Outras Macabéias - O Lago Encantado de Grongonzo
Outras Macabéias - O Lago Encantado de Grongonzo
Outras Macabéias - O Lago Encantado de Grongonzo
ARARAQUARA – S.P.
2020
ISABELA CRISTINA DO NASCIMENTO
Bolsa: CAPES
ARARAQUARA – S.P.
2020
Nascimento, Isabela Cristina do
N244o Outras Macabéas: : mulheres nordestinas e deslocamento em dois
romances de Marilene Felinto / Isabela Cristina do Nascimento. --
Araraquara, 2020
177 f. : tabs., mapas
Aos meus pais, por serem razão das minhas lutas, base dos meus sonhos e por haver tanto
orgulho em suas palavras ao falar da minha profissão.
A Juliana Santini, minha orientadora, por ter sido meu norte, minha grande inspiração e por
acreditar em meu potencial, dispondo de atenção e paciência durante todo o processo.
Ao Igor, meu namorado, e a Larissa, minha irmã, porque foram fortaleza, incentivo e apoio
em cada momento de apreensão, tornando minha vida mais leve e repleta de amor.
Às minhas amigas, Letícia, Bianca e Daniela (prima), mulheres fortes e também acadêmicas
que acompanharam de perto minha trajetória e vibraram com cada conquista alcançada.
Aos companheiros de pesquisa da UNESP, de modo especial, Elisa, Felipe, Jéssica, Laura,
Naiara, Camila e Manoelle, pela partilha de sentimentos, de inseguranças, mas também de
injeções de ânimo e solidariedade.
A Marilene Felinto, pelo carinhoso encontro na FLIP 2019, pelos autógrafos, por estar aberta
ao diálogo e por sua produção literária inspiradora e contundente.
A Luiz Inácio Lula da Silva e a todas as políticas públicas voltadas ao ingresso dos mais
pobres nas universidades do país.
Ao Nordeste, berço cultural das mais ricas histórias e trajetórias ficcionais, responsável por
grande parte de meu entusiasmo diante da Literatura na qual me aprofundei.
Enfim, a todos os amigos e familiares que contribuíram de alguma forma neste caminho de
realização da pesquisa.
“– Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte
deparei e às vezes até festiva; só morte tem encontrado quem pensava
encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida Severina
(aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais
Severina para o homem que se retira.”
Este trabalho tem por objetivo analisar o deslocamento das protagonistas dos romances As
mulheres de Tijucopapo (2004) e O lago encantado de Grongonzo (1992), de Marilene
Felinto, problematizando a (des)construção de suas identidades a partir desses movimentos e a
relação que se cria entre o espaço do sertão e o espaço da metrópole nas narrativas. A
pesquisa parte da hipótese de que as personagens da autora apontam para uma nova
perspectiva de representação da mulher nordestina em deslocamento na literatura brasileira,
vinculada – ou não – a um domínio narrativo (voz e focalização) que interfere em sua
composição. Felinto constrói personagens coléricas nos sentimentos e nas palavras, com
experiências de vida marcadas pela fragmentação e pela busca de um lugar e uma identidade.
Diferentemente do que se constata no romance de 30 acerca da migração nordestina e suas
motivações – como a seca, a miséria e a fome – o deslocamento de nordestinos que surge nas
produções contemporâneas envolve, para além dos problemas geográficos e econômicos,
outros estímulos, outras vozes e outras nuances de significado. Os anseios, os choques
identitário e cultural, o estranhamento e a revolta de Rísia e Deisi são desencadeados pelas
sucessivas andanças que compõem suas trajetórias de vida, pois ambas saem do espaço de
origem para um espaço outro e, no entanto, retornam. O movimento de regresso, isto é, a
saída das metrópoles que as “criaram” em direção às origens traduz o esfacelamento subjetivo
do qual são vítimas. Ademais, falar de mulheres e mobilidade na literatura é unir pontos
antagônicos, e, nesse caso, soma-se o fato de que tais mulheres deslocadas pertencem a
narrativas que foram, por vezes, deixadas às margens da crítica literária. Desse modo, a
discussão proposta também faz ecoar aspectos de transgressão, ruptura de silêncios,
desvelamento de alteridades e desestabilização de hegemonias canônicas.
This academic paper is aimed at analyzing the displacement of the protagonists of the novels
As mulheres de Tijucopapo (2004) and O lago encantado de Grongonzo (1992), written by
Marilene Felinto, problematizing the deconstruction of their identities from these movements
and the relationship which is created between the hinterland’s space and the metropolis’ space
in the narratives. A research which starts from the hypothesis that the author's characters point
to a new perspective of showing northeastern women in displacement in Brazilian literature,
connected or not to a story-driven domain (voice and focus) which interferes in their
composition. Felinto builds choleric characters regarding feelings and words, with life’s
experiences flagged by fragmentation and the search for a place and an identity. Different
from what is found in the 30's novel about northeastern migration and its motivations - such
as drought, misery and hunger - the displacement of northeasterners that comes in
contemporary productions involves, in addition to geographical and economic problems, other
encouragement, other voices and other perceptions of meaning. The demands, the identity and
cultural clash, the strangeness and Risia and Deisi’s rebellion are triggered by the successive
wanderings that make up their life stories, as both leave their original space and go to another
one and, however, return to the very first place. The return movement, which is, the departure
from the metropolises that “raised” them towards their origins, reflects the subjective
breakdown of which they are victims. Furthermore, to talk about women and mobility in
literature is to unite antagonistic points, and, in this case, we gather the fact that such
displaced women belong to narratives that were sometimes left on the sidelines of literary
criticism. In this way, the proposed discussion shall also reverberate aspects of transgression,
rupture of silences, unveiling of otherness and destabilization of canonical hegemonies.
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12
2 CAPÍTULO I – NÃO UM TETO, MAS UM CAMINHO TODO SEU......................... 22
2.1 Desenraizamentos femininos .......................................................................................... 22
2.2 Escritas fora de lugar ....................................................................................................... 32
2.3 Outras Macabéas ............................................................................................................. 41
3 CAPÍTULO II – RÍSIA: SÃO PAULO DA DISSONÂNCIA ........................................ 52
3.1 “Recife, a coitada. São Paulo, a rica” .............................................................................. 52
3.2 Em São Paulo soube da sua diferença ............................................................................ 69
3.3 A caminho da revolução: voz e mobilidade .................................................................... 80
3.3.1 “Porque há o direito ao grito” .................................................................................... 89
3.4 Tijucopapo: Bacurau das mulheres guerreiras ................................................................ 94
4 CAPÍTULO III – DEISI: AQUELE LUGAR DE ESTEFÂNIA E LENA .................. 102
4.1 “Grongonzo dos tempos do onça” ................................................................................. 102
4.2 Um território que não lhe cabia ..................................................................................... 109
4.3 O não-pertencimento ..................................................................................................... 114
4.3.1 A não toponimização em O lago encantado de Grongonzo .................................... 125
4.4 “Quando não se pode com outros tempos, volta-se ao lugar”....................................... 129
4.5 Focalização e alteridade ................................................................................................ 141
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 148
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 153
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................................... 159
APÊNDICES ........................................................................................................................ 163
APÊNDICE I – QUADRO: DISCUSSÕES MAIS FREQUENTES SOBRE MOBILIDADE
FEMININA ............................................................................................................................ 164
APÊNDICE II – GRÁFICOS: OBRAS E AUTORAS MAIS ESTUDADAS................... 166
ANEXOS .............................................................................................................................. 167
ANEXO I – AS MULHERES DE TIJUCOPAPO E O LAGO ENCANTADO DE
GRONGONZO: A FORTUNA CRÍTICA DOS ROMANCES ............................................. 168
12
1 INTRODUÇÃO
Após a publicação do romance Essa terra (1976), de Antônio Torres, cujo enredo nos
apresenta os deslocamentos do baiano Nelo entre São Paulo e Bahia, ou ainda a publicação do
célebre e último romance de Clarice Lispector em 1977 – que traz em seu enredo a história da
retirante alagoana Macabéa e as adversidades vivenciadas por ela no Rio de Janeiro –,
Marilene Felinto publica, em 1982, seu primeiro romance de temática semelhante, As
mulheres de Tijucopapo. O segundo romance, intitulado O lago encantado de Grongonzo, é
publicado em 1987. As narrativas da autora se destacam porque, além de abordarem a
migração nordestina em um período marcado por tendências urbanas, também trazem em seu
bojo o deslocamento feminino e seus desdobramentos. Tais aspectos singularizam a produção
ficcional de Felinto e devem ser problematizados na medida em que desestabilizam o
histórico apagamento dessas vivências dentro do campo literário, como nos mostra Regina
Dalcastagnè (2012).
A jornalista e ficcionista nasceu no seio de uma família pobre do litoral de
Pernambuco e, em 1970, migrou para São Paulo aos 13 anos de idade. Na capital, graduou-se
em Letras e destacou-se como colunista de importantes jornais e revistas. Marilene Felinto foi
considerada uma voz polêmica no meio jornalístico, visto que dispunha de uma escrita
contundente e engajada com a denúncia das diversas formas de exclusão e injustiça social.
Essa postura combativa também fica evidente na narrativa de seus dois romances. O primeiro
deles, As mulheres de Tijucopapo, é internacionalmente conhecido e nacionalmente premiado.
Além das narrativas que são corpus desta pesquisa, a autora lançou o volume de
contos PostCard (1991), o livro de crônicas jornalísticas Politicamente incorreto (2000) e, em
2002, publicou sua última produção ficcional desse período, Obsceno abandono: amor e
perda. É também por volta de 2002 que Felinto abandona os holofotes e se afasta da mídia e
do mercado literário, retornando ao cenário somente no ano de 2019 com a participação na
FLIP – Paraty. Na ocasião, a escritora relançou suas principais obras e apresentou ao público
textos inéditos publicados de forma independente.1
Os romances supracitados, localizados na década de 80, antecedem as produções pós
anos 2000 que abordam o sertão e seus habitantes. Autores como Ronaldo Correia de Brito,
Maria Valéria Rezende, Marcelino Freire e Jarid Arraes inserem em seus textos
1
Foram três textos inéditos publicados pela autora: Fama e Infâmia: uma crítica ao jornalismo
brasileiro, Sinfonia de contos de infância: para crianças e adultos e Contos reunidos: autobiografia de uma
escrita de ficção — ou por que as crianças brincam e os escritores escrevem.
14
uma mulher negra e trazem em seus enredos o movimento migratório de mulheres que saíram
do Nordeste com a família mas retornaram sozinhas em busca de uma reconfiguração
identitária, algo que por si só é transgressor na medida em que se constata na literatura a rara
presença de personagens femininas excedendo a esfera privada.
Há uma desestabilização da resignada migração de Sinhá Vitória ou da narração
masculina sob o olhar da cidade grande que constrói a trajetória de Macabéa. No entanto, é
necessário pontuar que não será realizado um estudo comparativo com as obras canônicas
aqui mencionadas e que tampouco se trata de categorizar a produção de Felinto como
regionalista, uma vez que suas personagens estão cindidas entre a vida agreste e a vida urbana
e são construídas sob outro projeto estético. O romance A Hora da estrela (1977) serve-nos
como contraponto e como referencial para a discussão dos romances da autora devido à
representação simbólica da mulher nordestina e migrante que nele existe.
Dentre outras semelhanças, as protagonistas de Felinto possuem entre si um fator em
comum que é crucial: realizam o movimento de regresso, ou seja, saem das metrópoles que as
“criaram” em direção às origens, buscando – ou não – respostas para suas inquietações e
crises identitárias. Eis o aspecto que dá ensejo à principal indagação deste trabalho: quais
significados estão imbricados no ato de retornar?
O deslocamento de retorno não é um movimento de mero saudosismo, tampouco uma
atitude de desespero socioeconômico, é, pois, uma consequência dos conflitos vividos por elas
enquanto migrantes dentro de uma grande cidade. Esse regresso instrumentaliza a tentativa de
resgate da identidade após a experiência de um profundo esvaziamento subjetivo e social:
“Elas foram, então, procurar essa vida que não havia. Um perigo. Por que elas não acharam
nunca. Não acharam mesmo. E voltaram sem vida nenhuma. A vida daqui elas tinha perdido
também. E voltavam sem a de lá, que não tinham achado. (FELINTO, 1984, p.54)
Assim, cabe também salientar que as narrativas são marcadas por um desvelamento
interior que legitima a vivência das personagens a partir de uma narração intimista, uma vez
que o tom colérico e verborrágico do discurso expressa toda a dor e angústia que sofreram,
seja na infância nordestina, seja na vida metropolitana. Contrariando estatísticas2, as
produções da autora incidem luz sobre a voz revolta e a experiência individualizada da mulher
em deslocamento:
2
Foi realizado um levantamento sobre o movimento da crítica diante dos deslocamentos empreendidos por
personagens femininas na ficção brasileira contemporânea, o qual revelou as ausências e tendências de
abordagem e discussão de obras a esse respeito, que será melhor discutido no capítulo I. Os resultados do
levantamento encontram-se nos anexos I e II.
16
Vale salientar, todavia, que a produção literária de Felinto possui escassa fortuna
crítica – conforme veremos no Capítulo I –, o que, por um lado, dificulta certo respaldo
crítico, mas por outro, nos motiva a colocar em cena duas dentre tantas escritas
marginalizadas. Mediante os argumentos supracitados, o trabalho tem por objetivo investigar
a composição do espaço nas narrativas que compõem o corpus e problematizar os
deslocamentos realizados pelas protagonistas, de modo a depreender os significados presentes
em seus percursos e verificar em que medida suas experiências migrantes atuam na
fragmentação identitária que sofrem, a qual encontra-se refletida no próprio fazer narrativo.
O primeiro capítulo organiza-se em três subdivisões: no primeiro item
(“Desenraizamentos femininos”) discute-se a representação de mulheres em situação de
mobilidade na literatura brasileira, apontando os hiatos existentes dentro dessas construções e
assinalando a estreita relação de tais ausências com a histórica hegemonia masculina, branca e
heterossexual no protagonismo de caminhadas, viagens e passeios pelas cidade no universo
ficcional. Em linhas gerais, essa discussão inicial problematiza a circunscrição feminina à
esfera privada que existe na representação literária.
Ainda em um processo de investigação dos problemáticos modelos de representação
feminina, em um segundo momento trataremos de observar de que modo as narrativas
contemporâneas apresentam mulheres em processo de deslocamento, observando as
peculiaridades de tal experiência em detrimento das deambulações masculinas, sobretudo
quando o deslocamento envolve a saída de um lugar de origem para uma grande cidade ou um
país estrangeiro. O movimento da crítica, no que tange à problematização dos deslocamentos
femininos também oferece um pertinente panorama da abordagem que se faz e de quais
aspectos são levados em conta sobre essas experiências, permitindo-nos verificar a existência
de lacunas ou o apagamento de determinadas questões.
Além disso, fatores que antecedem o trabalho crítico com tais narrativas também serão
considerados, como, por exemplo, os motivos que fazem algumas obras e autoras obterem
maior repercussão em detrimento de outras, a importância do período de publicação dos livros
e a influência do selo editorial no que tange à valoração do texto e, consequentemente, do
olhar que recairá sobre o enredo/deslocamento retratado. Tal percurso argumentativo torna-se
17
que também é representativo da luta popular contra os desmandos de colonizadores. Com sua
entrada em Tijucopapo, a protagonista encerra a experiência transformadora vivida no
deslocamento e se cola a uma nova realidade. Há uma ressignificação do feminino a partir de
seu encontro com as guerreiras ancestrais. Nesse sentido, a integração da personagem a um
espaço de figuras míticas e históricas aponta para o desejo de preservação de uma cultura –
naquilo que Durval Albuquerque Júnior (2011) verifica na produção de diversos escritores
tradicionalistas do Nordeste. Rísia também anseia por um mundo em suspenso onde a
essência nordestina está preservada e de onde pode reivindicar o direito dos marginalizados.
Por fim, cabe dizer que o capítulo três será dedicado à discussão do romance O lago
encantado de Grongonzo (1897). Intitulado “Deisi: aquele lugar de Estefânia e Lena”, nele
discutem-se as nuances presentes no texto narrativo que revelam a problemática condição de
deslocada da personagem. Conforme mencionado, Deisi não é uma personagem em trânsito,
é, pois, a notícia de uma suposta visita dos amigos da metrópole que desencadeia uma série de
sensações e rememorações até então aquietadas em seu interior. Essas lembranças trazem à
tona os deslocamentos realizados por ela e as características dos espaços onde viveu. Nesse
sentido, o primeiro tópico (“Grongonzo dos tempos do onça”) trata de observar a
representação de sua terra natal a partir das menções a seu caráter agreste, interiorano e
violento, nuances que incidem diretamente na visão infantil da protagonista e que refletem em
sua postura enquanto mulher adulta, por isso, as considerações de Doreen Massey (2009)
sobre a influência dos espaços em nosso entendimento de mundo serão mobilizadas. Além
disso, observar a figuração de Grongonzo evidencia a contrastante realidade encontrada pela
personagem com a mudança para a grande cidade.
No segundo tópico, intitulado “Um território que não lhe cabia”, é realizado um estudo
aprofundado do local urbano e globalizado para onde migra e das significações que as
descrições a seu respeito encerram. Para além dos pressupostos da geógrafa britânica, os
estudos do geógrafo Milton Santos (2008) embasarão a discussão, auxiliando-nos a
compreender os elementos que fizeram com que Deisi desenvolvesse um olhar pessimista
sobre a cidade: a adolescência que passou em bares, a convivência com os amigos, o modus
operandi frenético, a efemeridade das relações e a hostilidade social. Em um segundo
momento, os estudos do sociólogo Renato Ortiz (2000) nortearão a discussão acerca dos
objetos mencionados pela narrativa que aludem ao processo de mundialização e massificação
dos gostos que caracteriza o espaço metropolitano e que reverbera a sensação de
estranhamento da personagem.
20
Regina Dalcastagnè (2012, p.110) aponta, dentre outras questões inerentes à relação
do sujeito ficcional com os espaços geográficos, que “personagens efetivamente fixas na sua
comunidade estão quase ausentes da narrativa brasileira contemporânea” e que a mobilidade
de tais sujeitos permite observar os impasses enfrentados por eles, tais como o sentimento de
não-pertencer, o estranhamento diante das diferentes práticas sociais e o esfacelamento de
suas identidades. Assim, houve no campo literário um crescimento dos estudos acerca das
noções de mobilidade, desterritorialização, diáspora, exílio e migração que problematizam o
modo como esses processos surgem na ficção contemporânea. Edward Said (2003) propõe
uma categorização que singulariza a experiência de cada sujeito deslocado, os quais podem
ser: exilados, refugiados, expatriados ou imigrados. Na nossa discussão, todavia, abordaremos
o assunto a partir do conceito basilar de deslocamento que diz respeito à presença de um
indivíduo em trânsito, seja vivendo o momento da viagem, seja estando previamente
deslocado dentro da narrativa.
A proliferação de personagens em trânsito – influenciada pelo contexto cosmopolita e
globalizado – nos permite observar certa homogeneidade de gênero, raça e classe social que
existe em tais representações. Os que possuem mobilidade são, em sua grande maioria,
homens brancos e de classe média. Em um mapeamento3 que inicialmente analisaria a
presença de negros e pobres no romance brasileiro contemporâneo, mas que alcançou outros
marcadores de diferenças – como profissão, gênero, idade, orientação sexual, condições
físicas e mentais, (i)mobilidade entre outros – Dalcastagnè destaca o predomínio de
personagens masculinos transitando pelas ruas das grandes metrópoles4. Às personagens
femininas fica reservado o espaço doméstico, o que pode ser verificado a partir do expressivo
número de mulheres que foram representadas como donas-de-casa dentro dos romances que
3
O mapeamento iniciado em 2003 na Universidade de Brasília é composto por duas etapas e compilou 692 obras
publicadas pela Rocco, Companhia das Letras e Record entre os períodos de 1965 – 1979, 1990 – 2004 e 2005 –
2014.
4
A primeira etapa do mapeamento revela que 82,6% dos romances analisados tem como cenário os grandes
centros urbanos.
23
“A personagem que caminha pela cidade é, via de regra, o homem. Às mulheres, cabe
a esfera doméstica, o mundo que a ficção lhes destina.” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.172).
Enquanto confinadas à esfera privada exercendo as funções de donas-de-casa, mães e esposas,
dificilmente serão representadas em trânsito, visto que não há necessidade iminente ou
permissão para que excedam o ambiente doméstico. Sandra Goulart Almeida (2015) em
trabalho que discute os deslocamentos e movimentos diaspóricos gendrados que surgem em
produções de escritoras contemporâneas, menciona o conceito de “feminização do lar”5 que
diz respeito ao fato de que o ambiente doméstico e privado está diretamente vinculado ao
feminino. Fatores como esse indicam que as práticas sociais ligadas aos papéis de gênero,
base do sistema patriarcal, cristalizam a imobilidade feminina e, consequentemente,
contribuem para a escassez de narrativas dotadas de uma perspectiva das mulheres em relação
às ruas.
5
“[...] o conceito de lar está irremediavelmente imbricado no feminino, como demonstram vários críticos (Cf.
BENNET, BRYDON, FRIEDMAN, GEORGE) [...] Como destaca George, pode-se falar de uma ‘feminização
do lar’, pois a palavra ‘lar’ imediatamente conota a esfera privada da hierarquia patriarcal, da autoidentidade
gendrada, do abrigo, do conforto, da nutrição e da proteção” (1996, p.1, 23)” (ALMEIDA, 2015, p.70).
24
É por esse viés que surgem personagens femininas em trânsito, produzindo impressões
outras sobre o caminhar pelas ruas e contribuindo para uma pluralidade de perspectivas frente
o espaço urbano, uma vez que, a partir desse boom da alteridade, o novo patamar ocupado
pelo “excluído ou reprimido historicamente” contempla a representação literária de mulheres
em deslocamento, isto é, representações de mulheres que “sejam agentes ativas do processo
migratório” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.139). Seus movimentos tornam-se transgressões na
medida em que não mais se deslocam à sombra de homens e, ainda que enfrentem
dificuldades, escolhem como e por onde andar.
Personagens migrantes, nômades, retirantes e flâneuses6 surgem ocupando as ruas,
estradas e espaços até então proibidos para os pés femininos. A esse respeito, a pesquisadora
Isabel Carrera Suárez (2015)7, com base no trabalho da crítica fotográfica Martha
6
O conceito é utilizado por Maria Isabel Suàrez (2015) ao discutir uma prática do pedestrianismo gendrada.
7
A autora articula sua discussão a partir da “estética do pedestrianismo” proposta por Meskimmon (1997), a
qual diferencia as noções de flâneur e pedestre e leva em conta as novas diásporas e caminhadas agenciadas por
sujeitos gendrados e racializados, os quais participam ativamente da cidade e se impõem nesse contexto.
25
8
A esse respeito, o conto “A língua do ‘P’”, de Clarice Lispector (1974), ilustra a violência física e sexual que
espreita o percurso feminino dentro das cidades.
9
Especialista em comunicação que escreve A cidade polifônica (1993), o autor propõe uma nova visão
antropológica sobre o funcionamento das grandes metrópoles que leve em conta a comunicação que nela existe e
que emana de seu conjunto arquitetônico, midiático e informacional. Canevacci toma como objeto de estudo a
megalópole São Paulo e também tece considerações acerca do olhar estrangeiro sobre ela.
26
nem sempre diminui, podendo, inclusive, ser intensificada pela vivência em lugares dotados
de condutas e perigos desconhecidos. É o que Ronaldo Correia de Brito tematiza no conto
“Rabo-de-burro”10, no qual uma jovem farmacêutica de hábitos e costumes modernos retorna
da capital para o interior nordestino e, em uma noite que voltava sozinha do cinema, é
brutalmente violentada. Em outro conto, da autora Maria Valéria Rezende11, a história da
personagem Dorinha aponta para os conflitos vividos por uma mulher na condição de
deslocada. A migrante é demitida pela patroa devido a sua gravidez e é abandonada pelo
namorado, que duvida da paternidade. Refém do desespero, tenta o suicídio e perde a fala na
capital carioca. A personagem Bilisa, que aparece na narrativa de Ponciá Vicêncio (2003),
sofre as últimas consequências de sua inserção em um espaço outro. Após entregar-se ao
mundo da prostituição depois de ser roubada, é covardemente assassinada por Negro
Climério.
Em uma dimensão subjetiva, o deslocamento também é capaz de desencadear crises
ligadas às formas simbólicas de opressão de gênero. De acordo com Pierre Bourdieu (1999, p.
46): “Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às
relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais”, ou seja, diante da agenda
patriarcal introjetada na existência feminina, a mulher que se desloca fica vulnerável à
sensação de culpa e autocondenação por se distanciar das normas sociais a que está sujeita:
estar em casa, ter um bom casamento, cuidar dos filhos e do marido. Ao experimentar a
sensação de liberdade na mobilidade, sente-se contraventora e oscila entre a errância e a
circunscrição de suas vontades: “[...] se, por um lado, as mulheres enfrentam duras realidades
e discriminação em sua experiência de trânsito, por outros, a diáspora frequentemente as leva
a uma renegociação das relações de gênero.” (ALMEIDA, 2015, p.59, grifo nosso).
É o caso da protagonista de As mulheres de Tijucopapo (2004), que se vê cindida entre
a ânsia de se rebelar e a vida de mulher e dona de casa simbolicamente imposta a ela: “Mas,
se eu fosse homem, ou se o permitissem às mulheres, eu iria à guerra. Serei sempre uma
voluntária à guerra até que se mate em mim esse poder meu para qualquer coisa do resto que
não seja uma mulher casada numa casinha branca.” (FELINTO, 2004, p.24).
Em síntese, ao mesmo tempo em que as mulheres migrantes representam uma dupla
transgressão – mulher fora da esfera privada e fora do perímetro originário – as situações de
opressão, estranhamento, perda identitária e inadequação crescem consideravelmente e
abarcam especificidades que tornam ainda mais dramática a travessia realizada por elas.
10
Integra o volume de contos Livros dos homens (2005).
11
O conto intitulado “Boas notícias” integra o volume de contos Vasto mundo (2015).
28
12
Conforme mencionado, ao longo da pesquisa, realizou-se o levantamento de textos críticos (comunicações,
artigos, teses e dissertações) estruturado em cinco categorias (tipo de trabalho, autor/obra/ano, discussão
proposta, personagem e deslocamento realizado) que deveriam: a) tratar de obras ficcionais brasileiras
publicadas a partir dos anos oitenta, b) problematizar o deslocamento geográfico feminino e suas implicações, c)
ser escrito por críticos brasileiros. O compilado de textos não esgota todos os trabalhos a esse respeito, mas
viabiliza um panorama pertinente à discussão proposta. Um quadro e dois gráficos foram gerados e encontram-se
nos apêndices, ao final do trabalho.
13
No levantamento elaborado para esta pesquisa e que embasa nossa argumentação, dos vinte autores que
constroem personagens femininas deslocadas, apenas dois são homens: Ronaldo Correia de Brito e Bernardo
Carvalho.
29
14
As questões discutidas pela crítica aqui mencionadas estão esquematizadas no quadro do Apêndice I e a
relação de textos compilados – bem como a autoria e ano de publicação – encontram-se na seção Bibliografia
consultada.
30
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as
identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares,
histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos
confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo
apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais
parece possível fazer uma escolha. (HALL, 2001, p.75).
Sob esse viés, vale mencionar que as obras sobre mobilidade feminina que figuram
entre as mais populares no campo literário são geralmente aquelas que envolvem
deslocamentos transnacionais, como é o caso dos romances Rakushisha (2007), de Adriana
Lisboa, Algum lugar (2012), de Paloma Vidal, Coisas que os homens não entendem (2002),
de Elvira Vigna, e A Chave da casa (2007), escrito por Tatiana Salem Levy. Conforme aponta
Agnes Rissardo (2016), há uma tendência da narrativa contemporânea que se refere ao
distanciamento do nacional para uma ambientação cosmopolita de suas histórias:
Como observa Beatriz Resende, “em vez da literatura que fala do Brasil, que
usa a cor local como valor (rentável) de troca”, trata-se de uma ficção “que
busca se inserir, sem culpa, no movimento dos fluxos globais” (2014, p. 14).
Dessa maneira, a afirmação da língua, da nação e dos valores culturais
brasileiros, outrora glorificados por nossa tradição literária, é deixada de
lado por essas ficções que se querem cosmopolitas. (RISSARDO, 2016,
p.64).
de Janeiro a Los Angeles, já em Coisas que os homens não entendem (2002), Nita traça
percursos entre Rio de Janeiro e Estados Unidos em busca de uma vida melhor, enquanto em
A chave da casa (2007), a protagonista viaja para a Turquia para redescobrir sua herança
judaica. Dessa forma, são raros os deslocamentos femininos que colocam em cena a
experiência de mulheres pobres, migrantes internas e racializadas, como o faz Marilene
Felinto. Um dos poucos romances a esse respeito que ganhou destaque no mercado literário
foi Ponciá Vicêncio15 (2003) publicado dezesseis anos depois dos romances felintianos.
