O Processo - A Consolação Da Filosofia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 236

FIEP-Federação das Indústrias do Estado do Paraná

Edson Luiz Campagnolo


Presidente

Superintendente do Sesi e IEL no Paraná e Diretor Regional do Senai no Paraná


José Antonio Fares

Assessora de Projetos Estratégicos


Maria Christina S. Rocha

Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola

Conteudista
José Monir Nasser

SESI. Departamento Regional do Paraná.

Expedições pelo mundo da cultura: O Processo / A Consolação da


Filosofia / SESI. Departamento Regional do Paraná. - Curitiba: SESI, 2017.
235 p.: 21 cm. (Expedições pelo mundo da cultura, v. 6)


ISBN: 978-85-5583-031-0

1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82

A reprodução total ou parcial desta publicação por quaisquer meios seja eletrônico, mecâ-
nico, fotocópia, de gravação ou outros, somente será permitida com prévia autorização, por
escrito, do SESI.
O Processo

A Consolação da Filosofia
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.

Quando se busca o significado da palavra expedição, encontra-se como uma de suas


definições: conjunto de pessoas que viajam para um determinado território, com o
objetivo de analisá-lo. Foi isso que Monir Nasser nos proporcionou durante quatro
anos de parceria entre ele, ilustre intelectual, e o Sesi Paraná. Momentos únicos nos
quais conhecimentos foram compartilhados e viagens por destinos diversos foram
realizadas, modificando o olhar que temos de nossa realidade, dando-nos condições
de ampliar nossa visão de mundo.

Ao todo se somaram 92 possibilidades de expedições, mediadas por ele, que leva-


ram os participantes dos encontros por um mundo indesvendável, por um univer-
so cultural a ser desmistificado e descortinado aos poucos. Encontros nos quais já
existia a expectativa para o próximo e que, por isso mesmo, não se conseguia parar.
Os encontros possibilitaram atravessar a Ponte Rialto, em Veneza, por nosso imagi-
nário e participar da negociação entre Antonio e Shylock. Encontrar Dom Quixote
de La Mancha, cavaleiro medieval, em busca da sua amada Dulcinéia, sempre em
companhia de seu cavalo Rocinante e seu fiel escudeiro Sancho Pança, pelos cami-
nhos espanhóis. Navegar para a Índia, pela obra poética de Os Lusíadas, de Camões,
compreendendo a história de Portugal. Entender a complexidade do Livro de Jó,
com seus discursos e respostas para perguntas existenciais. Navegar em busca de
Moby Dick, refletindo sobre os sentimentos humanos e tantas outras compreensões.
Enfim, Monir nos traduziu obras de William Shakespeare, Tolstói, Miguel de Cervan-
tes, Herman Melville, Camões, Aldous Huxley, Tolkien, Nicolai Gogol e livros bíblicos,
aproximando-nos dos autores e de suas obras.

Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.

Assim, devemos olhar para a vida com a possibilidade de continuarmos o legado de


Monir, contribuindo com a sociedade e futuras gerações para a descoberta de novas
possibilidades que se abrem quando se descortinam as histórias da humanidade.
Esta coletânea representa a existência que transcende a morte e permanece presen-
te em nossos corações e mentes.

José Antonio Fares,


Superintendente Sesi Paraná.
Ele continua fazendo a diferença

Perdi a companhia do José Monir em 16 de março de 2013, depois de trinta anos de


convivência. Para todos que o conheceram ou privaram de sua frondosa companhia
foi uma perda irreparável. Foi um cometa que passou rápido, embora tenha brilhado
intensamente.

Como professor conheci o José Monir em 1981 na turma de ‘trainees’ da Fininvest,


um grupo de jovens que estava sendo preparado para implementar nos anos se-
guintes o Mercado Comunitário de Ações em Joinville (SC), onde moramos juntos
uns três anos. Depois deste período seguimos caminhos diferentes, mas ficando
sempre em contato; sua busca profissional levou-o a várias experiências. A partir
dos anos 90 nós dois passamos a residir de novo em Curitiba; ele já atuava como
consultor empresarial, caminho que também adotei, inclusive por influência dele.

Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.

Nesse tempo destacava-se por sua vivacidade intelectual e arguta capacidade de


abordar as situações mais complexas no campo gerencial e econômico, de maneira
inovadora. Recendia qualidade em tudo que fazia, desde clareza de raciocínio até re-
dação densa, leve e comunicativa, recheada de vocabulário erudito sem ser pedan-
te. Demonstrava prodigiosa versatilidade; ia direto ao ponto central dos assuntos;
conseguia revelar relações incomuns entre fatos e situações aparentemente desco-
nexas. Sabia localizar o ouro. Ele fazia a diferença! Detestava autoridade imposta;
pugnava pela autoridade interna da abordagem orgânica dos fatos e análises sobre
a situação enfrentada. Irritava-se com mediocridade, e com burocracia em geral. Era
hábil em desmascarar espertezas travestidas e agendas ocultas.

Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).

Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.

Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.

No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.

A semente da herança cultural cresceu, floresceu e frutificou. Seu grande legado


é o exemplo de como a Cultura é próspera e construtiva, ao contrário do que se
pensa neste país como apenas entretenimento. É exemplo de projeto educacional
humanista clássico, ao contrário do que se faz hoje em se privilegiar precocemente
a orientação profissional em detrimento da formação humana. É exemplo profissio-
nal de trabalhar por conta própria correndo riscos e dedicando-se de corpo e alma
ao projeto em que acredita. É exemplo de modernidade inteligente, tanto na sua
herança como na sua obra e no seu legado, fundados sobre a matriz cultural clássica
no âmbito da família. O que a família não fizer dificilmente será recuperado pela
escola e pela empresa. A volta desse cometa acontecerá sempre que se replicar essa
proposta de formação.

A trajetória de vida corajosa e realizadora de José Monir (1957-2013) é orgulho para


sua família e referência para os amigos e os que o conheceram. Ele continua vivendo
em nós; ele continua fazendo a diferença!

Carlos Jaime Loch, Consultor de Gestão Empresarial.


Ao mestre, com carinho

José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.

Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.

Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.

O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).

A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.

Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.

Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.

Paulo Briguet, jornalista e escritor.


Prefácio à segunda Edição
Reencontro com José Monir Nasser

Todo paranaense — todo brasileiro — interessado em alta cultura deveria agradecer


a Deus pela vida e obra de José Monir Nasser. Durante uma trajetória de vida relativa-
mente curta — apenas 56 anos — ele realizou trabalhos fundamentais nos campos
da economia, do empreendedorismo, da editoração e da literatura. Mas, se precisás-
semos resumir numa palavra o perfil desse homem multifacetário, poderíamos dizer
simplesmente: — Professor.

A biografia intelectual do professor Monir foi a realização integral de uma de suas


mais famosas frases: “Uma sociedade não pode ser rica antes de ser inteligente”.
Grande divulgador do empreendedorismo cívico — tema de seu excepcional livro
A Economia do Mais —, Monir dedicou grande parte dos seus últimos anos de vida
ao projeto Expedições pelo Mundo da Cultura, com palestras luminares sobre obras
literárias clássicas. Ele próprio tinha perfeita consciência do que esse trabalho repre-
sentava: “O Expedições pelo Mundo da Cultura é um programa que tem por objetivo
restaurar a verdadeira cultura brasileira, que nós de alguma maneira perdemos e
que precisamos buscar a todo custo, porque é a única maneira pela qual nós con-
seguiremos sair da terrível e profunda crise civilizatória em que nós nos metemos”.
(Curitiba, 22/05/2010)

Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.

Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.

Paulo Briguet é escritor em Londrina.


O Processo
de Franz Kafka (1883 - 1924)

Transcrição da palestra do professor José Monir Nasser em Paranavaí, em 20/04/20071

1 Transcrição de Letícia Scheifer. Revisão da transcrição: Patrícia Nasser.


12 Professor José Monir Nasser
O Processo

Hoje vamos ver uma obra chamada O Processo, do Franz Kafka, e espero que
vocês no final desse exercício tenham compreendido algumas realidades,
alguns conteúdos desse livro que passarão a fazer parte da existência de
vocês. A cultura é verdadeiramente tudo aquilo que você incorpora à sua
vida, e não conhecimentos gerais sobre arte, sobre obras literárias, isso não é
o assunto desse curso aqui. Esse não é um curso de beletrismo. Antigamente,
essa ideia de você ser apenas sabido com relação a assuntos dos livros era
chamada de beletrismo; o sujeito sabia tudo sobre muitos livros e não
lia nenhum na prática, não entendia nenhum. Essa propensão acontece
muito com os cinéfilos hoje em dia. Os cinéfilos são aqueles sujeitos que
não podem viver sem ir ao cinema. O sujeito vai ver cinquenta filmes por
mês e não entende nenhum dos cinquenta. Mas ele acha bacana, assim, os
efeitos especiais, essas coisas. Então é isso que eu queria deixar claro para
vocês. Que não se trata de uma atividade de conhecimentos gerais, nem
de curiosidades. É muito mais uma apropriação. Nós vamos entrar na alma
dessa obra chamada O Processo, e vamos entender o que essa história tem
a ver com a nossa vida individualmente. A pergunta que você precisa fazer

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 13


pra você mesmo é: O que é que isso tem a ver comigo? De que modo isso
afeta a minha vida? De que modo isso modifica a minha existência? E essa
maneira de agir é a que nós usaremos aqui no nosso esforço coletivo de
entender O Processo.

Como eu disse a vocês outras vezes, não há modo de o resumo do livro dos
nossos encontros substituir a leitura do livro. Mesmo que eu fosse um sujeito
literário, mesmo que eu conseguisse escrever de um modo muito melhor do
que eu escrevo, não daria para substituir a obra. A obra é insubstituível. Como
acontece sempre, a gente começa a nossa conversa com considerações
sobre o autor chamado Franz Kafka, o autor e a sua época. E depois que a
gente tiver entendido mais ou menos o que aconteceu na época do autor, a
gente cai no resumo. Depois nós teremos uma conversa aqui entre nós para
tentarmos entender o significado dela.

No final do nosso encontro eu adoraria saber que vocês ficaram mais


sabidos, no sentido mais puro da palavra, que ficaram mais cultos, que vocês
conhecem a situação passada pela personagem central, chamada Josef K.,
que é uma situação que aconteceria com qualquer um de nós.

A primeira providência para que vocês possam entender essa história


é que vocês façam de conta que estão vivendo essa história realmente,
completamente. Que vocês estão lá em Praga, no tempo em que Franz
Kafka viveu, no tempo em que essa história foi escrita. Se vocês não
brincarem de vivenciar a história, vocês não entenderão a história. Então
é preciso, pelo menos durante esse momento de compreensão da história,
que a gente faça de conta que tudo o que está escrito aqui é verdade. Que

14 Professor José Monir Nasser


a personagem Josef K. de fato existe ou existiu. Que todos os fatos narrados
no livro são rigorosamente verdadeiros. Se vocês não fizerem esse exercício
e ficarem estabelecendo razões para desconfiarem do livro, vocês não vão
entender a história. Não se lê ficção assim. Aliás, qualquer livro se lê assim.
Até mesmo livros de filosofia, livros técnicos. Você tem que dar uma chance
para o livro de ele contar alguma coisa para você. Então tudo começa com
você fingindo que tudo aquilo é verdade.

Leibniz, que era um sujeito muito mais esperto do que nós todos aqui, dizia
assim: “Eu acredito em tudo o que me contam”, como primeira atitude. A
primeira atitude de Leibniz é acreditar em tudo aquilo que contam pra
ele. E a história engraçada ligada a esse mesmo fato é a história do São
Tomás de Aquino, que sendo um frade dominicano estava lá num convento
estudando, e aí os colegas do São Tomás dizem pra ele assim: “Corre aqui,
Tomás, corre aqui na janela que tem um boi voando”. Aí o São Tomás corre
lá na janela, larga tudo, e na hora em que ele olha na janela os colegas
caem na gargalhada, porque era obviamente uma piada. E ele fala assim:
“Olhem pessoal, até hoje eu achava que era mais fácil um boi voar do que
um frade mentir, mas acabei de mudar de ideia”. Vejam - São Tomás, que
escreveu quase a maior obra filosófica da história, a Suma Teológica, achava
que em primeiro lugar nós temos que ter credulidade. A primeira condição
para o conhecimento é que você comece sempre com uma atitude positiva
com relação àquilo que dizem pra você. Então não se arme contra, não crie
defesas, não estabeleça obstáculos a nada a não ser a entender a história do
Josef K. Essa história é uma das mais importantes do Franz Kafka.

Outra regra do nosso jogo aqui é que ninguém é obrigado a concordar


com nada, porque isso aqui não é uma escola, cada um faça o que quiser,

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 15


no fundo cada um tem a liberdade que quiser. No entanto, está proibido
não entender. Quer dizer, até pra você não concordar com nada, é preciso
você ter entendido. Então eu estou aqui disposto a explicar a mesma coisa
quantas vezes forem necessárias. Não tenho a menor preguiça de explicar
nada. Eu sou assim, meio professor por natureza, portanto não tenho o
menor problema com isso. Só não são admitidos comportamentos de
vergonha e de constrangimento bobo, porque a essência do sucesso dessa
nossa metodologia é que vocês perguntem, proponham o que quiserem. É
só levantar a mão que a gente para e considera a opinião de vocês. Tá certo,
pessoal? Combinados por enquanto?

Então vamos pegar a cronologia do Franz Kafka.

Cronologia

Ele nasce no dia 3 de julho de 1883 em Praga, capital da Boêmia, que hoje fica

na Tchecoslováquia.

O lugar gerou a palavra “boemia” em português, embora rigorosamente


falando, nós devêssemos falar “boêmia”: “Fulano anda na boêmia”. A Boêmia
era um lugar de vida muito animada, com muita vida noturna. “Fulano é
frequentador da boêmia”, significa que ele gosta de vida noturna. Então, o
Kafka nasceu em Praga, que hoje é a capital da Tchecoslováquia. Naquela
época não havia Tchecoslováquia, havia um outro país chamado Boêmia,
cuja capital era Praga, e que fazia parte do império austro-húngaro,
dirigido por Viena. Hoje esse país não existe mais, tornou-se uma região da
Tchecoslováquia.

16 Professor José Monir Nasser


Ele nasceu em uma família judia, de cultura germânica.

Como o império era austro-húngaro, uma certa porcentagem dos habitantes


falava alemão. Agora cuidado, porque não é alemão como um alemão fala.
É um alemão chamado prager Deutsch, “o alemão de Praga”. É um alemão
esquisito, estranho, falado basicamente pelo governo que, afinal de contas,
pertencia ao império germânico. Kafka nunca escreveu uma linha em
tcheco (a outra língua predominante que se falava ali). Kafka é um nome
judaico comum, que significa “gralha” em tcheco, só que escrito de forma
germanizada. E o alemão que Kafka fala, portanto, é um alemão, digamos
assim, meio que burocrático. Não é um alemão descontraído, como o
alemão de alguém que fala alemão de origem, mesmo. Eles eram tchecos,
na verdade, Kafka e sua família.

A família de Kafka é originária da aldeia de Wossek, para onde migraram muitos

judeus após a Guerra dos Trinta Anos. O pai de Kafka, Hermann Kafka, um

comerciante de novidades bem sucedido, teve com Julie Kafka, mãe de Kafka,

cinco filhos, além de Franz, teve Georg e Heinrich, são os dois homens, ambos

mortos quando bebês. E Gabriele, Valérie e Ottilie, mortas durante a Segunda

Guerra Mundial em campos de concentração. O Franz tem problemas sérios

com o pai dele, e dá-se melhor com a família da mãe.

Os dados sobre essa briga dele com o pai estão disponíveis num texto que
Kafka escreveu, chamado Carta ao Pai, uma carta furiosa que ele enviou
para o pai dele, mas que nunca foi entregue. Depois da morte de Kafka isso
foi publicado. No texto, que dá pra comprar nas livrarias, Kafka faz acusações
seriíssimas contra o pai dele, por ser um tirano, um sujeito inflexível, por
querer mandar na vida dele, por querer inventar uma vida que ele não

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 17


queria ter. E por causa dessa história, há a ideia de que a obra de Kafka tem
um cunho psicanalítico. Os psicanalistas adoram interpretar Kafka sob o
ponto de vista do complexo de Édipo, essas coisas assim.

Em 1889, Kafka entra na escola primária Deutsche Volks und Bürgerschule, na


praça do Fleischmarkt e depois, em 1893, passa ao colégio clássico Altstädter

deutsches Gymnasium, que termina em 1901. Neste ano, visita Wossek pela

última vez, para comparecer ao enterro do avô.

Nessa cidadezinha de Wossek existe lá o tal do castelo que é o assunto


predominante do terceiro romance, o último romance de Kafka, O Castelo.

Em 1901, obtém o Abitur, o certificado de que você terminou o ensino médio.

E começa a estudar na divisão alemã da universidade Karl-Ferdinand. Após

duas semanas frequentando o curso de Química, decide mudar para Direito,

segue paralelamente cursos de Germanística e da história da arte. É leitor de

Kierkegaard e Pascal, dois filósofos. Aprecia muito Flaubert.

Flaubert vocês conhecem, é o autor da Madame Bovary, aquela história


conhecidíssima de uma mulher infeliz com a sua vida no campo e que,
ambiciosamente, tenta produzir uma outra vida que a acaba destruindo. E
o Kierkegaard e o Pascal são dois filósofos muito pessimistas, gente com a
ideia de que há uma inviabilidade geral na vida humana. Vocês a essa altura
já devem estar desconfiados de que o Kafka tem um quadro pessoal muito
interessante: ele é judeu de origem tcheca falando alemão, nunca escreveu
uma palavra em tcheco. É uma pessoa meio sem eira nem beira, né? Ele é
judeu, mas não é bem judeu. Ele é tcheco, mas usa o idioma alemão. Usa o

18 Professor José Monir Nasser


alemão, mas não é alemão. E ele vive sob a tutela, sob a tirania de um pai
muito rígido, e ele tem uma existência um pouco pessimista. O Kafka é um
sujeito que vê o mundo de um modo meio pessimista. Sabemos só isso, por
enquanto, a respeito dele.

Em 1902, ele conhece o músico Max Brod (1884-1968), que também é judeu e

foi o melhor amigo dele. E depois, quando o Kafka estava perto de morrer,
estava no final da vida, já muito doente, ele pediu a Max que destruísse
todas as obras que não tinham sido ainda publicadas. E esse Max Brod,
desobedecendo o último pedido do Kafka, publicou os livros todos. Então
hoje nós só temos esse livro aqui, O Processo, porque o Max Brod desrespeitou
a vontade testamentária de Franz Kafka e publicou o livro do jeito que pôde,
da maneira que ele achou melhor. Todas essas obras que Kafka pediu que
fossem destruídas estavam inacabadas. Faltava acabamento, faltavam
últimos detalhes. Devemos então a existência de umas três ou quatro obras
de Kafka, as mais importantes, aliás, ao fato de que o Max Brod desrespeitou
a vontade final de Kafka.

Em 1906, forma-se em Direito, no dia 18 de junho, e faz estágio não remunerado

no Tribunal Civil de Praga. Era obrigatório fazer assim, tinha lá uma lei que

obrigava.

Em 1907, novembro, torna-se funcionário da Assicurazioni Generali, uma firma

italiana de seguros, até hoje existe. Pede demissão em 1908 alegando falta de

tempo para escrever.

Não sei se vocês compreendem isso, mas determinadas atividades humanas


são incompatíveis, não é? É muito difícil fazer a junção de uma carreira

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 19


burocrática, - tem que trabalhar dez horas por dia em uma firma -, com uma
carreira intelectual, artística. É complicado isso. O livro que conta melhor
essa dificuldade chama-se O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa, um autor
brasileiro, que conta a história de um professor que queria na verdade
mesmo era ser poeta. E ele vai meio que destruindo a família inteira porque
não consegue trabalhar. Esquece que tem uma família, crianças, que tem
que pagar o aluguel, e então se defronta com essa situação de inviabilidade
que às vezes a vida traz entre dois projetos que mais ou menos se excluem
mutuamente. Então quem quiser conhecer esse drama, da pessoa que está
dividida entre a necessidade de garantir o feijão e a necessidade de fazer
cumprir o sonho, leia O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa. É um livro muito
bonito, muito bem escrito, você encontra com a maior facilidade do mundo.
Nos colégios o pessoal costuma ler como indicação curricular. Então o Kafka
vivia essa situação, exatamente como a personagem de O Feijão e o Sonho.
Ele quer ser escritor, no entanto tem que trabalhar em algum lugar, e o pai
dele, tiranicamente... Tem duas pessoas que ficaram para a história como
monstros, o pai do Kafka e a mulher de Sócrates, a Xantipa. Se tem alguém
na história que ficou vista como uma megera absoluta, é a tal da Xantipa, que
era um tipo tirânico e autoritário, insuportável. E o outro sujeito que ficou
para a história como sendo um monstro é esse pai do Kafka. Provavelmente
nos dois casos há alguma injustiça. Como tudo na vida, né?

Em 1908 começa a trabalhar numa empresa semiestatal chamada Instituto de

Seguros e Acidentes de Trabalho do Reino da Boêmia, - a Boêmia era um reino

subordinado ao império austro-húngaro - seu segundo e último emprego,


onde foi encarregado de estudar riscos e buscar meios para reduzir sinistros.

Apesar de ter sucesso nesse emprego, chamava-o de Brotberuf (ganha-pão) -

um negócio que você faz só para levar dinheiro para casa, mas pelo qual

20 Professor José Monir Nasser


você não tem lá grandes considerações, nem amores. É mais ou menos
o emprego que a maioria das pessoas consegue na vida. E isso não deve
provocar estranhamento, porque a vida não é do jeito como a gente imagina.
Portanto a coisa mais comum do mundo é você casar com quem você não
tinha sonhado e acabar trabalhando num negócio que você também não
queria fazer. Não tem nada de estranho nisso, não sei se é o caso de alguém
aqui, mas não se impressione porque é completamente natural que seja
assim. E sobretudo porque uma coisa implica a outra, né? Uma vez casado,
você vai ter que pegar o primeiro negócio que te derem. Então é uma coisa
comum na história das pessoas que elas não tenham escolhido exatamente
o melhor casamento e nem o melhor emprego. É comum. Há muita gente
que não é assim, tem gente que consegue fazer as duas coisas. Há uma
outra parte que consegue fazer só uma das duas. Então, para o Kafka esse
emprego, que era de um certo prestígio, era apenas um Brotberuf - um
trabalho para você levar dinheiro para casa, e só.

Em 1908 ainda, por influência de Brod, que é aquele amigo dele, ele publica aos

pouquinhos o primeiro livro, que é um conjunto de histórias curtas, contos,

Descrição de Uma Luta, na revista muniquense Hyperion de Franz Blei.

Em 1910, começa a redigir O Diário, que depois foi publicado. Muitas das

informações que estão nessa biografia vieram de O Diário de Kafka. Acho


que não foi traduzido em português, mas você consegue isso facilmente em
inglês, espanhol, francês, sem problemas.

Em 1911, por pressão do pai, Kafka começa a colaborar, contrariado, às tardes na

firma asbestos de seu cunhado Karl Hermann. Kafka preferiria passar as tardes

estudando, escrevendo. Por meio do Yeddish Theater (ou Teatro Iídiche), aos

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 21


poucos começa a se aproximar do Judaísmo. Ele era um judeu não praticante,

um judeu distante, um judeu, digamos, leigo, e que começa a se interessar


pelo judaísmo só aí nessa altura da vida quando vai assistir ao teatro judaico.
Esses judeus eram obviamente muito ciosos da sua individualidade, né? Os
países da Europa não permitem o grau de miscigenação cultural que há
aqui, então os judeus aí eram os judeus de verdade, mais judeus do que
tchecos, e sobretudo mais judeus do que alemães, seguramente isso. E aí
então nessa altura ele começa a se interessar por judaísmo.

Em 1912, conhece a Felice Bauer, uma berlinense de quem ele se tornaria noivo

duas vezes. Ele foi noivo dela uma vez, rompeu, e depois foi noivo de novo.

Neste mesmo ano, tornou-se vegetariano e adepto de manias alimentares. Não

só se tornou vegetariano, mas mesmo vegetariano, não comia qualquer


coisa, tinha restrições de todos os tipos. Escreve nesse ano O Veredito, que
é uma peça importante, A Metamorfose, que é a história mais conhecida de
Kafka, aquela do Gregor Samsa, um sujeito que acorda de manhã e virou
um inseto gigantesco, e a maior parte do livro chamado América. Nesse ano,
apenas uma curiosidade, o famoso teórico de administração Peter Drucker,
falecido há pouco tempo, diz que o Kafka recebeu uma medalha pela invenção
do capacete de segurança, coisa que eu aposto que vocês não sabiam. E com

o capacete de segurança, a mortalidade reduziu de vinte para cinco mortes por

mil na indústria de aço da Boêmia. Esta informação é impressionante, porque

ninguém sabe, mas o Peter Drucker que conta isso no livro, dizendo que
o Kafka nesse seu episódio de trabalhar nessa empresa de seguros, teve
grande sucesso. Foi um funcionário exemplar, mas profundamente infeliz
com aquela atividade. Porque aquela atividade era incompatível com a
única coisa que lhe interessava na vida.

22 Professor José Monir Nasser


Em 1913, publicados pela editora Kurt Wolff, O Foguista, a coletânea de contos

Contemplação e O Veredito. Neste ano, escreveria no dia 21 de agosto no seu

diário: “O meu emprego é insuportável porque contradiz o meu único desejo e a

minha única vocação, a literatura. Como sou apenas a literatura, e como não quero

nem posso ser outra coisa, o meu emprego não poderá nunca seduzir-me, só poderá

ao contrário destruir me totalmente!” (Diários). Então o Kafka está aqui admitindo

que a sua existência só poderia ser realizada se ele fosse apenas escritor e
nada mais do que isso.

Em agosto de 1914, começa a escrever O Processo, esse livro que vocês verão

comigo hoje. Esse tipo de informação vem de O Diário. Está escrito lá:
“hoje comecei a escrever um livro que é mais ou menos assim”, que você
interpreta como sendo O Processo. Nem sempre o título do livro já está
pronto no primeiro dia. Às vezes é a última coisa que você põe. Há escritores
que constroem toda a obra em cima do título e há escritores que o põe em
último lugar. Tem todo o tipo de situação.

Em 1915 (lembrem que nós já estamos na Primeira Guerra Mundial, não é?)

foi publicada por Kurt Wolff, numa determinada revista em Praga, a novela A

Metamorfose, que é a mais conhecida obra de Kafka. Tudo em língua alemã.

Kafka não escreveu nenhuma linha em tcheco. O que tem do Kafka em


tcheco foi traduzido, como se traduziu para o português. Ele tinha o alemão
como língua nativa.

Rompe o noivado com a Felice em 1917 e nesse ano é diagnosticado com

tuberculose no pulmão e laringe. Provavelmente resultado de não beber leite

pasteurizado. Kafka não admitia nenhum leite que fosse pasteurizado.

Deve ter vindo daí o bacilo da tuberculose que o infectou nessa data. Lê

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 23


Kierkegaard obsessivamente, o que é uma maneira de você ficar meio

pessimista com relação ao mundo. Há determinados filósofos que te põem


para cima, outros que te põem para baixo. Há filósofos que chegam para
você assim como chega um sujeito para um suicida que está tentando pular
de um prédio e diz: “Duvido que você seja homem de pular!” [risos] É mais ou
menos é o que alguns filósofos fazem conosco.

Em 1919, Kafka se torna noivo da Julie Wohryzek, filha do zelador da sinagoga.

Ela é judia, mas tinha o defeito de ser a filha do zelador. Adivinhem se o pai
de Kafka concorda com o casamento do filho (ele era um sujeito da classe
média, tinha uma loja)? Uma das mágoas que Kafka tinha do pai é que ele
impediu o casamento com essa Julie, por causa de preconceito econômico.
Não era racial, porque ela era judia também, era meramente econômico. Ela
era uma mulher pobre.

Nesse ano foi publicado o livro O Médico Rural (Ein Landartz), que é uma

coletânea de contos. Escreve Carta ao Pai (Brief an der Vater).

Em 1920, já rompido com a Julie (porque o pai obrigou), ele conhece a

jornalista Milena Jesenská, que se tornaria sua amante e traduziria seus textos

para tcheco. A Milena não era judia, mas ela acabou indo parar num campo

de concentração também, porque foi acusada de ajudar os judeus. Essa


aí então o pai não concordaria de jeito nenhum, porque faltava a ela a
característica principal, ser judia como a família. O pai dele era um judeu
daqueles meio ortodoxos. O Kafka não, mas o pai era um judeu que seguia
todas as regras, e entre elas ficar casando com outros judeus.

Em 1921 a tuberculose se agrava e ele não consegue mais trabalhar. Em 1922

24 Professor José Monir Nasser


Kafka se aposenta por invalidez. Escreve O Castelo entre fevereiro e setembro.

Em 1923, conhece a professora de pré-escola, Dora Diamant, numa viagem,


e passam a morar juntos em Berlim. Primeira ausência de Kafka de Praga, quer

dizer, ele até então havia feito viagens rápidas, e agora pela primeira vez ele
vai morar noutro lugar que não Praga. Vai morar na Alemanha, que afinal
de contas é onde ele conseguia se comunicar bem. Dora provinha de uma
família judaica ortodoxa, e apresentou Kafka ao Talmud. É mais um passo do

Kafka em direção a uma religiosidade judaica.

Nesse mesmo ano, 1923, Kafka teria enviado carta testamento ao Max Brod,

com instruções para destruir após a sua morte, os manuscritos não publicados

e que nunca reeditasse Contemplação (Betrachtung). “Tudo isso, sem exceção”,

diz o Kafka, “tem de ser queimado. E será melhor ninguém lê-lo antes”. Então
não é verdade que a obra de Kafka teria que ter sido queimada, o que é
verdade é que apenas a obra inacabada é que deveria ter sido queimada. E
Kafka publicou em vida uns três, quatro livros. E o que Kafka queria é que a
obra que ele não havia publicado fosse queimada depois da sua morte. Essa
história acabou dando num processo judicial, porque a família foi lá tirar
satisfações com o Max Brod. Há um crime - não sei muito bem como é, não
sei se tem no Brasil também -, que se chama Falsidade Testamentária. Você
é testamenteiro de alguém e não cumpre aquilo que foi estabelecido. E o
Max Brod defendeu-se assim: “Se ele quisesse de fato queimar, primeiro ele
podia ter feito sozinho. Segundo, vai logo pedir pra mim, isso? Eu que adoro
as coisas que ele escreve! Então, na hora que ele me pede uma coisa dessas,
está implícito que no fundo, no fundo, ele não quer que sejam queimados,
muito pelo contrário, ele quer que os livros permaneçam”. E foi assim que
o Max Brod se justificou perante a justiça do fato de não ter queimado os
manuscritos inacabados.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 25


Em 1924, muito mal de saúde, Kafka retorna a Praga em maio e procede para

a casa de saúde do doutor Hoffmann em Kierling, perto de Viena. Em 3 de

junho, ao meio-dia, Franz Kafka, tendo a seu lado o estudante de medicina

Robert Klopstock, morre de inanição e desidratação pela impossibilidade de

ingerir alimentos. Nessa época não havia nenhum método de alimentação

parenteral. Então Kafka morreu de fome e sede. Não conseguia comer nada,
a garganta estava completamente inviabilizada, não passava nada mais.

Muito interessante é que no leito de morte ele revê os originais de uma


coleção de contos - poucos contos - cujo principal deles chama-se Ein
Hungerkünstler, que significa Um Artista da Fome. A personagem central
desse conto também é um sujeito que morre de fome. Então ele está no leito
de morte escrevendo uma história em que o sujeito morre de fome e ele
morre de fome, de fato. É como Molière que escreveu, entre diversas peças,
uma chamada O Doente Imaginário. Nas apresentações da peça, quem fazia
o papel de doente imaginário era ele mesmo. Aí teve uma apresentação
em que ele teve uma crise no palco e acabou morrendo mesmo, dois dias
depois de ter ficado mal durante a peça em que fazia o papel de doente
imaginário. Isso é para vocês saberem que é preciso tomar cuidado com
aquilo que vocês escrevem, com os papéis que vocês aceitam representar
nas peças de teatro da cidade... Então, para vocês se precaverem quanto a
isso.

Seu corpo é levado a Praga, onde está enterrado no cemitério judaico

de Straschnitz. É publicado o conjunto de contos Um Artista da Fome (Ein

Hungerkünstler), cujas provas tipográficas Kafka teria corrigido no leito de morte.

26 Professor José Monir Nasser


E é aí então, depois da morte de Kafka, - isso aqui é muito importante, tá? - o
Max Brod, que se negou a destruir os originais, publica O Processo em 1925,
em 1926 O Castelo, e em 1927 América, ou O Desaparecido, esse livro tem
dois nomes. Kafka colocou o nome de América e o Max Brod mudou para O
Desaparecido. Foram publicados depois da morte de Kafka - mas entendam
o que significa isso. Fica um monte de papel escrito, sem ordem, às vezes
sem indicação da sequência de capítulos, às vezes com trechos obscuros
que ainda não foram consertados, com dificuldades de correção, até mesmo
sem o título definitivo. E o Max Brod então vai lá e edita isso tudo. Quando
lerem este livro aqui, vocês estão lendo um livro escrito pelo Kafka, mas
que tem aqui contribuições do Max Brod também. Foi o Max Brod que
estabeleceu a sequência de capítulos, foi ele quem corrigiu o alemão, deu
a última versão linguística, deve ter cortado uma frase ou outra, adicionado
uma outra... Então dentro dessa obra aqui há alguma contribuição do Max
Brod.

É como o Mozart. A última obra que Mozart escreveu é o Réquiem, um dos


mais belos réquiens já escritos. Réquiem é uma missa fúnebre. Hoje em dia
ninguém mais faz isso, a não ser quando morre alguém muito importante.
Mas antigamente havia uma missa especial para um defunto, e essas missas
eram escritas pelos grandes compositores do mundo. Há vários réquiens,
todos muito bonitos; eu sou apaixonado por réquiens. Quando a missa
fúnebre é rezada na igreja, quando é cantada, a gente não deve bater palma
no final, porque fica chato ficar batendo palma para um defunto, na missa,
na igreja. Antigamente quando se levava a missa um pouco mais a sério,
ninguém fazia isso. E o Réquiem de Mozart não foi completado. Mozart estava
muito mal de saúde, e um sujeito foi visitá-lo – não era Salieri, concorrente
de Mozart na corte de Viena, como informa aquele filme do Milos Forman

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 27


sobre a vida de Mozart. Salieri não era tão mal assim, foi muito mais uma
calúnia que o filme estabeleceu. Mas a verdade é que Mozart foi visitado
por uma pessoa desconhecida, no final da vida, que ele não sabia quem era.
Era uma pessoa disfarçada, e Mozart julgou que fosse a Morte em pessoa,
que tivesse vindo fazer uma encomenda por gozação. A Morte, por gozação,
veio encomendar a ele um réquiem para a própria morte dele; Mozart estava
convicto de que era a Morte que tinha feito aquilo. Aí ele tenta negociar com
a Morte, e diz assim: “Não, mas eu cobro muito caro”. Aí a Morte fala assim:
“Não, mas eu pago”. “Mas eu quero metade adiantado”, retruca Mozart. Aí o
cara fala: “Tá aqui”. Aí Mozart vai fazer o réquiem e não consegue terminá-lo,
quem termina é um aluno chamado Süssmayr. De modo que quando você
ouve o réquiem de Mozart, você sabe que está ouvindo ali dois autores.
Depois que você ouve pela centésima vez, você começa a saber qual é a
parte de Mozart e qual é a parte de Süssmayr, porque o seu ouvido vai contar
isso para você. É só ter um pouco de paciência e insistência. Mesmo porque
ouvir o réquiem cem vezes não é nenhum sacrifício, de modo nenhum,
muito pelo contrário. Se um dia vocês quiserem ouvir uma peça musical
absolutamente comovente, no sentido mais profundo da alma, peguem o
Réquiem de Mozart, que é magnífico. Nele vocês ouvirão um dos maiores
gênios da música, convicto de que a Morte em pessoa encomendou a ele
uma missa em que se pede a Deus para levar em consideração o morto,
rogando: “Por favor, Você prometeu, agora cumpra. Dê o perdão, perdoe”.
É o Mozart pedindo perdão a Deus pelos pecados que teve na talvez mais
comovente peça musical já escrita. Absolutamente imperdível, o Réquiem
de Mozart. Todos os réquiens têm os mesmos dizeres, porque é uma missa,
né? Portanto, o recitativo é o mesmo.

28 Professor José Monir Nasser


Então o que aconteceu depois da morte de Kafka é que o Max Brod saiu
editando a obra de Kafka mesmo contra a vontade dele. Até 1930 Kafka não
é muito conhecido. Ele é um escritor de Praga, portanto não está dentro do
grande mundo da literatura germânica.

Em 1930 um artigo elogioso do Thomas Mann faz o Kafka ficar conhecido

no mundo germânico. Em 1931 é publicada A Muralha da China, que é uma

coletânea de contos, também feita por obra do Max Brod.

Em 1932 um livreiro judeu de Berlim, Salmon Schocken, decide publicar a obra

inteira.

Em 1936 publica integralmente Descrição de uma Luta, em 1937 publica Os

Diários de Kafka, que começaram a ser escritos em 1910.

Aí em 1939 os nazistas já tomaram o poder na Alemanha, e também na


Tchecoslováquia. A região dos sudetos, na Tchecoslováquia, foi o primeiro
lugar que eles invadiram. Depois virou tudo espaço nazista. Os nazistas
destruíram todas as edições Schocken. E o Max Brod foge para a Palestina, que

naquela época já existia, levando com ele os manuscritos de Kafka. Foram


parar numa biblioteca em Jerusalém.

Em 1941 Salmon Schocken leva os originais para Nova York e os transforma em

base das suas traduções.

Em 1954 são publicadas as cartas que ele escreveu para uma de suas mulheres,

a Milena, Cartas Para Milena.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 29


Em 1956 a família faz um acordo com o Brod e então o Brod e o Schocken

devolvem os manuscritos para a família.

Em 1961 o germanista Malcolm Pasley, um inglês que estudava literatura

germânica, convenceu a família a doar todos os manuscritos de Kafka para o

acervo da biblioteca Bodleian, em Oxford, na Inglaterra, exceto O Processo. Nesse

mesmo ano Malcolm Pasley estabelece um grupo de estudiosos para reeditar as

obras de Kafka sem as contribuições do Max Brod. Quer dizer, começar do zero

de novo. Essa edições são chamadas de Edições Críticas, e são consideradas


as melhores. Essa daqui não foi feita em torno de uma edição crítica, essa
tradução foi feita em torno do texto que o Max Brod estabeleceu. Mas
existem outras edições, não sei se em português existe, mas em inglês
certamente tem, em que há uma outra versão um pouco diferente do que
a que está aqui, porque se foi até a base dos manuscritos e se retirou tudo
aquilo que o Max Brod havia mexido.

Em 1967 é publicado Cartas a Felice.

Em 1968 morre o Max Brod.

Em 1969 o escritor Isaac Bashevis Singer, que também é judeu, escreve um

conto, Um Amigo de Kafka, onde a personagem, Jacques Kohn, que também

é judeu, que teria conhecido Kafka, informa que este último acreditava na

existência do golem, o personagem folclórico do judaísmo, um homem artificial

criado pelo rabino Loew em Praga. Então há uma lenda judaica de que em

1600 e alguma coisa, quando os judeus de Praga eram muito perseguidos,


o rabino Loew, para tentar resolver isso, foi até o rio que banha Praga e tirou
um pouco de barro, assim como Deus fez na Bíblia, e com esse barro ele

30 Professor José Monir Nasser


fez um monstro chamado golem, que ajudava então a defender os judeus
em Praga. Só que o tal do golem saiu do controle do rabino, e aí teve que
ser destruído depois por uma mágica. A mesma mágica que o rabino usou
para construir o golem, teve que usar para destruí-lo. É uma lenda judaica.
E Kafka acreditava piamente na existência do golem. Ele era um sujeito
com uma capacidade enorme de adesão ao sobrenatural, repararemos em
seguida que isso é completamente verdade.

