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Itinerâncias

Percursos e Representações
da Pós-colonialidade
Elena Joana Andreia Marie-Manuelle
BRUGIONI PASSOS SARABANDO SILVA

Journeys
Postcolonial Trajectories
and Representations
DUAS MENINAS BRANCAS*
Omar Ribeiro Thomaz

Para Rita Chaves

1. ISABEL A E ISABELL A

Não precisamos ler muitas páginas de seu Caderno para que Isabela Figuei-
redo afirme, de forma contundente, “Lourenço Marques, na década de 60
e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a
caril” (Figueiredo, 2009: 23). A lembrança da menina – Isabela refere-se
a sua primeira infância e ao período que antecede a adolescência, tendo
deixado Moçambique com cerca de 12 anos – não deixa de surpreender em
meio ao tom predominante de boa parte da narrativa portuguesa contem-
porânea sobre as últimas décadas coloniais. Romances, memórias e ensaios
fotográficos, em geral sobre Angola (a maioria) e Moçambique, mas tam-
bém sobre Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, vêm recupe-
rando as últimas décadas de presença colonial portuguesa no continente
africano e os tempos da descolonização – após um período relativamente
longo de silêncio público sobre o colonialismo português.
No que diz respeito à narrativa memorialística, abundam os títulos fran-
camente nostálgicos. Fala-se da tenacidade portuguesa que acompanhou o
crescimento de cidades como Luanda e Lourenço Marques, representadas
como centros urbanos luminosos e alegres, capitais de colônias percebidas

* Este texto jamais teria sido concluído sem o apoio e a saudável insistência de minhas amigas
Elena Brugioni e, especialmente, Joana Passos, a quem agradeço. Rita Chaves, amiga e profes-
sora, é, aqui, inspiração.
406 OMAR RIBEIRO THOMAZ

como terra de passado e de destino portugueses; coleções de cartões postais


e albuns de família registram o patrimônio arquitetônico espalhado pelas
colônias; narrativas desgarradas recuperam a tragédia de uma descoloni-
zação que supôs o êxodo de boa parte de portugueses, luso-descendentes e
brancos em geral, que não encontraram, ou não quiseram encontrar, lugar
nos novos países que se formavam.
Evidentemente, a profusão de memórias e romances nostálgicos dos
tempos coloniais convivem com toda uma literatura – portuguesa e afri-
cana – onde a presença portuguesa é bem menos edificante. Ganham des-
taque os anos de guerra e mesmo um cotidiano no qual as relações entre
brancos e negros (e mulatos e indianos) distanciam-se de qualquer fantasia
luso-tropical. Sem fazer um balanço exaustivo ou sistemático, podemos
afirmar sem medo que os distintos blocos narrativos não dialogam entre si
e que aqueles de tom nostálgico predominam, ocupando as listas de best-
sellers das livrarias portuguesas.
Em meio a esta profusão, a narrativa de Isabela Figueiredo surpreende
e inquieta. No que tange a Moçambique, ou melhor, a Lourenço Marques,
suas lembranças nada têm a ver com nostalgia ou celebração. À memória
do pai se sobrepõe, ou se impõe, aquela da menina sobre o dia-a-dia da
capital de Moçambique na última década colonial e no ano que sucede os
acordos de Lusaka de 7 de setembro de 1974[1]. A afirmação inicial de que
Lourenço Marques era um grande campo de concentração à beira índico
deve ser levada muito à sério e indica que algo não anda bem na memória
que se quer hegemônica sobre as colônias.
Alguns anos antes da publicação, outra Isabella também publicou suas
memórias – já não de infância, mas da adolescência passada entre o 25
de abril de 1974 e os meses que sucederam a independência de Moçambi-
que (Oliveira, 2002). Relato vivo e entusiasmado, e certamente nostálgico,
a narrativa que recupera a experiência da jovem adolescente parece não se
cruzar com os da primeira Isabela. Em suas memórias de adolescente trans-
parecem a saudade, mas não da colônia (pelo menos não de forma explícita,
como veremos), e sim da festa que sucedeu o 25 de abril e do entusiasmo
que cercou pelo menos alguns dos brancos diante da chegada da FRELIMO
a Lourenço Marques.
Trata-se de relatos de duas meninas brancas que, como brancas, recupe-
ram experiências absolutamente verossímeis e no entanto destoantes do pen-

1 No dia 7 de setembro de 1974 foram assinados em Lusaka, capital da Zâmbia, o acordo entre os
representantes do governo português e o representante da FRELIMO, Samora Machel, os quais
definiam os termos da transferência de poderes e a independência de Moçambique.
DUAS MENINAS BRANCAS 407

samento hegemônico luso-tropical em torno do colonialismo português[2]. E


é sobre estas experiências que nos deteremos neste ensaio, tentando avançar
sobre o lugar que estas narrativas ocupam no hercúleo esforço de desmontar
o que parece ser uma mescla de amnésia coletiva e cinismo.
Não deixa de ser curioso que sejam as lembranças de duas meninas que
nos permitam uma aproximação ao período de intensas transformações que
caracterizou Moçambique entre o fim dos anos 1960 e a primeira metade
dos anos 1970. Ao contrário de boa parte da narrativa portuguesa sobre o
período, presa numa nostalgia inustentável quando temos em conta não ape-
nas a natureza do sistema colonial ou do fascismo salazarista que sobrevive à
morte do ditador, os testemunhos das meninas – muito especialmente, como
veremos, o de Isabela Figueiredo – apresentam fragmentos de um momento
decisivo do processo formativo de Moçambique. Obras que se destacam da
mesma forma que o relato de outra menina que, há muito tempo, refletiu
com a vivacidade e indisciplina própria da infância, o momento da transição
da mão-de-obra escravista para o trabalho livre na Minas Gerais brasileira de
fins do século XIX. De certa forma, os relatos têm algum parentesco com o
Minha vida de menina, de Helena Morley, tal como é lido pelo crítico Roberto
Schwarz (1997). E pelo menos um deles não apenas revela grande literatura
como abdica de uma inocência inaceitável naquelas paragens africanas.
Antes de seguir adiante, faremos uma breve aproximação às comunida-
des brancas de Moçambique nas décadas imediatamente anteriores aos dias
do fim do colonialismo português, fazendo uso, sempre que possível, dos
relatos das duas meninas brancas.

2. BRANCOS NO PLURAL

O uso do plural tem a clara intenção de salientar que estamos longe de uma
comunidade homogênea. Se é verdade que o que os definia era a possibi-
lidade de reprodução de uma situação de privilégio no interior do sistema
colonial, nem todos compartilhavam dos mesmos privilégios, e a adesão
ou proximidade ao pólo europeu não se dava para todos sem a necessidade
prévia de negociações muitas vezes francamente sofridas.
No topo, encontramos os metropolitanos comprometidos com o fun-
cionamento do Estado colonial e com os negócios lucrativos que atrela-
vam Moçambique aos países da região. Tratava-se de um grupo altamente
2 Por pensamento luso-tropical entendo, neste texto, aquele que supõe a excepcionalidade da
presença portuguesa em terras africanas, imaginando a existência de certa harmonia existente
entre os diferentes grupos raciais.
408 OMAR RIBEIRO THOMAZ