A obra escrita por Conceição Evaristo apresenta em terceira pessoa a história de
Ponciá, mulher negra descendente de escravos que migra do campo para a cidade em busca de
melhores condições de vida e, após deparar-se com diversas situações de racismo, machismo
e descaso urbano, vive sucessivos deslocamentos entre esses dois espaços. Durante a
narrativa, a protagonista recobra fortes elos com sua ancestralidade e encontra na loucura um
refúgio para sua existência. Evaristo é um dos grandes nomes do cenário literário atual, suas
obras tematizam a identidade e as vivências da mulher negra articulando a ancestralidade
africana com a poeticidade de sua escrita.
A representatividade presente em seus textos se atrela ao engajamento político e social
da autora, aspectos que são caros ao tempo presente e que explicam a grande notoriedade
alcançada pelo romance. Assim como em Ponciá Vicêncio (2003), os romances de Felinto
apresentam a migração interna de mulheres pobres que saem de regiões agrárias em direção à
cidade grande e depois retornam aos pontos de origem, no entanto, Marilene Felinto, também
mulher negra, não escancara questões étnico-raciais como o faz Evaristo. Contudo, ambas
figuram entre as escritoras que produzem narrativas dissonantes nesse contexto. A elas se
ligará, nos anos 2010, a autora Maria Valéria Rezende, que também retrata personagens em
deslocamentos metrópole/sertão e Nordeste/Sul, as quais enfrentam dentro do espaço nacional
situações e dificuldades que as transformam em estrangeiras no próprio país.
Segundo Nestor García Canclini (2016, p. 68), “Ser estrangeiro, mesmo sem sair do
próprio país, tem a ver com a arte da diferença”, desse modo, ainda que inseridas em outras
regiões brasileiras que aludem à melhora de vida e que possuem elementos com os quais se
identificam (idioma, política, nacionalidade), as protagonistas dessas autoras não conseguem
adequar-se ao funcionamento dos novos lugares porque os aspectos da diferença sobressaem e
geram uma relação de afastamento e estranheza. Nos termos de George Simmel (1983),
aquilo que é “não-comum” prevalece e faz com que rejeitem também o que é semelhante. No
15
Note-se que o romance foi o mais abordado nos trabalhos críticos reunidos em nosso compilado. Os gráficos
ilustrativos encontram-se no Apêndice II.
32
caso das migrantes – Ponciá, Rísia e Deisi – o elemento não-comum está na classe social, na
cor da pele e no modus operandi distinto do lugar de origem. Assim, podemos dizer que as
narrativas das autoras integram aquilo que Canclini (2016, p.68) aponta como “Uma arte e um
saber que nos tornam sensíveis à face estrangeira da própria cultura [...]”.
Destacadas as aproximações entre as narrativas, torna-se relevante investigar os fatores
que as distanciam em termos de repercussão, verificando as diferenças contextual, estética e
mercadológica dos romances de Felinto. O paralelo traçado com o romance de Evaristo é
pertinente porque nos permite problematizar o modesto êxito das produções felintianas, o qual
fica comprovado com o levantamento realizado: é inferior o número de abordagens críticas
sobre as narrativas que são corpus dessa pesquisa16. Não se trata de forjar uma valoração e
reivindicar o aprofundamento em toda e qualquer produção ficcional pouco aclamada, ocorre
que as narrativas de Marilene Felinto merecem o apelo porque promovem a alteridade na
literatura nos anos 80/90 e contribuem para a desestabilização da homogeneidade do campo
literário.
lago encantado de Grongonzo (1992) –, aspecto que reforça a importância de estudar com
profundidade tais narrativas.
As mulheres de Tijucopapo (2004) rendeu à autora a premiação na categoria Autor
revelação do Prêmio Jabuti de 1982 e também foi premiado pela União brasileira de
Escritores no mesmo ano. Com o boom de sua publicação, Marilene foi considerada pupila de
Clarice Lispector e ainda muito jovem teve seu primeiro romance traduzido para três
idiomas17, porém, grande parte da repercussão da obra – principalmente a partir de sua
segunda edição em 1992 – tem relação com três fatores indicados por Adriana Araújo (2006):
a estimada carreira jornalística da autora; o interesse acadêmico pela questão da autoria e
personagem feminina, linha de estudo que surgia nos anos 1980; e as consideráveis
publicações no exterior. Logo, apreende-se que o sucesso do livro se ancora em uma recepção
específica por parte da elite intelectual.
16
Vide gráficos presentes no Apêndice II.
17
O livro As mulheres de Tijucopapo foi publicado em inglês, holandês e francês.
18
O segundo romance não foi abordado em nenhum dos textos críticos do levantamento realizado.
34
19
Rede social brasileira colaborativa para leitores e escritores de Literatura que permite sugestão de leituras,
organização de reuniões em livrarias e troca de informações entre os usuários.
35
Eis os motivos pelos quais Marilene apartava-se das novas tendências. A escritora era
uma mulher negra e nordestina escrevendo a trajetória de outras personagens negras e
nordestinas que falam da cor local, de suas origens e da vivência agrária e urbana. A situação
fronteiriça das personagens é outra nuance que se coloca na contramão da época, pois além de
ser marcada pela padronização das obras e escritores, também “[...] na sua grande maioria,
hoje desenvolve temas relacionados à vida urbana, sendo que a antiga oposição campo/cidade
quase desaparece.” (PELLEGRINI, 1999, p. 212). Além disso, seu estilo e estética literária
eram inadequados para o caráter mainstream dominante. Vale reproduzir a fala da autora na
ocasião de seu encontro com Ariano Suassuna e Raduan Nassar. Ao comparar a produção de
escritores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector – pelos quais tem
grande apreço – com a produção do contexto em que estava inserida, a pernambucana afirma
que eles
Felinto expressa sua visão enquanto crítica, mas também enquanto ficcionista que se
posiciona em um lugar distinto daquele em que estão os demais escritores do período. Embora
36
aparente presunção, a explanação não nos permite dizer que a autora se coloca sob uma áurea
de superioridade e puritanismo, ocorre, pois, que sua postura é dotada de alteridade, assim
como seu fazer narrativo. Para Dau Bastos (2013, p.61), a alteridade da escrita felintiana não
deve ser vista como apoteótica, tampouco como irrisória, e o leitor, assim como a crítica,
precisa “[...] se libertar do prosaísmo, assim como dos vícios da linguagem midiática, em prol
da entrega a movimentos espiralados dentro de uma língua estranha, agressiva e esmigalhada,
a ser reconstruída.”
Em um domínio de conteúdo e de estratégia narrativa, o pesquisador tece
considerações que buscam esclarecer a (não) valoração/reconhecimento de sua obra por outras
camadas de leitores. Embora o crítico analise somente o romance AMDT21, sua abordagem
elucida o estilo absoluto de escrita da pernambucana que também se mostra na narrativa de
1987. Um primeiro fator apontado por ele como entrave para o alcance de um grande público
diz respeito à lapidação semântica das palavras e à engenhosa construção que foge à mera
sucessão de acontecimentos. Mais uma vez, não se trata da leitura “conhecida” de que fala
Pellegrini:
Outro fator apontado por Bastos se refere à identificação do leitor com o texto
literário. A aproximação das vivências de quem lê com o conteúdo ficcional supostamente
ficaria comprometida porque há em suas narrativas a representação de retirantes nordestinas, a
quem sua escrita pouco alcançaria fora da ficção. A dificuldade de acesso ao mundo letrado e
ao mercado literário em regiões do Nordeste do país22 marca o abismo entre o ser ficcional e o
indivíduo que o inspira.
20
Entrevista concedida a revista Cult para a matéria “Quem é e o que escreve o autor brasileiro” em 5 de
fevereiro de 2018.
21
Os romances da autora também serão referenciados pelas abreviações: AMDT (As mulheres de Tijucopapo) e
OLEDG (O lago encantado de Grongonzo).
22
De acordo com os estudos de Tânia Pellegrini (1999), no ano de 1981 algumas capitais do Nordeste não
tinham nenhuma livraria a disposição do público. Outro dado a ser levado em conta diz respeito aos altíssimos
níveis de analfabetismo apresentados pela região Norte e Nordeste. De acordo com o INEP em levantamento de
1996 a 2001 “O Nordeste brasileiro tem a maior taxa de analfabetismo do País, com um contingente de quase
oito milhões de analfabetos, o que corresponde a 50% do total do País.
37
Seu texto também não contempla o leitor erudito, que incorpora com maior
acessibilidade as técnicas narrativas da autora, mas “Na melhor das hipóteses, a familiaridade
do leitor logo passa ao desconforto. Principalmente ao se perceber como parte do alvo para o
qual se volta a agressividade veiculada pelas palavras que antes pensava dominar.”
(BASTOS, 2013, p.53). As personagens felintianas possuem consciência dos contrastes
sociais, raciais e de gênero que vivem e compreendem as desigualdades existentes entre o
Nordeste e o Sul, por isso, há nas duas narrativas duras críticas à elite econômica, à política e
ao sistema que explora os mais pobres. Desse modo, na mescla do erudito com o popular e na
confluência entre suas origens e a formação letrada, Marilene produz uma escrita fronteiriça
entre todos os possíveis leitores.
Outro fator determinante no que tange aos impasses de sua inserção no campo literário
da época diz respeito à ausência de espaço para a escrita feminina. Retomando o recorte
realizado por Pellegrini, é possível problematizar a hegemonia da autoria masculina nas obras
consideradas expressivas naquele período – a saber, Jorge Amado, Raduan Nassar, Rubem
Fonseca, Sérgio Sant’Anna e Caio Fernando Abreu. A pesquisa também tinha como propósito
observar a configuração das obras23 de cada escritor levando em conta o momento de total
hibridismo cultural, tecnológico e literário em que elas se inserem. O hibridismo só não
alcançava o gênero dos escritores, evidenciando a falta de lugar e de reconhecimento da
autoria feminina. O histórico apagamento feminino e a relegação da mulher ao trato com o lar,
com a maternidade e com o casamento acarretaram o difícil ingresso das mulheres no
mercado de trabalho, por isso
editoras. Um exemplo disso se mostra nos resultados alcançados com seu recorte, os homens
continuam sendo a maioria nas publicações da Rocco, Record e Companhia das Letras: de
1965 a 1979 eles ocupam 82,6% e de 2005 a 2014, 70, 6%. Segundo Virgínia Vasconcelos
Leal (2008, p.58), o percurso feminino para chegar ao mundo das letras foi historicamente
marcado pelo sexismo e pelo silenciamento e somente estabeleceu-se de maneira efetiva em
meados do século XX quando “[...] a imprensa, em um momento de pequena diferenciação
entre os campos literário e jornalístico, foi um dos principais cenários desse processo de
consolidação da presença de mulheres na literatura.” Sendo assim, o campo jornalístico
funcionou, por muito tempo, como via de agenciamento da voz feminina na produção
literária: “Em uma sociedade patriarcal que depende do silenciamentos do Outro para se
manter funcional, os espaços de expressão pessoal reservados às mulheres são escassos e
restritos.” (SCHWANTES, 2006, p.11, grifo nosso).
A relação entre o campo literário e jornalístico também foi responsável pelas
oportunidades de ascensão de Marilene, uma vez que, embora sua experiência jornalística
tenha sido bastante espinhosa, foi também ela que endossou sua atividade ficcional a partir
dos anos 90, conforme assinalado por Adriana Araújo (2006). A experiência de Felinto
enquanto polígrafa – escritora de ficção que atuou por muito tempo como jornalista, cronista e
colunista – fez com que a autora desenvolvesse um posicionamento crítico acerca do
funcionamento do campo literário, pois, estando no interior do sistema, tomou conhecimento
dos esquemas de exploração e avidez que regem o campo editorial e também a área
jornalística, na qual diversas vezes foi censurada ou disciplinada em seu processo de criação.
Marilene sempre fez questão de salientar em entrevistas a aversão pelas exigências
mercadológicas, restrições midiáticas e imposições ao autor que nunca aceitou passivamente.
Desse modo, o contexto excludente da época atrelado a sua postura intransigente foram as
principais barreiras enfrentadas, uma vez que fazer resistência aos esquemas do mercado
implica a ausência do impulso que é proporcionado por ele na veiculação e legitimação de
obras. Com uma proposta de publicação independente, foi lançada em maio de 2019 a quarta
edição do romance As mulheres de Tijucopapo. Desde o projeto estético do livro, que possui o
registro “edição da autora” na capa, Felinto reforça seu posicionamento crítico diante do
comércio literário e na nota exclusiva à quarta edição atesta:
A senhorita Simpson, de Sérgio Sant’Anna, Morangos mofados e Triângulo das águas, de Caio Fernando
23
Abreu, A grande arte, de Rubem Fonseca, Um copo de cólera, de Raduan Nassar e O sumiço da Santa, de Jorge
Amado.
39
Entendendo-se como uma autora pequena que também fora explorada pelos
mecanismos do campo literário, Marilene comprova a postura combativa e dissonante que
adotou e que foi responsável por todos os impasses de uma maior repercussão de suas obras,
os quais desembocaram em seu afastamento midiático. Na mesma ocasião em que publica a
quarta edição de AMDT24, a autora também lança o livro Fama e infâmia – uma crítica ao
jornalismo brasileiro (2019), volume inédito composto por textos que problematizam o
jornalismo nacional e que tensionam o próprio fazer jornalístico da autora. É, portanto, diante
de tais condições que a ficcionista se inscreveu no campo literário brasileiro. Sua atitude
rebelde abrange o fazer literário e sua biografia ilumina a construção das personagens dos
romances, o que os torna ainda mais desafiadores e não menos interessantes.
Para demonstrar a importância da abordagem que aqui será feita, foi organizada uma
bibliografia comentada que compila as principais discussões já desenvolvidas sobre as duas
narrativas25, “Afinal, cada artigo, cada palavra pronunciada a respeito de um livro no meio
acadêmico acaba por legitimá-lo, ainda que o discurso seja duro, mesmo que a crítica seja
negativa.” (DALCASTAGNÈ, 2005, p.7). Diante disso, destacaremos dois aspectos que
raramente foram explorados por esses textos e que, por isso, serão abordados com maior
profundidade nesta dissertação.
O primeiro aspecto diz respeito ao retorno de Rísia (AMDT) para o Nordeste; a
maioria dos textos trata da raiva e do ódio presente na narrativa, da posição subversiva da
personagem (e da autora), do caráter místico do trânsito com destino a Tijucopapo ou de sua
reconstrução identitária. No entanto, não há uma análise apurada sobre os motivos de sua
saída de São Paulo, que também se atrela às relações pessoais e conflitos sociais vividos na
24
Devido a sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty de 2019, Marilene lançou quatro novos
títulos pelo projeto de publicações independentes: Autobiografia de uma escrita de ficção, Sinfonia de Contos de
Infância, Contos Reunidos e Fama e Infâmia – uma crítica ao jornalismo brasileiro.
40
cidade grande. Rísia não é uma retirante nordestina que fracassa e precisa retornar, mas é
alguém que apesar de ser aspirante à classe média, recusa a vida na megalópole.
Assim, faz-se necessário pensar, pormenorizadamente, nas questões de caráter
subjetivo que causam essa recusa e desembocam no deslocamento geográfico que também
promove um deslocamento interior. Sob esse viés, cumpre salientar que Marilene Felinto é
uma das primeiras autoras brasileiras a construir a viagem de uma personagem colocando em
foco o movimento de retorno. Tanto em AMDT (2004) quanto em OLEDG (1992) é a volta
para a terra natal que fomenta as narrativas e a rememoração das histórias de Rísia e Deisi.
Contemporâneo a elas encontra-se o romance Tropical sol da liberdade (1988), de Ana Maria
Machado, que aborda o retorno e readaptação da personagem Lena ao Brasil após anos de
autoexílio em Paris.
Um segundo aspecto pouco explorado diz respeito à relação simbiótica que existe
entre o primeiro e o segundo romance, de modo especial, no que tange aos deslocamentos
orquestrados pelas personagens. Rísia e Deisi são duas faces de uma mesma vivência e
realidade social, mas que, ainda assim, possuem personalidades e posturas diferentes diante
das experiências que tiveram. A aproximação entre os dois romances deve ser levada em
conta porque sinaliza uma tendência e um estilo felintiano na construção de mulheres
nordestinas e migrantes, permitindo-nos cotejar as impressões, relações e a subjetividade de
ambas as personagens.
As deambulações empreendidas por elas também apresentam pontos convergentes e
divergentes repletos de simbologias. Em entrevista via e-mail, ao ser questionada sobre
OLEDG (1992), a autora afirma: “Considero este romance (O Lago), bastante defeituoso, uma
espécie de degeneração do primeiro (Mulheres). Sou muito crítica em relação a meus próprios
escritos, especialmente a esses textos da juventude. (FELINTO, 2018, s/p)”. Sob esse prisma,
cumpre observar os paralelos existentes entre as narrativas e os significados que abarcam,
uma vez que, comprovadamente, conversam entre si de modo quase interdependente.
Dessarte, os aspectos discutidos acerca de recepção, temática, organização narrativa e
construção de personagens demonstraram que a prosa da autora não é assunto esgotado e
muito menos consagrado perante a crítica, sendo, ainda hoje, terreno fértil para os Estudos
Literários. Embora avessa ao rótulo de escritora militante e engajada, a ficcionista
desestabiliza a hegemonia literária brasileira, seja em termos de autoria, seja pelas narrativas
25
A bibliografia comentada encontra-se no Anexo I.
41
que constrói e, por isso, segue atraindo leitores e críticos, ainda que sorrateiramente, para as
profundezas de sua obra, para também estarem fora de lugar.
São escritas fora de lugar porque “[...] tensionam, com a sua presença, nosso
entendimento do que é (ou deve ser) o literário” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 12) e trazem
para o centro da discussão sujeitos até então não autorizados a caminhar, a falar ou
disciplinados a como se expressar, possibilitando a reflexão sobre o que entendemos por
literatura, autores, narradores e personagens: “Afinal, a definição dominante de literatura
circunscreve um espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de
manifestação de alguns grupos, não de outros, o que significa que determinadas produções
estão excluídas de antemão” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.12). Assim como Marilene, as
personagens caminham pelas margens do campo literário. Convém demonstrar porque Rísia e
Deisi, no contexto da ficção brasileira, quebram diversos paradigmas.
26
O conceito foi postulado pela crítica Lúcia Miguel Pereira ao relacionar o olhar do turista com o exercício do
escritor regionalista em Prosa de ficção (De 1870 a 1920).
42
década do século XX, no entanto, os autores regionalistas passaram a tratar das questões de
cunho social e a representar os sujeitos marginalizados sob uma perspectiva crítica.
Ao avaliar a presença do olhar turista nesse período, o crítico pontua que, apesar de o
sujeito letrado ainda ser o porta-voz de jagunços, caipiras, migrantes e meninos de rua, há um
viés narrativo que passa por um ponto de vista sensível e que ameniza a representação
pitoresca de outrora, diminuindo abismos antes intransponíveis. Como exemplo, Bueno cita a
construção de alteridade que é feita pelo alagoano Graciliano Ramos: “Em Vidas secas, essa
consciência produz um romance com um narrador e um desenho temporal específicos, em que
o mundo do letramento conduz a obra, mas deixa aflorar o mundo do iletramento”
(BUENO, 2012, p.121, grifo nosso). Esse afloramento do mundo retratado deve muito às
origens do autor, pois o olhar sensível para a história dos retirantes germina de seu
pertencimento ao lugar. O mesmo se pode dizer da ficção de Rachel de Queiroz sobre a seca
de 1915, situação que a autora enfrentou ao lado da família.
Sob esse viés, é válido destacar o protagonismo do Nordeste enquanto espaço para esta
ambientação regional. É na região que o movimento de 30 ganha força e adquire traços do
discurso sociológico, grande responsável pela nova atitude dos intelectuais da época: “A
produção cultural supera a visão exótica e procura dar ao regional uma formulação cultural
que lhe permita, por sua vez, se posicionar politicamente de uma nova forma.”
(ALBUQUERQUE, 2011, p.101). Ainda que os autores e as obras do período não tenham
dado fim ao turismo literário, em muito contribuíram para uma revolução do olhar voltado às
margens.
Na ficção contemporânea, Bueno (2012) sinaliza a presença de um outro tipo crescente
de turismo. Certa de ter superado as temáticas localistas e, consequentemente, o turismo
regional, a literatura atual vê surgir autores que beiram o exotismo ao tentar, incansavelmente,
penetrar a existência de sujeitos pobres e periféricos sem desconstruir o olhar de superioridade
que possuem, é o que o crítico define como o turismo de classe. Essa nova modalidade, como
exemplo, pode ser observada em certos textos de Rubem Fonseca, cuja produção também é
problematizada por Regina Dalcastagnè (2012). Assim, fica claro que a problemática da
alteridade permanece inerente ao fazer literário de qualquer época e, apesar das novas
perspectivas de focalização ou ainda das diferentes construções estéticas utilizadas, a
representação do outro perpassa os preconceitos, pontos de vista e estereótipos naturalizados
pelo olhar que cria e pela sociedade que lê: “Por isso, o problema da representação da
alteridade se recoloca, como uma rosca sem fim, sem ponto de chegada.” (BUENO, 2012,
p.124).
43
Ao publicar seu último romance, A hora da estrela, em 1977, Clarice Lispector lançou
ao mundo um texto original que se opunha a sua proposta literária anterior e que tocava,
criticamente, questões comuns à discussão da alteridade e do turismo de classe e região. A
personagem nordestina e migrante Macabéa despertou a crítica para a reflexão sobre o modo
como são representados/enxergados esses sujeitos na diacronia literária. Conforme afirma
Juliana Santini (2018, p.11, grifo nosso): “[...] ao construir um escritor que, em seu relato,
narra a trajetória de uma personagem alagoana no Rio de Janeiro, Clarice Lispector dramatiza
o impasse que, historicamente, fundamentou a representação do nordestino na literatura
brasileira – quase sempre um “outro.”
Rodrigo S.M. é a voz possível para contar a história de Macabéa, é ele o escritor diante
do objeto, um narrador caridoso que se coloca a esmiuçar a figura da alagoana. De acordo
com Dalcastagnè (2000), o escritor relega a personagem a uma representação pautada na
crueza e objetividade narrativa porque a jovem não está à altura de ser protagonista de um
autêntico romance. Macabéa é representada sob um domínio exótico porque é vista pelos
olhos do intelectual criado por Clarice, sua representação é problemática porque “O ponto de
referência para a construção dessas personagens, e também para a sua leitura, é a elite,
econômica e cultural. Ou seja, o que está representado ali não é o outro, mas o modo como
nós queremos vê-lo.” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 28).
Se o olhar do autor/narrador quase sempre está contaminado pela posição de
superioridade em relação a quem representa, há que se contestar a grande presença desse olhar
em terceira pessoa diante da história dos marginalizados, o qual impede Macabéas e Sinhás
Vitórias de falarem por si mesmas. Ainda que Clarice use seu “direito ao grito” para dar vida
à personagem nordestina, o grito não pertence a Macabéa ou não está comprometido com as
entranhas de sua alteridade. Há um hiato no acesso a voz por personagens provindos das
margens, dos quais os migrantes nordestinos são grandes representantes. A tradição literária
mostra que a ausência na diversidade de discursos também decorre da falta de representantes
de grupos sociais minoritários na posição de escritores de ficção27.
27
A esse respeito, retomar o mapeamento realizado por Regina Dalcastagnè: “Um mapa de ausências” (2012).
44
28
Em entrevista concedida à revista Continente (2015) intitulada: “Literatura: sobre a égide do mercado”, o
escritor Sidney Rocha menciona o fato de Luiz Rufatto trair o infográfico do escritor por ter origem humilde e
afastar-se do padrão de escritores brasileiros, geralmente vindos de origem elitizada e intelectual.
45
Marilene sofre de ser gente e de ser brasileira. Nasce de muita ira o que
escreve, mas o melhor de sua raiva é santa. Seus leitores a inundam de
cartas, alguns até descuidosos e íntimos a chamam de Marilena. Não é sinal
seguro de que seu texto a transcende como voz dos que não sabem ou não
podem falar?
Enquanto Rodrigo S.M. infere que figuras como a da alagoana apenas “inspiram e
expiram” pela vida, Marilene Felinto mostra que a visão do intelectual é bastante equivocada,
uma vez que Rísia e Deisi subvertem a condição a que sempre esteve fadada a mulher
nordestina. Ambas as protagonistas vencem barreiras no espaço metropolitano e alcançam o
progresso social, tornando-se capazes e livres para expor as dores de suas vivências. Aqui nos
contempla um excerto da discussão sobre Macabéa, Hermila e a Violeira30 que é feita por
Dalcastagnè (2012, p.144):
Para um tema que está no pano de fundo da literatura brasileira desde pelo
menos 1876, com O cabeleira, e que ganhou força na década de 1930,
quando foram renovadas as técnicas e assumidas atitudes de enfrentamento
do tema, que não fossem guiadas pela condescendência ou pelo apelo ao
29
Ao falar de Paulo Lins e de sua obra Cidade de Deus (1997).
30
As três são migrantes nordestinas: Hermila, protagonista do filme O céu de Suely (2006), Violeira,
personagem da canção homônima de Chico Buarque (1983), e Macabéa, protagonista do romance A hora da
estrela (1977).
46
exótico, pode-se dizer que foi longo o caminho da personagem migrante até
a conquista de sua própria voz. Cem anos separam O cabeleira (1876) de
Essa terra (1976). (ARAÚJO, 2006, p.111).
A personagem fronteiriça rompe dois silêncios ao impor sua voz e revelar as sensações
experimentadas em espaços que raramente comportaram a perspectiva da mulher. Conforme
mencionado, Marilene foi considerada por alguns críticos e resenhistas como herdeira de
Clarice devido à perspectiva introspectiva e feminina que compõe sua produção, no entanto,
suas personagens – pertencentes a mesma raça “anã e teimosa” – subvertem o apagamento
que envolve a representação de Macabéa: “O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia
a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.”
(LISPECTOR, 1998, p.80, grifo nosso).
O dia de reivindicar o direito ao grito mencionado por Rodrigo S.M. pode ser
vislumbrado no momento em que Rísia decide sair do centro do país e colocar-se em
caminhada até Tijucopapo, conquistando, assim, o seu direito de gritar: “Eu me calo até o
momento do meu sofrimento. Pois que por ele alguém é responsável. Pois que é por ele que
grito. Pois não posso desrespeitar a criança que existe dentro de mim.” (FELINTO, 2004,
p.114, grifo nosso). Sem moderações, a personagem narra seus sofrimentos e confidencia suas
revoltas e rancores com uma linguagem fragmentada que reflete o esfacelamento interior de
seu ser. A entonação colérica que surge com a protagonista também está no romance de 1987.
Esse aspecto se torna relevante na medida em que é escassa na literatura brasileira a presença
31
Em João Cabral e Antônio Torres o eu lírico e o narrador, respectivamente, são homens.
47
de mulheres que expelem seu ódio e se afastam da brandura habitual, conforme destaca
Dalcastagnè (2012, p. 138):
32
No primeiro romance, Nelo, o irmão mais velho, retorna de São Paulo após os insucessos e crueldades
experimentadas, as quais desembocam em seu suicídio no interior baiano. O segundo romance, que é
49
migram do Nordeste para a metrópole nos anos 60, o fazem buscando melhores condições de
vida no “sul maravilha.” Ao lado da família, as duas personagens mantém a tradição da
migração nordestina: ludibriadas pelas propagandas de um futuro promissor, saem de sua terra
natal para ocuparem os espaços urbanos, no entanto, ao chegar à cidade grande deparam-se
com uma situação precária análoga ou pior àquela vivida no sertão: “Mas São Paulo jamais
seria o paraíso dos panfletos que distribuíam sobre ela lá na coitada Recife” (FELINTO, 2004,
p.105).
Embora a família das protagonistas opte por viver nos subúrbios e buscar meios de
subsistência, dois são os caminhos comumente tomados por esses sujeitos. Alguns, com
simplicidade, enxergam na cidade grande vantagens não encontradas na vida sertaneja – como
Macabéa ou Totonhim – enquanto outros, abatidos pela desilusão e pelas difíceis condições,
veem como saída o caminho de retorno frustrado – como ocorre com Nelo, o protagonista de
Essa terra (1976). As personagens localizam-se no interstício das situações, pois desfrutam
da cidade e de suas oportunidades de modo semelhante à alagoana Macabéa, 33 mas retornam
para o Nordeste oscilantes entre a sensação de desilusão sentida por Nelo e o desejo de
reencontro afetivo com o passado de Totonhim. Sob tais nuances, é possível dizer que seus
deslocamentos adquirem novos e plurais contornos.
Para além de usufruírem do que a cidade pode oferecer às mulheres pobres, as
personagens alcançam um destino diferente por meio da formação letrada e passam a integrar
determinados espaços e camadas da elite metropolitana. Cindidas entre o desejo de
pertencimento e o esfacelamento identitário, não encontram plenitude e recusam o espaço
urbano. Não é a cidade que as rejeita, são elas que não suportam o vazio interior e não se
contentam em serem parcialmente pertencentes. Assim, decidem retornar para o ponto de
origem em busca da sensação de completude que lhes falta, seja travando uma guerra contra
São Paulo – como faz Rísia – seja refazendo a morada no Nordeste sem grandes ambições –
como faz Deisi. A própria autora, em entrevista concedida ao jornal Le Monde diplomatique
Brasil (2019), fala da lacuna deixada pelo deslocamento de Recife para São Paulo, Felinto
contesta o entrevistador dizendo:
continuidade do primeiro, nos apresenta o irmão mais novo de Nelo, Totonhim, retornando da cidade grande
para a Bahia vinte anos após sua saída da terra natal. O retorno de Totonhim, todavia, é distinto do retorno de
Nelo, pois o personagem regressa positivamente com o intuito de reencontrar-se com seu passado sertanejo.
