Roteiro - Café Com Canela (2015)
Roteiro - Café Com Canela (2015)
Roteiro - Café Com Canela (2015)
Ary Rosa
CREDITOS INICIAIS
VIOLETA
(tom de elogio - descontraído)
Êta que essa cerveja tá bem gelada!
MARCOS
(tom de elogio - descontraído)
É assim que eu gosto!
SOM DA CERVEJA SENDO ABERTA POR VIOLETA COM UM GARFO.
CIDA
(tom de lamento)
Que inveja! Queria sabê abrir a
cerveja assim.
SOM DA CERVEJA ENCHENDO UM COPO.
VIOLETA
(tom orgulhoso)
Ah, Cida, são anos de prática.
SOM DA CERVEJA ENCHENDO UM COPO.
IVAN
(tom saudosista)
Adolfo abria com o dente.
VIOLETA
(tom exclamativo)
Deus é mais! Com o dente num tenho
coragem, não.
SOM DA CERVEJA ENCHENDO UM COPO.
(CONTINUED)
CONTINUED: 2.
CIDA
(tom de pedido)
Num enche o copo, não, nêga.
(tom de gozação)
Num tô acostumada a bebê.
VIOLETA
(tom de brinde com ternura)
Um brinde à vida, que mesmo toda
desencontrada, oferece pra gente
inacreditáveis encontros e os mais
lindos reencontros!
SONS DO TINIDO DOS COPOS.
(CONTINUED)
CONTINUED: 3.
IVAN
(tom descritivo)
Pensa bem! Um adolescente, filho de
pai repressor e mãe superprotetora,
vindo do sertão e caindo de
paraquedas na capital pra fazê
faculdade.
(tom de constatação)
Num tinha como prestá, né?!
(tom de gozação)
Acho que foi uns seis meses de pura
sacanagem.
(tom de intensidade)
Pense numa putaria... Era eu!
(tom narrativo)
Fiz o que podia e o que não podia,
experimentei de tudo e mais um
pouco... foi um auê! Até que um
belo dia fui prum bar, e lá tava
Adolfo.
Ivan dá um gole de cerveja. Margarida, Violeta e Cida
prestam atenção na história, enquanto Marcos segue fazendo o
churrasco e as crianças brincando com o cão.
IVAN
(tom descritivo)
Ele era um coroa charmosérrimo,
papo bom, de uma inteligência...
(tom de intensidade)
Pense num homem perfeito... Era
Adolfo!
(tom de observação)
Rico ele não era. Na verdade, na
verdade, nunca foi.
(tom explicativo)
Tinha dinheiro, mas gastava tudo
com festa, restaurante, presentes,
viagens... Nunca guardô um centavo.
(CONTINUED)
CONTINUED: 4.
(tom de advertência)
Se tem uma coisa que senhor ninguém
pode falá do Adolfo, é que ele era
mão de vaca.
Instante de silêncio.
IVAN
(tom saudosista com ternura)
A melhor loucura da minha vida!
Silêncio.
IVAN
(tom de tristeza)
E depois de vinte anos, o sacana me
deixa sozinho.
Silêncio. Ivan dá um gole maior na cerveja até esvaziar seu
copo.
IVAN
(pensativo - tom de tristeza)
Agora é só saudade! Só saudade...
O olhar de Ivan perde-se. Ele se emociona. Silêncio. Ele
respira fundo.
IVAN
(tom de consolo)
C´est la vie!
(tom informativo -
descontração)
Vô pegá uma cerveja.
Ivan levanta-se e vai em direção à cozinha. Marcos corta
alguns pedaços de carne que estão na churrasqueira e coloca
em um prato.
(CONTINUED)
CONTINUED: 5.
MARCOS
(tom instrutivo, para Ivan)
Pega da gaveta que tá mais gelada.
CIDA
(fala baixo, tom de
ingenuidade)
E eu pensando que era pai e filho.
Violeta ri. Margarida acende um cigarro.
VIOLETA
(tom de gozação)
Só você mermo, Cida!
Cida levanta-se.
VIOLETA
(tom de curiosidade)
Vai pá onde, ninha?
CIDA
(tom de informação)
Vô pro toalete.
Marcos vem em direção à mesa trazendo um prato com carne.
MARCOS
(tom de gozação)
Tá falando bunito, heim Cidão?
"TOALETE".
Marcos ri, pega um pedaço de carne e come.
CIDA
(tom de despeito)
Ah Marcos, vá tomá no cu.
Marcos ri.
MARCOS
(tom de gozação)
Deus é mais! Que grosseria é essa?
Sua mãe não lhe deu educação, não?
CIDA
(tom de advertência e gozação)
Ah, Marcos, fique na sua que
ninguém lhe bole.
Cida sai em direção à porta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 6.
MARCOS
(tom de constatação e gozação)
Que onda essa, Cida!
Marcos ri, vai em direção à churrasqueira.
MARCOS
(tom de aviso, para Cosme e
Damiana)
Ei, mininada, bora comê enquanto a
carne tá quentinha.
MARGARIDA
(tom de incerteza)
Não sei. Muita coisa deve ter
mudado nesses últimos anos. Sei lá,
às vezes ele tá casado, com
filho...
(tom conclusivo)
Não é justo eu aparecer do nada e
transtornar a vida dele de novo.
Violeta dá um sorriso.
MARGARIDA
(tom de curiosidade)
Que cara é essa, Violeta?
VIOLETA
(tom malicioso)
Ouxe, nada.
Ivan volta com uma garrafa de cerveja. Ivan abre a garrafa.
IVAN
(tom de elogio e intensidade)
Pense numa cerveja gelada... É
essa!
(CONTINUED)
CONTINUED: 7.
VIOLETA
(tom de elogio)
Tá um véu de noiva.
IVAN
(tom de gozação)
Já que é pra falá inglês, vamo falá
direito.
VIOLETA
(tom de esforço e gozação -
pausadamente)
Tenkiu!
(CONTINUED)
CONTINUED: 8.
VIOLETA
(tom de esforço e gozação -
pausadamente)
Senkiu!
Ivan faz o movimento com a mão ao falar.
IVAN
(tom de ensinamento e gozação
- pausadamente)
Thank you.
Violeta repete o movimento com a mão ao falar.
VIOLETA
(fala com sotaque inglês, tom
de gozação - pausadamente)
Vá pá porra!
