Duas Meninas Itinerancias
Duas Meninas Itinerancias
Percursos e Representações
da Pós-colonialidade
Elena Joana Andreia Marie-Manuelle
BRUGIONI PASSOS SARABANDO SILVA
Journeys
Postcolonial Trajectories
and Representations
DUAS MENINAS BRANCAS*
Omar Ribeiro Thomaz
1. ISABEL A E ISABELL A
Não precisamos ler muitas páginas de seu Caderno para que Isabela Figuei-
redo afirme, de forma contundente, “Lourenço Marques, na década de 60
e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a
caril” (Figueiredo, 2009: 23). A lembrança da menina – Isabela refere-se
a sua primeira infância e ao período que antecede a adolescência, tendo
deixado Moçambique com cerca de 12 anos – não deixa de surpreender em
meio ao tom predominante de boa parte da narrativa portuguesa contem-
porânea sobre as últimas décadas coloniais. Romances, memórias e ensaios
fotográficos, em geral sobre Angola (a maioria) e Moçambique, mas tam-
bém sobre Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, vêm recupe-
rando as últimas décadas de presença colonial portuguesa no continente
africano e os tempos da descolonização – após um período relativamente
longo de silêncio público sobre o colonialismo português.
No que diz respeito à narrativa memorialística, abundam os títulos fran-
camente nostálgicos. Fala-se da tenacidade portuguesa que acompanhou o
crescimento de cidades como Luanda e Lourenço Marques, representadas
como centros urbanos luminosos e alegres, capitais de colônias percebidas
* Este texto jamais teria sido concluído sem o apoio e a saudável insistência de minhas amigas
Elena Brugioni e, especialmente, Joana Passos, a quem agradeço. Rita Chaves, amiga e profes-
sora, é, aqui, inspiração.
406 OMAR RIBEIRO THOMAZ
1 No dia 7 de setembro de 1974 foram assinados em Lusaka, capital da Zâmbia, o acordo entre os
representantes do governo português e o representante da FRELIMO, Samora Machel, os quais
definiam os termos da transferência de poderes e a independência de Moçambique.
DUAS MENINAS BRANCAS 407
2. BRANCOS NO PLURAL
O uso do plural tem a clara intenção de salientar que estamos longe de uma
comunidade homogênea. Se é verdade que o que os definia era a possibi-
lidade de reprodução de uma situação de privilégio no interior do sistema
colonial, nem todos compartilhavam dos mesmos privilégios, e a adesão
ou proximidade ao pólo europeu não se dava para todos sem a necessidade
prévia de negociações muitas vezes francamente sofridas.
No topo, encontramos os metropolitanos comprometidos com o fun-
cionamento do Estado colonial e com os negócios lucrativos que atrela-
vam Moçambique aos países da região. Tratava-se de um grupo altamente
2 Por pensamento luso-tropical entendo, neste texto, aquele que supõe a excepcionalidade da
presença portuguesa em terras africanas, imaginando a existência de certa harmonia existente
entre os diferentes grupos raciais.
408 OMAR RIBEIRO THOMAZ
3 Não pretendo recuperar aqui o caráter polêmico deste personagem no que diz respeito ao seu
envolvimento com a RENAMO em meio à guerra civil moçambicana. Fique registrado que este
compromisso é absolutamente coerente com sua percepção claramente colonialista da África
em geral e de Moçambique em particular.
4 No interior deste grupo destaca-se, sem sombra de dúvida a figura de Jorge Jardim, a quem
voltaremos a referir mais adiante. Absolutamente comprometido com o colonial-fascismo de
Salazar, Jardim chegou a combater e matar em nome de Portugal em Angola, no Estado da Índia
Portuguesa e em Moçambique, e chegou mesmo a ser uma espécie de liderança para aqueles
que imaginavam uma independência branca em Moçambique. José Luís Cabaço faz uma aná-
lise extraordinária da figura e do projeto de Jorge Jardim (Cabaço, 2009). Sobre Jardim, ver tam-
bém José Freire Antunes (1996). Jorge Jardim nos deixou ainda um texto-depoimento, no qual
recupera não apenas seu projeto como nos apresenta sua visão do processo de independência
de Moçambique (Jardim, 1976).