Em 1988, o manuscrito de O Processo, o único que não estava em Londres, foi

vendido por Ilse Ester Hoffe, por 1,1 milhão de libras. Foi vendido para o arquivo

literário alemão. Toda a obra de Kafka, todos os manuscritos estão lá na

Inglaterra, exceto esse aí que está na Alemanha.

E aí começam as publicações das novas edições críticas: em 1982, O Castelo,


em 1983, América, em 1990, O Processo. Portanto há uma edição feita em 1990,

diferente dessa aqui - não muito diferente, mas diferente, que é a edição do
Pasley, e não a do Max Brod. E, finalmente, em 2002, foi publicado um estudo
famoso que propõe que as bases de O Processo possam ser encontradas em

Dostoievski, especificamente no livro Crime e Castigo.

***

O que é que vocês acham da vida dessa pessoa? É uma pessoa comum? Não,
é um sujeito com uma vida muito original. Ele não é nem judeu totalmente,
nem alemão totalmente, nem tcheco totalmente. Não se deu muito bem
com as mulheres, dá para reparar que ele teve dificuldades com as mulheres.
Uma briga sistemática com o pai. O pai e ele viveram sempre muito mal. É
um sujeito que tinha de fato consciência da sua vocação literária. Que tinha

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 31


desconfiança de que as obras que ele não tinha acabado não eram muito
boas. Que viveu muito pouco, né? Morreu de tuberculose, o que não era
incomum naquela época, mas já era uma doença contornável, de certo
modo. E era um sujeito que tinha uma dificuldade alimentar extraordinária.
Apesar de ser de uma família judaica religiosa, ele mesmo não era muito
religioso, a não ser no final da vida, em que parece que ficou.

Uma das coisas interessantes sobre o Kafka é que há um brasileiro


conhecidíssimo que o conheceu pessoalmente, o Otto Maria Carpeaux.
Vocês sabem que o Otto Maria Carpeaux é austríaco; eu sempre digo que
ele é o maior intelectual que o Brasil já teve em toda a sua história. Ninguém
tem a dimensão dele. Ele morreu em 1978. Ele era austríaco e viveu no
império austro-húngaro até a década de 1930. Ele saiu da Europa no dia em
que começou a II Guerra Mundial, portanto, algum momento em 1939. Ele
é de 1900, então o Carpeaux viveu 39 anos, chegou no Brasil adulto. Três,
quatro anos depois escreveu uma enciclopédia em português, escreveu
a História da Literatura Ocidental em português... Um assombro! Nunca
conseguiremos entender bem como foi isso. Mas o Carpeaux disse que
estava numa festa em Viena e que havia um sujeito estranho, solitário num
canto, e que ele foi lá falar com ele. Perguntou o nome dele. E ele respondeu
alguma coisa como “Kaua...”, porque ele já tinha a laringe totalmente
tomada pela tuberculose e não conseguia mais falar com clareza. Aí ele
perguntou lá pra uma pessoa na festa quem era o fulano e disseram que
ele era um escritorzinho de terceira, que não tinha nenhuma importância,
um sujeito meio estranho e maluco. Não deixa de ter uma certa razão, né?
Mas é interessante... porque eu nunca soube de nenhuma outra pessoa que
tivesse conhecido pessoalmente o Franz Kafka.

32 Professor José Monir Nasser


E esse homem atormentado, com uma psicologia muito especial, acabou
fazendo uma das mais importantes obras literárias do século XX. A obra
toda é muito interessante, esse é o autor de quem eu li toda a obra. Tem
três romances, uma novela e o resto são contos. Então não é muito extenso.
Você lê isso sem grandes investimentos de tempo, e toda a obra de Kafka
é perpassada por um clima sinistro. Todas são obras muito sinistras e
incompreensíveis, que geram no leitor alguma angústia. Então se vocês
leram O Processo e sentiram angústia ao lerem o livro, então vocês leram
certo, porque é pra sentir angústia mesmo, sentir uma certa dificuldade,
uma certa falta de ar, uma certa apreensão com relação ao que vai acontecer,
um certo nervosismo, tudo isso deve ter sido sentido por quem leu o livro.
Se você não sentiu nada disso, você não leu o livro. Você não se deu ao
trabalho, e não teve a capacidade de fingir que você estava lá vivendo tudo
aquilo de verdade. Então esse seu ceticismo incurável vai condenar você a
só conseguir ler manual de eletrodoméstico na vida.

Alunos: [risos]

Prof. Monir: Faça alguma coisa a respeito, o máximo que você puder.
Compreenderam? Quer dizer, a incapacidade de você entregar o seu coração
e a sua alma para o livro... os livros são completamente vivos, não tenham
a menor dúvida disso. O livro fala com você, você tem que conversar com
ele. Há uma mágica em volta disso. Se você não conversa com a história, ela
não responde as perguntas que você quer que sejam respondidas. Então
eu espero que vocês que são aí estátuas pétreas de ceticismo, que pelo
menos agora na leitura do resumo vocês cedam um pouco desse ceticismo
empedernido e aproveitem para viver um pouquinho todos os horrores que

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 33


a personagem Josef K. aqui dessa história viveu. Fala-se “Iosef” K. porque
em alemão a letra jota tem som de i. De vez em quando você encontra
umas Sonjas por aí que não são Sonjas, são Sônias. Nós sabemos que a
personagem se chama Josef (José) K. Não sabemos o que é que significa K,
mas é óbvio que a lembrança, a relação com K de Kafka é muito alta, não é
isso? Há uma certa autobiografia nessa história? Com certeza. Ninguém é
capaz de escrever um livro a partir de elementos absolutamente arbitrários
e absolutamente imaginativos. O que você escreve no livro é um pouco do
que você viveu. Mas também, nós não temos o direito de supor que esse
livro é uma biografia do Kafka, porque também não é. Então o certo é fazer
de conta que é uma história fictícia mesmo. Está certo, pessoal? Vamos
enfrentar o livro, então?

Resumo da Narrativa

O Processo, que começou a ser escrito na segunda semana de agosto de 1914,

está entre as obras de Kafka não publicadas em vida cujos manuscritos deveriam

ter sido destruídos por Max Brod a pedido escrito do autor. Apesar disso, Brod

decidiu editá-la, tendo de lidar com o fato de os capítulos não estarem revistos

e numerados e vários deles estarem incompletos.

Prof. Monir: Então, o que aconteceu é fundamentalmente assim: o


Kafka deixou o livro com os capítulos separados dentro de envelopes e
não colocou um, dois, três... Ele botou lá um título, pegou um pedaço de
papel, que ele escreveu a mão, obviamente, e colocou no envelope. Havia
vários envelopes, que eram os capítulos do livro. Alguns desses capítulos
não estavam terminados, outros estavam muito precariamente terminados.
Então o que o Max Brod fez? Ele tinha que estabelecer primeiro a sequência

34 Professor José Monir Nasser


dos capítulos, porque não estava estabelecido pelo Kafka e, segundo, tinha
que terminar alguma coisa. Então é isso que ele fez.

O texto trabalhado por Max Brod, chamado “edição definitiva”, no entanto, tem

aspectos discutíveis, quando é levada em conta a coerência interna da obra.

Segundo certos estudiosos, o capítulo quarto poderia estar melhor entre o

primeiro e o segundo e o capítulo nono talvez devesse ser o capítulo sétimo.

Alimentadas pela polêmica, há outras edições da obra com uma ordem diferente

de capítulos, como a edição francesa. Estas outras edições são chamadas

“edições críticas” ou “edições Fischer”.

Prof. Monir: Por causa da Editora Fischer que as lançou. Então é assim, o
capítulo do inverno vem antes do capítulo do outono, determinados fatos
estão invertidos, mas isso tudo não tem a menor importância, em última
análise, porque não vai destruir a visibilidade que nós temos da obra, não
vai nos impedir de apreciá-la na sua totalidade.

O presente resumo é baseado na tradução de Modesto Carone (Companhia

das Letras, São Paulo, 2004), por sua vez feita a partir da edição definitiva de Max

Brod. Os títulos dos capítulos correspondem aos nomes sobrescritos por Kafka

nos envelopes onde estavam guardados separadamente os capítulos originais.

Além da polêmica sobre a ordem dos capítulos, existem fragmentos, não

resumidos aqui, de outros capítulos planejados para a obra que não puderam

ser aproveitados no corpo do romance.

Prof. Monir: Então vocês percebem aí que há uma dificuldade, mais uma
dificuldade que não precisava existir. Não vai no entanto nos atrapalhar

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 35


porque a obra, seja do jeito que for, está profundamente acessível. E a
história que vocês vão ler agora é uma história tenebrosa. Ela acontece com
um fulano chamado Josef K. Ele é um sujeito que tem trinta anos, que é
um funcionário de um banco. A história se passa em Praga, a não ser por
uma ou outra indicação de alguma espécie de instrumento, essa história é
atemporal. Poderia se passar em Praga em qualquer época. Sabemos que
é no mundo moderno, no século XX, porque há automóveis e telefones,
mas nenhuma dessas duas coisas faz muita diferença. De modo que é
uma história atemporal, não é uma história que tenha data, e ela se passa
em Praga. Todas as referências que estão aqui existem em Praga, existem
excursões para Praga só para ir visitar a igreja, para visitar a casa onde
teria morado o Josef K., e coisas do gênero. A personagem central é esse
sujeito que parece muito com Kafka, que é um sujeito que tem uma vida
comuníssima. Ele mora num quarto, numa pensão. Todos os dias ele levanta
e vai pro banco. Vem uma cozinheira da pensão, traz o café no quarto, e
aí ele vai embora, vai trabalhar no banco, onde trabalha como procurador.
Por isso entende-se um cargo com uma certa importância, mas não demais,
porque o procurador do banco é o sujeito que assina os cheques em nome
do banco. Eu já fui procurador de banco e não era grande coisa como
funcionário. O procurador é um cargo de certa confiança, mas não é grande
coisa.

Ele é um sujeito comum, solteiro, tem uma namorada que trabalha em um


negócio suspeito, parece que ela é garçonete de uma boate, há uma certa
suspeição em torno da namorada do Josef K. Ele tem uma atitude normal,
assim, é uma pessoa que na rua não chamaria atenção se você a visse.
No entanto, a vida desse homem é completamente transtornada logo no
primeiro momento em que começa a narração do romance. Porque é um
romance, tecnicamente. Podemos começar?
36 Professor José Monir Nasser
Capítulo Primeiro
Detenção. Conversa com a senhora Grubach. Depois com a senhorita Bürstner.

Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido

sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora,

era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta das oito horas, mas

dessa vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes. (pág. 9)

Prof. Monir: A história começa, portanto, com esse choque. Pela primeira
vez a cozinheira não traz o café para o Josef K. na pensão onde ele morava.
Dizer que ele deve ter sido caluniado significa que se tinha uma impressão
positiva dele, que ele não deve ter cometido nenhum crime.

Joseph K., o herói da narrativa, acorda na manhã do seu trigésimo aniversário na

expectativa de receber seu café da manhã, trazido pela cozinheira Anna, como

todos os dias. O que ele recebe, na verdade, são dois agentes policiais, Franz e

Willem, que lhe comunicam sua prisão.

-Não – disse o homem junto à janela, atirando o livro sobre uma mesinha

enquanto se erguia. – O senhor não tem permissão para sair. O senhor está

detido.

- É o que parece – disse K. – Mas por quê? – perguntou então.

- Não fomos incumbidos de dizê-lo. Vá para o seu quarto e espere. O

procedimento acaba de ser iniciado e o senhor ficará sabendo de tudo no

devido tempo. Ultrapasso os limites do meu encargo quando me dirijo com

tanta amabilidade ao senhor. Mas espero que ninguém mais ouça, além de

Franz, e até ele é amável com o senhor, contra todos os regulamentos. Se

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 37


continuar tendo tanta sorte como na indicação dos seus guardas, pode ficar

confiante.

K. desejava sentar-se, mas viu então que não havia outro assento na sala

além da cadeira perto da janela.

- O senhor ainda vai perceber como tudo isso é verdade – disse Franz, andando

ao mesmo tempo que o outro homem em direção a K. (págs. 11-12)

Prof. Monir: Então aí já começou a ter uma situação estranha, porque


chegam dois policiais na casa de Joseph K., no dia do seu aniversário, e
comunicam que ele está preso. Só que eles não comunicam por que razão
ele está preso; a razão ele até aquele momento não sabe qual é. E esse
funcionário com quem ele está falando, que é um dos guardas, está dizendo
que ele tem muita sorte de estar sendo tratado com amabilidade. E que
eles não podem dizer por que razão ele está preso. Parece estranho, isso? É
levemente estranho. Mesmo que a gente desconsidere as diferenças entre
os sistemas jurídicos, não tem importância. Seja qual for o sistema jurídico,
parece uma coisa estranha.

Josef K., vestido com um camisolão, protesta, pede para falar com o chefe deles,

pensando tratar-se de uma piada de alguém do banco, onde ele trabalha em

“posto relativamente alto”. Os agentes tentam ficar com as roupas debaixo dele

– já que no depósito seriam inevitavelmente roubadas - comem o seu café da

manhã e pedem-lhe dinheiro para comprar-lhe um lanche num café decadente

do outro lado da rua.

Já em traje negro, encontra, no quarto ao lado, da senhorita Bürstner, o inspetor

que lhe confirma a prisão, mas não lhe comunica a razão.

38 Professor José Monir Nasser


Não posso absolutamente lhe dizer que é acusado, ou melhor: não sei se o é.

O senhor está detido, isso é certo, mais eu não sei. Talvez os guardas tenham

tagarelado outra coisa, mas aí foi só tagarelice. Mesmo, porém, que eu não

responda às suas perguntas, posso entretanto aconselhar o senhor a pensar

menos em nós e no que vai acontecer e mais em si mesmo. E não faça tanto

alarde do seu sentimento de inocência, isso perturba a impressão não

exatamente má que de resto o senhor transmite. Deveria também ser mais

reservado ao falar; quase tudo o que disse antes poderia ter sido deduzido do

seu comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras; além

disso, não foi nada de extremamente favorável para o senhor. (pág. 22)

Prof. Monir: Bom, aqui está o Josef K. querendo saber de qualquer jeito
porque é que ele está preso, e o chefe dos dois lá diz pra ele que não sabe,
nem sabe se ele é acusado de alguma coisa, só sabe que ele está preso.
E que não é bom pra ele, Josef K, ficar alardeando inocência desse jeito.
Porque até agora ele tinha causado uma boa impressão, e que ficar falando
o tempo todo que é inocente pode ser visto como uma coisa antipática
pela polícia. Parece uma situação comum essa, vocês veem isso como uma
situação normal? Não. É uma situação muito estranha. Ninguém conta pra
você por que você está preso. Os sujeitos dizem lá que é melhor ficarem
com a roupa, sobretudo íntima do acusado, porque quando elas forem
mandadas para um depósito, para onde vão as roupas de todos os acusados,
elas serão roubadas; comem o café da manhã dele e depois pedem para que
ele lhes dê dinheiro para comprarem o café do outro lado da rua. Não é uma
situação muito estranha? Parece uma situação meio estranha. Alguém tem
a sensação de que isso é normal? Se tiver... já vai perder, tá? Porque a coisa
fica muito pior daqui para frente. Vamos ver o que acontece.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 39


Junto com o inspetor estão três funcionários subalternos do Banco, Rabensteiner,

Kaminer e Kullich que olham com curiosidade as fotografias na parede do

quarto da senhorita Bürstner.

Prof. Monir: Para tornar as coisas ainda mais estranhas, a polícia se instalou
no quarto da vizinha do Josef K., e estão presentes lá três funcionários
subalternos do banco. Não é uma coisa mais estranha do que antes? Por
que logo três funcionários? Logo esses três estão presentes lá? Olhando as
fotografias da parede... O que será que tudo isso significa?

Assim que K. os reconhece, os despacha com irritação. Na sua opinião,

Rabensteiner é preguiçoso, Kaminer é patético e Kullich estúpido. Josef parte

para o trabalho, apesar de estar detido.

- Como posso ir ao banco se estou detido?

- Ah, sim – disse o inspetor, que já estava perto da porta. – O senhor

me entendeu mal. É claro que o senhor está detido, mas isso não deve

impedi lo de exercer sua profissão. Tampouco deve ficar tolhido no se

modo de vida habitual.

- Então estar detido não é tão ruim – disse K. e se aproximou do inspetor.

- Nunca afirmei o contrário – replicou este. (pág. 25)

Prof. Monir: Esta situação vai ficando mais estranha, ou mais normal?
Agora o sujeito, apesar de estar detido, pode trabalhar, não tem problema
nenhum. Vocês sabem que por causa do Kafka nasceu no mundo em todas
as línguas uma expressão, um adjetivo, que você aplica a situações que
são completamente absurdas. Então toda a vez que alguém disser assim
“estou vivendo uma situação kafkiana”, é porque está vivendo uma situação

40 Professor José Monir Nasser


estranha como essa, em que as coisas não parecem fazer nenhum sentido.
Tudo que a pessoa tinha de referência, desapareceu. Tudo é estranho e
completamente incompreensível, é isso que o Josef K. está vivendo aí. Não é
apenas esse livro que é assim, todos os outros são assim, exceto os primeiros
contos daquela coleção Betrachtung, que não são normais, não, mas são
mais convencionais. O resto é tudo assim. Continuamos.

Ao voltar para casa naquela noite, tendo se esquecido do compromisso marcado

com sua namorada Elsa, que trabalha num cabaré, conversa com a locatária, a

senhora Grubach. Pede desculpas pela confusão; ela diz estar tudo bem, mas

insinua que as razões da detenção podem estar ligadas a uma eventual relação

de K. com sua vizinha, cujos hábitos noturnos ela condena.

Prof. Monir: É, a vizinha é essa em cujo quarto a polícia andava, que é a tal
da Bürstner, que é uma secretária, mas que chega sempre muito tarde em
casa. E a Frau Grubach, que é a senhoria, diz para o K. que talvez ele tenha
sido pego por causa dela. Apesar de que ele e ela não são muito chegados,
ele não tem ligações muito próximas com a vizinha, o Josef K. No entanto, a
Frau Grubach imagina isso e faz insinuações um pouco comprometedoras
sobre a vida da moça, insinuando que a Frau Grubach é alguma espécie de
prostituta.

Josef K., que quase nunca fala com a vizinha, a interrompe: “A senhora está indo

por um caminho inteiramente errado – disse K. furioso e quase incapaz de escondê-

lo”. Vai para o quarto, mas não consegue dormir. Fuma um charuto e às onze e

meia, a senhorita Bürstner, uma datilógrafa, chega em casa. Josef, percebendo

os ruídos, vai falar com ela e relata-lhe os acontecimentos da manhã. Como o

quarto havia sido totalmente arrumado pela senhora Grubach, a datilógrafa não

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 41


parece interessada e responde com comentários vazios para se livrar dele. Uma

forte batida na porta do quarto ao lado os interrompe e Josef sai se desculpando,

não sem antes agarrá-la e beijá-la com grande atrevimento.

- Já vou – disse K.; correu para a frente, agarrou-a, beijou a na boca e depois

no rosto inteiro, como um animal sedento que passa a língua sobre a fonte

de água finalmente encontrada. (pág. 43)

Prof. Monir: E aqui há de se gastar um minuto com essa situação. Ele


chega em casa de noite e procura a vizinha para explicar que aquela invasão
no quarto dela tinha sido culpa dele, involuntariamente, mas ela não está
em casa. Então ele espera. A Frau Grubach não gosta da inquilina e sugere
que os problemas dele possam estar ligados a ela, apesar de que ele não
tem com a Bürstner nenhuma grande ligação. Quando ele a encontra, ela
se comporta de modo muito arredio, muito resistente a ele. E ela não liga
muito, porque aparentemente tudo está no lugar. Então tem um momento
em que ele é tomado por um desejo enorme por ela, ele mais ou menos a
agarra. E o Kafka diz que ele saciou o desejo de beijá-la tal como um “animal
que passa a língua na fonte de água finalmente encontrada”. Ou seja, ele
estaria vivendo uma situação de enorme carência.

Ele também não vai encontrar a namorada, logo no dia do aniversário


dele. Ele se esquece de ir ao compromisso que havia marcado com ela - a
namorada trabalha num cabaré, num café, num lugar de diversão noturna,
em que é garçonete.

E acaba o primeiro capítulo, que nos dá a impressão de que alguma coisa


muito estranha está acontecendo na vida de Josef K. De uma vida muito

42 Professor José Monir Nasser


tranquila, convencional, ele passou por uma experiência quase inexplicável,
em que é acusado de alguma coisa que ninguém lhe diz o que é. Tem a
sua casa invadida, é declarado detido, três pessoas do banco vêm junto,
logo a história toda é contada no banco (deve ser), e há uma situação
estranhíssima com a vizinha, que se agrava neste momento. Bom, esse é
o primeiro dia de Josef K., contado na história. Não parece um dia muito
comum, né? Parece um dia meio kafkiano, o dia em que vocês tiverem um
dia meio parecido vocês podem dizer que “hoje eu tive um dia kafkiano”,
que estará absolutamente legitimado o comentário. Vamos ao segundo dia,
capítulo segundo.

Capítulo Segundo
Primeiro Inquérito

Josef K. recebe ligação no escritório que o manda comparecer, sem dizer a hora,

à rápida audiência no domingo, dia que teria sido escolhido para não perturbá-

lo na sua vida profissional. Tentando adivinhar o horário do compromisso, ele

comparece ao endereço indicado num subúrbio pobre e descobre tratar-se

de um grande prédio residencial, sem placas que indicassem uma repartição

pública. Josef erra pelo prédio.

... brincando mentalmente com a lembrança de uma expressão do guarda

Willem, segundo a qual o tribunal é atraído pela culpa, de onde, na verdade,

se seguia que a sala de audiência deveria ficar na escada que K. escolhesse ao

acaso. (págs. 49-50)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 43


Prof. Monir: As coisas estão ficando mais estranhas. Então ele é convocado
a ir a uma audiência judicial, num determinado lugar, sem que ele saiba
o horário, domingo. Aí ele chega nesse endereço e encontra uma casa
residencial, uma espécie de prédio de apartamentos, e não há nenhuma
placa, nenhuma indicação de que ali funciona um tribunal. Ele não sabe
onde é o tribunal. No entanto, ele lembra que um dos guardas tinha dito
que o tribunal é atraído pelo crime. Então ele faz uma piada com ele
mesmo, que basta ele pegar a primeira escada, que o tribunal vai estar logo
à frente. Então a primeira audiência judicial é muito estranha. Ele está num
lugar muito estranho, numa hora muito estranha, num dia muito estranho,
tentando encontrar uma sala de audiências absolutamente invisível dentro
daquele prédio. Mas vamos ver se ele consegue.

Uma pequena mulher lavando roupas de criança finalmente indica o tribunal. A

corte está acomodada numa pequena sala superlotada com teto baixo, onde só

se consegue ficar em pé com as costas batendo no alto.

Prof. Monir: Isso é uma coisa normal? Que o teto seja tão baixo que só se
consiga ficar em pé curvado? Essa é a sala do tribunal onde o Josef vai dar
depoimento agora. Não parece estranho?

Há um magistrado baixinho, gordo e ofegante acomodado sobre um tablado

e uma audiência de homens vestidos de preto, idosos na maioria, de aparência

importante. Josef K. é censurado por ter chegado atrasado e lhe é perguntado

se é pintor de paredes.

Prof. Monir: Muito bem. Então não só ele é culpado de chegar atrasado a
uma audiência cuja hora ele não sabia, como o tribunal que o convoca não

44 Professor José Monir Nasser


sabe a profissão dele, pergunta se ele é pintor de paredes. Vamos ver como
ele responde.

Irritado, declara que é primeiro procurador de um grande banco. Aproveita para

declarar à audiência o quanto aquela corte é ridícula e confusa; diz que a coisa

toda é uma farsa, uma conspiração e que não viria mais a inquéritos.

Prof. Monir: O Josef K. a essa altura está muito irritado, e na hora então
que perguntam se ele é pintor de paredes ele resolve desafiar a corte. E faz
um discurso esculhambando aquele negócio. Vamos ver o que ele diz.

- Não há dúvida – disse K. em voz bem baixa, pois a escuta tensa de toda

a assembléia lhe dava prazer, emergia desse silêncio um sussurro mais

estimulante que o aplauso mais arrebatado -, não há dúvida de que por

trás de todas as manifestações deste tribunal, no meu caso por trás da

detenção e do inquérito de hoje, se encontra uma grande organização. Uma

organização que mobiliza não só os guardas corrompíveis, inspetores e juízes

de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de

qualquer modo, sustenta uma magistratura de grau elevado e superior, com

o seu séqüito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes

e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não recuo diante dessa palavra.

E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em

prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na

maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de

sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários?

É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito. É por isso que guardas

tentam roubar a roupa do corpo dos detidos, é por isso que inspetores

invadem casas alheias, é por isso que inocentes devem ser aviltados, ao invés

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 45


de inqueridos diante de assembléias inteiras. Os guardas só falaram em

depósitos, para os quais se leva a propriedade dos detidos; eu gostaria de ver

uma vez esses lugares, onde apodrecem os bens duramente conquistados

dos detidos, quando não são furtados por funcionários gatunos. (págs. 61-62)

Prof. Monir: E aí? A essa altura ele faz um discurso esculhambando


completamente a tal da corte. Não é isso que ele faz? Diz que aquilo é uma
farsa, uma piada, uma conspiração, um conjunto de gatunos e trapaceiros
que organizam aquilo. Ele não dá uma esculhambada? É uma coisa normal
que alguém faça isso? Vocês já viram alguém falar isso para um juiz? Não
deve ser muito comum que alguém faça um discurso desse tipo para um
juiz. No entanto, Josef K., irritado com aquela situação esquisita e maluca,
faz esse discurso.

Josef K. e a sessão são interrompidos por chiados produzidos por um homem

que havia puxado a lavadeira para dentro da sala, a levara para um canto e a

comprimia contra a parede. Na medida em que a cena começa a crescentemente

chamar a atenção, e a sessão se dissolve, K. abre caminho pela multidão e vai

embora, não sem antes ouvir do juiz de instrução postado à porta:

- Só queria chamar a sua atenção – disse o juiz – para o fato de que o senhor

hoje – isso ainda não deve ter chegado à sua consciência – se privou da

vantagem que um inquérito, de qualquer modo, representa para o detido.

K. riu, fitando a porta.

- Seus vagabundos – exclamou -, podem ficar com todos os seus inquéritos.

(pág. 64)

46 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Na hora em que o K. está indo embora, o juiz de instrução está
na porta, e fala assim: “Olha, o senhor acabou de dizer que não quer mais
prestar depoimento. Não sei se o senhor está percebendo, mas isso implica
perder algo que beneficia o acusado.” K. respondeu: “Não quero saber não,
fiquem com seus inquéritos, seus vagabundos.” É uma maneira normal de
fazer uma contestação? Quer dizer, vocês acham que esta situação parece
normal? Não parece muito normal, né? O K. é um sujeito, portanto, que é
pego em uma situação que ele não entende, uma situação esquisitíssima,
em que tudo parece fora do lugar, tudo parece estranho, nada parece
acontecer como se espera num procedimento de natureza judicial. Está
claro isso? O K. não entendeu nada... vocês entenderam alguma coisa?
Vocês muito menos ainda. Mas não é de fato para entender nada, pois se
trata agora de uma situação kafkiana, em que o absurdo da situação está
sendo proposto aqui pelo autor. Ele quer que nós fiquemos angustiados,
que nós nos sintamos como o Josef K., que quanto mais ele se envolve com
o assunto, pior as coisas vão ficando. Vamos ver o que acontece em seguida.

Capítulo Terceiro
Na sala de audiência vazia. O estudante. Os cartórios.

Arrependido, no domingo seguinte, K. decide voltar à corte para conversar com

o juiz de instrução, mas não acha ninguém, exceto a mesma mulher da semana

anterior.

Prof. Monir: Que é a lavadeira. Aquela que indicou a sala, depois entrou
na sala com outro e tirou a atenção.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 47


Não há pessoas na sala, mas o ambiente agora é uma residência com móveis

e utensílios domésticos. Ela explica que mora ali com o marido, mas desocupa

inteiramente a sala nos dias de audiência.

Prof. Monir: É uma coisa normal? Que agora tenham colocado móveis,
cama, sei lá, fogão, que tenha virado uma casa normal e que nos dias de
audiência tira-se tudo dali e coloca-se outra coisa no lugar? Eu imagino que
os fóruns às vezes têm um problema equivalente a esse... mas isso não se
espera que seja assim na justiça. É uma situação estranhíssima você voltar
àquele lugar e agora ser uma casa, não mais um tribunal.

Desculpa-se pela confusão da semana anterior e culpa Bertold, um estudante de

direito, que a tem perseguido apesar de ela ser casada com um oficial de justiça.

Imaginando tratar-se de livros técnicos, Joseph examina os livros deixados pelo

juiz sobre a mesa e conclui que ele tem gosto por literatura erótica. Um deles

chama-se Os tormentos que Grete teve de sofrer com seu marido Hans.

Prof. Monir: A história do João e Maria em alemão chama-se Grete und


Hans.

A lavadeira propõe se a ajudar, alegando ter grande influência sobre o juiz de

instrução, comentando que, depois da audiência, o magistrado havia escrito um

relatório sobre o caso dele e depois tinha vindo vê-la dormir junto do marido.

Seu prestígio seria tão grande que o juiz até lhe teria dado meias de seda. Ela

as mostra com orgulho, mas comenta desanimadamente que as meias seriam

inadequadas para ela.

48 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Isso é uma coisa normal? O magistrado escreveu um relatório
sobre a tal da audiência, depois foi vê-la dormir com o marido. O marido
não acordou, aqui não diz, mas é porque ele tem sono profundo. Além disso
o magistrado dá meias de presente pra ela. Vocês imaginam que essa é
uma situação que pode acontecer realmente? É tudo muito estranho, não
é mesmo?

A mulher oferece-se: “Se me levar, vou aonde quiser, pode fazer comigo o que quiser,

serei feliz se ficar o maior tempo possível longe daqui, de preferência para sempre”.

Neste momento, Bertold, o estudante, que havia entrado na sala e os observava

de longe, intervém. Bertold e Josef discutem.

- Não deveriam tê-lo deixado circular com tanta liberdade – disse o

estudante, como se quisesse dar à mulher uma explicação para as

palavras ofensivas de K. -, foi um erro. Eu disse isso ao juiz de instrução.

Precisavam no mínimo retê-lo no seu quarto entre os inquéritos. Às vezes

o juiz de instrução é incompreensível.

- Conversa inútil – disse K. e estendeu a mão para a mulher. – Venha.

- Ah, isso não – disse o estudante. – Com ela você não fica, não. (pág. 75)

O estudante a agarra e a leva embora, supostamente para o juiz de instrução. K.

os persegue pelo prédio, mas os perde de vista.

Sem saber o que fazer, Josef encontra um aviso de “Acesso aos cartórios dos

tribunais”. Enquanto medita sobre as diferenças nas precárias instalações daquele

lugar comparadas às confortáveis do banco, aparece o oficial de justiça, marido

da lavadeira, que o reconhece e reclama de Bertold estar perseguindo sua

mulher (apesar de ela o aceitar de bom grado, já que o estudante é alguém que

poderá ser juiz um dia) e como adoraria que K. desse uma lição no universitário.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 49


- Por que logo eu? – perguntou K. atônito.

- O senhor é um acusado – disse o oficial de justiça.

- Sim – disse K. – mas por isso mesmo deveria ter mais medo de que ele

influenciasse, se não o resultado do processo, pelo menos o sumário de culpa.

- Sem dúvida – disse o oficial de justiça, como se o ponto de vista de K. fosse tão

correto quanto o seu. – Mas, via de regra, entre nós não se movem processos

à toa. (pág. 80)

Prof. Monir: Vocês não acham assustador esse comentário: “Entre nós não
se movem processos à toa”? O que o marido da lavadeira quer dizer com
isso? Quer dizer que o K., na opinião dele, já está mesmo perdido, portanto
dar uma surra no estudante de direito não faria a menor diferença. “Não se
movem processos à toa” quer dizer que se se moveu um processo contra
ele, é porque ele está condenado. Agora, já que ele já está condenado, o
marido da lavadeira não acha nada de mal no K. ir lá e encher de bolacha
o Bertold, que ficava transando com a mulher dele. Não é uma coisa um
pouco preocupante, isso?

K. está tentando descobrir do que ele está sendo condenado ou pelo menos
acusado, e como ele consegue interferir sobre isso. E ele tá conseguindo
fazer isso? Não. Ele vai de novo no mesmo lugar da audiência, encontra uma
casa de família, aí encontra a mulher e ela é mais ou menos raptada pelo
Bertold. Este o agride e ele discute com o Bertold, depois ele encontra o
oficial de justiça, marido da mulher, que insinua que ele, Josef K., não tem
salvação, porque esse tribunal não abre nenhuma acusação sem que tenha
um bom respaldo jurídico. A situação desse cara não está ficando ruim?
Muito, né? Cada vez pior.

50 Professor José Monir Nasser


Ambos caminham conversando pelo labirinto de cartórios escuros no prédio.

No percurso dão com uma sala de espera onde homens esperam para receber

notícias de seus casos e se levantam respeitosamente quando os dois passam.

- Como eles devem estar humilhados.

- Sim – disse o oficial de justiça -, são acusados, todos os que o senhor está

vendo aqui são acusados. (pág. 82)

K. desvencilha-se do oficial de justiça e tenta sair imediatamente, mas se

perde. Vai ficando crescentemente indisposto com o peso do ar irrespirável

dos cartórios e começa a perder os sentidos, senta se e é atendido por uma

escriturária e por um encarregado das informações.

Mas a jovem foi a primeira a reconhecer que a base do comportamento de K.

era um ligeiro mal-estar; ela trouxe uma cadeira e perguntou:

- O senhor não quer se sentar?

K. sentou-se imediatamente e, para ter uma sustentação melhor, apoiou os

cotovelos no braço da cadeira.

- O senhor está com um pouco de tontura, não é? – perguntou a K.

Agora o rosto dela estava próximo a ele, mostrava a expressão severa que

algumas mulheres têm justamente na flor da juventude.

- Não se preocupe – disse ela -, aqui isso não é nada de extraordinário, quase

todos têm um acesso desses quando vêm para cá pela primeira vez. (pág. 87)

Josef é finalmente conduzido para fora do prédio, trêmulo e decidido a não

voltar mais.

Estava como que mareado. Acreditava encontrar-se num navio em mar

grosso. Para ele, era como se a água se precipitasse contra as paredes de

madeira, como se do fundo do corredor chegasse um estrondo de águas

dobrando sobre si mesmas, como se o corredor balançasse no sentido da

sua largura, e como se as partes interessadas subissem e descessem dos

dois lados. Por isso, tanto mais incompreensível parecia a tranqüilidade da

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 51


moça e do homem que o conduziam. Ele estava entregue aos dois, se eles o

largassem, cairia como uma tábua. Dos pequenos olhos de ambos partiam

de cá para lá olhares agudos; K. sentia as passadas regulares dos dois, sem

poder acompanhá-los, pois era arrastado quase passo a passo. Finalmente

notou que os dois falavam com ele, mas não os entendia, só ouvia o barulho

que preenchia tudo e através do qual, como uma sirene, um som alto e

imutável parecia retinir. (pág. 93)

Prof. Monir: E a situação do Josef é uma situação muito lamentável, ele


passou mal no cartório, ele sente-se tonto, ele não entende nada do que
está acontecendo, no entanto tudo aquilo está de fato acontecendo. E a
questão é saber o que acontecerá ainda nesse episódio em que o Josef K.
está sendo acusado de um crime que ele não tem a menor ideia do que se
trata, não sabe de nada sobre o crime e ele não consegue em nenhum lugar
nenhuma explicação e todo o mundo que fala com ele dá a impressão de
que ele está previamente condenado. A sensação de que ele não consegue
se defender e que ao tentar se defender ele apenas piora a situação, é a
situação, digamos assim, psicológica dominante na cabeça do nosso herói,
Josef K., o procurador do banco que no dia do seu aniversário é preso sem
nenhuma explicação.

Capítulo Quarto
A amiga da senhorita Bürstner (fragmento).

Prof. Monir: Esse pedaço do livro é apenas um fragmento, quer dizer,


é muito pequeno, um fragmento que ficou inacabado, e o Max Brod não
continuou. Então é um pedaço que tem uma importância menor na história
do que os outros.
52 Professor José Monir Nasser
Josef tenta falar com a senhorita Bürstner de novo, mas ela nunca está. O

procurador envia-lhe cartas que ela não responde. Certo dia, percebe ruídos no

quarto ao lado e descobre que a senhorita Montag, uma professora de francês

“frágil, pálida, que mancava um pouco”, estava se mudando do seu próprio quarto

para morar com a senhorita Bürstner.

Prof. Monir: Montag em alemão é segunda-feira.

Josef interroga a senhora Grubach, que lhe confirma a mudança. K. imagina uma

manobra para dificultar-lhe o acesso à vizinha e procura a senhorita Montag

que, na sala de refeições, não lhe explica a razão da mudança, mas lhe diz que a

senhorita Bürstner não quer falar com ele. A senhorita Montag parece esconder

alguma participação no assunto do capitão Lanz, sobrinho da senhora Grubach

que mora na casa. Josef K. medita no significado de tudo aquilo.

Prof. Monir: Ele não entende porque é que não consegue falar com a
vizinha. Desde aquele episódio da invasão e depois do beijo noturno, ele
não conseguiu mais falar com ela. Para ficar muito mais estranho ainda, a
senhorita Montag vai morar no quarto da vizinha. Na verdade, o significado
desse capítulo aí ficou muito misterioso porque ele seguramente poderia
ter tido um tamanho três, quatro vezes maior e o Kafka nunca terminou.
Então ele ajuda um pouquinho, mas é um capítulo um pouco misterioso na
história, o que nos remete para o capítulo quinto, O espancador.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 53


Capítulo Quinto
O espancador.

Certa noite, ao sair do banco, K. ouve gemidos atrás de uma porta que supunha

ser um quarto de despejo. Abre a porta e encontra Franz e Willem, os guardas

que o prenderam no dia de seu aniversário, sendo surrados com uma vara

por um homem vestido “numa espécie de roupa escura em couro, que deixava o

pescoço nu até o peito e os braços inteiramente à mostra”.

Prof. Monir: É uma coisa normal, isso? No banco? Você no banco abre
uma porta, assim, e tem lá os dois guardas que haviam te prendido sendo
surrados por um sujeito com roupas nitidamente de sadomasoquismo. No
banco onde você trabalha, numa sala de despejo?

O pequeno e baixo quarto está iluminado apenas por uma só vela.

Prof. Monir: Vocês repararam como cronicamente nessa história todos os


ambientes que são vivenciados aqui são ambientes escuros, mal iluminados,
e de teto baixo? Repararam que não dá pra ficar em pé em lugar nenhum? E
que o teto é sempre baixo e é sempre escuro, e sempre há uma iluminação
precária?

A dupla explica: “Senhor, devemos ser espancados porque se queixou de nós para

o juiz de instrução”. Franz e Willem pedem lhe que interceda por eles, contam os

seus problemas, mas o carrasco está obstinado em cumprir o seu dever. Josef

tenta suborná-lo, mas ele não aceita, com medo de ser denunciado também. Por

fim, tenta retirá-los do quarto, mas é impedido. Com a chegada de funcionários,

atraídos por um grito de Franz, K. sai do quarto, para impedir que os contínuos

54 Professor José Monir Nasser


ainda remanescentes no prédio o surpreendam negociando com aquela gente.

Como não consegue esquecer o episódio, no dia seguinte à mesma hora volta

ao quarto e dá com a mesma cena. Desta vez, bate a porta e grita para alguém

limpar o quarto.

