Texto 1 - o Direito À Educação
Texto 1 - o Direito À Educação
Texto 1 - o Direito À Educação
Gestão,
Financiamento e Direito à Educação: análise da Constituição Federal e da LDB. 3. ed.
São Paulo: Xamã, 2007, p. 15-41.
O DIREITO À EDUCAÇÃO
INTRODUÇÃO
Ao longo dos últimos séculos, a educação tornou-se um dos requisitos para que
os indivíduos tenham acesso ao conjunto de bens e serviços disponíveis na sociedade,
constituindo-se em condição necessária para se usufruírem outros direitos constitutivos
do estatuto da cidadania. O direito à educação é hoje reconhecido como um dos direitos
fundamentais do homem e é consagrado na legislação de praticamente todos os países.
Da mesma forma, no Art. 246 do Código Penal, de 1940 prevê-se a perda do pátrio
poder, devido a crime de "abandono intelectual”, ao pai que "deixar, sem justa causa, de
prover à instrução primária de filho em idade escolar". Neste caso, com pena de
"detenção de 15 dias a um mês, ou multa, de duzentos a quinhentos mil réis".!
No mesmo sentido, mas prevendo outro tipo de sanção, o Art. 30 da Lei no 4.024,
de 1961, afirma: “Não poderá exercer função pública, nem ocupar emprego em sociedade
de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, o pai de família ou
responsável por criança em idade escolar sem fazer prova de matrícula desta, em
estabelecimento de ensino, ou de que lhe está sendo ministrada educação no lar”
(BRASIL, 1961).
Apesar de esse ideal ter sofrido algumas derrotas em aspectos importantes, o texto
final da Constituição de 1934 apresentou inúmeras inovações em relação às anteriores.
Pela primeira vez, um texto constitucional brasileiro dedicaria um capítulo à educação,
tratando de temas que, a partir de então, seriam incorporados a todos os demais.
Relativamente a declaração do direito à educação, o Art. 149 estabelece que "A
educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos,
cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de
modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e
desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana” (BRASIL,
1986).
Estes dois notáveis incisos explicitam influência do ideário dos pioneiros de 1932,
manifesta na garantia do direito à frequência do ensino primário integral extensiva aos
adultos, ainda hoje polêmica. É interessante observar o acréscimo da palavra
"freqüência" à concessão do direito, pois é única em nossa história constitucional,
posteriormente substituída por "matrícula". A introdução da palavra "integral” também não
é fortuita. A julgar pelas estatísticas apresentadas por Teixeira de Freitas (1937; 1947),
parece procurar garantir a totalidade das séries do ensino primário, pois esta não era a
regra. O inciso b do Art. 150, acima citado, ao apontar a perspectiva de gratuidade do
ensino médio "a fim de o tornar mais acessível”, é recuperado apenas pelo texto de 1988.
Mesmo tendo vigorado por pouco mais de três anos, a Constituição de 1934 é uma
referência fundamental. As polaridades e opções políticas que a afloraram são centrais
nos debates educacionais até os dias de hoje.
Especificamente sobre o ensino primário, o Art. 130 declarava sua gratuidade, mas
o fazia de tal forma que abria espaço para a sua negação: “O ensino primário é obrigatório
e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com
os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não
alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição
módica e mensal para a caixa escolar.” (BRASIL, 1986)
O inciso III retomava a temática já presente nos textos de 1937 e 1946: a garantia
da gratuidade no ensino ulterior ao primário apenas para aqueles que demonstram falta
ou insuficiência de recursos. Uma novidade introduzida como decorrência da negação da
gratuidade em geral era a ideia de bolsas restituíveis, que deu origem ao mecanismo do
crédito educativo no ensino superior, atualmente denominado Programa de
Financiamento Estudantil (Fies).