Todos riem.
MARCOS
(tom de orgulho)
Essa merece um beijo.
Marcos sai da churrasqueira, vai até Violeta e dá-lhe um
beijo. Todos seguem rindo. Ouve-se um estrondo vindo de
dentro da casa, todos se assustam e olham em direção à porta
para ver o que aconteceu.
MARGARIDA
(tom apreensivo)
Oxente! Que quê aconteceu?
Cosme vem gargalhando da cozinha com um copo de refrigerante
na mão.
VIOLETA
(tom de curiosidade)
Que quê aconteceu, Cosme?
Cosme não para de rir. Todos esboçam um sorriso ao ver o
menino gargalhando.
MARCOS
(tom de deboche)
Endoidô, foi?
VIOLETA
(tom de curiosidade)
Que quê tem de tão engraçado?
Cosme respira fundo, para de rir.
(CONTINUED)
CONTINUED: 9.
COSME
(tom informativo e de gozação)
A Cida caiu na cozinha.
CIDA
(tom informativo)
Foi só uma quedinha. Tô bem!
Cida vai em direção à mesa passando a mão na bunda e
mancando levemente. Violeta senta-se.
MARCOS
(tom de gozação)
Ei Cidão, já tá chumbada, né!?
CIDA
(tom explicativo)
Que nada! Só tô alegrinha.
Cida se senta. Ivan serve cerveja para ela.
VIOLETA
(tom repreensivo)
Não liga pro Marcos, não!
CIDA
(tom de consolo)
Ih, já tô acostumada. Sô a rainha
do mico, mermo.
Violeta começa a rir.
VIOLETA
(tom de pedido)
Ai Cida, conta aquela história do
relógio.
(CONTINUED)
CONTINUED: 10.
CIDA
(tom conclusivo)
Vixi, essa foi o ó.
MARCOS
(tom de curiosidade)
Que história é essa?
VIOLETA
(tom surpreso)
Tu não conhece?
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 11.
MARCOS (cont’d)
Ouxe, se fosse Mar Vermelho tinha
que levá um cajado pra abrí as água
pro povo passá.
IVAN
(tom explicativo)
Qui nem essa?
CIDA
(tom afirmativo)
Fui.
(tom explicativo)
Naquela época, eu não tinha carro.
Eu era menina, não tinha nem casado
ainda.
Cida dá um gole de cerveja. Cida segue representando com as
mãos os acontecimentos narrados.
(CONTINUED)
CONTINUED: 12.
CIDA
(tom narrativo)
Bom, aí fui eu, linda e formosa pro
ponto de ônibus com o relógio de
minha tia. O ônibus parou, eu
entrei, sentei e fui embora pro
Mar... pro Rio Vermelho. Numa das
paradas, entrou um rapaz muito
estranho, e sentou do meu lado. Eu
fiquei de boa... De repente, eu
ponho a mão no pulso e não sinto
nada. Ai eu já pensei: "o vagabundo
roubou o relógio de minha tia, né?!
Filho da puta!". Eu precisava fazê
alguma coisa, senão eu ia me
lascar. Que é que eu fiz?... Peguei
a bolsa e, discretamente, tirei de
dentro dela um escova de cabelo. E
encostei com o cabo na barriga dele
fingindo que era um revólver. Ai eu
falei: "perdeu, põe o relógio
dentro da bolsa". Ai ele: "mas...
mas...". Eu insistí: "não tem mais
nem menos, perdeu, ponha o relógio
dentro da bolsa". E eu nem olhando
pra cara dele. Ai ele foi lá e
colocô o relógio na bolsa... Na
primeira parada, eu desci. Já tinha
até desistido do acarajé. Quando eu
desço do ônibus, eu sinto um
negócio escorregando por meu braço.
Era o bendito relógio. Que é que
aconteceu? presilha abriu sozinha e
o relógio escorregou pro braço, e
eu num sentí.
O pessoal já começa a rir.
MARGARIDA
(tom pasmado)
Meu Deus!
CIDA
(tom narrativo)
Ai, no que eu abri a bolsa, o
relógio do homem tava lá dentro.
IVAN
(tom pasmo)
Deus é mais! E que tu fez?
(CONTINUED)
CONTINUED: 13.
CIDA
(tom narrativo)
A minha sorte é que tinha um carro
da polícia no ponto de ônibus. Fui
correndo até o guarda e gritei:
"seu guarda, pare aquele ônibus".
Ai o guarda chegou, sem entender
nada, e perguntou o que tinha
acontecido. Eu falei: "Pare aquele
ônibus que eu roubei o relógio do
homi".
CIDA
(tom narrativo)
Aí que eu tive que devolver o
relógio pro homem. Quase morri de
tanta vergonha, né?!
(tom de constatação)
Eu dô muito mole, mas esse foi
campeão.
Todos riem. PAULO, 47 anos, vestindo camisa, calça e sapato,
está com a barba feita e o cabelo penteado, e com uma caixa
de bombons na mão. Ele chega no quintal sem ninguém
perceber.
PAULO
(tom cerimonioso)
Boa noite.
INDICAÇÕES TÉCNICAS
FOTOGRAFIA
CENA 02 - AÇÃO
SITUAÇÃO 01
(CONTINUED)
CONTINUED: 15.
ZÚ
(tom de gozação)
Eu acho que é uma bola.
Os convidados riem.
PAULO
(tom questionador)
Ouxe! Será que é uma bola mermo,
Paulinho?
(CONTINUED)
CONTINUED: 16.
Paulinho faz que "sim" com a cabeça. Mãe e filho vão mais
próximos ao presente e começam a rasgar o papel de presente.
É uma bicicleta para criança com rodinha. Paulinho sorri
para a câmera e depois para a mãe. Ele sobe na bicicleta.
Paulo dá um zoom no rosto de Margarida, e fica por alguns
instantes filmando a expressão de satisfação dela em ver o
filho com o presente. Paulo recua o zoom e segue filmando a
mulher e o filho. ALESSANDRA, 30 anos, mulher de Zú,
segurando uma câmera fotográfica.
ALESSANDRA
(tom imperativo)
Paulo, vai lá com eles preu tirar
uma foto da família.
PAULO
(tom de pedido)
Viu. Filma aqui pra mim, Zú.
