Metadona Vs Morfina
Metadona Vs Morfina
Metadona Vs Morfina
2018;68(2):122---127
REVISTA
BRASILEIRA DE
ANESTESIOLOGIA Publicação Oficial da Sociedade Brasileira de Anestesiologia
www.sba.com.br
ARTIGO CIENTÍFICO
a
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Curso de Medicina, Campus Tubarão, Tubarão, SC, Brasil
b
Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), Anestesiologia, Tubarão, SC, Brasil
c
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Tubarão, SC, Brasil
d
Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), Centro de Pesquisas Clínicas, Tubarão, SC, Brasil
PALAVRAS-CHAVE Resumo
Metadona; Justificativa e objetivos: A dor é fator agravante da morbidade e mortalidade pós-operatória.
Morfina; O objetivo foi comparar o efeito da metadona versus morfina quanto à dor e demanda de
Dor pós-operatória; analgesia pós-operatória em pacientes submetidos à revascularização do miocárdio.
Cirurgia cardíaca Método: Ensaio clínico randomizado, duplo-cego, em paralelo. Pacientes submetidos à cirurgia
de revascularização do miocárdio foram randomizados por blocos em dois grupos: Grupo Morfina
(Gmo) e Grupo Metadona (Gme). No fim da cirurgia cardíaca, 0,1 mg.Kg−1 peso corrigido de
metadona ou morfina foi administrado por via venosa. Os pacientes foram levados à UTI, onde
foram avaliados o tempo até a extubação e a necessidade do primeiro analgésico, o número de
doses necessárias de analgésicos e antieméticos em 36 horas, a escala numérica de dor em 12,
24 e 36 horas após a cirurgia e a ocorrência de efeitos adversos.
Resultados: Foram incluídos 50 pacientes em cada grupo. A metadona apresentou eficácia
22% maior do que a morfina com Number Needed to Treat (NNT) de 6 e Number Needed to
Harm (NNH) de 16. Gme apresentou média de dor pela escala numérica em 24 horas após o
procedimento de 1,9 ± 2,2 em comparação com o Gmo, cuja média foi de 2,9 ± 2,6 (p = 0,029).
O Gme necessitou de menos morfina de resgate 29% do que o grupo Gmo 43% (p = 0,002). Entre-
tanto, o tempo até a necessidade de analgésico no pós-operatório foi de 145,9 ± 178,5 minutos
no Grupo Gme e de 269,4 ± 252,9 no Gmo (p = 0,005).
夽 Estudo feito no Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), Tubarão, SC, Brasil.
∗ Autor para correspondência.
E-mail: fastrevisol@gmail.com (F. Schuelter-Trevisol).
https://doi.org/10.1016/j.bjan.2017.09.005
0034-7094/© 2017 Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Este é um artigo Open Access sob uma licença
CC BY-NC-ND (http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/).
Comparação da analgesia pós-operatória com uso de metadona versus morfina 123
em procedimentos cirúrgicos de menor duração, como as administrado por via venosa, no Grupo Gme; 0,1 mg.kg−1
colecistectomias.12 Seu perfil multimodal contribui para o peso corrigido de metadona; ou 0,1 mg.kg−1 peso corrigido
controle de dor pós-operatória. O isômero R(-) da meta- de morfina no Grupo Gmo.
