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JAIME CUBERO

RAZÃO E PAIXÃO NA
EXPERIÊNCIA ANARQUISTA

& OUTROS ESCRITOS

IMPRENSA MARGINAL
2014
1
ÍNDICE

Razão e Paixão na Experiência Anarquista | pág. 3

A Organização Específica | pág. 12

Antimilitarismo e Anarquismo | pág. 18

As Idéias Força do Anarquismo | pág. 35

Reflexos da Revolução Russa no Brasil | pág. 47

Uma breve apresentação da Imprensa Marginal | pág. 58

2
RAZÃO E PAIXÃO NA EXPERIÊNCIA ANARQUISTA

Jaime Cubero

Em primeiro lugar, algumas definições sobre o que é


ANARQUISMO. É necessário clarear alguns conceitos como
anarquia, poder, governo e socialismo. Anarquia significa ausência
de poder ou de autoridade constituída. Há uma diferença sutil no
discurso, mas importante na realidade, entre poder político e poder
social. O primeiro exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas
têm o poder de obrigar outras a fazer o que não desejam. Ocupam
os governos do Estado, o KRATOS, o poder político no sentido
grego, qualquer que seja a sua forma, teocracia, aristocracia,
monarquia, oligarquia, democracia, em todas as suas instâncias. É
contra este poder hipertrofiado nos Estados Nacionais modernos
que os anarquistas lutam hoje. Os anarquistas sabem e todos os
estudos históricos o demonstram que o exercício deste poder
sempre corrompe seus detentores, que acabam exercendo-o em
benefício próprio, de uma forma ou de outra, em diferentes graus,
sempre em detrimento do povo.

O outro poder, o poder social, é participado, exercido por todos


nas decisões coletivas: o poder de uma assembleia de tomar
decisões. Exemplo de proporções enormes foi o poder que tinha a
CNT espanhola, com milhões de afiliados, durante a Guerra Civil,
de decidir pela organização autogestionária e pelas experiências
práticas do anarquismo durante a revolução. É o poder que é
exercido por todos em qualquer prática autogestionária, nas
3
decisões realmente coletivas.

O termo Governo tem o sentido de autoridade diretora e o


sentido restrito é o de governo político, centralizador do KRATOS
social. Mas, por extensão, tem o sentido de gestão, organização,
ordenamento. As expressões desgoverno (avião ou carro
desgovernado) tem o sentido de desorganização e é análogo ao
sentido pejorativo de anarquia. A proposta anarquista é pela
organização e, neste sentido, pelo autogoverno, como sinônimo de
autogestão.

Não há expressão mais aviltada do que o termo SOCIALISMO.


Assim como para a imensa maioria das pessoas é inconcebível as
sociedades humanas se organizarem sem Estado, tal a
desinformação, para a maioria das pessoas, socialismo passou a
ser sinônimo de estatização. Intelectuais das mais variadas
tendências, nas universidades, na imprensa escrita e em todos os
meios de comunicação repetem a mesma pregação. Tudo o que se
refere a socialismo passa pelo Estado.

II

Quando dizemos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de


socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso
conceito de socialismo: daí a expressão socialismo libertário.
Socializar é tornar a propriedade e os instrumentos de trabalho,
enfim toda a riqueza e o que a produz, disponível à sociedade,
acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para
o socialismo libertário, não basta socializar os bens materiais: é
preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais.
Mas, o que é fundamental, jamais haverá socialismo se não se
fizer a socialização do poder: a primeira coisa a ser socializada
é o poder, que começa com a autogestão das lutas. Destruir o
4
poder político e fortalecer o poder social, eis o que significa
autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de
transformação.

O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé,


tábuas da lei, com profetas, com excomunhões, processos de
heresia e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios
cujos postulados básicos são convergentes, e que está sempre
aberto a novas contribuições. Estes postulados básicos formam um
fundo comum que, no amplo universo das múltiplas e alternativas
atividades libertárias, são o anarquismo propriamente dito.

O sentido de justiça e equidade, a revolta contra a exploração


econômica do homem pelo homem, o combate ao Estado com a
consciência plena de que é a instituição que garante o regime de
exploração e privilégio como fonte geradora de opressão e
violência sobre o indivíduo e a coletividade. Tendo a liberdade
como um dos mais altos valores humanos, liberdade e autonomia
plenas a partir do indivíduo para a associação livre fundada na
solidariedade e no apoio mútuo.

O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo,


combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita,
sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.

III

Todo o ser humano tem necessidade de desenvolver seu físico e


sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano
tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de
desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas
necessidades por meio da cooperação e da vida associativa
5
voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas
condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas
condições tem necessidade — em termos políticos, tem o direito
— de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas
condições, ele terá a tendência de expandir integralmente. Ele terá
o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e
agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio
ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio
artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a
limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu
desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu
potencial criativo seria lógico considerar-se uma monstruosidade.
No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida
social e ninguém considera isso um absurdo, somente os
anarquistas. A descentralização, a autonomia e o federalismo são
as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção de uma nova
sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo.
Da plena liberdade e autonomia individuais para a organização
segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais
complexas até a completa malha social, os princípios não se
alteram. Começando pelo indivíduo como unidade celular da
sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio da
autonomia está presente. Os interesses específicos de cada
instância não ultrapassam a própria esfera e não sofrem nenhuma
interferência. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores
— profissionais, de produção de bens, planejamento, geográficos,
etc. — resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas
indicarão. A união de interesses com objetivos comuns, sem
quebra da autonomia é a característica básica do federalismo.
Assim, as uniões locais se organizam em nacionais até
confederações internacionais.

6
IV

Em todos os atos, ante todos os fatos, o ser humano analisa,


estima, aceita ou repudia o que se dá, o que acontece, formulando
um juízo de valor. O tema é vastíssimo e seu estudo pertence à
ontologia. Apenas alguns conceitos para nos situarmos enquanto
anarquistas. As vias de nosso conhecimento são a sensibilidade, a
intelectualidade e a afetividade. Temos portanto uma intuição
sensível, uma intuição intelectual e uma intuição páthica (do grego
paqoV = afeto, paixão). Há uma interatuação entre elas.
Podemos racionalizar um sentimento de simpatia ou de antipatia,
como podemos,
através de uma dedução lógica provocar a nossa santa fúria.
Quase todos colocam os valores numa escala hierárquica: uns
num grau mais elevado
que outros. O filósofo alemão MAX SCHELER (1874-1928)
apresenta a seguinte
ordem, que não é aceita por todos:

Valores religiosos (santo e profano)

Valores éticos (justo e injusto)

Valores estéticos (belo e feio)

Valores lógicos (verdade e falsidade)

Valores vitais (forte e fraco)

Valores utilitários (conveniente e inconveniente)

Há variáveis na subordinação dos valores, que se refletem de


pessoa para pessoa ou até na mesma pessoa conforme o momento,
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mas sempre, na maioria das circunstâncias que a vida oferece, um
prevalece sobre os outros. Para o anarquista todos os valores se
subordinam aos valores éticos, porque todos os atos humanos são
passíveis de juízo ético.

O que é ser anarquista? Ser anarquista é antes de tudo uma


atitude ética. Ante a iniquidade, um ímpeto de justiça leva o
anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema
vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria
independência humana. Ser anarquista é procurar realizar no
quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é
quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no
poder de realizá-lo. Contra todo o viciamento do ato humano a
luta anarquista não tem limite. Ser anarquista é lutar pela liberdade
de todos, tendo a consciência de que a liberdade dos outros
aumenta a própria e não a limita.

As paixões humanas sempre foram objeto de estudo dos


anarquistas. Apenas para ilustrar, vamos citar as teses apresentadas
no 2o. Certâmen Socialista, realizado no dia 10 de novembro de
1889 no palácio de Belas Artes de Barcelona.
Proposta do Círculo Operário de Barcelona: “Supondo uma
sociedade verdadeiramente livre ou anarquista e sendo a instrução
elevada ao grau máximo concebível, podem ser causas de
desarmonia social as chamadas paixões humanas?” Foram
apresentados seis trabalhos escritos sobre tal questão. No primeiro,
apresentado por Teobaldo Nieva, é destacado o papel das paixões
no desenvolvimento físico e mental da humanidade e como as
religiões, as correntes filosóficas, os poderes político e econômico
tem sufocado esta energia criadora. O autor se estende na crítica às
8
religiões, a todas as formas autoritárias e repressivas e conclui
que, apesar de tudo, elas continuam a ser a seiva vivificante da
vida. As paixões são definidas e, ao contrário dos pecados capitais
que são sete (orgulho, avareza, luxúria, etc.), as paixões são
infinitas: o amor sexual, a paixão pelo belo, pela arte, pelo bem
comum, etc. E, na sua essência, as paixões são benéficas, libertam.
O desequilíbrio e as injustiças que o capitalismo e o autoritarismo
provocam são as causas dos desvios e das práticas viciosas.
Proposta do Centro de Amigos de Reus: “Benefícios ou
prejuízos que a humanidade obteria adotando o amor livre”.
Foram apresentados dois trabalhos, o primeiro de Soledad
Gustavo. O trabalho começa acrescentando EM PLENA
ANARQUIA (?). A autora considera que o amor livre na atual
sociedade seria desastroso, uma desmoralização. Seria irrealizável.
Uma sociedade plenamente livre e igualitária, perfeitamente justa
teria como base de todas as liberdades a união livre dos sexos.

Considera que só a comunidade assumindo a subsistência das


mulheres e crianças resolveria o problema da dissolução das
uniões. Só uma sociedade anarquista possibilitaria a escolha livre.
Para a autora, a maioria considera o amor livre uma variedade de
prazeres sensuais.
Pura ignorância do que significa liberdade. Já Anselmo Lorenzo,
em seu trabalho, faz uma incursão nas civilizações antigas
rasteando as diferentes formas e costumes que envolvem a união
dos sexos. Desde povos que viviam na mais absoluta
promiscuidade, aos que adotaram a poligamia e a poliandria, até a
monogamia e os padrões que regem o casamento na atual
sociedade, para concluir que não se tem direito nenhum para
afirmar que o conceito atual de casamento e família seja original,
legítimo e unicamente natural. Havendo liberdade e igualdade os
indivíduos e a sociedade se organizarão e praticarão a forma que
mais lhes convenha.
A expressão amor livre, hoje eivada de conotações pejorativas,
9
se confunde com a amizade colorida dos anos 70, por isso
preferimos a expressão amor libertário.
Simplesmente a união de dois seres que se amam, sem injunção
de espécie alguma. Sem interferência do Estado, da Igreja, da
família, dos fatores econômicos, etc. Sem preconceitos de espécie
alguma. O amor sexual é como uma florescência da vida. Suas
práticas são tão diversas, tão diferentes seus graus de
desenvolvimento, como imenso é o campo da afetividade.
Impossível reduzir o amor a uma definição concreta.
Impossível determiná-lo por condições particulares fixas. Nada
mais variável. O amor sexual se apresenta sempre impregnado do
sabor particular de cada associação humana; sujeito a normas,
formalismos e rituais que variam com o organismo social. O amor
sexual desprovido de ritualismos ridículos, fórmulas jurídicas, só
será possível quando a sociedade tiver superado as contradições
que a impedem de resolver os problemas que afetam as
necessidades básicas das pessoas.