33
Macabéa, ainda que sofra a subjugação de Rodrigo S.M., possui relativo bem estar. Ouve rádio, tem acesso a
algum tipo de cultura, lazer e se satisfaz com o modo de vida na cidade carioca. A esse respeito, consultar
Dalcastagnè (2000).
50
Nessa cidade de onde saio, essa cidade tão enorme de prédios e pessoas e
carros e lixo passando e vida de cidade, as pessoas são jeitos perdidos. As
coisas acontecem, as histórias se fazem aos milhares, mas as histórias se
perdem também aos milhares, morrem onde nascem. Cada pessoa é uma
história perdida. (FELINTO, 2004, p. 94).
34
A esse respeito, consultar A invenção do Nordeste (2009), de Durval Muniz de Albuquerque Júnior.
35
Referência ao excerto da narrativa de Clarice Lispector.
51
do palco. Autores como Ronaldo Correia de Brito, Marcelino Freire, Maria Valéria Rezende,
Socorro Acioli e Jarid Arraes são exemplos dessa ficção que denuncia a deficitária
urbanização, ressignificando o nordestino e seu espaço. Os problemas são abordados a partir
do tratamento sensível de questões como gênero, sexualidade, raça, estrato social e também
promovem, em maior ou menor grau, a desconstrução de estereótipos.
Maria Valéria Rezende, conforme mencionado, constrói em seus romances a trajetória
e os deslocamentos de mulheres nordestinas ou viventes do sertão, dotando-as de uma
perspectiva narrativa e possibilitando ao leitor penetrar o olhar corajoso e sensível que
possuem, é o que encontramos em Quarenta dias (2014) e Outros cantos (2016). É possível
dizer que é com Marilene Felinto que ocorre a transmutação de Macabéa para o surgimento
das Marias e Alices representadas pela autora.36 Ao discutir a obra de Rezende, Juliana
Santini (2018, p. 14, grifo nosso) apresenta a seguinte indagação acerca da representação do
outro que existe em A hora da estrela,
Por este ângulo, AMDT (2004) e OLEDG (1992) são textos basilares para se pensar a
dimensão da alteridade nordestina na narrativa brasileira a partir dos anos 80. Não se trata de
uma alteridade que perpassa somente o perfil da autora ou a representação que é feita de
mulheres nordestinas, mas se revela também nas escolhas estéticas, nas técnicas utilizadas
para a construção da voz e focalização e, sobretudo, no deslocamento que é traçado pelas
personagens. As travessias de Rísia e Deisi são representativas das novas motivações de saída
e retorno para as origens e também implicam as transformações identitárias que afetam a
existência de ambas.
Faz-se necessário observar, proficuamente, as deambulações vividas pelas
protagonistas pensando em três questões fundamentais atreladas a esses movimentos: a) de
que modo os sucessivos deslocamentos geográficos modificam a personalidade de cada uma e
as tornam reféns da desterritorialização; b) como a composição do espaço atua na
fragmentação e na busca identitária das personagens; c) como a voz narrativa contribui para o
36
Alice é a paraibana que migra para Porto Alegre no romance Quarenta Dias (2014) e Maria é a ativista que
retorna para o sertão nordestino no romance Outros cantos (2016).
52
Nordeste continuou a mandar gente para a terra civilizada que, em AMDT (2004), é também
terra globalizada e multifacetada. A imagem do primeiro deslocamento da protagonista é
consagrada na literatura e no cinema brasileiro, pois a diáspora empreendida por sua família
espelha a situação de milhares de retirantes nordestinos para chegar ao Sul e ao Sudeste. O
excerto abaixo exprime o sentimento de incredulidade da pernambucana diante da decisão
tomada pelo pai, cuja mudança envolvia a saída de um lugar familiar para um espaço
totalmente distinto.
Na metrópole paulista Rísia cresce, amadurece e se torna uma mulher, sua inteligência
nata explica o fato de ser detentora do salário mais alto da casa apenas equiparado à
remuneração do pai. Por esse viés, a personagem é beneficiada pelas oportunidades
encontradas na cidade e tem suas qualidades potencializadas em detrimento da classe social a
que pertence, uma vez que subverte os padrões ao conviver com amigos da classe média,
frequentar bairros nobres, cinemas, círculos intelectuais e viajar de avião. Entretanto, é
também na cidade grande que desaprende a religiosidade, entra em conflito com suas crenças
e passa por situações de alheamento, desamor e abandono, dentre as quais se destaca o
doloroso rompimento com o namorado Jonas, principal responsável por sua fuga de São
Paulo. Rísia sai para se afastar da casa, da exploração dos irmãos, da pressão materna e da
virulência do pai. Sua partida é abrupta porque foge do subúrbio e da solidão asfixiante para
redescobrir sua verdadeira face nas mulheres de Tijucopapo. É no caminho de retorno ao
Nordeste que a protagonista confidencia suas dores e narra o processo de travessia
empreendido durante nove meses.
A construção da personagem ancora-se nas relações que estabeleceu, nas condições
em que viveu, nos espaços onde morou e por onde se deslocou, logo, as noções sobre
deslocamentos, espaços e experiências relacionais são eixos estruturantes para a investigação
de sua trajetória, as quais serão analisadas à luz dos pressupostos da geógrafa britânica
Doreen Massey (2009) e de demais estudos sobre os movimentos diaspóricos e suas
implicações. Ao propor uma abordagem alternativa do espaço, a geógrafa abaliza três
proposições desafiadoras e pertinentes ao mundo contemporâneo que nos levam a
compreender o caráter alternativo/imaginativo do espaço, são elas: a) reconhecer o espaço
54
É por este ângulo que o trabalho aborda a questão do espaço, uma vez que a ida da
protagonista para um outro território representa o surgimento de novos problemas e a
intensificação de dramas antigos. Para pensar a influência dos espaços geográficos no que
tange ao pertencimento, ao estranhamento e aos conflitos identitários experienciados pela
personagem, é necessário, em um primeiro momento, verificar a composição de cada lugar
apresentado na narrativa de As mulheres de Tijucopapo (2004).
Rísia é recifense mas nasceu em Poti, uma das vilas marginais da cidade, a qual em
muito se diferencia do centro de Recife. Em uma das rememorações de sua infância, a
protagonista se lembra da diferente sensação que teve ao ser levada para o centro da cidade
durante as festividades de natal:
Eu tinha sete anos e tudo o que eu sabia de uma cidade era de um Natal
anterior quando me levavam finalmente a passear pelas luzes, pelas gentes e
pelas lojas do centro de Recife, e onde em pé, maravilhada, na ponte eu vi: o
rio. Fora rápido mas daquele dia em diante eu passava a viver em
deslumbramento; a paisagem da minha rua de repente assumira-se
paupérrima a meus olhos, casinhas de taipa, meninos buchudos, rostos
55
37
Pensando em seu emblemático quadro Retirantes, 1955.
38
Excerto retirado do texto lido pela autora em 13/07/2019, na ocasião de sua participação na Festa literária
internacional de Paraty que homenageou Euclides da Cunha.
56
39
A área foi referenciada, durante muito tempo, como a “região canavieira.”
57
vou parar num tabuleiro e beber cana gelada. Vou beber cana gelada no burburinho do
Mercado São José, a máquina espremendo a cana em bagaços [...]” (FELINTO, 2004, p.131).
Porém, ao contrário da visão romantizada de Gilberto Freyre, que via na sociedade
litorânea e patriarcal a possibilidade de exaltação do Nordeste, “[...] já que a região de terras
duras e secas seria mais propícia para servir de base a um discurso cuja estratégia fosse a
denúncia das condições sociais da região.” (ALBUQUERQUE, 2011, p.116), a narrativa de
Felinto expõe a vida agreste que também existia e existe no espaço onde a terra vira lama,
revelando que a desigualdade e a miséria não eram problemas circunscritos ao interior
nordestino. Além disso, a pobreza não é tratada com benevolência e aceitação como ocorre
nos romances de José Lins40, mas é repudiada e denunciada constantemente pela personagem.
Assim, a narrativa encontra ressonância na discussão proposta por Albuquerque (2011)
porque proporciona outras leituras do sujeito nordestino e litorâneo e contribui para uma
diversidade imagético-discursiva do lugar.
A despeito de sua pertença à região do mangue – que já foi narrada como a área feita
de gente mestiça, fraca, brejeira e corruptível41 – a protagonista enfrenta a pobreza, a fome, o
sol e a retirada para o Sudeste de modo equivalente ao sertanejo, contemplando-nos a visão de
Severino:42 "Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a
Mata a diferença é a mais mínima. [...] e quer nesta terra gorda, quer na serra, de caliça, a vida
arde sempre com a mesma chama mortiça. (MELO NETO, 2007, p.112) À revelia de Euclides
da Cunha, pode ser considerada uma forte, pois o sertão inscreve-se em suas vivências,
ausências e precariedades. Em moldes roseanos significa dizer que Rísia carrega o sertão
úmido de onde provém dentro de si.
A Recife da infância é retratada em suas dificuldades de subsistência, mas também em
seu viés de pertencimento e afetividade. A protagonista em um primeiro momento expele
negativas adjetivações à capital: “Recife, a sem amor. Recife, a ensolarada, a incendiada, a
desembestada, a manifestada. A sem carinho. Recife, o cão. Recife, a desalmada, a gota
serena, a bexiga lixa.” (FELINTO, 2004, p.36), e, em um segundo momento de seu relato
revela: “Aquela cidade não me esquece, ela me vem em sonhos. Mas eu amava Recife”
(FELINTO, 2004, p.139). A cidade é repleta de contradições assim como as impressões da
40
A leitura que Durval Albuquerque (2011) faz dos romances regionalistas nos revela tais ângulos de
representação.
41
Autores como José Américo de Almeida compõem suas narrativas a partir do binarismo litoral/interior e das
teorias eugenistas presentes nos discursos de Euclides da Cunha que, igualmente, criticava e estigmatizava a
população pertencente à Zona da Mata. A esse respeito ver Durval Albuquerque (2011).
42
Personagem retirante de Morte e vida Severina (1956), de João Cabral de Melo Neto.
58
personagem, pois as dificuldades que apresentava foram responsáveis pelo translado de Rísia
e da família, mas as lembranças de suas paisagens e costumes acionam o desejo de voltar.
No bairro em que vivia havia ladeiras de terra dura e vermelha que eram transmutadas
em parques de diversão e o clima sempre quente favorecia a vegetação de frutas duras, como
as macaíbas e pitombas. Rísia ressalta que em Recife não havia maçãs para os pobres. A
mangueira e o abacateiro também são mencionados e, inclusive, serviam para fazer sombra e
para instrumentalizar o castigo dos meninos. Todos os moradores da rua eram protestantes e
suas condições eram igualmente precárias, apenas uma das vizinhas possuía televisão e fartas
comidas em sua casa. Assim como esses primeiros aspectos, outros corroboram a situação de
pobreza que circundou o nascimento e a infância da personagem como, por exemplo, o fato de
ter nascido em casa sem suporte médico e nunca ter andado de carro até os treze anos de
idade. Embora o pai já tenha sido dono de açougue, uma de suas marcantes confidências diz
respeito ao momento em que teve que pedir esmola para dar fim a fome que sentia: “Quando
chegou televisão na minha rua eu já era uma menina completamente enraivecida. Eu já tinha
pedido esmolas. Eu quase choro. Eu pedi esmolas de cuia na mão: - Um pouquinho de arroz.
Um pão, pelo amor de Deus.” (FELINTO, 2004, p.129).
Junto aos indícios que comprovam sua condição de pobreza, há sensíveis descrições
que evidenciam as boas coisas do lugar e que amenizam as memórias ruins. Rísia lembra com
carinho do pipoqueiro e do vendedor de algodão-doce que sempre passavam pela rua onde as
crianças esperavam sentadas na calçada. Os dias nas cachoeiras de Pedra Branca, as tardes de
diversão nos rios e praias da redondeza e os dias chuvosos em que brincava com barquinhos
na correnteza são igualmente narrados com saudade, todos eles fazendo referência ao clima
úmido e quente do lugar. É interessante notar a forte presença dos elementos água e terra em
suas descrições, os quais, em simbiose, produzem o barro que marca sua infância e também a
lama ancestral que encontraria em Tijucopapo.
A amiga Nema, a quem endereça a carta que escreve, protagoniza as boas lembranças
de Recife, por isso, na véspera de sua saída em direção a São Paulo, a ausência da amiga e
interlocutora – que viajara antes de sua partida – intensifica a sensação de perdas. No abraço
de adeus do dia anterior, Rísia revela a Nema sua hesitação e comprova o caráter exílico de
seu primeiro deslocamento, uma vez que lhe é imposta a mudança e a vida no espaço
metropolitano: “Desgraça. Em 1969, Natal, nós nos retiramos das praias ainda maravilhosas
de Boa Viagem. Boa viagem da incendiada e alagada Recife de entre-rios” (FELINTO, 2004,
p.104).
59
Embora não seja possível afirmar que Recife e São Paulo tornam-se espaços
antagônicos na narrativa de Felinto, isto é, espaço positivo e espaço negativo respectivamente,
as descrições sobre o lugar de origem indicam a inclinação da protagonista para a região onde
nasceu, principalmente, após sua experiência na metrópole. Segundo Albuquerque (2011), o
sentimento de pertença e de nostalgia pelo Nordeste é bastante comum em migrantes, uma vez
que, a partir da inserção em uma realidade distinta, compreendem o peso de suas
identidades.43 Esse aspecto aproxima-se da condição de Rísia, pois seu sentimento de
nordestinidade aumenta quando está na capital. Significa dizer que a despeito da identidade
em revolta, a personagem evoca o lugar originário dotada de um sentimento afetivo, como
veremos a seguir.
Cabe também reafirmar que a trajetória da pernambucana sempre esteve marcada por
fronteiras, desde os contrastes sociais no mesmo território até os contrastes geopolíticos entre
Nordeste e Sudeste. Um importante momento da narração sugere a precoce condição
dissidente de Rísia e diz respeito à primeira viagem que realizou, uma excursão a Manjopi
com o colégio no qual era bolsista. Em uma espécie de espelhamento do que enfrentaria no
futuro, vemos surgir nessa ocasião grande parte dos conflitos interiores que acometeriam a
personagem em São Paulo. Manjopi era um local turístico, arborizado e contava com piscinas
e brinquedos, entretanto, Rísia se sentia solitária e alheia a qualquer tipo de interação desde a
viagem de ônibus. É durante o trajeto que se deflagra sua primeira crise afiliativa:
Ainda que soubesse nadar nos rios e nas praias pernambucanas, a protagonista se
afogaria na piscina azul que havia no lugar, pois a cor azulejada de suas águas era símbolo da
43
Ao mencionar a importância de Luiz Gonzaga, o historiador afirma que suas músicas participam da “própria
solidificação de uma identidade regional” (ALBUQUERQUE,2011, p.180) entre migrantes que vivem nas
grandes cidades. Segundo ele, é na distância do Nordeste e no reconhecimento de outros nordestinos deslocados
para o Sul que os sujeitos se percebem iguais e tentam preservar suas tradições e valores, “o que não ocorria
quando estavam na própria região”.
60
riqueza que não pertencia a ela. É emblemático o receio que sente diante da piscina porque
expressa sua dificuldade em se apropriar de um espaço que acentua diferenças, ou seja,
embora apresentasse funcionamento semelhante às águas dos rios, a relação que estabelece é
de estranhamento e intimidação, fazendo com que rejeite “[...] até mesmo aquilo que se tem
em comum” (SIMMEL, 1983, p.6).
No mesmo episódio, Rísia também fala das discrepâncias percebidas em comparação
às colegas, ela tinha o “cabelo duro”, “era bolsista” e não conseguia brincar tampouco se
aproximar da professora Penha com a mesma facilidade que as amigas: “meninas gordas
rosadas” e filhas de “sargentos ricos”. A esse respeito, é possível dizer que a descrição das
amigas denota a convivência da personagem com crianças pertencentes à elite recifense, pois
a caracterização se assemelha ao biotipo das mulheres da antiga oligarquia canavieira, cujos
traços abundantes se opunham aos raquíticos sertanejos com os quais a protagonista nutria
parecenças. Segundo Gilberto Freyre (1937), eram mulheres “arredondadas” e “dengosas”44
enquanto Rísia “[...] era tão magrela na frente das meninas.” (FELINTO, 2004, p. 99).
Sobre a excursão, a narradora conclui: “Em Manjopi eu soube de minha diferença”
(FELINTO, 2004, p.99), diferença que está posta na dificuldade de fala, na distância de classe
social, na cor da pele, nas curvas do corpo e na ausência de afeto e reconhecimento. Tais
elementos de distinção absorvidos com a primeira viagem se manifestam em sua mudança
para o Sudeste e interferem diretamente na adaptação à metrópole.
A São Paulo encontrada pela protagonista nos anos 70 é o lugar da efervescência,
momento em que a capital paulista converte-se em uma das primeiras cidades milionárias do
país45, figurando como a mais populosa e produtiva, detentora do monopólio das novidades
tecnológicas, industriais e informacionais advindas com o processo de globalização. Com
base nas pesquisas do geógrafo Milton Santos (2008), entre 1970 e 1980 a cidade apresentava
os maiores níveis de contingência urbana, ultrapassando o percentual de 75%, enquanto seu
território crescia exponencialmente: “Durante todo este século, a área de São Paulo aumenta
mais que a população, dela fazendo a mais extensa cidade do mundo: mais de oitenta
quilômetros no sentido leste – oeste e mais de quarenta na direção norte-sul.” (SANTOS,
1994, p.14). Assim, junto à mudança de estado, a personagem lida com uma realidade inédita
para os próprios paulistanos e ainda mais para os sujeitos migrantes.
44
Ver: Nordeste: aspectos da influencia da canna sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. (1937), de
Gilberto Freyre.
45
Segundo os estudos do geógrafo Milton Santos (2008), em 1960 o Brasil contava com apenas duas cidades
milionárias, São Paulo e Rio de Janeiro, expandindo-se para cinco em 1970.
61
Vale reiterar que as diferenças geográficas e econômicas entre a Vila Poti e a cidade
de São Paulo acentuam seu estranhamento, pois Rísia sai da região mais agreste do país para
uma de suas cidades mais urbanizadas: “Em 1980, é a Região Sudeste a mais urbanizada, com
um índice de 82,79%. A menos urbanizada é a Região Nordeste, com 50,44% de urbanos,
quando a taxa de urbanização do Brasil era de 65,57%.” (SANTOS, 2008, p.63).
Esses contrastes entre Nordeste e Sudeste têm raízes naquilo que Albuquerque (2011)
problematiza ao investigar a construção imagético-discursiva da região. Desde os anos 20, o
trabalho de muitos tradicionalistas46 baseava-se na oposição entre Nordeste e Sul/Sudeste, isto
é, os aspectos do progresso e da modernização que caracterizavam tais regiões não deveriam
integrar ou corromper o espaço nordestino, que, por sua vez, permanecia retrógrado. A ideia
de manutenção do arcaico e da tradição cristalizou-se no imaginário nacional e foi
responsável, indiretamente, pelos impasses de crescimento e desenvolvimento da região, que
ficou sujeita a uma forte cultura latifundiária e à resistência ao processo de urbanização,
conforme nos informa Milton Santos (2008, p.69, grifo nosso):
46
São tradicionalistas os autores de produções sociológicas e artísticas que abordam a região nordestina
adotando um olhar saudosista, pautado na preservação do passado mediante os avanços da modernidade. Para
eles, as engrenagens modernas hipertrofiam a identidade nacional presente no regionalismo.
63
Quando fez dois anos que estavam em SP, o pai foi preso por contrabando.
Papai também é um herói. É muito ruim ser pobre – você tem vontade de
matar seu pai, você não ama sua mãe. Seu sonho é ser advogada, diplomata,
política e você não poderá ser porque seu pai sujou ainda mais o nome pobre
da família sendo preso por contrabando. (FELINTO, 2004, p.123).
Mas foi nessa cidade de onde saio que me fiz mulher. Saio, uma mulher,
dessa cidade. [...] Amei homens na escuridão morna das noites. Subi
montanhas de homens. E minha mãe nunca nem soube. Era sempre com
muita culpa que eu a encarava no dia seguinte a uma noite passada num
hotel com um homem. (FELINTO, 2004, p.95).
Os encontros noturnos revelam que a protagonista pôde ter outras experiências sexuais
a partir da filiação citadina, uma vez que no vilarejo de Recife, cuja moral protestante regia os
moradores, ela não teria parceiros diversos, acesso a hotéis destinados ao deleite de solteiros
e, tampouco, poderia utilizar medicação contraceptiva.48 Esse aspecto encontra ressonância na
argumentação de Massey acerca das vivências da mulher dentro das cidades globais:
47
Marta Francisco de Oliveira (2014, p.144) argumenta que a Coca-Cola “É um símbolo bastante representativo
da mundialização acompanhada pela hibridização da cultura: ela pode adaptar-se a subculturas, culturas locais,
nacionais, transnacionais.
48
Em um dos trechos da narrativa, a personagem revela que contava os dias e a passagem do tempo a partir das
cartelas de pílulas que tomava, e que, depois de ter perdido Jonas, o namorado, não mais utilizou a medicação.
64
Sob essa perspectiva, a esfera urbana viabiliza a superação das privações femininas
pela personagem, mas não apaga a culpa que sente diante da mãe, tal sentimento é gerado
pelo contraste entre condutas, pelo peso da moralidade religiosa e pela manutenção do
machismo: “Já vimos que o ser mulher, para Rísia, está em constante luta – há o choque da
tradição na qual foi criada e o questionamento dessa tradição que ronda seu espírito.”
(ARAÚJO, 2006, p.153). Nesse sentido, oscilando entre os novos e os velhos códigos
culturais, a protagonista também modifica sua relação com a religião, pois dividida entre os
preceitos protestantes e a nova vida, passa a questionar sua fé, corroborando o que afirma
Solange Kate Vieira (2001, p.28): “As estruturas centralizadoras são questionadas: o
patriarcado (religioso, social, familiar)”.
Ao mesmo tempo em que afirma ter sido atacada na rua por pertencer à comunidade
religiosa: “[...] em São Paulo de onde saio, e vou passando na rua, ainda gritam em mim que
sou moralista. (FELINTO, 2004, p. 32), também expele sua descrença na doutrina que, por
tanto tempo, seguiu: “Mal sabem eles que sou eu quem me debato aqui com o sentimento da
relatividade do mundo. O Salmo 91 é uma grande tolice. Infelizmente. Só peiote para um
transporte Às Altíssimas Moradas.” (FELINTO, 2004, p.109).
Em São Paulo, Rísia também se descobre mentirosa, uma vez que, para esconder a
condição de inferioridade diante dos amigos, fabulava idas ao cinema e passeios não feitos.
Essas transformações apontam para a contaminação – voluntária ou não – sofrida pela
protagonista no contexto metropolitano. Há um momento narrado que funciona como alegoria
de sua incorporação aos novos comportamentos e ideias: “Em São Paulo eu não fumava não,
mas os meus amigos fumavam e eu engolia toda a fumaça que sentava perto deles. Eu me
intoxicava via eles. Sobrava sempre um tanto de fumaça para mim no trago que eles davam.”
(FELINTO, 2004, p.139, grifo nosso). Ainda que à revelia, Rísia se intoxica com as
convenções do lugar para onde migrou, visto que o contato com o outro produz crivos para a
absorção de uma nova cultura. A situação coaduna-se ao que Massey nos informa sobre as
inter-relações que integram os espaços e modificam, direta ou indiretamente, os indivíduos
que o habitam: “Chegar a um novo lugar quer dizer associar-se, de alguma forma ligar-se à
coleção de estórias entrelaçadas das quais aquele lugar é feito.” (MASSEY, 2009, p.176).
No que tange às relações familiares, é também em São Paulo que a apatia e as
situações conflitantes entre os membros da casa se intensificam, a começar pela ausência de
interação e entrosamento aos domingos, dia que alude ao convívio e fortalecimento dos laços
parentais. A família da nordestina não dialogava e a casa transformava-se em um ambiente de
silêncio e solidão, evidenciando o abandono afetivo que pairava sobre cada um. Ademais,
65
grande parte do sustento familiar dependia do salário recebido pela personagem, no entanto,
os irmãos não lhe deixavam comida e o pai se sentia legitimado a invadir seu quarto, mexer
em seus pertences e agredi-la fisicamente. Desse modo, para além da solidão familiar que
agravava sua condição de deslocada, Rísia também era oprimida pela cultura machista e
patriarcal em que estava inserida.
Como filha que recebia o salário mais alto, deveria ser estimada pelo pai e pelos
irmãos e, minimamente, respeitada em sua intimidade e direitos. Todavia, a ideia de
superioridade masculina autoriza a subjugação e o desrespeito constante do qual é vítima, seja
pela violação de seus pertences pelo pai, seja pela privação das refeições pelos irmãos: “A
condição física da mulher e a ideia de possessão do homem sobre o corpo da mulher
aprofunda a questão da vulnerabilidade, colocando a mulher num nível crítico de desamparo.”
(BENTES, 2016, p.160). Ainda que ao final da narrativa enxergue na pobreza a grande
culpada pelas atitudes de seus familiares, é relevante destacar a influência negativa de tais
situações na formação de sua personalidade enquanto mulher.
O romance também nos permite investigar a relação da protagonista com a capital em
termos de mobilidade, pois desvela o modo como lida, negativamente, com os circuitos
urbanos. Embora fazendo o uso de automóveis destinados ao transporte de passageiros para
chegar ao Higienópolis Paulista, a condição da migrante na cidade é, predominantemente, de
transeunte. Rísia é uma pedestre na megalópole e, por isso, seu olhar toma a perspectiva das
ruas para construir a imagem citadina além de estar contaminado por suas experiências
suburbanas, por sua origem nordestina e pela condição de inferioridade que norteia sua vida.
Podemos dizer que sua visão diante de São Paulo é redutora e limitada.
Em seu A invenção do cotidiano (1994), Michel de Certeau propõe a distinção
conceitual entre espaço e lugar e trata dos diferentes ângulos que podem ser adotados para
observar e praticar os espaços, de modo especial, pensando na relação estabelecida entre o
caminhante e as ruas. Para o teórico, o espaço é o lugar praticado, ou seja, quando existem
ações e relações sendo desenvolvidas na esfera urbana, por esse viés, o historiador tece
considerações acerca das práticas de espaço do pedestre, as quais envolvem especificidades e
fragmentações decorrentes de tal perspectiva.
A teorização que faz sobre as práticas do pedestrianismo, cujo tópico “Retóricas
ambulantes” é pertinente a nossa discussão, em muito se liga à São Paulo que é retratada e
praticada por Rísia. De Certeau (1994, p.166) afirma que o ato de caminhar corresponde a um
espaço de enunciação, ou seja: “As caminhadas de pedestres apresentam uma série de
percursos variáveis assimiláveis a ‘torneios’ ou ‘figuras de estilo’. Existe uma retórica da
66
caminhada. A arte de ‘moldar’ frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos.”,
assim, o autor demonstra como as figuras de estilo sinédoque e assíndeto também funcionam
como modos de se apropriar espacialmente dos lugares. A sinédoque toma uma parte no lugar
do todo que a constitui, enquanto o assíndeto omite elementos conectivos dentro de uma
sentença. Transferindo tais figuras para a prática espacial, temos que:
Era sempre tão doloroso passar por tanta entrada e por tanta saída, era
labiríntico, eu me perdia, eu chorava. São Paulo é muito grande, tem prédios
de milhares de andares invadindo o céu, tem avenidas infinitas, posso me
perder facilmente lá, estou exposta a todos os perigos. (FELINTO, 2004,
p.116).
A menção que faz aos carros e às largas avenidas que pareciam engoli-la também
confirma seu olhar pedestre e sua condição enquanto mulher “exposta a todos os perigos”,
uma vez que seu corpo é duplamente interditado de ocupar as ruas e sofre com outras formas
de intimidação, conforme discussão do capítulo I. Cabe salientar, todavia, que a tese de
Certeau (1994) não abarca questões como raça, gênero e estrato social tampouco trata das
particularidades de cada retórica ambulante, mas, a despeito dessas nuances, seus
pressupostos são pertinentes para verificar os percursos urbanos traçados pela personagem. As
67
lacunas do estudo do historiador francês são preenchidas pelo trabalho de Isabel Carrera
Suárez (2015), dessarte, é pertinente enfatizar as considerações de Meskimmon (1997)
mobilizadas pela autora no que tange às diferentes possibilidades do corpo gendrado e/ou
racializado perante a experiência pedestre:
Vale ressaltar que nos anos 70/80, São Paulo era a cidade de maior tráfego de
automóveis, “São diariamente cerca de oito milhões de viagens de ônibus, mais do dobro de
passageiros que em Londres, quatro vezes mais que em Nova York, cinco vezes mais que em
Paris.” (SANTOS, 1994, p.14). Desse modo, a cidade descrita pela protagonista é caótica,
dominada pelos edifícios, pelas pessoas perdidas e pela soberania do trânsito e dos carros. Na
esteira do que assinala Canevacci (1977, p.100) sobre a representação de Paris feita por
Charles Baudelaire: “A cidade só é cantada para ser denegrida: como instrumento retórico que
se dirige ao lamento”, podemos afirmar que a protagonista igualmente canta a cidade de São
Paulo para expor ao mundo seu lamento e seu repúdio a ela: “Nema, você pensa que em São
68
Paulo há um poema em que rime com Nema? Não, lá é tudo dissonância” (FELINTO, 2004,
p.128).
