Uma Fonte, Dois Rios Weber, Simmel e o Neokantismo de Baden
Uma Fonte, Dois Rios Weber, Simmel e o Neokantismo de Baden
Uma Fonte, Dois Rios Weber, Simmel e o Neokantismo de Baden
Semestral
ISSN 1983-3784
Abstract: The interest of this essay is to analyze the influence of the neo-Kantian tradition of Baden (mainly
Heinrich Rickert) on the thought of Weber and Simmel in two closely related aspects - the possibility of
grounding cultural sciences on the recognition of their value reference, and the phenomenological postulate
of the irrationality of real. Given this shared base, I seek to indicate the methodological differences between
the two authors.
Introdução
formal das ciências de Heinrich Rickert já foi amplamente explorada (Benton, 1977;
Burger, 1976; Cohn, 2003; Oakes, 1988). Alguns comentadores chegam a afirmar ser
conceitos pouco desenvolvidos nos textos do Weber metodólogo (Burger, 1976; Oakes,
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (PPGSOL-UnB).
Bolsista da CAPES. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Instituto de Ciências Sociais, Asa Norte,
Brasília-DF. CEP: 70910-900. Telefone: +55 (61) 3107-1508. lucastrindadedasilva@yahoo.com.br
problemática da divisão “entre as ciências das leis e as ciências do real” (WEBER, 1993,
a qual está vinculado: “Quem conhece os trabalhos dos lógicos modernos – serão
mencionados aqui apenas os nomes de Windelband, Simmel, e, com ênfase para os nossos
fins, Heinrich Rickert – logo perceberá que, na sua essência, são estas as linhas de
As relações teórico-metodológicas entre Heinrich Rickert e Georg Simmel, por sua vez,
não são tão evidentes. Por um lado, isto se dá, em grande medida, pelo estilo ensaístico
referências e afinidades teóricas implícitas no texto. Por outro lado, a relação entre os dois
autores é mais de influência mútua que unilateral. Como assinala Oakes (1988, 72) a
conceitos (Begriffswissenschaft) tem sua origem no texto escrito por Simmel em 1882,
historicismo respectivamente.
diferenças do material, do objeto das ciências) para uma taxonomia formal (fundada nas
teria a dizer sobre a diferença no método das ciências, os defensores do “método único”
resposta.
conhecimento fundada em Kant. Para Rickert, “a cognição não pode consistir... em uma
atribuir uma característica intrínseca ou essencial à realidade, atribuição que não faria
mesma que tratam os conceitos, concepção oposta ao que Lask denomina “teoria
uma síntese, para ele “o espírito filosófico subestimou o poder do universo”, “há uma
razão particular para ser cauteloso em filosofia e gastar um bom tempo na análise antes
qualquer conteúdo real. Todo conceito sofre de uma “pobreza substantiva” de um “vazio
pode se dar segundo uma “concepção generalizadora” do real que estabelece relações de
chamadas pelos seus “nomes específicos”, sendo cada individualidade um mero exemplar
volta para aquilo que é único, cada coisa tem um “nome próprio”, a individualidade em
si mesma é o que importa para este conhecimento. É entre estes “extremos lógicos” que
exclusivo pelo isolamento e separação dos objetos circundantes. Para a ciência, por sua
vez, “tudo tem de ser compreendido em uma conexão, tanto pela história como pelas
ciências generalizadoras”. Nestas, está claro que as conexões se dão sob a forma de leis,
nível tanto “latitudinal”, num recorte temporal particular, como “longitudinal”, em seu
enquanto as ciências naturais seriam ciências dos conceitos, pois quanto maior a
generalidade conceitual e sistêmica mais próxima se encontra dos seus fins últimos.
Repousa nesta diversidade na maneira de tratar com conceitos gerais a distinção entre
históricas).
único, e do outro, o regular, aquilo que se repete. A ciência se constitui assim segundo
diferentes “princípios” (Ibidem, 64) de seleção daquilo que é essencial no seu material.
num objeto para cada cientista em particular, mas devem ser compartilhados, ou seja,
devem assumir “forma metodológica” (Ibidem, 40) para o conjunto dos investigadores
em que o seu fim último está relacionado com uma crescente subordinação dos conceitos
particulares a conceitos mais gerais até atingir uma estabilidade conceitual sistêmica,
“então devem poder considerar-se todos os objetos para os quais há de valer o sistema,
interesse objetivo – “avaloración” – pela “posição que o objeto adota dentro do sistema
Temos do que foi exposto acima uma relação intrínseca entre uma
(Ibidem, 67).
rickertiana pode ser resumida na seguinte pergunta: O que seria essencial cientificamente
histórico tudo “aquilo que produz, ou produziu, efeitos”, Rickert define o histórico como
“aquilo que produz efeitos essenciais, e por isso torna-se essencial em si mesmo” (Ibidem,
68-9).
