Desafios Da Constituicao Democracia e Es
Desafios Da Constituicao Democracia e Es
Desafios Da Constituicao Democracia e Es
Faculdade de Direito
Diretor: Flávio Alves Martins
Comitê Científico
José Ribas Vieira
Carlos Alberto Bolonha
Cecília Caballero Lois
Margarida Maria Lacombe Camargo
Vanice Regina Lírio do Valle
Farlei Martins Riccio de Oliveira
Flávia Martins de Carvalho
Produção Editorial
Coordenação: Flávia Martins de Carvalho (flaviafnd@gmail.com) e José Ribas Vieira
Projeto gráfico, editoração e capa: Márcia Carnaval
Imagem da capa: iStokphoto
Agradecimentos: FAPERJ, FND/UFRJ, UCAM, UNESA, IBMEC, PUC-Rio, UFSC
978-85-63049-02-5
7 Apresentação
9 Agradecimentos
O tema que me foi sugerido para esta palestra parece estar afirmando o
caráter científico do Direito e, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma metodolo-
gia interdisciplinar para se acessar esse tipo de conhecimento. Na verdade, a afir-
mação contém dois aspectos polêmicos: o estatuto científico do direito e a efetiva
existência da prática da interdisciplinaridade nos estudos jurídicos.
* Texto apresentado no III Forum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito, em
22 de outubro de 2011,na Universidade Candido Mendes.
** Professora do Ibmec-RJ.
1
“Se o estudo do direito conduzisse a uma única resposta válida (científica) para cada problema apre-
sentado, (...) a tarefa de separar a opinião vulgar da científica seria facilitada”, Aguillar, Fernando Heren,
Metodologia da Ciência do Direito, Ed. Atlas, SP, 2009, p.1.
2
Além da lei, da jurisprudência e mesmo da doutrina, outras fontes como os princípios gerais de direito e
valores culturais podem ser úteis para determinar sentidos ocultos pela linguagem dita por Hart de textura
aberta das normas positivas.
nos limites da concepção de direito que serviu de base ao desenvolvimento do
estudo, e consequentemente à(as) resposta(s) obtida(s). Assim, por exemplo, a
resposta relativa à licitude ou não do aborto de feto anencefálico será uma se a
referência da resposta for apenas a lei e outra se além da lei outras fontes reco-
nhecidas como tendo influência no direito2 tiverem sido consultadas na busca de
uma solução adequada à questão. Outro exemplo: é lícito consignar crédito ban-
cário em folha de pagamento de devedor assalariado ou essa medida é abusiva? A
variedade das respostas é, pois, explicada pela filiação teórica que determina o
que se entende por direito.
A diversidade de respostas, em principio válidas todas desde que enqua-
dradas nos imites de uma concepção de direito, cria uma sensação de insegurança
como se se estivesse permanentemente em face de muitas opiniões, mesmo que
fundadas e diante da ausência de algum critério para determinar qual delas é afinal
a certa. Além do que, a nota distintiva da ciência é justamente a distância que man-
tém das meras opiniões. Se os resultados das pesquisas jurídicas são opinativas e
se entre os pesquisadores predomina o dissenso, então como defender o estatuto
de ciência para o conhecimento do direito?
O que comumente se entende por ciência no campo do conhecimento
jurídico e a denominada ciência dogmática do direito, um estilo de saber que toma
por objeto o sistema normas jurídicas vigentes em determinada sociedade. A
dogmática jurídica consiste num conhecimento para práticos do direito, práticos
da aplicação das normas para solucionar problemas. Do ponto de vista estritamente
lógico a dogmática não é propriamente a ciência do direito, pois não discute o valor
das normas, nem a sua eficácia relativamente às situações sociais a que são apli-
cadas. A dogmática jurídica e principalmente um conjunto de instrumentos técnicos
12 indispensáveis ao exercício das profissões jurídicas, embora esteja intimamente li-
gada a teoria do direito, esta sim um saber científico. Tem-se aqui, portanto, dois
tipos de saberes jurídicos: o prático e o teórico, ambos úteis e necessários.3 O pri-
meiro, porque atende as demandas de regulamentação do cotidiano das relações
sociais, o segundo porque consiste na construção e reconstrução de conceitos, ca-
tegorias, sistemas classificatórios, unificadores das regra e princípios jurídicos, além
da reflexão sobre as condições de eficácia das normas sobre a sociedade. Ambos
enfoques partem de pontos de vista distintos: o primeiro interno, de quem tem
diante de si um dado ordenamento jurídico que cabe realizar, mediante técnicas de
interpretação e aplicação e o segundo externo, de quem observa o que histo-
ricamente o direito e, se ocupando de descrever o que há de comum na diversidade
dos muitos ordenamentos jurídicos.4 O ponto de vista externo garante o caráter
científico do direito, pois não se atem a um determinado e histórico sistema de di-
reito positivo, mas sim de estabelecer o que há de comum e geral em qualquer sis-
tema jurídico histórico.
Nenhuma dessas atividades é mecânica, nem a do operador da dogmática
jurídica, nem muito menos da do teórico do direito. O operador adapta as leis às
circunstancias de fato, aceitando ao mesmo tempo os limites dessa adaptação.
_____________________________________________________________________________
2
Além da lei, da jurisprudência e mesmo da doutrina, outras fontes como os princípios gerais de direito e
valores culturais podem ser úteis para determinar sentidos ocultos pela linguagem dita por Hart de textura
aberta das normas positivas.
3
Aguilar,F. H., op. cit. p. 115.
4
Ver a esse respeito a concepção de Herbert Hart , em O Conceito de Direito, sobre os dois pontos de vis-
ta em face do direito: o de quem aplica um dado direito positivo, o de quem observa e descreve o que o
direito e. “A teoria jurídica concebida como sendo descritiva e geral...”, O Conceito de Direito, p. 301.
Essa é a razão porque a qualidade do trabalho do operador do direito vai depender
de uma pesquisa bem orientada. Não de pesquisa cientifica, mas de pesquisa téc-
nico-jurídica, a que se volta para a busca da interpretação adequada das normas,
se ocupa em fundamentar a decisão e escolher a argumentação persuasiva e convin-
cente, sem esquecer os princípios éticos inerentes a qualquer escolha. O teórico
do direito é um pesquisador no sentido próprio da palavra, pois, as construções a
que se dedica dependem, além da disposição de abordagem geral e comum, tam-
bém da qualidade e oportunidade dos métodos adotados. Métodos capazes de
orientar a observação, avaliar o que está estabelecido oficialmente com o que a
realidade social espera, promover uma base de apoio à atividade do operador do
direito.
Teorias sobre o direito são várias. Tentando, num esforço de síntese, des-
tacar as principais, se poderia dizer que: a) o direito é norma; b) o direito é relação
social; c) o direito é um ideal de realização da justiça. No interior dessas grandes
concepções há subdivisões. Não cabe no momento qualquer alusão a essas teorias,
o que importa é registrar que a teoria do direito vê o direito como uma instituição
política e social que, apesar das muitas faces que apresentou e apresenta cultural-
mente possui uma estrutura que não se alterou. E justamente essa estrutura que
cabe à teoria do direito explicar.
Portanto, o campo do conhecimento teórico e também prático do direito
é uma espécie de arena onde os agentes pesquisadores teóricos ou pesquisadores
operadores do direito argumentam em favor da superioridade da sua concepção
de direito ou da sua resposta a um caso concreto sobre outras possíveis concepções
ou soluções.
_____________________________________________________________________________
5
Piragibe da Fonseca, M.G. Iniciação a Pesquisa no Direito, Ed. Elsevier Campus, Rio de Janeiro, 2009, p.
62-70.
PARTE I – ESTUDOS SOBRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Fundamentação e Previsibilidade
no STF: uma Forma de Análise da
Argumentação dos Ministros em
Recursos Extraordinários*
André Janjácomo Rosilho
Carolina Cutrupi Ferreira
Dalton Tria Cusciano
Luciana de Oliveira Ramos
Maria Laura de Souza Coutinho
Paulo André Silva Nassar
Rubens Eduardo Glezer
Vitor Marins Dias
Luciana Gross Cunha (Coord.)
17
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* Esse artigo é fruto de uma pesquisa coletiva realizada no âmbito do Núcleo de Justiça e Constituição da
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (DIREITO GV). Esse Núcleo de pesquisas agrega
os estudos que a DIREITO GV desenvolve nas áreas de Teoria da Constituição, Direito Constitucional, Direitos
Fundamentais e Performance do Sistema de Justiça. A partir dessas grandes áreas é possível identificar
três eixos: (i) um primeiro refere-se a trabalhos que tratam da jurisprudência constitucional e do papel
que o Supremo Tribunal Federal vem exercendo, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988,
diante do desafio de garantir um rol amplo e complexo de direitos que muitas vezes estão em disputa por
atores derrotados nas esferas políticas tipicamente representativas; (ii) um segundo eixo reúne trabalhos
que estudam a questão da interpretação e concretização dos direitos fundamentais no direito nacional e
estrangeiro a partir da perspectiva processual da justiça constitucional e de questões pontuais de teoria
(geral) do direito, especificamente no que diz respeito a opções metodológicas sobre a interpretação do
direito constitucional e problemas de teoria da norma; e (iii) o terceiro eixo tem como foco principal a
performance das instituições do Sistema de Justiça, a partir do acompanhamento e análise das políticas
públicas que envolvem o acesso à justiça e a melhoria dos serviços prestados pelas instituições judiciais.
Com base nesses três eixos, o Núcleo de Justiça e Constituição apresenta três linhas de pesquisa: (i) Cons-
tituição e Democracia; (ii) Direitos Fundamentais; e (iii) Performance do Sistema de Justiça.
Agradecemos ao professor Dimitri Dimoulis pelas constantes provocações, que foram fundamentais para
qualificar os debates feitos ao longo da pesquisa, e pelos comentários que contribuíram sobremaneira
para o desenvolvimento das reflexões apresentadas nesse artigo. Agradecemos também a Lara Cortês
que, embora tenha ingressado recentemente no Núcleo de Justiça e Constituição da DIREITOGV, contribuiu
imensamente para o aprimoramento desse texto em virtude da cuidadosa revisão das últimas versões
deste artigo. Qualquer erro, contudo, é de responsabilidade dos autores.
RESUMO
Em um cenário de incontestável relevância do papel do Supremo Tri-
bunal Federal na arena política, é importante conhecê-lo em suas mais
diversas dimensões de atuação. Esse artigo enfatiza a análise da argu-
mentação dos ministros do STF em sua atuação como Corte Recursal.
O objetivo, aqui, é apresentar fundamentos jurídicos para justificar
o exame qualitativo da argumentação das decisões do Tribunal ao
julgar recursos extraordinários, na medida em que se considera que
a existência de coerência nas decisões judiciais é uma forma de con-
tribuir para a previsibilidade do sistema judicial, aspecto fundamental
do Rule of Law. Além disso, propõe-se uma metodologia de estudo
dos julgados do STF que se funda na busca da coerência das decisões
e no respeito ao histórico da interpretação judicial, inaugurando-se
uma agenda de pesquisa de estudo das decisões proferidas em re-
cursos extraordinários.
PALAVRAS-CHAVE
Fundamentação – Incerteza Judicial – Previsibilidade – Supremo Tri-
bunal Federal.
ABSTRACT
In a scenario in which the Supremo Tribunal Federal has an undeniable
and important role in the political field, it is necessary to comprehend
its way to decide in its various dimensions of performance. This paper
emphasizes the analysis of Justices’ reasoning in its role as a Court of
Appeals. The goal here is to provide legal grounds to justify the
qualitative examination of Court’s reasoning when it decides Recursos
Extraordinários, considering that the existence of consistency in
18 judicial decisions is a way to contribute to the judicial predictability,
which is a key element of the Rule of Law. Moreover, we introduce a
methodology that is based on the search for consistency in judicial
decisions and in the respect of judicial interpretation process, opening
up a research agenda study of decisions in Recursos Extraordinários.
KEYWORDS
Judicial Decision Making – Judicial Uncertainty – Predictability – Bra-
zilian Supreme Court.
1. INTRODUÇÃO
O Constituinte de 1988, seguindo um movimento mundial de valorização
do Direito e do Judiciário, positivou uma extensa Carta de Direitos e adotou um sis-
tema complexo de controle de constitucionalidade, conjugando elementos tanto
do sistema norte-americano quanto do sistema austríaco. Como resultado, os tribu-
nais e, especialmente, o Supremo Tribunal Federal (STF), passaram a ocupar posição
central na condução da vida econômica e política do país. Por esta razão, desde
1988 observa-se um aumento no número de pesquisas que têm como objetivo me-
lhor compreender o funcionamento do Judiciário brasileiro.
O STF, como responsável por dar a interpretação final do texto constitu-
cional, tem sido objeto de estudo de grande parte dessas pesquisas. Notamos, no
entanto, que tais estudos focam, essencialmente, a atuação do Tribunal no exercício
do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade e suas relações com os
demais atores políticos. Os estudos de Marcos Faro de Castro (1997), Oscar Vilhena
Vieira (2002, 2008), Matthew Mac Leod Taylor (2008), Luiz Werneck Vianna (1999),
Fabiana Luci de Oliveira (2008), Diogo Coutinho e Adriana Vojvodic (2009) seguem
nessa linha.
Além do exercício do controle de constitucionalidade, o Tribunal atua, tam-
bém, de outras formas. De acordo com a nomenclatura proposta por Falcão, Cerdei-
ra e Arguelhes no I Relatório Supremo em Números (2011), o STF possui três personas
distintas. Ele atua como Corte Constitucional, como Corte Ordinária e como Corte
Recursal, concentrando competências que, como ressalta Vieira, “em outras demo-
cracias modernas foram divididas entre três tipos de instituições: tribunais constitu-
cionais, foros judiciais especializados (ou simplesmente competências difusas pelo
sistema judiciário) e tribunais de recursos de última instância” (VIEIRA, 2008, p. 447).
No entanto, vale ressaltar que a maior carga de trabalho do STF não resulta 19
de sua atuação no controle de constitucionalidade concentrado, mas sim do exer-
cício de sua função recursal, ao apreciar Recursos Extraordinários (RE) propostos
contra decisões proferidas pelos tribunais inferiores, conforme aponta o recém
publicado Relatório Supremo em Números (FALCÃO, CERDEIRA, ARGUELHES, 2011).
De acordo com esse documento, “a absoluta maioria dos processos recebidos pelo
Supremo origina-se da Corte Recursal, correspondendo a quase 92% dos casos de
1988 até 2009”. Em contrapartida, as instâncias Ordinária e Constitucional são res-
ponsáveis por 7,8% e 0,5% dos processos nos últimos 21 anos, respectivamente.
Segundo dados disponíveis no site do próprio STF,1 entre os anos de 2003
e 2007, os RE responderam por quase metade do total de processos distribuídos
ao Tribunal.
A partir de 2008, porém, houve uma diminuição dessa proporção, o que é
explicado pela regulamentação e aplicação do instituto da repercussão geral,2 criado
_____________________________________________________________________________
1
Informações disponíveis na página eletrônica do STF, na seção de estatísticas: <http://www.stf.jus.br/portal/
cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido>.Último acesso em 09 de maio de
2011.
2
A repercussão geral é um requisito preliminar de admissibilidade do RE. A repercussão geral é reconhecida
quando o recurso contar com “a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico,
político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (art. 543-A,§ 1º, do CPC). Uma
vez reconhecida a repercussão geral, a decisão proferida no RE valerá para todos os outros recursos que
versem matéria idêntica. Há dois estudos exemplares a respeito da repercussão geral. O primeiro, de Mariana
Cardoso de Freitas, objetiva compreender os efeitos da adoção do instituto da Repercussão Geral no STF
(Análise do julgamento da repercussão geral nos recursos extraordinários). Já o segundo estudo aborda não só
o funcionamento do instituto da repercussão geral no STF como também a consequencia das decisões do tri-
bunal em RE nos tribunais de origem, com a finalidade de examinar se a repercussão geral produz um sistema
brasileiro de precedentes (Repercussão geral e o sistema brasileiro de precedentes). Ambos os trabalhos foram
desenvolvidos no âmbito da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).
pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, cujo objetivo é tentar reduzir a imensa
carga de trabalho da Corte na seara recursal.
O instituto da repercussão geral deu, portanto, ainda maior relevância ao
conhecimento da atuação do STF como Corte Recursal, pois uma vez que o caso te-
nha sido reconhecido como de repercussão geral, a decisão proferida em um RE
servirá de guia para a decisão de outras demandas idênticas, orientando a atuação
dos demais órgãos judiciais em casos assemelhados.
Considerando que uma das funções próprias do Direito é a de guiar condu-
tas e que os atores sociais utilizam as decisões judiciais para orientar seu processo
de tomada de decisão, manifestações judiciais que geram incerteza3 não permitem
que o Direito cumpra essa função satisfatoriamente.
Entendemos, consequentemente, que o instituto da Repercussão Geral
impõe uma maior preocupação com a atuação do STF como Corte Recursal e, ainda,
põe em relevo a questão da coerência das decisões judiciais.
A observação da atuação do STF como Corte Recursal traz inúmeras difi-
culdades. Primeiro, há a questão do número elevado de processos. Soma-se a esse
fator a dificuldade de acesso às informações processuais. Para contornar tais pro-
blemas, decidimos realizar a pesquisa em um período determinado e nos ater às in-
formações disponíveis no site do próprio STF.
Para a realização da pesquisa, selecionamos um período em que a compo-
sição da Corte permaneceu estável. Assim, são analisadas as decisões proferidas
em RE no período compreendido entre 05 de setembro de 2007 e 1º de setembro
de 2009, quando integravam o STF os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar
Mendes, Ellen Gracie, Carlos Britto, Cezar Peluso, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Ricar-
do Lewandowski, Carmen Lucia e Menezes de Direito.
20 O presente artigo tem por objetivos detalhar as razões pelas quais o Nú-
cleo de Justiça e Constituição da Direito GV elegeu como objeto de estudo o Supre-
mo Tribunal Federal (STF) enquanto Corte Recursal; explicitar porque entendemos
que buscar coerência nas decisões do STF é juridicamente relevante; além de apre-
sentar uma proposta metodológica inovadora de análise das decisões judiciais.
Para tanto, o presente artigo está estruturado em duas partes: na primeira
seção, tratamos brevemente das causas que levaram à expansão do poder judicial,
expondo as razões que justificam a observação do STF, com o intuito de funda-
mentar juridicamente a análise de decisões judiciais do STF; e, na segunda parte, a-
presentamos algumas reflexões metodológicas que apontam para novas possi-
bilidades de estudo da jurisprudência constitucional.
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3
O tema da incerteza será abordado mais adiante, a partir do item 3 desse artigo.
dos exemplos de questões polêmicas e delicadas que foram decididas pelo STF re-
centemente.
Esse fenômeno é explicado pela conjugação de dois fatores: a opção do
constituinte brasileiro por um modelo de Estado de Bem Estar Social, que se traduz
na adoção de uma linguagem principiológica, com a proteção não só das liberdades
individuais, mas também de inúmeros direitos econômicos e sociais, e a fragilidade
do sistema representativo (VIEIRA, 2008).
Primeiramente, a adoção de um modelo constitucional que tem como prin-
cipal característica a utilização de linguagem vaga e aberta a diferentes interpre-
tações impõe novos desafios ao Judiciário. A noção de adjudicação como subsunção
do fato à norma perde sentido, já que antes de julgar é necessário, muitas vezes,
dizer qual o Direito aplicável no caso concreto. Dentro deste contexto, as decisões
judiciais e suas fundamentações ganham enorme importância, tendo em vista que
é a partir delas que o significado do texto constitucional é, de fato, construído.
Ainda que teoricamente, em muitos casos, a atuação do Poder Judiciário
possa ser criticada, é certo que o texto constitucional põe os tribunais frente a
uma nova realidade da qual não há como escapar (CAPPELLETTI, 1989).
O modelo constitucional vigente não explica, porém, total e satisfato-
riamente a enorme relevância que o Judiciário brasileiro e o STF assumiram no ce-
nário político na última década. Como nota Arguelhes, “o ativismo do Supremo de
hoje é politicamente construído” (ARGUELHES, 2009, p. 07). Seguindo na mesma li-
nha, Neil Tate4 (1995) afirma que a expansão do poder judicial deve ser creditada,
também, a uma combinação de fatores políticos, dentre eles a ideia de que o Judi-
ciário seria mais receptivo a determinadas demandas por estar imune a pressões
políticas.
Acima de tudo, apontam os mesmos autores (ARGUELHES, 2009, TATE, 21
1995), a expansão do poder judicial só se dá em virtude da omissão deliberada dos
outros atores políticos que ocorre por duas razões principais. De um lado, porque
tentam evitar o desgaste político de decidir questões polêmicas, de outro porque
tentam obter, por intermédio do Judiciário, resultados que não conseguiram no
processo político. Como exemplo, constata Vieira (2008) que, durante a presidência
de Fernando Henrique Cardoso, o partido que mais recorria ao STF contra decisões
do governo era o Partido dos Trabalhadores e que, após a eleição do Presidente
Luiz Inácio “Lula” da Silva, tal posição passou a pertencer aos Democratas.
Percebe-se, portanto, que a combinação de fatores políticos e jurídicos
tem levado à transferência da decisão de questões que eram antes decididas nas
arenas típicas de participação política, como o Executivo e o Legislativo, para o Ju-
diciário.
É neste cenário que a observação do processo decisório judicial, em geral,
e do STF, em particular, ganha importância. Como mencionamos inicialmente, obser-
vamos, porém, que há necessidade de diversificação das pesquisas para que te-
nhamos um quadro mais completo sobre o funcionamento do Judiciário e de sua
influência no processo de tomada de decisão dos demais atores políticos e do res-
tante da sociedade.
Entendemos, portanto, que, em primeiro lugar, observar o STF como Corte
Recursal é relevante simplesmente porque é enquanto Corte Recursal que o STF
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4
Para Tate, ainda, a percepção pela população de que os Poderes Executivo e Legislativo estão mais
sujeitos à corrupção e preocupados com a proteção de seus próprios interesses é fator a ser levado em
consideração quando buscamos explicar o aumento da influência do Poder Judiciário.
mais produz em termos de número de decisões que profere. Paralelamente, a ado-
ção da Repercussão Geral deu ênfase à jurisprudência do STF produzida em RE, o
que torna ainda mais importante conhecer como o Tribunal julga nestes casos.
Mas não é só a relevância do STF no cenário nacional que justifica o seu
exame. É importante lembrar, também, que acompanhar a forma pela qual os Tribu-
nais decidem é um meio de aferir a previsibilidade do sistema jurídico.
A previsibilidade é necessária não só para garantir a segurança jurídica das
decisões proferidas pelos tribunais, mas é também característica essencial do Rule
of Law.5 A falta de previsibilidade das decisões judiciais, portanto, além de afetar a
segurança jurídica, compromete a própria existência do Rule of Law.
Uma ressalva merece ser feita quanto a essa característica do Rule of Law:
a questão da previsibilidade do sistema, aqui, não é a mesma considerada pelas
pesquisas6 que discutem a relação entre segurança jurídica e previsibilidade para o
desenvolvimento da economia. Esses estudos, no entanto, oferecem argumentos
aderentes ao escopo desta pesquisa, merecendo, portanto, uma breve análise.
Baseadas nos ideais da Nova Economia Institucional, assumindo como pon-
to de partida a obra de Douglass North (1990), essas pesquisas partem do pressu-
posto de que as instituições – as regras do jogo – são a causa primordial do desen-
volvimento.7 No Brasil, isso originou uma série de discussões entre economistas e
juristas.8 Esse debate tenta demonstrar, cada autor com os seus argumentos, como
o ambiente de segurança jurídica contribui ou não para o desenvolvimento eco-
nômico. Para esses autores, isso seria um dos requisitos do Rule of Law e, por isso,
justificaria um estudo acerca dos fatores de previsibilidade das decisões judiciais.
Quando os juristas formularam a sua resposta aos economistas, eles cons-
truíram seus argumentos a partir de características próprias da racionalidade jurídica
22 de interpretação e de aplicação das normas. Entre essas características está a ques-
tão da incerteza, inerente ao ambiente normativo e da tomada de decisão judicial,
onde normas gerais devem ser aplicadas a casos concretos. Para os autores do tex-
to “Jurisdição, incerteza e Estado de Direito” (FALCÃO, SCHUARTZ, ARGUELES,
2006), o direito não estaria apto a dar uma resposta exata e uma única interpretação
sobre determinada questão levada ao Judiciário9 – conforme parâmetro utilizado
nas ciências exatas. A interpretação econômica enxerga negativamente essa carac-
terística, como um ambiente jurisdicional ruim, que aumenta a imprevisibilidade
do ambiente de negócios no Brasil. Na perspectiva jurídica, Falcão, Schuartz e Ar-
_____________________________________________________________________________
4
Para Tate, ainda, a percepção pela população de que os Poderes Executivo e Legislativo estão mais
sujeitos à corrupção e preocupados com a proteção de seus próprios interesses é fator a ser levado em
consideração quando buscamos explicar o aumento da influência do Poder Judiciário.
5
O Rule of Law, de acordo com Joseph Raz, caracteriza-se pela presença de alguns princípios, dentre os
quais se destacam: (i) todas as normas devem ser de aplicação possível, abertas e claras; (ii) as leis devem
ser relativamente estáveis; (iii) a criação de determinadas leis [...] deve ser orientada por regras abertas,
estáveis, claras e gerais; (iv) a independência do Judiciário deve ser garantida; (v) os princípios da justiça
natural devem ser observados; (vi) os tribunais devem ter poderes de revisão sobre a implementação dos
outros princípios; (vii) os tribunais devem ser de fácil acesso. (Tradução livre de trechos do texto “The
Rule of Law and its Virtue”. In: The Authority of Law: Essays On Law and Morality, pp. 210-229).
6
Ver, por exemplo, Armando Castelar Pinheiro (2000); José Eduardo Faria (1999; 2009); Arida, Bacha e
Lara-Resende (2005).
7
É interessante notar, entretanto, que essa premissa foi colocada em debate não só por juristas, mas
também por cientistas políticos, como Adam Przeworski, no artigo “As instituições são a causa primordial
do desenvolvimento econômico?” (2005).
8
Nesse sentido, ver, por exemplo: Arida, Bacha e Lara-Resende (2005), de um lado; e Falcão, Schuartz, e
Argueles (2006), de outro; aqueles apresentando os argumentos enquanto economistas, e estes sob a
perspectiva jurídica dos aspectos da relação entre segurança jurídica e a previsibilidade no Brasil.
9
Cf. Falcão, Schuartz, e Argueles (2006).
guelhes identificaram tratar-se de uma incerteza estrutural,10 natural e particular
da ciência jurídica, presente no dia-a-dia jurisdicional, desde a formulação normativa
até a sua aplicação pelos tribunais (FALCÃO, SCHUARTZ, ARGUELES, 2006).
Sendo assim, a imprevisibilidade não deve ser vista, necessariamente, sob
a ótica negativa de que é ela a responsável pela insegurança jurídica no Brasil. Essa
é uma afirmação importante, mas que deve ser ponderada. Há aspectos negativos,
sim, na tomada de decisões judiciais, mas que estão ligados a outros fatores que
devem ser identificados e combatidos. Trata-se do que os autores denominam de
incerteza patológica, que difere substancialmente dos fatores da incerteza estru-
tural. Na incerteza patológica, não são os aspectos normativos – de normas gerais
serem aplicadas a casos particulares – os determinantes de incerteza, mas sim carac-
terísticas de ordem pessoal que possam predominar sobre a tomada de decisão,
viciando o processo decisório e, consequentemente, aumentando a insegurança
jurídica no ambiente jurisdicional brasileiro.
3. FUNDAMENTAÇÃO E INCERTEZAS
Assim, de acordo com os conceitos propostos por Falcão, Schuartz e Ar-
gueles,11 as decisões judiciais estão sujeitas a dois tipos de incerteza. Temos, de um
lado, o que os autores chamam de incerteza estrutural, ou seja, aquela incerteza
que é natural do direito constitucional contemporâneo, baseado em princípios que,
por sua vez, caracterizam-se justamente pela linguagem fluída, aberta a diferentes
interpretações. Essa incerteza, segundo os autores, é inerente ao sistema jurídico
e, portanto, não seria prejudicial ao Rule of Law.
Temos, entretanto, outro tipo de incerteza, aquela que esses autores cha-
mam de patológica. Tal incerteza não resulta da fluidez da linguagem empregada
nos textos jurídicos, mas, sim, de fatores de ordem pessoal que interferem no pro- 23
cesso decisório.
Ao contrário da incerteza estrutural, a incerteza patológica produz inse-
gurança jurídica, já que ela se caracteriza pela existência de fatores desconhecidos
que influem ou alteram o resultado da demanda. Por essa razão, os autores de-
fendem que esse tipo de incerteza deve ser investigado. É necessário identificar
suas características para embasar a elaboração de medidas a serem adotadas para
seu controle. A incerteza estrutural deve ser reduzida para promover a previsibi-
lidade, essencial ao Rule of Law, e garantir a integridade do sistema jurídico. Dentro
dos parâmetros propostos pelos autores, entretanto, a incerteza patológica só es-
_____________________________________________________________________________
10
Sobre a incerteza estrutural, dentro desse contexto, os autores afirmam que: “boa parte deste clamor
para que os juízes sejam mais ‘esclarecidos’ – em outras palavras, para que pensem corretamente nas
conseqüências econômicas de suas decisões que desconf irmem as expectativas de determinadas
categorias de agentes econômicos – é, pode-se dizer sem injustiça, fruto de desconhecimento quanto à
realidade institucional e às restrições de natureza cognitiva que, estruturalmente, afetam o ofício do juiz.
O ideal de atuação jurisdicional pressuposto por um subconjunto considerável dos críticos ignora as
complexidades que os agentes envolvidos em um processo de argumentação jurídica enfrentam para
aplicar normas gerais a casos particulares. A idéia é a de que nem toda decisão judicial que contraria as
expectativas dos agentes privados pode ser validamente apontada como algo negativo, em particular,
como fator de insegurança jurídica. Dadas certas características estruturais do tipo de raciocínio envolvido
na aplicação do direito, em muitas situações o juiz se vê diante de um conjunto não unitário de decisões
para o caso concreto que é compatível com o direito vigente. Mesmo que a escolha por uma dessas
respostas frustre expectativas subjetivas das partes – e ela quase sempre frustrará a da parte perdedora
–, estaremos diante de uma incerteza de um tipo que chamaremos de estrutural, no sentido de ser inerente
ao normal funcionamento de um sistema jurídico moderno. Apenas a insegurança jurídica gerada por um
tipo de incerteza que qualificaremos, em contraposição à estrutural, de patológica, é que pode e deve ser
combatida” (FALCÃO, SCHUARTZ, ARGUELES, 2006: 80).
11
Cf. FALCÃO, Joaquim, SCHUARTZ, Luís Fernando e ARGUELHES, Diego (2006), “Jurisdição, incerteza e
Estado de Direito”, Revista de Direito Administrativo - RDA, n. 243. São Paulo: Atlas, pp. 79-112.
taria presente em casos limites de corrupção ou motivação “ideológica”, por exem-
plo. Mesmo assim, a partir destes mesmos critérios, a observação empírica da
existência da incerteza patológica pode tornar-se impossível, caso a decisão tomada
se amolde a uma das soluções jurídicas legítimas, de forma que tal distinção não
nos auxilia na identificação de tais desvios.
Por essa razão, utilizaremos, em nossa análise da jurisprudência do STF,
apenas o conceito de incerteza estrutural utilizada pelos autores. A sua aplicação,
no entanto, demanda ajustes e maior refinamento por parte dos estudiosos enga-
jados nas pesquisas de cunho empírico.
Para possibilitar a análise da existência dessa incerteza estrutural, intro-
duzimos outro critério, qual seja, o da coerência argumentativa. De maneira sim-
plificada, a coerência determina que a conclusão decorra logicamente das premissas
adotadas.
Em órgãos colegiados, a observação da coerência argumentativa traz, no
entanto, grandes dificuldades. A coerência deve ser observada não só internamente
nos votos, mas também na construção da decisão final pelo processo deliberativo.
Para Virgílio Afonso da Silva,12 como não há, no processo decisório do STF, uma
deliberação interna, uma vez que os ministros levam seus votos prontos e a decisão
final é “uma soma, uma colagem, das decisões individuais”, é extremamente difícil
verificar as razões que levaram à decisão final.
De qualquer forma, a proposta é analisar cada um dos votos dos ministros
buscando avaliar se há uma coerência interna entre os argumentos. Caso a argu-
mentação seja coerente com a parte dispositiva do voto, detectaremos que existe
uma incerteza estrutural, inerente à própria existência de regras vagas e abertas,
não sendo considerada prejudicial ao sistema jurídico.
24 Por outro lado, em contraposição ao conceito de incerteza estrutural, en-
tendemos ser relevante examinar o que se denomina incerteza decorrente de falhas
na argumentação. Esse tipo de incerteza poderá ser averiguado por meio da
existência, ou não, de uma coerência argumentativa entre diferentes decisões ju-
diciais. Para isto, cumpre observar se os ministros do STF respeitam os precedentes
do próprio tribunal, atentando para o histórico da interpretação desenvolvida nesse
órgão colegiado.
A análise das decisões judiciais volta-se para o exame de respeito aos prece-
dentes judiciais por duas razões: uma de ordem prática e a outra de natureza teórica.
A primeira reside na possibilidade de se averiguar empiricamente se os
ministros do STF, nos recursos analisados, atentam para as decisões pretéritas da
Corte sobre o mesmo assunto que está sendo julgado pelo tribunal. A intenção é
verificar se, quando os ministros citam decisões anteriores da Corte, tais decisões
são coerentes com os argumentos e com a justificação expressada nos votos.
Do ponto de vista teórico, por sua vez, a análise do respeito aos prece-
dentes justifica-se pela relação existente entre o potencial democrático do processo
decisório do STF e a existência de uma cultura de respeito ao precedente. Tal relação
pressupõe que o respeito ao precedente consiste em um importante elemento argu-
mentativo, sobre o qual os ministros teriam que se debruçar, dialogar e, even-
tualmente, afastar-se de maneira justificada do teor da decisão pretérita, a fim de
formular um novo posicionamento.
_____________________________________________________________________________
12
Cf. SILVA, Virgilio Afonso da (2009). “O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e
razão pública”. Revista de Direito Administrativo, v. 250, pp. 197-227.
Caso os ministros tenham mudado de posicionamento nas decisões ana-
lisadas, é fundamental que eles justifiquem porque tal entendimento não mais se
aplica ao caso concreto sob julgamento. Ou seja, impõe-se um ônus argumentativo
ao ministro que discorda da aplicação do precedente, de modo a levar em conside-
ração o processo de interpretação pretérito da Corte. Se isso não ocorrer, estare-
mos diante de uma incerteza não desejável, qual seja, a incerteza decorrente de fa-
lhas de argumentação.
O respeito aos precedentes pressupõe que o processo interpretativo ju-
dicial está sempre em construção. Segundo Ronald Dworkin,13 os autores envolvidos
nesse processo devem estar preocupados em elaborar uma espécie de romance
em cadeia, dando continuidade ao romance e não iniciando um novo capítulo a ca-
da exercício interpretativo. Para o autor, há duas dimensões da interpretação que
devem ser respeitadas: a primeira é a de que o intérprete não pode adotar uma in-
terpretação que represente sua leitura individual da obra, fugindo da figura de um
romancista em cadeia; a segunda dimensão, por seu turno, consiste na escolha,
entre as interpretações adequadas, daquela que melhor se encaixe no desenvol-
vimento do romance como um todo.14
Demonstrada a relevância da análise dos precedentes judiciais e, portanto,
da coerência entre as decisões de um tribunal, o exame da coerência entre as deci-
sões citadas por um ou outro ministro é imprescindível ao conhecimento da atuação
do STF enquanto Corte recursal.
Assim, são dois os critérios de análise das decisões do STF propostos nesse
texto: (i) o da incerteza estrutural e (ii) o da incerteza decorrente de falhas da argu-
mentação. O primeiro tipo de incerteza é inerente ao sistema jurídico, mas requer
uma coerência interna à decisão quando analisados os votos de cada um dos minis-
tros presentes no julgamento. Já a incerteza decorrente de falhas argumentativas 25
é indesejável do ponto de vista da legitimidade democrática do tribunal e será
detectada, por exemplo, quando não houver o respeito aos precedentes da Corte,
desconsiderando-se o constante processo de interpretação do STF.
É com base nesses critérios, construídos pela equipe de pesquisadores do
Núcleo de Justiça e Constituição da Direito GV a partir da literatura e da experiência
em pesquisas empíricas, que está sendo desenvolvida a análise das decisões do STF
em recursos extraordinários. Tal estruturação de critérios permite uma análise mais
apurada da atuação do STF enquanto Corte recursal e visa a contribuir para ampliar
o conhecimento de todos sobre o que o mais importante Tribunal do país faz.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na última década, por uma soma de razões políticas, o STF passou a exercer
plenamente as funções que lhe foram conferidas pela CF/88, trazendo para o Brasil
a discussão que já se observa em outros países quanto à legitimidade e limites da
atuação judicial na solução de questões polêmicas.
Para que possamos avançar nesse debate, faz-se necessário um profundo
conhecimento de como o Judiciário atua. Essa é a razão para o aumento significativo
do número de pesquisas empíricas que têm como objeto a jurisprudência dos tri-
bunais. Entendemos, porém, que há, ainda, muitas lacunas a serem preenchidas.
_____________________________________________________________________________
13
DWORKIN, Ronald (2003). O império do Direito, pp. 277-278.
14
Cf. bem descreveram VOJVODIC, Adriana M., CARDOSO, Evorah L. C. e MACHADO, Ana Mara F. (2009),
no texto “Escrevendo um romance, primeiro capítulo: precedentes e processo decisório no STF”. Revista
DireitoGV 9, v. 5 , n.1, pp. 21-44, jan./jun.
Em relação ao STF, verificamos que as pesquisas realizadas têm como objeto mais
comum a atuação da Corte no controle concentrado de constitucionalidade, pois,
sem dúvida, a atuação da Corte nestes casos tem um nítido potencial de conflito
político entre os Poderes. Observamos, no entanto, que o STF também tem, em es-
pecial após a adoção do instituto da Repercussão Geral, uma importante atuação
no controle difuso.
Se, por um lado, a observação da atuação do STF como Corte Recursal é
importante para a melhor compreensão de seu papel na vida política, constatamos,
também, que seria necessário justificar juridicamente a realização de uma pesquisa
empírica não temática sobre recursos extraordinários. Este foi o ponto de partida
para a construção da metodologia que estamos aplicando nesse estudo e para a
adoção do critério de coerência argumentativa como parâmetro para a análise dos
julgados. Partimos de dois pressupostos, o primeiro é o de que a falta de previ-
sibilidade das decisões judiciais pode comprometer a segurança jurídica e, em última
instância, a própria existência do Rule of Law; e o segundo é o de que, em decisões
colegiadas, a observação do respeito aos precedentes é fundamental para o exame
da coerência.
A elaboração desses critérios pautou-se na constatação de que qualquer
tentativa de conceituação do que é uma decisão bem fundamentada, em termos
abstratos, está fadada ao fracasso. No entanto, é preciso que haja algum tipo de
parâmetro que possa ser verificado empiricamente.
Por se tratar de uma pesquisa em andamento, os critérios do que enten-
demos por “ausência de coerência” estão em constante elaboração. Seu desenho
definitivo está vinculado às descobertas durante a investigação do material em-
pírico, mas, mesmo nesse estágio intermediário, a pesquisa já nos permitiu achados
26 importantes: (i) muito pouco tem se produzido para conhecer a atuação do STF
como Corte Recursal, embora, até pela grandeza de números, possa se perceber
que sua atuação no controle difuso tem impacto jurídico e político; (ii) é muito
difícil a observação da atuação do STF como Corte Recursal em virtude de sua
enorme produção, razão pela qual foi necessário o desenvolvimento de uma meto-
dologia própria para a seleção dos julgados a serem efetivamente analisados dentro
das limitações temporais e de recurso da pesquisa; (iii) o critério de incerteza pato-
lógica como exposto teoricamente não serve como parâmetro para a análise em-
pírica de decisões, já que não nos auxilia na mensuração da falta de coerência das
decisões.
Finalmente, consideramos que essa pesquisa pode revelar fatos impor-
tantes sobre o processo deliberativo do STF e, portanto, fornecer subsídios para
um possível aprimoramento de seu funcionamento. A análise do STF enquanto Corte
recursal propõe o desenvolvimento de uma nova agenda de pesquisa no âmbito
da jurisprudência que merece ser explorada. Com a propositura de uma abordagem
metodológica diferenciada para a análise das decisões judiciais em recursos ex-
traordinários, espera-se contribuir para a superação de mais esse desafio no campo
das pesquisas empíricas em Direito.
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WERNECK VIANNA, Luiz et alli. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no
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28
A Audiência Pública Jurisdicional
no Supremo Tribunal Federal*
José Ribas Vieira
Letícia França Corrêa
RESUMO
A pesquisa desenvolvida se concentrou no estudo do instituto da
audiência pública jurisdicional, que é utilizada como meio de instrução
probatória em processos de controle de constitucionalidade abstrato
no Supremo Tribunal Federal. O trabalho pautou-se primordialmente
em buscar a compreensão da audiência pública jurisdicional em duas
esferas complementares, a saber: teórica e prática. A parte teórica
envolveu a análise das normas autorizadoras da audiência pública:
Leis n°. 9.868/99 e 9.882/99, além da questão da legitimidade demo-
crática da revisão jurisdicional das leis. Já o aspecto prático restou
pautado na análise do uso do instituto pelo Supremo Tribunal Federal,
com especial atenção na postura dos Ministros através de seus votos
29
no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 3510. Foi pos-
sível perceber os avanços já alcançados pelo uso do instituto assim
como notar importantes aspectos nos quais ainda são necessários
ajustes para uma utilização mais eficiente do instrumento. Ficou evi-
dente que muito da contribuição dos expositores nas audiências pú-
blicas acaba sendo perdido ao longo do processo de julgamento de-
vido ao procedimento fragmentado e individualista de formação dos
votos. A principal conclusão da pesquisa é de que a audiência pública
jurisdicional ainda se encontra em desenvolvimento e ascensão em
meio ao contexto de maior proeminência do STF no cenário político-
jurídico brasileiro, que demanda maior refinamento teórico e prático
tendo em vista contornar as limitações democráticas do controle
jurisdicional da legislação.
PALAVRAS-CHAVE
Audiência Pública – STF – Representação.
ABSTRACT
The present study was intended to understand the way in which the
public hearing institute has been used since it became a new tool in
the abstract judicial review process conducted by the Supreme Court
of Brazil. The research was focused on two complementary aspects
_____________________________________________________________________________
* Trabalho desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa Estado de Direito e Sociedade de Risco, da Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), sob a coordenação do Prof. Dr. José Ribas Vieira.
of the institute: the theoretical and the practical. The first aspect was
developed by analyzing (i) the statues that enabled the Court to make
use of the public hearing as a way to gather information on the issue
subjected to its appreciation and (ii) theories regarding the problem
of judicial review’s democratic legitimacy. On the other hand, the
practical aspect was centered on the public hearing conducted as
part of Court’s the judicial review of the Biosafety Statue in 2007.
The conclusions reached are that the public hearing institute is still
being developed by the Brazilian Supreme Court nonetheless it
represents a potentially beneficial instrument as it allows the people
to be more actively engaged in the judicial review process before
the Court. However, the way in which the Court builds its decisions is
at this moment too fragmented in a way that the contributions made
in the public hearings end up not being incorporated fully or at all. In
this sense the Court needs to improve it procedures so it can make
better use of the public hearing.
KEYWORDS
Brazilian Supreme Court – Public hearing – Judicial Review.
30
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal do ano de 1988 marca, institucionalmente, o final
de um processo autoritário iniciado em 1964 no qual a sociedade brasileira se viu
alijada de uma plena participação política Portanto, não causa surpresa o surgi-
mento de uma vontade política renovada ao fim de tantos anos nos quais a mesma
permaneceu sufocada. Neste sentido, o referido texto normativo foi Constituição
Cidadã,1 tanto pela participação popular em sua formulação, quanto pela estrutura
democrática fruto de suas normas voltadas para a plena realização da cidadania.2
Em atenção ao espírito democrático, a Carta de 88 trilhou um caminho de
valorização e qualificação da representação política e da cidadania, fortemente
agredidas durante a ditadura. Em vista disso, estabeleceu garantias aos parla-
mentares no exercício de suas funções, fortaleceu a separação de poderes, instituiu
instrumentos de democracia direta como o plebiscito e o referendo, além disso,
abriu espaço para comunicação entre a sociedade civil e o Poder Legislativo.
É nesse contexto que foi concebida a figura da audiência pública no âmbito
das comissões permanentes e temporárias do Congresso Nacional, órgão máximo
do Poder Legislativo brasileiro na esfera federal, no art. 58, § 2º, II da Constituição
Federal. Por trás do referido instituto está a idéia de otimização da participação
político-democrática dos cidadãos, para além do ato isolado de votar em repre-
sentantes a cada dois anos, na época das eleições. Para Jessé Torres,3 a audiência
integra o perfil dos Estados Democráticos de Direito inspirados no constituciona-
lismo europeu que comporta a participação direta do povo no exercício do poder
político.
Nesse sentido, a audiência pública foi ao encontro dos princípios informa-
dores da Administração Pública previstos do art. 37 da CRFB como moralidade e
publicidade. Com isso, o instituto naturalmente ganhou espaço na Administração 31
Pública, em vários de seus procedimentos, como previsto, por exemplo, na Lei das
Licitações, 8.666/93, em seu artigo 39, que obriga a realização de audiência pública
prévia à licitação de grande porte:
Art. 39. Sempre que o valor estimado para uma licitação ou para
um conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas for superior
a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea “c”
desta Lei, o processo licitatório será iniciado, obrigatoriamente,
com uma audiência pública (…)
_____________________________________________________________________________
1
Expressão de Ulysses Guimarães em Sessão da Assembléia Nacional Constituinte. Disponível em: http://
www.fugrs.org.br/arquivo/ulysses_disc_a_constituicao_cidada.pdf Acesso em: 02 maio 2011
2
SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo.16a ed. São Paulo: Malheiros,1999. 871p.
3
JUNIOR, J. T. P. Comentários a Nova Lei das Licitações Públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 1993. 489p.
jurisdicional. Para tanto, a legislação pertinente deve ser abordada, assim como é
essencial ver como o Supremo Tribunal Federal vem se utilizando da ferramenta na
resolução das causas sob sua apreciação.
2. OBJETIVOS
O presente trabalho tem como objetivo primordial abordar o tema das
audiências públicas jurisdicionais no âmbito do Supremo Tribunal Federal, enquanto
Corte Constitucional no exercício de suas atribuições de controle de constitucio-
nalidade dos atos normativos. Ao mesmo tempo, objetiva-se compreender o proce-
dimento adotado pelo STF para a audiência pública jurisdicional e o impacto efetivo
do instituto no voto colegiado final do Tribunal, tendo como pano de fundo a ques-
tão da legitimidade democrática da jurisdição constitucional.
3. METODOLOGIA
A metodologia da pesquisa consiste na leitura de textos, para emba-
samento teórico, de autores brasileiros e estrangeiros sobre controle de constitucio-
nalidade, legitimidade da revisão judicial, instrumentos de democratização da
jurisdição constitucional e o papel do STF no contexto jurídico-político do Brasil.
Ademais, foi realizada análise da legislação brasileira que trata da audiência
pública jurisdicional, assim como, estudo de caso sobre a Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade sobre o art. 5° da Lei de Biossegurança. Posteriormente, os dados
assim obtidos foram analisados criticamente em conjunto com elementos teóricos.
4. PERTINÊNCIA DO TEMA
O surgimento da audiência pública jurisdicional ocorreu no seio jurisdição
32 constitucional exercida pelo STF sobre os atos normativos dos poderes eleitos. Por
essa razão, esse instituto se localiza no centro de um intenso debate sobre a revisão
judicial dos diplomas legislativos, cujos conceitos centrais são a judicialização da
política, ativismo judicial, contramajoritarismo e legitimidade democrática – expli-
citados a seguir.
A judicialização da política é um fenômeno observado em várias
sociedades, e se caracteriza pelo redirecionamento de diversos assuntos da esfera
política para a esfera judicial. Nas palavras de Luiz Roberto Barroso:4 “... questões
de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder
Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o
Poder Executivo”.
O ativismo judicial,5 por sua vez, diz respeito à postura dos magistrados
frente os casos postos sob sua apreciação cujo pressuposto é um papel de destaque
reservado juiz no que tange fazer valer os princípios e normas constitucionais. A
partir de tal ótica, o julgador estaria legitimado a interpretar o ordenamento de
modo menos formalista, cabendo até, em determinados casos, uma atuação verda-
deiramente legislativa do aplicador do direito.
Já o contramajoritarismo reflete a idéia de que o Judiciário seria muitas
vezes um contrapeso essencial à vontade da maioria do corpo social. A função do
juiz nesse caso envolve precipuamente a proteção dos interesses das minorias
sociais e a efetivação de seus direitos, objetivando impedir a maioria de subjugar
esses grupos.
_____________________________________________________________________________
4
BARROSO, L. R. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 388p.
5
Ibidem. p.335.
Por fim, a legitimidade democrática pode ser considerada o conceito-chave
de todo o sistema, pois é o ponto de partida e também de chegada de toda a dis-
cussão acerca do papel do Judiciário no regime democrático. A grande questão é
saber sob quais circunstâncias, se alguma, é aceitável, democraticamente, o con-
trole judicial sobre a constitucionalidade dos atos normativos elaborados pelos po-
deres eleitos, Executivo e Legislativo.
Conrado Hübner argumenta que a defesa de direitos fundamentais, fruto
da supremacia da Constituição, na democracia não implica automaticamente na ado-
ção de um modelo que se utilize do controle jurisdicional de constitucionalidade.6
Por conseguinte, há uma inevitabilidade em abordar múltiplas questões
de fundo para que seja possível entender qual a importância da audiência pública
jurisdicional. Assim sendo, definir seu surgimento como acaso legislativo e observar
seu desenvolvimento posterior independentemente das circunstâncias fáticas con-
duziria a um retrato simplista da realidade.
Em linhas gerais, é possível estipular que o núcleo da controvérsia gira em
torno da “última palavra”, ou seja, qual interpretação constitucional que prevalece,
e qual órgão é responsável por ela. Levando-se em conta que a constituição traduz
um processo político institucional cuja finalidade é estabilizar o corpo social. Assim,
a sua interpretação é ponto essencial para o funcionamento do Estado, tendo em
vista a necessidade de se promover continuamente o desenvolvimento sócio-eco-
nômico frente aos novos desafios inerentes a uma realidade fática em constante
modificação.
Num outro ponto, é forçoso reconhecer que a sociedade invariavelmente
discorda sobre os temas relevantes socialmente, seja em maior ou menor pro-
porção. Tendo isso em vista, e sendo necessário tomar uma decisão em meio à dis-
cordância, é inevitável que se faça uma escolha por determinada interpretação 33
dentre outras tantas.
É neste momento que se impõe a reflexão sobre qual órgão estatal pode
e/ou deve efetivamente tomar tal decisão final, ter a “palavra final”. Vislumbra-se
aqui a divisão em dois grandes grupos: os que defendem a supremacia da inter-
pretação constitucional judicial e os que advogam pela supremacia da interpretação
legislativa concretizada nas normas aprovadas. Logo, a legitimidade da revisão ju-
dicial dos atos normativos elaborados pelos poderes eleitos encontra-se no núcleo
do debate entre essas duas correntes.
E, embora, esse tema venha sendo abordado pela doutrina nacional nos
últimos anos em decorrência da crescente proeminência do Supremo no cenário
político-jurídico brasileiro, as maiores contribuições vêm de pensadores europeus
e norte-americanos. Os últimos, em especial, são profícuos, visto a revisão judicial
ser de construção jurisprudencial, sem assento constitucional expresso, cujo surgi-
mento se deu no famoso julgamento Marbury v. Madison. Enquanto, no caso do
Brasil, a Constituição Federal, nos dispostos do art. 102 e seguintes, institui expres-
samente o STF como guardião do texto constitucional e responsável exclusivo pelo
controle de constitucionalidade abstrato face à Constituição Federal.
Com isso, a existência da jurisdição constitucional no Brasil não despertou,
inicialmente, estranhamento maior por parte da sociedade. Porém, nos últimos
anos, se tornou evidente que cada vez mais os casos sub judice perante o STF em
controle de constitucionalidade concentrado referem-se a situações controversas
_____________________________________________________________________________
6
MENDES, C. H. Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 200p.
e mobilizadoras da sociedade, tendo em vista a larga abrangência temática da Carta
de 1988, combinada com incentivos institucionais, que no dizer Oscar Vilhena Vieira,
gerou uma “enorme esfera de tensão constitucional”:
_____________________________________________________________________________
7
VIEIRA, O. V. Supremocracia. Revista GV Direito, v.4, n.2, p.441-464, jul./dez. 2008.
8
Ibidem. p. 447.
9
CORRÊA, D. M. O Controle de Constitucionalidade das Leis a partir da Constituição de 1988. Âmbito Jurídico,
Rio Grande do Sul, jul. 2011
Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/siteindex.php?n_link=revista_artigos_lei
tura&artigo_id=9845. Acesso em: 01 jul. 2011.
10
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=adi/ Acesso
em: 01 mar. 2011.
Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão: 2008/2011
35
_____________________________________________________________________________
13
WALDRON, J. A Right-based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal for Legal Studies, v. 13, n. 1,
p. 18-51. 1993.
14
ALEXY, R. Constitucionalismo Discursivo. 3ª ed. rev. Porto Alegre: Do Advogado, 2011. 168p.
sório jurídico-constitucional de ferramentas capazes de sustentá-lo racionalmente
e, em conseqüência, justificá-lo também democraticamente.
O ponto relevante, para o presente trabalho, do constitucionalismo pro-
posto por Alexy é a sua abordagem unificadora da jurisdição constitucional com a
democracia e a representação. O argumento central, para tanto, é identificar os
juízes como dotados de representação argumentativa ou discursiva do povo dentro
de um conceito de democracia deliberativa.
Primeiramente, Alexy afirma que o conceito mais adequado de democracia
não pode se limitar a um procedimento de decisão centrado somente em eleições
e regra da maioria, chamado por ele de “modelo puramente decisionista de demo-
cracia”; em seguida, alega que democracia precisa abarcar o argumento como ele-
mento constitutivo, concretizando-se assim a democracia deliberativa que tenta
“institucionalizar o discurso, tão amplamente quanto possível, como meio da to-
mada de decisão pública”.
Indo além, Alexy reavalia o conceito de representação democrática, di-
zendo que esta é mais que normativa e fática, é também orientada para um ideal,
no caso, o de correção, uma vez que se trata de uma representação racional. Por-
tanto, um conceito pleno de representação democrática deve ter o discurso como
elemento ideal – nesse contexto a representação puramente argumentativa dos
juízes não só encontra amparo, como também primazia, sobre a exercida pelos
parlamentares.
Em suma, a conciliação entre jurisdição constitucional e democracia é um
tema tão controverso quanto instigante. Muitos países fizeram a opção por dotar
o Judiciário de supremacia decisória sobre as escolhas legislativas, fazendo com
que a interpretação constitucional se situe conformada, em última instância, pelos
38 limites impostos através da avaliação judicial.
O Brasil parece assim ter optado, seja pelas disposições constitucionais
originárias como a do caput do art. 102 que afirma ser competência precípua do Su-
premo Tribunal Federal a “guarda da Constituição” combinada com o inciso I do
mesmo artigo que institucionaliza a revisão judicial, ou por modificações pos-
teriores, como a Emenda Constitucional 45. E, em meio, ao papel cada vez mais
relevante do Supremo Tribunal Federal no cenário político brasileiro, a revisão ju-
dicial está na ordem do dia, inclusive para os próprios Ministros, que pensam ter
encontrado na audiência pública, mais uma ferramenta legitimadora dessa posição
de destaque.
_____________________________________________________________________________
16
SUPTITZ, C. E. O instrumento jurisdicional da audiência pública e os movimentos de sincronia e anacronia
com relação à comunidade contemporânea. São Leopoldo, 2008. 204p. Dissertação Mestrado – Programa
de Pós Graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
7. ANÁLISE DAS NORMAS AUTORIZADORAS DA AUDIÊNCIA PÚBLICA
JURISDICIONAL
A Lei no 9.868/99 dispõe sobre o processo e julgamento a Ação Direta de
Inconstitucionalidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade e a Ação de In-
constitucionalidade por Omissão, que foi incluída posteriormente através da Lei
no 12.063/09, perante o Supremo Tribunal Federal.
No caso da ADI e ADC é facultado expressamente ao ministro relator a
convocação de audiência pública, conforme os artigos 9°, §1° e 20, §1°, que possuem
idêntica redação:
_____________________________________________________________________________
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Audiência pública: Saúde. Brasília: Secretaria de Documentação, Coorde-
18
_____________________________________________________________________________
21
Despacho ordinatório do Min. Carlos Britto, de 19.12.2006, publicado no D.J. de 01.02.2007.
depois da emenda n. 29, não especifica como essa divisão deve ser feita, somente
aponta a necessidade de que as diversas correntes de opinião sejam ouvidas no
caso de existirem defensores e opositores da matéria objeto da audiência.
Outro cuidado recorrente do relator foi evitar a instalação de um debate,
mais propriamente, um contraditório.22 No entanto, para avaliar tanto a pertinência
desse posicionamento quanto sua efetiva implantação no referido procedimento,
é preciso antes entender de que se constitui o contraditório. Alexandre Freitas Câ-
mara afirma que o princípio do contraditório deve ser entendido sob dois enfoques,
um político e outro jurídico.23
Juridicamente falando, portanto, o contraditório poderia ser defi-
nido como a ciência bilateral dos atos e termos do processo com a conseqüente
possibilidade de manifestação. Já sob a ótica política do referido princípio, este
pode ser compreendido como direito de participação no processo que tem por fim
legitimar a tutela jurisdicional estatal.
Diante de tais considerações, apesar de o ministro relator da ADI 3510 ter,
mais de uma vez, afirmado que não haveria contraditório entre os dois blocos da
audiência pública, é possível fazer uma aproximação entre a sistemática proce-
dimental adotada no evento e o princípio do contraditório, pelo menos sob sua
ótica política.
Ao final de todas as manifestações dos especialistas, o Ministro relator
passou a fazer perguntas elaboradas por ele mesmo e pelos Ministros Lewandowski
e Eros Grau, estes dois últimos não estavam presentes, mas enviaram os questio-
namentos pelos respectivos gabinetes. Para responder foram colocados à dispo-
sição de cada grupo dez minutos, sendo que cada um deles teve que eleger repre-
sentantes para falar.
46
9.2.1 Críticas em relação ao procedimento adotado para a audiência pública
Conforme afirmado anteriormente, a audiência pública em análise foi a
primeira realizada no âmbito do STF e à época não havia regulação da matéria no
Regimento Interno da Corte. Por isso, o Ministro relator utilizou-se de um
procedimento similar ao da Câmara dos Deputados. Dois pontos se destacam em
relação ao procedimento adotado efetivamente: a divisão dos expositores em dois
grupos e a interação entre os participantes e os Ministros.
A divisão entre dois blocos, um pela constitucionalidade e outra pela in-
constitucionalidade, embora intuitivo, pode prejudicar as exposições feitas. Isso
porque, ao ser traçada uma linha definitiva entre os “tipos” de participantes, as
manifestações dos mesmos também podem acabar confinadas em um modelo rí-
gido, de modo a “evitar a exposição de posicionamentos técnicos inconvenientes
à defesa da posição representada pelo bloco”.24
Igualmente a interação dos Ministros com os participantes da audiência
pública restou prejudicada, tanto pela ausência física de muitos dos integrantes da
Corte ao evento quanto pelas escassas oportunidades para a realização de pergun-
tas por parte dos julgadores. Esses dois fatores empobreceram o contato com a
sociedade civil que o Ministro relator declarou ser a conseqüência da audiência
pública.
_____________________________________________________________________________
22
Notas taquigráficas da ADI 3510/DF. p.915
23
CÂMARA, A. F. Lições de Direito Processual Civil. vol. I, 4a. ed. 2000, Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 458p.
24
LIMA, R. S. B. de. A Audiência Pública realizada na ADI 3510-0: A organização e o aproveitamento da primeira
audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal. São Paulo, 2008. 79p. Monografia – Escola de
Formação, Sociedade Brasileira de Direito Público.
A questão das ocasiões para as perguntas, por exemplo, poderia ser con-
tornada com uma dinâmica mais flexível. Nesse sentido, os Ministros deveriam po-
der questionar livremente os participantes da audiência pública. O formato com
perguntas ao final que foi utilizado poderia ser aprimorado de modo que a troca
de informações entre os expositores e os Ministros seja mais rica e refinada.
Portanto, o procedimento da audiência pública não deve ser encarado
como simples formalidade, na medida em que ele é capaz de influir na qualidade da
participação da sociedade no seio da jurisdição constitucional do Estado-juiz. À luz
da emenda n. 29 no Regimento Interno do STF, a audiência pública jurisdicional
não restou regulamentada de forma excessivamente rígida, o que permite aos Mi-
nistros uma margem de manobra importante de acordo com a situação enfrentada.
Por isso, cabe a eles estabelecerem da maneira mais efetiva possível os pormenores
do procedimento da audiência pública jurisdicional, tendo em vista a qualidade da
participação da sociedade nos processos sub judice.
10. CONCLUSÃO
Tendo em vista que a audiência pública jurisdicional realizada no âmbito
do processo da ação direta de inconstitucionalidade n. 3510 foi a primeira, o seu
arranjo foi pioneiro e teve influência não só nas audiências públicas jurisdicionais
posteriores, como também para a redação do Regimento Interno do Supremo Tri-
bunal Federal que regulamentou os procedimento em linhas gerais.
50 O que se percebeu com o presente trabalho foi que o instituto da audiência
pública veio ao encontro do anseio do Tribunal Constitucional brasileiro por maior
legitimidade das suas decisões no âmbito do controle de constitucionalidade, não
obstante a Carta Política de 88 ter consagrado um modelo institucional no qual o
STF detém efetivamente a prerrogativa de derrubar os atos normativos que en-
tender inconstitucionais.
Esse processo se iniciou e continua a se desenvolver num ambiente político
onde as mais variadas controvérsias sociais são judicializadas. Com isso, o Supremo
Tribunal Federal tem enfrentado questões que mobilizam grande parte da so-
ciedade e, portanto, arena de discussões que a priori deveriam ocorrer no Poder
Legislativo. E em meio a esse contexto, tanto a sociedade deseja interferir nos pro-
cessos perante a Corte, como os magistrados percebem se vêem numa posição de-
licada de dar a última palavra em temas tão importantes.
De certa forma, realizou-se uma transferência do debate democrático, e a
audiência pública jurisdicional, pelo menos externamente, é vista pelos Ministros
como uma ferramenta adequada para concretizar essa alteração. No entanto, ainda
não é possível determinar até que ponto essa nova realidade é desejável seja para
o próprio STF quanto para a sociedade brasileira como um todo.
Entretanto, independentemente de um juízo de valor definitivo sobre o
tema, a audiência pública jurisdicional tende a ser cada vez mais utilizada. Por isso,
o refinamento deste novo instrumento é essencial para que a coletividade participe
ativamente da revisão judicial empreendida pelo Tribunal, como teorizado por Peter
Häberle.
Por fim, é forçoso reconhecer que a própria representação argumentativa
da jurisdição constitucional brasileira não se encontra desenvolvida suficien-
temente. Ainda que, sem dúvida, os ministros se esforcem, em seus votos individuais
para legitimar suas posições, a decisão colegiada final e o modo como ela é formada
parecem não serem aptos a lidar com questões mais complexas, nem a aproveitar
as contribuições das audiências públicas de forma abrangente.
51
O Princípio da Liberdade de
Expressão e Comunicação Social:
uma Perspectiva
de Circulação da Informação*
Henrique Rangel
Carolina Barbosa
Chiara de Teffé [**]
RESUMO
O presente artigo analisa a liberdade de expressão de maneira conexa
à atividade de comunicação social. Entende-se que estes seriam, na
verdade, elementos, respectivamente, subjetivo e objetivo, relativos
a um único direito fundado na circulação da informação: a liberdade
de expressão e comunicação social. A construção desta concepção
se desenvolveu com o apoio da teoria constitucional norte-americana
e, em particular, com a contribuição de Ronald Dworkin. A liberdade
de expressão e comunicação social foi analisada a partir de seus
elementos – subjetivo e objetivo – e das dimensões que a carac-
terizam – dimensão democrática, dimensão pluralística, dimensão sub- 53
jetiva e dimensão instrumental, o que possibilitou estabelecer um con-
ceito analítico da mesma. Por fim, buscou-se analisar com maior deta-
lhamento o próprio fundamento adotado na concepção deste prin-
cípio: a circulação da informação. Para tanto, desenvolveu-se um
estudo sobre os veículos de informação – radiodifusão, imprensa e
internet – e sobre os diversos conteúdos da informação – conteúdos
informacionais técnico-científico e fático e manifestações religiosa,
filosófica, artística e cultural, humorística, de magistério e corporal.
PALAVRAS-CHAVE
Liberdade de Expressão – Comunicação Social – Circulação da Infor-
mação.
_____________________________________________________________________________
* Este trabalho foi elaborado no âmbito do Observatório da Justiça Brasileira da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (OJB/UFRJ), grupo de pesquisa com ênfase em direito constitucional e teoria do direito. Os
coautores deste artigo agradecem a participação de todos os integrantes do grupo pelo companheirismo
e pela atenção dispendida. Em particular, agradecem a orientação, as críticas e as discussões obtidas, em
relação à análise da teoria americana, do Prof. Dr. Carlos Bolonha e, em relação à análise do perfil brasileiro
sobre o tema, do Prof. Dr. José Ribas Vieira, ambos do Departamento de Direito do Estado da Faculdade
Nacional de Direito (FND) da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Direito da FND/UFRJ, sem os
quais este trabalho seria inviável. Agradecemos, ainda, a especial atenção obtida pelos graduandos Mike
Douglas Muniz Chagas e Fábio de Medina da Silva Gomes, que contribuíram significativamente com o
grupo no levantamento de dados, na elaboração de analises e na promoção de discussões em diversas e
incansáveis vezes. Agradecemos, por fim, aos professores Flávia Martins de Carvalho e José Ribas Vieira,
pela iniciativa de organizar o livro e imortalizar o III Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional
e Teoria do Direito do Estado do Rio de Janeiro.
[**] Henrique Rangel é graduando em Direito da UFRJ, bolsista IC-FAPERJ, e-mail: henrique rangelc@
gmail.com; Carolina Barbosa é graduanda em Direito da UFRJ, e-mail: carolina. almb@hotmail.com; Chiara
de Teffé é graduanda em Direito da UFRJ, e-mail: chideteffe@hotmail.com.
1. INTRODUÇÃO
Com as recentes demandas encontradas no plano social e perante os tribu-
nais, em particular no Supremo Tribunal Federal, um tema altamente relevante veio
evidenciando uma dificuldade prática existente no Brasil: a liberdade de expressão
carece de uma disciplina teórica sistemática e aprofundada. Desta maneira, este
artigo representa uma tentativa de enunciar alguns aspectos teóricos que podem
reduzir os problemas práticos que tem afligido a condição dos cidadãos como livres
e iguais. Para tanto, entendeu-se necessário o recurso de alguns elementos pre-
sentes na teoria constitucional americana.
Em primeiro lugar, foi necessário observar se o perfil político do Brasil se
distanciava do norte-americano de modo a impedir a mera importação de conceitos
e orientações. O fato de haver, neste último, um caráter liberal mais saliente fez
com que as análises buscassem o que o modelo político brasileiro exige além do
plano libertário para que definisse uma teorização da liberdade de expressão. Um
dos pontos característicos deste artigo, como resultado, foi a concepção da liber-
dade de expressão de maneira muito conexa à atividade de comunicação social,
podendo se observar, até mesmo, que a ideal cognição do próprio modelo político
brasileiro deveria ocorrer por meio de um princípio de liberdade de expressão e
comunicação social – um único direito relacionado diretamente com a circulação da
informação.
