Tchenrezi - O Senhor Da Grande - Bokar Rimpoche
Tchenrezi - O Senhor Da Grande - Bokar Rimpoche
Tchenrezi - O Senhor Da Grande - Bokar Rimpoche
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo
de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples
teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
Sobre nós:
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Primeira Orelha
Após a invasão chinesa do Tibete, muitos mestres tibetanos buscaram exílio inicialmente
nos países vizinhos e depois em diversos países da Europa e da América do Norte. A partir de
então, ao longo dos anos, esses mestres vêm incansável, generosa e amorosamente compartindo
sua experiência e seus ensinamentos com os ocidentais.
Muito recentemente, alguns desses mestres passaram a visitar o Brasil e a fundar centros
do dharma em nosso país. Entretanto, para a maioria das pessoas é ainda muito difícil o acesso
aos profundos e autênticos ensinamentos do budismo vajrayana.
de Kalu Rimpoche:
Budismo Vivo
Budismo Profundo
Budismo Esotérico
Contracapa
"TCHENREZI, o Grande Compassivo, não é um afresco num muro, nem uma figura
num a thangka. TCHENREZI é, tal como nasce na mente de um ser, a compaixão-vacuidade
derramando-se sobre todos com o mesmo ardor do amor de uma mãe por seu filho único."
Título/Autor
Bokar Rimpoche
Tchenrezi
NATUREZA DA DIVINDADE
REVISÃO TÉCNICA
Shisil Editora
Dados
François Jacquemart
Tchènrézi
Nature de Ia Divinité
Revisão técnica
Editoração eletrônica
Rimpoche, Bokar
96 p.
Shisil é uma expressão tibetana composta de duas sílabas: shi e sil. Shi significa acalmar,
pacificar, e sil significa refrescar, suavizar. Shisil poderia ser traduzido como o estado da mente
que proporciona uma calma suave, refrescante. Trata-se de calma, de pacificação, mas também
de algo suave, que proporciona refrigério. Shisil é, portanto, o estado de suavidade, de frescor, de
uma mente em paz. É esse mesmo espírito que orienta e orientará as publicações da ShiSil
Editora, fiel ao nome que lhe foi atribuído por Bokar Rimpoche.
Lekshe Drayiang
Editor
INTRODUÇÃO
François Jacquemart
Entretanto, os próprios tibetanos não vêem nessas divindades nada que contradiga o
budismo. Como fazem parte do vajrayana, ensinado pelo Buddha e em seguida transmitido
secretamente na Índia antes de se expandir para o Tibete, sua ortodoxia não lhes causava
nenhuma dúvida. Essas divindades estão em perfeito acordo com o corpo do ensinamento
original.
No primeiro capítulo desta obra, Bokar Rimpoche discute claramente esses pontos,
descrevendo a natureza de TCHENREZI (Avalokiteshvara em sânscrito), a divindade mais
popular do Tibete e uma das mais conhecidas no Ocidente. Mas para bem seguir os seus
propósitos, é importante compreender os dois níveis em que se podem situar os ensinamentos
budistas: o da realidade-guia e o da realidade definitiva.
Assim se exprime uma célebre louvação dirigida à divindade mais popular do Tibete.
É um deus luminoso, suave e compassivo que, de longínquos céus, vela sobre o destino
dos seres, como crê a maioria do povo tibetano? É uma simples imagem simbólica, como
pensam às vezes os ocidentais? Ou é, ainda, uma outra realidade, mais profunda e mais rica?
Em primeiro lugar, deve-se compreender que TCHENREZI é tanto uma aparência — a
manifestação divina — quanto uma essência — a realidade interior —, sem que uma exclua a
outra nem a contradiga. A aparência de TCHENREZI é o símbolo de sua essência tornada
manifesta. Por essa aparência pode-se aproximar da essência de TCHENREZI. A aparência não
esgota a essência, nem a essência nega a aparência. Pretender que TCHENREZI teria tão
somente uma existência exterior a nós mesmos seria um erro. Mas seria outro erro ver nele
apenas uma abstração. E indispensável captar o elo existente entre os dois aspectos da divindade,
tanto para compreender o que é TCHENREZI quanto para compreender a sua meditação.
✦ vacuidade e compaixão,
✦ conhecimento e meios,
Quaisquer que sejam os termos utilizados, é esta mesma realidade que é de fato
TCHENREZI. Ele é, para cada ser, a natureza desperta de sua própria mente, o amor e a
compaixão primordialmente presentes no dharmakaya.
TCHENREZI DE QUATRO BRAÇOS
TCHENREZI é assim inerente a nós, porque o amor e a compaixão não são qualidades
acrescentadas à mente. Fazem parte do despertar, ainda que, no momento, este esteja apenas
potencial em nós.
Dizer que TCHENREZI é a natureza última do espírito não é negar a sua manifestação
formal. A essência se exprime sob uma aparência. Ao mesmo tempo em que TCHENREZI
existe no plano da realidade definitiva, no plano da realidade-guia ele aparece sob a forma de
uma divindade, tal como a conhecemos habitualmente. Ele é a expressão visível tomada por
todos os Buddhas, para que possamos tornar ativos o amor e a compaixão que, no momento, são
apenas virtuais em nós, e para que se nos revele o TCHENREZI último. Seu próprio nome
exprime sua natureza, e cada sílaba que o compõe tem um sentido em tibetano:
✦ TCHEN significa olho;
✦ ZI significa olhar.
TCHENREZI é então aquele que olha para todos os seres continuamente com o olho da
compaixão.
A COMPAIXÃO
Ao mesmo tempo, devemos compreender o quanto somos afortunados por ter uma
existência humana. Se compararmos os nossos maiores sofrimentos ou nossas mais graves
dificuldades aos que sofrem os animais, veremos que nunca estamos numa condição tão dolorosa
quanto a sua. Quando, por exemplo, um animal está doente, seus sofrimentos físicos são os
mesmos de um ser humano que fica doente, mas o animal não tem nenhuma maneira de aliviar
o seu sofrimento: ele não o pode descrever, e não há médico nem remédio em que possa buscar
amparo. Quando está exposto a um grande frio ou a um intenso calor, não tem meios de se
proteger. Quando lhe impomos os mais duros trabalhos, não dispõe de nenhuma liberdade para
recusá-los. Entretanto, aos homens, mesmo aos mais pobres e desprovidos, sempre lhes resta
uma pequena margem de liberdade para tentar meios que melhorem a sua sorte.
A maioria das pessoas só vê o seu próprio sofrimento e lamenta-se sem cessar: "Como
eu sofro! Como dura esta doença! Como é penosa a minha situação! Como são grandes as nossas
necessidades!" Nunca se pensa em considerar os sofrimentos dos outros, ainda que, como os dos
animais, eles sejam muito mais numerosos e intensos que os seus.
