O Processo - A Consolação Da Filosofia
O Processo - A Consolação Da Filosofia
O Processo - A Consolação Da Filosofia
Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola
Conteudista
José Monir Nasser
ISBN: 978-85-5583-031-0
1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82
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O Processo
A Consolação da Filosofia
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.
Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.
Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.
Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).
Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.
Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.
No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.
José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.
Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.
Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.
O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).
A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.
Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.
Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.
Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.
Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.
Hoje vamos ver uma obra chamada O Processo, do Franz Kafka, e espero que
vocês no final desse exercício tenham compreendido algumas realidades,
alguns conteúdos desse livro que passarão a fazer parte da existência de
vocês. A cultura é verdadeiramente tudo aquilo que você incorpora à sua
vida, e não conhecimentos gerais sobre arte, sobre obras literárias, isso não é
o assunto desse curso aqui. Esse não é um curso de beletrismo. Antigamente,
essa ideia de você ser apenas sabido com relação a assuntos dos livros era
chamada de beletrismo; o sujeito sabia tudo sobre muitos livros e não
lia nenhum na prática, não entendia nenhum. Essa propensão acontece
muito com os cinéfilos hoje em dia. Os cinéfilos são aqueles sujeitos que
não podem viver sem ir ao cinema. O sujeito vai ver cinquenta filmes por
mês e não entende nenhum dos cinquenta. Mas ele acha bacana, assim, os
efeitos especiais, essas coisas. Então é isso que eu queria deixar claro para
vocês. Que não se trata de uma atividade de conhecimentos gerais, nem
de curiosidades. É muito mais uma apropriação. Nós vamos entrar na alma
dessa obra chamada O Processo, e vamos entender o que essa história tem
a ver com a nossa vida individualmente. A pergunta que você precisa fazer
Como eu disse a vocês outras vezes, não há modo de o resumo do livro dos
nossos encontros substituir a leitura do livro. Mesmo que eu fosse um sujeito
literário, mesmo que eu conseguisse escrever de um modo muito melhor do
que eu escrevo, não daria para substituir a obra. A obra é insubstituível. Como
acontece sempre, a gente começa a nossa conversa com considerações
sobre o autor chamado Franz Kafka, o autor e a sua época. E depois que a
gente tiver entendido mais ou menos o que aconteceu na época do autor, a
gente cai no resumo. Depois nós teremos uma conversa aqui entre nós para
tentarmos entender o significado dela.
Leibniz, que era um sujeito muito mais esperto do que nós todos aqui, dizia
assim: “Eu acredito em tudo o que me contam”, como primeira atitude. A
primeira atitude de Leibniz é acreditar em tudo aquilo que contam pra
ele. E a história engraçada ligada a esse mesmo fato é a história do São
Tomás de Aquino, que sendo um frade dominicano estava lá num convento
estudando, e aí os colegas do São Tomás dizem pra ele assim: “Corre aqui,
Tomás, corre aqui na janela que tem um boi voando”. Aí o São Tomás corre
lá na janela, larga tudo, e na hora em que ele olha na janela os colegas
caem na gargalhada, porque era obviamente uma piada. E ele fala assim:
“Olhem pessoal, até hoje eu achava que era mais fácil um boi voar do que
um frade mentir, mas acabei de mudar de ideia”. Vejam - São Tomás, que
escreveu quase a maior obra filosófica da história, a Suma Teológica, achava
que em primeiro lugar nós temos que ter credulidade. A primeira condição
para o conhecimento é que você comece sempre com uma atitude positiva
com relação àquilo que dizem pra você. Então não se arme contra, não crie
defesas, não estabeleça obstáculos a nada a não ser a entender a história do
Josef K. Essa história é uma das mais importantes do Franz Kafka.
Cronologia
Ele nasce no dia 3 de julho de 1883 em Praga, capital da Boêmia, que hoje fica
na Tchecoslováquia.
judeus após a Guerra dos Trinta Anos. O pai de Kafka, Hermann Kafka, um
comerciante de novidades bem sucedido, teve com Julie Kafka, mãe de Kafka,
cinco filhos, além de Franz, teve Georg e Heinrich, são os dois homens, ambos
Os dados sobre essa briga dele com o pai estão disponíveis num texto que
Kafka escreveu, chamado Carta ao Pai, uma carta furiosa que ele enviou
para o pai dele, mas que nunca foi entregue. Depois da morte de Kafka isso
foi publicado. No texto, que dá pra comprar nas livrarias, Kafka faz acusações
seriíssimas contra o pai dele, por ser um tirano, um sujeito inflexível, por
querer mandar na vida dele, por querer inventar uma vida que ele não
deutsches Gymnasium, que termina em 1901. Neste ano, visita Wossek pela
Em 1902, ele conhece o músico Max Brod (1884-1968), que também é judeu e
foi o melhor amigo dele. E depois, quando o Kafka estava perto de morrer,
estava no final da vida, já muito doente, ele pediu a Max que destruísse
todas as obras que não tinham sido ainda publicadas. E esse Max Brod,
desobedecendo o último pedido do Kafka, publicou os livros todos. Então
hoje nós só temos esse livro aqui, O Processo, porque o Max Brod desrespeitou
a vontade testamentária de Franz Kafka e publicou o livro do jeito que pôde,
da maneira que ele achou melhor. Todas essas obras que Kafka pediu que
fossem destruídas estavam inacabadas. Faltava acabamento, faltavam
últimos detalhes. Devemos então a existência de umas três ou quatro obras
de Kafka, as mais importantes, aliás, ao fato de que o Max Brod desrespeitou
a vontade final de Kafka.
no Tribunal Civil de Praga. Era obrigatório fazer assim, tinha lá uma lei que
obrigava.
italiana de seguros, até hoje existe. Pede demissão em 1908 alegando falta de
um negócio que você faz só para levar dinheiro para casa, mas pelo qual
Em 1908 ainda, por influência de Brod, que é aquele amigo dele, ele publica aos
Em 1910, começa a redigir O Diário, que depois foi publicado. Muitas das
firma asbestos de seu cunhado Karl Hermann. Kafka preferiria passar as tardes
estudando, escrevendo. Por meio do Yeddish Theater (ou Teatro Iídiche), aos
Em 1912, conhece a Felice Bauer, uma berlinense de quem ele se tornaria noivo
duas vezes. Ele foi noivo dela uma vez, rompeu, e depois foi noivo de novo.
ninguém sabe, mas o Peter Drucker que conta isso no livro, dizendo que
o Kafka nesse seu episódio de trabalhar nessa empresa de seguros, teve
grande sucesso. Foi um funcionário exemplar, mas profundamente infeliz
com aquela atividade. Porque aquela atividade era incompatível com a
única coisa que lhe interessava na vida.
minha única vocação, a literatura. Como sou apenas a literatura, e como não quero
nem posso ser outra coisa, o meu emprego não poderá nunca seduzir-me, só poderá
que a sua existência só poderia ser realizada se ele fosse apenas escritor e
nada mais do que isso.
Em agosto de 1914, começa a escrever O Processo, esse livro que vocês verão
comigo hoje. Esse tipo de informação vem de O Diário. Está escrito lá:
“hoje comecei a escrever um livro que é mais ou menos assim”, que você
interpreta como sendo O Processo. Nem sempre o título do livro já está
pronto no primeiro dia. Às vezes é a última coisa que você põe. Há escritores
que constroem toda a obra em cima do título e há escritores que o põe em
último lugar. Tem todo o tipo de situação.
Em 1915 (lembrem que nós já estamos na Primeira Guerra Mundial, não é?)
foi publicada por Kurt Wolff, numa determinada revista em Praga, a novela A
Deve ter vindo daí o bacilo da tuberculose que o infectou nessa data. Lê
Ela é judia, mas tinha o defeito de ser a filha do zelador. Adivinhem se o pai
de Kafka concorda com o casamento do filho (ele era um sujeito da classe
média, tinha uma loja)? Uma das mágoas que Kafka tinha do pai é que ele
impediu o casamento com essa Julie, por causa de preconceito econômico.
Não era racial, porque ela era judia também, era meramente econômico. Ela
era uma mulher pobre.
Nesse ano foi publicado o livro O Médico Rural (Ein Landartz), que é uma
jornalista Milena Jesenská, que se tornaria sua amante e traduziria seus textos
para tcheco. A Milena não era judia, mas ela acabou indo parar num campo
dizer, ele até então havia feito viagens rápidas, e agora pela primeira vez ele
vai morar noutro lugar que não Praga. Vai morar na Alemanha, que afinal
de contas é onde ele conseguia se comunicar bem. Dora provinha de uma
família judaica ortodoxa, e apresentou Kafka ao Talmud. É mais um passo do
Nesse mesmo ano, 1923, Kafka teria enviado carta testamento ao Max Brod,
com instruções para destruir após a sua morte, os manuscritos não publicados
diz o Kafka, “tem de ser queimado. E será melhor ninguém lê-lo antes”. Então
não é verdade que a obra de Kafka teria que ter sido queimada, o que é
verdade é que apenas a obra inacabada é que deveria ter sido queimada. E
Kafka publicou em vida uns três, quatro livros. E o que Kafka queria é que a
obra que ele não havia publicado fosse queimada depois da sua morte. Essa
história acabou dando num processo judicial, porque a família foi lá tirar
satisfações com o Max Brod. Há um crime - não sei muito bem como é, não
sei se tem no Brasil também -, que se chama Falsidade Testamentária. Você
é testamenteiro de alguém e não cumpre aquilo que foi estabelecido. E o
Max Brod defendeu-se assim: “Se ele quisesse de fato queimar, primeiro ele
podia ter feito sozinho. Segundo, vai logo pedir pra mim, isso? Eu que adoro
as coisas que ele escreve! Então, na hora que ele me pede uma coisa dessas,
está implícito que no fundo, no fundo, ele não quer que sejam queimados,
muito pelo contrário, ele quer que os livros permaneçam”. E foi assim que
o Max Brod se justificou perante a justiça do fato de não ter queimado os
manuscritos inacabados.
parenteral. Então Kafka morreu de fome e sede. Não conseguia comer nada,
a garganta estava completamente inviabilizada, não passava nada mais.
inteira.
Em 1954 são publicadas as cartas que ele escreveu para uma de suas mulheres,
obras de Kafka sem as contribuições do Max Brod. Quer dizer, começar do zero
é judeu, que teria conhecido Kafka, informa que este último acreditava na
criado pelo rabino Loew em Praga. Então há uma lenda judaica de que em
vendido por Ilse Ester Hoffe, por 1,1 milhão de libras. Foi vendido para o arquivo
diferente dessa aqui - não muito diferente, mas diferente, que é a edição do
Pasley, e não a do Max Brod. E, finalmente, em 2002, foi publicado um estudo
famoso que propõe que as bases de O Processo possam ser encontradas em
***
O que é que vocês acham da vida dessa pessoa? É uma pessoa comum? Não,
é um sujeito com uma vida muito original. Ele não é nem judeu totalmente,
nem alemão totalmente, nem tcheco totalmente. Não se deu muito bem
com as mulheres, dá para reparar que ele teve dificuldades com as mulheres.
Uma briga sistemática com o pai. O pai e ele viveram sempre muito mal. É
um sujeito que tinha de fato consciência da sua vocação literária. Que tinha
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Faça alguma coisa a respeito, o máximo que você puder.
Compreenderam? Quer dizer, a incapacidade de você entregar o seu coração
e a sua alma para o livro... os livros são completamente vivos, não tenham
a menor dúvida disso. O livro fala com você, você tem que conversar com
ele. Há uma mágica em volta disso. Se você não conversa com a história, ela
não responde as perguntas que você quer que sejam respondidas. Então
eu espero que vocês que são aí estátuas pétreas de ceticismo, que pelo
menos agora na leitura do resumo vocês cedam um pouco desse ceticismo
empedernido e aproveitem para viver um pouquinho todos os horrores que
Resumo da Narrativa
está entre as obras de Kafka não publicadas em vida cujos manuscritos deveriam
ter sido destruídos por Max Brod a pedido escrito do autor. Apesar disso, Brod
decidiu editá-la, tendo de lidar com o fato de os capítulos não estarem revistos
O texto trabalhado por Max Brod, chamado “edição definitiva”, no entanto, tem
Alimentadas pela polêmica, há outras edições da obra com uma ordem diferente
Prof. Monir: Por causa da Editora Fischer que as lançou. Então é assim, o
capítulo do inverno vem antes do capítulo do outono, determinados fatos
estão invertidos, mas isso tudo não tem a menor importância, em última
análise, porque não vai destruir a visibilidade que nós temos da obra, não
vai nos impedir de apreciá-la na sua totalidade.
das Letras, São Paulo, 2004), por sua vez feita a partir da edição definitiva de Max
Brod. Os títulos dos capítulos correspondem aos nomes sobrescritos por Kafka
resumidos aqui, de outros capítulos planejados para a obra que não puderam
Prof. Monir: Então vocês percebem aí que há uma dificuldade, mais uma
dificuldade que não precisava existir. Não vai no entanto nos atrapalhar
Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido
sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora,
era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta das oito horas, mas
dessa vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes. (pág. 9)
Prof. Monir: A história começa, portanto, com esse choque. Pela primeira
vez a cozinheira não traz o café para o Josef K. na pensão onde ele morava.
Dizer que ele deve ter sido caluniado significa que se tinha uma impressão
positiva dele, que ele não deve ter cometido nenhum crime.
expectativa de receber seu café da manhã, trazido pela cozinheira Anna, como
todos os dias. O que ele recebe, na verdade, são dois agentes policiais, Franz e
-Não – disse o homem junto à janela, atirando o livro sobre uma mesinha
enquanto se erguia. – O senhor não tem permissão para sair. O senhor está
detido.
tanta amabilidade ao senhor. Mas espero que ninguém mais ouça, além de
confiante.
K. desejava sentar-se, mas viu então que não havia outro assento na sala
- O senhor ainda vai perceber como tudo isso é verdade – disse Franz, andando
Josef K., vestido com um camisolão, protesta, pede para falar com o chefe deles,
“posto relativamente alto”. Os agentes tentam ficar com as roupas debaixo dele
O senhor está detido, isso é certo, mais eu não sei. Talvez os guardas tenham
tagarelado outra coisa, mas aí foi só tagarelice. Mesmo, porém, que eu não
menos em nós e no que vai acontecer e mais em si mesmo. E não faça tanto
reservado ao falar; quase tudo o que disse antes poderia ter sido deduzido do
seu comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras; além
disso, não foi nada de extremamente favorável para o senhor. (pág. 22)
Prof. Monir: Bom, aqui está o Josef K. querendo saber de qualquer jeito
porque é que ele está preso, e o chefe dos dois lá diz pra ele que não sabe,
nem sabe se ele é acusado de alguma coisa, só sabe que ele está preso.
E que não é bom pra ele, Josef K, ficar alardeando inocência desse jeito.
Porque até agora ele tinha causado uma boa impressão, e que ficar falando
o tempo todo que é inocente pode ser visto como uma coisa antipática
pela polícia. Parece uma situação comum essa, vocês veem isso como uma
situação normal? Não. É uma situação muito estranha. Ninguém conta pra
você por que você está preso. Os sujeitos dizem lá que é melhor ficarem
com a roupa, sobretudo íntima do acusado, porque quando elas forem
mandadas para um depósito, para onde vão as roupas de todos os acusados,
elas serão roubadas; comem o café da manhã dele e depois pedem para que
ele lhes dê dinheiro para comprarem o café do outro lado da rua. Não é uma
situação muito estranha? Parece uma situação meio estranha. Alguém tem
a sensação de que isso é normal? Se tiver... já vai perder, tá? Porque a coisa
fica muito pior daqui para frente. Vamos ver o que acontece.
Prof. Monir: Para tornar as coisas ainda mais estranhas, a polícia se instalou
no quarto da vizinha do Josef K., e estão presentes lá três funcionários
subalternos do banco. Não é uma coisa mais estranha do que antes? Por
que logo três funcionários? Logo esses três estão presentes lá? Olhando as
fotografias da parede... O que será que tudo isso significa?
me entendeu mal. É claro que o senhor está detido, mas isso não deve
Prof. Monir: Esta situação vai ficando mais estranha, ou mais normal?
Agora o sujeito, apesar de estar detido, pode trabalhar, não tem problema
nenhum. Vocês sabem que por causa do Kafka nasceu no mundo em todas
as línguas uma expressão, um adjetivo, que você aplica a situações que
são completamente absurdas. Então toda a vez que alguém disser assim
“estou vivendo uma situação kafkiana”, é porque está vivendo uma situação
com sua namorada Elsa, que trabalha num cabaré, conversa com a locatária, a
senhora Grubach. Pede desculpas pela confusão; ela diz estar tudo bem, mas
insinua que as razões da detenção podem estar ligadas a uma eventual relação
Prof. Monir: É, a vizinha é essa em cujo quarto a polícia andava, que é a tal
da Bürstner, que é uma secretária, mas que chega sempre muito tarde em
casa. E a Frau Grubach, que é a senhoria, diz para o K. que talvez ele tenha
sido pego por causa dela. Apesar de que ele e ela não são muito chegados,
ele não tem ligações muito próximas com a vizinha, o Josef K. No entanto, a
Frau Grubach imagina isso e faz insinuações um pouco comprometedoras
sobre a vida da moça, insinuando que a Frau Grubach é alguma espécie de
prostituta.
Josef K., que quase nunca fala com a vizinha, a interrompe: “A senhora está indo
lo”. Vai para o quarto, mas não consegue dormir. Fuma um charuto e às onze e
quarto havia sido totalmente arrumado pela senhora Grubach, a datilógrafa não
- Já vou – disse K.; correu para a frente, agarrou-a, beijou a na boca e depois
no rosto inteiro, como um animal sedento que passa a língua sobre a fonte
Capítulo Segundo
Primeiro Inquérito
Josef K. recebe ligação no escritório que o manda comparecer, sem dizer a hora,
à rápida audiência no domingo, dia que teria sido escolhido para não perturbá-
corte está acomodada numa pequena sala superlotada com teto baixo, onde só
Prof. Monir: Isso é uma coisa normal? Que o teto seja tão baixo que só se
consiga ficar em pé curvado? Essa é a sala do tribunal onde o Josef vai dar
depoimento agora. Não parece estranho?
se é pintor de paredes.
Prof. Monir: Muito bem. Então não só ele é culpado de chegar atrasado a
uma audiência cuja hora ele não sabia, como o tribunal que o convoca não
declarar à audiência o quanto aquela corte é ridícula e confusa; diz que a coisa
toda é uma farsa, uma conspiração e que não viria mais a inquéritos.
Prof. Monir: O Josef K. a essa altura está muito irritado, e na hora então
que perguntam se ele é pintor de paredes ele resolve desafiar a corte. E faz
um discurso esculhambando aquele negócio. Vamos ver o que ele diz.
- Não há dúvida – disse K. em voz bem baixa, pois a escuta tensa de toda
de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de
e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não recuo diante dessa palavra.
maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de
É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito. É por isso que guardas
tentam roubar a roupa do corpo dos detidos, é por isso que inspetores
invadem casas alheias, é por isso que inocentes devem ser aviltados, ao invés
dos detidos, quando não são furtados por funcionários gatunos. (págs. 61-62)
que havia puxado a lavadeira para dentro da sala, a levara para um canto e a
- Só queria chamar a sua atenção – disse o juiz – para o fato de que o senhor
hoje – isso ainda não deve ter chegado à sua consciência – se privou da
(pág. 64)
Capítulo Terceiro
Na sala de audiência vazia. O estudante. Os cartórios.
o juiz de instrução, mas não acha ninguém, exceto a mesma mulher da semana
anterior.
Prof. Monir: Que é a lavadeira. Aquela que indicou a sala, depois entrou
na sala com outro e tirou a atenção.
e utensílios domésticos. Ela explica que mora ali com o marido, mas desocupa
Prof. Monir: É uma coisa normal? Que agora tenham colocado móveis,
cama, sei lá, fogão, que tenha virado uma casa normal e que nos dias de
audiência tira-se tudo dali e coloca-se outra coisa no lugar? Eu imagino que
os fóruns às vezes têm um problema equivalente a esse... mas isso não se
espera que seja assim na justiça. É uma situação estranhíssima você voltar
àquele lugar e agora ser uma casa, não mais um tribunal.
direito, que a tem perseguido apesar de ela ser casada com um oficial de justiça.
juiz sobre a mesa e conclui que ele tem gosto por literatura erótica. Um deles
chama-se Os tormentos que Grete teve de sofrer com seu marido Hans.
relatório sobre o caso dele e depois tinha vindo vê-la dormir junto do marido.