(Ibidem, 69) e de qualquer valoração (no sentido subjetivo contrário à avaloração teórica).
É neste momento que se torna logicamente necessária uma teoria dos “valores gerais”,
“valores tais como são materializados nos exemplos... do Estado, da arte, da religião, etc.”
(Ibidem, 71) – é de um grau tão elevado que confere a eles o caráter de evidência, de
modo que mesmo sendo tarefa da filosofia da história a sua sistematização, pela ciência
tido por Rickert como valor fundamental da “vida teorética”: “o que passa por verdade
científica em qualquer momento dado é apenas o que uma comunidade dada de cientistas
precisa estabelecida pela taxonomia formal das ciências de Heinrich Rickert na qual as
ciências naturais são definidas pela sua “subordinação generalizadora sob conceitos
72).
e na Ciência Política (1904), texto do mesmo período que a Introdução aos Problemas
mundo, em forma única (monismo) de abordagem dos fenômenos tanto naturais como
históricos, Weber está preocupado, num nível menos geral, nas consequências do
representada pela Associação para a Política Social nas figuras de Gustav von Schmoller,
Adolf Wagner e Georg Knapp (Cohn, 2003, 108). Ambos, Weber e Rickert, buscam
apropriação da categoria de lei por parte da ciência social que, baseada no grau de
generalidade dos conceitos (ou leis) alcançados pela análise do “ser” social, vê-se no
direito de emitir juízos (supostamente objetivos) sobre o “dever ser” desta realidade. Em
intervenção no real.
a menor importância dada por Weber nos seus primeiros escritos metodológicos (1903-
06) a uma clara definição do objeto das ciências sociais (limita-se a recuperar a vaga
social.
Simmel (2006), ao polemizar tanto com a postura coletivista como com a postura
Rickert e Weber:
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“A realidade irracional da vida e o seu conteúdo de possíveis significações são inesgotáveis, e a
configuração concreta das relações valorativas mantém-se flutuante, submetida às variações do futuro
obscuro da cultura humana; a luz propagada por essas idéias supremas de valor ilumina, de cada vez, uma
parte finita e continuamente modificada do curso caótico de eventos que fluem através do tempo” (WEBER,
2001, p. 153).
Embora Simmel, neste momento, não fale em valores, a ênfase nos “propósitos
observação, ambos distantes da ‘realidade’... que, como tal, não pode de qualquer maneira
forma metodológica) e não pelo maior grau de realidade presente nos conceitos
as ciências, Simmel, ao definir sociologia, prescinde de uma análise do objeto para defini-
ciência que, justamente em razão de sua aplicabilidade à totalidade dos problemas, não é
uma ciência com um conteúdo que lhe seja próprio” (Ibidem, 22).
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Também Rickert via como secundário o debate conteudístico entre coletivistas (movimentos de massas)
e individualistas (grandes personalidades históricas). Para ele: “Até uma representação que procedesse de
forma puramente coletivista seria guiada não somente de maneira individualizadora, como já vimos [em
Rickert uma individualidade histórica não é necessariamente uma pessoa], mas também – como toda
representação histórica – por pontos de vista axiológicos” (Rickert, 1971, 73).
e ciência dos conceitos encontra sua origem n’Os Problemas da Filosofia da História de
igrejas, classes, associações, etc.”, mas também naquelas “formas de relação e modos de
oficiais e abrangentes, sustentam, mais que tudo, a sociedade tal como a conhecemos”
Simmel e Weber: 1) a rejeição de uma epistemologia realista que pensa a relação entre
caráter sempre limitado da cognição humana; 3) a ênfase nos princípios de seleção, nas
conhecimento histórico que retorna a Kant para ir além de Kant (Oakes, 1988),
compartilhada pelos três autores alemães, nos resta analisar as diferentes formas de, a
científico-social.
também está presente uma postura positiva em relação à divisão do trabalho científico4.