Desta maneira, foi necessário sugerir uma mudança de perspectiva teórica
que pudesse atender à circulação da informação como seu parâmetro na garantia
de seu plano libertário e na promoção da tutela de interesses transindividuais. Ao
longo do trabalho, observou-se como elementos teóricos de Ronald Dworkin com-
plementado, em um último momento, por Owen Fiss, seriam capazes de contribuir
54 para uma sistematização das dimensões que possui este direito.
Entendeu-se necessário analisar com maior detalhamento o próprio plano
da circulação da informação, visto que este fator representa o próprio exercício da
liberdade de expressão e comunicação social. Desta maneira, construiu-se a ideia
de formas de veiculação da informação e a ideia de conteúdo da informação.
Por fim, foi possível conceber em que medida deveria ser garantido o exer-
cício deste direito. Entre os principais problemas que se apresentaram sobre a liber-
dade de expressão, havia a divergência sobre sua abrangência e sobre a admissibi-
lidade de seu controle ou regulação, seja mediante instrumento legal ou institu-
cional. Portanto, buscou-se avaliar a necessidade deste posicionamento, quais se-
riam suas implicações e, da mesma forma, quais seriam os possíveis regramentos a
se observar no desenvolvimento desta atividade reguladora.
2. A PERSPECTIVA AMERICANA
Com uma Constituição tipicamente liberal, os Estados Unidos passou por
transições que motivaram o desenvolvimento das liberdades civis e políticas do
cidadão. Em 1776, em um documento sintético, foram trazidas as diretrizes orgânicas
do Estado, mas ainda era pendente a consagração de determinados princípios que
a tornaria objeto de inspiração para muitas outras Constituições advindas das
revoluções liberais. As emendas conhecidas como Bill of Rights1 são um marco
_____________________________________________________________________________
1
A noção de Declaração de Direitos surgiu na Inglaterra. Com o fim das Revoluções Inglesas, o país viu sua
Bill of Rights ser declarada em 1689. A United States Bill of Rights é uma Declaração de Direitos de iniciativa
de James Madison, aprovada por três quartos dos Estados, quórum exigido para emendar a Constituição
norte-americana em seu artigo 5º, no ano de 1791. Trata-se das dez primeiras emendas à Constituição dos
EUA que defendem um conjunto de direitos do cidadão de natureza negativa.
histórico no ramo da primeira dimensão de direitos fundamentais e, logo com a Pri-
meira Emenda à Constituição dos EUA, tem-se, entre outros princípios, o primado
da liberdade de expressão.
O debate norte-americano costuma se dividir entre posições pragmáticas,
comumente estruturadas sobre variáveis de cunho econômico, e posições com ca-
ráter mais moralista. Esta divisão pode ser observada com a comparação de autores
como Owen Fiss e Ronald Dworkin. De um lado, Fiss apresenta uma posição prag-
mática, ao lado das análises que levam a discussões de viés econômico. De outro
lado, Dworkin encara uma perspectiva teórica, focada em questões sobre moral,
responsabilidade individual e democracia. Ressalte-se que não há aqui uma tentativa
de buscar lados opostos. Tais autores, quando coadunados, formam uma visão mais
completa da teoria majoritária norte-americana sobre o tema. Assim sendo, a pes-
quisa, no viés norte-americano é dividida em dois pontos essenciais: (I) a Primeira
Emenda – e seu vínculo com a interpretação sobre o conteúdo da liberdade de ex-
pressão; e (II) o hate speech.
_____________________________________________________________________________
2
In verbis: “Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free
exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably
to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances” (“O Congresso não editará leis
estabelecendo uma religião oficial ou proibindo o livre exercício religioso; ou cerceando a liberdade de
expressão ou de imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de peticionarem ao
governo para a reparação de danos” – tradução livre). UNITED STATES OF AMERICA CONSTITUTION,
1776. Visando assegurar a liberdade de expressão em caráter genérico e de imprensa em particular, a
Emenda contempla a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, o direito de reunião pacífica e
o direito de petição.
3
Na teoria constitucional americana, há quatro correntes distintas fundamentando a liberdade de
expressão como direito fundamental: (I) a liberdade de expressão é necessária para o auto-governo (self-
governance) por parte do povo; (II) ajuda na descoberta da verdade através do mercado de ideias; (III)
permite que se avance na autonomia do cidadão; e (IV) promove a tolerância. Cf. CHEMERINSKY, Erwin.
Constitutional Law: Principles and Policies. Third edition. New York: Aspen Publishers, 2006.
4
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Martins Fontes.
São Paulo. 2006. p. 311-343.
acima, tendo particular importância o precedente da Suprema Corte New York Times
v. Sullivan (1964)5: (I) o overrule da jurisprudência americana mantido até este mo-
mento – Sullivan Rule; (II) os dois aspectos legitimatórios da liberdade de expressão
apresentados como suas formas de justificação – instrumental e construtivista; e
(III) a abrangência de sua proteção pelas duas interpretações da Primeira Emenda
– profilática e discriminatória6.
No primeiro ponto, ressalta o pensamento da visão tradicional britânica
de Willian Blackstone, que, durante o século XVIII, entendia que “o Estado não po-
dia impedir os cidadãos de publicar o que bem entendessem, mas era livre para pu-
ni-los depois da publicação, caso a matéria publicada fosse afrontosa ou perigosa”.
Essa ideia repercutiu, durante muito tempo na interpretação da Primeira Emenda,
permanecendo vetado apenas o que hoje é chamado de censura prévia. O novo
paradigma, entretanto, estatuiu que o Estado só poderia castigar o discurso político
quando este impusesse um perigo evidente e imediato à sociedade. Nesta ocasião,
a Suprema Corte estabeleceu a Sullivan Rule:
_____________________________________________________________________________
9
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. Martins Fontes: São Paulo, 2005.
p. 503.
10
“(…) we must not try to intervene further upstream, by forbidding any expression of the attitudes or
prejudices that we think nourish. . . inequality, because if we intervene too soon in the process through which
collective opinion is formed, we spoil the only democratic justification we have for insisting that everyone
obey these laws, even those who hate and resent them.” DWORKIN, Ronald. Foreword to “Extreme Speech
and Democracy” (Ivan Hare & James Weintein, eds., 2009). p. v/viii–ix. Para uma leitura crítica do pen-
samento de Dworkin sobre o assunto: Cf. WALDRON, Jeremy. “Dignity and Defamation: the Visibility of
Hate”. Harvard Law Review, Vol. 123, p. 1596, 2010.
11
A Suprema Corte acabou revertendo esta convicção. Vide Brandenburg v. Ohio, 395 U.S. 444 (1969).
visto que o testemunho público de certa convicção política é fundamental. Em
relação à segregação existente no interior do discurso do ódio, por mais que tenha
se configurado como um discurso preconceituoso, não se caracterizou a incitação
de qualquer ato de violência contra terceiros, podendo ser afirmado que não houve
iminente risco à segurança. Além disto, ressalta o autor que a acusação foi motivada
não pelo medo da violência, e sim pelo baixo apreço dos indivíduos vítimas da
discriminação12. Dworkin critica a existência de um juízo oficial sobre as questões
que edificariam ou destruiriam o caráter dos seres humanos, levando-os a ter
opiniões “incorretas” sobre assuntos relevantes para a sociedade.
Um problema que se apresenta sobre este pensamento, além da ofen-
sividade destes discursos, é a possibilidade de este afligir a igualdade dos cidadãos.
O problema representa o possível prejuízo que pode haver sobre as minorias em
sua participação política. O que explica Dworkin sobre isto é que a extensão de tais
danos não é clara e encontra-se em um campo subjetivo. A busca pela igualdade
dos cidadãos não poderia ser tão absoluta que contemplasse a censura, mesmo
em relação a opiniões e convicções que poderiam vir a dificultar a expressão de
tais grupos abalados em uma disputa política justa. Não é possível afirmar que o
autor defende o hate speech. Critica-se a intolerância sem, porém, compreender o
uso de certos instrumentos censores como adequado13.
Com uma linha de pensamento relativamente distinta, Owen Fiss baseia o
seu estudo sobre o hate speech acentuando a ligação deste com a regulação Estatal.
Acredita-se que tais manifestações possam denegrir o valor daqueles contra quem
são dirigidas e dos grupos sociais a que pertencem. Dessa maneira, fundamenta a
necessidade de controle estatal para a defesa da incolumidade moral dos cidadãos.
Fiss observa o discurso do ódio, ao invés de representar uma prerrogativa de liber-
dade, ao contrário, prejudica este próprio direito de maneira mais direta e imediata. 59
Não afirma que o discurso é capaz de persuadir aqueles que o escutam, mas con-
sidera, em particular, a ofensividade destas manifestações. O perigo identificado
como central é o risco de a mensagem tornar impossível ou reduzir drasticamente
a participação de grupos historicamente marginalizados nos debates públicos. Tra-
ta-se o efeito silenciador14. O hate speech, segundo Fiss, tende a diminuir o sentido
de valor próprio de suas vítimas, contendo, desta maneira, uma participação plena
do cidadão em muitas atividades da sociedade civil como, por exemplo, o debate
público. Um resultado negativo desta questão seria o fato de grupos minoritários,
ao se manifestar, demonstrarem pouca autoridade, como se, de fato, não estive-
ssem transmitindo mensagem nenhuma.
Acredita Fiss, que não é o Estado quem ameaça os valores de expressão.
Uma ameaça não precisaria derivar do Estado para chamar a atenção do público. A
intervenção estatal, para o autor, consiste na ideia de proteção da integridade do
discurso público. Tanto em Dworkin, quanto em Fiss, é possível encontrar o mesmo
referencial de autogoverno pelo povo. Isto significa dizer que todos devem possuir
o poder de se expressar e orientar a vontade política do Estado. Pode-se afirmar
_____________________________________________________________________________
12
DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press,
2011. p. 371-374.
13
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. Martins Fontes: São Paulo,
2005. p. 515.
14
FISS, Owen. “El Efecto Silenciador de la Libertad de Expresión”. Faculty Scholarship Series, Paper 1325,
1996. Disponível em: <http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/1325>. Acesso em: 06 de novembro
de 2011.
que em ambos há uma aversão à regulação de conteúdo. O que deve, para o segundo
autor, ser regulado é o espaço público de discussão como um interesse do próprio
Estado. A divergência entre eles encontra-se no momento em que se defende a im-
possibilidade, no primeiro, e a possibilidade, no segundo, de o hate speech influ-
enciar a disputa de governo. Somente em Fiss há a preocupação sobre um efeito si-
lenciador das minorias.
3. A PERSPECTIVA BRASILEIRA
O tema liberdade de expressão tem se apresentado na última década como
uma das questões de maior demanda social. Como exemplo disto, o Supremo Tri-
bunal Federal tem sofrido forte pressão da sociedade na expectativa de observar
uma atuação política com um caráter mais garantidor de direitos do que o de-
monstrado pelos demais poderes. Não só as instituições, mas a opinião pública
tem se mobilizado sobre esses casos ao lado da mídia de massa. Esta exigência dos
cidadãos, entretanto, não está sendo acompanhada por um debate significativo
sobre os principais aspectos deste direito fundamental. Os acontecimentos políticos
recentes parecem indicar uma demanda por uma sistematização que atenda a estas
lacunas relativas a concepção e efetivação de um direito de liberdade de expressão.
Quando se procura analisar a liberdade de expressão pelos elementos dou-
trinários nacionais, a mesma costuma ser encontrada como uma das diversas es-
pécies do espectro de liberdades do indivíduo. Trata-se de uma evidência de que a
tradição brasileira enxerga esse direito como uma das facetas da liberdade geral
que cada cidadão possui. Também compartilha dessa perspectiva a visão norte-
americana, fundada numa estrutura política com forte caráter liberal. A liberdade
de expressão, assim, é concebida a partir de um referencial liberal, como um direito
60 constitucionalizado que encontra seu fundamento na noção de autonomia. Uma
proposta de sistematização poderia ser feita sobre essa perspectiva, mas, ao que
parece, a realidade brasileira não é compatível com um modelo de tal postura po-
lítica. Não se tem como posicionamento típico da tradição brasileira uma orientação
de ordem liberal. Pelo contrário, em diversos âmbitos de política, sobretudo eco-
nômica e social, é característica marcante a presença de um Estado interventor e
integrado na modificação do quadro social como um sujeito agente e positivo, com
uma série de responsabilidades perante seus cidadãos. Isto fortalece a ideia de que
a perspectiva pela qual se enxerga a liberdade de expressão, no Brasil, deva ser re-
pensada e, com isso, apresenta-se a proposta de uma sistematização da liberdade
de expressão fundada sobre a noção de circulação de informação.
A concepção de tal direito somente por uma perspectiva de liberdade re-
sulta em uma leitura marcada pela presença de um típico direito de natureza in-
dividual. A postura liberal norte-americana tem esse posicionamento, mas segue
uma tradição diversa da brasileira. Por outro lado, entender a liberdade de ex-
pressão pelo paradigma da circulação de informação significa fundamentar um di-
reito e estruturar seu regime jurídico sobre um parâmetro que compreende a pos-
tura liberal, entendendo o teor de liberdade individual desse direito, mas, ao mesmo
tempo, compreende uma vertente de interesses transindividuais. A amplitude deste
outro fundamento é capaz de concretizar uma vertente de statvs negativus sem
que se percam os compromissos estabelecidos constitucionalmente do Estado em
favor do cidadão. Essa visão não seria compatível com o modelo político de atuação
norte-americana, pois a abstenção do governo é superior a ponto de que não se
reconheça a essência de deveres estatais no sentido de promover positivamente
direitos fundamentais que é tão presente no Direito brasileiro.
3.1. Conceituação
A mudança de paradigma influencia diretamente a conceituação de liber-
dade de expressão. Esta não representa somente a atitude de se expressar, inserida
num plano subjetivo15. É necessário observar, uma vez que se adote a perspectiva
da circulação da informação, noções de comunicação vinculadas àquele direito. Es-
ta alteração de pensamento reflete um conceito mais amplo, envolvendo as noções
de manifestação do pensamento e de difusão de informações. Dessa forma, a termi-
nologia “liberdade de expressão” torna-se insuficiente para abarcar por completo
os elementos que estariam integrados em sua conceituação, sendo mais apropriado
chamá-lo de “liberdade de expressão e comunicação social”16.
O conceito precisa, portanto, envolver dois elementos, cada um correspondente,
de maneira mais direta, a uma forma de exercício. Por um lado, predomina, na manifes-
tação do pensamento, a externalização de concepções subjetivas. Por outro lado,
predomina, na difusão de informação, a publicação e divulgação de ocorrências de
maneira mais adstrita, mais relacionada, portanto, à ideia de comunicação social.
Com base na obra de Edilsom Farias, a liberdade de expressão e comuni-
cação social possui dimensões subjetiva e institucionais, desdobrando-se este último
em três dimensões. Com isto, a caracterização deste direito pela perspectiva da
circulação de informação se dá a partir de quatro dimensões: (I) dimensão ins-
titucional democrática; (II) dimensão institucional pluralística; (III) dimensão sub-
jetiva ou individual; e (IV) dimensão institucional instrumental17.
A liberdade de expressão e comunicação social, analisando sua dimensão
institucional democrática, apresenta-se como um instituto jurídico intrínseco dos
regimes democráticos contemporâneos. Sem esse fundamento, o paradigma de
Estado instaurado não se configura como um Estado Democrático de Direito,
tamanha a importância do princípio na luta contra a tirania e a repressão. Trata-se 61
da liberdade como princípio de direito público. Da mesma forma que é essencial à
Democracia, é esta seu maior fundamento, devendo atender essencialmente à or-
dem democrática. A própria Democracia seria um limite às limitações sobre a liber-
dade de expressão, evitando que tal postulado seja suprimido. Isto significa que é
nesta dimensão, em particular, que a censura pode ser entendida como uma prática
anti-democrática. Durante o governo militar, as limitações sofridas pela liberdade
de expressão e comunicação social não atendiam à ordem democrática, servindo
de instrumento de controle social e manutenção irregular do poder político. Atentar
contra esse direito acaba configurando um desrespeito à própria democracia, sendo
ele um de seus pilares. Essa dimensão é capaz de evidenciar como não há um con-
flito, mas uma compatibilização entre a democracia e direitos fundamentais, se-
guindo a noção de democracia constitucional de Dworkin18.
A atual ampliação do debate político não poderia ser alcançada sem que
houvesse um primado dessa liberdade. Analisando sua dimensão institucional plu-
ralística, vê-se que a liberdade de expressão e comunicação social é um pressuposto
_____________________________________________________________________________
15
Em Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e proteção constitucional, Edilsom Farias, influenciado
pelos trabalhos de Jonathas Machado, percebe a impossibilidade de se enxergar a liberdade de expressão
somente em um plano subjetivo. Segundo ele, haveria uma dimensão institucional referente à liberdade
de comunicação. Cf. FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e proteção constitu-
cional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
16
Mais correto seria a terminologia “direito de manifestação do pensamento e comunicação social”, mas
a manifestação do pensamento é uma conduta diretamente relacionada com o plano individual e subjetivo
desse direito da informação. A nomenclatura “liberdade de expressão e comunicação social” pode ser
encontrada em FARIAS, Edilsom. Idem.
17
Ordem utilizada para facilitar a explicação.
18
DWORKIN, Ronald. Op. Cit.
para o pluralismo político, fundamento da república19. Sem a livre manifestação do
pensamento, nenhum debate político é plural porque as diversas posições con-
trapostas não poderiam exercer, em plenas condições, a luta política. Rompe-se,
assim, com uma concorrência ampla pela conquista do aparato estatal, acarretando
em um domínio que marginalizaria as posições contrárias. É a dimensão política da
liberdade de expressão, relativa à participação e à representação, remontando a
ideia de espaço público e implementando a noção de cidadania em uma democracia
coparticipativa.
Quando se fala sobre uma dimensão individual desse direito, tem-se o pre-
domínio do modelo liberal em mente. Entende-se como o direito de não ser obrigado
a esconder aquilo que sabemos, aquilo que pensamos e aquilo que sentimos. Reúne
o direito incondicionado de se expressar com o direito de exercer a atividade de
comunicação social esta, por sua vez, condicionada à obtenção de licença, nos ter-
mos da Constituição. Caracteriza-se, historicamente como um direito de abstenção
do Estado, de primeira dimensão.
A liberdade de expressão e comunicação social possui, por fim, uma di-
mensão de caráter instrumental. Existem direitos implícitos como a formação na-
tural de uma opinião pública e o direito ao livre desenvolvimento intelectual do in-
divíduo que somente podem ser concretizados de maneira satisfatória se a liberdade
de expressão e comunicação social estiver sendo amplamente exercida. É preciso
que as informações circulem de forma robusta e que opiniões de diversos posiciona-
mentos distintos possam ser encontrados sem empecilhos. Seja por uma visão de
que a liberdade de expressão permite que se alcance a verdade, seja pela visão de
um mercado de ideias aberto ao indivíduo, seja por qualquer outra visão alternativa,
o provimento da informação conecta-se a um interesse coletivo que permite que
62 se desenvolvam a opinião pública e a capacidade intelectual dos indivíduos. Isso forta-
lece a necessidade de compreender o interesse público presente da vertente cole-
tiva da perspectiva informacional da liberdade de expressão e comunicação social,
pois esta serve de instrumento essencial ao alcance daqueles dois outros direitos.
Passando-se por essa análise das dimensões da liberdade de expressão e
comunicação social, é possível afirmar que haja momentos de maior exercício da
manifestação do pensamento e momentos de prevalência da difusão da informação.
Na atividade de comunicação social, destaca-se a circulação da informação.
É possível dizer que a comunicação social é um elemento da liberdade de expressão
e comunicação social, referente, por sua vez, ao plano coletivo de obtenção de in-
formações. Entende-se comunicação como uma prática de interação, em que um
emissor transfere uma mensagem a um receptor. Por um lado, o polo receptor da
mensagem pode ser alguém ou um grupo de pessoas específico – comunicação
dirigida. Essa é uma forma de comunicação que pode ser vista como interpessoal,
pois pessoas informam outras. Por outro lado, quando a mensagem não tem um al-
vo determinado, e sim receptor genérico para obter aquela informação, é possível
dizer que houve difusão da informação. O resultado disso é a possibilidade de que
os indivíduos se informem de acordo com o seu interesse, realizando-se a atividade
de comunicação social e, através dessa prática, o meio técnico-científico e infor-
macional é difundido. A comunicação social, portanto, deve ser observada por dois
ângulos: (I) como um direito de emitir o meio informacional e (II) como um direito
_____________________________________________________________________________
19
CONSTITUIÇÃO DA REÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, art. 1º: “A República Federativa do Bra-
sil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: V - o pluralismo político”.
de recebê-lo. Adquirida por um indivíduo a informação, há o direito de transmiti-la,
promovendo sua difusão e, por outro lado, de os demais a receberem. Dessa forma,
a comunicação social é o direito de promover a circulação do meio informacional,
entendendo-se esse termo de uma maneira ampla, abrangendo tanto a espécie
técnico-científica, quanto a informacional num sentido mais estrito, fático. Sendo
uma circulação objetiva da informação é preciso que, ou se atenda à imparcialidade
na propagação, ou que se garanta um ambiente de multiplicidade de vozes, com
uma circulação de interpretações robusta e plural. Tal questão está diretamente li-
gada à dimensão instrumental da liberdade de expressão e comunicação social,
uma vez que é essencial para que se alcance a formação natural de uma opinião
pública crítica e isenta da influência de grupos de poder com interesses particulares
e para que se desenvolva de maneira íntegra a capacidade de intelecção do cidadão.
É extremamente arriscada a concentração da comunicação em uma ou poucas vo-
zes, facilitando a manipulação da opinião pública e a alienação do indivíduo.
Já no campo da expressão, destaca-se o exercício da manifestação do pen-
samento. Enquanto a comunicação social refere-se ao elemento correspondente à
difusão informativa, entende-se expressão o elemento responsável pela emissão
do pensamento, da opinião, da crença e demais fatores de ordem subjetiva. Neste
elemento, pressupõe-se somente o emissor da mensagem, mas com precípua fun-
ção de propagar esses fatores pessoais, buscando a persuasão e o convencimento.
Por mais que seja possível o exercício da expressão por mero intento de extravasar
alguma emoção, ou até mesmo pela vontade de deixar claro o que se pensa ou se
sente, é comum que haja um propósito fundamental em seu exercício de receber
adesão, alterando-se convicções alheias. A expressão do pensamento se dá a partir
de uma informação ou um conjunto de informações que se toma por base. Tendo
uma base de informações, um objeto qualquer para o pensamento, o indivíduo 63
constrói uma visão própria sobre ela e, em seguida, busca manifestá-la. O meio
informacional passa, então, por um processo de filtragem intelectual pessoal antes
de sua pretensa transmissão. É, então, elemento subjetivo da liberdade, marcado
por características que foram agregadas por esse procedimento individual àquela
base objetiva de informações. Esse processo pressupõe, para um pleno exercício,
uma comunicação efetiva, que traga objetos – e informações sobre os próprios ob-
jetos – alvos da filtragem intelectual do manifestante. Ressalte-se, este proce-
dimento é característico da manifestação do pensamento, mas não se aparta da di-
fusão da informação, embora se aplique em escala reduzida neste.
Tendo-se em mãos os elementos que, juntos, materializam as formas de
concretização deste direito informacional, bem como as dimensões que o carac-
terizam, é possível promover uma conceituação genérica sobre o direito da liber-
dade de expressão e comunicação social pela perspectiva da circulação de infor-
mação: “um conjunto de prerrogativas do cidadão que se envolvem com a manu-
tenção e o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, permitem uma re-
presentação política pluralista, viabilizam a formação natural de uma opinião pública
e o desenvolvimento intelectual do indivíduo, além de permitir que a pessoa humana
concretize sua liberdade de informação, por um lado, manifestando pensamentos
num plano mais subjetivo e, por outro lado, exercendo atividade de comunicação
social, difundindo o meio informacional mais objetivamente”.
4. CONCLUSÃO
Analisando o atual debate em termos de liberdade de expressão, é neces-
sário ressaltar que o assunto precisa receber, no Brasil, um tratamento um pouco
mais compatível com o perfil político do País. Muitos elementos teóricos e muitas
críticas extraídas da discussão americana são de grande valia à construção de um
olhar mais sistemático sobre este direito, porém, alguns elementos de ordem insti-
tucional devem ser concebidos para uma disciplina jurídica desse direito. Acredita-
se que, somente a partir de uma mudança de perspectiva, isto seja possível e, por-
tanto, sugere-se a adoção de um paradigma de pensamento para a liberdade de
expressão pela circulação da informação. Este paradigma permite que, tanto um
campo individual e subjetivo seja garantido, quanto um campo transindividual seja
tutelado. Resulta, porém, desta nova ótica, a necessidade de se repensar a liberdade
de expressão, pois somente sua prerrogativa de natureza libertária não se apresenta
como suficiente. Defende-se a necessidade de observar um único princípio que
atenda a dois elementos correspondentes àqueles dois campos – elemento subjetivo
e elementos objetivo: o princípio da liberdade de expressão e comunicação social. A
concepção deste princípio se faz através de um processo de cognição e comunica-
ção que pode ser dissecado em três etapas. A primeira é a obtenção de uma base 69
de informações objetivas. A segunda é a filtragem intelectual exercida pelo indivíduo
sobre esta base objetiva de informações. A terceira é a exteriorização deste conteú-
do, ou seja, a própria manifestação do pensamento. Observa-se que, tanto a atividade
de comunicação social, quanto a expressão do pensamento, passam por este pro-
satirizada ou de um público que com ele se identifique. Uma charge satirizando o profeta Maomé, em
2006, recebeu severas críticas dos países com orientação islâmica contra os países que publicaram a imagem
em seus jornais. Mais recentemente, o Brasil viu outro exemplo no ano de 2010. Todo o cenário político,
sobretudo o federal se encontrava num estado de atenção para as propagandas políticas e para a obtenção
de seu eleitorado. A sátira de figuras políticas, no Brasil, é comum nos programas de humor, mas, em fun-
ção da legislação eleitoral (Lei n. 9.704 de 1997), a circulação de trucagens, montagens e demais formas
de manifestação em prejuízo de políticos em período de eleição foi proibida. O fato gerou grande polêmica,
mobilizando a opinião pública e os profissionais do ramo. Diversas manifestações contra a proibição foram
feitas até que a prática foi legalizada. Cf. Referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade n. 4.451 (MC/REF-ADI). Distrito Federal. Relator Min. Ayres Britto. Julgamento em 02.09.2010.
Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
_____________________________________________________________________________
29
O direito de transmitir o conhecimento se desenvolveu historicamente a partir da liberdade de cátedra.
Somente aqueles investidos nestes cargos especiais no ensino teriam tal prerrogativa. Hoje, não só os ca-
tedráticos, mas qualquer atuante dessa ordem possui o direito de se manifestar fundado na finalidade es-
pecífica de difundir o conhecimento, sendo permitido escolher e organizar as matérias, as visões pelas
quais serão passadas as aulas, os assuntos que se seguirão entre outros aspectos. Silva indica, porém, ha-
ver um balizamento dessa atividade. Quando a instituição monta um programa pedagógico, os profissionais
do magistério devem adequar suas manifestações a essas pretensões previamente definidas. Cf. SILVA,
José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29º ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2007.
30
A linguagem não se restringe à fala e à escrita. Linguagem representa transmissão de uma mensagem,
através de um padrão de recursos e instrumentos que lhe possibilitem atribuir sentido. Na fala, o sentido
se dá por meio de um padrão fonético de linguagem. Na escrita, por meio de um padrão gráfico. Embora
esses sejam os mais tradicionais meios de linguagem, um indivíduo pode comunicar suas convicções por
outros sistemas de semântica. No campo do comportamento humano, as formas de agir, de se vestir e de
utilizar adereços representam linguagem.
cedimento, sendo diferenciados pelo nível da carga de subjetividade atribuída pela
filtragem intelectual.
Quando observado o quadro brasileiro recente de conflitos sociais e juris-
prudência envolvendo a liberdade de expressão, é possível concluir pelo predomínio
de uma orientação antiquada. É dominante, no Brasil, a orientação tradicional de
William Blackstone. Por mais que se abomine a censura prévia, há a ideia de que a
informação pode ser alvo de indenização em quaisquer circunstâncias. Esta orien-
tação foi aprimorada com o caso New York Times v. Sullivan, nos EUA. Com a criação
da Sullivan Rule, ainda que posteriormente à divulgação, surgiram fatores con-
dicionantes à indenização, tais como a falsidade, a nocividade e a malícia efetiva. É
possível observar, entretanto, que o chamado caso do humor, no Brasil, pode ser
considerado como uma aproximação desta orientação mais recente da Suprema
Corte dos EUA31.
É possível observar que Ronald Dworkin contribui com elementos teóricos
na construção desta perspectiva da circulação de informação da liberdade de ex-
pressão e comunicação social. Quando este autor discute, em um primeiro mo-
mento, a justificação da liberdade de expressão, institui sua importância instru-
mental. É possível observar a defesa, na verdade, de duas dimensões deste direito:
a dimensão democrática e a dimensão instrumental. Aquela representa a relação
indissociável entre este direito e a própria ideia de liberdade. Esta representa a
necessidade deste direito para a promoção de outros direitos como, por exemplo,
a formação natural de uma opinião pública e o livre desenvolvimento intelectual
do indivíduo. Quando, em um segundo momento, Dworkin analisa a importância
construtivista na justificação deste direito, contribui para o desenvolvimento daquilo
que aqui se designou como dimensão individual ou pessoal. Em um terceiro
70 momento, Dworkin discute uma terceira importância da liberdade de expressão.
Trata-se da mesma preocupação de Owen Fiss tinha quando discutiu o efeito silen-
ciador do hate speech. A partir destas análises, é possível identificar o que ficou
aqui estabelecido como a dimensão pluralística da liberdade de expressão e co-
municação social.
A partir da obra de Dworkin, foi possível observar subsídios, ainda, para
uma análise da abrangência da liberdade de expressão e comunicação social. É pos-
sível afirmar que, no Brasil, predomina a orientação cujo conteúdo se apresenta na
interpretação profilática deste direito. Defende-se a impossibilidade de qualquer
espécie de controle da manifestação do pensamento e da difusão de informações,
temendo-se uma influência ilegítima sobre o poder de autogoverno do povo. O
quadro brasileiro vem apontando alguns abusos no exercício deste direito como,
por exemplo, pela grande concentração dos meios de comunicação social. Sugere-
se, portanto, que, perante os problemas de ordem prática existentes no país, seja
necessária a adoção de uma interpretação discriminadora. Esta, por sua vez, é encon-
trada na teoria americana apoiada sob duas regras que devem ser associados ao
Sullivan Rule. Portanto, defende-se uma interpretação discriminadora fundada nos
seguintes parâmetros: (I) a regulamentação e a legislação não devem evitar que o
povo receba informações; (II) não podem manipular o sistema de maneira a fa-
vorecer determinados setores ou grupos; e (III) o Judiciário não pode contemplar
agentes públicos alvos da liberdade de expressão e comunicação social exceto que
configurada falsidade, nocividade e malícia efetiva.
____________________________________________________________________________
31
Cf. referendo na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.451 (MC/REF-ADI). Distrito
Federal. Relator Min. Ayres Britto. Julgamento em 02.09.2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.
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WALDRON, Jeremy. Dignity and Defamation: the Visibility of Hate. Harvard Law
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A Construção das Decisões na
Jurisdição Constitucional: Atores
e Deliberação no Supremo
Tribunal Federal*
Adriana de Moraes Vojvodic
Bruna Romano Pretzel
Guilherme Forma Klafke
Luiza Andrade Corrêa
Natália Pires de Vasconcelos
Victor Marcel Pinheiro
1. INTRODUÇÃO
As mais recentes pesquisas sobre jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral têm apontado a insuficiência de um modelo tradicional de pesquisa jurispru-
dencial no Brasil: a análise predominantemente qualitativa de decisões dos tribunais,
geralmente lidas isoladamanete ou agrupadas em conjuntos temáticos e frequen-
temente afastadas de seu contexto institucional. Em contraposição a esse modelo,
são crescente as propostas de análise predominantemente quantitativa da jurispru-
dência do STF, que cubram um grande número de processos judiciais dentro de um 73
determinado recorte temporal, buscando atender a finalidades que a pesquisa quali-
tativa por si só não consegue cumprir.
Uma ilustração bastante atual dessa segunda proposta é o “I Relatório
Supremo em Números: O Múltiplo Supremo”, publicado pela FGV Direito Rio em
abril de 2011. O relatório da pesquisa ressalta que o viés quantitativo permite uma
melhor compreensão do “posicionamento institucional geral do Poder Judiciário”,
na medida em que se busca conhecer “os andamentos dos processos, seu tempo,
seus atores, suas origens geográficas e as regularidades e correlações entre esses
e outros elementos”1. Neste relatório do projeto Supremo em Números, o exame
dos tipos e da frequência das ações ajuizadas perante a corte permite identificar
particularidades do que foi chamado de diferentes personae incorporadas pelo STF:
as Cortes Constitucional, Ordinária e Recursal. A existência desses diferentes perfis,
definidos a partir do tipo de ação que o Tribunal decide, deixa evidente a dificuldade
em se compreender a atuação do Tribunal com base em um único parâmetro de
análise2.
_____________________________________________________________________________
* Artigo apresentado pelos autores no III Fórum de Grupos de Grupos de Pesquisa de Direito Constitucional
e Teoria do Direito, em 22 de outubro de 2011, representando os trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de
Pesquisas da Sociedade Brasileira de Direito Público - sbdp.
1
FALCÃO, Joaquim; CERDEIRA, Pablo de Camargo; ARGUELHES, Diego Werneck. I Relatório Supremo em
Números: O Múltiplo Supremo, pp. 8-9. Disponível em: http://www.supremoemnumeros.com.br/wp-
content/uploads/2011/05/I-Relat%C3%B3rio-Supremo-em-N%C3%BAmeros.pdf. Acesso em: 14 out. 2011.
2
A multiplicidade de funções atribuídas ao STF e a consequência disso nos padrões decisórios da Corte é
cada vez mais percebido por pesquisadores e estudiosos do tema. Ver, por exemplo, VERÍSSIMO, Marcos
Paulo. “A constituição de 1988, vinte anos depois: Suprema Corte e ativismo judicial ‘à brasileira’”, Revista
Direito GV, vol. 8, p. 407-440, jul-dez 2008.
O presente artigo busca dialogar com essa proposta de análise da jurispru-
dência do STF, da qual o projeto da FGV é apenas um exemplo, principalmente a
partir dos resultados de duas pesquisas conduzidas pelo Núcleo de Pesquisas da
Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP): “Accountability e jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal: estudo empírico de variáveis institucionais e a estrutura
das decisões”3 e “Controle de constitucionalidade dos atos do Poder Executivo”4.
As duas pesquisas analisaram diferentes variáveis de um grande número de proces-
sos de controle concentrado de constitucionalidade, unindo métodos qualitativos
e quantitativos para examinar mais de perto a persona Corte Constitucional do
STF. A partir dessa definição de escopo, foi possível enxergar aspectos específicos
das decisões de controle concentrado, especialmente quanto à participação de
diferentes atores nos processos perante o Tribunal e quanto à argumentação em-
pregada pelos ministros nos acórdãos analisados.
Esses dois aspectos foram selecionados por representarem dois momentos
essenciais na formação da jurisprudência do STF: a introdução (input) de argumen-
tos através de atores parciais e o resultado (output) dos processos, representado
pelo dispositivo decisório dos acórdãos e sua respectiva fundamentação. Com base
nos resultados das referidas pesquisas da SBDP, o objetivo deste artigo é refinar
algumas concepções comumente atreladas aos momentos de input e output na
atuação do STF como corte constitucional.5
É premissa deste trabalho que a pesquisa de jurisprudência pode ser reali-
zada de modo que seu objeto seja mais amplo do que simplesmente identificar o
posicionamento geral da Corte com base nos processos admitidos ou nos resultados
dos julgamentos, embora estas ainda sejam variáveis essenciais à compreensão da
sua atuação. A partir de uma análise que agregue métodos quantitativos e qua-
74 litativos, a fim de examinar outros elementos além do número de processos e princi-
palmente além dos dispositivos decisórios, pode-se ter um retrato institucional mais
preciso do STF. Esse retrato institucional é um instrumento importante para maior
accountability do Tribunal, entendida como a possibilidade de controle democrático
da atuação de seus ministros e da corte como um todo6, permitindo também o
_____________________________________________________________________________
3
A pesquisa “Accountability e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: estudo empírico de variáveis ins-
titucionais e a estrutura das decisões” foi realizada pela Sociedade Brasileira de Direito Público com fi-
nanciamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e finalizada em 2011.
Ela criou um banco de dados (http://www.observatoriodostf.org.br/acoes) referentes a todas as ADIs, ADCs e
ADPFs julgadas pelo STF no período entre 21 de junho de 2006 e 11 de janeiro de 2010 (um universo de 266
ações), no qual foram identificadas e catalogadas diversas variáveis (dentre elas os temas das ações, as partes,
eventuais amici curiae, e citações de precedentes, legislação e doutrina pelos ministros) presentes nos acórdãos
e votos dos ministros em todas as decisões. A pesquisa volta-se, assim, ao mapeamento do conteúdo das deci-
sões do tribunal a fim de compreender seu funcionamento como Corte Constitucional de um modo mais pleno.
4
A pesquisa “Controle de constitucionalidade dos atos do Poder Executivo” foi realizada pela Sociedade Bra-
sileira de Direito Público com financiamento da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça
(SAL/MJ) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e finalizada em
2010. A pesquisa foi feita com base em todas as ações de controle concentrado de constitucionalidade (ajuizadas
posteriormente à Constituição Federal de 1988 até 21 de julho de 2009) em que atos normativos do Poder Exe-
cutivo Federal foram questionados. Foram analisadas 831 ações, universo composto por 766 ADIs, 52 ADPFs e
13 ADCs.
5
Vale ressaltar que as pesquisas conduzidas pela SBDP não se limitaram a examinar os atores processuais e a ar-
gumentação dos ministros no universo de acórdãos definido, mas também abordaram diversas outras variáveis,
ensejando interessantes conclusões sobre a atuação do STF: analisou-se o tempo processual; citações de le-
gislação, doutrina, precedentes e pareceres de especialistas nos votos dos ministros; referências ao histórico
legislativo dos atos normativos impugnados ou citados; e assim por diante. Em razão da limitação de espaço e
para um maior aprofundamento do tema, este artigo se limitará à análise das variáveis ligadas aos atores pro-
cessuais e à argumentação e diálogo entre ministros no STF, por representarem mais claramente os momentos
de input e output nas decisões da Corte.
6
Não é objetivo deste artigo oferecer uma definição peremptória de accountability, visto que o termo é utilizado
no contexto da ciência política em diversos outros sentidos além do controle do poder judicial. O intuito é ape-
nas sintetizar a ideia de controle democrático da atuação do STF por meio de uma expressão já consagrada.
desenvolvimento de novas propostas para o aprimoramento da atuação do Tri-
bunal7.
A primeira frente que se busca examinar é a dos atores envolvidos nos
processos de controle concentrado. Nesse âmbito, é importante detectar não
apenas os sujeitos responsáveis pela propositura da ação, mas também aqueles
que contribuem trazendo argumentos jurídicos e extrajurídicos para o debate. É o
exemplo dos amici curiae, visto que o exame das entidades e dos órgãos interes-
sados no desfecho da causa pode indicar o grau de repercussão social da matéria
em pauta no Tribunal, mostrando quais grupos serão afetados e como eles reagem.
A participação de representantes da sociedade civil que trazem novos ar-
gumentos ao processo é tida como positiva por aqueles que defendem uma maior
abertura da corte e a colaboração de todos os segmentos da sociedade para a con-
cretização da Constituição8. Nas pesquisas realizadas pela SBDP, foi possível obter
uma noção de quem acessa o STF e sobre o que esses atores se manifestam. Buscar-
se-á mostrar, assim, se (e em que medida) a participação dos diferentes atores do
controle concentrado de constitucionalidade correspondeu, até o momento, ao
ideal de abertura do STF às razões da sociedade civil.
A segunda frente deste artigo diz respeito ao modelo decisório do Supremo
Tribunal Federal, isto é, ao modo como suas decisões são tomadas e fundamentadas.
É comum a crítica de que ele não toma decisões colegiadas como uma corte, mas
como “onze ilhas” que não dialogam entre si. O grande problema desta constatação
estaria no fato de que as decisões podem conter, potencialmente, onze razões de
decidir distintas mesmo para um dispositivo final unânime, o que torna difícil a com-
preensão do julgado e sua aplicação como precedente.
O termo “onze ilhas” foi utilizado por Cobrado Hübner Mendes em um ar-
tigo no qual argumenta que não há nas decisões do STF razões de decidir do Plenário 75
como um todo, mas apenas de cada ministro separadamente. Em suas palavras, “o
aperfeiçoamento da deliberação colegiada do STF contribuiria para a qualidade do
debate público. E o Supremo se apresentaria não somente como autoridade que
toma decisões a serem obedecidas, mas também como fórum que oferece razões
a serem debatidas. Criaria uma oportunidade de reforçar sua legitimidade”9. O mo-
delo de decisão é agregativo, não deliberativo, também para Luís Roberto Barroso,
que sustenta argumentos semelhantes ao de Mendes 10.
Em sua tese de doutorado, Conrado Hübner Mendes defende, na mesma
linha, que uma corte constitucional deliberativa possui vantagens compara-
tivamente às cortes não deliberativas11. Além disso, o autor identifica três fases
_____________________________________________________________________________
7
Nesse sentido, entende-se que a observação, por meio de pesquisas empíricas, do modo como o Tribunal
funciona possibilita a identificação de elementos institucionais _ formais e informais _ que fomentam ou
dificultam a realização satisfatória do trabalho desenvolvido pela Corte.
8
Nesse sentido, afirma Eloísa Machado de Almeida: “ao permitir o ingresso de atores sociais diversos
como amicus curiae mas ações de controle de constitucionalidade, as diversas razões e perspectivas apre-
sentadas por estes exercem o papel de melhor informar os juizes sobre a questão em pauta e suas impli-
cações e, ao mesmo tempo, permite a legitimação da decisão pelo processo.” (ALMEIDA, Eloísa Machado.
Sociedade civil e democracia: a participação da sociedade civil como amicus curiae no Supremo Tribunal
Federal. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006,
p. 31.) Na mesma linha, cf. LAURENTIIS, Thais Catib de. A caracterização do amicus curiae à luz do Supremo
Tribunal Federal. Monografia apresentada à Escola de Formação da SBDP, 2007. Disponível em: http://
www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/106_Thais%20Catib%20De%20Laurentiis.pdf. Acesso em: 14 out. 2011.
9
MENDES, Conrado Hübner. Onze Ilhas. Disponível em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/onze-
ilhas. Acesso em: 24 set. 2011.
10
Entrevista “Conversas Acadêmicas: Luis Roberto Barroso (II)”. Disponível em: http://www.osconstitucio
nalistas.com.br/conversas-academicas-luis-roberto-barroso-ii. Acesso em: 24 set. 2011.
11
MENDES, Conrado Hübner. Deliberative Performance of Constitutional Courts. Tese (Doutorado em
Direito) – Universidade de Edimburgo, 2011.
não estanques do processo decisório, quais sejam, pré-decisional, decisional e pós-
decisional12. A pesquisa “Accountability e jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
deral: estudo empírico de variáveis institucionais e a estrutura das decisões” iden-
tificou importantes variáveis, tratadas adiante neste artigo, em todas essas fases.
Procura-se oferecer, assim, uma avaliação mais detalhada do modelo decisório da
corte e verificar em que medida o atributo das “onze ilhas” lhe é aplicável.
77
Figura 1. Fonte: SBDP, Observatório do STF, disponível em: http://www.observatoriodostf.org.br/acoes
_____________________________________________________________________________
17
Deve-se destacar que há um novo importante instrumento de participação nas demandas de controle
abstrato de constitucionalidade perante o STF que não será examinado no presente trabalho. Trata-se do
instituto da audiência pública, cujo fundamento legal encontra-se no art. 9º, § 1º, in fine, da Lei 9.868/99.
Embora já tenham sido realizadas cinco audiências, em apenas uma ação já houve julgamento final – é o
caso da ADI 3510/DF, sobre a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas.
Em monografia específica sobre os resultados da audiência, Rafael Bellem de Lima analisou a influência
das manifestações dos técnicos para a decisão final da Corte. Concluiu que o procedimento melhorou a
argumentação dos ministros, mas essa contribuição não teria sido plena porque várias questões de ordem
técnica que serviram para a fundamentação de alguns deles não foram contempladas ou foram mesmo
rechaçadas pelos especialistas. Ao final, afirma que “se a audiência pública fez do Supremo Tribunal Federal
uma Casa do Povo, nela a voz do dono foi pouco ouvida” (Cf. LIMA, Rafael Bellem de. A Audiência Pública
realizada na ADI 3510-0: A organização e o aproveitamento da primeira audiência pública da história do
Supremo Tribunal Federal. Monografia apresentada à Escola de Formação da SBDP, 2008. Disponível em:
http://sbdp.org.br/ver_monografia.php?idMono=125. Acesso em: 19 out. 2011).
18
Conforme legislação vigente sob a Constituição de 1967 com a Emenda Constitucional 1/1969, somente
o Procurador-Geral da República era titular de legitimidade ativa para propor a representação de inconstitu-
cionalidade (art. 119, I, l, da EC 1/69). Atualmente, o art. 103 da Constituição apresenta como legitimados:”I
- o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a
Mesa de Assembléia Legislativa; V - o Governador de Estado; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da
Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-
Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com
representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.
19
Não se ignora a possibilidade de que tais atores tivessem acesso ao Tribunal por intermédio do Pro-
curador-Geral da República antes da nova Constituição. Contudo, essa possibilidade não é significativa
diante da largueza de acesso que eles possuem atualmente, à luz dos dados recolhidos.
20
O universo de pesquisa é de 266 acórdãos, mas são apresentados 275 resultados. Isso decorre da exis-
tência de ações ajuizadas por mais de um legitimado, como, por exemplo, na ADI 3112, ajuizada por dois
partidos políticos, dois sindicatos e três entidades de classe, ou na ADI 1969, ajuizada por um partido po-
lítico e três sindicatos.
Verifica-se que os Poderes Executivos Estaduais, com 34% das demandas
examinadas, apresentam alto grau litigiosidade em comparação com os demais
legitimados. Também se destacam partidos políticos, sindicatos e entidades de
classe ou de direitos difusos, que respondem, juntos, por aproximadamente 33%
das ações. O Ministério Público é outro ator importante (27%). Essa constatação
inicial do aumento do número de demandas de controle abstrato ajuizadas pelos
legitimados a partir da Constituição Federal de 1988 permite que se questione o
perfil dessas demandas. Em outras palavras, deve-se examinar de que modo esses
atores se utilizam da prerrogativa concedida pelo novo regime constitucional.
Nesse sentido, é significativo que cerca de um terço de todas as ações
examinadas tenha origem nos Executivos estaduais. Os governadores recorreram
ao STF muito mais do que o Presidente da República ou mesmo as Assembleias
estaduais. Também foram mais ativos do que os partidos políticos, os sindicatos e
as entidades consideradas.
Os dados acima evidenciam uma modificação no perfil do federalismo bra-
sileiro. É sabido que as Constituições de 1967 e 1969 favoreceram a centralização
do poder da União em detrimento da autonomia dos Estados membros. A Carta de
1988, ao contrário, pretendeu conferir maior autonomia para os entes descentra-
lizados, alçando, inclusive, a figura dos Municípios a parte integrante da Federação
brasileira. Nesse contexto de transformação, a permissão para que Governadores
e Assembleias Estaduais ajuizassem ações de controle abstrato garantiria que diver-
sos atos ligados diretamente aos interesses dos Estados pudessem ser discutidos
no STF. Seria possível, então: (i) questionar a validade de atos normativos estaduais
editados no âmbito do próprio ente federativo (instrumento de governabilidade);
(ii) questionar a higidez de atos normativos de outros Estados da Federação (ins-
78 trumento de proteção frente aos outros Estados); e (iii) questionar a cons-
titucionalidade de atos normativos federais que afetem a repartição constitucional
de competências de alguma forma (instrumento de proteção frente à União).
Esse leque de possibilidades, porém, é submetido a um filtro de legiti-
midade ad causam ativa: trata-se da exigência de pertinência temática21. Essa exigên-
cia pode ser um dos fatores determinantes da quantidade de ações julgadas entre
2006 e 2010, ajuizadas por Governadores ou Legislativos Estaduais, que têm como
objeto um dos três tipos de atos normativos. Veja-se a figura 2.
De 97 ações, em apenas 9 foi impugnado um ato normativo que não se li-
mitava ao âmbito do próprio Estado. Em relação às ações que se voltaram contra
atos federais, em três delas houve questionamento de Emendas Constitucionais
(ADI 2024, ADI 2395 e ADO 3682), o que demonstra a grande relevância das de-
mandas, pelo menos para a estruturação dos entes estaduais. Esse potencial, no
entanto, é consideravelmente restringido a partir do momento em que o STF passa
a exigir um vínculo entre o objeto da ação e os interesses dos Estados. Não parece
ser outro o motivo pelo qual as três ações que se voltam contra leis de outros Es-
tados versam apenas sobre ICMS (ADI 3389, ADI 3410 e ADI 2548). Logo, a ampla
possibilidade de atuação dos Governadores e das Assembleias Legislativas é sen-
sivelmente restringida, na medida em que eles encontram maiores dificuldades para
impugnar atos de outros entes e da União.
_____________________________________________________________________________
21
O STF, pouco tempo depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, passou a exigir dos
governadores e assembleias estaduais, de confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional
o requisito de “pertinência temática” para reconhecer a essas entidades legitimidade ad causam ativa.
Tal requisito é um vínculo entre “os objetivos estatutários ou as finalidades institucionais da entidade
autora e o conteúdo material da norma questionada em sede de controle abstrato” (ADI-MC 1157-0/DF,
Rel. Min. Celso de Mello, j. 01.12.1994).
Figura 2. Fonte: SBDP, Observatório do STF, disponível em: http://www.observatoriodostf.org.br/acoes
_____________________________________________________________________________
22
Cf. VIANNA, Luiz Werneck et al. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1999, p. 73 e ss.
23
Nesse mesmo sentido, TAYLOR, Matthew M. e ROS, Luciano da. Os partidos dentro e fora do poder: a
judicialização como resultado contingente da estratégia política, Revista DADOS, vol. 51, p. 825-864, 2008.
Figura 3. Fonte: SBDP, Relatório “Controle de Constitucionalidade dos atos do Poder Executivo”, p. 30.
81
_____________________________________________________________________________
31
Modelo agregativo de votos, e não deliberativo, nas palavras de Luis Roberto Barroso, na entrevista
“Conversas Acadêmicas: Luis Roberto Barroso (II)”. Disponível em: http://www.osconstitucionalistas.
com.br/conversas-academicas-luis-roberto-barroso-ii. Acesso em: 24 set. 2011.
32
MENDES, Conrado Hübner, Onze Ilhasop. cit.
33
Ainda que seja questionável a exigência de uma única ratio para a decisão, ou até mesmo a tentativa de
identificação de uma ratio, separada dos elementos não transcendentes da decisão, o que se aponta aqui
não se refere a uma multiplicidade de argumentos, mas para a existência de fundamentos contrastantes
nos votos dos ministros.
34
Trata-se da pesquisa realizada pela SBDP, publicado no relatório “Accountability e jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal”, op. cit.
refinamento na compreensão do processo deliberativo do STF e das consequências
nas suas decisões finais.
Para verificar o padrão deliberativo e argumentativo seguido pelo STF,
foram destacados três elementos principais nas decisões analisadas, por meio dos
quais se entendeu possível uma análise mais precisa do comportamento deliberativo
da Corte e da construção de suas decisões: a unanimidade em relação ao dispositivo
do acórdão, a convergência dos votos dos ministros em relação à fundamentação
do relator e a existência de debates durante a tomada de decisão.
84
Figura 5. Fonte: SBDP, “Accountability e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: estudo empírico
de variáveis institucionais e a estrutura das decisões”, 2011.
Relator como sua posição final, mas de forma, assim entendida por este estudo,
menos consensual. Neste cenário, a ausência de debates pode indicar que a posição
do Relator foi adotada de forma cega e sem sofrer quaisquer acréscimos ou escla-
recimentos, como se comporta normalmente em sua função de Corte Recursal.
O segundo caminho adotado pela Corte mostra que em quase a metade
dos casos a adoção da posição do Relator se deu por meio de debates entre os mi-
nistros. Este primeiro caminho pode ser entendido como mais consensual, já que o
resultado final, a construção da posição da Corte por meio da adoção dos argu-
mentos do Relator se deu com a troca de argumentos e razões entre os ministros,
o que indica sua maior preocupação em convencer uns aos outros da posição ado-
tada e esclarecer possíveis omissões ou obscuridades na argumentação despendida
88 pelo Relator. A adoção da posição do Relator, nesses casos, pode ser entendida
como fruto de algum tipo de deliberação entre os ministros, num comportamento
mais esperado de um colegiado.
4. CONCLUSÃO
Como já tratado anteriormente, a jurisprudência do Tribunal é constan-
temente dividida pelos estudiosos especialmente em função das tarefas atribuídas
aos ministros em relação ao tipo de decisão que é tomado pelo Tribunal. Marcos
Paulo Veríssimo, por exemplo, afirma que em mais de 90% dos casos decididos anual-
mente pelo STF, as decisões são tomadas sem que os casos passem por qualquer
tipo de colegiado, seja nas Turmas seja no Pleno do Tribunal, por se tratarem de
decisões monocráticas40. Nelas as razões atribuídas às decisões são exclusivamente
aquelas apresentadas pelos Relatores, sem que sofram qualquer tipo de inter-
ferência por parte dos demais ministros. Pode-se afirmar assim que a esmagadora
maioria das decisões tomadas pelo STF são construídas de modo individual.
Diante dessa divisão, buscou-se aqui refinar o tipo de avaliação que é feita
das decisões tomadas de modo colegiado, dentro da persona de Corte Constitu-
cional do STF, segundo a classificação utilizada no Relatório I do projeto Supremo
em Números. Com relação ao modo de decidir do STF nos casos de controle con-
centrado de constitucionalidade, foi possível perceber, e diferente do que se es-
peraria das decisões da Corte Constitucional, que a adoção integral do voto do Re-
lator na grande maioria dos casos dá a entender que também nesse grupo de de-
_____________________________________________________________________________
40
VERÍSSIMO, Marcos Paulo, A constituição de 1988, vinte anos depois: Suprema Corte e ativismo judicial
“à brasileira”, op. cit.
cisões o resultado final dos casos se dá individualmente. Ainda que as regras do
processo decisório determinem a votação colegiada do Tribunal, as decisões são
construídas, em 90% dos casos, de modo não colaborativo. Os debates existentes
nesses casos não levam a qualquer alteração no conteúdo da decisão final, sem
qualquer preocupação com uma convergência nas posições, exatamente como se
constrói a critica do STF como um tribunal composto por “onze ilhas”. Nesse
sentido, a crítica das “onze ilhas” toma uma nova forma pois ainda que o tribunal
não apresente diferentes razões de decidir na maioria dos casos, a corte continua
distante do ideal deliberativo, uma vez que o diálogo não faz diferença no resultado
final.
A adoção da posição do Relator na grande maioria dos casos pode ter
muitas explicações, que contemplam principalmente razões ligadas à grande de-
manda de trabalho da Corte, o que não permitiria a cada ministro debruçar-se deti-
damente sobre o caso em apreço, levando-os a confiar na posição relatora ou assu-
mi-la como certa na maior parte dos casos. Entende-se, contudo, neste estudo,
que a promoção de um processo deliberativo mais consensual é preferível a um
menos consensual, mesmo que o resultado dos julgamentos venha a ser quase
sempre o mesmo, a adoção da posição do Relator.
Esse modelo de tomada de decisão, em que o posicionamento apresentado
pelo Relator acaba sendo pouco ou em nada alterado pelos argumentos trazidos
pelos demais ministros durante os debates, tornando-se a decisão final do tribunal
(output), parece se confrontar com a imagem de um Tribunal cada vez mais aberto
a receber argumentos de diferentes atores, que acessam a Corte seja para apre-
sentar diretamente novas demandas, seja para atuar como amici curiae (input).
A Corte abre-se, tornando-se não só um novo palco para decisões políticas
mas um locus de discussão que incorpora atores que antes não participavam dessas 89
decisões. No entanto, duas conclusões deste estudo são especialmente relevantes
para repensar esse diagnóstico de abertura democrática. Em primeiro lugar, veri-
ficou-se que a maior parte dos amici curiae admitidos nos processos analisados é
relacionada a uma instituição ou entidade de caráter nacional que já possui legiti-
midade para acessar o STF. Em segundo lugar, o perfil argumentativo do Tribunal,
mesmo no controle concentrado de constitucionalidade, mantém-se apoiado no
padrão verificado na sua persona de Corte Recursal, já que as decisões são vir-
tualmente individuais, havendo pouca incorporação de argumentos que não
aqueles apresentados pelo relator. A combinação das variáveis pesquisadas, em
especial a predominância de fundamentação única aliada à unanimidade na decisão
final, mostra uma Corte ainda pouco acostumada a uma construção colaborativa
de decisões, o que parece se contrapor ao crescente número de atores que são ad-
mitidos pelo Tribunal a fim de colaborarem com a pluralidade argumentativa das
suas decisões.
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91
Políticas de Acesso à Justiça: uma
Análise em Dois Tempos
Matheus Monteiro
Rodolfo Noronha
Bianca Ferreira Belan de Oliveira
Etelvina Lana de Oliveira
Evelliny Thais Neves Magalhães
Luiza Éllena de Souza
Maria Laura Lambert [*]
RESUMO
O presente artigo tem como objeto as políticas judiciais para a pro-
moção do acesso à justiça; o problema de pesquisa é a relação entre
o quadro teórico clássico – entendido como principal referência sobre
acesso à justiça – e as políticas atuais desenvolvidas para este fim.
Para responder a este problema, procura coletar, sistematizar e ana-
lisar dados a partir dos projetos desenvolvidos pelo Conselho Na-
cional de Justiça, de um lado, o que pode ser chamado de estratégia
de “cúpula”; e de outro pelas práticas finalistas e premiadas pelo 93
Prêmio Innovare, como uma estratégia de “base”.
PALAVRAS-CHAVE
Acesso à Justiça – Políticas Judiciais – Reforma do Judiciário.
ABSTRACT
This article is subject to judicial policies promoting Access to Justice,
the research problem is the relationship between the classical theor-
etical framework – understood as the main reference on access to
justice – and current policies are developed for this purpose. To answer
this problem, seeks to collect, organize and analyze data from the
projects developed by the “Conselho Nacional de Justiça”, on the
one side, what might be called the strategy “summit” and other
practices by the finalists and awarded the “Prêmio Innovare” as a
strategy of “base”.
KEYWORDS
Access to Justice – Legal Policy – the Judicial Reform.
_____________________________________________________________________________
[*] Matheus Monteiro é especialista em Direito Privado pela UVA, mestre em BioDireito, Ética e Cidadania,
pelo UNISAL, pesquisador e professor do Centro Universitário de Volta Redonda - UniFOA, advogado, E-
mail: matheus.monteiro2009@yahoo.com.br; Rodolfo Noronha é mestre e doutorando do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense - UFF/PPGSD, especialista em
Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública pela Universidade Federal Fluminense - UFF,
especialista em Gestão de Direitos Humanos pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, pesquisador e
professor do Centro Universitário de Volta Redonda - UniFOA, E-mail: noronhar@gmail.com; Bianca Ferreira
Belan de Oliveira, Etelvina Lana de Oliveira, Evelliny Thais Neves Magalhães, Luiza Éllena de Souza, Maria
Laura Lambert são acadêmicas do 4o. período do Curso de Direito do UniFOA.
1. INTRODUÇÃO
O que estudamos sobre o mais básico dos direitos fundamentais, o direito
a ter direitos, ainda se aplica? Até que ponto as idéias clássicas sobre as formas de
promoção da entrada – e da saída – de demandas no Judiciário ainda servem para
orientar políticas públicas judiciais? Dito de outra forma, os juízes, desembargadores,
ministros das cortes superiores, defensores, promotores, auxiliares da admi-
nistração da justiça e advogados tem produzido como acesso à justiça se comunica
e se aproveita da discussão clássica sobre o tema?
A Emenda Constitucional 45/2004 foi chamada de emenda da Reforma do
Judiciário não à toa; ela procurou traduzir os anseios por um Judiciário mais aberto;
procurou abrir possibilidades para o aprofundamento na prática de discussões ha-
vidas no campo teórico ao menos desde a década de 70 do século passado.
Assim, é necessário compreender e problematizar as diferentes políticas
públicas judiciais que tem sido desenvolvidos no âmbito do sistema de justiça bra-
sileiro. De um lado, é importante compreender o papel que tem sido desempenhado
pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), partindo das políticas que procura esti-
mular visando a promoção do acesso à justiça (um recorte que pode em muito aju-
dar analiticamente a presente exploração) até a própria concepção de papel do
Poder Judiciário expressa nas entrelinhas destas ações. De outro, é necessário esten-
der esta análise para que ela compreenda um olhar não apenas “de cima”, mas
também “de baixo”; não apenas a partir do vértice institucional, mas também é
preciso observar o que está sendo desenvolvido cotidianamente, nos corredores
dos tribunais, por juízes, advogados, desembargadores, promotores, defensores e
auxiliares de justiça, com a finalidade de aprofundar o acesso à justiça. Para atingir
este outro “ponto de entrada”, utilizaremos as políticas judiciais destacadas pelo
94 Prêmio Innovare, dedicado a destacar as práticas inovadoras desenvolvidas por
estes atores judiciais.
O manancial de informações é bem amplo: o CNJ, ao longo da atuação
dos quatro presidentes que já ocuparam esta posição, já colocou em prática diversas
agendas1, através de medidas, campanhas, projetos, etc. Essas agendas podem ser
decodificadas e comparadas com as iniciativas que são desenvolvidas esponta-
neamente por quem está “na base” das instituições judiciais: juízes de primeira
instância, defensores públicos, funcionários de cartório... Todos eles desenvolvem
políticas judiciais. A comparação entre o que tem sido estimulado de um lado (“de
cima”) e desenvolvido de outro (“de baixo”) pode em muito ajudar a compreender
as políticas de acesso à justiça, identificando-as e trazendo valiosas informações
sobre estes rumos tomados pelo Judiciário brasileiro. Este é o objetivo do presente
trabalho.
Esta investigação se insere no âmbito do Programa de Iniciação Científica
– PIC – do Centro Universitário de Volta Redonda, o UniFOA. A instituição estimula
que seus estudantes tenham contato com atividades de pesquisa científica, para
isso, desenvolvendo revistas (como a Cadernos UniFOA e a Revista do Curso de Di-
reito), Semanas de Debates Científicos, Colóquios Científicos e outras atividades.
A presente pesquisa foi proposta por dois professores ligados à instituição e conta
com a valiosa contribuição de um grupo de estudantes de direito empenhados não
apenas em conhecer melhor o campo profissional na qual escolheram atuar como
também preparar um material que dê condições para se preparar melhorias na
_____________________________________________________________________________
1
Como exposto por SADEK, 2010.
realização de justiça – através da reflexão sobre as políticas judiciais de promoção
de acesso à justiça.
Cada uma dessas linhas de investigação abriria uma gama diversa de pos-
sibilidades. No presente trabalho, procuraremos trabalhar uma perspectiva es-
pecífica: as políticas públicas com as quais o sistema de justiça tem procurado en-
frentar os problemas relacionados ao acesso à justiça e podem em muito nos ajudar
a melhor compreender os novos contornos da instituição. Ou seja, neste trabalho,
interessa saber como os diferentes atores do sistema de justiça – juízes, ministros,
desembargadores, auxiliares da justiça, defensores públicos, promotores de justiça,
96 advogados, etc. – tem, em primeiro lugar, localizado obstáculos a serem vencidos
para se promover um acesso à justiça efetivo, e em segundo lugar, quais são as po-
líticas desenvolvidas por estes atores. Estas novas políticas podem indicar novos
rumos por parte das instituições, ou seja, podem indicar novos desenhos institu-
cionais.
Dito de outra maneira, podemos apresentar o objetivo do presente tra-
balho como realizar uma investigação para saber se o paradigma clássico acerca
do acesso à justiça encontra eco nas iniciativas mais recentes neste sentido. Como
paradigma, estamos utilizando o conceito trabalhado por KUHN, 1992: um para-
digma é uma “plataforma de observação” de uma realidade, compartilhado por
uma comunidade científica. Ele traz uma série de problemas e soluções-modelo
que nos ajudam a compreender um objeto. Paradigmas são necessários como mo-
delos, referências teóricas, que informam e preparam nossas ações, nossas atitudes.
Não partimos “do zero”, partimos sempre de concepções pré-concebidas; como
salienta BECKER, 2007, esse quadro prévio precisa ser bem informado, para que te-
nhamos noções precisas sobre nosso objeto de análise. Por isso, paradigmas são
necessários seja para a realização de um trabalho de investigação científica, seja
mesmo para o desenvolvimento de ações práticas.
Em relação à obra de CAPPELLETTI e GARTH, 2002, podemos localizar estes
elementos com muita clareza, seja na obra em si, seja nos efeitos produzidos na
discussão sobre acesso à justiça. Os autores nos oferecem três elementos fun-
damentais: uma conceituação historicamente orientada da idéia de acesso à justiça;
um conjunto de problemas-modelo, consubstanciados em obstáculos a este acesso;
e um conjunto de soluções desenvolvidas em diversos países, as ondas. Quanto ao
conceito, os autores nos mostram como a passagem de um modelo medieval de
organização do poder (centrado na figura do monarca, caracterizado por uma so-
ciedade dividida em três grupos – nobreza, clero e plebe – praticamente sem mo-
bilidade social, na qual a noção de privilégio antecedia a noção de direito e onde o
sistema jurídico era marcado pela desigualdade formal) para o estado moderno
consolidou a idéia de acesso à justiça como um direito básico do cidadão – o direito
a ter direitos, nas palavras dos autores; da mesma forma, a passagem do modelo
de estado liberal para um modelo de estado de bem-estar social (embora, seja muito
importante dizer, os autores estejam descrevendo um processo histórico tipi-
camente europeu, que nem sempre pode ser automaticamente “transplantado”
para um contexto brasileiro, por exemplo) deslocou o papel do estado, de passivo,
dedicado a apenas receber as demandas e reivindicações por direitos, a ativo, res-
ponsável não apenas por receber demandas e dirigir o processo judicial, mas tam-
bém a promover políticas públicas de acesso à justiça.
A segunda grande contribuição do trabalho dos autores é o estabe-
lecimento de situações-problema, ou como eles definem, obstáculos ao acesso à
justiça, os quais são definidos na referida obra na forma de três conjuntos: obs-
táculos econômicos, envolvendo custas processuais, honorários advocatícios e a
relação tempo gasto x valor da causa (ou ainda, esforços empreendidos – o que
envolve tempo e recursos – x expectativa de sucesso); as possibilidades das partes,
entendidas tanto como o capital cultural das pessoas envolvidas em uma situação
que envolva direitos e deveres que torne possível reconhecer esta relação como
uma relação de direitos e deveres – logo, exigível perante o estado, na forma do
Judiciário, quanto como os diferentes graus de relação entre as partes e o sistema
de justiça, o que pode proporcionar possibilidades de resultados bem diferentes; e
por fim, o que os autores chamam de interesses coletivos e difusos, situações onde
o direito que está sendo discutido não tem titularidade individual, ou seja, afeta a 97
grupos de indivíduos não identificados mas identificáveis (no caso de direitos
coletivos), ou mesmo indivíduos não identificados e não identificáveis (no caso
dos interesses difusos), cujos problemas relativos a representação (quem repre-
senta estes interesses?) e custos (quem “paga a conta” de interesses que, no extre-
mo, pertencem a todos nós?) se configuram como desafios ao acesso à justiça. Vá-
rios são os problemas que impedem ou dificultam o acesso à justiça que podem ser
“encaixados” em um – ou em mais de um – conjunto de obstáculos descritos acima.
Por fim, o terceiro elemento trazido pela citada obra (e que ajuda a carac-
terizá-la como um paradigma clássico) é um conjunto de soluções, de meios de en-
frentamento a estes obstáculos localizados na prática, ou seja, através da coleta
de informações sobre meios de acesso à justiça em diversas partes do globo.
