou, limpando a boca com um guardanapo.
– Acho que nunca comi tão bem.
— Se quiser, pode almoçar mais tarde também.
Caminhava em direção ao jardim, pensando com qual atividade
preencheria seu dia, quando cruzou com Zoé.
— Amanhã estou livre. Ainda quer fazer a trilha do Pico do Jacaré?
Diana a encarou e, por um segundo, lembrou-se de como, em sua
imaginação, a possuíra horas antes. Um frio na barriga não deixou que
respondesse de imediato.
— Se tiver outros planos, sem problema. Luna pode guiá-la outro
dia.
— Não, eu... – tomou uma respiração e se recompôs – Eu adoraria.
Que horas?
— Oito?
— Perfeito.
A manhã passou arrastada. Depois de um mergulho na cachoeira,
Diana saiu para um passeio no museu da cidade. Retornou antes do fim do
horário do almoço. Depois de fazer a digestão, perguntou se poderia dar uma
volta a cavalo.
A veterinária partiu com Sara. Não porque não soubesse conduzir o
animal, mas porque, dada experiência de montaria da hóspede, a anfitriã se
viu diante da perspectiva de uma deliciosa cavalgada, o que gostava de fazer
tendo alguém como companhia.
Galoparam alguns minutos até um bosque de árvores nativas que,
naquele horário, eram entremeadas por raios de sol alaranjados. Um visual à
altura de qualquer cenário de filme. Sem descer da montaria, conversaram a
respeito do local. Diana fez uma série de perguntas sobre a região, os
animais, a flora e a vida numa cidade pequena.
Sara respondia com satisfação. Tinha orgulho de pertencer àquele
lugar e de ter as outras mulheres da pousada como companheiras de vida.
— É verdade que a cidade é pequena. Mas há tantos eventos que ela
vive com mais turistas do que moradores. Então, ninguém perde muito
tempo com a vida alheia.
— Acredita que é minha primeira vez aqui?
— Não! Você tem que voltar. Diga o que gosta de fazer e eu te direi
quando.
Diana riu.
— Gosto dos prazeres da vida. Como todo mundo, eu acho. Comer
bem, boa música, literatura, natureza... e outras coisas.
Sara não pôde deixar de se perguntar que outras coisas seriam essas.
Diana era uma mulher interessante e, por um momento, pensou nela em um
contexto de intimidade. Disfarçou a tempo.
— Posso citar um evento para cada coisa que elencou. E a natureza
estará à sua espera sempre que desejar. – Falou, lançando-lhe um olhar
carregado de duplo sentido.
A hóspede a encarou, tentando decifrar o que havia por trás das
palavras. Não tinha muita intimidade com a sedução entre mulheres e, antes
que pudesse cometer uma gafe, calou-se. Diana se perguntava o quanto os
moradores vizinhos sabiam do relacionamento entre as mulheres. Como
qualquer cidade turística, deviam estar habituados a diversos tipos de casais.
Mas o que pensariam deste namoro que, até para ela, suscitava algum
estranhamento? Sem resposta para as perguntas não feitas, retornaram. A
noite ia alta quando terminaram de escovar os cavalos.
— Estava com saudades de montar um corcel. Desde a faculdade que
não fazia isso. Trabalho só com animais de pequeno porte. – Diana falou,
esfregando as pernas com as unhas.
A pele, fatigada pelo banquete que os pernilongos faziam no
estábulo, encontrou alívio imediato no unguento de óleo de andiroba, casca
de banana e manjericão oferecido pela companheira de cavalgada.
— Obrigada. É maravilhoso, veja como as picadas já desincharam. E
não coçam.
— Fique com ele.
— E você?
— Tenho outro lá em cima. – Indicou, com a cabeça, a área restrita
às hóspedes. – Se Tulipa fizer mais, te darei um pote novo. Deve durar até
seu retorno para cá.
Piscando para ela, Sara dirigiu-se à fogueira. A hóspede fez carinho
num cachorro, entreteve os filhotes com um pedaço de galho seco e, mais
tarde, deitou-se na rede, contemplando o que acontecia em volta: insetos
noturnos, casais apaixonados, a dança do fogo, grupos conversando e, como
sempre, a harmonia delicada entre as moradoras da casa. Com a perspectiva
renovada, percebia o quanto a relação entre elas era explícita nos detalhes de
como se olhavam, nos pequenos toques, nas palavras não ditas e, sobretudo,
na vontade uma da outra que, por vezes, deixavam escapar. Embora as mais
ousadas, como Ana Terra e Penélope, não parecessem preocupadas em
esconder o que viviam.
Diana foi dormir tarde. As poucas horas de sono cobraram seu preço
quando o despertador a tirou da cama às sete da manhã. Pensou em desistir
do passeio, mas um impulso misterioso a animou. Dirigiu-se ao café da
manhã com os cabelos lavados, um perfume suave e uma maquiagem leve,
só para realçar os olhos.
Zoé se sentou ao lado dela com uma mochila que parecia grande
demais para a empreitada à qual se propunham.
— Vamos acampar e não estou sabendo?
— Quem sabe? O visual lá em cima é lindo. Se quiser ficar para ver
o sol nascer, não me oponho.
Achando que era uma brincadeira, riu. Notou que Ana Terra a
substituía na cozinha e desejou conhecer a fórmula para o que considerava
um exemplo de relação interpessoal. Voltou ao quarto para escovar os dentes
e esperou por Zoé, que falava com Tulipa e Sara. Despediram-se com
discretos selinhos e a guia a chamou.
Adentraram na trilha conversando sobre uma infinidade de assuntos.
Quando começaram a subir, uma gata miou alto, assustando-as. Mais à
frente, um miado fininho se fez ouvir. Diana tocou na cintura de Zoé e
apontou para o alto de uma jabuticabeira.
— Como ele foi parar lá em cima?
— Certamente, movido pelo medo de alguma coisa.
A gata acercou-se das duas, como se pedisse ajuda. Zoé olhou a
configuração à sua volta. Testou um cipó e achou que era firme o bastante
para aguentar seu peso. Colocou a mochila no chão e brincou:
— Se eu cair, sabe voltar sozinha?
Diana riu. Apesar de intuir que a anfitriã não se colocaria em risco,
avaliou se poderia retornar sem ela. Achou que sim. Zoé apontara bem cada
bifurcação duvidosa, fazendo-a reparar nos detalhes que diferenciavam um
lado do outro.
Com os pés descalços, iniciou uma subida ágil, desacelerando
somente quando o ângulo do cipó a inclinou para trás, fazendo seus braços
trabalharem dobrado para sustentá-la. Ultrapassada a primeira dificuldade, a
anfitriã balançou a corda, forçando-a na direção do que parecia ser um
tronco seguro. Ao passar para a árvore, escorregou, assustando o filhote, que
se embrenhou ainda mais para o meio das folhas. Teria desistido, se não
fosse a expertise de Diana aconselhando que tivesse paciência. Quando o
bichano, finalmente, ficou ao seu alcance, deu um bote certeiro. Lá de baixo,
a hóspede sorriu, lindamente iluminada pelo sol que atravessava a folhagem.
— E agora, se eu o jogar, você apanha?
— Claro que não. Se fizer isso, é bem capaz dele sumir pra sempre.
— Como faço, então? – Perguntou, rindo da própria falta de
planejamento, que só resolvera metade do resgate.
— Envolva-o com sua camiseta. Faça uma bolsinha totalmente
fechada. E prepare-se para os arranhões.
— Só agora me conta isso?
Diana riu. Zoé agarrou o cipó e, ao deixar a jabuticabeira, sentiu os
primeiros arranhões da ferinha atingindo-a perto dos seios. Com uma careta,
continuou a descida, que era mais fácil por ter a gravidade a seu favor.
Percebendo as unhas do pequeno avançarem sem dó, revolveu acabar
com a aventura a um metro do chão. Soltou o cipó e amorteceu a queda com
as mãos, sentindo as garras afiadas se segurarem com força onde podiam.
Fez uma careta de dor, agora mais real do que a primeira, tirou os nós da
blusa e entregou o gatinho a Diana, que o aninhou em seus braços,
acalmando-o.
A hóspede esvaziou a mochila e acomodou o bichinho assustado
dentro dela. A gata, aliviada, enfiou-se para dentro e o encheu de lambidas,
lançando olhares para as mulheres que pareciam agradecê-las por trazerem
seu bebê de volta.
Diana olhou para Zoé e viu o estrago. Ela estava só de top e as alças
arriadas revelavam arranhões profundos e sangrentos. A hóspede alcançou o
estojo de primeiros socorros e limpou as feridas, tocando-a pela primeira
vez.
— Esse pequeno acabou comigo.
Olharam-se com cara de crianças travessas.
— Essa. A danadinha é uma fêmea. E das bravas. – Olhou para a
corda na mochila de Zoé e continuou. – Por que não a usou? Não seria mais
seguro?
— Mas não teria a mesma graça. Não é todo dia que posso brincar de
Tarzan e Jane na floresta.
— Seria muito engraçado se o Tarzan fosse parar no hospital. O que
Jane pensaria dele?
A provocação cafona foi retribuída por Zoé, que deixou reticências
no ar.
— O que faremos com elas?
— Teremos de voltar. Não posso doar minha mochila. E é bem
provável que o que fez a filhote se esconder tão alto a assuste outra vez.
— A veterinária é você. Vamos, então.
Zoé seguiu na frente, indicando a Diana os melhores locais onde
pisar. A subida podia ser mais cansativa, mas também se fazia mais segura.
Ao descer, conhecer o terreno se tornava uma grande vantagem.
Entraram no restaurante na hora do almoço. Cercadas pelas perguntas
curiosas que não as esperavam tão cedo, revelaram o motivo do retorno
atípico. Em poucos minutos, gata e gatinha estavam acomodadas e
desfrutavam de uma oferta de afagos nunca imaginada.
As aventureiras resolveram almoçar, já que o cheiro convidativo da
comida de Ana Terra e os estômagos vazios eram uma combinação
insuperável. A chef sorria, orgulhosa, diante dos elogios.
Diana dava a trilha por encerrada, lamentando o pouco tempo que
ficara na companhia de Zoé. Mas divertia-se com a gatinha peluda.
— Pronta para recomeçar a caminhada?
— Achei que a trilha fosse longa demais para ser iniciada depois do
almoço.
— Não se dormirmos lá.
Diana riu.
— Falei sério quando disse que o visual lá em cima vale cada
segundo. E hoje é noite de lua cheia, não quer arriscar?
— Não é perigoso? Há espaço suficiente para nós duas?
Foi a vez de Zoé cair numa gargalhada.
— Poderíamos acampar com mais 30 pessoas lá no alto. Tem até
uma fogueira de pedra com combustível suficiente para assarmos alguma
coisa.
Os olhos de Diana brilharam. Nunca passara a noite numa montanha
antes.
— Então vamos. O que preciso levar?
— O mesmo de antes.
Encaminharam-se para a trilha. Diana estava excitada. O percurso até
o local do resgate pareceu ser mais rápido do que na primeira vez.
Comentavam a aventura de trazer a bichana de volta, rindo dos arranhões em
Zoé e enumerando tudo o que poderia ter dado errado.
— Foi engraçado, mas confesso que fiquei comovida com a gata mãe
nos pedindo ajuda. E, depois, ela parecia nos agradecer.
O semblante de Diana se transformou.
— O instinto materno é... – Ela não completou a frase. Em vez disso,
deu um suspiro sofrido e seguiu em silêncio.
Reparando que alguma coisa tinha acontecido, Zoé pensava numa
maneira de abordar o assunto sem ser indelicada.
— Disse alguma coisa que te chateou?
A hóspede tomou seu tempo, antes de responder:
— Não, imagina. Tive uma lembrança dolorosa, só isso.
Zoé parou.
— Se precisar desabafar, sinta-se à vontade.
Diana suspirou. A guia tirou uma garrafa d’água da mochila e
estendeu a ela. Depois de alguns goles, a hóspede tomou coragem:
— Perdi um bebê num acidente de carro não faz muito tempo.
— Ah, Diana... eu sinto muito. Não tenho filhos, mas não posso
imaginar dor maior do que essa.
E, percebendo que ela precisava de amparo, ofereceu um abraço. As
duas permaneceram paradas e Diana deixou que as lágrimas a aliviassem.
— Tão difícil quanto a perda foi aceitar que meu tempo para ser mãe
já tinha passado.
— Por que diz isso? Muitas mulheres engravidam mais tarde. E
existe a possibilidade de adoção.
— Eu não posso mais engravidar. E adoção deixou de ser uma opção
depois que acompanhei o processo de um casal de amigos. A criança viveu
alguns anos com eles, estava feliz e bem cuidada. Mas a família teve seu
destino decidido por um juiz que considerou que o melhor para a criança
seria morar com uma avó que ela nunca tinha visto. A menina estava, então,
com cinco anos. Acho que só isso pode ser tão dolorido quanto perder um
filho para a morte – saber que a pessoinha que mais amo no mundo está
sofrendo, convivendo com desconhecidos e sendo privada do amor da
família que reconhece como sua. Sei que existe uma lei que entende o que é
melhor para as crianças, mas o que vi, na prática, não me pareceu bom para a
filha dos meus amigos, nem para eles.
— Esse não é um assunto sobre o qual eu me sinta com
conhecimento para opinar. Certa vez, recebemos uma assistente social que
insistia na ideia de que o melhor para a criança era sempre ficar com a
família biológica. Entendo essa postura como muito radical, sabendo como
são algumas famílias por aí. Mas compreendi o lado dela quando nos contou
sobre um casal que, apesar de viver na rua, criava dois filhos como muitas
famílias abastadas não o fazem. Falou coisas lindas sobre as crianças e a
respeito da batalha que os pais enfrentaram para continuar com guarda delas.
Acho que cada caso é um caso. Nem sempre as leis levam todas as nuances
em conta, pelo contrário. O que me faz entender sua decisão, mesmo
sabendo que a maioria dos casos têm um final feliz.
— Tenho me esforçado tanto para me acostumar à ideia de que não
serei mãe, que pensar o contrário, agora, é igualmente dolorido.
Sem saber o que dizer, Zoé se limitou a ouvi-la. Refletiu se, alguma
vez, vivera um dilema parecido.
Claro que sim. Sobretudo na decisão de partilhar a vida com outras
mulheres, num relacionamento em que era preciso reaprender diariamente
como conviver. Embora amasse cada uma de suas companheiras, não era
fácil vivenciar um namoro sem nenhum modelo para servir como parâmetro.
E numa sociedade predominantemente incapaz de aceitá-lo ou compreendê-
lo. Zoé, Luna e as outras tinham estabelecido as perguntas que as guiavam e
que precisavam ser respondidas diariamente: “Eu estou feliz? Há algo que
me machuque neste modo de amar? Eu seria mais feliz em outro formato de
relacionamento?”. Discutir a relação, para elas, não era um fardo, como
muitos casais tratavam a questão, mas uma necessidade de se
compreenderem, de cuidarem umas das outras e, sobretudo, de reescreverem
as próprias regras deste jogo em que esperavam não haver perdedoras.
Caminharam em silêncio durante a parte mais íngreme da subida. A
atividade obrigou o corpo a direcionar todos os seus esforços para músculos
e pulmões, aliviando o cérebro do peso dos sentimentos. Diana recuperou o
semblante com o qual desfrutara da pousada desde sua chegada e Zoé ficou
feliz.
O ritmo desacelerou quando precisaram das mãos para ultrapassar
pedras maiores. E, com isso, detalhes que antes passavam despercebidos,
agora eram elucidados pela anfitriã, que fazia questão de apontar um fungo
indicativo da boa qualidade do ar, uma espécie endêmica de lagarto ou,
simplesmente, a beleza de uma flor. Divertiam-se com trechos que Diana
jurava desafiarem a gravidade para, depois, perceber que não fora tão difícil
atravessá-los. Nos pontos mais íngremes, a guia subia primeiro, prendia a
corda nos ganchos da pedra, e Diana a usava como apoio. O efeito, talvez,
fosse mais psicológico – avaliou.
Finalmente, pararam diante de uma bifurcação. Depois de apreciarem
a vista, Zoé avisou:
— Se estiver mesmo disposta a fazer uma pequena escalada e chegar
ao topo pelo caminho mais bonito, vamos pela esquerda.
— Achei que isso já estava decidido. É claro que vamos escalando.
Só de chegar até aqui, já me sinto uma montanhista profissional.
— Sabia que estava guiando a pessoa certa. – Respondeu, piscando
para ela.
Chegaram num paredão maciço que pareceu a Diana muito mais alto
do que Zoé lhe contara.
— Está de sacanagem! É isso que vamos subir?
A anfitriã riu. Apesar da altura da rocha, e do espanto que ela
provocava em quem nunca tinha escalado antes, sabia que a pedra era
acidentada o bastante para oferecer um vasto cardápio de apoios para pés e
mãos.
— Não é tão difícil quanto parece. E você vai subir com todo o
equipamento de segurança. – Falou, tirando da mochila a corda, duas
cadeirinhas, uma porção de mosquetões e outros apetrechos.
— O que são esses tênis minúsculos?
— Sapatilhas de escalada. Têm de ser pequenas mesmo, para os pés
não sambarem. Proporcionam mais firmeza na hora de se apoiar, embora o
grau dessa pedra permita até que a subamos de botas mesmo.
— Quer dizer que trouxe uma sapatilha pra mim?
— É claro, você não disse que viria pelo caminho mais difícil?