privilegiado já na metrópole e que via em Moçambique a possibilidade de


se engajar num estilo de vida caracterizado como colonial, marcado pela
disponibilidade de empregados domésticos e por uma belle vie que difi-
cilmente teriam em Portugal. Cosmopolitas, eram frequentes as viagens
à África do Sul e à Rodésia, países para onde muitas vezes enviavam os
filhos para estudar. O conhecimento do inglês era corrente, bem como o
domínio de práticas vinculadas às finanças e à administração de grandes
companhias. Tratava-se, em suma, de um grupo altamente sofisticado que
olhava com desdém para uma metrópole acanhada e empobrecida e cujo
quotidiano era entrecortado por convívios em clubes e hotéis, temporadas
de safaris e caça esportiva, uísque e gim tonic no fim da tarde.
O grupo privilegiado metropolitano, atrelado à burocracia da colônia
ou às imensas oportunidades econômicas abertas em Moçambique cresceu
enormemente a partir de início dos anos 1960. Absolutamente comprome-
tidos com o sistema colonial, não foram raros os indivíduos deste grupo
que procuraram uma alternativa para Moçambique que implicava numa
ruptura progressiva com uma metrópole sufocante. As memórias de Ade-
lino Serras Pires (Serras Pires & Capstick, 2001), que se mudou com os pais
para Moçambique no final dos anos 1930, é representativa de um grupo
que efetivamente procurou se distanciar da metrópole sem, contudo, e mal-
grado suas convicções na direção contrária, se aproximar efetivamente da
África que se gestava no mato e no caniço, a África dos negros[3]. Adelino
representa aqueles que olhavam com inveja para a pujança econômica da
África do Sul e da Rodésia e que chegaram efetivamente a imaginar uma
independência “branca” para Moçambique que, em meio a fantasias luso-
tropicais, devia garantir a reprodução do status quo dos colonos e euro-
descendentes e do regime de facto de segregação racial[4].

3 Não pretendo recuperar aqui o caráter polêmico deste personagem no que diz respeito ao seu
envolvimento com a RENAMO em meio à guerra civil moçambicana. Fique registrado que este
compromisso é absolutamente coerente com sua percepção claramente colonialista da África
em geral e de Moçambique em particular.
4 No interior deste grupo destaca-se, sem sombra de dúvida a figura de Jorge Jardim, a quem
voltaremos a referir mais adiante. Absolutamente comprometido com o colonial-fascismo de
Salazar, Jardim chegou a combater e matar em nome de Portugal em Angola, no Estado da Índia
Portuguesa e em Moçambique, e chegou mesmo a ser uma espécie de liderança para aqueles
que imaginavam uma independência branca em Moçambique. José Luís Cabaço faz uma aná-
lise extraordinária da figura e do projeto de Jorge Jardim (Cabaço, 2009). Sobre Jardim, ver tam-
bém José Freire Antunes (1996). Jorge Jardim nos deixou ainda um texto-depoimento, no qual
recupera não apenas seu projeto como nos apresenta sua visão do processo de independência
de Moçambique (Jardim, 1976).
DUAS MENINAS BRANCAS 409

O relato do marmanjo Adelino pode ser um bom contraponto ao das


meninas. Para Adelino, os problemas de Moçambique colonial estavam
longe de ser os das relações entre brancos e negros, percebidas como adequa-
das e distantes de qualquer forma de segregação pelo caçador[5]. Os grandes
problemas seriam os entraves impostos por uma metrópole distante e des-
conhecedora das coisas e das gentes da terra. Moçambique deveria ser entre-
gue a eles, aos brancos ali estabelecidos, responsáveis pela construção de um
país tão dinâmico como a Rodésia – onde Adelino estudou e que chegou a
ser percebida por ele como sua segunda pátria – ou como a África do Sul,
país que admirava[6]. No fundo, para Adelino as virtudes de Moçambique
estariam associadas à capacidade única dos lusitanos de manter os negros
trabalhando e os brancos mandando sem um sistema legal de segregação
racial. Para ele, o trabalho obrigatório não era um problema em si, mas sim
os possíveis abusos[7] e em suas memórias, é importante dizer, fica claro o
lugar que cada um ocupava na cena colonial e que deveria ser mantido.
Numa página ele nos fala do ambiente multirraccial existente em
Moçambique:

A escola local era como uma segunda casa, onde nos sentíamos bem, que era
inteiramente multirracial e onde aprendi ao lado das filhas dos “assimilados”
negros, os negros educados, bem como dos filhos da relativamente grande
população de mulatos e de indianos de origem goesa. (...) Não me recordo de
ter qualquer consciência das diferenças de cor enquanto criança, e não me lem-
bro de nenhuns incidentes raciais graves durante minha juventude em Moçam-
bique. Isso viria a acontecer mais tarde, sob a forma de um vírus estrangeiro
destinado a contaminar e destruir. (...) Tínhamos uma sociedade de brandos
costumes, racialmente mista e tolerante. (Pires & Capstick, 2001: 36)

5 O safári de caça grossa constituía um dos atrativos do mundo colonial dos brancos distribuídos
entre as colônias inglesas, francesas, portuguesas e belgas. A caça parecia conferir nobreza a
brancos que, supostamente, se enfrentavam com as feras. No que diz respeito ao império colo-
nial português, a obra de Henrique Galvão em colaboração com Freitas Cruz e António Mon-
tês, é significativa do lugar que deveria ter a caça, sobretudo nos grandes territórios de Angola
e Moçambique (Galvão, 1943-1945).
6 As reflexões de Avelino traduzem a tensão constitutiva do próprio imperialismo contempo-
râneo: aquela que opunha os administradores coloniais e colonos aos legisladores e parte da
intelectualidade e classe política situadas na metrópole. Tal tensão se reproduz em todos os con-
textos coloniais africanos, e ganha sua máxima expressão no interior do império britânico com
a Declaração Unilateral de Independência da Rodésia de Ian Smith em 1965. Sobre a oposição
interna ao pólo colonizador, as páginas de Hannah Arendt sobre o imperialismo são esclarece-
doras (Arednt, 1990: 161 e seguintes).
7 “Geri uma força de cerca de 800 voluntários recrutados entre os povos Nungwe, numa altura
em que o sistema de trabalho obrigatório era amplamente utilizado e deu, infelizmente, origem
a muitos abusos” (Pires & Capstick, 2001: 51)
410 OMAR RIBEIRO THOMAZ

Para, na seguinte, fazer uma breve menção àqueles que realmente traba-
lhavam:

Éramos uma família grande e feliz, o meu pai transformara-se num homem
de negócios de sucesso e a nossa casa estava aberta a toda a gente. (...) Éramos
uma família pioneira e tivemos a distinção de sermos os primeiros, em Tete, a
importar colchões de molas e um frigorífico. Em 1936, quando lá chegamos,
não havia água corrente. Os carregadores da água levavam-na todos os dias para
a cidade a partir do Zambeze, em latas de 20 litros equilibradas sobre os ombros.
(Pires & Capstick, 2001: 37; grifos meus)

Da sua perspectiva, o fato dele e sua família serem os pioneiros (brancos)


que aguardavam a fila de carregadores de latas de água (negros) – que não têm
nome – em nada compromete a multirracialidade lusa em Moçambique. De
fato, Moçambique era (e é) multirracial. Mas no período colonial esta multir-
racialidade se reproduzia em meio a uma cruel hierarquia, à segregação insti-
tucional e espacial e ao trabalho não remunerado da grande massa nativa.
As memórias do marmanjo Adelino em nada têm a ver, como veremos,
com as das duas meninas. E se as memórias das meninas parecem se des-
tacar em meio à profusão narrativa existente, as de Adelino dialogam não
apenas com aquela predominante em determinados círculos em Portugal,
mas também com uma mediocre tradição de literatura colonial[8]. Na recu-
peração da sua experiência em Moçambique, Adelino acaba por dialogar
com a literatura de autores como Henrique Galvão[9] que, no auge do seu
colonialismo, se fascinava com a caça grossa, a natureza selvagem, a bon-
dade dos pretos e, sobretudo, com o seu próprio protagonismo: este caráter
auto-referente mostrar-se-á fatal, pois nada parecia preparar boa parte da
fina flor da elite colonial para os ventos que se aproximavam[10].