dona tem atividade -agonista, enquanto seu isômero S(+) O cálculo das doses das drogas anestésicas para indução e
é quase inativo nesse receptor. Porém, esse isômero tem manutenção da anestesia teve como referência o Peso Ideal
atividade antagonista nos receptores NMDA. Consequente- (PI) para dose de rocurônio e o Peso Corrigido (PC) para
mente, existe um sinergismo entre os isômeros R(-) e S(+) dose de etomidato dos pacientes, no qual PI = altura-100 (em
da metadona na promoção do efeito antinociceptivo.13 cm) para homens e a altura-105 para mulheres e o PC = PI
O objetivo deste estudo foi comparar nas primeiras + [0,4 × (peso real) - PI]. Ao término do procedimento, o
36 horas do pós-operatório de cirurgias de revascularização paciente foi imediatamente levado à UTI, entubado, onde
do miocárdio as repercussões na analgesia pós-operatória se fez o acompanhamento pós-operatório. Nessa unidade,
e a ocorrência de seus efeitos adversos --- náuseas, vômi- os profissionais desconheciam em qual grupo os pacientes
tos e depressão respiratória --- proporcionados por uma foram incluídos e, segundo critérios da equipe médica e de
dose de metadona ou morfina administrada no fim da enfermagem dessa unidade, recebiam dipirona 1 g por via
cirurgia. endovenosa (EV), de seis em seis horas, de forma contínua,
e se houvesse queixa de dor moderada ou forte eram admi-
nistrados 0,03 mg.kg−1 de morfina por via EV, com o limite
Método de 0,1 mg.kg−1 em quatro horas. Em caso de náuseas ou
vômitos foram administrados por via EV 10 mg de cloridrato
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pes- de metoclopramida.
quisa da Universidade do Sul de Santa Catarina, mediante Foram registrados o tempo de duração da anestesia
o Parecer n◦ 1.049.850, em 5 de maio de 2015. Foi tam- em minutos, o número de doses e o tipo de analgésico e
bém cadastrado no Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos antieméticos necessários durante o período pós-operatório,
n◦ RBR-8spkx9. bem como a ocorrência das possíveis reações adversas,
Foi feito ensaio clínico randomizado em paralelo, duplo- tais como náuseas, vômitos e depressão respiratória. Essas
-cego, de fase IV. Foram selecionados pacientes de ambos reações foram observadas pelos enfermeiros e/ou equipe
os sexos, maiores de 18 anos, com classificação de estado de pesquisa durante a internação em UTI. Foi considerada
físico pela American Society of Anesthesiologists --- ASA III ou depressão respiratória quando houvesse oito movimen-
IV --- e que se submeteram a uma cirurgia de revascularização tos respiratórios ou menos por minuto e/ou necessidade
do miocárdio sem circulação extracorpórea. Os participan- de reintubação. A equipe de pesquisa, com auxílio dos
tes deram a anuência mediante assinatura do termo de enfermeiros e residentes em anestesiologia, devidamente
consentimento livre e esclarecido por ocasião da consulta treinados, aplicou a escala numérica da dor em 12, 24 e
pré-anestésica. 36 horas do pós-operatório. Também foi calculado o tempo
Para o cálculo do tamanho da amostra, foi considerada a até a administração da primeira dose de analgésico e o
porcentagem de não expostos positivos, ou seja, analgesia período transcorrido até a extubação, de acordo com os
satisfatória em 50% dos pacientes em uso de morfina (Grupo registros médicos da equipe de pesquisa, em concordân-
Controle) e 80% entre os expostos positivos, ou seja, anal- cia com o registro feito no prontuário médico pela equipe
gesia satisfatória em pacientes em uso de metadona (Grupo plantonista da UTI. Todas as aferições foram feitas por pes-
Intervenção), com nível de confiança de 95% e poder de quisadores cegados quando ao grupo ao qual o paciente
estudo de 80%, obteve-se uma amostra mínima necessá- pertencia.