Prof. Monir: É uma coisa normal isso? Vejam, ele presencia essa cena
completamente inusitada e originalíssima. No dia seguinte ele abre a porta
e está lá a mesma cena... só que dessa vez ele não se dá ao trabalho de falar
nada, ele simplesmente bate a porta, supondo que ele estava alucinando a
cena, que ele havia apenas imaginado aquilo, que nada daquilo era verdade,
de fato. E a situação do Josef K. vai ficando cada vez mais estranha. Porque
agora ele não sabe mais o que é verdade e o que não é, está em dúvida
sobre se ele está vivenciando uma coisa real ou não está. Existem muitas e
muitas interpretações das obras de Kafka. Como é uma obra muito original,
ela permite muita interpretação. Então há, certamente, interpretações aos
montes que lidam com essa situação do Josef K. de ele estar alucinando
alguma coisa. Trata-se de alguém que não sabe de fato que está vivendo
numa espécie de sonho. Vocês não tem essa sensação de que ele está
vivendo numa espécie de sonho? Mais para pesadelo... mas alguma coisa
meio incompreensível em termos lógicos.

Capítulo Sexto
O tio. Leni.

O tio e antigo tutor de Josef, Karl K. (ou Albert K.), um pequeno proprietário rural,

o visita no escritório. Avisado da situação de Josef por Erna, sua filha que morava

numa cidade próxima a Praga (a mesma onde morava a mãe de K.), veio do

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 55


interior, preocupado com o caso do sobrinho e se oferece para ajudá-lo.

- Josef – exclamou o tio querendo se desvencilhar dele para poder ficar parado,

mas K. não o deixou -, você está mudado, sempre teve uma capacidade

de compreensão tão correta, e logo agora ela o abandona? Quer perder o

processo? Sabe o que isso significa? Significa que vai ser simplesmente riscado

do mapa. E que todos os parentes também serão arrastados, ou pelo menos

humilhados até o chão. Josef, concentre-se. Sua indiferença me tira do sério.

Quando se olha para você, quase que se acredita no ditado: Ter um processo

desses já significa tê-lo perdido. (pág. 121)

Prof. Monir: E agora? O tio vem ajudá-lo, vem do interior, e diz assim: “Olha,
você precisa fazer alguma coisa, porque a sua situação é ruim”. O que é muito
estranho nessa situação é que o tio já soubesse de tudo, do mesmo modo
que a lavadeira já sabia de tudo. Já repararam num outro fato interessante
desta história, que todas as pessoas em volta já sabem que o Josef K. é
acusado? Mas nenhuma pessoa lhe diz nunca, em nenhum momento, do
que é que ele é acusado, nem por que é que ele está sendo processado
pela lei. E aqui, também, o tio aparece do interior com a convicção de que
ele está numa situação muito grave, muito embora ele não tenha a menor
ideia do porquê. E o tio diz assim pra ele: “Olha, há um ditado que diz que
ter um processo desses é absolutamente garantia de perder, porque esse
processo não se ganha”. E é a segunda profecia sinistra que é feita sobre o
assunto. A primeira foi do oficial de justiça, e a segunda agora é a do próprio
tio, que veio do interior, e que tem dois nomes. Ele é chamado de Karl ou
de Albert; nós não sabemos se é um engano do Kafka – é possível que seja,
pode ser que o Kafka tenha ficado em dúvida entre os dois nomes, - mas
também pode ser que seja mais um detalhe diabólico desta história, em
que o tio tem dois nomes e os nomes se alternam durante todo o tempo.
Continuamos.
56 Professor José Monir Nasser
Nos mesmos subúrbios onde ficam os cartórios, vão juntos visitar um velho

colega de escola do tio, o advogado Huld, que está muito doente, mas que

conheceria bem o caso de Josef. Após alguma demora à porta, são conduzidos,

à luz de vela, ao quarto do causídico por Leni, uma jovem enfermeira.

Prof. Monir: Um causídico é um advogado. Então eles chegam lá no prédio


onde mora o advogado, no mesmo bairro onde está o tribunal que ele vai
pela primeira vez, e a Leni conduz os dois, o tio e o sobrinho, até o quarto do
advogado, guiando-os por luz de vela. Mais uma vez estamos vendo aí uma
situação em que não há luz, a escuridão predominando.

Huld, que fez carreira defendendo os pobres, está na cama e começa a conversa

dizendo conhecer o caso de K. porque, sendo advogado, recebe frequentemente

a visita de “bons amigos do tribunal”, como naquele momento.

E apontou para um canto escuro do quarto.

- Mas onde? – perguntou K., quase grosseiro, no primeiro momento de

surpresa.

Inseguro, olhou em volta; a luz da pequena vela nem de longe chegava a

penetrar até a parede do outro lado. E de fato algo lá no canto começou a

se mexer. À luz da vela, que o tio agora segurava alto, via-se ali, junto a uma

pequena mesa, um senhor idoso sentado. Certamente, ele não tinha nem

respirado para ficar tanto tempo sem ser percebido. Levantou-se, então, com

cerimônia, obviamente insatisfeito com o fato de lhe dirigirem a atenção.

Era como se quisesse repelir com as mãos, que ele movimentava como asas

curtas, todas as apresentações e cumprimentos; como se de alguma forma

quisesse perturbar os outros com a sua presença e pedisse urgentemente que

o mandassem de novo para o escuro e o esquecessem. Agora porém não

podiam mais lhe conceder isso. (pág. 130)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 57


Prof. Monir: Como é que o advogado, que ele nunca viu na vida, sabia
do caso dele? Porque o advogado diz que ele tem o costume de receber
visitas de pessoas importantes dos tribunais, como por exemplo naquele
momento. Os dois não tinham percebido que ali na sala estava lá sentado
um senhor de idade, que era um juiz do tribunal, e esse juiz então entra na
conversa. Qual é a parte do quarto em que ele está? O juiz de instrução está
sentado na parte escura, a qual não se pode ver. Vamos ver o que acontece
a seguir.

Huld, Karl e o chefe do cartório conversam, mas a mente de Josef está fixada em

Leni, a enfermeira que lhes havia aberto a porta. No meio da conversa, há ruído

de louça quebrando na antessala e K. sai para investigar, descobrindo que Leni

só queria ficar sozinha com ele: “...só atirei um prato contra a parede para fazê-lo

sair”. Ela quer que ele goste dela, mas ele está mais interessado no seu próprio

caso. Por exemplo, há na parede um retrato de um juiz. Será este o seu juiz?

Não, explica Leni, trata-se apenas de um juiz de instrução querendo parecer

importante. Na verdade, tratava-se de um anão. Leni o aconselha a confessar e

não ser tão inflexível.

- Quem disse isso? – perguntou K., sentindo o corpo dela no seu peito e

olhando de cima o seu cabelo abundante, escuro, firmemente trançado.

- Revelaria coisas demais se o dissesse – respondeu Leni. Por favor, não

pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra

esse tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão. Na

próxima oportunidade, faça essa confissão. Só aí existe a possibilidade de

escapar – só aí. No entanto, mesmo isso não é possível sem ajuda externa, mas

não precisa se angustiar por causa dessa ajuda, eu mesma vou providenciá-

la. (pág. 135)

58 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: A Leni, que é uma espécie de enfermeira, quebra um prato
para obrigá-lo a sair do quarto. Há uma relação de paquera entre os dois,
e ela diz assim pra ele: “Olha, você não entendeu ainda que contra esse
tribunal não é possível defesa; a única chance que você tem de se salvar é se
você confessar a culpa”. Mas o K. não confessa a culpa por quê? Ele não tem
a menor ideia do que ele é acusado, então ele não pode confessar a culpa
de um crime que ele não sabe qual é. No entanto, é a terceira pessoa que
aparece e que lhe diz que o caso dele é completamente perdido e que ele irá
perder a causa a não ser que ele confesse, que da próxima vez ele que seja
menos inflexível e que confesse a culpa. E mesmo assim, talvez não dê, ela
talvez tenha que ajudá-lo.

Quantas mulheres já tentaram ajudar o Josef K.? Basicamente três, né? A


primeira foi a Frau Grubach, que tenta ajudá-lo apontando que o mal, o
problema que ele tem é a relação com a Bürstner, que deve estar aí a causa.
Portanto ela está tentando ver se ele percebe do que ele é culpado. A
segunda mulher que o aconselha e que tenta ajudá-lo, quem é? É a lavadeira.
Ela diz: “Olha, eu sou amiga do juiz, ele me dá meias, de vez em quando o
Bertold me leva para ele”. Pressupõe-se que a lavadeira seja amante do juiz
de instrução, portanto a segunda mulher que tenta ajudá-lo é a lavadeira
(cujo nome nós não sabemos e nunca saberemos), que diz que é amiga da
justiça. E a terceira é essa que diz que ele tem que confessar porque não
há salvação nenhuma, e mesmo assim é preciso ajuda externa que ela vai
tentar conseguir. É uma situação normal essa? Não é, né?

Ela quer saber tudo sobre Elsa, a namorada de K., e ele lhe mostra uma fotografia.

Leni pergunta se ele não gostaria de trocar a garçonete por uma namorada

melhor e pergunta-lhe se Elsa teria algum defeito físico como ela, mostrando-

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 59


lhe os dedos unidos por uma membrana. Josef olha a mão e a beija. Ela o puxa

para o chão e eles transam. Leni lhe dá uma cópia da chave da casa, dizendo-lhe

que viesse quando quisesse. Na saída da casa do advogado, K. reencontra seu

tio que o repreende por ficar farreando com a óbvia amante do advogado, no

lugar de se dedicar ao seu caso.

- Jovem – bradou ele -, como pôde fazer isso? Você prejudicou terrivelmente

sua causa, que estava no bom caminho. Esconde se sorrateiramente com

uma coisinha suja, que além do mais é certamente amante do advogado, e

fica fora durante horas. Nem mesmo procura um pretexto, não oculta nada,

não, age abertamente, corre para ela e permanece com ela. E enquanto isso,

ficamos sentados o tio, que se esforça por você, o advogado, que deve ser

conquistado para a sua causa, e sobretudo o chefe de cartório, esse grande

senhor, que domina diretamente o seu caso na fase em que ele se encontra.

(págs. 138-139)

Prof. Monir: Então, quando finalmente ele larga lá a Leni, saindo encontra
o tio que vinha do quarto do advogado Huld, e o tio fala: “Você é louco?
Como é que você faz uma coisa dessas? Vai lá transar com a mulher enquanto
eu estava lá no quarto com o advogado, que tem de estar do seu lado, mais
o chefe de cartório, que é o sujeito que manipula os documentos do seu
caso, como é que você faz uma coisa dessas?” E a vida do nosso amigo Josef
K. não fica muito melhor nesse episódio.

************
INTERVALO
************

60 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Então pessoal, eu queria perguntar para vocês, considerando
o que vocês já sabem da história - vocês acham que o Josef K. é
verdadeiramente culpado, ou não?

Eu sei que vocês não têm elementos porque a história não nos conta nada,
mas vamos ver pela intuição. Levantem a mão as pessoas que acham por
intuição que o Josef K. é culpado. E quantos acham que ele é inocente? Há
alguns que não votaram. Não vou nem me dar ao trabalho de somar os
votos... Todas as vezes que eu somei votos na vida, sempre deu uns quatro
ou cinco votos a mais ou a menos. De modo geral dá a mais, né? Então
eu sei que a gente não sabe isso ainda, mas se vocês estivessem lendo o
romance propriamente dito, a essa altura vocês já teriam uma ideia, alguma
impressão sobre a culpabilidade do Josef K. Então nós sabemos que ele é
acusado de alguma coisa grave e ele não sabe o que é.

Aluna: Como você sabe que é grave?

Prof. Monir: Porque todo o mundo acha que é. O discurso do tio, de que a
família será arrasada - não apenas ele prejudicado, mas a família arrasada. A
sensação que devemos ter desta história é que o mal que este Josef K. teria
cometido é um mal muito grave e sério, e esse mal nós não sabemos qual
é. No entanto, no fundo da história, como pano de fundo, há a indução de
que há alguma coisa séria acontecendo, muito embora nós não saibamos o
que seja. E pior do que isso, todas as situações que o Josef K. vive, ou quase
todas, são estranhíssimas. O que há de constante nisso? Há a estranheza
das situações, segundo, há uma escuridão permanente - tudo é escuro o
tempo todo. E a única luz que existe nunca é a luz do sol, mas é a luz de
alguma vela que é usada para iluminar o ambiente – velas essas que estão

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 61


presentes na casa do advogado, na sala de despejo onde há a cena do
espancamento; a vela também está presente no tribunal, nos cartórios -,
portanto há uma constante na história que é a escuridão dos ambientes,
a iluminação precária em torno de velas. Esse é um romance que um
especialista de literatura diria que se trata de um romance noturno. Existem
romances noturnos e romances diurnos. Esse é um romance noturno, tudo é
muito escuro, penumbroso, tudo é muito sombrio. Um romance como esse
só pode ser filmado no cinema em preto e branco. Ou vocês imaginam essa
história contada em cores? Não dá, né? Um romance como esse teria de ser
contado em preto e branco, necessariamente. Alguém tem alguma dúvida
até agora?

Aluno: Aluno pergunta sobre a relação dele com as mulheres que querem ajudá-lo.

Prof. Monir: Ele é um sujeito ligado a mulheres, né? Então, ele tem uma
namorada, e esse namoro é, digamos assim, meio ousado. Segundo, ele tá
interessado na vizinha, a senhorita Bürstner, embora ela seja inacessível. A
senhora Grubach gosta muito dele, talvez não esteja muito claro isso no
resumo, mas ela gosta muito dele. E o tal do episódio da prisão tornou a
senhora Grubach mais próxima dele e ao mesmo tempo tornou a tal da
senhorita Bürstner mais distante. Ele entra no primeiro recinto do tribunal e
é automaticamente ajudado por uma mulher, que é a lavadeira, que o ajuda
porque gosta dele. Não só gosta dele como lhe oferece o que ele quiser –
“Vem comigo, eu sou sua”. Não é isso? Até que o Bertrand acaba nisso. E
a Leni joga um prato na parede para atraí-lo para fora. Ele não tem uma
atratividade alta para as mulheres? Tem, né? Ele é um homem com poder
de sedução das mulheres... não há dúvida. O único fracasso que ele tem até
agora é a senhorita Bürstner, mas o resto, tudo deu certo. Essa situação de

62 Professor José Monir Nasser


sedução sistemática que ele faz, no entanto, não compensa o fato de que
por outro lado a existência dele vai se tornando cada vez mais extrema; ele
está numa situação em que ele não sabe o que está acontecendo com ele e
começam a aparecer opiniões extremamente desfavoráveis e pessimistas. É
como se você estivesse com uma doença qualquer e todo o mundo que você
encontra falasse para você assim: “Ih, puxa, meu tio morreu disso...”. “Ih, meu
Deus, não tem jeito nenhum”... É isso que eu queria que vocês percebessem
até agora. Se por um lado ele é atrativo para as mulheres, de outro ele é um
sujeito cuja situação piora a olhos vistos, os envolvidos em situações como
essa dizem para ele concretamente que ele é um condenado, que ele não
tem solução nenhuma, que ele não vai escapar dessa situação. Continuamos.

Capítulo Sétimo
O advogado. O industrial. O pintor.

K. está agora completamente obcecado com o seu caso que já dura seis meses.

Ocasionalmente reúne-se com o advogado Huld que lhe diz estar fazendo tudo

o que pode, mas que as coisas têm de ir devagar. Alega ser preciso preparar

muito bem a petição inicial, porque dela depende o rumo de todo o processo

e, além disso, considerar que “a defesa, na verdade, não é realmente admitida pela

lei, apenas tolerada, e há controvérsia até mesmo em torno da pertinência de deduzir

essa tolerância a partir das respectivas passagens da lei”.

Prof. Monir: Nunca percam de vista o fato de que o Kafka é advogado. Ele
domina este linguajar jurídico. E aqui o advogado dele, o Huld, está dizendo
a ele que o tribunal não permite nenhuma espécie de defesa. A defesa não
é um direito do acusado. A defesa é uma tentativa que o acusado faz de se

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 63


defender, mas que não tem nenhuma espécie de valor de fato, porque a
defesa é apenas tolerada, e não admitida. Vocês entenderam isso? Imagine
que você fosse acusado de um crime - então você não tem o direito de
constituir um advogado que vai lá dizer para um juiz a sua versão do crime
de que o acusam. Aqui, nesse caso, o que o advogado dele está dizendo é
que é difícil mesmo conseguir qualquer coisa porque o tribunal não aceita
defesa, a defesa é tolerada, a gente pode mandar lá, talvez dê certo, não se
pode garantir que o tribunal irá aceitar a defesa do K., e é por essa razão que
não há muito o que se fazer. E quanto mais o K. tenta resolver o problema,
mais vai parecendo que o problema é insolúvel.

Aluna: [Quer saber por que o K. não pergunta para o advogado do que está sendo
acusado.]

Prof. Monir: O advogado nunca lhe diz nada. O que tem seis meses é o
processo do K., não a relação com o advogado. O advogado parece aos
olhos do Joseph K. um sujeito completamente incompetente que não faz
nada. Um sujeito inerte. Mas o advogado vai explicar porque que isso é
apenas uma aparência. Já vamos chegar lá.

Aluno: [Pergunta se o livro não é uma crítica ao sistema burocrático.]

Prof. Monir: No mundo contemporâneo, que é um mundo muito


preocupado com questões políticas, a tendência predominante de
interpretação de O Processo é que é um libelo, é uma declaração de guerra
contra a burocracia, o poder do Estado, essas situações que você vivencia
e que você não controla. Por exemplo, eu tenho uma diarista que veio me
contar que foi à receita federal e a receita federal disse que ela não existe.

64 Professor José Monir Nasser


E eu disse: “Como assim, você não existe?” E ela disse: “É, uma pessoa que
tem o meu nome, que é filha do meu pai e da minha mãe, nascida em tal
dia, morreu. E que eu, portanto, não existo mais” – essa é uma situação
tipicamente kafkiana. Há também quem ache que a obra é uma crítica à
burocracia moderna - àquele negócio de ficar ligando para a companhia
telefônica e o sujeito não te atender, e ficarem te jogando de um sujeito para
o outro – tudo isso estaria sendo criticado aqui. Mas essa é a interpretação
comum hoje em dia porque ela atende a uma situação de época. Acho até
que nós podemos aceitá la como uma das possíveis interpretações. O Jorge
Luís Borges, aquele escritor argentino, interpreta tudo que o Kafka escreveu
sob o prisma do judaísmo, que o Kafka é um judeu que não quer ser judeu,
mas também não consegue ser cristão. E a culpa que ele sente é a culpa
judaica. Há intérpretes que têm uma base psicanalítica que interpretam a
obra do Kafka como uma rebelião contra o pai dele, e há diversas escolas
de interpretação. Como é uma obra muito original, permite todo o tipo de
interpretação. Mas há uma interpretação que eu gostaria que depois vocês
me ajudassem a fazer aqui, nós vamos fazer juntos, que eu acho que é mais
ampla e mais capaz de nos dar verdadeiramente uma ideia do sentido desta
história. Mas voltaremos a esse ponto. Bom, agora ele está aqui tentando
cobrar o advogado que não faz nada.

Na verdade, advogados em geral, frente ao tribunal, são tratados como rábulas:

Prof. Monir: Vocês sabem o que é rábula? Rábula é o sujeito que, embora
não tenha curso de Direito, tem conhecimento de Direito. É a mesma coisa
que o dentista prático, que é o sujeito que não tem formação odontológica,
mas que sabe tratar da sua boca. É como a parteira em relação ao obstetra,
entenderam? A parteira não tem formação médica, mas consegue fazer

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 65


um parto. Provavelmente não tão bem quanto o médico, mas foi durante
muito tempo a única solução. Então o rábula é um advogado sem formação,
sem curso superior, um advogado que não tem o título oficialmente, mas
que é aceito às vezes nas cortes. Hoje não se aceita mais, mas já se aceitou
no Brasil, quando não havia advogados em quantidade suficiente, que ele
representasse alguém, uma espécie de advogado prático. O advogado vai
dizer que advogados em frente a esse tribunal não têm valor nenhum,
que é absolutamente inútil o advogado na prática. Porque o tribunal não
aceita contestação, então para que tem advogado? Entenderam? Não é uma
situação estranhíssima essa? Mas é o que ele tá vivendo aqui agora. E agora
o advogado vai contar como são tratados os rábulas.

Naturalmente isso produz um efeito muito degradante sobre toda a categoria,

e se proximamente K. for aos cartórios do tribunal, pode dar uma olhada na sala

dos advogados, simplesmente para tê-la visto. É provável que ficará assustado

diante das pessoas que estão ali reunidas. O próprio cômodo, estreito e baixo,

destinado a eles, mostra o desprezo que o tribunal tem por essas pessoas. A luz

só chega por uma pequena lucarna, colocada tão alto que, se alguém quiser

olhar para fora – aliás recebendo no nariz a fuligem de uma chaminé instalada

bem em frente e sujando o rosto de preto – precisa primeiro procurar um colega

que o carregue nas costas.

Prof. Monir: Você consegue imaginar uma situação dessas? Quer dizer, no

tribunal a sala dos advogados é um lugar que só dá pra ver luz se um subir
nas costas do outro. Então imaginem a situação...

No chão desse cubículo – para citar apenas mais um exemplo desse estado

de coisas – existe, já faz mais de um ano, um buraco, não tão grande que

66 Professor José Monir Nasser


um homem pudesse cair por ele, mas o suficiente para que nele afunde por

completo uma perna. A sala dos advogados está situada no segundo sótão;

se portanto alguém afunda, a perna fica pendurada no primeiro, ou seja,

justamente no corredor onde as partes interessadas esperam. (pág. 143)

Prof. Monir: Onde está aquela turma de acusados, desesperada, como o


K., aí você olha pra cima e a perna do seu advogado está pendurada no
alto... essa é a situação dos advogados nesse tribunal. [risos] Esse tribunal, na
verdade, não admite defesa nenhuma. Não é pra você se defender de coisa
nenhuma nesse tribunal.

Huld explica que é preciso compreender como as coisas funcionam de verdade

e também saber quem “mexe os pauzinhos”. Sem isso, o caso estaria perdido.

K. não consegue entender bem o que ele quer dizer e vai ficando impaciente.

Está sobretudo incomodado com o fato de o advogado não lhe perguntar nada

concretamente. Como nada está acontecendo, julga que o advogado não está

trabalhando e decide fazer mais por conta própria.

Prof. Monir: Ele não confia no advogado, porque não o vê fazer nada, nem
perguntas ele faz. Uma vez eu fui no alfaiate mandar fazer um terno, aí eu
falei assim: “Eu queria fazer um terno”, e ele: “Ah, tá bom”. Comecei então a
explicar como eu queria. E ele: “Não, não, eu entendi”. Aí eu falei assim: “O
senhor não vai tirar a medida?” E ele: “Não, não, pode deixar que eu sei”.
Eu saí muito preocupado do alfaiate naquele dia... porque, entendeu, é a
mesma atitude. Um sujeito que não te pergunta nada e é seu advogado...
ele não tá fazendo nada! Tem alguma coisa estranha nisso. Ele então resolve
fazer coisas por conta dele, independente do tal do advogado, que por
outro lado é o advogado que conhece o caso dele e, mais do que isso, é o

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 67


advogado que é amigo do chefe do cartório, então é o advogado que exerce
a maior influência sobre a situação dele naquele estágio do processo.

No trabalho, Josef K. sente-se crescentemente “ameaçado” pelo diretor adjunto

e pela imprevisibilidade de sua situação (“que obstáculo tinha sido lançado de

repente na carreira de K.!”).

Prof Monir: Quer dizer, aquela vida que você tinha, dos seus trinta anos,
em que você já era procurador, e em que havia perspectivas de se tornar
importante no banco, de repente está praticamente inviabilizada pelo fato
de que você é réu de um processo. Com relação ao K. todos se assustam,
sem exceção; o veem com muito pessimismo. Você tá sempre só pensando
no seu processo, e lá onde você tá trabalhando já tem alguém querendo
ficar com seus clientes. O diretor adjunto, que já sentiu o cheiro de carniça
na história, está preparado para ficar com os melhores despojos... Vamos ver
então o que acontece.

Um dos seus clientes, um industrial, diz conhecer seu caso (“Há tanta gente ligada

ao tribunal”) e lhe indica o pintor Titorelli, que ganha a vida fazendo retratos de

juízes, como alguém que pode ajudá-lo;

Prof. Monir: Aí aparece mais um sujeito que não poderia ter nada a ver
com isso e que, no entanto, sabe do caso dele. Que é esse cliente.

entrega lhe uma carta de apresentação. Josef K. decide visitar o pintor

imediatamente, apesar de desconfiar que o diretor adjunto esteja louco para

ficar com os clientes dele que esperam na ante-sala: “Como o diretor adjunto

sabia se apropriar de tudo o que K. agora tinha forçosamente de renunciar”.

68 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: E essa expressão aqui é muito interessante no contexto do
livro: “como o diretor adjunto sabia se apropriar de tudo aquilo que K. agora
tinha forçosamente de renunciar”. A carreira, o sucesso empresarial, o sucesso
profissional. Aconteceu, portanto, na vida de Josef K. uma reviravolta
total. Ele agora só consegue pensar em se defender de uma situação que
crescentemente vai ficando mais negativa. Então vamos ver. Vocês acham
que ele vai procurar o pintor? Vai procurar o pintor correndo...

Dirigindo se na direção oposta à dos cartórios, encontra o pintor num decrépito,

abafado e minúsculo ateliê, cercado por um bando de meninas que querem

saber por que K. está ali. Titorelli o recebe expulsando as meninas e reclamando:

“Ah, as canalhinhas”. No cavalete, Josef observa mais um quadro de um juiz.

Quem é ele?

- É a Justiça – disse finalmente o pintor.

- Agora já a reconheço – disse K. – Aqui está a venda nos olhos e aqui a

balança. Mas com asas nos calcanhares e em plena corrida?

- Sim – disse o pintor -, tive de pintar assim por encomenda; na verdade é a

Justiça e a deusa da Vitória ao mesmo tempo.

Alguém encomendou um quadro em que a justiça e a deusa da vitória são


a mesma coisa!

- Não é uma boa vinculação – disse K. sorrindo. – A Justiça precisa estar em

repouso, senão a balança oscila e não é possível um veredicto justo.

- Eu me submeto ao meu cliente – disse o pintor.

- Não há dúvida – disse K., que não queria melindrar ninguém com a sua

observação. – O senhor pintou a figura como ela realmente fica no trono?

- Não – disse o pintor. – Não vi a figura nem o trono, tudo é invenção, mas me

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 69


indicaram o que eu tenho de pintar.

- Como? – perguntou K.; agiu premeditadamente como se não compreendesse

bem o pintor. – Não é de fato um juiz que está sentado na cadeira?

- Sim – disse o pintor. – Mas não é um alto magistrado, e nunca esteve sentado

numa poltrona assim.

- E faz-se pintar numa postura tão solene? Está sentado aí como um

presidente de tribunal.

- Sim, esses senhores são vaidosos. (págs. 177-178)

Prof. Monir: Então tem aí uma conversa estranhíssima entre o Josef K. e


o pintor, um sujeito que ganha a vida pintando quadros de magistrados. E
esse pintor então mora num lugar pequeno, abafado e irrespirável, como
aliás são todos os outros lugares que já apareceram, exceto o banco e a
casa do Josef K., que não parece ser pequena. Mas no resto, todos os outros
ambientes, sem exceção, são ambientes praticamente irrespiráveis. Esse
aqui, então... (o resumo não honra a descrição original) - a descrição original
do Kafka, do ambiente do pintor é insuportável, você tem que abrir a janela
da sua casa pra começar a se sentir melhor. Embora seja inverno, é um lugar
tão quente, tão irrespirável, com um ar tão viciado que não é possível viver
naquele cubículo, e o Josef K. está aqui agora tentando obter informações
do pintor sobre o tribunal e ao mesmo tempo louco para ir embora porque
ele não aguenta mais aquele ambiente, não é isso? Continuamos.

Josef e Titorelli começam a conversar sobre o caso, interrompidos às

vezes pelas meninas que perguntam, do lado de fora, se K. já havia ido

embora. “Sou completamente inocente”, afirma. “Bom”, diz Titorelli.

- Se o senhor é inocente, então o caso é muito simples.

O olhar de K. se turvou, aquele suposto homem de confiança do tribunal

70 Professor José Monir Nasser


falava como uma criança insciente.

- Minha inocência não simplifica o caso – disse K. Apesar de tudo, teve de

sorrir e sacudiu a cabeça devagar.

- Depende de muitas coisas sutis, nas quais o tribunal se perde. Mas no final

emerge, de alguma parte onde originariamente não existia nada, uma

grande culpa. (pág. 181)

Prof. Monir: E agora? Quer dizer, o Titorelli tá dizendo pra ele que, no final
das contas, mesmo aqueles que são aparentemente inocentes percebem-
se com uma grande culpa. Vocês acham que o Josef K. é culpado? Alguém
agora já acha que o Josef K. é culpado? Nós tivemos zero votos na primeira
enquete aqui. E agora? Alguém acha que ele é culpado de verdade? [pausa]
Já temos dois. Uma grande melhora nessa votação, porque fomos de zero a
duas pessoas. De fato, o Josef K. é considerado culpado por todo o mundo
que está em volta dele, todo o mundo sabe qual é o caso dele, todos os
consideram culpado, e ele ainda não. Ele acha que é totalmente inocente e
não acha que seja culpado de modo nenhum.

Aluno: Tem alguns momentos em que ele se considera até culpado?

Prof. Monir: Não, ainda não. Até esse ponto ele não se considera culpado.
Mas vamos ver, tá? Vamos ver se ele vai de fato em algum momento da
história mudar a sua opinião sobre a própria culpa.

Josef K. pede uma ajuda porque a esta altura já sabe que só com dificuldade o

tribunal pode ser dissuadido de suas convicções.

Prof. Monir: É. Ele acha que está já condenado, porque todos lhe dizem

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 71


isso. Não quer dizer que ele se ache culpado; ele acha apenas que o tribunal
já tomou a decisão no caso dele e tá tentando salvar a sua situação lá com o
Titorelli, que conhece todos os juízes, porque afinal ele pinta todos os juízes.

Titorelli lhe diz que a corte não pode ser dissuadida de modo nenhum e que

possui tudo, incluindo as meninas lá fora: “Tudo pertence ao tribunal”. Na verdade,

o tribunal é inacessível às provas que lhe são apresentadas, mas não às provas

apresentadas fora dele, como naquele ateliê, e por isso Titorelli pode ajudar.

Prof. Monir: Então, Titorelli diz pra ele: “Olha, não tem jeito. Uma vez que
o tribunal tomou a decisão, tá tomada, ele não volta atrás. Ele já é dono
de tudo! Essas meninas, por exemplo, são todas do tribunal, pertencem a
ele. Então não é possível contestar as decisões do tribunal... embora, em
ambientes externos ao tribunal, como aqui nesse ateliê, talvez eu possa
fazer alguma coisa por você”. E vamos ver o que é que o Titorelli quer fazer
pelo Josef K.

- Esqueci de lhe perguntar primeiro que tipo de libertação deseja. Existem

três possibilidades, ou seja, a absolvição real, a absolvição aparente e o

processo arrastado. Naturalmente o melhor é a absolvição real, só que não

tenho a mínima influência sobre esse tipo de solução. Na minha opinião,

não existe nenhuma pessoa que pudesse ter influência sobre a absolvição

real. Provavelmente, aqui decide apenas a inocência do acusado. Uma vez

que o senhor é inocente, seria de fato possível que confiasse apenas na sua

inocência. Mas aí já não precisa de mim nem de qualquer outra ajuda. (págs.

185-186)

72 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Se o Josef K. de fato é inocente, conforme ele declara. O
Titorelli não sabe se ele é inocente, ao contrário, ele também pensa que o K.
é culpado. Mas se não é possível fazer a absolvição real (seria a única situação
em que ele podia de fato se livrar da acusação, se ele fosse inocente), já que
não pode ser assim, quais são as duas soluções que restam? A absolvição
aparente ou o processo arrastado. E o que é uma absolvição aparente? É
assim: ele é inocentado, mas não é de verdade. Ele aí sofre um segundo
processo, é detido pela segunda vez, e sofre eventualmente uma segunda
absolvição, mas daí também ele sofrerá um terceiro processo... E o que é o
processo arrastado? É aquele processo que nunca é resolvido, que fica anos
e anos a fio. Portanto o Titorelli está dizendo pra ele que se ele é inocente,
então tá bom, não tem problema nenhum. Mas se ele não é (como o pintor
pensa que ele não é), então só é possível escolher entre novas condenações
ou então um processo arrastado. É isso que o Titorelli quer fazer para ajudar.
Vamos ver.

Titorelli lhe explica que não há absolvição definitiva, pelo menos ele nunca

soube de uma. Absolvições aparentes são possíveis, mas não garantem proteção

contra uma segunda detenção, um segundo julgamento e nova aparente

absolvição e assim por diante. Por isso mesmo elas são aparentes.

Após receber ensinamentos sobre o funcionamento da corte, e não suportando

mais o ar carregado e quase irrespirável do ateliê, K. prepara-se para sair. Antes

Titorelli o convence a comprar algumas paisagens, justamente aquelas “de

aspecto sombrio”. Para evitar o assédio das meninas, Josef sai pela porta dos

fundos, que só consegue acessar equilibrando-se em cima da cama do pintor e,

ao chegar ao outro lado, adentra um cartório do tribunal.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 73


Prof. Monir: Parece uma coisa normal, isso? Quer dizer, tem uma porta
que fica atrás da cama. Então ele pega os quadros que o Titorelli vendeu pra
ele, sobe em cima da cama – é uma daquelas camas moles, que você fica
daquele jeito, tentando não cair, se desequilibrando em cima da cama -, e aí
consegue abrir a porta e do outro lado, quando ele sai, tem um cartório de
tribunal do lado da casa do Titorelli. Não é um pouco estranho? Levemente
estranho.

Ante o espanto do procurador, Titorelli comenta: “Não sabia que aqui há cartórios?

Eles estão em quase todos os sótãos, por que deveriam faltar logo aqui? O meu ateliê

também faz parte dos cartórios, mas o tribunal colocou o à minha disposição”.

K. havia se espantado não com o cartório em si, mas com o fato de estar sendo

sempre surpreendido. Cambaleando de mal estar, assediado pelas meninas que

haviam dado a volta, Josef encontra a saída com dificuldades e toma um táxi,

livrando-se do oficial de justiça que o ajudava a carregar os quadros a pedido de

Titorelli. Volta para o banco e esconde os quadros na gaveta da mesa.

Prof. Monir: É, o oficial de justiça queria entrar no táxi com ele, e ele
expulsa o oficial de justiça do táxi (faltou escrever isso aqui). Então dessa
experiência com o Titorelli ele volta com mais um testemunho de que não
tem muito jeito, de que a situação dele vai muito mal mesmo, e ele então
pega os quadros e volta para o banco, de onde tinha vindo... lembram? Ele
só vai visitar o Titorelli porque aquele cliente o avisa de que ele poderia ter
alguma esperança no Titorelli. Nesse momento a esperança do Joseph K.
aumentou ou diminuiu?

Alunos: Diminuiu.

74 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Porque o Titorelli não resolveu de fato, apenas disse a ele que
não há absolvição possível. Portanto, vindo de quem vem, de um sujeito
experiente nesses casos, parece uma má notícia, não parece? Parece, né.
Nesse momento o Josef K. parece culpado pra vocês ou não? [pausa]
Quantos acham nesse momento que o Josef K. é realmente culpado? Três!
Aumentamos uma pessoa. Um voto a mais pela culpa do Josef K. Muito
bem, agora ele vai resolver a sua preocupação, vai atender o seu pedido e
dar um jeito no seu advogado, que não faz nada. Vamos ver o que acontece.

Capítulo Oitavo
O comerciante Block. Dispensa do advogado. (inacabado)

Prof. Monir: Esse capítulo também está inacabado, tá?

K. está impaciente com o advogado Huld e decide descontratá-lo. Vai à casa

dele comunicar-lhe a decisão. Ao chegar, surpreende Leni de camisola com um

“homem pequeno e seco, de barba cheia, que segurava uma vela”.

Prof. Monir: É, segurava uma vela por quê? Porque ali naquela casa, assim
como em todas as outras, não há nenhuma luz a não ser a das velas.

Ao ver K., Leni sai correndo e some. O homem chama-se Rudi Block e é

comerciante de grãos. E também é cliente do advogado. Josef dirige-se à

cozinha, onde Leni, recomposta, está fazendo sopa para o advogado. Pergunta-

lhe se eles são amantes, mas ela desconversa, dizendo que há novidades sobre

o caso dele. Josef não acredita e Leni sai com a sopa.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 75


Enquanto esperam Leni voltar, Josef K. e Rudi Block conversam e o comerciante

conta que o caso dele já durava cinco anos e segreda lhe que havia colocado

outros cinco advogados na causa: “Além dele, tenho mais cinco rábulas”. Na verdade,

estava negociando a contratação de um sexto. Block não tem outro assunto na

cabeça: “Quando se quer fazer algo pelo seu processo, só pode se ocupar pouco de

outras coisas”. Também diz que sempre corre todos os cartórios em busca de

notícias e numa dessas visitas tinha visto Joseph K. Finalmente comenta uma

velha superstição entre os acusados de que o destino do processo dependeria

da forma dos lábios do acusado. Por aquele critério, segundo alguns, K. estaria

perdido.

Alunos: [risos]

Prof. Monir: Mais essa ainda? Quer dizer, também lá no teste da superstição
o K. está condenado a perder o processo. Então, a situação do K. melhorou
ou piorou?

Alunos: Piorou.

Prof. Monir: Ele está impaciente, cada vez mais ansioso, nervoso? Está.
Tanto é que ele resolveu ir descontratar o advogado. No entanto ele
encontra lá uma testemunha nova, que é esse Rudi Block, que diz que o
processo dele já dura cinco anos, enquanto que o processo do K. só tinha
seis meses. Talvez alguma coisa mais do que seis meses a essa altura... Não
parece haver boas notícias disso, vamos ver.

De volta à cozinha, Leni anuncia a K. que o advogado o esperava. Antes de

ele sair, Leni conta que Block morava na casa, porque o advogado era muito

76 Professor José Monir Nasser


imprevisível e nunca se sabia quando poderia querer conversar com o cliente

e nem todos eram como Josef, que podia marcar hora. Leni mostra o quarto

de Block, um cubículo de teto baixo sem janelas, totalmente tomado por uma

cama estreita.

Prof. Monir: Vocês não sentem uma angústia horrível de pensar em dormir
num lugar assim? Quer dizer, o quarto era do tamanho da cama, baixo, não
dava pra ficar em pé e não tinha janela. É uma espécie de dispensa baixa na
parede.

Antes de o procurador ver o advogado, Block exige-lhe a retribuição do segredo

e o procurador diz que vai demitir Huld.

Prof. Monir: Lembram que o Block tinha segredado a K. que, além do


advogado, ele tinha contratado mais cinco rábulas, não é? Então ele quer
uma retribuição do segredo. Parece aquela piada do português que passou
num chaveiro em que estava escrito na parede: “Trocam-se segredos”. Daí
ele parou e falou assim: “Eu sou gay, e tu?”

Alunos: [risos]

Prof. Monir: Então agora o Block quer que o K. conte pra ele um segredo
também, já que ele contou um segredo terrível, que era um segredo de
traição, né? Porque ele havia traído o Huld colocando mais cinco advogados
pra trabalhar junto... e agora ele quer que o K. conte a ele um segredo
também.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 77


Block reage aos gritos, assustado, e Leni tenta impedi-lo quando ele se põe a

caminho.

- Ele vai dispensá-lo! – exclamou o comerciante, saltando da cadeira e

correndo pela cozinha com os braços erguidos.

Bradava sem parar:

- Ele vai dispensar o advogado!

Leni quis se precipitar sobre K. naquele momento, mas o comerciante se pôs

no seu caminho, motivo pelo qual ela lhe desferiu um golpe com os punhos.