VI

A história do movimento anarquista é pontilhada de extremos de


paixão e lucidez, de amor e de heroísmo, que seria impossível
registrá-los todos aqui.
Há no ser humano um desejo inerente de ir além, de ter uma
vida diferente da que vive. Há assim um ímpeto utópico. O desejo
de alcançar uma realidade que ainda não existe. Há as utopias de
evasão, que expressam um desejo de afastamento da realidade
vivida, que denominamos fuga da realidade, e há utopias de
superação, que condensam o desejo de alcançar estágios
superiores ainda não vividos. Para que o homem alcance uma
superação constante de si mesmo (o que seria a efetivação de uma
revolução permanente não só em si, como também em seu meio) é
10
necessária uma dose de utopia, porque sem o desejo de tornar
tópicos os valores mais altos é impossível estimular a criação. Os
que julgam que o ímpeto utópico é uma fraqueza, resultado de
uma deficiência humana, poucos sabem de psicologia.
É preciso muito sonho, muito desejo, muita crença nas
possibilidades de cada um e na de todos para que possamos
superar os obstáculos, vencer dificuldades, construir
possibilidades remotas, tornar em ato o que parecia um sonho
impossível.

A história do anarquismo é, como dissemos, pontilhada destes


atos de lucidez, paixão, heroísmo e amor que sempre foram e
serão muito gratificantes para os que viveram tais momentos de
plenitude libertária.

***

In: CUBERO, Jaime. Razão e Paixão na Experiência Anarquista.


São Paulo: Libertárias, 1997

11
A ORGANIZAÇÃO ESPECÍFICA
Jaime Cubero
A organização específica do movimento anarquista é
uma instância própria como está implícita na designação,
com peculiaridades que definem princípios básicos, de
cuja prática depende sua existência.

O projeto revolucionário preconizando o socialismo


libertário exige uma organização onde se definam
estratégias para todas as instâncias e alternativas afins, ao
mesmo tempo que suas práticas sejam um exercício
antecipado do projeto. Assim, liberdade, responsabilidade,
ética, federalismo, solidariedade, autogestão, etc. não
devem ser apenas conceitos de um discurso teórico, mas o
que defina a prática e o comportamento dos anarquistas na
organização. Assim como os indivíduos são a unidade
celular da organização, os grupos e coletivos são seus
núcleos básicos.

Os grupos de afinidade são constituídos por


militantes cujo relacionamento fundado em interesses
peculiares é tanto mais intenso na medida em que é
alimentado por ideias e práticas revolucionárias. Cada
grupo tem um número limitado de participantes que
garante maior grau de intimidade entre seus membros. São
autônomos, onde seus integrantes podem reestruturarem-
se tanto individual como socialmente. Funcionam como
catalisadores do movimento proporcionando iniciativa e
conscientização. A união ou separação de cada grupo é
determinada pelas circunstâncias e interesses próprios, e
não por qualquer decisão centralizada. As adesões ou
saídas são feitas espontânea e livremente, sem pressão de
qualquer natureza. Durante períodos de repressão política
os grupos de afinidade são muito resistentes. Devido ao
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alto grau de coesão que existe entre os participantes se
torna difícil penetrar no grupo, e mesmo sob as condições
mais difíceis, os grupos de afinidade conseguem manter
contatos. Nada impede que os grupos trabalhem juntos em
qualquer nível que se fizer necessário. Podem unir-se com
grupos locais, regionais e nacionais, de forma permanente
ou eventual para a formulação de planos comuns. Cada
grupo procura reunir os recursos necessários para
funcionar com o máximo de autonomia.

A união de interesses com objetivos comuns, sem


quebra da autonomia é a característica básica do
federalismo. Assim as uniões locais se organizam em
regionais e estas em nacionais, até a confederação
internacional. Tudo o que diz respeito exclusivamente a
cada instância é resolvido, desde o indivíduo até a
federação, em foro próprio, de forma livre e autônoma. Só
quando o interesse abrange objetivos comuns, seja de
grupo a grupo, seja até de um país para o outro, então
surge o acordo e o compromisso, e aqui convêm dizer
alguma coisa a respeito da liberdade e responsabilidade.

O que é a liberdade? Tema de grandes controvérsias


através da história. Há livre-arbítrio ou determinismo?
Praticamos nossos atos por escolha ou não? Somos apenas
dirigidos pelos nossos impulsos interiores aos quais não
controlamos? Acontece que o homem é um animal
racional: verdade que todos aceitam. Ser racional é ser
capaz de escolher, capaz de preferir, de pesar, de comparar
esta ou aquela solução, de captar as possibilidades das
possibilidades. O homem pode prever as consequências de
seus atos. Pode imaginar que se proceder assim, poderá
suceder isto ou aquilo. Tal ato poderá levar a tais ou quais
consequências. E porque pode julgar, pode comparar, pode
medir, pode escolher. Se o homem fosse apenas um
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autômato, não teria noção do futuro. Ao ter noção do
futuro demonstra independência, capacidade de escolher
no suceder que sobrevêm. É por isso que o homem é um
ser autônomo e conhece a liberdade. Quando temos um
impulso para um ato determinado e refletimos sobre as
consequências, ao pensarmos se nos revela uma série de
possibilidades, que vamos analisando racionalmente.
Reprimimos o impulso, vencemos o desejo e resolvemos
não fazer o que desejávamos. Negar esse fato prático que
verificamos em nossa vida seria negar praticamente
também todo o poder da educação. Nossos maiores
obstáculos contra os quais temos que lutar são justamente
a pregação e a crença de que só podemos resolver os
magnos problemas econômicos e sociais a custa da
liberdade. Mas a liberdade é muito mais. E é através da
conquista da própria liberdade que podemos garantir a
solução que buscamos para esses problemas. O caminho
da liberdade é o da prática da própria liberdade. É com a
prática da liberdade que formamos homens livres.

A responsabilidade é a obrigação de responder pelos


próprios atos ou de alguém ou de algo que nos foi
confiado. Ninguém pode ser responsável se não for livre.
A responsabilidade tem dois aspectos: individual e
coletiva. A responsabilidade individual obriga a pessoa a
responder somente pelos próprios atos ou por algo
confiado à própria. A responsabilidade coletiva obriga não
só pelos próprios atos, mas também pelos atos alheios,
quando se trata de atos, deliberados, aceitos e decididos
livremente por um grupo de indivíduos associados para
realizar uma tarefa comum. Cada um e todos, neste caso
são responsáveis individual e coletivamente e sua
liberdade é determinada pelo duplo caráter da
responsabilidade. A responsabilidade individual, a
obrigação de responder pelos próprios atos ou de coisas
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que lhe foram confiadas não pode ser eludida por nenhum
indivíduo que esteja na posse normal de suas faculdades
mentais. Há três tipos de anarquistas: a) os individualistas,
adversários de toda forma de organização; b) os
individualistas partidários da associação livre e
momentânea, mas contra a organização; c) os partidários
da organização metódica e permanente. Defensores que
somos da última posição não falaremos das duas
primeiras. A concepção de responsabilidade individual,
dentro da organização, parte da coexistência do indivíduo
e da sociedade como uma necessidade básica, cuja
realidade é anterior à sua própria existência. Parte do
princípio da solidariedade preconizada para uma sociedade
anarquista e se estende à toda uma categoria de seres
humanos que compartilham suas concepções e lutam pelo
mesmo fim. Ligados por uma concordância de interesses,
são responsáveis por todos os atos de sua vida que tenham
um caráter social, cujas consequências, boas ou más,
podem influir sobre as condições de existência, de
segurança e de bem estar de seus semelhantes. Atos que
prejudiquem companheiros devem ser evitados. Os
exemplos são infindáveis e se multiplicam quando a luta
se intensifica, como nos casos de greves, quando a
responsabilidade coletiva se sedimenta na
responsabilidade individual e é fundamental.

A responsabilidade coletiva, é própria da organização


anarquista. Está implícita na aplicação dos princípios
federalistas. Ela é ascendente e descendente. Obriga o
indivíduo a responder por seus atos ante o coletivo e este
enquanto tal responde ao indivíduo. Não há oposição entre
responsabilidade coletiva e individual. Ambas se
completam e se ampliam sob o ponto de vista social.
Quando um grupo ou coletivo toma uma decisão que
emana da prática dos princípios, aprovando uma ação a
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desenvolver, nenhum de seus membros pode dissociar-se,
omitir-se ou agir de maneira a prejudicar a consecução do
objetivo colimado. Todos são corresponsáveis. A
responsabilidade é coletiva e social. A decisão foi coletiva,
a responsabilidade coletiva. A resolução foi tomada de
forma soberana e livre por todos. A liberdade não é
ausência de restrições. É opção, é aceitação livre de
obrigações sociais. Na organização, compromisso e
responsabilidade se identificam. O não cumprimento da
obrigação, do compromisso, pode denotar
irresponsabilidade, imaturidade, fraqueza e outros
aspectos que nos remetem para a ética.

Todos os nossos atos são passíveis de juízos de valor


e de conotações éticas. Tudo o que foi exposto até aqui
tem implicações éticas. Há vastíssimos estudos sobre a
ética, desde a transcendente (religiosa) até a ultra-
racionalista, amoral, que pretende justificar posições
totalitárias, racistas de casta, do estado, etc. A que nos
interessa é a ética imanente, que fundamenta as doutrinas
libertárias, estudada e defendida por Proudhon, e
desenvolvida por Kropotkin, com bases sólidas, que
aceitam uma ordem natural entre homens, fundada nas
tensões que formam e que procuram conservar-se, porque
na realidade toda ética está fundada nelas e nos interesses
por elas criados. Portanto, se a sociedade for organizada
sob bases simples e naturais, formará naturalmente sua
ética, não como uma necessidade apenas, mas porque o
homem sabe escolher. Por isso os homens, quando se
reúnem para um fim comum, logo sabem deduzir de sua
organização as regras e princípios justos (ajustados) que
permitam conquistar, da melhor forma, o fim que visam,
como tem-se verificado ao longo da história na constante
da polarização entre liberdade e autoritarismo, e em todos
movimentos que buscam a superação social. Dessa forma,
16
a organização anarquista desenvolve sua própria ética,
fundada num dever ser próprio, que como todo ato ético é
frustrável. O ato anti-ético para o anarquista é tudo o que
ofende a norma da organização. E o vigor, o
desenvolvimento, as grandes possibilidades do projeto
anarquista dependem fundamentalmente da coerência de
sua ética.
(São Paulo/SP,
setembro de 1990)