8 Sobre a literatura colonial em Moçambique, ver Noa (2002). O texto de Adelino dialoga clara-
mente com aquelas fases da literatura colonial definidas por Noa como “exótica” (Noa, 2002:
56-61) e “doutrinária” (idem: 61-67). Em ambas, o narrador (português) escreve para um
público português e está absolutamente encantado com o seu protagonismo.
9 Sobre a literatura de Henrique Galvão ver (Thomaz, 2002).
10 Rita Chaves chama a atenção para alguns aspectos desta literatura colonial que constitui o inter-
locutor anacrônico das memórias de Adelino Torres Pires (e de outros tantos), entre os quais
destaco: o caráter grandioso da terra a ser conquistada, a conferir grandiosidade à presença
portuguesa na África e a sua ação, conectando o presente com o período das grandes nave-
gações e, nas palavras de Rita Chaves, “ a exterioridade dos pontos de vista, uma vez que o
sentido da experiência que informa certos narradores configura-se como a projeção de uma
experiência externa à identidade do universo a ser captado” (Chaves, 2005: 292). Mas adiante,
a autora revela uma das características fundamentais da literatura colonial portuguesa, que é
a sua dificuldade com a própria incorporação do exótico: “trata-se de um conjunto que não
DUAS MENINAS BRANCAS 411

Seria injusto se não lembrássemos que do interior deste grupo altamente


sofisticado surgiram vozes dissonantes, uma minoria crítica não apenas ao
autoritarismo português, mas crítica também de sua própria situação de
privilégio. Vozes que percebiam os ventos de mudança em curso no conti-
nente africano e que revelavam o propósito de alguns de se transformarem
em sujeitos ativos do processo, lado a lado ao crescente número de africanos
que se engajava nos movimentos de libertação nacional. Metropolitanos
que encontraram em Moçambique um cenário favorável a uma formação
mais relaxada e enriquecedora, alguns poucos chegaram a se engajar vis-
ceralmente ao processo de libertação nacional, outros acabaram por con-
tribuir decisivamente com quadros de alta qualidade no Portugal que se
democratizaria a marcha forçada após o 25 de abril de 1974[11].
Gozando sem dúvida da mesma possibilidade de reprodução dos privi-
légios, encontramos os naturais, brancos nascidos em Moçambique, muitos
dos quais de segunda ou terceira geração. Algumas famílias teriam se esta-
belecido no país no início do século XX, outras nos anos que sucederam
a segunda guerra mundial, criando em terra africana sua descendência.
Moçambique foi o território de ascensão social acompanhada muitas vezes
de uma ruptura com seu passado metropolitano, distanciando-se de ramos
da família que permaneceram na metrópole ou se dirigiram para o Brasil
ou Angola. Se não possuíam o mesmo status que os metropolitanos que
chegaram a Moçambique ao longo dos anos 1960, a eles se associavam e
não chegaram a configurar um pensamento nativista sistemático. A vio-
lência do sistema colonial, o trabalho forçado e as formas compulsórias de
contrato provocavam reações contraditórias e pelo menos alguns chegaram
a se revelar críticos ferrenhos do colonialismo português, ao lado de uma
esquerda metropolitana estabelecida no país[12].

consegue dissimular a enorme dificuldade de ver o outro” (idem: 294). Assim são as memórias
de Adelino: quanto mais fala dos pretos, mais deles se distancia, pois eles não estão ali, mas são
imagens acachapadas pelo seu próprio protagonismo.
11 Entre os Democratas de Moçambique, encontramos alguns pertencentes à elite metropolitana
colonial, como Almeida Santos – que, após desempenhar um papel de destaque na oposição ao
colonial-fascismo, assume o Ministério da Coordenação Inter-territorial, responsável por levar
adiante um programa de descolonização. Sobre sua atuação como ministro, Almeida Santos
deixou um importante relato (Almeida Santos, 1975).
12 Alguns naturais, parte da elite colonial, como José Luis Cabaço e Rui Baltazar, ficaram moçam-
bicanos e desempenharam um papel de protagonismo quer no período de transição, quer no
próprio processo de fundação e consolidação das instituições nacionais ligadas ao Estado da
FRELIMO.
412 OMAR RIBEIRO THOMAZ

É deste grupo que faz parte a menina Isabella Oliveira. Filha de naturais
de Moçambique, seu avô materno era um homem da Zambézia[13] e seu
distanciamento com os oriundos da metrópole fica claro em mais de uma
ocasião, ao tempo em que procurava se diferenciar quer dos brancos ricos
metropolitanos, quer dos brancos pobres que chegavam de Portugal.

Éramos uns estranhos primatas (tipo nem carne/nem peixe), concluo, olhando
para os usos e costumes do grupo social no seio do qual cresci: racistas para os
“pretos”, porque assim nos adivinham mais estranhos privilégios, e racistas para
os “parolos da Metrópole”, como chamávamos quer à corja que por lá aparecia
para (se) governar (cheia de hábitos fechados e de uma moral hiperconser-
vadora face os nossos gestos extrovertidos e liberais) quer aos coitados dos
explorados das berças metropolitanas, a quem o governo de Lisboa (de boca)
oferecia mundos e fundos, a troco de, sobretudo depois da guerra colonial
começar, lhe irem povoar os colonatos (como o dos arrozais do Limpopo, ver-
dadeiro paraíso de água e mosquitos) para os quais não tinham sido prepara-
dos, o que os trazia infelizes, descarregando eles, por seu lado, nas populações
locais (a quem o regime roubava progressivamente as melhores terras) todo o
seu ódio. (Oliveira, 2002: 40)

Não nos enganemos, ou melhor, não nos engane, Isabella: o distancia-


mento com pelo menos parte dos metropolitanos era meramente simbólico.
Se é fato que em sua escola não estudavam os filhos dos pobres que chega-
vam da metrópole – os que foram para o Colonato do Limpopo, os filhos
dos que viviam no Alto-Maé ou dos poucos cantineiros dos subúrbios de
Lourenço Marques -, era na escola e na vida social que Isabella se encon-
trava com os filhos da alta burguesia metropolitana, alguns dos quais, como
ela afirma mais de uma vez, “portugueses, mas porreiros”. Em todo o caso,
se alguns metropolitanos pareciam desprezar os naturais fazendo valer o
seu capital de portugalidade, os naturais debochavam daqueles que chega-
vam de uma metrópole acanhada, triste, escura e aparentemente paralisada
no tempo em moral e bons costumes. Tudo leva a crer que em Lourenço
Marques os brancos podiam ter uma vida mais solta e despojada, alegre
enfim. Estamos diante de jovens que cresceram tendo acesso à coca-cola –
bebida expressamente proibida por Salazar no Portugal metropolitano.