Lugar dissonante em que somente entardecia, cidade das festas, das comilanças, das
guloseimas, dos licores em bares, das filas do cinema, dos jantares em caros restaurantes e
também dos perigos. Lugar das mulheres perdidas e também das mulheres “cosméticas” que
andavam pelas ruas de óculos escuros. Lugar das telas de cinema e suas histórias perfeitas e
impossíveis, onde o mundo acontecia “aos goles, aos gotos e arrotos.” Em cada descrição
sobre a composição de São Paulo, Rísia expressa seu incômodo diante das discrepâncias
sociais, pois enxerga a cidade como grande culpada por todos os males que desembocaram em
sua vida retirante.
Em síntese, as oposições entre São Paulo e Recife e a sensação de não pertença à
metrópole são aspectos que atuam, incisivamente, na composição e/ou decomposição
gradativa de sua identidade. Embora incorporando o que Stuart Hall (2003) define como
hibridização cultural – decorrente de sua inserção à metrópole e do contato com uma
heterogeneidade identitária –, a protagonista olhava para suas origens com olhar saudosista,
pois, ainda que o espaço também tenha sido palco de uma experiência de pobreza e carência,
a essência anacrônica do Nordeste – já citada anteriormente – torna-se sinônimo da segurança
e do reconhecimento não encontrados por Rísia em São Paulo, a grande boca de mil dentes.49
Essa perspectiva se alinha às noções que engendram a “geometria do poder” teorizada
por Massey (2000), a qual diz respeito às diferentes maneiras de cada lugar e grupo social
estabelecer relações com os novos fluxos e interconexões do mundo globalizado. Nesse
sentido, a débil vinculação do espaço nordestino aos avanços da modernidade faz com que a
personagem vislumbre em seu lugar de origem “[...] uma fonte de identidade não
problemática.” (MASSEY, 2000, p.181):
49
Ver Mário de Andrade, Os Cortejos (1922).
69
seu segundo deslocamento espacial evoca um retorno temporal: “Migrantes imaginam ‘o lar’,
o lugar em que costumavam estar, como costumava ser.” (MASSEY, 2009, p. 181).
O que havia de sua infância na cidade era apenas uma boneca em cima da cama:
“Nessa cidade de onde saio, essas tardes de domingo sem pipoqueiro a passar na rua, sem eu
de roupa limpa sentada na calçada à espera do vendedor de roletes de cana. Nada, não há nada
mais.” (FELINTO, 2004, p.94). A descrição das regiões tropicais do Nordeste contrasta com
os aspectos que tipificam São Paulo, a cidade cinza. De acordo com Massimo Canevacci
(1997, p.199) a cor da capital paulista é: “Sempre igual: um cinza-sujo. A cor de São Paulo é
uma mancha cinza-clara.”, a coloração é constituída por um ar poluído, pelas fumaças das
grandes fábricas e indústrias, pelos concretos que sustentam os grandes edifícios e pelos
asfaltos que refletem sua escuridão acinzentada, o que justifica a enorme apatia da
personagem diante do cenário. Embora encantada com as luzes e brilhos das festas que não
haviam em Recife, sobressai a saudade do verde e dos elementos naturais com que estava
habituada:
A despeito da escalada social que alcançou e das amizades que construiu, Rísia não se
sentia totalmente integrada à realidade urbana e, por esse motivo, retorna. Extrapolando as
diferenças geopolíticas entre um espaço e outro, há questões e situações de caráter subjetivo
que acentuam o não-pertencimento e o estranhamento diante de São Paulo. Por essa razão,
cumpre verificar de que modo sua condição de mulher pobre, negra e nordestina e as relações
que estabeleceu no novo lugar também atuaram em seu processo de fragmentação e
apagamento social.
50
Fundada em 1927, a empresa Rio-grandense foi uma das primeiras viações aéreas do Brasil.
71
Eu ia, toda tarde, esperar tia na esquina, esperar que ela passasse lá por casa
voltada da Casa de Lanches da Varig onde ela trabalhava. Sempre tia trazia
um doce, um salgado, dos lanches do avião. Dos lanches do avião...Pois uma
vez, eu jantava no avião indo em viagem para Recife e me lembrei assim de
tia e de eu menina e as lágrimas caíram em bagas e ensoparam os pãezinhos
do meu jantar e eu solucei tanto que quase vomitei. Então, eu sou, hoje,
quem anda a comer os lanches do avião da Casa de Lanches da Varig,
aqueles que tia preparava. (FELINTO, 2004, p.47).
Ao perceber a posição atípica que ocupa no acesso aos grandes voos nacionais, Rísia
se enoja ao lembrar do passado, não somente por ter sido a tia uma das amantes do pai, como
também pelo fato de se ver fora de lugar, fora do perímetro da pobreza e da impossibilidade
que marcou boa parte de sua vida. A protagonista estranhava o fato de não ser a funcionária
da empresa de avião, como fora a tia, mas sim a consumidora de seus serviços. Sensação
análoga se manifesta ao mencionar o Higienópolis paulista, lugar representativo da elite
paulistana e frequentado por ela apenas por sua associação intelectual àquele corpo social.
Nessa esteira, outro incômodo é gerado quando percebe a distância que se instala entre sua
nova realidade e a realidade de seus conterrâneos, sujeitos que dificilmente teriam a
possibilidade de inserção em semelhante universo:
Rísia se revolta porque sabe da marginalidade que compõe sua identidade nordestina.
O trecho é emblemático de sua condição fronteiriça e conflitante, pois, por mais que se
adeque a determinados círculos da alta sociedade, as marcas de sua origem ecoam indignação,
impedindo-a de alcançar um passivo pertencimento à vida metropolitana. Ao analisar as
contradições vividas pela protagonista, Dalcastagnè (2005, p.126) pontua:
Quanto mais apartados da cidade oficial, mais marginalizados ficam e mais gastam
para vencer as distâncias e desigualdades. Nesse sentido, a experiência da personagem se liga
a afirmativa de Massey sobre a chegada das margens ao centro: “Chegar ao centro implica
muito mais que vencer as distâncias, implica vencer as formas de poder. O que está em
questão é a articulação das formas de poder dentro das configurações espaciais.” (MASSEY,
2009, p.141), assim, cabe dizer que não basta a chegada dos pobres às cidades mundiais –
ideia alimentada no imaginário do povo nordestino por muito tempo – pois, encurtar
distâncias e habitar o mesmo espaço de onde emana a riqueza não é sinônimo da superação
dos poderes e das formas de exclusão que estão postas. A grandeza de São Paulo era indigesta
porque embora relativamente acessível, não solucionava as discrepâncias que Rísia bem
conhecia.
Dentre as formas de alteridade que não são incorporadas pelo projeto de identidade
nacional, a questão da cor da pele também se coloca como um dos grandes fatores que,
historicamente, causam a exclusão e discriminação dos sujeitos. O mito da miscigenação
ainda paira em nossa sociedade e encobre a manutenção do domínio etnocêntrico e racista no
país. Desde a fatídica viagem a Manjopi, a protagonista soube dos variados elementos que a
distanciavam das colegas: condição financeira, personalidade, características fenotípicas e,
sobretudo, a questão racial: “Eu gostava de Libânia porque ela era tão limpa e bonita, porque
73
os cadernos dela eram limpos e a letra bonita, e o cabelo dela era liso e o meu era crespo
[...]” (FELINTO, 2004, p.37, grifo nosso).
O fato de Rísia, ainda criança, absorver negativamente os traços de sua origem
mestiça, pois é descendente de “índios e de negros”, corrobora as teorias psicanalíticas e
sociológicas que apontam a infância como a fase primordial para a assimilação da cultura
branca em paralelo à negação da identidade negra. A principal manifestação dessa
depreciação ocorre quando a personagem descreve as atitudes da mãe diante de seu cabelo
crespo: “Uma família de cabelos especados, você odiava os nossos cabelos, mamãe.”
(FELINTO, 2004, p.185). A esse respeito, no documentário Dizeres negros, a psicóloga
Lumena Aleluia (2017) afirma que as meninas negras não conseguem estabelecer contato
afetivo com seus cabelos devido à existência de um sistema discriminatório que as leva a
enxergar na estética da mulher branca o modelo a ser seguido e almejado, atitude que
desemboca na perda de elementos essenciais para a construção identitária do sujeito.51
Quando criança, Rísia admirava as colegas que tinham cabelo liso ao mesmo tempo
em que odiava as mulheres loiras e brancas que se pareciam com as amantes do pai: “Meu
coração disparou em batidas quando eu percebi a grande possibilidade de aquela ser, então,
Analice, a loira, a de pele branca, a de cara pintada, a de batom, a cosmética. (FELINTO,
2004, p.54), o que sentia, afinal, era um misto de inveja e repulsa. Essa oscilação entre o
desdém e a aspiração à branquitude mostra que a personagem assimilou de seus traços negros
aquilo que possuía de negativo, isto é, apreendeu que a beleza está no corpo branco e que as
mulheres negras, como a mãe e a avó, são subalternizadas social e afetivamente.
Nessa perspectiva, Rísia, que já carregava consigo os traumas da infância ao lembrar
da força com que a mãe trançava seus cabelos a fim de esconder sua textura e forma, vê
crescer o sentimento de inferioridade quando se desloca para São Paulo, espaço que propicia o
desvelamento de todas as formas de discriminação. Por vezes, a protagonista usa as
expressões “mulheres cosméticas” e “gente gorda e rosada” para se referir às aparências
contrapontísticas que encontrou na metrópole.
Em síntese, a questão racial no romance de Felinto apresenta-se rarefeita sem,
contudo, deixar de ser um elemento importante para a compreensão dos conflitos subjetivos
que integram/desintegram a identidade da personagem. A esse respeito, Adriana Araújo
51
O documentário, publicado em 2017 na plataforma Youtube, é uma produção independente e foi dirigido por
Hugo Lima em parceria com o Coletivo Negro Azoilda Loretto Trindade - CEFET/RJ. A produção aborda as
principais consequências e causas do racismo e da discriminação racial na vida do homem e, principalmente, da
mulher negra na sociedade brasileira.
74
(2007, p.119) elucida: “[...] Felinto produz sua condição [negra] de modo menos óbvio sem
aspirar à denúncia ou à condescendência. As referências não estão no nível das disputas no
interior da sociedade, mas num campo simbólico e sutil de compreensão do si-mesmo.”
Ainda que Rísia tenha sido perpassada pelos mecanismos de violência racial de
maneira simbólica, a atitude de retornar para as terras onde nasceu sua avó, uma “negra
pesada”, expressa uma tentativa de conhecer outros referenciais de mulheres negras que não
estejam atrelados a imagens negativas como aquelas que tinha da mãe submissa e traída e da
avó impotente e pobre que abandonou a própria filha. Ao perseguir sua ancestralidade e
descobrir a lama escura de que é feita, Rísia opera uma recusa da hegemonia branca – tão bem
representada pelo espaço paulistano –, colocando-se em busca de seus traços mestiços e de
sua origem nordestina: “Às vezes eu me olho no espelho e me digo que venho de índios e de
negros, gente escura, e me sinto como uma árvore, me sinto raiz, mandioca saindo da terra.
(FELINTO, 2004, p.50).
Outro fator que tenciona sua experiência metropolitana diz respeito às barreiras
linguísticas encontradas no Sudeste brasileiro. Em uma das confidências mais delicadas da
narrativa, a protagonista afirma que em São Paulo só encontrou palavras em língua
estrangeira e que quase perdeu a fala. Sua situação é emblemática porque exprime uma das
perdas irreparáveis causada pelo deslocamento: a dificuldade e/ou a impossibilidade de
reivindicar seu lugar no mundo pelo discurso. A linguagem e a comunicação – objetos
explorados por diversos teóricos das ciências humanas – são elementos fundamentais para o
estabelecimento de relações, para a conexão com a realidade e para a inserção social do
sujeito, é possível afirmar que “Sem a comunicação cada pessoa seria um mundo fechado em
si mesmo” (BORDENAVE, 2006, p.36).
Além disso, sua importância não se restringe somente à interação social, pois a
língua/linguagem também “[...] se deduz da necessidade do homem de expressar-se, de
exteriorizar-se.” (BAKHTIN, 2000, p.289). Se levarmos em conta que “Uma língua não é
somente um instrumento de comunicação, ela é também instrumento de poder” (ORTIZ,
2000, p.98), um sujeito que convive com diferentes formas de afasia verbal é alguém que se
sente impotente e que sofre um apagamento social e cultural propulsor de esfacelamentos
identitários.
A representação da relação conflitiva do nordestino com a linguagem e com a fala não
é inédita na literatura brasileira, basta olharmos para a total impotência de Fabiano ou Sinhá
Vitória diante de situações comunicativas, ou ainda dos limitados e ingênuos diálogos de
Macabéa com as pessoas ao seu redor, principalmente com o namorado Olímpio. A mudez
75
e/ou a gagueira que acometem tais personagens intensificam seus silenciamentos nas
narrativas e seguem sendo retratadas pela ficção contemporânea. Essa defasagem associa-se,
na maioria das vezes, ao preconceito contra o povo nortenho/nordestino e seu sotaque,
atitudes que se revelam nos discursos xenofóbicos de sulistas ou sudestinos e que fazem o
indivíduo neutralizar as marcas regionais de sua fala: “[...] a cidade cosmopolita seria o lugar
da diáspora por excelência, o espaço de chegada que ignora, por vezes, as origens e faz com
que elas se apaguem.” (ALMEIDA, 2015, p. 155).
Ademais, existem as “[...] diferenças importantes entre a linguagem empregada pelas
classes sociais mais elevadas e a utilizada pelas classes subalternas.” (BORDENAVE, 2006,
P.80), uma vez que esses sujeitos geralmente integram a parcela com menos acesso ao
letramento e, por isso, se intimidam diante de espaços onde as práticas discursivas funcionam
sob distintos códigos: “A fala, para ser levada em consideração (ou seja, para ser escutada)
deve se revestir de legitimidade. Existe, portanto, um mercado dos sentidos no qual as falas
desfrutam de valores diferenciados.” (ORTIZ, 2000, p.98-99).52
Rísia, que enfrentou a gagueira desde a infância, se depara com a iminência da mudez
na cidade cosmopolita: “[...] não poder falar, ser gaga, é um verdadeiro corte, é o sinal mesmo
da ruptura, é o espanto maior de todos. Ser gaga, então, me calava muito. Eu já fui uma
verdadeira muda.” (FELINTO, 2004, p.57). A privação de voz, ou seja, a dificuldade de
inserção no mundo a partir do discurso agencia o estranhamento e a não-identificação da
personagem com o espaço paulistano, bem como interfere em seu fazer narrativo, que está
“[...] atravessado por repetições, interrupções, balbucios.” (ARAÚJO, 2012, p.119). Segundo
Bourdieu (2002), a gagueira é uma das manifestações comportamentais53 características
daqueles que se sentem inadequados perante uma voz superior, ou seja, configura-se como
uma desestabilização do dominado frente ao dominante, um dos modos de:
52
Em seu livro Mundialização e cultura (2000).
76
estruturas sociais afetam triplamente a nordestina: pelo gênero, pela origem pobre e pela raça.
Enquanto mulher negra, sua fala é menosprezada pelo pai, pelos irmãos e pelos homens com
quem se relaciona, e, enquanto nordestina pobre, é discriminada na metrópole por sua
conduta, condição econômica e dialeto.
São Paulo é responsável pelo reencontro de Rísia com a gagueira da infância, os
balbucios – que denunciavam sua impotência diante das traições do pai e das humilhações
vividas – assumem nova roupagem a partir do choque com o “paulistês.”54 O excerto a seguir
ilustra o caráter automatizado que é observado por Rísia nas formas de comunicação da
metrópole: “As pessoas de São Paulo não sabem mais falar. Não dizem coisa com coisa
dizendo que tudo é coisa, chamando tudo de uma coisa qualquer. Eu sinto saudades dos
nomes bonitos que vou reencontrar em Tijucopapo.” (FELINTO, 2004, p. 115). A linguagem
paulistana condena seu falar nordestino e agencia um processo de mudez: “É muito ruim ser
pobre porque pode-se súbito ser um gago ou um magro. [...] Quando mamãe nos contou sobre
papai e tia, eu fiquei gaga de novo. Agora eu já não gaguejo mais, agora eu emudeço de vez
ou falo direto em língua estrangeira.” (FELINTO, 2004, p. 57).
As referências fixas que possuía foram sendo gradativamente retiradas de sua nova
rotina, o linguajar regional igualmente foi anulado em prol de uma adaptação à polida fala
urbana55. Durval Albuquerque (2011, p.136), ao mencionar os estudos desenvolvidos pelo
filólogo Mário Marroquim (1934) sobre a língua do Nordeste, assinala: “Marroquim
caracteriza o ‘falar nordestino’ como aquele marcado por uma pronúncia demorada, arrastada,
em que se dizem todas as vogais marcadas e abertas, de onde vem a impressão do falar
cantando.”
Quando a personagem estava fora de casa, submetia-se às novas maneiras de se
expressar, subtraindo do vocabulário toda a carga identitária e afetiva que compunha seu
dialeto e, quando estava em casa não podia resgatar com a família a língua materna, pois o
convívio era marcado pela solidão e pela falta de comunicação: “Saí porque quase perco a
fala na cidade grande. Porque na minha casa, dia de domingo, era uma coisa de louco. Era o
dia da mudez. As pessoas todas estavam em casa, o dia de folga. Pois era exatamente o dia em
que a mudez era flagrada.” (FELINTO, 2004, p.78).
53
Outros modos evidentes de intimidação são o enrubescer, o tremor ou dificuldade de compostura.
54
Expressão utilizada pela autora para se referir à variação linguística encontrada em São Paulo quando de sua
chegada na cidade.
55
Conforme assinalado por Adriana Araújo (2007).
77
Quero que não me entendam. Inglês me dá distância: ‘So I I’ve just gotta tell
you GoodBye’. (FELINTO, 2004, p.91).
Para além do efeito paliativo proporcionado pelo idioma, ao falar em inglês Rísia não
gaguejava e na sua universalidade podia idealizar uma vida que doesse menos: “Eu quero que
minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero
que tudo me termine bem.” (FELINTO, 2004, p.184). Todavia, o fato da personagem se
apropriar da língua inglesa para apagar as marcas da sua alteridade não a torna um indivíduo
com sentimento cosmopolita e não anula a ausência que sente de seu dialeto original.
A esse respeito, paralelo ao que nos informa Hall sobre a impossibilidade de
homogeneização identitária, Nestor García Canclini (2016), ao discutir o conceito de
“estraneidade” no âmbito da antropologia, afirma que embora a contemporaneidade tenha
proporcionado a supressão de distâncias, a instantaneidade informacional, a interconexão
mundial e o apagamento das sensações de estranhamento, ainda existem diversas formas, sutis
ou não, de ser ou sentir-se estrangeiro – inclusive dentro do próprio país –, uma vez que “Os
vastos arquivos globais interconectam diferenças sociais e culturais; [mas] não conseguem
dissolvê-las” (CANCLINI, 2016, p.70).
Desse modo, o uso que faz do idioma é apenas o modo que encontra para lidar com a
obstrução linguística e também pode ser entendido como um uso de protesto diante da morte
de sua própria expressão: “Eu quero que essa tal carta vá em inglês porque inglês é a língua
mais viva desse mundo. As outras línguas parecem mortas perto do inglês. Imaginar que
até as línguas morrem...Existem línguas mortas.” (FELINTO, 2004, p. 90, grifo nosso).
Perdida entre intercâmbios linguísticos e culturais, voltar para a terra natal parece ser
sinônimo de recobrar o pouco que resta de sua identidade nordestina. É interessante notar que,
com o movimento de regresso, a personagem passa a evocar o que lhe foi negado em São
Paulo utilizando o léxico típico da região onde nasceu. A narrativa de seu trânsito, como
veremos a seguir, instrumentaliza sua escolha pelo espaço originário, uma vez que Rísia
relata/escreve seu desejo de encontrar “jambos”, “recas”, “canaviais” e “moinhos” em
detrimento dos concretos, ruas, avenidas, carros e caras maças de São Paulo.
Em síntese, Rísia passa a conviver com uma hibridez linguística, a qual fica
comprovada, posteriormente, com sua chegada a Tijucopapo mítica. Interpelada pelos
macacos: “De onde vem com essa fala?” (FELINTO, 2004, p.164), a personagem descobre
que não é mais a mesma e que não pode ser plenamente compreendida. Sua fala, antes
puramente pernambucana, agora é composta por uma multiplicidade de expressões, visto que
79
foi contaminada pela vida paulista, por seu letramento e pela aquisição da língua inglesa. A
distância que esperava alcançar com o idioma estrangeiro, de fato, se concretiza. Ao
conversar com Lampião a caminho de Tijucopapo, a nordestina questiona: “– Sabe o que me
perguntaram os macacos? Se eu vinha sozinha e de onde eu vinha com essa fala. Que fala é a
minha? Você entende a minha fala?” (FELINTO, 2004, p. 183), sua pergunta, no entanto,
perde-se em uma resposta diferente do que foi solicitado, pois também com ele não consegue
estabelecer uma comunicação efetiva.
Retomando a discussão de Kristeva (1994, p.23, grifo nosso), a aquisição de um novo
idioma dá ao estrangeiro a sensação de subterfúgio quando entre fronteiras linguísticas, no
entanto, “[...] a ilusão se despedaça quando você se ouve, no momento de uma gravação, por
exemplo, em que a melodia de sua voz lhe volta esquisita, de parte alguma, mais próxima da
gagueira de outrora do que do código atual.” É possível afirmar, desse modo, que os
macacos funcionam como a gravação que acusa a desarmonia, pois a escuta que fazem de sua
fala denuncia a fragmentação discursiva que a compõe. Assim, o discurso de Rísia encontra
paralelos no “mutismo poliforme” que é experienciado pelo poliglota56, isto é, diante de uma
diversidade de aparatos linguísticos, há uma ausência de integridade em todos eles que gera a
angústia e o isolamento.
Arrematando a discussão, o excerto abaixo evidencia a tônica de sua experiência
paulistana: mais forte que o desejo de integração, o convívio com os amigos e o desfrute dos
benefícios citadinos é a sua não-identificação, isto é, seu descontentamento, seu não-
pertencimento àquele espaço. Não se identificar e perceber as desigualdades que existem por
trás de toda beleza dissipa a carga benéfica que a cidade possui. Fica claro que “[...] a
megalópole paulista apresentada no discurso da narradora-protagonista metaforiza uma
identidade degradada.” (VIEIRA, 2001, p.64):
É preciso ir as festas, as mais diversas, para que não se vire bicho. [...]
Houve dias em que dei tudo para estar numa festa. Festa é bom sim, quem
disse que não? E depois, festa é coisa de gente felizarda? Eu, eu odeio. Tem
vezes que odeio gente felizarda porque não sei entender certa gente que
nunca comeu terra nem cagou lombriga. Gente que nunca passou sede nem
fome. Gente que sempre sentou a bunda em tapetes e almofadas. Gente
gorda e rosada. Gente até safada. E gente que nunca foi desgraçada.
(FELINTO, 2004, p.101).
56
Em seu livro Estrangeiros de nós mesmos (1994), a autora pensa a condição do estrangeiro que adquire o
conhecimento de distintos idiomas, mas que fica sujeito à não-adequação em nenhuma das línguas adquiridas e,
consequentemente, ao silenciamento de sua fala.
80
Por isso, após submeter-se à hibridização, com sua entrada definitiva em Tijucopapo,
Rísia se coloca em processo de tradição cultural. Na discussão de Stuart Hall (2001) já
mencionada, o autor também nos apresenta as noções de “tradução”57 e “tradição”58 cultural,
conceitos que dizem respeito às formas como o sujeito deslocado pode se apropriar da
experiência entre culturas. A tradução cultural é definida como a incorporação e usufruto dos
elementos culturais, tanto da terral natal quanto do território estrangeiro, ou seja, o sujeito
permite-se absorver padrões não originários. Já a tradição é a tentativa de recuperar “[...] sua
pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas”
(HALL, 2001, p.87), processo que é adotado por Rísia.
Para fugir da dissonância paulista e amenizar a dor de ter uma identidade estilhaçada, a
nordestina sai da casa em que morava com a família e parte em direção a Tijucopapo. A saída
expressa seu desejo de reaver pertencimento, mas, acima de tudo, expressa sua tentativa de
conquistar o direito ao grito e erguer sua voz contra tudo que a reprimiu, ato que a
personagem somente alcança a partir da narrativa que constrói enquanto caminha: “A busca
pela origem é também uma tentativa de encontro com a própria capacidade de narrar, se
comunicar e de se construir como sujeito.” (AUAD, 2019, p.1). Investigando seu segundo
deslocamento, demonstraremos como o translado para o Nordeste opera, tanto no plano da
história quanto no plano da narrativa, a conquista da voz vinculada à uma revolução interior,
promovendo a retomada gradativa de sua alteridade nordestina.
57
Stuart Hall retoma o conceito utilizado por Robins (1991) e por Homi K. Bhabha (1998).
58
Igualmente preconizado por Robins (1991).
81
59
Ao contrário do que postula Michel de Certeau, a noção de lugar em Marc Augé compreende a ocorrência de
práticas espaciais, ou seja, há divergências terminológicas entre um e outro.
82
cidades sem beira-mar, sem espelho d’água, sem lago, sem rio, sem curso de água; todas essas
cidades apresentam dificuldade de vida, de legibilidade.” (BARTHES, 2001, p.230). Assim,
embora a capital paulista possua uma notória dimensão hidrográfica, a narrativa evidencia que
a protagonista ocupa os espaços isentos de ambientes naturais, os quais ressoam a ideia da
“selva de pedra” e, por isso, Rísia vislumbra na mata a proximidade com suas raízes.
Um segundo aspecto envolve a ruptura de Rísia com a cidade grande, dessa vez, no
que tange à marcação do tempo em São Paulo. De acordo com Milton Santos (2008, p.101),
no mundo pós-moderno o tempo da metrópole e de seu funcionamento avançam também
pelas cidades do interior e das redondezas que dela dependem: “Mas o tempo que está em
todos os lugares é o tempo da metrópole, que transmite a todo o território o tempo do Estado e
o tempo das multinacionais e das grandes empresas”, assim, toda a população se encontra
envolvida pela celeridade da capital. Marc Augé (1994) igualmente aponta que os “não-
lugares” rejeitados por Rísia marcam, intermitentemente, o tempo presente da
supermodernidade, seja através do rádio, de jornais, da transmissão de telejornais ou de telas
informando o clima e a localização. Por essa razão, torna-se simbólica a passagem em que a
protagonista relata a quebra de seu relógio no momento em que sai da cidade:
Meu relógio quebrou-se assim que deixei São Paulo, e não estou em São
Paulo para marcar os dias pela cartela de pílulas. Não tomo mais pílulas. Em
São Paulo, o primeiro sinal de estar sem homem, de se estar na solidão dum
amor acabado, é parar com as pílulas. Não vou tomar pílulas em Tijucopapo.
(FELINTO, 2004, p.120).
Esse deve ser o vigésimo dia. O “vigésimo dia”, será que é bíblico? Eu
queria que fosse. Para dar a isso que me aconteceu um tom de cumprimento
dum castigo de Deus. Ou de uma incumbência de Deus que eu estivesse, a
caminho de Jerusalém indo cumprir. Eu parei vinte dias no pé dessa
montanha. Eu fiz uma fogueira e me cobri do sol e da chuva na abertura de
uma caverna. Deve ser o vigésimo dia. Me esqueci de marcar num tronco de
árvore como Robinson Crusoé. [...] Ou será esse o vigésimo-oitavo dia?
(FELINTO, 2004, p.20).
84
Como já dito, seu retorno espacial anseia por um retorno temporal ou ainda por uma
temporalidade mítica, como veremos a seguir. Nas indagações sobre o tempo transcorrido, a
nordestina relaciona sua caminhada com as peregrinações bíblicas, cuja marcação do tempo
era feita através de elementos místicos e/ou fenômenos da natureza, pois igualmente primitivo
era o trânsito que empreendia. A clássica migração do retirante nordestino – longas andanças
contra a seca e a fome – também se materializa no deslocamento de Rísia, no entanto, em um
movimento oposto, já que religar-se com suas origens implica uma retirada com destino a
região que comumente é ponto de partida.