Paulo passa a filmadora para a mão de Zú que filma Paulo e
Margarida se aproximando de Paulinho que está em cima da
bicicleta. Através do visor da câmera fotográfica, que está
com Alessandra, são enquadrados Margarida, Paulo e Paulinho
posando para a foto. É disparado o flash da câmera. SONS DE
GRITOS DESESPERADO DE MARGARIDA AO SABER QUE PAULINHO
MORREU.
(CONTINUED)
CONTINUED: 17.
INDICAÇÕES TÉCNICAS
SOM
- o silêncio do espaço de Margarida também é evidenciado
pelas repentinas entradas do som-memória (SM). O som-memória
é quando o passado se representa a partir de sons, e não em
imagens. Durante vários momentos do dia a dia de Margarida,
esses sons invadem seu ambiente e perturbam a mulher,
evidenciando o silêncio e a solidão. Não precisamos de um
diálogo ou de uma narração que diga que Margarida está só, o
próprio contraste de silêncio do presente e sons do passado
apresenta-nos isso por associação. É o som da bicicleta de
Paulinho correndo pela casa em contraste com a imagem e o
som vazio do presente. A princípio, não importa-nos saber se
Paulinho morreu ou foi sequestrado, nos importa sentir que
algo foi perdido, que algo se perdeu no tempo. É a busca por
uma abstração do tempo, que acreditamos que pode dar-se pela
subjetividade do som. Ouvir o som de Paulinho pulando na
cama (molas, respirações, risadas) colide com a imagem da
mulher descabelada e de paços lentos e imprecisos indo ao
banheiro (cena 08). Mais importante que a visualização do
passado, é a reação da personagem (no presente) deparando-se
com esse passado; os cortes entre uma imagem e outra
(presente-passado-presente) impossibilitam a naturalidade
com que o passado aborda Margarida a qualquer momento de seu
dia. O som que é responsável pelo pertencimento de Violeta
no seu espaço, é justamente aquele que oprime e desloca
Margarida de seu espaço. O som-memória cria a contradição
com a imagem do presente. A cama está ali, mas falta a
criança pulando, respirando, sorrindo. Com o som-memória,
trabalhamos a ideia de vestígio, como a presença daquilo que
não está mais lá; o som do passado de Margarida justaposto
ao presente sugere a diferença, o desarranjo, a novidade;
existe uma presença que transborda à "realidade" da imagem.
CENA 05 - AÇÃO
O quarto é espaçoso com duas portas, uma que vai para a sala
e outra para um banheiro; uma cama de casal grande; ao lado
da cama, dois criados, em um dos criados, tem um
porta-retrato com a foto de Paulinho sorrindo em cima de sua
bicicleta; um armário grande; uma janela com uma cortina
tapando a entrada do sol; entre o armário e a porta do
banheiro, há um espelho grande.
(CONTINUED)
CONTINUED: 18.
IVAN
(tom de ternura)
Bom dia, meu anjo.
Violeta retribui com um sorriso. Ela se levanta, pega a
bicicleta e a traz empurrando pela calçada no sentido da
casa de Adolfo, que vem andando com Filipe em direção à
moça.
ADOLFO
(tom alegre)
Bom dia, Violeta.
Violeta para. Filipe vai em direção à vasilha de coxinha.
(CONTINUED)
CONTINUED: 20.
VIOLETA
(tom questionador)
Ouxe, seu Adolfo, caiu da cama,
foi?
ADOLFO
(tom de lamento)
É o Filipe! Agora deu de me acordar
todo santo dia às cinco da manhã.
Filipe, preso à coleira, esforça-se para se aproximar da
cesta com as coxinhas. Adolfo puxa o cão pela coleira.
VIOLETA
(tom repreensivo)
Quando eu digo pro senhor não dá
ousadia pra esse cachorro... Isso
que dá!
Os três vão caminhando lentamente no sentido da casa de
Cida, vizinha deles.
VIOLETA
(tom de curiosidade)
Mas sim, seu Adolfo, e como foi a
viagem lá pro estrangeiro?
ADOLFO
(tom saudosista)
Ah, Paris! La ville d’amour!
(tom de gozação)
Você conhece Paris, né, Violeta?
Violeta dá uma gargalhada. Adolfo ri.
VIOLETA
(tom de curiosidade)
O senhor conhece o mundo todo, né,
seu Adolfo?!
(CONTINUED)
CONTINUED: 21.
VIOLETA
(tom de curiosidade)
E o senhor trabalhava de quê?
ADOLFO
(tom informativo)
Eu era dono de uma agência de
viagem.
VIOLETA
(tom conclusivo)
Hum... Que massa!
(tom de repreensivo)
Ó paí, o senhor me pega de conversa
e eu perdendo minha clientela!
(tom cordial)
Tchau, seu Adolfo.
(tom de deboche)
Tchau, REI FILIPE.
ADOLFO
(tom cordial)
Bom trabalho, Violeta.
VIOLETA
(tom repreensivo e de gozação)
Tá regando as plantinha, Cida?
CIDA
(tom de advertência)
Ói, Violeta, num vem não, que hoje
eu acordei de ovo virado.
VIOLETA
(tom de explicação e gozação)
Ouxe, Cida, não ouviu falá do
aquecimento global, não? Bora
economizando água, mulher...
CIDA
(tom exclamativo)
Ora, mas veja!
Violeta ri subindo na bicicleta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 22.
VIOLETA
(tom de elogio)
Êta, Cida, o cabelo ficô uma
beleza, viu?!
Cida dá um sorriso vaidoso e põe uma das mãos no cabelo para
ajeitar. Violeta manda um beijo para Cida e sai pedalando
pela rua. Cida acena para Violeta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 23.
TONINHO
(tom de elogio)
Uh... hoje a coxinha tá bem boa,
viu! Com essa coxinha, eu até que
casava com você, Violeta!
VIOLETA
(tom repreensivo)
Ó paí! Osadia todo mundo tem, né,
seu Toninho?! Só tá esquecendo o
limite! Ó que eu sô casada, e muito
bem casada.
Toninho dá mais uma mordida e fala de boca cheia.
TONINHO
(tom de pedido)
Ôpa! Tá certo! Mas me diga, quanto
você qué pela receita?
Ele olha para a estufa no balcão.