Segundo os autores, essas soluções modelares podem ser caracterizadas
em forma de ondas, exatamente porque, segundo eles, essas medidas foram se
constituindo ao longo do tempo de forma sucessiva nestes países. Seriam então
três as ondas de acesso à justiça: a primeira onda seria caracterizada pela assistência
judiciária, possibilitando a entrada no sistema de justiça com o auxílio de instituições
públicas ou advogados gratuitos, o que minimizaria os efeitos das dificuldades em
se lidar com os custos que envolvem o processo; já a segunda onda poderia ser
pensada como a preocupação específica com interesses coletivos e difusos, ten-
tando-se resolver os problemas envolvendo representação e custos, além apre-
sentar um cardápio de opções que envolve direitos desta natureza (seja do ponto
de vista material, ou seja, o direito a ser protegido ou reparado em si, seja do ponto
de vista processual, ou seja, as opções de ação judicial para proteger ou reparar es-
tes direitos); e a terceira onda seria o chamado novo enfoque de acesso à justiça,
que pode ser pensada como formas de “informalização” e aproximação das insti-
tuições do sistema de justiça da população em geral, diminuindo as barreiras geo-
gráficas, culturais, etc.
Este conjunto de idéias pode ser complementada pelas reflexões de mais
dois autores, para a montagem do que se pode chamar de “quadro clássico”. O
primeiro seria ECONOMIDES, 1999; uma contribuição muito especial, já que tanto
“de fora” quanto “de dentro”: além de professor e autor no campo das discussões
sobre acesso à justiça, ele participou como pesquisador do “Projeto Florença”, ou
seja, oferece também uma perspectiva interna ao resultado do trabalho, tanto quan-
to externa. ECONOMIDES nos proporciona reflexões muito importantes, procuran-
do problematizar alguns destes elementos. Apesar de criticar a própria concepção
de “ondas” para caracterizar estes exercícios de enfrentamento dos obstáculos
de acesso à justiça (por dizer que não são sucessivos, não ocorrerem em todos os
lugares nos mesmos momentos nem a partir dos mesmos processos), ele propõe o
que pode ser uma “quarta onda”: o acesso dos operadores do direito à justiça.
Esta nova perspectiva oferecida pelo autor se articula como um deslo-
camento das preocupações tradicionais de acesso à justiça – da questão do acesso,
da entrada, para a questão da justiça, sobre o quê se acessa, se tem contato. Neste
sentido, o que ele propõe é uma reflexão não mais sobre como se propicia este
contato, mas a quê se dá acesso. Ou seja, ele oferece uma reflexão mais ampla
sobre os desafios propostos, articulando de um lado a formação do operador do
direito, e de outro, seu ingresso nas carreiras jurídicas, públicas e privadas; a te que
ponto a preocupação com o acesso à justiça é uma preocupação dos advogados,
dos graduandos, dos operadores?
Outra problematização importante trazida pelo autor é acerca da “terceira
98 onda” de acesso à justiça, o que foi chamado pelos autores de “novo enfoque”,
mas que também pode ser pensado como esforços no sentido de “informalização”
da administração da justiça. O alerta que ele faz é sobre os riscos de estarmos, nes-
tas iniciativas de auto-composição e simplificação da administração da justiça, tro-
cando acesso à justiça por acesso à paz. O problema colocado pelo autor é o de
estarmos concordando que celeridade, agilidade, velocidade, são mais importantes
que a realização da justiça em si, que a proteção a direitos, propriamente.
Por fim, importante destacar a articulação feita pelo autor sobre as três
preocupações necessárias sobre a questão do acesso à justiça: é necessário saber
sobre a demanda por acesso à justiça, que tipo de acesso o cidadão – usuário do sis-
tema – precisa; também é preciso saber qual é a oferta de acesso fornecida pelos
serviços públicos oficiais, o que o sistema de justiça pode oferecer; e por derradeiro
é fundamental saber qual é a expectativa de acesso à justiça por parte do usuário,
que experiências ele imagina ter e que resultados pretende receber. Enquanto as
questões acerca de uma “quarta onda” e preocupação com as críticas à “infor-
malização” da administração da justiça se incorporam ao quadro de problemas de
acesso à justiça, estes três elementos – demanda, oferta e expectativa – nos ajudam
a pensar em possíveis soluções.
A este conjunto de idéias que podemos chamar de “quadro clássico” da
questão do acesso à justiça, podemos somar as preocupações de SOUZA SANTOS,
2006, pois ao analisar os rumos recentes da sociologia do direito, o autor localiza a
constituição e desenvolvimento de um campo específico e emergente, que ele in-
titula de “sociologia dos tribunais”. Esta preocupação da sociologia do direito com
tipos específicos de instituição – próprias do direito – se deve a dois conjuntos de
fatores: de um lado a fatores teóricos, de outro a fatores sócio-políticos.
Quanto aos fatores teóricos, o autor destaca o desenvolvimento da antro-
pologia do direito e da “descoberta” dos tribunais pela ciência política. A antropo-
logia do direito teria contribuído de um lado pelo deslocamento do foco das análises
no campo do direito: da norma para os conflitos; de outro lado contribuiu pela lo-
calização de tipos “exóticos” (no sentido mais básico da expressão, como “estran-
geiros”) de administração de conflitos, em um duplo movimento: primeiro o de lo-
calizar meios “alternativos” (ao padrão europeu/norte-americano), em seguida de
trazer estas novas possibilidades, adaptando e recriando modelos. Já a ciência po-
lítica tem importante contribuição neste contexto por explicitar o papel político
das cortes, dos tribunais e das instituições do sistema de justiça. Ao lançar luzes
sobre as ações destes diferentes atores, a ciências política evidencia que seu papel
é muito mais do que o legalmente instituído; os tribunais não são meras instituições
jurídicas, pois a aplicação/interpretação do direito seria, neste sentido, constituída
por ações políticas. Por isso, de um lado a antropologia, de outro a ciência política,
teriam contribuído para o destaque destes elementos do campo jurídico, tradicional-
mente isolados e estudados apenas por juristas (e sob o ponto de vista estritamente
jurídico), a ponto de tornar possível se formular do ponto de vista teórico um campo
específico, essa sociologia dos tribunais.
Já do ponto de vista sócio-político, o autor destaca um deslocamento do
lugar social e político ocupado tradicionalmente por estes órgãos: de marginais às
discussões políticas para o “centro das atenções” e dos debates de grande rele-
vância política e social. SOUZA SANTOS descreve uma trajetória que se completa
com a narrativa histórica estabelecida por CAPPELLETTI e GARTH. O estado de bem-
estar social, além de estabelecer um papel mais ativo do estado no tocante ao
acesso à justiça, também propiciou um processo que pode ser chamado de “ju-
ridificação” das relações sociais (uma ótima análise deste fenômeno no caso bra- 99
sileiro é a produzida por WERNECK VIANNA, 1999 e 2002), que pode ser definida
como um aumento nas opções jurídicas, no cardápio de direitos, de situações trans-
formadas em norma jurídica – ou seja, em opções de exigibilidade junto ao estado,
mais exatamente no Judiciário. O estado de bem-estar social tinha como objetivo a
promoção plena de direitos, mas mudava-se o comportamento político sem se es-
tabelecer novos modos de produção que não o capitalismo; assim, a conseqüência
deste processo foi um esgotamento das próprias opções do estado de bem-estar;
ele não se mostrou capaz, do ponto de vista econômico, de prover os direitos que
declarava, que normatizava, as relações que “juridificava”; sendo assim, este pro-
cesso de “juridificação” teria originado um processo de “judicialização” da política
e das relações sociais: de um lado, inflação normativa, mais e mais normas se dedi-
cando a proteger e fornecer possibilidades ao cidadão – inclusive de exigibilidade
destes direitos; de outro um estado incapaz (pois economicamente incapaz) de
promover o que declarava obrigação fazer.
O resultado desta equação é uma procura cada vez maior pelos tribunais
para exigir aqueles direitos, seja do ponto de vista das relações privadas, seja do
ponto de vista da realização dos direitos sociais. A judicialização do direito à saúde
é um exemplo muito claro deste processo de deslocamento das discussões políticas
das suas arenas “tradicionais” para o Judiciário. O Judiciário passa de marginal, de
“boca da lei”, ao centro do debate político.
Além disso, o autor também tece críticas à terceira “onda”, o “novo enfo-
que de acesso à justiça”. Mas de forma um pouco diferente do alerta desenvolvido
por ECONOMIDES, SOUZA SANTOS destaca que essa “informalização” pode sig-
nificar democratização da administração da justiça, mas apenas quando é possível
lidar com relações de poder minimamente equilibradas. Quando estes meios são
aplicados em relações de poder desequilibradas, podem representar apro-
fundamento das desigualdades. O autor reconhece, portanto, um potencial im-
portante nestes meios, mas seu alerta é de grande importância: além de podermos
estar trocando justiça por paz, mérito por celeridade, também podemos estar
contribuindo para agravar os problemas que se pretende resolver.
Com essas três reflexões, temos um quadro teórico bem completo sobre
o acesso à justiça. Este quadro nos fornece conceitos (acesso à justiça como direito
a ter direitos, como mais básico dos direitos humanos; juridificação e judicialização
da política e das relações sociais; sociologia dos tribunais; etc.) para entender as
questões envolvendo nosso objeto; também temos um quadro de problemas bem
variado (obstáculos econômicos; possibilidades das partes; interesses coletivos e
difusos; riscos da “informalização”; diferença entre acesso à justiça e acesso à paz;
deslocamento do lugar do Judiciário, de instância jurídica “neutra” para arena po-
lítica; etc.); e por fim, temos possibilidades de soluções neste campo (assistência
judiciária;; articulação entre oferta, demanda e expectativa; “informalização” como
forma de democratização da justiça; etc.).
Não há dúvida da contribuição da obra de CAPPELLETTI e GARTH, 2002,
para a questão do acesso à justiça: até hoje nenhuma investigação conseguiu o
mesmo alcance, a mesma envergadura da desenvolvida por eles, mas essa coletânea
de problemas e soluções relacionadas ao acesso à justiça foi realizada no início dos
anos 70; o relatório final do “Projeto Florença” foi publicado em 1973; a obra ori-
ginal, em 1978; a primeira edição brasileira saiu em 1988. Mesmo os trabalhos de
ECONOMIDES, 1999, e SOUZA SANTOS, 2006, estão localizados nos anos 90 – e
ainda assim compartilham uma visão retrospectiva. Assim, se de um lado estas obras
100 nos trazem referências muito importantes para a compreensão dos problemas e a
produção de soluções, de outro lado carecem de uma atualização.
Esta atualização poderia ser feita de várias maneiras, e vale dizer, é pro-
duzida hoje por diversas delas. Do ponto de vista doutrinário, temos no Brasil uma
preocupação intensa com as reformas processuais ora em curso. Do ponto de vista
teórico, cada vez mais são pensados novos problemas acerca deste objeto, pro-
blemas que remodelam e são remodelados pelas mais atuais discussões no campo
da Teoria do Direito. Mas o caminho que se escolheu aqui é um caminho nem sempre
traçado; a pesquisa jurídica no Brasil está marcada por uma preponderância da
pesquisa bibliográfica (especialmente doutrinária), que privilegia as idéias acerca
do objeto de estudo (como traço marcante da dogmática jurídica, a norma), em de-
trimento da pesquisa empírica, que por sua vez privilegia os dados, as informações,
as evidências acerca de um objeto. Entendendo a pesquisa empírica como aquela
baseada em “evidências coletadas sobre o mundo através de observações e ex-
periências sistemáticas”, conforme RIBEIRO, 2010, imaginamos que neste caso o
segundo caminho pode trazer um panorama mais completo, mais inovador. Mesmo
sabendo das críticas possíveis a ma investigação empírica (como nas trabalhadas
em BACHELARD, 1968), uma abordagem que sistematize os esforços destes atores
do sistema de justiça para localizar e resolver problemas pode ser muito útil para
atualizar as formulações teóricas neste sentido.
Desta forma, o presente trabalho destina-se a preparar caminho para um
esforço maior, o de coletar informações sobre novas políticas judiciárias (aqui en-
tendidas não apenas como aquelas desenvolvidas por atores do Poder Judiciário,
mas também do sistema de justiça de forma mais ampla), que nos permitam iden-
tificar quais são os problemas identificados por estes personagens, se eles se co-
municam com o quadro teórico clássico ou se estes são novos problemas, novos
desafios a serem enfrentados. Da mesma maneira, também se buscará identificar
como estes problemas têm sido enfrentados pelas diferentes iniciativas desenvol-
vidas no seio do sistema de justiça no Brasil, verificando a presença e o grau de co-
municação ou de inovação em relação ao quadro montado pelas “ondas” de acesso
à justiça, desenvolvidas pelos citados autores. O que se pretende é saber se é pos-
sível, através da observação destas políticas e projetos que visam promover o acesso
à justiça, atualizar este quadro teórico para melhor orientar novas ações.
Por onde começar? Qualquer resposta a esta pergunta teria alguma dose
de arbitrariedade; um campo tão complexo merece atenções variadas. No próximo
item procuraremos estabelecer dois “pontos de entrada” no sistema de justiça
que, espera-se, nos ajude a localizar estes indicadores que buscamos.
_____________________________________________________________________________
2
Interessante notar que, mesmo após o advento da EC 45/2004, o site institucional brasileiro por excelência
(www.brasil.gov.br), que descreve a estrutura do Poder Judiciário, não se atualizou com as modificações
da Reforma ocorrida: “A função do Poder Judiciário é garantir os direitos individuais, coletivos e sociais e
resolver conflitos entre cidadãos, entidades e estado. Para isso, tem independência e autonomia
administrativa e financeira garantidas pela Constituição Federal. São órgãos do Poder Judiciário o Supremo
Tribunal Federal ( STF) , Superior Tribunal de Justiça (STJ) , Tribunais Regionais Federais(TRF), Tribunais e
Juízes do Trabalho, Tribunais e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e Juízes dos
estados e do Distrito Federal e Territórios. O STF e STJ têm jurisdição sobre a Justiça comum federal e
estadual. Em primeira instância, as causas são analisadas por juízes federais ou estaduais. Recursos de
apelação são enviados aos Tribunais Regionais Federais, aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais de Segunda
Instância, os dois últimos órgãos da Justiça Estadual. Quando se trata de matéria constitucional, cabe ao
Supremo Tribunal Federal analisar recursos de decisões proferidas por Tribunais Regionais Federais,
Tribunais de Justiça e Tribunais de Segunda Instância. No caso de matéria infraconstitucional, o recurso é
encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça. Há, ainda, a Justiça Militar, a Eleitoral e a Trabalhista, que
são especializadas.Das decisões dos Tribunais de última instância, Militar, Eleitoral e do Trabalho, cabe
recurso, em matéria constitucional, para o Supremo Tribunal Federal. A função do Superior Tribunal de
Justiça é zelar pela autoridade e uniformidade da interpretação da legislação federal. Cabe também a ele
julgar causas criminais de relevância, governadores de estados, Desembargadores e Juízes de Tribunais
Regionais Federais, Eleitorais e Trabalhistas e outras autoridades..” (grifo nosso) (BRASIL 2010).
Figura 1: Representação do Poder Judiciário brasileiro Pré-Emenda 45/2004.
_____________________________________________________________________________
3
Cumpre ressaltar a existência, há cerca de 50 anos, da Escola Nacional da Magistratura (ENM), que
consiste em órgão vinculado à Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), desempenhando o papel de
orientação da atuação das demais Escolas da Magistratura do País. Com o advento da EC 45/2004 criaram-
se dois novos órgãos vinculados a Tribunais Superiores do Poder Judiciário brasileiro, mantendo-se,
contudo, a ENM.
4
Criada pela Resolução n. 3 do STJ, em 30 de novembro de 2006, tendo como principais competências:
“As principais competências da Enfam são: - Def inir as diretrizes básicas para a formação e o
aperfeiçoamento de magistrados; - Fomentar pesquisas, estudos e debates sobre temas relevantes para
o aprimoramento dos serviços judiciários e da prestação jurisdicional; [...] - Formular sugestões para
aperfeiçoar o ordenamento jurídico; - Definir as diretrizes básicas e os requisitos mínimos para a realização
dos concursos públicos de ingresso na magistratura estadual e federal, inclusive regulamentar a realização
de exames psicotécnicos; [...]” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA).
5
Criada pela Resolução n. 1140 do TST, em 1 de junho de 2006, tendo por principais competências:
“A Enamat tem como objetivo promover a seleção, a formação e o aperfeiçoamento dos magistrados do
trabalho, que necessitam de qualificação profissional específica e atualização contínua, dada a relevância
da função estatal que exercem. Para tanto, a Escola promove as seguintes atividades básicas: 1) Cursos de
formação inicial presencial, em sua sede em Brasília, dirigidos aos juízes do trabalho substitutos recém-
empossados; 2) Cursos de formação continuada, sob a forma de seminários e colóquios jurídicos,
presenciais ou a distância, dirigidos a todos os magistrados trabalhistas em exercício, de qualquer grau de
jurisdição; 3) Cursos de formação de formadores, dirigidos a juízes-formadores das escolas regionais de
magistratura, para a qualificação de instrutores no âmbito regional;
Figura 2: Novo desenho institucional Pós-2004.
105
_____________________________________________________________________________
9
Disponível em: www.premioinnovare.com.br, acesso realizado em 17 de outubro de 2011.
10
Realizada com a então gerente executiva do Prêmio; os dados quantitativos e qualitativos referentes
ao Prêmio Innovare foram coletados por ocasião da dissertação de mestrado de um dos autores do
presente artigo, Rodolfo Noronha, intitulada “Nos corredores do Tribunal: um estudo sobre novas
arquiteturas judiciais”, defendida junto ao PPGSD – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito
da UFF – Universidade Federal Fluminense em 2009.
11
No dia 11 de agosto de 2009, foi realizada entrevista com Raquel Khichfy, gestora executiva do projeto,
para produção da referida dissertação de mestrado. Muitas das informações sobre a história do Prêmio e
do Instituto foram obtidas nesta conversa.
Quadro 3: Trajetória e composição da Comissão Julgadora e do Comitê Executivo do Prêmio Innovare.
109
Gráfico 1.
dado o seu alcance12. É muito difícil imaginar uma obra, uma pesquisa ou mesmo
um curso que ao menos não passe pelas questões colocadas por estes autores.
Mas o problema de pesquisa aqui assinalado é exatamente a necessidade de se sa-
ber se este quadro ainda é representativo, se ele ainda oferece problemas modu-
lares e soluções – de certa maneira, se ainda é clássico.
Este é um caminho que pode ser trilhado de duas maneiras, como exposto
mais acima; aqui, escolheu-se o caminho da verificação empírica. Para isso foram
localizados dois pontos de entrada: uma estratégia de “cúpula”, observando as
iniciativas produzidas e estimuladas no âmbito de uma das principais inovações
_____________________________________________________________________________
12
Como diz CALVINO, 1993.
trazidas pela Emenda 45/2004, o CNJ; e uma estratégia de “base”, representada
pela análise de políticas criadas a partir “de baixo” do sistema de justiça. Essas
duas dimensões de dados podem ser acessadas pelo sítio eletrônico de cada insti-
tuição (www.cnj.jus.br e www.premioinnovare.com.br), mas ainda assim, o universo
de dados ali presente ainda é muito vasto. É necessário organizar critérios de coleta
e sistematização destes dados.
Embora este objeto – as políticas judiciais – e este método – o estudo des-
sas novas arquiteturas judiciais – sejam bem diferentes das investigações atuais so-
bre o sistema de justiça, já se possui uma noção bem apurada do método a ser utili-
zado. Na pesquisa sobre as candidaturas para o Prêmio Innovare, também era ne-
cessário decodificar um cenário repleto de significações. Para isso, foram desen-
volvidos eixos de análise que se mostraram bem úteis ao longo do processo de co-
leta e sistematização de dados. Para analisar as práticas finalistas, premiadas e men-
ções honrosas (onde se chegou a um universo mais limitado de 75 práticas), foram
estruturadas categorias na forma de conjuntos de indicadores. Foram 4 eixos: au-
toria, problema, objetivos e meios. No eixo autoria, foram sistematizadas infor-
mações sobre o proponente da prática – juiz, desembargador, tribunal, advogado,
etc. Informações como órgão ao qual pertence, estado e ano de início da prática
ajudaram a conhecer melhor os personagens. Já no eixo problema, foram siste-
matizadas as formas de análise na qual a política atuava (como chegou ao proble-
ma), bem como se verificou a relação com outras instituições (especialmente de
fora do sistema de justiça, como centros de pesquisa e universidades) neste proces-
so e a presença de dados quantitativos nesta análise. Por fim, neste eixo, se procu-
rou identificar afinal qual era o problema, a situação que se desejava transformar,
alterar. No terceiro eixo, objetivos, foram localizadas as intenções dessas práticas,
110 o que elas procuravam desenvolver. Por fim, no eixo meios, foram identificadas as
formas pela qual a política procurava enfrentar o problema.
Uma versão adaptada deste modelo de análise está sendo produzida para
realizar a presente pesquisa, procurando identificar alguns destes traços – proble-
mas localizados e soluções propostas – nas políticas desenvolvidas pelo CNJ e nas
práticas realizadas cotidianamente pelos atores do sistema de justiça. Espera-se
assim poder contribuir tanto com uma descrição mais precisa do momento pelo
qual a discussão – do ponto de vista prático – sobre o acesso à justiça está passando,
quanto para a atualização das teorias sobre este fenômeno, tão importante para o
aprofundamento democrático e da realização de justiça em nosso país.
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Um Voto de (des)Confiança:
Breves Considerações Acerca da
Atuação do Supremo Tribunal
Federal como Órgão Garantidor
do Princípio Democrático*
Flávia Martins de Carvalho**
Andressa Storck
Antonio Pedro Braga
Bryan Lins
Cláudia Aguiar
Joyce Nogueira Schmitt
Eliton da Silva Fortes
Raíssa Monteiro Torres Barboza
Guilherme Ribeiro Machado***
RESUMO
O presente trabalho reúne conclusões preliminares sobre a atuação
do Supremo Tribunal Federal como órgão garantidor da democracia.
O estudo consiste em analisar a decisão liminar proferida na Ação
113
Direta de Inconstitucionalidade n. 4307, que ataca a Emenda Constitu-
cional n. 58/09 (PEC dos Vereadores), e sua repercussão para o resul-
tado do processo eleitoral brasileiro. O método dialético foi utilizado
na comparação entre os argumentos apresentados nas decisões judi-
ciais e os paradigmas procedimental e substantivista de controle de
constitucionalidade.
PALAVRAS-CHAVE
Supremo Tribunal Federal – Segurança Jurídica – Processo Eleitoral.
ABSTRACT
The present work gathers preliminary conclusions over the Federal
Supreme Court as a democracy guard organ. The study consists in
analyzing the liminary decision pronounced in the Direct Action of
Unconstitutionality n. 4307, which attacks the Constitutional
Amendment n. 58/09 (PEC of the councilmen), and its repercussion on
the brazilian electoral process result. The dialectic method was used
on the comparison between the argumentation presented in the
judicial decisions and the paradigm of procedural and substantivist
control of constitutionality.
KEYWORDS
Brazilian Supreme Court – Juridical Security – Electoral Process.
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
1
Referência ao texto “Ulisses, as Sereias e o Poder Constituinte Derivado”, de Luis Virgílio Afonso da Sil-
va, em que o autor critica a teoria da dupla revisão, defendida, dentre outros, por Manoel Gonçalves Fer-
reira Filho, segundo a qual seria possível a modificação das cláusulas pétreas, através de dupla modificação
constitucional. Em síntese, na primeira revisão, a cláusula protegida deixaria de figurar no rol das cláusulas
pétreas para, em seguida, através de nova revisão, permitir a alteração de acordo com a vontade do cons-
tituinte derivado. Cf. SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Ulisses, as Sereias e o Poder Constituinte Derivado. Dis-
ponível em: <http://teoriaedireitopublico.com.br/pdf/2001-RDA226-Ulisses_e_as_sereias.pdf>. Acesso em:
26 mar 2010.
2
O apoio popular ao projeto que se converteu na Lei da Ficha Limpa, não se discutindo aqui sua cons-
titucionalidade, pode ser interpretado como evidente demonstração do quanto a sociedade brasileira an-
seia por mecanismos institucionais que assegurem um processo eleitoral mais ético e transparente.
3
Cf. VIEIRA, José Ribas; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; GARRIDO, Alexandre. Anais do I Fórum de
Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito. Disponível em: <http://pesquisaconstitu
cional.wordpress.com/apresentacoes>. Acesso em: 30 jul 2011.
4
O exemplo mais recente diz respeito à chamada Lei da Ficha Limpa (RE 633.703. Rel. Min. Gilmar Mendes).
Figura 1. Fonte: Site do TSE (www.tse.gov.br)
cálculo de vereadores por município sofreu alteração e, em decorrência, o Estado
brasileiro passou a contar com aproximadamente sete mil novas vagas para o cargo
de vereador. O cerne da questão, porém, não está no aumento do número de cargos 115
eletivos na esfera municipal, mas sim na retroatividade da Emenda, cujos efeitos,
de acordo com seu texto, alcançariam as eleições pretéritas, realizadas em 2008,
portanto, antes da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC)6.
Embora ainda pendente de decisão definitiva, é possível a análise do caso
a partir da decisão liminar, proferida monocraticamente pela Ministra Carmen Lúcia
e referendada pelo Pleno do Supremo, conforme determina o Regimento Interno.
A seguir, apresentamos os principais aspectos abordados na decisão:
_____________________________________________________________________________
8
Cf. Transcrição do voto da ministra Carmen Lúcia. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar
em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4307. Min. Rel. Carmen Lúcia. Disponível em: <http://redir.stf.j
us.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608994>. Acesso em: 11 de jan. 2011.
9
Idem.
c) Do Princípio da Segurança Jurídica
A interpretação gramatical é utilizada no voto para ressaltar a improprie-
dade da Emenda, que não obstante fazer uso do termo “a partir de” – que em bom
português representaria um marco temporal futuro –, utiliza a terminologia para
dizer de uma data passada, qual seja, o ano de 2008, quando ocorreram as eleições
municipais. O descuido gramatical é motivo de consideração bem humorada, para
não dizer irônica, por parte da relatora, que assevera terem sido descumpridos
“não apenas princípios e regras constitucionais [...], senão também as regras da
boa linguagem”10. Porém, é a interpretação principiológica que predomina na de-
cisão.
Embora cite diversos princípios, o ponto fulcral da controvérsia reside na
ofensa ao Princípio da Segurança Jurídica. Tal como o conceito de democracia, é
possível encontrar definições variadas para o referido princípio. Para um estudo
mais detalhado, remetemos o leitor ao artigo do professor Almiro do Couto e Silva,
intitulado O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público
Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Adminis-
trativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União
(Lei n. 9.784/99)11.
Em seu voto, com tom de certa indignação, a ministra expressa em termos
inteligíveis a qualquer leigo, em que consiste o Princípio da Segurança Jurídica, ata-
cado frontalmente pela Emenda Constitucional:
_____________________________________________________________________________
10
Ibdem.
11
COUTO E SILVA, Almiro. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público
Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos Administrativos: o prazo
decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei n. 9.784/99). Revista Eletrônica de
Direito de Estado. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 2, abril/maio/junho, 2005. Disponível
em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 2 fev 2011.
nada pelo movimento neoconstitucional12. Com isso, ampliaram-se as possibilidades
interpretativas da norma constitucional e foram retomadas com maior vigor as dis-
cussões, inauguradas em 1803, com o Caso Marshall x Madison, quanto aos limites
da jurisdição constitucional. Nesse sentido, duas teorias discutem os limites do con-
trole de constitucionalidade empreendido pelas cortes constitucionais, quais sejam:
a teoria substantivista e a teoria procedimental.
Os mecanismos estabelecidos no modelo brasileiro de controle de constitu-
cionalidade fortalecem o papel do Supremo Tribunal Federal, cujo entendimento é
de que respeitar a ordem constitucional não se limita a manter a integridade do
texto inscrito na Carta Maior, mas também em dar-lhe a efetividade necessária para
a garantia dos direitos nela insculpidos. E na hipótese de violação ao mandamento
constitucional, no dizer do ministro Celso de Mello, “[é] competência do Poder Ju-
diciário, vale dizer, dever que lhe cumpre honrar, julgar as causas que lhe sejam sub-
metidas, determinando as providências necessárias à efetividade dos direitos inscritos
na Constituição”13 (grifo nosso). As palavras do ministro evidenciam uma proxi-
midade com a tese do controle de constitucionalidade substantivista, que vem sen-
do adotado pelo Supremo Tribunal Federal.
O controle de constitucionalidade substantivista, endossado pela Teoria
da Justiça, de Rawls, preconiza que garantir a democracia através de decisões ju-
diciais não se resume a garantir procedimentos democráticos (como defendem os
procedimentalistas). Com base em princípios de justiça, o controle de constitucio-
nalidade deve assegurar a defesa material (e não apenas procedimental) de direitos,
notadamente de direitos fundamentais. No sentido oposto está a tese proce-
dimental que, com Habermas, defende que o controle de constitucionalidade deve
assegurar “condições procedimentais” para o exercício da democracia, sem aden-
118 trar aspectos materiais. Sebastian Linares sofistica o debate apresentando os se-
guintes modelos: i) procedimentalismo radical; ii) substantivismo radical; iii) subs-
tantivismo fraco; e iv) procedimentalismo fraco.
Segundo Linares, o procedimentalismo radical apregoa que os desacordos
substantivos são tão amplos, tão profundos e tão persistentes, que apenas através
de procedimentos é possível justificar uma teoria da legitimidade. Por outro lado,
o substantivismo radical entende que a única maneira de garantir a legitimidade de
uma decisão é através de uma correção substantiva, sendo indiferentes à questão
do procedimento. Neste caso, não é importante quem toma a decisão e como toma;
o único aspecto relevante capaz de garantir a legitimidade da decisão é que cumpra
com determinados critérios de justiça. Linares entende que, nem o procedi-
mentalismo radical nem o substantivismo radical se sustentam como critérios de
legitimidade política. Ou radicalizam suas posturas e renunciam a construir um cri-
tério de legitimidade política plausível, ou admitem o valor irrenunciável das con-
siderações procedimentais e substantivistas, o que os faria convergir para uma po-
sição mista.
_____________________________________________________________________________
12
Sobre Neocontitucionalismo, Cf. CARBONELL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial
Trotta, 2003; BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo
tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (REFE), Salvador,
Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, março/abril/maio, 2007; MAIA, Antônio Cavalcanti. As trans-
formações dos sistemas jurídicos contemporâneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo. Dis-
ponível em: http://www.mundojuridico.adv.br; MOREIRA, Eduardo. Neoconstitucionalismo – a invasão da
Constituição. São Paulo: Método, 2008. OLIVEIRA, Maria Lucia de Paula; QUARESMA, Regina; OLIVEIRA,
Farlei Martins Riccio de. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
13
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 583.264. Agravante: Ministério Público do
Estado de Santa Catarina. Agravado: Município de Florianópolis. Relator: Ministro Celso de Mello. Publicado
em 12 de abril de 2010.
Na concepção de Linares, uma proposta mista é a única capaz de abordar
com inteligência os casos de desacordo e as circunstâncias da política. Nesse sen-
tido, as teorias fracas procedimental e substantivista estariam mais adequadas a
uma realidade plural. No substantivismo fraco, há uma primazia da dimensão
substantiva, aceitando-se os valores irrenunciáveis do procedimento democrático.
Já no procedimentalismo fraco, predomina o procedimento democrático, embora
se reconheça a importância das questões substantivas. Autores como Dworkin e
Alexy filiam-se ao substantivismo fraco – que parece ter mais adeptos na atualidade
– reconhecendo que os direitos fundamentais devem efetivamente limitar o
procedimento democrático.
No Brasil, Lênio Streck e Paulo Bonavides, dentre outros, alinham-se à tese
substantivista que, em geral, será adotada por aqueles que defendem o ativismo
judicial como forma de garantir a efetividade da Constituição, embora esta não
seja o caso de Streck14. Na linha do que propõe Linares, embora não referencie
este autor, Cláudio Pereira de Souza Neto apresenta o “modelo cooperativo de de-
mocracia deliberativa”, que reúne elementos da perspectiva habermasiana – con-
dições procedimentais de democracia – e da Teoria da Justiça, de Raws.
3. Conclusão
Preliminarmente, o estudo desenvolvido demonstra que, no caso em tela,
houve predomínio da teoria mista, suscitada por Linares, uma vez que, a partir de
argumentos principiológicos foi possível garantir a manutenção do princípio
_____________________________________________________________________________
14
Cf. STRECK, Lênio Luis. Verdade e consenso. 3a. edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Deliberação Pública, Constitucionalismo e Cooperação Democrática.
15
p. 86. In: SARMENTO, Daniel (coord). Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009.
democrático, conforme evidenciado no trecho a seguir, extraído do voto da ministra
relatora:
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titucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
______. Limites do Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009.
120 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: pro-
mulgada em 5 de outubro de 1998: atualizada até a Emenda Constitucional n. 67,
de 23 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 583.264. Agravante:
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Aproximações e Estranhamentos entre
as Teorias Constitucionais
Contemporâneas Brasileira e
Norte-americana: um Debate Crítico
Acerca do Papel Institucional
do Supremo Tribunal Federal
Deo Campos Dutra
Letícia Garcia Ribeiro Dyniewicz
Odair José Barbosa Freitas
Rogério Pacheco Alves
Sílvia Maria da Silveira Loureiro
Taiguara Líbano Soares e Souza [*]
RESUMO
O presente artigo pretende esboçar reflexões no âmbito da Teoria Cons-
titucional Contemporânea, observando possíveis aproximações e dis-
tanciamentos entre as realidades brasileira e norte-americana. Tal
empreitada objetiva analisar o papel institucional do Supremo Tri- 123
bunal Federal, a partir do marco teórico dos Diálogos Institucionais
– campo doutrinário que enseja inovadores estudos sobre a Corte
Suprema dos EUA. Destarte, problemas constitucionais brasileiros
serão abordados à luz de intensos debates travados na academia es-
tadunidense e que passam a ser citados em algumas decisões do STF.
Será analisada a pertinência da controvérsia entre as correntes majo-
ritária e contra-majoritária acerca do papel do Poder Judiciário, atra-
vés do emblemático julgamento do caso Ficha Limpa. A polêmica
entre as perspectivas originalistas e não-originalistas acerca do texto
constitucional também será visitada. Nesta esteira, busca-se empre-
ender novos olhares sobre a teoria constitucional a fim de compreender
de maneira crítica a atual dinâmica na qual se insere o STF.
PALAVRAS-CHAVES
Teoria Constitucional – Suprema Corte – Controle de Constituciona-
lidade – Direito Constitucional – Majoritarismo – Originalismo.
ABSTRACT
This article seeks to establish reflections in the Contemporary Consti-
tutional Theory, looking at possible similarities and differences between
the realities of Brazil and the U.S. This task objectifies to analyze
the institutional role of the STF, from the theoretical framework of
institutional dialogues – doctrine that perfoms innovative studies on
_____________________________________________________________________________
[*] Doutorandos em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio).
the U.S. Supreme Court. Thus, brazilian constitutional issues will be
analyzed from the perspective of debates observed in the American
academy that become cited in some decisions of the STF. The relevance
of the current dispute between the majoritarian and counter-majoritarian
about the role of the judiciary will be analyzed, through the symbolic
judgment of the case “Ficha Limpa”. The controversy between the
perspective originalist and non-originalist on the constitutional text
will also be visited. In this sense, it seeks to take new perspectives on
the constitutional theory in order to critically understand the current
dynamics in which STF can be studied.
KEYWORDS
Constitutional Theory – Supreme Court – Judicial Review –Constitu-
tional Law – Majoritarism – Originalism.
124
INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto das reflexões suscitadas a partir do programa
elaborado pelo Professor Doutor José Ribas Vieira, para a disciplina Teoria Consti-
tucional Contemporânea, oferecida no Curso de Doutorado em Teoria do Estado e
Direito Constitucional do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2011.
O referencial bibliográfico proposto na disciplina estava centrado no estu-
do do pensamento constitucional norte-americano contemporâneo, objetivando
com este estudo, sobretudo no que se refere ao seu instrumental metodológico,
contribuir com a compreensão da presente realidade político-institucional brasileira.
Para tanto, houve um direcionamento deliberado em torno do denominado “institu-
cionalismo” com suas bases na Ciência Política. Sob esta perspectiva institucional,
as primeiras duas partes do programa buscaram o estudo do papel da Corte Su-
prema americana e o significado da constituição. Na parte final, afastando-se desse
debate de aplicação metodológica, foi dado ênfase ao exame da crise do estado
americano com o fortalecimento do Poder Executivo.
Os debates semeados pelo Professor José Ribas Vieira, que cultivou em
ambiente de plena liberdade e estímulo a pesquisa acadêmica, frutificam, hoje,
neste artigo coletivo, que busca com fundamento em vasto referencial teórico,
abarcando tanto obras clássicas como estudos recém-publicados, traçar as apro-
ximações e os estranhamentos entre as teorias constitucionais brasileira e norte-
americana nesta primeira década do século XXI.
Em vias de consolidação de seu regime democrático, o Estado brasileiro
parece buscar também o amadurecimento de suas instituições, fragilizadas e de-
sacreditadas depois de décadas de experiências de regimes autoritários. Dentre
estas instituições, o Poder Judiciário e, particularmente, o Supremo Tribunal Federal 125
se destacam por ser, ao contrário dos demais Poderes constituídos, aquele que,
frequentemente, é colocado em suspeita por não receber diretamente a sua legi-
timação democrática por intermédio do voto popular.
Por conseguinte, o presente artigo, em suas três seções, examina os principais
temas dos debates que permeiam a teoria constitucional norte-americana atual e, na
medida em que se utiliza o método comparativo, busca-se traçar as possíveis semelhanças
e diferenças com a realidade brasileira, para, ao final, concluir-se pela adequação, ou
não, desses debates e teorias no campo do renascente direito constitucional pátrio.
Com esse viés teórico e metodológico, este texto inicia com a busca de
parâmetros para o desenho institucional do Supremo Tribunal Federal bem como
seu papel político e em seguida, na seção subseqüente, centra sua análise no con-
fronto entre as teorias que defendem um papel majoritário, ou ao revés, contra-
majoritário para a Suprema Corte, finalizando-se o artigo com outro debate cons-
tante e atual acerca do embate entre originalistas e não originalistas, em face do
texto da vetusta, e ao mesmo tempo jovial, Constituição norte-americana.
_____________________________________________________________________________
5
Entrevista publicada na edição de 23 de agosto de 2011.
6
Limites do Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-8.
7
DAHL, Robert A. Decision-Making in a democracy: the Supreme Court as a national policy Maker in mimeo
Role of the Supreme Court Symposium n. 1
8
PILDES, Richard H. “Is the Supreme Court A “Majoritarian” institution? http://ssm.com/abstract=1733169.
Será publicada em maio de 2011 pela Supreme Court Law Review.
cia de Dahl em “desromantizar” o Judiciário e, para além, de que em vários
momentos o Parlamento deliberadamente entrega ao Judiciário a solução de algu-
mas questões polêmicas, que são sempre questões políticas, sobretudo, em mo-
mentos de grandes polarizações, como se dá hoje nos Estados Unidos.
A dimensão política da atuação da Suprema Corte também está presente
nas reflexões de Cristopher Eisgruber9, que defende o judicial review em razão do
desinteresse do Judiciário na tomada de decisões difíceis, desinteresse que decor-
reria da estabilidade dos juízes e de sua maior “responsabilidade moral”. No ponto
que nos interessa, merece destaque a dimensão que Eisgruber dá ao Judiciário, a
quem confere o papel de construção do “melhor julgamento para o povo ame-
ricano”, o que não deixa de ser a defesa de um papel majoritário e político da Corte,
muito embora num sentido diferente do defendido por Dahl. O Judiciário, e não
apenas o Legislativo e o Executivo, representa “a vontade do povo”, o que confere
significativa ampliação ao conceito de democracia.
Também em Balkin10, que defende um constitucionalismo democrático,
há uma dimensão política no papel de aplicação da Constituição pela Corte, sobre-
tudo por intermédio da forte influência que os movimentos sociais exercem sobre
os justices na interpretação do texto constitucional. A dimensão política da aplicação
da Constituição vai além do judicial review para reconhecer a relevância de outros
atores constitucionais (movimentos sociais, partidos políticos, cidadãos etc), o que
insere todo o debate constitucional na arena política.
A dimensão política, e não meramente técnica, do papel da Corte aparece
também, de forma bastante enfática e crítica, em Chemerinsky11, que a partir da
análise de julgamentos na área criminal aponta a ocorrência de um “assalto” à Cons-
tituição representado pela composição conservadora da Corte a partir do final da
128 década de 60 como forma de ultrapassar os avanços da “Corte Warren”. Tal pro-
cesso inicia-se durante o Governo Nixon e se estende aos mandatos de Reagan e
da família Bush. Para o autor, tal composição conservadora representa uma estra-
tégia política deliberada de utilização do direito penal como diretriz do Executivo.
Mais amplamente, o assalto conservador resulta do esforço deliberado em alterar
os princípios fundacionais da Constituição, o que afeta a vida de toda a sociedade
americana.
Enfim, a leitura da doutrina constitucional norteamericana abre uma imen-
sa possibilidade de interpretações, dentre as quais, segundo nos parece, ganha
destaque a que revela a face política da atuação da Suprema Corte e a inegável di-
mensão política dos debates constitucionais, sejam travados no âmbito do Legis-
lativo e do Executivo, sejam no âmbito do Poder Judiciário ou mesmo no interior
dos movimentos sociais.
_____________________________________________________________________________
9
EISGRUBER, Christopher L. Constitutional Self-Government. Cambridge. Harvard University Press. 2001.
p. 10-78
10
BALKIN, Jack M & Siegel, Reva (organizadores) The Constitution in 2010.New York. Oxford University
Press 2009 p. 11-44.
11
CHEMENRINSKY, Erwin. The Conservative assault on the Constituion. New York. Simon & Shuster. 2010.
capitulo 2.
tendimento de sua incompatibilidade material com a garantia constitucional da
anterioridade em matéria eleitoral, contida no artigo 16 da Constituição Federal de
1.988.
Dentre os vários aspectos que a análise deste julgamento poderia ensejar,
destaca-se para o escopo do presente trabalho, a discussão que começou a ser tra-
vada com mais intensidade, transbordando os limites do plenário da Corte Suprema
brasileira e alcançando a imprensa e a opinião pública, sobre o suposto papel
majoritário ou contra-majoritário do Supremo Tribunal Federal, tendo como ponto
de partida o posicionamento do Relator do citado Recurso Extraordinário, Ministro
Gilmar Mendes, que defendeu, expressamente, no final de seu voto, o papel contra-
majoritário da Jurisdição Constitucional.
Em que pese, segundo o Ministro Relator, a manifestação da opinião
pública desfavorável à declaração de inconstitucionalidade da lei complementar n.
135 e, apesar de mais de um milhão e seiscentas mil assinaturas apostas ao projeto
de lei que desencadeou a sua propositura perante a Câmara dos Deputados, o
Tribunal deve decidir a favor da Constituição.
Quando ainda mal se acomodou a opinião pública brasileira com o
resultado desse julgamento, a Corte volta a enfrentar a referida lei de iniciativa
popular e, desta vez, no campo do controle abstrato de constitucionalidade pela
via das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 29 e 30 e da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4.578, nas quais se coloca em discussão em face da lei as
garantias da irretroatividade e presunção de inocência bem como de sua
aplicabilidade nas eleições municipais de 2.012.
Assim, ao ensejo deste confronto entre o Supremo Tribunal Federal e a
opinião pública, em mais um desafio constitucional da Lei da Ficha Limpa, a presente
seção deste trabalho se propõe a oferecer parâmetros acadêmicos, a partir do 129
estudo da teoria constitucional norte-americana, para a compreensão do debate
que aparentemente se estabelece entre majoritaristas e contra-majoritaristas,
buscando-se, ao final, questionar se e em que medida tais parâmetros são aplicáveis
à realidade constitucional brasileira.
Para tanto, inicialmente, centra-se a presente análise, do lado dos
majoritaristas, no texto referencial de Robert A. Dahl, intitulado Decision-Making in
a Democracy: the Supreme Cout as a national policy-maker de 1957 que, no campo
da ciência política, faz um estudo crítico e empírico das decisões da Suprema Corte
norte-americana até a primeira metade do século XX, para sustentar que este Tribu-
nal é um órgão político e, como parte da coalizão de Poderes, ao lado do Legislativo
e do Executivo, participa do processo de tomada de decisões políticas em con-
trovérsias constitucionais submetidas ao judicial review.
Por outro lado, tem-se como contra-majoritarista a obra sempre citada
de Alexander M. Bickel, The Least Dangerous Branch:the Supreme Cout at de bar of
politics, de 1962, que analisa a questão moral obsessivamente perseguida pelos
constitucionalistas norte-americanos em prol da legitimação do judicial review:
como uma minoria de nove juízes não eleitos pelos meios democráticos pode definir
a interpretação ou a aplicação da Lei Fundamental?
Avançando-se, cronologicamente, para outras abordagens contempo-
râneas do tema, tem-se na pesquisa de Richard H. Pildes,12 intitulada Is the Supreme
Court a MajoritarianInstitution?, publicada em 2011, uma proposta de rediscussão
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
13
FRIEDMAN, Barry. The will of the People. New York. Farrar ,Strauss and Giroux. Capitulo 10 e conclusão.
Mas, se a proposta majoritária é a mesma de Dahl, no sentido de partici-
pação da Suprema Corte do processo de decisão política, ao lado dos Poderes Legis-
lativo e Executivo, então a falta de estudos empíricos no Brasil que reproduzam a
metodologia de Dahl será um primeiro obstáculo.
Outrossim, se a atuação contra-majoritária da jurisdição constitucional é
o que se pretende atribuir ao Supremo Tribunal Federal, defronta-se o pesquisador
com a evidente diferença entre o constitucionalismo norte-americano e o brasileiro,
que faz com que o debate gerado a partir da referida questão moral posta pelos
contra-majoritários tenham desdobramentos completamente diversos.
Apenas para citar um exemplo preliminar, do qual decorre tantos outros
possíveis, o constitucionalismo brasileiro é pontuado por constituições outorgadas
e promulgadas. A atual Constituição Federal brasileira completou pouco mais de
vinte anos, após outros quase vinte anos de regime ditatorial. Já a Constituição
norte-americana completa mais de duzentos e vinte anos, com releituras, é certo,
mas sem rupturas democráticas.
Portanto, não se afigura tarefa simples posicionar o Supremo Tribunal Fe-
deral como majoritário ou contra-majoritário, pois talvez seja esta, atualmente, a
própria questão existencial da jurisdição constitucional brasileira.
_____________________________________________________________________________
14
Para mais detalhes ver: Bobbit, Phillip. Constitutional Interpretation.
15
Os termos utilizados no presente texto seguem a tradição jurídica norte americana. São diversas as
traduções já realizadas por autores pátrios ao tratar dos termos.
16
Scalia, Antonin. Originalism: the Lesser Evil, 57 u. cin. L. Rev. 849, p. 862-64.
17
Strauss, David A. The living constitution. New York: Oxford, 2010.
18
BUENO, R. Interpretação Constitucional: a Polêmica entre Originalismo e Não-Originalismo. Revista
Eletrônica da Faculdade de Direito da PUC-SP - ISSN 1984-1094, América do Norte, 0, abr. 2011. Disponível
em: http://revistas.pucsp.br/index.php/red/article/view/2803/3958. Acesso em: 11 Nov. 2011.
já nomeadas no artigo catorze do texto constitucional, qual seja, através das emen-
das formais.19
Já os não originalistas possuem como características principais a consciên-
cia de que uma norma não possui necessariamente um único sentido. Seria,
portanto, impossível a identificação de um significado correto e único, tal qual apre-
goam os originalistas, para a norma constitucional no momento de sua inter-
pretação. Isso seria possível ao realizar uma atualização do seu conteúdo ao con-
cretizar a norma jurídica.
Uma das correntes20 não originalistas evoca uma “living constitution” que
é entendida como “one that envolves, changes over time, and adapts to new cir-
cumstances, whitout being formally amended”21. Neste caso a aceitação de que a
constituição é viva justifica-se pela conscientização de que as mudanças na so-
ciedade americana são uma constante que podem ser melhor traduzidas no mundo
jurídico através dos precedentes que, ao permitirem ao mesmo tempo a mudança
no entendimento do texto também agem como uma limitação desta mudança. A
alterações do mundo fático, não podem ser percebidas, argumentam os defensores
da living constitution, pelas constituições escritas e tampouco as emendas pos-
suiriam a velocidade adequada de acompanharem essas inovações, ao contrário
dos precedentes.
Os críticos dessa corrente hermenêutica alertam, por sua vez, que a apre-
goada necessidade de adequação da constituição aos nossos dias pode levar a uma
manipulação do sentido dela de acordo com as vontades pessoais de seus aplica-
dores.22
Esse debate entre o originalismo e o não originalismo na hermenêutica
constitucional norte americana não está passível de contestações e, para seus crí-
132 ticos, representam na verdade lados diversos de uma mesma moeda. Para esse
conjunto de autores23 o originalismo é na verdade utilizado como instrumento para
a realização de uma dominação ideológica conservadora na corte norte americana.
Os não originalistas, por sua vez, não foram bem sucedidos em frear esse movi-
mento.
Numa síntese apertada poderíamos afirmar que o cerne dos questiona-
mentos dos críticos as teorias clássicas se resumem ao fato de que o originalismo
tradicional não pode ser sustentado como teoria jurídica e é apenas utilizado como
instrumento de efetivação de uma ideologia conservadora ao passo que os não
originalistas não conseguem formar uma corrente ideologicamente forte para se
contrapor aos conservadores e se resumem a argumentos jurídicos para defender
sua forma de interpretação.24
Como alternativa a esse dualismo até então preponderante no debate
americano propõe-se o chamado constitucionalismo redentivo, baseado numa inter-
pretação redentora e restaorativa voltada para o futuro e não mais para o passado
_____________________________________________________________________________
19
Strauss, David A. The living constitution. New York: Oxford, 2010. p. 4.
20
Barroso elenca outras duas correntes: a leitura moral da constituição e o pragmatismo. Ver: Barroso,
Luis Roberto.Curso de Direito Constitucional contemporaneo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 283.
21
Strauss, David A. The living constitution. New York: Oxford, 2010 p. 1.
22
Strauss, p. 2.
23
Liderados atualmente por uma equipe de professores da Universidade de Yale onde destacamos os
professores Jack Balkin e Reva Siegel
24
Post, Robert e Siegel, reva. Originalism as a political practice: the rigths living constitution. Fordham
Law Review, 75: 545, 2006. Ver também: Barroso, Luis Roberto.Curso de Direito Constitucional contem-
poraneo. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 282.
como os originalistas pretendem25. A constituição seria, portanto, um trabalho em
constante desenvolvimento.26
Essa nova forma de entender a interpretação constitucional coaduna-se
com a visão do “living constitution” quando afirma que o originalismo praticado
pela suprema corte americana, assaltado pelo conservadorismo que marca toda
segunda metade dos anos 90 em diante27 acaba sendo um instrumento para a prá-
tica de injustiças em nome do passado.28 Entretanto não deixam de admitir que di-
versas técnicas adotadas pelos conservadores e expressados pelo originalismo fo-
ram bem sucedidas e merecem atenção por parte da nova doutrina.
Essa nova forma de interpretação constitucional fundamenta o chamado
Constitucionalismo Democrático. O constitucionalismo democrático seria uma nova
forma de abordagem que busca superar a preponderância do modelo originalista
ao aliar uma teoria preocupada com a mobilização popular, com uma participação
da sociedade civil onde os compromissos progressistas possam ser expressos atra-
vés da lei, utilizando os “founding fathers” sem, entretanto, desautorizar novas
formas de autoridade constitucional. Trata-se de uma abordagem inovadora que
marca um novo momento no debate norte americano onde a reação liberal procura
aliar argumentos jurídicos e políticos para se contrapor de forma eficaz a interpre-
tação conservadora que atualmente prepondera na suprema corte americana.
O desenlace de tal movimento e a reação da academia já podem ser obser-
vados29 mas ainda é cedo para sabermos qual será o desfecho – ou se teremos um
desfecho – nesse clássico debate da teoria constitucional estadunidense.
Diante de todo o exposto, não nos parece uma tarefa fácil transplantar os
debates norte-americanos entre originalistas e não-originalistas para o palco do
constitucionalismo brasileiro. A Constituição Federal de 1988 ainda está por com-
pletar apenas um quarto de século e, por conseguinte, seus princípios e regras 133
ainda buscam realização na prática dos Poderes Públicos. Afigura-se-nos, portanto,
que nossa Constituição não teve o amadurecimento suficiente para que os seus
intérpretes e aplicadores a ela se refiram como um documento atrás da vitrine do
museu, e por isso talvez ter uma postura originalista no Brasil seja equivalente a
defesa da Constituição Cidadã ainda não plenamente concretizada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preocupação fundamental na exposição desenvolvida nesse breve artigo
foi analisar a pertinência (para a teoria constitucional brasileira) de um fenômeno
que vem crescendo no âmbito de decisões do STF, qual seja, a crescente “impor-
tação” de discussões que vem se desenvolvendo no âmbito da teoria constitucional
norte americana, sendo cada vez mais recorrente no debate e na justificação de al-
gumas decisões daquele tribunal.
Aspectos tais como a controvérsia entre os teóricos majoritários, contra-
majoritários e os que buscam fazer uma espécie de meio-termo entre as duas; a
controvérsia entre originalistas, não originalistas e (aqui também) aqueles que de-
fendem um meio-termo entre as duas e ainda um fenômeno que ocorre para-
_____________________________________________________________________________
25
Balkin, Jack. Constitutional Redemption. Cambridge: Harvard University Press. 2011.
26
Balkin, Jack e Siegel, REva (org). Constitution in 2020. New york,: Oxford. 2010, p. 2.
27
Para detalhes do processo de apossamento da Suprema Corte Americana por parte dos conversadores,
Ver :The conservative assualt of constitution de Erwin chemerisky. New York: Simon & shuster,2010.
28
Balkin, Jack e Siegel, Rva (org). Constitution in 2020. New york,: Oxford. 2010, p.4.
29
Alexander, Larry. The Method of text: Jack Balkin’s Originalism whit no regrets. Legal Studies Research
Paper series. n. 11-067. 2011.
lelamente, mas que interage diretamente e que emana suas influências sobre do
judiciário americano, que é a crescente concentração de poderes no poder exe-
cutivo, fazendo dele um super-poder e, para muitos, o mais perigoso.
Embora tenha-se clareza de se tratar de um fenômeno nem um pouco iné-
dito em se tratando de nações ocidentais, muito especialmente após o acirramento
da chamada globalização, essa aproximação da teoria constitucional brasileira à
americana, causa uma certa preocupação em razão das condições em que ocorre
e, fundamentalmente, conforme um olhar mais detalhado nos proporciona concluir,
em razão das disparidades em termos de realidade socioeconômica, culturais e da
tradição histórica e constitucional, próprias de cada uma dessas duas nações. Essas
especificidades necessitam de uma anterior e profunda reflexão antes de qualquer
importação/aplicação pura e simples, pois certamente deverão revelar a necessi-
dade do desenvolvimento dos corpos teóricos próprios.
Não é perceptível, por exemplo, na tradição do debate constitucional bra-
sileiro, a franqueza (ou pelo menos uma mais clara identificação política) que é
evidente nos posicionamentos de parte à parte nas rusgas jurídicas vivenciadas
nas “terras de Tio Sam”. No Brasil, as raízes deixadas pelo positivismo incutem no
pensamento jurídico nacional a idéia de que não há espaço para as decisões políticas
nos tribunais, que seriam órgãos eminentemente técnicos. Já na tradição cons-
titucional norte-americana, as controvérsias entre majoritários e contramajoritários,
entre originalistas e não-originalistas e até mesmo as preocupações que pairam
sobre a crescente concentração de poder em torno do executivo americano, todas
podem muito bem ser resumidas num acirrado embate entre conservadores e pro-
gressistas e que é assumido e/ou denunciado constantemente. O fato é que em
cada uma daquelas disputas, os defensores de cada lado, não se pautam por uma
134 pretensa defesa de neutralidade, mas por tentar convencer a sociedade americana
de que seus valores, com base nas suas respectivas lógicas explicativas, são os mais
justos e que possuiriam o potencial de melhor realizar os desígnios do povo ame-
ricano. Fica mais claro, portanto, que também na seara jurídica, o que se vivencia é
um claro embate político e não uma mera discussão heurística e tecnicista, para a
qual a pretensa imparcialidade (política) seria uma condição fundante.
Não resta dúvida de que essa franqueza e aprofundamento do debate,
com o respectivo amadurecimento dos institutos, haja vista que estão sendo conti-
nuamente expostos à crítica, constitui-se em um elemento determinante para que
as respectivas matérias tenham maior êxito e enraizamento nos EUA, já que muitas
delas já tiveram oportunidade de terem sido testadas, tanto no âmbito do judiciário
em si, quanto politicamente, ao se proporcionar tempo e espaço para se medir sua
eficácia no âmbito da sociedade americana em geral. Em contraposição, diante da
tradição e da realidade política e jurídica brasileira, atesta-se que há poucas
condições de se comparar, em particular no staff do Poder Judiciário, o nível de
maturidade das instituições americanas com as brasileiras.
Dentre outros aspectos, nunca se deve perder de vista que há ainda uma
incipiente tradição democrática no Brasil, que a plena autonomia do nosso poder
judiciário tem menos de um século e que, por conseguinte, o aprofundamento e
amadurecimento dos debates de questões relacionados à realização da justiça, das
instituições nacionais e a da determinação dos papéis de cada um dos poderes ainda
é recente e caminha a passos muito lentos tanto na sociedade quanto na própria
academia jurídica brasileira.
Da mesma forma, não há como ignorar as mudanças políticas que vem
ocorrendo no Brasil e em muitos países da América Latina nos últimos 10 anos.
Tendendo-se à esquerda e, de certa forma, distanciando-se politicamente da influên-
cia americana (o que por certo também implica em alguma influência sobre as afini-
dades institucionais e dos papéis atribuídos ao judiciário em particular). Em terras
da latino-américa, há tanto mudanças mais radicais, como as que vem ocorrendo
na Bolívia, na Venezuela e no Peru, como também mais moderadas como as que
protagonizam Argentina e Brasil. No nosso caso, por exemplo, os novos ares polí-
ticos importam para o poder judiciário, na crescente introdução, nas respectivas
pautas, de debates de cunho social e na própria ampla renovação do quadro de
ministros do STF, cujos perfis, por exemplo, devem significar algum tipo de trans-
formação nos contornos políticos das decisões tomadas (e que necessitam de es-
tudos mais aprofundados).
Nem tampouco se pode negar de todo as contribuições daqueles debates
analisados, haja vista que, sem dúvida, o recente distanciamento não foi capaz de
criar um abismo entre as duas nações e restam ainda muitas proximidades institu-
cionais, bem como debates jurídicos e políticos comuns, cujo intenso debate ame-
ricano, expresso numa rica e diversa produção acadêmica poderá demonstrar-se
pertinente e servir de base teórica para apoiar uma melhor compreensão de nossos
desafios, interpretarmos nossa Constituição e ainda para apontar caminhos a serem
seguidos.
De toda sorte, os aspectos aqui suscitados, já deixam evidente que não
só é preciso atentar para as especificidades do nosso país (e de nossa região), inclu-
indo demandas (sociais, políticas e econômicas) reprimidas historicamente, que
nos lançam desafios próprios para a realização da justiça em nossa nação; como
também, ao se absorverem algumas daquelas idéias _ o que imaginamos ser quase
inevitável, afinal de contas tantas influências desse porte já ocorreram em nosso
país e em várias regiões do planeta em outras épocas e circunstâncias históricas 135
(desde grandes influências como a difusão de teorias contratualistas, constitucio-
nalistas, de separação de poderes, até influências mais recentes com a difusão de
teorias relativas aos direitos difusos e coletivos, por exemplo).
Em análise última, é necessário que se faça a devida ponderação e um es-
forço de adequação, considerando nossas especificidades e nossos desafios pró-
prios, mirando a materialização dos nobres objetivos propostos.
Esse cuidado é necessário, dentre outros aspectos, como medida preven-
tiva para não se incorrer novamente, como é comum em momentos como esses,
no absurdo de se implantar “ideias fora do lugar” e, equivocadamente, se aplicar o
direito e si, sem contudo se fazer justiça. Se isso volta a ocorrer, acaba-se por am-
pliar o fosso sóciojurídico em nosso país e amplia-se o sentimento de ilegitimidade
do direito e de suas instituições, o que certamente não é salutar.
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Segurança Jurídica e Ativismo
Judicial nas Súmulas
Vinculantes*
Vanice Regina Lírio do Valle
Igor Ajouz
RESUMO
O presente texto pretende analisar a incidência da segurança jurídica,
enquanto vetor axiológico, na experiência do Supremo Tribunal Fede-
ral, especificamente no campo da apreciação de propostas de súmu-
las vinculantes (PSVs). O estudo demonstra que a referida categoria
jurídica, não obstante apresentada como o suporte legitimador da
formulação de enunciados de observância compulsória, não tem es-
tado presente com a densidade desejada nas deliberações havidas
na apreciação de propostas de súmulas vinculantes pelo Supremo
Tribunal Federal.
PALAVRAS-CHAVES
Súmula Vinculante – Jurisdição Constitucional – Segurança Jurídica.
ABSTRACT
This paper seeks to examine the relationship of legal certainty, as a 137
axiological vector, with the Brazilian Supreme Court experience on
the binding precedents appreciation. The study argues that the legal
certainty, although it would be the legitimating support of a binding
decision, is not substantially present on the binding precedents
deliberations.
KEYWORDS
Binding Precedent – Supreme Court´s Binding Decisions – Legal Certainty.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo se destina ao exame da incidência axiológica da segu-
rança jurídica na experiência do Supremo Tribunal Federal, especificamente na apre-
ciação de súmulas vinculantes1. O objetivo perseguido é verificar como se tem reali-
zado o emprego argumentativo e o dimensionamento da segurança jurídica nas
deliberações relacionadas à admissibilidade ou à aprovação dos referidos enun-
ciados pela Suprema Corte, na busca de confirmação para a hipótese que supos-
tamente legitimaria o instituto, a saber, aquela de que ele pudesse se prestar à es-
tabilização jurídica e à contenção judicial, especialmente na base do Poder Judiciário,
sendo, ademais, um importante elemento seletivo da pauta deliberativa das súmulas
vinculantes.
_____________________________________________________________________________
141
_____________________________________________________________________________
15
NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança jurídica e súmula vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 9.
16
Arts. 35, I, e 40 da Lei Complementar 35/79.
17
“Art. 7o Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante,
negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem
prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação”.
18
É possível estabelecer um nexo entre a aplicação da reclamação como instrumento de controle de
cumprimento das súmulas vinculantes e o movimento de expansão do alcance daquele instituto, noticiada
por Valle et alii (VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal.
Curitiba: Juruá, 2009, p. 46-47).
Uma justificativa plausível, sob a perspectiva do tratamento normativo
conferido ao instituto, diz respeito ao estabelecimento de um pressuposto material
no bojo do art. 2º da Lei 11417/2006, diploma que disciplina a edição, a revisão e o
cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal:
a preexistência de reiteradas decisões sobre o tema sumulando:
_____________________________________________________________________________
27
O tema é desenvolvido pela Min. Csrmen Lucia, em na análise da tensão intrínseca existente na chamada
coisa julgada inconstitucional: ANTUNES, Carmem Lucia. Constituição e segurança jurídica: direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. in _____. (coord.). Constituição e segurança jurídica. Direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence.
2ª ed., rev. e ampl., 1ª reimp. Belo Horizonte: Editora Forum, 2009, p. 165-191.
manejo pela Corte das PSVs e a consolidação do ideário de estabilidade e previ-
sibilidade das relações.
_____________________________________________________________________________
30
Explicitando a seqüência e conteúdo de decisões no âmbito do STF que cogitam da transcendência dos
motivos determinantes, consulte-se VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo
Tribunal Federal. Laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 48-52.
31
A Reclamação em causa apontava suposta violação à autoridade da decisão proferida pelo STF no
julgamento do HC nº 82.959, que reconheceu a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2o da Lei 8.072/1990
(“Lei dos Crimes Hediondos”), que proibia a progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes
hediondos. Isso porque, requerida a progressão de regime em favor de apenados com fundamento naquela
mesma norma jurídica, a pretensão foi indeferida pelo Juízo de Execuções Penais ao argumento de que o
precedente citado era revestido de caráter inter partes. Para prover a Reclamação, afirmou o Min. Gilmar
Mendes em seu voto que a compreensão quanto aos efeitos da pronúncia da inconstitucionalidade, mesmo
em controle difuso, progredira para compreender efeitos erga omnes.
32
No tema, consulte-se o incisivo texto de STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; e
LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto, A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle
Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional. [on line], disponível
em < http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&Itemid=40>, acesso em 17 de outubro
de 2011.
Soa coerente, portanto, que, à míngua de acordo em relação às antes expe-
rimentadas estratégias de ampliação do caráter vinculantes de seus próprios pro-
nunciamentos, o Supremo Tribunal tenha retomado uma trajetória mais pacificada,
da tradução dessas mesmas conclusões por intermédio do instituto destinado es-
pecificamente à subordinação dos demais órgãos judiciários e da Administração
Pública, aos precedentes que se tenha formatado previamente na Corte.
Nesse sentido, é possível afirmar que a aplicação pelo STF do instituto
sob análise esteja orientada, efetivamente, à consolidação da segurança jurídica –
seja pela vinculatividade que se busca concretizar em relação aos demais aplicadores
da lei; seja pela adoção de um mecanismo menos polêmico para a obtenção desse
mesmo efeito.
4. CONCLUSÃO
Menos de uma década de aplicação do instituto sob análise não permite,
decerto, conclusões definitivas – mas já revelam tendências que contribuem para
a compreensão do relacionamento da Corte com os instrumentos orientados à con-
cretização da segurança jurídica que se ponham à sua disposição.
Uma primeira observação está em que, ao que tudo indica, diferentemente
dos temores externados quando da consagração do instituto, possivelmente se
revela excessiva a crítica de Sarlet de que as súmulas vinculantes, a pretexto de
resguardar uma segurança jurídica cujo conteúdo é estritamente reduzido à abso-
luta previsibilidade das decisões judiciais e à inteira sujeição à interpretação cons-
titucional tecida pelo Supremo Tribunal Federal, desvirtuariam a atuação da Corte
para o exercício de “funções de cunho tipicamente legislativo”.33 Afinal, se na sua
utilização, não se tem verificado um afastamento das suas condições ex vi cons-
148 tituitionis; mais ainda, se a referência aos precedentes anteriormente construídos
tem se mantido fiel, não é na aprovação em si das súmulas vinculantes que se pode
identificar um traço inovador ou ativista – mas sim (eventualmente) nas decisões
que amparam o enunciado vinculativo.
De outro lado, o pouco espaço de decisão dedicado à análise da real exis-
tência de risco à segurança jurídica a exigir um pronunciamento vinculante parece
estar a sugerir que não resida nesse tema, o principal elemento motivador da Corte
para a aprovação do enunciado com fundamento no art. 103-A CF. A soma da pouca
atenção nos debates aos critérios identificadores do risco à estabilidade e pre-visi-
bilidade, com a fidelidade aos precedentes anteriormente constituídos, parece estar
a sugerir que o grande motivador da edição de súmulas vinculantes sejam os efeitos
desse tipo de pronunciamento sob a perspectiva de política judiciária, reprimindo
uma multiplicação indesejada de demandas.34
Ainda que seja essa a perspectiva – como já se disse anteriormente neste
texto – é possível afirmar haja uma tutela, mesmo que indireta, ao ideário de segu-
rança jurídica. Afinal, a litigiosidade em si, como já se teve oportunidade de afirmar,
revela uma inaptidão do sistema normativo para gerar a chamada segurança de
aplicação. Isso não afasta todavia crítica no sentido de que o tema em si da incerteza
que deu causa à pronúncia vinculante não seja suficientemente explorado. Afinal,
_____________________________________________________________________________
33
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa hu-
mana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no Direito Constitucional brasileiro. Revista
Brasileira de Direito Público, ano 3, n. 11, 2005, p. 119.