13 “Antes, sabia-o pelos meus criados, nós éramos os europeus e eles os africanos. Isto, claro, na
presença do grupo da outra cor, pois, nas costas, os colectivos tratavam-se respectivamente por
‘brancos’ e ‘pretos’. Que raio de européia era eu?, interrogava-me na minha infância, já que meus
pais tinham nascido em Moçambique e eu nunca pusera, sequer, os pés em Lisboa” (Oliveira,
2002: 38-39).
DUAS MENINAS BRANCAS 413

Metropolitanos da fina flor da elite e naturais foram os principais bene-


ficiários da modernização que caracterizou o tardo-colonialismo portu-
guês em Moçambique sobretudo a partir do início dos anos 1960. Parte
das liberdades existentes em cidades como Lourenço Marques ou Beira os
favorecia diretamente, bem como a institucionalização do ensino superior
no país a partir de 1962. Ao contrário do ocorrido nas colônias e proteto-
rados britânicos, os estudos técnicos e superiores em Moçambique pouco
contribuíram para a formação de uma elite nativa e foram dirigidos para os
filhos das boas famílias de metropolitanos e naturais, já não obrigados a se
deslocarem à metrópole, à África do Sul ou à Rodésia para prosseguir seus
estudos[14].
Ao lado destes dois grupos temos os que fugiam da pobreza da metró-
pole. Da mesma forma que milhares de portugueses historicamente se
dirigiam ao Brasil e a outros países da América e, a partir dos anos 1950,
a França e outros países da Europa Ocidental, um grupo significativo se
dirigiu às colônias, em particular a Angola, mas também a Moçambique (e
África do Sul[15]). E aqui o colono se confunde com o migrante. Responsá-
veis por trabalhos técnicos de baixa remuneração, ou mesmo dedicando-se
a atividades agrícolas ou ao trabalho nos caminhos-de-ferro, sua situação
era de evidente privilégio diante da massa nativa. A possibilidade de dispor
de empregados domésticos não se restringia, assim, à elite colonial, e, algo
impensável na metrópole, os mais baixos quadros brancos podiam exercitar
o seu alto tom de voz chamando senhores de rapazes, o boy das colônias
portuguesas.
É no interior deste grupo que encontramos a outra menina, Isabela
Figueiredo. Seu relato, como veremos, não apenas pretende exorcizar suas
memórias coloniais mas, sobretudo, e de forma indissociável, a memória de
seu pai. Mas quem era o pai de Isabela? Um eletricista. Na metrópole estaria
condenado a uma vida francamente limitada, mas não em Moçambique.
E por que? A menina percebe, se perturba e carrega a perturbação para

14 Vale lembrar que, quando do abandono de Moçambique sobretudo entre 1974 e 1976 e seu
retorno ou ida a Portugal ou para outros países como o Brasil ou os Estados Unidos, o capital
simbólico e cultural familar destes grupos lhes garantiu a possibilidade de ocupação de cargos de
destaque, num processo de dispersão que ainda deve ser objeto de um estudo sociológico minu-
cioso. Saliente-se ainda que parte da elite intelectual portuguesa contemporânea é oriunda de
Moçambique e Angola e, curiosamente, ostenta esta origem como uma marca diferenciadora.
15 Uma quantidade significativa de portugueses pobres originários particularmente da ilha da
Madeira se dirigiu para a África do Sul. Tratava-se de um grupo de migrantes sobre quem,
na dura África do Sul do apartheid, muitas vezes pairava a dúvida quanto ao seu grupo racial
(Toffoli, 2005).
414 OMAR RIBEIRO THOMAZ

o resto de sua vida: na África o eletricista era protagonista. Não lhe cabia
eletrificar a cidade, mas mandar nos pretos para que o fizessem. E mandava,
aos berros, como todos os demais brancos. E se o trabalho era bem feito,
poderiam ser devidamente recompensados. Caso contrário, seriam vítimas
de bofetadas e safanões de um eletricista convertido em protagonista de
alguma coisa.

Gostava de ver ali os pretos do meu pai. Todos juntos pareciam muitos. (...)
A certa altura, o meu pai começava a chamá-los, não sei porque ordem. Podia
ser a da recolha que fazia, às segundas de manhã, nas bombas do Xipamanine,
ou ao calha. O procedimento era simples. Os negros iam à sala, e o meu pai
entregava-lhes o dinheiro. Às vezes eles contavam e reclamavam. O meu pai
gritava-lhes que nessa semana tinham estragado um cabo, ou chegado tarde
ou sornado ou mostrado má cara ou era só porque lhe apetecia castigá-los por
qualquer coisa que tinha metido na cabeça. Não sei, tudo era possível. Para
além de ter mau gênio nestas coisas, tinha os seus preferidos, e aos seus prefe-
ridos pagava sempre o acordado sem descontos. Depois havia os mais novos,
recém-chegados, ou aqueles em quem meu pai não confiava. E com esses havia
muitas vezes milando. Ainda não tinham percebido as regras, que eram só
duas: receber e calar. (Figueiredo, 2010: 40-41)

Essa massa de portugueses, como o pai de Isabela, alimentava os baixos


quadros da burocracia e as necessidades dos setores de serviços e turismo
que se expandiam, mas não só: muitos chegaram a se estabelecer nos colo-
natos e a trabalhar a terra. Outros eram os maquinistas, técnicos não tão
especializados da indústria de transformação que passa a existir em centros
urbanos como Lourenço Marques ou Beira. Seus privilégios, diretamente
vinculados à exploração da massa nativa e a censura imperante, os trans-
formara num grupo que, se nem sempre estava afinado com os desígnios da
metrópole, dificilmente se distanciava de seu compromisso original com o
colonial fascismo português. Para a esmagadora maioria, era inimaginável a
idéia de um negro vir a ocupar uma posição de mando ou poder e a guerra
no norte era percebida como a atuação de grupos terroristas que deveriam
ser eliminados. Tratava-se, enfim, de um grupo, certamente diverso, mas
cuja reprodução do privilégio se associava à humilhação quotidiana dos
chamados indígenas, à desconfiança do elemento de origem asiática e ao
medo próximo ao terror de um negro transformado em sujeito político e,
pior, comunista.
Aqueles que foram para o fracassado colonato do Limpopo merecem
um certo destaque. O povoamento branco no vale do Limpopo teve iní-
DUAS MENINAS BRANCAS 415

cio em 1954 e, como lembra Cláudia Castelo, os colonos pertenciam aos


grupos sociais mais desfavorecidos do Portugal metropolitano, geralmente
analfabetos, sem formação profissional, muitos de origem rural e pobres
(Castelo, 2007).
Mas, como lembra Cláudia Castelo (2007) e como podemos claramente
perceber no relato de Isabela Figueiredo, entre as camadas mais pobres
oriundas da metrópole podemos observar uma das facetas mais brutais do
racismo característico do Moçambique colonial. Se é fato que tratava-se de
indivíduos brancos que, portanto, se diferenciavam claramente da massa
nativa e podiam inclusive ter empregados domésticos, aos olhos da burgue-
sia colonial estavam demasiado próximos dos pretos. Os trabalhadores do
colonato do Limpopo surgiam muitas vezes descalços, trabalhavam a terra,
aproximavam-se do típico saloio português, pobre, analfabeto e ignorante;
os cantineiros estavam nos subúrbios e alguns chegavam mesmo a se casar
ou se juntar com uma preta, algo que provocava horror na sociedade colo-
nial. A forma de se diferenciarem e de se afirmarem como brancos ganhava
assim em decibéis e em violência.
Entre os brancos de origem européia, não podemos esquecer, por
fim, o crescente número de soldados que passavam temporadas nas cida-
des moçambicanas enquanto esperavam ser encaminhados para o mato,
para lutar contra os turras. Geralmente originários de famílias de origem
humilde, os soldados pouco se misturavam com a elite metropolitana, com
os naturais e mesmo com brancos súbita e aparentemente enriquecidos na
situação colonial. Se a presença na África era para uns a possibilidade de
reproduzir ou aspirar uma vida de fausto, para outros signficava três anos
de inferno que supunha a luta com uma guerrilha sem rosto na defesa de
uma terra que fatalmente descobririam não ser nem sua, nem portuguesa.
Como soe acontecer, contudo, a presença da soldadesca dinamizou a vida
dos centros urbanos moçambicanos, particularmente no que se refere à
prostituição feminina (e masculina) e às algazarras noturnas dos que iam
ou vinham dos campos de batalha.