VIOLETA
(tom de orgulho)
Sinto muito, seu Toninho, mas a
receita é de família. Vendo não.
(tom de gozação)
Se quizé, só comprando na minha mão
mesmo. É o máximo que posso fazê!
TONINHO
(tom conclusivo com gozação)
Êta muler difícil! Mas deixa assim,
tu enchendo a burra de dinheiro e
eu contando meu trocados. Mas tem
nada não, Violeta.
Ela sorri. Toninho pega o dinheiro do bolso e entrega à
Violeta que guarda o dinheiro no bolso. Violeta sobe na
bicicleta e sai pedalando.
VIOLETA
Brigado seu Toninho, até mais!
Toninho acena para Violeta e vai entrando no bar com
expressão de satisfação.
24.
(CONTINUED)
CONTINUED: 26.
IVAN
(tom de consulta)
Capital de Michoacan... com "M"...
"M" de Madona... Sim, você que
conhece o México que tem que
saber... 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7
letras... Não Adolfo, Medelín é na
Colômbia... Sua memória sempre foi
ótima, bota pra trabalhar aí, só ta
faltando essa pra eu fechar...
Morélia?... Deixa eu ver... Mo- ré
- lia... Arrasou! É Morélia.
(sorri)
Ele olha para o porta-retrato sobre a mesa e dá um leve
sorriso. A SECRETÁRIA, 30 anos, bate na porta do consultório
e a abre.
SECRETÁRIA
(fala baixo)
Doutor Ivan, a dona Vilma já
chegou.
IVAN (cont’d)
Ah, a senhora já tá bem melhor, tá
até coradinha. Assim que eu gosto
de ver.
JOANA
(tom de pedido)
Dá licença, doutor Ivan. Desculpa
incomodar, mas será que tem jeito
do senhor fazê um favorzinho pra
mim.
(CONTINUED)
CONTINUED: 28.
IVAN
(tom explicativo)
Olha, esses dois aqui são depois do
almoço. Esse aqui é depois do café
da manhã e antes de dormir. E esse
é só na hora de dormir. Entendeu?
JOANA
(tom conclusivo)
Ah, agora entendi.
(tom de devoção)
O senhor...
IVAN
(interrompendo)
Perái, dona Joana...
JOANA
O senhor é um santo, mermo!
Ivan sorri. SOM DE MARTELADAS.
29.
(CONTINUED)
CONTINUED: 30.
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode
alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do
que sua...
Quando Adolfo chega na parte "... Porque não há sonho mais
lindo do que sua...", uma corda do violão arrebenta. Filipe
assusta-se e sai correndo. Adolfo dá uma gargalhada,
levanta-se, coloca o violão sobre a mesa e pega Filipe no
colo. Adolfo apaga a luz e sai do escritório rindo e fazendo
carinho em Filipe.
(CONTINUED)
CONTINUED: 31.
VIOLETA
(tom de satisfação)
Graças a Deus, vendi tudinho.
ADOLFO
(tom de lamento)
Que pena!
(tom de explicação)
Ia comprar uma coxinha pro Filipe.
O bichinho chega saliva quando
sente o cheiro das suas coxinhas!
VIOLETA
(tom repreensivo)
Ó paí, tô dizendo que o senhor dá
ousadia pro cachorro. Depois num
reclame quando ele tomá conta da
cama e botá o senhor e o Ivan pra
dormí no chão. Aí eu quero vê pra
que santo o senhor vai rezar!
Os dois riem. Adolfo vai para sua casa com Filipe. Violeta
segue empurrando a bicicleta até a porta de casa. Ela olha
para a rosa no jardim. Com Felipe, Adolfo chega na porta de
casa e coloca a chave na fechadura. Um vento lateral sopra
forte, Adolfo vira-se no sentido do vento. Ele fecha os
olhos e sente a brisa bater em seu rosto e bagunçar seu
cabelo. Filipe rosna e fica olhando para Adolfo que respira
fundo, sorri, abre os olhos e depois a porta. Os dois
entram.
(CONTINUED)
CONTINUED: 32.
(CONTINUED)
CONTINUED: 33.
(CONTINUED)
CONTINUED: 34.
SHIRLEY
Se julga bofe que tripa tá cara.
Shirley dá outra gargalhada. Zú e Alessandra se divertem com
Shirley, Paulo está aéreo, segue fumando.
SHIRLEY
(tom de informação)
Ai, ai, deixa eu ir fazer uma coisa
que ninguém pode fazer por mim...
ALESSANDRA
Não é todo dia que um furacão passa
por Cachoeira... E você aí com essa
cara de cachorro que peidou na
igreja.
PAULO
Ainda tô me adaptando a vida de
solteiro.
ALESSANDRA
Cinco anos de adaptação? Deus é
mais!
Paulo acende outro cigarro.
(CONTINUED)
CONTINUED: 35.
ZÚ
Você fica aí comendo mosca pra você
ver só... Já já ela se reta e se
pica daqui.
ZÚ
(tom de elogio)
Hum... Esse escondidinho tá retado
de bom.
ALESSANDRA
Já nem sei quantas vezes tentei
ligar pra ela, bati na porta,
mandei carta... Ela não dá a minima
pra mim.
(CONTINUED)
CONTINUED: 36.
SHIRLEY
(tom carinhoso)
Quem morreu?
ALESSANDRA
Estamos falando de uma antiga
amiga.
SHIRLEY
Morreu?
ZÚ
História complicada...
SHIRLEY
(tom malicioso, para Paulo)
Escondidinho? Adoro escondidinho!
IVAN
(voz off, tom de impaciência)
Adolfo, Adolfo. Abre a porta.
Violeta acorda assustada.
(CONTINUED)
CONTINUED: 37.
IVAN
(voz of, tom de impaciência)
Ei amor, tá me ouvindo?
Violeta chacoalha Marcos.
VIOLETA
(tom de preocupação)
Marcos, Marcos... (Marcos segue
dormindo) Marcos, acorda Zé do
Ronco.
VIOLETA
(tom conclusivo)
Eu vô lá vê o que tá acontecendo. E
você trate de levantar pra vim
comigo.
MARCOS
(tom de lamento)
Ô Jesus!
Marcos senta-se na cama sonolento. Violeta coloca um roupão
e olha pela janela do quarto.
38.
VIOLETA
(tom de preocupação)
O que tá acontecendo, Ivan?