Quando não compreendemos os sofrimentos dos outros, realizamos muitos atos que lhes
são nocivos, e que, por seu caráter negativo, nos acarretarão sofrimento em vidas futuras, ainda
que não desejemos que isso aconteça.
A compaixão, por sua vez, toma como ponto de referência o sofrimento. É a vontade de
que os seres possam agora estar livres do sofrimento, resultado de atos negativos passados, e que
não criem causas para sofrimentos futuros por meio de uma atividade negativa presente.
Que os outros possam ser felizes agora e no futuro, que possam cessar de sofrer agora e
no futuro, que possam crescer sem sofrer agora e no futuro, deve ser motivo de uma alegria
profunda.
É possível que essa bodhicitta, essa aspiração fundamental pelo bem dos outros, seja
uma disposição natural na mente de certas pessoas. Mas a maior parte do tempo estamos
voltados para nós mesmos e raciocinamos de maneira muito estreita. Qual é a nossa aspiração
implícita? "Possa eu estar livre do sofrimento e das causas do sofrimento! Que alegria para mim
poder me liberar do sofrimento e possuir a felicidade para sempre! Fulano e sicrano são meus
amigos, fulano e sicrano são meus inimigos, e quanto aos outros não me preocupo nem um
pouco!"
Ou ainda mais: " Para mim a felicidade, para mim o agradável, para mim o bom, para
mim o belo, para mim o precioso...". Por esse poderoso apego que nos liga ao "eu", viramos as
costas ao amor e nos fechamos numa dualidade cada vez maior: "Para mim a felicidade, para o
meu inimigo a infelicidade; para mim o bom, para o meu inimigo o mau; para mim o belo, para
meu inimigo o feio; para mim o agradável, para o meu inimigo o desagradável; para mim a
vitória e o ganho, para o meu inimigo a derrota e a perda!"
Esse interesse em nós mesmos e essa rejeição ou ignorância em relação aos outros
levam-nos a cometer muitos atos negativos.
Para que floresçam as qualidades da bodhicitta que ainda não estão despertas em nossa
mente, e para que as que já desabrocharam não se degradem e continuem a se desenvolver, o
método mais poderoso é certamente a meditação de TCHENREZI.
Apesar de toda a nossa boa vontade e do auxílio que tentamos sinceramente dar, pode
acontecer que recebamos em resposta uma atitude de descontentamento ou mesmo de
hostilidade. Arriscamo-nos fortemente a entrar numa engrenagem de agressividade e a dizermo-
nos que nunca mais ajudaremos aquele que reagiu dessa forma à nossa generosidade. Para não
irmos de encontro à compaixão é necessário que compreendamos bem o mecanismo da
situação. Aquele que, apesar de nossa intenção positiva, manifesta hostilidade contra nós, não o
faz livremente. Está dominado pela ignorância, pelo karma e pelas emoções conflituosas, que o
impedem, no momento, de agir de forma diferente. De fato, ele não tem escolha. Como disse
Shantideva;
Elas também estão sob o império de condições (que as levam a agir assim).
A compreensão desta ausência de liberdade do outro quando se mostra agressivo vai nos
impedir de rejeitá-lo. Ao contrário, teremos por ele muito mais compaixão e desejaremos, caso
não possamos ajudá-lo neste momento, poder fazê-lo no futuro.
Uma mãe com vários filhos tem por todos o mesmo amor, dá-lhes a mesma atenção e o
mesmo cuidado. Mas pode ocorrer que um dos filhos, por estar doente ou por outras dificuldades
passageiras, mostre-se agressivo em relação à mãe, apesar dos seus cuidados e da sua gentileza.
Talvez ele chegue mesmo a insultá-la ou a tentar bater-lhe. Isso não é impossível. Mas a mãe não
pensará: “Não é mais meu filho, não quero mais saber dele, nada farei por ele”. Ao contrário,
ela compreende que as suas reações são provocadas pela doença ou por outras circunstâncias.
Ela sente assim mais amor ainda por ele, suporta com paciência seus destemperos, e procura
auxiliá-lo no que for possível. Quando estivermos diante da agressividade injustificada dos outros,
é esta a atitude que devemos manter.
Com certeza não possuímos, atualmente, amor e compaixão perfeitos. Isso é normal, já
que somos seres comuns. Devemos buscar a sua aquisição como uma aprendizagem e uma
progressão, exatamente como uma criança que vai à escola e aprende primeiro a ler, e depois, à
medida que passa para as séries superiores, assimila novos conhecimentos com base nos
precedentes.
A compaixão quer que desejemos liberar todos os seres do samsara. Às vezes, tendemos
a considerar esse desejo como irrealizável em razão de sua amplitude.
Já que, até o presente, não conseguimos liberar a nós próprios do samsara, como aspirar
à liberação dos outros! Entretanto, é precisamente esta atitude nobre e corajosa que nos conduz à
nossa própria liberação, e que, quando tivermos atingido o despertar, será a dinâmica que nos
permitirá auxiliar os outros. Agora mesmo, ela engendra grandes benefícios, diminuindo nossos
próprios sofrimentos e permitindo aliviar os dos outros.
Sem a bodhicitta, isto é, sem o amor e a compaixão, toda prática, por mais profunda que
pareça ser, não constitui um caminho para o despertar: nem shine (pacificação mental), nem as
meditações sobre as divindades, nem os exercícios sobre os canais e as energias sutis.
Os ocidentais dispõem hoje de múltiplas técnicas que permitem realizar coisas
maravilhosas. Os homens podem voar pelos ares, deslocarem-se sob o mar, reproduzir e
transmitir a imagem e a palavra, cobrir grandes distâncias em pouco tempo, e fazer ainda muitas
outras coisas que não se poderia imaginar há algum tempo. Contudo, nada disso teria sido
inventado e não poderia funcionar se a eletricidade não tivesse sido descoberta antes. Sem
eletricidade, tudo pára, as máquinas tornam-se objetos imóveis e inúteis.
Aquele que tivesse toda a inteligência e toda a ciência do mundo, mas a quem faltasse o
amor e a compaixão jamais poderia realizar nada de verdadeiramente benéfico para os outros.
Aquele que está profundamente embebido de amor e de compaixão realiza o bem dos outros em
tudo o que faz.
A PRESENÇA DE TCHENREZI
De toda pessoa cujo coração é movido pelo amor e pela compaixão, que visa profunda
e sinceramente ao bem dos outros, sem pensar em fama, lucro, posição social ou
reconhecimento, pode-se dizer que exprime a atividade de TCHENREZI. O amor e a compaixão
são os verdadeiros sinais que nos revelam a presença de TCHENREZI.