3. ISABELL A, REVOLUCIONÁRIA

O relato de Isabella Oliveira é vivo e sedutor. O encantamento com a Revo-


lução dos Cravos por parte da jovem adolescente tem continuidade na
adesão inicial aos rumos revolucionários de Moçambique. Adesão inicial
que, como veremos, não se transforma em adesão total. Já adianto o fim da
416 OMAR RIBEIRO THOMAZ

história: por mais que afirme sua moçambicanidade e seu absoluto fascí-
nio com o processo revolucionário inerente à fundação da nacionalidade a
menina não fica moçambicana e abandona o país pouco tempo depois da
independência. Por que? “Vinte cinco de Abril de 1974 foi o único dia em que
eu e Portugal passeámos de mãos dadas” (Oliveira, 2002: 17) – escreveria
Isabella 25 anos depois. Trata-se de uma afirmação de distanciamento com
relação à nacionalidade à qual se vincula quando abandona definitivamente
Moçambique: sua identificação com Portugal ter-se-ia dado exclusivamente
no dia 25 de abril.

Só perto da meia-noite, já com a minha mãe em casa e as miúdas de pijama,


pudemos ouvir o resumo do programa do MFA e, de seguida, “A Portuguesa”,
que, aos berros em cima da cama, cantámos a plenos pulmões pela primeira e
última vez (Oliveira, 2002: 17).

Por que Isabella e sua família abandonam o país que diziam amar e ao
qual afirmavam pertencer? As dificuldades próprias do processo revolu-
cionário e mesmo a guinada autoritária da FRELIMO poderiam constituir
uma boa justificativa para muitos que puderam abandonar o país. Mas a
narrativa de Isabella nos dá outras pistas.
Como já dito anteriormente, Isabella Oliveira fazia parte da burguesia
colonial que se considerava filha da terra, os naturais de Moçambique como
eram conhecidos. Destacavam-se, ela e sua família, de parte signficativa do
entorno ao assumir uma visão claramente crítica ao colonial-fascismo, o
que condiciona claramente suas opções no período que segue ao 25 de abril
de 1974. Tratava-se de indivíduos que ansiavam por liberdade e Isabella
rememora sua vivacidade adolescente quando já no dia seguinte ao 25 de
abril começa a tomar iniciativas com o propósito de democratizar o liceu
onde estudava com a fina flor da burguesia colonial e metropolitana.
Rapidamente ela passa a compor o grupo que pretende organizar a
Associação de Estudantes. Na verdade, ela foi convocada a participar ati-
vamente da formação da associação, pois seus colegas tinham a lembrança
de sua rebeldia contra o sistema quando, da ocasião da visita do Ministro
do Ultramar Rebelo Souza a Moçambique Isabella teria desatado a cantar
“Grândola, Vila Morena”. Isabella – como ela mesma afirma – coincidira
com a revolução ao perceber, antes do 25 de abril, o caráter revolucionário
da música de Zeca Afonso, logo transformada em símbolo daquela trans-
formação. E teria sido ainda, na semana posterior à revolução, que a asso-
ciação realizara uma série de reivindicações junto à direção da escola, tais
DUAS MENINAS BRANCAS 417

como a da organização de uma biblioteca e uma reforma nos conteúdos das


disciplinas.

A última reivindicação era para mim a mais cara: África, e sobretudo Moçam-
bique, deviam assumir imediato destaque nos programas de Português, His-
tória e Geografia e não, ou pura e simplesmente não existirem, como era o
caso das duas primeiras cadeiras, ou constituirem um ridículo anexo de meia
dúzia de páginas no final do livro, a que nunca se chegava, como era o caso da
terceira disciplina. (idem: 24)

Certamente não foi por iniciativa de Isabella que as reservas iniciais


da diretora do Liceu seriam superadas quanto à incorporação de África
e Moçambique nos conteúdos escolares. O processo de transição rumo à
independência do país caminhava a passos largos e em outubro seguinte,
já após os Acordos de Lusaka, a volta às aulas foi marcada pela surpresa de
Isabella diante da reação de seus colegas à africanização em curso.

Mas o que mais me escandalizava foi a posição de muitas das minhas antigas
colegas, algumas das quais me tinham sido tão próximas, em relação à reforma
dos programas de ensino.
– Não quero, nem tenho nada que aprender, seja o que for sobre África! –
declarou, com uma frontalidade que não deixou de me impressionar, a Beatriz.
– Sou portuguesa, tenho é que estudar o meu país!
– Mas, agora, Moçambique vai tornar-se independente e os estudantes têm o
direito de, finalmente, estudarem a História que lhes pertence e conhecerem a
realidade de que fazem parte! – retorqui. Bolas, eu sabia que aquela miúda não
era burra!
– Estou-me nas tintas para os africanos!
– Então, vai para a tua terra, Beatriz, isso aqui já não é teu! – atirei-lhe e afas-
tei-me. (Idem: 50-51)

Trata-se de um dos poucos momentos em que a menina sofre: ela per-


cebe que sua opção pela África e por Moçambique levaria a uma ruptura
com aqueles que se apegavam ao colonialismo que deveria ser definitavente
superado. Isabella e sua família já eram críticos ao colonialismo antes do
25 de abril, mas entre abril e outubro daquele ano muito havia acontecido e
no retorno às aulas ela se encontra com amigas que durante todos aqueles
meses haviam permanecido alheias ao processo. O que tinha acontecido
neste período?
Isabella superara (ou pensava ter superado) um dos elementos mais
enraizados do colonialismo no continente africano, a rigorosa segregação
418 OMAR RIBEIRO THOMAZ

espacial a separar brancos de negros, negros de mulatos, brancos de india-


nos. Lourenço Marques, como lembra Isabella, “era uma cidade rasgada a
régua e esquadro, de forma que nem o traçado das ruas estragasse o clima
de apartheid mascarado que nela sempre se respirou” (idem: 32). Na escola,
entre centenas de estudantes, Isabella não teria se cruzado com mais de 4
estudantes negros!
Ao longo de sua curta vida, Isabella tivera apenas uma amiga negra,
Soma, quando no ensino primário freqüenta uma escola pública na Som-
merschield. Ao concluirem a quarta classe, ambas optam pelo ensino liceal,
mas Soma foi desencorajada pela professora a seguir estudos que não fos-
sem os técnicos – “nunca hás-de ir para a Universidade, por isso, a ti, basta
fazer o exame de acesso à escola técnica e já ficas muito bem!” (idem: 33).
Esta frase sela o destino de Soma quem, onze anos depois, Isabella vê em
Coimbra convertida em prostituta. A muralha entre a cidade e o caniço era
intransponível.
A superação desta fronteira ter-se-ia dado com a ida ao caniço, à con-
vite do processo revolucionário.
Nos meses que sucedem o 25 de abril a cidade se agita e uma série de
iniciativas pretende envolver os estudantes laurentinos, entre elas, progra-
mas de alfabetização de adultos. Foi a participação no programa de alfabeti-
zação das populações do caniço que operou uma verdadeira transformação
em Isabella: a ida à cidade do caniço, entrar nas casas dos pretos, ver como
viviam seus empregados e, sobretudo, vivenciar o papel protagonista no
interior do que seria um processo revolucionário, tudo parece encantar Isa-
bella. De certa forma, o que mais lhe encanta é o seu próprio sucesso como
professora: quando se dá conta da emoção de um senhor idoso ao perceber
que podia ler, a menina transformada em professora o supera em emoção e
desata a chorar. Ela se sentia responsável pela conquista daquele velho, ela
havia feito algo útil pela revolução.
Vale à pena recuperarmos como a outra menina, Isabela Figueiredo,
vive o mesmo processo descrito pela adolescente revolucionária. Longe de
qualquer protagonismo, Isabela Figueiredo percebe o processo como abso-
lutamente exterior ao seu entorno imediato, exterior ao protagonista da sua
história, seu pai. A africanização do ensino é apenas motivo de riso, ...