Seu prestígio seria tão grande que o juiz até lhe teria dado meias de seda. Ela
A mulher oferece-se: “Se me levar, vou aonde quiser, pode fazer comigo o que quiser,
serei feliz se ficar o maior tempo possível longe daqui, de preferência para sempre”.
- Ah, isso não – disse o estudante. – Com ela você não fica, não. (pág. 75)
Sem saber o que fazer, Josef encontra um aviso de “Acesso aos cartórios dos
mulher (apesar de ela o aceitar de bom grado, já que o estudante é alguém que
poderá ser juiz um dia) e como adoraria que K. desse uma lição no universitário.
- Sim – disse K. – mas por isso mesmo deveria ter mais medo de que ele
- Sem dúvida – disse o oficial de justiça, como se o ponto de vista de K. fosse tão
correto quanto o seu. – Mas, via de regra, entre nós não se movem processos
Prof. Monir: Vocês não acham assustador esse comentário: “Entre nós não
se movem processos à toa”? O que o marido da lavadeira quer dizer com
isso? Quer dizer que o K., na opinião dele, já está mesmo perdido, portanto
dar uma surra no estudante de direito não faria a menor diferença. “Não se
movem processos à toa” quer dizer que se se moveu um processo contra
ele, é porque ele está condenado. Agora, já que ele já está condenado, o
marido da lavadeira não acha nada de mal no K. ir lá e encher de bolacha
o Bertold, que ficava transando com a mulher dele. Não é uma coisa um
pouco preocupante, isso?
K. está tentando descobrir do que ele está sendo condenado ou pelo menos
acusado, e como ele consegue interferir sobre isso. E ele tá conseguindo
fazer isso? Não. Ele vai de novo no mesmo lugar da audiência, encontra uma
casa de família, aí encontra a mulher e ela é mais ou menos raptada pelo
Bertold. Este o agride e ele discute com o Bertold, depois ele encontra o
oficial de justiça, marido da mulher, que insinua que ele, Josef K., não tem
salvação, porque esse tribunal não abre nenhuma acusação sem que tenha
um bom respaldo jurídico. A situação desse cara não está ficando ruim?
Muito, né? Cada vez pior.
No percurso dão com uma sala de espera onde homens esperam para receber
- Sim – disse o oficial de justiça -, são acusados, todos os que o senhor está
Agora o rosto dela estava próximo a ele, mostrava a expressão severa que
- Não se preocupe – disse ela -, aqui isso não é nada de extraordinário, quase
todos têm um acesso desses quando vêm para cá pela primeira vez. (pág. 87)
voltar mais.
largassem, cairia como uma tábua. Dos pequenos olhos de ambos partiam
notou que os dois falavam com ele, mas não os entendia, só ouvia o barulho
que preenchia tudo e através do qual, como uma sirene, um som alto e
Capítulo Quarto
A amiga da senhorita Bürstner (fragmento).
procurador envia-lhe cartas que ela não responde. Certo dia, percebe ruídos no
“frágil, pálida, que mancava um pouco”, estava se mudando do seu próprio quarto
Josef interroga a senhora Grubach, que lhe confirma a mudança. K. imagina uma
que, na sala de refeições, não lhe explica a razão da mudança, mas lhe diz que a
senhorita Bürstner não quer falar com ele. A senhorita Montag parece esconder
Prof. Monir: Ele não entende porque é que não consegue falar com a
vizinha. Desde aquele episódio da invasão e depois do beijo noturno, ele
não conseguiu mais falar com ela. Para ficar muito mais estranho ainda, a
senhorita Montag vai morar no quarto da vizinha. Na verdade, o significado
desse capítulo aí ficou muito misterioso porque ele seguramente poderia
ter tido um tamanho três, quatro vezes maior e o Kafka nunca terminou.
Então ele ajuda um pouquinho, mas é um capítulo um pouco misterioso na
história, o que nos remete para o capítulo quinto, O espancador.
Certa noite, ao sair do banco, K. ouve gemidos atrás de uma porta que supunha
que o prenderam no dia de seu aniversário, sendo surrados com uma vara
por um homem vestido “numa espécie de roupa escura em couro, que deixava o
Prof. Monir: É uma coisa normal, isso? No banco? Você no banco abre
uma porta, assim, e tem lá os dois guardas que haviam te prendido sendo
surrados por um sujeito com roupas nitidamente de sadomasoquismo. No
banco onde você trabalha, numa sala de despejo?
A dupla explica: “Senhor, devemos ser espancados porque se queixou de nós para
o juiz de instrução”. Franz e Willem pedem lhe que interceda por eles, contam os
seus problemas, mas o carrasco está obstinado em cumprir o seu dever. Josef
tenta suborná-lo, mas ele não aceita, com medo de ser denunciado também. Por
atraídos por um grito de Franz, K. sai do quarto, para impedir que os contínuos
Como não consegue esquecer o episódio, no dia seguinte à mesma hora volta
ao quarto e dá com a mesma cena. Desta vez, bate a porta e grita para alguém
limpar o quarto.
Prof. Monir: É uma coisa normal isso? Vejam, ele presencia essa cena
completamente inusitada e originalíssima. No dia seguinte ele abre a porta
e está lá a mesma cena... só que dessa vez ele não se dá ao trabalho de falar
nada, ele simplesmente bate a porta, supondo que ele estava alucinando a
cena, que ele havia apenas imaginado aquilo, que nada daquilo era verdade,
de fato. E a situação do Josef K. vai ficando cada vez mais estranha. Porque
agora ele não sabe mais o que é verdade e o que não é, está em dúvida
sobre se ele está vivenciando uma coisa real ou não está. Existem muitas e
muitas interpretações das obras de Kafka. Como é uma obra muito original,
ela permite muita interpretação. Então há, certamente, interpretações aos
montes que lidam com essa situação do Josef K. de ele estar alucinando
alguma coisa. Trata-se de alguém que não sabe de fato que está vivendo
numa espécie de sonho. Vocês não tem essa sensação de que ele está
vivendo numa espécie de sonho? Mais para pesadelo... mas alguma coisa
meio incompreensível em termos lógicos.
Capítulo Sexto
O tio. Leni.
O tio e antigo tutor de Josef, Karl K. (ou Albert K.), um pequeno proprietário rural,
o visita no escritório. Avisado da situação de Josef por Erna, sua filha que morava
numa cidade próxima a Praga (a mesma onde morava a mãe de K.), veio do
- Josef – exclamou o tio querendo se desvencilhar dele para poder ficar parado,
mas K. não o deixou -, você está mudado, sempre teve uma capacidade
processo? Sabe o que isso significa? Significa que vai ser simplesmente riscado
Quando se olha para você, quase que se acredita no ditado: Ter um processo
Prof. Monir: E agora? O tio vem ajudá-lo, vem do interior, e diz assim: “Olha,
você precisa fazer alguma coisa, porque a sua situação é ruim”. O que é muito
estranho nessa situação é que o tio já soubesse de tudo, do mesmo modo
que a lavadeira já sabia de tudo. Já repararam num outro fato interessante
desta história, que todas as pessoas em volta já sabem que o Josef K. é
acusado? Mas nenhuma pessoa lhe diz nunca, em nenhum momento, do
que é que ele é acusado, nem por que é que ele está sendo processado
pela lei. E aqui, também, o tio aparece do interior com a convicção de que
ele está numa situação muito grave, muito embora ele não tenha a menor
ideia do porquê. E o tio diz assim pra ele: “Olha, há um ditado que diz que
ter um processo desses é absolutamente garantia de perder, porque esse
processo não se ganha”. E é a segunda profecia sinistra que é feita sobre o
assunto. A primeira foi do oficial de justiça, e a segunda agora é a do próprio
tio, que veio do interior, e que tem dois nomes. Ele é chamado de Karl ou
de Albert; nós não sabemos se é um engano do Kafka – é possível que seja,
pode ser que o Kafka tenha ficado em dúvida entre os dois nomes, - mas
também pode ser que seja mais um detalhe diabólico desta história, em
que o tio tem dois nomes e os nomes se alternam durante todo o tempo.
Continuamos.
56 Professor José Monir Nasser
Nos mesmos subúrbios onde ficam os cartórios, vão juntos visitar um velho
colega de escola do tio, o advogado Huld, que está muito doente, mas que
conheceria bem o caso de Josef. Após alguma demora à porta, são conduzidos,
Huld, que fez carreira defendendo os pobres, está na cama e começa a conversa
surpresa.
se mexer. À luz da vela, que o tio agora segurava alto, via-se ali, junto a uma
pequena mesa, um senhor idoso sentado. Certamente, ele não tinha nem
respirado para ficar tanto tempo sem ser percebido. Levantou-se, então, com
Era como se quisesse repelir com as mãos, que ele movimentava como asas
Huld, Karl e o chefe do cartório conversam, mas a mente de Josef está fixada em
Leni, a enfermeira que lhes havia aberto a porta. No meio da conversa, há ruído
só queria ficar sozinha com ele: “...só atirei um prato contra a parede para fazê-lo
sair”. Ela quer que ele goste dela, mas ele está mais interessado no seu próprio
caso. Por exemplo, há na parede um retrato de um juiz. Será este o seu juiz?
- Quem disse isso? – perguntou K., sentindo o corpo dela no seu peito e
pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra
escapar – só aí. No entanto, mesmo isso não é possível sem ajuda externa, mas
não precisa se angustiar por causa dessa ajuda, eu mesma vou providenciá-
Ela quer saber tudo sobre Elsa, a namorada de K., e ele lhe mostra uma fotografia.
Leni pergunta se ele não gostaria de trocar a garçonete por uma namorada
melhor e pergunta-lhe se Elsa teria algum defeito físico como ela, mostrando-
para o chão e eles transam. Leni lhe dá uma cópia da chave da casa, dizendo-lhe
tio que o repreende por ficar farreando com a óbvia amante do advogado, no
- Jovem – bradou ele -, como pôde fazer isso? Você prejudicou terrivelmente
fica fora durante horas. Nem mesmo procura um pretexto, não oculta nada,
não, age abertamente, corre para ela e permanece com ela. E enquanto isso,
ficamos sentados o tio, que se esforça por você, o advogado, que deve ser
senhor, que domina diretamente o seu caso na fase em que ele se encontra.
(págs. 138-139)
Prof. Monir: Então, quando finalmente ele larga lá a Leni, saindo encontra
o tio que vinha do quarto do advogado Huld, e o tio fala: “Você é louco?
Como é que você faz uma coisa dessas? Vai lá transar com a mulher enquanto
eu estava lá no quarto com o advogado, que tem de estar do seu lado, mais
o chefe de cartório, que é o sujeito que manipula os documentos do seu
caso, como é que você faz uma coisa dessas?” E a vida do nosso amigo Josef
K. não fica muito melhor nesse episódio.
************
INTERVALO
************
Eu sei que vocês não têm elementos porque a história não nos conta nada,
mas vamos ver pela intuição. Levantem a mão as pessoas que acham por
intuição que o Josef K. é culpado. E quantos acham que ele é inocente? Há
alguns que não votaram. Não vou nem me dar ao trabalho de somar os
votos... Todas as vezes que eu somei votos na vida, sempre deu uns quatro
ou cinco votos a mais ou a menos. De modo geral dá a mais, né? Então
eu sei que a gente não sabe isso ainda, mas se vocês estivessem lendo o
romance propriamente dito, a essa altura vocês já teriam uma ideia, alguma
impressão sobre a culpabilidade do Josef K. Então nós sabemos que ele é
acusado de alguma coisa grave e ele não sabe o que é.
Prof. Monir: Porque todo o mundo acha que é. O discurso do tio, de que a
família será arrasada - não apenas ele prejudicado, mas a família arrasada. A
sensação que devemos ter desta história é que o mal que este Josef K. teria
cometido é um mal muito grave e sério, e esse mal nós não sabemos qual
é. No entanto, no fundo da história, como pano de fundo, há a indução de
que há alguma coisa séria acontecendo, muito embora nós não saibamos o
que seja. E pior do que isso, todas as situações que o Josef K. vive, ou quase
todas, são estranhíssimas. O que há de constante nisso? Há a estranheza
das situações, segundo, há uma escuridão permanente - tudo é escuro o
tempo todo. E a única luz que existe nunca é a luz do sol, mas é a luz de
alguma vela que é usada para iluminar o ambiente – velas essas que estão
Aluno: Aluno pergunta sobre a relação dele com as mulheres que querem ajudá-lo.
Prof. Monir: Ele é um sujeito ligado a mulheres, né? Então, ele tem uma
namorada, e esse namoro é, digamos assim, meio ousado. Segundo, ele tá
interessado na vizinha, a senhorita Bürstner, embora ela seja inacessível. A
senhora Grubach gosta muito dele, talvez não esteja muito claro isso no
resumo, mas ela gosta muito dele. E o tal do episódio da prisão tornou a
senhora Grubach mais próxima dele e ao mesmo tempo tornou a tal da
senhorita Bürstner mais distante. Ele entra no primeiro recinto do tribunal e
é automaticamente ajudado por uma mulher, que é a lavadeira, que o ajuda
porque gosta dele. Não só gosta dele como lhe oferece o que ele quiser –
“Vem comigo, eu sou sua”. Não é isso? Até que o Bertrand acaba nisso. E
a Leni joga um prato na parede para atraí-lo para fora. Ele não tem uma
atratividade alta para as mulheres? Tem, né? Ele é um homem com poder
de sedução das mulheres... não há dúvida. O único fracasso que ele tem até
agora é a senhorita Bürstner, mas o resto, tudo deu certo. Essa situação de
Capítulo Sétimo
O advogado. O industrial. O pintor.
K. está agora completamente obcecado com o seu caso que já dura seis meses.
Ocasionalmente reúne-se com o advogado Huld que lhe diz estar fazendo tudo
o que pode, mas que as coisas têm de ir devagar. Alega ser preciso preparar
muito bem a petição inicial, porque dela depende o rumo de todo o processo
e, além disso, considerar que “a defesa, na verdade, não é realmente admitida pela
Prof. Monir: Nunca percam de vista o fato de que o Kafka é advogado. Ele
domina este linguajar jurídico. E aqui o advogado dele, o Huld, está dizendo
a ele que o tribunal não permite nenhuma espécie de defesa. A defesa não
é um direito do acusado. A defesa é uma tentativa que o acusado faz de se
Aluna: [Quer saber por que o K. não pergunta para o advogado do que está sendo
acusado.]
Prof. Monir: O advogado nunca lhe diz nada. O que tem seis meses é o
processo do K., não a relação com o advogado. O advogado parece aos
olhos do Joseph K. um sujeito completamente incompetente que não faz
nada. Um sujeito inerte. Mas o advogado vai explicar porque que isso é
apenas uma aparência. Já vamos chegar lá.
Prof. Monir: Vocês sabem o que é rábula? Rábula é o sujeito que, embora
não tenha curso de Direito, tem conhecimento de Direito. É a mesma coisa
que o dentista prático, que é o sujeito que não tem formação odontológica,
mas que sabe tratar da sua boca. É como a parteira em relação ao obstetra,
entenderam? A parteira não tem formação médica, mas consegue fazer
e se proximamente K. for aos cartórios do tribunal, pode dar uma olhada na sala
dos advogados, simplesmente para tê-la visto. É provável que ficará assustado
diante das pessoas que estão ali reunidas. O próprio cômodo, estreito e baixo,
destinado a eles, mostra o desprezo que o tribunal tem por essas pessoas. A luz
só chega por uma pequena lucarna, colocada tão alto que, se alguém quiser
olhar para fora – aliás recebendo no nariz a fuligem de uma chaminé instalada
Prof. Monir: Você consegue imaginar uma situação dessas? Quer dizer, no
tribunal a sala dos advogados é um lugar que só dá pra ver luz se um subir
nas costas do outro. Então imaginem a situação...
No chão desse cubículo – para citar apenas mais um exemplo desse estado
de coisas – existe, já faz mais de um ano, um buraco, não tão grande que
completo uma perna. A sala dos advogados está situada no segundo sótão;
e também saber quem “mexe os pauzinhos”. Sem isso, o caso estaria perdido.
K. não consegue entender bem o que ele quer dizer e vai ficando impaciente.
Está sobretudo incomodado com o fato de o advogado não lhe perguntar nada
concretamente. Como nada está acontecendo, julga que o advogado não está
Prof. Monir: Ele não confia no advogado, porque não o vê fazer nada, nem
perguntas ele faz. Uma vez eu fui no alfaiate mandar fazer um terno, aí eu
falei assim: “Eu queria fazer um terno”, e ele: “Ah, tá bom”. Comecei então a
explicar como eu queria. E ele: “Não, não, eu entendi”. Aí eu falei assim: “O
senhor não vai tirar a medida?” E ele: “Não, não, pode deixar que eu sei”.
Eu saí muito preocupado do alfaiate naquele dia... porque, entendeu, é a
mesma atitude. Um sujeito que não te pergunta nada e é seu advogado...
ele não tá fazendo nada! Tem alguma coisa estranha nisso. Ele então resolve
fazer coisas por conta dele, independente do tal do advogado, que por
outro lado é o advogado que conhece o caso dele e, mais do que isso, é o
Prof Monir: Quer dizer, aquela vida que você tinha, dos seus trinta anos,
em que você já era procurador, e em que havia perspectivas de se tornar
importante no banco, de repente está praticamente inviabilizada pelo fato
de que você é réu de um processo. Com relação ao K. todos se assustam,
sem exceção; o veem com muito pessimismo. Você tá sempre só pensando
no seu processo, e lá onde você tá trabalhando já tem alguém querendo
ficar com seus clientes. O diretor adjunto, que já sentiu o cheiro de carniça
na história, está preparado para ficar com os melhores despojos... Vamos ver
então o que acontece.
Um dos seus clientes, um industrial, diz conhecer seu caso (“Há tanta gente ligada
ao tribunal”) e lhe indica o pintor Titorelli, que ganha a vida fazendo retratos de
Prof. Monir: Aí aparece mais um sujeito que não poderia ter nada a ver
com isso e que, no entanto, sabe do caso dele. Que é esse cliente.
ficar com os clientes dele que esperam na ante-sala: “Como o diretor adjunto
saber por que K. está ali. Titorelli o recebe expulsando as meninas e reclamando:
Quem é ele?
- Não há dúvida – disse K., que não queria melindrar ninguém com a sua
- Não – disse o pintor. – Não vi a figura nem o trono, tudo é invenção, mas me
- Sim – disse o pintor. – Mas não é um alto magistrado, e nunca esteve sentado
presidente de tribunal.
- Depende de muitas coisas sutis, nas quais o tribunal se perde. Mas no final
Prof. Monir: E agora? Quer dizer, o Titorelli tá dizendo pra ele que, no final
das contas, mesmo aqueles que são aparentemente inocentes percebem-
se com uma grande culpa. Vocês acham que o Josef K. é culpado? Alguém
agora já acha que o Josef K. é culpado? Nós tivemos zero votos na primeira
enquete aqui. E agora? Alguém acha que ele é culpado de verdade? [pausa]
Já temos dois. Uma grande melhora nessa votação, porque fomos de zero a
duas pessoas. De fato, o Josef K. é considerado culpado por todo o mundo
que está em volta dele, todo o mundo sabe qual é o caso dele, todos os
consideram culpado, e ele ainda não. Ele acha que é totalmente inocente e
não acha que seja culpado de modo nenhum.
Prof. Monir: Não, ainda não. Até esse ponto ele não se considera culpado.
Mas vamos ver, tá? Vamos ver se ele vai de fato em algum momento da
história mudar a sua opinião sobre a própria culpa.
Josef K. pede uma ajuda porque a esta altura já sabe que só com dificuldade o
Prof. Monir: É. Ele acha que está já condenado, porque todos lhe dizem
Titorelli lhe diz que a corte não pode ser dissuadida de modo nenhum e que
o tribunal é inacessível às provas que lhe são apresentadas, mas não às provas
apresentadas fora dele, como naquele ateliê, e por isso Titorelli pode ajudar.
Prof. Monir: Então, Titorelli diz pra ele: “Olha, não tem jeito. Uma vez que
o tribunal tomou a decisão, tá tomada, ele não volta atrás. Ele já é dono
de tudo! Essas meninas, por exemplo, são todas do tribunal, pertencem a
ele. Então não é possível contestar as decisões do tribunal... embora, em
ambientes externos ao tribunal, como aqui nesse ateliê, talvez eu possa
fazer alguma coisa por você”. E vamos ver o que é que o Titorelli quer fazer
pelo Josef K.
não existe nenhuma pessoa que pudesse ter influência sobre a absolvição
que o senhor é inocente, seria de fato possível que confiasse apenas na sua
inocência. Mas aí já não precisa de mim nem de qualquer outra ajuda. (págs.