Os bodhisattvas são seres que têm por única motivação a compaixão, que nada mais é
do que TCHENREZI no sentido último. Em certas preces dos bodhisattvas encontra-se às vezes o
desejo de tornar-se um navio, uma ponte, um remédio, um médico, etc. No
Bodhisattvachary avatara, por exemplo, Shantideva afirma:
A mente de TCHENREZI pode operar sob a forma de um ser humano, um animal, uma
planta ou uma coisa inerte, sendo sempre a expressão da compaixão.
TCHENREZI pode até mesmo manifestar-se sob a forma de uma pessoa cuja atividade
será aparentemente negativa, mas que terá de fato a finalidade de dirigir os outros para uma
conduta positiva. Conta-se a história de
dois monges de um país distante que, tendo ouvido falar que o rei do Tibete, Songtsen Gampo, era
uma emanação de TCHENREZI, quiseram encontrá-lo. Chegando em Lhasa, souberam que, por
ordem do rei, numerosas pessoas haviam sido executadas e muitas outras aprisionadas. Disseram
para si mesmos que tais atos não poderiam vir de uma emanação de TCHENREZI, mas ficaram
com medo e resolveram fugir o mais rápido possível. Mas o rei, tendo sabido da vinda deles e do
projeto de partida precipitada, enviou emissários para procurá-los. Quando o rei compreendeu as
razões que motivavam a fuga, explicou-lhes que em realidade não matara nem maltratara
nenhuma pessoa. Disse-lhes que os tibetanos eram um povo rude e selvagem, pouco inclinado a
submeter-se às leis e às regras de uma sociedade que preservasse o interesse da cada um. Assim,
para conduzi-los à temperança, sem entretanto lhes fazer mal, criou emanações mágicas sob a
forma de malfeitores e salteadores, cujos castigos exemplares, ainda que ilusórios, incitariam o
respeito às leis e aos outros. O rei era de fato uma emanação de TCHENREZI: os seus poderes
podiam dar a aparência de atos negativos, mas ele os utilizava apenas como instrumento de sua
compaixão.
Lá onde está a compaixão, qualquer que seja sua forma, lá está TCHENREZI.
A GÊNESE DE TCHENREZI
Para tanto, enviava regularmente um servidor ao Lago dos Lótus, localizado não muito
longe do seu palácio, com a missão de colher as mais belas flores frescas. Num dia em que o
servidor partira para fazer sua colheita, notou uma criança de aspecto maravilhoso, sentada sobre
o coração de um lótus. Correu imediatamente para o palácio e relatou ao rei o que vira.
A miraculosa criança só poderia ser o filho que tanto desejava. Acompanhado por sua
corte, o rei dirigiu-se ao Lago dos Lótus para suplicar ao jovem que viesse morar com ele. O
jovem parecia ter dezesseis anos. Era muito bonito, de cor branca, adornado de sedas e jóias e
dizia sem cessar: "Pobres seres! Pobres seres!"
O jovem veio morar no palácio do rei que, em razão das circunstâncias da sua
descoberta, chamou-o de Coração de Lótus (Pemai Ny ingpo).
O rei Bondade Sublime queria entretanto saber de onde viera o jovem. Assim, foi
procurar Amitabha, e perguntou-lhe de quem Coração de Lótus era a emanação e qual o seu
nome verdadeiro.
Quando, mais tarde, TCHENREZI pousou o seu olhar de compaixão sobre os seres, viu
que estavam recobertos de numerosos véus cármicos e inúmeros eram os seus sofrimentos, pois
estavam sob o domínio do desejo, da aversão, da cegueira, do ciúme e do orgulho. Ao ver isso,
uma lágrima caiu de cada um de seus olhos. Da lágrima de seu olho direito surgiu Tara, e da
lágrima de seu olho
TCHENREZI DE DOIS BRAÇOS
esquerdo apareceu a deusa Lhamo Trölny ertchen. As duas divindades voltaram-se para ele e
disseram: "Não tema. Vamos ajudá-lo em sua missão de beneficiar todos os seres". Em seguida,
num instante, fundiram-se de novo nos olhos de TCHENREZI.
O corpo de TCHENREZI emitiu então seis raios de luz que produziram emanações, para
o bem de todos, em cada uma das seis classes de seres: os homens, os deuses, os semi-deuses, os
animais, os espíritos ávidos, os seres dos infernos.
Ele trabalhou assim durante numerosos kalpas, até que, um dia, do alto do monte Meru,
olhou com o olho do conhecimento se havia liberado numerosos seres, se o seu número havia
diminuído no samsara. Mas viu que ainda eram inumeráveis.
Ficou muito triste por isso. Desencorajado, pensou: "Não tenho a capacidade de socorrer
os seres. É melhor que eu me repouse no nirvana."
Esse pensamento contrariou sua promessa. Assim, seu corpo fragmentou-se em mil
pedaços, e ele sentiu um intenso sofrimento.
Amitabha, pelo poder de sua graça, recompôs o corpo de TCHENREZI. Deu-lhe onze
rostos, mil braços semelhantes aos mil raios de uma roda de um monarca universal, e mil olhos,
símbolos dos mil Buddhas do presente kalpa. TCHENREZI poderia, a partir de então, auxiliar os
seres sob esta forma, bem como sob suas outras formas, com dois ou quatro braços. Amitabha
pediu a TCHENREZI que retomasse a sua promessa, agora ainda com mais vigor do que antes, e
transmitiu-lhe o mantra de seis sílabas:
Não temos, no momento, a capacidade de ver os campos puros. Entretanto, voltar para
eles a nossa mente e rezar para neles renascer cria uma tendência purificadora que, aliada à
força dos desejos e ao poder da graça dos Buddhas, permite efetivamente aí renascer, depois da
morte.
A experiência que então lá se tem difere tanto da que vivemos atualmente como da que
vive um Buddha. As aparências que lá percebemos não têm a mesma estrutura da matéria
ordinária, têm um caráter puro. Tudo lá é belo, todos os sons harmoniosos, todos os odores
agradáveis. Lá, as emoções conflituosas e o sofrimento estão ausentes. No entanto,
permanecemos numa relação de sujeito-objeto. Não experimentamos a pureza não-dual. Para
isso, devemos continuar, no campo puro, a receber os ensinamentos, a meditar, a praticar.
Saímos dos sofrimentos do estado ordinário do ser, mas não atingimos a não-dualidade última, o
estado de Buddha.