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Weber, ao tratar da “perspectiva especial” da Archiv de abordagem dos “fenômenos sociais e dos
processos culturais” pelo seu “condicionamento econômico (Weber, 1993, 121), é explícito neste ponto:
“O direito à análise unilateral da realidade cultural a partir de ‘perspectivas’ específicas – em nosso caso, a
do seu condicionamento econômico – resulta, desde logo, e em termos puramente metodológicos, da
circunstância de que o treino da atenção para se observar o efeito de determinadas categorias causais
qualitativamente semelhantes, bem como a constante utilização do mesmo aparelho metodológico-
conceitual, oferece todas as vantagens da divisão do trabalho” (Ibidem, 124).
ciência da cultura, como método, como uma “perspectiva”, um “ponto de vista”, ou uma
“sociação”, definida como “interação psíquica entre os indivíduos” (Simmel, 2006, 15)5,
critério de cientificidade para as ciências da cultura na sua orientação por valores gerais
Trata-se aí dos valores “reconhecidos e aceitos” por todos, gerais porque estão
em todas as partes, dos quais fala Rickert. Assim como Simmel quando exemplifica como
forma autônoma em relação à síntese de conteúdos que a originou a ciência como valor
Simmel, argumentando sobre as vantagens da sociologia formal, também explicita a questão: “Somente a
partir destas investigações emerge uma abstração que pode ser caracterizada como o resultado de uma
cultura científica altamente diferenciada. Essa abstração produz um conjunto de problemas sociológicos no
sentido estrito do termo” (Simmel, 2006, 29).
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Para a sociologia, os fenômenos “se apresentam como as somas das interações individuais” (29).
[...] apenas as idéias de valor que dominam o investigador e uma época podem
determinar o objeto de estudo e os limites deste estudo. No que concerne ao
método da investigação, o ‘como’ é o ponto de vista dominante que determina
a formação dos conceitos auxiliares de que se utiliza. E quanto ao método de
utilizá-los, o investigador encontra-se evidentemente ligado às normas de
nosso pensamento. Porque é uma verdade científica aquilo que pretender ser
válido para todos os que querem a verdade (Ibidem, p. 133, itálico meu).
Weber contribuirá de forma original, indo além da lógica pura, para a “questão que nos
da cultura” (133-4). Na forma como Weber empreende este estudo há uma diferença
crucial em relação a Rickert e Simmel. Pelo vínculo necessário entre a seleção do objeto
e valores culturais Weber compartilha, mas supera, uma definição do método das ciências
objetividade sob outro ângulo dá-se por motivos profissionais – Weber não é um lógico
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“Por exemplo, todo conhecimento parece ter um sentido na luta pela existência. Saber o verdadeiro
comportamento das coisas tem uma utilidade inestimável para a preservação e o aprimoramento da vida.
Mas o conhecimento não é mais usado a serviço dos propósitos práticos: a ciência tornou-se um valor em
si mesma. Ela escolhe seus objetos por si mesma, modela-os com base em suas necessidades internas, e
nada questiona para além da sua própria realização".
gerais, mas percebe a instabilidade de ter como única base de sustentação destas ciências
individualizador das ciências da cultura não esgota a sua especificidade, posto que, para
postulado por Rickert, como já citamos, de “obter uma clara noção sobre a necessidade
com que esse efeito individual, irrepetível, resulta dessa causa individual, irrepetível”.
relações de legalidade, pois, para ambos, o “digno de ser conhecido” pelas ciências da
de uma imputação causal em Weber também é justificada pelo ponto de partida valorativo
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“Os problemas culturais que fazem mover a humanidade renascem a cada instante, sob um aspecto
diferente, e permanecem variáveis: o âmbito daquilo que, no fluxo eternamente infinito do individual,
adquire para nós importância e significação e se converte em ‘individualidade histórica’. Mudam também
as relações intelectuais, sob as quais são estudados e cientificamente compreendidos. Por conseguinte, os
pontos de partida das ciências da cultura continuarão a ser variáveis no imenso futuro, enquanto uma espécie
de imobilidade chinesa da vida espiritual não desacostumar a humanidade de fazer perguntas à vida sempre
inesgotável” (Webr, 1993, 133).
da relevância valorativa.
Os tipos ideais têm o mesmo caráter de conceitos gerais com função de meios e
conteúdo real, o tipo-ideal é um meio conceitual para a sistematização por meio da seleção
137-140).
constrói um agrupamento conceitual individual que só poderá ser validado e tido como
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“... se pretendemos ‘explicar causalmente’ esses agrupamentos individuais, teríamos de nos reportar
constantemente a outros agrupamentos igualmente individuais, a partir dos quais os ‘explicássemos’,
embora utilizando, naturalmente, os citados (hipotéticos) conceitos denominados ‘leis’. O estabelecimento
de tais ‘leis’ e ‘fatores’ (hipotéticos) apenas constituiria, para nós, a primeira das várias operações às quais
o conhecimento a que aspiramos nos conduziria. A segunda operação, completamente nova e independente,
presente no pensamento de Rickert não desenvolvido pelo segundo: o trato com conceitos
seja do espírito). Neste sentido há uma afinidade lógica entre as ciências naturais e as
os tipos-ideais nada mais são do que isto – que uma apreensão particular da realidade
apesar de se basear nessa tarefa preliminar, seria a análise e a exposição ordenada do agrupamento
individual desses ‘fatores’ historicamente dados e da combinação concreta e significativa dele resultante.