17
ANTIMILITARISMO E ANARQUISMO

Jaime Cubero

Se fizermos a qualquer pessoa a pergunta se ela é


favorável à guerra, acreditamos que não haverá uma só
que responda afirmativamente. No entanto, qualquer
estudo, mesmo não aprofundado, demonstra que nos
últimos 50 anos o militarismo cresceu de tal forma no
mundo que com exceção do que resta das sociedades
primitivas não há uma só sociedade organizada que não
esteja fortemente militarizada.
O problema é tão complexo e tão vasto que apenas
podemos apontar alguns aspectos básicos para serem
debatidos. Vamos dividir o tema em três partes para
facilitar a análise, ainda que em seus aspectos mais gerais:
o soldado profissional em sua estrutura organizacional
moderna; o militarismo e a indústria de armamentos e o
movimento anarquista em face dessa realidade.
Evidentemente durante nossas análises não poderíamos
deixar de enfocar o aspecto crítico anarquista.
Em todos os países, sem exceção, as forças armadas
acumularam um poder gigantesco que se projeta em todo
o emaranhado político da sociedade contemporânea,
apesar de um forte conflito interno de interesses; e
parecerem impraticáveis as ditaduras militares à moda
antiga nas modernas sociedades industriais. Os controles
políticos passam por outras instâncias.
Os profissionais da violência mudam no ritmo da
constante transformação da tecnologia de guerra, embora a
imagem que o povo tem do soldado profissional seja
anacrônica. As pessoas, inclusive as politizadas, preferem
permanecer desinformadas e de um modo geral vêem os
oficiais superiores das forças armadas como pessoas que
tomam decisões políticas e muitos gostariam de ver seus
filhos seguindo a carreira militar, principalmente nos
EUA, porque uma elite, dentro da profissão, detém o
poder real e potencial de exercer controle sobre o
comportamento dos outros.
A partir do século XIX, as instituições militares de
países industrializados tornaram-se organizações
integradas com uma elaborada estrutura hierárquica
quando a concepção do estado-maior se torna uma
necessidade administrativa. Há uma alteração no
fundamento da autoridade e da disciplina, uma mudança
de dominação autoritária no sentido de manipulação,
persuasão, explicação e especialização, apesar da
organização militar continuar rigidamente estratificada
pelas condições de comando na guerra. A mudança lenta e
contínua, o caráter técnico da guerra moderna, exigindo
soldados altamente qualificados, faz com que, em
qualquer equipe militar complexa, um importante
elemento de poder passe a residir em cada membro que
deve prestar sua contribuição técnica.
Mas sendo o princípio organizacional autoritário a
dominação — a emissão de ordens diretas sem que se dê
suas razões —, o oficial profissional é um disciplinador.
Como toda organização de grande escala hierarquizada
burocratiza-se, a instituição militar moderna não escapa à
regra. A partir do começo deste século, o desenvolvimento
militar tecnológico tornou-se tão amplo que se pode falar
de uma revolução organizacional das forças armadas,
assim como houve uma revolução organizacional na
produção industrial, com a entrada de armas e balísticos
nucleares, todo tipo de foguetes e aviões super
sofisticados, a informática no uso de quase todas as armas,

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a guerra química, etc. As forças armadas parecem ter se
transformado num gigantesco complexo de engenharia.
Hoje, o profissional militar se divide nos três papéis, o
herói glorioso, o administrador e o tecnologista, sem
perder o plano da hierarquia e da autoridade. Um exemplo
é o Regulamento de Contingências para o Exército e a
Marinha do Brasil de 100 páginas com 315 artigos, muitos
divididos em parágrafos que devem ser cumpridos à risca.
O capítulo I começa com os sinais de respeito assim:

“1) Todo militar deve aos seus superiores obediência e


respeito como tributo à autoridade de que se acham
investidos pela lei.

2) As provas de disciplina devem ser manifestadas em


todas as circunstâncias de tempo e lugar, por atitudes e
gestos precisos, rigorosamente observados.

3) A espontaneidade e a correção dos sinais de respeito


são índices seguros do grau de disciplina de uma
corporação militar, bem como da educação profissional e
moral dos seus elementos, pois só homens de músculos
flexíveis e bem educados moralmente são capazes de
cumprir com perfeição, elegância e boa vontade esta
parte do dever militar.

4) Nas escolas, navios, corpos de tropas e


estabelecimentos militares ou navais, deve haver maior
empenho em que os sinais de respeito regulamentares se
transformem em atos reflexos, mediante cuidadosa
instrução e continuada exigência”.

Do artigo 288, que ocupa quase uma página, sobre

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cerimônias de compromisso destacamos o seguinte: “O
oficial presta em voz alta e pausada o seguinte
compromisso: Perante a bandeira e pela minha honra,
prometo cumprir os deveres de oficial do Exército e
dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria”.
Toda uma ideologia contribui para a formação
psicológica do profissional militar: a idéia da pátria, o
culto e as cerimônias com a bandeira, os hinos, honras aos
oficiais superiores, honras funerais, as insígnias, etc. São
elementos de um ritual que conforma a submissão e a
lealdade ao poder constituído, seja qual for e a própria
hierarquia. O subordinado se humilha ante o seu superior e
humilha o seu inferior, do chefe supremo até o recruta
sobre quem cai o peso da deformação que o sistema faz da
condição humana. O recruta não tem a quem humilhar.
Mas, modernamente, a tecnologia da guerra é tão
complexa que a mera disciplina autoritária não é garantia
para a coordenação de um complexo de especialistas. A
ação é cada vez mais dependente da eficiência de cada
membro do grupo do que da estrutura disciplinar
autoritária. Mas como as ações se fundamentam em
violência e crise extrema, as organizações militares se
reservam o direito de exercer sanções drásticas contra o
seu pessoal. As tensões da vida militar não conduzem à
perpetuação da velha ordem como tal, mas à perpetuação
de extenso ritualismo e crises de rigidez organizacional.
As forças armadas têm crescido relativamente no
mundo, numa proporção muito maior que o crescimento
da população. Além dos treinamentos, a profissionalização
significa incorporação “num esquema de ferro” e
doutrinação. Por princípio, todo profissional militar está
obrigado à honra. Supõe-se que a honra assegure a
lealdade para com a carreira. Hoje em dia há uma

21
progressiva incapacidade da honra de resolver as tensões
no seio da profissão, apesar dos esforços para tornar
compatível o desempenho e a especialidade técnica com o
código de honra e a busca de glória. Os comportamentos
mais surpreendentes se manifestam.
No dia 14 deste mês, a rede SBT de televisão, em seu
noticiário internacional anunciava que o governo dos
EUA expulsara em torno de mil militares homossexuais,
das três armas, que “aprontaram” na Guerra do Golfo.
Alguns setores do movimento gay protestaram
informando que isso de nada adiantaria uma vez que o
número de homossexuais nas três armas ultrapassa a casa
dos cem mil. Segundo as definições da honra militar, o
soldado profissional está “acima da política”. Em
qualquer sociedade autoritária estar acima da política
significa que o oficial está comprometido com o “status
quo”. O conservadorismo militar proclama ser
imprescindível a propriedade privada como base de uma
ordem política estável, ou a propriedade vinculada ao
Estado, como nos países comunistas. E é da doutrina
militar que as guerras são inevitáveis: que a natureza do
homem faz com que a violência organizada seja o árbitro
final entre as nações. Assim, as guerras são essencialmente
ações punitivas. Se a guerra é inevitável, justifica-se a
máxima eficiência técnica organizacional.
A ação militar é planejada para facilitar uma total
incorporação política ou simplesmente “punir” os fora da
lei. Exemplo: a guerra recente do Golfo Pérsico. O uso da
força nas relações internacionais foi alterado de tal
maneira que hoje parece mais apropriado falarmos de
forças policiais que militares. O estabelecimento militar
transforma-se numa força policial continuamente
preparada para agir.

22
Noam Chomsky, num artigo sobre as questões que
envolveram a Guerra do Golfo, expressa bem o papel dos
EUA como atual explorador do “virtual” monopólio do
mercado de segurança, como meio de obter concessões
econômicas de outros países por serviços prestados como
policiais de aluguel do mundo inteiro.
A ascensão do administrador militar, significa um maior
esforço dos oficiais para se manterem a par das correntes
intelectuais. Sua atitude em relação à atividade intelectual
é ambígua, porque sua função consiste em proporcionar
soluções específicas para complexos problemas
administrativos e organizacionais.
Citemos a utilização da antropologia. Informações
antropológicas foram obtidas para silenciar, por via aérea,
aldeias asiáticas tanto quanto a utilização de dados
antropológicos para assassinar lideranças comunitárias na
Ásia. Mas o grande problema do militarismo, a mais séria
questão a ser encarada e que só o movimento anarquista
coloca, está além da estrutura da organização militar. Por
que fracassam todas as conferências de paz? Não têm
efeito todos os movimentos de jovens de todo o mundo
pela cessação das intervenções armadas? Muita gente
neste mundo é pacífica. Luta contra a guerra.
Mas o grande e mais poderoso inimigo da paz está na
“indústria da morte”, o grande complexo industrial militar.
As economias dos países do primeiro mundo,
principalmente os EUA, são altamente militarizadas. Os
donos das grandes empresas, das grandes corporações,
bancos, inclusive, mais do que qualquer outro grupo social
detêm os efetivos instrumentos do poder político, ocupam
posições estratégicas no governo, e fazem a política em
nome de toda a nação. Esses grupos acumulam lucros
exorbitantes, fabulosos, na indústria de armamentos.