De modo geral, para renascer nos campos puros, é necessário primeiro ter obtido a
primeira terra de bodhisattva, nível de realização muito elevado, no qual já se possui a visão
direta da realidade última. O Campo da Beatitude não demanda, necessariamente, a conquista de
tal grau. Pode-se aí renascer e viver sem ter alcançado a primeira terra, graças à força
particular da compaixão e das aspirações do Buddha Amitabha. Diz-se que se a aspiração, a
devoção e a confiança são muito grandes, mesmo aquele que cometeu numerosos atos negativos
pode renascer no Campo da Beatitude. É também o local onde se podem manifestar, após esta
vida, grandes seres como Tchy ungpo Neljor, o fundador da linhagem Shangpa. De qualquer
modo, é um estado sem retorno. Uma vez aí renascido não mais é possível retornar aos mundos
do samsara.
O s mantras são uma manifestação sonora nascida da vacuidade. Eles são o som
autêntico da vacuidade.
As qualidades próprias a cada uma das seis sílabas do mantra são explicadas por
numerosas correspondências.
Considera-se, em primeiro lugar, que cada uma das seis sílabas permite fechar a porta
dos renascimentos dolorosos, em um dos seis mundos da existência cíclica.
• OM fecha a porta dos renascimentos no mundo dos deuses (devas);
• OM corresponde à generosidade;
• MA, à ética;
• NI, à paciência;
• PE, à diligência;
• ME, à concentração;
• HUNG, ao conhecimento.
As seis sílabas são também relacionadas aos seis Buddhas que reinam sobre as seis
famílias de Buddhas:
• OM corresponde a Ratnasambhava;
• MA, a Amoghasiddhi;
• NI, a Vajradhara;
• PE, a Vairocana;
• ME, a Amitabha;
• HUNG, a Akshoby a.
• MA, à da atividade;
• PE, à do dharmadatu;
• ME, à discriminante;
No Tibete, o mantra de TCHENREZI era recitado por todo mundo. Seu caráter popular e
simples, longe de diminuir sua grandeza, conferia-lhe um valor adicional, como expresso num
provérbio bem humorado:
DO PURO AO IMPURO
O dharma é um processo que permite passar do estado do ser comum ao estado do ser
desperto, que se chama Buddha. Não se poderá captar o alcance do dharma e sua função
profunda caso não se compreenda esse processo, cujos princípios são expressos em termos de
purificação:
• base da purificação,
• objeto da purificação,
• agente purificador,
• resultado da purificação.
A base da purificação
Nossa própria mente, na sua verdadeira natureza, é a mente em si, semelhante ao modo
de ser da mente de todos os seres. Sendo assim, não está maculada por impurezas. Entretanto,
encontra-se agora impregnada de numerosos condicionamentos passageiros que, embora não
afetem a sua essência, produzem a ilusão e o sofrimento.
O objeto da purificação
Esses seis objetos e essas seis consciências são, no entanto, desprovidas de uma entidade
própria. No processo de percepção de uma forma, por exemplo, incorremos em erro ao
perceber como duas entidades independentes o objeto percebido e a mente que percebe. Na
realidade, a forma, percebida como objeto, nada mais é do que a manifestação do aspecto
"claridade" da mente, enquanto que o eu-sujeito nada mais é do que o aspecto "vacuidade" dessa
mente. No mecanismo de ilusão chega-se, contudo, à situação de olhar-se como sendo outro. É
um pouco como o que ocorre quando caminhamos ao sol: nossa sombra destaca-se de nós e
aparece como outro.
O agente purificador
Para lavar um tecido das manchas que o recobrem é necessário utilizar diferentes
produtos: água, detergente ou sabão. Da mesma maneira, para que se opere a purificação de
nossa mente, um agente é necessário: o dharma. Todas as suas etapas, todos os aspectos que o
compõem, todas as meditações que nele são ensinadas participam desta única função
purificadora. Quer sejam a tomada de refúgio, as práticas preliminares, a pacificação mental
(shine) e a visão superior (lhaktong), as fases de criação e de realização nas meditações do
vajrayana, enfim o mahamudra, tudo visa ao mesmo objetivo.
Estes pontos serão examinados mais adiante, nas seções "função das duas fases" e "as
três características da fase de criação". Veremos então em detalhe a função purificadora de
TCHENREZI.
Resultado da purificação
Enquanto os dois corpos formais realizam o bem dos seres, a mente de Buddha não
produz esforço, não engendra intenção, nem experimenta dificuldade. É uma atividade
totalmente espontânea, semelhante à irradiação do sol, que resulta dos desejos, da motivação e
dos méritos anteriores.
Embora os aspectos dos três corpos difiram, a sua essência é una. O que são três
aspectos numa só essência, podemos compreender por um exemplo. A lua no céu é semelhante
ao dharmakaya, seus raios semelhantes ao samboghakaya, e seu reflexo na água semelhante ao
nirmanakaya. A lua, os raios e o reflexo, ainda que pareçam diferentes, são uma única e mesma
essência.
Assim, a base de purificação é a nossa mente de ser ordinário impuro, mas dotado das
potencialidades de despertar. O objeto da purificação são as impurezas contingentes nascidas da
polaridade sujeito-objeto. O agente de purificação é o dharma. O resultado da purificação é a
realização do modo de ser não dual, a atualização do despertar.
A INICIAÇÃO
Toda meditação do vajrayana pressupõe, para ser eficaz, uma iniciação, isto é, um ritual
que transmita a força espiritual. Sem essa iniciação, a prática das fases de criação e de
realização não podem ser realizadas, e mesmo que isso aconteça será em vão.
A iniciação de TCHENREZI, que só pode ser transmitida por um mestre que a recebeu
de uma linhagem ininterrupta, compreende três aspectos principais, incluídos numa mesma
cerimônia:
CRIAÇÃO E REALIZAÇÃO
Quando uma onda se forma na superfície do mar, ela pode aparecer como sendo algo
diferente desse mar. Entretanto, quando ela baixa, retorna ao mar, que é a sua própria natureza.
Da mesma maneira, as fases de criação e de realização não são, em essência, separadas. Como
a onda e o mar, participam da mesma natureza. A fase de criação é semelhante à onda que se
eleva e a fase de realização, à onda que retorna ao mar. Nos dois casos, é a mesma mente que
medita. Não são duas realidades diferentes. Se não se compreende bem essa relação, poder-se-á
talvez ter a idéia de que a fase de criação assemelha-se à construção de uma casa e a fase de
realização à sua destruição.
Para os principiantes, as duas fases têm, certamente, um aspecto bem distinto; primeiro,
realizamos a fase de criação, ao longo da qual visualizamos a divindade e recitamos o mantra, e,
ao fim dessa fase, passamos à fase de realização em que toda aparência se reabsorve na
vacuidade.