Depois, com os punhos ainda cerrados, correu atrás de K., que no entanto

levava sobre ela uma grande vantagem. Já tinha entrado no quarto do

advogado, quando Leni o alcançou. A porta estava praticamente fechada

atrás dele, mas Leni, que a mantinha aberta com o pé, agarrou-o pelo braço,

querendo puxá-lo de volta. Ele, porém, apertou o pulso dela com tanta força,

que ela teve de soltá-lo com um gemido. Não ousou entrar no quarto, e K.

fechou a porta com a chave. (págs. 223-224)

Prof. Monir: Porque será que deu esse pandemônio, porque será que o
Block e a Leni ficaram desesperados quando ouviram a notícia que ele ia
dispensar o advogado? Imaginem vocês a hipótese de que o K. já esteja
condenado na opinião dos dois, da Leni e do Block, o que é que o advogado
representaria para alguém já condenado? Uma daquelas três possibilidades
qual é? A do processo arrastado... que é o caso do Block, que já está a cinco
anos nessa história, não é isso? Então o que os dois podem ter imaginado,
com essa reação, é que ao perder o advogado, não havendo mais advogado,
ele iria ser condenado rapidamente e não poderia usufruir daquela
modalidade de absolvição, de libertação, que é o processo arrastado.
Provavelmente esse é o sentido. Vamos ver o que é que o K. diz agora para
o advogado.

78 Professor José Monir Nasser


Huld tenta justificar o comportamento de Leni alegando que ela “acha a maioria

dos acusados belos”. K. diz que sabe tudo sobre os casos de Leni com os acusados.

Réus, no final das contas, são atraentes, mesmo Block, “esse miserável”, enfatiza o

causídico.

Prof. Monir: Ou seja, a Leni tinha casos com todos os clientes do advogado,
porque achava que o fato de o sujeito estar mais ou menos condenado o
transformava numa pessoa sexy. Nos Estados Unidos, quando alguém é
condenado à morte, recebe milhares de cartas de mulheres apaixonadas...
porque há alguma coisa nessa situação, de não poder mais escapar de
estar condenado, que de alguma maneira torna a pessoa sexy. É mais um
sintoma de que a coisa vai muito mal. Todos os clientes do advogado são
condenados, não têm nenhuma solução, estão todos perdidos.

Josef diz ao advogado que está farto dele e o acusa de não ter feito nada. O

causídico insiste em que nada acontece em caso nenhum.

- A partir de um certo momento da prática profissional – disse o advogado,

calmo e em voz baixa – não acontece mais nada de essencialmente novo.

Quantos clientes em fases semelhantes do processo ficaram em pé diante de

mim, numa postura semelhante à do senhor, falando de maneira semelhante!

- Então – disse K. – todos esses clientes semelhantes tinham tanta razão

quanto eu. Isso não me contradiz de forma alguma. (pág. 229)

Prof. Monir: O que é que o Kafka tá afirmando com isso? Que ele é
culpado ou inocente? Inocente. Porque ele, como os outros condenados,
ficava muito chateado quando a coisa não andava, porque achava que a sua
inocência estava sendo desconsiderada. O K. acha-se inocente. Ainda acha-
se completamente inocente. E vocês, o que acham? Quantas pessoas acham

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 79


que ele é culpado? Mantivemos a mesma contagem da votação anterior,
com apenas três votos para culpado. Muito bem, continuamos.

Para valorizar o caso de K., Huld declara só tratar de casos que lhe digam respeito

de perto, que era o caso de Josef, sobrinho de seu amigo Albert (ou Karl). Como

nem assim consegue impressionar, o advogado manda chamar Block para lhe

mostrar como são tratados os outros acusados. Ao chegar, Huld o humilha,

grita que o caso dele era dificílimo, que não havia nem começado e que a

corte o julgava perdido, mas que ele, Huld, ainda estava lutando por ele. Block

demonstra sua gratidão ajoelhando-se e beijando a mão do advogado. Leni em

seguida, a pedido do causídico, faz um relatório do comportamento de Block

naquele dia, como quem relata os feitos de uma criança.

- Só uma vez ele pediu para beber água. Aí eu lhe estendi um copo pelo

postigo. Então, às oito horas, eu o deixei sair e lhe dei alguma coisa para

comer. (pág 239)

Josef K. julga ter presenciado um “teatro” e permanece inamovível de sua decisão.

Prof. Monir: O Huld chama o Block e faz uma sessão de humilhação absurda
do Block. Mostra que ele vinha sendo tratado como se fosse um cachorro,
que era alimentado pela Leni quando ela achava que estava na hora, como
você faria com um animalzinho na sua casa. Já o K. não, ele era um sujeito
que não precisava nem morar lá, bastava marcar hora para ser atendido... No
entanto o Joseph K. acha que é tudo uma espécie de pantomina, de teatro,
que é feito lá pelos três, pelo Block, a Leni e o advogado, e fica firme na sua
decisão de descontratar o advogado. E esse fato é muito importante, porque
agora, mesmo você lembrando que o livro é um pouco desestruturado, por
causa da sua incompleição, mesmo assim agora acontecem os fatos que
conduzem a nossa história e a nossa personagem Josef K. para o clímax.

80 Professor José Monir Nasser


Capítulo Nono
Na catedral.

Josef K. é solicitado por seus superiores a mostrar a catedral a um italiano, amigo

do banco. Tenta preparar-se para a tarefa estudando italiano, mas desiste. Na

hora marcada para o encontro, às dez, chovia e a praça da catedral estava vazia.

K. lembrou-se de que “ainda criança, havia chamado sua atenção o fato de que,

nas casas dessa praça estreita, quase todas as cortinas das janelas estavam sempre

corridas”.

Prof. Monir: “Corridas” é no sentido de fechadas, não abertas, tá? Certo? A


cortina, de modo geral, fica aberta, não é? Então o K. tá dizendo que na sua
infância (essa igreja existe, é a igreja do centro de Praga), toda a vez que ele
ia lá ele percebia que todas as janelas em volta estavam fechadas. Chove,
não tem ninguém, há um abandono, e ele então vai se encontrar com o
italiano no interior da igreja.

Josef entra na igreja e não encontra o italiano; só uma velha mulher embrulhada

num xale quente, ajoelhada diante de uma estátua da Virgem Maria. Fora da

igreja, agora, chovia torrencialmente. Enquanto perambula pela catedral escura,

percebe um velho sacristão manco que o observa e lhe aponta alguma coisa

com acenos de cabeça. Josef então percebe na escuridão um jovem sacerdote

debruçado sobre o peitoril de um pequeno púlpito “tão pequeno que de

longe parecia um nicho ainda vazio, destinado a acolher uma estátua de santo”,

preparando-se para fazer um sermão para uma igreja vazia e às onze da manhã.

Estranha que se utilize justamente aquele púlpito, quando havia outro maior.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 81


Prof. Monir: Então... o púlpito onde o padre está ali se preparando para
fazer um sermão é minúsculo, pequeno, apertado e baixo. Não se consegue
ficar em pé dentro do púlpito. Mais uma vez, um ambiente descrito pelo
Kafka é um ambiente menor, pequeno, apertado, inviável para a vida
humana. O púlpito também.

Tenta sair, mas surpreendentemente o padre o chama pelo nome: “Josef K.” K. se

aproxima e o padre, do púlpito, diz que é “capelão do presídio”. Fala de seu caso,

anunciando que vai de mal a pior.

Prof. Monir: Muito bem, agora o padre da igreja, [risos] o padre que não
deveria estar lá - quer dizer, a principio não foi para vê-lo que ele foi lá -
na hora que ele resolve ir embora, o padre o chama pelo nome: “Josef K!.”
Imaginem aquela voz naquela igreja vazia. E o padre diz que é capelão do
presídio?! [risos] E que o caso dele vai muito mal! Quer dizer, agora sim,
aparece até um padre que diz que a situação dele, Joseph K., é muito ruim.
Vamos ver o que acontece no diálogo entre esses dois.

Consideram-no culpado. Talvez o seu processo não ultrapasse nem mesmo

um tribunal de nível inferior. No momento, pelo menos, consideram provada

a sua culpa.

- Mas eu não sou culpado – disse K. – É um equívoco. Como é que um ser

humano pode ser culpado? Aqui somos todos seres humanos, tanto uns

como outros.

- É verdade – disse o sacerdote. – Mas é assim que os culpados costumam

falar.

- Você também tem prevenção contra mim? perguntou K.

- Não tenho nenhuma prevenção contra você – disse o sacerdote.

82 Professor José Monir Nasser


- Eu lhe agradeço – disse K. – Mas todos os outros que participam do processo

têm prevenção contra mim. Transmitem-na até àqueles que não participam

dele. Minha situação fica cada vez mais difícil.

- Você se equivoca quanto aos fatos – disse o sacerdote. – A sentença não vem

de uma vez, é o processo que se converte aos poucos em veredicto. (pág. 258)

Prof. Monir: Isso é um pedaço muito importante da obra. Não há um


momento em que de repente venha uma sentença, o que vai acontecendo
é que a pessoa vai se percebendo culpada o tempo todo. A culpa vai se
estabelecendo ao longo do processo, até se transformar em um veredito. E
o padre diz a ele: “Consideram você culpado”. Talvez não saia nem do nível
de petição inicial, do primeiro nível, digamos assim. E aqui é um momento
muito importante da história, quando o padre conta uma lenda para o
Josef K.. Essa lenda chama-se Vor dem Gesetz (Ante à Lei), que foi escrita pelo
Kafka separadamente. A maioria dos textos do Kafka são do tamanho dessa
lendazinha aqui - uma página, uma página e meia, às vezes vinte linhas. E
entre as coisas que foram escritas, está a Ante à Lei, que depois foi incorporada
a esse livro aqui. Mas ela é às vezes apresentada separadamente, como uma
separata. Então vamos ver agora o que o padre conta sobre a situação do
Josef, que é pra esclarecê-lo de vez por todas sobre o que ele está vivendo.
Antes disso, quem do grupo acha que o Josef K. é culpado? Três? Nenhum
progresso, não é possível! Talvez depois do sermão do padre vocês mudem
de ideia.

K. reage dizendo que nos próximos dias iria buscar mais ajuda. O padre retruca:

“Você procura demais a ajuda entre estranhos – disse o sacerdote, em tom de

desaprovação – principalmente entre as mulheres. Não percebe que não é essa a

ajuda verdadeira”.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 83


O padre desce do púlpito e eles começam a andar pela catedral à luz de uma

lamparina que o padre carrega. Conta a parábola Diante da Lei:

Em relação ao tribunal você se engana – disse o sacerdote. – Nos textos

introdutórios à lei consta o seguinte, a respeito desse engano: Diante da lei

está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para

entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O

homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais

tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”. Uma vez que a porta da

lei continua como sempre aberta, e o porteiro se põe de lado, o homem se

inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro

ri e diz: ‘Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja

bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala,

porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo

eu posso suportar a visão do terceiro’. O homem do campo não esperava

tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele;

agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco

de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele

decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro

lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado

dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e cansa o porteiro

com os seus pedidos. Muitas vezes o porteiro submete o homem a pequenos

interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra e de muitas outras coisas,

mas são perguntas indiferentes, como as que costumam fazer os grandes

senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá lo entrar.

O homem, que havia se equipado para a viagem com muitas coisas, lança

mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita

tudo, mas sempre dizendo: ‘Eu só aceito para você não achar que deixou de

fazer alguma coisa’. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro

84 Professor José Monir Nasser


quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-

lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa

em voz alta o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga

consigo mesmo. Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro

anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas

que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece

e ele não sabe se de fato está escurecendo em volta ou se apenas os olhos

o enganam. Contudo, agora reconhece no escuro um brilho que irrompe

inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes

de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça

para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um

aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido.

O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de

altura mudou muito em detrimento do homem. ‘O que é que você ainda

quer saber?’, pergunta o porteiro. ‘Você é insaciável’. ‘Todos aspiram à lei’, diz o

homem. ‘Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu

para entrar?’ O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda

alcançar sua audição em declínio, ele berra: ‘Aqui ninguém mais podia ser

admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora

e fecho-a’. (pág. 261-263)

Prof. Monir: E agora? O Josef K. ouve do padre essa fábula contando a


história do sujeito que chega na porta da lei e quer entrar, e não pode - o
porteiro impede. Ele não sabe o que fazer e morre sem ser capaz de entrar
dentro da lei. A lei aqui tem um significado que nós vamos debater daqui
a pouquinho. E o padre conta para o Josef K. que onde ele está buscando
ajuda não tem nenhuma esperança, sobretudo nas mulheres, e que ele só
compreenderá como faz para entrar na lei se ouvir essa parábola que fala do

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 85


porteiro que impede que o homem do campo entre na lei. Parece culpado o
Josef K. pra vocês? Quem acha que ele é culpado? Continuamos só com três.
Muito bem, vamos lá.

Josef e o padre debatem o significado da história. K. acha que o porteiro enganou

o homem do campo. O padre insiste que não e que ele só estava cumprindo

sua missão e que estava cônscio e orgulhoso do seu ofício. Lembra a K. também

que os intérpretes da passagem acreditam que “a compreensão correta de uma

coisa e a má compreensão dessa mesma coisa não se excluem completamente” e

que talvez quem tenha sido enganado de fato seria o porteiro que nada saberia

sobre o interior da lei e, diferentemente do homem do campo que é livre, estaria

“preso ao seu posto pela função que desempenha; não pode se afastar, mas segundo

todas as aparências também não tem permissão para ir ao interior da lei mesmo

que quisesse”, logo o verdadeiro subalterno seria ele e não o homem do campo.

Emenda dizendo que outras opiniões, no entanto, discordam.

Sendo assim, não se pode também acreditar que o porteiro esteja subordinado

ao homem. Ficar preso por ofício, mesmo que seja só à entrada da lei, é

incomparavelmente mais do que viver livre no mundo. O homem do campo

apenas chega à lei, o porteiro já está lá. Foi incumbido pela lei de realizar um

serviço; duvidar da sua dignidade seria o mesmo que duvidar da lei.

- Não concordo com essa opinião – disse K., balançando a cabeça. – Pois se se

adere a ela, é preciso considerar como verdade tudo o que o porteiro diz. Que

isso, porém, não é possível, você mesmo fundamentou pormenorizadamente.

- Não - disse o sacerdote – Não é preciso considerar tudo como verdade, é

preciso apenas considerá-lo necessário.

- Opinião desoladora – disse K. – A mentira se converte em ordem universal.

(pág. 269)

86 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Esse trecho é muito importante, mas agora nesse momento
não é muito claro, e está um pouco impenetrável. Já vamos entender melhor
o que se quer dizer com isso.

A igreja já totalmente escura, K. decide ir embora, alegando ter deixado trabalho

por fazer. O padre lhe diz que ele, o padre, também pertence à corte, que não

quer nada com ele e permite que ele saia quando quiser.

O sacerdote tinha se afastado apenas alguns passos, mas K. gritou bem alto:

- Por favor, espere mais um pouco!

- Eu espero – disse o sacerdote.

- Quer mais alguma coisa de mim? – perguntou K.

- Não – disse o sacerdote.

- Antes você foi tão amável comigo disse K. – Explicou-me tudo, mas agora

me despede como se eu não significasse nada para você.

- Você precisa ir embora – disse o sacerdote.

- É verdade – disse K. – Você precisa compreender.

- Você precisa primeiro compreender quem eu sou – disse o sacerdote.

- Você é o capelão do presídio – disse K. aproximando-se do sacerdote.

Seu regresso imediato ao banco não era tão necessário, como ele havia

exposto; podia muito bem permanecer ali por mais algum tempo.

- Pertenço pois ao tribunal – disse o sacerdote. – Por que deveria querer alguma

coisa de você? O tribunal não quer nada de você. Ele o acolhe quando você

vem e o deixa quando você vai. (pág. 271)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 87


Capítulo Décimo
O fim.

Na véspera do seu trigésimo primeiro aniversário, por volta das nove da noite,

dois homens de casaca, lívidos e gordos “como tenores” procuram K. no seu

apartamento.

Prof. Monir: Dois homens gordos de casaca como dois tenores de ópera.
Exatamente um ano depois, ou melhor, um ano menos um dia após a sua
detenção - ele foi preso no dia do seu trigésimo aniversário, agora um dia
antes do seu trigésimo primeiro aniversário, ou seja um ano e um dia a
menos, dois homens gordos vestindo casaca como se fossem tenores de
ópera o procuram na sua casa.

Josef os recebe com naturalidade: “- Então os senhores é que me foram destinados?

– perguntou”.“- Em que teatro os senhores trabalham?” Cada um segurando

rigidamente um braço, saem com ele pela cidade como se os três homens

fossem um bloco único. No caminho, K. percebe a senhorita Bürstner vindo na

sua direção. Ele a observa vindo até ela desaparecer numa transversal escura.

Chegam finalmente a uma pedreira abandonada. Os homens despem Josef de

seu paletó e camisa e o deitam com a cabeça sobre uma pedra. Aparece uma

faca de açougueiro ”comprida, fina e afiada dos dois lados” que eles passam um

para o outro. Aparentemente, eles esperam que Josef K. tome a faca e a enterre

no próprio peito, mas ele não o faz, fixando a vista à distância numa pessoa na

janela de uma casa com a luz acesa. Seria um amigo? Onde estaria o juiz e a alta

corte que ele nunca conseguiu alcançar? Josef K. ergue as mãos e estica todos

os dedos.

88 Professor José Monir Nasser


Mas na garganta de K colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto

o outro cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes.

Com olhos que se apagavam, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto,

apoiados um no outro, as faces coladas, observando o momento da decisão.

- Como um cão – Disse K.

Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele. (pág. 278)

Prof. Monir: E esse é o fim da história do Josef K.

Aluno: Afinal então ele se considera culpado?

Prof. Monir: Na hora que ele diz assim pros tenores: “Então vocês que me
foram designados”, não dá a impressão de que ele estava esperando que
viessem matá-lo?

Alunos: Dá.

Prof. Monir: Isso é porque ele se sente culpado, finalmente? Não...

Aluno: Mas ele aceita.

Prof. Monir: Ele aceita porque ele percebeu que nada do que ele pudesse
fazer teria sido capaz de mudar o veredito. Mas ele não sabe por que ele vai
ser sacrificado, porque ele não se sente culpado.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 89


E vocês... Quem acha que ele é culpado? [pausa] Três.

Veja pessoal, não sei se vocês estão compreendendo a gravidade dessa


votação? Se os outros todos que estão ai, cinquenta, sessenta pessoas
acham que ele não é culpado de nada, então acabamos de presenciar aqui
um erro judiciário, é ou não é? Posso concluir isso ou não posso? Se vocês
acham que ele não tem culpa nenhuma, então o que aconteceu aqui foi um
erro judiciário! Um inocente foi perseguido por um sistema monstruoso, um
sistema sem face, que não comunica, e isso poderia ser interpretado como
sendo um ataque ao mundo burocrático moderno... a essa vida maluca,
não é isso? Essa seria uma possibilidade de interpretação. As pessoas são
moídas pelo sistema como carne no moedor de carne, e esse seria o caso de
Josef K., que embora não tenha feito nada, acabou sendo sacrificado meio
ritualmente.

Vocês repararam que sacrificar alguém sobre uma pedra é aquilo que se faz
com os animais. Os altares eram de pedra - você sacrificava os animais às
divindades sobre uma pedra, então a morte do Josef K. é mais do que uma
morte, é uma espécie de sacrifício ritual, não parece isso? Se é este o caso,
então nós temos aí uma figura de um sacrifício ritual em que um inocente,
por alguma razão, que não se sabe qual é, esse inocente é escolhido para ser
sacrificado como um cordeiro, que é sacrificado a um deus.

No entanto, se vocês mudarem de ideia e acharem que ele é culpado, muda


totalmente a interpretação da história. Vamos ver o que vocês dizem a
respeito. Pois não?

Aluna: [Faz comentário sobre o George Orwell]

90 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: O George Orwell é muito posterior, né? Não muito, mas o
Orwell já é outra história...

Aluna: Mas a linha...

Prof. Monir: Eu diria que embora existam pontos de contato... pode


ter uma ligação, mas é muito diferente. Porque o Kafka, se você ler essa
história sobre o ponto de vista exclusivamente político, como sendo uma
demonstração da tirania dos governos modernos, parece de fato com o
George Orwell, um parece com o outro.

Mas por que vocês não topariam fazer um exercício comigo que seria mais
ou menos assim: E se o Josef K. fosse de fato culpado?

Aluno: Por quê? Do quê?

Prof. Monir: No filme, essa pergunta eu faço e vocês que respondem.

Alunos: [risos]

Prof. Monir: Do que o Josef K. é culpado?

Aluna: As vezes fico pensando também assim: os outros todos aceitavam a


situação e por isso iam vivendo, ele, como não aceitou ...

Prof. Monir: Há algum fato que o livro nos conte que fez essa mudança
de destino e de sorte para Josef K., que tenha justificado isso? O livro é
incompleto, é verdade... Existe um fragmento – no final deste livro tem

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 91


alguns capítulos fragmentados. Num capítulo que não está na história,
que foi colocado no final como um apêndice, nos é contado um pouco
mais sobre o Josef K. Mas mesmo nesse fragmento - tanto é que eu não
coloquei no resumo - não há nenhuma informação de que haja acontecido
com o Josef K. algum fato, algum acontecimento que pudesse justificar
essa mudança de destino tão súbita. Ele levanta no dia do seu trigésimo
aniversário, ele espera que a Ana venha com o café da manhã, assim como
todos os outros dias, e ele recebe o Willem e o Franz, que aparecem para
prendê-lo. Logo não há nenhuma explicação que o livro nos forneça sobre a
súbita mudança de sorte do Josef K.

Aluna: Será que não é um problema de consciência que ele tem e ele
começa então... Quando você tem um problema de consciência, você
começa a buscar explicação... a se sentir oprimido por alguma coisa, você
quer resolver, não sei...

Prof. Monir: É como se o mundo todo dissesse pra ele assim: “Eu sei o
que você fez no verão passado!” Seria essa a ideia? Esse é um filme que
os adolescentes adoram, em que as personagens adolescentes aprontam
misérias e aí no ano seguinte elas voltam lá para o mesmo lugar e são
perseguidas por um monstro, e tal...

Mas o problema dessa tese é que mesmo levando em conta o livro estar
inacabado, em nenhum momento há qualquer sugestão de que ele possa
ter sido desonesto, ladrão, ter matado a mulher... entendeu? Ter casado com
o Clodovil... coisas do gênero.

Alunos: [risos]

92 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Quer dizer, nada disso aparentemente aconteceu até agora.

Aluna: [Faz um comentário.]

Prof. Monir: Bom, pela sequência em que o livro está organizado, aquela
recusa, e sobretudo a recusa vista pela Leni e pelo Block com tanta gravidade,
prenuncia que aquele ato havia quebrado a continuidade de um processo e
que aí ia haver uma espécie de modificação no quadro. E essa modificação
é o prenúncio da morte pela boca do padre, na catedral de Praga - catedral
católica. No entanto, vocês ainda não me disseram qual seria possivelmente
o crime que o Josef K. teria cometido.

Aluno: E o fato de ele não se defender...

Prof. Monir: Ele tenta se defender o tempo todo, mas não consegue. Ele
tenta falar com o juiz, ele não consegue descobrir do que é que ele tem que
se defender, ele não consegue que o advogado o defenda. Não é só que ele
não se defende, o advogado não o defende também.

Aluno: Mas lá no tribunal ele começou a se defender...

Prof. Monir: É, mas ele não entra no mérito do caso. Ele entra no tribunal,
diz que aquilo é uma palhaçada ridícula, que é um circo, que é um troço ali
pra explorar as pessoas, que não tem nenhum valor, e eles que vão plantar
batata, que ele não quer mais saber daquilo. Então no tribunal, logo no
inicio, ele dá uma desancada geral naquela situação sem, no entanto, entrar
no mérito da própria acusação. Porque ele não sabe de fato, nem sabia ali
e nem saberá até o fim do que é que ele é acusado. No final da história ele

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 93


apenas está conformado com o fato de que a sua condenação é irreversível.
Então quando entram os tenores, ele diz assim: “Ah, então são vocês que vão
ser os meus carrascos”, “De que teatro vocês vieram?” Ele lida ironicamente
com aquela situação. Mas ele nem no final acha que possa ter alguma
espécie de culpa.

Aluna: Tem um trecho lá na conversa dele com o padre em que ele diz
assim: “Mas eu não sou culpado. É um equívoco. Como é que um ser humano
pode ser culpado.”

Prof. Monir: Ah, você agora pegou um caminho de ouro! É aquele caminho
da Dorothy, dos tijolos amarelos! Você conseguiu pegar um caminho muito
bom agora. Quer dizer, o padre diz assim pra ele: “Mas você tá enganado”. E
ele diz assim: “Mas como é que um homem pode ser culpado?”

Aluno: Parece que o problema é ele lutar contra alguma coisa que não
existe... e além disso ele ir buscar nos locais menos apropriados a solução
para o problema... É como se ele aceitasse uma coisa que não é dele, ele não
devia nem ir atrás, ele não tem essa culpa...

Prof. Monir: A única coisa que ele não faz... O que as mulheres mandam
fazer? Confessar. Não é isso que as mulheres mandam que ele faça? No
entanto, ele não confessa, em nenhum momento. Deixou claro na última
conversa com o padre, no final da história, que ele não tinha nada a
confessar, porque afinal de contas não era culpado de nada. A única coisa
que ele não admite nunca, jamais, é que ele possa ser culpado... Esse é o
coração do problema.

94 Professor José Monir Nasser


Aluno: Essa seria uma confissão dos pecados que a gente comete na vida
e confessa para o padre? Seria nesse sentido?

Prof. Monir: Um dos sete sacramentos é a confissão, não é? Olhando


aqui para o cristianismo católico - no catolicismo há a ideia de que há sete
sacramentos, e um deles é a confissão.

Confissão é o ato pelo qual você conta para um padre constituído


formalmente, que é uma pessoa com uma autoridade espiritual, alguma
coisa que você fez, da qual você se arrepende (essa que é a expressão
técnica). E essa pessoa então, com poderes que são espirituais, que ele tem...
- o padre não está no mesmo nível que você está, ele está num nível superior,
sempre. Então quando você vai a um psicólogo contar a sua vida trágica, os
seus problemas existenciais, você está falando com uma pessoa que tem o
mesmo nível que você, o mesmo nível ontológico, digamos assim. É apenas
uma pessoa que tem uma técnica que você não tem. Mais do que isso, é uma
pessoa que não tem o problema que você tem, então um psicólogo não é
uma pessoa que esteja num nível diferente do seu, é apenas uma pessoa
que tem uma posição mais favorável do que a sua. Mas quando você vai falar
com um padre num confessionário, o padre não está no mesmo nível que
você, o padre representa o poder espiritual. Então, o padre tem um poder,
que é verdadeiro, de fato, de absolver você dos seus pecados. O padre pode
absolver, de fato, os seus pecados e, de fato, ele absolve os seus pecados.
Isso é assim de acordo com a visão católica. O cristianismo não católico tem
uma lá outra visão, que não sei qual é. Mas no catolicismo é assim, o padre
não está no mesmo nível que você. Ele existe num nível espiritual superior
ao seu. Não é a mesma coisa que conversar com um psicólogo, vocês
entenderam? Porque o psicólogo pode entender o seu problema, pode até

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 95


te dar uma boa explicação, mas o psicólogo não te absolve do fato de que
você passa as sextas-feiras à noite vestido de drag queen na porta de uma
boate gay, tocando um apito. <risos> Compreenderam que é outra coisa?
Não é a mesma coisa, porque o padre te absolve de fato dos seus pecados.
Mas essa absolvição depende de haver a confissão do pecado. E a confissão,
de acordo com a regra do cristianismo, ela é feita assim: você nunca deve
confessar os pecados com detalhamento, você deve dar ao padre uma
indicação da natureza do pecado que você faz. Por uma razão prática, não
se deve nunca confessar todos os pecados com detalhes para Deus, porque
vai que Deus acredita? Você está morto! Não faça uma coisa dessas... [risos]
Então você não deve confessar pra Deus os pecados com detalhes... a ideia
da confissão cristã católica é você dar uma ideia do que você fez, não é pra
estabelecer um enredo de um livro erótico, entenderam isso?

Então o Josef K. em nenhum momento se coloca nessa postura. Mas por que
ele não se põe nessa postura? Porque ele não sabe do que ele é acusado e
não reconhece o pecado, não é isso?

Aluna: Ele não tem controle de nada...

Prof. Monir: Mas ele tinha antes, né? Até o dia do seu trigésimo aniversário
ele parecia levar uma vida que ele podia controlar. A partir daí não, nunca
mais. O mundo desabou como um fato consumado que o foi empurrando
para uma inevitável morte.

Aluna: [Faz comentário]

Prof. Monir: Essa frase que a Leoni descobriu é a chave do mistério. É essa

96 Professor José Monir Nasser


a frase que resolve o mistério da interpretação dessa história. É aí que está a
chave. Se a gente for capaz de conversar um pouquinho mais sobre isso, nós
vamos descobrir o sentido do processo.

Aluno: [Pergunta sobre a namorada e o fato de K. não ter ido encontrá-la.]

Prof. Monir: Convenhamos que não é razão suficiente pro sujeito acabar
morto, você ter deixado de ir ao encontro da namorada...

Aluno: [Comenta que a história está inacabada.]

Prof. Monir: Não, o resumo pode não estar perfeito, mas de alguma
maneira ele apresenta todos os componentes da história... O resumo não
é perfeito, mas quem leu o livro seguramente deve ter percebido que o
resumo representa fielmente a história; embora não seja nem de perto
comparável ao livro original, ele não é infiel. Quer dizer, não há nenhum fato
escondido de vocês. Não há nada que eu tenha escondido de vocês sobre
essa história, tá?

Aluno: [Comenta sobre o livro não ter sido finalizado pelo Kafka.]

Prof. Monir: Poderia ser o caso... mas se você continuar no caminho que
foi aberto ali pela Leoni, você vai descobrir que mesmo que ele tivesse
matado a mãe sem nenhuma boa razão, mesmo assim não teria nenhuma
diferença com relação ao que o Kafka quer nos contar aí. Ele está querendo
nos contar uma coisa extraordinária... e que vocês estão muito próximos de
descobrirem sozinhos.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 97


Aluna: [Faz comentário.]

Prof. Monir: Ele acha que ele é um ser humano e, como tal, esse ser
humano não pode ser acusado de qualquer coisa, porque ele é apenas um
ser humano. Mas isso que ele aos poucos teme que seja a razão da acusação
ainda não apareceu nessa explicação... Quer tentar?

Aluno: [Comenta sobre a ligação de K. com Cristo – imolado, idade próxima


dos trinta anos, quando Cristo começou a atuar no mundo.]

Prof. Monir: É, pode ser que tenha alguma coisa a ver com os trinta, acho
que vale a pena lembrar isso. Tem um sentido essa observação que ele fez.
Mas há aí uma coisa absolutamente fundamental que é o que no fundo o
Kafka está nos contando, com essa história maravilhosa...

Aluno: [Comenta que não há um homem no mundo sem culpa, relembra a


passagem do apedrejamento da prostituta, quando Cristo disse que atirasse a
primeira pedra aquele que não tivesse pecado.]

Prof. Monir: Bom, muito bem, é uma ideia... Mas nesse caso, por que
razão, de repente, no dia do trigésimo aniversário, essa situação teria
se transformado? Porque houve uma transformação da vida dele. Essa
transformação é um encaminhamento para a morte... E por que isso teria
acontecido logo naquele dia, não antes nem depois?

Aluna: [Acha que o K. acha que o ser humano não pode ser culpado, porque
errar é humano.]

98 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Mas de alguma culpa ele pode ser acusado, sim.

Aluno: [Levanta a hipótese de o K. ser um bode expiatório.]

Prof. Monir: Seria assim se ele fosse de fato inocente. Mas vocês não
me provaram ainda que ele é inocente! Ao contrário, tudo indica que ele
é culpado. Não está todo o mundo dizendo que ele é culpado? Se ele for
inocente essa tese vigora...

Aluno: [Comenta sobre os políticos, que quando alguma coisa dá errado


escolhem um para levar a culpa.]

Prof. Monir: Tá certo, o bode expiatório só é expiatório quando ele é


inocente. Porque se o bode expiatório não for inocente, ele é apenas um
culpado sendo acusado de uma culpa verdadeira.

Aluna: [Ele tem que se arrepender, e ele não fez isso.]

Prof. Monir: Ele não confessa o pecado porque não reconhece pecado
nenhum, é por isso que ele não ouve a recomendação das mulheres que
dizem para ele ir lá confessar...

Aluno: É culpado de não saber qual é o crime que ele cometeu. Pronto.

Prof. Monir: Essa é uma boa ideia, né? Culpado pela ignorância. Mas há
uma culpa absolutamente garantida...

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 99


Aluno: [Comenta sobre a parábola, quando o porteiro disse que a entrada
estava destinada só para o K.]

Prof. Monir: O porteiro diz assim: “Você vai poder entrar, mas não agora”.
Não é? E ele passa a vida inteira tentando imaginar como é que entra, mas
ele não consegue entrar.

Alunas: Porque ele não se arrependeu.

Prof. Monir: Mas ele não se arrepende não só porque ele não reconhece,
mas porque ele passa o tempo todo pecando o mesmo pecado, nessa
história. Qual é o pecado fundamental que o atormenta?

Aluno: A dúvida.

Prof. Monir: Não é a dúvida... a dúvida é a fonte do tormento. Mas há


alguma coisa de que ele é culpado, de que ele finalmente descobre que
é culpado e a descoberta dessa culpa é que faz com que o mundo fique
sombrio e que pareça hostil... Porque o mundo não é hostil, o mundo se
torna hostil a partir do momento em que ele é preso, antes disso o mundo
não é hostil. O mundo do Josef K. parece normal, não é um mundo hostil.

Aluno: [Pergunta se não é por usar o livre arbítrio que ele não vê o que fez de
errado.]

Prof. Monir: Ele tem o livre arbítrio para negar, mas nem isso o exime da
condenação, ele vai morrer igual.

100 Professor José Monir Nasser


Aluno: [Pergunta se o problema não era porque o K. era religioso.]

Prof. Monir: Religioso? Em que sentido?

Aluno: No sentido de culpa, de judeu...

Prof. Monir: Peraí... Vocês compreendem que a história humana quando


contada na mitologia bíblica, ela é uma história assim: Deus faz o mundo em
seis dias e aí vê que o mundo é muito bonito. Daí Deus inventa alguém pra
dizer assim: “Ó, como esse mundo é bonito!” E essa pessoa é o ser humano.
Então Deus nos dá a oportunidade de participar desse mundo e ao mesmo
tempo fica feliz do fato de que nós somos então finalmente capazes de
sabermos o quanto o mundo é bonito. Ou seja, nós participamos, de um
certo modo, da inteligência de Deus. Alguns anjos acham que isso é uma
coisa muito injusta, porque isso era um atributo apenas de anjo, e há uma
rebelião contra Deus liderada por Lúcifer. Então depois da luta Lucífer cai
sob a superfície da terra e mergulha até o centro, onde está lá organizando
os infernos até hoje, não é isso? Então o homem, depois de vencida
a resistência a Lúcifer, é colocado sobre a terra e lhe é dado de presente
- para o homem e a mulher - um mundo onde não há absolutamente
nenhuma hostilidade. O mundo paradisíaco, do paraíso inicial, é um mundo
de felicidade plena, um mundo de longevidade praticamente total, onde
não há nenhuma ameaça, não há nenhuma necessidade de desgosto, de
absoluta integração e sintonia com o espírito de Deus. Nesse mundo só
existe uma única possibilidade de adversidade, que é aquela representada
simbolicamente pela existência, no centro do paraíso, de uma árvore de que
nós estamos proibidos de consumir os frutos: a árvore do bem e do mal,
da ciência do bem e do mal. Essa árvore não pode ser consumida. Ela é um

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 101


dado hostil porque ela está proibida, e ela pode produzir um mal. Mas esse
mal é meramente potencial, porque eu só irei produzir esse mal se eu comer
do fruto daquela árvore. No entanto, apesar de ser a única possibilidade de
reversão do estado paradisíaco de felicidade humana, o fruto da árvore acaba
sendo consumido. Por inspiração de Lúcifer (da serpente), o ser humano
acaba caindo em tentação. E o homem cai, a partir desse momento, àquilo
que se chama “A queda”. A queda é a transformação da vida humana de uma
vida de absoluta facilidade e de sintonia total para uma vida de hostilidade
e dificuldades crônicas e permanentes, que é simbolizado no mito bíblico
por ganhar o pão pelo suor do rosto e ter filhos com as equivalentes dores
do parto. É claro que não está se falando dessas duas coisas apenas, está
se falando do fato de que a partir da queda a humanidade passa a ter uma
vida que, diferentemente do que era antes, é uma vida de dificuldades e de
sofrimento crônico. Vocês perceberam que há uma mudança extraordinária
entre o momento pré-queda e pós-queda?

Qual é o pecado de que o Josef K. é acusado?

Aluno: A luxúria.

Prof. Monir: O pecado original! A luxúria, não. Ela é de todos os pecados,


o menor. Olha, lá no inferno de Dante o círculo que tem a luxúria é o círculo
mais alto, quer dizer, a luxúria é um pecado muito leve, porque a luxúria
é na verdade uma espécie de exagero de algo natural do ser o humano,
que é o prazer. Vejam, uma das nossas características humanas é que o ser
humano tem a possibilidade, a potência do prazer sensual. Não há nenhum
mal nisso... se não fosse pra você brincar, para quê é que Deus teria te dado
o parquinho?

102 Professor José Monir Nasser


Alunos: <risos>

Prof. Monir: Compreenderam que não faz nenhum sentido você fazer
campanha contra o prazer sensual? O pecado está em você transformar o
prazer sensual na sua vida. Aí é pecado. Compreenderam? O Dalton Trevisan
tem uma frase maravilhosa, que é assim: “Do que vale a sua vida se você não
pode comer três, quatro quindins?” De fato, né? Pense bem que vida besta
se você não puder comer três, quatro quindins.

O Franz Kafka é um judeu, o Velho Testamento é um livro judaico... Ele é


incorporado aos livros cristãos porque afinal há uma espécie de sequência
histórica lógica. Mas o Velho Testamento é um livro judaico e ali não tem
salvação nenhuma. Como é que o Velho Testamento lida com isso? Ele
espera que o Messias volte algum dia pra salvar. Mas sob o ponto de vista
judaico não tem salvação nenhuma no horizonte, porque não veio Messias
nenhum.

Como os judeus acreditam nisso, que eles estão perdidos por causa do
pecado original - que é a única acusação de fato que você tem para atribuir
ao Josef K. (qual é o pecado que ele cometeu, do qual ele é acusado? É o
pecado original), então os judeus estabeleceram uma religião cuja essência é
ficar amigo de Deus. Isso que se chama judaísmo é uma espécie de exercício
de boas relações com Deus, de relações amistosas, porque eles imaginam
que na hora em que Deus for resolver esse problema aqui eles vão ficar em
melhor situação, porque afinal eles sempre foram bacanas, amigos de Deus.
A essência do judaísmo é a amizade com Deus, porque eles não acham que
haja de fato uma salvação antes da vinda do Messias. Mas o Messias não
veio ainda. Quem sabe ele não vem, não sei.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 103


Então, quando você come o fruto da árvore proibida, você comete o pecado
original. Mas o que é isso na prática? O fruto da árvore proibida é um exercício
de soberba. Dos sete pecados capitais, quando você vê o inferno de Dante,
a luxúria é o mais leve deles, porque no fundo é apenas um exagero de uma
prerrogativa humana natural.

Qual é o pecado que está na outra ponta, como o mais grave de todos? É a
soberba. A soberba é o pior pecado, mas por quê? Porque ela é um desafio
direto à autoridade de Deus. Porque Deus diz assim: “Não é pra comer esse
negócio!” Você vai lá e come. Mas não é só esse o problema da soberba.
É assim: a serpente convence Adão e Eva de que era para comer a fruta
porque Deus estaria escondendo uma informação de que eles, Adão e Eva,
se comessem daquela fruta, ficariam tão poderosos quanto Deus. Você
consegue imaginar soberba maior do que essa? Você alçar-se ao mesmo
status e nível de Deus?