Seguiu-se uma conversa agradável, enquanto a guia preparava os
equipamentos. Diana estava fascinada com as novidades, mas o que mais
mexia com ela era o fato de que, quanto mais tempo passava com Zoé, mais
se interessava por ela, reparando em cada gesto, admirando-a pelo
conhecimento do local, das técnicas de montanhismo e pela simplicidade de
estar em sua companhia. Inevitavelmente, comparou-a com o ex-marido e os
ex-namorados. Avaliou o quanto tinha se esforçado em cada uma dessas
relações, engolindo a própria espontaneidade em favor do que seriam regras
adequadas de conduta. No casamento breve, sabia que a vontade de ser mãe
a movera na direção de uma vida com alguém por quem seu coração não
vibrava. Separaram-se antes da Terra completar uma volta ao redor do sol.
Diana estava, então, com quatro meses de gestação. Seria feliz como mãe
solo. Fora uma decisão acertada – pensou.
— Agora preste atenção: vou subir, prendendo a corda em cada um
dos ganchos deste paredão. O magnésio nas minhas mãos marcará os
melhores apoios para você agarrar, mas não se preocupe em acertar todos,
pois essa rocha é cheia de possibilidades. Confie no seu instinto. Quando
começar a subir, estarei lá em cima fazendo a sua segurança. Caso você se
desequilibre, lembre-se de que estará presa à corda. Venha, vamos
experimentar um boulder primeiro.
Aproximaram-se do paredão maciço e Zoé mostrou a Diana como
encontrar apoios para os pés e agarras para as mãos. Na primeira tentativa,
ela deixou o pé escapar e achou que seria impossível se equilibrar numa
subida a 90 graus. A anfitriã, então, mostrou como fazia e, na vez seguinte,
Diana subiu rapidamente, passando por três apoios da via.
— Ei, não vá muito alto, ainda. Em vez de subir, caminhe para o
lado. O importante é compreender a pedra e sentir confiança.
Gostando a aventura, Diana fez como ela falou. Divertiu-se ao
perceber o quanto a escalada era mais fácil do que parecia.
— Tente agora com as sapatilhas. Quero que sinta a diferença.
Apesar do aperto nos pés, e da careta de dor quando ficou sobre eles,
a hóspede percebeu como o solado de borracha da sapatilha se agarrava à
pedra, de modo a proporcionar firmeza mesmo nos menores apoios. Foi de
um lado a outro e, antes que pudesse esgotar as energias, Zoé a chamou de
volta, orientando-a para os próximos passos, como “descosturar” a corda.
Caberia a Diana remover, sozinha, cada mosquetão que a segurava nos
ganchos fixos e prendê-los na própria cadeirinha, sem passar por cima do
freio ou enroscar a corda em si mesma, além de levar as mãos às costas
frequentemente, mergulhando-a na bolsinha de magnésio em pó, que servia
aos dedos como a borracha da sapatilha servia aos pés.
Além de todos os fatores novos, haveria também o emocional
envolvido. Zoé não sabia como a hóspede reagiria ao perceber que estavam
diante de um desfiladeiro de beleza única, porém causador de certas
vertigens e, às vezes, da desistência de novatas da empreitada.
Chamou Diana para perto de si e a ajudou a vestir a cadeirinha.
Quando puxou a corda para fazer o nó, a hóspede se desequilibrou e foi
amparada por Zoé de uma queda que derrubaria as duas. Encararam-se,
sentindo a tensão que a proximidade excessiva provocava. Instintivamente, a
guia desceu os olhos para os lábios de Diana e voltou a encará-la. A
deglutição, revelada nos movimentos do pescoço, denunciava a excitação
que se instalava. Diana, por sua vez, respirava de boca aberta, e precisou
umedecer os lábios ressecados, num movimento que insinuou sua língua
para fora da boca e, por pouco, não foi adiante.
Forçando-se na direção contrária à da própria vontade, Zoé se
afastou, com um riso sem graça. Diana tomou a atitude como uma negativa
e, constrangida, mal compreendeu as últimas explicações sobre a subida.
Quando se deu conta, Zoé a olhava do meio da pedra, perguntando se estava
tudo bem.
— Sim. Já devo subir?
— Ainda não, espere eu terminar. Vou gritar lá de cima.
— Está bem. – Fingiu para ela e para si mesma que sabia o que fazer.
Quando a guia atingiu o destino, Diana não se sentia preparada.
Todos os seus músculos tremiam. Pensou em desistir e só não o fez porque
não sabia se, no mundo da escalada, isso seria possível. Esquecera-se de
tudo o que Zoé lhe ensinara e, por alguns segundos, encarou a pedra sem
saber o que fazer.
— Está tudo bem aí?
— Sim. – Respondeu, rápido demais. – Não me lembro como
começar.
— Pise naquele ponto que se parece com um degrau e agarre, com a
mão direita, a fenda manchada de magnésio. Depois, leve o pé esquerdo no
ponto que usou no treino de boulder e se impulsione para cima.
— Vou tentar.
— Diana? Diana, olhe para mim.
A hóspede ergueu a cabeça.
— Você já fez isso antes. Sabe que não é difícil. Estou aqui te dando
segurança.
Diana aquiesceu. Deu um suspiro profundo e sentiu que voltava a
controlar a própria musculatura. Com a mochila nas costas, deu o primeiro
passo. Firme, seguro, sabendo o que tinha de fazer. Depois, mais um. E
outro. As mãos, como Zoé falara, encontravam sozinhas os melhores lugares
para se agarrar.
Descosturou o primeiro mosquetão e prosseguiu. Havia passado do
ponto em que treinara e, literalmente, sabia que pisava num terreno
desconhecido. Mas não lhe parecia muito diferente dos metros iniciais.
— Quando sentir que está firme, preciso que faça uma parada.
— Estou firme aqui.
— Um pouco abaixo de você, na sua diagonal esquerda, há uma
bromélia. A corda se enroscou lá e, daqui, não consigo ver se ficou presa.
Acha que pode soltar uma das mãos e sacudi-la?
Ela respirou fundo e olhou para baixo.
— Porra, Zoé, é alto pra cacete aqui.
— Sim, mas você está presa, lembra? – E, para não deixar dúvidas,
tensionou a corda entre elas, sabendo que Diana sentiria a força içando-a. –
Respira fundo. Você já fez a parte mais difícil.
— Não sei se posso me soltar.
— Tudo bem, então. Pode continuar subindo.
— Mas e a corda?
— Puxarei depois. Voltaremos pelo outro lado, então não tem
problema se ela danificar.
— Como assim?!
— Você está acima da parte que se prendeu à bromélia. Não há
perigo.
— Acho que estou tremendo.
— Olhe para mim, Diana. Diana?!
— Oi.
— Isso. Você está indo bem. Falta menos da metade agora. Dê mais
um passo.
— Não consigo.
— É claro que consegue. Confia em mim. – Zoé acompanhou sua
indecisão. Finalmente, Diana arriscou um movimento. – Isso. Perfeito.
— Estou mais firme agora. Posso puxar a corda.
— Não precisa.
— Eu consigo. – E, olhando para baixo sem a surpresa que a abalou,
liberou a mão esquerda e forçou a corda para longe do paredão o máximo
que pôde. O impulso fez com que se soltasse da planta. Olhou para cima e
contemplou o sorriso de Zoé parabenizando-a.
— Sabia que conseguiria! Você foi excelente. Obrigada. Agora deve
fazer o próximo passo para a direita e descosturar mais um mosquetão.
— Sem ter que olhar para baixo, tudo parece mais fácil.
O trecho final da subida era ainda mais simples do que o início. Mas
a altura podia trair o bom senso. A hóspede, no entanto, desfez a costura e,
rapidamente, chegou no próximo gancho. Com a confiança adquirida ao
longo da subida, realizou o movimento mais rápido do que deveria e deixou
o mosquetão cair. Na tentativa de pegá-lo, escorregou o pé e precisou da
força dos braços para se segurar. Zoé içou a corda para cima, dividindo o
peso entre ela e as articulações da hóspede. Mesmo assim, Diana gritou de
medo ou de dor.
— Há um apoio grande perto do seu pé direito. Dobre um pouco o
joelho e o encontrará. Isso. Agora traga o pé esquerdo, esse apoio é amplo.
Diana estava pálida.
— Você está presa, lembra?
— Mas derrubei seu equipamento.
— Acha que nunca perdi um mosquetão antes? Não se preocupe.
Podemos buscá-lo na volta. Você está bem? Se machucou?
— Não, acho que não. – Respondeu, movimentando um dos braços,
numa atitude que contradizia sua resposta.
— Ei, você desfez todas as costuras. Mais dois passos e estará aqui
comigo.
Estendendo a mão a ela, Zoé sorriu. Diana correspondeu e,
concentrada, executou o final da subida. A guia a segurou, dando o último
puxão até o ponto de onde prosseguiriam. Deixou que ela tomasse o tempo
que precisava para se se recompor com uma oferta de água, sanduíches e
chocolate.
— Você foi muito bem. Mais umas duas escaladas e terei uma
parceira de aventuras.
— Como assim? Só você escala?
— Sara e Ana Terra também, mas eu sou a mais animada e vivo sem
companhia.
Ela riu.
— Fiquei bem nervosa no começo. Uma coisa era me arriscar com
você do lado. Mas, quando me vi sozinha...
— Escalar é 50% técnica, 50% controle emocional. Perdi a conta de
quantas vezes tive de retornar e seguir pelo trajeto alternativo. Muita gente
desiste no meio.
— Confesso que pensei nisso quando olhei para baixo.
— Mas se controlou e seguiu em frente. Isso diz muito sobre você,
não acha?
Ela não respondeu, mas exprimiu um “quem sabe?” com o olhar.
Zoé guardou os equipamentos, trocaram as sapatilhas pelas botas, não sem
antes massagear os dedos espremidos, e continuaram pela trilha, agora já no
final. O sol se aproximava do ocaso e a paisagem diante delas era
deslumbrante.
Diana pensava na vida e em todos os acontecimentos que a haviam
levado até ali. O acidente no qual perdera o bebê fora o motivo que a fez
procurar por um local onde pudesse renovar suas forças.
— Vamos, vale a pena ver esse pôr-do-sol lá de cima.
Empenharam-se na reta final. Somente quando chegaram ao topo,
Diana compreendeu o que Zoé dissera sobre acampar com 30 pessoas lá em
cima. A pedra se alargava, fazendo um platô natural com mais de três metros
de comprimento. Havia uma caverna, também, que poderia acomodar de oito
a dez barracas de camping.
Zoé tirou da mochila um colchonete de ar, que inflou sozinho em
segundos. A guia se acomodou e chamou Diana para junto de si.
— Venha, está quase na hora.
Lado a lado, assistiram ao espetáculo da natureza de um lugar
privilegiado, para dizer o mínimo. Algumas vezes, olhavam-se, apenas
aumentar a emoção partilhada. A claridade foi sendo vencida pela noite, as
cores se transformaram e a ausência de luz tornou tudo mais sedutor. De
repente, a mão de Diana pousou sobre a de Zoé.
— Desculpa.
— Imagina.
Silêncio.
Olhares.
Diana deitou-se e deu um suspiro.
— Como o céu pode ser ainda mais bonito daqui de cima?
— Deve ser porque estamos mais perto dele. – Acomodou-se ao lado
dela. – Está com fome?
— Estou. Mas preciso contemplar esse visual mais um pouco.
— Não se preocupe, eu posso...
— Não, fique aqui. Me faça companhia.
Passaram um tempo sem dizer nada. Algumas nuvens surgiram,
ainda iluminadas por um raio mínimo de sol que as coloria de rosa. Uma
águia cruzou o céu e insetos iniciaram a cantoria noturna, misturando-se aos
piados e farfalhares, num concerto que encerrava, com louvor, a
apresentação da estrela mais brilhante da Terra.
Alguém se virou. Os braços se tocaram e a lembrança do quase beijo
veio à tona. Tentaram disfarçar, mas os corpos voltaram-se na direção um do
outro, como se o desejo ganhasse a disputa travada com a razão. Riram um
riso nervoso e sem graça, que lançava pensamentos à noite:
"Ela quer o mesmo que eu? Como ela é linda! Vontade de provar seu
beijo. E se ela me rejeitar? Será que me arrisco?” – E mais uma série de
nuances para as quais não havia palavras que pudessem descrevê-las.
Os peitos passaram a encher e esvaziar com mais ímpeto. As bocas,
entreabertas, ficaram secas pelo ar que entrava e saía. Olhares subiam e
desciam, fugindo e se entregando ao mesmo tempo.
Diana foi a primeira a forçar os músculos na direção de Zoé. Ergueu
a cabeça, fez um dos braços de base e moveu-se para ela. A montanhista
ativou os mesmos comandos centésimos de segundo depois, recebendo-a em
sua boca. Acolheu uma saliva que não era a sua, apertando a cintura que se
ajustava perfeitamente ao seu abraço. As pernas, tímidas, ansiavam
participar da brincadeira que ainda estava restrita ao hemisfério norte
daquele conjunto tátil a que chamavam de corpos.
Acima das árvores, era como se o tempo passasse mais devagar.
Tomadas por aquela lentidão, permaneceram com as bocas unidas até que a
densidade das salivas se tornasse mais tênue e outros fluidos se insinuassem.
Em vez de saciá-las, o encontro das bocas funcionou como um aperitivo que
as acalmou apenas por um instante.
Diana se impulsionou para cima de Zoé. Apoiou a mão livre no chão,
preparando-se para descer o tronco na direção dela. Foi interrompida pela
dor.
— Ai!
— Que aconteceu? – Zoé tomou um susto com a interrupção abrupta.
— Meu ombro. – Diana esfregava o local dolorido.
— Deixe-me ver. – Voltou ao personagem de guia e, sem qualquer
intenção maliciosa, ajudou-a a tirar a camiseta
Com as mãos sobre o ombro, apalpava-o em busca de algum inchaço
ou nódulo mais preocupante. Sabia que o susto da hóspede ao derrubar o
mosquetão tinha sido o responsável pela dor que, agora, com os músculos
frios, aparecia. Girou seu braço em vários sentidos, testando se havia
limitações. Num dos movimentos, ela gemeu. Ali estava a questão: devia ter
distendido o redondo menor ou o maior.
— Acho que não foi grave. Mas você terá que repousar esta
articulação por 15 dias, pelo menos.
Diana a encarou com um misto de desapontamento e desfrute.
— Acha que fará mal se eu começar o repouso depois dessa noite?
Zoé levou alguns segundos para pescar o que ela dizia. E sorriu
timidamente, mais pela falta de astúcia do que por recato.
— Infelizmente.
— Eu tinha outros planos.
— Nada que não possa ser contornado com outros artifícios.
Sobre o braço bom, Diana atirou-se por cima de Zoé. Beijou-a,
prenunciando como seria a noite. Puxou a camiseta da anfitriã para cima e o
top para baixo. Contemplou-a por alguns segundos, rindo dos arranhões.
Acariciou-a por cima das listrinhas vermelhas e pousou as mãos em seus
seios. Sem poder controlar a própria ânsia, abocanhou um dos mamilos,
degustando forma, volume e textura. Sua língua sentia-se massageada ao
lambê-lo.
Zoé respirou com mais força, somando seus ruídos aos de Diana e da
natureza. Gostou de inspirar o cheiro dela de perto – um agridoce sensual – e
do encaixe espontâneo entre seus corpos. Sentiu o outro seio ser devorado e
a avidez com que sua amante o tomava, derreteu-a.
Como se adivinhasse o que tinha acontecido, Diana escorregou com
o braço machucado para baixo e a pressionou, provocando gemidos em
ambas. Zoé respondeu trazendo-a mais perto de si. Agarrou-a na nuca,
sentindo a umidade por baixo dos cabelos fartos. Escorregou as mãos, como
se o vão no meio das costas fosse uma trilha a ser percorrida até as nádegas.
Diana estava arrepiada. Olhou-a, decorando cada detalhe de suas
expressões. De olhos fechados, beijou-a no rosto e permitiu que os lábios
deslizassem para o pescoço, perdendo-se na maciez cheirosa da pele. Com a
mão livre, explorava seu corpo em direção ao hemisfério sul, percebendo as
respostas permissivas com as quais era acolhida.
Zoé a deitou no pequeno colchão inflável. De onde estava, Diana a
admirava. A anfitriã puxou os cabelos para cima e os amarrou num coque
improvisado, permitindo à brisa noturna resfriar a pele. Seus quadris
iniciaram um movimento sobre o sexo da hóspede e elas fecharam os olhos,
dedicando-se a cada sensação.
Quando Zoé não pôde mais, relaxou o pescoço e se entregou,
encarando a lua cheia que se derramava sobre elas. Diana sentiu o gozo
escorrer. Com os olhos em chamas, encararam-se, vislumbrando o reflexo
das estrelas nas peles molhadas de suor – uma comunhão única com a
natureza. Levou a mão à boca para provar gosto da anfitriã e a beijou até os
corpos se aquietarem.
— Diana?
— Hum?
— Ainda está com fome?
— Agora que me lembrou, sim.
— Tenho uma surpresa pra você.
Zoé foi até a redoma de pedras e testou as toras deixadas ali em outra
ocasião. Buscou um machado na caverna e, afastando-se de Diana, cortou a
lenha em pedaços menores. Acendeu um montinho de galhos secos e
acomodou as toras mais grossas por cima.