Quando visualizamos TCHENREZI, podemos ver claramente seu rosto, seus braços,
suas jóias, as diferentes cores: é a fase de criação. Ao mesmo tempo, TCHENREZI é sem
existência material: é a fase de realização. Da mesma maneira, os sons são simultaneamente
sonoridade e vacuidade, os pensamentos são simultaneamente consciência e vacuidade.
Na realidade, cada pensamento que se eleva em nossa mente contém em si mesmo as
fases de criação e de realização.
Tal é a natureza das duas fases. Veremos agora como "funciona" a meditação de
TCHENREZI, como ela suporta nosso progresso espiritual em geral, as contribuições específicas
das duas fases, e as características da fase de criação.
✴ A motivação que nos leva a fazer essa meditação é a de poder realizar o bem dos
seres: é a paramita da generosidade.
✴ compreender, de uma parte, como ela permite desenvolver aspectos tão variados
como a eliminação dos pensamentos ilusórios, a acumulação de mérito, a compaixão, a
devoção, a pacificação mental, a visão superior e o mahamudra;
✴ compreender, de outra parte, como ela permite que se opere uma purificação no
nível mais profundo de nossos condicionamentos.
✴ compaixão: pensa-se nos sofrimentos dos seres, e, por diversas visualizações que
veremos adiante, desenvolve-se a compaixão por eles; além disso, a forma mesma de
TCHENREZI, bem como o seu mantra, impregnam nossa mente com a compaixão de todos os
Buddhas, pois são a sua expressão;
✴ pacificação mental (tibetano shine): o fato de que, durante a meditação, nossa mente
permanece sem distração sobre o corpo da divindade em seu conjunto, ou sobre um detalhe,
sobre uma sílaba visualizada ou ainda sobre o som do mantra, permite desenvolver a
pacificação mental; além disso, a variedade de objetos sobre os quais a mente pode meditar
sucessivamente impede que se relaxe e facilita a progressão na meditação;
✴ visão superior (tibetano lhakthong): quando o corpo de TCHENREZI aparece
claramente em nossa mente, ele permanece contudo desprovido de entidade própria e de
realidade material, semelhante ao reflexo da lua sobre a água ou a uma imagem num espelho;
ele é a irradiação luminosa do TCHENREZI último, que é também a natureza última de nossa
mente; reconhecer essa natureza vazia da aparência é a visão superior;
As aparências, tais como as percebemos, não têm, em realidade, existência em si. São a
produção de nossa própria mente, produção deformada pelos condicionamentos derivados de
nosso karma. Esses condicionamentos atuam no nível do "potencial de consciência" e levam a
experimentar-se a manifestação como separada de nós, sólida, real em si, e causa de
inumeráveis sofrimentos. Uma mente livre desses condicionamentos é uma mente pura, na qual
se manifestam as aparências puras, desprovidas de materialidade, fora da dualidade sujeito-
objeto, sem a marca das emoções conflituosas e do sofrimento.
Nesse contexto, a meditação das divindades, incluindo as duas fases, tem uma tríplice
função:
✴ Antes de começar a visualização, pensa-se que todos os fenômenos sob a sua forma
ordinária impura reabsorvem-se na vacuidade. Simboliza a morte que precedeu esta vida. Isso
nos purifica, de uma maneira geral, dos condicionamentos da morte produzidos em nossas
existências passadas e prepara-nos para a atualização do corpo absoluto (dharmakaya), a
natureza última da mente.
Dessa maneira opera-se uma total purificação, ao mesmo tempo que a emergência dos
três corpos do despertar se torna possível. Na realidade, nossa mente é e sempre foi Buddha por
natureza, mas os diferentes véus que a recobrem mantêm em estado latente essa natureza
desperta, impedindo que ela se manifeste. Quando se manifestar, os campos puros e os corpos
das divindades, que são a expressão verdadeira da natureza última da mente, também se
revelarão.
Voltemos agora à fase de criação. Para ser completa, deve apresentar três
características:
• a clareza da aparência,
A clareza da aparência
✴ as cores ordinárias são retomadas nas cores do conjunto e mais particularmente nas
do corpo, nas dos ornamentos e nas das vestimentas da divindade.
Mas a clareza da visualização não deve produzir a percepção de um objeto divino que
existiria verdadeiramente, materialmente, ainda que num plano mais belo ou mais elevado que o
nosso. A divindade é ao mesmo tempo aparência e ausência de realidade própria, como uma
imagem num espelho, ou como o reflexo da lua na água. A divindade visualizada não é da
mesma natureza de uma thangka ou de uma estátua: ela é desprovida de existência material e, ao
mesmo tempo, dotada das qualidades do espírito desperto. Ela não é nem material nem inerte.
✴ a cor branca do seu corpo: ele é totalmente puro, livre de todo véu;
✴ a jóia que segura em suas mãos unidas na altura do coração: ele é aquele que realiza
o bem de todos os seres, satisfaz a todas as suas necessidades;
✴ o lótus na mão esquerda: ele possui a compaixão por todos os seres; ademais, assim
como um lótus cresce no lodo sem que sua flor seja maculada, TCHENREZI atua no mundo
sem ser maculado pelas emoções conflituosas e pelas imperfeições;
✴ o disco lunar por trás de suas costas: o amor e a compaixão atingiram nele toda a sua
plenitude;
O orgulho da divindade
Os seres estão ligados por uma assimilação muito forte à sua individualidade. A idéia de
um "eu", referido a essa individualidade, está profundamente enraizada em nós, é uma espécie
de orgulho no nível mais fundamental.
Cada um dos três aspectos da fase de criação tem assim uma função precisa:
Esses três pontos são importantes, mas o desenvolvimento do terceiro é mais importante
que o dos outros dois. Num nível profundo, o orgulho da divindade permite que o corpo de
TCHENREZI seja percebido como uma expressão da claridade de nossa própria mente, como
uma irradiação luminosa de sua natureza vazia. Sujeito e objeto, vacuidade e aparência tornam-
se indissociáveis e permanece-se nessa contemplação. É claro que esse estado não poderá ser
alcançado rapidamente. No inicio, é suficiente pensar simplesmente: "Eu sou TCHENREZI".
APRENDER A VISUALIZAR
Deve-se evitar uma abordagem rígida e muito estruturada das coisas e considerar a
visualização de TCHENREZI como a construção do muro de uma casa na qual cada tijolo é
colocado solidamente sobre o outro, e as portas e janelas são materialmente bem encaixadas no
seu lugar. Um bom método é o seguinte:
De outro modo, corre-se o risco de abordar a visualização inquieta e tensa: "É preciso
que eu consiga visualizar de qualquer maneira, sem nada esquecer: o corpo, a cor, os atributos;
que os braços fiquem na posição correta; também as pernas; principalmente que eu não perca o
rosto enquanto penso no lótus, ou no rosário..." A tarefa vai parecer esmagadora e estaremos
desencorajados antes mesmo de começar.