Então o que é que faz o Josef K. o tempo todo em que ele não admite que
ele é culpado? Ele sabe que é culpado, mas não admite. Ele está o tempo
todo reafirmando a soberba do pecado capital, que é justamente aquilo
de que ele é acusado. Mas como ele não acredita em salvação, ele não
consegue nunca pegar a estrada de Damasco... São Paulo consegue ainda
pegar a estrada de Damasco. Ele é cegado por Deus e perde a capacidade de
enxergar qualquer coisa, que é exatamente a situação em que o Joseph K. se
meteu. Mas na hora que São Paulo se humilha perante Deus, e confessa, e se
torna humilde, ou seja, na hora em que ele se coloca na posição de criatura,
então ele recupera a visão, porque ele se colocou ontologicamente no seu
verdadeiro lugar e não está mais tentando atingir o lugar mais alto no pódio,
disputando o lugar de Deus.

104 Professor José Monir Nasser


Aluno: [Pergunta o que aconteceria se ele tivesse confessado.]

Prof. Monir: Pra isso ele teria que ter compreendido que ele está sob o
pecado de soberba. Ele não consegue entender isso.

Aluno: Soberba contra Deus, que no caso é a justiça?

Prof. Monir: Veja, a história não é construída em cima dessa explicação


que eu estou dando, ela é apenas simbolicamente construída assim, mas
não factualmente.

Então o Joseph K. não reconhece a sua condição de criatura. Ele acha que
não é criatura, mas sim um criador... ele não reconhece jamais a sua posição
de subordinação divina, é por isso que ele não consegue ver a culpa,
porque a soberba o está cegando o tempo todo, sistematicamente. Ele não
consegue ver jamais que o problema é ele reconhecer-se como criatura, e aí
sim a salvação seria possível.

Aluna: É uma limitação, então, não é? Ele não se sentiu um ser limitado.

Prof. Monir: Não é isso, pessoal. Vejam bem, eu não estou aqui tentando
dar a vocês uma explicação religiosa para o problema. Eu estou dando uma
situação ontológica para o problema. O que o Josef K. faz e que o destrói é
enganar-se sobre a sua verdadeira natureza ontológica... Quer dizer, na hora
em que ele não é capaz de perceber-se como criação, ele então se torna
inviável como pessoa. Quer dizer, é exatamente a mesma história que depois
o Kafka conta em A Metamorfose... O que é a metamorfose? É um sujeito que
vira um inseto gigante, porque na hora em que você perde o status de criação,

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 105


você perde o status humano. E o que acontece com o Josef K. é que a vida
humana vai deixando de ser possível nele, tanto que ele jamais conseguirá
se salvar disso porque ele está pecando sistematicamente, tudo de novo, o
tempo todo. No caso de A Metamorfose o que acontece é uma desnaturação
da criatura, o Gregor Samsa deixa de ser um ser humano para se transformar
num inseto. Ele perde status ontológico. O nosso status ontológico é status
de criação. Qualquer tentativa de tentarmos nos transformar na origem de
todas as coisas nos destrói como seres humanos. É isso que gera a destruição
de Josef K. O que Joseph K. está sofrendo é uma acusação em que Deus
lhe aponta o dedo e diz: “Você, ser humano, pensa que é Deus, mas você
não é. Admita que você não é”. Como ele não consegue jamais admitir,
porque ele de fato não sabe isso, ele não compreende isso, pelo menos não
conscientemente, então ele se debaterá com a sua tese falsa, com a sua tese
impossível, até que finalmente aconteça o desdobramento e o clímax em
que a morte será imposta pelas circunstâncias.

A lei - Ele não consegue entrar na lei porque a única possibilidade de o porteiro
deixá-lo entrar é que ele confesse. Mas ele não confessa, ele fica imaginando
a hora em que o porteiro vai convidá-lo. Mas ele não será convidado jamais!
E pela mesma razão pela qual o homem do campo morre na porta da lei, ele
morrerá num ato sacrificial, sobre uma pedra de uma pedreira abandonada,
morto por uma faca de açougueiro que será enterrada no seu peito e virada
duas vezes. Conforme descrito no livro. A história de O Processo é a história
do gnosticismo, o pecado do Josef K. é ser gnóstico... é achar que pelos seus
próprios meios humanos ele é capaz de atingir a divindade, a sabedoria. É o
desprezo da existência e da autoridade de Deus, que é de todos os pecados
o mais grave. É por isso que a soberba é sempre o pecado pior. Quando
você reza no Pai Nosso: “e não nos deixei cair em tentação”, não é que você

106 Professor José Monir Nasser


esteja pedindo para se abster de comprar a última Playboy, entendeu? Você
compreende como é fútil uma interpretação dessas? O que Deus não quer
que você faça é que você caia na conversa do diabo (que está lá no mito do
paraíso), que diz que você é Deus! Quando eu estive aqui no ano passado
para mostrar pra vocês que havia alguma coisa fundamentalmente errada
com o filme Quem Somos Nós? - eu estou me referindo ao fato de que no
final da história se diz que a Amanda (a personagem mais importante da
história) não entendeu que ela é Deus. Mas nós não podemos ser Deus, de
modo nenhum! Agora vem um outro filme pior do que esse, chamado O
Segredo, que fará um estrago muito maior do que o outro, que fica o tempo
todo dizendo que nós somos deuses. Esse é o nosso defeito. Que conversa
é essa de que nós somos Deus? É a conversa do demônio na tentação do
Adão e Eva, é a conversa agnóstica, a conversa pra tentar você pra você
abandonar o seu status ontológico. A soberba é de todos os pecados o pior,
porque de fato ele é logicamente pior do que os outros. A soberba é uma
desconsideração da existência de Deus, é como se você não julgasse que
possa ter havido pai e mãe que antecederam você. De todos os pecados,
é o maior todos, e o pecado original é basicamente esse. É a incapacidade
do homem de escolher entre ser criatura e ser criação, é a dúvida que ele
possa ter se ele não é equivalente a Deus... mas é uma dúvida tão louca que
é quase impossível de a gente imaginar que isso possa acontecer na prática.

No entanto, essa é a essência de toda a filosofia moderna, de toda a ciência


moderna. Todo o mundo pensa que é Deus. É isso que mata o Josef K., e é isso
que nos matará a todos sob o ponto de vista ontológico. Não estou falando
aqui de religião, estou falando de ontologia - se nós não compreendermos
essa diferença absoluta que há entre criação e criatura, que é uma diferença
que na cabeça do Josef K. não existe de fato.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 107


(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos citados são da edição O Processo

da Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1997, tradução de Modesto Carone).

108 Professor José Monir Nasser


EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA O Processo 109
A Consolação
da Filosofia
de Boécio (c. 480 - 525)

Transcrição da palestra do professor José Monir Nasser em Curitiba, em 23/06/20072

2 Transcrição de Letícia Scheifer. Revisão da transcrição: Patrícia Nasser.

110 Professor José Monir Nasser


A Consolação
da Filosofia

O que se entende por cultura aqui é que no final destes nossos encontros
vocês saiam daqui tendo domínio de determinadas características da reali-
dade humana, certos aspectos da condição humana que os ajudarão a vi-
ver de modo mais consciente, um modo melhor. É isso que se entende por
cultura. Não é uma distribuição de detalhamentos. O mundo da cultura não
deve ser confundido com uma espécie de beletrícia (da palavra francesa bel-
les lettres), não é isso. Nós estamos preocupados em saber o que significa
aquilo que está sendo dito ali. E essa é a razão pela qual nós misturamos
sempre livros de ficção com livros ensaísticos, livros sem pretensão ficcional.
O livro de hoje é uma fórmula mista, pois foi escrito de forma ficcional sem
ser de fato um livro de ficção. É um livro de filosofia escrito de um modo lite-
rário muito diferente de como no modo geral se fazem os livros de filosofia.
É um livro muito antigo. Foi escrito no século IV ou V século da era cristã.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 111


Então fazemos essa mistura de gêneros justamente para mostrar que não
estamos aqui preocupados ou obcecados por qualquer visão de forma. A
forma é subsidiária no nosso processo.

Passamos aqui um resumo que não substitui a leitura do livro. O livro é muito
melhor do que o resumo, sempre. Não há modo de um resumo representar
o livro com a mesma competência. Não deixem de ler o livro. Se você quer
estudar filosofia na vida, e deseja começar por um determinado livro, pegue
este, em vez de pegar aquela coisa horrorosa chamada O Mundo de Sofia,
que é uma espécie de crime literário. Não leiam aquilo de jeito nenhum,
não indiquem pra ninguém. Se tiverem, escondam. Não deixem as crianças
pegarem de modo nenhum. Escondam das crianças, por favor! O Mundo de
Sofia é uma enganação. Se alguém um dia te perguntar como é que come-
ça a ler filosofia, você manda ler o Boécio, A Consolação da Filosofia. Feito
isso, podemos começar? Todo o mundo tá feliz com essa pré-explicação?
Alguém tem alguma dúvida? Vamos em frente?

Então o Boécio é um desses grandes autores, que de certo modo sofreram


um esquecimento completamente injusto. O Boécio nasceu e viveu numa
época em que havia certo buraco na vida intelectual ocidental, e ele acabou
sofrendo as consequências disso. Vamos olhar para a cronologia, que todos
receberam. Apenas pra gente ter uma ideia da época.

112 Professor José Monir Nasser


Cronologia

313 Com o edito de Milão, Constantino I (272–337) torna o cristianismo livre no

império romano.

Prof. Monir: Há uma versão popular do assunto de que ele teria trans-
formado o cristianismo na religião oficial, o que não é verdade. O cristia-
nismo simplesmente foi autorizado, como qualquer outra religião. Parou-se
de perseguir os cristãos sob certo ponto de vista. Não que isso tenha sido
pra sempre, mas já foi um reconhecimento da legitimidade do cristianismo.
Duzentos e poucos anos depois da morte de Cristo o cristianismo é aceito
como religião. Nessa altura já havia um conjunto de obras de doutrina cristã
que são chamadas de patrística.

É muito importante saber algo aqui para entender toda esta história. O cris-
tianismo não é uma doutrina, não é uma tese filosófica, não é uma proposta,
uma hipótese ou uma proposição especulativa. O cristianismo é um fato his-
tórico. A gente não entende nada se não compreender isso. Por que aquilo
que nós chamamos de cristianismo resume-se fundamentalmente a quatro
evangelhos e o Atos dos Apóstolos. Todas essas coisas são narrativas de fatos
históricos. Há quarenta evangelhos, mas a Igreja só reconhece quatro. E a
razão pela qual a Igreja só reconhece quatro não é porque haja uma cons-
piração lá do Código Da Vinci ou coisa equivalente, mas é porque só esses
quatro têm certa sintonia, certa concordância entre si.

Porque era preciso escolher o que parecia mais provável. De todos os evan-
gelhos, esses quatro contam basicamente a mesma história. Tem lá um ou
outro ponto de divergência, mas fundamentalmente trata-se da mesma

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 113


história: a passagem de Jesus Cristo sobre a terra. Então o cristianismo é
baseado na descrição, na narrativa da passagem de Jesus Cristo sobre a ter-
ra, isso é que é o cristianismo. Portanto ele não é uma doutrina, ele é uma
narrativa factual. É como se os evangelistas fossem repórteres, no sentido
moderno da palavra. Então o cristianismo não é uma doutrina especulativa,
uma teoria sobre o mundo, como faz Kant, como faz Hegel. De certo modo
o cristianismo vai viver por causa disso mesmo. Ele foi mantido incólume
pela sua factualidade, pelo fato de que ele retrata uma coisa que aconteceu
num certo modo.

Mas na medida em que o cristianismo ia pegando peso e ficando maior,


ele começa a ser desafiado pelas pessoas da época. Então, o que acontece?
Começa a haver um processo de defesa de teses cristãs. Alguém fala: “Não,
mas como é que pode esse negócio de Jesus, Espírito Santo e Deus serem
a mesma coisa?” Começa a haver um processo de contestação. Na medida
em que essas contestações são feitas, representantes da Igreja (que naquela
época era só o catolicismo) começam a defender isso e os documentos que
vão sendo expedidos em defesa desse ponto do cristianismo vão aos pou-
quinhos gerando uma doutrina cristã, um corpo teórico doutrinário. Esses
documentos iniciais são chamados de patrística porque eram os primeiros
documentos dos padres da Igreja, dos Papas, dos grandes pensadores. Tudo
isso junto é patrística. Mas isso não está organizado num sistema. É apenas
um conjunto de comentários que pessoas inteligentíssimas fazem sobre de-
terminados fatos do cristianismo que estão sendo desafiados de fora pra
dentro. E de vez em quando aparece alguém no âmbito do cristianismo com
uma ideia estrambótica. Essas ideias são chamadas de heresias.

114 Professor José Monir Nasser


E para que uma coisa possa ser heresia, necessariamente tem que ser cristã.
Porque você não pode chamar um muçulmano de herético. Não pode cha-
mar um judeu de herético. Eles não são heréticos porque não são cristãos.
Mas dentro do próprio cristianismo começaram a aparecer interpretações
heterodoxas, sendo que a mais importante de todas nessa época foi a in-
terpretação de um determinado bispo, chamado Arius, negando a consubs-
tancialidade de Jesus Cristo e Deus. Negando que Jesus fosse Deus. Essa foi
a maior e mais grave heresia de todas. E é a primeira grande heresia com a
qual se defrontou a Igreja Católica. É uma heresia porque quem a professa
é católico. E ao mesmo tempo em que é uma heresia, é uma heresia fatal.
Porque se ficar provado que Jesus Cristo não é Deus, então o cristianismo
não vale absolutamente nada. E a vida de Jesus sobre a terra equivaleria a
uma espécie de aventura de Pedro Malasartes3 ... passa a ser só uma história
emocionante, mas de valor nenhum.

Você não pode, de modo algum, negar a consubstancialidade porque isso


destrói o próprio cristianismo. Então o que acontece é que ao longo do iní-
cio da era cristã havia lá as narrativas dos evangelistas, e na medida em que
vão havendo os ataques, a Igreja Católica se vê obrigada a ir construindo
uma série de defesas e documentos e argumentações para permitir prote-
ger determinados pontos de vista que lhe são fundamentais. Isso tudo cha-

3 Nota da revisora de transcrição – Malasartes, ou das Malasartes ou ainda Malasarte e Ma-

lazarte é um personagem tradicional da cultura portuguesa e da cultura brasileira. Segundo

Câmara Cascudo “Malasartes é figura tradicional nos sites de aposta populares da Península

Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e

de enganos, sem escrúpulos pois é o deus que ajuda os apostadores a ganharem”. Disponível

em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Malasartes. Acesso em: 15.out.2017.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 115


ma-se patrística e nesse mundo aí foi levado ao clímax, ao ponto mais alto,
com Santo Agostinho. Ele é o maior representante de todos desse mundo. É
o maior de todos os Pais da Igreja, nesse sentido de patrística, que faz a obra
mais densa, mais completa, mais extraordinária... Então Santo Agostinho faz
essa época chegar ao auge. E o nosso Boécio chega um pouco depois.

Então, qual é o problema? O problema é que já se está numa época em que


há um distanciamento muito grande da filosofia grega, que havia mais ou
menos acabado com Aristóteles (que morreu em 322 antes de Cristo). Nos
últimos trezentos anos da era pré-cristã a filosofia grega virou uma lastimá-
vel bobagem, perdeu completamente o seu valor. E estamos aí nos trezen-
tos anos depois de Cristo, seiscentos anos depois de Aristóteles e Platão.
Há uma situação em que há uma visão de que a Igreja Católica precisa de
um corpo teórico de conhecimentos e, ao mesmo tempo, há uma contra-
dição disso, que é o fato de que as escrituras, os evangelhos, em princípio
bastariam. Essa é a situação em que Boécio está. E nós vamos entender um
pouquinho melhor agora se a gente olhar pra sua biografia:

325 O Concílio de Niceia, reunido por Constantino I, declara herética a doutrina

de Arius, ou o arianismo, que nega a consubstancialidade entre Jesus e Deus.

Prof. Monir: Se você achar isso, você é herege. Então lembre-se disso. Je-
sus tem de ser Deus obrigatoriamente, se não o cristianismo não faz ne-
nhum sentido.

354 Nasce em Hipona, no norte de África, Santo Agostinho (354–430).

116 Professor José Monir Nasser


395 Com a morte de Teodósio (346–395), o império romano se divide em dois,

o do ocidente com capital em Ravena e o do oriente com capital em Constan-

tinopla.

Prof. Monir: Essa Constantinopla é uma cidade que foi batizada assim por
causa do Constantino e que antes chamava-se Bizâncio. A partir de 395, mais
ou menos na época em que tudo isso está acontecendo, o império romano
agora é dividido em dois pedaços, um fica com uma capital no oriente, onde
hoje é Istambul (a antiga Constantinopla), e uma no ocidente, em Ravena,
que mudaria para Roma.

476 O germânico Odoacro (433–493) depõe Rômulo Augusto e domina a Itália,

marcando o fim do império romano do ocidente.

Prof. Monir: Rômulo Augusto é o último imperador de estirpe romana.


O império romano, que já estava aos pedaços, passa a ser dirigido por um
bárbaro, teoricamente. Mas eles não eram tão bárbaros assim, porque a pri-
meira coisa que eles fazem, em vez de quebrar tudo, foi manter todo o sis-
tema jurídico romano funcionando. Eles mantêm as famílias patrícias (aris-
tocratas) com todo o sistema. O sistema político continuou sendo romano.
Em vez de os bárbaros imporem aos romanos os seus hábitos políticos, são
os bárbaros que tentaram tomar o poder de acordo com os hábitos políti-
cos romanos. Acontece de vez em quando, quando o conquistador é mui-
to menos culto do que o conquistado. Por exemplo, quando os romanos
conquistaram a Grécia, eles não impuseram à Grécia costumes romanos. Ao
contrário, os gregos é que acabaram transportando para Roma alguns dos
seus próprios modos de ser.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 117


O que aconteceu aqui foi que quando os germânicos tomaram o império
romano, teve muita briga e destruição também, mas quando começou a pa-
recer que ia virar uma coisa consolidada, os germânicos queriam governar
o império pelos critérios de Roma, e não o contrário. De modo que foram
mantidos os cargos e o poder relativo das dinastias aristocráticas romanas,
entre elas aquela de onde vem Boécio – ele era um aristocrata romano. Esse
Odoacro aqui faz isso.

c. 480 Anicius Manlius Severinus Boetius nasce em Roma, numa família patrícia,

cristã havia cem anos. Órfão aos sete anos, é adotado pelo aristocrata Quintus

Aurelius Symmachus, com cuja filha, Rusticiana, casar-se-ia.

Prof. Monir: Então o Boécio nasceu numa família patrícia, ficou órfão, mas
foi adotado por outra família patrícia. E casou com a filha do seu pai adotivo,
a Rusticiana.

494 O ostrogodo Teodorico, ou Dietrich (c.455–526), depois de tomar a Itália de

Odoacro, proclama-se rei em Ravena. Teodorico é ariano, como a maioria dos

bárbaros (menos os francos).

Prof. Monir: Aqui tem uma coisa importantíssima: como o arianismo foi
muito importante, esteve muito disseminado no mundo cristão logo no iní-
cio da era cristã, os bárbaros eram todos arianos. Achavam de fato que Jesus
não era Deus. Os francos não, eles eram o único grupo de bárbaros que não
achavam isso, que não tiveram essa educação errada. Então esse que depõe
o outro e sobe ao poder, o Teodorico, é fundamentalmente ariano. Ele já era
cristianizado, mas ariano. E não sabe que quem é ariano não é cristão de ver-
dade, porque ser um herético implica em você cometer um erro tão grave

118 Professor José Monir Nasser


que isso o expulsa a comunidade cristã. Mas ele pensa que é. Ele pensa que
é cristão, mas não é.

507 Teodorico comissiona tarefas a Boécio,

Prof. Monir: O Teodorico toma o poder mas não mata a nobreza, porque
eles não sabem lidar com aquela máquina judiciária sofisticadíssima. O im-
pério romano tinha uma máquina que era dirigida pelos romanos, você não
consegue substituir isso. Então o Boécio, como aristocrata, começa a ter fun-
ções sob o governo de um bárbaro, Teodorico, e começa a receber tarefas.

que tem cultura excepcional, possivelmente adquirida na Grécia. Boécio é autor

da tradução das Categorias de Aristóteles e de comentários sobre o Isagoge de

Porfírio. Escreveu o tratado Aritmética, o tratado De institutione musicæ, um trata-

do de astrologia e outro de geometria, cobrindo toda a extensão do quadrivium.

Prof. Monir: O quadrivium e o trivium eram os dois corpos de conheci-


mento que fundamentavam a educação na Idade Média. É uma abordagem
pedagógica genial, maravilhosa, que dizia o seguinte: o que a pessoa tem
que saber, como educação verdadeira, são quatro conhecimentos ligados
aos números e três ligados às palavras.

O trivium é a somatória de gramática, retórica e lógica. E quem aprende o


quadrivium aprende aritmética, geometria (mas não no sentido moderno
– geometria para um antigo é um estudo da qualidade do espaço). Se você
quiser entender isso muito bem, leia O Reino da Quantidade, um dos cinco
livros mais importantes já escritos no mundo ocidental e que explica isso
com uma competência inacreditável. Cada linha pesa um milhão de tonela-

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 119


das, dá pra ler o resto da vida. Neste livro o René Guénon demonstra que a
geometria é a ciência da qualidade do espaço, do mesmo modo que Pitágo-
ras demonstrava que a aritmética é a ciência da qualidade do número. Esse
é o sentido de geometria nessa época... é uma maneira de você entender o
que significa o triângulo, que não é apenas um objeto tridimensional – ele
tem um significado simbólico que tem que ser entendido.
A terceira habilidade do quadrivium é a astronomia, mas num sentido as-
trológico, novamente... Para o antigo, a astrologia é a ciência da qualidade
do céu. Há um céu em cima de nós e ele tem uma qualidade. Isso implica
de alguma maneira, simbolicamente, algum efeito aqui na Terra. Entender
a qualidade do céu é o que faz a astrologia. E a astronomia do tempo de
Boécio era isso. Tanto é que uma das acusações que lhe foram feitas era ser
bruxo, justamente por causa da astrologia. E a quarta habilidade do número
é a música. Reparem que o Boécio, na medida em que a obra dele represen-
ta uma teoria, foi quem teorizou as diversas habilidades ligadas ao quadri-
vium. O quadrivium era a metade da educação que uma pessoa recebia na
Idade Média. E nós estamos aqui ainda pelo menos quatrocentos anos antes
da Idade Média. O Boécio tem essa importância também.

Sua obra De Trinitate lança as bases do método filosófico escolástico.

Prof. Monir: Depois eu vou explicar isso com muita calma, porque é muito
importante.

510 Boécio torna-se cônsul (consul romanus).

519 Inicia-se em Constantinopla o reinado do católico Justiniano (482–565), que

iria até 527.

120 Professor José Monir Nasser


Prof. Monir: Esse aí não é ariano, esse é católico mesmo, aceita a tese da
divindade de Jesus Cristo. E começa um problema, porque os dois reinos
são separados, teoricamente são dois reinos cristãos, mas já há divergências
muito grandes entre os dois. Há um potencial de embate entre esses dois
reinos, o império do oriente e o do ocidente.

c.520 Boécio é indicado magister officiorum (mestre dos ofícios), equivalente a um

moderno chefe da casa civil.

522 Os dois filhos de Boécio tornam-se cônsules.

Prof. Monir: O que é uma coisa muito honrosa.

524 O senador Albino é denunciado a Teodorico por traição. Boécio, também

senador, o defende. Sob acusação de bruxaria (astrologia) e de conspiração em

benefício do imperador Justiniano, Boécio é preso por ordem de Teodorico. É

torturado na prisão do Ticinium em Pavia. Condenado à morte pelo senado, es-

creve na prisão A Consolação da Filosofia (De consolatione philosophiæ).

Prof. Monir: Começa o desastre na vida de Boécio. Albino é o outro sena-


dor além do Boécio. Teodorico acha que a acusação é verdadeira porque te-
mia a conspiração do Justiniano lá no outro império. E o Boécio vai defender
o colega. Por isso o Teodorico o vê como sendo cúmplice. Enquanto Boécio
esperava a morte, ele escreveu o livro que nós vamos ver hoje.

525 Boécio é executado em Pavia. O seu corpo está na igreja de San Pietro in

Cielo d’Oro, em Pavia, junto com o de Santo Agostinho. Boécio e seu pai eram

pessoas ímpares, de uma generosidade, pessoas de grande nível humanístico.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 121


Eram pessoas excepcionais. Seu pai adotivo, Símaco, teria sido morto algum

tempo depois.

Prof. Monir: O pai adotivo de Boécio foi morto pelo Teodorico em seguida
apenas porque defendeu o filho adotivo e genro.

526 Morre Teodorico. Segundo a lenda, o imperador teria sido assombrado por

fantasmas nos últimos dias.

Prof. Monir: Segundo o folclore, ele via todo o tempo os fantasmas dos
dois. Não conseguia dormir porque ficou assombrado pela culpa, né? Morre
de um modo muito lamentável. Passam-se muitos e muitos anos.

800 Renasce o império romano do ocidente com a coroação de Carlos Magno

(747–814).

Prof. Monir: Carlos Magno é coroado na noite de Natal, numa primeira


tentativa de fazer ressurgir o império romano na Europa. Essa tentativa, pela
mão dos francos, não deu certo. Em seguida, passados sessenta anos ou
algo assim, há uma segunda tentativa do Sacro Império Romano Germâni-
co, que é dos germânicos, não dos francos. Mudou a tribo aí que foi tentar
fazer isso. A primeira tentativa não deu certo.

1300 Na Divina Comédia, Dante menciona Boécio, colocando-o no canto X do

Paraíso:

Porque o bem distinguiu, seguro e certo,

fulge aquela alma que a ilusão falaz

do mundo vão deixou a descoberto;


122 Professor José Monir Nasser
o corpo de que foi banida jaz

lá em Cielodauro, onde sofreu o dano

do martírio que a trouxe à eterna paz.

Prof. Monir: É uma menção de muito valor. O Boécio está sendo visto aqui
pelo Dante, que é o intérprete da Idade Média, como uma pessoa de grande
mérito. Uma pessoa que foi martirizada, em última análise.

1453 Fim do império romano do oriente com a queda de Constantinopla para

o império otomano.

PROF. MONIR: Por causa disso, a Catedral de Santa Sofia, uma das mais belas
do mundo, foi transformada numa mesquita. Preservada, porém reciclada. E
Constantinopla passou a se chamar Istambul. Durante muito tempo referen-
ciou-se a cidade com os dois nomes, mas hoje perdeu-se completamente o
nome de Constantinopla.

1883 A Sagrada Congregação dos Ritos canoniza Boécio como São Severino

Boécio e estabelece o dia vinte e três de outubro para seus festejos.

PROF. MONIR: Portanto Boécio é santo. Santo da Igreja Católica. Esse fato é
de algum modo polêmico, porque como vocês verão na obra que nós va-
mos ler agora, não há uma única menção a Jesus Cristo. Por que não há? É
isso que eu preciso explicar pra vocês com toda a calma agora, pra gente
entender bem a obra. Boécio está escrevendo essa obra perto da sua morte,
que foi em 525 da era cristã. Nesse momento tinha o que havia sobrado do
mundo antigo, da filosofia grega, e já havia um corpo chamado patrística,
de doutrina cristã.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 123


O que o Boécio fará é uma das coisas mais notáveis que aconteceu na his-
tória da filosofia: havia aí dentro da patrística uma grande divergência con-
ceitual entre dois caminhos possíveis. Uma parte da patrística, sobretudo a
parte que estava impregnada pelo espírito grego, dizia que agora era hora
de sistematizar o que se sabia sobre o cristianismo e que estava fora dos
evangelhos, ou seja, tudo aquilo que foi adicionado ao conteúdo do cristia-
nismo, e isso devia ser feito pelos critérios filosóficos da antiguidade grega.
Havia por outro lado um outro grupo patrístico, que era o romano, que dizia
que não dava pra fazer isso, porque esse seria o maior de todos os males, o
caminho do diabo. Enquanto os gregos diziam que a filosofia era a porta de
entrada do cristão, de apresentação para Deus, que só a filosofia poderia
explicar verdadeiramente o que era o cristianismo, havia por outro lado um
grupo que achava que essa era uma coisa muito perigosa, que você não
podia transformar o cristianismo numa filosofia, porque em última análise o
cristianismo é o relato de um acontecimento histórico e factual.

Nunca esqueçam isso. Que o cristianismo é baseado em quatro depoimen-


tos de quatro testemunhas, três diretas e uma indireta, da passagem de Je-
sus Cristo sobre a terra. E então o Boécio está no meio dessa briga. Ele pro-
vavelmente havia estudado na Grécia, embora não se tenha certeza disso,
e dominava todos os conteúdos filosóficos antigos. Em um texto de cinco
páginas (vocês podem baixar da internet), chamado De Trinitate, ele tenta
demonstrar porque é necessário aceitar filosoficamente que Pai + Filho + Es-
pírito Santo são a mesma coisa – uma das restrições mais comuns à doutrina
cristã é que não é a mesma coisa. Será que não há uma hierarquia entre si?
Será que não vem primeiro o Pai, depois o Filho e aí o Espírito Santo?

124 Professor José Monir Nasser


Pois essa ideia é debatida por Boécio nesse pequeno texto, que é uma tenta-
tiva de dar uma abordagem de racionalidade filosófica a um tema religioso.
O resultado disso na prática é que quem inventou a tal da escolástica foi
o Boécio. Porque esse método de dar um tratamento filosófico a questões
cristãs, ligadas à doutrina, ao corpo doutrinal da religião católica, é o que
nós chamamos depois de escolástica. Lá pelo ano 800 começa a nascer essa
técnica filosófica que deve ter sido a mais magistralmente sofisticada de to-
das, cujo ponto mais alto (muito tempo depois), deve ter sido São Tomás de
Aquino. Enquanto Santo Agostinho é o ponto mais alto da patrística, São
Tomás é o ponto mais alto da escolástica.

Mas está justamente em Boécio (não só nele, mas sobretudo nele), o germe
dessa transição. Quer dizer, foi feita uma abordagem filosófica em torno dos
conhecimentos que são factuais da doutrina católica, ou cristã (não tinha
diferença naquela época). Boécio, portanto, vocês verão pelo texto que vão
ler, é o sujeito que inventa isso. E a história que vamos ler em seguida é a his-
tória do corredor da morte. Ele havia sido torturado com um processo de se
apertar a cabeça com uma cinta de couro. Os olhos saiam pelas órbitas, uma
coisa medonha, horrorosa. E ele encontrava-se lá na prisão, destituído de
tudo – não tinha mais família, casa, não tinha importância nenhuma. Ele era
afinal de contas senador do império romano, não era um qualquer. Ele tinha
um poder enorme e tinha dado demonstrações a vida inteira de piedade e
generosidade ímpares. Era um sujeito extraordinariamente cuidadoso, e en-
contra-se lá torturado no corredor da morte, com a sua execução iminente.

O sogro subornava os guardas e mandava para a cela dele os materiais de


escritura da época: papiro, o que fosse, tinta. E Boécio escreve essa história
em que ele, desesperado com a situação em que está, recebe de repente a

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 125


visita de uma mulher, que é a Filosofia em pessoa. E a Filosofia vem debater
com ele a situação em que ele está, mostrando que ele pode estar muito
enganado em sentir-se tão mal. Talvez ele não esteja tão mal quanto pensa.
Essa é a história que nós vamos ver. O livro é escrito na forma de um pouco
de texto, um pouco de poesia, um pouco de texto, um pouco de poesia.
Nós tiramos a poesia porque não ia dar pra fazer isso tudo, mesmo porque
a poesia é rebarbativa. Ele diz a mesma coisa em linguagem poética e em
linguagem discursiva. Então de vez em quando a gente põe alguma poesia,
como é o caso do início. Começa tudo com a declaração de desespero de
alguém que teve a sua vida completamente destruída e que começa a de-
bater a sua própria situação com uma criatura que aparece, que é a Filosofia.

Resumo da narrativa

Anício Mânlio Severino Boécio escreveu A Consolação da Filosofia no cárcere,

aguardando sua execução. Os meios para a redação da obra foram introduzidos

na prisão por seu sogro, Símaco, que subornava os guardas. A narração, alter-

nando prosa e verso, transcreve o diálogo entre Boécio e uma mulher misteriosa

que o visita, a Filosofia. A Consolação da Filosofia teria sido o segundo livro mais

lido na Idade Média, perdendo só para a Vulgata (a versão em latim da Bíblia,

feita por São Gerônimo). Esta última obra do escritor patrício exemplifica a fusão

entre a filosofia antiga e o cristianismo, criando a escolástica. Martin Grabmann

(pensador sobre a Idade Média) dizia de Boécio “ser o último dos romanos e o

primeiro dos escolásticos”.

PROF. MONIR: A escolástica é uma metodologia filosófica que consiste em


você apor dialeticamente restrições a uma determinada afirmação: “Tal coi-

126 Professor José Monir Nasser


sa é assim”. A escolástica é um método de lidar com esse assunto em que
uma outra pessoa aparece e faz uma pergunta para inviabilizar essa afir-
mação. O nome desse pedaço do método chama-se disputácio. Então dois
sujeitos começam a conversar, e para que um possa refutar a afirmação do
outro, é requerido ser capaz de reproduzir o que o outro disse com todos os
detalhes, antes de se opor. Para garantir que o adversário entendeu o que é
que de fato que o outro está falando. Esse método da Idade Média fez a ma-
ravilha que é a Suma Teológica, de São Tomás de Aquino. É o método filosófi-
co mais sofisticado que o mundo já teve, hoje completamente abandonado.

Houve uma tentativa no século XX de ressuscitar o tomismo, que é a mes-


ma coisa, sobretudo pelo filósofo francês Jacques Maritain. Não deu muito
certo, não foi muito bem-sucedida. Mas o Boécio é justamente o inventor
disso. Ele consegue debater assuntos de Deus com metodologia filosófica.
A possibilidade de conseguir fazer isso é sua contribuição extraordinária ao
que se chama escolástica (que depois terá seu auge com São Tomás Aquino,
por volta de 1200, mas começa já pelo ano 800). Porém dentro de Boécio
já existem todos os componentes estruturais do método, e é por isso que
se diz que ele é essa pessoa intermediária entre o mundo latino e o mundo
escolástico, que era completamente medieval. A escolástica não é uma arte
da antiguidade. O Boécio está naquele meio termo onde não aconteceu
muita coisa. É por isso que é raro você encontrar o Boécio. Não aparece nem
mesmo como verbete nos dicionários de filosofia. O que é uma vergonha
total e completa, porque se você for colocar o Derrida, tem que botar Boécio
também, com muito mais razão.

A linguagem que ele usa é extremamente simples, completamente acessí-


vel. Começa então com o Boécio reclamando da vida.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 127


Livro I

I.1

Eu, que outrora compunha poemas plenos de alegria,

Ai, sou agora forçado a usar de tristes metros!

E eis que as Musas me ditam versos de dor,

E a elegias enchem meu rosto de verdadeiras lágrimas.

Pelo menos elas não foram tomadas de medo

Nem deixaram de ser companheiras neste amargo caminho.

Glória de uma juventude outrora feliz e promissora,

Consolam agora o destino infeliz de minha velhice.

PROF. MONIR: Ele só tem quarenta e cinco anos, é uma velhice meio anteci-
pada, mesmo pra época. Ele tem quarenta e cinco anos e acabou a vida! Vai
morrer dali a dias.

Aluna: [Faz um comentário.]

PROF. MONIR: Olhe, isso é um pouco de folclore. No fundo há longevos em


toda a época. Platão viveu oitenta anos.

Aluna: [Faz um comentário.]

PROF. MONIR: Mas isso é por causa dos românticos, que achavam lindo fazer
isso. Teve uma época, no século XIX, que não havia nada mais charmoso do
que morrer bem jovem. Com mais de vinte e cinco anos, já não deu mais,
você já fracassou na sua vida. Mas veja, o Boécio é da aristocracia, é um sujei-

128 Professor José Monir Nasser


to que teve uma vida confortável. Então quarenta e cinco anos para alguém
da aristocracia romana garantidamente é pouco. Mais ele vai falar isso para
nós com outras palavras:

Pois repentinamente veio a inesperada velhice,

PROF. MONIR: Viu? A inesperada velhice. Ficou velho assim, de repente.

E com ela todos os seus sofrimentos.

De repente minha cabeça encheu-se de cabelos brancos,

E o meu corpo cobriu-se de rugas.

A morte do homem é feliz quando, sem atacar os doces anos,

Nos acolhe no momento propício, e atende ao chamado dos doentes.

Mas ah!, como ela sabe se fazer surda aos miseráveis,

E, cruel, ignorar os olhos em prantos!

Quando a malévola Fortuna me favorecia com bens perecíveis,

Quase me arrastou para a queda fatal.

Mas agora, tendo revelado seu vulto enganoso,

Eu imploro, e a morte se nega a vir a mim.

Por que proclamastes muitas vezes minha felicidade, amigos?

Quem se desvia é porque não estava no caminho certo. (págs. 3-4)

PROF. MONIR: Começa aqui com poesia. Vamos ter de vez em quando uma
poesia. Na verdade têm tantas poesias quanto capítulos em narrativa, nós
não colocamos no resumo porque não dá pra ver tudo. Mas tem uma poe-
sia bonita pra cada coisa, e ele então está dizendo aí o quanto a vida dele
acabou mal, né? Não esqueçam que não se trata de uma pessoa qualquer,

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 129


trata-se de um sujeito que estudou muito, que estudou os gregos, é tradu-
tor dos grandes filósofos gregos, então é um sujeito muito qualificado e que
no entanto encontra-se num estado lastimável. Muito bem.

I.2

Enquanto meditava silenciosamente essas coisas comigo e confiava aos meus ma-

nuscritos minhas queixas lacrimosas, vi aparecer acima de mim uma mulher que

inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e revelavam uma

clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma

força inexaurível.

PROF. MONIR: É o Boécio falando dele, né?

Ela parecia ter vivido tantos anos que não era possível que fosse do nosso tempo. Sua

estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras vezes parecia

atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos

céus e desaparecia dos olhares humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos

fios, trabalhados minuciosamente e feitos de um material perfeito; ela revelou mais

tarde ter sido ela própria quem teceu a veste. A poeira dos tempos, assim como acon-

tece com o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor.

PROF. MONIR: Essa mulher parecia um pouco maltratada pelo tempo, né?
Tão vendo? Não está cem por cento.

Embaixo de sua imagem estava escrito um Pi e em cima um Theta.

130 Professor José Monir Nasser


PROF. MONIR: Pi e Theta, duas letras gregas. Pi que é a letra “P”, o símbolo da
Filosofia, mas na verdade aqui esse Pi refere-se a “práxis” (prática). E o Theta
(Θ) é a letra “T”, que soa mais ou menos como “Ph” em inglês, que é a primei-
ra letra de “teoria”. Então nessa moça, nessa senhora, que ele não sabe quem
é ainda, estão escritas essas duas letras – teoria e prática.

E, entre essas duas letras, via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento

inferior ao superior. No entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma

tomou um pedaço dela.

PROF. MONIR: Viram que a teoria está acima da prática? Porque para um gre-
go, nada mais importante do que a teoria. O ideal de sucesso humano para
um grego é o sujeito que consegue o ter o bios teoreticus, um sujeito que
consegue viver com capacidade de contemplação da verdade. Isso é o gran-
de ideal humano. Ganhar dinheiro é uma coisa que não é um valor humano
universal. Pode ser importante para um ou outro, mas para um grego, tudo
é teoria, a prática fica subordinada a ela. Não esquecer nunca isso. E está
dizendo que “mãos violentas rasgaram sua veste e cada um tomou um pedaço
dela”. Do que será que ele está falando? Vocês têm alguma ideia? Ele está
falando tanto do epicurismo, quanto do estoicismo, quanto do cinismo. Ou
seja, quando acaba a filosofia grega, quando morre Aristóteles, algum tem-
po depois o Epicuro inventa o Jardim de Epicuro.