A História era a dos reinados anteriores a Gugunhana, essa etnia, e as outras,


que eram muitas. E das guerras que travavam. Os bantu, , os shona, os Mono-
matapa. Os nguni, depois os zulus.
DUAS MENINAS BRANCAS 419

Os brancos riam-se. Aquilo era a história dos pretos! Os pretos julgavam que
tinham história! “A história dos macacos”! (Figueiredo, 2010: 99).

... e as aulas de alfabetização, mero artifício para a manutenção de uma


propriedade.

Uns meses depois, o comité avisou que as casas saqueadas e desabitadas, não
regressando os proprietários, seriam ocupadas pela população das palhotas.
Para os brancos, nada havia a que regressar. Tinham esgotado os flats para alu-
gar no Maputo. Não queriam perder a propriedade – pelo menos, nessa altura,
ainda pensavam poder mantê-la – mas temiam regressar. Assim, o Domingos
justificou a casa negociando, com o comité, aulas de alfabetização para o povo,
dadas pela filha, que andava no liceu. A filha chamou-me como ajudanta, e às
quartas e sábados, passámos a ensinar as primeiras letras aos filhos dos que
assassinaram o Cândido na casa queimada. Não havia móveis, apenas o chão
e paredes de cimento lambido pelas chamas. Os negritos chegavam às três da
tarde, sentavam-se sem ordem alguma, no meio da sala ou encostados às pare-
des. Vinham descalços e esfarrapados, como desde sempre; vinham com as
pernas e os braços brancos e vermelhos de pós e terra, a cara ranhosa e os olhos
remelosos. E eu e a Domingas, muito brancas, muito limpas, muito bem calça-
das, muito educadas, desenhávamos o alfabeto, a giz, na parede queimada, que
depois lavávamos para secar depressa e servir outra vez. Trazíamos os cadernos
e os lápis, onde lhes desenhávamos linhas de is e us e pês e rês, que tinham de
copiar. Não falavam português, a não ser o mínimo, mas entendiam tudo o
que lhes explicávamos. E, ao fim da tarde, quando começavam os mosquitos,
os filhos dos que mataram o Cândido iam-se embora felizem por terem apren-
dido muitas letras. Foi assim que, durante doze meses, eu e a Domingas alfabe-
tizámos, com autorização do comité, os negritos do Vale do Infulene.
Depois, mandaram-se embora para a Metrópole, para ser uma mulher, e a
Domingas continuou, sozinha, a assegurar o património do pai, que nunca foi
seu. (Figueiredo, 2010: 95 – 96)

Para Isabela Figueiredo, não há emoção na revolução, pois a revolução


não é sua. Nem emoção, nem identidade: doze meses de alfabetização não
foram suficientes para vencer a distância criada pelo fosso da colonização
e da violência do 7 de setembro, como veremos no item seguinte. Não há
engajamento: há a simples tentativa de proteger uma posse diante das trans-
formações em curso. Tampouco o retorno é fruto de uma decisão: foi man-
dada para a metrópole. Logo saberemos porque.
Mas, e Isabella Oliveira, por que em meio a tantas emoções e tanto
engajamento, abandonou, com sua família, Moçambique? Antes de avan-
420 OMAR RIBEIRO THOMAZ

çarmos numa resposta a partir do próprio material anunciado pela menina,


deter-nos-emos num evento marcante, o 7 de setembro de 1974, quando
parte significativa da coletividade branca de Moçambique tenta roubar o
protagonismo de grupos próximos à FRELIMO que desde o 25 de Abril, e
de forma crescente, vinham ocupando o centro da cena política moçambi-
cana.

4. O 7 DE SETEMBRO DE 1974

Os acontecimentos que sacudiram Lourenço Marques e outras cidades


como a Beira e Vila Pery (atual Chimoio) entre os dias 6 e 10 de setem-
bro de 1974 marcam a memória e a memorialística portuguesa sobre a
descolonização de Moçambique. Prematuramente, foram escritos relatos
apaixonados como os de Ricardo Saavedra (1975), Jorge Jardim (1976) e
Clotilde Mesquitela (s.d.) – apaixonados e interessados, já que os três auto-
res encontravam-se entre os protagonistas (voluntários ou involuntários)
daquele que denominaram de “Movimento Moçambique Livre”. Por mais
que estes autores tentem afirmar o contrário, fica evidente em suas narrati-
vas que se tratou de um evento promovido pela minoria branca, extempo-
râneo e promotor de uma violência extraordinária que afetou inicialmente
os negros que habitavam os subúrbios da capital, para logo atingir os pró-
prios brancos, os quais acabaram por confirmar seus piores temores quanto
ao potencial violento dos nativos.
Saavedra fala de mais de 1.500 mortos entre brancos e negros na cidade
de Lourenço Marques (Saavedra, 1975: 20). O mesmo autor, no romance
que procura descrever o movimento do ponto de vista dos revoltosos,
afirma a possibilidade dos mortos serem ao redor de 3.500 (Saavedra, 1995:
400). Freire Antunes cifra o número de mortos em 3.000 (Freire Antunes,
1996: 583). Relatos contemporâneos falam de franco-atiradores brancos
que, filhos da fina-flor da elite laurentina e situados em pontos estratégi-
cos da cidade, dedicavam-se a alvejar negros aleatoriamente, assim como
de grupos de milicianos brancos que se dirigiam aos subúrbios da cidade
massacrando negros. Com efeito, a população branca, naquele momento,
encontrava-se fortemente armada, parte do armamento tendo sido distri-
buído previamente pela PIDE-DGS (Veloso, 2007: 90). Outros salientam a
violência daqueles que, esperançosos diante do que seria a formação de um
governo revolucionário de maioria negra, marcham em direção à cidade de
cimento pilhando e matando os brancos que encontravam pelo caminho.
DUAS MENINAS BRANCAS 421

Saliente-se que uma multidão favorável à FRELIMO havia-se reunido no


dia 6 de setembro no estádio da Machava, onde se entoavam hinos revo-
lucionários e se faziam discursos inflamados contra o regime colonial. Em
todo o caso, o número de mortos supera o milhar, entre brancos e negros.
Como vivenciaram o 7 de setembro as duas meninas? Isabella Oli-
veira parece não dar muita importância àquele momento, ao qual dedica
tão-somente três páginas. Na verdade, advertida da violência em curso na
cidade, abandona o cine-clube para onde se dirigira após horas no Estádio
da Machava e tranca-se em casa com amigos e criados. Não desejava ver-se
confundida com brancos contra-revolucionários e nem ser vítima da vio-
lência que explode na cidade.
Com a outra menina, tudo foi diferente.