Sua caminhada também expressa o desejo de recuperar mobilidade, isto é, em
oposição à dinâmica da capital paulista, almeja transitar por espaços geográficos isentos de
interferência humana. As interdições e sistemas de trânsito com que se deparou em São Paulo,
caracterizados pela virulência dos carros e das máquinas em detrimento dos passantes, fez
com que a personagem rejeitasse a estrada que leva a Recife e, assim, pudesse recuperar o
sentido de um percurso livre de prescrições e impedimentos: “Sigo somente paralela à estrada.
Não quero ver os carros indo pela rodovia, os carros que certamente vêm de São Paulo ou vão
para São Paulo.” (FELINTO, 2004, p.111).
A despeito das dificuldades que enfrenta, a entrada na mata é a forma genuína de se
conectar com uma paisagem contrapontística à rotina urbana, pois Rísia queria ver variados
tipos de flores, babaçus, canaviais e percorrer espaços propícios a indeterminações. Nessa
esteira, sua escolha remete a uma abertura para as possibilidades e surpresas que poderiam
surgir, ideia que Massey (2009) defende em sua proposta de espacialidade fluida. Ocorre que
na metrópole a protagonista praticava o espaço a partir das limitações e previsibilidade da rota
pedestre, conforme teoriza De Certeau (1994), mas é fora da cidade que alcança o encontro
com o acaso, na linha de pensamento da geógrafa. Cabe dizer que, em um espaço e outro,
diferentes teorias e práticas podem ser lidas na trajetória da personagem:
O trajeto sob o sol árido envolveu frequentes paradas e diversos contatos com o
desconhecido e o inesperado, ora se hospedando em mocambos para passar as noites, ora
descansando durante o dia em pedras ou à beira de montanhas. Rísia carregava consigo uma
85
mochila onde guardava um violão, alguns pertences, cartas de Jonas, papel e lápis de cera:
“Quando me canso, pego meu lápis de cera e pinto outras cores na paisagem que desenho em
papel branco.” (FELINTO, 2004, p.79). A aventura pela mata lhe ensinou o amor, pois ao ver
os pares de bichos se acariciando, copulando, beijando e abraçando, a protagonista idealizava
um sentimento animalesco, mas, acima de tudo, verdadeiro: “Folhagem, cascata e amores,
amores.” (FELINTO, 2004, p.126).
Entretanto, a indeterminação de como e por onde caminhar também abarcou perigos e
riscos. A personagem enfrentou grandes medos durante os meses de deslocamento porque
esteve exposta a diversas situações de vulnerabilidade, na maioria das vezes, ligadas ao
mundo selvagem que lhe servia como caminho. Seu percurso é marcado pelo barulho da mata,
o som de todos os bichos, sapos, grilos, “cobras na tocaia” e “matilhas de lobos famintos”,
Rísia sente medo e apreensão pela imprevisibilidade do deslocamento que traça: “Vou com
muito medo. Vou com medo e estou exposta a todos os perigos imagináveis.” (FELINTO,
2004, p. 82). O sol intermitente afetava sua andança porque intensificava o cansaço,
prejudicava sua lucidez e ocasionava momentos de febre e insolação, enquanto a chuva, por
vezes, a impedia de avançar, ia “[...] escorregando na lama, tropicando nos regos como um
barco de jornal que menino atira.” (FELINTO, 2004, p.95).
A protagonista também lidou com a incerteza da chegada e a vontade de desistir e
voltar para Jonas: “Eu estava a 250 mil milhas e já não aguentava mais. E ainda vinha
atormentada pela vontade de voltar ou de parar. E parei diversas vezes. E me sentei numa
pedra e tentei uma música no violão que carregava [...]” (FELINTO, 2004, p.145). No
entanto, os momentos de vacilação rapidamente eram substituídos pela lembrança da raiva e
do sentimento de mágoa que nutria por todos aqueles que a fizeram fugir sem despedida das
amigas e sem saudações e abraços: “Filhos-da-puta. Todos. Os que, todos, me fizeram ter que
sair.” (FELINTO, 2004, p.81).
Embora penosa e arriscada, a jornada torna-se fundamental na medida em que
promove a construção de uma travessia particular60, isto é, na recusa em trilhar caminhos já
feitos, viajar por estradas oficiais e seguir pegadas alheias, a personagem confronta o
inesperado e as ameaças internas e externas necessárias a sua transformação. Assim, lançar-se
60
Um dos contos do volume PostCard (1991) nos remete à experiência imprevisível de Rísia: “Queria tudo
como territórios, territórios que se apresentassem a ela inexplorados, para que ela mesma explorasse, construísse
neles e ali se estabelecesse. Em explorações, ela sabia, muitas vezes o mato era fechado, entrelaçado, cheio de
armadilhas e cobras, ela sabia. Mas não pedia facilidade, nem muito menos a trilha já aberta, queria a floresta, o
terreno da mata, desabitado, disposto e fértil.” (FELINTO, 1991, p.29).
86
“[...] fora dos limites do mundo conhecido” (MASSEY, 2009, p.165), configura-se como
processo integrante de sua recomposição subjetiva:
Mas nenhuma trilha me serviria também. Devo abrir a cortes minha própria
linha na mata, devo fazê-la eu só. Trilha nenhuma outra me serviria. E isso
torna tudo mais árduo. O sol derrete sobre minha cabeça, minha pele
escurece a mais e mais, chegarei negra em Tijucopapo, suando como um
negro sua. (FELINTO, 2004, P.130).
A estadia nos mocambos por onde passava contribuía para suas reflexões existenciais,
ou seja, o contato com outras comunidades e outros povos, ora endossava a continuidade do
trajeto, ora lhe fazia querer voltar. Nos trechos em que descreve alguns de seus anfitriões, ao
falar de um casal de idosos, Rísia confidencia: “Almocei por lá, fiquei por lá modorrando a
velhice dos velhos, pensei horas a fio que daria até meu corpo jovem por não ter que
continuar, por poder voltar [...]” (FELINTO, 2004, p.107); nessa passagem, observa-se a
influência do dado externo para a deflagração de seus pensamentos, uma vez que a
personagem cobiça a imobilidade e a calmaria vislumbrada na velhice do casal.
Há ainda um processo de identificação gerado por esses contatos que funciona como
gatilho para os conflitos e traumas que existem dentro de si. Quando ficou hospedada no
mocambo de povos indígenas, ao observar a composição daquela família, a nordestina
visualiza seu próprio grupo familiar da infância: “Era uma longa família de muitos meninos
pirralhos e buchudos de quilos de lombrigas na barriga.” (FELINTO, 2004, p.122). Em um
jogo de espelhamentos, a errância promove um retorno a outras temporalidades a partir das
referências encontradas pelo caminho, a nordestina viaja trajetórias que proporcionam a
associação com suas próprias vivências.
Além disso, alguns fenômenos naturais que irrompem nas tardes de caminhada
recordam momentos de sua infância, como por exemplo, a figuração de um arco-íris
semelhante àquele surgido no dia em que a mãe retornou do hospital após perder um dos
filhos recém-nascidos. A cena, memorizada na meninice, é revivida com a aparição do novo
87
[...] aquele que fala e que não pode falar, a que carrega a culpa e a que se
sabe vítima, a que condena e a que redime – mesmo sem saber pedir
desculpas –, aquela para quem não há lugar, uma vez que só existe como
cisão, como brecha que se recusa a cicatrizar. (DALCASTAGNÈ, 2005, p.
120, grifo nosso).
A presença dos mendigos e das prostitutas a coloca defronte a sua condição de cisão,
isto é, eles incorporam as marcas da desigualdade que não a permitem atravessar a ponte e
alcançar o outro lado sem “desembocar em perguntas”. De sua posição fronteiriça, de quem
“[...] não se rende à fome, nem à opulência.” (DALCASTAGNÈ, 2005, p.128), Rísia
denuncia o projeto etnocêntrico e injusto de nação: “Vou para Tijucopapo atravessando
pontes onde descubro talvez não ser possível dividir em justos e injustos, em ricos e pobres.”
(FELINTO, 2004, p.104). Cabe ressaltar que seu trânsito pela mata, ao distanciá-la dos dois
mundos em que viveu, também funciona como um entre-lugar que possibilita um acerto de
88
contas com seu passado, presente e futuro. Adotando uma perspectiva fronteiriça entre São
Paulo e Recife, aos poucos compreende as significações de cada cidade na constituição de sua
personalidade.
Uma atitude ao final da deambulação corrobora a transformação pela qual passou
durante o trajeto. Depois de ter sentido vontade de voltar e desistir de Tijucopapo em todas as
vezes que pensou em Jonas e releu suas cartas, Rísia consegue rasgá-las. Tal gesto simboliza a
superação, ou ao menos a ruptura com as pessoas que lhe fizeram sofrer: “Ontem rasguei as
cartas de Jonas e atirei os pedaços numa leva que escorria não sei para onde. Acho que agora
me deitaria com outro homem.” (FELINTO, 2004, p.149), a protagonista sabia que o ímpeto
sexual era sinônimo de que o próximo passo poderia ser dado e de que se encontrava refeita
para adentrar o lugar de suas afiliações ancestrais.
Seu primeiro contato com o Nordeste se dá com a chegada a Pernambuco: “Quando eu
dei por mim, eu já estava em terras pernambucanas. [...] E quando se chega em terras
pernambucanas vêem-se mangueiras.” (FELINTO, 2004, p.152) Próxima de Recife, a
personagem expressa o desejo de rever os lugares que marcaram sua infância, como por
exemplo, as praias de Boa viagem ou o mercado São José: “Nas proximidades de Recife vou
pegar um atalho que me leve ao centro, ao Mercado São José, vou parar num tabuleiro e beber
cana gelada.” (FELINTO, 2004, p.131).
A ânsia em reencontrar os locais com que estava habituada expressa seu desejo de
pertencimento, ou seja, de se saber novamente no mesmo espaço étnico-cultural. Entretanto,
retomando a perspectiva de Massey (2009, p.183), a imaginação do retorno para a terra natal é
problemática porque implica “[...] ‘voltar’ tanto no tempo quanto no espaço. Voltar para as
antigas coisas familiares, para o modo com que as coisas costumavam ser” e, por esse viés, os
retornados desconsideram as mudanças ocorridas durante o desterro, visto que, análogo ao
que nos informa Stuart Hall (2003, p.44), a cultura local “Não é uma ‘arqueologia’. A cultura
é uma produção” que sofre alterações e inserções constantemente. Contudo, Massey assinala
que não se trata de encontrar locais menos identitários, mas sim modificados e multifacetados.
Tal pressuposto fica confirmado no momento em que Rísia percebe estar próxima do mercado
São José:
São terras pernambucanas e Recife deve estar próxima, tão próxima que eu
ouço o burburinho do Mercado São José. Um burburinho ensurdecedor.
Ensurdecedor tão ensurdecedor que é como se tivesse aumentado doze
milhões de vezes e eu estivesse chegando em São Paulo com seus doze
milhões de habitantes. Mas o sol é de Recife porque me derrete.
(FELINTO, 2004, p.152, grifo nosso).
89
Nós cruzamos campinas, passamos por cocheiras, por moinhos, por fontes
nas pedras [...] eu vira flores vermelhas então, e ouvira o cantar de grilos e
o piar de corujas e o uivar de lobos, e urros, e silvos e cios e gosma e sangue,
rasgos, buracos, beijos e abraços, os sons que compunham a nossa música,
os sons que se juntavam numa ária que era nossa, dele homem e de eu
mulher cruzando uma noite de raríssima lua melada. (FELINTO, 2004, P.
153, grifo nosso).
Desse modo, torna-se relevante observar a instância narrativa que se constrói em meio
ao deslocamento. Rísia, embora consciente da necessidade de seu isolamento na mata,
incomoda-se com a solidão e com o silêncio de sua viagem: “Há meses não tenho um diálogo
sequer. Quando tive de escolher o meu jeito de ser, optei pelo mais conhecido de mim, esse
jeito que foge. Terei esquecido o alfabeto? Saberei falar coisa com coisa ainda? Gaguejarei?
Quase perdi a fala em São Paulo [...]” (FELINTO, 2004, p.142). Por esse viés, a narração
torna-se fundamental na medida em que permite à personagem expelir suas dores e revoltas
ao mesmo tempo em que alivia a sensação de alheamento: “E hoje não aguento mais essa falta
de diálogo. Essa falta de fala de gente.” (FELINTO, 2004, p.139).
A suposta carta que escreve durante o trajeto – endereçada à mãe e à amiga Nema –
instrumentaliza a retomada de sua voz e da possibilidade de denunciar tudo que, por muito
tempo, não pôde falar. Suas queixas atingem desde os pais até o sistema desigual do país,
promovendo uma interação da nordestina com seus interlocutores e permitindo-a confidenciar
os sentimentos diários de sua caminhada: “O fato é que aqui vou eu, mulher sozinha pela
estrada. Meu começo ficou lá para trás serras e serras.” (FELINTO, 2004, p.78).
Na confluência do relato sobre o passado em Recife, a vida em São Paulo e a andança
do presente é que notamos a fragmentação interior que ela busca reintegrar a cada passo dado
e a cada palavra expelida, a maioria delas direcionada em tom interrogativo àqueles que a
fizeram sofrer. Segundo Dalcastagnè (2005, p.119), Rísia rompe o silêncio de uma vida toda
em um processo de acerto de contas, o caráter epistolar de sua fala evidencia que a
personagem “[...] enfim, se impõe, como se dissesse: calem a boca que agora é minha vez.”
A metanarrativa produzida é essencial para pensarmos em um dos aspectos
fundamentais atrelados à sua construção: a protagonista é a primeira migrante nordestina a
contar sua história sem a mediação de um outro, conforme pontua Adriana Araújo (2006) em
trabalho já mencionado. Tendo como embasamento crítico-teórico os estudos narratológicos
de Gérard Genette (197-) e a leitura que deles fazem Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988),
é válido observar a construção e a importância da voz autodiegética no romance.
91
61
A obra francesa foi escrita por Marcel Proust entre 1908-1909 e 1922 e publicada entre 1913 e 1927 em sete
volumes. O romance igualmente possui uma narrativa autodiegética.
62
O terceiro capítulo tratará detalhadamente dos desdobramentos implicados no uso da focalização interna.
92
Nota-se, nos trechos citados, a perspectiva do eu narrante de Rísia frente a seu duplo
eu narrado: a criança aflita que esperava a mãe voltar do hospital e a menina que se deparou
com a amante do pai no açougue. No primeiro trecho, verifica-se a interpretação dos
acontecimentos da infância que é feita por Rísia adulta. A personagem relata a expectativa de
afeto com que esperou a mãe chegar do hospital naquele dia e, ao recordar a indiferença que
recebeu, o eu narrante conclui que a mãe, afinal, era péssima: “mamãe era uma merda”. Tais
noções não puderam ser apreendidas pela Rísia criança, cujo único sentimento era de
vergonha por ter chorado diante da emoção de ver a mãe chegar.
Já o segundo fragmento revela a permanência do sentimento de aversão por mulheres
loiras tal qual a amante do pai, aspecto que fica comprovado a partir do comentário feito pela
narradora sobre não suportar cabelos loiros até os dias atuais: “até hoje não aguento cabelos
loiros”. Sob esse viés, as possibilidades da voz autodiegética desvelam as fraturas existentes
63
As expressões foram balizadas por alguns críticos da narrativa; segundo Franz Karl Stanzel (1971), é a fratura
entre o eu da história e o eu da narração. No caso de Rísia, o eu narrante é a personagem adulta que caminha pela
mata e o eu narrado é a personagem menina em Recife ou adolescente em São Paulo.
93
entre a Rísia menina e a mulher adulta, aquela que narra e a que é narrada. Esse movimento
pendular que a narrativa apresenta também é esboçado por Regina Dalcastagnè (2005, p.120,
grifo nosso):
Em suma, ao nos depararmos com uma mulher nordestina que deambula por uma mata
perigosa e vocifera sua raiva e sua fragmentação existencial, fica claro que a
operacionalização da voz em primeira pessoa atravessa não somente as discussões
narratológicas, como também as discussões socioculturais e políticas, uma vez que o domínio
da narrativa está nas mãos de um sujeito para quem o “narrar-se a si mesmo” esteve, por tanto
tempo, interditado. As técnicas utilizadas são significativas porque promovem um
descentramento na categoria masculina e elitizada de narradores da ficção brasileira,
conforme discussão do capítulo I.
Rísia não somente fala, como grita: “Quisera eu poder gritar: ‘cidade desajeitada,
doida varrida, marmota! Eu quero sair de você.’” (FELINTO, 2004, p.113); não somente
escreve, como denuncia: “Vou dizer aos miseráveis trabalhadores da usina que eles são uns
desgraçados infelizes porque há festas de luzes acontecendo em São Paulo. E, que se eles
quisessem, tomariam um guaraná inteiro porque lá em São Paulo a vida acontece aos goles,
aos gotos e arrotos.” (FELINTO, 2004, p.146). Pela narração é que descobrimos a não-
passividade, o ódio e a dor – tão comuns em vozes masculinas – que caracterizam a
personagem e a colocam como contraponto a Macabéa,64 e o elemento mediador dessa voz é o
próprio espaço em que transita: no deslocar geográfico, Rísia também se desloca
internamente, subvertendo tradições e estereótipos:
A esse respeito, consultar o ensaio já mencionado “Espaços possíveis” (2012) da pesquisadora Regina
64
ausência, fazendo entrar nela uma narradora originalíssima que faz soar a
voz de uma mulher e de uma mulher que não tem vergonha de estar
indignada. (ARAÚJO, 2007, p.121).
65
Trata-se de um distrito pertencente ao munícipio de Goiana – PE que fica a pouco mais de uma hora de
distância da capital Recife, o nome do município é originalmente grafado “Tejucopapo”.
95
66
Na palestra intitulada “Pensando a Diáspora: reflexões sobre a terra no exterior”, dentre outros aspectos
ligados a questão da identidade cultural pós processo diaspórico, Hall problematiza a (im)possibilidade do povo
caribenho alcançar o tão almejado “retorno redentor” para origens cristalizadas, uma vez que a identidade
caribenha é perpassada pela escravidão, pela violência, pelo trabalho pesado, pela hibridização cultural e pela
dizimação dos povos originários ocorrida por meio de diversos mecanismos de poder e de opressão.
96
o fato de que “Não há mais como traçar uma origem, exceto ao longo de uma cadeia tortuosa
e descontínua de conexões.” (HALL, 2003, p. 38), Rísia via Tijucopapo como seu eldorado, o
local que continha a pureza de uma nordestinidade revolucionária. O excerto abaixo nos
sugere que o lugar é imune a todo e qualquer tipo de obstrução do mundo real:
Nesse dia, o dia em que eu me refizera, um dia que era assim um dia de
Tijucopapo, um dia onde o entardecer podia ser o que fosse que seria sem
traições, sem safadezas nem histórias perdidas como as daquelas cidades
como São Paulo, um dia em que, sentada no rochedo, eu escutava o choro da
madeira vir do quintal de minha casa branca na colina verde [...] (FELINTO,
2004, p.184).
com as lendárias amazonas. Para Dalcastagnè (2005, p.124) a região era “Espaço, portanto,
onde ser mulher pode adquirir outras conotações – que se estendem além da idéia de
subserviência e que acabam por restabelecer, para Rísia, a condição feminina desde sempre
negada”.
Havia mulheres assim, então, a minha herança, mulheres que não fossem
minha mãe. Eram umas mulheres de cabelos grossos como cordas arrastando
pela crina do cavalo. Eram umas mulheres que eu vira nascer, só podia ser.
Só podiam ser. Naquele meu livro, um livro de escola, um livro com uma
figura vermelha a lápis de cera, era? Uma paisagem? Uma paisagem
revolucionária de mulheres guerreiras. (FELINTO, 2004, p. 180).
Para além das mulheres guerreiras, em Tijucopapo Rísia reencontra Lampião, cujo
contato fortalece o sentimento de superação do amor por seu antigo namorado e acentua o
desejo de estar na guerra em direção à Avenida Paulista, pois a figura do cangaceiro também
se refere a um dos principais aspectos de sua busca. Ocorre que Lampião corporifica a relação
que Rísia deseja resgatar com as raízes de sua nordestinidade em detrimento da hibridização
cultural de São Paulo. Retomando o trabalho de Albuquerque (2011), a figuração de
Tijucopapo e seus atores atemporais ecoa a mesma perspectiva adotada pelos discursos
tradicionalistas no que tange a representação do espaço nordestino. A ideia de preservação da
região foi responsável não somente pelo atraso econômico e político, como também foi
propícia para a construção de um Nordeste mítico, pautado nos grandes temas de seu passado:
“Enquanto o Nordeste era uma região onde o passado pesava sobre o presente, São Paulo era
uma área radicada totalmente no presente e plantando o futuro.” (ALBUQUERQUE, 2011, p.
122).
No texto literário, as narrativas dos anos trinta trouxeram para a ficção os temas
particulares da região, como a seca, o cangaço e o coronelismo sob o intuito de manter viva as
raízes do lugar a partir de tais elementos. De igual maneira, na narrativa de Rísia, a retomada
dos grandes símbolos da tradição regional configura-se como uma forma de balizar o medo do
vazio interior e da ausência de referências fixas: “O medo de não ter espaços numa nova
ordem, de perder a memória individual e coletiva, de ver seu mundo se esvair, é que leva à
ênfase na tradição, na construção deste Nordeste.” (ALBUQUERQUE, 2011, p.90).
O cangaço, de modo especial, foi representado no regionalismo ora positiva, ora
negativamente. Quando abordado sob uma perspectiva benéfica, o cangaceiro era considerado
herói popular, remediador dos problemas dos mais pobres e vingador dos desmandos e
injustiças, características análogas à representação do cangaço que é feita na narrativa de
98
Felinto. Lampião e seu bando se vinculam a uma ânsia por justiça, isto é, a um enfrentamento
dos poderes dominantes dos quais os cangaceiros sempre foram grandes adversários. Assim
como em um tempo passado, o cangaço “[...] é tomado como símbolo da luta contra um
processo de modernização que ameaçava descaracterizar a região, ou seja, ameaçava pôr fim à
ordem tradicional da qual faziam parte.” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 144-145). Na história
de Rísia, a presença do grupo também pode ser lida como símbolo da resistência nordestina
diante de uma globalização desigual e injusta: “Quixotes em luta pela defesa de uma
sociabilidade que se perdia.” (ALBUQUERQUE, 2011, p.145).
Algumas leituras do romance sugerem que a personagem aceita o convite à guerra
para vingar a figura materna ou a perda do amor de Jonas, entretanto, a leitura que aqui se faz
considera que o embate de Rísia é, sobretudo, contra a pobreza, contra um poder que oprime e
maltrata os mais pobres e que pode ser visualizado desde a imponência de São Paulo perante
os migrantes até os sistemas injustos que promovem discrepâncias sociais e regionais: “Se
houver vingança, vai ser pelo que fizeram a mim. [...] Eu me incumbi dum mandado do
Onipotente de ir pela BR nº tal ver por que em São Paulo o mundo acontece aos goles, aos
gotos, aos arrotos.” (FELINTO, 2004, p.187).
A pernambucana sairia em defesa da causa justa ao lado do bando de Lampião e das
mulheres guerreiras, as quais queimaram e expulsaram os invasores do território em um
passado remoto e que, em Felinto, tornam-se andantes a caminho da revolução. Por esse viés,
é emblemática a presença de tais figuras históricas no espaço de Tijucopapo, uma vez que
podem ser lidas como representativas da preservação de uma pureza étnica e da luta contra
invasores, injustiças e demais formas de ataque ao povo local.
Assim, como assinala Pedro Auad (2019, p. 9): “As mulheres de Tijucopapo faz parte
dessas literaturas de não-pertencimento nacional, do outro espaço dentro do mesmo espaço,
de outro tempo dentro do tempo, que nos interpela: “você entende a minha fala?”. A fala que
Rísia quer entendida é a fala dos que estão as margens, aqueles que não integram os grandes
centros econômicos do país, aqueles que rejeitam todo aparelhamento da metrópole, mas
exigem a dignidade para viver. Nesse sentido, a narrativa nos sugere que “No contexto global,
a luta entre os interesses "locais" e o "globais" não está definitivamente concluída.” (HALL,
2003, p.60). A esse respeito, torna-se relevante retomar a discussão do sociólogo acerca das
identidades culturais em contextos de globalização.
Segundo Hall (2003, p.60), “Juntamente com as tendências homogeneizantes da
globalização, existe a ‘proliferação subalterna da diferença’”, essa proliferação diz respeito
aos movimentos de resistência à homogeneização cultural advinda com os intercâmbios
99
Nós vamos em busca da justiça das luzes, e caso haja destruição, é porque
nós viemos de regiões assim, agrestes, de asperezas de alma, de docilidade
nenhuma, de nenhum beijo e nenhum abraço, de tiquinhos de comida na cuia
e de lombrigas na barriga, e de sede, mamãe, de insolação e forca no
caminho para a escola [...] (FELINTO, 2004, p.186).
Rísia, com sua subjetividade múltipla, não quer defender apenas a identidade
"local" contra a identidade "global" mas reivindicar o lugar deste "outro"
plural e heterogêneo, gênese da nossa própria constituição nacional,
absurdamente enfraquecida frente à questão global que se instaurou em
nossos dias.
A protagonista sai em vingança aos irmãos e à vida sofrida e pobre que tiveram na
infância e que, igualmente, experimentaram em São Paulo: “Eu odiava acordar na hora que os
meus irmãos acordavam porque eles eram uns vândalos. [...] E me dava uma pena vê-los
assim a preparar marmitas. Me dava uma revolta que eu tinha vontade de partir para vinga-
los” (FELINTO, 2004, p.185, grifo nosso). Também sairia para tomar as luzes da Avenida
Paulista, pois sabia que apenas uma delas teria iluminado o fim da tarde de seu doloroso
passado:
naquele dia em que as luzes não se acenderam em Recife, 1969, fim de tarde
[...]” (FELINTO, 2004, p. 186).
A causa justa pela qual empreenderá sua terceira diáspora, também pretende “[...]
fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão, mas os culpados por todo o
desamor que eu sofri e por toda a pobreza que eu vivi.” (FELINTO, 2004, p.187), o guaraná
derrubado faz referência ao regime militar instaurado no país em 1964, mesmo ano em que
morreu o irmão da personagem: “Um guaraná inteiro. Um pressentimento de guerra”
FELINTO, 2004, p. 27). Embora sejam pontuais as menções ao sistema político da época, o
excerto acima pertence ao relato do episódio em que Rísia foi impedida de terminar o desfrute
de um guaraná no centro da cidade recifense. Enquanto a amiga Ruth a puxava pela mão em
movimento de fuga, haviam “[...] lojas fechando, soldado por todo lado, cachorros, sirenas,
bombas.” (FELINTO, 2004, p.27).
O cenário descrito caracteriza as operações autoritárias que apreendiam pessoas,
destruíam estabelecimentos e amedrontavam a população. Por essa e outras razões, Rísia
tornar-se-á justiceira com Lampião e as amazonas, pois ao lado dos dois grupos simbólicos da
luta popular construiria a verdadeira revolução, aquela que não deixaria às margens os
viventes do Nordeste e que transcenderia a revolução cívica e opressora do regime ditatorial,
cujos direitos dos mais pobres eram minados ainda mais.
A esse respeito, segundo Silviano Santiago (1989), a literatura do pós-64 rejeita a
tematização do projeto de desenvolvimento e industrialização cantado pelo modernismo, o
qual acontecia às custas de truculência e autoritarismo no âmbito político. Desse modo, os
escritores, assim como Felinto, passam a eliminar o discurso progressista e condenar todo e
qualquer tipo de tirania em suas narrativas: “O local, o regional são reafirmados, e sua ficção
desconstrói o universal através da heterogeneidade reivindicada como contraponto a esta
cultura homogênica e totalizante que se pressupõe a nossa sociedade moderna. (VIEIRA,
2001, p.27).
Rísia, afinal, encontra cada culpado pelo ódio que sente e exime de culpa o pai, a mãe
e os irmãos, colocando-se em posição de guerra para vingar tantas dores: “E Tijucopapo é o
lugar de um motim” (FELINTO, 2004, p.183). Sua chegada à região responde às indagações
de toda uma vida e aquieta os sentimentos de rancor. A redenção tão almejada carecia de um
lugar onírico para se realizar, um espaço em que pudesse renegociar sua identidade e que se
localizasse fora do tempo e da realidade, entre o lendário e o empírico, entre o sonho e o real.
É neste mundo em suspenso que a personagem pôde sentir-se, novamente, pertencente. É,
101
pois, o lugar possível para abarcar sua hibridização cultural, sua fragmentação interior e seu
desejo de recompor uma nordestinidade. O final da narrativa prenuncia a condição de
nomadismo e luta que delineará seus próximos passos, pois o terceiro deslocamento em
direção à guerra mostra que a personagem tornar-se-á uma eterna migrante, uma vez que só
encontra pertencimento nos entre-lugares de suas deambulações.