Então Platão tinha a Academia, depois Aristóteles tinha o Liceu – Aristóte-


les foi aluno de Platão e morreu em 322. Alguns anos depois, esse Epicuro
monta também uma escola de filosofia chamada Jardim, que era num jar-
dim. E os estoicos se reuniam num portão, por isso se chamavam estoicos
(“stoa” é a palavra grega para “pórtico”), e tinham lá outra escola de filosofia.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 131


O que ele está dizendo é que depois da morte do Platão e do Aristóteles,
houve uma decadência tão extraordinária na filosofia grega, que é mais ou
menos como se o Teixeirinha entrasse pra cantar depois do Frank Sinatra.
Alguma coisa equivalente assim, tá? Depois da Paixão segundo São Mateus,
de Johann Sebastian Bach, entrar um sujeito ali para cantar um pagode, Só
no Sapatinho, entende? É mais ou menos assim.

A filosofia grega depois de Aristóteles transformou-se numa espécie de PNL,


programação neurolinguística. Todo o mundo achava que o objetivo da filo-
sofia era deixar a pessoa numa boa, com a alma serena. Como se fosse esse
o sentido da filosofia! A filosofia serve pra você descobrir a verdade, mesmo
que ela seja perturbadora. Imaginar a filosofia como um instrumento pra
deixar você bacana, legal, uma espécie de prozac, foi uma invencionice que
aconteceu num tempo tão curto, após a morte de Aristóteles, que está aqui
o Boécio dizendo que a Filosofia veio toda arranhada. Como alguém que
chega depois de uma briga, assim com as roupas todas rasgadas. Foi vítima
de uma espécie de estupro, foi o que aconteceu com a filosofia depois de
Aristóteles.

Mas ela tinha livros na mão direita e um cetro na esquerda. Quando viu as Musas

da poesia junto a mim, cantando versos de dor, ficou muito perturbada e, lan-

çando-lhes olhares inflamados de cólera, disse: ‘Quem permitiu a estas impuras

amantes do teatro aproximarem-se deste doente? Elas não só não podem reme-

diar a sua dor como vão ainda acrescentar-lhe doces venenos’.

PROF. MONIR: Na hora em que ela vê lá o Boécio cantando sua dor com
as musas, ela fica furiosa, porque acha que aquela choradeira não vai levar

132 Professor José Monir Nasser


a lugar nenhum. Que conversa é essa de contar os males aqui? A Filosofia
começa dando um corridão nas musas que estavam ali em volta do Boécio.

São elas que por lamentos estéreis das paixões matam a acuidade da Razão, fazem

com que a alma humana se acostume à dor e não a deixam mais sossegada. Se pelo

menos importunásseis um neófito com vossas insídias habituais, eu não daria gran-

de importância, não estaríeis importunando um de meus discípulos. Mas justamen-

te a este, versado nos estudos eleáticos e acadêmicos? Afastai-vos, Sereias de cantos

mortais, e deixai que eu e minhas próprias Musas curemos o doente.

PROF. MONIR: Então aí a Filosofia tomou o controle da situação. O que se


quer dizer com estudos eleáticos? Eleia é uma cidade da grande Grécia que
fica na Itália, é a cidade de Parmênides. Há um conhecimento filosófico de
Parmênides que é fundamentalmente o conhecimento da ideia de unidade.
Os dois maiores representantes desse tipo de conhecimento são Parmêni-
des e Zenão de Eleia, os dois pré-socráticos (de antes de Sócrates). Eu, por
exemplo, os acho admiráveis. Tenho uma enorme admiração pelos pré-so-
cráticos, embora sejam meio desvalorizados na literatura de modo geral. O
que ele está dizendo é que o Boécio aprendeu princípios de Parmênides e
quando se fala em “acadêmicos” nessa época não se está falando de univer-
sidade, mas de Platão. Platão tinha a Academia, que era o nome da sua es-
cola de filosofia. Ficava do lado do Academus, que era um grego lá que tinha
um estabelecimento de educação física. Ele comprou uma área do lado e fez
a Academia. Quando você fala de Aristóteles, está falando do Liceu, quando
está falando Epicuro, está falando do Jardim. E assim são os nomes que se
dá pras escolas.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 133


O que sabemos é que Boécio tem uma formação de Parmênides e uma for-
mação platônica, é o que está sendo dito aqui. Mas na verdade ele é mais
do que isso. Ele é também um aristotélico, na medida em que na época ele
tinha acesso a parte da obra do Aristóteles, porque a parte maior estava
ainda desaparecida.

Com essas palavras, o coro harmonioso baixou os olhos com tristeza e atirou-se pie-

dosamente ao solo com o rosto rubro de vergonha.

PROF. MONIR: Quem era o coro harmonioso? Aquelas musas ali, que esta-
vam incentivando a choradeira.

Quanto a mim, estava com os olhos tão cheios de lágrimas que não podia discernir

essa mulher que tinha tanta autoridade; calado, atirei-me ao solo e esperei em silên-

cio o que ela iria fazer. Então ela se aproximou e se sentou ao pé da minha cama e,

vendo minha grande tristeza e terrível aflição, deplorou nestes versos a perturbação

da minha alma: (págs. 4-5)

I.3

Oh, quão fundo mergulhou sua mente e,

Abandonando sua própria razão,

Dirigiu-se às trevas exteriores

Quando as delícias da Terra

Alimentam e fazem crescer sua maléfica angústia!

PROF. MONIR: É a Filosofia falando do Boécio.

134 Professor José Monir Nasser


Este homem, outrora livre, estava acostumado

A percorrer os etéreos caminhos a céu aberto.

Ele discernia a luz rósea do Sol

E as constelações da gélida Lua.

Perscrutava a órbita de todas as estrelas mutantes

E, vitorioso, subjugava-as em fórmulas matemáticas.

Ele sabia de onde vinham os ventos violentos

Que elevam as águas do Oceano;

O espírito que anima o curso imóvel dos astros

E por que as águas vespertinas acolhem o astro do levante.

Que lei rege as horas amenas da primavera

Que permite que a Terra se encha de flores

E faz com que, no fim do ano,

O fecundo outono amadureça as grossas uvas.

Tudo isso o enchia de curiosidade, e ele encontrava

As explicações nos mistérios da Natureza.

Mas ei-lo aqui, prostrado,

Desprovido de sua inteligência,

Com a nuca curvada sob o jugo

E vergado ao peso do corpo.

E, infeliz, é obrigado a fixar os olhos no chão. (págs. 3-6)

PROF. MONIR: Quer dizer, sob o ponto de vista da Filosofia, o Boécio está
uma lástima e uma porcaria. Porque ele que pensaria coisas, que sempre ti-
nha feito progresso, agora encontra-se completamente perdido, lamentan-
do-se com as musas, naquela situação que ele está vivendo, que a Filosofia
pretende curar. Começa a nossa história agora nesse momento.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 135


I.4

A mulher diz a Boécio que “agora é o tempo da emenda, não da lamentação!”

Mas és tu que outrora foste nutrido com nosso leite, com nosso alimento, que se exer-

cia com uma força viril? E, no entanto, tínhamos te fornecido todas as armas neces-

sárias para venceres, perdeste-as por tua culpa, e com elas vencerias! Tu me reconhe-

ces? Por que te calas? É a vergonha ou o abatimento? Oxalá fosse a vergonha! Mas

não, é o abatimento que te oprime. (pág. 7)

Ela põe a mão ternamente sobre o peito de Boécio, diz que ele nada deve temer

e que ela lhe vai abrir os olhos, e enxuga suas lágrimas.

I.5

Então se dissiparam as trevas noturnas, e a meus olhos foi dada a capacidade de

discernir novamente a luz. (pág. 7)

PROF. MONIR: A hora em que ela começa a falar com ele, ele de repente se
ilumina e começa a enxergar alguma coisa novamente. Essa frase é mui-
to bonita, e de certo modo foi mantida, de vez em quando você encontra
como referência por aí nos livros.

I.6

E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz celeste e

recebi o discernimento para contemplar aquela face.

136 Professor José Monir Nasser


E, mal dirigi o olhar a ela, reconheci minha antiga nutriz, que desde a adolescência

freqüentava a minha mente: era a Filosofia. (pág. 8)

PROF. MONIR: Vocês entendem o que é nutriz? É aquela que nutre. A mãe,
por exemplo, que dá o peito ao filho é nutriz. Usa-se essa expressão na me-
dicina também. Ele reconheceu finalmente a quem lhe dava de comer, que
era a Filosofia. Finalmente o Boécio reconhece aquela pessoa que está ali.
É claro que tudo isso é ficção, compreenderam? É uma ficção que tem, no
fundo, um sentido filosófico, mas isso não é muito comum. De modo geral
você não faz assim em livros de filosofia. Mas é um livro de filosofia, basica-
mente é isso.

Perguntada o que faz ali, a Filosofia responde que para ela “não é lícito deixar

caminhando sozinho um discípulo seu.” Lembra o caso de Sócrates que por ela, a

Filosofia, foi transformado em imortal.

PROF. MONIR: Vocês sabem disso porque quem esteve aqui ano passado
fez a Apologia de Sócrates no programa, um dos mais importantes livros. A
Apologia de Sócrates é a história que relata, como os evangelhos... há mui-
ta semelhança, guardada as proporções, entre a Apologia de Sócrates e os
evangelhos. Porque Sócrates, assim como Jesus Cristo (sempre guardan-
do as proporções, por favor), é um sujeito que não escreveu uma linha. E a
Apologia de Sócrates, por todos os meios com que você analise, tem de ser
aceita como uma reportagem histórica. Porque o Xenofonte escreveu tam-
bém uma Apologia de Sócrates e é muito parecida com a de Platão. E os dois
não iam combinar. Então a Apologia de Sócrates é o relato do que aconteceu
de fato no julgamento de Sócrates. E Sócrates morre pela Filosofia, ou seja,
ele sabe que a única possibilidade de continuar havendo alguma Filosofia é

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 137


se ele se submetesse a ser cordeiro. É muito parecida a situação do Gregor
Samsa de A Metamorfose e o Sócrates. Quer dizer, aqui está a Filosofia di-
zendo que ele não é o primeiro mártir, que antes houve também Sócrates.

Mais tarde. A turba do popular Epicuro, os estóicos e muitos outros ainda disputa-

vam sua herança. Nem reclamando nem resistindo, escapei de ser eu mesma parte

da presa.

PROF. MONIR: Viu? Confirmando o que eu tinha dito pra vocês, os que estão
tentando arrancar a roupa da Filosofia são essa gente. Porque o epicurismo
é o fim do fim. Você pega os cínicos, pega Diógenes, que achava que o apro-
priado pra humanidade era ir ao banheiro em qualquer lugar. Achava estra-
nhíssimo que uma pessoa fosse ao banheiro num lugar específico. Como
é que pode, depois de Aristóteles aparecer um sujeito tão imbecil a ponto
de ter reduzido a Filosofia a uma coisa dessas? É isso que ela está dizendo
aqui. Nessa época o Boécio já sabia o quanto significava de regressão, de-
pois da morte de Aristóteles, essas filosofias helenistas, né? Digamos assim,
essas que foram pertencentes à Grécia helênica, do tempo de Alexandre,
não mais à Grécia clássica. Todas elas são decadentes.

A veste, que eu havia tecido com minhas próprias mãos, foi rasgada e arrancada, e os

que fizeram isso partiram com os farrapos pensando tê-la inteira.

PROF. MONIR: Olhem que maravilha! Eles levaram um pedacinho e acharam


que levaram a Filosofia.

138 Professor José Monir Nasser


E, como reconheciam nesses farrapos vestígios de minha túnica, algumas pessoas

desavisadas tomaram aqueles malfeitores por discípulos meus e foram levados por

eles ao erro e ao engano.

PROF. MONIR: Ela os está chamando de malfeitores! Que coisa importante,


isso. Isso foi escrito em 524. Já se tinha uma ideia clara disso.

Pois, se nem do exílio de Anaxágoras, do veneno dado a Sócrates ou dos tormentos

de Zenão ouviste falar, pelo menos de Cânio, Sêneca e Sorano, cuja fama não é por

demais antiga, e da qual ainda se conserva a memória, podes facilmente estudar a

doutrina.

PROF. MONIR: Ela está dando exemplo de filósofos que foram martirizados.
O Anaxágoras é um pré-socrático e foi exilado, o Sócrates foi morto por ve-
neno. O Zenão de Eleia também foi torturado e morto, ele é discípulo de
Parmênides. E Cânio, Sêneca e Sorano são três filósofos latinos, romanos,
sendo que grande mesmo é só o Sêneca, os outros dois são menores. Todos
eles foram obrigados a se suicidar. Porque o Nero achou que os estoicos,
que era essa turma aqui, estava querendo derrubá-lo. Matou todos. Então
ela está dando exemplos de gente que foi martirizada como Boécio está
sendo agora.

O que os levou a serem malvistos foi que, imbuídos de meus princípios morais, eles

eram totalmente distintos da turba. (págs. 8-9)

PROF. MONIR: Está falando dos maus filósofos, tá?

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 139


I.8

Boécio reclama do modo como a Fortuna o tratou. Culpa a Filosofia por ter dita-

do, pela boca de Platão, que “seriam felizes os estados governados pelos sábios ou

que consagrassem à filosofia”.

PROF. MONIR: Aí você tem uma coisa importantíssima que é a tese de Platão
em A República sobre o rei-filósofo. Então Platão achava, equivocadamen-
te – muito equivocadamente – que o governante tem de ser filósofo. Ele
tentou isso três vezes na prática e nas três vezes deu errado. Na primeira
ele foi vendido como escravo numa feira e foi comprado por um aluno. En-
tão eu espero, no dia que acontecer isso comigo, que vocês se lembrem de
mim com a mesma delicadeza. [risos] Já pensou que coisa mais estranha os
alunos comprarem o professor numa feira? Vendido como escravo... O Pla-
tão atesta, no livro A República, que o governante, para dar certo, tem que
ser filósofo. O rei-filósofo é o sujeito que governará civelmente a socieda-
de, ou seja, temporalmente, e que também tem as condições de sabedoria
ao mesmo tempo. Isso não dá certo. Embora eu diga pra vocês que não dá
certo (e esse assunto tomaria uma aula inteira), ele está justamente sendo
implementado hoje sob o nome de Nova Ordem Mundial. Eu digo que não
dá certo na teoria, porque em tese é o modo como o mundo está sendo
governado. Mas ele não dá certo na teoria porque o poder temporal, que
é o poder do rei, é profundamente diferente do poder espiritual, que é o
poder do sacerdote (que é o filósofo, de certo modo). Quem matou a cha-
rada foi o Eric Voegelin, que disse assim: “O poder espiritual, para poder ser
verdadeiramente poder, tem de ser aceito com total liberdade, se não, não
é poder de verdade”. Ora, você não pode então botar esses dois poderes no
mesmo sujeito, porque você nunca sabe se você está obedecendo o sujeito

140 Professor José Monir Nasser


porque você acredita nele com total liberdade, ou porque ele tá com um 45
na cintura e vai te obrigar a obedecê-lo. Portanto, você não pode ter o poder
temporal e o poder espiritual na mesma pessoa, e portanto o rei-filósofo
não dá certo.

Então o Boécio tá dizendo para a Filosofia: “Mas não foi você que disse, pela
boca de Platão, que era melhor que os filósofos fossem reis?” Porque Boécio
estava lá metido com a política de Roma. Entenderam que ele era um gover-
nante-filósofo? Ele tá dizendo isso: “Como é que isso não funciona, se você
que deu essa ideia?” Vamos ver como é que a Filosofia se defende dessa.

Tu, pela boca do mesmo filósofo, me persuadiste de que os sábios deveriam governar

os estados, para impedir que o governo caísse nas mãos de pessoas sem escrúpulos

e sem palavra, e que fosse uma praga para os bons. Então eu, inflado por essa supre-

macia e com os ensinamentos que foram dados no início e longe da multidão, decidi

aplicá-los na vida política. Tu sabes, e também Deus, que te fez penetrar no coração

dos sábios, que apenas o desejo de realizar o bem geral me arrastou à política. (pág.

11)

I.10

A Filosofia diz a Boécio que ele não foi desviado de sua pátria, mas baniu-se dela.

De fato, não podias ser banido por ninguém. Se te lembrasses de tua verdadeira pá-

tria, saberias então que ela não era, como a Atenas de outros tempos, governada

pela opinião da maioria, mas ‘por um só mestre e um só rei4’ , que se alegra com o

crescimento de seu povo, e não com o banimento.

4 Homero, Ilíada.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 141


PROF. MONIR: A pátria do Boécio não é o mundo temporal. É isso que ela
está dizendo. “Você esqueceu que você mora na Filosofia, você não mora no
governo”. Ela está dizendo pra ele que ele é que fez confusão, que não é pra
ele se mudar para o mundo temporal, mas pra ele ficar no mundo espiritual,
que é o lugar do filósofo – o mundo das ideias.

De fato, deixar-se guiar e frear por ele e obedecer à sua justiça: nisso consiste a ver-

dadeira liberdade. Por acaso ignoras uma antiqüíssima lei de tua cidade, que proíbe

serem expulsos os que a escolheram como pátria? Com efeito, estando ao abrigo de

seus muros e fortificações, não se deve temer o risco de ser exilado. (pág. 18)

PROF. MONIR: Se a pátria for a Filosofia.

Mencionando o pedido que Boécio fizera a Deus, a Filosofia assevera:

Mas eis que tua alma foi grandemente perturbada por sofrimentos e sentimentos

de cólera e desespero que te puxam por todos os lados e te fazem ter disposições de

espírito tais que não é possível ainda tratar-te com um remédio eficaz. Dessa forma,

por um tempo usaremos de alguns remédios paliativos: assim, a espessa casca que a

desordem de tuas emoções acabou por transformar num tumor será removida, pri-

meiro por uma leve massagem que a preparará para ser tratada mais tarde por um

medicamento eficaz. (pág. 19)

PROF. MONIR: A Filosofia não vai dar o remédio, porque ele está muito mal.
Então ela vai começar com uma terapia mais leve.

142 Professor José Monir Nasser


I.12

A Filosofia pede permissão para interrogar Boécio “para saber que tipo de cura

deve aplicar”.

E ela disse: ‘Achas que este mundo é conduzido por fatos acidentais e governado pela

Fortuna, ou achas que é governado por uma Razão? Eu respondi: ‘Seria impossível

crer que um universo tão bem ordenado fosse movido pelo cego acaso: sei que Deus

preside aos destinados à Sua obra, e nunca me desapegarei dessa verdade’. (pág. 20)

PROF. MONIR: Nessa época, o mínimo que se espera de um ser humano nor-
mal é que você reconheça que há alguma ordem no mundo. Por mais que
exista uma dificuldade humana de enquadrar essa ordem em equações, por
mais que exista alguma variação nessa ordem em torno de um tema, não dá
pra você imaginar que isso é uma coisa aleatória. Nunca ninguém viu cho-
ver pra cima. Quando você vai pra casa de noite, ela está sempre no mesmo
lugar onde você deixou. Você não sai pela cidade inteira procurando a sua
casa que teria mudado de bairro. Não é assim? Claro, algumas pessoas be-
bem demais... talvez num caso desses isso seja possível, mas de modo geral
não é assim. Então o mínimo que se espera que alguém faça é que aceite
o fato de haver um cosmos, que é palavra grega para “ordem”. “Cosmos” e
“ordem” é a mesma coisa. Então há um cosmos em torno de nós que é de
alguma maneira irretratável, quer dizer, ele não pode ser completamente
descrito. Então há uma certa característica probabilística na ciência. A ciên-
cia não pode ser absoluta em hipótese nenhuma porque ela não consegue
pelos seus meios criar uma descrição perfeita do cosmos. Mas isso não quer
dizer que ele seja caótico.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 143


Aluno: [Pergunta sobre o sentido da palavra “Fortuna”.]

PROF. MONIR: Sim, “Fortuna” é sorte, isso mesmo. Nesse sentido. O que acon-
tece? O Boécio tá dizendo que a sorte dele era muito boa e agora está uma
bela porcaria. Ele está reclamando que a sorte mudou, não é isso? A sorte
dele mudou – ele era quase rei e agora ele é um sujeito que vai morrer dali a
pouco, que vai ser executado com quarenta e cinco anos.

A Filosofia se declara surpresa com ele estar doente da alma, tendo pensamen-

tos tão elevados. Continua a indagação, perguntando se Boécio sabe o que é

um homem. Tendo ele respondido ser o homem “um animal racional e mortal”,

ela conclui:

Agora reconheço uma outra causa principal: deixaste de saber o que tu és. Assim,

desvendei completamente a causa de tua doença, bem como a maneira de te curar.

De fato, é devido ao esquecimento que estás perdido, que te lamentas de ter sido exi-

lado e privado de teus bens. É porque desconheces qual é a finalidade do universo que

imaginas serem felizes e poderosos os que te acusaram. É porque esqueceste as leis

que regem o universo que julgas que a Fortuna segue seu curso arbitrário e que ela é

deixada livre e soberana. (pág. 21)

Tendo diagnosticado a doença de Boécio, a Filosofia decide tratá-lo prudente-

mente, tentando “por um tempo dissipar por atividades sutis e mesuradas as trevas

de tuas impressões enganosas, para que possas (Boécio) reconhecer o brilho da ver-

dadeira luz”.

144 Professor José Monir Nasser


PROF. MONIR: Como ele tá muito doente, ela vai devagar. Do ponto de vista
filosófico, ele está profundamente doente. Ela vai atacar o problema de um
jeito cuidadoso.

Livro II

Iniciando a terapia, a Filosofia declara:

Se eu compreendi perfeitamente as causas e a natureza de tua doença, creio que é

por sentires profundamente a perda de tua Fortuna anterior que desfaleces. É apenas

o que tomas por uma reviravolta da Fortuna que agita teu espírito. Conheço todos

os multiformes embustes que ela usa para enganar os homens até torná-los loucos e

desesperados, abandonando-os em seguida a qualquer momento. (pág. 25)

PROF. MONIR: Agora a Filosofia vai desmascarar a Sorte. Já que a Sorte pare-
ce ser o alvo de reclamações do Boécio.

Ela convoca então a Retórica, “que só não se desvia do caminho quando segue as

suas instruções” e a Música para ajudar.

PROF. MONIR: Esse é um instrumento platônico. Vocês lembraram que foi


feito aqui o Fedro. Esse era o tema do Fedro, que o retórico desassociado da
filosofia é apenas um vigarista. É um sujeito que quer convencer os outros
de qualquer coisa, talvez com algum objetivo econômico. Então no livro
Sócrates passa o tempo todo ensinando o Fedro que a filosofia é que tem
que subordinar a retórica, pois a retórica sozinha é apenas uma tapeação.
Então percebam, pessoal, o Boécio fica o tempo todo fazendo referência à
filosofia clássica. Esse é o conteúdo, esse é o fenômeno que eu queria que

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 145


vocês percebessem. Ele está lidando com um assunto que é profundamente
religioso, (vocês verão na medida em que forem evoluindo) sem jamais usar
a palavra Jesus, sendo ele absolutamente um cristão, mas ficando apenas
na argumentação filosófica. E essa metodologia do Boécio que dará origem
a toda a escolástica.

Começa dizendo: “O que houve, homem, para que mergulhasses na melancolia e

no desespero? Sem dúvida, viste algo de novo e extraordinário. Pensas que a Fortuna

mudou a teu respeito? Enganas-te”.

“Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prome-

tendo-te miragens. Descobriste a dupla visão desse poder cego. Enquanto ela ainda

dissimula seu verdadeiro semblante aos outros, diante de ti ela se desmascarou com-

pletamente”. (pág. 26)

PROF. MONIR: A Fortuna, a Sorte, não está te enganando agora. Agora você
sabe como é que são as coisas. Os outros continuam sendo iludidos por ela.
Agora a Filosofia fará uma campanha aqui contra a Fortuna.

A Filosofia demonstra o pequeno valor da Fortuna que, por sua inconstância,

passa de um extremo ao outro. ”Se sua duplicidade te horroriza, despreza-a, afas-

ta-a de ti: seus jogos são funestos.” Demonstra que não é possível submeter-se aos

caprichos da Fortuna e “ao mesmo tempo sustar a rápida revolução de sua roda”,

porque aí “Fortuna não seria mais a Fortuna”.

PROF. MONIR: A Fortuna é um negócio que roda. Essa imagem de que a For-
tuna é uma roda é uma imagem do Boécio que veio para o presente. Você
não tem no Sílvio Santos um negócio desses? Você roda lá e cai lá... Um mi-

146 Professor José Monir Nasser


lhão! Roda lá e cai ali .... Um pontapé no traseiro! E você cai em uma coisa
ou na outra. Então ele está dizendo o seguinte: não dá pra você brincar com
esse negócio de fortuna sem contar que de vez em quando, em vez de um
milhão, tem um pontapé no traseiro. [risos] Entenderam? Porque então não
seria fortuna, seria outra coisa. Vejam, o Eloi Zanetti, que está ali no fundo,
é especialista em Baltazar Gracián, que é um moralista espanhol. O Baltazar
Gracián é o filho direto de uma coisa dessas aqui. Não é? Disso aqui nasce
uma filosofia moral extraordinária, que não é o caso do Boécio, que não é
um filósofo moral, mas daqui nasce uma filosofia maravilhosa que permite
construir uma vida, até mesmo um modelo cristão de existência. Dá até pra
construir modelos de vida a partir disso aqui.

II.3

A Filosofia discursa a Boécio como se fosse a própria Fortuna, para que ele com-

preenda o outro ponto de vista.

PROF. MONIR: A Filosofia agora vai se fantasiar de Fortuna e vai fazer de con-
ta que é a Fortuna pra que o Boécio pare de reclamar.

Quando a Natureza te fez sair do ventre de tua mãe, estavas totalmente nu e não

tinhas nada. Fui eu quem te acolheu, tratou com o maior cuidado e, se não me supor-

tas mais, é porque te elevei muito, dedicando-me muito à tua causa, e fui excessiva-

mente pródiga em relação a ti. Mas agora decidi retirar minha mão de teu ombro. Tu

deverias agradecer-me o usufruto de bens que não te pertencem e não tens o direito

de te queixares como se tivesses perdido os teus próprios. Por que então essas lamen-

tações? Não foste agredido de nenhum modo por mim! (pág. 28)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 147


O Céu tem o direito de oferecer dias plenos de luz e depois fazê-los desaparecer nas

trevas da noite. O Ano tem o direito de cobrir por um período a terra de flores e frutas,

e depois torná-la irreconhecível enviando chuvas e geadas. O Mar tem o direito de

um dia ser amável, apresentando uma superfície calma, e noutro de agitar as ondas

sublevadas pela tempestade. E, quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos ho-

mens que pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com

minha própria natureza. (págs. 28-29)

PROF. MONIR: A Filosofia tinha se fantasiado de Fortuna, fazendo de conta


que era a Fortuna para tentar convencer o Boécio de que não era para ele
reclamar, porque é assim mesmo, a Sorte é desse jeito: “Mas peraí! Às vezes
dá certo, outras, errado. Agora eu tenho que fazer o tempo todo que tudo
dê certo para você? Em nome do quê? Eu sou a Sorte! Às vezes vai dar erra-
do! Não fique reclamando...”

Não aprendeste, na tua infância, ‘sobre as duas ânforas, uma cheia de males e outra

de bens 5, colocadas na entrada da morada de Júpiter?

PROF. MONIR: Isso também está na Ilíada, é a ideia de que lá na morada de


Júpiter tem as duas possibilidades, você pode pegar o bem ou o mal, é a
sorte que estabelece isso.

Quem diz que já não saciaste de teu lote de bens? E que eu já te abandonei completa-

mente? E que essa inconstância, que é precisamente minha principal característica,

não te dá a esperança de uma nova reviravolta na Fortuna? Seja como for, não te

deixes ficar completamente tomado pela tristeza e, já que vives num reino cujas leis

são as mesmas para todos, não desejes viver sob tua própria jurisdição. (pág. 29)

5 Homero, Ilíada.

148 Professor José Monir Nasser


PROF. MONIR: Então. Viver sob a sua própria jurisdição é viver num mundo
em que tudo dá certo pra ele e nada dá certo pros outros. Os outros conti-
nuam submetidos à vida, enquanto que ele não. Ele teria sucesso. É isso que
ele não pode exigir, ele não tem direito de fazer isso.

II.4

Desafiado pela Filosofia a rebater estes argumentos, Boécio retruca: “Sim, essas

são brilhantes palavras impregnadas do mal da retórica e de música, mas elas en-

cantam apenas no momento em que se as ouve. As pessoas que sofrem sentem mais

profundamente sua tristeza e, quando seus ouvidos cessam de escutar essas doces

consolações, a melancolia enraizada toma seu lugar”.

PROF. MONIR: Ele diz o seguinte: “Você fala isso porque não é você que está
aqui, que vai morrer torturado na cadeia”. Entendeu o que ele falou pra Fi-
losofia? Que não era com ela o problema, por isso que ela ficava com essa
conversinha fiada.

A Filosofia reconhece o valor deste sentimento e adverte não ter ainda minis-

trado os remédios adequados, mas lembra-o da fortuna que teve quando, por

ocasião da morte do pai, ter sido “elevado junto aos homens de maior projeção” e

frequentado as casas mais distintas do Estado.

PROF. MONIR: Ele ficou lá uns sete anos, e nem por isso a vida dele acabou
ali. Ela está lembrando que ele também teve momentos bons e não é pra
reclamar da vida inteira.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 149


Não mencionarei – ou melhor, prefiro não mencionar – os privilégios que foram

reservados somente a ti: cargos honoríficos que assumiste mesmo quando jovem,

quando eles eram negados a pessoas mais velhas, mas eu me alegro sobremaneira

em recordar aquilo que foi o apogeu de tua glória. Se os sucessos humanos concor-

rem para a definição da felicidade, como é que algumas adversidades, mesmo con-

sideráveis, poderiam apagar de tua memória o extraordinário dia em que viste teus

dois filhos, cônsules na mesma legislatura, fazerem-se escoltar desde a tua casa até

o Fórum pelos senadores e todo o povo e quando, tomando eles seu lugar na Cúria e

assentando-se sobre a cadeira curul

PROF. MONIR: “Curul” significa cadeira de alta dignidade.

tu pronunciavas o panegírico do rei que tornou célebres tua inteligência e tua elo-

qüência e quando, no Circo, entre os dois cônsules, tu, com a generosidade de um

triunfador, cumulavas de bens a multidão que vinha atrás de ti? (págs. 31-32)

PROF. MONIR: “Panegírico” significa “discurso elogiando”. Está aí a Fortuna fa-


lando: “Eu não quero nem falar disso, hein? Mas você tá me obrigando... não
é que eu queira falar, mas lembra quando você foi o sujeito mais importante
daqui? Que todo o mundo gostava de você, que todo o mundo achava você
um gênio? Você já foi o Odair José, que vendia muitos discos, agora você
não é mais. Ninguém mais se lembra de você, mas lembra quando você era
o rei das empregadas domésticas brasileiras?” É isso que ela tá dizendo aqui
pro Boécio, alguma coisa equivalente.

150 Professor José Monir Nasser


II.7

Diz Boécio

Tens razão, ó mãe nutriz de todas as virtudes, e não posso negar a rapidez da minha

ascensão. Mas é precisamente essa lembrança que me fere mais. Com efeito, em toda

reviravolta da Fortuna, não há maior desgraça do que ter conhecido a suprema gló-

ria. (pág. 33)

PROF. MONIR: O tombo é grande, né? Quem vocês acham que está sendo
mais convincente aqui? Vocês tão achando que a Filosofia está de fato con-
vencendo o Boécio de que não é tão ruim a situação dele, que vai ser morto
dali a pouco? O que vocês acham? [pausa silenciosa] Independentemente
do que vocês podem achar, é preciso compreender que a Filosofia serve jus-
tamente pra esse momento da vida. A Filosofia não é um processo de saber
coisas sobre os filósofos. Quando eu digo pra vocês não lerem o tal do livri-
nho de filosofia lá é porque além de ser errado, é um livro mal-intencionado,
é ignorante sobre muitos aspectos, e é um livro que acha que saber coisas
folclóricas, sobretudo com um verniz pseudofilosófico e politicamente cor-
reto, é igual à filosofia. Filosofia é alguma coisa que existe apenas dentro de
você na execução real do assunto. A filosofia é uma espécie de instrumento
existencial. Numa hora como essa é que a filosofia é importante. Essa coisa
de saber coisas sobre filósofos é uma atividade didática, mas está muito lon-
ge do significado da filosofia em si própria. É preciso entender que, estando
ela convencendo o Boécio ou não, é para isso que serve a filosofia. É por isso
que ela apareceu agora, e não quando ele estava feliz da vida – mas podia
ter feito também na outra hora.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 151


Aluna: [Faz um comentário.]

PROF. MONIR: Ele, na verdade, está usando a filosofia no seu uso concreto,
real, verdadeiro... Ele se faz um pouco de burro por razões didáticas. Vejam,
pessoal, o assunto de que trata a filosofia são esses enigmas da vida, essas
questões fundamentais da realidade. O problema número 1 quando você se
mete a estudar filosofia é que tem uma parte dos problemas da vida real que
são absolutamente impenetráveis, ou seja, você não vai conseguir penetrar
jamais nisso. Os filósofos materialistas como Hegel, Marx e Comte pensam
que a história humana tem dentro dela própria a sua própria solução, sua
própria explicação.

Mas a explicação da história humana não pode estar dentro da sua própria
história porque existem coisas que afetam a vida humana que não foram in-
ventadas pela história. Por exemplo, o conceito de anterioridade – que uma
coisa que é anterior vem antes da outra, quem foi que criou isso? A história?
Um belo dia, o pessoal se reuniu, fez um concílio e falou assim: “Agora fica
estabelecido que o passado vem antes do presente e antes do futuro”. Pois
isso não foi inventado por ninguém, é uma coisa que foi feita antes de haver
a história. Portanto, o conceito de anterioridade é uma espécie de condição
metafísica para que possa existir história. Então o que na verdade é a histó-
ria? É alguma coisa que você de fato não compreende o sentido a não ser
fora da própria história. O sentido da história só irá se revelar no dia em que
a história acabar. Como nós somos pessoas que pertencemos à história, e
entramos e saímos da história o tempo todo – não tem gente nascendo e
morrendo o tempo todo? A nossa espécie entra e sai da história o tempo
todo, nós não saberemos nunca o que é de fato a história a não ser quando
a história acabar, e então nós teremos a revelação do sentido da história.

152 Professor José Monir Nasser


Não dá pra você ir atrás de Marx, Hegel e Comte e achar que história huma-
na é promover a luta de classes ou de promover o estado, no caso de Hegel,
ou promover a sociedade positiva. São todas explicações ridículas, no fundo
são completamente ridículas. O problema central é que, uma vez que você
consegue aplicar um método verdadeiramente filosófico na compreensão
da história, você chega à conclusão de que você de fato não sabe. E que há
certos aspectos da vida que são impenetráveis. A filosofia, às vezes, acaba
só em perguntas. E é por isso que uma das marcas registradas dos bons
filósofos é que as suas obras são sempre inacabadas. E os filósofos menores
são todos aqueles que se fecham num sistema próprio e que declaram que
descobriram tudo. Por exemplo, o menor de todos é Hegel, que acha então
que a história acaba na pessoa dele, que a história toda foi inventada pra
produzir o Hegel (uma coisa equivalente a essa!). O problema do método
filosófico é que ele é um método de compreensão ampla do mundo, mas às
vezes ele só consegue ajudar a equacionar os problemas do mundo.

O que o Boécio quer com essa conversa aqui? Ele está interessado em deixar
uma recomendação dizendo isso que eu acabei de falar. Segundo, ele está
obviamente usando isso pra si próprio, como método de consolação dele
mesmo. Pra poder fazer isso ele desenvolveu uma metodologia literária, ele
inventou uma ficção, né? Ele inventou uma historinha ficcional que permi-
te então que até mesmo nos aspectos condenáveis do que se pensava na
época pudessem de alguma maneira ser confrontados aqui com uma visão
melhor. Essa é a beleza do texto do Boécio, porque ele se presta a essas coi-
sas todas ao mesmo tempo.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 153


A Filosofia retruca dizendo que a Fortuna não havia sido de todo cruel com ele:

seu sogro, sua mulher e seus filhos estavam vivos. Boécio concorda com certa

relutância, o que faz a Filosofia concluir serem os homens insaciáveis.

Em suma: ninguém está contente com a sua situação, e cada situação comporta um

aspecto que não se nota a menos que seja experimentado, e quem o experimenta

sabe quão ruim ele é. Acrescento ainda o caso das pessoas mais favorecidas pela For-

tuna, cuja sensibilidade aumenta na medida de sua felicidade; a menor adversidade

as abate: é preciso muito pouco para tirar os afortunados de sua felicidade; a menor

adversidade as abate.

PROF. MONIR: Qualquer atraso de três horas te deixa furioso, porque você
estava indo pra Europa passar três meses morar em Cannes, nos Alpes... En-
tendeu? Ele tá dizendo isso, mesmo pra quem tem muito sucesso, qualquer
pequena coisa da vida parece ser uma desgraça.

Quantos não se sentem desgraçados ao mais leve golpe da Fortuna? Considera

quantos não se sentiriam muito afortunados se tivessem uma pequena parte daqui-

lo que a Fortuna te deixou! (pág. 35)

PROF. MONIR: Comigo acontece uma coisa, invariavelmente. Toda a vez eu


tendo a reclamar da vida, aparece alguém paraplégico... cinco minutos, de-
mora. Mas olha, cinco minutos pra aparecer alguém numa situação muito,
mas muito pior do que aquela em que eu estimo que eu esteja. E aí é como
se fosse uma coisa programada, pra me perseguir vida afora. É incrível! É
ligar a televisão, aparece um sujeito com queimaduras de terceiro grau...
é uma coisa impressionante, mas é assim mesmo. Quanto disso que você

154 Professor José Monir Nasser


tá julgando muito ruim não seria o máximo para pessoas muito pobres...
Quanto disso que você tem não é na verdade muito e você não sabe? É isso
que a Filosofia está dizendo para o nosso infeliz Boécio.

A Filosofia chega à conclusão de que a condição humana é digna de lástima,

“uma vez que, naqueles que se satisfazem facilmente, ela não dura para sempre, e que

aqueles que se beneficiam muito dela estão sempre descontentes.” Ela decide mos-

trar a Boécio que a verdadeira felicidade consiste em se ter aquilo que a morte

não consegue arrebatar e que isto não pode estar no mundo material, porque

a morte faz cessar o sucesso material dado pela Fortuna. “Então pergunto: como

a vida na Terra poderia tornar os homens felizes, se muitos só encontram a felicidade

em seu termo?”

PROF. MONIR: Ao fim da vida, não é? Ou seja, saindo do mundo material.

II.9

Nesta altura da terapia, a Filosofia decide usar remédios mais fortes. Demonstra

que têm verdadeiro valor apenas os bens que pertencem apenas a nós, o que

não é o caso das riquezas, que parecem “ter mais valor quando se vão do que

quando são adquiridas”.

PROF. MONIR: No sentido de que o dinheiro parece ter valor quando se gas-
ta, não é? Se você tivesse um bilhão de dólares numa ilha deserta, esse bi-
lhão não teria valor nenhum a não ser como combustível de fogueira. Mas o
bilhão de dólares só tem valor porque existem shopping centers, agências de
automóveis, enfim, porque o dinheiro só tem valor na medida em que você

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 155


o gasta, quando ele vai embora. Quando ele fica com você, em princípio
não. Porque ele é uma representação apenas formal da riqueza. Ele pode
ser caçado pelo Estado, pode ter algum problema... pega o marco alemão
entre as duas guerras. Pega a nossa inflação aqui... nós tivemos uma inflação
galopante. Era mais barato andar de táxi do que de ônibus, porque você pa-
gava o táxi na saída, e o ônibus você pagava na entrada... [risos] Mas a nossa
inflação aqui não foi o que foi a inflação alemã. Você não entende o que foi
a II Guerra Mundial a não ser se você compreender o que é a sensação de
vender um piano e no dia seguinte comprar, com o dinheiro do piano, meio
quilo de arroz (meio quilo de batata, na Alemanha). Essa era a situação da
inflação que os alemães viveram. O dinheiro voa, ele não tem valor em si, a
não ser no potencial de compra.