No 7 de Setembro o meu pai chegou eufórico. As coisas iam voltar a ser o que
eram. “Isto vai voltar a ser nosso; está tudo no Rádio Clube, ocuparam aquilo,
os negros estão lixados, estão a contas. Ainda vamos ganhar isto”.
Eu sorri. O que significaria “ganhar isto?”
(...)
Arrancou-me do chão e levou-me a pé ao Rádio Clube, às cavalitas.
Havia uma multidão branca frente ao edifício. Homens, sobretudo. Também
esposas. (...)
Mas para o meu pai, e todos aqueles brancos, naquele momento, o edifício
do Rádio Clube era símbolo de uma esperança, e todos aí se concentravam
ansiosos, como se adorassem o deus político de um templo pagão. Era uma
esperança invisível, mas forte, como é a esperança tornada ali pedra sólida,
portanto palpável. Algo material.
Escutava-se um ruído nervoso.
O ar do fim da tarde fervia de energia de macho, de desejo, do medo. Barulho
vão, descargas de voz desafinada, mas em fundo, nos peitos, um enorme silên-
cio que treme, que devora, uma fome castigada que não sobreviverá ao riscar
de um fósforo.
Tudo o que sei sobre o 7 de Setembro de 1974 é isto: os brancos estavam a
ganhar aos pretos, talvez já não houvesse a tal independência de que se falava, e
que os brancos tanto temiam. Mais nada. (Figueiredo, 2010: 79; itálicos meus)

Mas Isabela sabe e conta muito! Ao contrário dos relatos citados acima
(Saavedra, 1975; Jardim, 1976; Mesquitela, s.d.), que insistem no suposto cará-
ter multirracial do “Movimento Moçambique Livre” (“MML”), para a menina
era claro: tratava-se de um movimento branco e que pretendia preservar o
status quo dos brancos. Um movimento protagonizado por brancos e que pre-
tendia manter o protagonismo branco no país – para eles, aos negros cabe-
422 OMAR RIBEIRO THOMAZ

ria servir, jamais dirigir. Quanto aos indianos, comunidade significativa na


cidade de Lourenço Marques, fica evidente sua relação de exterioridade com
relação aos europeus e luso-descendentes: não são sequer mencionados.
As lideranças negras incorporadas pelo “MML” – personagens como
Uria Simango e Joana Simeão – acabaram por selar seu trágico e fatal des-
tino. Seu distanciamento da FRELIMO fora anterior e acabaram por ser
utilizados pelas lideranças do movimento desencadeado no 7 de setembro,
para logo depois serem por eles abandonados.
Mas o que ganha força no relato de Isabela Figueiredo é a violência
que se abate sobre os brancos nos dias que se sucedem ao movimento e,
muito provavelmente, àquela que caracterizou o 21 de outubro seguinte.
Diante da falta de apoio das Forças Armadas Portuguesas, da ausência de
um líder (Jorge Jardim se vê impedido de retornar a Moçambique) e da pas-
sividade sul-africana, o movimento que pretendia deter o rumo da história
perde efetivamente o rumo. Os protagonistas tentam com maior ou menor
sucesso fugir para a África do Sul, e um grande número de brancos que
assistia a tudo passivamente se viu tomado de um medo próximo ao terror
em meio aos relatos e rumores da violência real ou imaginária dirigida con-
tra eles pela população negra.

As cabeças dos brancos rolados no campo da bola iam perdendo o rosto, a


pele, os olhos e os miolos, e o que restava da carne amolgada e dos maxilares
partidos.
A negralhada remendava as bolas com trapos já engomados de sangue seco,
rasgado aos cadáveres, e assim sustinham a estrutura que se desfazia a cada
pontapé, até já não restar senão uma mão cheia de ossos moídos, moles, que
depois se chutavam para o mato, atrás do caniço. E vinha outra cabeça putre-
facta, até amolecer. Era fim-da-tarde. Anoitecia rapidamente. (Figueiredo,
2010: 79)

No 7 de Setembro, o Domingos salvou a mulher e a filha, mais nada. A casa do


Infulene foi arrombada, saqueada, queimada, o gado levado ou morto. Os negros
do Domingos estavam fartos de carregar sacas de farinha e milho e farelo que
nunca era para eles. O Domingos teve sorte, porque o Cândido, o da machamba
ao fundo da picada, que, como ele, criava porcos e galinhas, foi assassinado à
catanada, bem como os filhos, mais tudo o que era branco e mexia: cães, gatos e
periquitos. Os corpos foram retalhados e espalhados pela machamba; nenhuma
cabeça ficou perto de nenhuma perna. A mulher do Cândido, que nessa noite
ficara na cidade, foi depois ver o que sobrava. Como sobrou nada, a não ser os
cepos brancos em putrefacção, pediu aos homens da FRELIMO que abrissem
uma cova no chão, onde enterrar o colectivo de homem e filhos e animais, todos
DUAS MENINAS BRANCAS 423

irreconhecíveis. Não interessava quem era quem. A vida tinha de continuar, e


continuou. (Figueiredo, 2010: 94-95; itálico meu)

Se a violência foi tremenda, a menina não se rende a ignorá-la (como


Isabella de Oliveira) ou a percebê-la como própria dos negros quando des-
providos de freios (brancos), como nos relatos de Saavedra (1975; 1995),
Jardim (1976) ou Mesquitela (s.d.). A violência está diretamente ligada aqui
ao trabalho, algo solenemente ignorado ou meramente citado pela esmaga-
dora maioria da narrativa portuguesa e colonial existente sobre Moçambi-
que. “Os negros do Domingos estavam fartos de carregar sacas de farinha e
milho e farelo que nunca era para eles”: como certamente estariam aqueles
estética e longinquamente citados por Adelino Serras Pires, os seus carre-
gadores de água (2001), ou mesmo os criados da menina Isabella. E aqui
o relato de Isabela Figueiredo apresenta uma coerência inusitada: a belle
vie de uns estava associada ao trabalho dos outros. Trabalho que não se
qualifica, do qual não se fala, de outros que não têm nome porque não são
efetivamente conhecidos.

5. HISTÓRIA DE UMA TRAIÇÃO

Para Isabella Oliveira, a adolescente revolucionária, o 7 de setembro e os


eventos do 21 de outubro – quando novamente tivemos enfrentamentos
entre brancos e negros entre a baixa de Lourenço Marques e os subúrbios
da capital – são apenas uma triste lembrança da ação de reacionários que
levaram a mortes estúpidas. A menina retoma seu protagonismo – e sua
emoção – poucos dias após os primeiros acontecimentos, quando a cidade
caminhava para uma paz tensa.

Voltava para casa na noite de 12 para 13 de setembro de 74 quando, ainda na


ressaca dos últimos dias praticamente fechada em casa, vislumbrei a silhueta
de um jovem fardado de caqui verde e sapatilhas nos pés, trazendo ao ombro
uma espingarda cujo desenho não me era totalmente desconhecido. Abran-
dámos a velocidade do carro para nos certificarmos da realidade dessa perso-
nagem, cuja presença ali nos parecia um sonho. O guerrilheiro aproxima-se,
vê a minha braçadeira do tablier do carro e sorri, fazendo sinal para seguir-
mos. Como amei a figura daquele guerrilheiro, a sua simplicidade e tudo o que
representava estar ali entre nós! E foi assim que pela primeira vez na vida vi um
guerrilheiro da FRELIMO, não num qualquer teatro de guerra, mas em pleno
cruzamento da Rua de Nevala com a Avenida General Rosado, onde vivi minha
meninice (...). A arma, claro, era uma “Kalashnikov” de fabrico soviético.
424 OMAR RIBEIRO THOMAZ

Como a pose deste jovem era diferente da dos tropas que há tantos anos evitá-
vamos para escapar a piropos brejeiros! (Oliveira, 2002: 46)