185-186)
Titorelli lhe explica que não há absolvição definitiva, pelo menos ele nunca
soube de uma. Absolvições aparentes são possíveis, mas não garantem proteção
absolvição e assim por diante. Por isso mesmo elas são aparentes.
aspecto sombrio”. Para evitar o assédio das meninas, Josef sai pela porta dos
Ante o espanto do procurador, Titorelli comenta: “Não sabia que aqui há cartórios?
Eles estão em quase todos os sótãos, por que deveriam faltar logo aqui? O meu ateliê
também faz parte dos cartórios, mas o tribunal colocou o à minha disposição”.
K. havia se espantado não com o cartório em si, mas com o fato de estar sendo
haviam dado a volta, Josef encontra a saída com dificuldades e toma um táxi,
Prof. Monir: É, o oficial de justiça queria entrar no táxi com ele, e ele
expulsa o oficial de justiça do táxi (faltou escrever isso aqui). Então dessa
experiência com o Titorelli ele volta com mais um testemunho de que não
tem muito jeito, de que a situação dele vai muito mal mesmo, e ele então
pega os quadros e volta para o banco, de onde tinha vindo... lembram? Ele
só vai visitar o Titorelli porque aquele cliente o avisa de que ele poderia ter
alguma esperança no Titorelli. Nesse momento a esperança do Joseph K.
aumentou ou diminuiu?
Alunos: Diminuiu.
Capítulo Oitavo
O comerciante Block. Dispensa do advogado. (inacabado)
Prof. Monir: É, segurava uma vela por quê? Porque ali naquela casa, assim
como em todas as outras, não há nenhuma luz a não ser a das velas.
Ao ver K., Leni sai correndo e some. O homem chama-se Rudi Block e é
cozinha, onde Leni, recomposta, está fazendo sopa para o advogado. Pergunta-
lhe se eles são amantes, mas ela desconversa, dizendo que há novidades sobre
conta que o caso dele já durava cinco anos e segreda lhe que havia colocado
outros cinco advogados na causa: “Além dele, tenho mais cinco rábulas”. Na verdade,
cabeça: “Quando se quer fazer algo pelo seu processo, só pode se ocupar pouco de
outras coisas”. Também diz que sempre corre todos os cartórios em busca de
notícias e numa dessas visitas tinha visto Joseph K. Finalmente comenta uma
da forma dos lábios do acusado. Por aquele critério, segundo alguns, K. estaria
perdido.
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Mais essa ainda? Quer dizer, também lá no teste da superstição
o K. está condenado a perder o processo. Então, a situação do K. melhorou
ou piorou?
Alunos: Piorou.
Prof. Monir: Ele está impaciente, cada vez mais ansioso, nervoso? Está.
Tanto é que ele resolveu ir descontratar o advogado. No entanto ele
encontra lá uma testemunha nova, que é esse Rudi Block, que diz que o
processo dele já dura cinco anos, enquanto que o processo do K. só tinha
seis meses. Talvez alguma coisa mais do que seis meses a essa altura... Não
parece haver boas notícias disso, vamos ver.
ele sair, Leni conta que Block morava na casa, porque o advogado era muito
e nem todos eram como Josef, que podia marcar hora. Leni mostra o quarto
de Block, um cubículo de teto baixo sem janelas, totalmente tomado por uma
cama estreita.
Prof. Monir: Vocês não sentem uma angústia horrível de pensar em dormir
num lugar assim? Quer dizer, o quarto era do tamanho da cama, baixo, não
dava pra ficar em pé e não tinha janela. É uma espécie de dispensa baixa na
parede.
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Então agora o Block quer que o K. conte pra ele um segredo
também, já que ele contou um segredo terrível, que era um segredo de
traição, né? Porque ele havia traído o Huld colocando mais cinco advogados
pra trabalhar junto... e agora ele quer que o K. conte a ele um segredo
também.
caminho.
no seu caminho, motivo pelo qual ela lhe desferiu um golpe com os punhos.
Depois, com os punhos ainda cerrados, correu atrás de K., que no entanto
atrás dele, mas Leni, que a mantinha aberta com o pé, agarrou-o pelo braço,
querendo puxá-lo de volta. Ele, porém, apertou o pulso dela com tanta força,
que ela teve de soltá-lo com um gemido. Não ousou entrar no quarto, e K.
Prof. Monir: Porque será que deu esse pandemônio, porque será que o
Block e a Leni ficaram desesperados quando ouviram a notícia que ele ia
dispensar o advogado? Imaginem vocês a hipótese de que o K. já esteja
condenado na opinião dos dois, da Leni e do Block, o que é que o advogado
representaria para alguém já condenado? Uma daquelas três possibilidades
qual é? A do processo arrastado... que é o caso do Block, que já está a cinco
anos nessa história, não é isso? Então o que os dois podem ter imaginado,
com essa reação, é que ao perder o advogado, não havendo mais advogado,
ele iria ser condenado rapidamente e não poderia usufruir daquela
modalidade de absolvição, de libertação, que é o processo arrastado.
Provavelmente esse é o sentido. Vamos ver o que é que o K. diz agora para
o advogado.
dos acusados belos”. K. diz que sabe tudo sobre os casos de Leni com os acusados.
Réus, no final das contas, são atraentes, mesmo Block, “esse miserável”, enfatiza o
causídico.
Prof. Monir: Ou seja, a Leni tinha casos com todos os clientes do advogado,
porque achava que o fato de o sujeito estar mais ou menos condenado o
transformava numa pessoa sexy. Nos Estados Unidos, quando alguém é
condenado à morte, recebe milhares de cartas de mulheres apaixonadas...
porque há alguma coisa nessa situação, de não poder mais escapar de
estar condenado, que de alguma maneira torna a pessoa sexy. É mais um
sintoma de que a coisa vai muito mal. Todos os clientes do advogado são
condenados, não têm nenhuma solução, estão todos perdidos.
Josef diz ao advogado que está farto dele e o acusa de não ter feito nada. O
Prof. Monir: O que é que o Kafka tá afirmando com isso? Que ele é
culpado ou inocente? Inocente. Porque ele, como os outros condenados,
ficava muito chateado quando a coisa não andava, porque achava que a sua
inocência estava sendo desconsiderada. O K. acha-se inocente. Ainda acha-
se completamente inocente. E vocês, o que acham? Quantas pessoas acham
Para valorizar o caso de K., Huld declara só tratar de casos que lhe digam respeito
de perto, que era o caso de Josef, sobrinho de seu amigo Albert (ou Karl). Como
nem assim consegue impressionar, o advogado manda chamar Block para lhe
grita que o caso dele era dificílimo, que não havia nem começado e que a
corte o julgava perdido, mas que ele, Huld, ainda estava lutando por ele. Block
- Só uma vez ele pediu para beber água. Aí eu lhe estendi um copo pelo
postigo. Então, às oito horas, eu o deixei sair e lhe dei alguma coisa para
Prof. Monir: O Huld chama o Block e faz uma sessão de humilhação absurda
do Block. Mostra que ele vinha sendo tratado como se fosse um cachorro,
que era alimentado pela Leni quando ela achava que estava na hora, como
você faria com um animalzinho na sua casa. Já o K. não, ele era um sujeito
que não precisava nem morar lá, bastava marcar hora para ser atendido... No
entanto o Joseph K. acha que é tudo uma espécie de pantomina, de teatro,
que é feito lá pelos três, pelo Block, a Leni e o advogado, e fica firme na sua
decisão de descontratar o advogado. E esse fato é muito importante, porque
agora, mesmo você lembrando que o livro é um pouco desestruturado, por
causa da sua incompleição, mesmo assim agora acontecem os fatos que
conduzem a nossa história e a nossa personagem Josef K. para o clímax.
hora marcada para o encontro, às dez, chovia e a praça da catedral estava vazia.
K. lembrou-se de que “ainda criança, havia chamado sua atenção o fato de que,
nas casas dessa praça estreita, quase todas as cortinas das janelas estavam sempre
corridas”.
Josef entra na igreja e não encontra o italiano; só uma velha mulher embrulhada
num xale quente, ajoelhada diante de uma estátua da Virgem Maria. Fora da
percebe um velho sacristão manco que o observa e lhe aponta alguma coisa
longe parecia um nicho ainda vazio, destinado a acolher uma estátua de santo”,
preparando-se para fazer um sermão para uma igreja vazia e às onze da manhã.
Estranha que se utilize justamente aquele púlpito, quando havia outro maior.
Tenta sair, mas surpreendentemente o padre o chama pelo nome: “Josef K.” K. se
aproxima e o padre, do púlpito, diz que é “capelão do presídio”. Fala de seu caso,
Prof. Monir: Muito bem, agora o padre da igreja, [risos] o padre que não
deveria estar lá - quer dizer, a principio não foi para vê-lo que ele foi lá -
na hora que ele resolve ir embora, o padre o chama pelo nome: “Josef K!.”
Imaginem aquela voz naquela igreja vazia. E o padre diz que é capelão do
presídio?! [risos] E que o caso dele vai muito mal! Quer dizer, agora sim,
aparece até um padre que diz que a situação dele, Joseph K., é muito ruim.
Vamos ver o que acontece no diálogo entre esses dois.
a sua culpa.
humano pode ser culpado? Aqui somos todos seres humanos, tanto uns
como outros.
falar.
têm prevenção contra mim. Transmitem-na até àqueles que não participam
- Você se equivoca quanto aos fatos – disse o sacerdote. – A sentença não vem
de uma vez, é o processo que se converte aos poucos em veredicto. (pág. 258)
K. reage dizendo que nos próximos dias iria buscar mais ajuda. O padre retruca:
ajuda verdadeira”.
entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O
homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais
tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”. Uma vez que a porta da
inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro
ri e diz: ‘Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja
bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala,
porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo
tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele;
de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele
dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e cansa o porteiro
senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá lo entrar.
O homem, que havia se equipado para a viagem com muitas coisas, lança
mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita
tudo, mas sempre dizendo: ‘Eu só aceito para você não achar que deixou de
fazer alguma coisa’. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro
lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa
em voz alta o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga
consigo mesmo. Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro
anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas
inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes
para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um
aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido.
quer saber?’, pergunta o porteiro. ‘Você é insaciável’. ‘Todos aspiram à lei’, diz o
homem. ‘Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu
para entrar?’ O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda
alcançar sua audição em declínio, ele berra: ‘Aqui ninguém mais podia ser
admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora
o homem do campo. O padre insiste que não e que ele só estava cumprindo
sua missão e que estava cônscio e orgulhoso do seu ofício. Lembra a K. também
que talvez quem tenha sido enganado de fato seria o porteiro que nada saberia
“preso ao seu posto pela função que desempenha; não pode se afastar, mas segundo
todas as aparências também não tem permissão para ir ao interior da lei mesmo
que quisesse”, logo o verdadeiro subalterno seria ele e não o homem do campo.
Sendo assim, não se pode também acreditar que o porteiro esteja subordinado
ao homem. Ficar preso por ofício, mesmo que seja só à entrada da lei, é
apenas chega à lei, o porteiro já está lá. Foi incumbido pela lei de realizar um
- Não concordo com essa opinião – disse K., balançando a cabeça. – Pois se se
adere a ela, é preciso considerar como verdade tudo o que o porteiro diz. Que
(pág. 269)
por fazer. O padre lhe diz que ele, o padre, também pertence à corte, que não
quer nada com ele e permite que ele saia quando quiser.
O sacerdote tinha se afastado apenas alguns passos, mas K. gritou bem alto:
- Antes você foi tão amável comigo disse K. – Explicou-me tudo, mas agora
Seu regresso imediato ao banco não era tão necessário, como ele havia
exposto; podia muito bem permanecer ali por mais algum tempo.
- Pertenço pois ao tribunal – disse o sacerdote. – Por que deveria querer alguma
coisa de você? O tribunal não quer nada de você. Ele o acolhe quando você
Na véspera do seu trigésimo primeiro aniversário, por volta das nove da noite,
apartamento.
Prof. Monir: Dois homens gordos de casaca como dois tenores de ópera.
Exatamente um ano depois, ou melhor, um ano menos um dia após a sua
detenção - ele foi preso no dia do seu trigésimo aniversário, agora um dia
antes do seu trigésimo primeiro aniversário, ou seja um ano e um dia a
menos, dois homens gordos vestindo casaca como se fossem tenores de
ópera o procuram na sua casa.
rigidamente um braço, saem com ele pela cidade como se os três homens
sua direção. Ele a observa vindo até ela desaparecer numa transversal escura.
seu paletó e camisa e o deitam com a cabeça sobre uma pedra. Aparece uma
faca de açougueiro ”comprida, fina e afiada dos dois lados” que eles passam um
para o outro. Aparentemente, eles esperam que Josef K. tome a faca e a enterre
no próprio peito, mas ele não o faz, fixando a vista à distância numa pessoa na
janela de uma casa com a luz acesa. Seria um amigo? Onde estaria o juiz e a alta
corte que ele nunca conseguiu alcançar? Josef K. ergue as mãos e estica todos
os dedos.
Com olhos que se apagavam, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto,
Prof. Monir: Na hora que ele diz assim pros tenores: “Então vocês que me
foram designados”, não dá a impressão de que ele estava esperando que
viessem matá-lo?
Alunos: Dá.
Prof. Monir: Ele aceita porque ele percebeu que nada do que ele pudesse
fazer teria sido capaz de mudar o veredito. Mas ele não sabe por que ele vai
ser sacrificado, porque ele não se sente culpado.
Vocês repararam que sacrificar alguém sobre uma pedra é aquilo que se faz
com os animais. Os altares eram de pedra - você sacrificava os animais às
divindades sobre uma pedra, então a morte do Josef K. é mais do que uma
morte, é uma espécie de sacrifício ritual, não parece isso? Se é este o caso,
então nós temos aí uma figura de um sacrifício ritual em que um inocente,
por alguma razão, que não se sabe qual é, esse inocente é escolhido para ser
sacrificado como um cordeiro, que é sacrificado a um deus.
Mas por que vocês não topariam fazer um exercício comigo que seria mais
ou menos assim: E se o Josef K. fosse de fato culpado?
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Há algum fato que o livro nos conte que fez essa mudança
de destino e de sorte para Josef K., que tenha justificado isso? O livro é
incompleto, é verdade... Existe um fragmento – no final deste livro tem
Aluna: Será que não é um problema de consciência que ele tem e ele
começa então... Quando você tem um problema de consciência, você
começa a buscar explicação... a se sentir oprimido por alguma coisa, você
quer resolver, não sei...
Prof. Monir: É como se o mundo todo dissesse pra ele assim: “Eu sei o
que você fez no verão passado!” Seria essa a ideia? Esse é um filme que
os adolescentes adoram, em que as personagens adolescentes aprontam
misérias e aí no ano seguinte elas voltam lá para o mesmo lugar e são
perseguidas por um monstro, e tal...
Mas o problema dessa tese é que mesmo levando em conta o livro estar
inacabado, em nenhum momento há qualquer sugestão de que ele possa
ter sido desonesto, ladrão, ter matado a mulher... entendeu? Ter casado com
o Clodovil... coisas do gênero.
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Bom, pela sequência em que o livro está organizado, aquela
recusa, e sobretudo a recusa vista pela Leni e pelo Block com tanta gravidade,
prenuncia que aquele ato havia quebrado a continuidade de um processo e
que aí ia haver uma espécie de modificação no quadro. E essa modificação
é o prenúncio da morte pela boca do padre, na catedral de Praga - catedral
católica. No entanto, vocês ainda não me disseram qual seria possivelmente
o crime que o Josef K. teria cometido.
Prof. Monir: Ele tenta se defender o tempo todo, mas não consegue. Ele
tenta falar com o juiz, ele não consegue descobrir do que é que ele tem que
se defender, ele não consegue que o advogado o defenda. Não é só que ele
não se defende, o advogado não o defende também.
Prof. Monir: É, mas ele não entra no mérito do caso. Ele entra no tribunal,
diz que aquilo é uma palhaçada ridícula, que é um circo, que é um troço ali
pra explorar as pessoas, que não tem nenhum valor, e eles que vão plantar
batata, que ele não quer mais saber daquilo. Então no tribunal, logo no
inicio, ele dá uma desancada geral naquela situação sem, no entanto, entrar
no mérito da própria acusação. Porque ele não sabe de fato, nem sabia ali
e nem saberá até o fim do que é que ele é acusado. No final da história ele
Aluna: Tem um trecho lá na conversa dele com o padre em que ele diz
assim: “Mas eu não sou culpado. É um equívoco. Como é que um ser humano
pode ser culpado.”
Prof. Monir: Ah, você agora pegou um caminho de ouro! É aquele caminho
da Dorothy, dos tijolos amarelos! Você conseguiu pegar um caminho muito
bom agora. Quer dizer, o padre diz assim pra ele: “Mas você tá enganado”. E
ele diz assim: “Mas como é que um homem pode ser culpado?”
Aluno: Parece que o problema é ele lutar contra alguma coisa que não
existe... e além disso ele ir buscar nos locais menos apropriados a solução
para o problema... É como se ele aceitasse uma coisa que não é dele, ele não
devia nem ir atrás, ele não tem essa culpa...
Prof. Monir: A única coisa que ele não faz... O que as mulheres mandam
fazer? Confessar. Não é isso que as mulheres mandam que ele faça? No
entanto, ele não confessa, em nenhum momento. Deixou claro na última
conversa com o padre, no final da história, que ele não tinha nada a
confessar, porque afinal de contas não era culpado de nada. A única coisa
que ele não admite nunca, jamais, é que ele possa ser culpado... Esse é o
coração do problema.
Então o Josef K. em nenhum momento se coloca nessa postura. Mas por que
ele não se põe nessa postura? Porque ele não sabe do que ele é acusado e
não reconhece o pecado, não é isso?
Prof. Monir: Mas ele tinha antes, né? Até o dia do seu trigésimo aniversário
ele parecia levar uma vida que ele podia controlar. A partir daí não, nunca
mais. O mundo desabou como um fato consumado que o foi empurrando
para uma inevitável morte.
Prof. Monir: Essa frase que a Leoni descobriu é a chave do mistério. É essa
Prof. Monir: Convenhamos que não é razão suficiente pro sujeito acabar
morto, você ter deixado de ir ao encontro da namorada...
Prof. Monir: Não, o resumo pode não estar perfeito, mas de alguma
maneira ele apresenta todos os componentes da história... O resumo não
é perfeito, mas quem leu o livro seguramente deve ter percebido que o
resumo representa fielmente a história; embora não seja nem de perto
comparável ao livro original, ele não é infiel. Quer dizer, não há nenhum fato
escondido de vocês. Não há nada que eu tenha escondido de vocês sobre
essa história, tá?
Aluno: [Comenta sobre o livro não ter sido finalizado pelo Kafka.]
Prof. Monir: Poderia ser o caso... mas se você continuar no caminho que
foi aberto ali pela Leoni, você vai descobrir que mesmo que ele tivesse
matado a mãe sem nenhuma boa razão, mesmo assim não teria nenhuma
diferença com relação ao que o Kafka quer nos contar aí. Ele está querendo
nos contar uma coisa extraordinária... e que vocês estão muito próximos de
descobrirem sozinhos.
Prof. Monir: Ele acha que ele é um ser humano e, como tal, esse ser
humano não pode ser acusado de qualquer coisa, porque ele é apenas um
ser humano. Mas isso que ele aos poucos teme que seja a razão da acusação
ainda não apareceu nessa explicação... Quer tentar?
Prof. Monir: É, pode ser que tenha alguma coisa a ver com os trinta, acho
que vale a pena lembrar isso. Tem um sentido essa observação que ele fez.
Mas há aí uma coisa absolutamente fundamental que é o que no fundo o
Kafka está nos contando, com essa história maravilhosa...
Prof. Monir: Bom, muito bem, é uma ideia... Mas nesse caso, por que
razão, de repente, no dia do trigésimo aniversário, essa situação teria
se transformado? Porque houve uma transformação da vida dele. Essa
transformação é um encaminhamento para a morte... E por que isso teria
acontecido logo naquele dia, não antes nem depois?
Aluna: [Acha que o K. acha que o ser humano não pode ser culpado, porque
errar é humano.]
Prof. Monir: Seria assim se ele fosse de fato inocente. Mas vocês não
me provaram ainda que ele é inocente! Ao contrário, tudo indica que ele
é culpado. Não está todo o mundo dizendo que ele é culpado? Se ele for
inocente essa tese vigora...