DUAS MENINAS BRANCAS 409
A escola local era como uma segunda casa, onde nos sentíamos bem, que era
inteiramente multirracial e onde aprendi ao lado das filhas dos “assimilados”
negros, os negros educados, bem como dos filhos da relativamente grande
população de mulatos e de indianos de origem goesa. (...) Não me recordo de
ter qualquer consciência das diferenças de cor enquanto criança, e não me lem-
bro de nenhuns incidentes raciais graves durante minha juventude em Moçam-
bique. Isso viria a acontecer mais tarde, sob a forma de um vírus estrangeiro
destinado a contaminar e destruir. (...) Tínhamos uma sociedade de brandos
costumes, racialmente mista e tolerante. (Pires & Capstick, 2001: 36)
5 O safári de caça grossa constituía um dos atrativos do mundo colonial dos brancos distribuídos
entre as colônias inglesas, francesas, portuguesas e belgas. A caça parecia conferir nobreza a
brancos que, supostamente, se enfrentavam com as feras. No que diz respeito ao império colo-
nial português, a obra de Henrique Galvão em colaboração com Freitas Cruz e António Mon-
tês, é significativa do lugar que deveria ter a caça, sobretudo nos grandes territórios de Angola
e Moçambique (Galvão, 1943-1945).
6 As reflexões de Avelino traduzem a tensão constitutiva do próprio imperialismo contempo-
râneo: aquela que opunha os administradores coloniais e colonos aos legisladores e parte da
intelectualidade e classe política situadas na metrópole. Tal tensão se reproduz em todos os con-
textos coloniais africanos, e ganha sua máxima expressão no interior do império britânico com
a Declaração Unilateral de Independência da Rodésia de Ian Smith em 1965. Sobre a oposição
interna ao pólo colonizador, as páginas de Hannah Arendt sobre o imperialismo são esclarece-
doras (Arednt, 1990: 161 e seguintes).
7 “Geri uma força de cerca de 800 voluntários recrutados entre os povos Nungwe, numa altura
em que o sistema de trabalho obrigatório era amplamente utilizado e deu, infelizmente, origem
a muitos abusos” (Pires & Capstick, 2001: 51)
410 OMAR RIBEIRO THOMAZ
Para, na seguinte, fazer uma breve menção àqueles que realmente traba-
lhavam:
Éramos uma família grande e feliz, o meu pai transformara-se num homem
de negócios de sucesso e a nossa casa estava aberta a toda a gente. (...) Éramos
uma família pioneira e tivemos a distinção de sermos os primeiros, em Tete, a
importar colchões de molas e um frigorífico. Em 1936, quando lá chegamos,
não havia água corrente. Os carregadores da água levavam-na todos os dias para
a cidade a partir do Zambeze, em latas de 20 litros equilibradas sobre os ombros.
(Pires & Capstick, 2001: 37; grifos meus)
8 Sobre a literatura colonial em Moçambique, ver Noa (2002). O texto de Adelino dialoga clara-
mente com aquelas fases da literatura colonial definidas por Noa como “exótica” (Noa, 2002:
56-61) e “doutrinária” (idem: 61-67). Em ambas, o narrador (português) escreve para um
público português e está absolutamente encantado com o seu protagonismo.
9 Sobre a literatura de Henrique Galvão ver (Thomaz, 2002).
10 Rita Chaves chama a atenção para alguns aspectos desta literatura colonial que constitui o inter-
locutor anacrônico das memórias de Adelino Torres Pires (e de outros tantos), entre os quais
destaco: o caráter grandioso da terra a ser conquistada, a conferir grandiosidade à presença
portuguesa na África e a sua ação, conectando o presente com o período das grandes nave-
gações e, nas palavras de Rita Chaves, “ a exterioridade dos pontos de vista, uma vez que o
sentido da experiência que informa certos narradores configura-se como a projeção de uma
experiência externa à identidade do universo a ser captado” (Chaves, 2005: 292). Mas adiante,
a autora revela uma das características fundamentais da literatura colonial portuguesa, que é
a sua dificuldade com a própria incorporação do exótico: “trata-se de um conjunto que não
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consegue dissimular a enorme dificuldade de ver o outro” (idem: 294). Assim são as memórias
de Adelino: quanto mais fala dos pretos, mais deles se distancia, pois eles não estão ali, mas são
imagens acachapadas pelo seu próprio protagonismo.