Deitada de lado sobre o braço bom, Diana contemplava cada
movimento. À luz do fogo, a anfitriã era ainda mais bela. Seu desejo foi
despertado outra vez.
— O que está olhando?
— Você. Tem certeza de que está com fome?
Zoé respondeu indo até ela e a puxando para si num beijo ardente.
— Tenho. – E se afastou para armar um tipo de suporte por cima da
fogueira.
Curiosa, a hóspede acompanhou. Com um canivete, Zoé desgastou a
extremidade de um galho fino até obter uma ponta afiada, como um espeto
de churrasco. Tirou um pote de plástico da mochila, cujo conteúdo estava
oculto por papel laminado. Atravessou o que quer que fosse aquilo com o
espeto e o depositou sobre as escoras em torno do fogo. Diana sorriu.
— O que tem aí?
— Uma tainha temperada pelas mãos únicas de Ana Terra.
— Mentira! Como sabia que eu gostava de peixe?
— Reparei que repetiu quatro vezes ontem.
Diana riu. Foi até ela e a apertou contra si.
— Espera, acho que eu preciso me lavar. – E mostrou a mão suja de
tempero.
— Não me diga que essa caverna tem uma torneira e uma banheira
de hidromassagem.
— Não. Mas há uma queda d’água na descida que faz uma hidro
natural muito melhor do que essas que se pode comprar.
— Ah é? - Respondeu, com um sorriso insinuante.
Zoé lavou-se com uma garrafa d’água que estava na caverna – e que
explicou deixarem ali para esse fim, repondo-a sempre que necessário. Diana
fez o mesmo.
O peixe emanava um cheiro bom e aguçava as papilas gustativas das
famintas. Com um punhado de folhas que Diana não identificou de imediato,
Zoé preparou um chá e entregou a ela.
— Hum... pitanga. Que delícia.
— Trouxe um chá relaxante também, mas não sei... me deu vontade
de passar a noite acordada...
Sorriram libidinosamente. Zoé verificou o assado. Achou que estava
no ponto e serviu-as.
— Posso perguntar uma coisa?
Zoé deu de ombros.
— Pode.
— Já fez amor aqui antes?
A anfitriã lhe devolveu uma cara de culpada.
— Digamos que esse é um dos meus locais favoritos na Terra.
— Sei... – Diana a encarou. – Meu também, agora que o conheço.
Jantaram. A hóspede elogiou o peixe várias vezes, lambendo os
dedos ao terminar. Zoé disse que a essência do sabor se devia ao modo como
o tinha assado, tomando para si a responsabilidade pela comida deliciosa.
— Não duvido, embora acreditaria mais em você se dissesse que é a
sua companhia que faz tudo parecer tão bom.
— É, tem isso, também.
Diana deu um gole no chá e arriscou:
— Você está solteira, Zoé?
— Por quê? Pretende me pedir em namoro?
— Só se disser que aceitará.
A anfitriã olhou para o lado oposto. Tomou uma respiração longa.
Não era a primeira vez que se envolvia com alguém de fora do seu círculo
amoroso. Inclusive, algumas de suas namoradas tinham tomado parte no
relacionamento depois de ficar com ela ou com alguma das outras. Embora
tudo parecesse muito simples, não era fácil encontrar palavras com as quais
explicar a natureza do envolvimento que tinha com as mulheres da pousada.
A noite corria agradável, sobretudo, pela química existente entre ela
e Diana. Não querendo estragá-la, Zoé foi limpar os restos do jantar,
procurando em seu dicionário interno as melhores palavras para responder à
pergunta de sua companheira de aventura.
Diana foi atrás dela.
— Deve ser uma delícia se abrigar aqui num dia frio, ou mesmo de
chuva.
— Tomara que possa responder por si mesma. Em maio, o céu
consegue ser ainda mais bonito.
— Seu silêncio me deixou na dúvida quanto a haver outro encontro
possível entre nós.
Zoé engoliu em seco.
— Não é fácil responder ao que me perguntou.
— Acha que eu não daria da conta?
— Algumas pessoas não dão.
— O que te impede de tentar?
— Você. – Diante da incompreensão, Zoé continuou. – Quando me
ofereci para guiá-la, não tinha qualquer intenção de... Sabia, sim, desde que
começamos a caminhar, que seria um passeio agradável, porque nos demos
muito bem, mas isso era tudo o que eu presumia. No entanto, cá estamos e
acho que minha vontade de permanecer acordada é a mesma que você
demonstra. – Ela riu – Temo que, ao te responder, a conexão entre nós mude.
— Por quê? Está traindo alguém ao ficar comigo?
— Não, não é isso. Mas também não sou uma mulher solteira.
— Então você tem um relacionamento aberto?
— Por aí. – Zoé deixou no ar uma centelha de dúvida no ar.
— Bem, há algo que eu devo lhe contar. – Dirigiram-se ao
colchonete. – Dois dias atrás, fiquei insone. Achei que uns minutos de brisa
noturna eram o que eu precisava para voltar a dormir. Então, ouvi vozes indo
para a cachoeira e deduzi que se tratava de um grupo animado saindo para
passear. Fui atrás.
Narrava tentando decifrar a expressão Zoé. Mas ela devolvia um
olhar impenetrável. Resolveu não polir as palavras. Era uma mulher adulta,
afinal, e poderia dar conta de sua reação.
— Vi vocês na água... transando.
Silêncio.
— E?
— E o quê?
— O que fez quando nos viu? Voltou para o chalé?
— ...
Diana deteve-se no limbo entre a iminência de responder e a ausência
de palavras.
— Não. – Como se Zoé esperasse uma explicação mais detalhada,
continuou. – Fiquei excitada. E assisti vocês durante alguns minutos. Depois,
sim, voltei para o quarto.
— Então não se masturbou enquanto fazíamos amor? E gritou de
prazer?
— Você sabia?
— Não até começar a me contar. Mas sabia que não foi um latido o
que ouvi naquele dia.
Zoé não disse mais nada. Diana, tampouco, soube como continuar.
Tinha invadido a privacidade das anfitriãs e a guia tinha todo o direito de
repudiá-la por isso. Ao mesmo tempo, elas tinham ocupado um lugar
público. Depois do que pareceu uma eternidade, Zoé quebrou o silêncio.
— Não pensou em se fazer presente?
— Bem... não. Achei que seria constrangedor violar a privacidade de
vocês.
— E a violou, mesmo assim.
— Não tive a intenção.
— Não num primeiro momento.
— Exato. Depois, a imagem de vocês despertou algo dentro de mim
que – ela engoliu em seco – eu havia esquecido.
— O quê?
— Sinto atração por mulheres, Zoé. Acho que já deu para perceber.
A anfitriã não respondeu. Mas Diana achou sua expressão mais
suave. Zoé enrolou-se numa manta, deu as costas à hóspede e se afastou,
contemplando o horizonte.
Diana a observou, dando um tempo para que esfriasse a cabeça.
Como Zoé não disse nada, foi até ela e lhe deu um beijo demorado atrás da
orelha.
— Desculpa. Sei que agi mal. – Zoé ficou de frente para ela. – Mas,
em minha defesa, digo que poderiam ter sido flagradas por qualquer
visitante, talvez alguém que não estivesse preparada para o que acontecia ali.
– Aproximou-se para um beijo e, não encontrando objeção, colou seus lábios
nos dela. – Acha que alguém que as visse como estavam não teria parado, ao
menos por uns segundos, para admirá-las? Vocês estavam lindas, a
propósito. Só de lembrar...
Zoé a calou com um beijo. Um encontro de bocas feroz, ardente,
acusando a carência que o corpo da anfitriã sentia por Diana. Possuiu-a sem
dó, ali, de pé, a menos de um metro do fim do platô. Suas bocas não se
separaram nem por um segundo. As mãos de Zoé cumpriram turno dobrado
para dar conta da mulher que se desmanchava nelas.
Diana não deixou por menos. Depois de um orgasmo intenso, exigiu
sua boca no sexo de Zoé e a chupou sem que o ombro machucado ousasse se
intrometer. Erguendo os quadris, anfitriã entregava-se em delírio, até não
poder mais dar conta dos próprios músculos.
O movimento de uma provocava a resposta perfeita na outra.
Brincavam com a intensidade de cada gesto em recantos ainda
desconhecidos, numa química da qual nenhum cientista ousara falar. A noite
parecia pequena demais para dar conta do que poderiam fazer.
Quando o dia amanheceu, depois de testemunharem um sol
voluptuoso imperar sobre suas cabeças, recolheram-se para um cochilo.
Naquele instante, o epíteto da pousada não podia ser mais preciso para
Diana. Era, sem dúvida, a melhor do mundo.
Na descida de volta à realidade, pararam na hidromassagem natural
e, ali, amaram-se mais uma vez, trocando olhares que prometiam repetir
muito aquele encontro.
Vinte reais. Era o que precisava para a noite. Podia gastar parte de seu
dinheiro, desde que lhe sobrassem vinte reais.
Naquela manhã, Dionísia acordou cedo. Estava muito ansiosa e
igualmente feliz. Tanto que não se importou ao ver Cabaço usando seu papel
higiênico pela terceira vez na semana. Brigou com ele mais por costume do
que por brabeza. Juntou seus pertences no mochilão puído, recolheu,
cuidadosamente, um vestido lavado que tinha terminado de secar, enrolou o
colchãozinho e o deixou aos cuidados de Paulete por uma noite.
— Vou dormir fora hoje. – Confidenciou-lhe, com um sorriso de
orelha a orelha.
Deixou a marquise do prédio empresarial, no centro do Rio de
Janeiro, e partiu em direção à Avenida Rio Branco. No ombro, carregava o
kit de engraxate: uma caixinha de madeira, latinhas de graxa de cores
variadas, escovinhas e panos.
Trabalhava com vontade, não perdendo tempo entre um “não” e a
próxima possibilidade de um “sim”. Precisava comprar uma porção de
coisas e, no que dependesse dela, ainda teria seus vinte reais garantidos.
Parou apenas para almoçar. Uma moça fina, que deixava o Starbucks
para trás na companhia de um amigo, entregou-lhe uma sacola de papel
contendo dois pães de queijo e uma bebida meio aguada, mas que desceu
legal porque estava supergelada e o dia era quente.
— Valeu, tia. – Agradeceu com a voz um pouco rouca. Fazia frio à
noite e ela tinha a garganta sensível.
A moça lhe sorriu de volta. Almoço bacaninha assim só podia ser
sinal de sorte. Animada, entrou na farmácia, a contragosto do segurança.
— “Tô” de cliente, tio. Olha aqui meu dinheiro. – E mostrou ao
sujeito sisudo algumas notas amassadas de dois reais.
Escolheu uma escova de dentes amarela estampada com
coraçõezinhos, a pasta de dentes mais barata e um sabonete. Cheirou várias
opções, atraindo a companhia do vigia para o corredor no qual se demorava.
Optou por um Phebo tradicional, mais porque combinava com a escova de
dentes, do que pelo cheiro. Foi para o caixa e, quando chegou sua vez, a
conta excedeu o que tinha em cédulas.
— “Pera” só um minutinho que eu tenho mais dinheiro aqui. – Abriu
o mochilão e travou a fila, catando moedas. O espetáculo atraiu olhares
tortos da clientela apressada e do vigilante mal-encarado.
— Volta pro final enquanto procura. – Ele falou.
Dionísia estava de bom humor. Foi. Quando chegou sua vez
novamente, com um sorriso cheio de dentes, entregou tudo à moça que fazia
a cobrança. Deixou que ela resolvesse por si mesma. Sem dizer nada, a
mulher colocou suas aquisições numa sacola verde e lhe devolveu uma
moeda de dez centavos.
— Brigada, tia.
Deu uma piscadinha marota para o segurança antes de sair. Na
calçada, olhou, orgulhosa, para suas compras. E deu um tapa na testa.
— Bora trabalhar! – Ainda precisava de grana para o ônibus e para o
banheiro. Se desse sorte, poderia até fazer um jantarzinho especial para a
noite.
— Tio, bora engraxar o sapato hoje?
— Tia, tem uma moedinha sobrando?
— Moça, posso engraxar suas botinhas?
— Tia, onde compro um laço igual a esse da senhora?
— Um laço? Pra que você quer um laço?
— Pra ficar bonita, tia. Que nem você. Hoje é um dia especial.
A tia pensou...
— Quantos anos você tem?
— Dezessete.
— Você é muito bonita.
— A senhora também.
— Não me lembro onde comprei o laço. Mas toma, fica com o meu
de presente.
Os olhos de Dionísia brilharam.
— Ah, que lindo, tia. Amei! Brigada.
Despediram-se com um abraço. – A vida e seus encontros!
Trabalhou mais algumas horas e, quando contava quarenta e seis
reais, achou que bastava. Foi para a Avenida Presidente Vargas e entrou num
ônibus em direção a Rodoviária Novo Rio. Pagou com cédulas de dois reais
e jogou o troco na mochila.
Chegou com dor de barriga. Achou que era por causa da bebida
aguada do almoço. Mas também podia ser de nervoso. Pagou dois reais para
fazer suas necessidades e mais oito para tomar banho. Abriu o sabonete com
cuidado, para não estragar a embalagem que combinava tão bem com a
escova de dentes. Lavou-se duas vezes, dando especial atenção às
reentrâncias do corpo, e removeu a espuma a tempo. A água cessou logo em
seguida. Secou-se, guardou a toalha molhada na sacola da farmácia, escovou
os dentes, achando-se linda no espelho, e penteou os cabelos. Ao lado, outra
moça também se arrumava. Ela abriu um vidrinho cheiroso.
— Moça, será que eu posso usar uma gotinha do seu perfume?
— É colônia. – Respondeu, entregando o vidro a ela.
Dionísia se arrumou toda. Tirou o vestido da mochila e, com gotinhas
d’água, ia molhando as partes amassadas e esticando-as com as mãos.
Colocou o laço de fita no cabelo. Olhou-se no espelho uma última vez e
bateu na testa.
— Esqueci a maquiagem.
Pegou seu batom vermelho nas últimas e cavoucou o finalzinho.
Passou nos lábios. Depois, com o dedo mindinho, extraiu o que restava e
espalhou pelas bochechas. Sorriu, toda prosa. Estava linda.
Tomou um ônibus em direção a São Cristóvão. Foi de pé para não
amassar a roupa, nem se sujar. Alguns metros antes do seu destino, tirou um
lenço da mochila e secou o suor. Revirou os bolsos e juntou todo o dinheiro
que tinha. Parou no vendedor de cachorro-quente, encomendou dois hot dogs
completos, duas Coca-Colas geladas e um bem-casado de sobremesa. Com
as moedas, deu certinho. Sobrou o que precisava. Caminhou para a frente do
hotel onde se pernoitava por vinte reais e aguardou.
E aguardou.
E aguardou.
E caminhou até a esquina.
E aguardou.
E voltou à frente do hotel.
E aguardou.
E andou até uma mureta para se recostar.
E aguardou.
Sentiu o cachorro gelado e a coca quente.
E aguardou.
Seu coração se encheu de medo e seus olhos de lágrimas.
E cochilou. Com o rosto molhado.
— Diô? Acorda, Diô!
Dionísia abriu os olhos e desfrutou da imagem mais bonita do
mundo. Achou que estava sonhando.
— Caramba, pensei que tinha desistido. – Secou as lágrimas com as
costas da mão.
— Claro que não. Só que eu tive um problema com o Salgado. Ele
queria dormir comigo de qualquer jeito ontem. Acabou que eu fugi pro outro
lado da cidade. Demorei um tempão até conseguir chegar aqui. Ele me
deixou lisa, Diô.
— E seus documentos?
Julieta levantou a blusa.
— Foi só o que eu consegui pegar.
— Então não se preocupa com mais nada. Agora eu vou cuidar de
você, princesa.
Passou o braço por cima dos ombros da noiva. Ela também estava
cheirosa, linda, com camisa de botão, bermuda e até sapato no pé. Trocaram
um selinho e entraram abraçadas no hotel. No quartinho apertado, atiraram-
se na cama. Beijaram-se mais um pouco.
— Espera aí, Ju. Vamos fazer isso direito.
Dionísia arrumou os hot dogs frios em cima de uma mesinha de
plástico. Tomou o cuidado de manter as embalagens servindo como pratos e
de dispor as bebidas quentes numa arrumação harmoniosa, completada pelo
docinho entre o lado de uma e o lado da outra. Julieta, da cama, assistia toda
se derretendo pela namorada romântica.
— Vem, amor, vamos jantar. – Estendendo a mão a ela, Dionísia a
recebeu num beijo rodopiante. Puxou a cadeira para trás, fazendo com
Julieta como se faz nos filmes de princesa. Comeram, beberam e dividiram o
bem-casado. Beijaram-se mais e, antes que o fogo de Julieta devolvesse as
duas para a cama, Dionísia bateu na testa.
— Você me põe doida. Quase esqueço o mais importante.
Foi até o mochilão e tirou uma caixinha de dentro. Ajoelhada na
frente do seu amor, linda com os lábios desbotados após a janta, Dionísia
estendeu a caixinha a ela e, toda se tremendo, falou:
— Casa comigo?
Julieta, quase levantando voo, suspirou. Era toda amor. Abriu a
caixinha e tirou de dentro um par de anéis de coquinho.
— Caso. Claro que eu caso. – Pendurou-se no pescoço de Dionísia e
a encheu de beijos.
Antes de trocarem as alianças, repetiram as frases que se diz nas
novelas, prometendo-se amar na saúde e na doença, na alegria e na tristeza,
na riqueza e na pobreza, até que a morte as separasse.