23
Fomentam as guerras, frias e quentes, limitadas ou amplas,
manifestam as intervenções militares e são responsáveis
pelos riscos que ameaçam a humanidade. A vida norte-
americana assumiu o feitio de uma nação em guerra
permanente e o desarmamento pra valer seria uma ruína
econômica em termos capitalistas. O poderoso parque
industrial de bens de consumo que serve à imagem externa
dos EUA tornou-se um gigantesco complexo industrial
militar. Os industriais da morte exercem poderosa e
sinistra influência no mundo de hoje. No mundo
capitalista não há conciliação entre o ideal de paz e a sede
de lucros desses monopólios, dessas multinacionais da
morte, que nunca se satisfazem.
Atualmente, em torno de dez milhões de pessoas
trabalham na indústria das armas e munições dos EUA.
Todo o relativo conforto dessa gente repousa no
sacrifício de soldados e na dizimação de povos estranhos a
eles. Daí, as consequências desastrosas, que se estendem
para países dependentes da esfera do dólar. Daí, o
aviltamento dos preços de exportação desses países,
controlados que são pela demanda da indústria norte-
americana.
Os grupos que auferem lucros de armamentos e da
guerra têm responsabilidade maior pela situação tensa com
que toda a humanidade se defronta. Eles contam com a
colaboração de economistas acadêmicos e de instituições
oficiais, para elaborar técnicas econômicas para
aperfeiçoar a eficiência do militarismo e para solidificar o
papel por ele desempenhado na economia global. Hoje, a
associação de interesses que lucram com os armamentos é
o fator mais importante na promoção da corrida
armamentista. Numa aquisição de US$30 bilhões
correspondentes a equipamentos, suprimentos, e serviços

24
comprados pelas forças armadas e pela Comissão de
Energia Atômica dos EUA. Os lucros foram de US$13,3
bilhões antes da taxação e de US$6,4 bilhões depois,
considerando um imposto de renda de 52% [1] . Os lucros
obtidos na indústria eletrônica e na exploração de novos
metais para uso militar são fantásticos, para uma demanda
criada pelo avanço tecnológico. As universidades
participam intensamente nas pesquisas e na preparação de
pesquisadores caracterizando um dos mais sombrios
aspectos que o professor Maurício Tragtenberg chamou de
“delinquência acadêmica”.
As grandes corporações, através de seus prepostos no
governo, permanentemente pelo aumento de verbas para o
Departamento de Defesa dos EUA. Exemplo típico é o do
grupo Rockfeller quando, tendo Nelson Rockfeller como
Conselheiro Presidencial e Presidente do Conselho,
publicou relatório sobre segurança internacional. Com
Henry Kissinger, como relator e diretor do projeto,
advogava com êxito o aumento crescente no consumo de
armamentos. O grupo tem muitos investimentos na
indústria de armas. Grandes organizações bancárias têm
investimentos na indústria bélica e no exterior,
investimentos em petróleo, etc. O Chase Manhattan Bank,
a Casa de Morgan — a mais famosa de Wall Street —, o
City Bank, etc. Está claro que a comunidade financeira
nada fará para deter a marcha progressiva dos militaristas
e dos que se beneficiam dos armamentos em direção ao
Estado militarista e à guerra. Depois da grande exibição
de força e tecnologia que foi a Guerra no Golfo Pérsico,
em 17 de julho, foi assinado o acordo sobre o Tratado de
Redução de Armas Estratégicas (Start) que prevê o corte
de 30% do arsenal nuclear de longo alcance. O acordo,
um documento de 700 páginas, que ainda deverá ser

25
ratificado pelo Congresso norte-americano e pelo “Soviete
Supremo”, da União Soviética, diz selar o fim da guerra
fria. Para acreditar seria necessário desconhecer totalmente
o retrospecto dos acordos de paz. O primeiro acordo de
controle de armamentos nucleares foi assinado em 1968,
onde EUA, União Soviética e Inglaterra se
comprometiam a suspender a transferência de armas
nucleares para outros países. Desse primeiro acordo ao
último assinado este ano, ao todo, foram 14 acordos.
Todos sabem como foram cumpridos. Os arsenais de
guerra cresceram assustadoramente após cada acordo.
Apesar da propaganda e do alcance do alarde da mídia
sobre esse último acordo assinado numa reunião de
cúpula, os EUA ainda ficarão com nove mil armas
nucleares estratégicas (admitindo-se que o acordo fosse
cumprido) e a União Soviética com sete mil (mísseis
intercontinentais com ogivas atômicas), muito mais do que
em 1982 quando se iniciaram as negociações para o
acordo Start. A verba para o Departamento de Defesa dos
EUA, aprovada em dezembro de 1990, foi de US$3,9
trilhões. O orçamento militar da URSS é gigantesco. O
próprio Gorbachev admitiu que mais de 40% dos recursos
soviéticos são destinados à indústria militar.
Os grandes produtores de armas, na atualidade, estão
voltados para países do terceiro mundo, que lutam por
adquirir tecnologia nessa área. O comércio de armas não
está nas mãos dos “mercados da morte” isolados, mas
também nas mãos dos governos. As vendas ao exterior
impedem às indústrias de armamentos de sofrer flutuações
das encomendas de material militar e aliviar o orçamento
de defesa do país de origem. Com um faturamento de
bilhões de dólares, as vendas de armas são uma benção
para a balança comercial. Assim, quando os Estados

26
entram em conflito com um país do terceiro mundo, ele
luta contra tanques, aviões ou navios que eles mesmos
venderam. Foi o caso da Inglaterra durante a Guerra da
Malvinas e dos aliados na Guerra do Golfo, um incentivo
para o aumento dos arsenais do terceiro mundo.
Alguns países, como o Brasil, embora de terceiro mundo
são produtores de armas e até grandes exportadores. Com
total apoio das Forças Armadas vem se preparando para
ingressar na era das armas nucleares. Segundo declaração
do Ministro, a Marinha inicia o submarino nuclear até
1992; o programa nuclear da Aeronáutica se desenvolve
no Instituto de Estudos Avançados, subordinado ao Centro
Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos; o projeto
do Exército, que já gastou US$ 49 milhões, é
desenvolvido pelo Centro Tecnológico do Exército, em
Curitiba, e trabalha como elemento chave para a produção
da bomba atômica.
A humanidade gasta com armas, em menos de três horas,
o equivalente ao orçamento total concedido pela
Organização Mundial da Saúde à luta contra a varíola.
Em cinco horas, o total que a UNICEF (órgão das nações
unidas para ajuda à infância) destina anualmente a
crianças necessitadas. Em doze horas, uma quantia que
seria suficiente para erradicar a malária e enfermidades
endêmicas em 66 países. Todos os países do mundo
poderiam pagar sua dívida externa se lhes fossem
concedidos em investimentos produtivos um décimo do
total despendido com armas. Os recursos destinados em
média por todos os países do mundo à investigação
médica constituem o equivalente à quinta parte dos
aplicados ao estudo e desenvolvimento tecnológico do
setor militar. Estas são algumas das conclusões que um
grupo de economistas e cientistas, integrantes de

27
organizações de defesa dos direitos humanos divulgaram.
Segundo as estatísticas divulgadas há, nos países
subdesenvolvidos, atualmente, em média, um soldado para
cada 250 habitantes e um médico para cada 3.700. Para
cada cem mil habitantes do planeta, 556 soldados e 85
médicos. Gasta-se atualmente por ano, com cada soldado,
US$19.300 enquanto que os fundos públicos destinados à
educação são de US$380 a cada criança. O custo de um
caça-bombardeiro é, em média, equivalente ao necessário
à construção e equipagem de 75 hospitais de cem camas
cada um. O valor dos 27 mísseis que os EUA instalaram
em territórios de países-membros da Organização do
Tratado do Atlântico Norte pagaria o investimento em
máquinas agrícolas suficientes para assegurar, em quatro
anos, autossuficiência alimentar aos países pobres.
Os anarquistas têm a convicção de que numa sociedade
capitalista, seja de livre mercado, seja de capitalismo de
Estado, o militarismo jamais será eliminado. O
nacionalismo exacerbado que informa toda ideologia do
Estado nacional moderno, fonte e sustentação de
privilégios, exploração e opressão, em qualquer sistema
político que nele se fundamente, também sustenta o
militarismo, que se alimenta da mesma ideologia. É
tradição do movimento anarquista combater o militarismo.
A luta contra a instituição militar, face às suas
características atuais, não pode ser isolada da grande luta
pela transformação da sociedade. Combater o capitalismo
e o Estado é a melhor maneira de combater o militarismo.
Libertar as consciências com análises críticas, objetivas,
com clareza, mostrando que o problema é muito maior,
que vai muito além da farda.
A luta vem de longe. Em 1868, o Congresso
Internacional Socialista de Bruxelas, adota por

28
unanimidade uma resolução em que os operários eram
exortados a tornar a guerra impossível por meio de greve
geral. Mas contrariando a proposta, quando Domela
Nienwenhuls, grande militante do anarquismo, propôs no
Congresso Internacional Socialista de 1891, em Bruxelas,
e em 1893, em Zurique, que recomendassem a greve geral
e a recusa de marchar para a guerra, como meio de evitar
guerras ameaçadoras, a maioria rejeitou a proposição.
Apenas, em Zurique, os delegados da Austrália, da França,
da Holanda, e da Noruega quiseram ainda continuar a luta
socialista revolucionária contra a guerra. Quando no
princípio do século XX uma guerra mundial ameaçava os
povos, Domela Nieuwenhuls, juntamente com Janvion,
Almereyda, Ivetot e Jourdan convocaram um congresso
Internacional Antimilitarista em 1904, em Amsterdam, que
se realizou entre 26 a 28 de junho do mesmo ano. Havia
delegados de várias regiões mineiras, que representavam
116000 operários. Com representantes dos companheiros
da Boêmia, da França, da Holanda, da Áustria, de Portugal
e da Itália, fizeram-se grandes demonstrações.
Posteriormente realizaram-se vários congressos que deram
origem ao Bureau Internacional Antimilitarista, B.I.A.,
com sede na Holanda, congregando as diferentes
organizações antimilitaristas, tanto anarquistas como
sindicalistas. Esse Bureau foi fundado num congresso
Internacional realizado em Haia, em março e abril de
1921, com a seguinte declaração de princípios:

“O B.I.A. contra a guerra e a reação, composto por


organizações anti-militaristas revolucionárias, tem por
objetivo trabalhar internacionalmente contra o militarismo.
A fim de tornar impossível a guerra e a opressão das
classes trabalhadoras, esforça-se por desenvolver no

29
espírito dos trabalhadores a consciência do seu decisivo
poder econômico”

“Empreende propaganda de greve geral e recusa em massa


do serviço militar”.

“Preconiza a cessação imediata de todo o fabrico


destinado à guerra e a não participação no militarismo”.

“Esforça-se por tornar inúteis as armas e os navios de


guerra”.

“Rende homenagem a todos aqueles que se recusam


individualmente a todo o serviço militar”.

“Opõe-se de forma veemente contra qualquer tentativa de


nova dominação exercida por intervenção armada contra
um proletariado que tenha rompido com o jugo
capitalista”.

“Opõe-se veemente contra todas as formas de exploração


econômica e opressão militar de que são vítimas as raças
de cor; procura a união e colaboração do proletariado
revolucionário do Norte ao Sul, do Oriente ao Ocidente”.