11 Entre os Democratas de Moçambique, encontramos alguns pertencentes à elite metropolitana
colonial, como Almeida Santos – que, após desempenhar um papel de destaque na oposição ao
colonial-fascismo, assume o Ministério da Coordenação Inter-territorial, responsável por levar
adiante um programa de descolonização. Sobre sua atuação como ministro, Almeida Santos
deixou um importante relato (Almeida Santos, 1975).
12 Alguns naturais, parte da elite colonial, como José Luis Cabaço e Rui Baltazar, ficaram moçam-
bicanos e desempenharam um papel de protagonismo quer no período de transição, quer no
próprio processo de fundação e consolidação das instituições nacionais ligadas ao Estado da
FRELIMO.
412 OMAR RIBEIRO THOMAZ
É deste grupo que faz parte a menina Isabella Oliveira. Filha de naturais
de Moçambique, seu avô materno era um homem da Zambézia[13] e seu
distanciamento com os oriundos da metrópole fica claro em mais de uma
ocasião, ao tempo em que procurava se diferenciar quer dos brancos ricos
metropolitanos, quer dos brancos pobres que chegavam de Portugal.
Éramos uns estranhos primatas (tipo nem carne/nem peixe), concluo, olhando
para os usos e costumes do grupo social no seio do qual cresci: racistas para os
“pretos”, porque assim nos adivinham mais estranhos privilégios, e racistas para
os “parolos da Metrópole”, como chamávamos quer à corja que por lá aparecia
para (se) governar (cheia de hábitos fechados e de uma moral hiperconser-
vadora face os nossos gestos extrovertidos e liberais) quer aos coitados dos
explorados das berças metropolitanas, a quem o governo de Lisboa (de boca)
oferecia mundos e fundos, a troco de, sobretudo depois da guerra colonial
começar, lhe irem povoar os colonatos (como o dos arrozais do Limpopo, ver-
dadeiro paraíso de água e mosquitos) para os quais não tinham sido prepara-
dos, o que os trazia infelizes, descarregando eles, por seu lado, nas populações
locais (a quem o regime roubava progressivamente as melhores terras) todo o
seu ódio. (Oliveira, 2002: 40)
13 “Antes, sabia-o pelos meus criados, nós éramos os europeus e eles os africanos. Isto, claro, na
presença do grupo da outra cor, pois, nas costas, os colectivos tratavam-se respectivamente por
‘brancos’ e ‘pretos’. Que raio de européia era eu?, interrogava-me na minha infância, já que meus
pais tinham nascido em Moçambique e eu nunca pusera, sequer, os pés em Lisboa” (Oliveira,
2002: 38-39).
DUAS MENINAS BRANCAS 413
14 Vale lembrar que, quando do abandono de Moçambique sobretudo entre 1974 e 1976 e seu
retorno ou ida a Portugal ou para outros países como o Brasil ou os Estados Unidos, o capital
simbólico e cultural familar destes grupos lhes garantiu a possibilidade de ocupação de cargos de
destaque, num processo de dispersão que ainda deve ser objeto de um estudo sociológico minu-
cioso. Saliente-se ainda que parte da elite intelectual portuguesa contemporânea é oriunda de
Moçambique e Angola e, curiosamente, ostenta esta origem como uma marca diferenciadora.
15 Uma quantidade significativa de portugueses pobres originários particularmente da ilha da
Madeira se dirigiu para a África do Sul. Tratava-se de um grupo de migrantes sobre quem,
na dura África do Sul do apartheid, muitas vezes pairava a dúvida quanto ao seu grupo racial
(Toffoli, 2005).
414 OMAR RIBEIRO THOMAZ
o resto de sua vida: na África o eletricista era protagonista. Não lhe cabia
eletrificar a cidade, mas mandar nos pretos para que o fizessem. E mandava,
aos berros, como todos os demais brancos. E se o trabalho era bem feito,
poderiam ser devidamente recompensados. Caso contrário, seriam vítimas
de bofetadas e safanões de um eletricista convertido em protagonista de
alguma coisa.