— Tomara que a gente fique ricas, Diô. Quero morar numa casa com
você.
— Eu também quero, princesa.
Finalmente, como não dava mais para esperar, foram para a cama.
Era a primeira vez que faziam amor e as duas estavam tão excitadas quanto
nervosas. Despiram-se um pouco rápido demais. Mesmo assim, Dionísia
parou para olhar a esposa e achou Julieta a mulher mais linda do mundo. Ju
discordou, dizendo que a mais linda era a mulher com quem tinha se casado.
E, entre declarações e carícias, foram explorando seus corpos em
descobertas inéditas e afobadas.
Sabendo que aquele quarto tinha hora para ser desocupado no dia
seguinte, o encontro era um pouco atravessado pela pressa de se amarem de
todas as maneiras possíveis. Não queriam desperdiçar um segundo. Os beijos
na boca alternavam-se com beijocas nos seios, mãos apertando a bunda,
chupões no pescoço, mãos ligeirinhas lá embaixo, lambidas na orelha, mãos
no cangote, vinte e dois, mordidinhas nas costas, meia nove, beijos atrás do
joelho, chupada nos dedos, tesourinha, lambidas no cu, beijos na preciosa. O
lençol de poliéster pegava fogo com o calor das bem-casadas.
— Eu te amo, Diô.
— Eu também. Você é o amor da minha vida.
Somente uma hora antes do café da manhã, tiraram um cochilo,
abraçadas e apaixonadas. Quando acordaram, fartaram-se no buffet
oferecido pela hospedagem do lugar. Tinha café-com-leite, maçãs, pão com
margarina e, sabendo que se tratava de uma lua de mel, ofertaram um pedaço
de pudim às enamoradas, como cortesia da casa. A recepcionista bateu uma
foto das duas e prometeu imprimir o retrato para elas. Presente de
casamento.
— Voltem semana que vem. Pego sábado, de meia-noite às oito.
Elas prometeram voltar. Retornaram ao endereço de Dionísia.
— Paulete, essa é minha esposa, Julieta. Ela vai morar comigo, tá?
A bicha amiga depositou-lhe um beijo nas costas da mão e Julieta
inclinou a cabeça para o lado ao sorrir-lhe.
— Seja bem-vinda.
— Obrigada.
Dionísia desenrolou seu colchonete e se espremeu para dividir a
cama com a mulher amada.
RETRATO
Verônica era pintora, famosa, lésbica e linda. Era o que diziam. Vivia entre
artistas, jornalistas, fotógrafos, escritores, amantes das artes e pessoas
poderosas. Tinha fama de conquistadora – o que considerava uma tremenda
bobagem. Mas a verdade é que seu trabalho erótico despertava os sentidos e,
como não podia deixar de ser, paixões. Pintava nus e tinha preferência por
modelos vivos em poses que sempre remetiam às nossas mais inconfessáveis
fantasias.
Na última Bienal, resolveu pintar ao vivo. Como Brecht, o autor de
teatro que desnudou o palco e as hipocrisias da sociedade, ela também
resolveu despir o processo. Anunciou que performaria tirando do público
seus modelos e fazendo dele a sua plateia.
Foi um escândalo. A fila de pessoas dispostas a tirar a roupa e
improvisar uma cena com desconhecidos para, depois, permanecerem
estáticas até que ela finalizasse a obra, diante de multidões que
acompanhavam de pé cada segundo, era imensa. A maioria não conseguiu
um lugar ao sol. Sua assistente, Begônia, com quem tinha um caso,
selecionava os participantes. O critério? Não existia. Tinham que bater os
olhos na pessoa e sentir que ela despertava alguma coisa especial, que se
destacava em meio a tantos iguais. Claro que, diante das filas, e de gente que
madrugava para ficar nas primeiras posições, os que não eram escolhidos,
muitas vezes, faziam uma algazarra no evento.
— É a natureza humana – Verônica dizia aos seguranças. – Faz parte.
Ninguém está preparado para ser rejeitado. – E contornava com maestria
situações que poderiam se tornar um problema para a maioria das pessoas.
Begônia a admirava por isso, pelo seu trabalho que, desde o Ensino
Médio, tocava-a profundamente, e pelos ensinamentos sempre tão ricos. Era
oito anos mais nova que a mestra, mas já tinha um trabalho maduro e,
segundo Verônica, bom o bastante para que alçasse voos solos, o que
recomendava com frequência. Mas Begônia era devota, apaixonada, e amava
estar com ela todos os dias, acompanhando e palpitando em cada criação.
De vez em quando, como não podia deixar de ser com uma pessoa
cheia de fãs endinheirados, surgia uma proposta para que pintasse um retrato
aqui, outro ali. Os mais ousados queriam posar nus para ela – e pagavam
bem por isso. Verônica aceitava pelo dinheiro, é claro. Gostava dos seus
confortos e eles não eram baratos. Na real, como criadora, ganhava bem
menos do que por encomenda. E tudo bem. Para cada cinco, seis criações,
fazia uns dois trabalhos pagos. De vez em quando, passava uns para Begônia
e, apesar de ter que convencer os clientes da qualidade do trabalho da
assistente, sabia que ela tinha fôlego para inventar qualquer coisa original,
mesmo nas encomendas mais caretas. E o fazia muito melhor do que ela,
inclusive. Verônica tinha ciência de que Beg era sua fã, mas também
admirava muito o trabalho dela. Achava a assistente inteligente, sagaz, cheia
de malícia e com traços únicos. Gostava de tê-la por perto, mas sabia que a
artista estava mais do que pronta para se tornar mestra de algum aprendiz.
No último dia da Bienal, saíram com amigos para comemorar.
Beberam e comeram no iate de Carlos. Uma madrugada em alto mar com
todos os confortos que se têm direito. Quando quis se recolher, Verônica
convidou Begônia para uma das quatro suítes da embarcação e se trancaram
lá dentro. Fizeram um sexo gostoso, como outros tantos que já tinham
provado na companhia uma da outra. Verônica gostava de transar com
mulheres inteligentes, lindas e de personalidade forte. Begônia tinha tudo
isso, além da sensualidade escandalosa e de ser uma das melhores parceiras
com quem já tinha dividido as cobertas. E o melhor: era um relacionamento
sem cobranças ou exclusividade.
No dia seguinte, mais champagne no café da manhã, a mesa lotada de
frutas vermelhas e umas miudezas mais enfeitadas do que gostosas. Adélia,
uma mulher por volta dos 40, não tirava os olhos da pintora. Ela percebeu,
claro. Begônia, idem. A cada aparição pública da artista apareciam figuras
misteriosas e apaixonadas. Verônica trocou alguns olhares com ela. Gostava
do flerte. Era algo que a excitava. Preparava-se para sair da mesa, quando o
marido de Adélia marcou presença, fazendo questão de encarar a esposa e a
artista. Deixou claro que não aprovava a paquera das duas. Verônica pediu
licença, carregou uma garrafa de champagne e duas taças. Foi com Begônia
para uma espreguiçadeira dupla na parte superior do barco. Begônia estava
linda num maiô de estampa e cores tropicais, realçando sua pele. Os cabelos
curtos e despenteados despontavam por baixo de um chapéu de abas longas.
Verônica usava um biquíni amarelo gema com estampas geométricas pretas.
Por cima, uma camisa de algodão finíssima completava o look. Além dos
óculos de sol.
Estavam curtindo o momento, trocando uns beijos gostosos entre um
gole e outro do líquido espumante, quando Adélia apareceu.
— Coincidência estarmos no mesmo iate.
— Pois é.
— Adélia, prazer. – Estendeu a mão a Verônica.
— Verônica. – Cumprimentou. – E essa é Begônia, minha...
— Assistente, eu sei. Prazer – olhou rapidamente para ela, sem
estender-lhe a mão.
— Eu ia dizer parceira, na verdade.
— Ah, sim... – Adélia gaguejou um pouco. – É que eu vi vocês
trabalhando na Bienal. Achei que...
— Tudo bem. – Respondeu Begônia.
— Posso falar com você um minuto? – Adélia encarava Verônica.
— Claro. E não se preocupe, não temos segredos. – Indicou a
parceira.
— Bem, é que... – Engoliu em seco – Carlos me disse que você pinta
por encomenda.
— Às vezes. Mas ela é melhor nisso do que eu. – Respondeu,
apontando para Begônia.
— Na verdade, eu fiquei na fila da Bienal, cheguei cedo e... bem,
vocês não me escolheram, então...
— Eu sinto muito.
— Não, eu entendo. Eram muitas pessoas. Otávio, meu marido, não
queria que eu fosse. Eu fui mesmo assim. Ele não gosta de arte, mas eu
acompanho seu trabalho desde a exposição em Paris, dois anos atrás. Sempre
quis posar para você.
— E o que você tem em mente?
— Quero um retrato meu. Nua. Em tamanho natural.
Begônia engoliu o riso. Alarme de perigo na certa. Marido ciumento,
mulher apaixonada pela pintora. Um clichê que nunca resultava em coisa
boa.
— E quanto está disposta a pagar por isso?
Adélia olhou de relance para Begônia antes de responder.
— O que você quiser cobrar e mais um pouco.
Begônia a encarou com um sorriso de canto de boca, sabendo que
Verônica, provavelmente, também carregava um assim nos lábios.
— Sabe onde fica meu ateliê?
— Sei.
— Te espero segunda pela manhã. Deixe a semana livre para nós.
Adélia sorriu. Agradeceu e foi encontrar o marido. As pintoras se
olharam com um sorriso maroto.
— Você gostou dela.
— Sim.
— Mas não quis que eu a escolhesse na Bienal. Nem no terceiro dia
que ela encarou a fila.
— Vai entender o destino...
Riram. Beijaram-se. Beberam mais um pouco. No final da tarde,
despediram-se do anfitrião rico e cada uma foi para sua casa.
Verônica morava no andar de cima do ateliê, uma casa ampla, com
poucas paredes e três andares. No térreo, o pé direito duplo e as janelas que
cercavam o espaço faziam o ambiente muito bem iluminado pela luz natural.
Muitos cavaletes, telas de tamanhos variados, uma mesa de dois metros com
rodízios industriais, cheia de tintas, pinceis e outros materiais de trabalho,
arrastava-se para onde a artista desejasse. Sofás e poltronas de estilos
completamente distintos delimitavam pequenas salas sob o piso de cimento
queimado, numa decoração extravagantemente elegante, que só alguém
como ela seria capaz de fazer. Numa das salas, acomodava-se a vitrola e uma
coleção de discos de vinil herdados da família. No segundo andar, um
mezanino em volta do térreo, ficava seu quarto. Um closet cheio de roupas
penduradas separava-se da cama king size por um enorme biombo trazido do
Japão. Algumas telas decoravam as paredes, e o chão, igual ao do ateliê,
destacava as portas e janelas em pinho de riga. O banheiro era quase do
tamanho do quarto, com uma das paredes de vidro temperado, dando vista
para a montanha que ficava atrás da propriedade. Uma construção de tijolos
de vidro em linhas curvas isolava o chuveiro da banheira. Fora os dois
aposentos, o resto do espaço era uma amplidão de corredores que davam
vista para o ateliê. No andar superior, Verônica tinha construído uma área de
lazer com tudo o que a agradava. Cozinha, forno à lenha, piscina, sauna,
espreguiçadeiras e um jardim para acomodar plantas, flores e redes.
Guardou alguns materiais de trabalho, subiu até a cozinha e preparou
um suco verde. Depois, foi até o ateliê e separou uma tela em branco. Como
sempre, ligou os alarmes e foi se deitar.
Na segunda-feira, Begônia chegou com o café da manhã e a
encontrou dormindo. Comeram no quarto e Verônica correu para o banho,
enquanto Beg aprontava o ateliê para receber a cliente que chegaria em
breve.
Adélia tocou a campainha. Verônica ainda estava com os cabelos
molhados, mas já tinha passado uma maquiagem leve no rosto. Adélia a
olhou com encantamento e uma visível ansiedade. Begônia providenciou uns
drinques sem álcool coloridos, quitutes apetitosos para degustarem durante o
trabalho e perguntou a ela:
— O que gostaria de ouvir?
A cliente – quem diria – escolheu Exile on Main St. e Verônica
aprovou. Gostava de rock e aquele, sem dúvida, era um dos melhores discos
de todos os tempos. Era mais difícil trabalhar quando o gosto do retratado
não combinava com o seu. A música a inspirava, ditando o ritmo e a
intensidade das pinceladas. Era como se Verônica fizesse amor com as notas.
Entravam em sintonia.
Begônia preparou o ateliê e, com discreta elegância, retirou-se,
dizendo que voltaria algumas horas mais tarde. Quando Verônica pintava
nus, à exceção de modelos contratados para este fim, a assistente mantinha a
privacidade dos retratados somente entre eles e a artista.
Sentindo que Adélia estava um pouco tensa – o que era comum, por
sinal, diante da tarefa de se despir para uma pessoa quase desconhecida,
Verônica ofereceu um pouco de álcool. Ela aceitou. Na primeira hora,
conversaram trivialidades. Verônica aproveitava para estudar as formas da
mulher que pintaria em breve, seus melhores ângulos, como a luz incidia
sobre ela, que desenhos as sombras lhe faziam, etc. Com isso, também
ganhava a confiança da pessoa que a contratara.
Na hora seguinte, a pintora teceu uma série de elogios sinceros à
cliente. Uma parte do seu trabalho consistia em encontrar o melhor de cada
pessoa e dizer isso a ela, fazendo-a ganhar a confiança necessária para o que
viria em seguida. O disco foi substituído por outro, desta vez escolhido pela
artista, e, sabendo que começaria a pintar em breve, foi até Adélia com uma
desculpa qualquer e tocou em seus cabelos. Era a última investida. O efeito
psicológico deste ato terminava, quase sempre, com a pessoa pronta para
fazer o que pedisse. E Verônica gostava que fosse assim, afinal, era, acima
de tudo, uma criadora diante de suas criações. Moldava seus modelos desde
o princípio.
— Vamos começar? – Falou, sabendo que o seu trabalho já tinha
iniciado quando Adélia chegou.
A cliente engoliu em seco.
— Vamos.
Verônica aproximou-se de uma tela enorme e puxou e mesa de
trabalho para perto de si.
— Pode se despir no banheiro. Caso se sinta mais confortável, pedi a
Begônia que deixasse um roupão separado para você.
A mulher foi até o banheiro e voltou de lá com o roupão enrolado no
corpo.
— Gostaria que se sentasse aqui. – E indicou um divã roxo a ela.
Adélia se sentou e Verônica a instruiu a procurar uma posição
confortável, na qual pudesse permanecer sem se movimentar. Ao mesmo
tempo, avaliava se a pose favoreceria a cliente quando ela se desnudasse.
Fez alguns ajustes e encontrou o que procurava.
— Está maravilhosa, Adélia. Podemos deixar este roupão de lado
agora?
— Claro. – E se movimentou desajeitadamente, tentando tirá-lo sem
desfazer a pose.
— Não se preocupe. Pode ficar de pé, se ajudar. – E virou-se de
costas, fingindo preparar uma tinta.
Adélia se despiu e, quando percebeu que estava de volta ao divã,
Verônica colocou-se de frente para ela. A tela estava fixada numa estrutura
de madeira cuja engenharia tinha sido desenvolvida pela artista e realizada
por um marceneiro experiente. Ficava entre ela e a cliente. Verônica fez os
primeiros rabiscos com carvão, enrolando até sentir que Adélia relaxava as
feições. E adentraram numa conversa mais profunda.
— Você e sua assistente são... casadas?
— Não.
— Achei que tinha dito que ela era sua parceira.
— Exato. Uma parceria de trabalho, de amizade e... sim, nós nos
relacionamos sexualmente também.
— Carlos me contou da sua preferência por mulheres.
— E você, Adélia, qual a sua preferência?
— Eu sou casada. Com um homem. – Respondeu, quase ofendida.
— Conheço pessoas que, apesar de casadas com um gênero,
preferem outros. Algumas traem, há as que amam platonicamente. Acontece.
Adélia suspirou.
— Eu e meu marido estamos casados há 24 anos. Mas faz tempo que
não me sinto mulher ao lado dele.
— E vocês já conversaram sobre isso?
— Otávio não parece querer ter esse tipo de discussão comigo. Sei
que ele tem amantes e, sinceramente, não me importo. Acho melhor assim.
Não sinto vontade de ir para a cama com ele.
— Posso perguntar por que continuam casados?
— Pedi o divórcio muitas vezes, Verônica. Ele não aceita. Sempre dá
um jeito de me calar e faz parecer que estamos enfrentando uma crise.
— E o que você diz a si mesma?
— Que sou uma covarde. A verdade é essa.
Verônica reparou que Adélia tinha os olhos marejados. Não queria
causar uma comoção que não sabia se poderia controlar. Mudou de assunto.
— E esta obra, por que a encomendou? Vai presentear alguém?
— Não sei o que farei com o quadro ainda. Otávio nem imagina que
estou aqui. Ele me mataria se soubesse que tirei a roupa para uma artista.
Ainda mais você...
— Qual o problema comigo? – Perguntou, rindo.
— Desculpa, eu não...
— Ora, por favor. Acha que seu marido é a única pessoa a criticar
meu trabalho? Diga, quero saber.
— Bem, ele acha imoral. Não quis me acompanhar na Bienal e nem
sonha que tentei posar para você lá.