ria ao estudo de 80 pacientes (40 em cada grupo). Foram A escala numérica de dor consiste em um instrumento
excluídos pacientes em uso de drogas ilícitas, aqueles com escalonado de 0 a 10, 0 ausência de dor e 10 dor
antecedentes alérgicos a alguma das medicações usadas no insuportável.14 Além disso, categoricamente se considera
estudo e aqueles que tiveram de permanecer intubados no dor leve de 0 a 3, dor moderada de 4 a 7 e dor intensa
pós-operatório por mais de 12 horas. 8 a 10.15
A randomização dos pacientes foi feita por blocos com Para o cálculo de tamanho de amostra foi usado o pro-
sequência de quatro participantes. Os pacientes foram alo- grama OpenEpi, versão 2.3.1. Os dados coletados foram
cados de modo aleatório por blocos em dois grupos: Gme cadastrados em um banco de dados criado com auxílio do
(metadona) e Gmo (morfina). Os blocos foram sorteados pela software Epidata, versão 3.1 (EpiData Association, Odense,
equipe de pesquisa e repassados ao chefe da anestesiologia Denmark), de domínio público. A análise estatística foi feita
para determinação do fármaco usado. Tanto os investigado- com o auxílio do software Statistical Product for Service
res e auxiliares de pesquisa, responsáveis pela coleta dos Solutions (SPSS for Windows v 20 Chicago, IL, USA). Foi usada
dados, quanto os pacientes desconheciam a que grupo per- a epidemiologia descritiva para apresentação dos dados,
tenciam, o que garantiu o cegamento do estudo. Na sala as variáveis qualitativas foram expressas em proporções e
de cirurgia, todos foram monitorados com pressão arte- as variáveis quantitativas em medidas de tendência cen-
rial invasiva, cardioscopia, oximetria de pulso, capnografia, tral e dispersão. Para análise das variáveis quantitativas foi
temperatura, diurese e pressão venosa central. A indução empregado o teste de Kolmogorov-Smirnov, para se verifi-
anestésica foi feita com sufentanil 0,5 g.kg−1 e um bólus car a normalidade da distribuição dos dados. A comparação
de 10 g conforme necessidade, etomidato 0,2 mg.kg−1 e entre médias foi pelo teste de t de Student, usou-se a esta-
rocurônio 0,1 mg.kg−1 . tística paramétrica. Nos casos de distribuição não normal
A anestesia foi mantida com 0,25-0,5 g.kg−1 .h de sufen- foi empregada à estatística não paramétrica com aplicação
tanil; 0,5-1 CAM de sevoflurano. No fim da anestesia foi do teste U de Wilcoxon-Mann-Whitney. Para se verificar a
Comparação da analgesia pós-operatória com uso de metadona versus morfina 125
Tabela 3 Analgesia satisfatória e ocorrência de eventos intervenções com potencial álgico maior, como nas esterno-
adversos nas primeiras 36 horas de pós-operatório tomias.
Outro fato observado foi o tempo até a necessidade
Gmo (n = 50) Gme (n = 50) Valor da administração do primeiro analgésico, que foi signifi-
de pa cativamente inferior no grupo metadona, o que diverge
Analgesia da dor ≤ 3 0,096 dos resultados de Udelsmann et al.,18 cujo emprego de
Falha 36 (72%) 28 (56%) metadona na indução da anestesia de cirurgia cardíaca
Sucesso 14 (28%) 22 (44%) permitiu uma analgesia mais prolongada, de maneira que
a primeira dose de analgésico nos pacientes que rece-
Reação adversa 0,529 beram metadona só foi administrada quase quatro horas
Sim 19 (38%) 16 (32%) depois daquela do grupo com morfina. Em outro estudo
Não 31 (62%) 34 (68%) duplo cego que comparou metadona e morfina em cirur-
%, percentual; Gmo, grupo morfina; Gme, grupo metadona. gias de abdome superior, o tempo médio da necessidade
a Teste de qui-quadrado de Pearson.
de analgésico de resgate foi significativamente mais longo
em pacientes que receberam metadona (21 vs. 6 h).14
Uma possível explicação pode ter sido a dose escolhida,
Discussão que interfere no tempo de eliminação do medicamento,
e a duração do efeito da metadona, que sofre influên-
O grupo tratado com metadona apresentou maior analge- cia das características individuais do paciente. Nesse caso,
sia em 24 horas após o procedimento cirúrgico e necessitou recomenda-se a dose de metadona com concentrações supe-
menor uso de morfina no período. Entretanto, o tempo riores a 20 mg, sempre observar a idade do paciente, o
decorrido entre o fim da cirurgia e o uso de analgésico procedimento cirúrgico a que será submetido e a frequência
durante a internação na UTI foi menor do que o grupo respiratória.19,20
controle. Se considerarmos uma analgesia satisfatória com A morfina via intravenosa apresenta pico do efeito anal-
escala de dor em 36 horas igual ou inferior a 3 e considerar gésico em 20 minutos após a sua administração e a duração
ausência de dor a dor leve, a eficácia da metadona foi de da ação analgésica é de quatro a cinco horas.21 Também
22% a mais do que a morfina. vale ressaltar, mesmo que não haja diferença estatística
Tradicionalmente os opioides são usados para o con- entre os grupos, que em média o tempo de cirurgia do grupo
trole da dor, do primeiro ao terceiro dias após cirurgia metadona foi superior ao do grupo morfina.