Gostava de ver ali os pretos do meu pai. Todos juntos pareciam muitos. (...)
A certa altura, o meu pai começava a chamá-los, não sei porque ordem. Podia
ser a da recolha que fazia, às segundas de manhã, nas bombas do Xipamanine,
ou ao calha. O procedimento era simples. Os negros iam à sala, e o meu pai
entregava-lhes o dinheiro. Às vezes eles contavam e reclamavam. O meu pai
gritava-lhes que nessa semana tinham estragado um cabo, ou chegado tarde
ou sornado ou mostrado má cara ou era só porque lhe apetecia castigá-los por
qualquer coisa que tinha metido na cabeça. Não sei, tudo era possível. Para
além de ter mau gênio nestas coisas, tinha os seus preferidos, e aos seus prefe-
ridos pagava sempre o acordado sem descontos. Depois havia os mais novos,
recém-chegados, ou aqueles em quem meu pai não confiava. E com esses havia
muitas vezes milando. Ainda não tinham percebido as regras, que eram só
duas: receber e calar. (Figueiredo, 2010: 40-41)
3. ISABELL A, REVOLUCIONÁRIA
história: por mais que afirme sua moçambicanidade e seu absoluto fascí-
nio com o processo revolucionário inerente à fundação da nacionalidade a
menina não fica moçambicana e abandona o país pouco tempo depois da
independência. Por que? “Vinte cinco de Abril de 1974 foi o único dia em que
eu e Portugal passeámos de mãos dadas” (Oliveira, 2002: 17) – escreveria
Isabella 25 anos depois. Trata-se de uma afirmação de distanciamento com
relação à nacionalidade à qual se vincula quando abandona definitivamente
Moçambique: sua identificação com Portugal ter-se-ia dado exclusivamente
no dia 25 de abril.
Por que Isabella e sua família abandonam o país que diziam amar e ao
qual afirmavam pertencer? As dificuldades próprias do processo revolu-
cionário e mesmo a guinada autoritária da FRELIMO poderiam constituir
uma boa justificativa para muitos que puderam abandonar o país. Mas a
narrativa de Isabella nos dá outras pistas.
Como já dito anteriormente, Isabella Oliveira fazia parte da burguesia
colonial que se considerava filha da terra, os naturais de Moçambique como
eram conhecidos. Destacavam-se, ela e sua família, de parte signficativa do
entorno ao assumir uma visão claramente crítica ao colonial-fascismo, o
que condiciona claramente suas opções no período que segue ao 25 de abril
de 1974. Tratava-se de indivíduos que ansiavam por liberdade e Isabella
rememora sua vivacidade adolescente quando já no dia seguinte ao 25 de
abril começa a tomar iniciativas com o propósito de democratizar o liceu
onde estudava com a fina flor da burguesia colonial e metropolitana.
Rapidamente ela passa a compor o grupo que pretende organizar a
Associação de Estudantes. Na verdade, ela foi convocada a participar ati-
vamente da formação da associação, pois seus colegas tinham a lembrança
de sua rebeldia contra o sistema quando, da ocasião da visita do Ministro
do Ultramar Rebelo Souza a Moçambique Isabella teria desatado a cantar
“Grândola, Vila Morena”. Isabella – como ela mesma afirma – coincidira
com a revolução ao perceber, antes do 25 de abril, o caráter revolucionário
da música de Zeca Afonso, logo transformada em símbolo daquela trans-
formação. E teria sido ainda, na semana posterior à revolução, que a asso-
ciação realizara uma série de reivindicações junto à direção da escola, tais
DUAS MENINAS BRANCAS 417
A última reivindicação era para mim a mais cara: África, e sobretudo Moçam-
bique, deviam assumir imediato destaque nos programas de Português, His-
tória e Geografia e não, ou pura e simplesmente não existirem, como era o
caso das duas primeiras cadeiras, ou constituirem um ridículo anexo de meia
dúzia de páginas no final do livro, a que nunca se chegava, como era o caso da
terceira disciplina. (idem: 24)
Mas o que mais me escandalizava foi a posição de muitas das minhas antigas
colegas, algumas das quais me tinham sido tão próximas, em relação à reforma
dos programas de ensino.