“A organização do B.I.A. é de caráter federativo. No


congresso foi expresso o desejo de que todas as
organizações antimilitaristas revolucionárias de um
determinado país se unissem num Bureau Nacional, que
trabalharia tanto quanto possível de acordo com o B.I.A.
Compõe-se pelo menos de um membro em cada país onde
existam organizações aderentes. Este Bureau designa, por
um espaço de tempo determinado, um certo país, onde

30
esteja domiciliado o Comitê Executivo. O Congresso
designou os Países-Baixos. O Comitê Executivo não tem
poder dirigente. Faz correspondência, recolhe dados, envia
comunicados à imprensa, estuda tanto quanto possível as
relações políticas e econômicas internacionais, lança o
alarme internacionalmente em caso de guerra imediata,
incita a agir no sentido da declaração de princípios e
estimula em seguida por todos os meios, conforme está
fixado no programa e é aceito como meio de luta.”
Depois de arrolar uma espécie de trabalhos
desenvolvidos pelo B.I.A., o Secretário do Comitê
Executivo comunica os futuros congressos até o de janeiro
de 1923, em Berlim, com as adesões da Argentina,
Finlândia, Itália e Brasil. A divisa do B.I.A. era a seguinte:
“nem um homem, nem um centavo, nem um gesto a favor
do militarismo”.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o B.I.A. deu lugar à
“Internacional dos Resistentes à Guerra”, com sede na
Inglaterra. Editando um Boletim em inglês e francês, com
edições mimeografadas também em alemão e esperanto,
sua propaganda sempre foi dirigida para o Movimento dos
Objetores de Consciência. Os objetores de consciência
desenvolvem uma luta contra o serviço militar obrigatório
e o direito à insubmissão. Vale a pena conhecer o
manifesto dos objetores de consciência publicado,
recentemente, numa revista argentina:
“Manifesto dos Insubmissos: Os objetores de consciência,
que estamos recebendo ordens de incorporação ao
Exército para prestar o serviço militar, queremos dar ao
recrutamento forçado uma resposta ativa e coletiva,
apresentando-nos publicamente ante a Jurisdição Militar,
para a qual é delito nossa postura pacífica e solidária, e
manifestamos:

31
1) Que fazemos objeção de consciência negando-nos a
prestar o serviço militar; conscientes de que com isso
estamos contribuindo para que as relações entre as pessoas
e os povos sejam baseadas na justiça e na solidariedade.
2) Que somos partidários da liberdade, da
responsabilidade, da participação e da paz e entendemos
que tudo isso contraria a lógica militar. Por isso, não
queremos colaborar com o Exército prestando o Serviço
Militar, por entender que se o fizéssemos estaríamos
afirmando valores negativos, como a obediência cega, o
machismo, a dominação e o poder. Estaríamos
colaborando com a chamada ordem econômica
internacional; transformar-nos íamos em consumidores de
orçamentos astronômicos que, impedindo o
desenvolvimento desviam os recursos do planeta para a
guerra e a destruição. Não queremos ser parte do Exército
porque não queremos ser instância necessária da
dominação de umas nações sobre outras, do domínio de
umas pessoas sobre outras.
3) Que ao negarmos expressamente a prestação do serviço
militar entendemos que não podemos ser considerados
como militares, mas mantemos sempre nossa condição de
civis.
4) Que somos objetores de consciência, sem necessidade
de que nenhum organismo administrativo tenha porque
declarar nossa condição como tal, no âmbito de uma lei
cujo objetivo é conseguir que o protesto contra o serviço
militar obrigatório, que os objetores de consciência fazem,
não seja levado em consideração.
5) Que a imposição de uma prestação de serviço por outra
que a substitua, para os objetores de consciência não tem
sentido se não é entendida no âmbito do recrutamento
forçado.

32
6) Que fazemos um chamamento a toda a população para
que da mesma forma que nós, desobedeçam as imposições
militares fazendo objeção de consciência (antes, durante e
depois do serviço militar) impedindo a implantação das
mulheres nas forças armadas. Não cumprindo as tarefas
que substituem o serviço militar e combatendo o
financiamento das despesas militares mediante a objeção
fiscal. Por tudo isso, entendemos que nossa oposição a
toda conscrição, a todo recrutamento, ainda que sob
ameaça de prisão, constitui um gesto de responsabilidade
social que estamos dispostos a levar adiante e para o qual
esperamos o apoio e a compreensão de toda a sociedade
civil” [2].
Como já dissemos, a luta dos anarquistas contra o
militarismo significa uma luta maior. A história da origem
e desenvolvimento dos mercadores de armas revela-os
como uma ameaça crescente. Toda guerra moderna
ameaça envolver metade do mundo. O negócio da
indústria cresce constantemente e os governos, em toda
parte, estreitam os laços que os ligam, numa parceria com
os mercadores da morte.
A guerra já aparece como maior e mais importante
atividade dos governos. O desarmamento e a verdadeira
paz só serão atingidos quando as forças representadas
pelos fabricantes de armas forem esmagadas e eliminadas.
O problema do desarmamento e da verdadeira paz é, por
conseguinte, o problema de construir uma nova
civilização. É a grande luta dos anarquistas. E no aqui e
agora só resta às pessoas interessadas apoiar todas as
ações e todos os movimentos contra a guerra. Lutar contra
o nacionalismo, o chauvinismo onde quer que eles se
apresentem, na escola, na imprensa, no trabalho e em
todos os lugares.

33
A guerra é feita pelo homem; e a paz, na nova sociedade,
quando chegar, também será feita pelo homem.

Notas:
1 Extraído de: Victor Perlo. Militarismo e indústria:
armamentos e lucros na era dos projéteis. Rio de Janeiro,
Paes e Terra, 1969.
2 Manifesto da FOSMO — Frente de Oposição ao Serviço
Militar Obrigatório — publicado na revista La Letra A,
anarquista, de Buenos Aires, julho de 1991.

In: VERVE. São Paulo, n. 1. mai. 2002 pp.183 - 210.

34
AS IDÉIAS-FORÇA DO ANARQUISMO

Jaime Cubero

Apresentação

A inauguração do Centro de Cultura Social de São


Paulo é anunciada pela A Plebe, com a publicação do
anúncio: “Sábado, 14 de janeiro de 1933, às 20:00hs, no
salão da Quintino Bocayuva, 80. A Comissão convida para
este ato”. Remanescente da grande atividade “anarco-
sindicalista” e assim como os sindicatos, o CCS é uma
organização pública do movimento anarquista destinada a
estudar e debater os problemas sociais tendo por objetivo
“promover nos meios populares, principalmente entre os
trabalhadores, onde as possibilidades de cultura são
limitadas por toda sorte de empecilhos, o estudo de uma
nova ordem de coisas baseadas em princípios de justiça e
de equidades sociais, que facultem a cada indivíduo e à
coletividade, o gozo de uma situação de liberdade e bem
estar, resultado do esforço comum e a que todos fazem
jus” (Estatutos). Nele, as tradições anarquistas foram
transmitidas de geração em geração. Edgard Leuenroth,
Pedro Catallo, Florentino de Carvalho, entre outros, que
lutaram ao lado da primeira geração de imigrantes
anarquistas em São Paulo, formaram a geração seguinte
dos irmãos Cuberos, José Oliva Castillos, Lucca Gabriel,
Nito Lemos, Antonio Martinez, entre outros. Sua trajetória
pode ser dividida em três fases: a primeira vai da sua
fundação em 1933 até o seu fechamento pela ditadura
getulista em 1937 e diz respeito à sua forte atuação, junto
com a Federação Operária de São Paulo, nas lutas
antifascistas que culminariam no enfrentamento entre

35
anarquistas e integralistas na praça da Sé em 1934; a
segunda refere-se ao período que vai da sua reabertura em
1945 até novamente ser fechado em 1969, após a
promulgação do Ato Constitucional de no 5; e a terceira
fase diz respeito às atividades desenvolvidas após a
abertura democrática em 1985 até os dias de hoje.
Nildo Avelino

* Jaime Cubero participou da reativação do Centro de


Cultura Social de São Paulo, nos anos 1980. Aglutinou
anarquistas e libertários e tornou-se referência para
militantes e pesquisadores, acolhendo-nos com
generosidade, humor e contundência.

É comum e da tradição na divulgação de textos e


conferências de propaganda sobre anarquismo, começar-se
com definições e explicações sobre a palavra anarquia, a
partir da origem etimológica (do grego: an privativo,
negativo e arkhê, poder = ausência de poder), ou seja, na
(sem) arkhê (autoridade, governo), “estado de um povo
que se rege sem autoridade constituída, sem governo”
(Malatesta). É evidente a preocupação de libertar a palavra
das conotações seculares que a tornaram sinônimo de
desordem, caos, bagunça e desorganização. Mas os termos
verbais ou escritos, que expressam o conteúdo dos
conceitos, têm seu sentido alterado com o tempo, muitas
vezes de forma capciosa, exigindo para seu emprego,
definições que tornem clara a intencionalidade e o sentido.
Por exemplo: julgamos que os conceitos de poder,
governo, assim como o de socialismo e outros, devem ser
bem claros e definidos quando empregados no sentido
anarquista.
Há uma diferença sutil no discurso, mas importante

36
na realidade entre poder político e poder social. O primeiro
exerce o poder de coação: uma ou mais pessoas têm o
poder de obrigar outras a fazer o que não desejam.
Ocupam o governo do Estado, o Kratos, o poder político
no sentido grego, qualquer que seja sua forma, teocracia,
aristocracia, monarquia, oligarquia, democracia, em todas
as instâncias; e é contra esse poder hipertrofiado nos
Estados Nacionais modernos que os anarquistas lutam
hoje. Os anarquistas sabem, e todos os estudos históricos o
demonstram, que o exercício desse poder corrompe seus
detentores que acabam sempre por exercitá-lo em
benefício próprio, de uma forma ou outra, em diferentes
graus, sempre em detrimento do povo.
Transcrevemos trecho de uma carta — testemunho
insuspeito — de Lord Acton, John Acton, historiador
inglês, de Cambridge (1834- 1902) para o bispo
Creighton:

“... Não posso aceitar por norma que o senhor estabelece,


segundo a qual devemos julgar o papa e o rei diferentes
dos demais homens com a presunção favorável
de que não cometem injustiças. Se cabe alguma presunção
é a oposta contra os mantenedores do poder, que
se acrescenta conforme se acrescenta o poder. A
responsabilidade histórica tem que compensar a
responsabilidade legal. O poder tende a corromper e o
poder absoluto corrompe absolutamente.
Os grandes homens são quase sempre maus homens,
ainda quando exerçam influência e autoridade,
mais ainda quando se acrescenta a tendência ou a certeza
de corrupção pela autoridade. Não há pior heresia do que
a de que o cargo santifica quem o exerce”
(citado por Herbert Read em Anarquia e Ordem).