Quando, durante a visualização, temos uma certa flexibilidade, uma certa aceitação
daquilo que podemos fazer ou não, é nossa mente que assim pensa. Ao contrário, quando
queremos uma visualização perfeita, não conseguimos e revoltamo-nos contra nós mesmos ou
nos desencorajamos, é ainda a nossa mente que cria esses problemas. É a mente que considera
as coisas de uma maneira ou de outra, cria sua própria facilidade ou sua própria dificuldade. E
preciso ser hábil para orientar a mente corretamente, e saber meditar relaxadamente e à
vontade, como a criança que toma o que lhe convém pelo tempo que lhe é conveniente. Isso para
ela não é complicado, nem lhe traz inquietação. Com essa atitude, os pensamentos que nos
agitam habitualmente podem verdadeiramente se acalmar. Se, ao contrário, fixamo-nos na idéia
de que não se pode esquecer isto ou deixar desaparecer aquilo, estaremos apenas adicionando
novas preocupações às nossas preocupações, novas tensões às nossas tensões, e essa não é a
finalidade da meditação.
MÉTODOS DE MEDITAÇÃO
PRELIMINARES
Nos dois casos, não se toma o refúgio sozinho, mas imagina-se que se o faz junto com
todos os seres do universo, até o despertar.
FASE DE CRIAÇÃO
Recita-se, então:
Depois, recita-se três vezes uma curta louvação, durante a qual se pensa que, ao mesmo
tempo que todos os seres, rende-se homenagem às qualidades do corpo, da palavra e da mente
de TCHENREZI. Recita-se três vezes:
TCHENREZI la tchatsello.
Pensa-se logo a seguir que, em resposta a esta prece, TCHENREZI emite de seu corpo
todo raios de luz que se espalham por todas as direções e tornam puras todas as aparências:
Veremos aqui dez visualizações, que podem ser efetuadas alternativamente, sem que
haja obrigação de passar de uma para a outra, e sem que essa lista seja exaustiva.
✦ MA: verde
✦ NI: amarelo
✦ PE: azul
✦ ME: vermelho
✦ HUNG: negro
Depois, a mesma luz irradia-se até o mundo dos espíritos ávidos, acalma sua fome,
extingue sua sede, transforma esse mundo num campo puro.
Pensa-se do mesmo modo que a luz se propaga sucessivamente em cada um dos seis
mundos do samsara: depois dos infernos, e dos espíritos ávidos, os animais, os humanos, os semi-
deuses e os deuses são por sua vez aliviados de seus sofrimentos e das emoções conflituosas que
os causam.
A fase de criação não tem uma duração fixa: é possível continuá-la o quanto pudermos
ou quisermos. Pode-se recitar cem, mil, dez mil mantras ou mais.
FASES DE REALIZAÇÃO
Após recitar o número desejado de mantras, passa-se para a fase de realização, que
começa com a reabsorção progressiva de todos os elementos da fase de criação, até a
vacuidade:
✦ o Campo da Beatitude funde-se com os seres visualizados sob a forma de
TCHENREZI;
✦ os diferentes elementos de HRI reabsorvem-se uns nos outros: primeiro os dois pontos
colocados à direita no atchung, que constitui a parte inferior da sílaba propriamente dita;
AS ETAPAS DA DISSOLUÇÃO DA SÍLABA HRI
✦ HA no guigu;
✦ o guigu torna-se um tigle (um pequeno ponto de luz branca) tendo em cima um nada
(espécie de centelha);
Se há pouco tempo, em lugar desta dissolução progressiva, pode-se imaginar que todas
as aparências da fase de criação desaparecem de imediato na vacuidade.
Deixa-se então a mente em repouso, sem visualização, sem introduzir nenhum conceito
adicional na meditação, do tipo: "A vacuidade da mente deve ser assim", ou "Creio que a mente é
claridade", etc. Permanece-se simplesmente numa vigilância sem distração, sem seguir os
pensamentos que se elevam, sem procurar pará-los, sem aceitação nem rejeição, sem
esperança nem temor.
CONCLUSÃO
Conhecimento Supremo.)
A seguir, dedica-se o mérito da meditação, desejando que ela nos auxilie a atingir o
estado de TCHENREZI para o bem de todos os seres. Recita-se:
Possa eu, como todos aqueles que estão vinculados a mim e todos os demais seres,
Por meio de emanações, e orar para o bem dos seres das dez direções.)
A prática, para ser completa, não deve limitar-se às sessões de meditação, mas
prosseguir em todas as atividades da vida, de dia e de noite. Veremos sucessivamente cinco
aspectos desta continuidade da meditação:
✦ a prática do sono;
✦ a prática da refeição.
Para poder assumir essa posição mediana, deve-se compreender, como se costuma
dizer, que "o mestre das aparências" é a mente. Quando se eleva uma aparência e afirmamos a
sua realidade, quando somos persuadidos da sua existência real, é a mente que faz esta
afirmação. Se negamos essa realidade, é a mente que opera essa negação. As aparências não se
afirmam nem se negam por si mesmas, só a mente intervém para atribuir-lhes existência ou
não-existência. Se, agora, voltamo-nos para a essência da própria mente, nada encontramos, não
podemos atribuir-lhes nenhuma identificação. Essa essência é inexprimível, ela é vazia.
Quando a mente não permanece na sua essência, podemos pensar que as aparências
existem verdadeiramente ou que elas são verdadeiramente desprovidas de existência. Mas a
essência mesma daquele que afirma ou que nega não é um objeto identificável, uma "coisa" que
se possa descobrir. Não tendo nenhuma existência própria, ela é vacuidade. Desse modo, não
caímos no eternalismo, que é a crença em uma mente enquanto realidade individual, na
realidade de um ego. Isso não significa, entretanto, que nada haveria, uma inexistência total. Na
própria vacuidade elevam-se todas as aparências e todos os pensamentos. Assim, não caímos
também no extremo do nihilismo.
Nessa posição, livre dos dois extremos, as aparências são auto-liberadas, livre expressão
da vacuidade da mente. É a VISÃO de TCHENREZI, o Grande Compassivo.
Nossa relação com os fenômenos estabelece-se sobre a base dos "seis grupos
sensoriais", sendo cada grupo composto de um órgão dos sentidos, de um objeto e da consciência
correspondente. Tem-se, assim:
Na realidade, embora não haja dualidade entre os objetos dos sentidos e as consciências
que os apreendem, estabelecemos uma separação entre sujeito e objeto. Daí nasce uma
classificação entre objetos (formas, odores, sabores, etc.) bons ou ruins, agradáveis ou
desagradáveis, sobre a qual se mesclam as noções de apego e aversão. Se não se reconhece a
verdadeira natureza desse apego e dessa aversão, os seis grupos sensoriais são auto-prisioneiros;
se os reconhecemos, eles são auto-liberados; sua aparição e sua liberação ocorrem
simultaneamente.