Uma vez que não é possível manter algo que só tem valor se for trocado, o dinheiro

só tem valor quando muda de mãos e deixamos de possuí-lo. Por outro lado, se todo

o dinheiro do mundo estivesse concentrado nas mãos de uma só pessoa, ninguém

mais o teria. Muita gente no mundo se empenha em obter riquezas a todo custo, mas

elas devem ir necessariamente para as mãos de outros, e portanto diminuem. E, as-

sim, os que as possuíam devem necessariamente ficar mais pobres. Portanto, como

são limitadas e lastimáveis essas riquezas que não podem ser possuídas em sua to-

talidade por muitos ao mesmo tempo, nem se tornar propriedade de um sem deixar

outro mais pobre! (pág. 38)

PROF. MONIR: Isso é absolutamente verdade e essa é a razão pela qual exis-
te uma ciência chamada economia. Eu tinha um aluno no Rio de Janeiro,
num curso de transporte, que era engraçadíssimo. Ele tinha uma tese que
ele construiu a vida inteira contra essa ideia. Ele dizia assim: “Bom, mas peraí,
eu não admito que digam que o problema é falta de dinheiro. Eu tenho um

156 Professor José Monir Nasser


primo que tem uma gráfica lá no Jacaré, no Rio de Janeiro, e é maior moleza,
é só produzir o dinheiro à vontade”. E eu dizia: “Vem cá, meu filho, vamos
raciocinar aqui – você imaginou se isso pudesse ser feito? Não haveria po-
breza no mundo!” Ele não consegue entender que o que nós chamamos
de dinheiro só é uma espécie de talão de racionamento. Há uma quantida-
de limitada de bens. Então toda a vez que você usa o cheque especial do
Bradesco, o Amador Aguiar fica mais rico e você mais pobre. Entenderam?
Porque é como se aquele dinheiro pudesse ser representado em batatas, em
passagens de ônibus, entradas de cinema e assim por diante. Então ela está
dizendo que a riqueza que há nesse mundo é limitada e finita, e portanto,
não deve estar aí a felicidade humana.

Argumenta que o brilho das pedras preciosas são “a luz própria das pedras, não

dos homens” e considera surpreendente que tais coisas suscitem nos homens

tamanha admiração.

Mas por que todo esse alarde com relação à Fortuna? Creio que é por temeres a ca-

rência e desejares a abundância. Ora, isso te leva ao resultado inverso. Na verdade, é

motivo de grande preocupação ter de zelar por seus objetos preciosos, quando se os

tem em grande quantidade, e também é verdade que as preocupações aumentam à

medida que aumentam as riquezas, enquanto a preocupação diminui quando não

damos grande importância a essas coisas, nos contentamos com o que nos dá a

Natureza e não temos uma ambição muito grande. Acaso não tens verdadeiramente

nenhum bem que seja teu próprio e inerente à tua natureza, para que seja preciso

procurares bens em objetos externos e estranhos a ti? A ordem das coisas se inverte a

tal ponto que um ser vivo, racional e feito à imagem de Deus, crê poder distinguir-se

apenas pela posse de objetos sem vida! (págs. 39-40)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 157


Insiste em acusar a natureza humana de buscar objetos sem importância “sem

noção da desigualdade da troca e da ofensa que fazeis ao Criador”.

Ele, o Criador, quis que os homens estivessem acima de todas as criaturas terrestres, e

vós vos aviltais colocando-vos abaixo do que é mais vil. Com efeito, se é evidente que

todo o bem pertencente a outro vos parece mais valioso do que para aquele que o

possui, quando considerais que os objetos mais insignificantes são bens para vós, en-

tão vos colocais a vós mesmos como inferiores a esses objetos. E, de fato, esse raciocí-

nio é exato; pois assim é a natureza humana: superior a todo o resto da criação quan-

do usa de suas faculdades racionais, mas da mais baixa condição quando cessa de

ser o que realmente é. Nos animais, essa ignorância de si mesmos é inerente à sua na-

tureza; no homem, é uma degradação. Como é grande o vosso erro, quando pensais

em vos exaltar com coisas externas! É algo inconcebível! E ademais, quando alguém

se distingue pelos ornamentos que ostenta, são os ornamentos que são admirados,

e não quem os traz. E afirmo ainda: não há bem material que não cause algum mal

a quem o possui. Dirás que minto? Tu não o negarias. Ora, as riquezas muitas vezes

lesaram quem as possuía, principalmente porque os ladrões e os perversos, ávidos

dos bens dos outros, acreditam ser seu direito possuir todo o ouro e coisas preciosas

do mundo. Assim, se tu temes encontrar um agressor armado de uma espada e um

punhal, se tivesses entrado na estrada da vida sem fortuna, poderias viver cantando

ao lado do ladrão. Estranha felicidade esta, proporcionada pelos bens terrestres: só se

pode possuí-la ao custo da própria tranqüilidade! (págs. 40-41)

*************
INTERVALO
*************

158 Professor José Monir Nasser


PROF. MONIR: ...é reclamação de que é a situação de uma pessoa claramente
injustiçada, eu não tenho dúvida, porque todos os comentaristas da épo-
ca veem na situação do Boécio uma injustiça. É um sujeito injustiçado pelo
Destino, que se encontra desesperadamente desanimado, e que recebe
então uma intervenção da Filosofia, que é sua mestra e nutriz, ele mesmo
declara isso. E ela vai aos pouquinhos explicar coisas que ele não deve es-
quecer e que podem então reverter a situação que ele vive, sob o ponto de
vista dos seus sentimentos. Não pode reverter a condenação à morte, isso
não poderá ser feito, mas pode reverter o que o Boécio pensa sobre o que
está acontecendo.

II.11

Passando das riquezas materiais para as honras e o poder, a Filosofia insiste em

que a virtude não se adquire por causa das honrarias, mas são as honrarias que

são acrescentadas a ela.

E de que se trata afinal esse poder que achais tão desejável e vos comove tanto? Po-

bres mortais! Não vedes quem sois e a quem acreditais comandar? Se vísseis numa

assembléia de ratos um deles reivindicar e querer exercer sua autoridade sobre todos

os outros ratos, com que gargalhadas não seria recebida essa sua pretensão? (pág.

43)

A filosofia demonstra que o poder verdadeiro é do espírito livre, porque a ele

não se pode dar ordens.

É possível abalar a resolução de um espírito firme e perturbar sua tranqüilidade? Um

tirano que pensasse poder fazer, por meio da tortura, um homem livre denunciar os

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 159


pretensos cúmplices de uma rebelião contra ele veria o seguinte procedimento: o ho-

mem livre e honesto morderia a própria língua, parti-la-ia e a cuspiria no rosto do

tirano. Assim, as torturas que o tirano considerasse instrumentos de crueldade e pa-

vor tornar-se-iam para o sábio uma oportunidade de mostrar sua virtude. (pág. 43)

A Filosofia conclui o exame do problema.

O fato é o seguinte: é que vós vos costumais dar às coisas, independentemente do que

elas são, denominações falsas, cujo caráter enganador se revela facilmente quando

passam pelo crivo da verdade, que elas costumam esconder. E é por esse motivo que

não podemos verdadeiramente falar delas como sendo riquezas, poder ou honrarias.

Enfim, podemos dizer o mesmo a respeito da Fortuna: não há nada nela que me-

reça ser procurado, não há nada nela que seja intrinsecamente bom, uma vez que

ela também beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se

associa. (págs. 44-45)

II.13

Como Boécio contra-argumenta que nunca buscou fundamentalmente a “am-

bição de sucesso neste mundo”, mas apenas tentou evitar que suas habilidades

ficassem inativas, a Filosofia o alerta sobre a pequenez e futilidade de tal moti-

vação, lembrando que os cálculos de Ptolomeu demonstram que os seres hu-

manos habitam uma ínfima parcela do universo e até do planeta: “E o que tem de

grandioso e magnífico na glória humana, restrita a limites tão estreitos?”

PROF. MONIR: Ptolomeu é o cosmólogo da Antiguidade. É alguém do iní-


cio da era cristã, da família dos Ptolomeus, uma família grega instalada no
Egito. A Cleópatra é dessa família também; ela não é egípcia, ela é grega. E

160 Professor José Monir Nasser


esse Cláudio Ptolomeu tem uma obra chamada Almagesto, a obra que des-
creve a cosmologia tal como se entendia no início da cristandade. Hoje em
dia é terrivelmente atacada como sendo um grupo de bobagens, quando
na verdade é preciso ter um pouco de humildade e modéstia e entender
que sobre certo ponto de vista o modelo ptolomaico ainda continua tendo
muito valor. Por exemplo: a maior acusação que se faz a Ptolomeu é que ele
teria dito que a Terra é o centro do universo. Ora, se você pressupõe que o
universo é infinito, como esses mesmos críticos fazem, qualquer ponto do
universo é o centro do universo. Então Ptolomeu está completamente certo.
Porque, se é infinito, qualquer ponto pode ser o centro, e por que não seria
a Terra?

Então há uma implicância exagerada, que veio daquele cientificismo da Ida-


de Moderna. Essa pretensa revolução científica do Renascimento jogou fora
todo o sentido simbólico do que havia ali. Mas foi Ptolomeu quem criou as
bases para a compreensão dos fenômenos astrológicos. Todos os sistemas
astrológicos, seja o árabe, seja o ocidental, o que for, são todos baseados na
cosmologia de Cláudio Ptolomeu. Como ele ainda tem a potência de apre-
sentar simbolicamente as coisas... há muitas coisas sobre as quais ele ainda
tem toda a razão, embora seja desprezado como sendo um sujeito da era
das trevas... Mas não é, não. Então o que a Filosofia está perguntando aqui
é como se pode achar tão importante ter um poder tão pequeno assim. Se
tudo é muito grande e a nossa vida é muito pequena, então achar que se
tem poder nesse mundo pequenino é uma bobagem, não tem verdadei-
ramente valor. Ela está na verdade tentando debater a pretensão de que o
valor esteja na riqueza – ela já fez isso –, e agora nessa altura ela está falando
do poder. Será que ser poderoso é tão importante assim? Ela está aos pou-
cos arrumando argumentos para destruir cada uma dessas pretensas fontes

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 161


de objetivo humano, entre elas o poder – o poder político, né? Que ela está
debatendo agora.

Segue-se daí que o homem que busca a fama não tira o menor proveito de ter seu

nome espalhado pela multidão dos povos. Cada um, portanto, se satisfará em ver

sua fama propagar-se entre os seus, e a sua tão falada imortalidade se restringirá às

fronteiras de uma só nação. E quantos homens que foram célebres em seu tempo

não caíram no esquecimento por não terem deixado nenhum escrito! No entanto,

qual a utilidade de tais escritos, que desaparecem junto com seus autores na escu-

ridão do tempo? Quanto a vós, credes assegurar vossa imortalidade ao pensar na

fama de que gozareis no futuro. Mas se consideras seriamente o infinito da eternida-

de, por que razão te alegras da longevidade de tua fama? (pág. 47)

PROF. MONIR: Os romanos tinham um ditado maravilhoso pra isso: sic tran-
sit gloria mundi. Significa: “é assim que passa a glória do mundo”. Então o
sujeito era importante e famoso, depois não se sabe nada mais sobre ele,
ele desaparece no passado pra nunca mais ser lembrado. Então toda a fama
humana é precária. É isso que ela está dizendo aqui, e vai continuar defen-
dendo essa tese.

(...)

Segue-se que a fama de alguém, seja qual for sua extensão, se comparada à eterni-

dade, cujo fim jamais se atinge, mostra-se não apenas de pouco impacto, mas, na

realidade, quase inexistente. E ainda por cima vós, para obtê-la, deveis granjear o fa-

vor do povo e dos vagos boatos para saber como agir de maneira conveniente, des-

prezando a superioridade da consciência e do mérito: vós buscais vossa recompensa

na miserável ralé. (págs. 47-48)

(...)

162 Professor José Monir Nasser


Além disso, qual o lucro que as pessoas de mérito têm – pois é delas que eu falo – em

buscar a glória com suas virtudes, uma vez que tudo acaba com a morte e a destrui-

ção do corpo? Isso, se é verdade o que dizem (coisa com a qual não posso absoluta-

mente concordar): que extintos os homens, sua fama cessa com eles, pois ela se atri-

bui a alguém que já não existe. Mas e pelo contrário a alma, consciente de si mesma,

ganha os céus depois de se libertar desta prisão terrestre, não irá ela desprezar todas

as suas antigas preocupações, uma vez que, tendo ganhado o Céu, pouco se impor-

tará com tudo o que é terrestre? (pág. 48)

PROF. MONIR: Vocês percebem que, no fundo, o que está por trás do que ele
está dizendo é a doutrina cristã? Ele está defendendo o cristianismo com
argumentos platônicos e aristotélicos, com argumentos filosóficos. Isso é o
que se chama depois de escolástica. Ele no fundo está defendendo aqui um
princípio cristão do mundo. Antes dele, é verdade, veio toda a patrística, e
veio Santo Agostinho, digamos num ponto mais alto, mas ninguém ousou
até Boécio tentar argumentar com argumentos filosóficos. Até mesmo havia
quem achasse que isso era uma espécie de sacrilégio, que não se podia fazer
isso de jeito nenhum.

Então ele está dizendo assim: “Eu também não posso concordar de jeito ne-
nhum com a ideia de que quando a pessoa morre, tudo acaba. Porque, se
fosse assim, se quando você morresse não houvesse mais nada, então me-
lhor seria mesmo se você tivesse comido mais quindins”. Teria sido melhor
negócio. Mas se isso não é assim, tem que ter outra coisa. E isso é aceito
tanto pelo platonismo, que veio quatrocentos anos antes (que acha que a
alma é imortal), quanto pelo cristianismo. Tanto na filosofia antiga quanto
no cristianismo existe aí uma concordância fundamental sobre o fato de
que o processo não se extingue com a morte. É isso que ele está dizendo.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 163


II.15

Mas não quero que penses que estou a travar um combate impiedoso contra a Fortu-

na; por vezes acontece de ela não enganar os homens, mas esclarecê-los. Tal é o caso

quando ela se desmascara e mostra seus métodos de ação. Talvez não compreendas

ainda o sentido de minhas palavras. Há um motivo para ficares surpreso com minha

impaciência de contar-te tudo, e a razão é que encontro dificuldade em achar as pa-

lavras adequadas para exprimir meu pensamento. Eis o que penso: A Fortuna é mais

benéfica aos seres humanos quando se mostra adversa do que quando se mostra

favorável. (pág. 50)

PROF. MONIR: É melhor se dar mal na vida do que bem. [risos] E eu que ti-
nha achado que é melhor ser rico com saúde do que pobre doente! Sempre
achei que isso era uma espécie de conclusão imbatível, né? Só que agora
estamos sendo contestados aqui pela Filosofia. Quer dizer, se você quiser
compreender Dostoiévski, a obra inteira dele, é essa linha que está aqui. O
Dostoiévski acha que o destino da vida humana é a perdição, e que a única
redenção possível é a espiritual. O Dostoiévski acha isso mesmo. Ele costu-
mava dizer que a única coisa de que ele tinha medo era de não conseguir
sofrer de modo decente e com honradez pessoal. Ela está querendo nos
dizer que às vezes é melhor você não ser mais enganado... que isso pode
parecer um problema no começo, mas depois não é bem assim. O que leva-
rá essa conversa para a própria dúvida sobre os desígnios de Deus. Por que
acontecem coisas que aparentemente são ruins? A vida humana é cheia de
coisas ruins, de que nós certamente não gostamos. Eles estão tornando esse
diálogo cada vez mais profundo. Se fosse feito no jeito platônico, seria um
diálogo muito parecido com o de Platão, de alguma maneira. Claro que não
foi escrito desse jeito, embora o Boécio tenha lido todo o Platão, porque

164 Professor José Monir Nasser


o Platão nunca esteve indisponível. Ele na verdade queria traduzir Platão
inteiro, mas não conseguiu. Mas um romano letrado naquela época tinha
acesso ao grego, facilmente.

(...)

Acaso achas de pouca importância o fato de esta severa e temível Fortuna te reve-

lar quem são teus verdadeiros amigos, distinguir a franqueza e a hipocrisia de teus

companheiros e levar o que te foi dado por ela para deixar apenas o que é teu? Por

que preço buscarias adquirir esse discernimento quando não estavas abalado pela

Fortuna e te acreditavas feliz? Agora, tu te queixas da ruína; contudo, encontraste por

isso mesmo tua mais preciosa riqueza: teus verdadeiros amigos. (págs. 50-51)

PROF. MONIR: Pra entender esse trecho, é só lembrar que ele saiu em defesa
de um colega e foi condenado à morte pelo Senado. Porque funcionava o
sistema jurídico romano, no tempo de Boécio. Não havia um sistema tirâni-
co. Claro que havia tiranias também, mas pra condenar um senador à morte,
você não faz isso assim porque quer. Você passa a responsabilidade para os
outros, alguma mediação tem que ter. Então o Boécio, apesar de ser defen-
sor intransigente dos seus colegas de Senado, foi condenado pelo parecer
do Senado. Ou seja, ficou claro quem era amigo dele e quem não era, quan-
do a Fortuna tirou as asas de cima de Boécio. Ela está dizendo que às vezes
é melhor saber a verdade do que ficar se iludindo.

Livro III

III.1

Sentindo-se fortalecido, Boécio pede à Filosofia que lhe administre os remédios

que antes pareciam “fortes demais.” A Filosofia anuncia então a Boécio que iria

conduzi-lo à verdadeira felicidade.


EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 165
III.3

Os mortais têm todos uma única preocupação pela qual não medem esforços, seja

qual for o caminho tomado, o objetivo é sempre o mesmo: a felicidade. Ora, trata-se

de um bem que, ao ser obtido, não deixa lugar para nenhum outro desejo. E é real-

mente o bem supremo, que contém em si mesmo todos os bens. É para aí, como dis-

semos anteriormente, que todos os mortais se dirigem pelos mais diversos caminhos.

Com efeito, todos os homens têm em si o desejo inato do bem verdadeiro, mas os

erros de sua ignorância desviam-nos para falsos bens. (pág. 55)

Entre os falsos bens estão as riquezas, o prestígio entre os concidadãos, o po-

der supremo: “A maioria acredita ter obtido o soberano bem quando estão alegres

e contentes: a seus olhos a suprema felicidade consiste em se embriagar no prazer.

Para alguns, esses bens se transformam indiferentemente em meio ou fim. Dessa for-

ma, vemos homens desejar a riqueza para adquirir o poder, enquanto outros buscam

o poder tendo em vista a glória ou a riqueza”.

Mas nós tínhamos definido bem supremo como sendo a felicidade; dessa forma,

cada um considera que a felicidade reside naquilo que deseja mais do que qualquer

outra coisa. Assim, tens sob teus olhos as diversas formas de felicidade que os ho-

mens concebem: riquezas, honras, poder, glória, prazeres. É sem dúvida alguma pelo

fato de tomar apenas tais coisas em consideração que Epicuro, seguindo a lógica, foi

persuadido de que o soberano bem fosse o prazer, uma vez que todos os outros bens

tendem para o prazer. (pág. 56)

PROF. MONIR: Por isso que a filosofia de Epicuro, o epicurismo, é considera-


da geralmente como sendo uma filosofia do prazer. Isso não é bem verdade,
não é bem assim. Tem um pouco de simplificação nisso, mas há aí no Epicu-

166 Professor José Monir Nasser


ro seguramente alguma coisa dessa ideia. É uma filosofia minúscula, é uma
filosofia anã perto de qualquer grande filosofia da sua própria época, e que
está reforçando isso de que o prazer é uma coisa boa, mas não pode ser um
modo pelo qual se constrói a vida, porque o prazer é sempre de natureza
quantitativa. E nunca de natureza qualitativa. E só se consegue construir a
vida através de instrumentos e conteúdos qualitativos.

Se você tem dúvida disso, de que o prazer seja quantitativo, tente comer
oitenta e dois quindins, pra você ver como a diferença entre gostar ou não
de quindins só depende da quantidade de quindins que você come. Não há
diferença nenhuma diferença de qualidade, só de quantidade. O René Gué-
non, no livro O Reino da Quantidade, demonstra facilmente isso mostran-
do que o que caracteriza a existência humana como tal é o fato de ela ser
uma existência qualitativa. E qualquer tentativa de transformar a existência
humana num aspecto quantitativo é uma degeneração ontológica. É uma
maneira de nós desistirmos de sermos seres humanos e sermos uma coisa
qualquer. Um cartão de crédito ambulante. Alguma coisa desse gênero.

Vocês percebem como as pessoas estão profundamente confusas com isso?


Tem uma menina aí, anencéfala. Até onde eu sei, ainda não morreu. Teria
alguma coisa aí como duzentos dias de vida6 . Uma criança anencéfala, que
não tem cérebro. Quando ela nasceu, algum tempo atrás, há duzentos dias,

6 Nota da revisora de transcrição – A criança anencéfala, nascida com apenas um pedaço do

córtex cerebral em 20 de novembro em 2006, faleceu com um ano e oito meses, em 1º de

agosto de 2008, em decorrência de uma pneumonia. A criança viveu muito comparativamen-

te a outros casos similares registrados. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-

franca/noticia/2012/04/morte-de-crianca-com-anencefalia-no-interior-de-sp-vai-completar-

4-anos.html. Acesso em: 16.out.2017.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 167


houve uma polêmica enorme porque acharam que devia ser feito eutanásia.
Porque afinal, ela não tem cérebro! Bem, eu conheço tanta gente sem cére-
bro que anda por aí, governa o país e tudo... Agora, pensem bem, quando al-
guém propõe eutanásia pra uma criança que nasce sem cérebro, ela propõe
a eutanásia em nome do quê? Em nome de algum valor, de alguma coisa
importante, sob o ponto de vista de quem está propondo... Então em nome
do que você se acha no direito de retirar os duzentos dias de vida? Em nome
do que você pensa que seja a vida humana. Mas o que você pensa que seja
a vida humana não coincide necessariamente com os planos que Deus tem
pra aquela criança. Como você não sabe que planos são esses, em nome de
que você propõe isso? Do fato de que, por não ter cérebro, ela não vai poder
ter cartão de crédito, não vai poder ter telefone celular, não vai poder ir no
shopping center... então mata de uma vez!

Vocês compreendem que a argumentação pró-eutanásia que se usa hoje


em dia é uma argumentação associada a uma natureza quantitativa? A viver
uma vida normal – mas o que é uma vida normal? É uma vida de consumo,
de convívio econômico... Mas você não sabe quais são os desígnios de Deus
para aquela pessoa! Você não pode ler a mente de Deus... como é que você
pensa que é só isso na vida faz sentido? A eutanásia sob o ponto de vista
moral é absolutamente indefensável, porque você não pode penetrar nos
desígnios de Deus para aquela pessoa. Agora o que é absolutamente revol-
tante é o fato de que se acredita que uma vida que não possa ser viabilizada
economicamente não é uma vida que valha a pena ser vivida. É levar isso
que o Boécio está dizendo aqui a um paroxismo, a um nível extraordinaria-
mente grave. Isso piorou muito de lá pra cá.

168 Professor José Monir Nasser


A concepção de que o único sentido da vida é o sentido de consumir uns ba-
dulaques, comprar umas geringonças. Isso não tem cabimento nenhum! Vo-
cês compreendem que isso que ele está denunciando aqui ficou muito pior
no mundo contemporâneo? Eu não tenho direito de tomar essa decisão.

Aluna: [Comenta sobre o sofrimento da criança.]

PROF. MONIR: É um sofrimento sobre o qual eu não tenho nenhum acesso


inteligível, e que também pode ser aliviado com remédios.

Veja, pessoal, tem coisas que a gente não pode fazer. Por exemplo, clona-
gem. Na Folha de São Paulo tem hoje um artigo do Dráuzio Varella que diz
assim: “Depois da Dolly, como se pode ser contra a clonagem?” Pra quem
não sabe, a Dolly é uma ovelha que foi duplicada. Se você pega essas ár-
vores aí, são todas irmãs gêmeas, já existe isso no reino vegetal. Agora, o
próximo passo que esse pessoal vai propor é fazer clonagem de pessoas.
E porque eu não posso fazer clonagem de pessoas, mesmo tendo possibi-
lidade tecnológica pra isso? Porque eu não posso inventar um sujeito que
não tem pai nem mãe. Eu estou moralmente proibido de inventar alguém
que não tem referência familiar nenhuma, porque o clonado é um ser que
vive numa espécie de vácuo existencial. Ele não tem pai, não tem mãe, ele
não tem uma história familiar. Ele não tem nada. É um ser mecânico. Vocês
compreendem que é por isso que eu não posso fazer clonagem humana? E
a eutanásia é o mesmo problema. Eu não sei se eu posso interferir naquela
situação por minha própria vontade porque talvez aquilo tenha um sentido
que eu não seja capaz de perceber. Essas coisas todas são derivadas do fato
de que nós não conhecemos os mistérios do mundo. Eu não estou dizendo
que nós não somos capazes de conhecer coisas, porque se eu dissesse isso

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 169


não faria nenhum sentido eu estar aqui conversando com vocês. Mas eu
queria insistir em dizer que existe um pedaço do mundo completamente
misterioso que nos é inacessível para sempre. Não é possível entender os
desígnios de Deus, por exemplo. É o que ele vai dizer aqui em seguida. No
fundo, ele está perguntando assim, o Boécio: “Mas porque que logo comigo,
eu que sou um sujeito decente, passar por essa desgraça?” Ele está tentando
entender o desígnio de Deus por trás disso. E a Filosofia vai ajudá-lo enten-
der o que Ele está dizendo com isso. A mesma coisa que acontece com o
Boécio acontece com uma pessoa que está numa situação de ser passível
de uma eutanásia. É a mesma ideia. É uma situação grave e sobre a qual
eu poderia eventualmente perguntar: “Por que logo eu tenho que sofrer?”
Vamos ver o que a Filosofia nos ensina.

III.5

Vós também, criaturas terrestres, mesmo se a concebeis de maneira imprecisa, podeis

ver em sonhos vossa origem e entrever o verdadeiro fim que é a felicidade através de

uma percepção que, embora não seja clara, tem ao menos o mérito de existir; e é por

essa razão que, de um lado, vossa inclinação natural vos leva ao verdadeiro bem,

mas, de outro, vossa cegueira quanto aos seus inumeráveis aspectos afasta-vos dele.

(pág. 59)

Isto acontece, continua a Filosofia, porque estes bens não oferecem o que foi re-

almente prometido, tampouco conseguem saciar o espírito: “Reconheces então

que não estavas satisfeito no meio daquele monte de riquezas?” pergunta a Filosofia

a Boécio. Como Boécio responde “sim” a Filosofia o faz notar que o dinheiro não

tem a propriedade de não ser roubado e que é necessária ajuda alheia para

protegê-lo.

170 Professor José Monir Nasser


PROF. MONIR: Essa é a razão pela qual você explica no mundo a primazia do
poder da casta política. Porque o mundo empresarial, aquilo que se chama
de terceira casta, o pedaço do mundo que se dedica a organizar a economia
e a riqueza material, sabe intrinsicamente que não é capaz, que não detém
os meios de defender o seu próprio patrimônio. O sujeito que é muito rico,
ele mesmo não tem os meios de impedir que o MST roube a fazenda, ele
não tem meios de impedir que o ladrão roube o automóvel, não tem meios
nem mesmo de assegurar que aquilo que ele chama de dinheiro continue
valendo alguma coisa. Porque quem diz que o dinheiro vale alguma coisa é
o Governo.

É essa a razão pela qual o mundo empresarial é tão submisso quanto é ao


mundo político. Porque o dinheiro não tem a propriedade de não ser roubá-
vel. Tudo aquilo que você tem de material é alvo de cobiça alheia, e você não
tem os meios de defender isso. Quem teve os meios na história foi o aristo-
crata, que se formou como tal. Porque os aristocratas e os príncipes são a no-
breza? Porque são sujeitos que disseram assim: “Ora, daqui ninguém passa!
Eu mato quem passar”. Então esses sujeitos que impuseram a ordem e que
estabeleceram o princípio da autoridade do guerreiro é que viraram os con-
des, os barões etc. e formaram os países modernos. Então nesse mundo só
tem autoridade sobre as coisas quem pode defendê-las no âmbito militar,
ou seja, à força. Como o capitalista é de natureza dócil, porque ele precisa
sorrir para o cliente – há um ditado chinês que diz: “Quem não sabe sorrir,
não deve constituir comércio”. A primeira condição pra montar um comércio
é você ser simpático, porque senão não vai dar certo – a não ser que você
seja um antipático muito folclórico, como aquele sujeito que é dono do Ka-
mizaze, um restaurante ali em Santa Felicidade, que é um exemplo oposto
disso. Mas de um modo geral sorrir é a primeira condição. O Eloi Zanetti,

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 171


por exemplo, escreveu um livro contando as cinquenta maneiras de perder
clientes. Não é isso? Entre elas está essa de tratá-los mal. Entenderam isso?
Então o problema da felicidade das coisas é que ela é uma felicidade precá-
ria. Vamos tentar entender um pouquinho mais pra frente.

Por conseqüência, chegamos a uma conclusão que contradiz a hipótese inicial: com

efeito, as riquezas, que eram buscadas para se atingir a independência, tornaram na

verdade seu possuidor dependente de ajuda alheia. Ora, de que maneira as riquezas

podem nos libertar de certas dependências? É verdade que os ricos não passam fome

nem sede. Seu corpo também não sente o frio invernal. Sim, dir-me-ás, os ricos têm

sempre com o que matar a fome, a sede, o frio. Dessa forma, as riquezas podem sem-

pre tornar mais suportável a dependência, mas elas não a suprimem. Com efeito, se a

necessidade, esta eterna boca escancarada ao fluxo das coisas, encontra a sua satis-

fação nas riquezas, resta sempre uma nova necessidade a ser satisfeita. Isso sem dizer

que é preciso muito pouco para satisfazer a Natureza, enquanto nada é o bastante

para a voracidade. Assim, se as riquezas, longe de evitarem a necessidade, criam sua

própria necessidade, como poderíeis crer que elas podem oferecer uma garantia de

independência. (págs. 60-61)

III.7

Mas tu me dirias: ‘As honrarias e os altos cargos proporcionam àqueles que os exer-

cem honra e dignidade’. O quê? Acaso as magistraturas possuem a propriedade de

dotar de virtude as pessoas que as exercem e livrá-las dos seus defeitos?

PROF. MONIR: Olhem só, é o Congresso Nacional! Desde quando o fato de


que o sujeito é senador o torna um sujeito decente? É o contrário. Aparen-
temente é uma pré-condição para ser senador você ser um trapaceiro, um

172 Professor José Monir Nasser


vigarista. Isso não é uma coisa que sempre existiu no mundo, do jeito como
tem hoje... peguem o governo militar. Quando alguém era nomeado mi-
nistro, é porque era uma pessoa com certo nível, tinha certo merecimento.
Hoje, você pega os ministérios... Que coisa mais lamentável, esse ministro
da educação! O Gilberto Gil, a Dona Marta... quer dizer, hoje parece que tem
que fazer concurso de burro pra poder virar ministro. Vocês compreendem
o que é a vã filosofia? O fato de que você tem um cargo público, que você
é um sujeito bajulado, que abre tapetes vermelhos... isso não te transforma
num sujeito decente. Isso não é reflexo da sua competência e qualidade
pessoal, e tampouco tem o poder de transformar você em alguma coisa
melhor. É isso que a Filosofia está dizendo para o Boécio, para ele parar de
achar que só porque era cônsul, que ele valia alguma coisa. Embora ele fosse
exatamente o caso do sujeito decente. Ele era decente.

Ocorre o contrário! Longe de fazer desaparecer a corrupção, elas a põem à mostra; é

o que explica nossa indignação ao vê-las cair nas mãos dos criminosos: eis por que

Catulo, sem levar em conta a cadeira curul onde se assentava Nório, deu-lhe o apeli-

do de “Estruma” (chaga horrenda). (pág. 62)

PROF. MONIR: Esse Catulo era um poeta, um pouco anterior, que viveu um
pouco antes de Cristo. Ele não dava a ninguém importância pelo seu cargo,
e era capaz de xingar os poderosos.

A Filosofia discorre sobre o fato de não haver coincidência entre virtude e poder:

“É com efeito impossível adivinharmos por que as funções honoríficas dignas de res-

peito são ocupadas precisamente por pessoas que estimamos indignas”.

Um homem sábio, ao contrário, é sempre virtuoso e “o mérito possui efetivamente

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 173


uma dignidade que lhe é própria e que se comunica imediatamente às pessoas de

bem”. Contrastando com esta virtude universal e incondicionada, as honras polí-

ticas são particulares e relativas:

E para que reconheças que essas honras, que não têm valor em si mesmas, não pro-

porcionam o verdadeiro respeito, faço-te a seguinte pergunta: se um homem que já

exerceu por várias vezes a função de cônsul encontra-se de passagem entre os povos

bárbaros, essas distinções honoríficas torná-lo-ão mais respeitável aos olhos daque-

les povos? Ora, se as honrarias possuíssem algum poder por si mesmas, elas sempre se

distinguiriam onde quer que fosse, tal como o fogo que aquece da mesma maneira

por toda a Terra; mas uma vez que essas distinções não possuem tal propriedade,

ao contrário da falsa opinião dos homens, mostram-se insignificantes assim que se

apresentam a pessoas que não as consideram honrarias. (pág. 63)

III.8

Revestia-se insolentemente da púrpura

De Tiro e de pétalas preciosas.

Todos, no entanto, indignados, detestavam

Nero e seus excessos devastadores.

Às vezes esse desavergonhado oferecia aos

Veneráveis senadores cadeiras curuis sem prestígio;

Pois quem consideraria uma coisa boa ver

Conferidas a si honrarias das mãos de um crápula? (pág. 64)

PROF. MONIR: Que é o Nero. O fato de que Nero se vestia muito bonito, fi-
cava muito pintoso assim, mas não o tornava um sujeito melhor. Um sapo
dentro de uma gaiola de ouro continua sendo um sapo, não é um canário.

174 Professor José Monir Nasser


III.9

A realeza e a familiaridade com os reis podem tornar alguém poderoso? Não posso

negá-lo, se sua felicidade dura até o fim de sua vida; mas a Antigüidade e nosso sé-

culo mesmo oferecem centenas de exemplos de reis cuja felicidade se transformou

em catástrofe. Ó raro poder que não consegue nem conservar-se a si mesmo! Pois,

se o poder real proporciona a felicidade, não é necessário admitir que, assim que ele

diminui, a felicidade também diminui e o infortúnio começa? (pág. 64)

Confirmando a tese, a Filosofia indaga se pode ser realmente poderoso o “ho-

mem que quer mais do que pode, que só anda cercado de guardas, que teme mais

do que é temido e cujo poder se manifesta apenas com o consentimento de seus su-

bordinados”.

PROF. MONIR: Esse é o poder. Qualquer poder é assim. Você é presidente de


uma empresa, ganha milhões, mas tem que andar de carro blindado, seus
filhos tem que andar de carro blindado, e a sua vida é absolutamente in-
suportável, não pode ir a lugar nenhum. É uma não vida – você tem muito
mais medo dos outros do que os outros de você. Por outro lado, ninguém é
tão imbatível e tão poderoso quanto um monge, que nada tem a perder, e
que está dispondo a dar a própria vida para qualquer causa. Esse é o homem
imbatível, porque ele não tem nada pelo qual resistir. É por essa razão que a
casta bramânica tende a ser a mais corajosa e a razão pela qual a casta em-
presarial tende a ser a mais covarde. Porque a casta empresarial tem muito
a perder – o sujeito vive pra acumular coisas, então não há nada que cause
mais medo do que perder essas coisas. O monge? Ele tem lá um pedaço
de pão por dia, está muito feliz. Então ninguém é mais poderoso do que

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 175


alguém da casta bramânica, sob o ponto de vista de poder manter a sua
opinião. Ele pode perder a vida, mas ele não acha que a vida dele seja essa
aqui. Ele acha que a vida dele transcende essa, porque a casta bramânica
não vê a realidade no mundo em que ela está, mas apenas num mundo que
transcende esse.

É como Sócrates, que quando é condenado à morte, diz assim: “Bom, pesso-
al, então terminado o julgamento, vamos embora. Eu vou para a morte, vo-
cês vão pra vida. Só Deus sabe quem faz o melhor negócio”. É o que Sócrates
diz nas últimas linhas da Apologia. Mostrando que como para ele, Sócrates,
nunca interessaram questões do mundo, ele então se encontrava num es-
tado talvez até privilegiado, porque “no outro mundo seguramente haverá
pelo menos justiça”, ele diz assim para debochar do tribunal.

III.10

Quem quer ser poderoso

Que domine suas ávidas paixões

E não se abandone ao prazer,

Companheiro tão vergonhoso.

Mesmo se nos confins da Terra

O Indo obedece às tuas leis

E Tule mesmo treme à tua voz,

Afasta teus negros desejos,

Cessa de ter complacência contigo

Senão, não serás poderoso. (págs. 65-66)

176 Professor José Monir Nasser


PROF. MONIR: Indo é um rio, e Tule é uma ilha.

III.11

Quanto à glória, quantas vezes ela nos engana! Como ela é vergonhosa! Assim, o trá-

gico estava com a razão ao exclamar: ‘Ó glória, ó glória! Quantos vis mortais, Graças

a ti, desonraram a história com seus nomes!7

PROF. MONIR: Isso é de Eurípedes, da peça Andrômaca. Na Guerra de Troia,


Andrômaca é a mulher de Heitor, que é a principal personagem. Quer dizer,
é Heitor contra Aquiles. Mas Heitor é o humano, e Aquiles é semideus, por-
tanto eu tenho as minhas simpatias todas ligadas ao Heitor, que não tem
nada com isso; tenta resolver a encrenca que o irmão Páris arrumou quando
sequestrou a Helena lá do Agamenon. Heitor então acha tem que resolver
o problema. A Andrômaca é a mulher dele e acaba muito mal, né? Assim
como todo mundo menos o Enéas, que foge e funda Roma.

Muitas pessoas, com efeito, devem seu renome às opiniões errôneas da multidão: o

que pode ser mais vergonhoso que isso? Aqueles que são festejados injustamente de-

vem certamente enrubescer ao ouvir os elogios que lhe são feitos. E, mesmo quando

o mérito está na origem da glória, o que pode ela acrescentar à consciência do sábio,

que avalia o que é bom ou não em si, e não se apega ao rumor do público, mas à

verdade de sua consciência? (pág. 66)

III.13

E o que eu poderia dizer dos prazeres sensuais, cuja busca é sempre acompanhada

7 Eurípedes, Andrômaca.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 177


de tormentos, e a satisfação, de remorsos? Quantas doenças, quanto sofrimento

freqüentemente trazem como conseqüência de seus exageros àqueles que os des-

frutam? Confesso ignorar que tipo de atrativo pode-se encontrar aí. Mas basta que

lembremos as antigas paixões para reconhecermos que elas sempre acabavam em

sofrimento. E, se os prazeres podem conduzir à felicidade, por que então não afirma-

ríamos que também os animais conhecem a felicidade, uma vez que todos os seus

esforços tendem à satisfação de uma necessidade física? (pág. 68)

III.15

Portanto, está fora de dúvida que esses caminhos para a felicidade levam a um beco

sem saída e não ao lugar aonde prometeram levar. Mostrar-te-ei como essas me-

tas são mal conduzidas desde o princípio. Vejamos: tu queres te esforçar para ficar

rico? Mas para isso terás de tornar alguém pobre. Pretendes alcançar o brilho das

honrarias? Mas para isso será necessário suplicar àqueles que as conferem, e tu, que

pretendestes eclipsar os outros, deverás humilhar-te com tuas súplicas. Ambicionas o

poder? Lembra-te de que sempre correrás o risco de uma traição por parte dos teus

subordinados e estarás sujeito a muitos perigos. Procuras então a glória? O caminho

é árduo, difícil e cheio de perigos. Desejas levar uma vida de prazeres? Ora, quem não

desprezaria e rejeitaria o escravo de uma coisa tão banal e vulnerável como o teu

corpo? (pág. 69)

III.17

‘Até agora eu te mostrei as falsas formas de felicidade, e que isso baste. Chegou o mo-

mento de te mostrar a verdadeira.’ E eu disse: ‘Vejo claramente que não se pode en-

contrar a independência nas riquezas, nem o poder no exercício das magistraturas,

178 Professor José Monir Nasser


nem o reconhecimento público nas funções honoríficas, nem a celebridade na glória

e tampouco o contentamento nos prazeres’. (pág. 71)

Perguntada por Boécio por que isso ocorre, a Filosofia explica que “o erro huma-

no divide o que é por natureza simples e indivisível, e transforma o verdadeiro no falso

e o perfeito no imperfeito”.