— Imagino que ele também não fique muito satisfeito com seu
apreço pelo meu trabalho.
— Não. – Ela riu, disfarçando uma pontada de melancolia.
— Então você não levará a obra para casa.
— Verônica, eu... não sei como dizer. Não estou aqui pelo quadro,
mas pelo processo, entende? Pela oportunidade de passar algum tempo com
você e...
— E?
— Pela fantasia, eu acho, – estava visivelmente constrangida ao
afirmar isso – de posar para você, que alimento há anos.
Verônica suspirou.
— É uma expectativa e tanto. Espero corresponder à altura. – E
bebeu um gole de seu drink, que agora carregava uma boa dose de gim
misturado ao suco de frutas, imaginando diversas possibilidades de como a
cliente poderia ter idealizado este encontro. De repente, captou algo que não
havia notado. Sentiu aquele frio na barriga que sempre aparecia quando seu
desejo era despertado. Passou a língua pelos lábios e aproveitou a sensação
para sintonizar-se com ela e com a música. Um calor começava a aquecê-la,
provocando o estado de transe no qual gostava de trabalhar.
A hora seguinte transcorreu quase em silêncio. Depois, Adélia a
interrompeu para comer e ir ao banheiro. Quando retomaram, Verônica já
não estava mais com a mesma disposição. Percebeu que era hora de parar.
Fez mais algumas pinceladas, apenas para dar conta dos detalhes
coadjuvantes da pintura, mas parou a tempo de pecar nas expressões. Adélia
vestiu o roupão e seguiram numa conversa bem mais descontraída e íntima.
— Você e sua assistente estavam bem animadas no iate. Não fui a
única a ouvi-las quando foram para a suíte.
— Uau! Espero que nossos ruídos tenham servido para excitar a
libido de vocês. – E deu um riso que tentava parecer sem graça.
— Sem dúvida. Mas, infelizmente, não saciei minha vontade.
— Se você e seu marido não vão para a cama há tanto tempo,
suponho que tenha amantes.
— Só nos meus sonhos, querida. – Ela ficou em silêncio por um
momento. Verônica, tampouco, soube o que dizer. – Diga uma coisa: sou
uma mulher desejável?
A pintora não estava preparada para a pergunta, mas não se
intimidou.
— Muito, Adélia. Mais do que pude imaginar ao conhecê-la.
— Por que não me escolheu na Bienal?
— Porque você... – Verônica procurou pelas palavras certas,
enquanto se sentava ao lado dela – é uma mulher que se esconde atrás da
própria sombra. O que vi aqui, hoje, não é o que costuma mostrar à primeira
vista.
— E o que é que escondo tão bem assim?
Verônica a encarou mais tempo do que seria confortável.
— Você tem sede de viver, de amar e ser amada. É uma mulher linda,
sensual e cheia de vitalidade.
Adélia se aproximou e Verônica não teve dificuldade em identificar e
conceder o beijo que estava por vir. A campainha, no entanto, soou.
Hesitando em atender, a dona da casa acabou se levantando e, surpresa, ao
olhar pela câmera que filmava a entrada do ateliê, informou à convidada que
seu marido estava na porta.
— Preciso me esconder, Verônica. Otávio não pode saber que estou
aqui. Por favor, me dê cobertura. Tenho medo dele.
— Está bem. Suba as escadas e me espere no quarto. Vou mandá-lo
embora. – Falou, com os gestos um pouco perdidos. – Espere, suas roupas. –
Foi até o banheiro e apanhou os pertences de Adélia, entregando-os antes
que ela sumisse. Atendeu Otávio.
— Boa tarde. É uma surpresa vê-lo aqui. Não costumo abrir o ateliê
nas segundas. Em que posso ser útil?
— Carlos me deu sem endereço. Espero que não se incomode em me
receber. – E se colocou para dentro, antes que ela pudesse dar uma desculpa.
– Está sozinha?
— Estou. Mas minha assistente chegará em breve.
— Você tem um trabalho belíssimo. – Começou a andar pelo espaço,
observando as telas. Verônica tratou de recolher a pintura de Adélia e a
colocar rente a uma parede, de costas para o intruso.
— Um trabalho em fase de criação, imagino.
— Exato. Comecei um pouco antes da Bienal e voltei a estudá-lo
hoje. Não passa de um esboço. – Mentiu, sentindo que os elogios dele para
com seu trabalho também não soavam verdadeiros.
— Bem, não quero atrapalhá-la. Vim em busca de uma tela para
presentear um amigo. O que sugere?
— Não sei... Me fale um pouco sobre ele. Seu amigo gosta da minha
arte erótica? – Respondeu, fingindo surpresa.
— E alguém não gosta?
Ela apenas o encarou e sorriu.
— Bobagem. Seus trabalhos mexem com a gente. Meu amigo tem a
minha idade, é casado, festeiro e amante das mulheres e da boa vida. Tem
muitos quadros de colegas seus, mas falta-lhe a melhor obra de sua coleção.
— Fico lisonjeada. – Caminhou para longe dele. – Venha até aqui,
veja estes trabalhos.
— Excelente. Gosto do manejo que faz das cores. Este é
impressionante. – Deteve-se no terceiro quadro. – Os azuis, quantos tons de
azul. Não fosse pelo tamanho, é o que levaria.
— Prefere um menor?
— Pelo contrário. Queria um que fosse o dobro desse.
— Um díptico, então? Não tenho telas tão grandes.
— Que seja. Deixe-me ver.
Verônica mostrou algumas composições que se formavam com a
junção de duas telas. Otávio escolheu uma quase sem azuis e não titubeou
quando ela aumentou em 20% o valor das peças.
— Perfeito. Farei uma transferência. Antes, se me permite, posso ir
ao banheiro?
— Claro. À vontade. – Respondeu, torcendo para não haver qualquer
indício da presença de Adélia ali.
O homem retornou.
— Curioso. Seu ateliê tem um odor familiar.
— Vou embrulhar as telas. Aceita uma bebida? – Ignorou o
comentário porque, sim, seu ateliê estava impregnado do perfume de Adélia.
— Vejo que alguém já passou por aqui e bebeu com você. Seria a
pessoa do quadro que escondeu quando cheguei?
— Minha assistente esteve aqui mais cedo. – Falou, tentando manter
um sorriso convincente nos lábios.
E dirigiu-se para a grande mesa, aproximando-a de rolos de plástico
bolha e papel pardo que ficavam pendurados em enormes estruturas na
parede oposta à porta. Empacotou as telas.
— Aceito uma bebida. Vamos brindar a esta compra.
Verônica queria que o sujeito fosse embora. Mas, por educação, foi
até o bar, numa das saletas do ateliê, delimitadas apenas pelo mobiliário, e
voltou de lá com duas taças de espumante cheias.
— A você.
— Ao seu amigo.
Beberam. Otávio ainda teve disposição para prosseguir com
conversas que não a interessavam e das quais ela tentava escapar pela
tangente. Foi salva pela chegada de Begônia, quase duas horas depois do
sujeito ter entrado em sua casa.
— Boa noite. Não sabia que tinha visita, Verônica. Como vai,
Otávio? Nos conhecemos no navio, está lembrado?
— Como poderia não estar? – Pegou a mão dela e a levou à boca,
depositando um beijo mais demorado do que o necessário. – Do que era o
drink que tomaram mais cedo?
Begônia olhou de relance para Verônica antes de responder.
— De frutas. Eu mesma os preparei.
— Pena eu ter chegado tarde. Teremos outras oportunidades para que
eu prove da sua bebida. – Antes de continuar, encarou-a. – Bom, ainda falta
o pagamento, Verônica. – Fez a transferência do celular e enviou o
comprovante ao telefone da pintora. – Foi um prazer fazer negócios com
você.
— O prazer foi meu – Verônica respondeu.
Begônia o acompanhou até saída, recebendo mais um beijo
demorado e molhado nas costas da mão.
— O que ele fazia aqui?
— Não tenho a menor ideia.
— Adélia já foi?
Verônica indicou o andar de cima com a cabeça, ao mesmo tempo em
que a cliente descia as escadas.
— Ele veio atrás de mim, Verônica. Sabe que estive aqui.
— E isso é um problema? Não achei, pelo que me contou, que seu
marido fosse um homem ciumento.
— Ele é possessivo, o que é diferente. Peço desculpas pelo
aparecimento dele. Eu não fazia ideia.
— Imagina. Fiz uma boa venda. Sabe que amigo é esse de quem ele
falou?
— Não. Mas a descrição parecia com ele mesmo.
Verônica deu de ombros.
— Você deve estar com fome. Podemos sair para comer, o que
acham?
— Melhor eu ir embora. Amanhã continuamos?
— Como quiser.
— Até, então. – Despediu-se das duas a partiu.
— O que ela fazia no seu quarto? – Begônia perguntou, rindo com
malícia.
— Nada tão bom quanto o que está pensando. Ficou desesperada
quando o marido chegou e pediu para se esconder.
— Mentira! Achei que o sujeito tivesse interrompido vocês na cama.
Verônica, isso está com cara de problema. Um marido de quem a esposa tem
medo vindo atrás dela, o ciúme que ele demonstrou no navio... O que achou
de tudo isso?
— Não sei, querida. Não acreditei no que ele me disse, mas ganhei
uma bagatela com a venda do díptico. E Adélia já é minha cliente. Gostei de
pintá-la e quero terminar o trabalho. Depois, espero nunca mais ver os dois
na minha frente. – Foi até Begônia e depositou um beijo em seus lábios.
Passaram a noite juntas. No dia seguinte, Begônia preparou o ateliê e,
antes de sair, falou:
— Hoje tenho vernissage de um amigo. Quer me acompanhar?
— É um amigo talentoso como você?
— Nem tanto. – Respondeu, rindo. Verônica riu também.
— Então acho que não. Estou com preguiça da vida social.
— Está bem. Quer que eu passe aqui mais tarde?
— Não precisa.
Despediram-se. Adélia chegou uma hora atrasada e se desculpou,
dizendo que Otávio demorou a sair. Esperou que ele estivesse fora de casa
para ir ao encontro de Verônica.
— Não se preocupe comigo. Adiantei bem o trabalho ontem. Mas
não posso deixar de dizer que seu medo de Otávio me contamina. O que
acha que ele poderia fazer se descobrisse que está posando para mim?
Adélia não respondeu. Mas a encarou, visivelmente acuada.
— Desculpe. Não sei se hoje é um bom dia para... Verônica, acho que
essa encomenda foi um erro. Permita-me pagá-la conforme combinamos e
partirei.
— Por favor, Adélia. Fui sincera em tudo o que lhe disse ontem.
Gostei de pintá-la e me dará extrema satisfação concluir este trabalho. Pose
para mim.
A expressão da cliente amoleceu.
— Está bem. – E, com mais intimidade do que no dia anterior, foi até
o banheiro e voltou de lá envolta pelo roupão.
— O que ouviremos hoje?
— Decida você, Verônica. Me agrada descobri-la através das coisas
que a interessam.
De costas, Verônica deixou escapar um sorriso. O flerte a excitava e
ela sabia que essa energia sexual contribuía para o sucesso de suas
pinceladas. Escolheu Madame Butterfly e colocou a ópera de Giacomo
Puccini para tocar. Uma trágica história de amor.
Virou-se para Adélia, que a esperava despida, na mesma pose do dia
anterior, deslumbrante em seu divã roxo. E com um sorriso que demonstrava
aprovação à escolha da música. Verônica estremeceu. E começou a trabalhar.
Falaram pouco. A artista entrara em seu transe habitual e deliciava-se
com a infinidade de cores que enxergava na modelo. Gostava das luzes
incidindo através das janelas, dos flares, dos reflexos, do sol vermelho que
invadia, fogoso, o ateliê nos finais de tarde. E apreciava todas essas luzes
variando-se na pele de Adélia. O disco voltou ao início e, sem que nenhuma
das duas percebesse, tocou outra vez. Estavam unidas no ritmo dos pinceis,
sem falar e sem parar para matar a sede ou a fome. Verônica teria continuado
assim até anoitecer, como já o fizera muitas vezes. Mas, quando o sol
colocava seus raios mais bonitos para dentro do ateliê, Adélia a interrompeu.
— Querida, acho que minha hora se aproxima.
Verônica levou alguns segundos para entender o que ela estava
dizendo.
— É claro. Você deve estar com fome também. – Falou, notando o
próprio estômago reclamar.
— Estou, na verdade.
— Por favor, Begônia preparou algumas coisas para nós. – Foi até o
bar, voltando de lá com canapés, porções individuais de salada, sucos, chás e
docinhos de sobremesa.
Depois de saciarem a fome, conversaram um pouco.
— Estou curiosa para ver o quadro, Verônica. Não vai me mostrar?
— Gostaria que o visse finalizado. Mas se não estiver se aguentando
de curiosidade, vá em frente.
— Eu espero, então. Só mais três dias.
— Talvez eu termine antes.
— O que seria uma pena. – Diante do olhar inquiridor da artista,
continuou. – Gosto de estar aqui com você. Prolongaria este contrato por
muito mais tempo, se pudesse.
— Sinta-se convidada a me visitar quando quiser. E a posar para mim
também. Como modelo, não como cliente. Gostaria de pintá-la em cena com
mais algumas pessoas. – Falou, esquecendo-se do que disse na noite anterior
sobre não querer mais ver Adélia depois de concluir a encomenda.
— Como fez na Bienal?
— Não exatamente. Lá eu estava performando. Meu trabalho é
diferente, mais lento. Levo dias até dispensar os modelos e, muitas vezes,
continuo trabalhando na tela por mais um mês ou dois.
— Talvez eu aceite seu convite. Não será tão bom quanto estar
sozinha com você, mas melhor do que não voltar a vê-la.
Verônica não pôde disfarçar o sorriso de satisfação.
— Está apaixonada por mim?
Adélia engoliu em seco.
— Estou.
— Não sou uma mulher de quem se possa esperar algum
compromisso. Eu e Begônia nos damos bem porque ela entende isso e é livre
para viver histórias que não me incluem, assim como não sou exclusiva dela.
— O que a faz pensar que eu a pediria em casamento?
Verônica soltou uma gargalhada.
— Que pretensão a minha.
— Muita. – Adélia se aproximou e, não podendo se conter, avançou
para a boca da pintora. Sugaram-se. As mãos de Verônica abriram caminho
por entre o tecido felpudo do roupão, desejosas do corpo que a motivara nas
horas anteriores.
— Não posso. Já está tarde e...
— Passe a noite comigo.
— Amanhã. Pode me esperar até amanhã?
— Não. Mas vá. Faça o que tem de fazer. – E a puxou para um beijo
de despedida. Depois, como Adélia estava decidida, acompanhou-a até a
saída. Pensou em ligar para Begônia e encontrá-la no vernissage. Desistiu.
Jantou cedo e foi dormir.
Foi acordada pela língua da assistente em seu sexo. No auge do
relaxamento, precisou de poucos minutos para chegar a um orgasmo forte e
explodir. Quando se recuperou, retribuiu, fazendo cada pedaço do corpo da
assistente passar por sua boca. Sabia que a excitava ao beijar-lhe os pés.
Depois, foi para cima dela com um dildo que haviam comprado juntas,
mexendo-se sinuosamente. A parceira gemia e suas reações a condenavam a
um delicioso jorro, que aconteceu quando os dedos de Verônica a tocaram.
Saciadas e famintas, tomaram o café da manhã na beira da piscina.
Como sempre, Begônia preparou o ateliê, aprovando a pintura inacabada de
Adélia, e despediu-se da mestra.
— Te vejo mais tarde?
— Não. Bella chegou de Milão ontem e combinei de passar a noite
com ela. Aliás, pode ser que eu não apareça nos próximos dias. Acha que
pode sobreviver sem mim?
Verônica a encarou.
— Não acredito que me deu esse bom dia para, em seguida, dizer que
me trocará por aquela italiana maravilhosa com quem eu adoraria dividir a
cama. – E atirou uma almofada da espreguiçadeira na assistente. – Não sei se
tenho mais inveja dela ou de você.
Begônia riu.
— Não seria uma má ideia ficar com vocês duas ao mesmo tempo.
— Pois trate de providenciar isso.
Riram. E Begônia se despediu deixando saudades. Adélia chegou
pouco depois. Estava radiante. Cumprimentou a pintora com um beijo
ardente.
Mal entraram, e a cliente tirou a roupa e se colocou no divã. A
anfitriã a olhou, indecisa. Foi até a vitrola e escolheu um disco. The Dark
Side of the Moon. Tinham o dia todo, afinal. Não se apressaria. Começou a
pintar, mas sentiu que Adélia estava inquieta. A artista, saciada,
aproveitando cada segundo da música e da tensão entre ela e a modelo, não
se importou. Vivia o calor percorrendo seu corpo e regalava-se com a
maneira pela qual as cores e as pinceladas se escancaravam na tela, como se
tivessem vida própria. Ficou excitada e, quando olhou para Adélia, para sua
surpresa, ela a encarava de volta, se masturbando.
Achou a cena linda. Enlouqueceu. Das suas mãos saíam tintas
espalhafatosas, esparramando-se pela tela e respigando em seu rosto, mãos e
braços. Misturavam-se ao suor, escorriam pelo corpo e quase se juntaram ao
líquido que sentia escorrer do meio de suas pernas. Quando Adélia teve um
orgasmo, era como se Verônica a sentisse e, de onde estava, o que derramava
na tela não poderia ser muito diferente do próprio gozo diante do que
considerava a verdadeira definição de arte.