No capítulo da educação, no Art. 205, afirma-se que: "A educação, direito de todos
e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (BRASIL, 1988). Este artigo reafirma a
precedência do Estado no dever de educar, como em 1969. Além disso, os objetivos
gerais inspiradores desta educação, "visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho", mantêm-se
equidistantes da conhecida polêmica – que se refere prioritariamente ao ensino médio -
em torno de dois pólos: seu caráter propedêutico e formador da cidadania ou qualificador
para o trabalho. Com as modificações em curso no processo produtivo, esta polêmica
também tem sido levantada para o ensino fundamental, admitindo-se que a própria
educação elementar tenha um caráter profissionalizante, concepção já considerada por
ocasião da aprovação da Lei no 5.692, em 1971.
Além disso, no Art. 206 especifica-se que: "O ensino será ministrado com base nos
seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola"
(BRASIL, 1988).
O dever do Estado para com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I. ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele
não tiveram acesso na idade própria;
II. progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino
médio;
III. atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino;
IV. atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos de
idade;
V. acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
VI. artística, segundo a capacidade de cada um;
VII. oferta de ensino noturno regular, adequada às condições do
educando;
VIII. atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de
programas suplementares de material didático escolar, transporte,
alimentação e assistência à saúde. (BRASIL, 1988)
A primeira novidade aparece já no inciso I, ao precisar que o dever do Estado para
com o ensino estende-se mesmo àqueles que “a ele não tiveram acesso na idade
própria”. Aperfeiçoa o texto de 1967-69, que especificava a gratuidade e obrigatoriedade
apenas dos 7 aos 14 anos, criando a possibilidade de se dificultar o atendimento aos
indivíduos fora desta faixa etária. Entretanto, não constitui prática estranha, ainda hoje, a
recusa ilegal da matrícula na primeira série do ensino fundamental a uma criança com
dez ou mais anos, sob a alegação de que, se ela "aguardar” mais um pouco, poderá
ingressar diretamente num curso de suplência, "encurtando caminho." O Art. 208 avança
no sentido de efetivar o direito à educação, ao explicitar o atendimento dos que não se
encontram na idade considerada “ideal” para ingresso no ensino fundamental. Entretanto,
cria uma imprecisão formal que poderia abrir uma brecha para a restrição ao direito à
educação ao não explicitar a duração deste ensino. Abre-se, assim, pelo menos em tese,
a possibilidade de se estipular uma duração menor que nove anos segundo a legislação
atual. O Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional apresentado ao
Senado pelo senador Darcy Ribeiro em 1995 propunha o ensino fundamental de cinco
anos, por exemplo.
Esse artigo estabelece um prazo para a efetivação de uma das mais antigas
dívidas educacionais brasileiras, a universalização da alfabetização e da escola
fundamental compulsória. Além disso, decorrido o prazo previsto, seriam passíveis de
responsabilização as autoridades que não envidassem os devidos esforços para fazer
cumprir o dispositivo constitucional. A parte relativa à distribuição de recursos, apesar de
ter sido formulada visando a ampliar o montante de recursos aplicado em educação, foi
redigida de maneira ambígua, tendo sido alterada pela EC 14 e, em dezembro de 2006,
pela EC 53. De toda forma, o objetivo de erradicação do analfabetismo e de
universalização do ensino fundamental, apesar dos avanços verificados, não foi atingido
e nenhuma autoridade foi responsabilizada por isso.
[...] o poder de exigir, que o titular do direito exerce, em direção àquele com o
qual entra em relação jurídica. Tratando-se de direitos subjetivos há, pois, dois
sujeitos: sujeito ativo, "o credor", pessoa de quem emana a exigência, o poder de
exigir, sujeito passivo, o "devedor”, pessoa sobre quem recai a exigência, o dever
de cumprir a obrigação jurídica resultante de regra de direito. Os direitos públicos
subjetivos podem ter o Estado tanto como sujeito ativo como passivo. O
parágrafo em questão refere-se àquela modalidade em que o Estado figura como
sujeito passivo.