Este trecho é altamente significativo – pelo que diz, e pelo que esconde.
O guerrilheiro da FRELIMO entra em cena enquanto figura desejada pela
menina e o centro de sua narrativa é, novamente, sua emoção. Emoção que,
nos dias posteriores aos acontecimentos do 7 de setembro, a distanciaria da
massa de reacionários e lhe retornaria o que era seu: o protagonismo em
meio o processo revolucionário. Foi ela que amou a figura do guerrilheiro,
como se houvesse uma transferência: a heroína é ela por amá-lo, e não o
guerrilheiro por ter chegado ali após uma década de luta armada. Mas não
só: o guerrilheiro é diferente do soldado português. E a menina não percebe
o que está em jogo aqui. O fato do guerrilheiro não lhe dirigir nenhum
piropo é enaltecido, diante da atitude do soldado português, que lhe pro-
vocava aversão. O que ela não lembra é que o soldado português muito
provavelmente lhe provocava aversão por sua condição de classe, pois ela
pertencia à fina flor da elite colonial, era uma fidalga, enquanto que a esma-
gadora maioria dos soldados portugueses eram pobres ignorantes, muitos
originários de regiões rurais de Portugal.
Se o pós-7 de setembro devolve a Isabella Oliveira o protagonismo
revolucionário – que se mantém pelo menos até a independência do país,
vivida intensamente pela menina no Estádio da Machava no ano seguinte,
emocionada com a figura daquele que provavelmente era o único capaz de
competir com ela, Samora Machel –, para Isabela Figueiredo é um período
duro em que os pais, e sua comunidade, tentam inculcar-lhe a mensagem da
qual seria portadora.

O recado era importante: a pretalhada, nesses dias, matava a esmo; prendia,


humilhava aleatoriamente. Sentíamo-nos moribundos de vida; já nem se falava
de poder. Tínhamos medo. E isso era a verdade. A verdade do fim. (Figueiredo,
2010: 87)

E o festival de horrores, descrito por Ricardo Saavedra (1975; 1995),


Jorge Jardim (1976) e Clotilde Mesquitela (s.d.), e tantos outros, também
portadores da mensagem, se sucede:

“Quando os viste jogar à bola com as cabeças, na estrada do Jardim Zoológico...


contas tudo... tudo o que roubaram, saquearam, partiram, queimaram, ocupa-
ram. Os carros, as casas. As plantações, o gado. Tudo no chão a apodrecer. Tu
vais contar. Que nos provocam todos os dias, e não podemos responder ou
DUAS MENINAS BRANCAS 425

levam-nos ao comité; que nos postos de controle nos humilham, nos cospem
em cima; que não nos deixam ir à igreja; que prenderam o padre e o pastor
adventista por recusarem parar o culto....” (Figueiredo, 2010: 90)

Ao contrário de Ricardo Saavedra, Jorge Jardim, Clotilde Mesquitela,


Adelino Serras Pires e tantos outros, Isabela nunca entregou a mensagem de
que foi portadora. Seu caderno nos traz fragmentos da violência do colo-
nialismo que jamais permitiria um fim doce ou exemplar. Ao retornar à
metrópole, Isabela percebe que sua memória não converge com a de tantos
que abandonaram Moçambique. Parece ser que só ela tinha que lidar com
a memória da violência de seu pai e de sua mãe para com os seus mainatos
e para com os pretos em geral.

Mas parece que isto era só na minha família, esses cabrões, porque segundo
vim a constatar, muitos anos mais tarde, os outros brancos que lá estiveram
nunca praticaram o colun..., o colonis..., o coloniamismo, ou lá o que era. Eram
todos bonzinhos com os pretos, pagavam-lhes bem, tratavam-nos melhor, e
deixaram muitas saudades. (Figueiredo, 2010: 49)

Aqui seu relato se conecta com a do sul-africano africander Rian Malan


(1990) que, ao retornar ao seu país nos anos 1980 após uma estadia nos
Estados Unidos, procura refletir sobre sua família e sobre sua tribo – os
brancos de língua africander. Seu relato é duro e cruel e, na medida em que
amadurece, se percebe como sendo a voz de alguém que será percebido
como o traidor, ao revelar os segredos mais profundos de sua tribo, de sua
comunidade.
A mensagem da qual deveria ser portadora Isabela era clara e, de certa
forma, boa parte dos brancos oriundos de Moçambique que se dedicaram
a rememorar fizeram-lhe justiça. Isabela não: trata-se da história de uma
traição. Da traição da menina a sua tribo, sem dúvida, mas, sobretudo, da
traição da menina ao seu pai, que se percebia a si mesmo como o verda-
deiro protagonista daquelas terras e que não estava preparado, e não que-
ria, abrir mão do seu protagonismo, algo que lhe era exigido pelo processo
revolucionário em curso.
É Isabela Figueiredo que nos dá a chave para compreender o porquê do
retorno de Isabella Oliveira. O relato da adolescente é vivo e alegre, e certa-
mente a memória de sua utopia é a da superação da relação colonial, mas
Isabella é traída por sua própria narrativa. Quer o caráter nostálgico que lhe
empresta, quer sobretudo o papel protagonista que assume entra em pro-
funda contradição com aquilo que afirma amar, a revolução. Pois a revolução
426 OMAR RIBEIRO THOMAZ

implicaria, e implicou, a perda do protagonismo. Por isso Isabella abandona o


país que diz amar. Não é por medo, nem pelos desmandos da FRELIMO: ficar
em Moçambique e, sobretudo, ficar moçambicana, exigiria uma renegociação
identitária que afastaria Isabella da centralidade na qual se sente cômoda e
que passa desapercebida se assumimos uma suposta inocência infantil.
As narrativas das meninas têm por referência acontecimentos que se
deram em meio a crueza do colonialismo europeu no continente africano,
mais de uma vez comparado à experiência totalitária. Quando Isabela
Figueiredo compara Lourenço Marques a um campo de concentração esta-
mos diante de uma comparação forte. Não se trata de uma mera analogia:
tanto do que diz respeito ao mundo das idéias quanto à prática e à experi-
ência o colonialismo europeu na África aproxima-se do totalitarismo euro-
peu, que tem no campo de concentração seu limite.
A narrativa memorialística sobre o totalitarismo e sobre os campos
de concentração é extensa e ganhou uma dimensão específica: trata-se de
uma narrativa de testemunho (Mesnard, 2010). E esta tradição narrativa
evidencia a impossibilidade da inocência em meio à experiência totalitária.
Ou seja, não é admíssivel afirmações tais como: “eu não sabia”, “eu não vi”,
“com minha família não era assim”. É com esta tradição que dialoga Isabela
Figueiredo quando lembra:

Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma.
Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra
vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade,
sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência.
Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os
olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios brancos, não
esquece esse silêncio, esse frio vervente de ódio e miséria suja, dependência e
submissão, sobrevivência e conspurcação.
Não havia olhos inocentes. (Figueiredo, 2010: 27-28; itálico meu)

REFERÊNCIAS

Almeida Santos, António, (1975), 15 meses no governo ao serviço da descolonização,


Porto, Asa.
Almeida Santos, António, (2006a), Quase memórias. 1º. Volume. Do colonialismo e da
descolonização, Lisboa, Casa das Letras.
––––, (2006b), Quase memórias. 2º. Volume. Da descolonização de cada território em
particular, Casa das Letras, Lisboa.
DUAS MENINAS BRANCAS 427

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ITINERÂNCIAS
PERCURSOS E REPRESENTAÇÕES DA PÓS-COLONIALIDADE

Organização: Elena Brugioni; Joana Passos;


Andreia Sarabando; Marie-Manuelle Silva

Capa: António Pedro


Edição do Centro de Estudos Humanísticos
da Universidade do Minho

© EDIÇÕES HÚMUS, 2012


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Impressão: Papelmunde, SMG, Lda. – V. N. Famalicão


1.ª edição: Maio 2012
Depósito legal: 343771/12
ISBN 978-989-8549-10-5

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