Mas acima de tudo consistiria em tornar inteligível a causa e a natureza deste significado. A terceira
operação seria remontar o máximo possível ao passado e observar como se desenvolveram as diferentes
características individuais dos agrupamentos de importância para o presente, e proporcionar uma explicação
histórica a partir destas constelações anteriores, igualmente individuais. Por fim, uma quarta operação
possível consistiria na avaliação das constelações possíveis no futuro” (Weber, 1993, 127).
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“A brilhante hipótese de Eduard Meyer sobre a importância causal das batalhas de Maratona, Salamina e
Platéia para o desenvolvimento peculiar da cultura helênica (e, com isso, da Ocidental) – apenas pode ser
fortalecida pela prova obtida dos exemplos do comportamento dos persas nos casos de vitória (Jerusalém,
Egito, Ásia Menor) e, portanto, tem de permanecer necessariamente incompleta em muitos aspectos”
(WEBER, 2000, p. 7).
individual é incapaz de superar o seu caráter intuitivo, ou seja, aparecerá como “apreensão
direta do significado sem a intervenção de conceitos” (Parsons, 2010, 755) 10. Da mesma
forma, o senso comum não tem a mínima necessidade de se amparar numa tradição de
como “método das ciências históricas e do espírito” sem “um conteúdo que lhe seja
próprio”.
agente, e “’sentido’ objetivamente válido” (Weber, 2000, 1), o sentido atribuído pelo
investigador que é válido (valor), mas não real (existência) (Weber, 2000, 1). A não-
10
Em nota de rodapé, o próprio Parsons nomeia, incluindo Simmel, os principais nomes que representariam
a tradição intuicionista criticada por Weber: “Os principais nomes mencionados por Weber são os de
Wundt, Münstenberg, Lipps, Simmel e Croce” (Parsons, 2010, nota 32, 754).
11
Isso pode ser percebido na descrição geral da forma direito: “...o direito propriamente dito não tem
qualquer ‘finalidade, justamente porque ele não é mais meio. Ele se determina a partir de si mesmo, e não
em função da legitimação de uma outra instância superior e extrínseca que ditaria como se deve formar a
matéria da vida” (Simmel, 2006, 62). É Dilthey (2010) e a relação “vivência”-“expressão” que prefigura a
relação conteúdo-forma em Simmel,
Social (1937) de Parsons não é, portanto, uma exclusão arbitrária, mas coerente com a
Com base no que foi exposto acima, percebe-se como não há mera coincidência
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Cohn (2003) percebe o mesmo problema ao diferenciar “situação”, em Weber, de “forma”, em Simmel,
embora ambos conceituem o condicionamento recíproco das relações sociais: “A grande diferença entre
ambos os autores, nesse ponto, é que Weber problematiza aquilo que para Simmel era pacífico”. Embora
ambos, para Cohn, operem “com tipos”, há “uma distinção da maior importância. É que, em Simmel o tipo
é obtido através de uma depuração dos dados empíricos cuja unidade já está presente [forma], para Weber
trata-se de construí-los a partir de traços discretos tomados seletivamente de uma realidade que se apresenta
como congérie de eventos singulares [tipos-ideais]” (Cohn, 2003, 129).
O que Domingues (2008) denomina de “falácia da falsa concetude”, inspirado na “falácia da concretude
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cientificidade em cientificismo – fique claro que esta observação estabelece uma relação
encontra-se aí inclusive a condição para o pluralismo na ciência já que, para ele, uma
possível.
REFERÊNCIAS
COHN, Gabriel. Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
OAKES, Guy. Weber and Rickert: concept formation in the cultural sciences.
Massachusetts: The MIT Press, 1988.
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A estranheza de Simmel em relação à validação de uma elaboração conceitual mediante comparação com
outros conceitos reconhecidos, porém diferentes e até opostos, é bastante nítida no ‘confronto rigoroso’ da
sua “consideração do dinheiro” com a consideração do materialismo histórico: “Podemos aprender da
consideração do dinheiro – em diferença à análise do materialismo histórico que coloca o processo cultural
inteiramente na dependência de condições econômicas – que a formação da vida econômica influencia,
profundamente, a situação psíquica e cultural de uma época, mas esta formação recebe, por outro lado, o
seu caráter das grandes correntes homogênas da vida histórica, cujas forças e cujos motivos últimos são,
todavia, segredos divinos” (Simmel, 1998, 40).
__________. Metodologia das ciências sociais (parte I). São Paulo: Cortez, 1993.