Prof. Monir: Ele não confessa o pecado porque não reconhece pecado
nenhum, é por isso que ele não ouve a recomendação das mulheres que
dizem para ele ir lá confessar...
Aluno: É culpado de não saber qual é o crime que ele cometeu. Pronto.
Prof. Monir: Essa é uma boa ideia, né? Culpado pela ignorância. Mas há
uma culpa absolutamente garantida...
Prof. Monir: O porteiro diz assim: “Você vai poder entrar, mas não agora”.
Não é? E ele passa a vida inteira tentando imaginar como é que entra, mas
ele não consegue entrar.
Prof. Monir: Mas ele não se arrepende não só porque ele não reconhece,
mas porque ele passa o tempo todo pecando o mesmo pecado, nessa
história. Qual é o pecado fundamental que o atormenta?
Aluno: A dúvida.
Aluno: [Pergunta se não é por usar o livre arbítrio que ele não vê o que fez de
errado.]
Prof. Monir: Ele tem o livre arbítrio para negar, mas nem isso o exime da
condenação, ele vai morrer igual.
Aluno: A luxúria.
Prof. Monir: Compreenderam que não faz nenhum sentido você fazer
campanha contra o prazer sensual? O pecado está em você transformar o
prazer sensual na sua vida. Aí é pecado. Compreenderam? O Dalton Trevisan
tem uma frase maravilhosa, que é assim: “Do que vale a sua vida se você não
pode comer três, quatro quindins?” De fato, né? Pense bem que vida besta
se você não puder comer três, quatro quindins.
Como os judeus acreditam nisso, que eles estão perdidos por causa do
pecado original - que é a única acusação de fato que você tem para atribuir
ao Josef K. (qual é o pecado que ele cometeu, do qual ele é acusado? É o
pecado original), então os judeus estabeleceram uma religião cuja essência é
ficar amigo de Deus. Isso que se chama judaísmo é uma espécie de exercício
de boas relações com Deus, de relações amistosas, porque eles imaginam
que na hora em que Deus for resolver esse problema aqui eles vão ficar em
melhor situação, porque afinal eles sempre foram bacanas, amigos de Deus.
A essência do judaísmo é a amizade com Deus, porque eles não acham que
haja de fato uma salvação antes da vinda do Messias. Mas o Messias não
veio ainda. Quem sabe ele não vem, não sei.
Qual é o pecado que está na outra ponta, como o mais grave de todos? É a
soberba. A soberba é o pior pecado, mas por quê? Porque ela é um desafio
direto à autoridade de Deus. Porque Deus diz assim: “Não é pra comer esse
negócio!” Você vai lá e come. Mas não é só esse o problema da soberba.
É assim: a serpente convence Adão e Eva de que era para comer a fruta
porque Deus estaria escondendo uma informação de que eles, Adão e Eva,
se comessem daquela fruta, ficariam tão poderosos quanto Deus. Você
consegue imaginar soberba maior do que essa? Você alçar-se ao mesmo
status e nível de Deus?
Então o que é que faz o Josef K. o tempo todo em que ele não admite que
ele é culpado? Ele sabe que é culpado, mas não admite. Ele está o tempo
todo reafirmando a soberba do pecado capital, que é justamente aquilo
de que ele é acusado. Mas como ele não acredita em salvação, ele não
consegue nunca pegar a estrada de Damasco... São Paulo consegue ainda
pegar a estrada de Damasco. Ele é cegado por Deus e perde a capacidade de
enxergar qualquer coisa, que é exatamente a situação em que o Joseph K. se
meteu. Mas na hora que São Paulo se humilha perante Deus, e confessa, e se
torna humilde, ou seja, na hora em que ele se coloca na posição de criatura,
então ele recupera a visão, porque ele se colocou ontologicamente no seu
verdadeiro lugar e não está mais tentando atingir o lugar mais alto no pódio,
disputando o lugar de Deus.
Prof. Monir: Pra isso ele teria que ter compreendido que ele está sob o
pecado de soberba. Ele não consegue entender isso.
Então o Joseph K. não reconhece a sua condição de criatura. Ele acha que
não é criatura, mas sim um criador... ele não reconhece jamais a sua posição
de subordinação divina, é por isso que ele não consegue ver a culpa,
porque a soberba o está cegando o tempo todo, sistematicamente. Ele não
consegue ver jamais que o problema é ele reconhecer-se como criatura, e aí
sim a salvação seria possível.
Aluna: É uma limitação, então, não é? Ele não se sentiu um ser limitado.
Prof. Monir: Não é isso, pessoal. Vejam bem, eu não estou aqui tentando
dar a vocês uma explicação religiosa para o problema. Eu estou dando uma
situação ontológica para o problema. O que o Josef K. faz e que o destrói é
enganar-se sobre a sua verdadeira natureza ontológica... Quer dizer, na hora
em que ele não é capaz de perceber-se como criação, ele então se torna
inviável como pessoa. Quer dizer, é exatamente a mesma história que depois
o Kafka conta em A Metamorfose... O que é a metamorfose? É um sujeito que
vira um inseto gigante, porque na hora em que você perde o status de criação,
A lei - Ele não consegue entrar na lei porque a única possibilidade de o porteiro
deixá-lo entrar é que ele confesse. Mas ele não confessa, ele fica imaginando
a hora em que o porteiro vai convidá-lo. Mas ele não será convidado jamais!
E pela mesma razão pela qual o homem do campo morre na porta da lei, ele
morrerá num ato sacrificial, sobre uma pedra de uma pedreira abandonada,
morto por uma faca de açougueiro que será enterrada no seu peito e virada
duas vezes. Conforme descrito no livro. A história de O Processo é a história
do gnosticismo, o pecado do Josef K. é ser gnóstico... é achar que pelos seus
próprios meios humanos ele é capaz de atingir a divindade, a sabedoria. É o
desprezo da existência e da autoridade de Deus, que é de todos os pecados
o mais grave. É por isso que a soberba é sempre o pecado pior. Quando
você reza no Pai Nosso: “e não nos deixei cair em tentação”, não é que você
da Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1997, tradução de Modesto Carone).
O que se entende por cultura aqui é que no final destes nossos encontros
vocês saiam daqui tendo domínio de determinadas características da reali-
dade humana, certos aspectos da condição humana que os ajudarão a vi-
ver de modo mais consciente, um modo melhor. É isso que se entende por
cultura. Não é uma distribuição de detalhamentos. O mundo da cultura não
deve ser confundido com uma espécie de beletrícia (da palavra francesa bel-
les lettres), não é isso. Nós estamos preocupados em saber o que significa
aquilo que está sendo dito ali. E essa é a razão pela qual nós misturamos
sempre livros de ficção com livros ensaísticos, livros sem pretensão ficcional.
O livro de hoje é uma fórmula mista, pois foi escrito de forma ficcional sem
ser de fato um livro de ficção. É um livro de filosofia escrito de um modo lite-
rário muito diferente de como no modo geral se fazem os livros de filosofia.
É um livro muito antigo. Foi escrito no século IV ou V século da era cristã.
Passamos aqui um resumo que não substitui a leitura do livro. O livro é muito
melhor do que o resumo, sempre. Não há modo de um resumo representar
o livro com a mesma competência. Não deixem de ler o livro. Se você quer
estudar filosofia na vida, e deseja começar por um determinado livro, pegue
este, em vez de pegar aquela coisa horrorosa chamada O Mundo de Sofia,
que é uma espécie de crime literário. Não leiam aquilo de jeito nenhum,
não indiquem pra ninguém. Se tiverem, escondam. Não deixem as crianças
pegarem de modo nenhum. Escondam das crianças, por favor! O Mundo de
Sofia é uma enganação. Se alguém um dia te perguntar como é que come-
ça a ler filosofia, você manda ler o Boécio, A Consolação da Filosofia. Feito
isso, podemos começar? Todo o mundo tá feliz com essa pré-explicação?
Alguém tem alguma dúvida? Vamos em frente?
império romano.
Prof. Monir: Há uma versão popular do assunto de que ele teria trans-
formado o cristianismo na religião oficial, o que não é verdade. O cristia-
nismo simplesmente foi autorizado, como qualquer outra religião. Parou-se
de perseguir os cristãos sob certo ponto de vista. Não que isso tenha sido
pra sempre, mas já foi um reconhecimento da legitimidade do cristianismo.
Duzentos e poucos anos depois da morte de Cristo o cristianismo é aceito
como religião. Nessa altura já havia um conjunto de obras de doutrina cristã
que são chamadas de patrística.
É muito importante saber algo aqui para entender toda esta história. O cris-
tianismo não é uma doutrina, não é uma tese filosófica, não é uma proposta,
uma hipótese ou uma proposição especulativa. O cristianismo é um fato his-
tórico. A gente não entende nada se não compreender isso. Por que aquilo
que nós chamamos de cristianismo resume-se fundamentalmente a quatro
evangelhos e o Atos dos Apóstolos. Todas essas coisas são narrativas de fatos
históricos. Há quarenta evangelhos, mas a Igreja só reconhece quatro. E a
razão pela qual a Igreja só reconhece quatro não é porque haja uma cons-
piração lá do Código Da Vinci ou coisa equivalente, mas é porque só esses
quatro têm certa sintonia, certa concordância entre si.
Porque era preciso escolher o que parecia mais provável. De todos os evan-
gelhos, esses quatro contam basicamente a mesma história. Tem lá um ou
outro ponto de divergência, mas fundamentalmente trata-se da mesma
Câmara Cascudo “Malasartes é figura tradicional nos sites de aposta populares da Península
de enganos, sem escrúpulos pois é o deus que ajuda os apostadores a ganharem”. Disponível
Prof. Monir: Se você achar isso, você é herege. Então lembre-se disso. Je-
sus tem de ser Deus obrigatoriamente, se não o cristianismo não faz ne-
nhum sentido.
tinopla.
Prof. Monir: Essa Constantinopla é uma cidade que foi batizada assim por
causa do Constantino e que antes chamava-se Bizâncio. A partir de 395, mais
ou menos na época em que tudo isso está acontecendo, o império romano
agora é dividido em dois pedaços, um fica com uma capital no oriente, onde
hoje é Istambul (a antiga Constantinopla), e uma no ocidente, em Ravena,
que mudaria para Roma.
c. 480 Anicius Manlius Severinus Boetius nasce em Roma, numa família patrícia,
cristã havia cem anos. Órfão aos sete anos, é adotado pelo aristocrata Quintus
Prof. Monir: Então o Boécio nasceu numa família patrícia, ficou órfão, mas
foi adotado por outra família patrícia. E casou com a filha do seu pai adotivo,
a Rusticiana.
Prof. Monir: Aqui tem uma coisa importantíssima: como o arianismo foi
muito importante, esteve muito disseminado no mundo cristão logo no iní-
cio da era cristã, os bárbaros eram todos arianos. Achavam de fato que Jesus
não era Deus. Os francos não, eles eram o único grupo de bárbaros que não
achavam isso, que não tiveram essa educação errada. Então esse que depõe
o outro e sobe ao poder, o Teodorico, é fundamentalmente ariano. Ele já era
cristianizado, mas ariano. E não sabe que quem é ariano não é cristão de ver-
dade, porque ser um herético implica em você cometer um erro tão grave
Prof. Monir: O Teodorico toma o poder mas não mata a nobreza, porque
eles não sabem lidar com aquela máquina judiciária sofisticadíssima. O im-
pério romano tinha uma máquina que era dirigida pelos romanos, você não
consegue substituir isso. Então o Boécio, como aristocrata, começa a ter fun-
ções sob o governo de um bárbaro, Teodorico, e começa a receber tarefas.
Prof. Monir: Depois eu vou explicar isso com muita calma, porque é muito
importante.
525 Boécio é executado em Pavia. O seu corpo está na igreja de San Pietro in
Cielo d’Oro, em Pavia, junto com o de Santo Agostinho. Boécio e seu pai eram
tempo depois.
Prof. Monir: O pai adotivo de Boécio foi morto pelo Teodorico em seguida
apenas porque defendeu o filho adotivo e genro.
526 Morre Teodorico. Segundo a lenda, o imperador teria sido assombrado por
Prof. Monir: Segundo o folclore, ele via todo o tempo os fantasmas dos
dois. Não conseguia dormir porque ficou assombrado pela culpa, né? Morre
de um modo muito lamentável. Passam-se muitos e muitos anos.
(747–814).
Paraíso:
Prof. Monir: É uma menção de muito valor. O Boécio está sendo visto aqui
pelo Dante, que é o intérprete da Idade Média, como uma pessoa de grande
mérito. Uma pessoa que foi martirizada, em última análise.
o império otomano.
PROF. MONIR: Por causa disso, a Catedral de Santa Sofia, uma das mais belas
do mundo, foi transformada numa mesquita. Preservada, porém reciclada. E
Constantinopla passou a se chamar Istambul. Durante muito tempo referen-
ciou-se a cidade com os dois nomes, mas hoje perdeu-se completamente o
nome de Constantinopla.
1883 A Sagrada Congregação dos Ritos canoniza Boécio como São Severino
PROF. MONIR: Portanto Boécio é santo. Santo da Igreja Católica. Esse fato é
de algum modo polêmico, porque como vocês verão na obra que nós va-
mos ler agora, não há uma única menção a Jesus Cristo. Por que não há? É
isso que eu preciso explicar pra vocês com toda a calma agora, pra gente
entender bem a obra. Boécio está escrevendo essa obra perto da sua morte,
que foi em 525 da era cristã. Nesse momento tinha o que havia sobrado do
mundo antigo, da filosofia grega, e já havia um corpo chamado patrística,
de doutrina cristã.
Mas está justamente em Boécio (não só nele, mas sobretudo nele), o germe
dessa transição. Quer dizer, foi feita uma abordagem filosófica em torno dos
conhecimentos que são factuais da doutrina católica, ou cristã (não tinha
diferença naquela época). Boécio, portanto, vocês verão pelo texto que vão
ler, é o sujeito que inventa isso. E a história que vamos ler em seguida é a his-
tória do corredor da morte. Ele havia sido torturado com um processo de se
apertar a cabeça com uma cinta de couro. Os olhos saiam pelas órbitas, uma
coisa medonha, horrorosa. E ele encontrava-se lá na prisão, destituído de
tudo – não tinha mais família, casa, não tinha importância nenhuma. Ele era
afinal de contas senador do império romano, não era um qualquer. Ele tinha
um poder enorme e tinha dado demonstrações a vida inteira de piedade e
generosidade ímpares. Era um sujeito extraordinariamente cuidadoso, e en-
contra-se lá torturado no corredor da morte, com a sua execução iminente.
Resumo da narrativa
na prisão por seu sogro, Símaco, que subornava os guardas. A narração, alter-
nando prosa e verso, transcreve o diálogo entre Boécio e uma mulher misteriosa
que o visita, a Filosofia. A Consolação da Filosofia teria sido o segundo livro mais
feita por São Gerônimo). Esta última obra do escritor patrício exemplifica a fusão
(pensador sobre a Idade Média) dizia de Boécio “ser o último dos romanos e o
I.1
PROF. MONIR: Ele só tem quarenta e cinco anos, é uma velhice meio anteci-
pada, mesmo pra época. Ele tem quarenta e cinco anos e acabou a vida! Vai
morrer dali a dias.
PROF. MONIR: Mas isso é por causa dos românticos, que achavam lindo fazer
isso. Teve uma época, no século XIX, que não havia nada mais charmoso do
que morrer bem jovem. Com mais de vinte e cinco anos, já não deu mais,
você já fracassou na sua vida. Mas veja, o Boécio é da aristocracia, é um sujei-
PROF. MONIR: Começa aqui com poesia. Vamos ter de vez em quando uma
poesia. Na verdade têm tantas poesias quanto capítulos em narrativa, nós
não colocamos no resumo porque não dá pra ver tudo. Mas tem uma poe-
sia bonita pra cada coisa, e ele então está dizendo aí o quanto a vida dele
acabou mal, né? Não esqueçam que não se trata de uma pessoa qualquer,
I.2
Enquanto meditava silenciosamente essas coisas comigo e confiava aos meus ma-
nuscritos minhas queixas lacrimosas, vi aparecer acima de mim uma mulher que
inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e revelavam uma
clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma
força inexaurível.
Ela parecia ter vivido tantos anos que não era possível que fosse do nosso tempo. Sua
estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras vezes parecia
atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos
céus e desaparecia dos olhares humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos
tarde ter sido ela própria quem teceu a veste. A poeira dos tempos, assim como acon-
tece com o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor.
PROF. MONIR: Essa mulher parecia um pouco maltratada pelo tempo, né?
Tão vendo? Não está cem por cento.
E, entre essas duas letras, via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento
inferior ao superior. No entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma
PROF. MONIR: Viram que a teoria está acima da prática? Porque para um gre-
go, nada mais importante do que a teoria. O ideal de sucesso humano para
um grego é o sujeito que consegue o ter o bios teoreticus, um sujeito que
consegue viver com capacidade de contemplação da verdade. Isso é o gran-
de ideal humano. Ganhar dinheiro é uma coisa que não é um valor humano
universal. Pode ser importante para um ou outro, mas para um grego, tudo
é teoria, a prática fica subordinada a ela. Não esquecer nunca isso. E está
dizendo que “mãos violentas rasgaram sua veste e cada um tomou um pedaço
dela”. Do que será que ele está falando? Vocês têm alguma ideia? Ele está
falando tanto do epicurismo, quanto do estoicismo, quanto do cinismo. Ou
seja, quando acaba a filosofia grega, quando morre Aristóteles, algum tem-
po depois o Epicuro inventa o Jardim de Epicuro.
Mas ela tinha livros na mão direita e um cetro na esquerda. Quando viu as Musas
da poesia junto a mim, cantando versos de dor, ficou muito perturbada e, lan-
amantes do teatro aproximarem-se deste doente? Elas não só não podem reme-
PROF. MONIR: Na hora em que ela vê lá o Boécio cantando sua dor com
as musas, ela fica furiosa, porque acha que aquela choradeira não vai levar
São elas que por lamentos estéreis das paixões matam a acuidade da Razão, fazem
com que a alma humana se acostume à dor e não a deixam mais sossegada. Se pelo
menos importunásseis um neófito com vossas insídias habituais, eu não daria gran-
Com essas palavras, o coro harmonioso baixou os olhos com tristeza e atirou-se pie-
PROF. MONIR: Quem era o coro harmonioso? Aquelas musas ali, que esta-
vam incentivando a choradeira.
Quanto a mim, estava com os olhos tão cheios de lágrimas que não podia discernir
essa mulher que tinha tanta autoridade; calado, atirei-me ao solo e esperei em silên-
cio o que ela iria fazer. Então ela se aproximou e se sentou ao pé da minha cama e,
vendo minha grande tristeza e terrível aflição, deplorou nestes versos a perturbação
I.3
PROF. MONIR: Quer dizer, sob o ponto de vista da Filosofia, o Boécio está
uma lástima e uma porcaria. Porque ele que pensaria coisas, que sempre ti-
nha feito progresso, agora encontra-se completamente perdido, lamentan-
do-se com as musas, naquela situação que ele está vivendo, que a Filosofia
pretende curar. Começa a nossa história agora nesse momento.
Mas és tu que outrora foste nutrido com nosso leite, com nosso alimento, que se exer-
cia com uma força viril? E, no entanto, tínhamos te fornecido todas as armas neces-
sárias para venceres, perdeste-as por tua culpa, e com elas vencerias! Tu me reconhe-
ces? Por que te calas? É a vergonha ou o abatimento? Oxalá fosse a vergonha! Mas
Ela põe a mão ternamente sobre o peito de Boécio, diz que ele nada deve temer
I.5
PROF. MONIR: A hora em que ela começa a falar com ele, ele de repente se
ilumina e começa a enxergar alguma coisa novamente. Essa frase é mui-
to bonita, e de certo modo foi mantida, de vez em quando você encontra
como referência por aí nos livros.
I.6
E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz celeste e
PROF. MONIR: Vocês entendem o que é nutriz? É aquela que nutre. A mãe,
por exemplo, que dá o peito ao filho é nutriz. Usa-se essa expressão na me-
dicina também. Ele reconheceu finalmente a quem lhe dava de comer, que
era a Filosofia. Finalmente o Boécio reconhece aquela pessoa que está ali.
É claro que tudo isso é ficção, compreenderam? É uma ficção que tem, no
fundo, um sentido filosófico, mas isso não é muito comum. De modo geral
você não faz assim em livros de filosofia. Mas é um livro de filosofia, basica-
mente é isso.