37
O outro poder, o poder social, é o poder participado,
exercido por todos nas decisões coletivas: o poder de uma
assembléia de tomar decisões. Exemplo de proporções
enormes foi o poder que tinha a C.N.T. espanhola, com
milhões de filiados, durante a Guerra Civil, de decidir pela
organização autogestionária e pelas experiências práticas
do anarquismo durante a Revolução. É o poder que é
exercido por todos em qualquer prática autogestionária nas
decisões realmente coletivas. O termo governo tem o
sentido de autoridade diretora e o sentido restrito é o do
governo político, centralizador do Kratos social, mas por
extensão tem o sentido de gestão, organização,
ordenamento. As expressões desgoverno (avião, carro
desgovernado) têm o sentido de desorganização e se
(tenho a impressão que poderia ser suprimido o “se”)
análogo ao sentido pejorativo de anarquia. A proposta
anarquista é pela organização e, nesse sentido, pelo
autogoverno, como sinônimo de autogestão.
A frase de Elisée Reclus, “a anarquia é a mais alta
expressão da ordem”, tão repetida ao longo dos anos pelos
anarquistas, em contraposição ao poder coator do Estado,
causa principal das desordens, injustiças e misérias
sofridas por toda a sociedade, em última análise, tem o
mesmo sentido.
Não há expressão mais aviltada do que o termo
socialismo. Assim como para a imensa maioria das
pessoas, é inconcebível às sociedades humanas se
organizarem sem Estado, tal a desinformação. Para a
maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de
estatização.
Intelectuais das mais variadas tendências, nas
universidades, na grande imprensa escrita e em todos os
meios de comunicação, repetem a mesma pregação. Tudo

38
o que se refere a socialismo passa pelo Estado. Que
diferença do conceito de socialismo hoje, e do que era
discutido nos principais congressos do século passado
[XIX]!
Com o ruir do sistema monolítico da Rússia e do Leste
Europeu, só se ouve o apregoar estridente de que
chegamos ao fim da história, com o capitalismo e a
economia de mercado como a suprema via da felicidade
humana ab-aeterno. Como se estatização fosse socialismo
e não um modo de capitalismo. Quando dizemos que o
anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos
que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de
socialismo: daí a expressão Socialismo Libertário.
Socializar é tornar a propriedade e os instrumentos de
trabalho, enfim, toda a riqueza e o que a produz à
disposição de toda a sociedade, acabando com a
exploração do homem sobre o homem. Mas, para o
Socialismo Libertário, não basta socializar os bens
materiais. É preciso socializar o saber, a informação e
todos os bens culturais. Jamais haverá socialismo se não se
fizer a socialização do poder: a primeira coisa a ser
socializada é o poder, que começa na autogestão das lutas.
Destruir o poder político e fortalecer o poder social, o que
significa a autogestão, a real igualdade e liberdade em todo
o processo de transformação. Todas as tendências
“socialistas” ou pseudo-socialistas, que através de suas
vanguardas dirigentes lutaram pela conquista do Estado,
por via parlamentar ou revolucionária, nada mais fizeram
do que criar novas castas de privilegiados, perpetuadores
do capitalismo e da exploração. A História reforça com
poderosos exemplos a posição dos anarquistas na grande
pendência da 1a Internacional: libertários contra
autoritários. Bakunin nunca foi tão atual, seus argumentos

39
hoje estão apoiados em fatos.
O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de
fé, tábuas de lei, com profetas, com excomunhões,
processos de heresias e sanções. É antes um conjunto de
doutrinas e princípios, cujos postulados básicos são
convergentes, e sempre aberto às novas contribuições.
Esses postulados básicos formam um fundo comum, que
no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades
libertárias são o anarquismo propriamente dito. O sentido
de justiça e equidade, a revolta contra a exploração
econômica do homem pelo homem, o combate ao Estado
com a consciência plena de que é a instituição que garante
o regime de exploração e o privilégio como fonte geradora
de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade,
a liberdade como um dos mais altos valores humanos
(liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a
associação livre), solidariedade e apoio mútuo. Para
Proudhon:
“... desde o ponto de vista social: liberdade e
solidariedade são expressões distintas do mesmo conceito.
Enquanto a liberdade de cada um não encontra barreiras
na liberdade dos outros, como diz a Declaração dos
Direitos do Homem de 1793, mas em apoio, o homem mais
livre é aquele que mantém as maiores relações com
seus semelhantes”.

Combate a todas as formas de autoritarismo, combate a


todo poder de coerção, a tudo o que restringe, limita,
sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano. Todo
ser humano tem necessidade de desenvolver seu físico e
sua mente em graus e formas indeterminadas, todo ser
humano tem o direito de satisfazer livremente essa
necessidade de desenvolvimento, todos os seres humanos

40
podem satisfazer essas necessidades por meio da
cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita.
Cada indivíduo nasce com determinadas condições de
desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas
condições tem necessidade — em termos políticos, têm o
direito — de se desenvolver livremente. Sejam quais
forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir
integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber,
exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira
liberdade. Essa necessidade é inerente ao próprio ser. Se o
crescimento físico fosse limitado por qualquer meio
artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Mas, a
limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu
desenvolvimento intelectual e moral anulando todo o seu
potencial criativo, seria lógico considerar-se também uma
monstruosidade. No capitalismo, esse crime se dá em
todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso
um crime, somente os anarquistas.
A descentralização, a autonomia e o federalismo são as
vias pelas quais o anarquismo propõe a construção da nova
sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da
plena liberdade e autonomia individual para a organização
segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias
mais complexas até a completa malha social, os princípios
não se alteram. Começando pelo indivíduo como a
unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido
social, o princípio de autonomia está presente. Os
interesses específicos de cada instância não ultrapassam a
própria esfera e não sofrem nenhuma interferência. Os
interesses comuns de diferentes níveis e setores —
profissionais, de produção de bens, geográficos que vão
desde o espaço físico das comunidades à ecologia de
grandes regiões, etc. — resolvem-se pelas federações que

41
as necessidades práticas indicarão. A união de interesses
com objetivos comuns, sem quebra da autonomia é a
característica básica do federalismo. Assim, as uniões
locais se organizam em regionais até as confederações
internacionais.
Tendo como fundamento a liberdade e a igualdade, o
projeto anarquista de socialismo nos leva a clarear alguns
aspectos dos conceitos de liberdade e ética para os
anarquistas. O que é a liberdade? Tema de grandes
controvérsias através da História. Há livre-arbítrio ou
determinismo? Praticamos nossos atos por escolha ou não?
Somos apenas dirigidos pelos nossos impulsos interiores
aos quais não controlamos? Acontece que o homem é um
animal racional: verdade que todos aceitam. Ser racional é
ser capaz de escolher, capaz de preferir, de pesar, de
comparar esta ou aquela solução, captar as possibilidades
das possibilidades. O homem prevê as consequências de
seus atos. Pode imaginar que se proceder assim poderá
suceder isto ou aquilo. Tal ato poderá levar a tais ou quais
consequências. É porque pode julgar, pode comparar, pode
medir, pode escolher. Se o homem fosse apenas um
autônomo, não teria noção de futuro. Ao ter noção de
futuro demonstra independência, capacidade de escolher
no suceder que sobrevém. É por isso que o homem é um
ser autônomo e conhece a liberdade. Quando temos um
impulso para um ato determinado e refletimos sobre as
consequências, ao pensarmos, se nos revela uma série de
possibilidades que vamos analisando racionalmente.
Reprimimos o impulso, vencemos o desejo e resolvemos
não fazer o que desejamos. Negar esse fato prático que
verificamos em nossa vida seria negar praticamente
também todo o poder da educação. Nossos maiores
obstáculos contra os quais temos que lutar são justamente

42
a pregação e a crença de que só podemos resolver os
magnos problemas econômicos e sociais à custa da
liberdade, abdicando da liberdade. Mas a liberdade é muito
mais. E é através da conquista da própria liberdade que
podemos garantir a solução que buscamos para esses
problemas. O caminho da liberdade é o da prática da
própria liberdade. É como a prática da liberdade que
formamos homens livres. Liberdade não é somente
ausência de restrições: é responsabilidade, opção e livre
aceitação de obrigações sociais. Todos os nossos atos são
passíveis de juízos de valor e de conotações éticas. Tudo o
que foi exposto até aqui tem implicações éticas. Há
vastíssimos estudos sobre ética, desde a transcendente
(religiosa), até a ultra-racionalista, amoral, que pretende
justificar posições totalitárias; racistas, de casta, do Estado,
etc... A que nos interessa é a ética imanente, que
fundamenta as doutrinas libertárias, estudada e defendida
por Proudhon e desenvolvida por Kropotkin, com bases
sólidas, que aceitam uma ordem natural entre os homens,
fundada nas tensões que formam e que procuram
conservar-se porque na realidade toda ética está fundada
nelas e nos interesses por elas criada. Portanto, se a
sociedade for organizada sob bases simples e naturais,
formará naturalmente sua ética, não como uma
necessidade apenas, mas porque o homem sabe descobrir o
que lhe convém para ordenar as suas relações, porque sabe
escolher. Por isso, os homens, quando se reúnem para um
fim comum, logo sabem deduzir de sua organização as
regras e princípios justos (ajustados) que permitem
conquistar da melhor forma o fim que visam, como têm-se
verificado ao longo da História na constante da
polarização entre liberdade e autoritarismo, e em todos os
movimentos que buscam a superação social. Dessa forma,

43
a organização anarquista desenvolve sua própria ética,
fundada num dever ser próprio, que, como todo ato ético, é
frustrável. O ato antiético para o anarquista é tudo o que
ofenda a norma da organização, o que ofende a
solidariedade, seu fundamento, e que se estende à espécie
humana. E o vigor, o desenvolvimento, as grandes
possibilidades do projeto anarquista dependem
fundamentalmente da coerência de sua ética.
As diferentes tendências e visões que no evoluir das
idéias foram se sucedendo, como o anarco-individualismo,
o mutualismo, o anarco-coletivismo, o anarco-comunismo
e o anarco-sindicalismo, ainda vigente, pois é
simplesmente a atuação dos anarquistas no movimento
sindical com características próprias, hoje praticamente se
diluíram e podemos falar de anarquismos sem adjetivos.
Ricardo Mella, um dos maiores teóricos do anarquismo
espanhol, apresentou um trabalho no Congresso
Revolucionário Internacional de Paris, em maio de 1900,
com o título, “O Socialismo Anarquista”, contendo críticas
às propostas que alimentavam grandes discussões sobre
como deveria ser a sociedade futura. Idéias
extraordinariamente atuais na análise sobre as tendências:

“Se afirmamos a liberdade no sentido de que cada


indivíduo e cada grupo possam atuar em cada instante,
e nós todos a afirmamos, é claro que queremos os meios para
que tal autonomia seja praticável.
E porque nós os queremos, somos, sem dúvida, socialistas,
isto é, afirmamos a justiça e a necessidade da
posse comum da riqueza, porque sem essa posse comum,
que significa igualdade de meios, a autonomia seria
impraticável.
Entendemos, creio que sem divergências, por posse
comum da riqueza a posse comum de todas as coisas,
44
de tal maneira, que estejam à livre disposição de indivíduos e
grupos. Isto faz supor que será necessário estabelecer um
oportuno acordo para que se faça uso metódico da faculdade
de dispor livremente das coisas.
A investigação das formas possíveis daquele necessário
acordo dá origem às diferentes escolas assinaladas
(o grifo é nosso).
Se trata, pois de questões de pura formalidade.
Será necessário, a partir de nossas afirmações genuinamente
socialistas sistematizar a vida geral em
plena anarquia? Será necessário decidir-se desde já por
um sistema especial de prática comunista? Será necessário
trabalhar para a implantação de um método
exclusivo? Se assim fosse, estaria justificada a existência de
tantos partidos anarquistas quanto ideias econômicas
dividem nossa opinião.
Por outra parte, demonstraríamos com tais propósitos, que
pretendíamos algo mais que a igualdade de
meios como garantia da liberdade: demonstraríamos que
tratávamos de dar uma regra à própria liberdade, ou
melhor dizendo, ao seu exercício.
Sistematizar o exercício da autonomia é contraditório. Livre o
indivíduo e livre o grupo, nada pode obrigá-lo
a adotar tal ou qual sistema de convivência social. Nada
será também bastante poderoso para determinar uma
direção uniforme na produção e distribuição da riqueza.
Posto que afirmamos a total autonomia individual e
coletiva, teremos de admitir, como consequência, a faculdade
de todo mundo proceder como queira, a possibilidade de que
uns ajam de um modo e outros de outro, a evidência de
múltiplas práticas, cuja diversidade não será obstáculo à
harmonia e à paz social que aspiramos. Havemos pois de
admitir, resumindo, o princípio da cooperação livre, fundada
na igualdade de meios sem ir mais longe nas
consequências práticas da idéia.