IVAN
(tom explicativo e impaciente)
O Adolfo que não abre essa porta.
VIOLETA
(tom de pergunta)
Cê tá sem chave, nêgo?
IVAN
(tom explicativo)
Tô. Tava de plantão até agora. Eu
liguei falando pra ele não dormir.
(tom de desânimo)
Mas pelo jeito... Tô lascado.
(tom de intensidade)
Pense num sono pesado... É o sono
do Adolfo.
VIOLETA
(tom explicativo)
Seu Adolfo que não abre a porta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 39.
VIOLETA
(tom exclamativo e de gozação)
Seu Adolfo, acorda Bela Adormecida!
Seu Adolfo.
MARCOS
(tom informativo)
Pronto.
Marcos empurra a porta que se abre. Ao fundo se vê os pés de
Adolfo que está deitado no sofá, e Filipe está deitado em
cima do sofá aos pés do dono. Quando a porta abre, as
(CONTINUED)
CONTINUED: 40.
MARCOS
(tom de dúvida)
Quê?
VIOLETA
(tom de explicação)
O Ivan falô que é pra por meia
branca e fina no Adolfo.
Armário organizadíssimo. Marcos abre a gaveta de meia dentro
do armário que está muito organizada, ele pega uma meia
branca e fina. Filipe sai do quarto e vai para a sala
(câmera acompanha o cão em sua altura).
Filipe vem andando até o sofá em que Ivan e Cida estão
sentados. Ele para aos pés de Ivan, olha para cima e
senta-se ao lado do dono, sempre com as orelhas baixas.
Violeta sai do quarto junto de Marcos, ela põe a mão no
ombro de Ivan.
VIOLETA
(tom explicativo com ternura)
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 41.
VIOLETA (cont’d)
Ele já tá arrumadinho. O Marcos vai
lá em casa ligá pra funerária,
enquanto eu ligo pra família dele.
(CONTINUED)
CONTINUED: 42.
(CONTINUED)
CONTINUED: 43.
SHIRLEY
(sonolenta, tom questionador)
Ouxe, num vai durmi não?
PAULO
(tom pensativo)
Já vô.
Shirley volta a dormir. Ele segue pensando e fumando.
VIOLETA
(fala baixo, tom repreensivo)
Acorda, Marcos.
Marcos desperta e olha pra ela com cara de sono.
VIOLETA
(fala baixo, tom repreensivo)
Velório é pra velá, não é pra
durmi, não.
INDICAÇÕES TÉCNICAS
As cenas 39 e 40 se intercalam através de raccords de
movimento entre Violeta e Margarida.
(CONTINUED)
CONTINUED: 47.
PAULO
(tom de desespero e ternura)
E você acha que eu não tô sofreno?
Não é isso.
MARGARIDA
(tom desolado quase sem
expressão)
Você não entende minha dor.
PAULO
(tom de desespero e ternura)
Eu entendo. Você que não entende
que a vida tem que continuar,
porra.
Ouve-se Margarida dando um tapa na mesa.
MARGARIDA
(grita, tom de nervosismo)
Você não entende minha dor.
SOM DE CAMPAINHA TOCA. Margarida começa a guardar
rapidamente as fotos. Ela tampa a caixa e a leva para o
armário. A campainha toca novamente.
(CONTINUED)
CONTINUED: 48.
VIOLETA
(tom de simpatia)
A senhora qué comprá coxinha?
Violeta tira o pano que cobre a travessa. Margarida segue
olhando sem responder.
VIOLETA
(tom de orgulho)
Tá bem fresquinha, fritei hoje
mermo.
(CONTINUED)
CONTINUED: 49.
VIOLETA
(tom nervoso)
Deus é mais!
VIOLETA
(tom pensativo)
Em nada.
Marcos começa a bolar um baseado.
MARCOS
(tom conclusivo)
Em nada? Duvido! Eu bem sei que
essa sua cabecinha aí num para de
funcioná um minuto.
(tom de palpite)
Seu Adolfo?
Marcos segue bolando. Violeta pega o baseado da mão de
Marcos para bolar.
VIOLETA
(tom impaciente)
Me dê isso aqui que você é muito
lento!
(tom pensativo)
Não. Eu só tava aqui pensando numa
mulher que eu vi hoje.
MARCOS
(tom conclusivo)
Lá vem...
(CONTINUED)
CONTINUED: 50.
VIOLETA
(tom de perplexidade)
Meu Deus! Eu sei quem é a mulher.
MARCOS
(tom curioso)
Quem?
VIOLETA
(tom de perplexidade)
Deus é mais! É a pró.
MARCOS
(tom curioso)
Quem?
Violeta fica pensando ainda com a mão na boca.
VIOLETA
(tom conclusivo)
É ela mermo!
Violeta fica com um olhar distante. SONS DE PARQUE
(pássaros, crianças, rio...).
Marcos passa o baseado para Violeta.
MARCOS
(tom curioso)
Ela quem, Violeta?
VIOLETA
(tom explicativo)
É dona Margarida. Ela foi minha
professora quando eu era criança.
Violeta dá um trago.
VIOLETA
(tom de espanto)
Deus é mais! A mulher tá um caco, e
com uma cara triiiste.
(tom de culpa)
Nossa! Eu tô em falta com ela.
Preciso urgentemente fazê uma
visita a ela.
(tom pensativo)
Coitada, deve tá sofrendo até hoje.
MARCOS
(tom conclusivo)
Tá veno, lá vai você se meter na
vida dos outro.
(CONTINUED)
CONTINUED: 51.
VIOLETA
(tom de gozação)
Ouxe, ouxe, ouxe. Que ousadia é
essa, rapaz? Tem gente olhando.
VIOLETA
(tom malicioso)
Você é muito do osado!
(CONTINUED)
CONTINUED: 52.
(CONTINUED)
CONTINUED: 54.
Margarida suspira.
VIOLETA
(tom questionador)
Mas sim, num vai me convidar pra
tomá um cafezinho, não?
(CONTINUED)
CONTINUED: 55.
VIOLETA
(tom narrativo)
Desde que aconteceu aquela coisa
toda com a senhora, nunca mais lhe
vi. Voinha até lhe procurou naquela
época, mas nunca conseguiu falar
com a senhora. Achei até que
tivesse ido embora daqui.