– Não quero, nem tenho nada que aprender, seja o que for sobre África! –
declarou, com uma frontalidade que não deixou de me impressionar, a Beatriz.
– Sou portuguesa, tenho é que estudar o meu país!
– Mas, agora, Moçambique vai tornar-se independente e os estudantes têm o
direito de, finalmente, estudarem a História que lhes pertence e conhecerem a
realidade de que fazem parte! – retorqui. Bolas, eu sabia que aquela miúda não
era burra!
– Estou-me nas tintas para os africanos!
– Então, vai para a tua terra, Beatriz, isso aqui já não é teu! – atirei-lhe e afas-
tei-me. (Idem: 50-51)
Os brancos riam-se. Aquilo era a história dos pretos! Os pretos julgavam que
tinham história! “A história dos macacos”! (Figueiredo, 2010: 99).
Uns meses depois, o comité avisou que as casas saqueadas e desabitadas, não
regressando os proprietários, seriam ocupadas pela população das palhotas.
Para os brancos, nada havia a que regressar. Tinham esgotado os flats para alu-
gar no Maputo. Não queriam perder a propriedade – pelo menos, nessa altura,
ainda pensavam poder mantê-la – mas temiam regressar. Assim, o Domingos
justificou a casa negociando, com o comité, aulas de alfabetização para o povo,
dadas pela filha, que andava no liceu. A filha chamou-me como ajudanta, e às
quartas e sábados, passámos a ensinar as primeiras letras aos filhos dos que
assassinaram o Cândido na casa queimada. Não havia móveis, apenas o chão
e paredes de cimento lambido pelas chamas. Os negritos chegavam às três da
tarde, sentavam-se sem ordem alguma, no meio da sala ou encostados às pare-
des. Vinham descalços e esfarrapados, como desde sempre; vinham com as
pernas e os braços brancos e vermelhos de pós e terra, a cara ranhosa e os olhos
remelosos. E eu e a Domingas, muito brancas, muito limpas, muito bem calça-
das, muito educadas, desenhávamos o alfabeto, a giz, na parede queimada, que
depois lavávamos para secar depressa e servir outra vez. Trazíamos os cadernos
e os lápis, onde lhes desenhávamos linhas de is e us e pês e rês, que tinham de
copiar. Não falavam português, a não ser o mínimo, mas entendiam tudo o
que lhes explicávamos. E, ao fim da tarde, quando começavam os mosquitos,
os filhos dos que mataram o Cândido iam-se embora felizem por terem apren-
dido muitas letras. Foi assim que, durante doze meses, eu e a Domingas alfabe-
tizámos, com autorização do comité, os negritos do Vale do Infulene.
Depois, mandaram-se embora para a Metrópole, para ser uma mulher, e a
Domingas continuou, sozinha, a assegurar o património do pai, que nunca foi
seu. (Figueiredo, 2010: 95 – 96)
4. O 7 DE SETEMBRO DE 1974
No 7 de Setembro o meu pai chegou eufórico. As coisas iam voltar a ser o que
eram. “Isto vai voltar a ser nosso; está tudo no Rádio Clube, ocuparam aquilo,
os negros estão lixados, estão a contas. Ainda vamos ganhar isto”.
Eu sorri. O que significaria “ganhar isto?”
(...)
Arrancou-me do chão e levou-me a pé ao Rádio Clube, às cavalitas.
Havia uma multidão branca frente ao edifício. Homens, sobretudo. Também
esposas. (...)
Mas para o meu pai, e todos aqueles brancos, naquele momento, o edifício
do Rádio Clube era símbolo de uma esperança, e todos aí se concentravam
ansiosos, como se adorassem o deus político de um templo pagão. Era uma
esperança invisível, mas forte, como é a esperança tornada ali pedra sólida,
portanto palpável. Algo material.
Escutava-se um ruído nervoso.