Perguntada o que faz ali, a Filosofia responde que para ela “não é lícito deixar
caminhando sozinho um discípulo seu.” Lembra o caso de Sócrates que por ela, a
PROF. MONIR: Vocês sabem disso porque quem esteve aqui ano passado
fez a Apologia de Sócrates no programa, um dos mais importantes livros. A
Apologia de Sócrates é a história que relata, como os evangelhos... há mui-
ta semelhança, guardada as proporções, entre a Apologia de Sócrates e os
evangelhos. Porque Sócrates, assim como Jesus Cristo (sempre guardan-
do as proporções, por favor), é um sujeito que não escreveu uma linha. E a
Apologia de Sócrates, por todos os meios com que você analise, tem de ser
aceita como uma reportagem histórica. Porque o Xenofonte escreveu tam-
bém uma Apologia de Sócrates e é muito parecida com a de Platão. E os dois
não iam combinar. Então a Apologia de Sócrates é o relato do que aconteceu
de fato no julgamento de Sócrates. E Sócrates morre pela Filosofia, ou seja,
ele sabe que a única possibilidade de continuar havendo alguma Filosofia é
Mais tarde. A turba do popular Epicuro, os estóicos e muitos outros ainda disputa-
vam sua herança. Nem reclamando nem resistindo, escapei de ser eu mesma parte
da presa.
PROF. MONIR: Viu? Confirmando o que eu tinha dito pra vocês, os que estão
tentando arrancar a roupa da Filosofia são essa gente. Porque o epicurismo
é o fim do fim. Você pega os cínicos, pega Diógenes, que achava que o apro-
priado pra humanidade era ir ao banheiro em qualquer lugar. Achava estra-
nhíssimo que uma pessoa fosse ao banheiro num lugar específico. Como
é que pode, depois de Aristóteles aparecer um sujeito tão imbecil a ponto
de ter reduzido a Filosofia a uma coisa dessas? É isso que ela está dizendo
aqui. Nessa época o Boécio já sabia o quanto significava de regressão, de-
pois da morte de Aristóteles, essas filosofias helenistas, né? Digamos assim,
essas que foram pertencentes à Grécia helênica, do tempo de Alexandre,
não mais à Grécia clássica. Todas elas são decadentes.
A veste, que eu havia tecido com minhas próprias mãos, foi rasgada e arrancada, e os
desavisadas tomaram aqueles malfeitores por discípulos meus e foram levados por
de Zenão ouviste falar, pelo menos de Cânio, Sêneca e Sorano, cuja fama não é por
doutrina.
PROF. MONIR: Ela está dando exemplo de filósofos que foram martirizados.
O Anaxágoras é um pré-socrático e foi exilado, o Sócrates foi morto por ve-
neno. O Zenão de Eleia também foi torturado e morto, ele é discípulo de
Parmênides. E Cânio, Sêneca e Sorano são três filósofos latinos, romanos,
sendo que grande mesmo é só o Sêneca, os outros dois são menores. Todos
eles foram obrigados a se suicidar. Porque o Nero achou que os estoicos,
que era essa turma aqui, estava querendo derrubá-lo. Matou todos. Então
ela está dando exemplos de gente que foi martirizada como Boécio está
sendo agora.
O que os levou a serem malvistos foi que, imbuídos de meus princípios morais, eles
Boécio reclama do modo como a Fortuna o tratou. Culpa a Filosofia por ter dita-
do, pela boca de Platão, que “seriam felizes os estados governados pelos sábios ou
PROF. MONIR: Aí você tem uma coisa importantíssima que é a tese de Platão
em A República sobre o rei-filósofo. Então Platão achava, equivocadamen-
te – muito equivocadamente – que o governante tem de ser filósofo. Ele
tentou isso três vezes na prática e nas três vezes deu errado. Na primeira
ele foi vendido como escravo numa feira e foi comprado por um aluno. En-
tão eu espero, no dia que acontecer isso comigo, que vocês se lembrem de
mim com a mesma delicadeza. [risos] Já pensou que coisa mais estranha os
alunos comprarem o professor numa feira? Vendido como escravo... O Pla-
tão atesta, no livro A República, que o governante, para dar certo, tem que
ser filósofo. O rei-filósofo é o sujeito que governará civelmente a socieda-
de, ou seja, temporalmente, e que também tem as condições de sabedoria
ao mesmo tempo. Isso não dá certo. Embora eu diga pra vocês que não dá
certo (e esse assunto tomaria uma aula inteira), ele está justamente sendo
implementado hoje sob o nome de Nova Ordem Mundial. Eu digo que não
dá certo na teoria, porque em tese é o modo como o mundo está sendo
governado. Mas ele não dá certo na teoria porque o poder temporal, que
é o poder do rei, é profundamente diferente do poder espiritual, que é o
poder do sacerdote (que é o filósofo, de certo modo). Quem matou a cha-
rada foi o Eric Voegelin, que disse assim: “O poder espiritual, para poder ser
verdadeiramente poder, tem de ser aceito com total liberdade, se não, não
é poder de verdade”. Ora, você não pode então botar esses dois poderes no
mesmo sujeito, porque você nunca sabe se você está obedecendo o sujeito
Então o Boécio tá dizendo para a Filosofia: “Mas não foi você que disse, pela
boca de Platão, que era melhor que os filósofos fossem reis?” Porque Boécio
estava lá metido com a política de Roma. Entenderam que ele era um gover-
nante-filósofo? Ele tá dizendo isso: “Como é que isso não funciona, se você
que deu essa ideia?” Vamos ver como é que a Filosofia se defende dessa.
Tu, pela boca do mesmo filósofo, me persuadiste de que os sábios deveriam governar
os estados, para impedir que o governo caísse nas mãos de pessoas sem escrúpulos
e sem palavra, e que fosse uma praga para os bons. Então eu, inflado por essa supre-
macia e com os ensinamentos que foram dados no início e longe da multidão, decidi
aplicá-los na vida política. Tu sabes, e também Deus, que te fez penetrar no coração
dos sábios, que apenas o desejo de realizar o bem geral me arrastou à política. (pág.
11)
I.10
A Filosofia diz a Boécio que ele não foi desviado de sua pátria, mas baniu-se dela.
De fato, não podias ser banido por ninguém. Se te lembrasses de tua verdadeira pá-
tria, saberias então que ela não era, como a Atenas de outros tempos, governada
pela opinião da maioria, mas ‘por um só mestre e um só rei4’ , que se alegra com o
4 Homero, Ilíada.
De fato, deixar-se guiar e frear por ele e obedecer à sua justiça: nisso consiste a ver-
dadeira liberdade. Por acaso ignoras uma antiqüíssima lei de tua cidade, que proíbe
serem expulsos os que a escolheram como pátria? Com efeito, estando ao abrigo de
seus muros e fortificações, não se deve temer o risco de ser exilado. (pág. 18)
Mas eis que tua alma foi grandemente perturbada por sofrimentos e sentimentos
de cólera e desespero que te puxam por todos os lados e te fazem ter disposições de
espírito tais que não é possível ainda tratar-te com um remédio eficaz. Dessa forma,
por um tempo usaremos de alguns remédios paliativos: assim, a espessa casca que a
desordem de tuas emoções acabou por transformar num tumor será removida, pri-
meiro por uma leve massagem que a preparará para ser tratada mais tarde por um
PROF. MONIR: A Filosofia não vai dar o remédio, porque ele está muito mal.
Então ela vai começar com uma terapia mais leve.
A Filosofia pede permissão para interrogar Boécio “para saber que tipo de cura
deve aplicar”.
E ela disse: ‘Achas que este mundo é conduzido por fatos acidentais e governado pela
Fortuna, ou achas que é governado por uma Razão? Eu respondi: ‘Seria impossível
crer que um universo tão bem ordenado fosse movido pelo cego acaso: sei que Deus
preside aos destinados à Sua obra, e nunca me desapegarei dessa verdade’. (pág. 20)
PROF. MONIR: Nessa época, o mínimo que se espera de um ser humano nor-
mal é que você reconheça que há alguma ordem no mundo. Por mais que
exista uma dificuldade humana de enquadrar essa ordem em equações, por
mais que exista alguma variação nessa ordem em torno de um tema, não dá
pra você imaginar que isso é uma coisa aleatória. Nunca ninguém viu cho-
ver pra cima. Quando você vai pra casa de noite, ela está sempre no mesmo
lugar onde você deixou. Você não sai pela cidade inteira procurando a sua
casa que teria mudado de bairro. Não é assim? Claro, algumas pessoas be-
bem demais... talvez num caso desses isso seja possível, mas de modo geral
não é assim. Então o mínimo que se espera que alguém faça é que aceite
o fato de haver um cosmos, que é palavra grega para “ordem”. “Cosmos” e
“ordem” é a mesma coisa. Então há um cosmos em torno de nós que é de
alguma maneira irretratável, quer dizer, ele não pode ser completamente
descrito. Então há uma certa característica probabilística na ciência. A ciên-
cia não pode ser absoluta em hipótese nenhuma porque ela não consegue
pelos seus meios criar uma descrição perfeita do cosmos. Mas isso não quer
dizer que ele seja caótico.
PROF. MONIR: Sim, “Fortuna” é sorte, isso mesmo. Nesse sentido. O que acon-
tece? O Boécio tá dizendo que a sorte dele era muito boa e agora está uma
bela porcaria. Ele está reclamando que a sorte mudou, não é isso? A sorte
dele mudou – ele era quase rei e agora ele é um sujeito que vai morrer dali a
pouco, que vai ser executado com quarenta e cinco anos.
A Filosofia se declara surpresa com ele estar doente da alma, tendo pensamen-
um homem. Tendo ele respondido ser o homem “um animal racional e mortal”,
ela conclui:
Agora reconheço uma outra causa principal: deixaste de saber o que tu és. Assim,
De fato, é devido ao esquecimento que estás perdido, que te lamentas de ter sido exi-
lado e privado de teus bens. É porque desconheces qual é a finalidade do universo que
que regem o universo que julgas que a Fortuna segue seu curso arbitrário e que ela é
mente, tentando “por um tempo dissipar por atividades sutis e mesuradas as trevas
de tuas impressões enganosas, para que possas (Boécio) reconhecer o brilho da ver-
dadeira luz”.
Livro II
por sentires profundamente a perda de tua Fortuna anterior que desfaleces. É apenas
o que tomas por uma reviravolta da Fortuna que agita teu espírito. Conheço todos
os multiformes embustes que ela usa para enganar os homens até torná-los loucos e
PROF. MONIR: Agora a Filosofia vai desmascarar a Sorte. Já que a Sorte pare-
ce ser o alvo de reclamações do Boécio.
Ela convoca então a Retórica, “que só não se desvia do caminho quando segue as
no desespero? Sem dúvida, viste algo de novo e extraordinário. Pensas que a Fortuna
“Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prome-
tendo-te miragens. Descobriste a dupla visão desse poder cego. Enquanto ela ainda
dissimula seu verdadeiro semblante aos outros, diante de ti ela se desmascarou com-
PROF. MONIR: A Fortuna, a Sorte, não está te enganando agora. Agora você
sabe como é que são as coisas. Os outros continuam sendo iludidos por ela.
Agora a Filosofia fará uma campanha aqui contra a Fortuna.
ta-a de ti: seus jogos são funestos.” Demonstra que não é possível submeter-se aos
caprichos da Fortuna e “ao mesmo tempo sustar a rápida revolução de sua roda”,
PROF. MONIR: A Fortuna é um negócio que roda. Essa imagem de que a For-
tuna é uma roda é uma imagem do Boécio que veio para o presente. Você
não tem no Sílvio Santos um negócio desses? Você roda lá e cai lá... Um mi-
II.3
A Filosofia discursa a Boécio como se fosse a própria Fortuna, para que ele com-
PROF. MONIR: A Filosofia agora vai se fantasiar de Fortuna e vai fazer de con-
ta que é a Fortuna pra que o Boécio pare de reclamar.
Quando a Natureza te fez sair do ventre de tua mãe, estavas totalmente nu e não
tinhas nada. Fui eu quem te acolheu, tratou com o maior cuidado e, se não me supor-
tas mais, é porque te elevei muito, dedicando-me muito à tua causa, e fui excessiva-
mente pródiga em relação a ti. Mas agora decidi retirar minha mão de teu ombro. Tu
deverias agradecer-me o usufruto de bens que não te pertencem e não tens o direito
de te queixares como se tivesses perdido os teus próprios. Por que então essas lamen-
tações? Não foste agredido de nenhum modo por mim! (pág. 28)
trevas da noite. O Ano tem o direito de cobrir por um período a terra de flores e frutas,
um dia ser amável, apresentando uma superfície calma, e noutro de agitar as ondas
sublevadas pela tempestade. E, quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos ho-
mens que pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com
Não aprendeste, na tua infância, ‘sobre as duas ânforas, uma cheia de males e outra
Quem diz que já não saciaste de teu lote de bens? E que eu já te abandonei completa-
não te dá a esperança de uma nova reviravolta na Fortuna? Seja como for, não te
deixes ficar completamente tomado pela tristeza e, já que vives num reino cujas leis
são as mesmas para todos, não desejes viver sob tua própria jurisdição. (pág. 29)
5 Homero, Ilíada.
II.4
Desafiado pela Filosofia a rebater estes argumentos, Boécio retruca: “Sim, essas
são brilhantes palavras impregnadas do mal da retórica e de música, mas elas en-
cantam apenas no momento em que se as ouve. As pessoas que sofrem sentem mais
profundamente sua tristeza e, quando seus ouvidos cessam de escutar essas doces
PROF. MONIR: Ele diz o seguinte: “Você fala isso porque não é você que está
aqui, que vai morrer torturado na cadeia”. Entendeu o que ele falou pra Fi-
losofia? Que não era com ela o problema, por isso que ela ficava com essa
conversinha fiada.
A Filosofia reconhece o valor deste sentimento e adverte não ter ainda minis-
trado os remédios adequados, mas lembra-o da fortuna que teve quando, por
ocasião da morte do pai, ter sido “elevado junto aos homens de maior projeção” e
PROF. MONIR: Ele ficou lá uns sete anos, e nem por isso a vida dele acabou
ali. Ela está lembrando que ele também teve momentos bons e não é pra
reclamar da vida inteira.
reservados somente a ti: cargos honoríficos que assumiste mesmo quando jovem,
quando eles eram negados a pessoas mais velhas, mas eu me alegro sobremaneira
em recordar aquilo que foi o apogeu de tua glória. Se os sucessos humanos concor-
rem para a definição da felicidade, como é que algumas adversidades, mesmo con-
sideráveis, poderiam apagar de tua memória o extraordinário dia em que viste teus
dois filhos, cônsules na mesma legislatura, fazerem-se escoltar desde a tua casa até
o Fórum pelos senadores e todo o povo e quando, tomando eles seu lugar na Cúria e
tu pronunciavas o panegírico do rei que tornou célebres tua inteligência e tua elo-
triunfador, cumulavas de bens a multidão que vinha atrás de ti? (págs. 31-32)
Diz Boécio
Tens razão, ó mãe nutriz de todas as virtudes, e não posso negar a rapidez da minha
ascensão. Mas é precisamente essa lembrança que me fere mais. Com efeito, em toda
reviravolta da Fortuna, não há maior desgraça do que ter conhecido a suprema gló-
PROF. MONIR: O tombo é grande, né? Quem vocês acham que está sendo
mais convincente aqui? Vocês tão achando que a Filosofia está de fato con-
vencendo o Boécio de que não é tão ruim a situação dele, que vai ser morto
dali a pouco? O que vocês acham? [pausa silenciosa] Independentemente
do que vocês podem achar, é preciso compreender que a Filosofia serve jus-
tamente pra esse momento da vida. A Filosofia não é um processo de saber
coisas sobre os filósofos. Quando eu digo pra vocês não lerem o tal do livri-
nho de filosofia lá é porque além de ser errado, é um livro mal-intencionado,
é ignorante sobre muitos aspectos, e é um livro que acha que saber coisas
folclóricas, sobretudo com um verniz pseudofilosófico e politicamente cor-
reto, é igual à filosofia. Filosofia é alguma coisa que existe apenas dentro de
você na execução real do assunto. A filosofia é uma espécie de instrumento
existencial. Numa hora como essa é que a filosofia é importante. Essa coisa
de saber coisas sobre filósofos é uma atividade didática, mas está muito lon-
ge do significado da filosofia em si própria. É preciso entender que, estando
ela convencendo o Boécio ou não, é para isso que serve a filosofia. É por isso
que ela apareceu agora, e não quando ele estava feliz da vida – mas podia
ter feito também na outra hora.
PROF. MONIR: Ele, na verdade, está usando a filosofia no seu uso concreto,
real, verdadeiro... Ele se faz um pouco de burro por razões didáticas. Vejam,
pessoal, o assunto de que trata a filosofia são esses enigmas da vida, essas
questões fundamentais da realidade. O problema número 1 quando você se
mete a estudar filosofia é que tem uma parte dos problemas da vida real que
são absolutamente impenetráveis, ou seja, você não vai conseguir penetrar
jamais nisso. Os filósofos materialistas como Hegel, Marx e Comte pensam
que a história humana tem dentro dela própria a sua própria solução, sua
própria explicação.
Mas a explicação da história humana não pode estar dentro da sua própria
história porque existem coisas que afetam a vida humana que não foram in-
ventadas pela história. Por exemplo, o conceito de anterioridade – que uma
coisa que é anterior vem antes da outra, quem foi que criou isso? A história?
Um belo dia, o pessoal se reuniu, fez um concílio e falou assim: “Agora fica
estabelecido que o passado vem antes do presente e antes do futuro”. Pois
isso não foi inventado por ninguém, é uma coisa que foi feita antes de haver
a história. Portanto, o conceito de anterioridade é uma espécie de condição
metafísica para que possa existir história. Então o que na verdade é a histó-
ria? É alguma coisa que você de fato não compreende o sentido a não ser
fora da própria história. O sentido da história só irá se revelar no dia em que
a história acabar. Como nós somos pessoas que pertencemos à história, e
entramos e saímos da história o tempo todo – não tem gente nascendo e
morrendo o tempo todo? A nossa espécie entra e sai da história o tempo
todo, nós não saberemos nunca o que é de fato a história a não ser quando
a história acabar, e então nós teremos a revelação do sentido da história.
O que o Boécio quer com essa conversa aqui? Ele está interessado em deixar
uma recomendação dizendo isso que eu acabei de falar. Segundo, ele está
obviamente usando isso pra si próprio, como método de consolação dele
mesmo. Pra poder fazer isso ele desenvolveu uma metodologia literária, ele
inventou uma ficção, né? Ele inventou uma historinha ficcional que permi-
te então que até mesmo nos aspectos condenáveis do que se pensava na
época pudessem de alguma maneira ser confrontados aqui com uma visão
melhor. Essa é a beleza do texto do Boécio, porque ele se presta a essas coi-
sas todas ao mesmo tempo.
seu sogro, sua mulher e seus filhos estavam vivos. Boécio concorda com certa
Em suma: ninguém está contente com a sua situação, e cada situação comporta um
aspecto que não se nota a menos que seja experimentado, e quem o experimenta
sabe quão ruim ele é. Acrescento ainda o caso das pessoas mais favorecidas pela For-
as abate: é preciso muito pouco para tirar os afortunados de sua felicidade; a menor
adversidade as abate.
PROF. MONIR: Qualquer atraso de três horas te deixa furioso, porque você
estava indo pra Europa passar três meses morar em Cannes, nos Alpes... En-
tendeu? Ele tá dizendo isso, mesmo pra quem tem muito sucesso, qualquer
pequena coisa da vida parece ser uma desgraça.
quantos não se sentiriam muito afortunados se tivessem uma pequena parte daqui-
“uma vez que, naqueles que se satisfazem facilmente, ela não dura para sempre, e que
aqueles que se beneficiam muito dela estão sempre descontentes.” Ela decide mos-
trar a Boécio que a verdadeira felicidade consiste em se ter aquilo que a morte
não consegue arrebatar e que isto não pode estar no mundo material, porque
a morte faz cessar o sucesso material dado pela Fortuna. “Então pergunto: como
em seu termo?”