No comentário à declaração da educação como o primeiro dos direitos sociais,
José Cretella Júnior (1991, v. 2, p. 881-882) afirma: "[...] todo cidadão brasileiro tem o
subjetivo público de exigir do Estado o cumprimento da prestação educacional,
independentemente de vaga, sem seleção, porque a regra jurídica constitucional o
investiu nesse status, colocando o Estado, ao lado da família, no poder-dever de abrir a
todos as portas das escolas públicas e, se não houver vagas nestas, das escolas
privadas, pagando as bolsas aos estudantes."
O parágrafo segundo do Art. 208 afirma que "[...] o não oferecimento do ensino
obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da
autoridade competente" (BRASIL, 1988). Traz como novidade a possibilidade de
responsabilizar diretamente a autoridade incumbida da garantia do direito (por exemplo,
o administrador público), diferentemente de uma responsabilização do Poder Público
como ente jurídico geral, embora permaneça a ausência de sanções pelo não
cumprimento da norma legal. Este elemento não é desprezível, pois muitas vezes se
argumenta que não adianta invocar este dispositivo se não há sanção prevista pelo seu
não-cumprimento. Resta, de qualquer forma, a tentativa de enquadramento no "crime de
responsabilidade", cuja penalidade pode ser até mesmo a cassação do mandato. Isso,
vez ou outra, tem ocorrido no Brasil nos últimos anos, particularmente no que se refere
ao mau uso dos recursos para a educação.
No mesmo sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1973, p. 295) entende que:
"O mandado de segurança é remédio específico contra a violação, pelo poder público, de
direito, líquido e certo, outro que o de locomoção. O seu campo de ação é definido por
exclusão: onde não cabe o habeas corpus, cabe o mandado de segurança.”
O mandado de injunção é previsto no Art. 5o, LXXI da CF, nos seguintes termos:
"conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora
torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania" (BRASIL, 1988).
A ação civil pública está prevista no Art. 129, III, ao estabelecer as funções do
Ministério Público:
São funções institucionais do Ministério Público: [...] III – promover o inquérito civil
e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. [...] $1o A legitimação do
Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de
terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.
(BRASIL, 1988)
Também o Estatuto da Criança e do Adolescente disciplina as ações visando à
proteção judicial dos interesses difusos e coletivos. Em seu Art. 208, prevê que:
Antônio Chaves (1994, p. 640) entende por interesse difuso "[...] o interesse de um
grupo ou de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais não haja vínculo
jurídico ou fático muito preciso”. O mesmo autor entende por interesse coletivo “[...] o que
abrange categoria determinada ou pelo menos determinável de indivíduos, como o dos
associados de uma entidade de classe. Assim como ocorre com o interesse individual
indisponível, também o interesse coletivo, se indisponível, está inserido naquelas noções
mais abrangentes de interesse público." (CHAVES, 1994, p. 640-641)
Além disso, o Art. 210 do ECA estabelece a legitimação concorrente para as ações
cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos, nos seguintes termos:
A EC 14 alterou a redação dos dois primeiros incisos do Art. 208, aqueles que
estabelecem o direito à educação. Tal modificação ensejou acirrados debates acerca da
possível redução da garantia do direito. Vamos analisá-las com mais detalhes.
Tanto uma redação como a outra não têm impacto imediato, pois ambas
apresentam uma perspectiva para a expansão do sistema. São diretivas para o futuro. A
versão original era mais enfática que a emendada, pois "obrigatoriedade e gratuidade”
tem um significado de mais explícita responsabilização do Estado do que
"universalização".