O ar do fim da tarde fervia de energia de macho, de desejo, do medo. Barulho
vão, descargas de voz desafinada, mas em fundo, nos peitos, um enorme silên-
cio que treme, que devora, uma fome castigada que não sobreviverá ao riscar
de um fósforo.
Tudo o que sei sobre o 7 de Setembro de 1974 é isto: os brancos estavam a
ganhar aos pretos, talvez já não houvesse a tal independência de que se falava, e
que os brancos tanto temiam. Mais nada. (Figueiredo, 2010: 79; itálicos meus)
Mas Isabela sabe e conta muito! Ao contrário dos relatos citados acima
(Saavedra, 1975; Jardim, 1976; Mesquitela, s.d.), que insistem no suposto cará-
ter multirracial do “Movimento Moçambique Livre” (“MML”), para a menina
era claro: tratava-se de um movimento branco e que pretendia preservar o
status quo dos brancos. Um movimento protagonizado por brancos e que pre-
tendia manter o protagonismo branco no país – para eles, aos negros cabe-
422 OMAR RIBEIRO THOMAZ
Como a pose deste jovem era diferente da dos tropas que há tantos anos evitá-
vamos para escapar a piropos brejeiros! (Oliveira, 2002: 46)
Este trecho é altamente significativo – pelo que diz, e pelo que esconde.
O guerrilheiro da FRELIMO entra em cena enquanto figura desejada pela
menina e o centro de sua narrativa é, novamente, sua emoção. Emoção que,
nos dias posteriores aos acontecimentos do 7 de setembro, a distanciaria da
massa de reacionários e lhe retornaria o que era seu: o protagonismo em
meio o processo revolucionário. Foi ela que amou a figura do guerrilheiro,
como se houvesse uma transferência: a heroína é ela por amá-lo, e não o
guerrilheiro por ter chegado ali após uma década de luta armada. Mas não
só: o guerrilheiro é diferente do soldado português. E a menina não percebe
o que está em jogo aqui. O fato do guerrilheiro não lhe dirigir nenhum
piropo é enaltecido, diante da atitude do soldado português, que lhe pro-
vocava aversão. O que ela não lembra é que o soldado português muito
provavelmente lhe provocava aversão por sua condição de classe, pois ela
pertencia à fina flor da elite colonial, era uma fidalga, enquanto que a esma-
gadora maioria dos soldados portugueses eram pobres ignorantes, muitos
originários de regiões rurais de Portugal.
Se o pós-7 de setembro devolve a Isabella Oliveira o protagonismo
revolucionário – que se mantém pelo menos até a independência do país,
vivida intensamente pela menina no Estádio da Machava no ano seguinte,
emocionada com a figura daquele que provavelmente era o único capaz de
competir com ela, Samora Machel –, para Isabela Figueiredo é um período
duro em que os pais, e sua comunidade, tentam inculcar-lhe a mensagem da
qual seria portadora.
levam-nos ao comité; que nos postos de controle nos humilham, nos cospem
em cima; que não nos deixam ir à igreja; que prenderam o padre e o pastor
adventista por recusarem parar o culto....” (Figueiredo, 2010: 90)
Mas parece que isto era só na minha família, esses cabrões, porque segundo
vim a constatar, muitos anos mais tarde, os outros brancos que lá estiveram
nunca praticaram o colun..., o colonis..., o coloniamismo, ou lá o que era. Eram
todos bonzinhos com os pretos, pagavam-lhes bem, tratavam-nos melhor, e
deixaram muitas saudades. (Figueiredo, 2010: 49)
Os livros mostravam-me que na terra onde vivia não existia redenção alguma.
Que aquele paraíso de interminável pôr-do-sol salmão e odor a caril e terra
vermelha era um enorme campo de concentração de negros sem identidade,
sem a propriedade do seu corpo, logo, sem existência.
Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os
olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios brancos, não
esquece esse silêncio, esse frio vervente de ódio e miséria suja, dependência e
submissão, sobrevivência e conspurcação.
Não havia olhos inocentes. (Figueiredo, 2010: 27-28; itálico meu)
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ITINERÂNCIAS
PERCURSOS E REPRESENTAÇÕES DA PÓS-COLONIALIDADE