45
Por que o anarquismo há de ser comunista ou coletivista?
Só o enunciado dessas palavras produz no entendi-
mento a imagem de um plano preconcebido,
de um sistema fechado....
A afirmação de que tudo é de todos não implica que
cada um possa dispor de tudo arbitrariamente ou conforme
determinada norma. Significa unicamente que
estando a riqueza à livre disposição dos indivíduos, fica
ao sabor destes a organização de seu usufruto.
A investigação das formas de organizar este usufruto
é certamente útil e necessário, sobretudo a título de
estudo, não a título de imposição de doutrina. Mas a própria
investigação não dará nem será necessário que dê
unanimidade de opiniões, nem é desejável que determine um
credo social. Em matéria de opiniões, é preciso ser respeitoso
com todas. A liberdade de levá-las à
prática é a melhor garantia desse respeito”[2].

O pluralismo que caracteriza o movimento anarquista é


condizente com a natureza humana. A máxima igualdade é
aquela na qual cada um possa exercer plenamente sua
diferença. Se não dispõe da posse atual dessa igualdade, os
anarquistas já são donos virtuais dela.

Notas:
1 Tema da segunda palestra no Curso de Anarquismo, em
11 de maio de 1991.
2 Ricardo Mella. Ideario, Ediciones CNT, 1975, pp. 32-33.

In: Anarquismo: Atualidade e Reflexão. Curso livre do


CCS. s/d.

46
REFLEXOS DA REVOLUÇÃO RUSSA NO BRASIL
Jaime Cubero

Os fundadores da I Associação Internacional dos


Trabalhadores (AIT) jamais poderiam imaginar os rumos
que tomariam as idéias socialistas quando, face à questão
do proletariado, em janeiro de 1859, propunham: “...a
negação absoluta de todos os privilégios; negação absoluta
de toda autoridade e a emancipação do proletariado... O
governo social não pode ser mais do que uma
administração nomeada pelo povo, submetida ao seu
controle e sempre revogável quando for julgado
inconveniente”. Tinham uma visão clara e objetiva de seus
propósitos e finalidades.
Durante os congressos da AIT foram-se
aprofundando as diferenças entre as correntes que
culminaram com a divisão clara entre socialismo libertário
(anarquista) e socialismo autoritário (marxismo). Bakunin
e seus companheiros, preconizavam o socialismo
libertário, ação direta revolucionária para destruir o Estado
e as instituições burguesas e capitalistas; Marx defendia o
comunismo estatal, autoritário, pela conquista do poder e,
a partir do Estado, fazer a revolução transformadora, com
uma elite dirigente do partido único que instalasse a
“ditadura do proletariado”.
Quando, após o 5º Congresso, realizado em Haia, em
1892, Marx e seus seguidores decidem transferir o
Congresso Geral da AIT para os Estados Unidos,
acabando praticamente com a I Internacional –
posteriormente reconstituída e existindo até hoje com
orientação e estrutura anarco-sindicalista – os anarquistas
passaram a atuar no movimento operário e os marxistas
47
em partidos políticos para a conquista do poder via
parlamento através da II Internacional.
O movimento anarquista de massa se desenvolve
imbricado ao movimento operário em muitos países e no
Brasil o anarco-sindicalismo se constitui num poderoso
agente histórico, responsável pela emergência da classe
operária e pelas conquistas dos trabalhadores,
posteriormente condensados na legislação trabalhista.
O ano de 1917 foi extraordinariamente marcado por
acontecimentos que apontavam para profundas mudanças
no mundo. A Revolução de Fevereiro na Rússia,
provocando a queda do Czar, repercute profundamente no
Brasil, e os anarquistas passam a dedicar grandes esforços
em prol dos revolucionários russos, inclusive com
campanhas financeiras. Depois da greve geral de 1917,
apesar da intensa repressão, o movimento se
desenvolve de forma extraordinária, chegando a publicar
jornais diários como A Plebe e A Vanguarda.
A Revolução de Outubro de 1917 é recebida como
uma revolução libertária, saudada com entusiasmo pelo
movimento anarquista. As expectativas são enormes e uma
série de atividades se desenvolve como conseqüência.
Enquanto na Rússia se desenrola a tremenda luta do
Movimento Makhnovista (anarquista) contra as tropas de
Wrangel e Deninkin (1918-1921) garantindo a vitória da
revolução e estabelecendo uma verdadeira organização
libertária nos campos da Ucrânia, garantindo inclusive o
abastecimento de trigo em Moscou; enquanto os
exércitos regulares do governo soviético, comandados por
Trotski, depois da certeza de que os generais czaristas e as
tropas invasoras tinham sido aniquilados pelas forças
makhnovistas e já não ofereciam perigo, atacam
48
traiçoeiramente o movimento, descumprindo os pactos
feitos anteriormente e fuzilando muitos dos seus
participantes; enquanto ainda em março de 1921 se
desenrola o massacre dos marinheiros do Kronstadt por
defenderem os operários e o princípio proclamado
por Lenin, “todo poder para os sovietes”, antes de que o
poder dos bolchevistas se consolidasse e passasse a
vigorar a ditadura férrea dos capatazes do partido,
no Brasil os anarco-sindicalistas passam a criar
organizações sob o signo do que era então chamado de
maximalismo ou maximismo. Em vários pontos do país
surgem agrupamentos denominados maximalistas ou
comunistas, como em Porto Alegre o “Grupo
Maximalista”, no Recife “Círculo Maximalista” e até
“Liga Comunista Feminina” no Rio de Janeiro etc etc.
Nas comemorações, nos comícios, nas assembléias das
associações de trabalhadores exaltava-se a Revolução
Russa com discursos inflamados de solidariedade, sempre
imbuídos do caráter libertário, anarquista.
A comemoração do dia 1º de maio de 1918 foi
marcadamente voltada para a Revolução Russa, não só
pelos atos realizados como pelas matérias publicadas nos
jornais do movimento. Num período de muita agitação e
muitas greves devemos destacar a chamada “Insurreição
Anarquista no Rio de Janeiro”. A partir do que alguns
chamaram de “Soviete do Rio”, organiza-se um
movimento insurrecional tendo à frente os militantes
anarquistas que mais haviam se destacado durante o ano
de propaganda libertária com artigos na imprensa,
conferências, cursos e palestras nos sindicatos operários.
Com base numa greve geral se pretendia pela força das
armas derrubar o governo constituído, e a “exemplo da
Rússia”, formar uma junta de operários e soldados que
49
abrisse caminho para a construção de uma sociedade sem
classes e sem exploração, sem Estado e sem dominação.
A data escolhida foi 18 de novembro de 1918. Foi
marcada uma concentração no Campo de São Cristóvão.
Entre 15 e 16 horas os trabalhadores têxteis do Rio e
cidades vizinhas paralisaram o trabalho, assim como os
metalúrgicos e os operários da construção civil. Muitos
grupos operários foram engrossando a massa. Soldados da
Brigada Policial ameaçaram empregar a força prendendo
os mais exaltados. No confronto, tiroteio intenso e
bombas, explosão de carro da polícia e fuga precipitada
dos operários. O plano previa atacar a Intendência de
Guerra na expectativa de que os soldados
confraternizassem com eles. Dinamitariam o edifício da
Prefeitura, atacariam o Palácio e o Quartel General da
Brigada Policial.
Enquanto isso, outros atacariam o Palácio do Catete e
em seguida o da Câmara prendendo o maior número de
deputados possível e proclamariam o Conselho de
Operários e Soldados. Na expectativa alimentada pela
experiência da Rússia, pelo processo revolucionário da
Alemanha onde as tropas se juntavam ao povo, esperavam
a adesão dos escalões inferiores das Forças Armadas.
Entretanto, os soldados do Exército e os da Brigada
Policial não aderiram e cumpriram com rigor seu papel de
carrascos do povo. E mais que isso, haviam sido
preparados antecipadamente, pois foi um militar, o tenente
do Exército Jorge Elias Ajus, o responsável imediato pelo
fracasso da insurreição. Infiltrado no movimento,
passando-se por anarquista, informava os superiores com
detalhes dos preparativos da insurreição. Enganando a
todos, ele era o responsável pela estratégia militar do

50
levante. Assistia todas as reuniões na residência e no
escritório de José Oiticica, que foi preso por volta de 14
horas em seu escritório. Entre os muitos presos estavam
Astrogildo Pereira, José Elias da Silva e João da Costa
Pimenta que depois participariam da fundação do Partido
Comunista Brasileiro. José Oiticica, sendo indicado
presidente do Conselho durante os preparativos e
como a principal figura no episódio chegou a ser chamado
de “Lenin Brasileiro”.
Os grupos chamados maximalistas proliferaram,
todos defendendo princípios libertários, e a partir destes
princípios os anarquistas do Rio de Janeiro fundam
o Partido Comunista Libertário, em 8 de março de 1919,
com adesão das ligas comunistas e maximalistas.
Tudo influía para fazer acreditar que a sociedade socialista
libertária viria da Rússia. Kropotkin e Bakunin eram
exaltados como grandes figuras do processo
revolucionário.
O Partido Comunista Libertário lança as bases de
acordo em março de 1919 e marca um congresso para
junho. O secretário-redator dos princípios e fins,
José Oiticica, é impedido pela polícia de comparecer mas
publica em redação definitiva, no jornal anarquista
Spartacus, de 16 de agosto de 1919, o que seria o
catecismo comunista. Um longo programa em que ao
mesmo tempo que uma série de definições sobre
princípios e propostas para a reorganização social.
Para o anarquista, comunismo libertário e anarquismo
eram sinônimos, daí a expressão “comunista” ser muito
usado na época. No dia 1º de maio de 1919 é lançado em
São Paulo um livrinho com o título O que é Maximismo ou
Bolchevismo – Programa Comunista, por Hélio Negro e