34
Alguns reflexos desse propósito de atenuação da multiplicação de processos que versem sobre matéria
decidida pelo STF já têm sido verificados: no âmbito da Advocacia-Geral da União, o Parecer PGFN/CRJ/Nº
492/2010 e a Portaria PGFN 294/2010 sinalizam a abstenção de recursos da Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional ao STF, diante de matérias reiteradamente decididas em desfavor da Fazenda.
a importância da intervenção do Supremo em hipóteses que tais não reside propria-
mente no argumento de autoridade, mas sim na sua capacidade de gerar segurança
jurídica substantiva – aquela relacionada à aceitabilidade racional da construção
da decisão judicial;35 especialmente quanto se tem em conta seu destinatário, que
na edição da súmula vinculante, será o próprio Judiciário e a Administração Pública.
Nesses termos, identificar a divergência – apontando quais seja os pontos
em que os precedentes invocados para fins de edição da súmula vinculante se dis-
tanciem da compreensão traçada pela Corte – parece um exercício argumentativo
relevante, e que tem sido pouco considerado. A lógica prevalente culmina por ser
um tanto verticalizada, enunciando-se puramente uma frase, que se anuncia, é de
observância obrigatória, num suposto quase que naive de que o caráter mandatório
do pronunciamento que agora se veicula seja mais impositivo do que o foi a decisão
anterior, traçada nos precedentes citados, onde se desenvolveu em detalhe a tese
jurídica que se busca prestigiar...
É mais do que claro o processo ainda em curso de construção do instituto e
dos termos de sua aplicação – a recente edição da Emenda Regimental 46/11 evidencia
isso. Para que tal desenvolvimento prossiga, numa perspectiva efetiva de aptidão a
gerar segurança jurídica, no sentido substantivo a que já se referiu, parece indis-
pensável que, no exercício de uma compreensão realista (e não normativa) da judicial
review, se reconheça a necessidade da incorporação de uma dimensão política que
reconheça os círculos concêntricos de influência com que luta o juiz constitucional –
começando pela interação estratégica entre os membros do colegiado, até o reco-
nhecimento das pressões impostas pelos demais juízes que integram a hierarquia ju-
diciária, que têm a sua própria visão sobre como as coisas deveriam ser.36
Sem essa sensibilidade institucional, o risco está em que também os enun-
ciados em sede de súmula vinculante se transformem num pronunciamento a mais 149
– incapaz de gerar a previsibilidade das relações e decisões que a verdadeira segu-
rança jurídica pretende oferecer.
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35
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PARTE II - ESTUDOS EMPÍRICOS SOBRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Regulação Jurídico-urbanística
das Favelas Cariocas: entre a
“Liberdade” do Direito de
Pasárgada e o “Congelamento”
do Direito Estatal
Alex F. Magalhães
Rafael Soares Gonçalves [*]
RESUMO
Artigo que busca conhecer e qualificar o aparato regulatório do uso
e ocupação do solo em favelas da cidade do Rio de Janeiro, estrutu-
rado a partir da dialética entre regras estabelecidas pelos próprios
moradores e aquelas estabelecidas pela Prefeitura, na esteira de suas
ações de urbanização. Baseia-se especialmente em fontes empíricas,
151
oriundas de trabalho de campo em favelas urbanizadas, e documen-
tais, retiradas de jornais da cidade e de fragmentos de sua legislação.
Como resultado, busca-se uma análise crítica dos padrões regulató-
rios atualmente vigentes e aqueles que os órgãos estatais desejam
impor, discutindo as suas relações com projetos democráticos e
emancipatórios das classes populares, bem como identificando ten-
dências reveladas por comparações entre períodos históricos mais
amplos. Como principal referência teórica toma-se algumas das for-
mulações elaboradas no campo da chamada teoria do pluralismo jurí-
dico, em especial aquelas de autoria de Boaventura de Sousa Santos,
especialista que ampla e mundialmente estudou as estruturas jurí-
dicas vigentes em favelas e outros espaços sociais marginalizados.
PALAVRAS CHAVE
Favelas – Direito Urbanístico – Pluralismo Jurídico.
ABSTRACT
This paper aims knowing and qualifying the land use and building
regulatory apparatus in Rio de Janeiro’s slums. Such apparatus has
been formed through a dialectic process between different norm-
ative patterns, some of them established by slum dwellers and other
_____________________________________________________________________________
[*] Alex F. Magalhães é advogado, doutor em Planejamento Urbano e Regional e professor adjunto de Di-
reito Urbanístico da UFRJ. Rafael Soares Gonçalves é advogado e historiador, doutor em História pela
Universidade de Paris VII e professor do Departamento de Serviço Social da PUC-RJ.
ones by the City Hall, as a consequence of its slum upgrading policy.
The paper’s bases are empirical – field researches done in slums already
upgraded – and documental ones – pieces of Rio’s newspapers and
urban legislation. As results, a critical analysis of current regulatory
patterns and of those that public authorities try imposing is aimed.
Beside, the relations between Official Law and folk emancipatory and
democratic projects are discussed. Finally, the authors try to identify
the main trends revealed for historical and comparative long term
analysis. As their most important theoretical reference, they take
some concepts and hypothesis from legal pluralism theories, especially
those from Boaventura de Sousa Santos, social scientist who has
widely and worldwide studied the juridical structures ruling in slums
and other socially marginalized zones.
Keywords
Slums – Urban Law – Legal Pluralism.
152
INTRODUÇÃO
Tomando como base pesquisas empíricas – realizadas em favelas urbani-
zadas pela Prefeitura do Rio de Janeiro – e documentais – centradas em jornais e
na legislação urbanística editada para as favelas cariocas desde o século XIX – este
artigo tem por objeto conhecer e discutir criticamente o aparato regulatório do
uso e ocupação do solo em favelas. Nele, procura-se desvendar as estruturas da re-
lação, dialética e conflituosa, entre regras estabelecidas pelos próprios moradores
ao longo do processo de formação da favela e aquelas estabelecidas pelo Estado,
especialmente os entes municipais, na esteira de suas ações de urbanização e demais
intervenções em favelas.
A análise crítica dos padrões regulatórios, aqui proposta, busca desvendar
os significados jurídico-sociais da legislação editada pelo Estado, a fim de estabe-
lecer algum tipo de controle do processo de desenvolvimento das favelas, que mui
frequentemente procura estabelecer constrangimentos ao crescimento dessas for-
mações urbanas. Entre outros enfoques, o quadro regulatório estatal é interpelado
com respeito às suas relações com projetos democráticos e emancipatórios das
classes populares, buscando-se identificar tendências reveladas por comparações
entre períodos históricos mais amplos, a fim de que o olhar não fique refém de cir-
cunstâncias conjunturais.
Para o desenvolvimento do artigo, buscou-se estabelecer alguns diálogos
com a literatura científica relacionada ao seu objeto, especialmente a obra de Boa-
ventura de Sousa Santos, considerada como uma das pioneiras disponíveis, bem
como dentre as mais relevantes, especialmente no que tange às favelas da cidade
do Rio de Janeiro, e que aqui comparece como um de nossos principais referenciais
teórico-metodológicos.
A propósito do diálogo com a obra de Santos, procura-se, como resultados 153
últimos da análise, ampliar e atualizar o desenho da institucionalidade jurídica ope-
rante nas favelas, bem como recuperar e rediscutir algumas das formulações ela-
boradas no campo da chamada teoria do pluralismo jurídico, debatendo as relações
entre formas jurídicas estatais e populares, no contexto das relações contem-
porâneas entre Estado e favelas cariocas.
_____________________________________________________________________________
1
Ao lado de Santos, deve ser lembrado o trabalho, também pioneiro, de Stephen Conn (CONN, 1968).
1. A maior parte da venda de imóveis realizadas nas favelas se dá por meio
de um contrato elaborado pela Associação de Moradores. Nos dois casos
estudados por Magalhães (2010), o percentual das vendas feitas por este
mecanismo é superior a 80%. Embora amplamente majoritário e visto pelos
moradores e outros agentes internos, e até externos, como o procedi-
mento correto de aquisição de um imóvel, este sistema não é o único,
convivendo com outros que variam conforme o maior ou menor envol-
vimento de órgãos do Estado e da própria Associação. Pode-se afirmar,
portanto, a vigência, nas favelas, de uma pluralidade de sistemas de vali-
dação, registro e publicidade das transmissões imobiliárias.
2. A Associação de Moradores não somente redige o contrato, como tam-
bém o arquiva, detendo uma espécie de memória das transmissões imobi-
liárias na favela. Ela concentra papéis que, na ordem legal estatal, são
atribuídos a dois órgãos diferentes – o Tabelionato e o Registro.
3. As Associações de Moradores têm desempenhado esses papéis apenas
no caso das favelas. Muito embora existam Associações de Moradores
nas áreas comumente definidas como “bairros” da cidade, nesse caso elas
jamais se ocuparam de tal sorte de atribuições, sendo sua atuação aí cen-
trada na representação dos interesses gerais dos moradores dessas áreas
e nos lobbies políticos sobre as autoridades constituídas.
4. O contrato de compra e venda de um imóvel em favelas é assinado pelas
partes e seus respectivos cônjuges (ou parentes próximos, como filho ou
irmão, em caso de pessoas solteiras), na sede da Associação, na presença
e com a assinatura de seu Presidente, ou no máximo de seu Vive-Presi-
dente, além de duas testemunhas, o que simboliza o reconhecimento dessa
156 venda pela comunidade local. Conforme os entendimentos jurídicos domi-
nantes nas favelas cariocas, esse conjunto de assinaturas, especialmente
a do Presidente e das duas testemunhas, é indispensável à validade dos
atos ali celebrados, em que pese o fato de o Código Civil Brasileiro, desde
o ano de 2003, não mais exigir a formalidade relativa às testemunhas, bem
como desconhecer inteiramente o papel que, na juridicidade popular, é
atribuído ao líder comunitário. Isto significa que o Direito Consuetudinário
vigente nas favelas possui maiores exigências formais do que o chamado
“Direito legislado”. Aqui, temos uma evidência que serve para contestar
o senso comum segundo o qual as relações jurídicas nas favelas seriam
tendencialmente deformalizadas, ou menos formais, do que aquelas en-
contradas “no asfalto”, isto é, na assim chamada “cidade formal” (ou no
“mercado formal”).
5. Há uma série de analogias entre as instituições estatais oficiais e aquelas
surgidas nas favelas. Estas frequentemente observam procedimentos simi-
lares àquelas, bem como utilizam em seus documentos termos retirados
da ordem legal em vigor. Nisto consiste um dos pontos centrais das “trocas de
juridicidades” às quais Santos aludiu em seus trabalhos. Tais trocas, como ele
corretamente assinalou, são estruturalmente desiguais, uma vez que suas
respectivas agências dispõem em graus muito distintos dos elementos que
classifica como essenciais da ordem jurídica: retórica, burocracia e violência.
6. Apesar das similaridades e analogias, o controle realizado pelas Asso-
ciações de Moradores não se caracteriza como um controle burocrático,
organizado em bases racionais e formais, tais como definidas por Max
Weber, mas operam fortemente baseadas nas relações pessoais. Há um
formalismo popular nas práticas jurídicas nas favelas, porém substan-
cialmente diverso daquele próprio dos órgãos estatais.
7. Os contratos realizados perante as Associações de Moradores são con-
tratos válidos sob a ótica da ordem legal estatal. Considerando o que a or-
dem legal brasileira exige para a validade de um contrato de venda de
imóvel, verificamos que todos os requisitos legais se fazem presentes nos
contratos aos quais tivemos acesso, nos casos estudados. Supomos que,
possivelmente, o mesmo deve ocorrer em todos os demais, uma vez que
são constantes os intercâmbios entre favelas. Ou seja, trata-se de atos
jurídicos relevantes, válidos e eficazes não somente como revelação da
ordem legal comunitária, ou seja, na perspectiva jurídico-pluralista, mas,
ao mesmo tempo, da ordem legal estatal, produzindo efeitos nessa seara,
tal como qualquer contrato realizado no “mercado imobiliário formal”.
8. Não obstante o senso comum que nega validade aos contratos rea-
lizados nas Associações de Moradores, esses títulos têm sido aceitos por
diversos órgãos do Estado, uma vez que constituem a única ou a principal
documentação disponível a respeito da propriedade fundiária nas favelas,
não havendo como se prescindir delas para qualquer intervenção do Es-
tado em favelas, bem como para a própria decisão de lides a respeito dessa
matéria pelos órgãos judiciais.
tese, pode revelar a falta de informações mais amplas sobre cada favela, bem como
um menor investimento público numa regulação cuidadosa e adequada para essas
áreas.
O Plano Diretor da cidade e as leis federais determinam que essa legislação
para favelas deva ser adaptada às especificidades locais. Contudo, ela tem sido
planejada e elaborada na contramão dos códigos locais elaborados pelos próprios
moradores, visando eliminá-los, não reconhecendo neles a “nova” racionalidade
urbana que se deseja implementar.
Assim, o contexto no qual surge a legislação urbanística oficial para as fa-
velas é um contexto marcado pela tentativa de reordenamento do espaço pelo Es-
tado e de deslegitimação das práticas normativas anteriores desenvolvidas pelos
moradores. Em nossas pesquisas temos verificado quão conflituoso é esse pro-
cesso. Percebe-se que os moradores das favelas, muitas vezes, também não reco-
nhecem legitimidade às ações do Estado, numa espécie de resposta ao modo como
este intervém nas favelas.
Como elemento agravante desse conflito, observamos que o mesmo mui-
tas vezes não é reconhecido pelos agentes envolvidos. Assim, os agentes públicos
o atribuem ao baixo nível de escolarização ou à má educação dos moradores de fa-
velas, ou, ainda, a uma certa cultura política viciada em esquemas clientelistas, na
qual estaria ausente a noção de interesse público. Ou seja, o comportamento dos
agentes do Estado constitui uma projeção da imagem que boa parte da sociedade
historicamente desenvolveu a respeito das favelas e de seus moradores, imagem
que se estruturou de modo a não reconhecer-lhes o poder de agência, em outras
palavras, a não vê-los como agentes políticos autônomos, legítimos, responsáveis
e capazes de escolhas adequadas no campo político e da moradia.
Avaliamos que o que está em jogo é uma redefinição normativa, uma ten-
são entre duas diferentes fontes de normatividade, a local e a estatal, não sendo
possível avaliar, nesse momento, como este conflito se resolverá, dado que estamos
diante de processos bastante recentes – a rigor, datam de pouco mais que uma dé-
cada.
É possível, no entanto, relacionar alguns problemas que marcam a edição
dessa legislação para favelas por parte do Estado:
Artigo 2°. Serão permitidas apenas reformas nas edificações exis- 161
tentes, comprovadamente para melhoria das condições de higie-
ne, segurança e habitabilidade, desde que:
I – Seja comprovada sua existência na data da publicação da Lei
que declarou a respectiva área como de especial interesse social;
II – Não promova acréscimo de gabarito ou expansão horizontal
e vertical;
III – Não se constituam em novas unidades habitacionais;
IV – Não se situam em Zona de Risco ou de preservação.”
a. o fato de que alguns moradores de fora da favela estão indo residir ne-
las, por exemplo, em função de casamentos ou pelo encarecimento dos i-
móveis fora das favelas;
b. a presença, nas favelas, de advogados e corretores imobiliários, alguns
deles moradores, lideranças comunitárias ou que abrem seus escritórios
nesses locais;
c. a busca de maior legitimação dessas práticas, que o senso comum vê
como ilegais, levando-as a absorver uma série de símbolos de legalidade.
_____________________________________________________________________________
4
Este Plano Diretor vigorou até janeiro de 2011, quando foi revogado pela Lei Complementar n. 111, de 1º/
02/2011, que institui um novo Plano Diretor para o município do Rio de Janeiro.
5
“Artigo 211: O reassentamento das populações de baixa renda compreenderá:
§ 1º No caso de necessidade de remanejamento de construções serão adotadas, em ordem de preferência,
as seguintes medidas, em conformidade com o disposto na Lei Orgânica do Município:
I- reassentamento em terrenos na própria área; II- reassentamento em locais próximos; III- reassentamento
em locais dotados de infraestrutura, transporte coletivo e equipamentos urbanos.” (grifos nossos)
cessos de segregação social e espacial que jazem por trás da formação das favelas,
elas não representam espaços excluídos ou apartados das dinâmicas urbanas, so-
ciais, econômicas e jurídicas mais gerais, não representando absolutamente novas
espécies de guetos ou enclaves urbanos.
No entanto, Santos nos recorda, acertadamente, que essa articulação está
no contexto do desenvolvimento capitalista, que integra determinadas classes de
maneira subordinada. Assim, as articulações das quais trata não devem jamais ser
tomadas como modos de apagar a posição subordinada dos moradores de favelas
no campo urbano, o que sugere que não estaremos, necessariamente, diante de
dinâmicas positivas, democráticas e promotoras do que ele chama de emancipação.
Na pesquisa de Magalhães (2010), a teoria da pluralidade jurídica figurou
enquanto uma importante ferramenta analítica no sentido de favorecer a análise
das articulações entre fontes estatais e comunitárias na regulação jurídica das fa-
velas, a fim de evitar um olhar externo, etnocêntrico ou meramente formal a res-
peito desse fenômeno, buscando apreendê-lo em sua materialidade.
Apesar das críticas opostas a essa teoria, que apontam para as debilidades
na concepção do que Santos chamou “Direito de Pasárgada”, chegando ao ponto
de questionar a juridicidade desse sistema de controle social, consideramos que
tais críticas não são de molde a descartar a aludida teoria como uma ferramenta
adequada para tratar dos problemas aqui discutidos, sobretudo se considerados
os processos de segregação socioespacial que envolvem as favelas brasileiras.
Magalhães distingue três situações fundamentais, no tocante à crítica à
teoria da pluralidade:
_____________________________________________________________________________
6
Tais como a Fundação Leão XIII, a Pastoral de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a Ordem dos
Advogados do Brasil, a Fundação Bento Rubião e o Projeto Balcão de Direitos, mantido pelo movimento
Viva Rio.
7
O fundo de Polícia Política do Arquivo do Estado do Rio de Janeiro faz inúmeras referências a Magarinos
Torres, assim como os jornais da época. Classificado como perigoso comunista, o relatório SAGMACS
(1960) fez referência ao seu trabalho na favela, criticando seus métodos, considerados pelo relatório
como autoritários e clientelista. No entanto, a memória de Magarinos continua bem viva na favela do
Borel como protetor incansável dos favelados.
8
Vários jornais publicaram feitos e textos do vereador Geraldo Moreira. Ver, por exemplo, Gazeta de
Notícias, de 5 de junho de 1959.
sua efetivação, revela-se, muitas vezes, limitado; e (3) a debilidade de espa-
ços públicos como fontes produtoras da normatividade estatal recém-esta-
belecida cria um déficit considerável entre os comandos legais e as expec-
tativas normativas dos moradores de favelas.
b) Se, em parte, o Direito da Favela absorve e/ou importa as instituições
estatais, a análise deve igualmente estar atenta ao processo inverso, no
qual são as leis da favela que “entram” no Estado, passando os seus agen-
tes a operarem e apoiarem a sua atuação nas instituições de origem comu-
nitária. Muito embora se trate de uma “troca desigual de juridicidade”,
como afirma Boaventura Santos, há que se ter em vista que se trata de
um processo dialético ou “de mão dupla”, no qual um sistema se alimenta,
em parte, do outro. Tanto o Estado chegou às favelas, quanto aquelas,
em diferente medida, estão nesse. A política urbana da Prefeitura do Rio
de Janeiro, nos últimos três anos, apontaria para um forte cerceamento
dessa possibilidade, havendo que se avaliar futuramente a sustentabilidade
e os efeitos sociais dessa escolha política, com implicações imediatas nas
dinâmicas sociojurídicas aqui debatidas.
c) Pelas razões indicadas acima, as normas urbanísticas promulgadas pelo
Estado têm se revelado escassamente efetivas no espaço das favelas, assim
como ocorre em outras regiões urbanas. A diferença, analiticamente rele-
vante, entre os dois casos, seria dada pelo histórico não reconhecimento
dos moradores de favelas como agentes numa relação política com o Es-
tado, sendo encarados, antes, como um grupo que deve ser educado e/
ou “culturalmente reformado”, no sentido do cumprimento da normati-
vidade estatal, o que configura uma negativa indireta de faculdades pró-
prias da cidadania, a exemplo do poder colocar em questão essa própria 167
normatividade. Tal problema se veria agravado em função de a regulação
estatal operar, no caso das favelas, numa região que ainda apresenta dé-
ficits consideráveis no que concerne aos patamares mínimos de qualidade
urbanística da moradia.
d) Não encontramos evidências de que a normatividade, presente no caso
das favelas estudadas, caracterize-se, essencialmente, por traços mar-
cantes de valores democráticos e cidadãos, que seriam estruturantes do
ordenamento estatal pós-1988. Contudo, a sensibilidade jurídica co-
munitária, em alguns aspectos, estrutura-se com base em noções como a
de tratamento equânime e isonômico de todos os moradores da favela,
bem como nela adquire relevância a consideração do estado de neces-
sidade de determinados agentes, o que justificaria certa flexibilidade na
exigência das obrigações a eles atribuídas. Nesses casos, podemos afirmar
que o código valorativo adotado é, em boa parte, harmônico com aquele
que seria próprio do Estado democrático.
e) Não encontramos evidências que deem suporte adequado à hipótese
segundo a qual as favelas se caracterizam como regiões em que as relações
jurídicas estariam dominadas, de maneira geral, por formas privatizadas
de regulação social, muito embora possam ser encontradas situações con-
cretas que evocariam esse padrão.
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Jogos Olímpicos, Copa do Mundo e
Interesse Público para Construção
de Arenas Esportivas -
Desenvolvimento econômico versus
custo social: o (des)respeito ao
Direito Fundamental à Moradia*
Josué Mastrodi (Cood.)
Abner Duarte Alves
Aline Cristina Bueno
Ana Emília Cunha Avelar
Eugenia Thiemi Sacomoto Keusseyan
Márcia Maria Carvalho da Silva
RESUMO
Busca-se avaliar o interesse que move os processos de desapropria-
ção de imóveis para a construção de obras necessárias à realização 171
de eventos esportivos no Brasil. A desapropriação massiva causará
deslocamentos populacionais e prejuízos cujos custos não são pre-
vistos no montante das chamadas justas indenizações. Se há inte-
resse público, os expropriados devem ter direito a valor que permita
adquirir nova moradia, e não apenas o valor de suas casas antes da
valorização imobiliária. Se o interesse for menos público e mais de
grupos econômicos, não se legitimam os processos expropriatórios.
Em qualquer dos casos, o fato consumado das obras para realização
de Jogos Olímpicos e Copa do Mundo causará enorme prejuízo a um
grande número de cidadãos que, impossibilitados de verem garantido
seu direito fundamental à moradia, terão no máximo indenização
pela perda da propriedade imobiliária.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Fundamental à Moradia – Interesses Econômicos versus
Direitos Fundamentais – Luta pelos Direitos.
1. INTRODUÇÃO
A realização dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo de Futebol em ter-
ritório brasileiro tem sido apresentada como a oportunidade única de promover
projetos de reurbanização e de desenvolvimento das cidades que sediarão tais even-
tos. Afirma-se que as obras, necessárias para que tais eventos ocorram a contento
_____________________________________________________________________________
* Este artigo representa o marco teórico da pesquisa que o Grupo de Pesquisa Direito e Realidade Social
da PUC-Campinas iniciou e que pretende desenvolver ao logo do biênio de 2012 a 2013.
da comunidade internacional, em que pese o choque de transformar as cidades em
verdadeiros canteiros de obras, promoverá crescimento econômico, geração de
empregos, revitalização da indústria hoteleira e revolução no sistema de transporte
público urbano. Enfim, apresenta-se tal situação como a panaceia que resolverá
os grandes problemas brasileiros pois, ao final, além de o país ser agraciado como
o palco dos jogos, todas as benfeitorias públicas serão mantidas para o benefício
dos moradores.
Tais eventos, em que pese o evidente interesse público envolvido, também
despertam enorme interesse privado nas grandes corporações que promoverão
as obras e os serviços de reurbanização. A realidade que se apresenta, nesta situação
específica, em especial nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, é que tanto a
direção quanto o desenvolvimento das obras não estão a cargo do Poder Público,
mas de entidades privadas vinculadas muito mais ao Comitê Olímpico Internacional
(COI) e à Federação Internacional de Futebol Associação (FIFA), cujo interesse pri-
mário, senão único, é a realização dos eventos, independentemente das conse-
quências e dos efeitos que os eventos causem na população local.
As obras necessárias à realização de tais megaeventos esportivos não se-
rão realizadas em áreas ermas da zona rural, mas em áreas urbanas, e em muitos
casos com altíssima densidade demográfica. Os processos de reurbanização a ocor-
rerem nessas áreas causarão, como já têm causado, alterações significativas na
vida de seus moradores.
Aliás, ex-moradores. As obras tendem a, num prazo de pouco mais de um
ano e meio, causar verdadeiro êxodo populacional, impondo a esses ex-moradores
a busca por novos locais para fixarem moradia. Como haverá muita procura por
imóveis em ambiente de oferta reduzida, há clara previsão de aumento do custo
172 de vida, decorrente da elevação do valor dos aluguéis e do valor de venda de quais-
quer imóveis.
A urgência na realização das obras tem sido apresentada como justificativa
para a rápida remoção dos moradores das áreas em que os megaeventos esportivos
terão lugar.
Porém, tal urgência não deveria suplantar direitos fundamentais dos ci-
dadãos, como o de propriedade e o direito à moradia. Ainda que houvesse a retirada
dos moradores, deveria haver claro e transparente processo de desapropriação, e
não remoção sumária, o que denota clara violação a direitos constitucionais de po-
pulações inteiras. Entre as violações estão a falta de informação do poder público
aos moradores dos lugares atingidos, a transferência de moradores para regiões
até 50 quilômetros distantes de sua moradia original e o baixo valor pago como in-
denização em um momento de alta valorização imobiliária no país.
Somente com as remoções forçadas devido aos eventos, de acordo com
o dossiê de março de 2011, feito pela Relatora da ONU ao direito à moradia da ONU,
a urbanista brasileira Raquel Rolnik1, já são 70 mil pessoas afetadas, isso somente
vindo de denúncias de comunidades.
Os projetos relacionados aos megaeventos esportivos têm sido definidos
em reuniões privadas entre agentes políticos e as corporações envolvidas com o
evento. A população afetada não tem acesso a quaisquer informações relevantes,
tais como o número de pessoas a serem removidas, para onde elas vão ser remo-
vidas, o valor previsto para indenização.
_____________________________________________________________________________
1
Esse relatório à Organização das Nações Unidas para o direito à moradia pode ser encontrado em http://
raquelrolnik.files.wordpress.com/2010/11/mega_eventos_portugues1.pdf. Acesso em 10 de setembro de 2011.
2. PROBLEMA
Os autores deste artigo iniciaram pesquisa sobre o problema da remoção
forçada de cidadãos de suas casas em decorrência da realização das obras neces-
sárias para sediar eventos esportivos internacionais no Brasil, em especial na cidade
do Rio de Janeiro, em que as obras de reurbanização serão exponencialmente maio-
res, em virtude de ela ser a sede tanto dos Jogos Olímpicos de 2016 quanto da Co-
pa do Mundo de Futebol de 2014.
Referida pesquisa promoverá, ainda, um quadro comparativo entre a rea-
lidade que ora se impõe no Rio de Janeiro e a situação similar ocorrida em Londres,
sede dos Jogos Olímpicos de 2012. Houve efetiva reurbanização em Londres? Houve
necessidade de remoção de moradores? Como se deu tal remoção?
O ponto central da pesquisa se volta para o problema da retirada compul-
sória de pessoas que se encontram nas áreas definidas pelo Poder Público (ou seria
pelo COI e pela FIFA?). Essa retirada é legítima? É constitucional? Há indícios claros
pelos quais essas ações violam fortemente direitos assegurados constitucionalmen-
te, em especial o direito à propriedade privada e o direito à moradia. Há realmente
interesse público na realização destas obras e evento ou atende-se apenas ao
interesse de grupos privados, em detrimento dos direitos da população afetada
pelas obras? É o Poder Público quem tem decretado as áreas de utilidade pública
para desapropriação? Tem ocorrido processo regular de desapropriação? Ou, ao
contrário, tem-se procedido modos informais de remoção dos moradores, sob a
justificativa de pouco tempo para realizar as obras?
Por ora, por ocasião do III Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Consti-
tucional e Teoria do Direito, cabe deixar a pesquisa de dados e as comparações ma-
teriais de lado para, no âmbito deste artigo, estabelecer alguns limites conceituais,
tomando como escopo o Direito Constitucional e a Teoria Geral dos Direitos Funda- 173
mentais, além de uma influência do Direito Internacional Público. Desse modo, des-
cortina-se a questão de identificação de quais direitos estão sendo afetados e a
sua qualificação jurídica.
A situação que se apresenta, ao menos na cidade do Rio de Janeiro, é a de
uma cidade que sofrerá intenso processo de reurbanização. Nada contra isso, nada
contra o progresso. O ponto é outro: a preparação para os Jogos Olímpicos e a Co-
pa do Mundo de futebol impõe um clima de urgência nesse processo todo. Os even-
tos esportivos são postos como datas-limites em que tudo deve estar pronto. Uma
situação diferente da que estamos acostumados: se nossa história possui incontá-
veis exemplos de obras que são inauguradas sem estarem prontas, agora as obras
precisam estar prontas dentro do prazo, custe o que custar.
Custe o que custar... esta expressão foi pontuada de forma proposital. A
data limite para o término das obras causa um sentimento de emergência que serve,
entre outras coisas, para evitar o controle do processo de reurbanização, sobre os
custos e também sobre eventuais violações de direitos. Tudo o que for feito, mesmo
sem compromisso com os princípios constitucionais do regime jurídico-admi-
nistrativo, passa a ser considerado válido e adequado, pois o cumprimento dos
prazos para entrega das obras passa a servir de justificativa.
Vivemos no âmbito de um Estado Democrático de Direito, em que existem
normas jurídicas que devem ser integralmente cumpridas. Neste caso específico,
as normas que protegem os (ex-)moradores estão dispostas na Constituição da
República, nos artigos 5º, XXII (direito de propriedade), 5º, XXIV (exigência de lei
para desapropriação de bens), 6º (direito à moradia) e 182, §3º (sobre garantia do
bem-estar dos habitantes da cidade e sobre a desapropriação urbana só poder se
dar após justa e prévia indenização em dinheiro), bem como no Decreto-Lei .3365/
1941 (que, recepcionado pela Constituição de 1988, regula as hipóteses de desa-
propriação por interesse público e o processo judicial de desapropriação).
Os locais em que grande parte das obras será realizada já são ocupados
por moradores, que serão removidos (aliás, que já estão sendo removidos) para
que as obras se iniciem. Muitas obras já começaram, apesar de os devidos processos
legais de desapropriação sequer terem sido iniciados.
Tudo isso é objeto da pesquisa em andamento. Para fins deste artigo, o
problema é reduzido a uma questão teórica envolvendo ponderação e sopesamento
de direitos fundamentais.
Segundo a teoria dos direitos fundamentais, estes devem sempre ser man-
tidos na maior medida possível, ainda mais por serem o núcleo de proteção indi-
vidual contra quaisquer interesses públicos. Em regra, conforme a teoria dos direitos
fundamentais mais abalizada, nenhum direito fundamental de primeira dimensão
sofre perda de seu núcleo essencial senão quando em conflito com outro direito
de igual dignidade.
Caso um direito fundamental qualquer sofra intervenção de um interesse
público, não há que se falar em sopesamento, mas em indenização integral. Daí, no
caso de direito de propriedade, a expressa referência constitucional a uma justa e
prévia indenização em dinheiro em caso de perda desse direito por conta de inte-
resse público.
O problema não se refere apenas ao direito de propriedade, mas ao direito
fundamental de moradia que, a exemplo do direito de propriedade, deve ser inte-
gralmente ressarcido pelo interesse público que o invadir, e não ser apenas so-
pesado proporcionalmente.
174
3. HIPÓTESES
Em nossa pesquisa, questionamos se haverá respeito aos direitos funda-
mentais dos (ex)moradores removidos de suas residências por conta das obras. A
pesquisa busca confirmar a hipótese, haja vista a instauração de um verdadeiro es-
tado de exceção dentro do Estado de Direito, que o interesse econômico, titularizado
por um determinado grupo social, não respeita os direitos de membros de outro
grupo (os moradores vítimas das remoções em regra não são capitalistas). Busca-
se confirmar, nesse sentido, que não há preservação de direitos quando tais direitos
são contrários aos interesses do capital. Busca-se confirmar, ainda, que tais interes-
ses econômicos jamais ficarão aparentes; ao contrário, estarão a todo o tempo
ocultos sob o manto estatal do interesse público, como se este fosse o único motivo
da realização dos eventos esportivos.2
Já neste artigo, por conta do estágio inicial da pesquisa, apresenta-se um
objeto eminentemente teórico. Nesse sentido, busca-se a confirmação de duas hipó-
teses, a saber:
_____________________________________________________________________________
3
Conforme DI PIETRO (2010:159), trata-se de desapropriação “o procedimento administrativo pelo qual o
Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou in-
teresse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indeni-
zação.”
seja, a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios, mediante declaração
de utilidade pública, pode desapropriar um bem imóvel.
O artigo 5º de tal decreto-lei expõe um rol de hipóteses para o que se consi-
dera utilidade pública, e a que interessa ao presente estudo consta da alínea j, cuja
redação foi dada pela lei n. 9785/1999: “i) a abertura, conservação e melhoramento
de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento
do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou
estética; a construção ou ampliação de distritos industriais.”
Portanto, essa declaração de utilidade pública emitida pela Administração
precisa conter a fundamentação legal em que se embasa a expropriação, além da
descrição e identificação do bem e da sua futura destinação. Ato que vincula o Ad-
ministrador Público, devendo ser objeto de controle pelo Poder Judiciário, na pró-
pria ação de desapropriação, caso sua presumida legitimidade seja questionada.
Surgem três efeitos após essa declaração: o bem fica submetido à força
expropriatória do Estado; inicia o prazo de caducidade para a declaração de utilidade
pública e ingresso com ação de desapropriação, a saber, em cinco anos nas desapro-
priações por necessidade ou utilidade pública e, em dois anos quando desapropria-
ção por interesse social; e por fim, as condições do bem ficam fixadas, podendo
assim o Poder Público penetrar no bem para fazer avaliações, desde que atue com
moderação e sem excesso de poder.
O artigo 15 do decreto-lei4 dispõe que é facultado ao Poder Público, em se-
de de ação judicial, a possibilidade de imitir-se provisoriamente na posse do imóvel
objeto da ação, sempre que alegar urgência e depositar judicialmente “determinada
quantia”,5 e que, no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), não precisa
ser o valor da justa e prévia indenização.
176 O STF, em reiteradas decisões – o que também acabou por direcionar o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nesse mesmo sentido –, realizou
a ponderação entre o interesse público e o direito à justa e prévia indenização. Nos
termos do voto do ministro relator Menezes Direito, no recurso extraordinário n.
191.97809 SP,6 a propriedade do bem somente é transferida à Administração após
a justa e prévia indenização em dinheiro. Porém, antes que isso ocorra, por conta
da urgência do interesse público, a Administração pode se imitir na posse do imóvel,
removendo o proprietário, mediante depósito de 50% do valor do imóvel apurado
em avaliação prévia, valor que não garante a este último quaisquer condições de
restabelecimento,7 especialmente em se tratando de proprietário de único imóvel
_____________________________________________________________________________
4
“Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685
do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens.”
5
As alíneas do parágrafo primeiro desse art. 15 tentaram definir essa quantia:
“§ 1º A imissão provisória poderá ser feita, independente da citação do réu, mediante o depósito:
a) do preço oferecido, se este for superior a 20 (vinte) vezes o valor locativo, caso o imóvel esteja sujeito
ao imposto predial; b) da quantia correspondente a 20 (vinte) vezes o valor locativo, estando o imóvel su-
jeito ao imposto predial e sendo menor o preço oferecido; c) do valor cadastral do imóvel, para fins de lan-
çamento do imposto territorial, urbano ou rural, caso o referido valor tenha sido atualizado no ano fiscal
imediatamente anterior.”
6
Esse julgado consolida esse entendimento, que existe desde e que foi reforçado em 2002, por força do
julgamento do recurso extraordinário 184.096-2 SP (ministro Néri da Silveira, cf. http://redir.stf.jus.br/
paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=227714), que faz referências ao recurso extraordinário
141.795-1 SP, cujo voto do ministro Ilmar Galvão já se posicionava dessa maneira em 1995), e também no STJ,
conforme comprova o voto do ministro Luiz Fux no julgamento do recurso especial 837862, de 2002, em
que desfia uma série de precedentes, tais como os Resp.n. 692519/ES, DJ. 25.08.2006; AgRg no AG n.
388910/RS, DJ. 11.03.2002; Resp. n. 74131/SP, DJ. 20.03.2000; RE n. 184069/SP,DJ. 05.02.2002; RE n. 216964/
SP, DJ. 10.11.1997. (cf. https://ww2.stj.jus.br/revistaeletro nica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq
=4565762&sReg=200702521064&sData=20090330&sTipo=91&formato=PDF).
7
Sobre o mesmo assunto, o Decreto-Lei 1.075/70 merece especial atenção. Ele regula a imissão provisória
na posse em imóveis residenciais urbanos, Vale o conhecimento das quatro considerações constantes de
residencial. O proprietário que tiver perdido a posse do imóvel por ordem judicial
só pode levantar até 80% desse valor enquanto durar a lide, a fim de discutir o valor
da justa e “prévia” indenização.8
O dever de indenizar a propriedade talvez já esteja pacificado. Entretanto,
o Estado, aparentemente, não tem cumprido com o dever de seguir as regras consti-
tucionais e legais do processo de desapropriação (algo a ser objeto de pesquisa
mais aprofundada), em especial quanto à definição do justo e prévio valor da inde-
nização. Não obstante, a realidade no município do Rio de Janeiro tem levando em
conta, nos processos de desapropriação, o valor real do imóvel para realização do
depósito judicial para imissão provisória na posse e início das realizações das obras,
nos termos do artigo 431 de sua Lei Orgânica.
_____________________________________________________________________________
9
“Art. 431. O processamento para desapropriação por interesse social e utilidade pública, para o atendimento
da política urbana e das diretrizes do plano diretor, adotará como valor justo e real da indenização do imóvel
desapropriado, o preço do terreno como tal, sem computar os acréscimos da expectativa de lucro ou das
mais-valias decorrentes de investimentos públicos na região.”
10
Cf. no portal de internet da prefeitura do Rio de Janeiro, http://www.rio.rj.gov.br/web/pgm/exibeconteu
do?article-id=608497. Acesso em 17 de outubro de 2011.
O proprietário do imóvel não pode sofrer, em nome do poder público,
nem perda patrimonial, nem perda das condições de moradia. Se a desapropriação
ocorreu por interesse público, a Administração é integralmente responsável pela
restituição do morador à condição anterior à perda de seu imóvel e sua moradia.
Para tanto, numa situação como a que ora acontece na cidade do Rio de Janeiro,
deveria o orçamento público ter sido aprovado pelo Poder Legislativo com a inclu-
são dos valores a serem pagos a todos os proprietários e a todos os moradores. O
dever de gastar apenas o que constar do orçamento público decorre do artigo 165
e seguintes da Constituição Federal, bem como da lei n. 4320/1964 (orçamento) e
da lei complementar n. 101/2000 (responsabilidade fiscal).
O sentimento de urgência causado pelo curto prazo de entrega das obras
de reurbanização para os Jogos Olímpicos e Copa do Mundo não poderiam ter jus-
tificado ou autorizado qualquer processo expropriatório sem prévia autorização
orçamentária. E tal autorização orçamentária deveria, necessariamente, considerar
os valores reais de mercado para promover a justa e prévia indenização em dinheiro
dos proprietários.
No que se refere aos megaeventos esportivos que acontecerão no Rio de
Janeiro, a cidade deve superar vários desafios para que o direito fundamental à
propriedade não seja deixado de lado, e um dos passos é o pagamento dessa justa
indenização nos termos ora apresentados.11
_____________________________________________________________________________
12
Porém, apenas um dos direitos fundamentais atingidos está sendo reparados com esta indenização, ou
seja, apenas a propriedade privada, deixando-se de considerar a violação do direito de moradia, que deve
ser igualmente reparada.
Na realidade, mesmo sendo a indenização certa e exigível, nem mesmo o
direito de propriedade está sendo respeitado; quando retiradas de suas residências,
o valor das indenizações pagas impossibilitam materialmente as famílias de adqui-
rirem outro imóvel de iguais qualidades, ensejando assim, como explicitado acima,
dano indenizável, dada a anormalidade (não se refere a obras “esperadas”, em es-
pecial por não se esperar que obras públicas atropelem direitos adquiridos) e espe-
cialidade do dano (por atingir apenas um grupo de pessoas que sofrem prejuízo –
material e extrapatrimonial– pela desapropriação de seus imóveis).
Quanto à garantia à moradia adequada nos mesmos moldes a que o expro-
priado possuía, assegurada como consequência ao comando estruturante da ordem
jurídica brasileira, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e também pelo mí-
nimo existencial, esta também deve ser indenizada. A segurança jurídica vai além
dos valores materiais que integram o patrimônio, alcançando os danos moralmente
tidos pela violação a este direito.
Primeiramente, tratemos de pessoas que têm desapropriadas suas residên-
cias regularmente registradas. A explicitada responsabilidade objetiva do Estado
deve proteger não apenas o direito de propriedade, mas também deve igualmente
preservar a imutabilidade dos direitos imateriais: ou seja, deve resguardar inde-
nização pelos danos morais sofridos por quem tem sua moradia expropriada abrup-
tamente, sem possi-bilidade de restabelecimento em iguais condições. Garantida
está essa reparação pelo art. 5º, X, da Constituição Federal: “são invioláveis a intimi-
dade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indeni-
zação pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Sendo constitucional-
mente incorporados, o Estado responde civilmente pelos danos morais causados,
não havendo ao Poder Público qualquer exceção ao dever de cumprir e preservar
os bens e direitos protegidos pela ordem jurídica (TÁCITO, 2005:95-102). 181
Em segundo lugar, há que se falar na situação de pessoas não-proprietárias,
mas que possuíam a posse dos imóveis objeto das desapropriações. Em regra, estas
pessoas não possuem muito mais que direito de moradia. Costumava-se entender
que estas possuiriam um direito muito frágil, já que não detém justo título dos imó-
veis em que residiam ou, ainda, por serem locatários de imóveis desapropriados,
nenhum direito lhes assiste. Algo que está mudando, em especial por conta do
atual estágio da Teoria dos Direitos Fundamentais, bem como pela aplicação não
apenas da Constituição, mas dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que
hoje encontram-se integrados ao ordenamento brasileiro,
No caso em estudo, trata-se da remoção de pessoas que possuíam moradia
e que, por conta do interesse público, deixaram de tê-la. Não se está, portanto, fa-
lando de um teórico direito à moradia, mas efetivamente de uma moradia concreta
e singular, que ainda que de modo precário, já se encontrava incorporada ao patri-
mônio dessas pessoas. Se o direito à moradia é um direito de natureza extrapatri-
monial, o direito de moradia se refere efetivamente a uma situação jurídica estabili-
zada, a ser entendida como direito adquirido e não como expectativa de direito.
Afinal, essas pessoas já possuíam moradia, ainda que irregularmente. Tais irregula-
ridades não têm força para causar a nulidade desse direito.
A Administração Pública tem tentado resolver esse problema conferindo
abrigos e residências emergenciais para as pessoas removidas do local das obras.13
_____________________________________________________________________________
13
Cf. artigo da revista Carta Capital, na página de internet http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-vale-
tudo-das-olimpiadas-2 (acesso em 10 de outubro de 2011), em que o Secretário de Habitação do Município do
Rio de Janeiro afirma que paga valores a título de indenização pela perda da moradia ou aceitarem remoções
a residências que estão em construção. No entanto, tais valores são irrisórios, em comparação com o real valor
do direito violado, e as residências em construção são ora distantes demais, ora de qualidade inferior a das moradias.
Percebe-se claramente que a Administração procura resolver o problema criado
por ela mesma por meio de uma ponderação entre o direito violado e o interesse
público. Algo inadequado e insuficiente.
_____________________________________________________________________________
15
GASPARINI (2011:892).Decorrente dessa definição, tem-se que o motivo que fundamenta o processo
expropriatório é o interesse público. Trata-se do interesse do todo, do próprio conjunto social, sendo
uma forma específica de manifestação do interesse das partes que o constituem, visto que é inconcebível
um interesse de todos que fosse, ao mesmo tempo, contrário aos interesses das partes que o compõem.
Por isso, o interesse público só se justifica na medida em que é um veículo de realização dos interesses
das partes que integram a sociedade.
receber uma quantia referente a perdas e danos, digna de uma reparação advinda
de uma ponderação de interesses, mas sim uma cabal indenização que lhes garanta
a aquisição de uma moradia digna.
Cumpre salientar, por fim, que a devida indenização aos moradores remo-
vidos deve ter duplo fundamento, ambos garantidos pela Constituição: seus direitos
de propriedade e de moradia.
Se, para fins indenizatórios, fossem considerados apenas os proprietários
dos imóveis objeto de desapropriação, a imensa maioria dos moradores das regiões
a serem desapropriadas restaria desamparada, visto que sua condição social econo-
micamente desfavorecida não lhes permitiu proceder qualquer regularização imobi-
liária (seja por meio de usucapião, seja pelo registro do imóvel).16 Em que pese muitos
moradores não possuírem justo título de suas residências, o fato de residirem em
suas casas é fato jurídico, comprobatório da existência de seu direito subjetivo de
moradia.
Pressupõe-se que o interesse público tem grande força na luta pelos inte-
resses da coletividade. Entretanto, tal como foi conceituado anteriormente, esse
interesse não poderá ser desvirtuado do interesse de cada indivíduo que compõe o
todo. Por isso, quando o interesse público está em exercício, deve ser para garantir
o bem estar de toda a sociedade, afirmando os direitos defendidos constitucio-
nalmente, tal como o da moradia, de suma importância para garantir uma existência
digna, basilar do princípio da dignidade da pessoa humana, e não para que injustiças
sejam cometidas e cidadãos se encontrem em situação pior da que estavam antes
da intervenção estatal em suas vidas.
10. CONCLUSÕES
O cerne da questão passa pelo tema da Responsabilidade Civil da Admi-
nistração Pública, sob a modalidade do risco administrativo, que encontra seu funda-
mento no art. 37, §6º da Constituição Federal, e consiste na obrigação da Admi-
nistração Pública de reparar danos patrimoniais causados a terceiro por agentes
públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las, exau-
rindo-se essa obrigação com o pagamento da indenização (MEIRELLES, 2010: 680-
693).
No caso em discussão, é evidente o nexo causal entre os atos dos agentes
públicos, empregados das empresas privadas na execução de função pública, e os
danos materiais causados aos administrados, ex-moradores das áreas que estão
sendo utilizadas pela Administração para construção de obras necessárias à rea-
lização dos eventos esportivos internacionais.
Quanto às duas hipóteses levantadas neste trabalho, consideramos que
ambas podem ser confirmadas:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVICH, Víctor e COURTIS, Christian. Los Derechos Sociales como Derechos
Exigibiles. Madri: Trotta, 2002.
DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2010.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Ma-
lheiros, 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros,
2010.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
TÁCITO, Caio. Responsabilidade do estado por dano moral. In Revista de Direito Ad-
ministrativo, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, pp.95-102.
O Papel do Estado na Efetivação
do Direito à Moradia
no Rio de Janeiro*
Gabriela Lema Icasuriaga (Coord.)
Ludmila Ribeiro Paiva
Luiz Eduardo Chauvet
RESUMO
O direito à moradia, direito social elencado no rol do artigo 6º da
Constituição da República por força da Emenda Constitucional 26,
de 14 de fevereiro de 2000, é compreendido como direito humano
fundamental, encontrando previsão formal expressa em vários ins-
trumentos político-jurídicos de efetivação. O espaço urbano, con-
tudo, precisa refletir o exercício material desse direito, que passa
pela organização e luta, de forma coletiva, das pessoas que ainda
não têm moradia digna. Nesse sentido, o trabalho buscará uma re-
flexão sobre o papel do Estado, de um lado como responsável pelo
modo como está organizado o espaço urbano e, de outro lado, como
impulsionador de políticas públicas eficientes e participativas que 189
possam alterar o desenho urbano para concretizar o direito a moradia
daqueles que são historicamente excluídos da propriedade e da pos-
sibilidade de morar dignamente nas cidades.
PALAVRAS-CHAVE
Teoria do Direito – Direito à Moradia – Espaço Urbano.
ABSTRACT
Housing Right, a Social Right inserted in the article 6th of the Republican
Constitution by the amendment number 26, of February, 14th 2000,
is understood as a fundamental human right, facing express formal
prevision in many political-juridical effectiveness instruments. Urban
Space, however, needs to reflect the material exercise of this right,
which passes through collective fight and organization of those people
who doesn’t have condign housing. Therein, the paper reaches a
reflection about the State roll, by one side as the responsible for how
is the urban space organized, and on the other hand as promoter of
efficient and participative public policies able to change urban design
to accomplish housing right of those who are historically excluded
of property and possibility of condignly living into cities.
KEYWORDS
Law Theory – Housing Right – Urban Space.
_____________________________________________________________________________
* Artigo produzido no âmbito do Núcleo de Pesquisa e Extensão “Poder Local, Política Urbana e Serviço
Social” – LOCUSS/UFRJ.
1 INTRODUÇÃO
José Afonso da Silva informa que a ordem social passou a ter dimensão ju-
rídica a partir da sistematização dos Direitos Sociais pela primeira vez na Cons-
tituição Mexicana de 1.917.1
Da mesma forma, a Constituição alemã de Weimar, de 1.919, trouxe essa
sistematização, tendo sido grande influência para a Constituição Brasileira de 1.934,
a primeira na história constitucional do país a tratar da ordem econômica e social.
Entretanto, conforme leciona o autor, no Brasil, foi somente com a Cons-
tituição da República de 1.988 que se dedicou capítulo próprio aos Direitos Sociais
e outro – separado – para a ordem social, embora intimamente ligados, numa inte-
rpretação sistemática, pela expressão “na forma desta Constituição”, contida no
artigo 6º da Carta Magna.
Visto esse importante resgate de José Afonso da Silva, em sede de concei-
tuação, ele traz sua compreensão atual no sentido de que “(...) os ‘direitos sociais’,
como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas
proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas cons-
titucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos; direitos
que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.”2
A partir desse conceito, o autor traz a sua idéia de que, sendo os Direitos
Sociais reflexos do Princípio da Igualdade (e, em última análise, do Princípio da Dig-
nidade da Pessoa Humana mesmo), eles não podem mais ser entendidos como nor-
mas programáticas, mas sim visando conferir maior eficácia a esses direitos, “preor-
denando situações jurídicas objetivas com vistas à aplicação desses direitos.”3 [grifos
nossos]
Cumpre ressaltar que a Constituição Brasileira de 1988 elenca um rol de
190 direitos sociais, mais precisamente no seu artigo 6º, incluído, portanto, no capítulo
‘Dos Direitos e Garantias Fundamentais’, a saber:
Visto isso e no tocante ao Direito à Moradia, ressalta-se que foi este incluído
no rol dos Direitos Sociais da Constituição Federal brasileira apenas no ano de 2.000,
por força da Emenda Constitucional n. 26. Contudo, mesmo antes já se entendia o
Direito à Moradia como expressão dos Direitos Sociais, o que se baseava na análise
sistemática do seu artigo 23, inciso IX, que reza:
_____________________________________________________________________________
1
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 5ª edição. Editora Malheiros. São Paulo,
2.008. p. 183.
2
SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 184.
3
SILVA, José Afonso da. Loc. Cit.
É certo que havia o entendimento de que o supramencionado artigo fosse
compreendido como expressão do Direito à Moradia, mas é inegável que o fato de
ter sido elencado entre os Direitos Sociais tenha trazido um status maior de visibi-
lidade na topografia constitucional e possibilidade de proteção.
É cediço na doutrina, a exemplo do que leciona Alexandre de Moraes4,
que, a despeito de se utilizar da expressão “direitos e garantias individuais”, quis o
legislador originário garantir uma proteção especial a todos os direitos e garantias
fundamentais, do que lhes deu o status de cláusulas pétreas, ou seja, aquelas que
não comporão propostas de emenda tendentes a lhes verem abolidas, por força
do artigo 60, parágrafo 4° da Constituição.
Com isso, nenhum direito social poderá ser suprimido do rol dos direitos
sociais, do que se vê impelido o Estado a cumprir o mandamento constitucional de
ver objetivamente preservados direitos como o de moradia, dentre outros.
Nesse contexto, como forma de efetivação dos mandamentos consti-
tucionais e legais para a proteção ao Direito Social de Moradia no espaço urbano
das cidades, cumpre ressaltar o papel central do município na política urbana.
A Constituição de 1988 alçou o município a um patamar de importância
nunca antes observado, colocando-o em pé de igualdade com estados, distrito fe-
deral e União, no rol dos entes federativos.
Essa análise pode ser feita pela combinação dos artigos 1º, caput, 1ª parte
(“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal...”) e do artigo 18, caput (“A organização político-
administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Cons-
tituição.”)
Nesse sentido, reconhecido como ente federativo, teve suas competências 191
constitucionalmente designadas elencadas no artigo 30, das quais destacamos:
_____________________________________________________________________________
4
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional 21ª Edição. Editora Atlas Jurídico. São Paulo, 2007. P. 181.
Nesse mesmo sentido: José Afonso da Silva (Comentário Contextual à Constituição) e Paulo Bonavides
(Curso de Direito Constitucional), dentre outros.
Pela leitura legislativa apresentada, é fácil perceber que a competência
municipal será ditada, em grande medida, pelos interesses envolvidos nas medidas
a serem tomadas, devendo o município ser reconhecido como o legítimo interes-
sado para o trato das questões de âmbito local.
Cumpre ressaltar, neste ponto, que, embora o artigo 24 da Constituição
Federal estabeleça a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Fe-
deral para legislar sobre Direito Urbanístico, não se exclui daí a competência mu-
nicipal, uma vez que, através de uma interpretação sistemática da Constituição,
deve-se conjugar tal artigo aos incisos I, II e VIII do artigo 30 supra transcrito.
Não se deve olvidar aqui, ainda, que a própria Constituição Federal esta-
belece, em seu artigo 21, inciso XX, que compete à União “instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes
urbanos.” Tal leitura, igualmente, não deve excluir a competência municipal, uma
vez que as diretrizes aqui tratadas não excluem as políticas urbanas na esfera local
a serem realizadas pelos municípios.
Por essa razão, é sedimentado o entendimento de que o município é o
principal responsável pelo desenvolvimento da política urbana e, por isso, a própria
constituição trouxe no caput do seu artigo 182: “A política de desenvolvimento ur-
bano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas
em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.” [grifos nossos]
No ano de 2.001, com o advento da Lei 10.257, o denominado Estatuto da
Cidade, passaram a ser regulamentados os artigos 182 e 183 da Constituição de
1988, que tratam da Política Urbana. Sendo assim, no bojo de uma série de ins-
trumentos de política urbana trazidos, o Direito à Moradia, nesse contexto, passou
192 a ter francamente ampliados o rol de elementos objetivos para sua proteção, o
que não se esgotou com essa lei, tendo surgido outras regras posteriores para a
efetivação desse direito.
Advindo somente quase treze anos depois da Constituição Federal, essa
lei tem uma função nobre de estabelecer diretrizes à política urbana, respeitando
os valores constitucionais e as funções sociais da cidade, deixando o mínimo de
brecha para que qualquer dos 5.565 municípios5 deixe de observá-los quando da
execução de suas políticas em âmbito local.
A realidade fática, contudo, leva a crer que tais instrumentos não tem sido
amplamente utilizados, fato que se observa pela quantidade de notícias de re-
moções de assentamentos precários e dos inúmeros movimentos sociais de luta
pela moradia existentes no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro e de diversas
outras cidades grandes e pequenas existentes no país.
Sendo assim, o presente artigo busca lançar um olhar crítico sobre o papel
do Estado na busca pela efetivação do direito social – constitucionalmente estabe-
lecido – à moradia.
_____________________________________________________________________________
6
Data de 1874 a primeira Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, sendo que os estudos
e propostas realizados por esta comissão não contaram com os recursos necessários para a sua
implementação por parte do poder público, o que obrigou a deixar em mãos de empreiteiros privados
obras de maior potencial de retorno de investimentos. Sobre este período ver Stuckenbruck, 1996.
7
Estes se expandiram na segunda metade do século XIX, como alternativa ao problema da habitação
popular, em espaços desocupados pelas camadas mais abastadas, que se deslocavam para as novas áreas
urbanizadas, valorizadas pelos serviços urbanos, como também para chácaras e em espaços elevados,
longe do perigo das pestes recorrentes no centro altamente denso. Consequentemente, casarões
abandonados foram sendo ocupados por diferentes famílias, subdividindo-os em pequenos
compartimentos, sem ventilação adequada e serviços de infraestrutura.
forçou as medidas higienistas iniciadas no século anterior, erradicando as habitações
de pobres por meio da remoção compulsória8.
A “limpeza social” do Centro e dos bairros em expansão não implicou no
traslado em massa de seus moradores para os subúrbios, como era esperado; gran-
de parte engrossou os bairros próximos ao espaço central, como Gamboa, Cidade
Nova, Caju, Lapa e propiciou o “neo-encortiçamento” – quartos de aluguel e peque-
nos apartamentos que albergavam muitas pessoas – e a incipiente favelização dos
morros. Até esse momento a participação do Estado, na reprodução da força de
trabalho, em constante aumento, tinha se limitado a algumas medidas de incentivo
às indústrias para que construíssem residências operárias higiênicas (as vilas
operárias) e construção de casas populares, insignificantes em relação à demanda.
A segunda metade do século XX inicia-se com um modelo de segregação
sócio espacial consolidado, que se colocou manifesto numa crise de habitação no
município do Rio de Janeiro, especialmente com a pouca oferta de imóveis, produto
da especulação imobiliária entre outros fatores e que atingiu duramente os
trabalhadores de baixa renda.
Vários fatores confluíram para que a entrada na década de 1960 acon-
tecesse sob o lastro de um processo de decadência econômica que se agudizou
com a transferência da capital para Brasília. O problema habitacional se tornara
crítico, o que levou à intervenção direta do Estado no mercado imobiliário urbano9,
com medidas tendentes a conter a especulação e que não conseguiram se efetivar
devido às mudanças ocorridas no espectro político administrativo do Estado sob a
ditadura militar.
A questão habitacional será retomada no fim da década de 1970 e início
dos anos 1980, em parte explicada pela emergência de movimentos urbanos reivin-
194 dicativos, em decorrência do ressurgimento de lutas sociais nos bairros de periferia
e favelas, e pelo processo de redemocratização que, com o restabelecimento do
voto direto para os cargos executivos e legislativos das capitais estaduais, precisava
da legitimidade e apoio popular.
Apesar dos ganhos formais obtidos pelos movimentos de luta pela moradia
na Constituição Federal de 1988 e posteriormente no Estatuto da Cidade (Lei 10.1257/
01) entre outros instrumentos jurídico-legais vigentes, o confronto com as forças
políticas e sociais no poder não foi suficientemente capaz de reverter a forte ten-
dência da dinâmica histórica de construção seletiva do espaço urbano em beneficio
do capital e de algumas camadas sociais.
Do ponto de vista conceitual, a atual Política Nacional de Habitação, apro-
vada em 2004, trouxe consigo o conceito de “moradia digna”, sendo “aquela loca-
lizada em terra urbanizada, com a situação de propriedade regular e com o acesso a
todos os serviços públicos essenciais por parte da população (transporte coletivo, á-
gua, esgoto, luz, coleta de lixo, telefone e pavimentação) e servidas por equipamentos
sociais básicos de educação, saúde, segurança, cultura e lazer” (MCidades, 2006:48).
Uma concepção de política habitacional inserida no desenvolvimento urbano inte-
grado, não se restringindo a habitação apenas a casa, mas incorporada ao direito à
_____________________________________________________________________________
8
Estima-se o número de desalojados pelo prefeito Pereira Passos em vinte mil pessoas.
9
Durante o governo do presidente João Goulart (1961 –1964), no contexto da elaboração das Reformas
de Base, foi elaborado um projeto de reforma urbana com a participação de políticos, técnicos e
intelectuais, centrando as discussões, fundamentalmente, na questão da moradia (Souza, 2000). Esse
documento continha um estudo e um conjunto de propostas que pretendiam “incluir a habitação e a
cidade como tema das ‘reformas de base’”, sendo o planejamento um instrumento privilegiado.
infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos e sociais, buscando garantir o ple-
no direito à cidade (MCidades, 2006:12).
Também, nota-se, claramente, um enorme avanço na criação e regulamen-
tação de leis e instrumentos urbanísticos e no desenvolvimento de metodologias
que objetivam criar oportunidades de acesso à terra urbana e infraestrutura às
camadas sociais de menor poder aquisitivo, assim como proteger esses grupos so-
ciais no seu direito à moradia. Não obstante, no Rio de Janeiro, como em muitas
outras cidades da federação, assistimos à intensificação de medidas remocionistas
em contraposição a todos os avanços protetivos da nova legislação.
Um século após a reforma urbanística de embelezamento e limpeza pro-
movida e executada pelo então prefeito da cidade do Rio de Janeiro Pereira Passos,
atualmente vivenciamos uma intervenção similar, não somente pelo seu formato e
dimensão, mas fundamentalmente pelo impacto na população citadina, es-
pecialmente naquela moradora dos espaços centrais.
_____________________________________________________________________________
10
Transformações essas submetidas à lógica de um determinado modo de produção e de uma
correspondente estrutura político-institucional.
11
SASSEN, Saskia. As Cidades na Economia Mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998. p. 34.
12
Embora os conceitos de “cidade global” ou “cidade mundial” tenham surgido na década de 1980, fazendo
referência às transformações urbanas dentro do quadro da reestruturação produtiva em curso nos países
centrais, eles se generalizam como categoria analítica a partir da década de 1990. Nesse sentido,
ressaltamos o trabalho desenvolvido por Sassen (1991), que atribui essa denominação a cidades como
Nova Iorque, Tóquio, Londres, Paris, Frankfurt, Los Angeles, Cingapura, Hong Kong, Miami, Cidade do
México, São Paulo e Bombaim.
bano”, que pretende alterar as engrenagens da máquina cultural e estética e dar
uma nova imagem à cidade13.
No plano internacional, tais cidades precisam competir para atrair novos
investimentos de capital e tecnologia, competir para sediar novas indústrias e ne-
gócios, competir no preço e na qualidade dos serviços e na atração de força de tra-
balho qualificada, a única forma de sobreviver à economia globalizada. Dentre as
estratégias promovidas para situar as cidades na concorrência mundial, a rea-
bilitação de áreas urbanas centrais constitui assunto recorrente na política urbana
em vários países, tanto no centro do capitalismo mundial quanto na sua periferia.
No Brasil, embora não seja um tema novo, assume maior dimensão e dinamismo
nos dias atuais, com a implementação de vários programas voltados para a re-
novação urbana de áreas centrais degradadas.
Desde o início dos anos 1990, surge na cidade do Rio de Janeiro o ideário
do empreendedorismo urbano. Buscando maior eficácia administrativa e avaliando
a necessidade de disciplinar o gasto público, junto à idéia de que o executivo mu-
nicipal poderia exercer importante papel no estímulo e atração de investimentos
privados, o Plano de Governo de 1993-1996 previa a descentralização em sub-
prefeituras que tinham por atribuição “criação de condições de atratividade para
implantação de novos investimentos do setor produtivo na cidade e, par-
ticularmente, no setor imobiliário, comercial e de serviços nas áreas mais centrais”.14
COMPANS (2005) observa, ainda, que no estímulo ao desenvolvimento
econômico caberia à iniciativa municipal, além do apoio institucional e da iden-
tificação de oportunidades de investimentos, o ordenamento urbanístico e pai-
sagístico das áreas públicas, sendo prioridade o restabelecimento da “ordem ur-
bana”.15 Igualmente, o uso sistemático das “tendências globais” como parâmetros
196 do desenvolvimento local demonstra que o paradigma adotado é, nitidamente, o
da cidade global, cuja lógica de organização social, econômica e espacial deve estar
subordinada ao mercado global16.
Apesar de tais idéias terem sido consubstanciadas no antigo Plano Estra-
tégico de 1993, na gestão César Maia, muito da sua essência permanece na atua-
lidade, atingindo até alguma concretude, como se observa no projeto de reabilita-
ção da região portuária da cidade.
Desde a transferência da capital para Brasília, na década de 1960, a área
central do Rio de Janeiro teve perdas significativas em termos de dinamismo eco-
nômico e também populacional, tal como demonstram os dados dos últimos censos
demográficos, inclusive com crescimento negativo. O número de domicílios par-
ticulares permanentes no Centro registrou um crescimento percentual negativo
na ordem de 16%, no intervalo censitário de 1991 a 2000.
Segundo dados dos censos de 2000 e 2010, o desenvolvimento urbano do
município aponta para o crescimento das favelas e periferias. Conforme o censo
_____________________________________________________________________________
13
O Habitat II recupera idéias e conceitos de urbanismo que têm sua gênese na gestão urbana das cidades
americanas da década de 70, a partir do esforço dos administradores urbanos para enfrentar a mobilização
social e política e as disputas étnicas. Essas intervenções, de caráter fundamentalmente simbólico,
buscavam uma nova coesão social fazendo ressurgir a idéia de vizinhança e o espírito cívico expresso em
obras monumentais que despertassem o orgulho pela cidade par i passu significar um novo atrativo para
a instalação de novos negócios que reativassem a “máquina de produzir riquezas” (Molotch, apud Arantes,
op. cit.).
14
In COMPANS, Rose. Empreendedorismo urbano: entre o discurso e a prática. São Paulo: Editora UNESP,
2005. p. 187.
15
Op. cit. p. 188.
16
Op. cit. p. 197.
de 2000, na década de 1990 a 2000, foi constatada uma redução de população nas
AP 1 e AP 217 (excetuando-se nesta região o bairro de Vila Isabel); a AP 318 manteve
um ritmo de crescimento entre 0,8 e 0,6 % aa., as AP 4 e AP 5 continuaram sendo as
áreas de maior expansão, apresentando taxas de 3,4 e 2,2% respectivamente. As di-
ferenças internas nessas duas áreas são consideráveis, cabendo à Barra da Tijuca o
maior dinamismo dentro da AP 4, à razão de 8% aa; e na AP 5, Santa Cruz foi o bair-
ro de maior crescimento com 5% aa.
Entre as cinco áreas de planejamento, a AP 1 e a AP 2 tiveram variação ne-
gativa, de 11,66% a primeira e de -3,4% a segunda. A AP 3, embora não tenha diminuído
em conjunto, pois apresentou um crescimento relativo de 1,27%, registrou dis-
paridades internas marcantes, com várias regiões administrativas com crescimento
negativo, enquanto outras cresceram a taxas mais elevadas que em anos anteriores.
A AP 4 e AP 5 continuaram a evidenciar crescimento significativo, a primeira de 29,59%
e a segunda de 20,45% na década.
Segundo dados do IPEA e do IBGE, a variação de população, no período
transcorrido entre os censos demográficos de 1970 e 2000, mostra diferenças pro-
fundas entre espaços da cidade. A Área de Planejamento 119 foi aquela que registrou
o decréscimo maior em número de habitantes nesses 30 anos, observando-se, em
2000, quase 27% a menos de população. Internamente as regiões administrativas
que participaram mais intensamente dessa redução foram o Centro e Santa Teresa
que diminuíram em 37,48% e 36,39% respectivamente. Fora da AP1, as regiões admi-
nistrativas de Copacabana (AP2) e Ramos (AP3) também diminuíram signifi-
cativamente sua população residente, a primeira em 32,63% e a segunda em 35,89%.
Por outro lado, os ganhos populacionais de algumas regiões durante o mesmo perío-
do podem ser surpreendentes20.