Quando a mente cai sob o império da ilusão, o apego leva-nos a crer que o objeto
percebido é realmente bom, e a aversão, que o objeto percebido é verdadeiramente ruim — mas
os fenômenos não afirmam nenhuma qualidade por si mesmos. De fato, é apenas a mente que
engendra apego e aversão, confere as classificações. Uma forma, um som, um odor, ou um
sabor não se auto-designam como agradáveis ou desagradáveis. E tão somente a mente que
adiciona essas noções ao que ela percebe pelos sentidos e cria o jogo do apego e da aversão.
Como essa mente é vazia e livre em si, apego e aversão são também vazios e livres em si. Os seis
grupos sensoriais, suporte deste funcionamento, são, também, vazios e auto-liberados.
Reconhecer a essência dos seis grupos sensoriais é suficiente assim para assegurar sua auto-
liberação, sem que se tenha de agir sobre eles.
As circunstâncias boas são aquelas que produzem nossa alegria: estar na companhia dos
amigos ou das pessoas que amamos, manter conversações agradáveis, realizar atividades que nos
proporcionem alegria. Apegamo-nos a essa alegria e atribuímos-lhe uma realidade.
Quando surge a alegria, é preciso observar a mente que a experimenta. Essa mente é
vazia em essência. Nesta vacuidade, as noções de amigos, de palavras ou de sons agradáveis, etc.
não têm nenhuma realidade. As boas circunstâncias são portanto vacuidade. Tudo o que nos
aparece como felicidade é desprovido de uma entidade própria, auto-liberado ao mesmo tempo
que manifestado.
Felicidade e sofrimento são de fato a dinâmica da mente vazia, sem realidade própria;
assim, não é necessário rejeitá-los ou aceitá-los.
Deixar as circunstâncias auto-liberadas é a AÇÃO do Grande Compassivo.
Esses três primeiros aspectos são a continuidade da prática tal como devemos aplicar
durante o dia.
A PRÁTICA DO SONO
A prática do sono diz respeito, por um lado, ao sono profundo, sem sonhos, e, por outro,
aos sonhos; o sono está em relação com a clara luz; os sonhos, com a realidade das aparências.
Inicialmente, formula-se o desejo de poder ter consciência dos sonhos que surgirão em
nossa mente durante a noite. Em seguida, antes de dormir, para preparar a prática do sono
profundo, visualizamo-nos sob a forma de TCHENREZI e imaginamos no interior de nossa
fronte, entre as sobrancelhas, uma pequena esfera de luz branca sobre a qual se repousa a mente.
Adormece-se, assim. Com o apoio desta visualização, se for possível dormir num estado sem
distração, com ausência de pensamentos, com a mente na vacuidade, estabelece-se o
fundamento do reconhecimento da clara luz, primeiro durante o sono profundo, depois no
momento da morte. A clara luz propriamente dita supõe que a ausência de pensamentos seja
acompanhada de consciência. No entanto, mesmo que não a obtenhamos verdadeiramente, a
ausência de pensamentos e a meditação sobre a esfera da luz branca favorecem sua emergência
vindoura. Em particular, no momento da morte poderemos reconhecê-la, ao fim do processo de
manifestação-extensão-obtenção.
Quando se acorda pela manhã, ao se recordar dos sonhos da noite passada, não se lhes
confere qualquer significado especial. Não se considera os bons sonhos como uma coisa boa e
auspiciosa, e os sonhos desagradáveis, como um coisa má ou de mau augúrio. Lembramo-nos
somente que os sonhos nada mais são do que manifestações ilusórias da mente que, em essência,
está livre dessas qualificações de bom ou de mau.
Outros mestres, como a monja indiana Guelongma Palmo ou como Ky ergangpa, são
notáveis não como emanações, mas em razão da posição particular que TCHENREZI ocupa em
suas vidas.
Os breves resumos que se seguem da vida desses quatro mestres são dados em ordem
cronológica.
Guelongma Palmo
O texto intitulado Mani Khabum relata que, nascida numa família real do noroeste da
Índia, desejava desde muito jovem renunciar aos seus privilégios de princesa e abraçar a vida
monástica. Mas aconteceu que, acometida de lepra, tendo perdido mãos e pés, foi obrigada a
deixar o monastério.
Abandonada por seus servidores num local distante dos homens, ela permanecia num
estado de grande tristeza. Um sonho trouxe-lhe uma certa consolação. Ela viu o rei Indrabodhi,
que a abençoou e lhe disse: "Pratique a meditação de TCHENREZI, que você alcançará a
sublime realização, a realização da natureza da mente". Seguindo esse conselho, aplicou-se
durante o dia a recitar OM MANI PEME HUNG, e, durante a noite, o mantra longo2 de
TCHENREZI. Ela recebeu também instruções diretas do mahasiddha Leão de Glória, célebre por
sua realização do Grande Compassivo.
Ela foi então ao local indicado pela divindade. Firmou o compromisso de não partir dali
enquanto não tivesse alcançado a realização sublime. Continuou a recitar os diferentes mantras de
TCHENREZI, ao mesmo tempo que jejuava completamente um dia em cada dois, abstendo-se
de qualquer alimento ou líquido — aquilo que chamamos a prática de nyung-ne. Isso resultou
numa extraordinária purificação, e, pela graça de TCHENREZI, ela ficou completamente
curada, recobrou a integridade dos seus membros e a saúde de uma jovem normal. Ao mesmo
tempo, sua meditação progrediu consideravelmente.
Aos vinte e sete anos, obteve a primeira terra de bodhisattva e recebeu de Tara uma
predição: "Você poderá realizar a atividade dos Buddhas dos três tempos."
Finalmente, depois de muitos anos de meditação e de ascese, num dia de lua cheia do
terceiro mês tibetano (sagadawa), apareceu-lhe TCHENREZI de onze cabeças. Seu corpo
continha todas as divindades das quatro classes de tantra; os poros de sua pele irradiavam
inumeráveis campos puros. Guelongma Palmo, maravilhada, disse, contudo, à divindade: "Nobre
TCHENREZI, durante muito tempo e com muito esforço, eu realizei sua prática. Por que o
Senhor demorou tanto a vir até mim?"
"A partir do primeiro momento em que você começou a meditar em mim," respondeu
TCHENREZI, "nunca mais me separei de você. Estive constantemente com você, mas devido
aos véus cármicos que recobriam ainda a sua mente, você não podia me ver".