51
Edgard Leuenroth. Depois de uma “Explicação Prévia” o
livro se inicia dizendo: “Este livro destina-se aos
trabalhadores do Brasil, a fim de lhes dizer o que é
Bolchevismo ou Maximismo e o ‘Comunismo’ que numa
palavra – é o socialismo” e mais adiante: “Atualmente, na
Rússia, conforme a sua constituição, aprovada em janeiro
de 1918 pelo 3º Congresso Pan-Russo dos sovietes, está
estabelecida uma organização política e econômica de
transição que dá aos trabalhadores e soldados
o poder da nação”, e prossegue, “O capítulo V – art. 9
determina que o princípio essencial da constituição da
República Federal dos sovietes no período de
transição atual, enquanto durar a situação revolucionária,
reside na instauração do poder do proletariado urbano e
rural e dos camponeses mais pobres, com fim de suprimir
a exploração do homem pelo homem e de fazer triunfar o
socialismo sob cujo regime não haverá divisão de classes,
nem poder de Estado”.
Seguem-se uma série de medidas que pressupõem o
caminho para o tão almejado comunismo libertário.
Depois de uma análise crítica da conjuntura nacional,
inclusive com estatísticas econômicas etc., expõe a
organização dos trabalhadores que pode promover a
revolução social. Em seguida, o livro apresenta o Esboço
de Programa Comunista com as normas e diretrizes para a
reorganização da sociedade, tratando de “Serviços
Públicos”, instrução, produção e distribuição de bens,
saúde, religião, relações internacionais etc. etc. O Partido
Comunista Libertário foi se diluindo aos poucos até
desaparecer, à medida que as notícias, embora
desencontradas, começaram a chegar apontando os
desvios da Revolução Russa, já em fins de 1919 e durante
1920.
52
Muitas informações eram tidas sob suspeita, sob
pretexto de que eram veiculadas pela imprensa burguesa.
Denunciar o que vinha ocorrendo na Rússia requeria
convicções firmes e muita coragem. Florentino de
Carvalho foi o primeiro anarquista brasileiro de projeção a
atacar os bolchevistas russos. Em 20 de março 1920 ele
escreve em A Plebe:
“Não é verdade que os anarquistas sejam partidários
da ditadura, da lei, do Estado. Na Rússia, por exemplo,
tanto não estão conformes com a ditadura do proletariado,
que chegaram a sustentar contra os maximistas,
verdadeiras batalhas nas ruas de Petrogrado e Moscou”.

Quando à maioria dos anarquistas brasileiros


acreditava que tais relatos eram simples deturpações da
imprensa burguesa, as controvérsias se multiplicam e o
próprio Florentino de Carvalho, em setembro, denunciava
a criação do Partido Comunista Libertário, afirmando
possuir documentos para provar que o regime
russo “é essencialmente contrário aos nossos princípios”.
Manifestações contundentes se multiplicam contra os
bolchevistas na medida em que as notícias sobre o
massacre de anarquistas e socialistas revolucionários
chegam ao Brasil.
Durante os primeiros meses de 1921, um emissário
do regime russo procura Edgard Leuenroth propondo-lhe a
fundação do Partido Comunista do Brasil, ante sua recusa,
pede-lhe que indique outra pessoa. Leuenroth indica
Astrogildo Pereira que insistia nessa idéia sob a alegação
de que era o caminho mais curto e eficaz para chegar ao
socialismo libertário. Astrogildo ainda acreditava que a
Revolução Russa era o caminho.
53
O Partido Comunista do Brasil foi fundado num
congresso realizado no Rio de Janeiro de 25 a 27 de março
de 1922, por 11 ex-anarquistas e um socialista.
A campanha antianarquista conduzida pelo PCB começou
em abril de 1922, com artigo de Antonio Bernardo
Canellas, na publicação Movimento Comunista. Canellas,
o mesmo que foi delegado do PCB ao 4º Congresso da 3ª
Internacional, em Moscou, e voltou denunciando as
atrocidades do regime soviético. A partir do seu relatório
publicado à revelia do partido se instala uma verdadeira
guerra entre anarquistas e bolchevistas, onde se destacam
José Oiticica, Edgard Leuenroth, Florentino de Carvalho e
outros. No 2º Congresso da 3ª Internacional (Comintern)
Lenin apresenta os famosos “21 princípios” segundo os
quais, na formação dos partidos comunistas nacionais,
subordinados a Moscou, as organizações operárias que não
pudessem ser cooptadas deveriam ser destruídas. Segundo
Lenin “a missão da forma não é convencer, mas dispersar
as filas dos adversários, não é melhorar os seus defeitos,
mas aniquilar a sua organização e a sua atividade, extirpá-
las da Terra. A forma deve ser tal que incite aos
piores pensamentos e à sua suspeita, e leve o caos e a
desorientação às fileiras do proletariado”.
A aplicação das rígidas instruções de Moscou levam
os bolchevistas brasileiros a criar a chamada “Tcheca do
Brasil”, verdadeiro “Esquadrão da Morte” destinado a
eliminar militantes anarquistas, matando Antonino
Domingues e outros companheiros. Tentativa de
assassinato de José Oiticica e outros. Eles tumultuavam as
reuniões das entidades operárias impedindo que os
trabalhos se desenvolvessem. A ação dos comunistas foi
mais deletéria ao movimento operário do que as
perseguições da polícia e todas as formas de repressão.
54
Seria exaustivo registrar de forma circunscrita e exigiria
volumes, o que foi a ação do PCB contra os anarquistas e
o movimento operário.
Traições, calúnias usando rótulos mentirosos,
empregando os mais sórdidos recursos para cumprir as
ordens vindas de Moscou. Quando toda a imprensa
burguesa internacional fazia guerra contra a Revolução
Russa, a posição dos anarquistas, denunciando seus
desvios e atrocidades, era no mínimo incômoda. Daí o
rótulo, de profunda má-fé, de “pequenos burgueses” que
os bolchevistas aplicaram aos anarquistas.
Os anarquistas, além da luta tenaz contra as
instituições burguesas, passaram a sustentar uma
verdadeira guerra contra a impostura bolchevista. Além do
número incalculável de artigos na imprensa libertária,
lembramos entre outros os de José Oiticica na grande
imprensa, como Jornal do Brasil, Correio da Manhã,
e apenas como exemplo a série de artigos publicados no
jornal A Pátria, em junho de 1928, sob o título “Como
Eles Mentem”. O primeiro artigo de uma série de 10 se
inicia com as seguintes frases, que permitem aquilatar a
violência da linguagem: “Às injúrias da caterva
bolchevista, nós anarquistas, respondemos com fatos. É o
melhor argumento, o único verdadeiramente valioso para
os trabalhadores. Para isolá-los do miasma soviético basta-
nos ir desfazendo, uma por uma, as imposturas
empacotadas em Moscou, despachadas pelo mundo afora e
distribuídas aos incautos...tenho tido ocasiões várias de
patentear despudoradas mentiras bolchevistas e cumpre-
me agora nessa missão higiênica, opor creolina às
invencionices da Internacional Sindical Vermelha...”

55
O reflexo do movimento anarquista no Brasil deu-se em
conseqüência de uma série de fatores, cujas coordenadas
culminaram com o golpe de Estado getulista em novembro
de 1937 e a ação do PCB foi de importância muito
relativa, ao contrário do que muitos pretenderam fazer
crer, por desconhecimento ou má-fé. Basta dizer que
quando os anarquistas se empenhavam na luta antifascista,
quando se deu o confronto com os integralistas, na Praça
da Sé, em outubro de 1934, o PCB, segundo seus próprios
dados publicados na revista Divulgação Marxista, contava
com aproximadamente 1000 filiados em todo o território
nacional, contra mais de 80 sindicatos filiados só na
Federação Operária de São Paulo, entidade anarco
sindicalista.

As lições que ficaram

As contundentes críticas de Bakunin se confirmaram e seu


pensamento nunca foi tão atual: “Liberdade em socialismo
é o privilégio, a injustiça; o socialismo sem liberdade é a
escravidão e a brutalidade”. O socialismo autoritário,
impregnado de idéias absolutistas, característica de todos
os movimentos marxistas, desenvolveu-se a partir da idéia
e da ação para a conquista e o fortalecimento do Estado –
todas as doutrinas e ideologias cujos adeptos visam à
tomada de poder, com finalidade nobre ou não, ou são
totalitárias na sua essência – como o nacional-socialismo,
melhor dizer, nazismo – ou passam por estágios e etapas
que acabam na intolerância pois:
1) Toda doutrina é considerada pelos adeptos como certa e
eficaz;
56
2) Como a mais certa e eficaz;
3) Como a única certa e eficaz.
Ao alcançar esse terceiro estágio, toda e qualquer
oposição é considerada herética e dispondo de força física,
no caso a conquista do poder do Estado, ela o empregará
para combater e eliminar opositores e até partidários
dúbios e vacilantes. Na União Soviética e em todos os
países onde controlaram o poder foram-se cumprindo as
previsões de Rosa Luxemburgo sobre as propostas
bolchevistas e toda sua gestão da revolução: “A ditadura
do proletariado seria uma ditadura sobre o proletariado
através das seguintes etapas; o partido usurparia as
funções da classe, o Comitê Central, usurparia as funções
do partido, o Birô Político usurparia as funções do Comitê
Central e o Secretariado Geral usurparia as funções do
Birô Político”. A autocracia é, pois, o resultado real do
“Centralismo Democrático” de
Lenin.
No alvorecer de um novo milênio, ante tudo o que
ocorreu neste século, face às dezenas de
milhões de mortes provocadas pelos “socialismos”
totalitários, nazismo, fascismo, comunismo etc., só resta
um caminho para superar a barbárie: o socialismo
libertário.
***
In: Revista Libertárias, nº 1, outubro/novembro de 1997.

57

Uma Breve Apresentação da Imprensa Marginal

Há tempos a cultura, a informação e as idéias criadas


pelo ser humano são tratadas como mercadoria geradora
de lucros e poder, se mantendo nas mãos de uma minoria
que tem em mãos não só o conhecimento, mas também os
meios de produção e difusão dos mesmos.
Partimos da idéia de que a informação não é produto, e
deve estar nas mãos de tod@s. Buscando sair da lógica do
lucro e do mercado, do comércio de idéias e informação,
produzimos e difundimos nossos livretos a baixos custos,
cobrando apenas um valor coerente ao seu custo real –
referente à cópia, montagem e auto-sustentação do projeto.
Assim, pensamos e elaboramos nossos livretos como algo
mais do que uma capa envernizada, brilhante e colorida,
ou um papel couché: como algo mais do que um belo
produto que seja sucesso de vendas e esteja nas estantes
das melhores livrarias.
Pensamos no livro como difusor de informação,
gerador de senso crítico e questionamentos individuais e
coletivos, como propulsor de novas idéias. Não queremos
ser sucesso de vendas, não queremos nenhum livreto best
seller. Acreditamos que o direito de reprodução e difusão
não é propriedade de quem os cria ou edita.
Contra a idéia de propriedade intelectual, apoiamos a
pirataria e a livre cópia. Informação, idéias, inventos,
58
criações: nas mãos de tod@s, e não mais propriedade e
monopólio de uma indústria cultural! A Imprensa
Marginal é uma editora e distro anarcopunk que traduz,
publica, reedita e difunde materiais libertários diversos e
também trabalha com legendagem de filmes e
documentários, organização de atividades e oficinas.

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para adquirir os livretos ou catálogo, escreva para
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59

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