Margarida acende um cigarro. Violeta fica em silêncio sempre
observando a casa.A rosa está na pia em um copo de água. Ela
olha para a foto da família na parede.
VIOLETA
(tom de curiosidade)
É seu filho?
VIOLETA
(tom de pergunta)
A senhora dá licença deu passá
outro?
MARGARIDA
(sem atenção)
Passar o quê?
VIOLETA
(tom de informação)
Outro café.
(CONTINUED)
CONTINUED: 56.
MARGARIDA
(sem expressão)
Pode ser.
Violeta pega uma panela que está na pia, enche de água.
MARGARIDA
(tom de curiosidade com pouca
expressão)
Você terminou os estudos?
MARGARIDA
(tom de curiosidade com pouca
expressão)
Seu marido faz o quê?
VIOLETA
(tom de pergunta)
Onde fica o café?
Margarida aponta para um armário enquanto dá um trago longo
no cigarro. Violeta abre o armário, onde estão vários potes.
VIOLETA
(tom de orgulho)
Marcos é pedreiro, e dos bons.
Nunca fica sem serviço.
(CONTINUED)
CONTINUED: 57.
VIOLETA
(tom de indignação)
Não acredito que vocês separaram.
Não vai me dizer que ele foi embora
com outra?
MARGARIDA
(tom explicativo e de lamento
com um pouco mais de
expressão)
Não. Ele só não guentô ficá com a
que tinha.
Violeta começa a coar o café.
VIOLETA
(tom de indignação)
Que abestalhado! A senhora era uma
mulher tão linda.
Violeta segue coando e olha para Margarida.
VIOLETA
(tom de justificativa)
Quer dizer, é uma mulher linda, só
tá meio caidinha, né?!
Violeta volta a olhar para o café coando.
VIOLETA
(tom conclusivo)
Tá precisando é levantar esse
astral...
(tom de conselho)
Mas por que a senhora não procura
seu Paulo?
Silêncio. Violeta olha para Margarida que está olhando para
o nada. Violeta termina de coar o café, tapa a garrafa
térmica e a leva para a mesa, onde serve as duas xícaras em
cima da mesa. Margarida acende outro cigarro. Violeta
senta-se ao lado de Margarida e dá um gole no café.
VIOLETA
(tom exclamativo)
Agora sim um café de verdade!
(CONTINUED)
CONTINUED: 58.
VIOLETA
(tom de explicação)
É canela.
MARGARIDA
(sem expressão)
O quê?
VIOLETA
(tom de explicação)
Coloquei canela.
VIOLETA
(tom de dúvida)
Já faz quanto tempo, mermo?
MARGARIDA
(tom um pouco mais agressivo)
Não quero falar nisso!
VIOLETA
(tom de constatação e ternura)
Acho que faz um bucado de tempo,
né?! Eu ainda era criança.
(tom de conselho com ternura)
A senhora não pode ficar assim pra
sempre, não.
(CONTINUED)
CONTINUED: 59.
MARGARIDA
(tom agressivo)
Por favor, Violeta...
Silêncio. Violeta tenta olhar para os olhos de Margarida,
mas ela esquiva o olhar.
VIOLETA
(tom de conselho)
A senhora tem todo direito de
sentir sua dor, mas o que num pode,
é se entregá desse jeito.
(tom questionador)
Olha pra essa casa. Isso não é de
Deus, não! Olha pra senhora.
Margarida arrasta a cadeira para trás e se levanta.
MARGARIDA
(tom de nervosismo)
Violeta, muito obrigado pela
visita. Mas acho melhor você ir
embora.
VIOLETA
(tom questionador)
A senhora acha que seu filho ia
ficar feliz em lhe vê assim?
VIOLETA
(tom questionador)
"Não se intrometa?"
(tom informativo)
Dona Margarida, deixe eu lhe contar
uma história.
(tom narrativo)
Era uma vez, uma menina doce,
frágil, ingênua. Ela era feliz e
amada. O pai era um ídolo, a mãe,
um exemplo. Uma família perfeita.
Até que um dia, procurando por ela,
a desgraça bateu em sua porta, e
(MORE)
(CONTINUED)
CONTINUED: 60.
VIOLETA (cont’d)
sem cerimônia, entrou em sua casa,
comeu seu pão, bebeu sua água e foi
embora deixando pra trás a saudade.
Sem pai, nem mãe, a menina ficô
sozinha. Por não entendê o que tava
acontecendo, ela fez do silêncio
sua melhor companhia. A cada dia, a
cada hora, a cada minuto, a cada
segundo ela era perseguida pela dor
mais duída do mundo que parecia não
tê mais fim... Ninguém podia
entender aquela dor... Até que um
belo dia, cansado de ver tanto
sofrimento, Deus mandou de presente
pra garota um anjo vestido de
mulher. Com simplicidade e
delicadeza, esse anjo salvou a
menina da dor eterna.
Violeta apoia-se novamente na mesa.
VIOLETA
(tom conclusivo)
Dona Margarida, a senhora que me
perdoe, mas você ensinou à menina
que quando alguém tem um problema
muito grande, a gente deve
intrometê sim na vida do outro.
MARGARIDA
(tom agressivo)
Violeta, sai de minha casa.
VIOLETA (cont’d)
Debaixo dágua por enquanto sem
sorriso e sem pranto
sem lamento e sem saber o quanto
esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
Debaixo dágua ficaria para sempre
ficaria contente
longe de toda gente para sempre
no fundo do mar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Debaixo dágua protegido salvo fora
de perigo
aliviado sem perdão e sem pecado
sem fome sem frio sem medo sem
vontade de voltar
Mas tinha que respirar
Debaixo dágua tudo era mais bonito
mais azul mais colorido
só faltava respirar
Mas tinha que respirar
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
Todo dia, todo dia
Todo dia
MARGARIDA
(tom histérico)
Eu não quero ouvir nada. Eu quero
ficá em paz. Sai da minha casa.
Essa mulher das suas memórias
morreu junto com o filho. Deixa eu
viver em paz a minha dor... Cala a
boca!
CIDA
(tom simpático)
Boa noite, Marcos.
MARCOS
(tom de gozação)
Ouxe, Cidão, agora deu pra batê de
porta em porta pra pregar a palavra
do senhor?
CIDA
(tom de impaciência)
Ai, como você é abestalhado!