As pinceladas respiraram, recobrando o fôlego. A artista recomeçou,
tendo, diante de si, uma nova mulher para retratar. Camadas de tinta se
sobrepunham, como se ela pudesse captar cada variação das feições de
Adélia desde o primeiro momento até agora. Dos seus olhos brotavam todas
as cores. Verdes, azuis, lilases, vermelhos, amarelos... Quando o sol a
atingiu, impedindo que enxergasse, sabia que passava das 14hs. O disco já
tinha tocado três vezes. Estava faminta. Colocou os pinceis de molho e
caminhou até a modelo, num desfile no qual, a cada passo, arrancava uma
peça de roupa. Deitou-se sobre ela, nua, suja de tinta e molhada. De suor e
tesão.
Fez do corpo de Adélia a sua tela. E, juntas, redecoraram o estofado
do divã e quebraram a monotonia cinza de um bom pedaço de chão. A
modelo arqueava-se para Verônica, sentindo seu corpo pulsar por inteiro.
Estava viva, feroz, mulher. Gritou de prazer. Muitas vezes. Seus cabelos
desprenderam-se do penteado bem-comportado e, molhados, ondularam-se,
selvagens, enroscando-se pelo corpo de Verônica. Estava pronta para morrer
e se entregou completamente. O som visceral que saiu de dentro dela não
deixava dúvidas. Renasceu em seguida e Verônica a colocou para dentro de
si, esfregando-se até não ter mais o controle dos próprios movimentos.
Beijaram-se e a artista gozou, sentindo o gosto dos lábios lascivos da outra.
Rolou para o lado e a olhou. Adélia tinha tantas camadas, uma mais bonita
do que a outra. E, agora, mais uma se revelava. Puxou-a para perto da tela e
passou o pincel por seu rosto. O anil combinava com o tom da pele e dos
cabelos. Beijou-a. E levou o pincel à tela em seguida. Desenhava seu corpo
e, para cada traço que os pelos riscavam no quadro, Verônica praticava,
antes, no molde real.
A brincadeira as excitou outra vez e fizeram amor na mesa de
trabalho de Verônica, derrubando tintas pelo chão e ao redor. Uma outra tela
que estava próxima, “Amoras”, ganhou um respingo de tinta vermelha e a
artista não se importou. Diria ao comprador que a obra era viva. A noite
começou a cair e Adélia se desvencilhou dos braços de Verônica.
— Preciso ir.
— Por favor, passe a noite comigo.
— Não posso.
— Não quero que vá.
— Sabe que não posso ficar. Posso tomar um banho antes de sair?
— Claro. – A dona da casa respondeu, visivelmente desanimada.
Tentou seduzi-la com um banho de banheira, mas Adélia foi
implacável. No chuveiro, Verônica a ajudava a se livrar das tintas.
— Está sangrando, Adélia.
— Acho que me cortei e não percebi. Não é nada grave.
— Devia ter tirado os objetos afiados da mesa, mas, na hora, nem me
lembrei.
Adélia riu.
— Uma lembrança do nosso dia. Me arranje um Band-Aid e amanhã
estarei nova.
Beijaram-se. Verônica tentou fazer amor mais uma vez. Não
conseguiu. Despediu-se de Adélia prometendo-lhe um café da manhã
especial para compensar o dia em jejum. Foi para a cama sozinha.
Acordou, de madrugada, com um apito que indicava intrusos no
local. Chamou a polícia. Não encontraram nada. Achou que algum animal da
vizinhança tinha feito o alarme soar. Voltou a dormir. No dia seguinte, saiu
mais cedo da cama, foi até a padaria e trouxe tudo o que lhe pareceu
apetitoso para o desjejum na companhia da sua modelo preferida. Preparou a
mesa e aguardou. Adélia não apareceu. Tentou falar com ela diversas vezes
ao longo do dia, sem sucesso. À noite, pensou em ligar para Begônia e se
convidar para sair com ela e a italiana. Não o fez. Perdeu-se na pintura de
Adélia até de madrugada. Esperava encontrá-la no dia seguinte, alegando
qualquer problema com o marido. Mas, na sexta-feira, a cliente também não
apareceu. Pensou procurar por Otávio. Tinha seu número. Achou melhor
não. Se a esposa tinha tanto medo que ele soubesse da sua relação com a
artista, devia ter um motivo.
Na madrugada insone, foi até a tela e tentou pincelar alguma coisa,
lembrando-se dela. Impossível. Dormiu.
Begônia ligou no dia seguinte, convidando Verônica para um
desjejum na companhia de Bella. Sem ter o que fazer, aceitou. No quarto de
hotel da italiana, deliciou-se com as aventuras da artista europeia, enquanto
se imaginava numa noite com ela e Begônia. Não demorou muito para que
seus sonhos se realizassem. Esticou a tarde na companhia das duas e, depois
de visitarem o Museu de Arte Contemporânea, almoçaram, beberam e...
voltaram ao quarto de Bella. O domingo se desenrolou libidinoso. As três
permaneceram no quarto até a hora do voo da italiana de volta a Milão.
Despediram-se no aeroporto e Begônia foi para casa. A semana seguinte
seria cheia e precisava descansar.
Estava no ateliê com Verônica e duas modelos, quando a campainha
soou. Não recebiam visitas às segundas, como a artista dissera a Otávio. Mas
atenderam mesmo assim. As modelos vestiram roupões. Era a polícia.
Manuela e Ancelmo gostariam de falar com a dona do local.
— Em que posso ser útil? – Verônica perguntou, indicando uma das
saletas para que se acomodassem.
— Me diga você. – Ancelmo respondeu. Estamos investigando um
assassinato. Conhece uma mulher chamada Adélia Aparecida da Costa
Ferreira?
Verônica gelou.
— O que aconteceu com ela?
— É o que gostaríamos de saber. – Respondeu Manuela. Seu corpo
foi encontrado numa mala de couro ontem à tarde. Pode nos dizer que tipo
de relação tinha com ela?
— Eu... Adélia e eu nos conhecemos há poucos dias, através de um
amigo em comum. Éramos convidadas no iate de Carlos Gaspar Martins.
— E essa foi a única ocasião em que se viram?
A artista hesitou. Não sabia o que dizer. Queria respeitar a
privacidade da amante.
— Desculpem. Não estou entendendo o que vieram fazer aqui. Sou
suspeita do que aconteceu com ela?
— Não.
— Ainda não. – A policial completou.
— Nós mal nos conhecíamos. Isso é um absurdo.
— Adélia esteve na sua exposição durante três dias. Parece que ficou
chateada por não ter sido escolhida.
— Não é verdade. Nós conversamos a respeito e, bem, acredito ser
melhor eu procurar uma advogada antes de ter qualquer conversa com vocês.
Begônia dispensou as modelos.
— Estávamos só querendo refazer seus últimos passos. Se tiver algo
a acrescentar, ficaremos agradecidos.
A dona do ateliê assentiu e olhou para a assistente, indicando que era
chegado o momento de acompanhá-los até a saída. Antes de partir, Manuela
a encarou.
— Não entendo muito de arte. Que tipo de negócio você faz aqui?
— Quer saber o que eu pinto?
— Por aí.
— Trabalho com arte erótica.
Ela deu uma olhada em volta do ateliê.
— Interessante. Ouvi dizer que muitas pessoas quiseram posar para
você recentemente.
— Sim, Veronica é uma artista reconhecida. – Respondeu a
assistente.
— Você aceita encomendas? – Perguntou a policial, ignorando o
comentário de Begônia.
— Imagino que seja uma pergunta retórica, uma vez que já deve
saber que sim, aceito.
— E quanto cobra por isso?
— Depende do trabalho.
— Quando cobrou de Adélia?
Verônica não respondeu. Manuela a encarou por um momento, sem
dizer nada.
— Voltaremos a conversar. Passar bem.
Begônia fechou os portões e abriu duas garrafas de cerveja. A pintora
estava abalada.
— Por que não contou a eles sobre Adélia?
— Não sei, Beg. Sinceramente, não sei. Que loucura isso. Adélia e
eu...
— É claro que foram para a cama. Seus traços não deixam dúvidas.
— Sim, fomos. Mas só na quarta-feira. O último dia em que a vi.
Meu Deus, ela foi assassinada.
— Acha que podem suspeitar de você?
— Aquela mulher, certamente, queria que eu achasse que sim.
— Não é mais sensato contar tudo a eles o quanto antes?
— Talvez. Mas me sinto traindo Adélia. Ela não queria que o marido
soubesse.
— Ela está morta, Vê. E esse marido pode ter alguma coisa a ver
com isso.
Verônica suspirou. Beg passou a noite com ela. Estava nervosa. Na
terça, dispensaram as modelos e Verônica ligou para Ancelmo, querendo
conversar.
— Farei o possível para ir até sua casa.
Algumas horas depois, Manuela tocou a campainha. Estava sozinha.
— Resolveu nos ajudar?
— Espero que sim. Alguma ideia de quem pode ter feito isso com
ela?
— Algumas. Vocês moram juntas?
— Não – Begônia adiantou-se. – Sou assistente de Verônica.
— Mas passou a noite aqui.
— Isso tem alguma relevância para a investigação?
— Talvez.
— Begônia e eu... Nosso relacionamento não é segredo para
ninguém.
— Mas não são exclusivas.
— É uma pergunta?
Manuela não respondeu.
— O que tem a dizer sobre Adélia?
Verônica contou tudo. Ou quase. Preservando a intimidade do último
encontro, narrou desde a estadia no iate de Carlos até a última vez esteve
com a cliente. Não deixou de demonstrar preocupação quando contou à
policial sobre o medo que Adélia tinha do marido descobri-la.
— Posso ver a pintura?
Verônica sinalizou para que Beg trouxesse a tela. Manuela encarou o
trabalho de Verônica. Levantou-se para observar mais de perto. Passou o
dedo pelas tintas, detendo-se numa porção de vermelho.
— Tem certeza de que não aconteceu nada mais íntimo entre vocês?
Begônia encarou a artista, encorajando-a a prosseguir. Verônica
tragou o ar, tomando coragem.
— Adélia não estava feliz no casamento. Fazia tempo que ela e o
marido... Sim, nós transamos.
— Quando foi isso?
— Da última vez que nos vimos. Depois, ela não apareceu. A
pintura, como pode ver, está inconclusa.
— Talvez eu não entenda de arte, afinal. Para mim, parece pronta.
Verônica quase se ofendeu. Begônia olhou para ela, pedindo que
ignorasse a provocação. Manuela quis conhecer o resto da propriedade e a
dona da casa a acompanhou.
— Foi aqui que fizeram sexo? – Perguntou, quando estavam no
quarto da artista.
Verônica estava incomodada com as perguntas invasivas.
— Não. Fizemos amor – ela enfatizou a palavra – no divã, onde a
pintei, no chão do ateliê e na minha mesa de trabalho. Adélia só veio ao meu
quarto quando se escondeu do marido.
— Que romântico.
Saiu do quarto para ter uma visão de cima do ateliê. Reparou que as
cores da tela estavam estampadas no divã e espalhadas ao redor. Voltou ao
térreo, examinando mais de perto as superfícies. Fez algumas fotos com o
celular. Agradeceu a conversa e partiu.
Alguns dias se passarem. Verônica estava inquieta e desmarcou os
compromissos, inclusive com Begônia, esperando notícias da investigação.
No sábado, Ancelmo telefonou, perguntando se poderiam conversar.
— Claro. Estou em casa. Espero vocês.
A policial chegou, novamente desacompanhada. Verônica estava
sozinha e a recebeu pessoalmente.
— Alguma novidade?
— Hipóteses. E você, já providenciou um advogado?
— Deveria?
Manuela caminhou pelas saletas do ateliê, observando as bebidas no
bar, os discos próximos da vitrola e as obras.
— O que Adélia gostava de ouvir?
— Você supõe mais intimidade do que tivemos. Ela escolheu um
disco de rock no nosso primeiro encontro. Depois, eu selecionei as músicas
que nos acompanharam durante o trabalho.
— Se importa de colocar para tocar o mesmo que escolheu quando
ela estava aqui?
Verônica obedeceu, sem entender o propósito do pedido.
— Encontramos o celular de Adélia. Há várias ligações do seu
número para ela.
— Eu a esperava na quinta-feira. Como ela não apareceu, tentei
contato. E no dia seguinte, de novo.
— Depois desistiu.
Verônica respirou fundo.
— Pensei em falar com Otávio. Mas Adélia não queria que ele
soubesse que estava posando para mim. Então, sim, desisti e fui viver a
minha vida. Achei que ela fosse entrar em contato com alguma desculpa.
— Ainda não perguntei o que fez na noite da quarta-feira.
— Nada. Fiquei em casa. Por quê?
— Não chamou a polícia?
— Ah, sim. Meu alarme disparou, mas não era nada.
— Está me dizendo que, na noite em que Adélia foi assassinada,
você chamou a polícia à toa?
— Estou dizendo que meu alarme disparou. Deve ter sido algum
animal da vizinhança. Chamei a polícia porque queria ter certeza de que
estava em segurança.
— Begônia não estava com você na ocasião?
— Já disse que estava só.
— Posso pedir que refaçamos seus passos com Adélia?
— Como assim?
— Gostaria de reconstituir o que aconteceu entre vocês. Quer dizer, o
que se lembrar, é claro. Finja que eu sou ela e me receba como a recebeu no
primeiro dia.
Verônica ficou atordoada com o pedido. Resolveu aceitar porque não
sabia o que responder e a policial a intimidava.
— Begônia estava aqui. Ela recebeu Adélia e foi embora logo depois.
Conversamos um bocado. Então falei que ela podia se despir no banheiro.
Manuela a interrompeu. Não queria ouvir a história, mas revivê-la.
Foi até o banheiro e, como a vítima assassinada, voltou de lá somente com o
roupão. Verônica engoliu em seco, sem saber o que esperar daquela
encenação.
— Eu a conduzi ao divã.
— Não conte. Faça comigo como fez com ela. Se eu tiver alguma
dúvida, a interromperei.
Veronica obedeceu e a elogiou, como fizera com a cliente da semana
anterior. Lembrou-se de mexer em seus cabelos e fez menção de tocar na
policial, mas, antes, seu olhar pediu permissão. Manuela consentiu. Quando
retornou à tela improvisada, a pintora pediu que tirasse o roupão. E ficou na
expectativa.
— Não está se esquecendo de nada?
Pega de surpresa, Verônica desconcentrou-se.
— Perdão?
— Entre o momento em que ela saiu do banheiro e instante em que
pediu que se despisse, nada mais aconteceu?
— Nós combinamos a pose que ela faria.
— E era essa a música que tocava em sua vitrola?
— Era esse disco. Não me lembro da música.
— E aí você começou a pintá-la.
— Exato.
— Até que o marido chegou.
— Sim.
— Pode me contar, novamente, como foi a visita dele aqui?
Verônica obedeceu. Quando terminou, passaram ao segundo dia.
Manuela fez como Adélia e dirigiu-se ao divã só de roupão.
— Eu me virei para colocar Madame Butterfly na vitrola. Quando
olhei de volta, Adélia me esperava nua. – Narrou, executando os mesmos
movimentos que fizera com a ex-cliente. Ao olhar de volta para o divã, a
ópera anunciando suas primeiras notas, encontrou a policial despida, na
mesma pose da modelo que a contratara. Derrubou vários pinceis,
visivelmente nervosa.
— Achei que estivesse acostumada com pessoas nuas.
— Não quando elas me investigam.
— Reagiu assim quando Adélia se despiu?
— Não. – Respondeu, sem desviar de seus olhos.
— O que sentiu ao vê-la?
Verônica estava desconcertada. Imaginava uma questão ética séria se
alguém descobrisse o que se passava em seu ateliê naquele momento. Achou
que as coisas poderiam piorar e sofrer um processo por assédio. Mas não era
só isso. A policial despertava em Verônica algo que ela não se lembrava de
já ter experimentado. Era uma sensação incômoda, invasiva e assustadora.
Desejou acabar com tudo o quanto antes.
— Adélia era uma mulher mais interessante do que parecia. Eu a
achei linda e foi excitante pintá-la.
— Foi neste dia que conversaram sobre seu casamento?
— Quase não conversamos. Não enquanto eu a retratava. No final da
tarde, paramos para comer e Adélia confessou estar apaixonada por mim.
— E o que disse a ela?
— Eu a beijei. Quer que encenemos isso também?
Manuela permaneceu impassível. A artista sentiu-se vulnerável.
Estava acostumada a ter o controle das situações.
— E depois do beijo?
— Ela foi embora. Devia investigar seu marido. Adélia tinha muito
medo dele. Insisti para que passasse a noite comigo, mas a existência de
Otávio a impedia.
— Estava apaixonada por ela?
Verônica preparou-se para falar, mas não sabia o que dizer. Engoliu o
ar e foi até o bar. Precisava de um pouco de álcool. Serviu-se de uma dose de
uísque.
— Devo oferecer bebida alcoólica a uma policial? – Perguntou, de
costas para Manuela.
— Eu a deixo nervosa?
— Sim. – Virou-se para ela. – Sobretudo pelo fato de querer me
incriminar por um assassinato que não cometi.
— Não respondeu à minha pergunta. Estava apaixonada por Adélia?
Verônica puxou o ar lentamente, precisando se acalmar.
— Eu fiquei envolvida. Mais do que poderia imaginar. Mas não acho
que estivesse apaixonada.
— Sua assistente sabe que foi para a cama com Adélia?