Ao restaurar sua subjetividade nordestina, a saída/retorno para a Avenida Paulista
acontecerá sob outras motivações, pois parte para reivindicar um lugar que não obrigue seus
autóctones a migrarem, um lugar para as alteridades marginalizadas, estigmatizadas e
excluídas, assim como ela. Rísia atesta também, nesse ínterim, a possibilidade feminina de ser
errante, justiceira, guerreira e insurreta: “O romance de Marilene Felinto bota por terra,
portanto, o maniqueísmo baseado na dominação masculina, que faz da violência um triste
privilégio dos homens contra a docilidade e passividade femininas.” (XAVIER, 2007, p.125),
erguendo, a um só tempo, a voz do negro, do migrante nordestino, do pobre e da mulher
versus um mundo todo feito contra eles.
Ao contrário de Macabéa, seu destino não é a morte, sua hora da estrela é a
possibilidade de redenção da dor, o encontro do grande amor e a iminência de um filho, ainda
que tudo ocorra em mundos paralelos: “O romance é uma trajetória circular na qual o
caminho de volta é todo consertado. Há de novo o amor e a companhia das mulheres fortes e
guerreiras. É o final de filme de cinema que Rísia queria para sua vida, sua hora de estrela.
(ARAÚJO, 2006, p.158). A carta que escreve durante o percurso é plenamente consumada
com sua chegada à região67, tornando-se o atestado de seu final feliz.
67
“Lampião escreveria a carta que eu ditasse.” (p.184).
102
A focalização interna68 nos permite dizer que a personagem reivindica com sua
existência uma outra perspectiva para histórias semelhantes àquela contada por Rodrigo S.M.
Diante de uma dicção verborrágica, o leitor descobre o ódio aos morangos e a tantos outros
símbolos de um universo distinto do seu, além de se deparar com os sentimentos de dor e
revolta que tencionam seu caminho. Deisi é mais uma entre tantas Macabéas.
A protagonista do segundo romance da autora migrou ainda menina para uma grande
cidade no intuito de se afastar da pobreza e da violência características de sua terra natal. Ao
viver em um novo espaço e estabelecer relações com diferentes pessoas, Deisi se vê perdida e
confusa diante das escolhas que fez ao longo do tempo. Soma-se à fragilidade de mulher
migrante e aos traumas adquiridos na infância um episódio de grande abalo emocional que
desencadeia a decisão de retornar para Grongonzo e refazer a vida no lugar onde nasceu. Em
linhas gerais, a narrativa fala da saída e do retorno da personagem para seu ponto de origem,
por isso o romance torna-se campo fértil para a investigação das perdas, dos ganhos e dos
significados presentes nos deslocamentos geográficos realizados.
Conforme mencionado, o presente da narração não se situa nos momentos de
migração, mas sim no ponto em que a nordestina já se encontra restabelecida no Nordeste
anos após o regresso. Desse modo, nos deparamos com menções ao marido, ao filho e à rotina
monótona que levava no (novo) antigo lugar. Nesse ínterim, Deisi recebe uma carta que
anuncia a visita dos amigos metropolitanos a Grongonzo e é a iminência do reencontro com
seu passado urbano que deflagra a virulência de pensamentos, devaneios, lembranças e
traumas, os quais apresentam ao leitor as memórias de cada deslocamento. A partir dessas
memórias é que podemos problematizar a relação que Deisi estabeleceu com os lugares por
onde passou e verificar de que modo tais vivências agenciaram seu esfacelamento subjetivo.
Três espaços são de grande relevância: a) Grongonzo, seu lugar de origem localizado em
Pernambuco; b) a grande cidade onde viveu a adolescência e parte da juventude; c) Brasília,
capital visitada pela protagonista antes de seu retorno definitivo ao Nordeste.
Em um primeiro momento, pontuaremos algumas características importantes da
pequena Grongonzo onde nasceu a personagem. Nas buscas realizadas a respeito da existência
da região ficcionalizada, são poucos os dados sobre sua exata localização e extensão
territorial. Trata-se de um morro/serra pouco conhecido que também é chamado de serrote de
68
De acordo com Genette (197-), trata-se do tipo de focalização que tem alguma personagem como filtro
ideológico dos fatos narrados. Embora a protagonista não seja a narradora do romance, a focalização é
predominantemente interna com intromissões de seu próprio discurso na narrativa. O último tópico do capítulo
discutirá a voz narrativa.
104
Grongonzo e que fica localizado no município de São Bento do Una, em Pernambuco. O mito
sobre o lago que dá título ao romance é realmente popular entre os moradores da região. A
autora enfatiza que o lago tem o poder de transformar mulheres em pedra enquanto a
descrição da lenda no Dicionário do folclore brasileiro (1988) detalha:
Ao ser questionada sobre a atribuição de nomes aos espaços fictícios, Marilene Felinto
afirma que na época de escrita do romance, “[...] gostava de nomes esquisitos, sonoros e
diferentes, ligados a Pernambuco/Recife, minha terra da infância. O nome tem a ver com a
serra, sim.” (FELINTO, s/p, 2018)69. Todavia, embora tecendo semelhanças geográficas e
históricas com a serra de São Bento do Una, a região de Grongonzo, em Felinto, parece
expandir-se e tomar formas representativas de todos os pequenos municípios pernambucanos,
uma vez que as descrições espaciais retratam as precariedades e condutas comuns aos
moradores de diversas regiões provincianas do Nordeste.
De acordo com a narrativa, Grongonzo era cidade de tenentes, onde havia um porto da
Marinha com treinamento de soldados. A região também contava a presença da Aeronáutica
que “[...] subia e descia em aviões escuros. Não faltavam fardas pelas ruas.” (FELINTO,
1992, p.44). Essas informações mostram a influência do momento histórico/político sobre as
memórias da protagonista, trata-se do período inicial do regime militar que perdurou até o seu
retorno para Grongonzo nos anos 1980. O cenário de disciplina e militarismo da região
explicam o ofício do pai: soldado da fuzilaria naval. Assim, pelo fato de o pai servir às forças
armadas brasileiras, Deisi pôde estudar no Patronato Maria Teresa, colégio da alta classe,
onde convivia com os filhos dos tenentes, embora fosse apenas “[...] filha de marrons.”
(FELINTO, 1992, p. 49)
69
Entrevista concedida via e-mail à pesquisadora no ano de 2018.
105
A região – assim como verificado no romance de 1982 – também possui uma forte
cultura do cultivo da cana-de-açúcar: “Do caldo da cana doce adelgaçando os morros de
Grongonzo distante à cana de corte, aguardente. (FELINTO, 1992, p.77). Além disso, pelas
evocações toponímicas de cidades pertencentes ao litoral de Pernambuco – Paulista,
Timbaúba, Igaraçu – infere-se que a região onde Deisi nasceu localiza-se nos arredores da
Zona da Mata, local também representativo da história de Rísia.70 Deisi reside em um espaço
de grandes limitações, com costumes rurais e rotina bastante simples: “A rua era de chão, de
areia com seixos e meninos [...] E céu era o que se tinha ali – a maior presença, tanto de dia
no sol enfadonho quanto de noite nas luas todas.” (FELINTO, 1992, p.44).
Além disso, em Grongonzo “Nada era longe na vida da gente dali de então. [...]
Quando fosse de noite, a gente toda na calçada, mal se percebia a lua no céu.” (FELINTO,
1992, p.43). As casas eram baixas, coloridas e observavam, impotentes, a estrada que ali
passava: “[...] uma língua preta passando, indo, embocando até lamber o fim sem-vergonha do
mundo” (FELINTO, 1992, p.47), fim esse que não era alcançado com facilidade pelos
moradores locais, uma vez que, em diversos momentos, a narrativa enfatiza a sensação de
isolamento e imobilidade que o lugar despertava: “Mais larga era a campina berlinda. A
campina solitária. Noção longa, de um mundo que existisse para além da gente e dali, só cabia
nas muitas quatro rodas do FNM azul de seu Malaquias.” (FELINTO, 1992, p.44). Nota-se
que somente por meio de um único automóvel é que seria possível alcançar o centro da cidade
e as localidades mais distantes.
No espaço de Grongonzo, apenas “Havia campinas berlindas. Havia ciganos, vindo
sempre em outubros. Havia nada. O tempo era grande. As meninas eram pequenas.”
(FELINTO, 1992, p.43), comprovando a simplicidade e a pacatez do lugar. Deisi viveu ao
lado da avó nesse espaço agreste, pois era filha de um pai ausente e uma mãe falecida: “Em
Grongonzo as mães ou morriam cedo ou largavam a casa, ganhavam o mundo.” (FELINTO,
1992, p.59). Nesse sentido, grande parte das práticas culturais adquiridas provém da vivência
nas ruas, da relação com vizinhos, das tardes de lazer à beira do lago e da observação das
atitudes da avó: “Quantas vezes não tinha visto a avó ajoelhar-se no terreiro e degolar o
pescoço de frangos, galinhas, de perus?” (FELINTO, 1992, p.18).
A nordestina se recorda “Dos tempos em que ainda brincava com o bodoque de talos
de goiabeira e tiras de pneu [...]” (FELINTO, 1992, p.47) ou com “príncipes e princesas de
sabugo de milho” (FELINTO, 1992, p.128). Por vezes, via as mulheres mandingueiras ao pé
70
Tejucopapo é o local para onde Rísia se dirige durante a narrativa de AMDT (2004), é um distrito localizado
no município de Goiana, o qual pertence à Zona da Mata de Pernambuco.
106
da Cruz de Cabugá – ponto de referência que liga Recife e Olinda – “[...] fazendo misérias
com a vida alheia” (FELINTO, 1992, p.55). Sob esse viés, é possível dizer que há uma
significativa representação das tradições e costumes locais na narrativa. A personagem
menciona constantemente as frutas e comidas regionais tão distintas da alimentação urbana –
milho, feijão com farinha, fiapos de coentro, frangos, galinhas, perus e cocos – e evoca o
vocabulário nordestino em diversas passagens: há cantigas de aruá, pitaguaris, tarecos, seixos
lisos e demais expressões.
No entanto, o caráter hostil e violento de Grongonzo configura-se como um dos
aspectos mais marcantes na memória da protagonista, o qual também desencadeia grande
parte de seus traumas. Desde as primeiras páginas, o narrador nos informa que na região “dos
tempos do onça” havia atos de violência constantes e brutais: “[...] sangue espirrando,
assassinatos sinistros no meio da rua, na Avenida Militar do porto, pai copulando mãe a pulso
no quarto ao lado.” (FELINTO, 1992, p.39). Para além da violência escancarada, Deisi
testemunhou – e até mesmo cometeu – os mais diversos tipos de violência e abuso contra
colegas de infância. A passagem da narrativa que menciona Lila, a garota que era subjugada e
abusada moral e fisicamente pelas crianças do Colégio, é um claro exemplo da cultura de
crueldade e malvadeza que contaminava até os mais novos:
Por uns dias Deisi amargaria pensativa que matar Lila tinha um lado ruim;
que ficava claro que era ruim ser ruim. Mas como evitar? Como evitar se era
amargo mas era doce? Quem não gostava? Naquelas horas de Lila e
berlinda, Deisi não terminava menina melhor? Terminava. Então o resto era
conversa. (FELINTO, 1992, p.61-62).
Os atos violentos que presenciou desde muito cedo fizeram com que introjetasse a
ideia de banalização da morte e que entendesse as relações interpessoais como sinônimas de
frieza e crueldade, “Matava-se uma pessoa na rua por qualquer coisa.” (FELINTO, 1992, p.
45). Sua ingenuidade foi destruída, gradativamente, pela violência social do lugar, e, para
além disso, Deisi também fora vítima de violência psicológica, pois cresceu ouvindo da avó
frases de menosprezo, temor e subjugação: “Tão cheia de ruindade, essa menina, dizia a avó,
da ponta do cabelo ruim até o dedo do pé sujo. Ia morrer na unha, essa menina, comendo o
pão, dizia a avó.” (FELINTO, 1992, p. 31). Tais noções em muito influenciaram os
relacionamentos que estabeleceu na vida adulta e, por isso, devem ser levados em conta, uma
vez que também incidiram no modo como a protagonista agiu dentro da cidade grande.
O principal exemplo dessa influência se revela quando o narrador menciona a morte
das amigas Airine e Corina. Na Avenida militar do porto de Grongonzo, Airine – suposta filha
107
da avó – assassina a sangue frio a amiga Corina cometendo suicídio logo após. O motivo seria
o envolvimento da amiga com o homem que Airine amava. Após a notícia ser trazida por um
soldado, há uma descrição das reações de Deisi diante do ocorrido. O excerto abaixo ilustra a
virulência de seus pensamentos:
Deisi continuava sem palavras; engolira uma pedra de trovão, que sentia o
peso doer no estômago. Era? Onde era? Os pensamentos estrondavam. Era
dor no pensamento. No pensamento, que tecia considerações assim: mais
cruel que a morte só havia uma coisa – uma pessoa viva. Que, a partir
daquele dia, não era o crime em si o que interessava. Era sobretudo o
assassino; ou melhor, era antes a coisa que, na vítima, fortalecera tanto a
coragem do outro. Pela vítima mesmo, pois começava a desenvolver ali um
quê de insensibilidade. Mais cruel que a própria morte era somente uma
pessoa viva. As mulheres eram a mais mentirosa das generosidades.
(FELINTO, 1992, p. 65).
O último dia no Patronato Maria Teresa foi de aula de desenho. Mas Deisi
definhava na expectativa da partida próxima para o pleno desconhecido. De
resto, ficava o passado remoto, rançoso. Enchia-se de defesas: seria calada e
quieta, não seria baú de seu ninguém, reservava-se um destino de silêncio,
apenas. (FELINTO, 1992, p.70).
71
Trata-se das passagens em que o narrador menciona elementos de um episódio que surgirá posteriormente na
narrativa, espécie de antecipação. Para um melhor entendimento, consultar Genette (197-, p. 65).
72
Nos estudos de Duração narrativa, Genette (197-, p.108) define como elipse implícita a técnica de supressão
de momentos no texto narrativo que não fica evidente discursivamente, isto é, “o leitor pode inferir apenas de
alguma lacuna cronológica ou de soluções de continuidade narrativa.”
73
Em termos genettianos, trata-se da narração em poucas linhas de determinado tempo transcorrido: dias, meses,
anos sem nenhum tipo de detalhamento, ou seja, é uma redução do tempo diegético que também integra as
técnicas narrativas de Duração. A esse respeito, ver Genette, (197-, p.95).
109
outro passado mais recente, no lugar aquele de Estefânia e de Lena.” (FELINTO, 1992,
p.109). Com essas primeiras aparições da cidade grande na narrativa, encaminhamo-nos para
a investigação do modo como as diferenças geográficas, políticas e sociais interferiram na
experiência da protagonista dentro do contexto urbano: “A cana mesmo tinha ficado para trás,
em desenho doce, verde-claro, adelgaçando os morros de Grongonzo tão distante.”
(FELINTO, 1992, p.77).
Quando Doreen Massey (2009) propõe uma nova conceituação do espaço, a autora
também leva em conta o que implica essa nova abordagem dentro de engrenagens modernas e
cosmopolitas. Significa dizer que repensar espaços marcados pelos avanços da globalização
abarca dilemas que se referem, principalmente, a exclusões de determinados grupos sociais,
pois “[...] recontar a história da modernidade através da espacialidade/globalização expõe as
precondições da modernidade e seus efeitos de violência, racismo e opressão.” (MASSEY,
2009, p.101). Deslocando tal discussão para a narrativa de Felinto, nota-se que as passagens
sobre a vida de Deisi na região metropolitana revelam os diversos contrastes percebidos entre
Grongonzo e o novo espaço: distintos costumes, comportamentos, modus operandi e
alimentação. Nesse sentido, a metrópole na narrativa ganha contornos semelhantes àquilo que
a geógrafa nos informa sobre as cidades mundiais, as quais
Conforme mencionado, embora não haja uma especificação do local para onde
migra74, as descrições nos apontam para uma localidade no eixo Rio-São Paulo, cidades que
nos anos 1980 – período no qual Marilene escreve o romance – passavam por intensas
transformações sociais, culturais, econômicas e tecnológicas. Os principais avanços
ocorreram em termos de urbanização e de concentração crescente de migrantes, fator
diretamente ligado ao crescimento populacional. Nesse período, o país contava com dez
cidades milionárias, dentre as quais São Paulo e Rio de Janeiro eram pioneiras, é o que nos
informa Milton Santos (2008 p.70): “Há no Sudeste, significativa mecanização do espaço,
desde a segunda metade do século passado, ao serviço da expansão econômica, o que desde
então contribui para uma divisão do trabalho mais acentuada e gera uma tendência à
urbanização”.
Território estranho, de mulheres de olhos verdes, homens civis, “afinidades fuleiras” e
maciez excessiva de morangos. Deisi encontrava-se em meio ao tráfego de carros, cercada por
longas avenidas e pelo barulho do trânsito caótico, mecanismos tão distintos àqueles de
Grongonzo, onde apenas o caminhão azul de Seu Malaquias existia como símbolo do fluxo de
automóveis: “Quando era de noite, no lugar de onde vinham amanhã Estefânia e Lena, os
caminhões passavam mas era dentro do quarto de Deisi, monstros cuspindo labaredas de
fumaça.” (FELINTO, 1992, p.27). As metáforas utilizadas nas descrições denotam a
perspectiva frustrada com que a personagem enxergava o novo espaço. Os caminhões que
passavam dentro do quarto aludem ao barulho contínuo das máquinas e dos automóveis
presentes nas cidades que não dormem. De igual maneira, a cidade de São Paulo foi retratada
por Mário de Andrade na rapsódia Macunaíma (1987), que, para além das clássicas
interpretações, também pode ser lida a partir da condição migrante do protagonista, o qual
“[...] acordava com os berros da bicharia lá embaixo nas ruas, disparando entre as malocas
temíveis. (ANDRADE, 1987, p.31).
A despeito dos anos morando na cidade e da relativa adaptação ao seu funcionamento
– um dos excertos sugere a posse de um automóvel pela protagonista –, Deisi ainda se
espantava com a celeridade e a liquidez75 da vida urbana: “Uma vez escapara por um triz de
uma mulher mais bonita do que devia, no tráfego. Mais bonita do que precisava. [...] A
74
A não especificação do local produz significados acerca de seu não-reconhecimento, esse aspecto será
discutido no item 3.
75
O termo cunhado pelo filósofo Zygmunt Bauman (2001) contempla o estilo de vida vislumbrado pela
personagem na metrópole. Trata-se de um tipo de comportamento alimentado pelos avanços da modernidade e
que torna as relações fugazes, inconstantes e superficiais.
111
mulher trocou de pista sem olhar, numa mesquinharia da pior espécie. O pneu de Deisi
relinchou feito bicho.” (FELINTO, 1992, p.77).
No trecho transcrito, é possível perceber a posição antagônica da personagem diante
do sujeito com quem quase colide o carro. Ao contrário da mulher mesquinha e “mais bonita
do que devia”, Deisi era bicho e seu pneu, embora aportado em motores, relinchava como um
animal, em uma alusão a sua própria sensação de existir como um bicho que estranha e que
não se adequa aos comportamentos modernos. Por isso, é comum nos depararmos com
referências negativas a esse passado urbano: “Passado vagabundo, de garatujos urbanos,
longo feito uma rodovia, e carregado da farsa doce dos morangos.” (FELINTO, 1992, p.27,
grifo nosso). Neste outro fragmento, os adjetivos pejorativos e as expressões escatológicas
reforçam a intenção de retratar a condição de vida na cidade sob um viés fortemente
depreciativo.
A cama era um ônibus parado, estacionado ali por tanto tempo que a pessoa
ia apodrecendo, marginal, fuligem, anos e anos de seboseira, crosta de tanto
mijo, de tantos cheiros oleosos, de nódoas arroxicadas de fezes, vermelhas,
acre-doces de cat chup e outras marcas coloridas. (FELINTO, 1992, p. 27-
28).
passou a ser clandestino, no meio das ruas e das “avenidas armadas” contra ela, esta última
expressão reporta-nos à condição de vida da personagem Macabéa no Rio de Janeiro: uma
“cidade toda feita contra ela.” (LISPECTOR, 1998, p.15). Em outra passagem, o narrador
constrói uma imagem mais detalhada dos bares frequentados pela personagem com os amigos,
locais noturnos onde fumar cigarros populares conferia algum status social aos usuários.
Deisi fumava e bebia, mesmo sem querer, em bares com nomes estrangeiros,
ao som de pandeiros e atabaques. Tinha um namorado rico e amigas dali,
também ricas. Por ela só fumaria cachimbo da paz, mas ali “só tinha
exemplos de cigarro, exemplares de marcas viciadas da propaganda, da
publicidade vergonhosamente popular.” (FELINTO, 1992, p.83, grifo
nosso).
O trecho em questão, para além de expressar o olhar da personagem frente aos bares e
às pessoas com quem convivia, nos aponta para outro importante traço da narrativa: os
elementos citadinos. A construção da cidade grande no segundo romance de Felinto não se dá
a partir de consistentes descrições espaciais, mas por meio de referências a objetos, alimentos
e produtos consumidos pelos cidadãos metropolitanos. Além disso, tais objetos tornam-se
simbólicos na medida em que denotam a massificação dos gostos e comportamentos
agenciada pelo processo de globalização cada vez mais crescente nas cidades milionárias do
país. A própria construção narrativa – composta por quebras discursivas, devaneios,
repetições e embaralhamento temporal – espelha esse mundo efêmero no qual Deisi estava
inserida.
Assim, os flashes de sua memória desnudam elementos simbólicos da cidade e
substituem o relato pormenorizado e realista do espaço. Essa nuance é perceptível quando
observamos a menção aos itens da alimentação, os quais aparecem na narrativa desde a
referência aos morangos adocicados. Em A hora da estrela, o consumo de refrigerante Coca-
Cola pela alagoana não é mencionado de forma aleatória, tampouco em OLEDG (1992) as
referências aos cheiros, sabores, marcas de cigarros e nomes de bares estrangeiros ocorrem
em vão. Marta Francisco de Oliveira (2014) ao abordar a questão da cultura no romance de
Clarice Lispector toma como base o trabalho de Renato Ortiz (2000), autor que discute os
significados presentes no consumo de alimentos industrializados.
O sociólogo, que lê a cultura do consumo como eixo do processo de alterações
culturais provocadas pela globalização, acredita que: “A comida representa simbolicamente os
modos dominantes de uma sociedade” (ORTIZ, 2000, p.77). De acordo com o autor, a
padronização dos alimentos que ocorre com os intercâmbios multinacionais marca a condição
113
de não fixidez e celeridade da vida moderna. Tais alimentos, quando observados sob a
perspectiva de sujeitos oriundos de regiões marginais, conotam uma perda de referências e de
tradições alimentares, acentuando, assim, o sentimento de fragmentação identitária:
“Contrariamente à refeição tradicional, que se fazia em horários fixos, come-se agora em
horas variadas. Ocorre ainda uma dessincronização entre tempo e o lugar no qual os alimentos
são ingeridos. [...] Há uma deslocalização do ato de comer.” (ORTIZ, 2000, p.85).
Essa nova configuração social experienciada por Deisi também é responsável por seu
esfacelamento subjetivo. O fragmento abaixo demonstra a hesitação da protagonista ao se
lembrar da vivência urbana e dos elementos que ela encerra, de modo especial, ao recordar-se
dos sabores do catchup – simbólico da presença dos alimentos fast-food: “Cat chup, adorado
pelas criancinhas do lugar das diferenças e dos amigos que recheavam sanduíches nas bocas
deliciosas.” (FELINTO, 1992, p.17).
76
Aspecto que será abordado como uma das marcas de seu não-pertencimento.
114
4.3 O não-pertencimento
como dizer a minha irmã que página de revista é uma grande mentira.
(FELINTO, 1992, p. 131-132, grifo nosso).
No fragmento acima, é possível apreender que Deisi cursou Direito e tornou-se uma
advogada, e, embora a profissão possa ser associada ao empenho por um mundo justo, a
personagem mostra-se bastante frustrada com o ofício que exerce, em uma espécie de choque
de realidade. A despeito de tais impressões, em um contexto que, na maioria das vezes,
oprime e inviabiliza a ascensão de sujeitos negros, pobres e migrantes, torna-se interessante
observar o relativo progresso alcançado pela protagonista dentro da engrenagem capitalista.
Cabe investigar de que modo suas raízes nordestinas e sua condição humilde
atravessam a adaptação a esse outro espaço e estilo de vida, bem como vale refletir sobre as
consequências trazidas pelos insucessos afetivos e amorosos vividos na metrópole, fatores que
potencializam seu não-reconhecimento. Para além disso, faz-se necessário pontuar os demais
marcadores de diferença que estratificam e segregam os sujeitos em processos migratórios,
como a questão racial e de gênero, cuja aparição na narrativa de OLEDG (1992) se dá de
forma sutil, mas não trivial. O trabalho já mencionado da pesquisadora Marta de Oliveira
116
78
Renato Ortiz (2000) define os processos advindos com a modernidade em três: globalização, mundialização e
internacionalização. Para ele, a mundialização refere-se às alterações, não somente de cunho econômico, mas
também de cunho cultural e comportamental que regem o projeto multinacional.
117
branco demais para ela79 – e os amigos urbanos, entre eles estão Estefânia e Lena, as duas
amigas com quem Deisi morou e que protagonizaram suas maiores decepções.
Como vimos, a adolescência da personagem foi marcada por diversos momentos de
lazer e socialização entre amigos, entretanto, a interação em tais eventos acontecia de modo
peculiar. Embora se esforçasse para simular familiaridade nos bares frequentados pela elite,
por vezes, encontrava-se em um estado de letargia: “Deisi pelejava pra ressuscitar. Mas
quando via, lá estava boquiaberta, de boca aberta como um bebê que estranha. Amuava-se.
Olhava as amigas.” (FELINTO, 1992, p. 81). A reação sobrevinha sempre que estava,
efetivamente, imersa em um universo urbano e fortemente marcado pelas falsas aparências e
afinidades. O fragmento abaixo torna-se emblemático porque apresenta o discurso da
personagem a esse respeito, a frase emitida evidencia a estranheza que sentia e evoca até
mesmo a figura paterna, considerada a grande responsável pelos amargores de seu
deslocamento:
Em algumas ocasiões, a letargia dava lugar à sensação de bolo no estômago 80, espécie
de repulsa que surgia sempre que via-se agindo contrariamente ao que sentia, como, por
exemplo, quando fumava cigarros de marcas populares desejando apenas fumar “cachimbos
da paz”: “Deisi acendia cigarro com fumaça nos olhos. O bar se perdia em nebulosas. Todos
fumavam. [...] Mas Deisi tinha um bolo no estômago.” (FELINTO, 1992, p.83); o bolo no
estômago igualmente sobrevinha quando se via diante das sobremesas com morangos que
eram servidas. Assim, retomando a proposição de Massey (2009) acerca da inevitabilidade de
contaminação/afetação mediante as relações e vivências dentro de um espaço, é possível
afirmar que Deisi age como uma típica cidadã metropolitana: tem uma vida corrida, dirige,
bebe, come e fuma tal qual os autóctones, no entanto, a letargia e o bolo no estômago
denunciam sua condição arbitrária dentro desse microcosmo.
79
Deisi assim dirige-se ao ex-namorado ao imaginar um suposto reencontro com ele.
80
Assim como Deisi, Rísia – e também Macabéa – apresenta problemas ligados a certa sensibilidade estomacal,
a qual é desencadeada por momentos em que sentem repulsa, aversão ou desencaixe diante de determinados
alimentos ou determinada situação.
118
Outro episódio que deflagra sua repulsa é a noite da pizza, evento organizado na casa
dos amigos de Demian. Enquanto os demais se “[...] recheavam com pedaços de massas nas
bocas deliciosas.” (FELINTO, 1992, p.126), a nordestina sentia “[...] a pizza entalada num
canal qualquer antes do fígado, até que engoliu a pulso, olhando infeliz o rosto das crianças.”
(FELINTO, 1992, p.126). Na mesma ocasião, mais uma evidência de seu estranhamento
aparece quando o narrador revela seu sentimento de aversão diante das configurações
familiares ali presentes:
Perder noções sérias, como a valoração dos laços familiares, é apenas mais uma
dimensão que deturpou-se com sua experiência metropolitana, a ausência de elos identitários
causou esse tipo de depreciação por parte de Deisi. Entretanto, ao voltar para sua terra natal e
reencontrar a família, a perspectiva da migrante é outra, pois sente-se relativamente amparada
e regenerada pelos seus: “Quando Airine morrera e separaram-se, os irmãos e ela, Deisi
pensou que não sobreviveriam. Mas sobreviveram. E eis que estava, a família, ressuscitada
ali. Família sobrevivia, hoje mangas verdes, amanhã maduras.” (FELINTO, 1992, p.125). Ao
refletir sobre a condição migrante de Macabéa, Marta de Oliveira (2014, p.50, grifo nosso)
contempla a situação paradoxal – e inevitável – também vivida pela personagem felintiana:
“Assim, Macabéa representa a figura de um sujeito isolado, segregado, marginalizado, por um
sistema social que o conduz a um exílio, excluído, mesmo que geograficamente se encontre
dentro de sua cultura, de seu país”.