II.9
Nesta altura da terapia, a Filosofia decide usar remédios mais fortes. Demonstra
que têm verdadeiro valor apenas os bens que pertencem apenas a nós, o que
não é o caso das riquezas, que parecem “ter mais valor quando se vão do que
PROF. MONIR: No sentido de que o dinheiro parece ter valor quando se gas-
ta, não é? Se você tivesse um bilhão de dólares numa ilha deserta, esse bi-
lhão não teria valor nenhum a não ser como combustível de fogueira. Mas o
bilhão de dólares só tem valor porque existem shopping centers, agências de
automóveis, enfim, porque o dinheiro só tem valor na medida em que você
Uma vez que não é possível manter algo que só tem valor se for trocado, o dinheiro
só tem valor quando muda de mãos e deixamos de possuí-lo. Por outro lado, se todo
mais o teria. Muita gente no mundo se empenha em obter riquezas a todo custo, mas
sim, os que as possuíam devem necessariamente ficar mais pobres. Portanto, como
são limitadas e lastimáveis essas riquezas que não podem ser possuídas em sua to-
talidade por muitos ao mesmo tempo, nem se tornar propriedade de um sem deixar
PROF. MONIR: Isso é absolutamente verdade e essa é a razão pela qual exis-
te uma ciência chamada economia. Eu tinha um aluno no Rio de Janeiro,
num curso de transporte, que era engraçadíssimo. Ele tinha uma tese que
ele construiu a vida inteira contra essa ideia. Ele dizia assim: “Bom, mas peraí,
eu não admito que digam que o problema é falta de dinheiro. Eu tenho um
Argumenta que o brilho das pedras preciosas são “a luz própria das pedras, não
dos homens” e considera surpreendente que tais coisas suscitem nos homens
tamanha admiração.
Mas por que todo esse alarde com relação à Fortuna? Creio que é por temeres a ca-
motivo de grande preocupação ter de zelar por seus objetos preciosos, quando se os
damos grande importância a essas coisas, nos contentamos com o que nos dá a
Natureza e não temos uma ambição muito grande. Acaso não tens verdadeiramente
nenhum bem que seja teu próprio e inerente à tua natureza, para que seja preciso
procurares bens em objetos externos e estranhos a ti? A ordem das coisas se inverte a
tal ponto que um ser vivo, racional e feito à imagem de Deus, crê poder distinguir-se
Ele, o Criador, quis que os homens estivessem acima de todas as criaturas terrestres, e
vós vos aviltais colocando-vos abaixo do que é mais vil. Com efeito, se é evidente que
todo o bem pertencente a outro vos parece mais valioso do que para aquele que o
possui, quando considerais que os objetos mais insignificantes são bens para vós, en-
tão vos colocais a vós mesmos como inferiores a esses objetos. E, de fato, esse raciocí-
nio é exato; pois assim é a natureza humana: superior a todo o resto da criação quan-
do usa de suas faculdades racionais, mas da mais baixa condição quando cessa de
ser o que realmente é. Nos animais, essa ignorância de si mesmos é inerente à sua na-
tureza; no homem, é uma degradação. Como é grande o vosso erro, quando pensais
em vos exaltar com coisas externas! É algo inconcebível! E ademais, quando alguém
se distingue pelos ornamentos que ostenta, são os ornamentos que são admirados,
e não quem os traz. E afirmo ainda: não há bem material que não cause algum mal
a quem o possui. Dirás que minto? Tu não o negarias. Ora, as riquezas muitas vezes
dos bens dos outros, acreditam ser seu direito possuir todo o ouro e coisas preciosas
punhal, se tivesses entrado na estrada da vida sem fortuna, poderias viver cantando
*************
INTERVALO
*************
II.11
que a virtude não se adquire por causa das honrarias, mas são as honrarias que
E de que se trata afinal esse poder que achais tão desejável e vos comove tanto? Po-
bres mortais! Não vedes quem sois e a quem acreditais comandar? Se vísseis numa
assembléia de ratos um deles reivindicar e querer exercer sua autoridade sobre todos
os outros ratos, com que gargalhadas não seria recebida essa sua pretensão? (pág.
43)
tirano que pensasse poder fazer, por meio da tortura, um homem livre denunciar os
vor tornar-se-iam para o sábio uma oportunidade de mostrar sua virtude. (pág. 43)
O fato é o seguinte: é que vós vos costumais dar às coisas, independentemente do que
elas são, denominações falsas, cujo caráter enganador se revela facilmente quando
passam pelo crivo da verdade, que elas costumam esconder. E é por esse motivo que
não podemos verdadeiramente falar delas como sendo riquezas, poder ou honrarias.
Enfim, podemos dizer o mesmo a respeito da Fortuna: não há nada nela que me-
reça ser procurado, não há nada nela que seja intrinsecamente bom, uma vez que
ela também beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se
II.13
bição de sucesso neste mundo”, mas apenas tentou evitar que suas habilidades
manos habitam uma ínfima parcela do universo e até do planeta: “E o que tem de
Segue-se daí que o homem que busca a fama não tira o menor proveito de ter seu
nome espalhado pela multidão dos povos. Cada um, portanto, se satisfará em ver
sua fama propagar-se entre os seus, e a sua tão falada imortalidade se restringirá às
fronteiras de uma só nação. E quantos homens que foram célebres em seu tempo
não caíram no esquecimento por não terem deixado nenhum escrito! No entanto,
qual a utilidade de tais escritos, que desaparecem junto com seus autores na escu-
de, por que razão te alegras da longevidade de tua fama? (pág. 47)
PROF. MONIR: Os romanos tinham um ditado maravilhoso pra isso: sic tran-
sit gloria mundi. Significa: “é assim que passa a glória do mundo”. Então o
sujeito era importante e famoso, depois não se sabe nada mais sobre ele,
ele desaparece no passado pra nunca mais ser lembrado. Então toda a fama
humana é precária. É isso que ela está dizendo aqui, e vai continuar defen-
dendo essa tese.
(...)
Segue-se que a fama de alguém, seja qual for sua extensão, se comparada à eterni-
dade, cujo fim jamais se atinge, mostra-se não apenas de pouco impacto, mas, na
realidade, quase inexistente. E ainda por cima vós, para obtê-la, deveis granjear o fa-
vor do povo e dos vagos boatos para saber como agir de maneira conveniente, des-
(...)
buscar a glória com suas virtudes, uma vez que tudo acaba com a morte e a destrui-
ção do corpo? Isso, se é verdade o que dizem (coisa com a qual não posso absoluta-
mente concordar): que extintos os homens, sua fama cessa com eles, pois ela se atri-
bui a alguém que já não existe. Mas e pelo contrário a alma, consciente de si mesma,
ganha os céus depois de se libertar desta prisão terrestre, não irá ela desprezar todas
as suas antigas preocupações, uma vez que, tendo ganhado o Céu, pouco se impor-
PROF. MONIR: Vocês percebem que, no fundo, o que está por trás do que ele
está dizendo é a doutrina cristã? Ele está defendendo o cristianismo com
argumentos platônicos e aristotélicos, com argumentos filosóficos. Isso é o
que se chama depois de escolástica. Ele no fundo está defendendo aqui um
princípio cristão do mundo. Antes dele, é verdade, veio toda a patrística, e
veio Santo Agostinho, digamos num ponto mais alto, mas ninguém ousou
até Boécio tentar argumentar com argumentos filosóficos. Até mesmo havia
quem achasse que isso era uma espécie de sacrilégio, que não se podia fazer
isso de jeito nenhum.
Então ele está dizendo assim: “Eu também não posso concordar de jeito ne-
nhum com a ideia de que quando a pessoa morre, tudo acaba. Porque, se
fosse assim, se quando você morresse não houvesse mais nada, então me-
lhor seria mesmo se você tivesse comido mais quindins”. Teria sido melhor
negócio. Mas se isso não é assim, tem que ter outra coisa. E isso é aceito
tanto pelo platonismo, que veio quatrocentos anos antes (que acha que a
alma é imortal), quanto pelo cristianismo. Tanto na filosofia antiga quanto
no cristianismo existe aí uma concordância fundamental sobre o fato de
que o processo não se extingue com a morte. É isso que ele está dizendo.
Mas não quero que penses que estou a travar um combate impiedoso contra a Fortu-
na; por vezes acontece de ela não enganar os homens, mas esclarecê-los. Tal é o caso
quando ela se desmascara e mostra seus métodos de ação. Talvez não compreendas
ainda o sentido de minhas palavras. Há um motivo para ficares surpreso com minha
lavras adequadas para exprimir meu pensamento. Eis o que penso: A Fortuna é mais
benéfica aos seres humanos quando se mostra adversa do que quando se mostra
PROF. MONIR: É melhor se dar mal na vida do que bem. [risos] E eu que ti-
nha achado que é melhor ser rico com saúde do que pobre doente! Sempre
achei que isso era uma espécie de conclusão imbatível, né? Só que agora
estamos sendo contestados aqui pela Filosofia. Quer dizer, se você quiser
compreender Dostoiévski, a obra inteira dele, é essa linha que está aqui. O
Dostoiévski acha que o destino da vida humana é a perdição, e que a única
redenção possível é a espiritual. O Dostoiévski acha isso mesmo. Ele costu-
mava dizer que a única coisa de que ele tinha medo era de não conseguir
sofrer de modo decente e com honradez pessoal. Ela está querendo nos
dizer que às vezes é melhor você não ser mais enganado... que isso pode
parecer um problema no começo, mas depois não é bem assim. O que leva-
rá essa conversa para a própria dúvida sobre os desígnios de Deus. Por que
acontecem coisas que aparentemente são ruins? A vida humana é cheia de
coisas ruins, de que nós certamente não gostamos. Eles estão tornando esse
diálogo cada vez mais profundo. Se fosse feito no jeito platônico, seria um
diálogo muito parecido com o de Platão, de alguma maneira. Claro que não
foi escrito desse jeito, embora o Boécio tenha lido todo o Platão, porque
(...)
Acaso achas de pouca importância o fato de esta severa e temível Fortuna te reve-
lar quem são teus verdadeiros amigos, distinguir a franqueza e a hipocrisia de teus
companheiros e levar o que te foi dado por ela para deixar apenas o que é teu? Por
que preço buscarias adquirir esse discernimento quando não estavas abalado pela
isso mesmo tua mais preciosa riqueza: teus verdadeiros amigos. (págs. 50-51)
PROF. MONIR: Pra entender esse trecho, é só lembrar que ele saiu em defesa
de um colega e foi condenado à morte pelo Senado. Porque funcionava o
sistema jurídico romano, no tempo de Boécio. Não havia um sistema tirâni-
co. Claro que havia tiranias também, mas pra condenar um senador à morte,
você não faz isso assim porque quer. Você passa a responsabilidade para os
outros, alguma mediação tem que ter. Então o Boécio, apesar de ser defen-
sor intransigente dos seus colegas de Senado, foi condenado pelo parecer
do Senado. Ou seja, ficou claro quem era amigo dele e quem não era, quan-
do a Fortuna tirou as asas de cima de Boécio. Ela está dizendo que às vezes
é melhor saber a verdade do que ficar se iludindo.
Livro III
III.1
que antes pareciam “fortes demais.” A Filosofia anuncia então a Boécio que iria
Os mortais têm todos uma única preocupação pela qual não medem esforços, seja
qual for o caminho tomado, o objetivo é sempre o mesmo: a felicidade. Ora, trata-se
de um bem que, ao ser obtido, não deixa lugar para nenhum outro desejo. E é real-
mente o bem supremo, que contém em si mesmo todos os bens. É para aí, como dis-
semos anteriormente, que todos os mortais se dirigem pelos mais diversos caminhos.
Com efeito, todos os homens têm em si o desejo inato do bem verdadeiro, mas os
der supremo: “A maioria acredita ter obtido o soberano bem quando estão alegres
Para alguns, esses bens se transformam indiferentemente em meio ou fim. Dessa for-
ma, vemos homens desejar a riqueza para adquirir o poder, enquanto outros buscam
Mas nós tínhamos definido bem supremo como sendo a felicidade; dessa forma,
cada um considera que a felicidade reside naquilo que deseja mais do que qualquer
outra coisa. Assim, tens sob teus olhos as diversas formas de felicidade que os ho-
mens concebem: riquezas, honras, poder, glória, prazeres. É sem dúvida alguma pelo
fato de tomar apenas tais coisas em consideração que Epicuro, seguindo a lógica, foi
persuadido de que o soberano bem fosse o prazer, uma vez que todos os outros bens
Se você tem dúvida disso, de que o prazer seja quantitativo, tente comer
oitenta e dois quindins, pra você ver como a diferença entre gostar ou não
de quindins só depende da quantidade de quindins que você come. Não há
diferença nenhuma diferença de qualidade, só de quantidade. O René Gué-
non, no livro O Reino da Quantidade, demonstra facilmente isso mostran-
do que o que caracteriza a existência humana como tal é o fato de ela ser
uma existência qualitativa. E qualquer tentativa de transformar a existência
humana num aspecto quantitativo é uma degeneração ontológica. É uma
maneira de nós desistirmos de sermos seres humanos e sermos uma coisa
qualquer. Um cartão de crédito ambulante. Alguma coisa desse gênero.
franca/noticia/2012/04/morte-de-crianca-com-anencefalia-no-interior-de-sp-vai-completar-
Veja, pessoal, tem coisas que a gente não pode fazer. Por exemplo, clona-
gem. Na Folha de São Paulo tem hoje um artigo do Dráuzio Varella que diz
assim: “Depois da Dolly, como se pode ser contra a clonagem?” Pra quem
não sabe, a Dolly é uma ovelha que foi duplicada. Se você pega essas ár-
vores aí, são todas irmãs gêmeas, já existe isso no reino vegetal. Agora, o
próximo passo que esse pessoal vai propor é fazer clonagem de pessoas.
E porque eu não posso fazer clonagem de pessoas, mesmo tendo possibi-
lidade tecnológica pra isso? Porque eu não posso inventar um sujeito que
não tem pai nem mãe. Eu estou moralmente proibido de inventar alguém
que não tem referência familiar nenhuma, porque o clonado é um ser que
vive numa espécie de vácuo existencial. Ele não tem pai, não tem mãe, ele
não tem uma história familiar. Ele não tem nada. É um ser mecânico. Vocês
compreendem que é por isso que eu não posso fazer clonagem humana? E
a eutanásia é o mesmo problema. Eu não sei se eu posso interferir naquela
situação por minha própria vontade porque talvez aquilo tenha um sentido
que eu não seja capaz de perceber. Essas coisas todas são derivadas do fato
de que nós não conhecemos os mistérios do mundo. Eu não estou dizendo
que nós não somos capazes de conhecer coisas, porque se eu dissesse isso
III.5
ver em sonhos vossa origem e entrever o verdadeiro fim que é a felicidade através de
uma percepção que, embora não seja clara, tem ao menos o mérito de existir; e é por
essa razão que, de um lado, vossa inclinação natural vos leva ao verdadeiro bem,
mas, de outro, vossa cegueira quanto aos seus inumeráveis aspectos afasta-vos dele.
(pág. 59)
Isto acontece, continua a Filosofia, porque estes bens não oferecem o que foi re-
que não estavas satisfeito no meio daquele monte de riquezas?” pergunta a Filosofia
a Boécio. Como Boécio responde “sim” a Filosofia o faz notar que o dinheiro não
tem a propriedade de não ser roubado e que é necessária ajuda alheia para
protegê-lo.
Por conseqüência, chegamos a uma conclusão que contradiz a hipótese inicial: com
verdade seu possuidor dependente de ajuda alheia. Ora, de que maneira as riquezas
podem nos libertar de certas dependências? É verdade que os ricos não passam fome
nem sede. Seu corpo também não sente o frio invernal. Sim, dir-me-ás, os ricos têm
sempre com o que matar a fome, a sede, o frio. Dessa forma, as riquezas podem sem-
pre tornar mais suportável a dependência, mas elas não a suprimem. Com efeito, se a
necessidade, esta eterna boca escancarada ao fluxo das coisas, encontra a sua satis-
fação nas riquezas, resta sempre uma nova necessidade a ser satisfeita. Isso sem dizer
que é preciso muito pouco para satisfazer a Natureza, enquanto nada é o bastante
própria necessidade, como poderíeis crer que elas podem oferecer uma garantia de
III.7
Mas tu me dirias: ‘As honrarias e os altos cargos proporcionam àqueles que os exer-
o que explica nossa indignação ao vê-las cair nas mãos dos criminosos: eis por que
Catulo, sem levar em conta a cadeira curul onde se assentava Nório, deu-lhe o apeli-
PROF. MONIR: Esse Catulo era um poeta, um pouco anterior, que viveu um
pouco antes de Cristo. Ele não dava a ninguém importância pelo seu cargo,
e era capaz de xingar os poderosos.
A Filosofia discorre sobre o fato de não haver coincidência entre virtude e poder:
“É com efeito impossível adivinharmos por que as funções honoríficas dignas de res-
E para que reconheças que essas honras, que não têm valor em si mesmas, não pro-
exerceu por várias vezes a função de cônsul encontra-se de passagem entre os povos
bárbaros, essas distinções honoríficas torná-lo-ão mais respeitável aos olhos daque-
les povos? Ora, se as honrarias possuíssem algum poder por si mesmas, elas sempre se
distinguiriam onde quer que fosse, tal como o fogo que aquece da mesma maneira
por toda a Terra; mas uma vez que essas distinções não possuem tal propriedade,
III.8
PROF. MONIR: Que é o Nero. O fato de que Nero se vestia muito bonito, fi-
cava muito pintoso assim, mas não o tornava um sujeito melhor. Um sapo
dentro de uma gaiola de ouro continua sendo um sapo, não é um canário.
A realeza e a familiaridade com os reis podem tornar alguém poderoso? Não posso
negá-lo, se sua felicidade dura até o fim de sua vida; mas a Antigüidade e nosso sé-
em catástrofe. Ó raro poder que não consegue nem conservar-se a si mesmo! Pois,
se o poder real proporciona a felicidade, não é necessário admitir que, assim que ele
mem que quer mais do que pode, que só anda cercado de guardas, que teme mais
do que é temido e cujo poder se manifesta apenas com o consentimento de seus su-
bordinados”.
É como Sócrates, que quando é condenado à morte, diz assim: “Bom, pesso-
al, então terminado o julgamento, vamos embora. Eu vou para a morte, vo-
cês vão pra vida. Só Deus sabe quem faz o melhor negócio”. É o que Sócrates
diz nas últimas linhas da Apologia. Mostrando que como para ele, Sócrates,
nunca interessaram questões do mundo, ele então se encontrava num es-
tado talvez até privilegiado, porque “no outro mundo seguramente haverá
pelo menos justiça”, ele diz assim para debochar do tribunal.
III.10
III.11
Quanto à glória, quantas vezes ela nos engana! Como ela é vergonhosa! Assim, o trá-
gico estava com a razão ao exclamar: ‘Ó glória, ó glória! Quantos vis mortais, Graças
Muitas pessoas, com efeito, devem seu renome às opiniões errôneas da multidão: o
que pode ser mais vergonhoso que isso? Aqueles que são festejados injustamente de-
vem certamente enrubescer ao ouvir os elogios que lhe são feitos. E, mesmo quando
o mérito está na origem da glória, o que pode ela acrescentar à consciência do sábio,
que avalia o que é bom ou não em si, e não se apega ao rumor do público, mas à
III.13
E o que eu poderia dizer dos prazeres sensuais, cuja busca é sempre acompanhada
7 Eurípedes, Andrômaca.
frutam? Confesso ignorar que tipo de atrativo pode-se encontrar aí. Mas basta que
sofrimento. E, se os prazeres podem conduzir à felicidade, por que então não afirma-
ríamos que também os animais conhecem a felicidade, uma vez que todos os seus
III.15
Portanto, está fora de dúvida que esses caminhos para a felicidade levam a um beco
sem saída e não ao lugar aonde prometeram levar. Mostrar-te-ei como essas me-
tas são mal conduzidas desde o princípio. Vejamos: tu queres te esforçar para ficar
rico? Mas para isso terás de tornar alguém pobre. Pretendes alcançar o brilho das
honrarias? Mas para isso será necessário suplicar àqueles que as conferem, e tu, que
poder? Lembra-te de que sempre correrás o risco de uma traição por parte dos teus
é árduo, difícil e cheio de perigos. Desejas levar uma vida de prazeres? Ora, quem não
desprezaria e rejeitaria o escravo de uma coisa tão banal e vulnerável como o teu
III.17
‘Até agora eu te mostrei as falsas formas de felicidade, e que isso baste. Chegou o mo-
mento de te mostrar a verdadeira.’ E eu disse: ‘Vejo claramente que não se pode en-
Perguntada por Boécio por que isso ocorre, a Filosofia explica que “o erro huma-
e o perfeito no imperfeito”.