— Sabe, claro. Não tenho nenhum tipo de exclusividade com... O
que está insinuando? Begônia jamais...
— Eu não disse nada. Mas, já que mencionou, onde ela estava na
madrugada de quarta para quinta?
— Com uma amiga, eu acho. Acredito que estivesse no hotel com
ela.
— Sente ciúmes dela? Sentia ciúmes de Adélia?
O volume de uísque no copo de Verônica diminuiu mais um pouco.
— Begônia estava com uma mulher por quem me sinto atraída.
Estive com elas no sábado e ficamos. Nós três. Não sinto ciúmes dela e não
senti ciúmes de Adélia. Não havia motivo para isso.
— Você tem uma vida sexual bem agitada.
— Tenho. Gosto de sexo, de mulheres e da minha liberdade de estar
com quem me dá vontade. Isso faz de mim alguém capaz de cometer um
crime?
— Quanto cobrou pela pintura?
— Não fechamos um valor. Mas eu sabia que Adélia pagaria bem.
— Quero que me pinte como a pintou. Quanto isso vai me custar?
— Não aceito todos os interessados que me procuram.
— Está me recusando?
— Talvez. Volte aqui quando tiver solucionado o caso e
conversaremos sobre sua proposta. – Irritada, foi até o roupão e o jogou por
cima dela.
— Acho que acabamos por hoje. – Indicou, com a mão que segurava
a bebida, a direção da saída.
— Falta o terceiro dia. E, para mim, ele é o mais importante.
Podemos?
Verônica serviu-se de mais uísque. Colocou o disco do Pink Floyd na
vitrola e pegou uma tela em branco. Desenhou o contorno do corpo de
Manuela.
— Eu estava absorta com a música. Por alguns minutos, não olhei
para ela. Deixava a melodia e a memória guiarem meus movimentos. –
Encarou a policial. – Mas quando a olhei, Adélia me fitava, se masturbando.
Por um segundo, Verônica achou ter vislumbrado uma expressão
desconcertada no rosto da mulher que investigava o crime. Foi tão rápido
que não teve certeza. Mas resolveu arriscar.
— Fiquei extremamente excitada. Seu ritmo me envolveu e, junto
com a música, desenhei novas camadas de tinta sobre o retrato. Me sujei
nesse momento. O sol incidiu sobre os meus olhos e, faminta, fui até ela. –
Caminhou na direção do divã, de onde Manuela a encarava.
Como no encontro com a ex cliente, Verônica se despiu. E teve
certeza de que a policial não estava mais no controle. Aproximou-se
lentamente, seu corpo vindo por cima e acuando-a. Deitou-se no divã sem
tocá-la, sustentando-se nos braços. Os cabelos pendiam e, ao sabor do vento,
roçavam na pele de Manuela. – Tive vontade de devorar seus lábios e senti
que era recíproco. – Numa flexão, dobrou os cotovelos, ficando a milímetros
de tocar a boca da policial com a sua. – Nos beijamos. A tinta se espalhou e
fez uma obra de arte neste divã. Rolamos pelo chão, em êxtase. Ela gozou
primeiro. Eu sentei sobre Adélia e gozei em seguida.
Disse tudo isso sem se encostar na mulher que a investigava. Mas
ambas podiam sentir a troca de calor entre os corpos e o hálito da pintora,
que se colocava, sem piedade, para dentro dos lábios de Manuela. Ergueu-se
e a puxou para perto da tela, de onde a policial contemplou as próprias
formas estampadas.
— Estávamos recuperando o fôlego. Mas a expressão que vi nos
olhos de Adélia era tão linda que não resisti ao pincel e o derramei sobre seu
rosto. – Alcançou um pincel carregado de tinta preta e o esfregou na
investigadora. Sabia que ela estava tão vulnerável quanto a modelo dias
atrás. Em seguida, levou o mesmo pincel à tela e fez mais algumas
investidas. Manuela a encarava, sem poder reagir. – Então, fizemos amor
outra vez. Eu a puxei para cima de mim, nesta mesa. – Arrastou-a para junto
de si, mas manteve a distância mínima entre seus corpos. – O cheiro da tinta
misturava-se ao dos nossos sexos cansados e sedentos por mais. O som que
guiara meus braços, agora conduzia nossas bocas, mãos, línguas e pulsações.
Explodimos outra vez.
Verônica tinha a respiração curta, excitada e nervosa. Manuela, sobre
a pintora, tentava sustentar o próprio corpo, lutando contra a força que a
artista fazia na direção contrária. Travaram o duelo durante alguns minutos,
encarando-se, sem que nenhuma das duas falasse nada. A artista sentia seu
sexo molhado e, sem saber o porquê, desejou aquela mulher que em nada se
parecia com as que costumavam lhe interessar. Abriu a boca e deixou que a
língua ultrapassasse os lábios. Estavam tão perto. Só alguns milímetros. A
cabeça desencostou-se levemente do tampo da mesa, enrijecendo o pescoço,
na preparação para movê-lo. Os cotovelos de Manuela dobraram-se
imperceptivelmente, querendo ceder à tentação. Os pelos se encostaram
antes das peles fazerem qualquer contato. Verônica ficou arrepiada e gemeu.
A policial já não existia mais. Era apenas uma mulher à serviço da natureza.
De suas têmporas, uma gota de suor escapou, obrigando a pintora a fechar os
olhos. Não os abriu mais. Tudo o que veio depois foi a sensação de toques
que a subjugavam, pressionando-a contra a mesa de trabalho, revirando-a
sobre tintas e pinceis. Uma língua molhada a invadiu, ao mesmo tempo em
que mãos firmes agarraram-se ao seu pescoço e nuca, forçando-a para frente
e para trás. Manuela dominava seus movimentos e quereres. Verônica
experimentou-se tomada por aquela mulher, incapaz de demonstrar qualquer
sinal de controle sobre si mesma, a não ser satisfazer os desejos dela.
Manuela invadiu seu corpo sem pedir permissão, colocando-se em
todos os lugares. Completamente entregue, Verônica tremeu inteira. Abriu os
olhos, mas não estava ali. Gozou nas mãos da policial. Estava acabada e
adormeceu.
Quando acordou, sentia-se dolorida, como se tivesse tomado uma
surra. Ao mesmo tempo, era como se seu corpo, inebriado, experimentasse
uma sensação de plenitude. Aos poucos, a memória dos acontecimentos
recentes foi se revelando. Verônica tomou um susto e abriu os olhos,
procurando por Manuela. Estava sozinha. Levantou-se, precisando ir ao
banheiro. Não era surra o que sentia. Era como se tivesse passado os últimos
dias correndo uma maratona sem intervalos. Estava dolorida, exausta e,
contraditoriamente, cheia de disposição. A sensação do último orgasmo a
invadiu e colocou as mãos sobre o abdômen, tentando revivê-lo. No caminho
até o banheiro do ateliê, desistiu. Preparou um drink e subiu. Encheu a
banheira e adormeceu ali.
Um zumbido insistente invadiu seus sonhos. Escorregou, engolindo
água, e acordou assustada, afogada pelo engasgo. O barulho persistiu,
transformando-se no som da campainha que castigava, impiedosa, as paredes
dos três andares da residência. Enrolou-se numa toalha e vestiu a primeira
roupa que seus olhos encontraram. Descendo ao ateliê, encontrou-o revirado
pela bagunça do dia anterior.
Abriu a porta e encarou Manuela. Atrás dela, Ancelmo e um grupo
de policiais com cara de poucos amigos.
— Temos uma ordem judicial para revistar sua casa, Verônica. –
Informou-lhe a policial, sem dar o menor indício da intimidade que haviam
partilhado algumas horas atrás.
Atônita, Verônica abriu caminho. Passaram por ela sem qualquer
consideração, como se fosse a autora do crime que investigavam. Tentou
contato visual com a mulher a quem se entregou, mas Manuela fazia questão
de ignorá-la. Resolveu esperar do lado de fora e ligou para Begônia, que a
encontrou vinte minutos depois.
— Isso não faz o menor sentido. Mas acho que é a hora de procurar
uma advogada. Quer que eu fale com a Duda? Ela pode indicar alguém.
— Não sei. Me sinto desnorteada. – E narrou à assistente o encontro
que tivera com a policial na noite anterior.
— Céus, Verônica. Tinha que ir para a cama com ela?
— Não sei como aconteceu. Eu estava me sentindo acuada,
completamente incomodada com a situação... Acha que isso pode tê-la feito
me ver como suspeita?
Begônia deu de ombros.
— Não faço ideia. Acho que não. Tem que existir um motivo
concreto para expedirem um mandado de busca. Tem certeza de que não
aconteceu mais nada entre você e Adélia?
— O que poderia ter acontecido?
A dupla de investigadores e seus comparsas passaram por elas,
deixando a residência. Begônia interpelou-os, questionando a razão do
evento. Ancelmo respondeu apenas que sentia muito, mas que havia motivos
para desconfiarem que Adélia havia sido morta ali. E recomendou que
Verônica procurasse um advogado. Manuela passou direto e o esperou no
carro. Partiram.
Verônica estava arrasada. Arriou no divã e chorou. Pela primeira vez,
o mundo escapava de suas mãos e ela não sabia como reagir.
Tarde da noite, a campainha soou outra vez. Begônia foi atender e
voltou acompanhada pela policial. Conduziu-a até a piscina, onde Verônica
tentava relaxar ouvindo música. Saiu de dentro d’água. Não vestia nada.
Begônia entregou uma toalha a ela, enquanto Manuela esperava, encarando-
as. A dona da casa indicou uma mesa e as três se sentaram.
— Encontramos o sangue de Adélia aqui, Verônica. Tem alguma a
coisa dizer em sua defesa?
— O quê? Isso é um absurdo, Manuela. Nós... – Então se lembrou. E
sua expressão passou da incredulidade à compreensão e, em seguida, ao
pânico. O que aquilo poderia significar? Verônica era uma mulher das artes,
não sabia nada do mundo do crime. – Adélia deve ter se cortado quando
fazíamos amor. Estávamos sujas de tinta e só percebemos depois, quando
tomávamos banho. Não foi nada demais, um corte no braço. Dei um Band-
Aid a ela.
— Encontramos o sangue dela na pintura, na mesa, no chão e em
outra tela. Esse corte pequeno deve ter sangrado um bocado.
Verônica olhava para ela com uma mistura de raiva e angústia. O
sentimento mais primitivo prevaleceu.
— Se recordar um pouco da reconstituição que fizemos ontem – ela
tinha um tom ironicamente histérico na voz – lembrará que transamos em
cima da mesa, em meio a tintas, pinceis e outros objetos. E que tínhamos
uma tela muito próxima dos nossos fluidos. – Tomou uma respiração – Não
sou uma especialista em fisiologia humana, policial, mas acredito que
quando nosso corpo está em plena atividade física, uma quantidade maior de
oxigênio se faz necessária, impelindo o sangue correr com mais intensidade.
Verônica a encarava, sabendo que suas palavras faziam sentido. E
que Manuela tinha experimentado a sensação de latejar no dia anterior. A
policial, inabalável, continuou:
— E quanto a esta carta?
Tomando um papel de suas mãos, a pintora o abriu para ler. Era uma
carta assinada por Adélia, cujo conteúdo confessava a Verônica estar
apaixonada, mas não ter coragem de colocar um ponto final em seu
casamento.
— Como se sentiu quando Adélia lhe entregou isto?
Verônica não estava entendendo.
— Adélia nunca me deu essa carta.
— Não?
— Claro que não. Acho que eu me lembraria. Sequer, chegamos ao
ponto de ter uma conversa na qual eu a incentivasse a largar o casamento.
No máximo, perguntei se tinha amantes quando ela confessou que não ia
para a cama com o marido há anos.
— E ela tinha?
— Não.
— Só você.
— Não éramos amantes. Fomos para a cama uma única vez. Um
acontecimento extraordinário. Eu não a conhecia antes da festa no iate.
— E você, Begônia? Sabia do relacionamento de sua... como devo
chamá-la? Mestra? Sabia do envolvimento entre sua mestra e Adélia?
— Eu soube depois. As pessoas com quem Verônica faz amor são
problema dela, não meu.
— A menos que levem alguém para a cama juntas.
— ... Exato.
Begônia era uma mulher extremamente sensual, com lábios
carnudos, cabelos rebeldes e uma pele aveludada. E, assim como Verônica,
não tinha meias palavras para falar de assuntos que, à maioria das pessoas,
seriam tabus.
— Onde passou a noite de quarta para quinta-feira?
— No Unique, com uma amiga que veio de Milão.
— Amiga?
— Vocês, da polícia, não fazem sexo com amigos?
Manuela não se abalou.
— E na madrugada de sexta para sábado, pode me dizer o que fazia?
— Dormia no mesmo quarto de hotel, na companhia de Bella e de
Verônica.
— Por que está perguntando a ela o que já lhe disse? – Quis saber a
artista.
A policial a ignorou.
— Sabem quais são os meus palpites? Tenho dois: no primeiro deles,
Verônica, você cometeu um crime passional ao saber que Adélia não
deixaria o marido. No segundo, Begônia, você, sem conseguir lidar com o
envolvimento que arrebatou Verônica e Adélia, assassinou-a.
— Nesse caso, você está correndo um risco tremendo aqui. –
Respondeu a assistente.
Manuela encarou as duas. O silêncio era tomado pela agitação
interna e a confusão de sentimentos que se espalhava pelas três.
— Vai passar a noite aqui?
Begônia olhou para Verônica.
— Não decidimos ainda. Por que a pergunta?
A mulher que investigava o crime não respondeu.
— Como explica o fato de termos encontrado a carta, que você nega
se recordar, na sua casa?
— Na minha casa?
— Sim, no meio dos seus discos.
Aquilo não fazia o menor sentido. Adélia teria deixado a carta lá para
que encontrasse? Levantava essa hipótese, quando um pensamento lhe
ocorreu. Vago, disforme, demorando mais do que gostaria para se
concretizar. Então, lembrou-se da noite em que o alarme disparou. Na
madrugada, assonada, não se atentou ao detalhe, tão óbvio agora. Quando
Verônica se levantou para chamar a polícia, as luzes do ateliê estavam
acesas.
— Está me dizendo que alguém invadiu sua casa para plantar uma
falsa prova?
— Não sabia que a carta era prova de alguma coisa. – Levou alguns
segundos, antes de continuar. – Estou dizendo que suspeito de Otávio. Ele
esteve aqui dois dias antes. Adélia morria de medo dele e, quando confessei
a ela que seu temor me contaminava, ela quase desistiu da encomenda.
Insisti para que ficasse e me deixasse terminar um trabalho que estava
gostando de fazer. Não matei Adélia, Manuela. Sequer, tinha motivos para
isso, mas você parece decidida a incriminar uma de nós duas e descarta a
hipótese do crime ter sido cometido pelo marido, ele sim uma pessoa
ciumenta – ela se corrigiu – possessiva, segundo minha cliente. Otávio pode
ter colocado esta carta aqui depois de cometer o crime.
Manuela não informou à investigada – ou à sua assistente – do
andamento da investigação. Mas absorvia o relato, fazendo anotações
mentais, e comparava-as ao que a perícia já tinha apurado, como a hora da
morte e o provável momento em que o assassinato se consumou. Ancelmo
devia estar fazendo ao marido da vítima o mesmo tipo de interrogatório que
conduzia na casa da artista. Depois de conjecturar por um momento, falou:
— Begônia, se não se importa, gostaria que fosse embora.
— Tem uma ordem judicial que me obrigue a isso?
A policial a encarou.
— Não. É só um pedido.
— Não tem esse direito. – Verônica rebateu.
— Gostaria de passar a noite com você. – A policial devolveu,
invadindo-a com os olhos. – Como uma amiga. – Completou, dando uma
piscada irônica a Begônia.
Verônica e a assistente se olharam.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Vou deixar o celular ligado.
Verônica a acompanhou e fechou a porta. Antes, despediram-se com
um beijo na boca. Manuela, do mezanino, assistiu às duas. E foi ao encontro
da artista no ateliê.
— Gostaria de dar uma olhada no seu alarme, se não se importa.
A dona da casa obedeceu, mostrando a ela onde ficava a central. Seus
gestos comunicaram o quanto se sentia desconfortável com a situação.
Manuela, imperturbável, mexeu nos controles e no próprio celular,
examinando tudo com atenção. Verônica, incomodada, deu-lhe as costas e
esperou que terminasse o que quer que estivesse fazendo.
— Estou com fome. Vou comer alguma coisa. Quer me acompanhar?
— Sim, estou faminta também.
Foram até a cozinha. Verônica preparou uma salada de folhas, frutas,
castanhas e parmesão. Abriu um Chardonnay amadeirado. Jantaram num
silêncio entrecortado unicamente pelos insetos, que se faziam ouvir nas
bromélias da montanha em frente. O clima era de desconforto, mas Verônica
sentiu-se relaxar um pouco depois de matar a fome, e do álcool – que ingeria
sem moderação.
— Minha presença a incomoda? – Manuela quebrou o silêncio,
alcançando a mão de Verônica com a sua.
— O que espera de mim? – Retirou a mão.
— Podemos refazer os passos de Adélia outra vez.
Verônica emitiu um som que registrava seu desapreço.
— Receio ter me encontrado num dia em que não estou dispost...
Manuela não deixou que terminasse. Interrompeu-a com um beijo
ávido. A pintora tentou recuar, empurrou-a para longe. Mas, quando se
olharam, a atração foi fatal. Atiraram-se uma na outra.