A Área de Planejamento 4 teve um aumento de 182,99%, sendo que a Barra 197
da Tijuca, que praticamente iniciou a ocupação neste período, tinha em 1970 o equi-
valente a 5.779 mil habitantes, e em 2000 alcançou 174.353 mil residentes na região,
_____________________________________________________________________________
17
A AP 2, onde se localizam os bairros tradicionais das Zona Sul e Norte, e também as favelas desta área,
apresentou crescimento negativo em todas as regiões, sendo Tijuca e Vila Isabel as que tiveram maior
perda populacional, na faixa de 6% cada uma, seguidas por Copacabana e Botafogo com crescimento
negativo de 5% em ambas regiões, porém registra-se um aumento significativo de 31,34% habitantes na
Região Administrativa da Rocinha.
18
O conjunto da AP 3 manteve quase estável o número de residentes, ainda que algumas análises urbanas
revelam que esta parte da cidade parece mostrar sinais de revitalização, com novos empreendimentos
imobiliários e uma oferta de infra-estrutura urbana e de serviços, como escolas, clínicas e comércios. O
preço da moradia também constitui um atrativo, embora nesta área se constate um crescimento
considerável das favelas e, sobretudo, da violência que contribuem para criar um ambiente de maior risco
para quem procura uma opção de moradia. Internamente a AP 3 revela particularidades, principalmente
entre as favelas da região que revelam as maiores variações de população, enquanto a Região
Administrativa do Jacarezinho teve um decréscimo de 11,24%, a região administrativa da Maré cresceu
19,54% e as favelas do Complexo do Alemão aumentaram a sua população em 4,81%. As regiões
administrativas de Anchieta e Pavuna, também registram crescimento em torno 10% cada uma. Os bairros
tradicionais desta área como Inhaúma, Méier, Irajá tiveram uma diminuição entre 3 e 6% da sua população,
enquanto Madureira Ramos e Penha mostraram-se quase estáveis, com aumentos moderados entre 0,5%
e 2%”.
19
A Área de Planejamento 1, correspondente as regiões administrativas do centro da cidade,
tradicionalmente desestimulado pela legislação como área residencial, apresenta as conseqüências de
um processo de vazio urbano, porem, existem indícios recentes de recuperação de bairros próximos
como Gamboa, Santo Cristo, Cidade Nova, São Cristóvão; assim como alguns projetos para a área portuária,
claro exemplo de degradação, com prédios interditados e galpões abandonados; além da recuperação de
prédios históricos no centro antigo e a promoção de atividades culturais. Mesmo assim, todas as regiões
administrativas desta área apresentaram diminuição de população a exceção de Paquetá que cresceu 5%
na última década. A maior diminuição de população residente foi a da Região Administrativa II (AR2),
correspondente ao centro histórico, que registrou 20,28% de população a menos que na década passada,
tendo sido a maior perda no conjunto da cidade.
20
ICASURIAGA, Gabriela M. Lema. Fim de Linha: Transporte e segregação no Rio de Janeiro. Tese de
doutorado do PPGSS/ESS/UFRJ, 2005.
isto equivale a um aumento de 2.917%. A Região Administrativa de Jacarepaguá
também manteve alto seu crescimento, chegando a quase 100% no intervalo. A
Área de Planejamento 5, que congrega os bairros da Zona Oeste da cidade, também
cresceu num ritmo bem superior à media da cidade, 124,31% em conjunto, sendo a
Região Administrativa de Guaratiba a que mais cresceu (234,98%), seguida por Cam-
po Grande (143,12%).
Se analisarmos o último interstício censitário, correspondente ao período
1991/2000, observamos mudanças mais recentes na localização espacial da popula-
ção carioca, que apesar de confirmarem a tendência verificada nas últimas décadas
guardam algumas particularidades relevantes para o nosso objeto. Na década de 1990,
a Região Metropolitana do Rio de Janeiro cresceu a um ritmo menor que nas déca-
das anteriores, registrando o menor crescimento entre todas as metrópoles brasi-
leiras (0,8% na primeira metade da década de 90). Também verificamos uma redis-
tribuição populacional interna à cidade na qual se destaca uma tendência à expan-
são dos bairros mais distantes do Centro21.
Apesar dos fortes sinais de deterioração e abandono, a Zona Portuária do
Rio é um dos espaços mais consolidados e densos de infra-estrutura, especialmente
em termos de serviços de transportes e equipamentos urbanos, e de postos de tra-
balho da cidade. Sua localização também é privilegiada pelas principais vias de aces-
so e circulação. O estoque imobiliário da área apresenta alguns vazios urbanos e
muitos prédios abandonados, alguns com uma situação fundiária ainda indefinida.
Esta situação, somada às recentes decisões de fortes investimentos por parte dos
poderes públicos, começa a evidenciar efeitos de aquecimento no mercado imo-
biliário e do processo especulativo nessa área.
Várias intervenções públicas e privadas merecem destaque. Dentre elas,
198 destacamos o Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais que objetiva a
“recuperação do estoque imobiliário subutilizado, promove o uso e ocupação demo-
crática dos centros urbanos, propiciando o acesso à habitação com a permanência
e a atração de diversas classes sociais, principalmente as de baixa renda, além do
estímulo a diversidade funcional recuperando atividades econômicas e buscando a
complementaridade de funções e a preservação do patrimônio cultural e am-
biental”22.
Para além, o recente projeto de revitalização do Porto do Rio foi lançado
oficialmente no dia 23 de junho de 2009, e prevê várias obras de infra-estrutura
que irão modificar substancialmente a dinâmica de tráfego de veículos e circulação
de pedestres no entorno, a exemplo da derrubada do Elevado da Perimetral, a mu-
dança do local do píer de navios de turismo, a construção de uma garagem subter-
rânea na Praça Mauá, entre outros.
Ainda, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, assinou onze
documentos, incluindo decretos e convênios, que permitem que as intervenções
sejam postas em prática. O primeiro deles é o protocolo de cooperação federativa
entre a União, o Estado e o Município do Rio de Janeiro, firmado para acompanhar
a execução do projeto e definir o modelo de gestão conjunta em longo prazo.
A renovação urbana da região portuária do Rio de Janeiro vem há décadas
sendo discutidas por diversos profissionais. A requalificação desta área abre portas
para novos investimentos e busca transformar radicalmente o espaço e suas fun-
ções urbanas. Não se pode, no entanto, ignorar a existência de um grande conjunto
_____________________________________________________________________________
21
Idem.
22
SNPU, www.cidade.gov, acesso em 27 de julho de 2007.
de residências e a forte presença da cultura do samba na região. Este tecido histórico
e cultural permeia a região portuária, uma das primeiras a serem ocupadas na
cidade, e que se desenvolveu em função das atividades no Porto dos séculos XIX e
XX.
Embora abrigue vários galpões e prédios subutilizados, o que configura
mais de 60% dos imóveis da região, a região portuária abriga um conjunto residencial
de grande valor histórico, arquitetônico e cultural, mesmo em áreas ocupadas por
população de baixa renda. Na região estão instaladas as mais antigas escolas de
samba da cidade, como a primeira delas, a Vizinha Faladeira, hoje ameaçada de re-
moção, na subida do Morro da Providência está a casa onde nasceu Machado de
Assis, e há um quilombo urbano em processo de reconhecimento, o Quilombo da
Pedra do Sal.
A história fervilha na região portuária e a cada dia que passa, mais desco-
bertas vão sendo feitas. Algumas áreas hoje foram transformadas em sítios arqueo-
lógicos da cultura negra na cidade. No entanto, o projeto Porto Maravilha, com a
idéia de renovação urbana completa, vem desconsiderando a existência de um local
de moradia repleto de relações sociais que conferem a ambiência atual deste bairro.
A região do Porto abriga além de sua população originária dos Morros da
Providência, Conceição e do Pinto, em sua maioria de baixa de renda23, também
conta com um grande número de imóveis abandonados, boa parte deles ocupados
por famílias sem teto. A maioria das ocupações não possui organização política,
como se vê nos squatting movements24 de Amsterdã. No entanto, não podemos ol-
vidar que foram feitas tentativas nesse sentido. Em 2004 e 2005, um uma série de
movimentos sociais e universitários apoiaram a formação de várias ocupações na
região portuária do Rio de Janeiro, dando origem às ocupações Quilombo das Guer-
reiras, Flor do Asfalto, Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga e Zumbi dos Palmares. 199
Buscava-se assim, requalificar o espaço urbano degradado e trazer vida
nova para os imóveis abandonados, promovendo o direito à moradia para centenas
de famílias sem teto. A região ainda conta com algumas ocupações com tal perfil
de moradia coletiva e autogestionária, como é o caso da Flor do Asfalto e Chiquinha
Gonzaga. Mas atualmente, uma série de fatores provocou a desarticulação das de-
mais ocupações, que hoje se assemelham às encontradas na Rua do Livramento,
mais precárias e sem organização política interna.
Ao observar os mapas disponíveis no site da prefeitura notam-se quatro
grandes áreas para uso comercial e uma única para habitação de interesse social, o
que vale destacar é esta área atualmente é utilizada como habitação de baixa renda
– o Morro da Providência. Diante disso, fica claro que a vocação eleita pelo poder
público para a região é a de abrigar um outro perfil de moradores e de comércio.
Inclusive, está prevista para a área a construção da nova sede do Banco Central e a
flexibilização da regulação urbanística no sentido de permitir prédios de até 50
pavimentos (que não se enquadram no modelo de habitação de interesse social).
_____________________________________________________________________________
23
72,4% da população da região portuária tem renda familiar de até 3 salários mínimos, segundo dados da
Pesquisa Sócio-Econômica Porto do Rio (dez. 2002). Coordenação: Diretoria de informações da Cidade do
DIC-IPP/AGRAR Consultoria e Estudos Técnicos - p. 20, gráfico 14. In LOBO, Maria da Silveira. Porto
Maravilha: O EIV do Professor Pancrácio. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/
minhacidade/11.129/3842.
24
Marcelo Lopes de Souza os define como movimento social urbano em sentido forte, ou seja, um ativismo
capaz de articular diferentes questões, politizando a problemática da ocupação dos imóveis mantidos
vazios por razões especulativas e lutando para humanizar o espaço urbano, através da criação de novos
vínculos entre os moradores e o local onde residem. In SOUZA, Marcelo Lopes de. A prisão e a ágora:
reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006. p. 281.
A partir desta constatação a questão que se impõe é: quem serão os verdadeiros
beneficiados com o Projeto?
_____________________________________________________________________________
Programa para a realização de obras de urbanização e infraestrutura, oferta de serviços públicos, novas
25
moradias e cadastramento e reassentamento de famílias pelo programa Minha Casa, Minha Vida. O Morar
Carioca integra o pacote de obras para as Olimpíadas de 2016 e é financiado através de parcerias com o
Governo Federal e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Informação extraída de http://
www.cidadeolimpica.com/urbanizacao-que-integra-as-favelas-ao-asfalto/.
servado no documento de estudo de viabilidade econômica da OUC, que visa não
apenas subsidiar o agente operador e regulador da OUC, no caso a CDURP, mas
também e fundamentalmente os investidores.
Não existe uma estimativa sobre o número de famílias diretamente atin-
gidas pelas remoções. O representante da CDURP (Concessionária de Desenvol-
vimento da Região do Porto do Rio) afirmou que há uma estimativa de 250 famílias
afetadas no asfalto. Dificilmente a estimativa está correta, tendo em vista que so-
mente uma ocupação, a Machado de Assis, abriga aproximadamente 150 famílias.
Já o Morar Carioca Providência prevê a remoção de 832 residências, 515 unidades a
serem removidas em razão de “risco geotécnico, estrutural e insalubridade” e 317
realocações necessárias para a realização do projeto urbanístico26.
Outra questão extremamente importante e freqüentemente levantada
nas reuniões comunitárias é a ausência de publicidade dos projetos. Não estão dispo-
níveis para consulta nenhum dos projetos, planta baixa das intervenções, nem o
Plano de Reassentamento, com o a totalidade de residências afetadas e as propos-
tas para a realocação das famílias. São disponibilizados apenas vídeos feitos com
animação computadorizada e simulações virtuais, o que dificulta a quantificação
do número de famílias ameaçadas de remoção. O Estudo de Impacto de Vizinhança
apresenta diversas falhas, irregularidades e informações falaciosas27.
Por outro lado, alguns dados divulgados na página do Porto Maravilha
mostram a expectativa de aumento de cerca de 10 mil moradias no local, no entanto
nenhuma delas referentes a habitação de interesse social. O que existe concre-
tamente é a possibilidade de reforma de casas e prédios na região, através do Pro-
grama Novas Alternativas, que é voltado para famílias de renda mais elevada28.
Na planilha de empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida,
está prevista a construção de poucas unidades na região central da cidade e suas 201
imediações, e nenhuma delas voltada para famílias de 0 a 3 salários mínimos, apesar
desta ser a faixa de renda da população atualmente residente na região portuária.
Para fazer frente a tais projetos, já começaram a surgir alguns espaços de
organização comunitária, como o Fórum Comunitário do Porto, que reúne mora-
dores da região e suas imediações, bem como diversas organizações, como movi-
mentos sociais, acadêmicos, mandatos de vereadores, organizações não go-
vernamentais, representantes da Federação das Associações de Moradores do Mu-
nicípio do Rio de Janeiro e do Quilombo da Pedra do Sal, dentre outros apoiadores.
O Fórum surgiu em janeiro de 2011 com o objetivo de debater o Projeto Porto Ma-
ravilha e suas implicações para a população afetada, e discutir estratégias para
evitar violações de direitos e garantir a preservação do patrimônio cultural lá exis-
tente dando visibilidade à identidade local.
_____________________________________________________________________________
26
Informações extraídas de material informativo do Morar Carioca Morro da Providência que não está
mais disponível ao público.
27
Foi verificado que os profissionais que realizaram o EIV não apresentaram registros profissionais, e o
Estudo afirma que a oferta de matrículas pelas redes municipal e estadual de ensino atende à demanda
atual, apesar da reivindicação dos moradores por uma escola de ensino médio e de uma escola técnica
seja datada de pelo menos duas décadas. E em relação aos equipamentos de saúde, o diagnóstico conclui
que não há demanda de novos centros de atendimento médico, ignorando o fato de que não há nenhum
atendimento de emergência na região. In LOBO, Maria da Silveira. Porto Maravilha: O EIV do Professor
Pancrácio. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ minhacidade/11.129/3842 e GOULART,
Simone de Oliveira. Análise preliminar do capítulo: Aspectos Legais do Estudo de Impacto de Vizinhança
– EIV do Porto Maravilha de Disponível em http://redepv.org.br/voluntariosrio/2011/03/analise-preliminar-
do-capitulo-aspectos-legais-do-estudo-de-impacto -de-vizinhanca-eiv-do-porto-maravilha/
28
Em materiais de divulgação da Operação Urbana Consorciada do Porto, como boletins informativos e/
ou produção de materiais de apresentação audiovisual, há a veiculação da produção de aproximadamente
500 unidades habitacionais através do Programa Novas Alternativas da Prefeitura do Rio, tem como público
alvo famílias com renda a partir de 5 salários mínimos.
A organização e a resistência comunitária já propiciaram alguns êxitos na
negociação e a pressão política sobre o executivo municipal também propiciou al-
guma visibilidade midiática para a reivindicação dos moradores pelo respeito ao di-
reito à moradia e à permanência dos mesmos em seus locais de origem.
_____________________________________________________________________________
29
ALFONSÍN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: Instrumentos e Experiências de Regularização Fundiária
nas Cidades Brasileiras. Observatório de Políticas Urbanas: IPPUR; FASE. Rio de Janeiro, 1997. P. 24.
À guisa do exposto, algumas considerações podem ser feitas sobre o con-
ceito de Regularização Fundiária apresentado.
É certo que, num primeiro momento, Regularização Fundiária pode ser
entendida como um procedimento de regularização do exercício da posse e da
propriedade tão-somente em seu aspecto jurídico, atendo-se ao âmbito legal e re-
gistral.
Entretanto, não somente no que tange a Regularização Fundiária, mas
também o Direito à Cidade e o Direito à Moradia, não se pode admitir que o Direito
– sendo um todo complexo e tendo a Constituição Federal como norma superior a
ser respeitada por todo o ordenamento – vislumbre um procedimento de tamanha
intervenção na vida das pessoas, na dinâmica da cidade e na questão social em des-
conexão com outros tantos procedimentos jurídicos, físicos, sociais e ambientais
que pretendam ver efetivado o máximo de direitos e garantias no espaço de sua
atuação.
Com isso, sabiamente, Betânia Alfonsín trouxe seu conceito no sentido
de nos alertar que a Regularização Fundiária é, num primeiro momento, uma inter-
venção pública, ou seja, uma atuação do poder público ou de entidades que atuem
em seu nome, no exercício de atividade pública.
Assim, faz-se imperioso reconhecer que um procedimento de Regu-
larização Fundiária se dá por meio de uma política pública, o que, nos dizeres de
Ronald Dworkin, seria “aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser al-
cançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social
da comunidade.”30
Por outro lado, cumpre defrontarmos ao fenômeno da omissão do Poder
Público, o que não deixa de significar uma política pública, mas no sentido de um
não-agir, o que é inconcebível se entendermos os direitos sociais como normas de 203
concretização obrigatória pelo Estado31.
Para além, Betânia Alfonsín informa que o procedimento de Regularização
Fundiária deve abranger os aspectos jurídico, físico e social, de maneira a ver a
legalização da permanência das populações que vivem em áreas irregulares, mas
também que vejam efetivados o máximo do rol dos Direitos Sociais elencados pela
Constituição Federal em seu artigo 6º, de maneira a terem respeitadas a qualidade
de suas vidas, a cidadania e, em análise ampla, a Dignidade da Pessoa Humana,
princípio basilar da República Federativa do Brasil.
Nesse sentido, ao dar início a um processo de Regularização Fundiária, o
poder público deve ter em mente, que o mesmo pressupõe, por exemplo, in-
tervenção no campo do saneamento básico, da política de transportes, do acesso
ao ensino, da geração de trabalho e renda, enfim, dos meios necessários à efe-
tivação dos direitos sociais básicos.
_____________________________________________________________________________
30
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 2º Edição. Tradução de Nelson Boeira. Editora Martins
Fontes. São Paulo, 2002. P. 36.
31
José Afonso da Silva, em obra denominada Comentário Contextual à Constituição, afirma que o direito
à moradia consiste no direito de se obter uma moradia digna e adequada, revelando-se como um direito
positivo de caráter prestacional, porque legitima a pretensão de seu titular à realização do direito por via
de ação positiva do Estado. Nessa esteira, a não prestação por parte estatal ensejaria o direito de ação
junto ao Poder Judiciário para que aquele que se vê prejudicado por esse não agir veja respeitado o seu
direito. Nesses casos – de socorro ao Poder Judiciário para ver cumpridos deveres positivos frente aos
quais o Executivo se coloca omisso – verifica-se o chamado ativismo judicial, que se entende como o
controle judicial de políticas públicas. Sobre este tema, recomendo a leitura da obra de autoria de Alceu
Maurício Júnior, intitulada “A Revisão Judicial das Escolhas Orçamentárias: a Intervenção Judicial em
Políticas Públicas”. (Editora Forum. Belo Horizonte, 2009).
Para tanto e de forma a ver uma efetiva cobrança de tal postura pelo Poder
Público, é fundamental a fiscalização e a participação social em todo o procedi-
mento e, com isso, o Estatuto da Cidade traz, nos artigos 43 e seguintes, o dever de
observância de uma gestão democrática da cidade.
A verificação da necessidade de uma gestão democrática da cidade, aliás,
é fruto de uma luta antiga, que hoje deixa claro que o Direito à Moradia e o instru-
mental para sua defesa são conquistas, em grande parte, de movimentos sociais
que se dedicaram à luta pela moradia no Brasil e que a permanência das conquistas
ainda necessárias se fará através de políticas públicas sensíveis, levadas a cabo pelos
representantes democraticamente eleitos por toda a sociedade, devendo tais
políticas serem eficazes ante o anseio principiológico constitucional de se construir
uma sociedade livre, justa e solidária.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito à moradia, como direito humano fundamental protegido pela
Constituição, tem previsão formal expressa em vários instrumentos político-ju-
rídicos de efetivação e, todavia, o espaço urbano precisa refletir o exercício material
desse direito, que passa pela organização e luta, de forma coletiva, das pessoas
que ainda não têm moradia digna.
Nesse contexto, avaliamos que é preciso refletir sobre o papel do Estado,
de um lado, como responsável pelo modo como está organizado o espaço urbano
e, de outro lado, como impulsionador de políticas públicas eficientes e participativas
que possam alterar o desenho urbano para concretizar o direito a moradia daqueles
que são historicamente excluídos da propriedade e da possibilidade de morar dig-
namente nas cidades.
204 Assim, é de se discutir a questão do papel do Estado em dar concretude e
efetividade ao direito à moradia e à cidade, constitucionalmente garantidos, em
razão da inaplicabilidade imediata dos dispositivos constitucionais e do Estatuto
da Cidade. Cabe ao Poder Público Municipal, definir em legislação específica, como
o Plano Diretor, a regulamentação dos instrumentos para a efetivação do direito à
moradia e reversão do quadro de déficit habitacional, nos moldes da gestão de-
mocrática e participativa da cidade. No entanto, na análise das práticas atuais do
Poder Público na área objeto de estudo, a política urbana vem sendo conduzida
por linhas muito tortas, como se observa no retorno à política de remoções e expul-
são da população de baixa renda para a periferia da cidade.
Igualmente, é necessário repensar os rumos da prática jurídica, que ainda
carrega consigo traços do ideário positivista, qual seja, de total afastamento do
pensamento filosófico. O conhecimento do direito passou a implicar num estudo
aprofundado das regras jurídicas, do seu funcionamento e da sua lógica, sem que
houvesse necessidade de conhecer a realidade da produção econômica, das rela-
ções sociais ou políticas.
Muitos juristas passaram a considerar as regras como essência do direito,
sem diferenciar a teoria da prática e ignorando que a normatividade nasce da neces-
sidade de cada organização social, portanto, da vida em sociedade, e não deve ter
qualquer pretensão científica32. O corpo de leis registra e sanciona, em cada mo-
mento histórico, um estado de relações de forças e as conquistas dos dominados,
_____________________________________________________________________________
32
MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
que se convertem em saber adquirido e publicamente reconhecido33, no entanto,
ainda hoje se observa a dificuldade dos operadores do direito em distinguir o sujeito
de direitos, universal e abstrato, do sujeito político, concreto.
O direito e a jurisprudência são reflexos diretos das relações de forças
existentes, nas quais se expressam as determinações econômicas e os interesses
dos dominantes34. Se faz necessária uma reinterpretação da técnica jurídica, re-
jeitando a visão de seus instrumentos como “peças” de uma engrenagem jurídica
(o Estado) estática e imutável, e de seus sujeitos como simples “operadores” destas
engrenagens, frias e distantes, herméticas, auto-determinantes e idealizadoras de
seu papel e funcionamento.
Por outro lado, apesar das novas possibilidades político-jurídicas de efeti-
vação do direito à moradia e do consenso em torno da necessidade de aumentar
os espaços de participação política para efetivação dos direitos humanos, os movi-
mentos sociais hoje têm dificuldade para dar conta da organização das suas lutas
por acesso à moradia digna. Enfrentar a realidade dos conflitos fundiários urbanos,
que geram violações ao direito à moradia e à cidade torna-se tarefa fundamental e
se coloca na ordem do dia para diversos juristas que atuam na área fundiária, não
se olvidando a necessidade de enfrentar o problema também como componente
da política urbana.
O direito junto às ciências sociais tem um papel preponderante então na
análise e releitura crítica sócio-territorial, bem como na criação de mecanismos le-
gais e extralegais para a solução mais adequada e mais próxima dos grupos sociais
que vivem no limiar destes conflitos.
A práxis jurídica tradicionalmente se insere numa abordagem tecnicista
do direito, que geralmente responde às demandas com procedimentos prontos
demarcando uma prática judicializante e tipificadora de conflitos, situações e 205
comportamentos35. No entanto, observamos no concreto a necessidade de uma
prática capaz de intervir e transformar a realidade, se faz necessário repensar a ex-
tensão universitária e a função social da Universidade, enquanto geradora de um
conhecimento que não deve se encerrar no espaço acadêmico, mas sim, que com-
partilhe e dialogue com a sociedade, ampliando assim o acesso à justiça e a par-
ticipação cidadã.
Por fim, ainda não identificamos a possibilidade de construção coletiva
dos projetos voltados para a região portuária do Rio de Janeiro que faça jus às dis-
posições do Estatuto da Cidade e da própria Constituição Federal, no sentido de
promover a função social da propriedade e da cidade, o direito à moradia e à dig-
nidade humana. Tampouco há um espaço efetivo de participação da população no
planejamento da cidade, em conformidade com o princípio da gestão democrática
das cidades. Pelo contrário, se observa uma forte burocratização e ausência de
informações, que dificultam ainda mais o enfrentamento dos moradores diante
deste projeto.
As estratégias de resistência como a mobilização coletiva a articulação
com movimentos populares são alternativas buscadas hoje na perspectiva de cria-
ção de um projeto que faça frente ao processo de revitalização proposta pelo poder
_____________________________________________________________________________
33
Op. cit. p. 212.
34
Ibid. p. 210.
35
“A formação dos agentes do Direito não pode mais negligenciar o traço fortemente político de que se
revestem suas atividades, historicamente ocultado por um exagerado e inócuo tecnicismo que, hoje bem
o percebemos, tem trabalhado em sentido frontalmente contrário à concretização de diversos dos
programas estabelecidos pela Constituição Federal, sobretudo no tocante ao propósito da democratização
da sociedade brasileira e de suas relações com o Estado.” (SANTOS, 2002)
hegemônico. A organização comunitária atualmente começa a discutir a proposição
de um projeto alternativo para a região portuária, que dê voz aos moradores e
concilie o desenvolvimento à permanência dos moradores e da cultura local.
Identificamos ações de resistência e surgimento de atores sociais que no
processo de mobilização diante da ameaça de remoção surgem como lideranças
comunitárias locais importantes para a organização, mobilização da comunidade
bem como representantes nas reuniões com os órgãos públicos. A mobilização
dessas novas lideranças é recente, mas é interessante observar os avanços e as
conquistas dessa organização. Mas ao que tudo indica, a luta está só começando.
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Mulheres Incriminadas por
Aborto no Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro:
Personagens, Discursos e
Argumentos
José Ricardo Cunha
Rodolfo Noronha
Carolina Alves Vestena [*]
RESUMO
A proposta investiga os argumentos – jurídicos ou não – na incrimi-
nação de mulheres por aborto. Observando os processos criminais
do TJRJ entre 2006 e 2010, procura destacar os discurso de acusação,
209
defesa e decisão, e compreender como essas idéias são articuladas.
O julgamento de um fenômeno como o aborto traz uma série de con-
cepções morais, muitas vezes ocultadas por argumentos técnicos,
pois mediadas pelo Direito. Traduzir, categorizar e analisar estes ar-
gumentos pode ajudar a compreender melhor os discursos de im-
putação de conduta criminal. Possibilita também discutir como a in-
criminação (imputação de ato definido como crime) pode produzir
criminalização (a rotulação como marginal de pessoas “propensas”
a cometer determinado tipo de crime). Pretende-se construir quadro
com os diferentes discursos, para uma melhor compreensão de como
o aborto é pensado dentro do sistema de justiça.
PALAVRAS-CHAVE
Aborto – Sistema de Justiça Criminal – Criminalização.
ABSTRACT
This article explores the arguments – from legal or not – in the prosecution
of women for abortion. Looking at the criminal’s TJRJ between 2006
and 2010, seeks to highlight the speech for the prosecution, defense
and decision, and understand how these ideas are articulated. The
_____________________________________________________________________________
* José Ricardo Cunha é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Rodolfo Noronha é mestre e doutorando em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense.
Carolina Alves Vestena é mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Poder Judiciário da Escola de
Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas.
trial of a phenomenon such as abortion brings a series of moral
principles, often obscured by technical arguments, as mediated by
the law. Translate, categorize and analyze these arguments may help
to better understand the speeches imputation of criminal conduct.
Enables also discuss how the indictment (charging an act defined as
crime) can produce criminalization (labeling as marginal people
“likely” to commit certain types of crime). It is intended to build the
table with the different speeches, and a better understanding of how
abortion is considered within the justice system.
KEYWORDS
Abortion – Criminal Justice System – Criminalization.
210
I. DIREITOS HUMANOS, PODER JUDICIÁRIO E SOCIEDADE: PESQUISAS
EMPÍRICAS SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA A PARTIR DOS DIREITOS
HUMANOS
O Grupo Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade1 possui uma longa
trajetória; foi criado com o objetivo de preencher o campo de pesquisas empíricas
sobre o direito e as instituições de justiça, seus agentes e discursos. O primeiro ob-
jetivo do grupo foi observar a formação dos agentes judiciais para a utilização de
normativas internacionais de direitos humanos, uma vez que estes documentos
são considerados as bases positivas para a promoção de direitos e transformação
da realidade social a partir da intervenção judicial.
Partindo desses pressupostos, o grupo realizou uma longa pesquisa que
abarcou os principais agentes do sistema de justiça. Os primeiros entrevistados fo-
ram juízes e desembargadores, em seguida, entidades da sociedade civil – ONGs –
até a última fase, que consistiu na replicação dos questionários com promotores e
defensores públicos mais recentemente, nos anos de 2009 e 2010.
Essas três fases de pesquisa ofereceram aportes para a construção de um
diagnóstico amplo a respeito do Poder Judiciário no estado do Rio de Janeiro. As
análises produzidas a partir dos dados coletados foram publicadas em diferentes
veículos acadêmicos e demonstraram a baixa utilização das normativas inter-
nacionais por todos os agentes do sistema de justiça2. Os dados sobre defensores e
promotores ainda são preliminares, mas seguem essa mesma inflexão nas primeiras
análises já realizadas. Cabe apresentar brevemente as três fases de investigação.
Na primeira fase da pesquisa, o olhar foi direcionado às cortes. Juízes e
desembargadores foram entrevistados por meio de questionários semi-estru-
turados a fim de levantar informações a respeito do conhecimento e aplicação de
normas internacionais de Direitos Humanos por estes agentes. A segunda fase da 211
pesquisa buscou investigar como os demandantes e militantes de Direitos Humanos
organizavam-se para a litigância judicial em diversas temáticas. Foram entrevistadas,
por meio de seus representantes, 36 organizações não governamentais – ONGs –
inscritas na Associação Brasileira de Organizações não Governamentais – ABONG,
com sede na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa também foi realizada por meio
de questionário semi-estruturado, com perguntas abertas e fechadas, que reprodu-
ziam, na medida do possível, questionamentos semelhantes às fases anteriores. As
perguntas procuraram levantar informações sobre a utilização das normas de di-
reitos humanos, utilização das convenções internacionais e formação e conheci-
mento das entidades da sociedade civil nessas áreas. Também houve questões com
o objetivo de identificar as impressões sobre o sistema de justiça e sobre a estrutura
disponível para a atuação nas cortes.
Os dados encontrados trouxeram questões relevantes para a discussão
acerca da atuação em Direitos Humanos. Percebe-se que, mesmo que considerem
_____________________________________________________________________________
1
O Grupo Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade é vinculado ao Programa de Mestrado em Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O grupo existe desde 2004 e conta com pesquisadores de
diversas universidades do Rio de Janeiro, da graduação e da pós-graduação (mestrado e doutorado).
Mais informações podem ser encontradas no blog do grupo: http://humanoejusto.blog.br.
2
O Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade estudou concepção, formação e
atuação em Direitos Humanos de juízes (primeira fase) e desembargadores (segunda fase) do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, comarca da capital. Os resultados das duas primeiras fases da pesquisa (realizada
no período de 4 anos) já se transformaram em diversos produtos já consolidados e publicados: CUNHA,
GARRIDO e SCARPI, 2006; CUNHA, GARRIDO, FERNANDES e NORONHA, 2009; CUNHA, DINIZ, SCARPI e
FERNANDES, 2003; CUNHA, DINIZ e GARRIDO, 2005; CUNHA, WERNECK e GARRIDO, 2006; e CUNHA,
GARRIDO, NEVES, ANDRADE, BRZEZINSKI, 2008).
as cortes como um espaço crescente de litigância e busca por efetivação de direitos,
As ONGs ainda pouco o exploram em sua prática. Sendo assim, é possível avançar
sobre o diagnóstico acerca dos caminhos e instrumentos de defesa dos Direitos
Humanos levantados na observação da expansão judicial, seja no âmbito local ou
internacional.
A terceira e última fase da pesquisa sobre os agentes do sistema de justiça
centrou-se na atuação de promotores de justiça e defensores públicos. A mesma
metodologia de questionários semi-estruturados foi replicada em uma pesquisa
censitária com estes agentes. Os dados são bastante complexos, uma vez que é
possível levantar informações comparativas entre as duas classes e ver algumas
contradições discursivas comuns à aplicação de questionários diretamente aos
agentes. De toda forma, mesmo com algum avanço perceptível, especialmente dos
defensores na utilização de normas internacionais para a promoção de direitos
humanos, esse processo ainda é pouco significativo e sistemático no interior das
instituições de justiça.
Fechado esse ciclo de pesquisas, em 2010 o grupo foi procurado pelo IPAS
Brasil para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre a questão do aborto. Esta
pesquisa deveria seguir a perspectiva de observação da mulher como autora do
crime de aborto e investigar a atuação criminalizante do sistema de justiça sobre
essas agentes. Aceito o convite, o grupo iniciou o desenvolvimento da metodologia
específica de pesquisa. Também procurou identificar quais os tipos de fontes que
ofereceriam dados significativos sobre o tema.
Como será exposto no item a seguir, a observação das narrativas e dos
discursos envolvidos no processo foi a opção elencada. Parece-nos que a opção
pela observação dos discursos dos agentes no sistema de justiça, no interior do
212 processamento judicial das questões, traz uma abordagem interdisciplinar que
envolve os campos da antropologia e do direito. Alguns resultados parciais dessa
pesquisa em andamento, bem como a sua construção metodológica, comple-
tamente inovadora no interior da tradição do grupo, serão apresentados nesse
trabalho.
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3
O CNJ – Conselho Nacional de Justiça – tem estabelecido uma agenda de quantificação do sistema de
justiça no Brasil, com a intenção de dar transparência às instituições. Isso em muito pode ajudar ao
pesquisador dedicado a entender mais os processos (no sentido antropológico mais que no sentido jurídico)
que permeiam estas instituições, mas este acesso aos dados não foi automático: o website do Tribunal
não auxilia a se chegar ao setor responsável. Nestas estratégias, foi de fundamental importância a presença
de membros da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no grupo de pesquisa.
fundamental para a coleta destes processos – quanto nas demais comarcas do es-
tado – o que nos auxiliou a montar um quadro geral do fenômeno no estado.
Levantado o panorama dos casos, a segunda estratégia foi a realização
de entrevistas com operadores do Tribunal do Júri4. Essas conversas não atingiram
a totalidade de juízes e agentes envolvidos nas comarcas onde os processos foram
reunidos, mas serviu para a construção de uma abordagem condizente com as prá-
ticas desses agentes. Foram entrevistados de forma livre dois juízes, um membro
da Defensoria Pública, um membro do Ministério Público e uma oficial de cartório,
todos lotados em Tribunais do Júri do TJRJ, comarca da capital. A última etapa da
pesquisa empírica, em sua fase preparatória, foi a coleta dos processos em si.
O segundo tipo de abordagem da pesquisa foi a leitura e discussão de bi-
bliografia que lida com temas correlatos ao objeto de estudo: feminismo, crimi-
nologia e metodologia aplicada a um campo tão diverso como o desta pesquisa. As
duas abordagens – empírica e teórica – ocorreram concomitantemente, ou seja,
foi montada uma agenda quinzenal de discussões de textos, com componentes do
grupo responsáveis pela apresentação de cada um deles nos encontros. Em para-
lelo, os dados foram coletados junto ao TJRJ, e as semanas alternadas às reuniões
quinzenais foram dedicadas à leitura dos processos e tentativa de extração de ele-
mentos que dialogassem com os textos. O processo de análise empírica conjunta
com revisão bibliográfica promoveu uma dialética interessante na análise dos dados.
Permitiu que as idéias e hipóteses levantadas fossem sendo confirmadas e descon-
firmadas na medida em que a leitura e a reflexão sobre o discurso iam ocorrendo.
Este “método cruzado” nos permitiu tanto comentar sobre os textos enquanto
líamos os processos, quanto o oposto, comentar sobre os processos nos encontros
em que o grupo discutia os textos.
Sendo assim, nos itens seguintes do trabalho, descreveremos como trans- 213
correu cada etapa. A primeira parte será a teórica, para demonstrar o quadro geral
de idéias debatidas até o momento. Em seguida descreveremos os dados empíricos
quantitativos, delimitando o problema no estado do Rio de Janeiro e na comarca
da capital. Logo depois descreveremos o processo de leitura e discussão sobre os
casos, com nossas percepções iniciais sobre o fenômeno, lembrando que essa é
uma pesquisa ainda em desenvolvimento.
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4
O crime de aborto, art. 124 do Código Penal, é tido como um crime doloso (com a intenção de provocar
o resultado) contra a vida; segundo o direito processual penal brasileiro, estes crimes são julgados por
órgão próprio, pertencente ao TJ do estado: o Tribunal do Júri, presidido por um juiz, mas composto por
membros da sociedade.
bre os diversos atores envolvidos no aborto, ou seja, não nos interessam o médico
que conduzia o procedimento, nem os funcionários da clínica, ou as implicações li-
gadas aos demais métodos abortivos (remédios – caseiros ou não –, etc.). Trata-se
de uma pesquisa focada na mulher em si, em sua passagem pelo sistema de justiça
criminal, o seu fluxo na justiça.
Portanto, essa é uma pesquisa descritiva, que possibilita uma análise mais
detida sobre fatos que ocorrem à mulher durante este fluxo, sobre como ocorre o
processo de incriminação. Preocupa-nos não apenas o resultado jurídico deste pro-
cesso, como as decisões tomadas ou medidas oferecidas, mas também por quais
etapas passa uma mulher desde o momento em que é capturada pelo sistema de
justiça criminal – polícia – e colocada de volta na sociedade. Estas etapas não podem
ser naturalizadas; é necessário problematizar cada passo, para se compreender
melhor os sentidos atribuídos pelos diversos agentes – e mesmo pela mulher – a
esta trajetória.
BECKER (2007) chama a atenção para o fato de que ao olharmos para um
objeto criamos representações sobre ele mesmo antes de realizar nossa pesquisa.
Este quadro mental orienta nossas ações – os livros que lemos, os lugares que va-
mos, as pessoas com as quais conversamos. Essas impressões formam nosso “mapa
inicial”, com o qual iniciamos uma viagem pelo objeto pesquisado. A relação entre
sujeito e objeto nas ciências sociais é uma relação permeada por essas represen-
tações, muitas vezes prévias ao contato entre ambos. Se isso é verdade, então
jamais podemos neutralizar totalmente essas representações, elas sempre agirão
– para o “bem”, nos indicando como podemos nos aproximar do objeto (como se
aproximar de algo que não se tem nenhuma imagem prévia formada, não se sabe
do que se trata?), e para o “mal”, tentando-nos a adiantar nossas conclusões, antes
214 mesmo de realizar a investigação – para utilizar uma expressão popular, “colocando
o carro na frente dos bois”. Já que a formulação dessas primeiras impressões é ine-
vitável, é melhor que essas representações sejam bem informadas: é importante
coletar um bom número de informações sobre o objeto a ser estudado, bem como
cercar-se de reflexões sobre ele para que este “mapa mental” indique caminhos
precisos, minimizando os efeitos negativos acima destacados.
Desde o início de suas atividades, em 2004, o Grupo de Pesquisa Direitos
Humanos, Poder Judiciário e Sociedade desenvolve encontros quinzenais a partir
de uma agenda de textos. Normalmente estes textos estão relacionados à pesquisa
que está sendo desenvolvida no momento. Enquanto o grupo coletava dados em-
píricos sobre a percepção de juízes, organizações não-governamentais, defensores
e promotores públicos sobre o próprio papel e a sua relação com Direitos Humanos,
o grupo debateu textos relacionados à judicialização da política, teorias dos Direitos
Humanos e teorias do direito. Para abordar a questão das mulheres incriminadas
por aborto no TJRJ, foi necessário montar outra bibliografia, que permitisse um
olhar sobre o sistema de justiça criminal e sobre a mulher a partir de uma perspectiva
específica: a dos Direitos Humanos.
Por isso a agenda de discussões que orientou a análise dos dados se apro-
ximou de dois quadros principais: o primeiro foi caracterizado por análises do sis-
tema de justiça criminal que pode ser chamado de criminologia crítica; o segundo
que pode ser delimitado em abordagens sobre o feminismo e os temas relacionados
à luta por reconhecimento e por uma recolocação da mulher no cenário político e
social do país. Estes dois quadros foram complementados por uma discussão meto-
dológica que auxiliou na construção das categorias de análise a serem aplicadas
nos dados.
Assim, ao mesmo tempo em que os pesquisadores mais envolvidos com a
investigação coletavam os processos e realizavam a leitura sistemática, o grupo
discutia uma série de textos que auxiliavam na construção de um olhar sobre estes
casos. Em cada encontro, um grupo de curadores apresentava o seminário e con-
duzia as discussões. No primeiro encontro, discutiu-se sobre a trajetória das ques-
tões feministas do ponto de vista político e jurídico, utilizando-se principalmente
das reflexões de ROCHA (2006).
No encontro seguinte, as discussões passaram para as interseções entre
as discussões da criminologia e o feminismo, com o texto de BARATTA (1999). Depois
do quadro geral das questões feministas, este texto serviu para discutir como a
mulher é vista pelo sistema de justiça criminal. O autor ressalta que a mulher é vista
prioritariamente como vítima, o que reproduz sua posição tradicional na família.
Contudo, há um outro espaço de criminalidade, em que a mulher rompe essa bar-
reira e torna-se duplamente culpabilizada, primeiro pelo crime e segundo por ter
saído de seu papel tradicionalmente privado.
Em seguida, as discussões passaram para uma abordagem da criminologia
que procura deslocar as preocupações sobre o autor – uma sociologia do criminoso
– para a definição do que é crime e de quem é criminoso. BARATTA (2002) faz uma
apresentação do conjunto de idéias chamadas de “labeling approach” ou “rotu-
lacionismo”, uma reação (mais que uma corrente teórica) a uma trajetória dos
estudos criminológicos que procurava realizar uma etiologia do crime, entender as
causas que levam uma pessoa a cometer um ato tido como criminoso. São diversos
os autores que tratam a questão a partir de pontos de vista muito diferentes entre
si, gerando análises variadas.
A primeira é a noção de que a perseguição por uma etiologia do crime a-
caba por estimular um processo de criminalização de determinados personagens 215
do cenário social, em um exercício que, desapercebidamente, reforça e reproduz
uma dinâmica de estigmatização muito parecida com a realizada por Lombroso: ao
procurar as causas de um crime, o pesquisador constrói o campo mais óbvio, o cri-
minoso; vai procurar nele os traços que determinaram seu comportamento. Mas
com essa atitude ignora que as instituições do sistema de justiça criminal não punem
a todos por igual: alguns personagens são mais “puníveis” que outros. Os crimes
cometidos por outros personagens sociais não são tão perseguidos quanto estes –
logo, ao se procurar pelo criminoso punido, dificilmente se encontrará este segundo
grupo. Este recorte do sistema pode ser feito a partir de dois pontos, segundo os
autores do “rotulacionismo”: do ponto de vista da identidade (negros são mais pu-
nidos que brancos) e do ponto de vista da classe social (membros das classes mais
pobres são mais punidos, regiões mais pobres são mais vigiadas, etc.).
O que esta abordagem criminológica faz é estabelecer uma “profecia que
se auto-realiza”: ao olhar para os que estão presos localiza-se não os que mais come-
tem crimes, mas os que mais são punidos; concluindo que estes são os que mais co-
metem crimes, aumenta-se a vigilância sob aqueles com determinadas carac-
terísticas, o que aumenta o número de punidos em específicos grupos sociais. É ra-
zoável pensar que os personagens que não se localizam nestes grupos “mais pu-ní-
veis” ou mais criminalizados, encontram outras soluções, que os tira ainda mais do
“radar” do sistema de justiça – questão que voltará com força durante a análise
empírica dessa pesquisa.
Este raciocínio nos ajuda a pensar, de um lado, nos danos causados pela
busca por uma etiologia do crime; e de outro, nos leva à segunda contribuição do
“labeling approach”: a questão que importa não é definir quem é o criminoso, mas
quem define as dimensões fundamentais do fenômeno crime, ou seja, quem define
o que é crime e quem define quem é o criminoso. Assim, esta perspectiva desloca a
questão central da criminologia para os processos de definição das condutas que
serão definidas como criminosas e as instituições que definem quem é o criminoso.
Voltando ao objeto do presente trabalho, isso faz pensar em outro ele-
mento trazido pelo mesmo autor e que será melhor esmiuçado à frente: até que
ponto o sistema de justiça criminal se desdobra em um prolongamento de outras
instituições informais de controle, como a família e o mercado? Pois se este desdo-
bramento for verdadeiro, os conteúdos morais das normas – e do processo de apli-
cação das normas – realizam a definição do que é crime e de quem é criminoso pro-
longando também preconceitos e relações profundamente desequilibradas, tais
quais são as relações havidas no seio da família e do mercado. O direito penal, de
regulador, organizador da sociedade – e, portanto, instrumento de busca por equilí-
brio e controle das distorções criadas por relações como as mencionadas – torna-
se um instrumento de consolidação destas desigualdades geradas pelas diferenças.
Os dados empíricos talvez nos ajudem a pensar melhor nesta formulação.
O encontro posterior a este procurou estabelecer uma discussão meto-
dológica. Procuramos seguir um método não hegemônico de estudo de processos.
Uma primeira possibilidade seria seguir o processo, digamos, tradicional: construir
uma hipótese através de teorias consagradas e ir a campo para testar estas idéias.
O risco que se correria, inicialmente, seria o de se compor um campo rico, mas ao
mesmo tempo limitado, pois ao mirar apenas em um circuito restrito de perguntas
(a hipótese), poderíamos deixar de capturar outras questões igualmente (ou até
mais) importantes.
BECKER (2007) é um autor que auxiliou na reflexão sobre as categorias
216 analíticas: como abordar os processos e deles extrair elementos que nos per-
mitissem categorizar os argumentos presentes? O desafio até essa etapa foi a cons-
trução de um quadro analítico capaz de capturar uma gama de informações sobre
o nosso objeto – mulheres incriminadas por aborto no Rio de Janeiro – e realizar
nosso objetivo – reconstrução da trajetória das mulheres e análise dos argumentos
utilizados por cada parte (acusação, defesa e decisão) do processo.
O autor deixa ao menos duas pistas muito discutidas pelo grupo: a primeira
é a idéia de deixar ao caso a definição dos conceitos. Trabalhar com uma bibliografia
prévia, até para bem informar nossas representações, tem sempre o risco de pro-
duzir conceitos “prontos”, acabados, pois, ao confrontarmos idéias e fatos, sempre
corremos o risco de forçar os fatos para que eles caibam em nossas idéias. Uma
forma de afastar este risco é o de deixar que o campo de análise nos ajude a construir
nossas categorias, as perguntas que faremos para responder à pergunta maior. É
claro que é sempre mais rápido e simples fazer o contrário, forçar as idéias por
sobre os dados, aparar as arestas dos casos, limitar nossa visão para responder às
perguntas pré-fabricadas; mas neste primeiro exercício que o autor propõe, po-
demos ter resultados mais completos.
O segundo exercício que ele propõe é o de isolar os elementos que se re-
petem em um caso, destacando os elementos que não se reptem, tornando-o único.
Isso possibilita reconstruir os conceitos a partir de suas características mais sin-
gulares, sem deixar de lado os elementos que os conectam com outros conceitos.
O penúltimo encontro do grupo de pesquisa dedicou-se a estudar a apli-
cação de algumas das idéias produzidas pela criminologia crítica a um grupo que,
mesmo não sendo igual ao estudado nesta pesquisa, se assemelha em algumas
características que podem ser importantes para a análise do processo pelo qual
passa o objeto da pesquisa. Por isso o grupo discutiu o texto de BATISTA (2003),
pois ele nos oferece dois aportes: um primeiro aporte teórico, através tanto de
uma reflexão pontuando processos de criminalização em abstrato, quanto um pa-
norama de algumas das tendências analíticas da criminologia crítica; e um segundo
aporte empírico, aplicando estas teorias para a análise de jovens que cometeram
infrações sob a égide do antigo “Código de Menores”. Após a montagem do pa-
norama teórico e das reflexões por ela desenvolvidas, a autora desenvolve um es-
tudo com jovens em diversos períodos, que deram entrada no sistema de justiça ju-
venil por porte/venda de substância ilícita entorpecente.
A conclusão que alcançada se comunica com os demais textos até então
estudados pelo grupo, representando um bom “estudo de caso” da aplicação des-
tas idéias: a variável classe social e a variável identidade (negro/branco, morador
de periferia/região central, etc.) foram determinantes na criminalização destes per-
sonagens. Neste sentido, importa menos a conduta criminosa em si, confrontando
a lei, e mais quem decide o que é crime e quem será punido. Com esse quadro
teórico em vista, continuamos avançando nas leituras e análises dos processos.
_____________________________________________________________________________
5
Art. 89 da lei 9.099/90.
Foram disponibilizados dois conjuntos de dados: o primeiro referiu-se à
totalidade de casos iniciados no período referido, em todo o TJRJ, ou seja, com to-
das as comarcas do Tribunal representadas (capital, região metropolitana e interior),
conforme o Quadro 1.
Este tipo de dado, acerca de registros criminais, nos desperta duas ques-
tões: a primeira se relaciona com o que muitos chamam de “subnotificação”, ou
seja, uma ocorrência de registros que não traduz propriamente a incidência do fe-
nômeno (no nosso caso, de realização de aborto), ou seja, este dado não nos diz a
quantidade de pessoas que abortaram neste período, nem o local; ele nos diz onde
essas pessoas foram localizadas e inseridas no sistema de justiça criminal. Isso nos
leva à segunda reflexão sobre este tipo de dado, inclusive levantada por um dos
entrevistados: a entrada destes dados no sistema de justiça criminal depende muito
da política de segurança em determinado período; se a questão do aborto é
priorizada, este dado tende a aumentar; do contrário, a incidência baixa. No Quadro
1, o que temos é uma distribuição espacial; o dado fica mais interessante quando
calculamos as ocorrências por região do estado e quando contabilizamos as ocor-
rências por cem mil habitantes, conforme o Quadro 2.
A região metropolitana (Rio de Janeiro capital e entorno), que é a mais
populosa e que possui o maior número absoluto de casos, é também a que possui
a menor proporção de casos por mil habitantes (o quadro está organizado em or-
dem decrescente). Uma conclusão possível é a de que de um lado há maior entrada
de casos, em termos absolutos, nas áreas mais centrais do estado, onde as políticas
de segurança estão mais focadas; mas em termos relativos, os casos em regiões
mais afastadas são mais significativos.
Uma primeira leitura, ignorando estes alertas, poderia concluir que há uma
218 maior incidência de mulheres abortando na capital do estado, enquanto que as
ocorrências no restante do estado seriam bem pouco significativas. Esta percepção
corroboraria a visão de que há uma “legalização informal do aborto”, não apenas
pelo Judiciário, mas também pelo Executivo. Entretanto, um olhar mais atento pode
indicar que a diferença registrada é conseqüência das escolhas destas políticas:
este é um “problema” apenas da capital, não do interior; estas políticas de se-
gurança estão direcionadas à “proteção” (considerando-se o argumento de que o
“estouro de clínicas” pela polícia é motivado para reduzir as possibilidades de rea-
lização de aborto por mulheres) mais de determinados espaços que outros.
Ainda com os dados sobre a ocorrência do fenômeno no estado do Rio de
Janeiro, temos informações não apenas sobre o início dos processos, mas também
sobre seu estado atual, por meio do Quadro 3.
Dos 128 processos localizados, apenas 3 (2,3%) haviam recebido decisão
de mérito, ou seja, somente nestes havia alguma análise de conteúdo da ação por
parte do juiz responsável. A maior parte ainda estava em andamento (68%) e um
grupo significativo havia acabado sem decisão de mérito (29,7%). Dos terminados
com decisão de mérito, um caso de improcedência do pedido (mulher absolvida),
um caso de condenação e um caso de pronúncia (ou seja, encaminhamento ao Tri-
bunal do Júri). O número muito baixo de ocorrências não permite comparar estes
resultados entre eles, tentando estabelecer um ranking de resultados, mas apenas
em relação aos demais tipos de situação atual. O número de decisões sem apre-
ciação de mérito é bem relevante, e faz pensar que de fato a “legalização informal
do aborto” faz parte de cerca de um terço dos casos analisados, embora um olhar
mais detalhado nos leve a pensar que este não é o único caminho pela qual estes
processos correm.
219
Quadro 1: Ocorrência de casos de mulheres processadas por aborto no estado do Rio de Janeiro. Fonte:
TJRJ, 2011.
Quadro 2: Acervo geral de processos com mulher incriminada por aborto por órgão segundo região e
por cem mil habitantes.
220
Quadro 3: Acervo geral de processos com mulher incriminada por aborto por tempo e órgão.Fonte:
TJRJ, 2011.
Quadro 4: Acervo geral de processos com mulher incriminada por aborto por tempo e órgão. Fonte:
TJRJ, 2011. 221
Há uma discrepância entre os dados totais deste quadro (31 processos) e
o quadro anterior (37 ocorrências), que pode ser explicada pela presença de 7 casos
cujo juízo é o de crianças e adolescentes, que não entraram nesta parte dos dados
disponibilizados pelo TJRJ – ou seja, neste período, na comarca da capital, 7 adoles-
centes foram processadas por aborto na comarca do Rio de Janeiro.
A trajetória destas casos pode ser melhor visualizada pelo Gráfico 1.
Gráfico 1: Trajetória dos processos de mulheres incriminadas por aborto entre 2007 e 2008, comarca da
capital. Fonte: TJRJ, 2011.
Há um aumento relevante de casos entre 2007 e 2008, dado que se esta-
biliza até 2009, recuperando o crescimento significativo em 2010. As possíveis causas
desta curva precisarão ser analisadas em outro momento da pesquisa, já que a pre-
ocupação aqui é a de construir meios de análise dos processos e seus argumentos.
224
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª edição. Rio
de Janeiro: Ed. Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
______. O paradigma de gênero. In Criminologia e feminismo. Org. Carmen Hein
Campos, Porto Alegre, Sulina, 1999.
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e juventude pobre no Rio
de Janeiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Revan, Instituto Carioca de Criminologia,
2003.
BECKER, Howard. S. Segredos e Truques de Pesquisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007.
EMMERICK, Rulian; HORA, G. S.; SCIAMMARELLA, Ana Paula. Ações e Estratégias
de Proteção dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. In: Dados e reflexões so-
bre a condição de ilegalidade do aborto no âmbito da Saúde e da Justiça. Rio de Ja-
neiro: ADVOCACI e IPAS Brasil, 2007.
ROCHA, Maria Isabel Baltar. A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese.
In: Revista Brasileira de Estudos da População. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/rbepop/v23n2/a11v23n2.pdf São Paulo: 2006.
Controvérsias Constitucionais
Acerca da Aplicabilidade
da Lei Maria da Penha
Fernanda Maria da Costa Vieira
Mariana Trotta Dallalana Quintans
RESUMO
O presente artigo é desdobramento do projeto de pesquisa visa ana-
lisar “os impactos sócio-jurídicos da Lei Maria da Penha na Região
Sul Fluminense” e se insere na linha de pesquisa Direito e Cidadania
no Estado Democrático de Direito do Centro Universitário de Barra
Mansa (UBM). O objetivo da pesquisa está em compreender os li-
mites e avanços trazidos pela Lei Maria da Penha, buscando entender
sua eficácia na ordem social com a redução da violência à mulher,
para tal cotejará as medidas assecuratórias, bem como, o novo esta-
tuto punitivo trazido pela Lei e sua adoção pelos Tribunais. Nesse
diapasão, em um primeiro momento a pesquisa realizou um levan-
tamento quantitativo das decisões no Tribunais de Justiça do Rio de
Janeiro e no Supremo Tribunal Federal acerca da interpretação judi-
cial com relação à aplicabilidade da Lei n. 11.340/06 e as divergências
acerca da sua constitucionalidade. Neste artigo são apresentados
os debates envolvendo a interpretação do Supremo sobre a Lei Maria 225
da Penha.
PALAVRAS-CHAVE
Constitucionalidade e Lei Maria da Penha – Sistema Judicial – Violên-
cia Doméstica e Pesquisa Sócio-jurídica.
ABSTRACT
This article is unfolding in the research project aims to analyze “The
socio-legal Maria da Penha Law in the South Fluminense” and is in line
research and Citizenship Law in a democratic state University Center
of Barra Mansa (UBM ). The objective of this research is to understand
the limits and advances brought by the Maria da Penha Law, seeking
to understand its effectiveness in the social order with the reduction
of violence to women, to collate such measures for protection as well
as the new statute punishing brought by Law and its adoption by the
courts. In this vein, the first time in a research carried out a quantitative
survey of decisions in the Courts of Justice of Rio de Janeiro and the
Federal Supreme Court on judicial interpretation regarding the
applicability of Law n. 11.340/06 and disagreements about its
constitutionality. This article presents the debates surrounding the
interpretation of the Supreme Law of the Maria da Penha.
KEYWORDS
Constitutionality and Maria da Penha Law –Judicial System – Domestic
Violence and Socio-legal Research.
_____________________________________________________________________________
* Artigo produzido no âmbito do Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito do Centro Universitário Barra
Mansa.
INTRODUÇÃO
A Lei Federal 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, entrou em vi-
gor em 2006 com o objetivo de reduzir os casos de violência contra a mulher e ga-
rantir medidas protetivas às vítimas. Desde então, muitos debates foram travados
em torno da aplicabilidade da lei e das possíveis inconstitucionalidades de alguns
dispositivos. Não foram poucos os Tribunais que se recusaram a instituir os Juizados
de Violência Doméstica alegando que estariam adentrando na competência dos
Juizados Especiais Criminais.
No mesmo sentido, muitas foram as decisões monocráticas negando a
aplicabilidade da lei no que tange a impossibilidade de transação penal nos casos
de violência doméstica, sob o argumento das garantias penais trazidas pelo texto
constitucional. Assim, gestou-se no campo jurídico uma dicotomia que impunha
penas diferenciadas ainda que o tipo penal e a pena aplicada fossem as mesmas.
Há que se dizer que com relação à aplicabilidade do artigo 41 da Lei n. 11.340/
06, que veda para os casos de violência doméstica os benefícios da Lei n. 9.099/95,
muitos foram os debates que circularam não apenas na arena jurisdicional, com
uma multiplicidade de decisões judiciais, bem como, no campo acadêmico com
pesadas críticas dos adeptos das correntes abolicionistas e garantistas penais.
Por outro lado, a lei foi aplaudida pelo movimento feminista e por várias
organizações não governamentais de direitos humanos, que viram no instrumental
jurídico a possibilidade de se concretizar uma política de coibição à violência do-
méstica.
Diante das inúmeras controvérsias que se produziram no campo jurídico
com relação à inconstitucionalidade ou não da norma, no ano seguinte a aprovação
da lei, foi proposta pela Presidência da República na Ação Declaratória de Constitu-
226 cionalidade (ADC) n.19 buscando ver sanadas as dúvidas quanto a sua
constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao mesmo tempo, vários Tribunais de Justiça passaram a implementar os
órgãos e as medidas estabelecidas na lei, como o do Estado do Rio de Janeiro. Se-
gundo dados do sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o primeiro
Juizado de Violência Doméstica do Estado do Rio de Janeiro foi criado já em 2007.
Posteriormente, foram instalados Juizados especializados em Campo Grande, Du-
que de Caxias, dentre outros. Na região sul fluminense também foram instalados
Juizados em Barra Mansa e Volta Redonda. Por outro lado, alguns juízes não apli-
cavam o artigo 41 da Lei.
Estas questões motivaram a criação do grupo de pesquisa docente/dis-
cente sobre os “Os impactos sócio-jurídicos da Lei Maria da Penha na região sul flu-
minense” da linha de pesquisa Direito e Cidadania no Estado Democrático de Direito
do Núcleo de Pesquisa do curso de Direito do Centro Universitário de Barra Mansa
(UBM).
O artigo apresenta as questões que vem motivando o grupo de pesquisa
e os dados obtidos na primeira fase da pesquisa ocorrida no primeiro semestre de
2011, especialmente a análise do Habeas Corpus n. 106.212 julgado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), onde houve a manifestação da constitucionalidade do artigo
41 da Lei Maria da Penha. Esta decisão acabou por ser emblemática diante da
negativa de concessão de liminar na ADC n. 19, o que significou a manutenção dos
conflitos interpretativos. Cabe destacar que o artigo também analisa a mencionada
ação do controle concentrado de constitucionalidade.
Cabe destacar que na primeira fase a pesquisa promoveu o levantamento
junto ao STF sobre os casos julgados relativos à Lei Maria da Penha. A partir da
verificação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, em Habeas Corpus,
sobre a constitucionalidade do artigo 41, logo a impossibilidade de adoção de alguns
dispositivos da Lei 9099/95, ainda que se trate de crimes de contravenção penal,
gestou novos referenciais interpretativos, que impôs a pesquisa a necessidade de
verificar se após a decisão do STF, ocorreu uma modificação imediata no operador
de 1a. instância, etapa que vem sendo analisada no momento.
Compreender os marcos em que se insere a Lei 11340/06 nos coloca como de-
safio entender esse caldo cultural que se constituiu no que Álvaro Pires (2004) de-
nomina como uma “maneira de pensar do sistema punitivo”, o estabelecimento de uma
racionalidade do sistema punitivo, que se assenta a partir de meados do século
XVIII. Essa racionalidade servirá de base para a construção de uma lógica punitiva que
se apóia na ideia da necessidade da pena como mecanismo de resolução. Não ape-
nas cria obstáculos para se pensar em qualquer outra perspectiva que não seja a pena,
como incorpora a ideia de que havendo pena, deve haver também aflição, remontando
o passado inquisitorial que marca a formação ocidental nos processos punitivos:
A partir do século XVIII o sistema penal projeta um auto-retrato
identitário essencialmente punitivo, em que o procedimento pe-
nal hostil, autoritário e acompanhado de sanções aflitivas é consi-
derado o melhor meio de defesa contra o crime (“só convém uma
pena que produza sofrimento”). Esse núcleo identitário dominan-
te da racionalidade penal moderna foi reproduzido incondicional-
mente pelas teorias da pena aflitiva (da dissuasão ou da retribui-
ção), que, valorizando tão-somente os meios penais negativos,
excluem as sanções de reparação pecuniária ou outras alter-
nativas, e ainda por certas teorias contemporâneas (por exemplo,
as principais variantes da teoria da prevenção positiva). (2004:43).
Essa perspectiva trazida por Häberle vai ser contemplada, por exemplo,
nas possibilidades de participação processual de terceiros interessados por meio
do instituto do amicus curiae. De fato, trata-se de uma modalidade de intervenção
que resignifica o conceito de interesse a justificar a participação na relação jurídica
processual.
As teorias acerca do direito subjetivo e objetivo, que desde o século XVIII
percorrem nossa formação jurídica, foram construídas com as noções de interesse
e/ou vontade tendo como parâmetro o sujeito de direito individual. A possibilidade
do reconhecimento de que determinados temas, pelo reflexo que se impõe para a
própria sociedade, ultrapassa as zonas limítrofes do interesse individual é uma ex-
pressão de um direito nos marcos sociedade que se compreende plural e, portanto,
expressa essa pluralidade no reconhecimento de uma polifonia que cerca a própria
categoria direito.
Assim, a participação do amicus curiae inova no campo das intervenções
de terceiro na medida em que sua atuação volta-se para fornecer elementos que
possam significar um convencimento do intérprete, potencializando a leitura de
Häberle acerca da democratização da interpretação constitucional. Esse é o en-
236 tendimento de Fredie Didier Jr.:
Deve ser destacado que há muito tempo essa dimensão trazida pelo jurista
alemão de que a “interpretação é um processo aberto” já vinha sendo adotada pe-
la Teoria do Direito. A noção do “juiz boca da lei” proposta por Montesquieu no seu
“O Espírito das Leis” e também defendida pela Escola de Exegêse foi há muito afas-
tada pelos teóricos do campo da Teoria Política e do Direito.
Hans Kelsen já defendia a interpretação jurídica como uma inter-
pretação autêntica. Kelsen entendia que não havia uma completa determinação
no ordenamento jurídico, sempre existindo uma margem para a livre apreciação
do juiz, pois o legislador não poderia prever todas as situações que poderiam ocor-
rer. Dessa forma, toda decisão seria estabelecida de acordo com o determinado no
texto normativo e, também, pelo entendimento do magistrado (intérprete do
texto).
Segundo Kelsen a indeterminação do texto normativo ocorreria de dife-
rentes formas. Pode ser intencionalmente produzida pelo órgão que produziu a
norma que será aplicada, ou pode ocorrer de forma não intencional. Esta segunda
hipótese se dá quando o texto normativo possui uma pluralidade de sentidos, ou a
partir de uma discrepância entre o expresso no texto e a vontade da autoridade
que a produziu, ou, ainda, quando ocorre contradição (total ou parcial) entre dois
dispositivos.
Esta indeterminação permite aos juízes diferentes interpretações do texto
normativo. Neste processo interpretativo o juiz faz uso de outros elementos, além
do texto normativo, como suas noções de justiça, seus juízos de valor social etc.
Por outro lado, é essa amplitude que se assenta no reconhecimento de que a lei
permite uma multiplicidade de interpretações calcadas na ótica do intérprete que
transforma a norma em objeto de disputa por parcelas da sociedade. Assim, a con-
cepção clássica deriovada da matriz positivista que retira da propria noção de lei
seu caráter conflitivo fica evidenciada.
Entretanto, apesar de Kelsen destacar este papel valorativo da interpre-
tação jurídica o autor não avança em suas análises sobre o tema, pois, por estar
preocupado com o estudo do direito por meio de uma metodologia que reforça a
dimensão avalorativa do ser pesquisador, redimensinando assim uma “ pureza me-
todológica”, razão esta que o leva a não considerar o estudo da interpretação jurí-
dica como objeto da Ciência do Direito (KELSEN, 2000).
O tema da Hermenêutica Constitucional vai ganhar destaque no trabalho
de autores como Chaïm Perelman, assim como destacado por Margarida Camargo
(2003), que se preocuparam em pensar procedimentos que garantissem a legi- 237
timidade das decisões judiciais diante da abertura interpretativa. Esta perspectiva
hermenêutica é ampliada ainda mais com a obra de Häberle ao estabelecer como
paradigma para a interpretação constitucional, como visto, a participação da so-
ciedade. Esta tendência é percebida no Brasil com a utilização cada vez maior dos
amicus curiae.
No caso em análise da ADC 19 percebemos também esta abertura à partici-
pação no processo constitucional da sociedade com o deferimento dos pedidos de
amicus curiae formulados na ação por entidades da sociedade civil envolvidas no
tema.
Entretanto, há que se dizer da importância dos estudos que buscam veri-
ficar o real poder de intervenção dessas entidades como amicus curiae na modifica-
ção do entendimento originário do intérprete. Isto porque a decisão é exclusiva do
STF e um dos princípios constitucionais com grande relevância no plano da nossa
prestação jurisdicional é o que estabelece a noção de independência funcional,
transformando o intérprete em um autor isolado na produção da decisão.
Convém destacar que a ADC 19 ainda não foi julgada. No entanto, outros
julgados da Corte com relação ao tema podem nos fornecer um indicativo de como
se dará a base de entendimento da mesma.