cardíaca, destaca-se a administração intermitente de opioi- Em razão de sua longa duração de ação, a metadona
des de curta ação, como a morfina que resulta em flutuações tornou-se uma opção analgésica interessante no trata-
nas concentrações plasmáticas, o que pode explicar as mento da dor pós-operatória, principalmente nas cirurgias
pontuações relativamente elevadas de dor relatadas nesta de grande porte, com tempo de recuperação prolongado,
população de pacientes. Este estudo revelou o interesse de como as cirurgias cardíacas. Entretanto, vale ressaltar que a
se usar metadona intraoperatória nas cirurgias cardíacas, já metadona, assim como os demais opioides, apresenta, den-
que o número de doses de analgésicos opioides necessário foi tre os possíveis efeitos colaterais, náuseas, vômitos, prurido
significativamente menor no grupo que recebeu metadona e depressão respiratória dose dependente, que pode retar-
no fim da anestesia. dar o tempo de extubação e acarretar maiores custos à
O emprego de metadona no fim da anestesia permitiu instituição. Embora já usada em outros países, só recente-
uma analgesia mais eficiente, de modo que nas primeiras 36 mente está disponível para uso parenteral em instituições
horas do pós-operatório o número de pacientes que necessi- do Brasil.
taram de analgesia foi menor com a metadona, assim como A metadona apresentou eficácia 22% maior do que a mor-
a apreciação da qualidade da analgesia pelo próprio paci- fina. Os resultados do NNT de 6 (considerado tratamento de
ente se traduziu, nesse grupo, por um resultado de escala grande impacto quando inferior a 25) e NND de 16 reve-
numérica da dor também inferior ao grupo da morfina e não lam que a metadona é uma boa opção terapêutica, eficaz e
houve, mesmo assim, prolongamento do tempo necessário segura, para uso em analgesia pós-operatória, quando admi-
até a extubação. nistrada no fim do procedimento cirúrgico. Destaca-se que
Os resultados do presente estudo se assemelham aos obti- o grupo controle neste estudo é a morfina (que foi consi-
dos por Murphy et al.16 ao concluírem que a administração de derado o tratamento convencional); portanto, são índices
0,3 mg.kg−1 de metadona na indução anestésica de cirurgia satisfatórios que auxiliam na decisão clínica por apresentar
cardíaca resultou numa significativa redução na necessidade o risco-benefício de ambos os medicamentos.
de analgésicos no pós-operatório, melhores notas no escore Dentre as limitações deste trabalho, ressalta-se que a
da dor, melhor percepção da dor pelo paciente e um melhor dor é extremamente subjetiva e difícil de ser mensurada,
manejo da dor durante 72 horas após a extubação traqueal, apesar da opção pelo uso de uma escala já validada para
além de não se observarem eventos adversos relacionados à sua aferição, mas que pode influenciar nos resultados deste
administração de metadona. estudo. As variações de intensidade da dor em 24 horas,
Entretanto, Gottschalk et al.17 observaram menor con- apesar de apresentar diferença estatisticamente significa-
sumo de opioides no pós-operatório somente após 48 horas tiva, clinicamente são similares e plenamente satisfatórias
da administração de metadona. A menor necessidade de opi- para dor pós-operatória nesse tipo de procedimento. Não
oides no pós-operatório por parte daqueles que receberam foi usada medida padronizada para avaliação de sonolência,
metadona talvez justifique a incidência inferior de náuseas o que pode ter influenciado a percepção da dor. Portanto,
e vômitos nesse grupo, o que é bastante interessante em há necessidade de estudos multicêntricos e com período de
Comparação da analgesia pós-operatória com uso de metadona versus morfina 127
acompanhamento superior a 36 horas para a comprovação 7. Mercadante S, Ferrera P, Villari P, et al. Switching from oxyco-
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