Outro desdobramento de sua não adequação refere-se ao modo como passou a ser lida
em termos de personalidade. Para Demian, seu jeito de agir corretamente – principalmente no
trânsito – era um aspecto que a tornava ainda mais deslocada, por isso o companheiro
vociferava: “[...] É pra você aprender...pra você saber que as coisas vão se fazendo é fora da
lei mesmo. As pessoas às vezes mudam de pista e não olham. Você vê tudo moralmente e
119
acaba assim, horrorizada.” (FELINTO, 1992, p. 78); o namorado chega até mesmo a
diagnosticá-la esquizofrênica:
Dissessem o que dissessem. Que era limitada. Como diziam no lugar aquele,
de Estefânia e de Lena. Limitada, uma parede, ou quatro. Um bode
empacado, diziam. Radical. E diziam. Unilateral. (...) – Você é
esquizofrênica, Deisi, Demian respondia irritado, você devia procurar um
psicanalista, baby. (FELINTO, 1992, p.95).
[...] um sujeito que vivia pra isso: pra analisar a vida dos outros ao preço dos
olhos da cara e como se abençoado fosse. A barbárie sofisticada. Diante
disso, havia que passar em silêncio e só, verdadeiro cágado guardando a
ferro e fogo histórias de eras, enfiando a cabeça no casco, para não ter
conversas com seu ninguém.” (FELINTO, 1992, p.42).
escorrido que talvez seja o mesmo cabelo das minhas amigas, Estefânia e Lena.”
(FELINTO, 1992, p.111, grifo nosso). Deisi, nordestina e “filha de marrons”, vinha de uma
outra realidade e sabia que jamais seria como elas, isto é, sabia de sua posição esteticamente
distante do padrão feminino agenciado pelo lugar. Essa constatação corrobora o argumento da
antropóloga Lilia Schwarcz (2019, p.176): “Marcadores [de diferença] funcionam, pois, ainda
mais traiçoeiramente, quando interseccionados”.
O lugar das falsas gentilezas, das afinidades fuleiras. Mas onde as amigas
pareciam moldadas perfeições, anjos a caminho de onde o céu fosse do azul
que lá não era, de vastidões de estrelas prateadas que não havia, de revoadas
musicais de pássaros que os caminhões emudeciam. Amigas perfeitas como
meninas, que não fedem entre as pernas; a consistência mansa dos tacos,
a suavidade de óleo de amêndoas em água morna. Mas ela mesma, não.
Normal.” (FELINTO, 1992, p.29, grifo nosso).
Sob esse viés, a inadequação sentida pela personagem também decorre das tensões
estabelecidas entre ela e as amigas, pois ao lado delas entendia-se, cada vez mais, como um
sujeito estranho e inferior. O fragmento a seguir expressa sua sensação de desorientação ao
fazer compras sozinha pela primeira vez, ou seja, sem a presença das amigas e de suas
influências: “Que quando tive a oportunidade de fazer minhas próprias compras, descobri que
não sabia de que cor eu realmente gostava. E eu tinha vergonha dos espelhos nos vestiários
das lojas. [...] Nas lojas onde você entrava numa desenvoltura de princesa.” (FELINTO, 1992,
p.147). Ainda sobre a comparação com as amigas, é importante destacar o conflito vivido com
Estefânia, pois é ele um dos grandes responsáveis pela decisão de partida da metrópole.
O acontecimento que estremeceu a amizade entre Deisi e Estefânia diz respeito a uma
situação que espelha o que a protagonista testemunhou na infância e que culminou na morte
de Airine e Corina. Trata-se do envolvimento da amiga com seu ex-namorado, isto é, mais um
episódio de rivalidade e traição feminina. Demian e Estefânia realizaram juntos uma viagem
que estreitou os laços entre ambos, enquanto Deisi, excluída da viagem, compreendeu
posteriormente o que havia acontecido. O ocorrido igualmente se assemelha à traição sofrida
por Macabéa quando o namorado Olímpico decide deixá-la para envolver-se com sua amiga
carioca Glória. Nesse sentido, as nordestinas compartilham do mesmo sentimento de rejeição.
Deisi percebe que nem mesmo sua postura defensiva foi capaz de evitar que sofresse pelo
comportamento de terceiros:
Era que, por aquele, e por vários outros motivos, ela percebera que a vida era
cheia de efeitos contrários, de facas de dois gumes. Que as mulheres, ela
121
achava, o pior lado das mulheres era esse de sereia. Que as mulheres
olhavam uma para outra antes com vaga inveja. Que quando a pessoa
pensava que já tinha aprendido coisas, porque vira coisas – como ela
vira ali em Grongonzo dos tempos do onça, uma espécie de tia dele que
matara a melhor amiga e se matara depois –, ainda faziam a pessoa, ela
mesma, de gato e sapato. (FELINTO, 1992, p.112, grifo nosso).
Os contrastes social e étnico são também uma tônica para seu não-pertencimento.
Deisi provém do espaço nordestino, cujos índices de precariedade na área da saúde e
educação permanecem sendo os maiores até os dias atuais. De acordo com Schwarcz (2019),
as maiores estatísticas de negligência na área da saúde concentram-se nas regiões Norte e
Nordeste assim como também são as localidades menos urbanizadas do país com um todo.81
Já as taxas de analfabetismo do país encontram-se, majoritariamente, na região Nordeste.82
Além disso, a protagonista faz parte do estrato de raça e gênero que protagoniza os
maiores índices de pobreza, de acordo com uma pesquisa do IBGE divulgada em 2018: “[...] o
número de negras e pardas em situação de pobreza é de 35%, enquanto o de homens brancos é
de menos da metade: 16,6%.” (SCHWARCZ, 2019, p.130). Por este ângulo, colar-se a uma
realidade de festas, mordomias e hipocrisias deu-lhe a sensação de estar vivendo sem
propósito, em um processo de negação de suas raízes e de seu espaço original. A despeito de
todo sofrimento e dificuldades que enfrentou em Grongonzo, o local a mantinha em uma
posição confortável no que tange a aparatos identitários. O excerto abaixo demonstra a
problemática vivência da protagonista perante a elite econômica e social da metrópole:
Deisi localizava-se em um não-lugar social: não estava excluída daquele universo, mas
também não pertencia efetivamente a ele. Acabou por crescer na indiferença, sendo alguém
que não se reconhecia plenamente nas múltiplas identidades que possuía: migrante,
nordestina, negra, advogada, metropolitana: “Quem não podia acabava crescendo na
indiferença, nem estrela, nem muito menos espectador do grande show do lugar aquele de
81
A respeito da deficitária urbanização do Nordeste, consultar os estudos de Milton Santos: A urbanização
brasileira (2008).
82
De acordo com a Pnad Contínua de 2017 que foi citada por Lilia Schwarcz (2019, p.147): “No Nordeste, a
taxa de analfabetismo chega a 14,8%, correspondendo ao dobro da média nacional: dos 11,8 milhões, 6.5
milhões vivem nessa região.
122
Estefânia e de Lena.” (FELINTO, 1992, p. 33). Em última análise, é importante nos determos
na relação da protagonista com a linguagem da metrópole, pois há uma correspondência com
o que ocorre em As mulheres de Tijucopapo (1982) no que tange às barreiras linguísticas
encontradas. O penúltimo fragmento do romance integra um dos monólogos imaginados por
Deisi e contempla a discussão que será realizada:
– Demian! (E então ela ria) Confesso que você era muito moderno pra mim.
[...] Porque você também não gostava de emprestar seus discos. [...] A
cidade era um disco bambo, ligeiramente riscado. Cheia de pessoas que não
emprestavam discos. A cidade (E ela ria), um dis-c,-c,-c. Um disc-c, -c, -c.
Um disco riscado. A pessoa sem fala. Um disco risca-d, ca-d, ca-d. (Ela ria)
um disco risca-d, ca-d, ca-d. Um disco riscado. E como se a pessoa, eu, fosse
a faixa inadequada à fineza duma agulha. (FELINTO, 1992, p.150, grifo
nosso).
83
O termo é utilizado por Canclini (2016) para se referir às diferentes formas contemporâneas de ser ou sentir-se
estrangeiro, as quais não se restringem somente aos processos diaspóricos e transnacionais.
123
Vamos falar nossa língua, o ABC dos animais, que eu detesto cat chup e
palavras descartáveis, estrangeiras: nossa língua verde e também madura-
amarela, não importa quanto países ultra existam para além de sete léguas
em papel celofane. (FELINTO, 1992, p.87, grifo nosso).
A postura adotada pela migrante evidencia sua intransigência frente a elementos que a
distanciavam de sua expressão nordestina – marcada pelas expressões típicas, sotaque
melódico, vogais abertas e átonas. Há nas entrelinhas de seu discurso a ideia de resistência
diante dos novos códigos linguísticos e sociais, os quais massificam a comunicação, os
costumes, os estilos e os gostos. No entanto, quando Deisi retorna às origens, mais uma vez85
vemos surgir uma situação controversa: buscando a unicidade de seu falar nordestino,
percebe-se contaminada linguisticamente pela vivência no centro urbano. Os excertos a seguir
confirmam essa nuance, pois na confluência de linguagens, nenhuma soava naturalmente,
desembocando em um novo tipo de silenciamento, conforme nos aponta Julia Kristeva
(1994): “Quando saí de lá, foi numa solidão alarmante e eu pensei que morreria. Tive a
impressão de que a cidade ficava sem volta lá pra trás, atravancada, tocando valsa nenhuma
de despedida pra mim que perdera a fala.” (FELINTO, 1992, p.150). Em um dos diálogos
com a avó esse novo tipo de inadequação linguística também se manifesta, pois, a fim de
evitar a emissão de uma fala truncada, adota o silêncio:
84
Protagonista do romance pré-modernista Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto.
85
Semelhante processo de aquisição/negação de uma nova linguagem acontece com Rísia, em As mulheres de
Tijucopapo (2004).
125
Tal proposição explica a constante menção a Tijucopapo que é feita por Rísia, de
AMDT (2004). A região, nunca antes visitada pela personagem, torna-se seu grande eldorado
apenas pelo peso e importância de seu nome. A herança histórica que se inscreve na
nomenclatura da região é o que atrai a nordestina e o que a motiva a caminhar por nove meses
até um lugar desconhecido. Desse modo, a evocação de Tijucopapo torna-a ainda mais
importante e faz com que a personagem sinta-se progressivamente familiarizada e obstinada a
chegar.
É semelhante a evocação de Grongonzo que é feita por Deisi. Embora já restabelecida
na região, a narrativa efetua diversos recuos temporais para que o leitor tome conhecimento
dos percursos traçados pela personagem até chegar no tempo presente. Esses recuos
mencionam frequentemente os nomes e características da região e das demais localidades da
Zona da Mata de Pernambuco. O excerto abaixo – a descrição de um trajeto – apresenta uma
sucessão de topônimos pernambucanos, os quais remetem às memórias da infância e
conferem a Deisi algum tipo de conforto e reconhecimento. Nos termos de Certeau (1994),
são os nomes (estrelas) que conduzem os itinerários, dotando-os de significação.
Amanhã, era bom que partisse ela. Se partisse ela? Pegava bem cedo o
caminho para Mangabeira de Baixo, antes daqueles cantos de rouxinol, de
bem-te-vi, antes do pitaguari anunciar: olha para o caminho, quem
vem...Chegava ela à estação ferroviária, as plataformas alegradas por
colegiais em férias, pelas moças de Timbaúba, os meninos de Itabaiana,
como se nada tivesse acontecido. E como se nada fosse acontecer, pegava o
primeiro trem da Linha Central, o que galgasse a Chapada da Borborema,
entrasse pela Serra do Jacarará e atravessasse de noite as estradas do interior
infestadas de malfeitores, até as terras da avó ruim, pra lá de Igaraçu.
(FELINTO, 1992, p.20-21).
Por outro lado, a toponímia do espaço metropolitano – um dos mais importantes para
as transformações da protagonista – não acontece. Sua identificação na narrativa se dá a partir
127
de dêiticos e pronomes demonstrativos, como por exemplo: “Ali, lugar que era antes de
Estefânia, de Lena: bagaço, vingança em cana-corte, aguardente.” (FELINTO, 1992, p.77,
grifo nosso), ou em:
Ao não vestir o lugar com um nome que lhe forneça identificação e legitimidade, a
intenção narrativa se revela: demonstrar que a cidade grande foi um espaço nebuloso e
inabitável. O “lá” e o “ali” são frequentemente utilizados e promovem uma imprecisão e
instabilidade que traduzem as sensações da protagonista durante o tempo de vivência urbana.
É válido destacar que o uso do dêitico “lá” contrapõe-se ao “aqui” nomeado que é Grongonzo,
região onde Deisi encontra-se no presente da narrativa.
Em linhas gerais, a atribuição de nomes aos espaços por onde passou revela ora seu
pertencimento ao Nordeste, ora seu não pertencimento à metrópole. Ainda que tenha vivido
por muitos anos e passado por muitas transformações no espaço urbano, há um esforço em
manter seu anonimato, pois é a maneira encontrada para simular sua inexistência. A narrativa
deixa a metrópole ausente de identificação na medida em que a metrópole deixa Deisi ausente
de identidade: “Tinha pelo menos um lugar no mundo de que ela não queria mais nada: o das
falsas gentilezas, o das afinidades fuleiras, o de onde vinham amanhã visitas em férias, amigas
preferidas, primeiros namorados.” (FELINTO, 1992, p.25). Condensando a discussão sobre os
fatores que indicam seu não-pertencimento, o excerto abaixo apresenta uma interessante
retrospectiva da trajetória migrante de Deisi:
Uma pessoa não devia nunca afastar-se do território que lhe cabia. Porque se
perdiam noções sérias, transformavam-se outras em pura impossibilidade de
perdão. Em territórios alheios a pessoa crescia à parte. Durante os anos
em que uma pessoa ficava bestamente crescendo – como se não passasse de
árvore ganhando forma, tão verde que nem flores, tão frágil que nem frutos –
vivera à parte: porque num lugar que era antes de Estefânia e de Lena;
porque vinha de outros subterrâneos de raízes e raízes não se mostram;
por mais que apareçam, apenas parecem, são superfície, a vida mesmo corre
por baixo, secreta, imperiosa; e porque uma mulher olhava pra outra antes
com vaga inveja. Uma pessoa não devia nunca. Árvores vão secando em
segredo, morrem primeiro por dentro. (FELINTO, 1992, p.32, grifo
nosso).
129
Não pôde não. Nem com as falsas gentilezas nem com as afinidades fuleiras.
Nem pôde com as coisas ultra, trapaças largas, em avenidas longas, quanto
mais com certas barbáries que uma mulher aprontava à outra entre traças de
tricô, maciez excessiva das lãs. (FELINTO, 1992, p.33).
Após o período em que ficara abandonada pelas amigas e pelo namorado na cidade
grande, a nordestina resolve partir sem deixar rastros: “Eram também férias quando Deisi
partiu do lugar de onde vinham visitá-la amanhã.” (FELINTO, 1992, p.29). Todavia, em vez
de retornar diretamente para o Nordeste, decide viajar por outros lugares e conhecer Brasília.
Esse ato pode ser lido como uma espécie de despedida ou de confirmação da decisão que
tomava. A viagem de férias é o deslocamento intermediário, o qual serve para clarear suas
130
ideias e lhe dar coragem, é em Brasília que sua travessia de retorno tem início. Semelhante
itinerário é traçado pela personagem Alma do romance Maíra (2007), de Darcy Ribeiro, cuja
conexão final com a vida urbana antes de migrar para terras indígenas acontece com sua
passagem pela capital do país.
Voltou, sem quê nem por quê, a melhor forma única de abandonar uma
pessoa. Mas antes saiu por aí, em férias próprias, sem esperar por ninguém,
pelo outro caminho, o do não, o que não se fazia ao largo nem ao destino.
Pra ver se fazia e acontecia. Viajou por cidades desconhecidas, e foi parar
em Brasília, de que ouvia falar desde 60. (FELINTO, 1992, p.103-104).
A eleição de Brasília como última parada tem como influência suas memórias
escolares; Dona Yolanda, uma de suas professoras da infância, sempre falara orgulhosamente
da capital para os alunos nordestinos. Essa informação se revela ao final da narrativa quando
Deisi fantasia ser a professora de seus antigos mestres – que acreditavam em um futuro
próspero para ela através dos estudos – e reclama todas as frustrações que eles, indiretamente,
lhe causaram:
O relato de sua visita a Brasília ocupa poucas páginas do romance, entretanto, é sob
duras críticas e observações que a cidade é retratada: “Brasília era a caixa-prego. Brasília ou
era o começo ou era o fim do mundo” (FELINTO, 1992, p.105). Essa perspectiva tem relação
com as especificidades do espaço brasiliense, uma vez que: “Depois do seu rápido
surgimento, Brasília floresceu e se tornou a quarta cidade mais populosa do Brasil – e a maior
cidade do mundo que não existia cem anos atrás. Esse amálgama de excentricidades
influencia os moradores e visitantes da capital.” (BEAL, 2015, p.65).
A pesquisadora Sophia Beal (2015), em trabalho que aborda a representação artística
de Brasília, investiga de que modo essa produção exibe a influência da capital sobre seus
habitantes bem como a inversão dessa equação. Além disso, Beal pensa a atividade pedestre
como meio de humanização desse espaço. Assim, seus estudos partem da hipótese de que
artistas e escritores brasilienses estão subvertendo o sistema urbano imposto pela cidade ao
131
construir textos que narram outros modos de caminhar e conviver no lugar, os quais
extrapolam sua configuração engessada e restritiva. Para tal discussão, a autora se apropria
dos estudos de Certeau (1994) sobre as táticas e estratégias presentes na prática espacial86:
Brasília não tinha avenidas, tinha verdadeiras rodovias 703 W3-norte, CRS
Y2 Sul, com endereços desses que não localizavam ninguém. Era como se
Brasília fosse uma cidade estrangeira e como se, então, o país fosse
governado de fora do país. E não tinha calçadas para pedestres, não ligava a
mínima para os seres humanos. (FELINTO, 1992, p. 104, grifo nosso).
86
A diferenciação feita pelo historiador consiste em considerar as leis e normas orquestradas pelas instituições e
governo como estratégias e as formas como os sujeitos driblam tais imposições como táticas. No caso dos
pedestres, as táticas seriam o modo como subvertem os percursos e prescrições urbanas a partir da formulação de
novas maneiras de caminhar, dirigir ou se locomover pelas ruas de uma cidade.
87
Assim também é vista a cidade de São Paulo por Rísia, conforme discussão do capítulo anterior.
132
Os dois últimos fragmentos citados também fazem menção a sua tentativa de praticar o
pedestrianismo, uma vez que “os pés sujos de barro” indicam a dificuldade de caminhar em
um lugar que não tinha calçadas para pedestres: “Impressionou-se com Brasília, à beira das
avenidas, os pés sujos do barro vermelho que não formava calçadas.” (FELINTO, 1992,
p.104). Deisi se incomoda constantemente com a dificuldade de locomoção e com a sujeira
causada pela ausência de calçadas88. Embora se dedique à caminhada e tente perambular pela
cidade visitando catedrais e restaurantes, tudo o que conseguia era sentir-se cada vez mais
destituída de mobilidade e de identidade: “Nunca sua vida fora tão alheia quanto ali em
Brasília, enquanto caminhava diante dos edifícios onde lhe governavam a própria vida”
(FELINTO, p.105, 1992). É válido retomar a informação trazida por Beal (2015) sobre o fato
de Brasília possuir determinados pontos da malha viária que não podem ser atravessados a pé.
Desse modo, acrescido a sua condição de visitante inexperiente, tal aspecto justifica o
sentimento de impossibilidade experimentado nas ruas brasilienses.
Criada no período em que Juscelino Kubistchek estava no poder, a cidade sofreu a
influência tanto de seu apreço pelos carros quanto dos avanços da indústria de automóveis no
país, dessarte, formou-se a partir de uma disposição que prioriza o trânsito e o acesso aos
lugares por meio desse tipo de transporte: “Carros e mais carros passavam zunindo, cantando
pneus, máquinas, como se Brasília não tivesse gente, como se a pessoa mesmo estivesse
perdida.” (FELINTO, 1992, p.104).
Embora problemático, o caminhar de Deisi a desperta para a podridão de que a cidade
era feita, uma vez que a imponência de seus monumentos e de seu projeto estrutural foi
confrontada com o rato visto em um restaurante por onde passou:
133
Até que entrou num restaurante e viu um rato escapulindo pelo buraco na
parede; saiu enojada. Mas como? Em Brasília? Em Brasília, o quê? Qual
era? Qual é? Brasília era uma ilusão. Não fora construída, era uma trama de
ratos nos subterrâneos por onde os fios corriam. (FELINTO, 1992, p.105).
88
A esse respeito, a matéria disponibilizada pelo site do Sindicato Sinaenco: “Brasília, uma capital sem
calçadas”, menciona as dificuldades do pedestrianismo dentro da capital que existem até os dias atuais, visto que
a ausência e obstrução de calçadas segue sendo uma problemática em discussão.
134
89
Conforme discussão dos capítulos anteriores. A esse respeito ver Meskimmon (1997, p. 21) apud Carrera
Suárez (2015).
90
O historiador utiliza como exemplo uma viagem de trem: “O trem generaliza a Melancolia de Duher,
experiência especulativa do mundo: estar fora dessas coisas que aí estão, destacadas, absolutas, e que nos deixam
sem se importar conosco; ser privado delas, surpreendido com sua efêmera e tranquila estranheza.” (CERTEAU,
1994, p.194).
91
O antropólogo, em seu trabalho sobre os não-lugares (1994), afirma que transportes como ônibus, aviões e
trens promovem a experiência da solidão e restringem a viagem a um momento de automatização das relações
pessoais.
135
Tendo em vista tal afirmação, conclui-se que o fato de Deisi praticar e enxergar a
cidade de uma maneira bastante pessimista, tem raízes em suas experiências anteriores, em
sua origem nordestina, em seu desprezo pela urbanidade e em suas emoções fortemente
abaladas pelas desilusões vividas. Há que se considerar também que o modo como a cidade se
mostra à personagem relaciona-se com os contrastes que integram a região. Deisi visitou
locais que possuem características dos pontos centrais da cidade, ou seja, dos espaços
predominantemente elitizados e que encobrem a face desigual e pobre da capital.
Desse modo, por ser migrante recém saída de uma metrópole, a passagem por Brasília
encontra-se contaminada por seu olhar negativo para realidades elitistas e excludentes. A
viagem apenas corrobora a necessidade de retornar para Grongonzo, tornando-se o entre-lugar
que separa seu passado urbano da vida que reconstruiria em terras nordestinas, a qual começa
a se delinear a partir de sua chegada ao aeroporto: “Mas na realidade Brasília foi apenas isso.
Porque foi somente no aeroporto que ela o encontrou.” (FELINTO, 1992, p.108).
Ao contrário de Rísia, o deslocamento orquestrado por Deisi, ironicamente, se associa
aos avanços do mundo globalizado, é ele expressão máxima da otimização dos meios de
transporte e da supressão tempo-espaço. Longe de traçar uma caminhada mítica pela mata que
liga Sudeste – Nordeste, a protagonista almeja estar distante da vida urbana o mais rápido
possível. Sua travessia se quer abrupta e, por isso, para chegar novamente às origens, a
personagem opta pela viagem de avião. Recuperando as proposições de Marc Augé (1994) já
mobilizadas no capítulo anterior, a contemporaneidade é produtora de não-lugares, os quais
são definidos como locais de trânsito: as rodoviárias, os aeroportos, as ferroviárias, os hotéis e
os terminais ou ainda os domicílios móveis como ônibus, aviões e trens. São assim
considerados os espaços de passagem que promovem mínima sociabilidade e interação com o
outro, sob esse viés, o aeroporto e o avião desfrutados por Deisi incorporam tais dimensões:
136
Mas a designação dos não-lugares também deve levar em conta as relações “[...] que
os indivíduos mantém com esses espaços.” (AUGÉ, 1994, p. 87), as quais podem confrontar a
experiência da solidão que lhe é característica. Assim, embora sendo predominantemente
espaços de trocas supérfluas e mecanizadas, é possível que se estabeleçam estratégias que os
transformem em lugares passíveis de identificação, ou seja, se a “A possibilidade do não-lugar
nunca está ausente de qualquer lugar que seja.” (AUGÉ, 1994, p.98), o inverso também pode
ocorrer. Nas palavras do autor:
É sob esse prisma que o deslocamento empreendido por Deisi pode ser interpretado,
pois no não-lugar (aeroporto) se reconhece em um outro e no domicílio móvel (avião) dá
continuidade a essa interação. Trata-se do encontro com um conterrâneo seu, cuja
aproximação desencadeia um reconhecimento imediato e uma alteração subjetiva. O sujeito
com quem Deisi se identifica é um sergipano e tenente da marinha que também segue em
direção a Grongonzo após mais uma de suas viagens a trabalho: “Nasci em Itabaiana mas
sempre morei perto do Una. Meu pai também foi marinheiro. Mas sempre se viaja muito
quando se escolhe isso.” (FELINTO, 1992, p.110), é também ele seu futuro marido.
O primeiro contato entre os dois, de antemão, estabelece grande aproximação, pois
ambos possuem a mesma visão acerca de Brasília: “O avião manobrava na pista, ela prendia o
cinto e ele voltou-se da janela para onde olhava: – Essa cidade é o fim do mundo, comentou
como quem comenta.” (FELINTO, 1992, p.108). Durante toda a viagem, driblando a sensação
de solidão e anonimato, Deisi e Levi compartilham impressões e comentários sobre o voo
descobrindo-se juntos em cada diálogo: “Pois quando o avião sobrevoava o mar ela soube que
137
ele vivia nas margens do Una também, sempre perto do porto em Grongonzo.” (FELINTO,
1992, p.109). Assim como o contato de Macabéa e Olímpico no Rio de Janeiro, Deisi e Levi
naquele avião eram “[...] dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam”
(LISPECTOR, 1998, p.43).
É interessante notar que, embora o “o jogo social parece acontecer mais em outros
lugares do que nos postos avançados da contemporaneidade” (AUGÈ, 1994, p.101), o contato
entre os dois é viabilizado justamente pelo isolamento do avião, isto é, Deisi encontra-se
confinada com alguém que lhe fornece aparatos identitários passíveis de serem explorados
durante o voo. Esse encapsulamento dos personagens no avião promove a interação e a
possibilidade de reconhecimento entre ambos: “Passaram o resto da viagem conversando,
numa velada intimidade que ou tinham ou eram as nuvens que davam, ou o céu azul ou o mar
azulado quase verde.” (FELINTO, 1992, p.109). São estranhos que se reconhecem na apatia
com que leem Brasília e na condição semelhante de deslocados ocupando regiões centrais do
país: “Quando o avião cruzava as primeiras nuvens e eles, lado a lado e desconhecidos – a
não ser pelo fim do mundo –, ela o olhava como quem olhasse as nuvens para as quais ele
também olhava.” (FELINTO, 1992, p. 108).
Em muitos momentos da conversa que tiveram enquanto bebiam doses, sobressai a
abordagem de temas ligados a natureza, ao mar, aos peixes e aos bichos, aspectos que
remetem às memórias do litoral nordestino de onde provinham. É válido salientar que Levi foi
o único personagem com quem a protagonista se sentiu confortável ao explorar sua
sinceridade, de modo especial, no momento em que fala de seus arrependimentos na vida
urbana. Todas as lamentações que se manifestaram durante a narrativa somente em seu plano
mental, aparecem externalizadas, pela primeira vez, no diálogo com o tenente da marinha:
– Fomos, meus irmãos mais velhos e eu. Estudei lá, só fiz foi estudar. E
passei lá uma adolescência abusada. Acho que nunca fui isso que chamam de
adolescente. Tenho vontade de não ter vivido esses anos, porque tudo era
sem propósito e parecia que tudo explicava tudo. (FELINTO, 1992,
p.110, grifo nosso).
Seu retorno para o Nordeste, embora feito por vias rápidas e modernas, proporcionou-
lhe um processo de reconhecimento pelo contato com Levi, uma espécie de reintrodução a sua
cultura nordestina antes de chegar ao espaço propriamente dito. A título de curiosidade, a
figura abaixo ilustra o possível trajeto realizado por Deisi ao lado do futuro marido.
138
representados pelo apito de folha de coqueiro confeccionado para o filho, e também era região
de convivência com animais silvestres, como os calangros e cágados. A avó da personagem –
uma das marcas de permanência – ainda atirava milho às galinhas bem como alimentava os
porcos no chiqueiro, elementos que sugerem a vivência de um passado cristalizado.
Em se tratando das questões de gênero, o último fragmento do livro nos exibe outro
dado passível de análise: a ruptura da protagonista com as conquistas sociais alcançadas na
metrópole: emancipação, liberdade e ascensão profissional. A narrativa não nos permite
afirmar que Deisi continuou atuando profissionalmente após a mudança, uma vez que a rotina
narrada restringe-se a mostrá-la deitada na rede, cuidando do filho, nadando no lago e fazendo
comidas e bolos para levar à casa de parentes. Desse modo, infere-se que, vivendo em terras
originárias, a nordestina torna-se mãe, esposa e dona de casa e passa a agir de acordo com
preceitos patriarcais, adotando “[...] um cotidiano exclusivamente doméstico e uma espécie de
devoção à maternidade, como se esse fosse o único lugar destinado às mulheres.”