Uma primeira alteração consta do Art. 2º, redigido nos seguintes termos: "A
educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais
de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". (BRASIL,
1996b, grifo nosso)
Este artigo é a repetição do Art. 205 da CF, com pequenas alterações. A parte que
diz respeito mais diretamente ao nosso tema inverte a ordem da família e do Estado na
declaração do dever de educar. Trata-se de uma questão interessante. Se a ordem em
que os termos aparecem não tem importância, não há divergência entre os dois
documentos. Entretanto, se eles têm significados diferentes, como explicitou ao analisar
o texto de 1934, a LDB é inconstitucional. Se nos ativermos apenas à análise interna dos
textos, tendemos a considerar sem muita importância a ordem em que aparecem;
entretanto, é inegável que este debate reveste-se, entre nós, de uma disputa de
significados bastante definidos e, historicamente, muito diferentes entre si. Nestes
termos, ao privilegiar a formulação católica sobre o tema, parece evidente a contradição
entre a LDB e a CF.
Os incisos V, VI, VIII repetem os incisos V, VI e VII do Art. 208 da CF, relativos ao
acesso aos níveis mais elevados de ensino segundo a capacidade de cada um, oferta do
ensino noturno regular adequado às condições do educando e atendimento ao educando,
no ensino fundamental, por meio de programas suplementares de material didático-
escolar, transporte e assistência à saúde.
Há dois acréscimos, os incisos VII e IX, que não constam da Constituição. No VII,
explicita-se o dever de oferta de ensino regular para jovens e adultos, com características
adequadas às suas necessidades e disponibilidades, bem como as condições de acesso
e permanência aos que forem trabalhadores. Trata-se de mecanismo democratizador,
mas que necessita de adequada regulamentação. O inciso IX detalha o inciso VII do Art.
206 da CF ("garantia de padrão de qualidade"), articulando o padrão mínimo de qualidade
com “[...) a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao
processo de ensino-aprendizagem” (BRASIL, 1996b). Esta ideia articula-se à
necessidade de um gasto mínimo por aluno, o que, segundo a interpretação oficial atual,
seria operacionalizada pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).
Em suma, ainda que seja uma ampliação tímida do direito à educação, não se
pode deixar de ver o aspecto positivo da ampliação da obrigatoriedade e da gratuidade
do ensino fundamental para nove anos. Isso significa funda mentalmente que quem, com
6 anos, não estiver na escola, passa a ser obri gado a frequentá-la e o Poder Público tem
mais enfatizada sua responsabilidade de garantir escola para esses que hoje estão fora
do sistema escolar.
A principal objeção que tem sido feita a essa lei refere-se à avaliação de que aos
6 anos é muito cedo para iniciar um processo de escolarização formal com uma criança.
Ainda que pedagogicamente discutível (o início da escolarização se dá aos 6 anos em
muitos países e, em alguns casos, até mesmo antes dessa idade), a lei não define a
natureza pedagógica desse primeiro ano, ficando tal definição a cargo de cada sistema
de ensino.
A Carta de 1988 (BRASIL, 1988, Art. 206, inciso VII) determina que o direito à
educação refere-se não só à garantia do acesso e da permanência no ensino
fundamental, mas também à garantia de padrão de qualidade como um dos princípios
segundo o qual se estruturará o ensino (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2005; OLIVEIRA, 2006).
Identificar em que consiste a qualidade a que todos têm direito, de forma a que
seja possível exigi-la na justiça, como se faz com a vaga, é um desafio de pesquisa de
amplo impacto democratizador, permanecendo como questão fundante do debate sobre
política educacional contemporâneo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, resta-nos uma última questão: discutir a utilidade de batalhar pela
inscrição de determinado direito em textos legais. Tem sido esta a prioridade de inúmeros
educadores nos últimos anos, desde o período que antecedeu à Constituinte de 1987-
88, à elaboração do ECA, da LDB e, mais recentemente, do PNE.
A Constituição Federal de 1988 definiu mecanismos para fazer valer este direito
na esfera do Sistema de Justiça. Entretanto, a exclusão social e, particularmente, a
educacional requerem remédios mais amplos e articulados, pois em diversas esferas o
Estado mostrou-se refratário à efetivação de tais direitos.