A Filosofia explica a Boécio que é a procura da parte e não do todo que empurra
PROF. MONIR: Agora a Sabedoria vai explicar o que é isso de tentar dividir o
que é uno. Vamos ver como ela nos explica:
e feliz. E a prova que dou de ter compreendido tudo é que reconheço sem hesitação
que é absolutamente feliz aquele que pode realizar apenas um dos bens citados
previamente, já que eles são todos o único e mesmo bem.’ Ela respondeu: ‘Meu caro
discípulo! Essa maneira de pensar fará a tua felicidade se lhe acrescentares o que se
segue.’ ‘E o que é?’, perguntei. ‘Esses bens mortais e perecíveis têm, segundo pensas, a
‘Estou convencido disso’, disse eu. ‘Nessas condições, já que sabes distinguir a verda-
deira felicidade de suas cópias, resta-te apenas descobrir onde podes encontrar a ver-
dadeira felicidade’. ‘É isso mesmo que há muito tempo ansiosamente procuro saber’.
E ela disse: ‘Mas já que, como diz nosso caro Platão no Timeu, é preciso, mesmo em
ocasiões sem grande importância, implorar o auxílio divino, que achas que devemos
todas as coisas, pois esse é o ritual com que se começam todas as coisas, respondi.’
Quando ele foi canonizado no século XIX houve grande polêmica, porque
alguns acham que ele não morreu em nome da Igreja. Ele não foi martiri-
zado pelo cristianismo... não parece mesmo que foi, né? No fundo ele está
sendo martirizado pela filosofia. Mas se você prestar atenção, atrás de tudo
que Boécio fala há uma clara estrutura cristã. Não há nenhuma dúvida disso.
Portanto, é completamente justo considerá-lo mártir da Igreja, porque ele
de fato é isso. A sua canonização tem todo o sentido do mundo. Embora
ninguém o chame de São Severino Boécio. Santo Agostinho, Santo Tomás,
todos eles ficaram santos no próprio nome, né? Mas Boécio, não. A Boécio
as pessoas referem-se apenas como Boécio. Há muito livro de história da
filosofia que não sabe nem reconhecer a canonização.
Desse modo, uma vez que já viste as formas que reveste o bem imperfeito assim como
as que reveste o bem perfeito, creio agora ser preciso te mostrar onde se encontra a
perfeita felicidade. A esse respeito julgo ser necessário antes de tudo perguntarmos
se um bem tal como o que acabas de definir pode existir na realidade deste mundo;
caso contrário, poderíamos passar ao lado da verdade sem vê-la e deixarmo-nos en-
que esse bem existe e é a fonte de todos os bens, o que é inegável. Com efeito, tudo o
também necessariamente nesse campo algo que seja perfeito. Pois, se não admiti-
mos que a perfeição existe, não poderíamos sequer imaginar como aquilo que é tido
Alunos: [risos]
A Filosofia explica a Boécio que o universo não foi criado a partir de elementos
Agora, se queres saber onde ela (a perfeição) se encontra, eis como deves raciocinar.
bom. E, como não podemos conceber nada melhor do que Deus, quem poderia du-
vidar de que aquilo que é melhor que todo o resto seja bom? Portanto, nossos raciocí-
nios mostram que Deus é bom a tal ponto que está fora de dúvida que o bem perfeito
também está presente nele. Caso contrário, Deus não poderia ser o princípio de todas
as coisas. Pois, se houvesse algo que possuísse o bem perfeito e parecesse ser anterior
a Deus e mais velho que ele, isso teria preeminência sobre Deus, pois tudo o que é per-
feito parece evidentemente ser o primeiro quanto a algo que é de certa forma deriva-
do. Eis por que, para evitar prolongar o raciocínio infinitamente, é preciso admitir que
Alunos: [risos]
Como Boécio concorda, a Filosofia o adverte que Deus e a felicidade são a mes-
de Deus, logo “é preciso admitir que Deus é a suprema felicidade”. Ela reforça a tese.
‘Examinemos agora’, disse ela, ‘se podemos provar tal afirmação de maneira mais
sólida partindo da seguinte proposição: não podem existir dois soberanos bens que
difiram um do outro. Pois, quando dois bens são diferentes um do outro, fica claro
perfeito dado que um falta ao outro. Mas o que não é perfeito evidentemente não é o
rir entre si. Ora, havíamos concluído que a felicidade e Deus são o soberano bem, por-
PROF. MONIR: E é por isso que é muito difícil definir Deus. Todo o processo
de definição é, necessariamente, um processo de restrição. Então quando
eu defino um mamífero, estou dizendo que o mamífero é um tipo de animal
que amamenta os filhos. Então quando eu defino um mamífero, eu estou
dizendo que aos mamíferos não é dada a capacidade de botar ovos. Então
falta aos mamíferos a ovoparidade. E às galinhas falta a viviparidade. Então
esses dois não podem ser o todo, porque cada um deles tem uma falta. En-
tão, ao definir, eu limito. Como eu não posso definir Deus de verdade, em
última análise – os metafísicos orientais costumam dizer que Deus é aquele
que não é. Porque ao dizer como a coisa é, eu também estou dizendo neces-
sariamente que ela não é outra coisa. Então é melhor não tentar dizer o que
Deus é, porque eu vou acabar dizendo que falta alguma parte, e aí então
não será mais Deus. É claro que é impossível para a mente humana definir
Deus verdadeiramente. É esse o sentido do que se está dizendo aí. Não dá
pra definir Deus, essa é que é a questão. Nós conhecemos aspectos de Deus,
mas não podemos conhecê-lo inteiro, não dá.
A Filosofia demonstra que é pela aquisição de justiça que as pessoas ficam jus-
tas; pela aquisição de sabedoria que elas ficam sábias, logo é só pela aquisição
do divino que elas podem se tornar felizes, “por conseguinte, todo homem feliz
seria um deus”.
buscamos o poder é porque ele também é tido como um bem; da mesma maneira
Por conseguinte, a essência e a causa de tudo o que é desejável é o bem. (pág. 80)
Como a felicidade e Deus são a mesma coisa, é forçoso reconhecer que o bem
PROF. MONIR: No entanto, se você se põe a pegar apenas uma parte – por
exemplo, o poder –, aí você vai tentar dividir o indivisível e aí vai apenas er-
rar. Então, o que ele está dizendo é que não é possível desvincular as coisas,
porque o bem é Deus, é uma coisa só. Essa é uma ideia de Parmênides, é
uma ideia que ele aprendeu com os eleatas. É uma ideia dos pré-socráticos.
III.21
‘Não havíamos demonstrado que as coisas que muitas pessoas buscam não são
bens verdadeiros nem perfeitos, pela simples razão de que eles diferem entre si e que,
como um falta ao outro, eles não podem proporcionar bem absoluto em sua ple-
nitude? Ora, não havíamos também demonstrado que o verdadeiro bem somente
existe quando todos os bens se reúnem para produzir uma só forma e um só efeito;
mesmos não possuem nada que lhes permita ser considerados bens desejáveis?’ ‘Sim’,
respondi, ‘e quanto a isso não resta mais dúvida’. ‘Por conseguinte, as coisas não são
bens verdadeiros quando diferem entre si, mas somente quando tendem a formar
uma unidade é que começam a sê-lo. Não acontece de elas se tornarem bens quan-
do realizam plenamente sua unidade?’ ‘Parece que sim’, respondi. E ela: ‘Mas dize-me
sim ou não: concordas que tudo o que é um bem o é pela sua participação no bem
supremo?’ ‘Sim’. ‘Tu deves então admitir, devido ao mesmo raciocínio, que o uno e o
bem são a mesma coisa: com efeito, as coisas que por natureza não provocam efei-
tos diferentes têm a mesma substância’. ‘É impossível negá-lo’, disse eu. E ela acrescen-
tou: ‘Sabes então que tudo o que existe subsiste tal qual é durante o tempo em que é
uno, e que morre e que se desagrega quando deixa de ser uno?’ (págs. 82-83)
PROF. MONIR: Então o que ele vai continuar fazendo agora é desenvolver a
ideia de Parmênides de que o que caracteriza a vida é que tudo tenta per-
manecer uno, por exemplo, a nossa alma com o nosso corpo. O que é tentar
manter-se vivo? É tentar manter essas duas coisas juntas, porque na hora em
que essas duas coisas se separam, o corpo vai pro cemitério e a alma vai pra
algum lugar que você não sabe qual é. Tudo o que existe no mundo tenta
manter-se uno. E ele com isso tenta demonstrar que se a gente seguir essa
regra do mundo e do cosmos, só tem uma saída pra nossa existência, que
é impedir a segmentação, é continuarmos desejando Deus, porque Deus é
que unifica tudo, é isso que ele quer dizer no diálogo em seguida.
que “todas essas espécies são como mecanismos vivos concebidos não apenas para
subsistir por certo tempo, mas também para adquirir cada qual uma espécie de eter-
nidade”.
Quanto aos seres que se acredita serem inanimados, também eles, segundo a mes-
ma lógica, não procuram o que lhes é próprio? Por que o fogo sobe verticalmente
levado por sua leveza, e a terra, devido a seu peso, segue o caminho oposto, senão
pelo fato de esses movimentos estarem conformes à sua natureza? Prossigamos nos-
so raciocínio: tudo o que está de acordo com uma outra coisa a preserva e, no sentido
oposto, tudo o que lhe é hostil a destrói. E os corpos sólidos, como as pedras, mantêm
suas partes firmes e não se deixam degradar facilmente. Quanto aos líquidos, bem
como ao ar e à água, é verdade que se deixam dividir facilmente, mas, uma vez dividi-
dos, logo se reconstituem; quanto ao fogo, este é impossível de ser dividido. (pág. 85)
A conclusão é de que tudo que existe busca sua perenidade e evita sua des-
truição a todo o custo. Boécio então conclui que todas as coisas que desejam
E ela exclamou: ‘Oh, meu discípulo, como estou contente! Pois acabas de desvendar
aquilo que constitui o centro da verdade! Acabas de dizer precisamente aquilo que
julgavas ignorar’. ‘O quê?’, perguntei. ‘Qual é o fim de todas as coisas?’ ‘Aquilo que sem
bem, temos de reconhecer que o fim de todas as coisas é o bem’. (pág. 86)
III.23
vez que tu me dizes essa verdade: na primeira vez perdi a memória devido à contami-
Boécio diz ter chegado à conclusão de que este universo, composto por partes
tão díspares e opostas entre si, não poderia ser constituído numa forma única
seus elementos a menos que houvesse um ser único capaz de manter a coesão
PROF. MONIR: Isso não é assim porque a vida diz que é assim, é assim porque
ele acabou de demonstrar isso filosoficamente. Entenderam onde é que o
Boécio entra com uma coisa completamente nova na história da inteligên-
cia humana? Ele acabou de demonstrar que isso é assim porque é obriga-
“bem supremo que dirige com o seu poder todas as coisas e as dispõe com harmonia”
nada pode se opor contra ele, e logo o mal não existe, “pois mesmo o que pode tudo
PROF. MONIR: Porque ele não pode ser autocontraditório. Se Deus é cem
por cento bem, não é possível Deus fazer o mal. E essa é obviamente uma
questão muito séria, porque é a principal restrição que as pessoas têm con-
tra Deus: “Poxa, mas como é que pode existir um Deus se acabou de haver
um acidente em que vinte crianças caíram num barranco, morreram afo-
gadas numa represa?” “E o tsunami, tinha trinta sujeitos de férias e todos
morreram? Como é que pode ter um Deus que faça isso?” Essa é a origem da
rebelião do século XX. O Ivan Karamazov, que é uma das personagens cen-
trais do livro Irmãos Karamazov, ele tem essa tese: “Eu não sou contra Deus,
eu sou contra a obra de Deus, mas que porcaria!” Então o sujeito acha que
a associação entre o Partido Comunista e o SUS vai fazer melhor. Entendeu
a estupidez contemporânea, a que ponto chega? Então o sujeito acha que
Deus é tão incompetente, tão burro, então seguramente o Partido Comunis-
ta mais um grupo de professores de Filosofia da Federal mais o SUS e mais
o Exército da Salvação vão fazer melhor do que Deus. E essa é a origem de
toda a rebelião metafísica do século XX que o Albert Camus conta no livro O
Homem Revoltado, justamente sobre isso.
Então ele vai discutir em seguida os desígnios de Deus. Isso é muito impor-
tante, e ele começa em primeiro lugar negando a possibilidade de que o mal
Mas existem outras dualidades que não são assim. Por exemplo, claro e es-
curo. Claro e escuro se excluem mutuamente. Se eu apertar o interruptor,
vai ficar escuro. Se eu voltar a acender, vai ficar claro. Então como o claro e o
escuro se excluem mutuamente, um só existe como ausência do outro. Sob
esse ponto de vista, o mal não tem uma existência real e concreta, mas o mal
é uma espécie de ausência do bem. Entenderam?
Livro IV
IV.1
Tu, que conduzes à verdadeira luz, sabes que todas as afirmações que me fizeste até
agora pareceram-me não só divinas mas também irrefutáveis pela lógica de teus ar-
Mas talvez a principal razão de minhas angústias seja que, apesar da existência de
um ser bom que comanda o universo, o mal possa existir e até ficar impune.
ção é pior ainda: enquanto o vício reina e prospera, a virtude não apenas não recebe
recompensa alguma, mas também é calcada pelos pés dos celerados e levada ao
suplício em lugar do crime. Que tais coisas aconteçam no reino de um Deus oniscien-
te, onipotente e que quer apenas o bem faz com que as pessoas fiquem admiradas e
PROF. MONIR: O que ele tá fazendo é a acusação que eu fiz agora há pouco:
como é que Deus permite que isso dê certo? Então o que a Filosofia fará em
seguida é justificar do modo como eu já fiz, demonstrando que na verda-
de essas pessoas querem o bem. Os sujeitos que são maus, eles querem o
bem, mas eles não sabem... porque para fazer que alguma coisa funcione,
é preciso você ter vontade e capacidade. Por exemplo, se você quer esquiar
na neve, é preciso que você queira fazer isso e ao mesmo tempo saiba fa-
zer isso. E o problema dos maus é que eles querem uma espécie de bem, a
vontade está voltada para o bem, mas, no entanto, eles não sabem como
fazê-lo. Aí então, como não sabem como fazê-lo, eles acham que fazer uma
coisa em busca do poder, por exemplo, à custa de qualquer coisa é bom.
Portanto, a inexistência da sabedoria é que é o sentido da ignorância. Ou
seja, é a treva no lugar da luz que produz essa ação equivocada dessas pes-
soas. É isso que ela provará em seguida.
Para apaziguar o espírito de Boécio, a Filosofia demonstra que para que qual-
quer ação humana surta efeito são necessárias duas condições: a capacidade
tendem à felicidade: “Portanto todos, bons e maus procuram com a mesma dili-
Vê com efeito com que clareza se revela a natureza dos homens corrompidos, que
não podem sequer dirigir-se para onde sua tendência natural os leva – e eu diria até
Mas, nesse caso, não apenas cessam de ser fortes, como simplesmente deixam de ser.
Pois aqueles que renunciam àquilo a que tendem todas as coisas cessam ao mesmo
tempo de ser. Certamente parecerá estranho dizer eu que os maus, que são a maioria,
não existem; no entanto é exatamente o que ocorre. De fato, não afirmo apenas que
são maus, mas, sem hesitar, que eles simplesmente não são. Com efeito, tu poderias
homem; do mesmo modo eu poderia admitir que os malfeitores são homens maus,
mas não que eles participam do ser e da essência, no sentido absoluto do termo. Pois
para ser é preciso conservar a boa ordenação da alma e preservar a própria natureza;
ora, aquele que se afasta de sua natureza renuncia também a ser aquilo de que sua
Lembra-te agora do corolário que te mostrei agora há pouco, que é sumamente im-
portante e que foi concluído da seguinte maneira: uma vez que o bem em si é a felici-
dade, fica claro que todas as pessoas de bem tornam-se felizes precisamente porque
são boas. No entanto, é evidente que os que são felizes são deuses. Eis, portanto, a
recompensa dos bons, que nenhum jugo pode alterar e que maldade alguma pode
tocar: em verdade, eles se tornam deuses como partícipes da divindade. (pág. 104)
(...)
Acabaste de aprender que tudo o que é é uno, e essa unidade é o bem, donde resulta
que tudo o que é parece também ser o bem. Dessa forma, tudo o que se afasta do
bem deixa de existir; os maus deixam de ser, mas o fato de conservarem a aparência
física de um ser humano mostra que eles já foram verdadeiros homens. E é assim que,
afundando na maldade, eles perdem ao mesmo tempo sua natureza humana. Mas,
necessário concluirmos que a maldade rebaixa os que a ela se aplicam para aquém
PROF. MONIR: Para que vocês possam entender o que o Boécio vai dizer
agora, o que a Filosofia diz para ele é que toda a vez que você é ignorante, o
que você faz na verdade é parecer com um animal. Porque o sujeito muito
voltado para os seus prazeres fica parecendo com um porco, o sujeito que
pensa o tempo todo em intrigas políticas fica parecendo com uma raposa, o
sujeito que pensa o tempo todo em rapinar os outros parece com um leão
ou uma hiena, e assim por diante. O que acontece quando você desconhece
o bem é você perder a sua própria condição humana.
IV.7
Boécio concorda com que as pessoas más tenham perdido sua condição hu-
mana e tenham se transformado em bestas, mas prefeririam que elas não pu-
dessem exercer sua “infâmia e crueldade” livremente. A Filosofia reage: “Mas isso
têm sucesso em realizar aquilo que desejam do que quando são incapazes de
PROF. MONIR: Aqui tem uma coisa importantíssima: ele está criando a pre-
missa na qual se baseia a ideia da caridade cristã. Ele está criando aqui a
explicação filosófica para a caridade cristã. Porque a caridade cristã é um
processo pelo qual o exercedor da caridade recebe como prêmio e como
Se, com efeito, sua vileza os torna infelizes, o homem médio é necessariamente cada
vez mais infeliz enquanto sua vida vai se prolongando, e eu consideraria esses pobres
indivíduos os mais infelizes dos homens se a morte não pusesse um fim à sua malda-
ras, fica claro que a infelicidade é infinita quando a maldade é eterna. (págs. 108-109)
‘Tens razão’, disse ela, ‘e, se encontrarmos dificuldade em aderir a uma conclusão, é
preciso demonstrar que alguma das proposições anteriores é falsa ou então provar
são; caso contrário tendo sido aceitas as proposições anteriores, não se pode negar a
conclusão. O que vou acrescentar, portanto, pode parecer mais surpreendente ainda.
Mas é uma conclusão que é o resultado necessário daquilo que foi admitido como
Por força deste mesmo princípio, uma nova conclusão terá de ser aceita.
Portanto, os desonestos se beneficiam quando são punidos, pois uma parte do bem
lhes é acrescentada – trata-se precisamente de sua punição, que é boa porque é justa
mentar – trata-se da impunidade que reconheceste ser um mal devido à sua iniqüi-
dade’. ‘Não posso discordar’, disse eu. ‘Portanto, os desonestos são muito mais infelizes
(pág. 110)
Boécio concorda mas reage: “Quando examino teus argumentos, fico persuadido
de que não se pode dizer nada de mais verdadeiro. Mas, se considerarmos o juízo dos
homens, quem não acharia tuas idéias, já não digo críveis, mas nem sequer audíveis?”
É verdade o que dizes, pois as pessoas em geral são incapazes de elevar seus olhos
acabam por ser semelhantes aos pássaros, cujas faculdades visuais se intensificam à
ordem do universo, mas sobre seus próprios sentimentos, e crêem ser felizes por poder
cometer todo o tipo de má ação livre e impunemente. Mas vê o que prescreve a lei
eterna. Toma por modelo aquilo que há de melhor, e não terás mais necessidade de
Por outro lado, consagra-te ao que há de pior sem encontrar ninguém que te possa
A Filosofia demonstra que a partir do “princípio que diz que uma conduta vergo-
nhosa, por sua própria natureza, torna a pessoa que a pratica infeliz, parece-nos que
Ora, em nossos dias os advogados agem de maneira inversa. Com efeito, é um favor
daqueles que sofreram um dano grave e severo que tentam convencer o juiz, enquan-
to essa piedade deveria manifestar-se principalmente com relação aos culpados; es-
tes deveriam ser chamados à justiça não por acusadores encolerizados, mas benevo-
lentes e cheios de consideração, assim como os doentes que são levados ao médico,
de forma que o castigo os curasse completamente do mal ligado aos seus crimes.
Nessas condições, a presteza da defesa seria menos grave ou, então, se ela preferis-
juiz se lhes fosse permitido entrever por uma fresta a virtude que abandonaram e vis-
sem a possibilidade de se livrar do fardo de seus vícios. É dessa forma que os sábios
não experimentam a menor parcela de ódio. Pois quem poderia odiar os bons, senão
112-113)
Mas agora que vejo ocorrer o contrário, e os castigos reservados aos criminosos se
ses qual é a razão de um tal caos. Pois eu estaria menos surpreso se atribuísse essas
desordens aos efeitos do acaso. Mas o que me leva ao extremo do espanto é o fato de
IV.11
A Filosofia admite que a questão é complexa: “E, de fato, a questão é de tal ordem
que, se tocamos um só dos problemas que comporta, vão surgindo outros ao infinito,
como as cabeças de Hidra, e não se poderá deter seu ritmo senão graças a um recurso
especial da inteligência”.