(CONTINUED)
CONTINUED: 64.
MARCOS
(tom de gozação)
Pronto! Agora é o Cidão que eu
conheço.
Marcos ri.
MARCOS
(tom informativo)
Vô lá chama ela, entra aí.
CIDA
(tom informativo)
Chame ela que eu vô fica aqui
tomando uma fresca. Essas ondas de
calor tão acabando comigo.
MARCOS
(tom de gozação)
Nada como ser jovem, né, Cidão?!
Cida faz um sorriso irônico. Marcos ri e entra na casa.
MARCOS
(tom de encanto)
Olhando pras duas mulheres mais
lindas dessa Bahia de meu Deus!
MARCOS
(tom informativo)
A Cida tá lhe esperando pra
saidinha de vocês.
(CONTINUED)
CONTINUED: 65.
VIOLETA
(tom de lembrança)
Vixi, já tava esquecendo da nossa
cervejinha de quarta. Fala pra ela
que só vô me arrumar e tô ino.
MARCOS
(tom de gozação e ternura)
Num tô dizendo, tá até ganhando
peso.
VIOLETA
(tom de constatação)
Ai Cida, você não tem jeito mermo,
não!
CIDA
(tom de lamento)
Ai Violeta, eu também sou filha de
Deus. Deus é mais! Parece que
enterraram uma cabeça de cavalo no
quintal lá de casa.
CIDA
(tom de orgulho)
Ah, nesse ponto você tem razão.
Passei uma vida inteira apanhando
do defunto. Agora não quero saber
de traste nenhum, não.
(CONTINUED)
CONTINUED: 67.
CIDA
(tom de indignação)
Agora, mas veja! Era só o que me
faltava, levar bronca do dono do
bar.
CIDA
(tom de indignação)
Deus é mais! Tá repreendido em nome
de Jesus Cristo! Eu aqui abrindo
meu coração e você...
Violeta, com o olhar de quem teve uma ideia, põe a mão nos
ombros de Cida interrompendo a fala dela.
VIOLETA
(sem atenção)
Pera só um minutinho, Cida. Já
volto.
Violeta levanta-se e vai até Paulo. Cida acompanha Violeta
com o olhar. Ela vê Violeta cutucando Paulo, ele olha para
ela e não a reconhece, ela fala alguma coisa e ele abre um
sorriso. Paulo levanta-se e abraça Violeta. Cida fica com um
olhar desconfiado sem entender. Nesse momento, entram três
JOVENS MÚSICOS no bar, cada um trazendo um instrumento e
sentam-se à mesa ao lado. Cida acompanha os jovens com um
olhar malicioso, que logo é quebrado por um olhar
desconfiado ao olhar novamente para Violeta e Paulo que
conversam com sorrisos no rosto. Cida serve o copo de
cerveja e dá um gole. Um dos rapazes ergue o braço pedindo
uma cerveja para seu Toninho. Um outro rapaz da mesa olha
para Cida de cima a baixo. Cida fica atordoada e olha
novamente para Violeta e Paulo que seguem conversando. Cida
começa a se abanar enquanto olha para um lado e para o outro
alternando seu olhar e suas expressões. O rapaz, enquanto
(CONTINUED)
CONTINUED: 68.
Cida olha para o rapaz que sorri para ela e pisca um dos
olhos.
CIDA
(tom malicioso, sussurro)
Êta porra!
Sem saber o que fazer, entre uma olhada e outra, Cida
desespera-se e vira o copo de cerveja de uma vez. Quando ela
bate o copo na mesa, Violeta chega e senta-se ao lado dela
com um sorriso no rosto.
CIDA
(tom de perplexidade,
sussurrando)
O que foi aquilo, Violeta?
VIOLETA
(tom de curiosidade)
O quê?
CIDA
(tom de indignação,
sussurrando)
Você cheia de intimidade com aquele
homem. Tá "dodja" (doida)!
VIOLETA
(tom de indignação e
explicação)
Feche sua cara, Cida! Dodja tá
você! Aquele é seu Paulo, um grande
amigo que eu não via há anos.
CIDA
(tom de conformismo)
Unh, é bom mermo!
(tom malicioso, sussurrando)
Bunitão ele, né?!
VIOLETA
(tom de gozação)
É, mas já tem dona.
(CONTINUED)
CONTINUED: 69.
CIDA
(tom de justificativa)
Oxe, Violeta, fique tranquila, que
quem gosta de velho é ferrugem. Meu
negócio é outro.
MARCOS
(tom carinhoso)
Violeta.
Violeta num movimento leve faz que "sim" com a cabeça. Ela
para de cantarolar e dá um beijo doce e profundo na testa de
Roquelina. Com cuidado, Marcos levanta a cabeça de Roquelina
para Violeta levantar-se. Violeta levanta-se, e com o mesmo
cuidado, Marcos coloca a cabeça da avó no travesseiro.
Marcos abraça Violeta e eles vão saindo do quarto.
FADE
CARRO DE SOM
Nota de falecimento. Anunciamos o
falecimento de Roquelina Aparecida
Silva. Os familiares e amigos
convidam a todos para o
sepultamento que acontecerá hoje às
quatro horas da tarde no cemitério
municipal. A família enlutada
agradece a todos que comparecerem a
esse ato de fé e piedade cristã.
Nota de falecimento...
(CONTINUED)
CONTINUED: 74.
VIOLETA
(tom orgulhoso)
Quando eu digo que é minha
especialidade, a senhora não leva
fé.
VIOLETA
(tom de solução)
Então vamo dá uma voltinha de
bicicleta.
MARGARIDA
(tom óbvio)
Não.
VIOLETA
(tom de argumentação)
Ouxe, uma voltinha de bicicleta não
mata ninguém.
MARGARIDA
(tom de informação)
Eu não sei andar de bicicleta, não.
VIOLETA
(tom de solução)
Pronto! Então vamo aprendê... Sô
craque nisso!
(CONTINUED)
CONTINUED: 75.
VIOLETA
(tom de incentivo)
Vamo tentar?
MARGARIDA
(tom de leve desespero)
Mas, tentar é difícil.
VIOLETA
(tom de incentivo)
Só não é fácil... mas é simples.
(tom de convite)
Vamos só tentar?
Violeta segura mais forte na mão de Margarida. Margarida
abaixa a cabeça. Silêncio.