Não era uma policial, não era alguém que investigava um crime.
Tampouco, estava diante da suspeita. Eram apenas duas fêmeas humanas
atraídas pela necessidade de saciar um desejo primitivo e inadiável. A
policial ameaçava tomar o controle novamente, mas Verônica se esforçou e a
colocou sob si, no deque de madeira que contornava a piscina. Pressionou
suas mãos contra os braços dela e, com a boca, atingiu-a em todos os lugares
que a envergadura de seu corpo permitiu. Mordeu seus mamilos
intumescidos e passeou pelas auréolas, de leve. Depois, chupou cada um de
seus seios como se pudesse tomá-los para si. E, então, escorregou para
baixo, traçando o destino de Manuela. Mergulhou para dentro daquela
mulher por quem se sentia assustadoramente atraída. A policial tremia,
derretendo-se a cada investida que a consumia. E, como um raio escapando à
tempestade, arqueou, gritando de prazer.
Caíram na piscina e deixaram que água lavasse os corpos suados. Em
êxtase, Manuela foi até Verônica e a beijou. Não como das outras vezes, mas
olhando-a de verdade pela primeira vez antes de tocar seus lábios.
Verônica recuou, sentindo-se privada de todas as suas defesas.
Porque já não era ela quem seduzia ou se deixava seduzir. Era a caça,
acuada, indefesa, mas inconformada ao perceber o abate. E não sabia o que
fazer com isso. Deixou que a língua da policial a atravessasse e, aos poucos,
concedeu a sua, agora consciente de seus atos. Subitamente, pensou nas
consequências daquele envolvimento. Estava pronta para escapar, quando
Manuela alcançou o par de algemas que carregava consigo e aprisionou seu
punho esquerdo, fixando a outra ponta em volta de uma das tábuas do deque,
cujo vão permitia a passagem da argola.
Verônica tomou um susto. O movimento ágil e preciso a pego
desprevenida. Sentia como se pudesse ser levada de seu familiar aconchego
para um desconhecido universo atrás das grades. Mas não era essa a intenção
da policial. Ao perceber onde a outra a tinha prendido, quase pôde relaxar.
Antes que desse um suspiro de alívio, um par de mãos fortes afastou suas
coxas para os lados e sentiu uma língua invadi-la por baixo d’água. Não
soube quanto tempo durou. Mas, antes de perder a noção da realidade,
pensou que Manuela tinha mais fôlego do que qualquer uma que já
conhecera na vida. A sensação entre as pernas tomava seu corpo e fazia os
músculos desmancharem. Por vezes, notava o punho apertado, lutando para
sustentar um peso que não encontrava o devido apoio na base. Quando não
pôde mais aguentar, Manuela voltou à superfície, ofegante, substituindo a
boca por dedos maliciosos.
Verônica era uma mulher de vasta experiência sexual. Colecionava
tantas amantes que seu julgamento, pretensioso, não podia imaginar que a
ela tantas sensações novas pudessem ser reveladas. Manuela brincava com
seu corpo, sabendo que o faria implorar para ser saciado. E a pintora,
receosa, entregava-se ao desconhecido.
A policial a torturou por muito tempo. Quando, finalmente, permitiu
que Verônica chegasse ao ápice do prazer, teve de segurá-la em seus braços
para que não se ferisse onde a algema a prendia. Todo seu corpo ficara
sustentado por aquele pequeno pedaço encarcerado.
Aos poucos, o êxtase foi cedendo espaço ao estado de consciência.
Verônica pôde sentir o corpo macio de Manuela apertando o seu,
sustentando-a na pressão contra a parede da piscina. A coxa da policial
colocava-se sob seu sexo e a artista confrontou-se com o atrito entre as peles,
amansado ali pelo gozo, que ainda não tinha sido lavado pela água.
Sorrateiramente, pôs-se a movimentar os quadris para frente e para trás,
numa inútil tentativa de voltar no tempo e ser arrebatada novamente.
Manuela riu, sacana.
— Achei que fosse querer descansar.
Verônica ligou um foda-se para tudo o que poderia advir daquela
aventura inconsequente e aumentou a intensidade dos movimentos, adiando
qualquer repouso. Sua mão livre desceu para encontrar o sexo da outra
inchado e quente. E, com as pernas falhando vez ou outra, empenhou-se em
retribuir o que acabara de receber, sem se desfazer do balanço que a levava a
uma nova explosão.
A madrugada ia alta quando atirou-se na cama. Manuela foi embora e
a deixou marcada e com vontade de prolongar um encontro que sabia não ser
duradouro.
Mal dormiu e foi arrancada da cama pelo alarme insistente que se
sobrepunha ao sono pesado. Demorou mais do que gostaria para abrir os
olhos, descontentes com a invasão da luz golpeando-os. Sentindo que
alguma coisa não estava certa, abriu-os mais um pouco para confirmar o que
já sabia. Não tinha se deitado com as luzes acesas. Encarou o teto, certa de
que, quando o pescoço a fizesse olhar para frente, não encontraria o quarto
como o deixou.
Respirou fundo e aceitou o inadiável. Diante dela, a visão de um
cano fino e escuro revelava-se, à medida que os olhos ajustavam o foco,
como uma arma apontada em sua direção. Atrás do revólver, o marido de
Adélia e a pintura inacabada da mulher que amara dias atrás.
— Boa noite, Otávio. A que devo a honra da sua inesperada visita?
Ele riu, desdenhosamente.
— Acha que vou para a cadeia, quando você é a responsável pelo que
aconteceu com a minha esposa?
— Eu não matei Adélia.
— Você a seduziu.
Verônica engoliu em seco.
— Não é verdade. Adélia veio até mim. Ela contratou meus serviços.
— Nega que foi para a cama com a minha mulher?
Sabendo que qualquer resposta poderia condená-la, procurava uma
estratégia para ganhar tempo. Tentou se lembrar onde tinha deixado o
celular.
“Deve estar na piscina. Droga”.
— Otávio, preciso desligar o alarme, ou os vizinhos não tardarão a
chamar a polícia.
Pego desprevenido, o homem titubeou e ordenou que o fizesse sob a
mira atenta de seu revólver.
— Estou nua. Seria demais pedir um pouco de cavalheirismo para
que eu pudesse me vestir?
— Não sou um cavalheiro, nem você é uma dama, Verônica.
Levante-se. – E, como se ela o obedecesse vagarosamente, a puxou pelo
braço machucado e a empurrou à frente.
Sem alternativa, desceu as escadas que conduziam ao ateliê. Apertou
os botões que cessaram a sirene desagradável. Verônica, os seios cobertos
pelos braços, numa tentativa inútil de se proteger, aguardava o que viria em
seguida.
— Suba.
Ela obedeceu, desejando chegar a qualquer lugar onde encontrasse
uma peça de roupa jogada. Voltaram para o quarto. Ele a jogou na cama e se
atirou sobre ela, golpeando-a com a coronha da arma. O gosto de ferrugem
do sangue invadiu as papilas gustativas. Olhou para ele, desamparada e, pela
primeira vez, com medo real do que poderia acontecer.
— Foi aqui que se deitou com ela?
— Não fui para a cama com Adélia.
— Mentira! – Ele desferiu outro golpe, desta vez com as costas da
mão. Verônica sentiu o queixo esquentar.
— Estou dizendo a verdade. Ela queria presenteá-lo, por isso
encomendou a pintura. – Mentiu, numa tentativa desesperada de se safar.
— Acha que eu desconhecia as intenções dela? Adélia estava
obcecada por você desde aquela maldita exposição em Paris. Essa sua arte
erótica a enlouqueceu. – Gritou, dando um soco na tela e fazendo-a ir ao
chão.
Verônica adiantou-se, num reflexo, tentando chegar a tempo de
impedir a queda da pintura que adorava. Otávio a empurrou de volta para a
cama.
— Otávio, você está fora de seu juízo. Pense nas consequências do
que está fazendo. Se for embora, prometo que ninguém saberá o que
aconteceu aqui.
— A polícia já sabe que o que eu fiz, Verônica. Sou um homem sem
nada a perder.
Contra toda a sua vontade de permanecer calma, seus olhos
encheram-se d’água. Verônica temeu o pior.
— Abra as pernas!
— Não faça isso.
— Abra as pernas – ele gritou, encolerizado.
Ela não obedeceu. Não podia. A vontade de seu corpo impunha-se
sobre todas as outras. Acuada, encolheu-se quando ele se aproximou. Seus
olhos percorreram o quarto, procurando qualquer coisa com a qual pudesse
se defender. Não encontrou. Mas a agitação atraiu os olhos do assassino para
a marca em seu braço.
— O que é isso?
Não podia responder. Ele a odiava e a verdade só aumentaria sua
fúria.
— Eu me machuquei.
Era uma resposta inútil. A marca não deixava dúvidas. Ele a golpeou
com força e repetidas vezes.
— Cretina! Nem enterrou Adélia e já se deita com outra? – Ele
desferia socos no seu rosto, colo, abdômen. De repente, Verônica o sentiu
inchar. Estremeceu. Tentou sair da cama, mirando os espaços que a levariam
até a escada e, finalmente, para fora do ateliê. Não deu tempo. Otávio a
segurou e, tendo a gravidade para ajudá-lo, sobrepôs seu peso sobre o dela.
Verônica tentou se desvencilhar, mas o sujeito era musculoso, corpulento, de
ombros largos e pernas igualmente fortes, embora um pouco finas, em
desproporção à largura do tronco. Sua pele brilhava pelo excesso de
oleosidade e era inchado pela bebida, que consumia numa quantidade
exagerada. O estômago, em proeminente desalinho, encostava-se no corpo
da artista, enquanto ele lutava para mantê-la sob si, ao mesmo tempo em que
abria as calças.
Verônica cerrou as pernas e soube, naquele momento, que lutaria
com todas as suas forças para impedi-lo. Motivada pelo instinto de
preservação de si mesma, atirou-se sobre ele com as mandíbulas
escancaradas, pronta para mordê-lo onde imaginava ser a jugular.
— Para trás, Otávio!
A voz levou alguns segundos para chegar ao cérebro e ser
reconhecida.
— Coloque as mãos para o alto e saia de cima dela. Devagar.
O homem obedeceu. Aliviada, Verônica desviou a atenção, tentando
fazer contato com a policial. Manuela, por um segundo, desviou-se dele para
Verônica. Percebendo a oportunidade, o viúvo agarrou-se à sua arma e
passou os braços pelo pescoço da artista, antes que Manuela pudesse contê-
lo. Atrás dela, Otávio mirou a cabeça de Verônica.
— Largue você a arma, ou eu atiro. – Suas mãos amassavam os seios
de Verônica, que se debatia, impedindo a policial de tomar uma atitude
drástica.
— Está bem. Está bem. Vou colocar minha arma no chão. –
Lentamente, tentando desviar a atenção dele de suas intenções, levava o
revólver na direção do piso de cimento queimado. – Pode se acalmar? – Ela
olhou para Verônica, não para ele.
Não foram as palavras em si, mas a força do olhar que a atingiu.
Verônica aquietou os movimentos, sabendo que podia confiar naquela
mulher. A policial, concentrada, esperou a menor desatenção de Otávio. Ele
acompanhava sua mão. Quando a arma tocou o solo, o assassino desviou-se
para os olhos da policial. E Manuela, atenta, como se enxergasse em câmera
lenta, aproveitou o hiato provocado pelo trajeto do olhar de Otávio, sem
deixar de se comunicar com Verônica. A pintora soube que deveria se
impulsionar para longe. Manuela voltou com a 9mm, que não chegou a
largar, e disparou a duas vezes no sujeito. Com a agilidade dos anos em
campo, alcançou a arma do crime antes que Otávio caísse sobre os lençóis.
Imobilizado pela dor, a policial não teve dificuldades em passar as algemas
por seus punhos, fazendo-o esperar pela ambulância com os braços atrás das
costas.
Enquanto aguardavam as viaturas do corpo de bombeiros e da
polícia, Verônica atirou-se nos braços da policial, implorando pelo seu calor.
Estava com sangue coagulando em vários pontos do rosto e as marcas
avermelhadas começavam a aumentar de tamanho.
— Ei! – Afastou-se. – Você precisa passar pelo exame de corpo de
delito, não posso abraçá-la.
Indignada e exausta, Verônica a encarou.
— Foda-se, Manuela. Não estou pedindo um abraço da policial, mas
um pouco de acolhimento da mulher com quem fiz amor algumas horas
atrás. – E virou-se, enfurecida, para alcançar uma roupa qualquer no closet.
Passou por ela e foi até a piscina procurar pelo celular. Queria ligar para
Begônia e desfrutar de abrigo em braços conhecidos. Tentava encontrar seu
nome na tela, diante da qual, nervosa e com lágrimas escapando dos olhos,
não conseguia identificar o que lia.
O celular foi retirado de suas mãos. Sentiu um par de braços a
evolverem pela cintura. Virou-se. De frente para Manuela, permitiu que os
lábios dela encontrassem os seus, num beijo breve.
— Seu corpo é prova da agressão que sofreu. Minha vontade não
pode passar por cima da obrigação que tenho de cumprir. – E, passando os
dedos pela tela do celular de Verônica, encontrou o nome de Begônia e
entregou-lhe o aparelho.
— Ligue para ela.
Verônica o fez e, em poucos minutos, estava ao lado da assistente,
narrando os últimos acontecimentos. Manuela acompanhava a remoção de
Otávio e conversava com Ancelmo, enquanto outros agentes examinavam o
quarto, fotografando provas e recolhendo evidências. Quando acabaram, a
policial foi até elas e as conduziu para seu carro. Foram para o Instituto
Médico Legal e, depois, para a delegacia. Manuela acompanhou Verônica
em todas as etapas burocráticas e invasivas que ela, inevitavelmente, teve de
enfrentar.
O dia já tinha amanhecido há algumas horas, quando a policial a
levou de volta para casa. Begônia tratou de sumir com a existência de
qualquer indício do ocorrido, desfazendo-se do que restara no quarto da
artista. Foram para a piscina e, lá, a dona da casa se banhou e trocou de
roupa. Desabou sobre uma das cadeiras, esgotada. Begônia e Manuela, numa
situação embaraçosa, não sabiam muito bem que palavras dirigir uma à
outra.
— O que vai acontecer agora?
— Otávio aguardará o julgamento preso. Será indiciado por
homicídio culposo, ocultação de cadáver, tentativa de homicídio e tentativa
de estupro. Na melhor das hipóteses, passará os próximos oito anos preso.
Verônica estremeceu. Esperava se ver livre dele para sempre.
— Como soube que eu estava em perigo?
— Nunca achei que tivesse matado Adélia. Sua hipótese sobre como
a carta dela chegou até aqui me convenceu de que, de fato, alguém tinha
invadido a sua casa.
A expressão de Verônica era de raiva. Seus últimos dias tinham sido
consumidos pelo medo de pagar por um crime que não cometera. Begônia a
confortou, encarando a policial na espera de uma explicação.
— Minha opinião não encontrava respaldo nas evidências, pelo
contrário. O sangue de Adélia no seu ateliê teria sido suficiente para
incriminá-la, se a perícia não atestasse que a carta não tinha sido escrita por
ela.
A conversa não se estendeu por muito tempo. Manuela foi embora.
Verônica e a assistente adormeceram na sombra que, àquele horário, a
montanha projetava sobre as espreguiçadeiras.
Uma semana depois, Verônica e Begônia retomavam os
compromissos do ateliê. A dona da casa já tinha providenciado a
substituição da cama, manchada pelo sangue do assassino de Adélia, e novas
fechaduras guarneciam as portas e portões com mais eficiência contra
visitantes indesejados. Organizando os materiais e abrindo espaço para
começar um novo trabalho, Verônica deteve-se na tela de Adélia. O ar ficou
em suspenso durante alguns segundos ao se lembrar das últimas pinceladas
que fizera dela. Manuela tinha razão: a tela estava pronta. Era um trabalho
belíssimo. Levaria Adélia para a próxima exposição.
O dia de trabalho não rendeu. Verônica decidiu não exigir muito de si
mesma naquele momento. Ao final do expediente, pela primeira vez desde o
incidente, disse a Begônia que queria passar a noite sozinha. A assistente foi
para casa, adiando a conversa que gostaria de ter com ela há dias e que,
diante dos acontecimentos recentes, esperava pelo momento adequado.
Verônica estava inquieta, tentando fazer coisas que costumavam
acalmá-la, como cozinhar ou cuidar do jardim, sem sucesso. Atirou-se na
piscina de roupa, esperando que a água gelada clareasse seus pensamentos.
Saiu de lá e seus dedos digitaram o nome da policial no celular. Sem que se
desse conta do que estava fazendo, ouviu a voz dela responder do outro lado
da chamada.
— Verônica?
— Pode vir até a minha casa?
— Aconteceu alguma coisa?
— Não.
Minutos depois, saía outra vez da piscina, o único lugar onde se
sentia um pouco mais calma, para atender à porta. Manuela entrou sem pedir
licença, invadindo os espaços entre as roupas encharcadas com suas mãos
ágeis. Verônica compreendeu, imediatamente, que não poderia mais viver
sem aquela fúria que se impunha com violência e regozijo sobre a sua.
Naquela noite, fizeram amor e gozaram sucessivas vezes, tendo as telas de
Verônicas a encará-las, invejosas da saciedade das amantes.
@elea_mrcr | elea_o@yahoo.com.br
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QUEENZ