Com efeito, ao abordar essa questão, habitualmente caímos em outras mais compli-
bítrio, questões essas cuja dificuldade bem podes avaliar. (pág. 116)
PROF. MONIR: E agora vamos ver, o que é muito importante, a Filosofia vai
explicar a diferença entre Providência e Destino.
Tudo o que vem ao mundo, todos os seres sujeitos à mudança e à evolução, tudo o
que se move de uma certa maneira, encontram sua causa, sua ordem e sua forma
fixa uma regra multiforme ao governo do universo. Quando se considera essa regra
quando se a considera com reação àquilo que ela põe em movimento e ordena, é o
que os antigos chamavam Destino. Ver-se-á facilmente que se trata de duas coisas
que pode mover-se, e pela qual a Providência reúne todas as coisas, cada uma no seu
Mas isso nos joga então para um outro problema, que é o seguinte: para
que o livre-arbítrio possa existir, Deus não poderia ter conhecimento prévio
do que eu vou fazer. Porque se Deus tem conhecimento prévio do que eu
vou fazer, se Deus tudo sabe, então não há livre-arbítrio, porque Deus sabe
exatamente o que eu vou fazer e portanto tudo já está desvendado desde o
início. Essa é a conclusão a que se chega, se você parte da premissa de que
esse mundo é uma espécie de grande jogo complexo organizado pela men-
te de Deus, a partir de um conjunto de predestinações que nós cumprimos
como se fôssemos autônomos. E o que vocês pensam pessoalmente? Há
livre-arbítrio no mundo, ou não há?
Deus sabe o que nós livremente escolhemos, porque Ele está vendo a
nossa escolha realizada, concreta, como se fosse presente o tempo todo.
PROF. MONIR: É que na verdade, muito mais importante do que a gente de-
bater se é possível algum processo de profecia... porque os profetas sempre
puderam dizer como era o futuro, mas os profetas diziam isso porque eles
falavam com Deus diretamente. Então o que caracteriza um profeta é al-
guém que fala diretamente com Deus e tem aquela informação que Deus
deu. Mas o que é importante entender aqui é que há uma diferença ontoló-
gica tremenda entre a existência humana, que é uma existência, digamos,
limitada pela ideia do tempo e do fluxo, que faz com que aqui no âmbito
humano não possa haver de fato Providência, o que há aqui no âmbito hu-
mano é a providência.
Então até sob o ponto da física você pode justificar isso. Ou seja, somente
um sujeito que tivesse velocidade infinita – o que só é possível pra Deus –,
teria uma visualização de todas as coisas ao mesmo tempo, teria portanto
essa eternidade, que faz com que você anule o tempo. Se você pode estar
em todos os lugares ao mesmo tempo, então não há mais tempo! Compre-
enderam que o tempo desaparece? Pois esse é o mundo de Deus. Se para
Deus não há tempo nenhum, então tudo que acontece no nosso mundinho
aqui, que é o mundo de sequências temporais, é tudo visto ao mesmo tem-
po como se fosse tudo presente. Vocês estão entendendo?
forma de sua criação antes de passar para a realização, e além disso cumpre por eta-
pas sucessivas aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também
Deus fixa pela Providência o que deve ser feito, uma só vez e definitivamente, enquan-
foi fixado. Por conseguinte, que o Destino seja movido por espíritos divinos ao serviço
da ”Providência, ou que a trama do Destino seja urdida pela alma, pela natureza, que
lhe é totalmente servil, pelo movimento dos astros no céu, pelo poder dos anjos ou
pela habilidade multiforme dos demônios – que um só ou mesmo todos esses fatores
cambiante e o decorrer temporal daquilo que a simplicidade divina fixou para ser
mais “livre” quanto mais alguma coisa se distancia da inteligência suprema e mais
Dessa forma, aquilo que o raciocínio é com relação à inteligência, e o ser criado ao
(pág. 119)
(...)
por outro lado, esse encadeamento domina por sua imutabilidade os seres sujeitos
ver somente confusão e desordem em todas as coisas, tudo é regido por uma lei que
Por conseguinte, tudo o que vês acontecer aqui de contrário a tuas expectativas é na
verdade a expressão da ordem que mais convém ao universo, mesmo se, a teus olhos,
(...)
e males: ela atiça uns para evitar que uma felicidade muito prolongada os corrom-
pa; permite a outros que sejam duramente golpeados, a fim de que suas virtudes se
reforcem pela prática e pelo hábito da paciência. Uns temem mais do que deveriam
os males que podem suportar; outros desprezam temerariamente penas que exce-
dem suas forças; é para fazer com que uns e outros se conheçam melhor que Deus
lhes envia essas provas. Uns adquirem ao preço de uma morte gloriosa o respeito
dos homens por seu nome; outros, não se dobrando à tortura, dão exemplo a todos
mostrando que os males não podem prevalecer sobre o mérito. Ora, que essas provas
Pois há uma ordem geral que abarca todas as coisas; o que escapa de um lado apa-
rece sempre de outro, a fim de que, no reino da Providência, nada seja deixado ao
acaso, ‘pois só um Deus poderia explicar esses mistérios? ’‘Mas acho difícil falar dessas
coisas como se eu fosse um deus’.8 Não há homem algum que possa compreender
apenas com seus recursos nem explicar com palavras todo o mecanismo da obra di-
vina. Que baste, portanto, ter compreendido apenas isto: é o mesmo Deus, criador de
todos os seres, que dispõe todas as coisas orientando-as para o bem e que, do mesmo
modo, assimila e mantém próximos a si todos os seres por ele criados, servindo-se do
Destino para eliminar o mal de onde se exerce a atividade divina. E é dessa forma que,
acaso sobre a Terra, poderás ver que não há aí nenhum mal. (págs. 123-124)
IV.13
Vês agora qual é a conseqüência de tudo o que havíamos dito? ‘Que conseqüência?’,
perguntei. E ela respondeu: ‘Que não há Fortuna que não seja boa’. ‘E como pode ser
isso?’, perguntei. ‘Escuta-me’, disse ela. ‘Uma vez que a Fortuna, quer se mostre favorá-
vel, quer temível, tem por objetivo ora recompensar ou por à prova os bons, ora corri-
gir os malfeitores, ela é invariavelmente boa uma vez que é ou justa ou útil. (pág. 126)
8 Homero, Ilíada.
V.1
Mal havia ela acabado de falar, começou a examinar outro assunto. Então eu lhe
disse: ‘Teus conselhos são sem dúvida certos e dignos de tua autoridade, mas o que
acabas de dizer a respeito da Providência, isto é, que essa questão não pode ser tra-
Peço-te portanto que agora me digas se achas que o acaso existe realmente e, caso
a significação da realidade a que ela se refere” porque “nada pode ser feito a partir de
nada”.
A Filosofia recorre a Aristóteles, que na Física estabelece que acaso é o que acon-
tece quando uma ação é realizada com determinado fim, mas algo além do que
estava sendo procurado acontece por uma razão ou outra, como um agricultor
uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal conjunto de circunstâncias é jus-
Providência, que dispõe todas as coisas em seus lugares e tempo. (pág. 133)
e a Filosofia lhe diz que aquele é tão maior quanto mais próximo da contempla-
V.5
Boécio, no entanto, está confuso em relação a este ponto e diz que, na sua opi-
nião, “o fato de Deus conhecer todas as coisas previamente e ao mesmo tempo existir
às coisas corporais, e menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o
fundo da servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter posse de sua própria
(...)
nidade, vê tais coisas e dispõe tudo o que está predestinado a cada uma, segundo seu
(...)
Pois, se Deus prevê tudo e não se pode enganar de forma alguma, tudo se produz
conforme a Providência previu. Deste modo, se ela conhece tudo previamente desde
toda a eternidade, e não apenas as ações dos homens mas também suas intenções
e suas vontades, não seria possível haver qualquer livre-arbítrio. Com efeito, não se
produzirá nenhuma ação ou vontade, seja qual for, que não tenha sido prevista an-
acontecimentos podem tomar outro rumo que aquele que ela previu, não falaríamos
mais numa firme presciência do futuro, mas na realidade de uma opinião incerta, o
sa de que “é porque algo deve acontecer que a Providência divina é instruída de tal
fato”.
...em que a divina Providência poderia manter sua superioridade sobre a opinião hu-
mana se, a exemplo dos homens, ela julga incerto aquilo cuja realização é incerta?
Mas, se do ponto de vista de Deus, a mais segura fonte de todas as coisas, não pode
haver nada de incerto, os acontecimentos que ele previu devem acontecer com toda
a certeza. E também não pode haver nenhuma liberdade nas decisões e nos atos
dos seres humanos, que a inteligência divina, prevendo todas as coisas sem risco de
claramente a nulidade dos valores que daí resulta. Com efeito, seria vão proporcionar
aos bons e aos malfeitores recompensas ou punições, pois seus feitos não se devem
injustiça o que se considera uma justiça perfeita – falo da punição dos malfeitores e
da recompensa dos bons –, já que eles não são levados a praticar o bem ou o mal por
sua própria vontade, mas pelo fato de serem obrigados a uma necessidade certa de
A Filosofia faz notar que se o problema ainda continua obscuro é porque o “en-
cia divina”.
Com efeito, eu me pergunto por que não concedes nenhuma pertinência ao racio-
cínio daqueles que procuram explicar o problema e cuja opinião é que, dado que a
presciência não é causa dos acontecimentos futuros, ela não impede de modo al-
coisas futuras a não ser no fato de que as coisas conhecidas de antemão não podem
tes não confere nenhuma necessidade às coisas futuras, caso que reconheceste há
pouco, qual seria a razão pela qual a realização das coisas que dependem da vonta-
A Filosofia pede a Boécio que considere que a presciência “não importa nenhu-
E a causa desse erro é que todos pensam que conhecem algo a partir das proprieda-
trário. De fato, tudo o que é conhecido não é compreendido segundo suas caracte-
rísticas, mas sim segundo a capacidade daqueles que procuram conhecer. (pág. 144)
(...)
der as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes
são superiores. Com efeito, os sentidos não podem perceber nada além da matéria;
todas as coisas, não apenas vê a forma absoluta como distingue também a matéria
V.9
PROF. MONIR: Agora a Filosofia vai fazer uma análise do modo como o Boé-
cio explica e vai dar o golpe final na dúvida dele.
Se a realização de certos eventos não parece certa e necessária, eles não podem ser
conhecidos a priori com a certeza de que se realizarão. Por conseguinte, não há ne-
nós temos a razão, que é partícipe da inteligência divina, devemos pensar que, do
mesmo modo que a imaginação deve ceder à razão, é natural que a razão reconhe-
possível, ao nível dessa suprema inteligência; então, com efeito, a razão verá o que
ela não pode ver em si mesma, o que concebe a presciência divina, com toda a preci-
são e certeza, mesmo que esses acontecimentos não se realizem, e apreenderá, não
por uma simples conjectura, mas por uma intuição suprema, absoluta e sem limites.
(págs. 148-149)
Todas as pessoas que vivem de acordo com a razão partilham da certeza de que
Deus é eterno. Procuremos portanto ver o que é a eternidade, pois é ela que nos escla-
rece sobre a natureza divina bem como sobre sua sabedoria. Pois bem, a eternidade
é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la con-
PROF. MONIR: Essa frase é uma das frases mais importantes já ditas na filo-
sofia: “A eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como
podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
A existência própria de Deus, a razão pela qual Deus de fato existe, não é
alvo de fé. Não é alguma coisa em que eu acredito como eu acredito numa
promessa. A existência de Deus é absolutamente comprovada por meios
racionais e lógicos. É essa a missão que Boécio empreende em A Consolação
da Filosofia. E isso pode parecer banal, mas é mais ou menos um marco da
história. Porque a história do pensamento humano não pressupunha que
isso fosse possível. Quer dizer, havia a compreensão doutrinal da existência
de Deus, mas o que Boécio inaugura é um modo de debater Deus racional-
mente, sob o ponto de vista da metodologia da filosofia clássica grega. E o
nome disso é a catedral gigantesca chamada escolástica.
(...)
O olhar divino precede de longe todo o futuro, e ele o faz vir no presente segundo o
modo de conhecimento que lhe é peculiar, sem passar, como tu crês, da presciência
de uma coisa à outra, mas, de um só golpe de vista, ele prevê e abarca tuas mudan-
própria indivisibilidade.
PROF. MONIR: O tempo é abstrato no sentido de que ele só pode ser medido
em relação à distância.
E é também dessa forma que podemos resolver a dificuldade que acabas de men-
cionar e que se baseia no sacrilégio de se dizer que nossas ações futuras fornecem a
PROF. MONIR: Quando você não considera essa solução que o Boécio dá,
você pode defender duas teses. Uma é dizer assim: “Bom, Deus sabe tudo o
que vai acontecer, então eu vou tentar pegar o avião, mas Ele vai me fazer
atrasar porque Ele queria que eu escapasse” – então não há livre-arbítrio.
Ou então a outra solução, a do livre-arbítrio, é o seguinte: “Porque eu perdi
o avião, então eu fiz o meu destino, que é não ter morrido”. Entenderam?
Na verdade, a natureza desse saber, que abarca todas as coisas num conhecimento
imediato, fixa todas as coisas num limite sem depender em nada dos acontecimen-
tos futuros.
PROF. MONIR: Porque não há acontecimento futuro nenhum. Por isso é que
desaparece o problema de saber se aquilo que estava lá foi planejado por
alguém. Porque no fundo, todas as coisas acontecem simultaneamente.
Sendo assim, os mortais conservam seu livre-arbítrio intacto, e não há nenhuma in-
justiça nas leis que propõem recompensas e punições às vontades que são absoluta-
PROF. MONIR: Porque tava lá o Boécio dizendo: “Mas então, já que não tem
livre-arbítrio, por que eu posso castigar alguém? E por que eu deveria re-
compensar alguém, se aquilo ele fez já estava programado?” Porque eu não
consigo resolver o problema do livre-arbítrio a não ser que eu tire Deus do
esquema temporal. Porque se eu ficar com o esquema temporal mantido, ou
Deus sabia antes, e programou, e daí eu não tenho mérito nenhum, ou não;
então eu fiz o que quis e Deus apenas ratifica, sanciona isso com o nome de
Destino. Seja uma coisa ou outra, não haveria possibilidade de livre-arbítrio
nenhum, porque tudo seria meio carta marcada.
Agora com essa coisa de genética, então, já, já vão descobrir o gene do es-
tuprador, o gene do roubo... E aí sujeito vai chegar no tribunal e vai dizer:
“Olhem, vocês me desculpem, mas eu tenho aqui um gene que me transfor-
ma em ladrão de bancos, eu tenho o gene de roubar bancos”.
Então o que nós estamos fazendo nesse momento no mundo é que, extra-
polando os casos em que havia claramente uma psicopatologia que tornava
a pessoa irresponsável, alguém que é louco mesmo (tem também; esses são
inocentes sob o ponto de vista volitivo, não é isso? Eles não queriam fazer
aquilo, e tal), nós tendemos hoje a negar a possibilidade do livre-arbítrio. E
com o auxílio da pseudociência, e com a genética, então, nós vamos encon-
trar um gene pra cada tipo de barbaridade, e aí as pessoas vão alegar uma
inocência genética, assim como hoje alegam uma inocência social: “Não fui
eu quem matou cinco pessoas, é a sociedade que me oprime”. Quando a
gente chegar nesse ponto, nós teremos destruído completamente a possi-
bilidade de civilização humana. Porque sem responsabilidade não há mais
Aquele que nos observa do alto, que perdura eternamente, que tem a presciência de
todas as coisas, é Deus, que, com a eternidade sempre presente de seu olhar, concor-
aos maus os castigos. E não é em vão que colocamos em Deus nossas esperanças e
preces, as quais, sendo justas, não podem permanecer sem algum efeito. Afastai-vos
portanto do mal, cultivai o bem, elevai vossas almas à altura de vossas justas espe-
ranças e fazei chegar aos céus vossas humildes preces. A menos que queirais esconder
a verdade, é grande a necessidade que tendes de viver segundo o bem, quando agis
PROF. MONIR: Essa é última linha do livro, e aí o que o Boécio fez foi sim-
plesmente criar uma argumentação filosófica, portanto de natureza racio-
nal e especulativa no sentido de que usou apenas elementos lógicos, para
garantir, para confirmar aquilo que intuitivamente todo o mundo sabe. O
cristianismo não precisou esperar o Boécio para existir, o cristianismo sabia
se impor por várias razões, pela ação dos seus milagres, pela intuição que
as pessoas têm, ou pelo dogma, mesmo. No entanto, pela primeira vez na
Aluno: E a escolástica?
Há muitas maneiras pelas quais nós temos acesso a conhecer as coisas tais
como elas são, mesmo que essas coisas tais como elas são sejam enigmáti-
cas, e que não se possa saber muito delas a não ser a definição do enigma.
O enigma pode ser definido, embora eu não consiga decifrá-lo, em última
análise. Definir o enigma já é uma grande coisa. Pra começar a ler filosofia,
Boécio é o melhor caminho. E esse é um dos grandes meios de usarmos bem
essa tarde.
PROF. MONIR: Não é que ele previu. Cuidado, porque você está falando de
Jesus. Há aí um mistério. Jesus tinha uma natureza humana. O Jesus humano
estava submetido ao tempo, como nós. É difícil entender como Jesus pode
ser homem e Deus ao mesmo tempo. Quer dizer, é um homem que pode
apostar já sabendo o resultado da loteria. Esse que é o problema, né? É um
Mas para Deus não aconteceu uma sequência de fatos, tudo isso acontece
ao mesmo tempo. Nós não conseguimos entender isso porque não conse-
guimos entender a mente de Deus. Porque Deus não funciona nas mesmas
regras com que nós funcionamos. Deus não pertence a esse mundo. Ele re-
flete nesse mundo do mesmo modo que o sol reflete numa parede – você
vê a claridade. Mas Ele não é feito como nós, não tem a mesma natureza
que nós.
Entender isso é a primeira condição pra você poder estudar filosofia. Se você
não entende isso, você se torna incapaz de estudar a filosofia daqui pra fren-
te.
Você não pode imaginar, por exemplo, que a história acaba nela própria.
Porque se a história é uma sequência temporal de fatos... tem uma coisa
chamada filosofia da história. Quem foram os três maiores estudiosos disso?
O Senhor Hegel, que acha que a história acaba no Estado, quando o Estado
toma conta de tudo; o Senhor Marx, que acha que a história acaba quando
o proletariado toma o poder e destrói a estrutura de classes; e o Senhor
Augusto Comte, que acha que a história acaba quando a sociedade positiva
expulsa as sociedades anteriores que são todas sociedades cretinas, uma é
mitológica e a outra é metafísica. Então agora a sociedade da ciência posi-
tivista é que vai vencer. Então esses três aí são três sujeitos que acham que
conseguem encontrar na própria história a explicação da própria história.
Mas se isso fosse possível, a primeira coisa que eles tinham que explicar é
como e quando foi que alguém inventou o conceito de anterioridade, por-
que se a ideia de anterioridade está presente na história o tempo todo, sem
qualquer explicação ou qualquer circunstância... – tem uma coisa que vem
antes da outra, né? A história é sempre sequencial. Quem foi que inventou
isso? Ora, se a história não inventou a sua própria anterioridade – se não
teve lá em determinado momento um partido, ou uma classe, ou um herói
que fez isso, se não foi a história que inventou isso – então isso foi inventado
por alguém que existe além da história. Então há uma outra circunstância,
chamada meta-história (que está além da história), que ela só pode explicar
a história, e nunca a história em si mesma. Mas eu só compreendo isso se
É isso. Se você pelo menos leu o Boécio, você sabe que o conhecimento
que você pode ter da vida é um conhecimento imperfeitíssimo, embora seja
(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos foram adaptados da edição A
Consolação da Filosofia da Editora Martins Fontes, 1998, São Paulo, 1a. edição,
Edson Campagnolo
Kleberr Wlader
Pandita Marchioro
Conteudista
Revisão de transcrição
Patrícia Nasser
Revisão Literária e Palestras
Paulo Briguet
Capa e Diagramação
Ilustração Capa
Coordenação Geral
Assistente de Produção
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Assessoria de Imprensa
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Ministério da Cultura