VIOLETA
(tom de proposta)
E aí, cervejinha ou bicicleta?
Margarida levanta a cabeça com um sorriso de rendição e olha
para Violeta.
VIOLETA
(tom de proposta)
Bora arrumá essa casa?
Margarida sorri para Violeta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 76.
MARGARIDA
(tom de concordância)
Bora.
Margarida abre espaço para Violeta entrar com a bicicleta.
(CONTINUED)
CONTINUED: 77.
MARGARIDA
(tom conclusivo)
É... mágico. O cinema é mágico.
VIOLETA
(tom instigante)
Mas, como é?
Durante todo diálogo elas seguem limpando a sala.
MARGARIDA
(tom de dúvida)
Como assim?
VIOLETA
(tom instigante)
Como é o cinema?
MARGARIDA
(tom explicativo)
É uma sala grande cheia de
cadeiras, e na frente tem um telão
branco enorme...
VIOLETA
(tom de deboche)
Isso eu sei dona Margarida. Eu
também não sou tabarel!
Margarida ri.
VIOLETA
(tom instigante)
Eu digo, como a senhora se sente no
cinema?
MARGARIDA
(tom de reflexão)
Como me sinto?
MARGARIDA (cont’d)
insegurança. Mesmo sabendo que
aquele espaço está cheio de gente,
você se sente sozinho diante da
tela.
(tom explicativo e de
encantamento)
É como se cortasse a ligação que
você tem com a segurança das suas
certezas, e lhe jogassem de cabeça
pra viver uma nova experiência que
você não sabe onde vai dá. Um
bocado de gente fala que o cinema
existe pra você esquecer da sua
vida, dos seus problemas e viver um
mundo mágico longe da sua
realidade. Eu não acredito muito
nisso não. Cinema é experiência.
Pra mim, um bom filme é aquele que
joga na sua cara seus podres, suas
limitações, suas angústias. Um bom
filme antes de tudo, quer te
experimentar, quer ser
experimentado. E quando isso
acontece... Ah, você perde o chão,
perde a linha, perde a vergonha, e
transcende. É no escuro, diante da
imagem e dominada pelo som, que
você consegue ficar, finalmente,
diante de si mesmo e escutar aquilo
que você nunca teve coragem de
falar para si. É nessa hora que
você se encontra e se perde de uma
vez por todas, sem máscara e sem
fantasia, mesmo que seja por alguns
minutos. Quando o filme acaba e as
luzes se acendem, tudo fica
diferente, vazio... Aquele que
sentou na poltrona, nunca mais vai
levantar; aquele que levantou é
outro, é novo. É louco, né?!
VIOLETA
(tom de indignação)
Oxente, e isso é bom, dona
Margarida?
Margarida sorri.
MARGARIDA
(tom conclusivo)
É.
(CONTINUED)
CONTINUED: 79.
VIOLETA
(tom narrativo)
Quando eu era criança, eu ficava
pensando... Assim como a gente vê
os artistas na tela, será que eles
também conseguem ver a gente?
Violeta fica um instante pensando.
Violeta, pensativa, olha direto para a câmera, com o olhar
de quem parece estar procurando algo. Quando ela acha o que
procura, abre a boca para dizer algo, mas TOCA A CAMPAINHA e
interrompe o raciocínio dela. Margarida vai em direção à
porta. Violeta começa a passar pano nos porta-retratos. Ela
olha para ver quem está na porta e vê Margarida recebendo
uma caixa com compras. Violeta passa o pano nos
porta-retratos e fica vendo as fotos. Margarida passa com a
caixa e vai até a cozinha. Violeta segue olhando as fotos.
INDICAÇÕES TÉCNICAS
EDIÇÃO: As cenas 91B, 91 e 93 serão intercaladas. Montagem
paralela.
(CONTINUED)
CONTINUED: 81.
VIOLETA
(tom de ensinamento)
Agora ao mesmo tempo que você
pedalá com um pé, você tira o outro
do chão e continua pedalando.
Margarida olha para trás.
MARGARIDA
(tom questionador)
Cê vai me segurar?
VIOLETA
(tom conclusivo)
Vô.
VIOLETA
(tom de alívio)
Essa foi por pouco.
(CONTINUED)
CONTINUED: 82.
MARGARIDA
(tom de gozação)
Que nada! Eu só tava lhe testando
pra vê se você não ia me derrubá.
As duas riem. Margarida se posiciona novamente para
continuar andando. Violeta segura o banquinho. Margarida
respira fundo e dá a primeira pedalada. Mesmo sem equilíbrio
e movimentando muito o guidão, a cada pedalada Margarida vai
se firmando. Violeta vai atrás segurando no banquinho.
Margarida vai ganhando equilíbrio e firmeza. Margarida perde
o equilíbrio e coloca o pé no chão. Ela volta a pedalar com
mais desenvoltura. Margarida começa a ir mais rápido e
Violeta vai apertando o passo atrás dela. Violeta percebe
que ela já está com domínio e solta o banquinho. Margarida
segue andando de bicicleta sozinha. Violeta sorri. Margarida
se assusta ao perceber que está sozinha, olha para traz e vê
Violeta de longe sorrindo. Margarida perde o equilíbrio, mas
consegue se estabilizar novamente. Margarida continua
pedalando e sentindo o vento bater em seu rosto, ela sorri.
Violeta de longe fica olhando para Margarida. Margarida
segue pedalando pela rua.
FADE
(CONTINUED)
CONTINUED: 83.
CIDA
(tom de lamento)
Que inveja! Queria sabê abrir a
cerveja assim.
VIOLETA
(tom exclamativo)
Deus é mais! Com o dente num tenho
coragem, não.
Violeta serve Cida.
CIDA
(tom de pedido)
Num enche o copo, não, nêga.
(tom de gozação)
Num tô acostumada a bebê.
(CONTINUED)
CONTINUED: 84.
(tom imperativo)
Levanta aí, povo, que eu quero fazê
um brinde.
Todos se levantam da mesa e erguem seus copos.
VIOLETA
(tom de brinde com ternura)
Um brinde à vida, que mesmo toda
desencontrada, oferece pra gente
inacreditáveis encontros e os mais
lindos reencontros!
Todos brindam. Margarida e Violeta trocam olhares de
cumplicidade.