(SCHWARCZ, 2019, p.195). Há uma relativa resignação que se refere ao fato de que os
traumas urbanos afetaram sua concepção acerca do ser mulher. Retornar aos antigos modos de
vida doeria menos do que existir na cidade grande, ou seja, as nuances de subjugação
feminina podem ter exercido grande influência nas decisões e nas fragilidades apresentadas
pela personagem.
Ainda que a região tenha preservado boa parte de sua vegetação, costumes e estrutura
social, a narrativa desvela, por meio da figura da avó, a passagem do tempo em Grongonzo e
as modificações espaciais que ocorreram. A ancestral foi a primeira referência feminina de
Deisi e é também quem lhe aponta – direta ou indiretamente – as mudanças agenciadas no
lugar enquanto esteve fora.
Assim que Deisi voltara para Grongonzo, percebera nela as marcas da ferida
que antes ficavam mascaradas no jeito malvado que a velha tinha de
esconder os biscoitos, de judiar dos netos com cascudos nos miolos de cada
um [...] Hoje, as feridas estampavam-se nas pernas cobertas de erisipelas e
que a velha arrastava então pelo terreiro, de manhã bem cedo, lenta e pesada
como os cágados que criava [...] (FELINTO, 1992, p.119).
Tais nuances evidenciam o caráter não estático dos lugares, uma vez que nesses
trechos há marcas do avanço temporal modificando existências e abarcando a heterogeneidade
das trajetórias que ali coexistem, conforme nos informa Massey (2009, p.29): “Reconhecer o
espaço como estando sempre em construção. Jamais está acabado, nunca está fechado.” A avó
é também quem observa e examina as transformações pelas quais passou a personagem, pois a
proximidade entre ambas denuncia desde as assimetrias linguísticas apresentadas pela neta –
conforme exposto – até o novo modo de Deisi enxergá-la. Na infância, a avó era vista em seu
caráter intimidador e agressivo, no entanto, a protagonista adulta nota que a velhice tornou-a
mais doce.
Massey define como uma geografia do afeto: “Há um entendimento hegemônico de que
zelamos primeiro e temos nossas primeiras responsabilidades em relação aos que estão mais
próximos. É uma geografia do afeto que é territorial e que emana do local. (MASSEY, 2009,
p.263).
Condensando os aspectos observados, é possível dizer que o retorno da protagonista se
dá de forma pacífica e sem grandes ambições, carregando apenas o anseio de recobrar uma
identidade que se fragmentou em territórios alheios. Retomando a perspectiva da geógrafa,
Deisi lida com as alterações em Grongonzo e busca readaptar-se ao seu funcionamento.
Não se pode fazer com que os lugares parem. O que se pode fazer é
encontrar os outros, alcançar onde a história do outro chegou ‘agora’, mas
onde esse ‘agora’ (mais rigorosamente, esse ‘aqui e agora’, esse hic et nunc)
é ele próprio constituído por nada mais do que – precisamente – aquele
encontro (mais uma vez). (MASSEY, 2009, p.184).
Embora carregando as heranças de sua vida urbana, como o hábito de fumar cigarros
populares: “Deixe-me manter de seu, olhe, apenas o cigarro que herdei e ergo hoje a despeito
de qualquer fragilidade.” (FELINTO, 1992, p.22), a segurança de conviver com rostos
conhecidos e retomar hábitos primeiros torna-se fator fundamental para sua existência. É por
esse motivo que a iminência da visita dos amigos deflagra a perturbação mental responsável
pela crise vivida por Deisi. A última nuance que cabe ser observada diz respeito às técnicas
narrativas utilizadas pela autora, cuja escolha de focalização possui importantes significados
para a exposição dessa crise materializada na narrativa.
Evocando mais uma vez a literatura de Clarice Lispector, o fragmento a seguir retirado
de A hora da estrela (1998, p.29) contempla a leitura que será feita no que tange à voz
narrativa presente no romance OLEDG (1992): “É paixão minha ser o outro. No caso a outra.
Estremeço esquálido igual a ela”. A citação, embora integre o discurso de Rodrigo S.M. ao
justificar a criação da personagem Macabéa, funciona como ponto de partida para esta
discussão, uma vez que o narrador da história de Deisi incorpora, verdadeiramente, a ideia de
ser e de estremecer tal qual o personagem. A voz heterodiegética92 estremece ao lado de Deisi
porque está comprometida com o desvelamento de sua subjetividade e isenta de qualquer tipo
142
de distanciamento entre narrador e personagem, isto é, não há em seu fazer narrativo outro
intuito que não seja o de desvelar existência, sem suprimir seu olhar perante o mundo e
tampouco suas concepções.
Ocorre que, na ficção brasileira contemporânea, como destaca Regina Dalcastagnè
(2012), na medida em que o narrador tradicional vem perdendo cada vez mais suas
características canônicas, os personagens veem-se destituídos da segurança narrativa de
outrora, a qual lhes dava aparatos mantenedores de suas marcas de identidade. Em
contrapartida, a partir das nebulosas modificações, podem ter sido beneficiados com aquilo
que a pesquisadora chama de a “palavra sobre si”, conquistando, assim, espaço na narrativa:
É sob tais parâmetros que entramos em contato com a história de Deisi, e é também por
esse motivo que a narrativa felintiana promove uma alteridade pouco verificada em produções
anteriores, uma vez que temos um indivíduo marginalizado que é representado em toda a sua
interioridade e desordem existencial, as quais se projetam nas próprias técnicas narrativas. A
construção da focalização na narrativa configura-se como um dos aspectos que endossam a
alteridade dessa representação, nesse caso, de uma migrante, nordestina e pobre. Sob esse
viés, é válido dizer que as técnicas narrativas utilizadas pela autora devem ser investigadas na
medida em que são responsáveis pelo desvelamento de vozes e realidades que foram, quase
sempre, solapadas. É o que Dalcastagnè (2012, p.95) observa nas novas configurações de
personagens e narradores:
92
O termo genettiano define o tipo de narrador que conta a história não fazendo parte dela, ou seja, não é
personagem e não integra aquele universo diegético. No entanto, a modalidade heterodiegética pode orientar-se
pelo ponto de vista de algum dos personagens da história.
143
Grande parte dos recursos mencionados pela crítica são visualizados na construção
narrativa da história de Deisi, a qual, embora mediada por uma voz em terceira pessoa, nos
coloca diante do ponto de vista da migrante. É pelos olhos negativos e frustrados da
personagem que conhecemos os espaços geográficos por onde transita, os deslocamentos que
traça e os amargores que sente diante de tudo que viveu. Desse modo, cabe investigarmos os
mecanismos que fazem da narrativa um espaço de valorização da experiência vivida pela
protagonista, ainda que sob uma narração heterodiegética.
Compreende-se a instância da focalização como “[...] a representação da informação
diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de
uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético.” (REIS, LOPES, 1988 p.
246). A focalização, entendida nesses termos, é operacionalizada no romance de Felinto a
partir do campo de consciência de Deisi. Renomeando as expressões utilizadas por Todorov
(1972), Genette (197-) divide em três as possibilidades de focalização: focalização interna,
externa e focalização zero (também definida como focalização onisciente). O texto felintiano
chama a atenção pela predominância da focalização interna93. Nas palavras do teórico, a
utilização dessa modalidade é significativa nos romances modernos e contemporâneos e
permite que o ponto de vista (exterior e/ou interior) de determinado personagem da história
oriente o conteúdo narrativo:
O que está em causa não é, pois, estritamente aquilo que a personagem vê,
mas de um modo geral o que cabe dentro do alcance do seu campo de
consciência, ou seja, o que é alcançado por outros sentidos, além da visão,
bem como o que é já conhecido previamente e o que é objeto de reflexão
interiorizada. (REIS; LOPES, 1988, p. 251).
Por esse viés, embora a história seja narrada por uma voz em terceira pessoa, a
perspectiva da protagonista tem total domínio sobre os fatos, sendo raros ou inexistentes os
momentos de focalização zero/onisciência94. O fragmento abaixo ilustra a realização desta
modalidade narrativa no romance de Felinto:
93
Em um processo de aprimoramento das modalidades de focalização, Genette subdivide a focalização interna
em: fixa, múltipla e variável. A focalização fixa ocorre quando a personagem (protagonista) é a única detentora
do foco narrativo (REIS, LOPES, 1988, p.251).
94
De acordo com o Dicionário de teoria da narrativa (1988, p.255), a focalização onisciente configura-se como
a modalidade em que o narrador tem maior conhecimento e domínio da história, organizando-a à sua maneira e
avançando até mesmo pelo universo psicológico dos personagens.
144
De modo incisivo, o narrador não somente fala da aversão de Deisi a gatos como
também expõe seus motivos, argumentos e concepções, adjetivos como “nojenta”,
“dissimulado”, “humilhante” e “irritante” dão indícios do foco narrativo adotado. Além disso,
a expressão vocativa “o falso vagabundo” nos reporta à técnica do discurso indireto livre que
também é utilizada pela autora. Trata-se, pois, da narração em que “[...] o narrador assume o
discurso da personagem, ou, se se preferir, a personagem fala pela voz do narrador, e as duas
instâncias vêem-se então confundidas.” (GENETTE, 197-, p.172-173, grifo original). Pelo
forte tom de oralidade, nota-se que a expressão “o falso vagabundo” parece ter sido emitida
pela própria personagem. Os excertos abaixo também apresentam o discurso indireto livre, o
qual acontece com maior frequência nos momentos de intensa introspecção, isto é, quando a
narrativa parece ganhar contornos de um fluxo de consciência:
Se amanhã acontecia e estava bom assim. Ah, não estava ainda? Não
estava, meu filho? Era capaz de vir um e dizer que não estava. E dizer, do
entre-coxas, que ia comer o sobrecu dela. Ela aceitava, o rei tendo mandado,
ela ia buscar até nas nuvens o prazer que desde Êrnani era a melhor coisa do
mundo, nem que fosse no meio da campina, rasgada ali e berlinda.
(FELINTO, 1992, p.150, grifo nosso).
Sentia muito, mas ser romântico era um erro porque se dava ao mundo mais
importância do que o mundo precisava. Que precisão tinha, enfim? Não
tinha precisão nenhuma. Conversa. Amanhã: morria-se. Já dera muita colher
de chá e boa vontade, não dera? Ein, não dera? (FELINTO, 1992, p.128,
grifo nosso).
Em trechos como esses não é possível precisar em quais momentos fala o narrador e
em quais momentos manifesta-se o discurso da protagonista. A fluidez narrativa e a profusão
de informações com mínimo encadeamento semântico fazem com que a voz da personagem
se manifeste, embaralhando-se com o discurso do narrador e promovendo um significativo
alcance psicológico. Ademais, a narrativa contém muitas ocorrências de discurso diretos
marcados com travessão, os quais, na maioria das vezes, trazem falas da protagonista, ora em
conversas reais, ora em questionamentos internos.
145
Tais ocorrências corroboram a ideia de que o texto contém o discurso indireto livre,
uma vez que há expressões específicas – como a interjeição “Ein” ou “Não era?” – que
surgem oscilantes no discurso do narrador e nas falas da personagem. Ao repetir-se em
enunciações diferentes, a expressão acaba por identificar a quem pertence. Os fragmentos
abaixo apresentam o mesmo tipo de interjeição do último trecho citado, a expressão “Ein”,
entretanto, nesse caso, encontra-se na enunciação da protagonista, marcada pelo sinal de
pontuação:
– Ein, Levi? Ela quase disse. Pois como podia um homem? Como podia um
homem guardar aquela coisa murcha entre as pernas? Um chocalho mudo.
Ela, não, que era plana ali onde se devia ser, o entre-as-coxas, o lugar do
incômodo, do passo, do entre-passo, do movimento. Os peitos, não, que
eram sempre eretos no mundo. Agora, os homens? Eram heróis
envergonhados. Aquela coisa baixa que seu homem carregava entre as
pernas era envergonhada como um velho que sabe que foi ereto. Era
uma ruga, não era? (FELINTO, 1992, p. 22, grifo nosso).
Para que amanhã não se iludisse com folhas coloridas de revistas e não
sonhasse; há tempos não sonhava mais. Pra não sonhar e se tapear, pois ela
se dava tapas. Tapas na própria cara: pare de sonhar! (um tapa); pare de
sonhar! (outra tapa); pare de sonhar, sua anta! (terceira tapa). Isso mesmo.
[...] Não. Pra não amanhecer amanhã e a pessoa sentir que tivesse perdido
todas as partidas, num balanço em final de ano, o prato pesando mais do lado
sinistro, à esquerda, do que do outro, direito. Como se a pessoa tivesse
desvariando no pra-lá-pra-cá da rede e até calangros lhe dessem lições de
vida. Como se se devesse passar pela vida com outra esperteza que ela
absolutamente...não tinha? Ah, não tinha, era? Ein, não tinha? (FELINTO,
1992, p. 129).
Em suma, nota-se que cada técnica utilizada reaviva a presença ativa da protagonista
na narração e o domínio de seu ponto de vista sobre os fatos narrados. A complexidade das
narrativas contemporâneas e suas modulações são vislumbradas no romance de Felinto e
produzem diversas significações. Essa complexidade também passa pela dificuldade de
balizar os mecanismos narrativos utilizados, ou seja, o texto de Marilene é passível de outras
leituras porque é fluido, fragmentado e espelha a própria experiência diaspórica da
protagonista. Assim, seu vai e vem geográfico também se mostra nos recuos e avanços da
narrativa, os contrastes entre um espaço e outro se dão a partir das escolhas lexicais e
entonações discursivas e sua instabilidade emocional se expressa por meio dos cortes,
rupturas e balbucios existentes no relato.
Ainda que o segundo romance da autora não atribua à protagonista a voz em primeira
pessoa – aspecto que é verificado em AMDT (2004) – a instância narrativa projetada em
OLEDG (1992) incorpora a dramaticidade de sua individualidade. Não há uma narração
problemática que incorpora subjugamentos e estereotipizações para falar do outro, como
ocorre em algumas produções contemporâneas.95 Todo o universo ficcional passa pelo ponto
de vista da protagonista e somente dela, ainda que este olhar não seja confiável e esteja
marcado por revolta, ceticismo e amargor: a descrição das pessoas, da cidade grande, de
Brasília, do Nordeste, das pessoas viventes de cada lugar e das relações interpessoais.
Por outro lado, a voz em terceira pessoa também pode ser indicativa da própria
incapacidade de Deisi em narrar-se a si mesma, ou seja, de assumir-se como pessoa do
discurso e relatar suas vivências sendo narradora e protagonista. A despeito de tais
possibilidades, o romance nos apresenta uma narrativa contundente sob a perspectiva de uma
personagem historicamente marginalizada. Em artigo que problematiza as tensões que se
95
A esse respeito, consultar o ensaio “Lugar de Fala” da pesquisadora e crítica literária Regina Dalcastagnè
(2012).
147
Afinal, poderíamos perguntar, por que uma dona de casa abastada merece
centenas de páginas para a descrição de seus conflitos interiores e a pobre
nordestina tem de ficar restrita aos fatos? Ela não seria complexa o suficiente
para ser apresentada com sua subjetividade? (DALCASTAGNÈ, 2012,
p.51).
Marilene Felinto, com sua modesta carreira, dá as respostas para tais perguntas,
provando que as mulheres de suas histórias são dignas das narrativas psicológicas, intimistas e
subversivas.
148
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
esse passado – seja o passado de suas origens seja o passado urbano –, é por ele que se coloca
em direção a Tijucopapo e também à BR, é por isso que aceita sair em guerra em direção à
Avenida Paulista.
Assim, apreendemos também que as narrativas estão alicerçadas pelas memórias das
personagens. Em Rísia, uma memória evocada propositalmente, e, em Deisi, uma memória
que se deflagra forçosamente a partir da iminente vinda dos amigos metropolitanos. Deisi é,
pois, uma mulher realista e alinhada com uma postura de conformidade diante das mudanças e
transformações pelas quais passou, enquanto Rísia é uma mulher combativa e, em certa
medida, utópica, na busca por uma nordestinidade heroica, em consonância com o que destaca
Albuquerque (2011).
Embora apresentando semelhantes enredos, personagens e representatividade, os
romances felintianos também se distanciam em termos estruturais, de modo especial, ao
pensarmos na instância narrativa e seus desdobramentos, os quais interferem diretamente na
forma com que os deslocamentos são narrados e representados. Em AMDT (2004),
deparamo-nos com uma estrutura narrativa bastante maleável que vai sendo construída pela
própria protagonista em sua caminhada. É ela quem controla sua história e narra seu percurso,
operando recuos temporais ao passado e retornando à narração do agora e das
indeterminações de seu futuro.
O viés epistolar da narração substancia tais nuances além de conferir maior autonomia
à protagonista. Assim, demonstramos que a voz em primeira pessoa é responsável pelas
possibilidades que existem na trajetória de Rísia e que não verificamos na história de Deisi.
Como destaca Dalcastagnè (2012, p.81) sobre a narrativa em primeira pessoa, as personagens
conseguem ser “[...] donas de seu passado, essas personagens teriam poder de gerenciar seu
presente, e mesmo seu futuro, seja lá o que isso queira dizer para cada uma delas”. Rísia é,
pois, agente ativa de sua história de seu caminhar, tornando-se propensa a novas
transformações em sua existência.
Em OLEDG (1992), por sua vez, encontramos uma narrativa predominantemente
psicológica, a voz heterodiegética – de viés feminino – é fiel ao ponto de vista de Deisi e
relata seu embaralhamento mental ao revisitar um passado de deslocamentos, contudo, a
composição dessa voz também espelha a condição da personagem enquanto mulher
circunscrita a um presente monótono. Desse modo, é possível dizer que Deisi assume relativa
passividade, a qual decorre tanto dessa construção pela voz de um outro quanto por sua
condição de sujeito deslocado que se fixou novamente. Embora vocifere todos os seus
desafetos e dores, Deisi não tem forças para modificar sua história. O presente da narração
152
concentra-se em apenas um dia de sua rotina em Grongonzo, isto é, o relato começa e termina
na fixidez, com as migrações sendo revividas apenas em suas digressões. Por isso, a despeito
da mobilidade presente nas passagens sobre o passado, não há uma narrativa que se vincule a
uma significativa autonomia, como ocorre com Rísia.
Em síntese, foi possível demonstrar que os romances da autora pernambucana nos
oferecem outros retratos da migrante nordestina na literatura, tratando de questões pouco
exploradas anteriormente e dando voz e perspectiva àqueles que foram silenciados por tanto
tempo. Apesar dos diferentes esquemas narrativos, as protagonistas nos apresentam
expressivas formas de recuperar o elo perdido com suas identidades. O mais simbólico de
suas vivências, portanto, encontra-se nos deslocamentos de retorno que traçam: é este o
movimento que se encontra dotado de liberdade e de significações que fazem dos objetos de
estudo desse trabalho obras tão singulares.
Evocamos, uma vez mais, o trabalho da crítica Regina Dalcastagnè (2012, p.10) para
dizer que essa dissertação encontra-se em consonância com a seguinte afirmativa: “Em suma,
para acolhermos um autor/uma autora dissonante, temos de fazer um investimento –, o que
tem seus custos.” Cientes dos custos, debruçamo-nos sobre narrativas distantes do cânone e
das convenções do campo literário, seja em termos de estrutura e personagens, seja em termos
de temática e autoria. A despeito dos riscos da leitura aqui realizada, Rísia e Deisi careciam
de um olhar sensível para suas vivências. Ambas as protagonistas, ausentes de maternidade,
foram maternadas por Felinto e merecem que suas vozes e seus caminhos sejam conhecidos
pelos leitores e críticos do contemporâneo. Contemplando nossa discussão, Lélia Almeida
(2006, s/p) ressalta:
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3.ed. Trad. Maria Ermantina Galvão; Marina
Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. 2.ed. Trad. Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2002.
_____. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1999.
CANCLINI, N. G. O Mundo Inteiro como Lugar Estranho. Trad. Larissa Fostinone Locoselli.
São Paulo: EDUSP, 2016.
CARRERA SUÁREZ, I. The stranger flâneuse and the aesthetics of pedestrianism: writing
the post-diasporic metropolis. Interventions, Londres, v. 17, n. 6, p. 853-865, jan. 2015.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA,
2008. Disponível em: https://www.geledes.org.br/frantz-fanon-pele-negra-mascaras-brancas-
download/. Acesso em: 13 set. 2019.
FELINTO, M. Marilene Felinto – Fala Flip – Paraty (RJ) 13 de julho 2019. Disponível em:
https://amarilenefelinto.files.wordpress.com/2019/07/fala_flip_marilene_c3adntegra.pdf/.
Acesso em: 18 jul. 2019.
_____. As mulheres de Tijucopapo. 4.ed. São Paulo: Edição da autora, 2019. E-book.
_____. Fama e infâmia: bastidores do jornalismo brasileiro. São Paulo: Sérgio Alli e Felipe
Secco, 2019. E-book.
GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, [197-].
_____. A identidade cultural na pós-modernidade. 5.ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira
Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
HENRIQUE, G. Justiça social continua sendo uma urgência para o Brasil, afirma Marilene
Felinto. Le Monde Diplomatique Brasil, 10 jul. 2019. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/justica-social-continua-sendo-uma-urgencia-para-o-brasil-afirma-
marilene-felinto. Acesso em: 26 nov. 2019.
KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
156
LINS, P. Cidade de Deus: romance. 2ª ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.
_____. A paixão segundo G. H. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
MACHADO, A. M. Tropical sol da liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
MASSEY, D. B. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Trad. Hilda Pareto Maciel,
Rogério Haesbaert. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
NEGROS DIZERES. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (43 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=agvSmz1k_Us. Acesso em: 17 set. 2019.
O céu de Suely. Direção de Karim Aïnouz. Brasil: Videofilmes. 2006. DVD. (88 min).
OLIVEIRA, M. F. Que quer dizer cultura? uma leitura de a hora da estrela. Campo Grande:
Ed. UFMS, 2014.
REIS, C.; LOPES, A. C. M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Editora Ática S. A,
1988.
SAID, E. W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
_____. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
_____. Não vendamos a alma. Entrevista a Marília Martins. Isto é, São Paulo, 1987. p.90-92.
_____. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2002.
_____. Por uma economia política da cidade: O caso de São Paulo. São Paulo: Editora
Hucitec; EDUC, 1994.
SIMMEL, G. O estrangeiro. In: MORAES FILHO, E. (org.) Simmel – Sociologia. São Paulo:
Ática, v. 34, p. 182-188, 1983.
VIGNA, E. Deixei ele lá e vim. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
_____. Coisas que os homens não entendem. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CRIVELARO, D. O Algum lugar ocupado por Paloma Vidal: estudo sobre seu projeto
literário. Fórum de Literatura brasileira contemporânea, Rio de Janeiro, v.10, n. 19, p.75-97,
2018. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/view/19615. Acesso em: 25
jul. 2019.
LEHNEN, L. Pôr do sol global: itinerários urbanos e identidade globalizados em O sol se põe
em São Paulo, de Bernardo de Carvalho. In: DALCASTAGNÈ R.; MATA, A. L. (org.) Fora
do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.
p.118-134.
_____. Gêneros indefinidos, corpos inadequados em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna. In:
DALCASTAGNÈ, R.; LEAL, V. V. (org.) Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira
contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte, 2010. p.114-123
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/16665/11671. Acesso
em: 3 jul. 2019.
_____. “Um lugar fora de lugar”: a mulher e o sertão em Maria Valéria Rezende. Estudos de
Literatura brasileira contemporânea, Brasília, n.55, p.267-284, set./dez. 2018. Disponível
em: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/15634. Acesso em: 6 jun. 2019.
APÊNDICES
164
Nota Inicial
ANEXOS
168
Nota Inicial
96
Até 2018/2019, era possível encontrar o site da autora – o qual apresentava a biografia da autora, fotografias,
considerações sobre sua escrita e demais seções – a partir de buscas no Google ou pelo link direto, entretanto, ao
realizar a busca do site no ano de 2020, verifica-se que ele já não está disponível ou foi retirado do ar.
169
BASTOS, Dau. A ficção feroz de Marilene Felinto: ensaio sobre As mulheres de Tijucopapo.
Revista de Literatura e linguística Eutomia, Recife, p. 38-63, 2013.
O ensaio aborda a inserção e a (não) recepção do romance As mulheres de Tijucopapo
no mercado literário brasileiro, pensando, de modo especial, nos fatores estéticos,
170
GRIGOLETO, Grace G.; CAMARGO, Diva C. de. Análise de cinco vocábulos recorrentes e
preferenciais na obra As Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. In: Revista de
estudos linguísticos, Belo Horizonte, v.19, n. 2, 2011; pp. 141-165.
No campo da linguística, o artigo mapeia e analisa os cinco vocábulos propositalmente
recorrentes na narrativa de Tijucopapo, o trabalho se fundamenta na fortuna crítica de
Felinto para apreender as significações presentes na reincidência das seguintes palavras:
homem, mulheres, chuva, amor e água, as quais atuam para a construção do universo
nordestino de onde provém a protagonista.
JOB, Sandra Maria. Gênero e Raça sob o Viés Literário: uma Leitura da Condição das Afro-
brasileiras. Cadernos do tempo presente, Sergipe, n. 10, dez. 2012. Disponível em:
https://seer.ufs.br/index.php/tempo/article/view/2737. Acesso em: 30 mar. 2020
Artigo que investiga a representação de raça e gênero nos romances Úrsula (2004),
Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006), As mulheres de Tijucopapo (1982), O
lago encantado de Grongonzo (1992) e Obsceno abandono: amor e perda (2002) de modo
a depreender os modos de inserção da mulher negra ao contexto social e literário no
Brasil.
Artigo que problematiza a formação identitária individual e coletiva intra e entre espaços
da protagonista Rísia, tendo como contraponto a personagem Macabéa de A hora da
estrela (1977). Trata-se de pensar nessa construção identitária em seus aspectos
geográfico, cultural e psicológico buscando correlacioná-la com a narrativa de Lispector.
SCHMIDT, Simone Pereira. De volta para a casa ou o caminho sem volta em Marilene
Felinto e Conceição Evaristo. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia
Vasconcelos. (orgs.) Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea.
São Paulo: Editora Horizonte, 2010. p.23-31
Ensaio que aborda as significações presentes no deslocamento realizado pelas
protagonistas pobres e negras que habitam os romances de Marilene Felinto e Conceição
Evaristo. O trabalho pontua o modo como cada uma enfrenta e reage à tal experiência a
partir de seus corpos excluídos historicamente. Rísia e Ponciá são lidas em termos de
mobilidade, questão identitária, exílio e busca incessante de pertencimento.
SILVA, Maria Emilia M. Amor, ódio e exclusão em As Mulheres de Tijucopapo. In: Faces
Femininas da Literatura. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/53111376/Amor-
odio-e-exclusao-em-As-mulheres-de-Tijucopapo. Acesso em: 25 mar. 2020
Artigo que aborda os afetos femininos vislumbrados na personagem Rísia. A crítica
aborda a narrativa a partir de conceitos da psicanálise de modo a investigar o embate
entre amor e ódio (Eros e Tanatos) presente na trajetória da protagonista. A memória
também é lida como grande responsável para a manifestação dos momentos de ódio e de
ânsia pelo amor. Amor e ódio, portanto, a conduzem à procura das origens enquanto sua
postura odiosa subverte a docilidade feminina habitual.
VIEIRA, Solange Kate Araújo. Entre o céu e a terra: questões de identidade cultural em As
mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. Orientador: Sebastião Teoberto Mourão
Landim. 2001. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Curso de Mestrado em
Letras, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2001. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/8072. Acesso em: 15 mai. 2019.
Dissertação que aborda a construção da identidade cultural em As mulheres de
Tijucopapo ao mesmo tempo em que divulga a literatura felintiana. Questiona-se o
174
XAVIER, Elódia. O corpo violento. In:_____ (org.) Que corpo é esse? O corpo no imaginário
feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007, p. 119-125
Capítulo de livro que aborda, histórica e teoricamente, a representação dos corpos nos
textos de autoria feminina do século XX, criando uma tipologia para esta representação.
No capítulo em questão, a autora discute o romance As mulheres de Tijucopapo sob a
categoria de “Corpo violento”, uma vez que Rísia sente ódio da opressão da qual é vítima,
vislumbrada nas atitudes do pai e em sua realidade social e, desse modo, coloca-se em
posição de vingança, contrapondo-se à resignação feminina.
a tese focaliza os diferentes significados que o passado adquire para cada uma delas e
verifica o predomínio do sentimento de solidão na trajetória de ambas.
JOB, Sandra Maria. Gênero e Raça sob o Viés Literário: uma Leitura da Condição das Afro-
brasileiras. Cadernos do tempo presente, Sergipe, n. 10, dez. 2012. Disponível em:
https://seer.ufs.br/index.php/tempo/article/view/2737. Acesso em: 30 mar. 2020
Artigo que investiga a representação de raça e gênero nos romances Úrsula (2004),
Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006), As mulheres de Tijucopapo (1982), O
lago encantado de Grongonzo (1992) e Obsceno abandono: amor e perda (2002) de modo
a depreender os modos de inserção da mulher negra ao contexto social e literário no
Brasil.