Neste sentido encontramos a decisão no Habeas Corpus n. 106.2124, que
em 2011, por decisão unânime do plenário o STF, a Corte se manifestou sobre a
_____________________________________________________________________________
4
Ressalta-se que o Supremo Tribunal Federal já julgou ao menos 5 (cinco) outros habeas corpus sobre o
tema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Sendo eles: HC 98.880 (MS), HC 100.113 (PA), HC
96.261 (PE), HC 92.441 (SP) e HC 92.538 (SC).
constitucionalidade do artigo 41 da Lei Maria da Penha, transcrevemos abaixo a
emenda da decisão:
Essa será a linha defensiva adotada pelos ministros do Supremo, que en-
tendem haver uma vulnerabilidade histórica da mulher no âmbito doméstico. Não
apenas o Ministro Relator, Marco Aurélio, aponta seu voto nesse sentido, como tal
perspectiva será absorvida pelos outros integrantes:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pesquisa encontra-se em fase de execução. O que temos acom-
panhado diante das análises dos processos em trâmite no Poder Judiciário do Rio
de Janeiro é que há uma indefinição acerca do limites de abrangência da lei Maria
da Penha.
O objetivo da presente pesquisa está em analisar como o campo normativo
influencia no mundo social. No caso, trata-se de um tema marcado por interdições
e invisibilidades. Compreender os processos de violência à mulher nos remete à
histórica construção da relação de poder onde o ser mulher viu-se “privado” desse
exercício na medida em que os espaços públicos não lhe eram destinados.
Há, portanto, um reconhecer da dimensão histórica que impos à mulher
242 uma subalternidade diante do ser masculino, que acaba por se refletir tanto no es-
paço privado (doméstico), quanto no espaço público.
Tal historicidade torna-se fundamental para entendermos como a violência
opera no espaço privado, onde certo reconhecimento derivado do senso comum
de que “briga de marido e mulher ninguém mete a colher” está demarcando um
território de subjugação da mulher ao poder masculino, legitimado pela noção de
controle do corpo feminino pelo ser masculino.
Nessa perspectiva nos interrogamos se a expressão de uma norma no cam-
po penal per si seria capaz de desconstruir a expressão de poder historicamente
estabelecida no âmbito público e privado.
Portanto, compreender aspectos da violência doméstica nos impõe o co-
tejo com os marcos históricos da construção do ser masculino e feminino, como
uma categoria relacional, logo, uma categoria marcada pela relação de poder.
As ambigüidades trazidas pela Lei Maria da Penha terão que ser sanadas
caso a caso, levando a uma série de desencontros decisórios. É possível se imaginar
que após a decisão final pelo STF da ADC næ% 19 haja certa unidade interpretativa.
No entanto, a questão da aplicação de penas restritivas de liberdade ainda
que a condenação seja por tempo inferior aos dois anos (previsibilidade da Lei n.
9.099/95) está a merecer maior estudo dos nossos juristas, posto que se vislumbre
um conflito com a sistemática punitiva que vem sendo adotada a partir da lei dos
Juizados especiais criminais.
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A Descriminalização do Aborto
Konstantin Gerber*
_____________________________________________________________________________
* Advogado, consultor, auxiliar de pesquisa em direito público, mestre em filosofia do Direito e do Estado,
PucSp, integrante do Grupo de Pesquisas em Direitos Fundamentais, Puc-SP, assistente em Filosofia do
Direito na graduação, Puc SP.
245
1
Em Roma: “(...) aplica-se o usucapião, como vimos, no direito das pessoas, como no caso do casamento
pelo uso (usus), em que o marido adquire a manus sobre a mulher depois de com ela coabitar durante um
ano ininterrupto. CRETELA JR., José. Curso de Direito Romano. Forense, Rio de Janeiro: 1970,pág. 184
2
"A criminalização da interrupção da gravidez, pela presença de determinados pressupostos (como a falta
de concordância do pai de família, ´doador do sêmen´), lançou uma visão negativa sobre o preparador e
vendedor desses meios aptos e explicaria a perseguição a essa prática no período de Severo. Mas por que
também a doação de um afrodisíaco apresenta-se como fato digno de punição? No início do principado, a
ingestão de afrodisíacos está presente nas fontes literárias ainda em estreita relação com o curandeirismo,
e o uso de tais estimuladores provisórios do ato sexual foram pelo alargamento da visão moral
completamente tolerado e, muitas vezes, até mesmo desejado. Que um afrodisíaco apresenta às vezes
apenas um efeito ilusório, adultera sentimentos verdadeiros, varia entre as pessoas e tem baixa aprovação
social, a princípio, não prejudica sua legalidade. Os escritores de Augusto não transmitem uma imagem
negativa das poções que estimulam o desejo. Surgiram críticas e rejeições a essa prática, junto a declarações
sobre o perigo e riscos à saúde, relacionadas, na maior parte das vezes, com a preparação desses elixires
à magia. Também a tentativa de Augusto incitar de forma nova a moral e costumes dos romanos por
parâmetros já comprovados anteriormente, levou a uma avaliação negativa das mágicas e ‘bruxas’, das
ajudantes profissionais em problemas amorosos, mas sem qualquer punição penal. No sentido da Lex
Cornelia, os afrodisíacos podem, por isso, uma vez que não produz intenção de matar, ser considerados
como remédios úteis. Assim justifica a dúvida, se o seu uso inadequado, que gerava efeitos fatais
freqüentemente, multiplicavam-se; o número dos casos infelizes aumentava mais. Já Plínio, o velho,
considerava a utilização de abortivos e estimulantes negativa no mesmo sentido, pois Luculo, por meio
da ingestão de um afrodisíaco, a ele dada por sua esposa, teria falecido, ou supeitava, que Calígula teria
perdido o discernimento por meio de bebidas semelhantes (ein amatorium medicamentum), que teria
sido dado a ele por uma mulher. Considerando esse desenvolvimento, entende-se a já constatada incerteza
Marciano, que classifica os afrodisíacos não mais como medicamentos, mas também não como venenos,
ou substâncias que apenas provocam danos. A perseguição às pessoas que vendiam preparados
afrodisíacos para a população, podem assim ser relacionada, ao fato de que tais bebidas eram equiparadas
aos meios abortivos, cuja ingestão e prescrição era punível na época de Severo. E Marciano escreve seu
manual para iniciantes, as Institutiones, de onde vem essa citação, no tempo de Caracalla ou pouco mais
tarde. Daí emerge sua insegurança, a qual grupo pertenciam os afrodisíacos, uma vez que eles, entretanto,
analogamente aos meios abortivos, seriam classificados tendentes aos venena mala, embora sendo
tomados estritamente com fins terapêuticos (ad sanandum) e não produzidos com intenção de matar
(hominis necandi causa). HÖBENREICH, Evelyn. “Envenenamento e uso indevido de remédios no direito
romano”. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 98, 2003, (Jan-Dez.), p. 34 -5.
Havia o amatoriummedicamentum, podendo ser classificado como venena
mala, muito embora possuísse finalidade ad sanandum e não hominis necandi causa.
Com o devido respeito, equivoca-se o jurista da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, sobre os direitos do nascituro desde a concepção, em Roma, época em
que direito e magia estavam imbricados. Refere o direito romano do nascituro, em
contexto de herança e testamento3 (MARTINS, 2009, p. 145).
Sobre a condenação do adultério e de sua prova, o aborto, cumpre atestar
a instituição Igreja ter primeiro por valor a fidelidade conjugal e a teoria aristotélica
de incorporação da alma no feto. Ao depois, adota o discurso científico do séc. XIX
de formação do feto com o zigoto, passando a defender o direito à vida4 (GON-
ÇALVES & LAPA, 2008, p. 52).
A declaração sobre o não uso de preservativo pode ser feita a fiéis, dentro
de concepção de família e casamento, entretanto, se o faz à sociedade, incorre em
abuso da liberdade de religião com responsabilidade civil por infração de medida
sanitária preventiva, desatendimento à orientação e política de prevenção de DST/
AIDS do Ministério da Saúde.
Pode-se referir trecho de ementa: “Não pode uma igreja, sob o fundamento
da liberdade religiosa, adotar uso nocivo da propriedade, mediante produção de po-
luição sonora, porque extrapola limite legal. Entretanto, tem a igreja direito a utilizar
música no interior do templo, desde que os sons não atinjam o exterior, causando
dano ao sossego dos vizinhos”. AI 279.713-3, Rel. Caetano Levi Lopes, TAMG, 2000
(LOURENÇO, 2005, p. 313 apud Boletim AASP 2287/268).6
É de se questionar a intenção do legislador de 1940, que por meio de De-
creto-lei, autorizou o aborto em caso de estupro, se o fez à proteção da família do
filho bastardo, interpretação, hoje, inadmissível diante das Convenções Inter-
nacionais e da Lei Nacional sobre violências sexual, patrimonial, física e psicológica
_____________________________________________________________________________
3
MARTINS, Ives Gandra da Silva. A dignidade da pessoa humana desde a concepção. In: MIRANDA, Jorge &
DA SILVA, Marco Antonio Marques (Coord.) Tratado Luso-Brasileiro da dignidade humana. QuartierLatin,
São Paulo: 2009.
4
GONÇALVES & LAPA (Coord). Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros. São Paulo: Instituto para a Pro-
moção da Equidade, 2008, 330p, p. 52.
5
GONÇALVES & LAPA, Op. Cit. p. 75 e 76.
6
LOURENÇO, Daniel Braga. A liberdade de culto e o direito dos animais não-humanos. Revista de Direito
Constitucional e Internacional ano 13, n. 51, abril-junho 2005, Editora Revista dos Tribunais.
contra a mulher. Havia problema semelhante na concessão de licença maternidade,
com dispensa de mulheres grávidas solteiras, o que hoje também não mais se admite
na prática trabalhista. Hoje, pela lei Maria da Penha, considera-se violência psi-
cológica do companheiro o ato de obrigar a mulher praticar aborto. Para a hipótese
de violência sexual, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira nomina de “ma-
ternidade não-desejada”.7
O Jesuíta Tomás Sánchez admitia três hipóteses de aborto: o aborto tera-
pêutico em caso de feto não animado (a mãe é solteira e corre perigo de suicídio
ou de morte pela família); o aborto se a mulher já estava prometida, não podendo
evitar de outra maneira o filho bastardo que o futuro marido não aceitaria; e, se
solteira ou casada, o aborto de vítima de violação. No fim do século XVII, Martín de
Azpilicueta considerava o feto adquirir alma racional depois dos cinquenta primeiros
dias.8
_____________________________________________________________________________
7
OLIVEIRA, Antonio Cláudio Mariz de. Filhos Indesejados. Jornal o Estado de São Paulo, 3 de novembro de
2010.
8
BERISTAIN, Antonio. Interrupción voluntaria delembarazo: reflexiones teológico-jurídicas. Revista
Informação Legislativa, ano 20, n. 80, out./dez. 1983, disponível em: www.senado.gov.br
9
DE MATOS, Maurílio Castro. A Criminalização do aborto em questão. Almedina, Coimbra: 2010.
10
GARCIA, Maria. A inviolabilidade constitucional do direito à vida. A questão do aborto. Necessidade de sua
descriminalização. Medidas de Consenso. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política n. 24, julho-
setembro, Revista dos Tribunais, São Paulo: 1998.
11
PIMENTEL, Sílvia & PANDJVIARJAN, Valéria. Aborto: descriminar para não discriminar. Disponível em:
http://www.agende.org.br/docs/File/dados_pesquisas/saude/Aborto%20-%20descriminar%20para%20
nao%20discriminar.pdf
venção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher12 (PI-
MENTEL &PANDJIARJIAN). Para interpretar referida Convenção, há recomendação
geral13 ao Brasil de agosto de 2007:
_____________________________________________________________________________
12
PIMENTEL & PANDJVIARJAN. Op. Cit. O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre a Eliminação
de todas as formas de discriminação contra a Mulher, igualmente de seu Protocolo Adicional, Decreto n.
4.316/02, a admitir petições. O Brasil também é signatário da Convenção Interamericana para Erradicação
da Violência contra a Mulher.
13
Os Comitês da Onu, órgãos de supervisão das Convenções Internacionais, adotam os Comentários Gerais
ou Recomendações Gerais. Em vista do procedimento de relatórios próprio das Convenções Internacionais,
tornou-se prática a elaboração de minuta de Recomendação Geral por membro do Comitê, leitura da
minuta em plenário e sessão pública com participação de especialistas convidados, peritos de organizações
governamentais e não-governamentais. Desta sessão, procede-se a revisão de minuta por relatores do
Comitê, sendo encaminhada a interessados, para então, realizar-se sessão pública com aprovação oficial.
Existem também as Observações Finais. Consistem em Recomendações aos Estados-Partes para o
cumprimento dos direitos e garantias previstos nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos,
costume internacional a servir de critério de intepretação, inclusive, da Corte Internacional de Justiça e
das Cortes Internacionais de Direitos Humanos. Reivindica-se a tradução para o português dos Comentários
Gerais. PETERKE, Sven. O significado dos GeneralComments para a interpretação dos direitos humanos.
Revista Notícia do Direito Brasileiro n. 15, Unb, Brasília: 2009 , p. 61-75. O Brasil deve enviar relatórios
periódicos.
14
GARCÍA, Isabel Torres (Coord. Académica) La actuacióndel Comité para laEliminación de laDiscriminación
contra lamujer (Comité CEDAW). Instituto de Derechos Humanos, 2008, disponível em: www.iidh.ed.cr
15
GARCIA, 1998, Op. Cit. p.80
16
BROWN, Josefina Leonor ¿De quéhablamoscuandodecimosderechosreproductivos y sexuales? Los derechos
(no) reproductivos como punto de anudamiento. Disponível em: http://www.cedociidh.info/index.php?
option=com_content&view=article&id=48&Itemid=37;
17
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais. Martins Fontes, São Paulo:
2009.
No Brasil, houve a iniciativa do Pacto Nacional pela Redução da Morta-
lidade Materna. No Uruguai, há de acordo com a Ordenanza 369-04/MSP, consulta
médica e psicossocial pré-aborto e consulta médica e psicossocial pós-aborto. Não
houve, ainda, no Uruguai18, a descriminalização, porém, reconhece-se o aborto inse-
guro19 como problema de saúde pública. Neste país, prevê-se a educação sexual na
Lei Geral de Educação, Ley nº 18.437 de 12 de dezembro de 200820.
Ao reconhecer a conseqüência discriminatória indireta da lei punitiva a le-
var a práticas de abortos inseguros, José Henrique Rodrigues Torres sustenta o de-
ver do Estado de implantar serviço de redução de riscos e danos do aborto inseguro:
reações tóxicas, lesões, infecções, risco de infecção de HIV, retirada e obstrução
das trompas, hemorragia, anemia, choque e morte21 (TORRES, 2007, págs. 27-38).
Desta proposta, observa-se, de um lado, o dever de prevenir o aborto, co-
mo a possibilidade de adoção, igualmente o de não prescrever abortivos ou
métodos - o que revolve a discussão do uso indevido de remédios - porém, de outro,
tem-se o direito à informação correta, verdadeira, para uma decisão responsável.
Nos EUA, Michel Rosenfeld concebe a democracia como regra majoritária
e refere o direito antimajoritário, como em decisão de 1973 da Suprema Corte dos
EUA, do direito fundamental, em algumas circunstâncias, a escolher ter aborto du-
rante o primeiro trimestre da gravidez. Aponta na sociedade pluralista o problema
do reconhecimento de se levar em consideração todos os indivíduos e grupos22
(ROSENFELD, 2004).
Na Suprema Corte dos EUA, teve-se o caso Roe vs. Wade de 1973, em que
se considerou a cláusula do processo com todas as garantias da 14ª Emenda23 (SHA-
PIRO, 2008, p. 442), com declaração de inconstitucionalidade de lei estadual a proibir
o aborto para proteger o feto nos primeiros dois trimestres de gravidez,permitindo-
se o aborto depois da viabilidade do feto, dando início à “guerra do aborto” entre 249
grupos pró-vida e grupos pró-escolha24 (DWORKIN, 2009, p. 7), no mesmo ano em
que se teve o caso Doe vs. Bolton, em que não houve especificação sobre os lugares
onde poderiam ser praticados os abortos, “dando lugar a las modernas clínicas de
abortos”25 (SHAPIRO, 2008, p. 442).
_____________________________________________________________________________
18
Merecem reprodução as causas atenuantes e eximentes do aborto do Código Penal Uruguaio:”328.(Causa
atenuantes y eximentes) 1. Si el delito se cometiera para salvar elpropio honor, el de la esposa o unpariente
próximo, la pena será disminuida de un tercio a lamitad, pudiendoelJuez, enel caso de aborto consentido,
y atendidas las circunstancias delhecho, eximir totalmente de castigo. El móvil de honor no ampara
almiembro de lafamilia que fuera autor delembaraza. 2. Si el aborto se cometieresinelconsentimiento de
lamujer, para eliminar el fruto de laviolación, la pena será disminuida de un tercio a lamitad, y si se
efectuareconsuconsentimiento será eximido de castigo. 3. Si el aborto se cometieresinconsentimiento
de lamujer, por causas graves de salud, la pena será disminuida de un tercio a lamitad, y si se
efectuareconsuconsentimiento o para salvar su vida, será eximido de pena. 4. Enel caso de que el aborto
se cometieresinelconsentimiento de lamujer por razones de angustia económica elJuezpodrádisminuirla
pena de un tercio a lamitad y si se efectuareconsuconsentimientopodrállegar hasta laexención de la pena.
5. Tanto laatenuación como laexención de pena a que se refierenlos incisos anteriores regirásóloenlos casos
en que el aborto fuese realizado por un médico dentro de lostresprimeros meses de laconcepción. El plazo de
tres meses no rige para el caso previsto enel inciso 3º.”Disponível em: http://www0.parlamento.gub.uy/
Codigos/CodigoPenal/l2t12.htm
19
Para informações sobre o aborto inseguro, veja também: http://www.grupocurumim.org.br/site/
imprensa.php
20
Disponível em: http://www.parlamento.gub.uy
21
TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto inseguro: é necessário reduzir riscos. Revista Brasileira de
Ciências Criminais n. 68, setembro-outubro, Revista dos Tribunais, São Paulo: 2007.
22
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado Democrático de Direito. Cadernos
da Escola do Legislativo 12, jan./jun. 2004, disponível em: www.almg.gov.br Acesso em: 07/12/2010.
23
SHAPIRO, Ian. El derecho constitucional del aborto enlos Estados Unidos: una introducción.Traducción de
Hugo O. Selene, Cristián A. Fatauros y Natalia Arreguine. DOXA. Cuadernos de FilosofíadelDerecho n. 31,
Marcial Pons, Alicante: 2008, p. 437-463.
24
DWORKIN, 2009, Op. Cit. p. 7.
25
SHAPIRO, 2008, Op. Cit. p. 442.
Ao depois, relata-se Parenthoodof Central Missouri vs. Darforth de 1976,
com denegação aos Estados da faculdade de poder de veto dos maridos ao aborto,
bem como a denegação aos Estados do poder de veto de pais a aborto de meninas
solteiras26 (SHAPIRO, 2008, p. 442).
Em 1977, no caso Maher vs. Roe, declarou-se não possuírem os Estados o
dever de financiar abortos não-terapêuticos, com repiso, não obstante, pela pro-
teção de interferências indevidamente gravosas à liberdade para decidir, havendo
decisões posteriores pela restrição do financiamento, inclusive em abortos tera-
pêuticos e, no caso Colautti vs. Franklin de 1979, decidiu-se a determinação de via-
bilidade do feto caber aos médicos (SHAPIRO, 2008, p. 442-445), mesmo ano em
que, no caso Belloti v. Baird, referente à capacidade de consentimento informado
de menor, decidiu-se pela constitucionalidade de lei estadual a exigir consentimento
dos pais de gestante menor e solteira, desde que presente procedimento alternativo
para obtenção de consentimento, como a possibilidade de autorização judicial, com
posteriores decisões pela notificação dos pais pelos médicos27 (SHAPIRO, 2008, p.
443).
Neste estudo das decisões da Suprema Corte dos EUA, Ian Shapiro expõe
o interesse estatal em proteger a vida potencial subordinado ao direito constitu-
cional do aborto, apontando o critério trimestral de viabilidade do feto ter trans-
mudado para a consideração da interferência indevidamente gravosa sobre a
liberdade de decidir da mulher, como no caso PlannedParenthoodofSoutheastern
Pennsylvania v. Casey28, com decisão pela inconstitucionalidade de consentimento
do marido, servindo de critério para a atuação preventiva ao aborto dos Estados
no período de pré-viabilidade do feto. No caso Stenberg v. Carhart, em 2000, decidiu-
se pela inconstitucionalidade de lei proibitiva de aborto por nascimento parcial,
250 considerando o método e sua implicação para o risco à saúde da mulher. Em 2003
aprovou-se a Lei de Proibição do Aborto por Nascimento Parcial, sendo declarada
constitucional em 2007, por meio de “certioriari”, no caso Gonzáles v. Carhart29
(SHAPIRO, 2008, p. 446-552).
Suzanne A. Alford estuda caso de tiro em próprio abdômen de mulher a
sobreviver no hospital, julgada no Estado da Flórida, EUA30 (ALFORD, 2003, p. 1011),
em discussão se o auto-aborto consiste em um direito fundamental.
Antônio Chaves indica, em matéria de integridade física, serem as finali-
dade curativas ou meramente estéticas da operação excludentes ao que se possa
invocar por contrariedade aos bons costumes, à lei ou à ordem pública. “Tratando-
se de operação de que não decorra diminuição permanente da integridade física, não
há obstáculo à validade do consentimento: pode-se, pois, dispor validamente da pró-
pria integridade física, mediante consentimento à operação”31 (CHAVES, 1977). Presta
realce às finalidades curativa, meramente estéticas e a validade do consentimento.
Com relação às atividades do boxe, do karatê, da luta livre, quem participa
do embate consente às lesões, ainda que procure evitá-las, não podendo ter por
alheias à sua vontade. Antônio Chaves entende por auto-lesão o aborto provocado
por si pela mulher.
_____________________________________________________________________________
26
SHAPIRO, 2008, Op. Cit. p. 442.
27
SHAPIRO, 2008, Op. Cit. p. 443.
28
SHAPIRO, 2008, Op. Cit. p. 446.
29
SHAPIRO, 2008, Op. Cit. p. 446-452.
30
ALFORD, Suzanne A. Is self-abortion a fundamental right? Duke Law Journal. Durham, NC, v. 52, n. 52,
2003.
31
CHAVES, Antônio. Direitos de personalidade. Direitos à vida, ao próprio corpo e às partes do mesmo
(transplantes) – esterilização e operações cirúrgicas para “mudança de sexo” – direito ao cadáver e às partes
do mesmo. Justitia vol. 98, 1977.
Os sofrimentos psíquicos tanto do usuário de álcool e afins, em situação
de dependência, quanto da mulher que aborta, afora os danos físicos com risco de
morte, já são uma pena, casos de descriminalização e perdão judicial. O aborto é
traumático32 (BACHA apud GARCIA, 1998, p. 77).
Analogamente, remarque-se a declaração de constitucionalidade de salas
seguras para uso de drogas do Supremo Tribunal do Canadá33 (MAIEROVITCH),
tendo-se a prevenção como construção de espaço saudável, abertura de alter-
nativas e capacidade de apropriação dos próprios atos e seus efeitos34 (GOLTZMAN)
– dada a abstenção por meta nem sempre realizável – e os controles social e ad-
ministrativo como medidas de redução de riscos e danos, considerando a violência
em torno do comércio proscrito, inclusive, igualmente como problema de saúde
pública.
De acordo com o relatório do Conselho da Europa, conforme leciona Mi-
reille Delmas-Marty, tem-se: a descriminalização de jure por “reconhecimento de
um direito legítimo a um modo de vida que era anteriormente contrário à lei”, refe-
rindo a “política de tolerância”; e a “política de resignação” em face dos crimes de
poder econômico35 (DELMAS-MARTY, 2004, p. 395).
Refere, para a descriminalização do aborto, a sentença do Tribunal Supre-
mo do Canadá de 28 de janeiro de 1988, baseada nos arts. 1º e 7º da Carta Canadense
das Liberdades, liberdade, vida privada e segurança da mulher. Indica as decisões
dos Tribunais italiano de 18 de fevereiro de1975e Norueguês, em 1983, com base na
liberdade da mulher (DELMAS-MARTY, 2004).
A sentença do Tribunal Constitucional austríaco de 11 de outubro de 1974
concluiu pela descriminalização, considerando a vida da criança, art. 2º da CESCH,
só estava protegida após o nascimento36 (DELMAS-MARTY, 2004, p. 400). Na França,
houve a descriminalização de jure com a Lei “experimental” de 11 de julho de 1975, 251
a título provisório e com a Lei de 31 de dezembro de 1979, a título definitivo, para a
interrupção voluntária da gravidez nas dez primeiras semanas. O Conselho de Es-
tado, consultado sobre a violação do direito à vida, interpretou a Convenção Eu-
ropéia de Direitos Humanos em sentido a não excluir o aborto em 21 de dezembro
de 1990. Descreve a descriminalização de facto por desinteresse processual. Dife-
rentemente julgou o Tribunal Constitucional da Alemanha, em 1975, pelo direito à
vida antes do nascimento (DELMAS-MARTY, 2004, p. 400).
Na França, a Lei de 17 de janeiro de 1975 contempla a permissão do aborto
para a situação “d’étresse”, denominada indicação de aborto por angústia, antes da
décima semana de gravidez, com estadia de três meses para mulheres estran-geiras.
A partir de dez semanas, requer-se a indicação médica (VALDIVIA, 1997, p. 21)37.
Os abortos clandestinos constituem problema de saúde pública38 e foi des-
criminalizado – legalização da interrupção da gravidez – por plebiscito em Portugal,
_____________________________________________________________________________
32
GARCIA, Op. Cit. 1998, p. 77.
33
MAIERVOTICH, Wálter. Salas seguras para uso de drogas. Supremo Tribunal do Canadá decide pela
constitucionalidade por salvarem vidas. Disponível em: http:/maiervotich.blog.terra.com.br
34
GOLTZMAN, Paula. Impacto de las políticas de drogas enlasituaciónsócio-sanitaria de losusuarios de drogas,
modulo de curso on-line Política de Drogas, VIH y Derechos Humanos, http://punto.latintraining.com/
35
DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Manole, Barueri: 2004, p. 395.
36
DELMAS-MARTY, Op. Cit. pág. 400.
37
VALDIVIA, Violeta Bermúdez. La Regulación Jurídica del Aborto en América Latina y el Caribe. Estudio
Comparativo. Lima, 1997. Disponível em: http://www.cladem.org/index.php?option=com_rokdo
wnloads&view=folder&Itemid=588&id=949:derechos-sexuales-y-reproductivos
38
NOBLAT, Ricardo. Aborto illegal mata uma mulher a cada dois dias. Blog do Noblat. Brasília, 10/10/10,
disponível em http://oglobo.oglobo.com/, acesso em 27/10/10.
em 200739 (MATOS, 2010, p.. 73). Há a questão do aborto espontâneo e a falta de
atendimento de saúde40. No Brasil, funcionam quarenta serviços de aborto legal
em hospitais públicos41 (MORAIS, 2008, pág. 52), para os abortos impuníveis. Alerta-
se para a situação de insegurança jurídica dos serviços de saúde para o aborto im-
punível. Ademais, questionou-se, na Argentina, a notitia criminis derivada de auto-
incriminação e o conflito com as garantias fundamentais42 (CASAS, p. 411-423).
A proibição do aborto não previne as mortes dos fetos, muito menos as
mortes das mulheres e as conseqüências físicas e psíquicas. Há violação ao direito
à saúde da mulher. Contrário ao aborto, porém fraterno às mulheres e pela des-
criminalização do aborto posiciona-se Cláudio Lembo, da mesma Universidade Pres-
biteriana Mackenzie43 (LEMBO, 2011, p. 13-15).
Do Supremo Tribunal Federal,”STF”, pode ser referido trecho da ementa
da Adi 3510, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, quando da discussão sobre pesquisas
com células-tronco:
_____________________________________________________________________________
44
SZANIAWSKI, Elimar. Células Tronco. Jornal Carta Forense, Agosto, 2011, p. B 18, B19, disponível em:
www.cartaforense.com.br
45
GARCIA, 1998, Op. Cit. p. 73.
46
Mediante requerimento expresso ou vontade presumida. Nesse sentido: DIAS, Roberto. Disponibilidade
do direito à vida e eutanásia: uma interpretação conforme a Constituição. In IKAWA, Daniela; PIOVESAN,
Flávia; FACHIN, Melina Girardi (Coords.). Direitos humanos na ordem contemporânea: proteção nacional,
regional e global. Curitiba: Juruá, 2010, v. 4, p. 151-177. Os Profs. Marcelo Figueiredo e Roberto Dias inte-
gram o Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais, Puc Sp, Capes.
47
FIGUEIREDO, Marcelo. O respeito à dignidade humana e a eutanásia. Breves Notas. In: MIRANDA, Jorge
& DA SILVA, Marco Antonio Marques da (coord). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, Quartier
Latin, São Paulo: 2009. p. 434-438.
guinte, constitucionalmente, também morto48 (DA SILVA, 2007, p. 202 apud FIGUEI-
REDO, 2009, p. 435).
No caso Pretty v. Reino Unido, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
fundamentou a proibição de proibição de suicídio assistido não vulnerar a proibição
de tortura e o direito à intimidade49 (HAUTECOUVERTURE, 2002 apud FIGUEIREDO,
2009, p. 435).
Relata-se na discussão do feto anencéfalo50 no STF, de um lado o postura
salvacionista da mãe, a considerar inclusive tratamento degradante, em meio à
analogia com a eutanásia, para o estado vegetativo irreversível, de outro com
divergência, sobre a possibilidade de nascimento.
O Prof. Dr. Ives Gandra Martins nomina de microcefalia este fenômeno.Em
matéria anomalia, indaga Dr. Luiz Flávio Borges D´urso sobre o qual grau de ano-
malia poderia, em hipótese, ser admitido51(D´URSO, 1999, p. 343), em comentário
de trabalho acadêmico sobre aborto eugênico. Pedro EstevanSerrano refere o
critério da atividade cerebral para o conceito de vida, com entendimento da “cure-
tagem de embriões anencéfalos” não caracterizar aborto52.
O Dr. Luiz Flávio Borges D’Urso afirma, em países em que a legalização
ocorreu, haver a continuação dos abortos clandestinos e entende como “mais um
estímulo à irresponsabilidade materna” (D´URSO, 1999, p. 343). Entende a vida desde
a concepção e refuta o direito da mulher dispor do próprio corpo53, falando
igualmente em paternidade responsável e prevenção da gravidez. De acordo com
Regina Soares Jurkewicz, os países a legalizar a prática do aborto reduziram a in-
cidência dos mesmos, “uma vez que passaram a oferecer educação sexual desde a in-
fância, serviços mais qualificados de acesso a anticonceptivos e um atendimento
digno54” (JURKEWICZ, 2010, p. 16).
254 Carlos Aurélio Mota de Souza narra o contexto de nascimento de Ludwig
Von Beethoven do marido sofrer de sífilis, a mãe de tuberculose, sendo que o pri-
meiro filho nascera cego, o segundo morrera, o terceiro surdo e o quarto tuber-
culoso, posta como indagação a alunos de Faculdade de Medicina55 (SOUZA, 2009, p. 10).
A questão deve ser feita à mulher e não aos médicos. Ademais, deve-se re-
marcar o direito do direito do paciente e da paciente a tratamento consentâneo
com sua dignidade, questão de bioética, dever do médico56, à opção menos dolo-
rosa, com inclusão social.
_____________________________________________________________________________
48
FIGUEIREDO, 2009, Op. Cit. p. 435.
49
FIGUEIREDO, 2009, Op. Cit. p. 435.
50
FREITAS, Patrícia Marques. Argüição de descumprimento de preceito fundamental como meio de defesa
dos direitos humanos e o caso dos fetos anencéfalos. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano
15, n. 58, janeiro-março, 2007, RT, São Paulo: 2007.
51
D´URSO, Luiz Flávio Borges. A propósito do aborto na reforma do Código Penal. Instituto Toledo de Ensino,
Bauru: 1999. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos n. 25.
52
SERRANO, Pedro Estevan. “O STF deve proibir o aborto de feto anencéfalo? Não, Pedro Estevan Serrano
Vs Sim, João Ibaixe Jr. Revista do Advogado n. 332. OAB-SP.
53
Sobreleva mencionar a indagação se a gestante possui o direito de fumar durante a gravidez.
Considerando o seu direito à saúde, o Estado deve informar e orientar para a redução de riscos e danos,
como medida de pré-natal.
54
JURKEWICZ, Regina Soares. A escolha sobre o corpo. Le Monde Diplomatique, Fevereiro, Posigraf, São
Paulo:2010.
55
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Direitos humanos, uma visão antropológica. In: DA SILVA MARTINS, Ives
Gandra & DE MATTOS, Mauro Roberto Gomes (Coord.) Revista Ibero-Americana de Direito Público vol.
XXVI, América Jurídica, Rio de Janeiro: 2009.
56
“Resolução CFM n. 1931/09 (...) É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento de paciente ou
de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco
iminente de morte. Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade
ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto. Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício
do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para
limitá-lo. Art. 25. Deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos degradantes, desumanos ou
Na Índia, houve discussão sobre direitos conjugais, se era caso de crueldade
contra o marido em face do direito da livre eleição de saber se e quando seu corpo
será veículo da procriação humana (Caso SwiSatva c. Sri Ram, Sentença de Andhara,
Saroj Rani c. Sudarshan, Kinar A.I.R 1984)57 (NIRMAL, 1985, p. 89). O direito à vida
privada compreende decisões relativas aos métodos empregados para regula-
mentar a fertilidade. Para Nirmal, o aborto legalizado sob controle médico reduz a
taxa de mortalidade das mães, as taxas de mortinatalidade e mortalidade infantil,
com contribuição às saúdes física e psíquica da mulher e a contribuir com as pos-
sibilidades da mulher desempenhar papel produtivo na sociedade (NIRMAL, 1985,
p. 81).
De prova do adultério a resíduo sólido, o regime jurídico do feto comporta
variações, inclusive se o feto constitui pessoa nos termos da 14ª Emenda da Cons-
tituição dos EUA58 (DWORKIN, 2006, págs. 10-32), entretanto, em termos deônticos,
vislumbra-se o conflito entre a cláusula de consciência e a omissão de socorro, pois
a pretensa abstenção da conduta por meio da proibição redunda em omissão
estatal. Tal qual com a proibição das drogas, a finalidade da saúde não é alcançada,
posta a situação de corrupção e morte, com circulação de produtos de risco e
altamente nocivos, a finalidade vida também sai perdendo com a proibição do
aborto.
A exegese merece ir além do direito à saúde das Convenções
Internacionais, para também indagar sobre a chamada discriminação indireta, os
efeitos discriminatórios indiretos, ou melhor, a consequência indireta
discriminatória de tal ou qual lei sobre grupos, em especial sobre as mulheres pretas.
Os opositores do aborto entendem por prática eugênica, a chamada
eugenia positiva, entretanto, não é de se olvidar, a eugenia negativa presente na
prescrição de abstenção de uso de álcool e afins, por considerar tais práticas 255
degenerativas.
Quanto ao dever de abortar, dever de não ter, de países autoritários,
cumpre registrar o direito de ter com assistência social, o direito de não ter com
direitos ao planejamento familiar, às saúdes física e psíquica, e o dever de ter como
imposição do ser mãe, o que é um direito.
Consoante James M. Cooper, a justiça terapêutica tem por definição o
estudo do impacto da lei na vida emocional e no bem estar psíquico do cidadão,
com vista à autodeterminação, pois a participação no processo é considerada
terapêutica, daí a importância do direito de voz, “thevoice a patient has concerning
his or her treatment59” (COOPER, 1999), em artigo em que busca relacionar justiça
terapêutica com o direito internacional, a exemplo do direito de voz de associações
civis em organizações internacionais60.
cruéis, praticá-los, bem como ser conivente com quem as realize ou fornecer meios, instrumentos, substâncias
ou conhecimentos que as facilitem. (...) Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em
qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade” Disponível em:
www.cremerj.org. br/downloads/241.PDF, acesso em: 25/08/2010.
_____________________________________________________________________________
57
NIRMAL, B.C. El aborto y losderechos de hombre. Revista Internacional de DerechoContemporáneo.
Asociación Internacional de Juristas Demócratas, Bruelles-Belgique: 1985. A Sentença SMT Saroj Rani v.
Sudarshan Kumar Chadha encontra-se disponível em: http://judis.nic.in/supremecourt/chejudis.asp
58
DWORKIN, 2009, Op. Cit. p. 10-32.
59
COOPER, James M. State of the Nation: therapeutic jurisprudence and the evolution of the right of self-
determination in international law. Behavioral Sciences and the Law, n. 17, 1999, John Wiby& Sons, Ltd. p. 608.
60
Pode-se referir estudo: NADER, Lucia. O papel das ONGs no Conselho de Direitos Humanos da ONU, Revista
Sur n. 7, disponível em http://www.surjournal.org/conteudos/getArtigo7.php?artigo=7,port,artigo
_nader.htm, acesso em: 25/08/2010.
Quanto aos indígenas, a antropóloga Carmen Junqueira pesquisou a mo-
bilidade matrimonial, a troca de mulheres, a família, o casamento, a violência em
contexto específico e a liberdade sexual dos Cinta-larga, classificando-os por “namo-
radores61” (JUNQUEIRA, 2002, p. 86).
Os homens a ocupar posição de “dono de casa” (zabway) esforçam-se em
termais de uma mulher, tornando-se assim intermediário importante entre homens
desejantes de obter esposa62 (JUNQUEIRA, 2002, p. 83). Se a mulher resolve deixar
o marido, em casamentos de curta duração e sem filhos, passa a integrar o processo
de circulação através do pai ou irmãos para selação de nova aliança. Quando o
marido cede diretamente a esposa para outro homem, obtém crédito63 (JUNQUEI-
RA, 2002, p. 83).
Há agressão à mulher em caso de desconfiança ou surpresa da mulher
com forasteiro. Quando a mulher resolve fugir da aldeia com o homem, há desequi-
líbrio nos acordos recíprocos de aquisição de mulheres. “Confirmada a transgressão,
o homem ofendido mobiliza aliados e sai ao encalço dos fujões, firme na intenção de
reaver a mulher e matar o raptor que, desse momento em diante, é qualificado como
‘ladrão de mulher64’” (JUNQUEIRA, 2002, p. 106 - 107)
Esta antropóloga pesquisou a situação da mulher Kamaiurá, com partici-
pação secundária em postos de prestígio e cerimoniais de pajelança, havendo nor-
mas e valores a limitar as relações sexuais em certas ocasiões, e no atinente às rela-
ções de gênero, afirma haver: “áreas de comando próprias65” (JUNQUEIRA, 2002,
p. 53), sendo na esfera doméstica e nas atividades rotineiras, em que recebe e passa
conhecimentos tradicionais para “ser dona do próprio corpo66” (JUNQUEIRA, 2002,
p. 52).
O status de casada não obriga relação momentaneamente não desejada,
256 porque o sexo deve ser praticado como “coisa prazerosa e compartilhada67” (JUN-
QUEIRA, 2002, p. 51 - 52).
As mulheres fazem uso de ervas para evitar a concepção e garantir maior
espaçamento entre uma gravidez e outra. Em caso de gestação indesejada, mu-
lheres
_____________________________________________________________________________
61
JUNQUEIRA, Carmen. Sexo e Desigualdade entre os Kamaiurá e os Cinta Larga. Olhodágua, São Paulo:
2002, p. 86.
62
JUNQUEIRA, Op. Cit. p. 83.
63
JUNQUEIRA, Op. Cit. p. 83.
64
JUNQUEIRA, Op. Cit. p. 106 - 107.
65
JUNQUERA, Op. Cit. p. 53.
66
JUNQUEIRA, Op. Cit. p. 52.
67
JUNQUEIRA, Op. Cit. p. 51 e 52.
Quando os anticoncepcionais e as técnicas de abortamento falham, resta,
mesmo sem seccionar o cordão umbilical, enterrrar o recém-nascido com a placenta.
“O infanticídio é eticamente aceito como forma de impedir a sobrevivência daqueles
sem lugar na sociedade” (JUNQUEIRA, 2002, p. 53 - 54). O mesmo procedimento é
adotado com recém-nascidos defeituosos e com gêmeos, por razões míticas, te-
mendo-se os gêmeos serem imagem terrena de Kwat e Yaì, respectivamente Sol e
Lua, netos de Mavutsinin, a réplica nascida em forma de gêmeos humanos, carente
de poderes sobrenaturais, pode ameaçar ou destruir o equilíbrio que sustenta o
mundo68" (JUNQUEIRA, 2002, p. 53 - 54).
Em matéria de infanticídio também escreve Melissa Volpato Curi, sobre a
“análise diferenciada de cada cultura sobre o ato de levar à morte crianças recém
nascidas69” (CURI, 2009, p. 12), diferenciando o “direito individual à vida” e o “direito
à vida de sujeitos coletivos” (SEGATO, 2007 apud CURI, 2009), com alusão ao plura-
lismo jurídico.”A mãe, considerando a rejeição da comunidade à criança parida, re-
nuncia ao direito individual à vida da criança e legitima o direito coletivo da comu-
nidade como garantia da ordem social” (CURI, 2006, p. 12 - 13).
Com relação ao projeto de lei de 2007 de criminalização e supervisão de
tribos indígenas, em leitura etnocêntrica, da prática do infanticídio, Karina Leão
Rodrigues constata a ausência de representatividade dos povos indígenas no Con-
gresso Nacional e alude a concepção de “vida boa de se viver” dos Suruahá e a não
coincidência entre nascimento biológico e nascimento na esfera humana, a se dar
com a socialização da criança na cultura do povo, dos Ianomani, afirmando haver
dissensos nos povos em que é praticado, sobre a escolha da mãe da ida da criança
à aldeia ou permanência na floresta, fazendo referência às “tomadas de decisões
baseadas em valores locais70” (SEGATO, 2007 apud RODRIGUES, 2009, p. 2).
Em oficina de direitos humanos com mulheres indígenas em 2002, em 257
Brasília, Rita Laura Segato, além de referir o art. 8º da Convenção 169 da OIT sobre
direito consuetudinário dos povos indígenas, afirma terem as mulheres indígenas
recomendado “pensar e sugerir maneiras de modificar os costumes que as preju-
dicavam71” (SEGATO, 2006, p. 210). O desafio consiste na modificação de costumes
com continuidade cultural.
Em 2006, o Tribunal Constitucional do Peru determinou ao Ministério da
Saúde a distribuição gratuita de contraceptivos orais de emergência, uma conquista
de direito das mulheres pobres, inclusive indígenas e, em 200972, este Tribunal Cons-
titucional resolve por proibir a distribuição gratuita de contraceptivos orais de emer-
gência73. Decisões análogas podem ser referidas do Tribunal Constitucional do Chile,
sobre a pílula do dia seguinte, interpretada por abortiva, e igualmente decisão da
Corte Suprema de Justiça da Argentina74 (CASAS, 2008, p. 454).
_____________________________________________________________________________
68
JUNQUEIRA, Op. Cit. p. 53 e 54.
69
CURI, Melissa Volpato. Os direitos humanos e os povos indígenas. Trabalho proposto para apresentação
no I ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito Universidade de São Paulo, 20 e 21 de agosto
de 2009, p. 12.
70
RODRIGUES, Karina Leão. Cidadania indígena e pluralismo jurídico: infanticídio em foco. Trabalho proposto
para apresentação no I ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito Universidade de São
Paulo, 20 e 21 de agosto de 2009, p. 2.
71
SEGATO, Rita Laura. Antropologia e Direitos Humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos
direitos universais. MANA 12(1), 2006, pág. 210. Sobre desigualdade de gênero, veja também o capítulo I:
BALANDIER, Georges. Antropológicas. Cultrix, São Paulo: 1976.
72
Decisão disponível em http://www.tc.gob.pe/jurisprudencia/2009/02005-2009-AA.html acesso em: 08/
08/2010.
73
Veja também: La anticoncepción oral de emergencia. ColeccionDerechos Humanos, Población y Desarrollo,
2008. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/BibliotecaWeb/Varios/Documentos/BD_125911109/
Anticoncepcion_oral_emergencia.pdf
74
CASAS, 2008, Op. Cit., p. 454.
Para além da discussão do contraceptivo oral de emergência, Ronald
Dworkin antevê discussão em torno de licenciamento, registro e procedimento
médico de pílula abortiva75 (DWORKIN, 2009, p. 249).
Na América Latina, Violeta Bermudez apresenta pesquisa sobre legislação,
com exposição dos critérios de admissão de abortos: os prazos e as indicações.
Dentre as indicações mencionam-se a indicação contraceptiva, compreendendo-
se como complementar às demais medidas, e as indicações de adolescência76, falta
de moradia, infecção por HIV, indicação em caso de inseminação artificial não-con-
sentida, bem como as permissões do aborto terapêutico77 (conflito entre a vida da
mãe e do nascituro), do aborto ético (honoris causa decorrente de violência sexual)
e do aborto eugênico (má formação decorrente de graves deficiências físicas ou
psíquicas do feto), sendo mencionada legislação da primeira metade do século XX,
com indicação de aborto nos casos de mulher, na expressão da época, “idiota ou
demente” 78 (VALDIVIA, 1997).
Este estudo refere a legislação de outros países como o Abortion Act de
1967, na Inglaterra, sendo estabelecido, em 1990, o período de 24 semanas para a
prática do aborto (IBÁNEZ & GARCIA VELASCO apud VALDIVIA, 1997). Em 1992,
houve plebiscito na Irlanda com aprovação de Emenda Constitucional para permitir
as mulheres de viajarem para o exterior quando quisessem abortar (DWORKIN,
2009, p. 5). A Nicarágua aprovou lei que proíbe o aborto em qualquer circunstância,
inclusive quando a vida da gestante corre perigo79.
O Tribunal Supremo de Porto Rico interpretou o art. 91 do Código Penal
de 1974, permitindo-se o aborto se a saúde da mulher, compreendidas as saúdes fí-
sica e mental, assim o requer e considerou o aborto direito constitucional, como
componente do direito à intimidade da Constituição de Porto Rico (VALDIVIA, 1997,
258 p. 20)80.
O Tribunal Constitucional da Espanha decidiu na Sentença 53/1985, com
reconhecimento de dupla significação, moral e física, ao “conceito indeterminado”
vida, em recurso prévio de inconstitucionalidade contra o texto definitivo do Projeto
de Lei Orgânica de reforma do art. 417 do Código Penal, para preservação de vali-
dade constitucional do aborto terapêutico, do aborto ético e do aborto eugênico
(má formação decorrente de graves deficiências físicas ou psíquicas do feto).
_____________________________________________________________________________
75
DWORKIN, 2009, Op. Cit. p. 249.
76
Tem-se notícia de Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva e da Interrupção Voluntária da Gravidez na Espanha
a contemplar adolescentes de 16 a 18 anos. Disponível em: http://www.rnw.nl/portugues/article/nova-lei-
de-aborto-entra-em-vigor-na-espanha Agradeço à Psicóloga Heloísa Escorel pela informação.
77
Veja também: VILLENA, Jeannette Llaja. O aborto terapêutico. Um caso de litígio emblemático In: SOTELO,
Roxana Vasquez, Os direitos das mulheres em linguagem feminista. Experiências do CLADEM, 2011.
78
VALDIVIA, 1997, Op. Cit.
79
BRASIL DE FATO. A Nicarágua “cristã”. 15 a 21 de setembro de 2011, p. 13.
80
VALDIVIA, 1997, Op. Cit. p. 20.
81
Disponível em:http://www.boe.es/aeboe/consultas/bases_datos/jurisprudencia_constitucional.php. Veja
também para pesquisa nos Tribunais Constitucionas na Associação Brasileira de Constitucionalistas De
mocratas: http://www.constitucionalistas.com.br/cortes-constitucionais/
Na Colômbia teve-se a Sentença C-355/2006, com decisão em respeito ao
livre desenvolvimento da personalidade e direitos à saúde e integridade82.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso De la Cruz Flores vs.
Peru, decidiu pela confidencialidade médica sobre a informação a que tenha na
condição de médico83 (CASAS, 2008, p. 402-404)
Para a Filosofia do Direito, há o conflito de valores: direito à vida, direito à
livre maternidade, direito do progenitor, cumprindo repassar: “La vida tiene gran
importancia para el Derecho pero este la protege precisamente porque su función es
dar seguridad. Pero no protege solamente la dimensión de vida humana biológica, a
lacual nos se le resta valor, sino, ante todo, la dimensión social de la vida humana84”
(BONIFAZ A., 1986, p. 200).
Conclui-se pela descriminalização do aborto. Analogamente, se não há
prisão para depositário infiel85, não deve haver prisão para a depositária infiel. Como
afirmado pela Profa. Maria Garcia, “a mulher que aborta cumpre uma pena contra
si mesma”, necessitando de informação para “decidir sobre o seu próprio caminho
sem entraves e temores” (GARCIA, 1998, p. 83), para os casos de “interrupção de
gravidez que não pôde suportar”86 (PIMENTEL, 1988 apud GARCIA, 1998, p. 79),
devendo o Estado oferecer um serviço de saúde não-discriminatório.
_____________________________________________________________________________
82
‘Ley 599 de 2000 artículos 122 123 (parcial) y 124 modificados por el art. 14 de la ley 890 de 2004; y 32 nu-
meral 7 de la ley 599 de 2000 código penal. Aborto sin consentimiento circunstancias de atenuación punitiva
y ausencia de responsabilidad penal. Casos en que no constituye delito. Los demandantes consideran que
las normas demandadas violan el derecho a la dignidad la autonomía reproductiva y al libre desarrollo de
la personalidad establecidos en el preámbulo los artículos 1° 11 12 13 15 16 42 43 49 y 93 numeral 2º de la
constitución política. Inexistencia de cosa juzgada material o formal respecto de decisiones previas adop-
tadas por esta corporación. La cosa juzgada material no puede ser entendida como una petrificación de la
jurisprudencia sino como un mecanismo que busca asegurar el respeto al precedente pues lo contrario
259
podría provocar inaceptables injusticias. Cuando existan razones de peso que motiven un cambio juris-
prudencial - tales como un nuevo contexto fáctico o normativo - la corte constitucional puede apartarse
de los argumentos esgrimidos en decisiones previas e incluso también puede llegar a la misma decisión
adoptada en el fallo anterior pero por razones adicionales o heterogéneas. La vida como un bien cons-
titucionalmente relevante que debe ser protegido por el estado colombiano y su diferencia con el derecho
a la vida. El derecho a la vida supone la titularidad para su ejercicio y dicha titularidad como la de todos los
derechos está restringida a la persona humana mientras que la protección de la vida se predica incluso
respecto de quienes no han alcanzado esta condición. Para la corte el fundamento de la prohibición del
aborto radicó en el deber de protección del estado colombiano a la vida en gestación y no en el carácter
de persona humana del nasciturus y en tal calidad titular del derecho a la vida. La vida y los tratados inter-
nacionales de derechos humanos que hacen parte del bloque de constitucionalidad. De las distintas dispo-
siciones del derecho internacional de los derechos humanos que hacen parte del bloque de constitucio-
nalidad no se desprende un deber de protección absoluto e incondicional de la vida en gestación. Los
derechos fundamentales de las mujeres en la constitución política colombiana y en el derecho internacional.
Los derechos sexuales y reproductivos de las mujeres han sido finalmente reconocidos como derechos
humanos y como tales han entrado a formar parte del derecho constitucional soporte fundamental de
todos los estados democráticos. De las normas constitucionales e internacionales no se deduce un mandato
de despenalización del aborto ni una prohibición a los legisladores nacionales para adoptar normas penales
en este ámbito. El congreso dispone de un amplio margen de configuración de la política pública en relación
con el aborto. Limites a la potestad de configuración del legislador en materia penal. El principio y el de-
recho fundamental a la dignidad humana el derecho al libre desarrollo de la personalidad la salud la vida y
la integridad de las personas el bloque de constitucionalidad la proporcionalidad y la razonabilidad como
límites a la libertad de configuración del legislador en materia penal. El aborto en el derecho comparado.
Inexequibilidad de la prohibición total del aborto de la expresion “o en mujer menor de catorce años” del
articulo 123 del codigo penal así como de la disposicion contenida en el articulo 124 del codigo penal. Cons-
titucionalidad del numeral 7 del articulo 32 del codigo penal. El articulo 122 del codigo penal es exequible
a condicion de que se excluyan de su ambito las tres hipotesis que tiene caracter autonomo e independiente
[(i) cuando la continuación del embarazo constituya peligro para la vida o la salud de la mujer certificada
por un médico; (ii) cuando exista grave malformación del feto que haga inviable su vida certificada por un
médico; y (iii) cuando el embarazo sea el resultado de una conducta debidamente denunciada constitutiva
de acceso carnal o acto sexual sin consentimiento abusivo o de inseminación artificial o transferencia de
óvulo fecundado no consentidas o de incesto]. Exequible el articulo 32 numeral 7 de la ley 599 de 2000;
exequible condicionado el articulo 122 de la ley 599 de 2000; inexequible la expresion “o en mujer menor
de catorce años.” del articulo 123 de la ley 599 de 2000 e inexequible el articulo 124 de la ley 599 de 2000’
Disponível em: http://www.corteconstitucional. gov.co/relatoria/2006/C-355-06.htm
83
CASAS, 2008, p. 402-404.
84
BONIFAZ A., Lic. Leticia. El aborto (Análisis filosófico-jurídico). Revista Mexicana de Justicia n. 86. Vol.
IV, octubre-diciembre, Procuradoria General de la República, Procuradoria General de Justiciadel Distrito
Federal, Instituto Nacional de CienciasPenales, Mexico: 1986.
85
Sobre a posição infraconstitucional e supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos des-
tacam-se os julgados do ano de 2008 do Supremo Tribunal Federal, “STF”: RE 466.343, 2008, RE 349.703,
2008 e HC 87.585, bem como o art. 5, §3º, Constituição Federal, “C.F”, introduzido pela Emenda Consti-
tucional da Reforma do Judiciário. PIOVESAN, Flávia. Hierarquia dos Tratados Internacionais de Proteção
dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF. In: JUNIOR, Alberto do Amaral & JUBILUT, Liliana Lyra (Orgs.)
O STF e o Direito internacional dos direitos humanos. Quartier Latin do Brasil, São Paulo: 2009, págs. 130-
145.
86
GARCIA, 1998, Op. Cit. p. 79.
260
A Questão de Cotas no Brasil:
Diálogos Institucionais
e Fundamentos
Constitucionais-Democráticos *
Bernardo Zettel
Carlos Bolonha
Carolina Almeida
Chiara de Teffé
Henrique Rangel [**]
RESUMO
O presente artigo analisa a questão de cotas, no Brasil, dando ênfase
a problemas tais como a falta de uniformidade dos critérios dos
editais e a falta de coerência entre os conceitos e argumentos encon-
trados na jurisprudência dos tribunais, acreditando que tais situações
prejudicam a garantia e a eficácia do princípio da igualdade. Apre-
senta-se como hipótese, para que os sistemas de cotas universitárias
tornem-se legítimos, sob o prisma da igualdade, a necessidade de
promoção dos diálogos institucionais e o atendimento a funda-
mentos constitucionais-democráticos. Observa-se, ainda, por meio
de uma análise dos editais universitários, da jurisprudência dos tri-
261
bunais e da produção normativa pertinente, o quanto o quadro bra-
sileiro precisa melhorar para alcançar alcançar estes requisitos.
PALAVRAS-CHAVE
Sistema de Cotas – Princípio da Igualdade – Diálogos Institucionais –
Fundamentos Constitucionais-Democráticos.
ABSTRACT
This article analyses the quota issue emphasizing problems as an
absence of uniformity in its criteria and as absence of coherence in the
concepts and arguments in university policies and in Brazilian courts.
These problems impede the effectiveness and the guarantee of the
equality principle. The quota system to be legitimate must promote
institutional dialogue and must respect constitutional-democratic
rules. This article observes how often the Brazilian frame promotes
these requirements.
KEY-WORDS
Quota System – Equal Protection Principle – Institutional Dialogue –
Constitutional-Democratic Fundaments.
_____________________________________________________________________________
* Este artigo foi elaborado no âmbito do Grupo de Pesquisa em Jurisdição Constitucional da UFRJ, integrado
pelos membros autores do presente texto e Alessandro Ayres, Beatriz Cunha e Taigon Marques.
[**] Bernardo Zettel é graduando da UFRJ, e-mail: b_zettel@hotmail.com; Carlos Bolonha é professor
adjunto do Departamento de Direito do Estado da UFRJ, e-mail: bolonhacarlos@gmail.com; Carolina
Almeida é graduanda da UFRJ, e-mail: carolina.almb@gmail.com; Chiara de Teffé é graduanda da UFRJ, e-
mail: chide teffe@hotmail.com; Henrique Rangel é graduando da UFRJ, Bolsista IC-FAPERJ, e-mail:
henriquerangel c@gmail.com.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo representa o resultado de pesquisa em desenvolvimento
na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui como principais enfoques na te-
mática de sistema de cotas a ausência de uniformidade nos critérios dos editais e a
falta de coerência entre os conceitos e argumentos utilizados pela jurisprudência
dos tribunais, além de outras dificuldades como a precariedade da produção nor-
mativa em nível federal.1 Acredita-se que é possível realizar o princípio da igualdade
de maneira mais substantiva na sociedade por meio deste instrumento, desde que
se respeitem certos elementos prescritivos a esta medida. A falta de uniformidade
e coerência mencionadas acima que caracterizam as cotas universitárias brasileiras
parece, porém, comprometer à promoção do princípio da igualdade.
Em resposta a problemas desta natureza, o modelo que se defende neste
artigo, para que se promova um sistema de cotas legítimo e que se garanta a exis-
tência de cidadãos livres e iguais, constrói-se a partir de dois pilares: (I) a promoção
dos diálogos institucionais e (II) o atendimento a fundamentos constitucionais-de-
mocráticos. Acredita-se que, por meio de instituições comprometidas em manter
uma dinâmica integrada entre si – diálogos institucionais – e coordenadas em torno
de parâmetros para que se faça a classificação dos candidatos – fundamentos cons-
titucionais-democráticos –, seja possível alcançar um sistema de cotas universitárias
que cumpra o princípio da igualdade.
_____________________________________________________________________________
4
O princípio da igualdade está positivado no Direito Constitucional brasileiro como direito individual,
assim como emerge do caput do art. 5º “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”
e dos objetivos fundamentais da República – “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, ra-
ça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de descriminação” (Constituição da República Federativa
do Brasil, art. 3º, IV). Logo se verifica dos dispositivos citados que o princípio da igualdade é constitu-
cionalizado conforme o imperativo da igualdade perante a lei, tomando, sobretudo, o aspecto jurídico-
formal.
5
Embora as Revoluções Inglesas tenham ocorrido no século XVII (1º Revolução Inglesa, ou Revolução Pu-
ritana, em 1640 e 2º Revolução Inglesa, ou Revolução Gloriosa, em 1688/89) e se encerrado com a Declaração
de Direitos inglesa (Bill of Rights de 1689), a História somente reconhece o início do ciclo das Revoluções
Liberais a partir das revoluções Americana (embora haja questionamentos sobre ter sido ou não uma re-
volução), culminando, em 1776, com a Constituição dos EUA, e Francesa, iniciada em 1789, tendo fim so-
mente após a queda de Napoleão, em 1815, na batalha de Waterloo. Esta última é a maior representante
desse conjunto de revoluções, inspirador de inúmeras outras pelo globo, exportando um modelo revo-
lucionário que unia a burguesia, como proprietários das fontes de riquezas, e o povo, como massa de ma-
nobra, aparato numérico, para combater a aristocracia e alcançar o governo.
6
Como explica Barroso, o princípio da proporcionalidade se desdobra em três etapas procedimentais pa-
ra averiguação da razoabilidade dos atos do poder público. Primeiro, “tem de haver racionalidade na de-
sequiparação, vale dizer: adequação entre meio e fim”. Segundo, “a desequiparação, ademais, terá de
ser necessária para a realização do objetivo visado, vedado o excesso, isto é, o tratamento diferenciado
além do que é imprescindível”. Finalmente, “terá de haver proporcionalidade em sentido estrito. É impe-
rativo que o valor promovido com a desequiparação seja mais relevante do que o que está sendo sacrifi-
cado”. Cf. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dog-
mática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 241-246.
políticas públicas e devem obedecer ao princípio da supremacia da Constituição7.
Isto significa dizer que a atividade legislativa concretizadora do sistema de cotas
está submetida a um regime de sistema de direitos básicos que representa a própria
condição democrática de existência em uma concepção de cidadãos livres e iguais.
_____________________________________________________________________________
7
Princípio da hermenêutica constitucional contemporânea que representa a ideia de que nenhuma norma
constitucional pode ser suprimida por estar no ponto mais alto hierarquicamente do ordenamento jurídico
(atendendo-se a perspectiva kelseniana de ordenamento jurídico piramidal escalonado). Somente uma
norma constitucional poderia justificar a inaplicação de outra. Esse princípio é visto como um pressuposto
para a compreensão de outros, como a Proporcionalidade e a Harmonização (ou Conformidade Prática) –
ao lado do princípio da Unidade das Normas Constitucionais -, uma vez que os princípios constitucionais
só precisam se compatibilizar entre si por não poder negar a normatividade um do outro. Também é um
pressuposto para entender a noção de Controle de Constitucionalidade – ao lado da Rigidez Constitucional
–, justificando o fato de se verificar a compatibilidade entre uma norma examinada, infraconstitucional,
com as determinações de outra norma paradigma que lhe seja superior normativamente.
8
Em Diálogos institucionais e ativismo, afirma-se que “o estudo das teorias dialógicas remete a uma questão
central: as relações entre política e direito. Essa articulação revela-se com toda força no processo interativo
dos atores políticos envolvidos antes e depois da construção das decisões judiciais, sendo esta completude
uma característica inerente ao universo dialógico.” Além disso, “(...) as teorias dialógicas colocam-se numa
posição intermediária, que busca conciliar o princípio da supremacia do Judiciário com uma leitura que
reconhece o papel do Legislativo na ordem política, com grandes variações de grau em relação ao espaço
institucional de cada poder.” Cf. SILVA, Cecília de Almeida, MOURA, Francisco, BERMAN, José Guilherme,
VIEIRA, José Ribas, TAVARES, Rodrigo de Souza e VALLE, Vanice Regina Lírio do. Diálogos Institucionais e
Ativismo. Curitiba: Juruá, 2010. p. 101/102. Segundo Conrado Hübner Mendes, haveria dois denominadores
comuns nas teorias do diálogo: “a recusa da visão juricêntrica e do monopólio judicial na interpretação da
constituição, a qual é e deve ser legitimamente exercida pelos outros poderes; a rejeição da existência de
uma última palavra, ou, pelo menos, de que a corte a detenha por meio da revisão judicial”. Cf. MENDES,
Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. 2008. 224 f. Tese (Doutorado
em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo. 2008. p. 98.
9
Regents of University of Bakke, 438 U.S. 265 (1978).
10
Este, por sua vez, pode ser comparado, não de uma maneira rigorosa, com o procedimento que o caso
Regentes of University of California v. Bakke, de 1978, definiu como legítimo pelo voto do Justice Powell:
potential “plus” factor. Cf. 438 U.S. 265 (1978).
ou origem étnica, o que se designa como cota racial.11 Já com situações em que se
exige comprovação de hipossuficiência e casos de egressos de escola pública, por
exemplo, entende-se que a natureza da cota seja social ou socioeconômica. Há
alguns casos com previsão de reserva para superar adversidades de ordem regional
– cota regional – e há, ainda, casos mais incomuns que se apresentam como cotas
especiais. Neste último, tem-se o exemplo do caso UERJ, em que há cota para filhos
de policiais e bombeiros militares, inspetores de segurança e agentes penitenciários
mortos ou feridos em serviço. Quanto às normas quantitativas, o edital da UERJ
apresenta o quantum reservado para a categoria beneficiada ou em que quantum
a nota do beneficiado foi bonificada. Por fim, no que tange à eficácia, embora não
seja comum, pode o sistema de cotas instituído prever normas que deem conta do
controle de seus beneficiados ao longo do curso ou após sua diplomação.
Os diversos tratamentos que as instituições têm atribuído aos sistemas
de cotas universitárias representam indícios de que não há concretamente uma re-
de de diálogos entre elas para estruturar esta medida. A relação dialógica entre os
Poderes é essencial para que não ocorram decisões destoantes, ou seja, para que
essas instituições tenham como base um conjunto unificado de dados empíricos
capaz de mapear as características socioeconômicas e culturais da faixa popula-
cional que irá se candidatar aos vestibulares. O que vem ocorrendo, ao contrário, é
uma falta de coordenação ao lidar com demandas sociais sobre sua admissibilidade
e sobre as propriedades de cada edital em regulamentar tal prática.
Em acréscimo, essas instituições também devem decidir sobre o sistema
de cotas a partir de um conjunto de princípios político-jurídicos unificado, capaz de
evitar pontos de divergência que rompam com a legitimidade e a segurança jurídica
das cotas para vestibulares. Não é esse, porém, o quadro brasileiro. Em questões
essencialmente constitucionais, os poderes de Estado precisam recorrer a valores 265
apriorísticos que orientem a atuação política das instituições. A ausência de tal preo-
cupação resulta num regramento que peca em uniformidade.
A situação problema enfrentada pela realidade brasileira se inicia com a
falta de debate sobre a legitimidade e o procedimento racional capaz de instituir
um sistema que promova os anseios de uma comunidade mais igualitária. Culmina
com a dúvida que se cria sobre a imparcialidade mantida pelas instituições gover-
namentais, pois, ausentes as diretrizes nacionais que fundamentam a criação e a
aplicação das cotas no país, desconhecem-se os interesses e o procedimento pelos
quais os critérios de admissão nas universidades públicas brasileiras são esta-
belecidos. Torna-se questionável, portanto, a aptidão do atual sistema de cotas
universitárias em incrementar as condições materiais de igualdade e, até mesmo,
se os interesses de cada universidade, ao munir-se de tal medida, corresponderiam
a esse fundamento. O que, em última instância, pode ser definido como a problema-
tização do sistema de cotas universitárias brasileiro é, de um lado, a falta de unifor-
midade nos critérios adotados pelos editais das universidades e, de outro lado, a
_____________________________________________________________________________
11
A utilização do termo “raças”, como critério diferenciador, não é pacífica. O Supremo Tribunal Federal
posicionou-se recentemente, quanto ao tema, de forma contrária, na ementa do acórdão do HC 82424 “3.
Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientifi-
camente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, al-
tura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie hu-
mana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.
Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segre-
gacionista”.
falta de coerência nos conceitos e critérios adotados pela jurisprudência dos tri-
bunais, comprometendo a promoção do princípio da igualdade entre os cidadãos.
_____________________________________________________________________________
19
De acordo com artigo da Folha.com, em 2006, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) indicam que, em 2020, Brasil terá 25% de sua população vivendo em favelas e Nações Unidas
acreditam que 55 milhões de brasileiros viverão em favelas neste mesmo ano.
20
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE (Pnad), em 2005, indicam que, entre a
população de cinco a dezessete anos, 12,2% trabalhavam.
21
Conforme matéria do sítio <www.noticiasr7.com.br>, chamada “Falta de qualificação trava conquista
de emprego”, “A falta de qualificação profissional impede que ao menos oito entre cada dez brasileiros
que procuram trabalho consigam um emprego, mesmo que tenha vagas disponíveis no mercado”.
22
GOMES, Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional bra-
sileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado, a.38 n. 151, p.129-152, jul/set 2001. Disponível
em: <http://www.adami.adv.br/artigos/19.pdf>. Acesso em: 25 de fevereiro de 2011. p. 6.
23
Poder comunicativo é um conceito cunhado por Habermas, conexo à sua Teoria da Ação Comunicativa.
A ação comunicativa seria alcançada por um consenso no espaço público, uma situação idealizada que re-
tira fatores condicionantes de seus participantes de forma que se afastem do contexto imediato em que
se encontram, sem que interesses particulares sejam defendidos. São pressupostos à ação comunicativa:
um pleno entendimento pelos membros dos significados e da linguagem, consciência de que são racio-
nalmente responsáveis e a consideração de que, qualquer que seja o consenso alcançado pela justificativa
racional, após passar por critérios de verdade e de justiça, os participantes acreditarão que o resultado
não é falso ou equivocado. Poder comunicativo, por sua vez, seria o produto alcançado por esse discurso
na esfera pública capaz de influenciar as decisões políticas. Por isso, afirma Habermas, a lei, passando por
um procedimento legítimo de criação, é o mecanismo que converte o poder comunicativo em atividade
administrativa. Cf. HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p. xxviii.