TCHENREZI conferiu-lhe então sua graça, deu-lhe novas instruções e ela obteve todas
as qualidades da décima terra de bodhisattva, tornando-se semelhante ao próprio Grande
Compassivo.
Songsten Gampo
Diz-se que, no momento de sua concepção, ele entrou no ventre de sua mãe sob a forma
de um raio de sol. Todos os Buddhas e bodhisattvas souberam então que TCHENREZI emanava-
se na terra em favor dos tibetanos. Na mesma noite, a rainha sua mãe viu num sonho que seu
corpo emitia raios de luz que se propagavam por todas as direções, enquanto que deuses e deusas
apresentavam oferendas. Ela viu também que o sol e a lua colocavam-se como guarda-chuvas
para abrigá-la e múltiplas flores formavam-lhe um tapete. Teve, também, uma experiência da
claridade não conceitual.
Logo que a criança nasceu, todos viram os sinais maravilhosos que a marcavam: em
particular, seu crânio estava coberto por uma pequena cabeça do Buddha Amitabha.
Posteriormente, a iconografia tradicional representará sempre o rei usando um chapéu, cuja
função era a de ocultar tal cabeça.
Essas foram, portanto, a concepção e o nascimento daquele que, embora nascido numa
fam ília bón, iria converter-se ao budismo e introduzir a compaixão e a doçura dessa tradição
num país que era reputado pela sua barbárie.
Kyergangpa
Ky ergangpa, que viveu no século XII, é um lama da linhagem Shangpa Kagy ü, da qual
ele foi o terceiro detentor depois de Tchy ungpo Neljor e Motchokpa. Tinha por TCHENREZI
uma devoção particular; veremos que sua experiência assemelha-se muito à de Guelongma
Palmo.
"Eu tenho agora uma preciosa existência humana", pensou ele. "Não devo deixá-la
exaurir-se em vão, mas dar-lhe todo o seu sentido. Devo usá-la para obter o despertar e realizar o
bem de todos os seres. Para atingir esse objetivo, assumo o compromisso de realizar
continuamente a prática de TCHENREZI."
Logo após essa promessa, retirou-se para um eremitério. Noite e dia, praticava a
meditação de TCHENREZI e recitava o seu mantra.
Gyelse Tome
Nasceu na província do Tsang; diz-se que seu nascimento foi marcado por uma chuva
de flores e por outros sinais maravilhosos.
Desde a sua mais tenra infância, manifestou naturalmente muito amor e afeição para os
seres humanos e os animais. Como numerosas crianças da sua idade, tomava conta dos carneiros
e dos yaks. Mas sua mente estava tão preocupada com o dharma que, abandonando um dia o
rebanho, escapou para ir estudar junto a um lama. Tomou então os votos monásticos e recebeu o
nome de Zangpo Pel.
Ao longo dos anos, estudou os grandes temas da filosofia budista, o vinaya, a
prajnaparamita e o madhyamika. Diz-se que tomou conhecimento da totalidade dos textos que
foram traduzidos do sânscrito para o tibetano. Sua erudição era imensa.
Praticou a seguir as seis junções de Kalachakra, e o lama que o instruiu revelou-lhe que,
durante muitas encarnações, ele teve TCHENREZI como divindade principal de meditação.
Deu-lhe várias iniciações de TCHENREZI, bem como muitas instruções sobre a prática.
A cada dia ele fazia cem prosternações, cem circumbulações de uma stupa e recitava
vinte e uma vezes a louvação de Tara. Passou vinte anos de sua vida em retiro, praticando nyung-
ne e meditando a bodhicitta.
Certo dia teve uma visão de TCHENREZI de onze cabeças, o que fez nascer em sua
mente uma profunda realização da vacuidade-compaixão. Trewo Tekden, um dos grandes
discípulos do terceiro Karmapa, disse-lhe então: "TCHENREZI, o Grande Compassivo, não é
nem um afresco num muro, nem uma figura numa thangka; TCHENREZI é, tal como nasce na
mente de um ser, a compaixão-vacuidade derramando-se sobre todos com o mesmo ardor do
amor de uma mãe por seu filho único." Exprimindo-se desse modo, ele referia-se de fato ao
próprio Gy else Tome, considerando-o uno e o mesmo que TCHENREZI último.
Gy else Tome, em todas as circunstâncias, olhava apenas os seus próprios defeitos.
Jamais falava dos defeitos dos outros, e sempre dava valor às qualidades alheias. A força do
amor e da compaixão que o habitava era tal que as pessoas de sua vizinhança tinham
naturalmente a mente pacificada. Os próprios animais perdiam toda a sua agressividade. Os
animais ferozes, as corças, os pássaros, os cães e os gatos pareciam ter esquecido sua hostilidade
habitual. Distribuiu todos os seus bens aos necessitados, nada preservando para o seu próprio uso.
Dava as suas vestimentas e até mesmo o tapete sobre o qual se sentava habitualmente, se visse
um pobre necessitado.
Vários dos seus discípulos que tinham um karma puro viram nele verdadeiramente
TCHENREZI.
Sua biografia parece espantosa quando se considera o número de anos que passou em
retiro, o tempo que consagrou ao ensino e o número de textos que compôs, já que cada uma
dessas atividades seria capaz de preencher uma vida.
Todos os lamas de sua época tinham por ele muita fé e respeito. Teve inúmeros
discípulos.
Estes exemplos são apenas alguns entre os mais célebres. Ao longo da história do Tibete,
e nos dias de hoje ainda, são muitos os grandes mestres que mantêm uma ligação privilegiada
com TCHENREZI.
CONCLUSÃO
"Ouvir, ainda que uma única vez, as seis sílabas da perfeita palavra, o coração de todo
dharma, permitirá atingir o estado sem retorno e tornar-se o barqueiro que libera os seres. Além
disso, se um animal, seja ele uma formiga, escuta este mantra antes de morrer, renascerá, uma
vez livre desta existência, no Campo da Beatitude. Recordar em sua mente, uma só vez, estas seis
sílabas — assim como o sol derrete a neve — elimina toda falta e todo véu dos atos nefastos
acumulados no ciclo das existências em toda a eternidade, e conduz a renascer no Campo da
Beatitude. Tocar apenas as letras do mantra é obter a iniciação dos Buddhas e dos bodhisattvas
inumeráveis. Contemplá-lo uma única vez torna efetivas a escuta, a reflexão e a meditação. As
aparências revelam-se como o dharmakaya, e abre-se o tesouro da atividade para o bem dos
seres".
1 As pessoas que sabem o tibetano conhecem as diferentes partes da sílaba. Caso contrário, pode-
se recorrer à ilustração no texto.
3 Extraído de Continuelle Ondée pour le Bien des Êtres, publicado pelas Edições Yiga Tch:o Dzin.