Extraindo-se esses valores compartilhados e firmados como poder comu-
nicativo da esfera pública, o Estado Constitucional, pela lei legítima, pode converter
as ambições da comunidade em atividade administrativa, ditando as regras de
observância obrigatória para sua concretização através de um procedimento ra-
cional democrático. Ressalte-se, o campo das “diretrizes e bases da educação na-
cional”, em que se inserem as cotas universitárias, são de competência privativa da
União (Constituição da República Federativa Brasileira, art. 22, XXIV), o que exige
que a esfera pública abarque o debate mencionado em nível federal. Só então a
competência legislativa torna-se concorrente entre os entes federativos, o que não
retira a competência comum entre eles de proporcionar meios de acesso à cultura,
educação e ciência (Constituição da República Federativa Brasileira, art. 24, IX, c/c
art. 23, V). É preciso que um debate em nível nacional seja feito, definindo-se os pa-
râmetros a se seguir, utilizando-se para isso de uma ação comunicativa que legitime
o procedimento de criação dessas diretrizes, para que, a partir de então, Estados,
Distrito Federal e Municípios possam criar suas legislações próprias ao atendimento
do interesse local;24 por isso a importância de observar quais os critérios definidos
em seus respectivos editais. Encontrando-se os principais valores compartilhados,
é possível indicar se, nas cotas, estão sendo representados os ideais priorizados
em nossa sociedade ou se as instituições estão perdendo sua imparcialidade, de
forma a atuar conforme interesses e finalidades que não os públicos.
É preciso que esses valores encontrados sejam institucionalizados, reti-
rando-se do campo das abstrações e definindo de maneira objetiva um sistema de
direitos25 construído pelos direitos básicos ao cidadão e à persecução de seus ideais. Ins-
titucionaliza-se, com isso, o discurso racional por vias democráticas. Esse sistema de
direitos, conforme configuração estabelecida por Habermas, possuiria cinco catego-
268 rias de direitos básicos. As três primeiras seriam referentes aos direitos de livre esco-
lha e autonomia privada – liberdades negativas básicas, direitos de cidadania e garan-
tias processuais.26 Esta categoria, entretanto, não pode ser devidamente concretiza-
da se, anteriormente, não se concretizar a quarta categoria do sistema, a dos direitos
de participação política. Sem concretizar uma boa participação política, todos os
direitos fundamentais da autonomia privada ficam no campo do paternalismo, em
detrimento do autogoverno da comunidade. É preciso, além disso, concretizar a quinta
categoria de direitos fundamentais, sem a qual nenhuma das outras quatro consegue
ser plenamente exercidas. Os direitos de bem-estar social formam uma categoria que
representa os direitos referentes às condições materiais mínimas de existência, indispen-
sáveis a um pleno exercício da autonomia privada e da participação política. É nesse plano
que a educação, a cultura e a ciência devem ser inseridas, portanto como pressupostos
à concretização de uma cidadania plena e do amplo gozo das liberdades individuais.
Sobre essa perspectiva, a Teoria do Direito enfrentou uma dicotomia entre
liberais e republicanos cívicos.27 Cada um deles partia de um paradigma diverso, em
_____________________________________________________________________________
24
Sobre a produção legislativa infraconstitucional em matéria de ações afirmativas, o ministro Joaquim
Barbosa defende que são balizas a razoabilidade, a racionalidade e a proporcionalidade, além de determinar
três critérios de legitimidade extraídos da noção de igualdade material quando afirma: “a diferenciação
deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de que deve obediência a uma norma
programática que determina a redução das desigualdades sociais; (b) ser específica, estabelecendo cla-
ramente aquelas situações ou indivíduos que serão ‘beneficiados’ com a diferenciação; e (c) ser eficiente,
ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a probidade legal concedida e a igualdade so-
cioeconômica pretendida”. Cf. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Op. cit., p. 24.
25
A noção de system of rights está presente regularmente na visão de Habermas e alguns outros grandes
juristas sobre o Direito. Cf. HABERMAS, Jürgen. Op, cit., p. 104/122.
26
Da versão em inglês, citada na nota 14, membership rights. Cf. HABERMAS, Jürgen. Op, cit., p. 124-125.
27
O grupo dos liberais pode ser reunido ao redor de John Locke, seguindo-se um modelo clássico de libe-
ralismo, típico do pensamento burguês. Já o dos republicanos cívicos, apesar de remontar raízes em Aristó-teles,
busca de um fator que legitimasse o Direito. Enquanto os liberais muniam-se dos
ideais de direitos humanos e liberdades individuais para consagrar como prepon-
derante a autonomia privada, os republicanos cívicos partem da premissa de que
uma deliberação coletiva estruturada sobre a Soberania Popular seria a forma de
se afirmar a legitimidade da vontade geral e do bem comum. Tal dicotomia, como
compreende Habermas, pode ser superada ao exigir-se que as autonomias pública
e privada se coordenem através de um novo paradigma de legitimidade, consciente
da tensão interna do Direito moderno e capaz de utilizar um procedimento demo-
crático racional reconhecido pela sociedade como válido. Surge, desse novo paradig-
ma, a dificuldade de se perceber em quais momentos deveria predominar a auto-
nomia privada e as liberdades individuais e quando deveria predominar a autonomia
pública e a soberania popular. É por esse procedimentalismo democrático que
Habermas procura aproximar Democracia de Rule of Law.28
O problema das cotas é um perfeito exemplo para esse embate. Pela pers-
pectiva liberal, seria um ultraje intervir tão grosseiramente nas condições de igual-
dade e de competitividade, algo que impediria que as liberdades individuais fossem
exploradas em busca da felicidade individual pela admissão no ensino superior.
Pela ótica republicana, ao contrário, de nada importariam as liberdades individuais
e os interesses privados pelo alcance do ensino público superior. O bem comum,
representado pela resolução de problemas sociais, como os já mencionados, e pela
inserção de segmentos excluídos da sociedade nas universidades públicas seria prio-
rizado de maneira absoluta, suprimindo-se os direitos humanos em prol da so-
berania popular.
Ainda sob a perspectiva teórica, há que se fortalecer a ideia de revisão na
política de sistema de cotas. Quando analisamos a situação pela ótica da “justiça
como equidade” em Rawls, entendemos que cada cidadão tem igual direito a um 269
projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos
e, para isso, faz-se necessário que se encarem as desigualdades socioeconômicas
como vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições equitativas de
oportunidades, que devem representar o maior benefício possível aos membros
menos privilegiados da sociedade.29 É dessa maneira que o plano das disparidades
tem como maior influência Jean-Jacques Rousseau. Cf. LOCKE, John. Second treatises of government.
Indianapolis: Hackett, 1980; ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
28
Rule of Law é um conceito da Teoria do Estado e da Ciência Política em que se tem a noção de Estado de
Direito, instaurando a legalidade e a limitação do poder político institucionalizado frente a seus cidadãos. Apesar
de remontarem discursos da Grécia Antiga, somente a partir do século XVII o conceito estaria bem definido,
mas marcado por uma perspectiva liberal típica da época. Após as crises econômicas do século XX, surgiu um
novo paradigma político-jurídico de Estado, o Estado Social, ou Estado do Bem-Estar Social, sucedido pelo
Estado Democrático de Direito. O conceito satisfatoriamente equivalente a Rule of Law, na Alemanha, é o
Rechtsstaat. Da mesma forma, Estado Democrático de Direito pode ser representado pelo termo Demokratischen
Rechtsstaat.
29
A justiça como equidade organiza a estrutura básica da sociedade, formada por suas instituições políticas,
sociais e econômicas, com base em dois princípios de justiça, que servem de diretrizes para o funcio-namento
das instituições de acordo com os valores de liberdade e igualdade. Conforme o primeiro princípio, todas as
pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para
todos. Nesse projeto, somente as liberdades políticas têm seu valor equitativo garantido. Já de acordo com o
segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: devem estar vinculadas a
posições e cargos abertos a todos, em condições equitativas de oportunidades, e devem representar o maior
benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. Cf. RAWLS, John. O liberalismo político. 2º
ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 47-48. Em sua Teoria da Justiça, obra anterior ao Li-beralismo Político, Rawls
disserta sobre os dois princípios de justiça da seguinte forma: “The first statement of the two principles reads
as follows. First: each person is to have an equal right to the most extensive basic liberty compatible with
similar liberty for others. Second: social and economic inequalities are to be arranged so that they are both (a)
reasonably expected to be everyone’s advantage, and (b) attached to positions and offices open to all”. Cf.
RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge, Mass.: Belknap Press of Harvard University Press, 1971. p. 64.
reais vividas por nosso país conseguirá se aproximar de uma estrutura de sociedade
marcada pela cooperação entre seus cidadãos.30 As ações afirmativas devem sa-
tisfazer o requisito das vantagens razoáveis de todos e da vinculação de cargos e
posições acessíveis em condições equiparadas. Note-se que, ao estabelecer reserva
de vagas em vestibulares para universidades públicas, as cotas devem estar orien-
tadas por essa diretriz. Isso significa que as cotas são um instrumento de equi-
paração entre candidatos que apresentam diferenças socioeconômicas, para que
possam ter as mesmas chances no acesso às vagas e, indiretamente, viabilizam o
projeto construído pelo cidadão sobre os direitos e liberdades que procura des-
frutar.
Para compreender o requisito das vantagens razoáveis de todos os ci-
dadãos, é necessário evocar o princípio da diferença.31 O segundo princípio de justiça
de Rawls requer que cada pessoa se beneficie com as desigualdades presentes em
seu contexto, e isso somente pode ser possível em uma situação em que cada cida-
dão aceite sua posição na sociedade por compreender os princípios e valores que
regem as liberdades e direitos básicos instituídos naquela sociedade. Rawls desenha
uma sociedade bem-ordenada na qual as instituições são imparciais e regidas pelos
princípios de justiça aceitos pelos cidadãos, de modo que a distribuição de cargos e
posições observe a esses princípios. Dizer que cada pessoa se beneficia com as
desigualdades no sentido da justiça como equidade significa que cada cidadão aceita
os princípios de justiça como razoáveis, e que cada cidadão coopera com o projeto
de bem comum envolto na estrutura básica da sociedade.
O princípio da diferença limita as desigualdades ao estabelecer que os ga-
nhos obtidos pelos grupos sociais mais favorecidos tenham um reflexo positivo
sobre os grupos economicamente inferiores. Os grupos econômicos mais fortes
270 podem ter maiores expectativas quanto ao valor de sua renda, conquanto essa
diferença de expectativas seja vantajosa para os grupos econômicos mais fracos.
Com efeito, as maiores perspectivas para os grupos de empresários podem contri-
buir para a eficiência e inovação do processo econômico, acarretando também
maiores perspectivas para as classes trabalhadoras. O princípio da diferença é nor-
mativo com relação à possibilidade de transferência de renda entre os grupos eco-
nômicos de diferentes níveis, estabelecendo o imperativo do transbordamento dos
lucros. Um projeto de estrutura básica para a sociedade é, então, injusto quando
as mais altas expectativas são excessivas, ou seja, nos casos em que a desilusão
das expectativas dos grupos mais favorecidos contribui para a melhoria dos grupos
menos favorecidos.32
_____________________________________________________________________________
30
A ideia de cooperação está fundada em três pontos principais: o primeiro é a cooperação guiada por
regras e procedimentos publicamente reconhecidos, aceitos pelos indivíduos e por eles considerados
adequados para reger a sociedade; o segundo diz respeito à ideia de reciprocidade presente na cooperação;
e o terceiro é a vantagem racional que os participantes visam obter com a submissão às regras do sistema
equitativo de cooperação. Cf. RAWLS, John. O liberalismo político. 2º ed. São Paulo: Ática, 2000.
31
Rawls não trata profundamente em sua exposição sobre o segundo princípio de justiça aquilo que entende
por maiores vantagens para todos dentro do cenário de desigualdades admitido pela justiça como
equidade. Apenas afirma que “the second principle insists that each person benefit from permissible
inequalities in the basic structure. This means that it must be reasonable for each relevant representative
man defined by this structure, when he views it as a going concern, to prefer his prospects with the
inequality to his prospects without it.” Cf. RAWLS, J. A theory of justice. Cambridge, Mass.: Belknap Press
of Harvard University Press, 1971. p. 64.
32
De acordo com Rawls, o princípio da diferença requer uma cadeia de conexões (chain conection) entre
as expectativas dos diversos grupos sociais. “It is impossible to raise or lower the expectation of any
representative man without raising or lowering the expectation of every other representative man,
especially that of the least advantaged.” Cf. RAWLS, J. Op. cit., p. 80. Com efeito, Rawls ressalva que o
princípio da diferença somente tem lugar em uma sociedade com instituições caracterizadas pela efetivação
de interesses fundamentais comuns e com cargos e posições abertos a todos.
Também em conformidade com o princípio da diferença, as cotas têm de
responder ao imperativo do benefício mútuo no sentido de reciprocidade, ou seja,
as cotas devem poder incluir os cidadãos, com projetos de vida particulares, no
senso de bem comum. O sentimento de bem comum está relacionada à ideia de ra-
zão pública,33 na qual a reciprocidade atua como coordenadora dos diversos interes-
ses com foco no objetivo principal da sociedade bem-ordenada: o alcance do bem
comum.34
Justifica-se, nesse sentido, um ideal a se atingir fundado sobre os pilares
da justiça em garantia à liberdade e à igualdade, muito embora se mantenha a dúvida
acerca de como avançar, isto é, por qual procedimento racionalmente válido e de-
mocraticamente estabelecido prosseguir, frente aos impasses de fazer das desi-
gualdades uma forma justa de cooperação dentro de uma estrutura de sociedade
quando a questão é debatida de maneira polarizada entre perspectivas liberais e
comunitaristas.
Superar essa dicotomia e fazer da diferença um instrumento de justiça
frente à liberdade e à igualdade exigem que se tome o paradigma procedimental
adotado por Habermas, mas ainda permanece a dificuldade de se definir os mo-
mentos de prevalência de cada uma das autonomias. Isso indica que faltam parâ-
metros racionais para que democraticamente a questão das cotas seja resolvida. É
sobre tal ponto que a pesquisa se faz essencial. O imprescindível e árduo trabalho
de desvendar quais os critérios racionais que definem a propriedade de uma ou ou-
tra autonomia somente poderá se desenvolver pela complementação entre um
trabalho teórico capaz de compreender os elementos de validade do Direito
moderno e o trabalho empírico de verificar a observância dos valores compar-
tilhados no contexto social. Partindo-se dos ideais da coletividade, será possível
definir parâmetros sobre as situações de prevalência de cada autonomia, isto é, 271
definir o procedimento democrático de ampliação do acesso à educação, à cultura
e à ciência pelos sistemas de cotas, estabelecendo de maneira legítima os momentos
em que a promoção de condições materiais de igualdade e de existência digna pode
justificar a prevalência da soberania popular e quando passam a se tornar uma
medida excessiva sobre as liberdades do cidadão, em detrimento do primado dos
direitos humanos de natureza individual.
_____________________________________________________________________________
33
De acordo com Rawls, “A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus
cidadãos, daqueles que compartilham o status da cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem público:
aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos
objetos e fins que devem servir”. Cf. RAWLS, John. O liberalismo político. 2º ed. São Paulo: Ática, 2000.
“Em uma sociedade democrática, a razão pública é a razão de cidadãos iguais, que exercem um poder
político final e coercitivo uns sobre os outros ao promulgar leis e emendar a constituição”. Cf. Op. cit.
Nesse sentido, a característica por excelência da democracia é a possibilidade de se formar a razão pública
segundo artifícios democráticos institucionalizados. E essa razão deve ter força suficiente para orientar
as condutas dos cidadãos em sociedade, ou seja, deve ser capaz de adquirir força normativa, explícita na
sua base coercitiva. Por isso Rawls cita o direito ao voto e a igualdade equitativa de oportunidades como
“elementos constitucionais essenciais”, na medida em que são instrumentos procedimentais e regulatórios,
respectivamente, atuantes na concretização política da razão pública.
34
A reciprocidade implícita ao princípio da diferença permite que a ordem social da justiça como equidade
possa ser justificada para todos, especialmente para os menos favorecidos. Rawls pretende que o sentido
da reciprocidade seja uma via para atingir o consenso necessário na concretização de um sistema social
igualitário, ou seja, a reciprocidade é condição para a igualdade entre os cidadãos. “But it seems necessary
to consider in an intuitive way how de condition of mutual benefit is satisfied. Consider any two
representative men A and B, and let B the one who is less favored. Actually, since we are mostly interested
in the comparison with the least favored men, let us assume that is B this individual. Now B can accept A’s
being better off since A’s advantage have been gained in ways that improve B’s prospects. If A were not
allowed his better position, B would even worse off than he is. (…) Now what can be said to the more
favored men? To begin with, it is clear that the well-being of each depends on a scheme of social cooperation
without which no one could have a satisfactory life.” Cf. RAWLS, J. A theory of justice. Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1971. p. 103.
5. UMA HIPÓTESE PARA A QUESTÃO DE COTAS NO BRASIL
No campo dos Direitos Sociais, o Direito à Educação tornou-se uma preocu-
pação latente, em razão do ainda baixo percentual de estudantes que conseguem
se formar no ensino superior público.35 Compreendendo este cenário, a atual pro-
posta política está direcionada ao incentivo de medidas que promovam a eficácia
igualitária dos Direitos Fundamentais36 na sociedade brasileira. Tal compromisso
com a Educação superior vem, então, sendo substancializado por meio das cotas
nas universidades públicas.
O diálogo entre os três Poderes se faz fundamental para que o sistema de
cotas apresente resultados reais e perpetuantes para o desenvolvimento da reali-
dade educacional brasileira. Esta relação traz à tona o duo Política e Direito, mos-
trando que uma interação consciente e dirigida a um mesmo fim pode ser capaz de
promover um maior equilíbrio ao sistema e a obtenção de melhores resultados.
Logo, pode-se comprovar que se torna imperativa uma perspectiva dialógica sobre
o debate e a implementação do sistema de cotas, independentemente do critério
utilizado.
Entretanto, o que é observado não corresponde a este prisma, de modo
que os Poderes vêm adotando posicionamentos particularizados. Como uma ilustra-
ção do que foi mencionado, enquanto o Judiciário, em sua maioria, mostra-se a
favor de critérios sociais para a reserva de vagas,37 o Legislativo, por sua vez, destaca
_____________________________________________________________________________
35
Dados obtidos através do IBGE, em Síntese de Indicadores Sociais - Uma Análise das Condições de Vida da População
Brasileira 2010, p. 227-228. “A proporção de estudantes de 18 a 24 anos de idade que cursam o ensino superior
também mostra uma situação em 2009 inferior para os pretos e para os pardos em relação à situação de brancos
em 1999. Enquanto cerca de 2/3, ou 62,6%, dos estudantes brancos estão nesse nível de ensino em 2009, os dados
mostram que há menos de 1/3 para os outros dois grupos: 28,2% dos pretos e 31,8% dos pardos (Gráfico 8.3 e
272 Tabela 8.4). Em 1999, eram 33,4% de brancos, contra 7,5% de pretos e 8,0% de pardos.” (...) “Em relação à população
de 25 anos ou mais de idade com ensino superior concluído, a PNAD 2009 [Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio] mostra que há um crescimento notório na proporção de pretos e de pardos graduados, com a ressalva
de que o ponto de partida na comparação é 1999, com 2,3% tanto para pretos quanto para pardos. Isso posto,
observa-se que a quantidade de pessoas que têm curso superior completo é hoje cerca de 1/3 em relação a
brancos, ou seja: 4,7% de pretos e 5,3% de pardos contra 15,0% de brancos têm curso superior concluído nessa faixa
etária (Gráfico 8.4)”. Segundo o Censo da Educação Superior do INEP, de 1995 a 2002, o número de matrículas
em universidades federais aumentou em 147.224 (21.032 ao ano), em uma variação percentual de 41,68% (5,10% ao
ano), enquanto, de 2002 a 2008, o número de matrículas em universidades federais aumentou em 100.313 (16.719 ao
ano), em uma variação percentual de 20,044% (3,09% ao ano).
36
A Constituição de 1988 apresenta, no Título II “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, dispositivos referentes
aos direitos individuais e coletivos tidos como fundamentais. Os direitos fundamentais têm suporte no princípio
da dignidade humana (Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1º, III) que foi inserido pelo constituinte
de 1987/1988 no rol dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ou seja, como um dos pilares normativos
para todo o ordenamento jurídico. Neste sentido, para Flávia Piovesan, trata-se do valor que se impõe como
núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, orientador da interpretação e da compreensão
do sistema constitucional. Cf. PIOVESAN, Flávia. “Direitos humanos e princípio da dignidade da pessoa humana”.
In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principio-
lógicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. A mesma ideia está presente no pensamento de Ingo Sarlet
ao considerar as normas constitucionais como embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional,
sendo os direitos fundamentais, em particular, aquilo que se pode denominar de núcleo duro da constituição.
Cf. SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. A eficácia dos
direitos fundamentais está relacionada com uma das principais características de tais direitos, a saber, sua in-
disponibilidade. Dizer que os direitos fundamentais, especialmente aqueles diretamente ligados à dignidade
da pessoa humana, são indisponíveis significa lhes atribuir eficácia imediata derivada de sua inalienabilidade.
No intento de promover a eficácia dos direitos fundamentais, é importante a delimitação do seu âmbito de
proteção. Exige-se, segundo Gilmar Mendes, um âmbito de proteção da norma – análise da norma garantidora
de direitos, tendo em vista a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa proteção – e,
ainda, exige-se que haja uma expressa restrição constitucional – a verificação das possíveis restrições contem-
pladas, expressamente, na Constituição – e a identificação de reservas legais de índole restritiva. Cf. MENDES,
Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermeneutica constitucional e di-
reitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
37
De forma exemplificativa, pode-se citar as divergentes opiniões expressadas pelo Judiciário nacional por
meio dos seguintes casos: 0002699 34.2009.404.7102 UF: RS órgão julgador: Quarta Turma Relatora Marga In-
ge Barth Tessler (TRF4); Processo: 2009.72.00.001078-7 UF:SC órgão Julgador: Terceira turma Relator João Pe-
dro Gerbran Neto (TRF4); 2009.04.00.004965-0 UF:RS órgão julgador: terceira turma Relator Luiz Carlos de
Castro Lugon (TRF4); 2005.017.00015 Des. Silvio Teixeira TJRJ; 2004.001.12910 Des. Rudi Loewenkron, TJERJ.
primariamente uma preferência por critérios raciais e, posteriormente, sociais. O
Executivo, em contrapartida, dá maior ênfase a um viés racial, sem, contudo, optar
por uma via segura e unificada, mesmo que respeitando a diversidades.
O sistema de cotas é capaz de mudar substancialmente a opinião da socie-
dade quanto ao seu ingresso na universidade pública e a imagem que esta detém
da instituição como um corpo. A Constituição Federal ao atribuir ao Estado e a to-
dos os cidadãos o encargo de construir uma sociedade solidária, através da distribui-
ção da justiça social,38 agregou um novo valor ao ordenamento, o qual se reflete na
Educação, por meio de ações que visem à promoção de medidas que explorem o
potencial de todos os setores da sociedade, respeitando as diferenças e tentando
trazer eixos que se encontram menos inseridos ou excluídos. Cabe, assim, perceber
e tentar estabelecer uma possível clareza acerca da interação destes setores, sob
uma perspectiva integradora, e a relação dialógica que travam com os Poderes.
O debate sobre ações afirmativas nem sempre foi uniforme.39 Enquanto
nos Estados Unidos, o debate sobre a questão encontra-se mais maduro, já em
pauta desde o fim dos anos 60, no Brasil, ganha destaque nos anos 90. Certamente,
há de se considerar que as ações afirmativas não se restringem apenas aos dois
países mencionados, pois são detentoras de atenção global.40 Em uma perspectiva
nacional, influenciada por diretrizes norte-americanas, é possível perceber a
tendência favorável em adotar diretrizes de admissão sensíveis à raça41 (origem
_____________________________________________________________________________
38
Desde a Antiguidade Clássica, a filosofia tenta sistematizar o conceito de Justiça. Pela analítica de Aris-
tóteles, em Ética a Nicômaco, Justiça poderia ser vista como comutativa, ou distributiva, quando se buscasse
distribuir algo de forma equânime aos indivíduos , ou como retributiva, ou corretiva, quando se buscasse
273
retribuir a alguém o que lhe era devido. Conceito mais recente, a Justiça Social, ao se afastar do caráter
de Justiça Legal de Aristóteles (o que é devido de acordo com a lei), valoriza o contexto econômico e so-
cial vivido pela comunidade, considerando as condições de desigualdade em que se encontram os cidadãos
no momento de definir o que é devido a cada indivíduo. Segundo artigo do filósofo Luiz Fernando Barzotto,
Justiça Social – gênese, estrutura e aplicação de um conceito, o primeiro autor a usar o termo “Justiça So-
cial” foi o tomista Louis Taparelli d’Azeglio em 1840 no livro Saggio teoretico di diritto naturale, em que a
define como “a justiça entre o homem e o homem”, considerando “homem e homem” a “humanidade
reproduzida duas vezes”. Com isso, defende ser irrelevante a posição social de cada indivíduo, priorizando
o valor da humanidade. O jesuíta francês Antoine foi outro grande defensor do conceito, definindo-o
como a “observância de todo direito tendo o bem social comum por objeto e a sociedade civil como su-
jeito ou como termo”. Todos participariam dessa Justiça e todos colaborariam pelo alcance do bem da co-
munidade. Cf. BARZOTTO, Luiz Fernando. Justiça Social – gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm>. Acesso em: 25
de fevereiro de 2011.
39
Joaquim B. Barbosa Gomes ensina que: “As ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto
de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas
ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para
corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a con-
cretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.
Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo me-
ramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos
jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza mul-
tifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é,
formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais,
difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de po-
líticas e de mecanismos de inclusão concebidos por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de
competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente re-
conhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.” GOMES,
Joaquim B. Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. Revista
de Informação Legislativa. Brasília: Senado, a.38 n. 151, p.129-152, jul/set 2001. Disponível em: <http://www.
adami.adv.br/artigos/19.pdf>. Acesso em: 25 de fevereiro de 2011.
40
Podem ser citados como países que também fizeram uso das ações afirmativas a Índia, a Malásia, o Sri
Lanka, a Nigéria, os EUA e o Canadá.
41
Ronald Dworkin utiliza esta expressão como sinônimo para o sistema de cotas nas universidades e fa-
culdades dos EUA. Cf. DWORKIN, Ronald. A virtude Soberana. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 543.
étnica)42 e à condição financeira, uma vez que, pelo menos 56 instituições já fazem
uso de tal ação afirmativa. As autarquias de ensino público superior demonstram,
então, que têm consciência de suas responsabilidades públicas: “devem escolher
metas que beneficiem uma comunidade muito mais ampla do que seus próprios
corpos docente e discente”,43 auxiliando a “melhorar a vida da comunidade, não
só protegendo a sua cultura e sua ciência, ou aperfeiçoando a medicina, o comércio
e a agricultura, mas ajudando a tornar essa vida coletiva mais justa e harmoniosa”.44
Este caminho leva a refletir quanto à importância de se pensar a universi-
dade como um campo interdisciplinar aberto ao diálogo e à recepção das mais di-
versas etnias, culturas e influencias em prol do desenvolvimento da comunidade. A
diversidade no corpo discente ajudaria também a acabar com os estereótipos e
uma possível hostilidade entre os alunos, vantagem esta capaz de repercutir
também na vida pós-universitária.
A fim de exemplificar o que está sendo analisado, no âmbito das univer-
sidades públicas brasileiras, a Universidade Federal do Rio de Janeiro recentemente
implantou o regime de cotas em seu vestibular. Situação que, inédita na instituição,
despertou uma série de novas polêmicas, em razão do tamanho da universidade,
do tipo e da quantidade de cotas que deveriam ser adotadas. Assim, cabe analisar
quais os setores da sociedade que a UFRJ visou contemplar, por meio do estudo
das razões e propostas fornecidas, avaliando a legitimidade e a coerência com o
contexto institucional, nacional, regional e estadual.
O sistema de cotas, portanto, é detentor de uma preocupação política,
pois é capaz de influenciar não apenas o rumo cultural de uma nação, mas – também
considerando a importância do devido diálogo institucional – seu equilíbrio jurídico
principalmente. Ademais, apesar de considerar as consequências geradas pelo
274 cenário de desigualdade socioeconômico brasileiro, independentemente da nação
_____________________________________________________________________________
42
O professor da Universidade de São Paulo, Kabengele Munanga, entende que o conceito de “etnia” po-
de ser definido como “um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum;
têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geografi-
camente num mesmo território.” Quando trabalha com o conceito de “raça”, após um panorama histórico,
o autor ensina que, nos últimos anos, os estudiosos das ciências biológicas “chegaram a conclusão de que
a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito alias cientificamente inoperante para
explicar a diversidade humana e para dividi-la em raças estancas. Ou seja, biológica e cientificamente, as
raças não existem. A invalidação científica do conceito de raça não significa que todos os indivíduos ou
todas as populações sejam geneticamente semelhantes. Os patrimônios genéticos são diferentes, mas
essas diferenças não são suficientes para classificá-las em raças. Infelizmente, desde o início, eles se deram
o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer uma escala de valores entre as chamadas raças. O fizeram
erigindo uma relação intrínseca entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as qualidades psico-
lógicas, morais, intelectuais e culturais. Podemos observar que o conceito de raça tal como o empregamos
hoje , nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele
esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. A raça, sempre apresentada
como categoria biológica, isto é natural, é de fato uma categoria etnosemântica. De outro modo, o campo
semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de
poder que a governam.” Analisando de forma comparativa, “O conteúdo da raça é morfo-biológico e o da
etnia é sócio-cultural, histórico e psicológico. Um conjunto populacional dito raça “branca”, “negra” e
“amarela”, pode conter em seu seio diversas etnias.”O professor salienta que “A maioria dos pesquisadores
brasileiros que atuam na área das relações raciais e interétnicas recorrem com mais frequência ao conceito
de raça. Eles empregam ainda este conceito, não mais para afirmar sua realidade biológica, mas sim para
explicar o racismo, na medida em que este fenômeno continua a se basear em crença na existência das
raças hierarquizadas, raças fictícias ainda resistentes nas representações mentais e no imaginário coletivo
de todos os povos e sociedades contemporâneas. Alguns fogem do conceito de raça e o substituem pelo
conceito de etnia considerado como um lexical mais cômodo que o de raça, em termos de “fala
politicamente correta”. Cf. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo,
identidade e etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-PENESB-RJ,
05/11/03. Disponível em: <http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/09abordagem.pdf>. Acesso em:
25 de fevereiro de 2011.
43
DWORKIN, Ronald. Op. cit. p. 569.
44
DWORKIN, Ronald. Op. cit. p. 572.
que se vá estudar, a eficácia dos Direitos Fundamentais deve ser de cunho igualitário.
Como forma de consolidá-los, as cotas traduzem um planejamento de longo prazo
capaz de promover justas mudanças no cenário brasileiro não apenas educacional,
e sim, em sua plenitude.
_____________________________________________________________________________
63
Lei n. 12.288 de 2010, Estatuto da Igualdade Racial, art. 15. O poder público adotará programas de ação
afirmativa.
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283
PARTE III – ESTADO E CONSTITUIÇÃO EM PERSPECTIVA
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo apresentar algumas das transfor-
mações que a sociedade contemporânea vem experimentando e seus
reflexos sobre as formulações em torno da relação entre Direito Pe-
nal e o neoconstitucionalismo. Para tanto, se pauta no desenvolvi-
mento do estudo da constitucionalização do Direito Penal e do garan-
tismo penal e, por outro lado, na ideia da eficiência do Direito Penal
como instrumento mais adequado à resolução dos conflitos sociais,
surgindo problemáticas como a questão da inflação legislativa.
285
PALAVRAS-CHAVE
Neoconstitucionalismo – Garantismo Penal – Eficiência do Direito
Penal.
ABSTRACT
The present study aims to present some of the transformations that
contemporary society is experiencing and its impact on the formulations
about the relationship between criminal law and neoconstitutionality.
For this, the study staff in the development of the constitutionalization
of criminal law and criminal guarantor, on the other hand, the idea
of the efficiency of the criminal law as an instrument best suited to
the resolution of social conflicts, emerging issues such as the issue
of legislative inflation.
KEYWORDS
Neoconstitutionality – Criminal Guarantor – Effiency of the Criminal
Law.
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
1
Conforme conceitua Luigi Ferrajoli, o constitucionalismo pode ser definido como um “sistema de vínculos
substanciais”. FERRAJOLI, Luigi. Sobre dos derechos fundamentales. In Teoria del neoconstitucionalismo.
Trotta: Madrid, 2007, p. 71
Média e Moderna e compreendeu o período do legicentrismo (influência filosófica
do jusnaturalismo), no qual a idéia de Constituição revelava apenas um conteúdo
político e sem qualquer força normativa. As revoluções liberais (francesa e ame-
ricana) marcam o início da Idade Contemporânea (Pós-modernidade) a qual guarda
identidade com a fase jurídica do constitucionalismo,2 e se divide em dois períodos:
o período do constitucionalismo clássico (influência filosófica do positivismo) e o
período do constitucionalismo contemporâneo ou neoconstitucionalismo (influên-
cia filosófica do pós-positivismo).
Nesta ordem de ideias, contemporaneamente, o constitucionalismo pode
ser compreendido como o movimento histórico, filosófico e teórico que desenvol-
veu a idéia de que todo Estado deveria possuir um documento fundamental (Consti-
tuição formal)3 com a disciplina sobre a estrutura fundamental do Estado, consubs-
tanciada na organização do Estado e na limitação do poder estatal pela tutela de
direitos e garantias fundamentais (Constituição material)4. Dada a sua densidade
principiológica, este período revela algumas características que influenciarão deci-
sivamente: (i) a natureza jurídica da Constituição por não mais representar um mero
instrumento político (período do legicentrismo) ou um simples instrumento for-
malmente normativo (período do constitucionalismo clássico), mas um instrumento
formal e materialmente normativo, o que lhe confere supremacia formal e material
sobre as demais normas jurídicas, inclusive, de cunho internacional;5 (ii) o processo
de descodificação6 e a criação de microssistemas normativos (“fattispecie”, na Itá-
lia, ou “tatbestand”, na Alemanha) os quais não apenas fortalecem da idéia de for-
ça normativa da Constituição, mas também afirmam a posição da Constituição como
a norma jurídica central;7 e (iii) o fortalecimento da interpretação constitucional,
âmbito no qual é desenvolvida uma nova dogmática da interpretação constitucional,
envolvendo novas categorias, como os princípios, a ponderação,8 a argumentação 287
e o discurso.9
O constitucionalismo revela a proposta e o compromisso de construção
de uma sociedade justa e de um Estado democrático, cujo sucesso se deu por força
_____________________________________________________________________________
2
ARAGÓN REYES, Manuel. La Constitución como paradigma. In Teorías del neoconstitucionalismo. Trotta:
Madrid, 2007, p. 30.
3
“El término ‘Constitución’ es usado en lenguaje jurídico (y político) con una multiplicidad de significados...”
(GUASTINI, Riccardo. Sobre el concepcto de Constitución. In Teorias del neoconstitucionalismo. Trotta:
Madrid, 2007, p. 15. No mesmo sentido, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição. 2 ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 1272-1273. A propósito, a Corte Constitucional italiana
decidiu que: “La Corte costituzionale ha infatti affermato che la Costituzione ha sì posto ‘il principio della
più stretta riserva di legge in materia penale’, ma ‘in nessun modo’ ha vincolato ‘il legislatore al
perseguimento di specifici interessi’: come ha sottolineato lo stesso massimo sostenitore della teoria in
esame, la Corte si è sempre astenuta dal sindacare, salvo il limite della incompatibilità, l’oggetto prescelto
di tutela”. Corte Constitucional, 5 de junho de 1978, n. 71, Giur. Cost., 1978, p. 602. MARINUCCI, Giorgio;
DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale. 2.ª ed., v. 1, Milano: Giuffrè Editore, 1999, p. 353.
4
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: uma perspectiva da criminalização e da
descriminalização. Universidade Católica Portuguesa: Porto, 1995, p. 143; CARBONELL, Miguel. El
neoconstitucionalismo en su laberinto. In Teoría del neoconstitucionalismo. Madrid: Trotta, 2007, p. 11.
5
CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Op. Cit., p. 19; GUASTINI, Riccardo. Op. Cit. p., 17-20.
6
Riccardo Guastini refere à expressão “código” constitucional, porém, também afirma que o termo não
expressa e seu significado usual, especialmente porque nem todas as normas serão materialmente
constitucionais. GUASTINI, Riccardo. Op. Cit., p. 19.
7
ARAGÓN REYES, Manuel. Op. Cit., p. 36-39.
8
Sobre sua aplicação específica ao Direito Penal, Mirentxu Corcoy Bidasolo e José-Ignacio Gallego Soler
afirmam que esta questão implica na introdução no discurso político-criminal da necessidade de ponderar
a disponibilidade da vida e da integridade física com o eventual consentimento do ofendido a justificar a
eutanásia. CORCOY BIDASOLO, Mirentxu; GALLEGO SOLER, José-Ignacio. Política criminal en el ámbito de
la disponibilidad de la vida humana (eutanasia). In Política criminal y reforma penal. Vítor Gómez Martín
(org.). Edisofer s.l.: Madrid, 2007, p. 219.
9
COMANDUCCI, Paolo. Modelos e interpretación de la Constitución. In Teorias del neoconstitucionalismo.
Trotta: Madrid, 2007, p. 41-67.
de sua legitimidade (soberania popular) e por incorporar à Constituição material
as conquistas sociais, políticas e éticas acumuladas no patrimônio da humanidade,
mas, de suma importância para o Direito Penal ao revelar os valores fundamentais
da sociedade a permitir a identificação dos bens jurídicos legítimos da tutela penal.
Ao lado do desenvolvimento do constitucionalismo, ganha importância a
teoria dos direitos fundamentais os quais podem ser concebidos como o conjunto
institucionalizado de direitos subjetivos e garantias fundamentais do ser humano
para a sua proteção contra o arbítrio do poder estatal (direito de defesa, ligados à
primeira geração dos direitos fundamentais) e por tal razão afirma-se que os direitos
fundamentais revelam um núcleo essencial (âmbito ou núcleo de proteção, “schutz-
bereich” ou limite dos limites), o qual é revelado pelo princípio da dignidade da
pessoa humana. Este núcleo impõe uma vinculação constitucional ampla, inclusive,
no campo da interpretação, impondo a adoção da técnica de interpretação restritiva
a fim de preservar, ao máximo, a substância do direito fundamental, revelando
fundamental importância dentro do Direito Penal como forma de limitar a inter-
venção do Estado nas liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidas,
prisma este que possui importância na identificação dos valores constitucionais os
quais irão legitimar a criminalização de condutas.10
Desta forma, ao que interessa ao Direito Penal, a consagração do cons-
titucionalismo, notadamente o princípio da supremacia da Constituição,11 e a afir-
mação dos direitos fundamentais, precipuamente seu prisma de defesa do indivíduo
e de legitimação da ordem constitucional, informa que a Constituição funcionará
como a matriz penal no Estado Democrático de Direito, tanto para legitimar a crimi-
nalização de condutas (matriz constitucional positiva) como para limitar a inter-
venção do Estado pela da tutela penal nas liberdades e garantias constitucional-
288 mente reconhecidas (matriz constitucional negativa). Tal perspectiva é observada
pela doutrina na Alemanha,12 Portugal,13 Espanha,14 Itália,15 Argentina16 e no Brasil.17
Entretanto, as influências do constitucionalismo sobre o Direito Penal não
se limitam a estes aspectos até então expostos. A importância da constituciona-
lização do Direito já foi observada em diversos ramos, “Con todo, dicho fenómeno
há sido aún escasamente estudiado y su cabal comprensión seguramente requerirá
todavia algunos años.”,18 especialmente com o Direito Penal. Com efeito, MOREIRA
questiona “Que mudanças o neoconstitucionalismo causou e ainda está por causar
no direito penal, o qual parece condicionado, inescapavelmente, à legalidade
_____________________________________________________________________________
10
BRICOLA, Franco. Legalità e Crisi: L’Art. 25 commi 2° e 3° della Costituzione. In Rivisitato alla Fine degli Anni’
70 Questione Criminale. 1980, p. 213; CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Op cit, p. 140-141. Em sentido
semelhante, DIAS, Jorge de Figueiredo. Os Novos Rumos da Política Criminal e o Direito Penal Português
do Futuro. Revista da Ordem dos Advogados n. 43, 1983, p. 13; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal e
Estado-de-Direito Material. Revista de Direito Penal. Rio de Janeiro, 1982, p. 43.
11
Daí porque Riccardo Guastini referir-se à Constituição como uma fonte diferenciada. GUASTINI, Riccardo.
Op. Cit. p. 21.
12
ROXIN, Claus. Sentido e limites da pena estatal. In Problemas fundamentais de direito penal. Trad. Ana
Paula dos Santos e Luís Natscheradetz. Lisboa: Vega, 1986, p. 33.
13
ANDRADE, Manuel da Costa. A dignidade Penal e a Carência de Tutela Penal como referência de uma dou-
trina teleológica-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2°, abr-jun, 1992, p. 5.
14
VIVÉS ANTÓN, Tomás Salvador. Estado de Derecho y Derecho penal, Comentarios a la legislación penal,
Derecho penal y Constitución. Cobo del Rosal (Dir.) Bajo Fernández (Coord.). Tomo I. Madrid: Edersa, 1982,
p. 22-23.
15
FIANDACA, Giovani; MUSCO, Enzo. Diritto penale: Parte generale. 2. ed. Bologna: Zanichelli, 1989, p. 3;
FIANDACA, Giovani. Il “Bene Giuridico” come problema teorico e come criterio di politica criminale. In Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano, v. 25, n. 21, gen./mar., 1982, p. 50.
16
SILVESTRONI, Mariano H. Teoría constitucional del delito. 2ª ed., Buenos Aires: Del Puerto, 2007, p. 128-
129.
17
QUEIROZ, Paulo. Op. Cit., p. 112-113.
18
CARBONELL. Miguel. Op. Cit., p. 9.
estrita?”19 e BARROSO observa que “A repercussão do direito constitucional sobre
a disciplina legal dos crimes e das penas é ampla, direta e imediata, embora não
tenha sido explorada de maneira abrangente e sistemática pela doutrina
especializada.”20
Além disso, conforme observa SILVESTRONI, em geral, os discursos domi-
nantes no campo do Direito Penal recaem sobre considerações eminentemente
fenomenológicas, desde a criminologia como a dogmática penal, ensejando a cons-
trução de um sistema de interpretações normativas com base explícita em dis-
positivos legais, mas com sentidos e orientações fundadas no ponto de vista do
próprio intérprete. Entretanto, a visão constitucional do Direito evita “... esos condi-
cionamientos y partir de la nada...”, e oferece ao intérprete as bases seguras e de-
mocráticas para interpretar e aplicar o Direito Penal em conformidade com os ideais
do Estado Constitucional de Direito.21 Com efeito, os princípios que irradiam da Cons-
tituição conformam o Direito Penal, e determinam a estrutura da dogmática que,
assim, constitui um instrumento limitativo da intervenção do Estado nas liberdades
e garantias constitucionalmente reconhecidas.
No que interessa ao estudo, a constitucionalização do Direito impõe que
a normatividade infraconstitucional – aqui inseridas as normas de combate aos cri-
mes econômicos – seja lida a partir do filtro axiológico da CRFB/88, de forma que o
estudo das espécies de sanções propostas ao Direito Penal Econômico devem estar
em conformidade com a normatividade constitucional, sob pena de invalidade em
seu grau máximo: a inconstitucionalidade.
2. GARANTISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO
FERRAJOLI, com a criação do garantismo penal, anunciou uma teoria que
pretendia dar conta do direito e do processo penal.22 Para isso, elaborou axiomas, 289
75 no total, que evidenciaram a multiplicidade dos brocardos latinos – muitos deles
presentes na Constituição brasileira de 1988. Os trabalhos mais recentes de
FERRAJOLI elevaram o garantismo a uma teoria constitucional, e a uma teoria
política jurídica,23 a ponto de se falar em garantismo como uma teoria de democracia
constitucional, com denso conteúdo normativo, o qual se traduz em uma proposta
de constitucionalismo forte que congrega direito constitucional, processo penal,
direito penal, criminologia crítica, filosofia política e teoria do direito.24
_____________________________________________________________________________
36
Cf. Sastre Ariz, más allá de una Ciencia Jurídica Contemplativa, p. 286.
37
Cf. Pietro Sanchís, Constitucionalismo y Garantismo, p. 45.
38
Cf. Luigi Ferrajoli, Direito e Razão, p. 45.
39
Cf. Luigi Ferrajoli, Direito e Razão, p. 685.
40
Cf. Pietro Sanchís, Constitucionalismo y Garantismo, p. 43.
41
O próprio Ferrajoli combate o positivismo exclusivo e a exigência pouco garantista que levou o modelo.
Já Maria Abelán, vê uma coexistência entre a formação formalista-positivista de Ferrajoli e o elemento
crítico jusnaturalista que ele carrega. (cf. Marina Abellán, La Teoría General del Garantismo: Rasgos
Principales, p. 36). Por outro extremo, Marisa Iglesias vê o garantismo como uma proposta evolucionária
e visionária do positivismo (Cf. Marina Iglesias, El Positivismo en el Estado Constitucional, p.78-79.
42
Cf. Sanchís, Constitucionalismo y Garantismo, p. 46.
43
Cf. Marina Iglesias, El Positivismo en el Estado Constitucional, p.96. A autora, aliás, faz, no mesmo
texto, interessante consideração sobre o neoconstitucionalismo:
“Na Europa continental este debate gira ao redor do que se deseja denominar “constitucionalismo” ou
“neoconstitucionalismo”, nomenclatura que engloba um conjunto de doutrinas jurídicas que desejam
apresentar-se como uima revisão do positivismo (seja como um complemento ou como sua superação), e
que se aproxima do direito desde a perspectiva de uma Constituição substantiva que limita o poder
institucional”
44
Cf. Luigi Ferrajoli, Pasado y Futuro en el Estado del Derecho, in: Neoconstitucionalismo (s).
obter equilíbrio e mesmo coexistência entre garantismo e neoconstitucionalismo, ain-
da que possam, ser considerados mundos constitucionalmente possíveis a serem en-
contrados na ordem democrática.
O sincretismo de teorias do direito é o mais perigoso tipo de mistura, sendo
potente ferramenta para a perda de qualquer identidade jurídica. O sincretismo
hermenêutico metodológico, ou mesmo a cópia de leis advindas de modelos estran-
geiros diversos entre si, são males menores, de solução possível, desde que se tenha
uma sólida teoria do direito e uma Constituição avançada.
O garantismo não é um elemento do neoconstitucionalismo, mas outra
proposta de teoria do direito. A fusão do neoconstitucionalismo com o garantismo
também não parece possível, já que são graves as incompatibilidades. Deve-se, por-
tanto, optar por uma das teorias do direito. Não é purismo jurídico, pois aqui se
concebe como se rege o ordenamento, o funcionamento e até o significado de
direito, aceitando-se as mesclas metodológicas e principiológicas, unidas pela coe-
rência do sistema. Já o sincretismo de teorias do direito parece inviável. Na verdade,
a única maneira de conciliar os dois, é partir do neoconstitucionalismo teórico – e
de antemão rejeitar as propostas pretendidas pelo neoconstitucionalismo filosófico
e metodológico – e conectá-lo a um garantismo aumentado,45 que concederia uma
expansão de muitos dos elementos descartados por ele e que são e usados no neo-
constitucionalismo (ponderação, argumentação, derrotabilidade, abertura dos prin-
cípios, etc..). Isso levaria, por sua vez a descaracterizar o garantismo, teoria gran-
diosa e idealizada por um homem só.
3. EFICIENTISMO PENAL
Um dos desdobramentos da ideia de eficiência do Direito Penal está no
292 tema “inflação legislativa”. Na verdade, esta problemática se observa a partir da
má compreensão da finalidade da Política Criminal, que é justamente combater os
fatores originários do fenômeno criminoso.
Indica-se, como exemplo, que embora o ordenamento jurídico-constitu-
cional tenha embasamento em princípios como presunção de inocência e interven-
ção mínima no Direito Penal, o que se vê na prática é o surgimento de novos tipos
penais e o aumento da pena dos já existentes, em especial para atender aos anseios
da sociedade sempre estimulada pela mídia, o que, ao final, se converterá em votos
nas eleições.
O fato é que a produção legislativa não se preocupa com as desigualdades
ou dificuldades da própria sociedade. Ao contrario, os temas centrais dos parla-
mentares são os que tratam de forma ainda mais dura e severa o indivíduo e está
bastante distante de melhorar suas condições sociais. Afinal, o problema não deve
ser solucionado, sempre, pela Política Criminal, e sim pela Política Pública. Da mesma
forma que não se pode acabar com a fome por meio da edição de leis, de igual for-
ma não se pode por fim às condutas consideradas criminosas com a exasperação
de penas ou criação de novos tipos penais. Numa democracia, a lei funciona como
instrumento de modelação e expressão da sociedade, e não possui, jamais, a pre-
tensão de criar ou modificar uma sociedade.
Desta má utilização da Política Criminal é que surgem os problemas de
“inflação legislativa”, temática conhecida vulgarmente como “a lei que não pega”
_____________________________________________________________________________
45
Com o neoconstitucionalismo na sua manifestação plena o garantismo não teria quase nenhum traço
teórico semelhante ao modelo concebido por Ferrajoli, por isso a incompatibilidade entre esses modelos
é completa e permanente.
porque de tantas normas proibitivas cuja solução deveria ser apresentada – e po-
deria – por outras áreas do Direito, acabam disciplinadas pelo Direito Penal, ofen-
dendo de forma nítida o princípio da intervenção mínima.
Não se espera outra função dos parlamentares senão a de legislar. Porém,
legislar com responsabilidade e, principalmente, respeito à Constituição. Entretanto,
alerta FRADE:46
Para obtenção de tais fatos em sua pesquisa empírica, FRADE47 demons- 293
trou que mais de 80% dos parlamentares garantiram usar jornais e revistas como
fonte principal de conhecimento sobre Direito Penal enquanto menos de 40% garan-
tiu ler publicações especializadas sobre o tema.
Segundo os parlamentares, mais de 60% afirmam que criminalidade não é
um tema prioritário no Poder Legislador, pois mais 60% alegam dificuldade para
discutir o assunto. Entre as razões elencadas para tal situação são principais: falta
de vontade política, casuísmo e despreparo.
Chama a atenção a franqueza dos parlamentares e a conseqüência desse
panorama de que o assunto não rende voto. Dessa forma, só é abordado com in-
fluência da mídia ou quando a sociedade cobra firmemente uma resposta. Esta
constatação revela a completa deturpação da concepção dos parlamentares sobre
a verdadeira função do Direito Penal, e informa, ainda, que a Política Criminal acaba
funcionando como um instrumento para a promoção pessoal e de sua candidatura,
afastando-se cada vez mais da concepção ideal do Direito Penal enquanto ins-
trumento de tutela dos direitos e das garantias constitucionalmente reconhecidas.
Em uma legislatura (52°) o Senado obteve uma produção legislativa de 125
propostas enquanto a Câmara obteve produção de 524 propostas sob o aspecto
crime/criminalidade. Sob uma nova analise o sudeste, principalmente São Paulo (114
proposituras) e Rio de Janeiro (100 proposituras) lideram os projetos de lei sobre a
matéria de crime/criminalidade. Mesmo considerando suas grandes bancadas no
legislativo federal o fato corrobora a presença da violência como influência naqueles
_____________________________________________________________________________
46
FRADE. Laura. O que o congresso nacional pensa sobre a criminalidade. Brasília: UNB, 2007 (tese).
47
Ibid.
locais. Desta forma, o legislador não atua de maneira nacional sobre o assunto de
criminalidade sendo característica a sua atuação de acordo com situações especí-
ficas e de acordo com a intensidade que lhe é cobrada.
CONCLUSÕES
Dois grandes movimentos marcaram a história do direito neste período
de pós-modernidade: a afirmação histórica do direito internacional e a sedimen-
tação do constitucionalismo, com reflexos imediatos na consolidação da teoria dos
direitos humanos e dos direitos fundamentais.
Da relação entre a projeção da normatividade interna infraconstitucional
e constitucional, em razão da supremacia e força normativa da Constituição, even-
tual conflito entre as disposições deverá ser solucionado a partir do filtro axiológico
da Constituição vigente. Por conseguinte, as normas internas infraconstitucionais
devem guardar conformidade com a CRFB/88, sob pena de invalidação.
Pelo estudo do direito internacional, comunitário e comparado, observa-
se que são diversas as espécies de sanção formuladas aos crimes econômicos: a
prisão, o encerramento de empresa, a inabilitação profissional, a inabilitação para
solicitar subvenções, a inabilitação para participar de licitação, a inabilitação para
contratar com o Poder Público, a multa, etc. Constata-se, ainda, que as espécies de
sanção não representam qualquer novidade porque alguma já se encontram co-
minadas na ordem jurídica, outras não passam de um resgate histórico aplicada a
nova realidade da sociedade contemporânea.
Após a inteligência constitucional sobre as espécies de sanção propostas
ao Direito Penal Econômico, pode-se observar que a efetivação de tais espécies de-
penderá, obrigatoriamente, de sua aferição sob o ponto de vista de sua validade
294 constitucional. Caso encontre algum óbice à sua aplicação, merecerá interpretação
conforme a Constituição a fim de se extrair alguma forma interpretativa passível
de compatibilização ou harmonização com a normativa constitucional porque, caso
contrário, será uma espécie de sanção inválida. Em atenção às espécies de sanção
pesquisadas, pode-se perceber que, em regra, serão válidas, porém será necessária a
sua interpretação conforme a fim de que se tornem eficazes. Excepcionalmente, tal
qual a pena de encerramento da empresa, será uma espécie inválida.
Ademais, o que merece destaque é que não há insuficiência ou ineficiência
do Direito – o que acaba funcionando como fundamento para a criação de novos
tipos penais e o incremento das sanções –, e sim falta de efetividade das normas ju-
rídicas, que não são aplicadas com autoridade pelo Poder Público – que, quase
sempre, transfere a incompetência do Governo e a ineficiência do Estado à popu-
lação –, ou observadas com seriedade pela sociedade. Desta forma, apesar de se
reconhecer a gravidade e drasticidade com a qual a criminalidade avança na so-
ciedade, o Estado, ao formular as suas políticas públicas de atuação, deve observar
dois primados basilares do Estado democrático de Direito: a supremacia da Cons-
tituição e sua força normativa; caso contrário, qualquer esforço será imprestável,
pois eivado do vício mais severo dentro da teoria das nulidades: a inconstitu-
cionalidade.
Ainda que deva ser lido e estudado o garantismo, não é elemento do neo-
constitucionalismo, mas teoria do direito concorrente, porque parte de pressu-
postos distintos e chega a conclusões diversas. O garantismo penal, que recente-
mente alcançou novos rumos constitucionais irá produzir grandes efeitos nas gera-
ções futuras. A proposta acabada do garantismo tem fundamento político, filosó-
fico, preocupação lógica analítica e desdobramento nos campos penais, pro-
cessuais, constitucionais e internacionais. Sem dúvida, um legado inestimável para
enfrentar os problemas contemporâneos.
Enquanto temos uma Constituição garantista, temos uma sociedade alta-
mente punitiva. Isso se nota pela inflação legislativa, reflexo da sociedade no parla-
mento. Isso se dá pelo pouco dialógo entre a teoria do garantismo, na sua apli-
cação pelos tribunais os quais também se opõem as propostas parlamentares de
inflação legislativa penal e que continuam sem resolver a questão do sentimento
de impunidade que paira sobre a sociedade.
Não encontramos a resposta definitiva, mas encontramos a chave para a
resposta preliminar do caso brasileiro: é na divulgação das garantias e direitos cons-
titucionais para todos os interessados e seu respeito que se encontra no diálogo
institucional travado na sociedade brasileira. Não se pode esquecer que tais direitos
e garantias são cláusulas petréas, seja de natureza protetiva e principiólogica, as
quais não podem ser subtraidas do Direito Penal Constitucional brasileiro. E essas
cláusulas são as bases dos atos que permitem a democracia contemporânea.
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Estado e Constituição no Contexto
da Internacionalização do Direito a
Partir dos Direitos Humanos
Jose Luis Bolzan de Morais
Jânia Maria Lopes Saldanha
Gustavo Oliveira Vieira [*]
PREMISSAS INAUGURAIS
Um estudo sobre a experiência jurídica contemporânea não dispensa pau-
tar a abertura dos sistemas jurídicos nacionais às influências “extranacionais”. As
diversas dimensões do fenômeno da mundialização, da globalização econômica à 299
universalização dos direitos humanos, têm promovido a ligação entre os sistemas
econômicos nacionais, a mimetização de formas de vida e a consequente conden-
sação de culturas e idiomas. Estaria também, com isso, ocorrendo uma aproximação
entre os grandes sistemas jurídicos modernos, tanto em relação à sua forma quanto
no que diz respeito ao seu conteúdo e seus mecanismos de aplicação? E, para além,
estariam se transformando os lugares de produção e aplicação do Direito ou estaria
ocorrendo uma simples “confusão” espacial e temporal? Quais os rumos para o Es-
tado e a Constituição, indicados a partir de tais transformações? Tendo presente
que a estrada que descortinamos imprescinde de um percurso que ainda não está
pavimentado, nem pode sê-lo desde um processo de imposições prêt-à-porter. Ou
seja, há que se ter presente a confluência de riscos e benefícios, sínteses inter-
societais que ao lado de serem enriquecedoras, podem significar ou também
significam novas formas de colonialismo? Como diz o poeta, companheiro, o caminho
se faz ao caminhar e o destino é, ainda, incerto.
_____________________________________________________________________________
[*] Jose Luis Bolzan de Morais é mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-RJ, doutor em Direito do Estado
(UFSC/Université de Montpellier I), professor do PPGD/Unisinos e da UDC, consultor da Capes, CNPQ,
Fapergs, Fapesq e UFRN, pesquisador CNPq e procurador do Estado do Rio Grande do Sul. O texto é
resultado da pesquisa desenvolvida junto à CAPES, sob o título: “A Jurisprudencialização do Direito Cons-
titucional (III Fase) - O sistema de justiça e o princípio democrático (participativo)”; Jânia Maria Lopes
Saldanha é mestre em Integração Latino-americana pela UFSM, doutora em Direito pela UNISINOS/
Université de Toulousse, pós-doutoranda no Collège de France e professora do Programa de Pós-Graduação
da UNISINOS e da UFSM. O presente texto foi desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa da CAPES:
“A Atuação da Jurisdição Brasileira e Regional no Processo Multidimensional de Desenvolvimento Humano
no Contexto da Transnacionalização do Direito: Os Desafios da Policronia e da Assincronia”; Gustavo Oliveira
Vieira é professor de Direito Internacional do Curso de Relações Internacional da UFPEL em Pelotas - RS,
mestre em Direito pela UNISC e doutorando em Direito pela UNISINOS.
Ou seja, este processo, inaugurado em um ambiente de crise conceitual –
de poder soberano e de territorialidade, em particular1 –, promove uma transição
paradigmática – posto que o vivenciamos em construção2 –, assumindo-se em sua
dinâmica e intensidade variáveis.
Neste contexto é, pois, importante salientar que os mimetismos de formas
e conteúdos político-jurídicos são tão antigos quanto a sociedade internacional, mas,
a primeira vista, tudo indica que nunca ocorreram de maneira tão profunda, contí-
nua e intensa como hoje. Assim, cada vez mais os institutos jurídicos se repetem
em distintos países, inclusive pela dinamização provocada pelo fluxo comunicacional
contemporâneo. As influências entre os sistemas jurídicos ocorrem seja por apara-
tos imperialistas ou pela implementação autônoma (soberana?) de modelos de ou-
tros países ou, ainda, pelo compartilhamento de tradições jurídicas.3
Com isso em mente, a proposta do presente texto é sugerir um debate
sobre a internacionalização do direito a partir dos direitos humanos, buscando com-
preender – em um mosaico ainda em construção – as possibilidades e os riscos em
torno da experiência jurídica que globalmente se aproxima em formas e conteúdos
mesmos, como supedâneo para inaugurar a produção crítico-reflexiva.
A investigação proporá, nestas primeiras aproximações, inicialmente uma
especial atenção à temática dos direitos humanos desde sua veiculação universa-
lizada em um ambiente de mundialização, tentando situar e problematizar o cenário
numa proposta de pesquisa que reúne olhares múltiplos. Sem pretensões de
investigações exaustivas ou conclusões definitivas, busca-se a apresentação de uma
paisagem e seus desafios para a problematização da paisagem sócio-político-jurídica
contemporânea.
Nesse contexto, põe-se a seguinte questão: quais as implicações de uma
300 transição paradigmática do direito a partir da incidência de um direito internacional
convencional dos direitos humanos para o futuro do Estado Nacional e do consti-
tucionalismo? Guiados por esse problema, os primeiros diálogos, na primeira parte
serão apreciados aspectos da universalização dos direitos humanos, para, na se-
quência, investigar a internacionalização do direito a partir dos direitos humanos,
e, após, lançar alguns problemas para serem refletidos sobre os destinos do e para
Estado nacional e o seu constitucionalismo, o que conduzirá a reflexão ao longo
do desenvolvimento das pesquisas.
_____________________________________________________________________________
10
HELD, David; MCGREW, Anthony. Prós e Contras da Globalização. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
11
Ver: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Direitos humanos “globais (universais)”! De todos, em todos os
lugares. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. São
Paulo: Max Limonad, 2002, p. 519-542.
12
“Dada a prominencia del fundamentalismo de mercado, éste ha generado también desigualdades
económicas extremas dentro de los países entre regiones y ha traído de nuevo el elemento de catástrofe
al ritmo cíclico básico de la economía capitalista, incluyendo lo que se convertió en la crisis global más
grave desde la década de 1930”. HOBSBAWM, Eric. Cómo Cambiar El Mundo: Marx e o marxismo de 1840
a 2011. Traducción de Silvia Furió. Barcelona: Crítica, 2011, p. 21.
ceiro).13 É no interior dessa (e doutras) dialética(s) que os direitos humanos cumprem
sua função civilizatória de um mundo que caminha para construir, apesar de todas
adversidades, uma comunidade interestatal e interhumana.14
Assim, muitas vezes, o uso retórico dos direitos humanos tem desgastado
o primado ético que as demandas sociais e ambientais emergentes impõem. Mesmo
assim, os direitos humanos ainda se mantêm como o repositório ético do processo
de “integração” global, via mundialização, o guião emancipatório de nossos tem-
pos,15 mesmo sem se resolver alguns de seus pressupostos, em particular aqueles
marcados por sua origem histórico-geográfica e sua identidade (ocidental/ociden-
talizante?) mais marcada.
Os direitos humanos também geraram implicações para a Teoria do Direito,
na medida em que estabelecem uma co-originariedade explícita e indispensável
entre o direito e a moral, fazendo a ideia de pureza, própria do positivismo jurídico
contemporâneo, do direito independente em relação à moral e à política, ser su-
perada pelo reconhecimento de um conteúdo substancial básico, de origem moral,
constituído e constituinte da política,16 “identificados como os valores mais im-
portantes da convivência humana”.17 Assim, é possivelmente um espaço de maior
convergência entre o direito e a alteridade, na medida em que se pensa no direito
de todos, em todos os lugares, pela concretude do princípio da sociabilidade,18
necessariamente promovido por uma ação solidária e mundial.
O momento fulcral para o estabelecimento dos direitos humanos como
indicador ético do processo de mundialização é a adoção da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, a qual consolida “a afirmação
de uma ética universal, ao consagrar um consenso de valores de cunho universal a
serem seguidos pelos Estados”,19 que representam, para Norberto Bobbio, a cons-
303
_____________________________________________________________________________
13
Para David Held e Anthony McGrew, nas “economias mais avançadas, a competição global mina as
coalizões sociais e políticas necessárias aos programas sólidos de bem-estar social e à política de proteção
social, enquanto, no mundo em desenvolvimento, os programas de assistência social supervisionados
pelo FMI e pelo Banco Mundial restringem severamente os gastos públicos com o bem-estar social”.
HELD, David; MCGREW, Anthony. Prós e Contras da Globalização. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001, p. 73.
14
DELMAS-MARTY, Mireille. Liberté et Sûreté dans un Monde Dangereux. Paris: Seuil, 2010, p. 242.
15
VIEIRA, Gustavo Oliveira. Direitos humanos: uma introdução à matriz emancipatória de nossos tempos.
Revista do Direito (Santa Cruz do Sul: EDUNISC), v.1, 2002, p. 97-122.
16
Entre os representantes mais reconhecidos do positivismo jurídico contemporâneo estão Hans Kelsen (1881-
1973), autor da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre, de 1934), Alf Ross (1899-1979) que escreveu o livro
Sobre o Direito e a Justiça (On Law and Justice, de 1974) e Herbert Hart (1907-1994) que propôs o Conceito de
Direito (The Concept f Law, de 1961). Eles assumiram a tarefa de construir uma teoria do direito que separasse o
Direito da Moral e da Política. A título de exemplo, nas palavras de Hans Kelsen, para quem a teoria da pureza,
expoente do positivismo jurídico, “se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir
deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente
determinar como Direito.[...] libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos”(). KELSEN,
Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1.
17
“A compreensão da realidade axiological transformou, como não poderia deixar de ser, toda a teoria jurí-
dica. Os direitos humanos foram identificados como os valores mais importantes da convivência humana, aque-
les sem os quais as sociedades acabam perecendo, fatalmente, por um processo irreversível de desagre-gação”.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 26.
18
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 335-354.
19
A autora cita trecho de René Cassin, para quem: “Esta Declaração caracteriza-se, primeiramente, por sua
amplitude. Compreende um conjunto de direitos e faculdades sem os quais um ser humano não pode
desenvolver sua personalidade física, moral e intelectual. Sua segunda característica é a universalidade: é aplicável
a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o regime político dos territórios nos
quais incide. Ao finalizar os trabalhos, a Assembléia Geral, graças à minha proposição, proclamou a Declaração
Universal, tendo em vista que, até então, ao longo dos trabalhos, era denominada Declaração internacional. Ao
fazê-lo, conscientemente, a comunidade internacional reconheceu que o indivíduo é membro direto da
sociedade humana, na condição de sujeito direito do Direito das Gentes. Naturalmente, é cidadão de seu país,
mas também é cidadão do mundo, pelo fato mesmo da proteção internacional que lhe é assegurada”. PIOVESAN,
Flavia. Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 142.
ciência histórica da humanidade, síntese do passado e aspiração para o futuro;20
assinala o limite do que não é admissível no Nomos da Terra, pelo direito comum da
humanidade.21
O reconhecimento e o comprometimento internacional com os direitos
humanos, após a Segunda Grande Guerra, marca a transformação do direito posi-
tivo, em particular o de escala nacional, para o açambarcamento de novos conteú-
dos, com a ampliação da tutela jurídica a todos os seres humanos do planeta, sejam
mulheres, crianças, pobres, indistintamente das raças e demais características pes-
soais que possam justificar uma exclusão sistemática, estabelecendo padrões de
ética como pilares da civilização. Desde então os direitos humanos passam a ser
amplamente positivados por tratados internacionais, regional (Europa, Américas,
África) ou universalmente (ONU).
A universalização dos direitos humanos pode ser analisada – embora logi-
camente não se reduza a isso – sob a ótica da participação dos Estados22 aos tratados
internacionais23 que primam por conjugar, definir e ampliar seus estatutos de pro-
teção.
Ainda nos marcos tradicionais das relações e práticas normativas interna-
cionais, um exemplo notável de universalização é a Convenção Internacional de
Proteção dos Direitos das Crianças, de 1989, da qual 193 Estados são Partes. De cer-
ta forma, é possível afirmar que este texto representa um consenso, praticamente
universal, sobre os direitos reconhecidos às crianças e aos adolescentes. Ainda que
o texto por si só não transforme a realidade, é um primeiro passo importante para
se projetar padrões de civilidade às novas gerações e definir uma gramática comum
no aporte aos direitos humanos voltados à proteção da infância.
Apesar da necessária ponderação acerca das reservas,24 que têm o condão
304 de esvaziar o potencial emancipatório dos avanços propugnados pelos direitos hu-
manos. A colocação de reservas e declarações interpretativas restritivas. As reservas
são mecanismos que alteram ou modificam as obrigações decorrentes dos tratados
internacionais em relação aos Estados Partes – e não necessariamente possíveis
_____________________________________________________________________________
20
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 27 e 28.
21
CAPELLA, Juan-Ramón. La Globalización: ante una encrucijada político-jurídica. In: ESCAMILLA, M.;
SAAVEDRA, M. Derecho y Justicia en una Sociedad Global. Anales de la Cátedra Francisco Suárez. Granada:
International Association for Philosophy of Law and Social Philosophy/Universidad de Granada, 2005, p.
13.
22
Diz-se “Estado Parte” de tratado internacional quando o referido tratado internacional já está em vigor
em relação ao Estado, sendo, assim, diferente do número que assinaram o ato internacional. Acerca destas
diferenças, ver artigos 2-18 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969.
23
Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio (de 1948) com 141 Estados Partes; Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos com 167 Estados Partes; Pacto Internacional sobre Direitos Sociais,
Econômicos e Culturais (1966) com 160 Estados Partes; Convenção Internacional pela Eliminação de todas
as formas de Discriminação Racial (1966) com 174 Estados Partes; Convenção pela Eliminação de todas as
formas de Discriminação contra a Mulher (1979) com 186 Estados Partes; Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (1984) com 147; Convenção Internacional
de Proteção dos Direitos das Crianças (1989) com 193. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations
Treaty Collection. Disponível em < http://treaties.un.org/Pages/Treaties.aspx?id=4&subid=A&lang=en>.
Acesso em 8 mar. 2011.
24
A Convenção sobre a Proteção Internacional dos Direitos das Crianças ter mais de 50 reservas de variadas
ordens, que podem funcionar tanto como mecanismos par mediar um diálogo intercultural, abrir espaço
para ajustes internos para aplicação, ou mesmo se tornar um tratado de direitos humanos a la carte, pelo
qual cada Estado assume o que bem entende, numa perspectiva voluntarista e clássica. Sobre o problema
das reservas aos tratados internacionais de direitos humanos, ver: DAUDT, Gabriel Pithan. Reservas aos
Tratados Internacionais de Direitos Humanos: o conflito entre a eficácia e a promoção dos direitos humanos.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006. Segundo Cançado Trindade, “[d]esenvolvimentos recentes a
esse respeito revelam que gradualmente se pasa a reconhecer que não pode o Estado permanecer como
árbitro único e final do alcance e cumprimento de suas próprias obrigações internacionais em todas as
matérias vinculadas a tais reservas”. CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Tratado de Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: SAFE, 1999, vol. I, p. 312.
em todos os tratados, aos tratados internacionais de direitos humanos as reservas
podem servir como evasivas à efetivação de direitos, assim como mediar debates,
resistências ou dificuldades interculturais e interinstitucionais de relevo.25 Como lidar
com o problema das reservas aos tratados internacionais de direitos humanos para
que os mesmos não sejam expressão de uma versão voluntarista do direito internacional
para se tornarem condições de possibilidade para um direito da humanidade?
De modo que o problema das reservas aos tratados internacionais de di-
reitos humanos comunga com a ideia de uma universalização formal e controlada.
Formal, porque refere apenas a adesão a uma norma de caráter internacional, for-
matada como um dever ser e, ainda, submetido, muitas vezes, aos modelos rela-
cionais entre o direito internacional e o direito interno dos signatários; Controlada,
pois se submete às opções locais, as quais, muitas vezes, fazem minguar seu poten-
cial transformador, bem como estabelecem limites à sua dimensão e extensão.
Neste quadro, a doutrina e as práticas jurídicas ainda se veem confrontadas
com o protagonismo dos Estados Nacionais, apesar de suas fragilidades atuais,26
sendo ele (ainda) o responsável primário pela implementação dos referidos tratados
internacionais de direitos humanos, cuja assimilação e projeção serão problema-
tizadas a seguir, tomando-se como referência as implicações de uma nova via para
a construção e consolidação do projeto humanitário.
Todavia, tomando o cenário da crise conceitual e da transição paradig-
mática aqui adotado, este é um modelo não só disfuncional como também se
mostrou insuficiente para dar conta dos desvios bárbaros e totalitários vivenciados
ao mesmo tempo em que experimentamos(ávamos) a construção mais acabada
dos marcos regulatórios constitucionais e, implicitamente, humanitários,27 havendo-
se que reconhecer e enfrentar a emergência de novos espaços e de novas práticas,
as quais exigem novos olhares, sentidos e estratégias, que vão, abaixo, resumida e 305
apenas inauguralmente tratadas.
Estes são alguns dos “movimentos” que se combinam numa mesma teia
de influências, e que, por sua vez, redefinem o direito, abrindo-o a uma tendência
de conexões e transversalidades para além dos seus espaços tradicionais, sobretudo
de seus limites de territorialidade, peculiares às ordens jurídicas modernas – dos
Estados Nacionais.
Neste viés, esta “tendência” há que se manter, para permitir a adequação
histórica, cultural e contingente do sistema jurídico às sociedades e a seu tempo,
progressiva e sistematicamente. Afinal, uma “nova ordem”40 deve estar aberta às
adequações interculturais de maneira, inarredavelmente, pacífica e democrática.
Eis dois princípios indispensáveis que não se pode perder de vista para um desen-
volvimento harmônico deste processo de integração/interação em curso!
Interessa, entretanto, por ora, a explanação de alguns sistemas que pre-
miam a internacionalização do direito a partir dos direitos humanos.
Nessa perspectiva é possível identificar-se pelo menos duas formas de se
realizar a abertura, integração e influência recíproca do direito interno ao/no/pelo
sistema jurídico internacional, e, muitas vezes, em sentido inverso. Uma, pela própria
308 internalização de atos internacionais através do íter constitucional da incorporação
de tratados internacionais no sistema jurídico interno e sua respectiva implemen-
tação, e, outra, pelo mimetismo de formas e conteúdos em relação aos padrões
recomendados, portanto sem aquela força vinculante tradicional, por órgãos
internacionais ou seguidos por outros países sem necessariamente a obrigação
direta do país anteceder a assimilação daqueles valores.
_____________________________________________________________________________
38
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Trata-se do entendimento
da superação do constitucionalismo provinciano ou paroquial, em que o Estado não é mais locus privilegiado
como outrora para a solução dos problemas constitucionais.
39
Nesse sentido, ver: AMIRANTE, Carlo. Costituzionalismo e Costituzione nel nuovo contesto europeo. Torino:
Giappichelli, 2003. AMIRANTE, Carlo. Principles, Values, Rights, Duties, Social Needs and the Interpretation
of the Constitution. The hegemony of multi-level governance and the crisis of constitutionalism in a
globalised world. In: NERGELIUS, Joakim et al. Challenges of Multi-Level Constitutionalism. 21st World
Congress “Law and Politics in Search of Balance”. Sweden: 12-18 august. 2003, p. 171-190.
40
Tal “nova ordem” tem em Kant um de seus precursores. Para ele, o direito cosmopolita, ou cosmopolítico,
se funda na “idéia racional de uma comunidade pacífica perpétua de todos os povos da Terra (mesmo
quando não sejam amigos), entre os quais podem ser estabelecidas relações, não é um princípio de direito.
a natureza encerrou todos os homens juntos, por meio da forma redonda que deu ao seu domicílio comum
(globus terraqueus, num espaço determinado”(KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Tradução de Edson
Bini. 3. ed. São Paulo: Ícone, 1993, p. 201). Em À Paz Perpétua, segunda seção, artigo 3º, Kant propugna
que o “direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal”, não como
filantropia, mas pelo direito de visita de um estrangeiro, ou melhor, o direito de posse comunitária da
superfície da terra (KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM,
2010, p. 37). Dessa forma, o direito cosmopolita como um “complemento necessário do código não escrito,
tanto do direito de Estado como do direito internacional, para um direito público dos homens em geral
(...)”. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 41.
IV - TRATAMENTO CONSTITUCIONAL PRIVILEGIADO AOS DIREITOS
HUMANOS
A extensa positivação internacional dos direitos humanos passou a criar
uma tendência constitucional ao tratamento privilegiado destas fontes de direito
internacional. É o caso da cláusula de abertura do parágrafo 2º do artigo 5º da Cons-
tituição brasileira de 1988,41 que reconhece, não sem gerar controvérsias,42 em pa-
tamar constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil
for parte. Apesar da resistência jurisprudencial, que concebe, de regra, que a interna-
lização dos tratados de direitos humanos se dá em patamar infraconstitucional, e
do eventual retrocesso social provocado pela Emenda Constitucional n. 45, com a
inclusão do parágrafo 3º ao artigo 5º,43 que demanda aprovação ao modo de emenda
constitucional aos tratados de direitos humanos, para que sejam efetivamente in-
corporados em status constitucional, esta nova fonte, de direito internacional, rea-
loca a hierarquia das normas em favor de fontes internacionais, por conta do seu
conteúdo e das novas interfaces antes mencionadas.
Trata-se, isso, todavia, de uma tendência não apenas brasileira, mas global,
ainda que mais ocidental que propriamente mundial. No denominado constitucio-
nalismo latino-americano pode ser avistado um bloco de interconstitucionalidade
em matéria de direitos humanos. Veja-se, por exemplo, o caso das garantias pro-
cessuais,44 consideradas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como “di-
reitos humanos”, cuja presença nas constituições da maioria dos países da América
Latina é inolvidável, demonstrando o reconhecimento em nível interno, não só dos
marcos normativos internacionais que tratam da matéria como também a assunção
à própria jurisprudência daquela Corte sobre a matéria. Tal bloco de constitucio-
nalidade, que seguramente poderia ser denominado de “interestatal” ou “su-
309
_____________________________________________________________________________
41
Artigo 5º, §2º da Constituição da República Federativa do Brasil – “Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
42
A leitura doutrinária aponta entendimento variado: para alguns da a) supraconstitucionalidade dos
tratados internacionais de direitos humanos (MELLO, Celso D. de Albuquerque. O §2º da Constituição
Federal. In: TORRES, Ricado Lobo [Org.]. Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
p. 25-26), outros pela b) constitucionalidade dos mesmos (BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. As Crises do
Judiciário e o Acesso à Justiça. In: AGRA, Walber de Moura (Coord.). Comentários à Reforma do Poder
Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 3-54.; PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Direito
Constitucional Internacional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2006; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto.
Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos
internacional e nacional [1998]. In O Direito Internacional em um Mundo em Transformação. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 714-716; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos Humanos, Constituição e os Tratados
Internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira. São Paulo:
Juarez Freitas, 2002), sendo o terceiro posicionamento, que ficou assentado como majoritário no STF,
pela c) supralegalidade, conforme RE 466353, pautada pelo voto do Ministro Gilmar Mendes, e o en-
tendimento anterior pela d) equiparação às leis ordinárias.
43
Artigo 5º, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil – “Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. SARLET,
Ingo Wolfgang. A Reforma do Judiciário e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos: algumas notas
sobre o novo §3º do art. 5º da Constituição. In: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, v. 1, n. 4,
Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2006, p. 183-200.
44
Sobre esse tema veja-se: SALDANHA, Jânia Maria Lopes Saldanha. Bloco de constitucionalidade em
matéria de garantias processuais na América Latina: Ultrapassando o perfil funcional e estrutural
“hipermoderno” de processo rumo à construção de um direito processual internacional dos direitos
humanos. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA; Leonel Severo; CALLEGARI; André Luís (Orgs.). Constituição,
Sistemas Sociais e Hermenêutica, Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010, v. 7. SALDANHA, J. M. L. ; BOLZAN DE MORAIS, J. L. Constitution,
Human Rights and Republic: a Necessary Dialogue Between Gadamer’s Philosophical Hermeneutics and
Boaventura de Sousa Santos’s Diatopic Hermeneutics. Nevada Law Journal, v. 10-3, p. 667-682, 2010.
praestatal” não teria vocação a uma linguagem comum ou, como refere Delmas-
Marty, uma sabedoria comum?
Nesse âmbito, a Constituição da República do Chile, por exemplo, expressa,
no artigo 5º, o reconhecimento da abertura da soberania em favor do respeito aos
direitos humanos. Segundo a Constituição chilena, “o exercício da soberania reco-
nhece como limitação o respeito aos direitos essenciais que emanam da natureza
humana. É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover tais direitos, garantidos
por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo
Chile e que se encontrem vigentes”.
Tal condição é confirmada num en passant por algumas constituições la-
tino-americanas. Pela Constituição Política do Peru de 1993, os direitos constitucio-
nalmente reconhecidos se interpretam em conformidade com a Declaração Univer-
sal de Direitos Humanos e com os tratados de Direitos Humanos ratificados. A Cons-
tituição da Guatemala de 1985, em seu artigo 46, detém que os tratados de direitos
humanos que a Guatemala se torna parte têm preeminência sobre o direito interno.
A Constituição da Nicarágua de 1985, em seu artigo 46, dispõem que os di-reitos
consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Decla-ração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, pelos Pactos de Direitos Hu-manos
das Nações Unidas e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos integram,
para fim de proteção, a enumeração constitucional de direitos. Agregam-se aos
exemplos enumerados a Constituição Colombiana de 1991, artigo 93; a Constituição
do Paraguai, artigo 141 e 137; a Constituição de Honduras de 1982, artigo 18; a Cons-
tituição de El Salvador de 1983, artigo 144.
Na Constituição da Argentina, artigo 75 (23) entende o rol de tratados in-
ternacionais de direitos humanos ali mencionados como complementares aos di-
310 reitos e garantias consignados pela mesma. Na Constituição venezuelana, de 2000,
em seu artigo 23, expressamente reconhece o status constitucional dos tratados
internacionais de direitos humanos e prevalecem sobre a ordem interna. Assim
como a recente reforma constitucional mexicana para alterar uma série de artigos
com o intuito de ampliar a abordagem e o reconhecimento dos direitos humanos
garantidos na constituição e nos tratados internacionais.45
Na Europa, salienta-se nalguns países o entendimento pela supralegalidade
dos tratados internacionais de direitos humanos, como nas Constituições da Alema-
nha (em seu artigo 25), França (artigo 55) e Grécia (artigo 28). Como é também o
caso, na África, do artigo 21 (2) da Constituição de Angola, segundo a qual “as nor-
mas constitucionais e legais reativas aos direitos fundamentais devem ser
interpretadas e integradas de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos
do Homem, da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e dos demais
instrumentos internacionais de que Angola seja parte”, aduzindo que (art. 21, 3)
“na apreciação dos litígios pelos tribunais angolanos aplicam-se esses instrumentos
internacionais, ainda que não sejam invocados pelas partes”.
Com isso, percebe-se que os tratados internacionais de direitos humanos
são reconhecidos na ordem interna de seus Estados Partes, mais frequentemente
em patamar constitucional ou supralegal. Ambas as condições possíveis no Brasil,
conforme entendimento majoritário (6 ministros) do STF no RE 466.343, ainda que
parte importante (5 ministros) tenha se manifestado pela constitucionalidade de
_____________________________________________________________________________
45
MEXICO. Secretaría de Relaciones Exteriores, Información para las representaciones de México en el
exterior, n. 173, 9 de abril de 2010. Dirección General de Derechos Humanos y Democracia. Boletin
Informativo. Disponível em <http://portal.sre.gob.mx/montreal/pdf/Bolderhum.pdf>.
todos os tradados internacionais de direitos humanos que o Brasil é parte, já advo-
gado há décadas por parte substancial da doutrina brasileira. A referida jurispru-
dência alterou um entendimento que vinha de décadas, que equiparava os tratados
internacionais de direitos humanos a leis ordinárias, e por apenas um voto o parecer
pela constitucionalidade não prevaleceu.
De modo que vige atualmente uma dupla possibilidade em relação aos
tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é parte: a) são supralegais
quando o Brasil se tornou parte e sua aprovação no Congresso Nacional não se
deu nos moldes exigidos atualmente; b) são constitucionais quando aprovadas por
maioria qualificada (três quintos dos membros), e em dois turnos de votação, como
foi o caso da Convenção sobre Pessoas com Deficiência, primeiro tratado interna-
cional de direitos humanos internalizado em patamar constitucional, pós Emenda
Constitucional 45/2004. Resta responder se aqueles tratados não submetidos ao
procedimento das ementas constitucionais, pois internalizados anteriormente à
EC/45 que criou tal sistema, serão novamente submetidos à apreciação, ou se
manterão como tratados internacionais de direitos humanos de segundo escalão.
De modo que se impõe a constitucionalidade dos tratados internacionais
de direitos humanos que o Brasil é parte, não apenas parte destes, conforme
reiterado por parte importante da doutrina que subscrevemos.46
A internacionalização do direito pela via dos direitos humanos tam-bém
se reflete em mudanças materiais e formais no direito interno. A internalização de
atos internacionais de direitos humanos diz respeito à aplicação das fontes de Di-
reito Internacional dos Direitos Humanos. É o caso da implementação, na ordem
interna, pelas vias legislativa, executiva e judiciária, principalmente no âmbito da
União, pois as obrigações recaem primordialmente sobre as competências o Estado
(federal, quando o sistema for federativo, mas todos entes federados) e poderes 311
são vinculados. Diz respeito às obrigações do Estado em face de algum ato inter-
nacional do qual tenha manifestado vontade de participar ou que por consequência
destes esteja obrigado. Inclui-se todos os mecanismos de implementação, direta e
indireta, de declarações, tratados internacionais que o Estado seja parte ou em
função de jurisprudência internacional que tenha implicações ao Estado.
Tudo isso gera uma qualificação substancial no direito interno, cuja inci-
dência impacta o constitucionalismo e a lógica do Estado Nacional.
_____________________________________________________________________________
48
Com a expansão do constitucionalismo, pode-se supor a coexistência entre Estado Nacional e Estado
Constitucional, mesmo reconhecendo-se o descompasso entre o prestígio teórico e o desprestígio prático
–tomando emprestada a suposição de Dalmo Dallari (DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte.
3. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 73-75), experimentado pelo constitucionalismo no reconhecido “curto”
Século XX, inclusive se confrontado com o seu reforço no contexto do dito neoconstitucionalismo. Acerca
do debate em torno do ou dos neoconstitucionalismo(s) há uma vasta e diversificada bibliografia, sobre
a qual não iremos nos ater neste momento.
49
VIEIRA, Oscar Vilhena. Realinhamento constitucional. In: SUNDFELD, Oscar e VIEIRA, Oscar Vilhena
(Orgs.). Direito Global. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 17-49.
50
BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Crises do Estado, Democracia Política e Possibilidades de Consolidação
da Proposta Constitucional. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; STRECK, Lenio L.(Coords.). Entre discursos e
culturas jurídicas. Boletim a Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, n. 89, Coimbra: Coimbra, 2006, p. 23 e 24.
51
CARDUCCI, Michele. Integração por Intermédio das Constituições? Revista de Direito Administrativo &
Constitucional, Belo Horizonte, ano 11, n. 43, p. 47-55, jan.-mar. 2011.
52
“In the course of the last century International Law has undergone an extraordinary development,
which gradually took the shape of an historical process of its humanization. Traditional International Law,
in force at the beginning of the XXth century, was characterized by unlimited State voluntarism, reflected
in the permissiveness of recourse to war, secret diplomacy and the celebration of unequal treaties, the
maintenance of colonies and protectorates and zones of influence. Against this oligarchical and unjust
order arose principles such as those of the prohibition of war of aggression and of the use and threat of
force, – and of the non-recognition of situations generated by these latter, – of the juridical equality of
States, and of the peaceful settlement of international disputes. Moreover, the struggle against inequalities
started, with the abolition of the capitulations, the establishment of the system of protection of minorities
under the League of Nations, and the early international labour conventions of the international Labour
Organization”(…) “The process of democratization of International Law was then launched”. CANÇADO
TRINDADE, Antônio Augusto. International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium. Leiden/Boston:
Martinus Nijhoff, 2010, p. 635.
também são “contrabalançados” pelos influxos da ideologia neoliberal,53 além de
outros condicionantes, por vezes exercendo influência amoralizante sobre as po-
líticas públicas estatais, na medida em que são esvaziadas do sentido comunitário
e da função inclusiva, sobretudo de cunho social. O risco, aqui, manifestado pela
jurista francesa Delmas-Marty, diz respeito à possibilidade da decomposição do
sistema jurídico pelo mercado, na medida em que o direito passa a se tornar um
instrumento de concorrência para atrair o capital internacional. Trata-se do mercado
da lei, num ambiente onde, quem manda é a lei do economicamente mais forte.54
O diálogo tenso entre globalização econômica e direitos humanos deve
ser interrogado pelas vias institucionais, estatais ou internacionais constituídas, na
medida em que a responsabilidade social das empresas e os parâmetros éticos do
mercado são requisitos dos consumidores e dos parceiros produtivos, como no
caso do Pacto de Direitos Humanos da ONU para as empresas, que indica procedi-
mentos, comportamentos e culturas a serem implementadas pelo setor econômico.
É preciso lembrar que a proteção da pessoa humana não se exaure, e nem pode se
exaurir na ação dos Estados55 ou no âmbito do espaço político.
Por fim, é necessário apontar alguns desafios e riscos que uma eventual
condensação de culturas jurídicas tende a enfrentar, como o que está sendo intro-
duzido na Europa e mesmo na região meridional da América do Sul. Sem a ade-
quação ao regime democrático e ao reconhecimento de direitos humanos e funda-
mentais, é pouco provável que qualquer processo de integração ter-se-ia desen-
volvido sólida e continuadamente, dando azo à formação de organizações supraes-
tatais/superestados que transformam visceralmente o conceito de Estado pelas
transformações no papel da soberania, sem uma base democrática.
Nesse sentido, caberia questionarmos se a “fertilização recíproca”, na ex-
pressão de Delmas-Marty, gerada pelas tradições jurídicas do mundo tenderiam a 313
um processo de colonização cuja direção é pautada pela dependência econômica,
ou se caberia projetar, na linha de Patrick Glenn, uma diversidade sustentável.56
Ou ainda, conforme Denninger, a questão multicultural também apresenta um de-
safio transponível com complexidade – afinal, qual o mínimo de consenso que exige
uma sociedade o qual o nível de conflito pode suportar?57
A internacionalização do direito coloca em questão a legitimidade da pro-
dução normativa, pois o poder (interno estatal) democraticamente legitimado para
ser o centro da produção legislativa é tornado um órgão para ratificação/adesão
ou implementação dos tratados internacionais, em regra chancelando o texto pro-
duzido no jogo das relações internacionais, internalizando-o. Assim, os destinatários
se tornam obrigados a determinados conteúdos cuja produção é extraterritorial/
extranacional.
_____________________________________________________________________________
53
“Il n’y a pas, contrairement à ce que l’on pourrait croire, de rejet massif et global de la mondialisation.
Celle-ci constitue un processus désormais trop diversifié, trop multiforme et trop contradictoire pour
donner lieu à des clivages simples”. LAÏDI, Zaki. Mondialisation: entre réticences et résistances. Revue du
Mauss. Quelle ‘autre mondialisation’? Mouvement Anti Utilitariste en Sciences Sociales. Semestrielle. N.
20. 2.2002, Paris: La Découverte, 2002, p. 25.
54
DELMAS-MARTY, Mireille. Trois Défis pour um droit mondial. Paris: Seuil, 1998, p. 15-25.
55
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos na
Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Quadro atual e perspectivas na passagem do
século. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no século XXI. Brasília:
FUNAG, 1999, p. 19-48.
56
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World. Sustainable Diversity in Law. 4. ed. Oxford/New York:
Oxford University, 2010.
57
DENNINGER, Erhard; GRIMM, Dieter. Derecho Constitucional para la Sociedad Multicultural. Traducción
de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid Trota 2007, p. 32.
Em matéria de tratados internacionais de direitos humanos, esta preo-
cupação quanto à legitimidade deve ser revisitada, tendo em vista que a abertura
do sistema normativo à recepção integrativa de textos legais que visam assegurar
direitos humanos pode/deve representar um incremento qualitativo dos direitos
tutelados e promovidos pelo Estado, em favor das pessoas. Portanto, não há perdas
em razão da infiltração de conteúdos mesmo que com “legitimidade questionável”,
mas ganhos em termos de cidadania pela inclusão de novas garantias e direitos
que passam a integrar o elenco de direitos fundamentais.
O risco indesejável, e talvez inevitável, é o de uma ocidentalização do mun-
do, com a tendente condensação de culturas cuja preponderância tende a fazer
com que a robustez econômica seja o critério primeiro. Aliás, talvez ocidentalização
não seja o termo mais preciso, pois regiões como a América Latina e a África mais
absorvem e mimetizam processos de americanização e europeização do que efe-
tivamente contribuem de forma dialógica para a construção de um direito cada
vez mais adequado a uma sociedade que se globaliza. Uma “internacionalização”,
portanto, que em grande parte das vezes tem endereço de saída e de chegada. A
europeização das instituições públicas no âmbito do direito dos povos pode ocorrer
tanto por uma imposição colonizadora quanto pelas sofisticadas técnicas jurídico-
políticas desenvolvidas no velho continente e implementadas voluntariamente
como as referências principais a serem seguidas, ainda que mais açambarcadas à
força do período colonial do que pela vontade soberana dos povos. De toda forma,
foi a tradição que se instituiu, com todos os seus anacronismos ínsitos, cuja “impor-
tação” ou transposição de conteúdos gera dificuldades e distorções na imple-
mentação pela não “naturalização” cultural.
Trata-se de uma transformação conteudística do Estado, por onde as suas
314 crises afetam tanto o “lugar” do constitucionalismo, que passa do âmbito nacional
para o regional e, eventualmente, projeta um âmbito mundial/cosmopolita, como
a forma do mesmo de documentos legislados nacionalmente para patos construídos
negocialmente em escala internacional sob o formato de tratados, como o caso
dos tratados internacionais de direitos humanos, além de promover rearranjos for-
mais e substanciais e novos desenhos e práticas jurídico constitucionais, inclusive
sob a perspectiva de interações dialógicas entre ordens e espaços normativos. De
toda forma, a luta pelo Estado de Direito e dos direitos humanos continua.58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do quadro desenhado caricaturalmente acima, é possível afirmar-
se que pela via dos tratados internacionais de direitos humanos, há uma tendente
aproximação gramatical de direitos que passam a ser reconhecidos institucio-
nalmente por uma gama considerável de Estados Nacionais, com a acomodação
progressiva do sentido de dignidade da pessoa humana para os mais diversos Es-
tados e culturas jurídicas, que, por outro lado, não significa, de qualquer forma,
uma homogeneidade, unívoca e não contraditada, quanto aos valores jurídicos in-
corporados aos direitos humanos.
_____________________________________________________________________________
58
“No se trata de una tarea simplemente erudita, sino de una perspectiva necessária, puesto que la
evolución del constitucionalismo hasta nuestros días muestra que el progreso de los derechos humanos
de las insituciones que los reconocen y protegen, a pesar de acontecimientos deplorables que los vulneran
en diversos países, sigue presente. La lucha por el Estado de Derecho y de los derechos humanos continúa”.
VERDÚ, Pablo Lucas. Materiales para un Museo de Antigüedades y Curiosidades Constitucionales. Madrid:
Dykinson, 2011, p. 12.
As divergências em torno da universalidade e da indivisibilidade dos direitos
humanos se tornam claras pela observância, exemplificativamente, do número de
reservas opostas aos tratados internacionais de direitos humanos, as práticas ins-
titucionais contraditórias, pois o reconhecimento formal não é suficiente para mu-
dar toda uma cultura institucional impregnada, e o apoio velado demonstrado pelo
silêncio eloquente – quem sabe como expressão de uma ignorância funesta – por
parte da opinião pública.
Assim, a internacionalização do direito, a partir de valores contempori-
zados pelo direito internacional – com todas suas idiossincrasias –, reintroduz no
direito os axiomas a partir dos ideários dos direitos humanos, que se tornam o
guião emancipatório dos cidadãos do planeta.
A partir de então, a história do constitucionalismo passa também pela aber-
tura das constituições ocidentais às cartas internacionais de direitos (humanos e
fundamentais). O que não significa dizer que o direito dos Estados Nacionais não
estivesse sempre “aberto” à recepção de novos conceitos nascidos fora de suas
fronteiras, assim como são grande parte dos principais componentes de sua or-
ganização política – soberania popular, federalização etc –, com a percepção sobre
a internacionalização do direito, tendo nos direitos humanos um referencial ético
estruturante.
Tal fenômeno, pelo viés da teoria do Estado (como ciência política), tem
conduzido a uma crise de soberania, no quadro da crise conceitual do Estado (mo-
derno). As decisões últimas para a atuação estatal já não mais ocorrem exclu-
sivamente no interior do próprio Estado. O Estado, ao mesmo tempo em que pode
participar da formação do sistema jurídico internacional, passa a ceder capacidade
decisória às deliberações realizadas em instâncias interestatais, supraestatais e
transnacionais. Há uma redução das alternativas às decisões nacionais por conta 315
do papel normatizador que as redes interestatais/extranacionais (econômicas, po-
líticas ou sociais) exercem.
Ante os quatro movimentos da mundialização, é possível concluir pelo
surgimento de novas demandas, novos atores, novas instâncias e novos direitos
que oferecem uma nova dimensão compreensiva, com implicações mais sérias da
interestatalidade à Teoria do Estado e da Política.
A internacionalização do direito pela via dos direitos humanos disponibiliza
aos operadores jurídicos um ferramental teórico-dogmático em condições de instru-
mentalizar o direito como vetor de transformação social ao alargamento da inclusão
cidadã que propõe o modelo civilizatório propugnado pela Constituição/cons-
titucionalismo, a exemplo do sistema interamericano e mundial de direitos hu-
manos.
De modo que, é pertinente questionar se a internacionalização pode ocor-
rer no sentido do fortalecimento da identidade jurídica nacional, ainda que ressig-
nificando-a.
Indiferente das formas diretas ou indiretas com que a internacioanlização
do direito vem acontecendo, o medium linguístico que é o Direito tende a uma apro-
ximação pós-nacional de conteúdos e formas que transformam paradigmatica-
mente o próprio constitucionalismo e assim o Estado Nacional, impondo-se uma
reflexão maior e mais aprofundada acerca de seu presente e do futuro, para que se
possa estudar para onde caminha a humanidade....
Pacto Federativo Brasileiro
e Autonomia Municipal:
Análise da Representação dos
Municípios Diante da Atuação
do Senado Federal*
Deyse Filgueiras Batista
Juliana Cristina dos Reis Freire
Thiago Vieira Mathias de Oliveira [**]
RESUMO
Discute a autonomia dos Municípios brasileiros frente ao princípio
da participação das vontades parciais na formação vontade geral.
Ressalta que a Constituição brasileira elevou o Município à categoria
de membro da Federação e atribuiu ao Senado Federal a represen-
tação dos entes federativos. Aponta falhos os mecanismos de esco-
lha de seus membros e que a Constituição não enumera competên-
cias próprias que expressem sua missão representativa nem garante 317
a participação dos Municípios neste órgão. Questiona como o Senado
poderia contribuir para que os Municípios tomem parte nas decisões
estabelecidas em nível federal. Demonstra que os senadores tendem
a representar aqueles que neles votaram e o Senado a servir como
órgão revisor de matérias não afetas ao pacto federativo. Conclui
pela necessidade de revisar o pacto federativo brasileiro no sentido
de aperfeiçoar a autonomia dos Municípios.
PALAVRAS-CHAVE
Autonomia municipal – Representatividade – Senado Federal.
ABSTRACT
It discusses the autonomy of the brazilian municipalities before the
principle of partial participation in the formation of wills the general
will. It emphasizes that the brazilian Constitution elevated the
_____________________________________________________________________________
318
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que, diante do modelo federal
do Estado brasileiro, os Municípios assumiram a condição de ente federativo. Logo,
no Brasil, há de falar em uma estrutura federativa tripartite em que União, Estados,
o Distrito Federal e Municípios têm reconhecidas e asseguradas suas autonomias,
gozando de poder de organização político-administrativo.
Estas unidades federativas teriam no Senado Federal sua representação,
corroborando um federalismo simétrico, de forma a não existir tratamento desigual
entre os membros federativos. Assim, cada Estado-membro conta com três sena-
dores que são os responsáveis por defender os interesses daquele ente federativo
que representa.
Porém, apesar da existência de garantias constitucionais e de os Municípios
demonstrarem em sua estrutura capacidade de autolegislação e auto-adminis-
tração, a capacidade de autogoverno municipal ainda não se mostra plena, pois tal
ente federativo não possui instrumentos eficazes para ocupar a posição comuna
que lhe foi destinada, não participando efetivamente das decisões governamentais
atinentes diretamente à Federação brasileira.
Os Municípios acabam não representados ativamente diante do Estado
Federal brasileiro. Os senadores, que, a princípio, representariam todas as entidades
locais que compõe o Estado-membro não têm atuado satisfatoriamente na persecu-
ção dos interesses do Município. Levanta-se, assim, a problemática da representa-
ção municipal diante da Federação brasileira e a inexistência de órgãos ou indivíduos
com competência para defender os interesses de cada Município, não contemplan-
do expressamente as vontades parciais locais.
_____________________________________________________________________________
3
O aspecto conservador do Senado Federal é muito mais marcante do que sua natureza de Casa Legislativa
que tem a responsabilidade de manter o equilíbrio federal. O mandato dos Senadores é de oito anos, o
dobro do mandato dos Deputados Federais, não existindo, ainda, a possibilidade de renovação de todos
os seus membros de uma só vez, pois a eleição ocorre a cada quatro anos, renovando-se um terço e dois
terços dos seus membros alternadamente. O Senado brasileiro, além de casa de representação dos Estados
membros e do Distrito Federal tem cumprido a função de casa legislativa revisora de natureza moderadora
conservadora em visível posição de barrar prováveis mudanças bruscas na legislação e na Constituição
decorrentes de uma alteração radical na composição da Câmara dos Deputados. Desta forma, uma mudança
radical na composição da Câmara de Deputados será amortecida pelos senadores eleitos quatro anos
atrás, que podem ser na proporção de um terço ou dois terços de todo o Senado. Esta característica
bastante conservadora é capaz de prejudicar a vontade popular expressa em um momento político
específico, frustrando a população com o papel desempenhado pelo Legislativo. O Senado participa da
votação em todo processo legislativo, não havendo separação de competências legislativas segundo a
vocação da casa e esta característica conservadora será ainda mais acentuada
A superação desse problema pode ocorrer de maneira simples, partindo-
se da redução do mandato para quatro anos e a renovação de todos os seus mem-
bros, simultaneamente com a Câmara de Deputados, o que eliminaria este caráter
conservador e manteria o equilíbrio federal no parlamento. Outro avanço pode ser
alcançado corrigindo-se o processo legislativo e estabelecendo-se competências
diversas para as duas casas legislativas e determinando para o Senado competências
legislativas específicas, que envolvam diretamente interesses dos entes federados,
como a matéria tributária. Dinorá Grotti (1995) defende a substituição do Senado
por um Conselho Federativo, que cuidaria apenas – e com a profundidade necessária
– de matérias legislativas ligadas à Federação brasileira.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As duas metas do movimento federalista, liberdade dos autogovernos e
das diversidades culturais das varias entidades mantidas na ordem federal e
eficiência – teoricamente, mais facilmente alcançados por meio de ações go-
vernamentais centralizadas – criaram no Brasil a necessidade de um balanceamento
entre o poder central e os governos locais. O Estado Federal funde essas duas metas
ao imprimir à descentralização política o caminho para a plena participação do povo
na vida política na administração dos interesses locais entregue a cidadãos da loca-
lidade, responsáveis pelo direto contato com os seus concidadãos, todos igualmente
interessados na melhor solução dos problemas da comunidade. A forma de re-
partição das competências é o núcleo dessa fusão e no Brasil, manifestou-se pre-
ferência pela técnica de ampliação do campo da legislação comum que se distribuiria
entre a legislação federal de normas gerais e a legislação estadual e municipal de
complementação dessas normas.
330 Mas apesar dessa opção, o Brasil não conseguiu equilibrar as relações fe-
derativas, persistindo uma excessiva concentração de poderes da União Federal.
Tanto que as matérias de sua competência foram significativamente ampliadas,
pouco restando para os Estados no que se refere à sua capacidade legislativa, con-
tinuando seus poderes remanescentes esvaziados de conteúdo e de significado
prático.
A ausência de variações na definição das funções e competências dos Mu-
nicípios, pela via constitucional ou por delegação dos Estados, cria expectativas
irrealizáveis na maior parte dos governos locais. O princípio federativo foi reforçado
pelo fortalecimento financeiro dos Estados e Municípios, mas não conseguiu com-
pletar a engenharia institucional necessária para dar organicidade a um processo
de descentralização que precisa atender a um país de vasta extensão territorial.
No processo de criação de novos Municípios no Brasil, a criação de muitos Muni-
cípios em poucas unidades da Federação em tempo muito exíguo,acarretou menos
recursos aos antigos Municípios e mais governantes locais, significando maior
pressão por gastos públicos nos Estados e na União.
Ao Município deve ser repassada a ação administrativa rotineira, referente
aos serviços que devem ser prestados diretamente ao cidadão, como saúde, edu-
cação, segurança e obras locais. Além disso, em razão de especificidade do muni-
cipalismo brasileiro, não se justifica que Municípios tão diferentes fiquem sujeitos
ao mesmo arcabouço jurídico na medida em que hoje, as regras que definem a au-
tonomia municipal são idênticas para Municípios pouco populosos e pouco desen-
volvidos economicamente e para as grandes metrópoles. A importância da descen-
tralização passa pela necessidade de conhecimento profundo das singularidades
regionais.
As competências comuns estabelecem a atuação conjunta dos entes fe-
derativos na solução e no desenvolvimento de políticas sociais fundamentais. Assim,
União Estados-Membros e Municípios devem cooperar e desenvolver atividades
conjuntas para atender melhor a população em suas necessidades mais prementes.
Mesmo tendo a excelente idéia de tornar obrigação comum dos entes federativos
a atuação em setores sociais vitais para a população, o constituinte de 1988 não es-
tabeleceu regras precisas sobre como o interrelacionamento governamental deve
ocorrer, prorrogando tal estipulação para lei complementar. O debate sobre as
formas de cooperação intergovernamental e alternativas institucionais locais na
estrutura federativa nunca fizeram parte da agenda política, sendo marginalmente
discutidos nos espaços de decisão política.
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332
O Novo Constitucionalismo
Latino-americano
Fábio Corrêa Souza de Oliveira
Camila Beatriz Sardo Gomes [*]
RESUMO
O texto investiga o que se denomina de novo constitucionalismo lati-
no-americano, experiência que reúne as Constituições da Colômbia (1991),
da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009). Neste
sentido, inventaria traços comuns entre as referidas Cartas Constitu-
cionais e elenca singularidades trazidas por esta nova vaga de Consti-
tuições. Caminha na pergunta sobre a possibilidade de se construir
ou perceber o que se pode chamar de Direito Constitucional Comum
Latino-americano. 333
PALAVRAS-CHAVE
Constitucionalismo – América Latina – Direito Comparado.
ABSTRACT
This paper consists on the analysis of the approximate or common
characteristics between the Constitutions of Latin America, especially
the Constitutions of Colombia, Venezuela, Ecuador and Bolivia, which
present significant changes relating modern constitutional context.
This is the analysis of a phenomenon that can be understood as the
new Latin American constitutionalism, with important practical
consequences for society and with a relevant change of political and
social perspective. Although this constitutional process of rupture
develop in neighboring lands, the Brazilian legal community has not
yet looked with due importance to the study of this subject, that has
a lot to add to our constitutionalism.
KEYWORDS
Constitutionalism – Latin America – Comparative Law.
_____________________________________________________________________________
[*] Fábio Corrêa Souza de Oliveira é coordenador da pesquisa “Novas Constituições da América Latina,
sediada na Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), é
professor de Direito Constitucional da UNIRIO e de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), coordenador do Mestrado/Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
(UNESA), mestre e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-CAPES),
pesquisador visitante e pós-graduado - lato Sensu - na Faculdade de Direito de Coimbra (2004 - CAPES),
pós-doutor na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC - CNPQ), pesquisador
do CNPq; Camila Beatriz Sardo Gomes é graduanda em Direito na UNIRIO, bolsista de iniciação científica
da FAPERJ do projeto “Novas Constituições da América Latina”.
1 Introdução
Há uma novidade no constitucionalismo mundial, uma nova vaga de Cons-
tituições, as quais partilham características aproximadas ou comuns, desde o mo-
mento constituinte até os textos normativos e os contextos fáticos. Esta recente
safra constitucional, formuladora de uma virada paradigmática, é composta pela
Constituição da Colômbia, de 1991, pela Constituição da Venezuela, do ano de 1999,
pela Constituição do Equador, que data de 2008, e pela Carta Constitucional da Bo-
lívia, de 2009. Este processo constitucional vem sendo denominado de el nuevo
constitucionalismo latinoamericano (Roberto Viciano Pastor, Rubén Martínez Dal-
mau).
É uma constitucionalidade que, no melhor sentido, faz juz ao adjetivo novo,
porque vai além da mera substituição de uma Constituição por outra, com alguma
mudança secundária, sem afetar fundamentalmente a história/memória constitu-
cional. Ao invés, é um novo constitucionalismo porquanto de diferente conteúdo
de base, tradutor de uma alteração essencial, de alicerce, uma ruptura de arquétipo
político-jurídico. Realmente, um marco, divisor de águas. Propõe-se a fechar uma
porta e abrir outra. Modificação de rumos. As Constituições da Colômbia, Venezuela,
Equador e Bolívia são Constituições Revolucionárias, configurando o desenho típico,
protótipo do exercício constituinte, um constitucionalismo de rompimento. Uma
revolución constituyente, como bem retratam Roberto Viciano Pastor e Rubén Mar-
tínez Dalmau.1
Ou seja: as Constituições em pauta são revolucionárias em duplo sentido,
interligados. São decorrentes de movimentos emancipatórios, com uma radicali-
dade democrática sem precedentes, em meio a um cenário conturbado, dramático,
de embates agudos, com o levante de novos autores, antes marginalizados, desqua-
334 lificados (em rechazo das elites e sua pretensão de perpetuidade). Daí nascerem
Constituições que projetam, normativamente, uma reviravolta; não apenas sina-
lizam caminhos que convidam à aventura do ineditismo, como também fornecem
instrumentos para a andança compartilhada, dialógica, onde as direções são apon-
tadas e trilhadas participativamente.
Este constitucionalismo latino-americano é novo porque ostenta, por
exemplo, deflagração da constituinte pelo próprio povo, assembléia exclusiva, refe-
rendo para aprovação do texto. É novo porque prevê, por exemplo, iniciativa po-
pular de emenda constitucional, revocatoria del mandato, mandato (e mesmo elei-
ção direta) para o Tribunal Constitucional (e Judiciário), autoconvocação (por inicia-
tiva ciudadana) de plebiscito e referendo, imperiosidade de manifestação popular
direta para reforma da Constituição, quebra do paradigma antropocêntrico. Estes
entre vários outros arranjos da mais alta significância, alguns mencionados adiante.
Refundação.
Como sabido, a constituinte brasileira não envergou os mesmos caracteres.
Foi convocada por emenda, isto é, pelo poder constituído; assembleia congressual,
na qual tomaram assento parlamentares que não foram eleitos no pleito destinado
a formá-la (senadores com mandato em curso); desconheceu o referendo. Não hou-
ve ruptura, traumas, e sim continuísmo. Aconteceu, na expressão de Boris Fausto,
uma transição transada, conservadora. E a Carta traz esta contingência. Enfocando
a faceta processualística, o défice de mecanismos de democracia direta é flagrante.
_____________________________________________________________________________
1
VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Los processos constituyentes latino-americanos
y el nuevo paradigma constitucional. In: Revista del Instituto de Ciencias Jurídicas de Puebla, n. 25, p. 7-29,
2010, p. 17.
Em que pese toda a novidade, o novo constitucionalismo latino-americano
não ganha a devida atenção da academia jurídica nacional, que possui, com raras
exceções, os olhos vidrados na Europa e nos Estados Unidos. Ignora a vizinhança.
Parte deste demérito é fruto de um sentimento que minimiza os aludidos textos
constitucionais pela adoção de uma profecia histórica a vaticinar que estão fadados
à inefetividade (Constituições Nominais). Ora bem: se, na dimensão da normatização
da facticidade, a nova constitucionalidade é ainda uma hipótese (Viciano, Martínez),
uma tarefa comunicativa de (re)construção, é claro que as Constituições Transfor-
madoras (Viciano, Martínez) aspiram ser Constituições Reais (Lassalle).
Pode-se dizer que há por parte do maior número dos juristas brasileiros
uma postura com resquícios provinciais, coloniais, no que tange, principalmente, à
Europa e aos Estados Unidos, e uma mentalidade colonizadora perante os países
da América Latina. Não à toa os dois autores (Viciano, Martínez) que são as principais
referências no Brasil sobre o novo constitucionalismo latino-americano, sem qual-
quer prejuízo à alta qualidade das suas produções/reflexões, são Professores da
Universidade de Valência, Espanha, ambos, calha sublinhar em homenagem, aqui
utilizados como as fontes cardeais. Tal fato se deve, parcialmente, a quase falta ab-
soluta de diálogo com as academias colombiana, venezuelana, boliviana, equa-
toriana; enfim, sul-americana.
Entre outras causas que contribuem: a propaganda massiva, pelos grandes
canais de comunicação, contra, desqualificadora dos atores e/ou projetos políticos
que assumiram protagonismo nestes países. O discurso que apresenta pejorativa-
mente a nova esquerda sul-americana, o socialismo do século XXI; as personalidades,
nomeadamente, Hugo Chaves, Rafael Correia e Evo Morales. Nesta esteira, pela o-
pinião publicada, pela mídia hegemônica, aparentemente, nada há para celebrar,
nada de novidade. Ou o que existe de novo não é bom. A festa fica por conta da 335
eleição de um negro à Presidência dos Estados Unidos. Tudo, normalmente, no for-
mato de folhetim, panfletário, superficial, com os cortes da censura da imprensa li-
vre.
O presente trabalho, porém, não incorpora uma análise da conjuntura po-
lítica que permeia os textos constitucionais. Tal análise requer uma investigação
complexa, longa, que extravasa os contornos deste estudo, conquanto não o pre-
judique. O exame ora desenvolvido tem por objeto os textos constitucionais. Não
se incorre na falácia normativista: tomar o fato pela norma; ou melhor, anterior:
pelo texto normativo.
Vale notar de saída um traço comum das referidas Constituições. São todas
Constituições analíticas, programáticas, diretivas. Em um tempo onde se vaticinou
a morte da Constituição Dirigente,2 onde se tornou trivial afirmar a Constituição
brasileira como emblemática de um modelo já esgotado ou moribundo, eis que
tais Cartas sul-americanas assumem patentemente o dirigismo.3 A aposta em uma
_____________________________________________________________________________
2
OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e vida da Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010.
3
É possível estabelecer a relação, embora não obrigatória, entre Constituição Dirigente, conforme o teor
envergado pelo novo constitucionalismo latino-americano (alinhado à normatividade constitucional bra-
sileira), e a contingência fática conhecida na América Latina, países que não experimentaram o Estado So-
cial em uma dimensão mais profícua ou própria, países que, em grande escala (mais do que outros), não
transitaram pela modernidade (promessas incumpridas). Nesta abordagem, STRECK, Lenio Luiz. A con-
cretização de direitos e a validade da tese da Constituição Dirigente em países de modernidade tardia. In:
Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugal. (Orgs. António José Avelãs Nunes e Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho), Rio de Janeiro: Renovar, p. 301-371, 2004. Sem embargo da procedência da defesa de um diri-
gismo constitucional afinado a países de modernidade tardia, indispensável a construção de uma teoria
da Constituição Dirigente constitucionalmente adequada a cada país: Brasil, Colômbia, Venezuela, Equador,
Bolívia. Cf. OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e vida da Constituição Dirigente, cit.
Constituição que pretende constituir a facticidade mais rebelde (fatores reais de
poder, Lassalle), redirecionar a história, romper com uma tradição; se aposta em
um constitucionalismo forte, ambicioso, quando se proclama, em contraposição,
um diritto mite (Zagrebelsky). Investe-se em um Estado Forte entretanto muitos
têm por inescapável um Estado Fraco (Boaventura de Sousa Santos).
Dado crucial é: os textos constitucionais do chamado novo constituciona-
lismo latino-americano estão a demandar novas teorias de base. Neste quesito, im-
põe observar que boa parte da doutrina constitucional que mais circula no pen-
samento euro-americano, com apelos de universalidade, não é aplicável ao am-
biente fático-normativo que vimos a tratar. Uma nova teoria constitucional, o que
não significa, obviamente, iniciar tudo do zero. Uma nova teoria constitucional se
traduz em uma teoria constitucional peculiar, teoria de uma Constituição, sem mi-
nimizar os elos entre as quatro Cartas que compõem el nuevo constitucionalismo la-
tino-americano, suficientes a dar ensejo a uma teorética macro desta constituciona-
lidade.
O estudo que ora se leva a público tem berço em pesquisa empreendida
na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), cadastrada no Di-
retório de Grupos de Pesquisa do CNPQ e certificada pela UNIRIO, a qual conta
com apoio da FAPERJ na modalidade de bolsa de iniciação científica para a aluna
Camila Gomes, coautora deste escrito. O projeto de pesquisa, intitulado Novas Cons-
tituições da América Latina, está concluindo a sua primeira fase, que é destinada à
apreciação comparativa dos textos constitucionais da Colômbia, Venezuela, Equa-
dor e Bolívia, tendo em vista também a redação da Lei Fundamental brasileira.
2.3 Referendo
Consoante preceitua a Constituição da Colômbia, é necessário referendo
para a revogação de leis que resultaram de projetos de iniciativa popular. A décima
parte do censo eleitoral podrá solicitar ante la organización electoral a convocação
de um referendo para a revogação de uma lei. Essa lei restará revogada mediante a
aprovação de maioria simples dos votantes no referendo, desde que participem
do referendo una cuarta parte de los ciudadanos que componen el censo electoral.27
Dependendo da matéria da reforma da Carta Magna, o referendo pode ser obriga-
tório; pode ser também convocado, inclusive pelo próprio povo.28
A Constituição da Venezuela faz previsão de referendo em razão da ma-
téria: especial trascendencia nacional ou de especial trascendencia parroquial, mu-
nicipal y estadal.29 A revocatoria del mandato é outra das hipóteses que demandam
referendo. O referendo pode ser chamado pelo próprio povo.30
340 _____________________________________________________________________________
26
Art. 27, II: “Las extranjeras y los extranjeros residentes en Bolivia tienen derecho a sufragar en las elecciones
municipales, conforme a la ley, aplicando principios de reciprocidad internacional.”
27
Art. 170: “Un número de ciudadanos equivalente a la décima parte del censo electoral, podrá solicitar ante
la organización electoral la convocación de un referendo para la derogatoria de una ley. La ley quedará
derogada si así lo determina la mitad más uno de los votantes que concurran al acto de consulta, siempre y
cuando participe en éste una cuarta parte de los ciudadanos que componen el censo electoral. No procede el
referendo respecto de las leyes aprobatorias de tratados internacionales, ni de la Ley de Presupuesto, ni de
las referentes a materias fiscales o tributarias.”
28
Art. 377: “Deberán someterse a referendo las reformas constitucionales aprobadas por el Congreso, cuando
se refieran a los derechos reconocidos en el Capítulo 1 del Título II y a sus garantías, a los procedimientos de
participación popular, o al Congreso, si así lo solicita, dentro de los seis meses siguientes a la promulgación
del Acto Legislativo, un cinco por ciento de los ciudadanos que integren el censo electoral. La reforma se
entenderá derogada por el voto negativo de la mayoría de los sufragantes, siempre que en la votación hubiere
participado al menos la cuarta parte del censo electoral.” O Capítulo I do Título II é exatamente aquele que
dispõe os direitos fundamentais.
29
Art. 71: “Las materias de especial trascendencia nacional podrán ser sometidas a referendo consultivo por
iniciativa del Presidente o Presidenta de la República en Consejo de Ministros; por acuerdo de la Asamblea
Nacional, aprobado por el voto de la mayoría de sus integrantes; o a solicitud de un número no menor del
diez por ciento de los electores y electoras inscritos en el registro civil y electoral. También podrán ser
sometidas a referendo consultivo las materias de especial trascendencia parroquial, municipal y estadal. La
iniciativa le corresponde a la Junta Parroquial, al Concejo Municipal, o al Consejo Legislativo, por acuerdo de
las dos terceras partes de sus integrantes; al Alcalde o Alcaldesa, o al Gobernador o Gobernadora de Estado,
o a un número no menor del diez por ciento del total de inscritos e inscritas en la circunscripción
correspondiente, que lo soliciten.”
30
Art. 74: “Serán sometidas a referendo, para ser abrogadas total o parcialmente, las leyes cuya abrogación
fuere solicitada por iniciativa de un número no menor del diez por ciento de los electores o electoras inscritos
o inscritas en el registro civil y electoral o por el Presidente o Presidenta de la República en Consejo de Ministros.
También podrán ser sometidos a referendo abrogatorio los decretos con fuerza de ley que dicte el Presidente
o Presidenta de la República en uso de la atribución prescrita en el numeral 8 del artículo 236 de esta
Constitución, cuando fuere solicitado por un número no menor del cinco por ciento de los electores o electoras
inscritos o inscritas en el registro civil y electoral. Para la validez del referendo abrogatorio será indispensable
la concurrencia del cuarenta por ciento de los electores y electoras inscritos en el registro civil y electoral. No
podrán ser sometidas a referendo abrogatorio las leyes de presupuesto, las que establezcan o modifiquen
impuestos, las de crédito público y las de amnistía, así como aquellas que protejan, garanticen o desarrollen
los derechos humanos y las que aprueben tratados internacionales. No podrá hacerse más de un referendo
abrogatorio en un período constitucional para la misma materia.”
Nos termos da Constituição equatoriana, a consulta popular pode ter por
objeto lei ou ato administrativo. Se o Legislativo não apreciar, no prazo de até um
ano, una propuesta ciudadana de reforma constitucional, cabe convocação de con-
sulta popular. A aprovação de tratados também pode se dar mediante referendo.31
Para a adoção de uma nova Constituição é exigido o referendo.32
A Lei Fundamental da Bolívia prescreve referendo para a revogação de man-
dato. Também para incorporação de tratados na dependência da temática.33 No que
tange aos tratados, independente do assunto, o referendo pode ser solicitado direta-
mente pelos cidadãos.34 Também é previsto referendo para a conversão de um municí-
pio em autonomia indígena originária campesina.35 Qualquer reforma constitucional
exige referendo. Por fim, dispõe o art. 411: “La reforma total de la Constitución, o aquella
que afecte a sus bases fundamentales, a los derechos, deberes y garantías, o a la
primacía y reforma de la Constitución, tendrá lugar a través de una Asamblea Constituyen-
te originaria plenipotenciaria, activada por voluntad popular mediante referendo.”
_____________________________________________________________________________
42
Art. 72: “Todos los cargos y magistraturas de elección popular son revocables. Transcurrida la mitad del
período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria, un número no menor del veinte por ciento de los
electores o electoras inscritos en la correspondiente circunscripción podrá solicitar la convocatoria de un
referendo para revocar su mandato. Cuando igual o mayor número de electores y electoras que eligieron al
funcionario o funcionaria hubieren votado a favor de la revocatoria, siempre que haya concurrido al referendo
un número de electores y electoras igual o superior al veinticinco por ciento de los electores y electoras
inscritos, se considerará revocado su mandato y se procederá de inmediato a cubrir la falta absoluta conforme
a lo dispuesto en esta Constitución y la ley. La revocación del mandato para los cuerpos colegiados se realizará
de acuerdo con lo que establezca la ley. Durante el período para el cual fue elegido el funcionario o funcionaria
no podrá hacerse más de una solicitud de revocación de su mandato.”
43
Art. 105.
44
Art. 106.
45
Art. 239: “La Corte Constitucional tendrá el número impar de miembros que determine la ley. En su
integración se atenderá el criterio de designación de magistrados pertenecientes a diversas especialidades
del Derecho. Los Magistrados de la Corte Constitucional serán elegidos por el Senado de la República para
períodos individuales de ocho años, de sendas ternas que le presenten el Presidente de la República, la Corte
Suprema de Justicia y el Consejo de Estado. Los Magistrados de la Corte Constitucional no podrán ser
reelegidos.”
46
Art. 264: “Los magistrados o magistradas del Tribunal Supremo de Justicia serán elegidos por un único
período de doce años. La ley determinará el procedimiento de elección. En todo caso, podrán postularse
candidatos o candidatas ante el Comité de Postulaciones Judiciales, por iniciativa propia o por organizaciones
vinculadas con la actividad jurídica. El Comité, oída la opinión de la comunidad, efectuará una preselección
para su presentación al Poder Ciudadano, el cual efectuará una segunda preselección que será presentada a
la Asamblea Nacional, la cual efectuará una tercera preselección para la decisión definitiva. Los ciudadanos
podrán ejercer fundadamente objeciones a cualquiera de los postulados ante el Comité de Postulaciones
Judiciales, o ante la Asamblea Nacional.”
o art. 434: “Los miembros de la Corte Constitucional se designarán por uma comisión
calificadora que estará integrada por dos personas nombradas por cada una de las
funciones, Legislativa, Ejecutiva y de Transparencia y Control Social. La selección
de los miembros se realizará de entre las candidaturas presentadas por las funciones
anteriores, a través de um proceso de concurso público, con veeduría y posibilidad
de impugnación ciudadana. En la integración de la Corte se procurará la paridad
entre hombres y mujeres.”
Conforme a Constituição da Bolívia, o Tribunal Constitucional Plurinacional
é composto mediante sufrágio universal. Alguns requisitos são solicitados: a
candidatura não é indistintamente aberta.47 Garante-se a representação indígena
no Tribunal.
A primeira ação que se tem notícia no Brasil, tendo animais como sujeitos de direito, foi um Habeas Corpus
58
em favor de pássaros, em 1972, não conhecido pelo STF. De 2005 para cá, foram ajuizados três Habeas Corpus
em benefício de chimpanzés . O primeiro deles, de 2005, leading case, foi recebido pelo Judiciário da Bahia,
mas extinto em razão do falecimento da paciente, Suíça, trancafiada no zoológico de Salvador.
O preâmbulo constitucional venezuelano também assenta o compromisso
com o impulso e consolidação da integração latino-americana. A Constituição prevê
que a educação deve se pautar por una visión latinoamericana y universal, o que
reflete um olhar comum da América Latina. Veja-se o texto do art. 153: “La República
promoverá y favorecerá la integración latinoamericana y caribeña, en aras de
avanzar hacia la creación de una comunidad de naciones, defendiendo los intereses
económicos, sociales, culturales, políticos y ambientales de la región. La República
podrá suscribir tratados internacionales que conjuguen y coordinen esfuerzos para
promover el desarrollo común de sus naciones, y que aseguren el bienestar de los
pueblos y la seguridad colectiva de sus habitantes. Para estos fines, la República
podrá atribuir a organizaciones supranacionales, mediante tratados, el ejercicio de
las competencias necesarias para llevar a cabo estos procesos de integración. Den-
tro de las políticas de integración y unión con Latinoamérica y el Caribe, la República
privilegiará relaciones con Iberoamérica, procurando sea una política común de
toda nuestra América Latina. Las normas que se adopten en el marco de los acuer-
dos de integración serán consideradas parte integrante del ordenamiento legal vi-
gente y de aplicación directa y preferente a la legislación interna.” Até mesmo con-
sidera a adoção de uma moneda común en el marco de la integración latinoame-
ricana (art. 318).
A Constituição do Equador, igualmente desde o preâmbulo, assume o com-
prometimento com a integração latino-americana (tb. art. 276, 5). A integración
política, cultural y económica de la región andina, de América del Sur y de Latino-
américa é prioridade do Equador (art. 416, 11). A Carta reserva um capítulo específico
à integração latino-americana. Veja-se trecho do art. 423: “La integración, en espe-
cial con los países de Latinoamérica y el Caribe será un objetivo estratégico del Es-
348 tado. En todas las instancias y procesos de integración, el Estado ecuatoriano se
comprometerá a: 1. Impulsar la integración económica, equitativa, solidaria y com-
plementaria; la unidad productiva, financiera y monetaria; la adopción de una po-
lítica económica internacional común (...) 4. Proteger y promover la diversidad cul-
tural, el ejercicio de la interculturalidad, la conservación del patrimonio cultural y la
memoria común de América Latina y del Caribe (...) 7. Favorecer la consolidación
de organizaciones de carácter supranacional conformadas por Estados de América
Latina y del Caribe, así como la suscripción de tratados y otros instrumentos inter-
nacionales de integración regional.”59
_____________________________________________________________________________
59
O texto completo do art. 423: “La integración, en especial con los países de Latinoamérica y el Caribe será un
objetivo estratégico del Estado. En todas las instancias y procesos de integración, el Estado ecuatoriano se
comprometerá a: 1. Impulsar la integración económica, equitativa, solidaria y complementaria; la unidad
productiva, financiera y monetaria; la adopción de una política económica internacional común; el fomento de
políticas de compensación para superar las asimetrías regionales; y el comercio regional, con énfasis en bienes
de alto valor agregado. 2. Promover estrategias conjuntas de manejo sustentable del patrimônio natural, en
especial la regulación de la actividad extractiva; la cooperación y complementación energética sustentable; la
conservación de la biodiversidad, los ecosistemas y el agua; la investigación, el desarrollo científico y el
intercambio de conocimiento y tecnología; y la implementación de estrategias coordinadas de soberanía
alimentaria. 3. Fortalecer la armonización de las legislaciones nacionales con énfasis en los derechos y regímenes
laboral, migratorio, fronterizo, ambiental, social, educativo, cultural y de salud pública, de acuerdo con los
principios de progresividad y de no regresividad. 4. Proteger y promover la diversidad cultural, el ejercicio de la
interculturalidad, la conservación del patrimonio cultural y la memoria común de América Latina y del Caribe,
así como la creación de redes de comunicación y de un mercado común para las industrias culturales. 5. Propiciar
la creación de la ciudadanía latinoamericana y caribeña; la libre circulación de las personas en la región; la
implementación de políticas que garanticen los derechos humanos de las poblaciones de frontera y de los
refugiados; y la protección común de los latinoamericanos y caribenhos en los países de tránsito y destino
migratorio. 6. Impulsar una política común de defensa que consolide una alianza estratégica para fortalecer la
soberanía de los países y de la región. 7. Favorecer la consolidación de organizaciones de carácter supranacional
conformadas por Estados de América Latina y del Caribe, así como la suscripción de tratados y otros instrumentos
internacionales de integración regional.”
Por sua vez, a Carta Constitucional da Bolívia assume também a promoção
da integración latinoamericana (art. 265). Confere preferência no que tange à
obtenção da nacionalidade, conforme o art. 142, III: “El tiempo de residencia para
la obtención de la nacionalidad podrá ser modificado cuando existan, a título de
reciprocidad, convenios con otros estados, prioritariamente latinoamericanos.”
Além de prescrever que os representantes bolivianos nos parlamentos
supranacionais são eleitos pelo sufrágio universal (art. 266).
Estes comandos constitucionais, sem esquecer outras Constituições além
das pertencentes ao novo constitucionalismo e da brasileira, demonstram o ímpeto,
o comprometimento no sentido de incrementar a formação do que pode ser
chamado de Direito Constitucional Comum Latino-Americano. Há uma aposta neste
viés, ilustrada também pela UNASUL, União das Nações Sul-Americanas, formada
pelos dozes países da América do Sul, constituída em Brasília no ano de 2008. Em
fragmento do preâmbulo do Tratado da UNASUL: “Apoiadas na história com-
partilhada e solidária de nossas nações, multiétnicas, plurilíngües e multiculturais,
que lutaram pela emancipação e unidade sul-americanas, honrando o pensamento
daqueles que forjaram nossa independência e liberdade em favor dessa união e da
construção de um futuro comum; (...) Afirmando sua determinação de construir
uma identidade e cidadania sul-americanas e desenvolver um espaço regional inte-
grado no âmbito político, econômico, social, cultural, ambiental, energético e de
infra-estrutura, para contribuir para o fortalecimento da unidade da América Latina
e Caribe; (...)”
Ademais, sublinhe-se, são Constituições Dirigentes, Analíticas, que pres-
crevem um Estado Social, Protagonista. Comparte-se um regime de direitos funda-
mentais, meios e objetivos comuns. É de ver que o Direito Constitucional Comum
Latino-Americano é ainda mais intenso no conjunto do novo constitucionalismo la- 349
tino-americano, pois que Constituições ainda mais próximas. É algo em construção,
com imensas potencialidades, em um caminho promissor.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A complexidade, riqueza, do novo constitucionalismo latino-americano é
enorme, instigante. Este estudo procurou tecer linhas introdutórias, tendo por es-
teio, sobretudo, os textos constitucionais dos países que o compõem.
Não se exime de assumir o encantamento com a normatividade anunciada
pelas citadas textualidades constitucionais. Há uma gigantesca potência sendo des-
pertada, incorporada pelas redações constitucionais. Aqui, perto, na vizinhança,
com uma proposta de ação conjunta. Não reparar neste fenômeno, nesta revolução,
é cegueira, é não olhar para o novo, é isolacionismo, na contramão de todo um
processo que se desenha e que conta com a adesão manifesta do Brasil, inclusive
por ditame constitucional expresso.
O constitucionalismo brasileiro tem muito a ganhar com o novo constitu-
cionalismo latino-americano. A sua renovação, na linha, v.g., de instrumentos de
democracia direta, da mudança de paradigma da relação humano–natureza/animal
humano–animal não-humano, é de todo salutar, é mesmo imprescindível.
Entretanto a doutrina brasileira dispensa esforços para a elaboração de
teorias acerca da democracia, é certo que há falta de atenção à operacionalização
concreta da cidadania deliberativa.60 O texto completo do art. 423: “La integración,
_____________________________________________________________________________
60
No sentido de minimizar esta lacuna, OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e vida da Constituição
Dirigente, cit., p. 424-439.
en especial con los países de Latinoamérica y el Caribe será un objetivo estratégico
del Estado. En todas las instancias y procesos de integración, el Estado ecuatoriano
se comprometerá a: 1. Impulsar la integración económica, equitativa, solidaria y
complementaria; la unidad productiva, financiera y monetaria; la adopción de una
política económica internacional común; el fomento de políticas de compensación
para superar las asimetrías regionales; y el comercio regional, con énfasis en bienes
de alto valor agregado. 2. Promover estrategias conjuntas de manejo sustentable
del patrimônio natural, en especial la regulación de la actividad extractiva; la coo-
peración y complementación energética sustentable; la conservación de la bio-
diversidad, los ecosistemas y el agua; la investigación, el desarrollo científico y el
intercambio de conocimiento y tecnología; y la implementación de estrategias coor-
dinadas de soberanía alimentaria. 3. Fortalecer la armonización de las legislaciones
nacionales con énfasis en los derechos y regímenes laboral, migratorio, fronterizo,
ambiental, social, educativo, cultural y de salud pública, de acuerdo con los principios
de progresividad y de no regresividad. 4. Proteger y promover la diversidad cultural,
el ejercicio de la interculturalidad, la conservación del patrimonio cultural y la me-
moria común de América Latina y del Caribe, así como la creación de redes de co-
municación y de un mercado común para las industrias culturales. 5. Propiciar la
creación de la ciudadanía latinoamericana y caribeña; la libre circulación de las per-
sonas en la región; la implementación de políticas que garanticen los derechos hu-
manos de las poblaciones de frontera y de los refugiados; y la protección común
de los latinoamericanos y caribenhos en los países de tránsito y destino migratorio.
6. Impulsar una política común de defensa que consolide una alianza estratégica
para fortalecer la soberanía de los países y de la región. 7. Favorecer la consolidación
de organizaciones de carácter supranacional conformadas por Estados de América
350 Latina y del Caribe, así como la suscripción de tratados y otros instrumentos in-
ternacionales de integración regional.”
Por ex.: a adoção de referendo para aprovação de emenda à Constituição
tem efeito impactante na jurisdição constitucional. Ora, uma emenda referendada,
notadamente na dependência do índice de aprovação popular, indica, a princípio,
uma posição contida do Judiciário. Uma deferência não somente ao Parlamento,
uma deferência principalmente ao povo. Ou seja: diálogo institucional e diálogo
social simultaneamente.
Viva a novidade que vem do Sul! Um resgate em curso. Viva o novo cons-
titucionalismo latino-americano, que é novo no mundo.
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