A Filosofia explica a Boécio que é a procura da parte e não do todo que empurra

o homem para a falsa felicidade. Boécio concorda.

PROF. MONIR: Agora a Sabedoria vai explicar o que é isso de tentar dividir o
que é uno. Vamos ver como ela nos explica:

Na realidade, se eu não estou enganado, a verdadeira e perfeita felicidade é aquela

que torna um homem completamente independente, poderoso, respeitável, ilustre

e feliz. E a prova que dou de ter compreendido tudo é que reconheço sem hesitação

que é absolutamente feliz aquele que pode realizar apenas um dos bens citados

previamente, já que eles são todos o único e mesmo bem.’ Ela respondeu: ‘Meu caro

discípulo! Essa maneira de pensar fará a tua felicidade se lhe acrescentares o que se

segue.’ ‘E o que é?’, perguntei. ‘Esses bens mortais e perecíveis têm, segundo pensas, a

menor possibilidade de te proporcionar um tal estado de felicidade?’ Respondi: ‘De

forma alguma, tu me convenceste inteiramente desse fato’. ‘Assim, os mortais obtêm

apenas aparentes felicidades ou bens imperfeitos e não o verdadeiro e perfeito bem’.

‘Estou convencido disso’, disse eu. ‘Nessas condições, já que sabes distinguir a verda-

deira felicidade de suas cópias, resta-te apenas descobrir onde podes encontrar a ver-

dadeira felicidade’. ‘É isso mesmo que há muito tempo ansiosamente procuro saber’.

E ela disse: ‘Mas já que, como diz nosso caro Platão no Timeu, é preciso, mesmo em

ocasiões sem grande importância, implorar o auxílio divino, que achas que devemos

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 179


fazer agora, para merecermos saber onde reside o bem supremo?’ ‘Invocar o Pai de

todas as coisas, pois esse é o ritual com que se começam todas as coisas, respondi.’

‘Tens razão’, disse ela... (págs. 73-74)

PROF. MONIR: É, esse episódio aqui é muito interessante porque o Timeu


é um livro de cosmologia. Ele é um diálogo de Platão que apresenta uma
cosmologia, não cristã, porque Platão não conheceu o cristianismo. Então
aqui está o Boécio demonstrando que ele está no fundo debatendo a cos-
mologia cristã. Então ele faz de conta, fazendo-se de bobo, que ele está
apenas imitando Platão, mas no fundo o que ele está fazendo é aplicar a
ideia de uma cosmologia platônica a uma cosmologia cristã, que é baseada
em Deus. E nesse momento então Deus entra nesse processo aqui. Então é
completamente injustificável a ideia que alguns têm de que Boécio, por não
falar de Jesus Cristo nessa obra, não seria um verdadeiro cristão.

Quando ele foi canonizado no século XIX houve grande polêmica, porque
alguns acham que ele não morreu em nome da Igreja. Ele não foi martiri-
zado pelo cristianismo... não parece mesmo que foi, né? No fundo ele está
sendo martirizado pela filosofia. Mas se você prestar atenção, atrás de tudo
que Boécio fala há uma clara estrutura cristã. Não há nenhuma dúvida disso.
Portanto, é completamente justo considerá-lo mártir da Igreja, porque ele
de fato é isso. A sua canonização tem todo o sentido do mundo. Embora
ninguém o chame de São Severino Boécio. Santo Agostinho, Santo Tomás,
todos eles ficaram santos no próprio nome, né? Mas Boécio, não. A Boécio
as pessoas referem-se apenas como Boécio. Há muito livro de história da
filosofia que não sabe nem reconhecer a canonização.

180 Professor José Monir Nasser


III.19

Desse modo, uma vez que já viste as formas que reveste o bem imperfeito assim como

as que reveste o bem perfeito, creio agora ser preciso te mostrar onde se encontra a

perfeita felicidade. A esse respeito julgo ser necessário antes de tudo perguntarmos

se um bem tal como o que acabas de definir pode existir na realidade deste mundo;

caso contrário, poderíamos passar ao lado da verdade sem vê-la e deixarmo-nos en-

ganar por uma representação ilusória de nossa imaginação. No entanto, sabemos

que esse bem existe e é a fonte de todos os bens, o que é inegável. Com efeito, tudo o

que é tido por imperfeito o é devido a uma degradação da perfeição.

PROF. MONIR: Isso é a hipótese platônica. Vocês se lembram do Fedro, em


que foi ensinado pelo Sócrates que o que nós chamamos de beleza é um
reflexo de uma beleza que existe no âmbito do mundo das ideias, no mun-
do das essências, e nós sabemos o que é beleza porque nós nos lembramos,
temos recordação deste mundo do qual nós já fomos partícipes. As almas
perdem as asas e caem sobre a terra. Então quando nós caímos aqui, nós
só temos lembranças desse mundo anterior. Isso é profundamente cristão,
porque no fundo é a mesma ideia que está dentro da ideia de que Deus
criou o mundo à Sua imagem e semelhança. Imagem e semelhança – não
quer dizer que seja igual; “imagem e semelhança” corresponde à ideia de
que quando vejo o efeito do sol numa pedra eu não estou vendo o sol, mas
apenas a sua radiação. A mesma coisa acontece com a imagem e semelhan-
ça. Aí há uma enorme coincidência entre o conceito hindu de que o mundo
manifestado é apenas um dos mundos possíveis do absoluto, entre a ideia
de que o mundo é feito à imagem e semelhança de Deus do cristianismo e
entre a ideia platônica de que esse mundo aqui é apenas uma manifestação
imperfeita de um mundo perfeito. Tudo coincide nesse momento entre si.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 181


Segue-se que se, em qualquer campo que seja, algo parece imperfeito, é porque existe

também necessariamente nesse campo algo que seja perfeito. Pois, se não admiti-

mos que a perfeição existe, não poderíamos sequer imaginar como aquilo que é tido

por imperfeito possa existir. (pág. 76)

PROF. MONIR: Eu não posso jamais falar em imperfeição se eu não aceitar


automaticamente a existência da perfeição. Eu não posso falar em coisas
relativas se eu não aceito necessariamente que haja coisas absolutas. Por-
que se alguma coisa é relativa, o é por contraste a coisas absolutas, enten-
dem? Então essas expressões que as pessoas dizem: “Tudo é relativo”, “Tudo
é ideologia”... são todas autocontradições, são todas miseravelmente suici-
das. Vocês compreendem que eu não posso declarar assim, por exemplo:
“Eu sou mentiroso”, porque se eu sou mentiroso de verdade, eu acabei de
dizer uma verdade, estou me autocontradizendo. E se eu não sou mentiroso,
eu estou dizendo uma mentira, o que contradiz a tese de que eu não sou
mentiroso. São todos suicídios lógicos. Eu não posso dizer assim: “Tudo é
relativo”. Bom, se tudo é relativo, então isso que eu estou dizendo também
é relativo, portanto não vale nada. É claro que a pessoa vai dizer: “Não, mas
tudo menos isso”.

Alunos: [risos]

PROF. MONIR: Aí estamos entrando no terreno da erística. Erística é a arte


da trapaça intelectual. A mesma coisa quando digo: “Tudo nesse mundo é
ideologia, eu não acredito em nada porque tudo é no fundo uma defesa de
uma condição econômica” (isso é o que quer dizer que tudo é ideologia).
Mas se tudo é ideologia, então essa sua afirmação de que tudo é ideologia
também é uma ideologia. Então qual é o mundo econômico que você está

182 Professor José Monir Nasser


defendendo com isso? Daí a pessoa diz: “Não, não, mas isso é a única coisa
que não é ideologia”. Daí já é vigarice pura. Eu não posso aceitar a ideia de
que só existem imperfeições se eu não aceitar a ideia de que possa existir
uma perfeição. E essa é uma das pistas que levam você a compreender que a
existência de Deus é completamente obrigatória. E que Deus não pode não
existir, porque a inexistência, a falta de existência de Deus não é possível
logicamente. Então essa é uma constatação filosófica básica (isso aqui é mé-
todo filosófico básico) de que você não pode se autocontradizer. Isso na teo-
ria. Porque na prática o pessoal não para de fazer isso. Mas uma abordagem
filosófica séria impede que você possa desconhecer isso. Que determinadas
coisas são obrigatórias como conclusões e premissas que você mesmo esta-
beleceu. Não podem ser negadas, em última análise.

A Filosofia explica a Boécio que o universo não foi criado a partir de elementos

degradados e incompletos, mas teve sua origem a partir de elementos intactos

e acabados, mas que acabou em imperfeição.

Agora, se queres saber onde ela (a perfeição) se encontra, eis como deves raciocinar.

Todos os homens concordam em afirmar que Deus, princípio de todas as coisas, é

bom. E, como não podemos conceber nada melhor do que Deus, quem poderia du-

vidar de que aquilo que é melhor que todo o resto seja bom? Portanto, nossos raciocí-

nios mostram que Deus é bom a tal ponto que está fora de dúvida que o bem perfeito

também está presente nele. Caso contrário, Deus não poderia ser o princípio de todas

as coisas. Pois, se houvesse algo que possuísse o bem perfeito e parecesse ser anterior

a Deus e mais velho que ele, isso teria preeminência sobre Deus, pois tudo o que é per-

feito parece evidentemente ser o primeiro quanto a algo que é de certa forma deriva-

do. Eis por que, para evitar prolongar o raciocínio infinitamente, é preciso admitir que

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 183


o Deus soberano contém o perfeito e soberano bem. Mas nós tínhamos estabelecido

que o bem perfeito é a verdadeira felicidade, portanto a verdadeira felicidade reside

necessariamente no Deus soberano. (pág. 77)

PROF. MONIR: Se no parágrafo anterior Boécio estava sendo platônico, ago-


ra ele está sendo aristotélico. Porque é Aristóteles que estabelece essa ideia
de que não é possível procurar o que criou: Quem nos criou? Foi alguém.
E quem criou esse alguém? Alguém. E quem criou... Então você não pode
ficar o resto da eternidade voltando pra trás pra ver quem criou. Tem de
haver logicamente uma espécie de motor inicial – Aristóteles chama assim
mesmo – que é o motor de todas as coisas. Vocês compreendem que isso
é obrigatório por lógica, porque não é possível haver uma série infinita pra
trás disso? Então o que ele vai fazer? Agora ele colocou Deus nessa história
como sendo onde tudo começa, porque Deus tem de ser necessariamente
incriado. Ninguém pode ter criado Deus. Deus sendo incriado, Ele é o início
de tudo. Se Deus é o início de tudo, Nele está o supremo bem. Se Nele está
o supremo bem, então a felicidade só se encontra em Deus. Ele conseguiu
conduzir o leitor da Consolação da Filosofia para a compreensão metafísica
de Deus sem ser pelo caminho dogmático do evangelho. Agora, por meio
de um instrumental filosófico, ele está demonstrando claramente porque é
obrigatório que Deus seja maior que todas as outras coisas todas. Veja, Deus
não pode anular a lógica. Compreendem? Então Deus não pode inventar
nenhum Deus maior do que Ele porque Deus já é infinito, e um infinito não
pode ser maior que outro. Então não dá pra você dizer assim: “Deus vai in-
ventar um outro Deus maior que Ele, já que Ele pode tudo”. Deus pode tudo,
exceto cancelar a lógica. Então Deus não pode dizer que 2+2 = 5; nem para
Deus é possível fazer isso.

184 Professor José Monir Nasser


E isso é uma coisa maravilhosa porque permite que haja um instrumento
com o qual nós conseguimos lidar com os fatos da vida de maneira ampla,
de maneira segura, e isso permite que o ser humano possa de alguma ma-
neira se assemelhar a Deus. Mesmo porque se há uma lógica que funciona,
foi Ele que inventou. Ele não iria se autocancelar. Não é uma maravilha, isso?
Vocês não ficam emocionados? Eu estou sentindo uma verdadeira emoção
no ar! Emoções incríveis que vocês estão tendo com essa conclusão.

Alunos: [risos]

Aluno: [Pergunta sobre o relativismo.]

PROF. MONIR: É, o relativismo é uma bobagem. Porque ele só tem valor


como precaução intelectual. Chega assim um sujeito que pesa quinhen-
tos quilos e fala assim: “As pessoas mais sensuais são as gordas”. Então você
deve desconfiar que ele está defendendo esta tese porque ele é gordo. O re-
lativismo é apenas uma precaução intelectual, pra você não bancar o bobo.
O relativismo como instrumento de conhecimento no mundo é uma estu-
pidez, porque você no fundo vai chegar à conclusão de que nada pode ser
conhecido. Ora, se nada pode ser conhecido, se então cada um conhece o
que bem entende... Em primeiro lugar isso criaria um mundo impossível, em
que haveria bilhões de mundos em colisão. Em segundo, se nenhum mundo
seria o verdadeiro, então eu vou embora... Porque qual é o sentido de ficar
debatendo a realidade, se a realidade não existe? A ideia do relativismo lá do
luto, que depois se expressa no relativismo cultural, nessas pragas do mun-
do contemporâneo, é uma ideia suicida em termos de conhecimento huma-
no – não serve pra nada, a não ser pra gente pular do prédio. Nada mais é
conhecível. Se cada um acha que tem uma verdade, então não tem verdade

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 185


nenhuma. Mas isso é profundamente autocontraditório. O que pode acon-
tecer é que os meus meios de conhecer a verdade sejam meios imperfeitos.
Mesmo porque a verdade não pode se deixar conhecer simultaneamente
de todos os modos. Por exemplo: O que tem na capa deste livro aqui? [o
professor mostra a contracapa do livro] <pausa> É, o livro não deixa de ter
uma capa, mas vocês não são capazes de ver, porque a capa está necessaria-
mente escondida quando eu mostro pra vocês a contracapa. Entenderam?
Como o livro não tem uma capa e contracapa simultâneas, então é claro que
se eu mostrar o livro pra vocês, algum verão a capa, outros a contracapa. O
que não quer dizer que a realidade seja diferente. Como vocês não têm os
meios de olhar por meio do livro e ver a contracapa, e o livro não tem meios
de deixar-se mostrar totalmente automaticamente...

A percepção do mundo é essa miséria de a gente perceber pedaços, mas


isso não significa que seja nosso próprio gosto. No fundo a realidade pode
ser mais complexa do que somos capazes de perceber. Mas a ideia de que
tudo é relativo é uma ingenuidade. É uma coisa que está abaixo do mínimo
necessário para debater qualquer assunto. No entanto é a marca da filosofia
contemporânea. É como as pessoas pensam hoje em dia. Depois de Kant, o
mudou ficou assim.

Como Boécio concorda, a Filosofia o adverte que Deus e a felicidade são a mes-

ma substância, porque a felicidade é o soberano bem e nada pode existir acima

de Deus, logo “é preciso admitir que Deus é a suprema felicidade”. Ela reforça a tese.

‘Examinemos agora’, disse ela, ‘se podemos provar tal afirmação de maneira mais

sólida partindo da seguinte proposição: não podem existir dois soberanos bens que

difiram um do outro. Pois, quando dois bens são diferentes um do outro, fica claro

186 Professor José Monir Nasser


que um não é o que o outro é, e dessa forma nenhum dos dois pode ser considerado

perfeito dado que um falta ao outro. Mas o que não é perfeito evidentemente não é o

soberano, portanto é absolutamente impossível que os bens soberanos possam dife-

rir entre si. Ora, havíamos concluído que a felicidade e Deus são o soberano bem, por-

tanto é precisamente a divindade soberana que é a felicidade suprema. (págs. 78-79)

PROF. MONIR: E é por isso que é muito difícil definir Deus. Todo o processo
de definição é, necessariamente, um processo de restrição. Então quando
eu defino um mamífero, estou dizendo que o mamífero é um tipo de animal
que amamenta os filhos. Então quando eu defino um mamífero, eu estou
dizendo que aos mamíferos não é dada a capacidade de botar ovos. Então
falta aos mamíferos a ovoparidade. E às galinhas falta a viviparidade. Então
esses dois não podem ser o todo, porque cada um deles tem uma falta. En-
tão, ao definir, eu limito. Como eu não posso definir Deus de verdade, em
última análise – os metafísicos orientais costumam dizer que Deus é aquele
que não é. Porque ao dizer como a coisa é, eu também estou dizendo neces-
sariamente que ela não é outra coisa. Então é melhor não tentar dizer o que
Deus é, porque eu vou acabar dizendo que falta alguma parte, e aí então
não será mais Deus. É claro que é impossível para a mente humana definir
Deus verdadeiramente. É esse o sentido do que se está dizendo aí. Não dá
pra definir Deus, essa é que é a questão. Nós conhecemos aspectos de Deus,
mas não podemos conhecê-lo inteiro, não dá.

A Filosofia demonstra que é pela aquisição de justiça que as pessoas ficam jus-

tas; pela aquisição de sabedoria que elas ficam sábias, logo é só pela aquisição

do divino que elas podem se tornar felizes, “por conseguinte, todo homem feliz

seria um deus”.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 187


Como corolário da proposição anterior, a Filosofia esclarece que aquilo o que se

procura sob o nome de felicidade é o bem.

Com efeito, se buscamos a independência é porque a consideramos um bem, e se

buscamos o poder é porque ele também é tido como um bem; da mesma maneira

podemos raciocinar com relação à consideração social, à celebridade e ao prazer.

Por conseguinte, a essência e a causa de tudo o que é desejável é o bem. (pág. 80)

Como a felicidade e Deus são a mesma coisa, é forçoso reconhecer que o bem

reside apenas em Deus, excluindo-se tudo o mais.

PROF. MONIR: No entanto, se você se põe a pegar apenas uma parte – por
exemplo, o poder –, aí você vai tentar dividir o indivisível e aí vai apenas er-
rar. Então, o que ele está dizendo é que não é possível desvincular as coisas,
porque o bem é Deus, é uma coisa só. Essa é uma ideia de Parmênides, é
uma ideia que ele aprendeu com os eleatas. É uma ideia dos pré-socráticos.

III.21

A Filosofia resume o exame do problema até ali.

‘Não havíamos demonstrado que as coisas que muitas pessoas buscam não são

bens verdadeiros nem perfeitos, pela simples razão de que eles diferem entre si e que,

como um falta ao outro, eles não podem proporcionar bem absoluto em sua ple-

nitude? Ora, não havíamos também demonstrado que o verdadeiro bem somente

existe quando todos os bens se reúnem para produzir uma só forma e um só efeito;

e também que a independência, o poder, a posição social, a celebridade e mesmo o

188 Professor José Monir Nasser


prazer também são bens mas que, se não estão todos reunidos numa só coisa, por si

mesmos não possuem nada que lhes permita ser considerados bens desejáveis?’ ‘Sim’,

respondi, ‘e quanto a isso não resta mais dúvida’. ‘Por conseguinte, as coisas não são

bens verdadeiros quando diferem entre si, mas somente quando tendem a formar

uma unidade é que começam a sê-lo. Não acontece de elas se tornarem bens quan-

do realizam plenamente sua unidade?’ ‘Parece que sim’, respondi. E ela: ‘Mas dize-me

sim ou não: concordas que tudo o que é um bem o é pela sua participação no bem

supremo?’ ‘Sim’. ‘Tu deves então admitir, devido ao mesmo raciocínio, que o uno e o

bem são a mesma coisa: com efeito, as coisas que por natureza não provocam efei-

tos diferentes têm a mesma substância’. ‘É impossível negá-lo’, disse eu. E ela acrescen-

tou: ‘Sabes então que tudo o que existe subsiste tal qual é durante o tempo em que é

uno, e que morre e que se desagrega quando deixa de ser uno?’ (págs. 82-83)

PROF. MONIR: Então o que ele vai continuar fazendo agora é desenvolver a
ideia de Parmênides de que o que caracteriza a vida é que tudo tenta per-
manecer uno, por exemplo, a nossa alma com o nosso corpo. O que é tentar
manter-se vivo? É tentar manter essas duas coisas juntas, porque na hora em
que essas duas coisas se separam, o corpo vai pro cemitério e a alma vai pra
algum lugar que você não sabe qual é. Tudo o que existe no mundo tenta
manter-se uno. E ele com isso tenta demonstrar que se a gente seguir essa
regra do mundo e do cosmos, só tem uma saída pra nossa existência, que
é impedir a segmentação, é continuarmos desejando Deus, porque Deus é
que unifica tudo, é isso que ele quer dizer no diálogo em seguida.

A Filosofia explica esta última consideração, exemplificando que quando o cor-

po e a alma se separam, o corpo se decompõe. Logo, o que todos os seres

vivos fazem é perseguir a unidade e mantê-la a todo custo (exceto em situações

excepcionais). Isto vale igualmente para as plantas, já que algumas “buscam os

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 189


pântanos, algumas se prendem a rochedos, enquanto outras preferem o árido deser-

to e, se tentássemos transplantá-las, morreriam”. Só assim se pode compreender

que “todas essas espécies são como mecanismos vivos concebidos não apenas para

subsistir por certo tempo, mas também para adquirir cada qual uma espécie de eter-

nidade”.

Quanto aos seres que se acredita serem inanimados, também eles, segundo a mes-

ma lógica, não procuram o que lhes é próprio? Por que o fogo sobe verticalmente

levado por sua leveza, e a terra, devido a seu peso, segue o caminho oposto, senão

pelo fato de esses movimentos estarem conformes à sua natureza? Prossigamos nos-

so raciocínio: tudo o que está de acordo com uma outra coisa a preserva e, no sentido

oposto, tudo o que lhe é hostil a destrói. E os corpos sólidos, como as pedras, mantêm

suas partes firmes e não se deixam degradar facilmente. Quanto aos líquidos, bem

como ao ar e à água, é verdade que se deixam dividir facilmente, mas, uma vez dividi-

dos, logo se reconstituem; quanto ao fogo, este é impossível de ser dividido. (pág. 85)

A conclusão é de que tudo que existe busca sua perenidade e evita sua des-

truição a todo o custo. Boécio então conclui que todas as coisas que desejam

perpetuar-se precisam ser unas e o uno é precisamente o bem, logo todas as

coisas procuram o bem.

E ela exclamou: ‘Oh, meu discípulo, como estou contente! Pois acabas de desvendar

aquilo que constitui o centro da verdade! Acabas de dizer precisamente aquilo que

julgavas ignorar’. ‘O quê?’, perguntei. ‘Qual é o fim de todas as coisas?’ ‘Aquilo que sem

sombra de dúvida todas as coisas procuram, e, como havíamos concluído que é o

bem, temos de reconhecer que o fim de todas as coisas é o bem’. (pág. 86)

190 Professor José Monir Nasser


III.22

Se procuramos seriamente a verdade

E não desejamos ser enganados,

Devemos deixar brilhar em nós nossa luz interior,

Concentrar os amplos movimentos do pensamento

E aprender da alma aquilo que ela colheu no exterior.

Ela já possui a verdade, guardada secretamente nela.

Aquilo que antes recobria a negra nuvem do erro

Brilhará mais claramente que o próprio Febo.

Pois a alma não pode resplandecer com todo o seu brilho

Porque o corpo, com sua matéria, deixou-a cair no esquecimento.

Sem dúvida alguma uma semente da verdade permanece na alma,

E ela vem reanimar um ensino esclarecedor.

Como terias tu respondido espontaneamente e de maneira correta

Se algo não te iluminasse no fundo de teu coração?

Se a Musa de Platão proclama a verdade,

Ao ouvi-la lembramo-nos de algo sem nos darmos conta. (págs. 86-87)

III.23

Então eu disse: ‘Partilho inteiramente o ponto de vista de Platão, pois já é a segunda

vez que tu me dizes essa verdade: na primeira vez perdi a memória devido à contami-

nação do corpo e, na segunda, quando fui torturado’. (pág. 87)

Boécio diz ter chegado à conclusão de que este universo, composto por partes

tão díspares e opostas entre si, não poderia ser constituído numa forma única

sem a existência de um ser único, capaz de reunir elementos tão diferentes.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 191


PROF. MONIR: Que é Deus. O que unifica o universo é a mente de Deus. O
universo não é Deus, por favor, tá? Cuidado com isso. Essa é uma tese do
Spinoza, chama-se panteísmo, e é a ideia de que Deus é a somatória das
coisas que existem. É uma ideia de uma ingenuidade terrível, porque o Cria-
dor não pode estar no mesmo nível que a criatura. Então o universo todo é
unificado pela mente de Deus, mas não é Deus em si – é a mente de Deus
que unifica tudo, porque é Ele quem cria o universo, portanto então Ele o
unifica na Sua mente.

E só é possível então compreendermos alguma coisa na medida em que


nós estamos unificados. Qual é, essencialmente, o sentido da queda cristã,
que é o episódio do Paraíso Perdido? É o episódio da desvinculação espiri-
tual do homem de Deus. Não é nada mais que isso. Na medida em que nós
vamos nos tornando mais humanos, nós vamos nos tornando mais desuma-
nos. Como efeito colateral inverso daquilo que nós desejamos. Vamos nos
parecendo cada vez mais com o mundo da quantidade e cada vez menos
com o mundo da qualidade. Então é isso que ele mostra, mas a partir da
abordagem do Parmênides.

Por outro lado, essa reunião se desfaria e desaparecia devido à disparidade de

seus elementos a menos que houvesse um ser único capaz de manter a coesão

entre os elementos ligados entre si.

PROF. MONIR: Isso não é assim porque a vida diz que é assim, é assim porque
ele acabou de demonstrar isso filosoficamente. Entenderam onde é que o
Boécio entra com uma coisa completamente nova na história da inteligên-
cia humana? Ele acabou de demonstrar que isso é assim porque é obriga-

192 Professor José Monir Nasser


toriamente assim. E não porque isso esteja sendo dito por uma parábola de
Jesus Cristo, por exemplo.

Continuando o raciocínio, a Filosofia demonstra a Boécio que como Deus é o

“bem supremo que dirige com o seu poder todas as coisas e as dispõe com harmonia”

nada pode se opor contra ele, e logo o mal não existe, “pois mesmo o que pode tudo

não pode fazer o mal”.

PROF. MONIR: Porque ele não pode ser autocontraditório. Se Deus é cem
por cento bem, não é possível Deus fazer o mal. E essa é obviamente uma
questão muito séria, porque é a principal restrição que as pessoas têm con-
tra Deus: “Poxa, mas como é que pode existir um Deus se acabou de haver
um acidente em que vinte crianças caíram num barranco, morreram afo-
gadas numa represa?” “E o tsunami, tinha trinta sujeitos de férias e todos
morreram? Como é que pode ter um Deus que faça isso?” Essa é a origem da
rebelião do século XX. O Ivan Karamazov, que é uma das personagens cen-
trais do livro Irmãos Karamazov, ele tem essa tese: “Eu não sou contra Deus,
eu sou contra a obra de Deus, mas que porcaria!” Então o sujeito acha que
a associação entre o Partido Comunista e o SUS vai fazer melhor. Entendeu
a estupidez contemporânea, a que ponto chega? Então o sujeito acha que
Deus é tão incompetente, tão burro, então seguramente o Partido Comunis-
ta mais um grupo de professores de Filosofia da Federal mais o SUS e mais
o Exército da Salvação vão fazer melhor do que Deus. E essa é a origem de
toda a rebelião metafísica do século XX que o Albert Camus conta no livro O
Homem Revoltado, justamente sobre isso.

Então ele vai discutir em seguida os desígnios de Deus. Isso é muito impor-
tante, e ele começa em primeiro lugar negando a possibilidade de que o mal

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 193


possa existir de verdade. Por que o mal não existe? Porque o mal não é uma
dualidade complementar. Vejam, na vida humana, na vida do cosmos, ou
seja, na vida real, concreta, do mundo, existem dualidades complementares.
Por exemplo, você tem a ideia de homem/mulher. Homem e mulher não
se excluem mutuamente, ao contrário, incluem-se o tempo todo. Eles são
assim, têm uma espécie de atratividade natural. E o ser humano completo é
metade homem e metade mulher, é um composto destas duas partes dife-
rentes. Então quando você diz que homem/mulher é uma dualidade, você
está apenas reconhecendo que determinadas coisas nesse mundo vêm aos
pares. E esses pares, quando somados, são iguais a um. É como se homem e
mulher, cada um valesse meio, soma os dois e dá um.

Mas existem outras dualidades que não são assim. Por exemplo, claro e es-
curo. Claro e escuro se excluem mutuamente. Se eu apertar o interruptor,
vai ficar escuro. Se eu voltar a acender, vai ficar claro. Então como o claro e o
escuro se excluem mutuamente, um só existe como ausência do outro. Sob
esse ponto de vista, o mal não tem uma existência real e concreta, mas o mal
é uma espécie de ausência do bem. Entenderam?

Se você acha que o bem e o mal existem igualmente, você é um maniqueís-


ta. Maniqueísmo é uma certa maneira de pensar que não é herética porque
não é cristã, mas é uma abordagem não-cristã que foi muito importante
no começo do cristianismo, por meio de um tal de Maniqueu, que achava
que esse mundo é feito numa briga entre o bem e o mal, como entidades
que estão em guerra. Em que ora ganha um, ora ganha outro. Pois essa é
uma ideia profundamente anticristã, porque eu estou propondo que o po-
der seja dividido com dois indivíduos de igual poder. Mas isso vai contra o
que a Filosofia acabou de nos explicar. Porque se um não tem o outro, então

194 Professor José Monir Nasser


necessariamente nenhum desses dois é perfeito – e Deus não poderia ser
isso. Então o maniqueísmo é essa ideia de que o bem e o mal são meios
que se somam para dar um, quando eu estou dizendo que para que você
possa ser cristão e acreditar nisso é preciso supor que o bem é cem por cen-
to, portanto ele já vale um, e que o mal nada mais é do que a ausência de
bem, circunstancial como quando você apaga a luz. Compreenderam essa
diferença, pessoal? É absolutamente imprescindível entender essa diferen-
ça: que o mal não existe porque é ausência de bem. Portanto ele só existe
enquanto ausência, não é como homem e mulher que existem os dois para-
lelamente e simultaneamente. Porque a dualidade homem e mulher é uma
dualidade complementar, como yin e yang, ato e potência, matéria e forma,
são todas dualidades reais, concretas. E a dualidade claro e escuro não pode
ser simultânea, porque se está claro não está escuro, e se está escuro não
está claro. E eu tenho que escolher um dos dois. Portanto o mal só existe
como ausência de bem.

Livro IV

IV.1

Boécio, preocupado com a existência do mal, interroga a Filosofia.

Tu, que conduzes à verdadeira luz, sabes que todas as afirmações que me fizeste até

agora pareceram-me não só divinas mas também irrefutáveis pela lógica de teus ar-

gumentos, e, mesmo se as dores que me foram infligidas fizeram-me esquecer várias

argumentações, essas verdades não foram no entanto completamente esquecidas.

Mas talvez a principal razão de minhas angústias seja que, apesar da existência de

um ser bom que comanda o universo, o mal possa existir e até ficar impune.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 195


PROF. MONIR: Porque ele acha que os que o condenaram são maus. Então
ele não compreende como é que pode uma coisa que não existe dar tão
certo. Ele está desolado com fato de que o mal não existe, mas os caras se
dão bem.

Isso apenas já é bastante surpreendente, e certamente deves concordar. Mas a situa-

ção é pior ainda: enquanto o vício reina e prospera, a virtude não apenas não recebe

recompensa alguma, mas também é calcada pelos pés dos celerados e levada ao

suplício em lugar do crime. Que tais coisas aconteçam no reino de um Deus oniscien-

te, onipotente e que quer apenas o bem faz com que as pessoas fiquem admiradas e

lamentem o fato. (págs. 95-96)

PROF. MONIR: O que ele tá fazendo é a acusação que eu fiz agora há pouco:
como é que Deus permite que isso dê certo? Então o que a Filosofia fará em
seguida é justificar do modo como eu já fiz, demonstrando que na verda-
de essas pessoas querem o bem. Os sujeitos que são maus, eles querem o
bem, mas eles não sabem... porque para fazer que alguma coisa funcione,
é preciso você ter vontade e capacidade. Por exemplo, se você quer esquiar
na neve, é preciso que você queira fazer isso e ao mesmo tempo saiba fa-
zer isso. E o problema dos maus é que eles querem uma espécie de bem, a
vontade está voltada para o bem, mas, no entanto, eles não sabem como
fazê-lo. Aí então, como não sabem como fazê-lo, eles acham que fazer uma
coisa em busca do poder, por exemplo, à custa de qualquer coisa é bom.
Portanto, a inexistência da sabedoria é que é o sentido da ignorância. Ou
seja, é a treva no lugar da luz que produz essa ação equivocada dessas pes-
soas. É isso que ela provará em seguida.

196 Professor José Monir Nasser


IV.3

Para apaziguar o espírito de Boécio, a Filosofia demonstra que para que qual-

quer ação humana surta efeito são necessárias duas condições: a capacidade

e a vontade. Relembra-o também já terem os dois concluído que os homens

tendem à felicidade: “Portanto todos, bons e maus procuram com a mesma dili-

gência o bem”. Os bons o atingem porque o desejam e são capazes de o obter,

enquanto os maus, embora o desejando, são incapazes, porque são ignorantes.

Vê com efeito com que clareza se revela a natureza dos homens corrompidos, que

não podem sequer dirigir-se para onde sua tendência natural os leva – e eu diria até

os impele. (pág. 100)

Aprofundando o raciocínio, ela pergunta se é com pleno conhecimento que

eles se desviam esse abandonam ao lucro do mal, e conclui:

Mas, nesse caso, não apenas cessam de ser fortes, como simplesmente deixam de ser.

Pois aqueles que renunciam àquilo a que tendem todas as coisas cessam ao mesmo

tempo de ser. Certamente parecerá estranho dizer eu que os maus, que são a maioria,

não existem; no entanto é exatamente o que ocorre. De fato, não afirmo apenas que

são maus, mas, sem hesitar, que eles simplesmente não são. Com efeito, tu poderias

dizer-me que um cadáver é um homem morto, mas não que é simplesmente um

homem; do mesmo modo eu poderia admitir que os malfeitores são homens maus,

mas não que eles participam do ser e da essência, no sentido absoluto do termo. Pois

para ser é preciso conservar a boa ordenação da alma e preservar a própria natureza;

ora, aquele que se afasta de sua natureza renuncia também a ser aquilo de que sua

natureza depende. (pág. 101)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 197


IV.5

Lembra-te agora do corolário que te mostrei agora há pouco, que é sumamente im-

portante e que foi concluído da seguinte maneira: uma vez que o bem em si é a felici-

dade, fica claro que todas as pessoas de bem tornam-se felizes precisamente porque

são boas. No entanto, é evidente que os que são felizes são deuses. Eis, portanto, a

recompensa dos bons, que nenhum jugo pode alterar e que maldade alguma pode

tocar: em verdade, eles se tornam deuses como partícipes da divindade. (pág. 104)

(...)

Acabaste de aprender que tudo o que é é uno, e essa unidade é o bem, donde resulta

que tudo o que é parece também ser o bem. Dessa forma, tudo o que se afasta do

bem deixa de existir; os maus deixam de ser, mas o fato de conservarem a aparência

física de um ser humano mostra que eles já foram verdadeiros homens. E é assim que,

afundando na maldade, eles perdem ao mesmo tempo sua natureza humana. Mas,

como somente a bondade pode elevar um homem acima da natureza humana, é

necessário concluirmos que a maldade rebaixa os que a ela se aplicam para aquém

do nível humano. (pág. 105)

PROF. MONIR: Para que vocês possam entender o que o Boécio vai dizer
agora, o que a Filosofia diz para ele é que toda a vez que você é ignorante, o
que você faz na verdade é parecer com um animal. Porque o sujeito muito
voltado para os seus prazeres fica parecendo com um porco, o sujeito que
pensa o tempo todo em intrigas políticas fica parecendo com uma raposa, o
sujeito que pensa o tempo todo em rapinar os outros parece com um leão
ou uma hiena, e assim por diante. O que acontece quando você desconhece
o bem é você perder a sua própria condição humana.

198 Professor José Monir Nasser


Que é de alguma maneira o que aconteceu com Gregor Samsa (a persona-
gem central no livro A Metamorfose, de Franz Kafka), que parece daquele
jeito animalesco porque o homem caído é que tem aquele jeito animalesco.
Por isso é que no fundo ninguém liga muito para o Gregor Samsa, porque no
fundo todo o mundo tem claro na mente que é assim que se parece um ho-
mem caído. Porque uma das coisas intrigantes do romance é que ninguém
fica muito surpreendido com aquela transformação. Tá todo mundo mais
preocupado com ele não ter ido trabalhar do que com o fato de que ele vi-
rou um... É como se você se virasse para o seu irmão, que virou um gambá e
dissesse assim: “Pô, você já foi jogar na loteria, que eu te pedi pra você jogar
para mim ontem?” É muito mais surpreendente o seu irmão ter virado um
gambá do que ele ter se esquecido de jogar na loteria pra você! Então essa é
a situação do livro, no fundo o homem decaído passa a ter aquela aparência
animalesca, que é o que a Filosofia acabou de explicar para o Boécio.

IV.7

Boécio concorda com que as pessoas más tenham perdido sua condição hu-

mana e tenham se transformado em bestas, mas prefeririam que elas não pu-

dessem exercer sua “infâmia e crueldade” livremente. A Filosofia reage: “Mas isso

não é permitido”, pois os maus tornam-se necessariamente mais infelizes quando

têm sucesso em realizar aquilo que desejam do que quando são incapazes de

satisfazer seus desejos.

PROF. MONIR: Aqui tem uma coisa importantíssima: ele está criando a pre-
missa na qual se baseia a ideia da caridade cristã. Ele está criando aqui a
explicação filosófica para a caridade cristã. Porque a caridade cristã é um
processo pelo qual o exercedor da caridade recebe como prêmio e como

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 199


compensação o mesmo bem que ele faz para o outro. Por analogia inversa,
você tem que admitir que o perpetrador de um mal recebe como castigo
a mesma quantidade de mal que ele causou ao outro. Porque é impossível
você fazer um bem para o outro que não seja para você, e é por isso que a
caridade não é pro outro, é pra você mesmo. O que você faz por um outro
a quem você ajuda é uma espécie de efeito colateral, mas no fundo você
é que é o assunto da caridade. A mesma razão preside o fato de que você
piora quando é mal com os outros. É o que ele está dizendo aqui. O mal não
é livre, o mal não é capaz de ficar impune. Ele é punido automaticamente
pela sua própria existência. A melhor coisa possível que você pode fazer pra
alguém que faz o mal é castigá-lo, porque castigar alguém que faz o mal
implica dar a ele um pedaço do bem. Então o mal castigado é melhor do que
o mal impune, para quem é o agente do mal.

A Filosofia insiste em que não há verdadeiramente liberdade porque “suas espe-

ranças imensas e suas jogadas ambiciosas levam freqüentemente a um fim brutal e

inesperado, o que evidentemente limita sua maldade”.

Se, com efeito, sua vileza os torna infelizes, o homem médio é necessariamente cada

vez mais infeliz enquanto sua vida vai se prolongando, e eu consideraria esses pobres

indivíduos os mais infelizes dos homens se a morte não pusesse um fim à sua malda-

de. E, de fato, se nossas conclusões sobre o desafortunado e a maldade são verdadei-

ras, fica claro que a infelicidade é infinita quando a maldade é eterna. (págs. 108-109)

PROF. MONIR: Chegamos aqui então... o que vem em seguida eu acabei de


explicar. No entanto o Boécio não está conformado com isso.

200 Professor José Monir Nasser


Boécio é obrigado a concordar por força das premissas.

‘Tens razão’, disse ela, ‘e, se encontrarmos dificuldade em aderir a uma conclusão, é

preciso demonstrar que alguma das proposições anteriores é falsa ou então provar

que o encadeamento dos raciocínios não conduz necessariamente a essa conclu-

são; caso contrário tendo sido aceitas as proposições anteriores, não se pode negar a

conclusão. O que vou acrescentar, portanto, pode parecer mais surpreendente ainda.

Mas é uma conclusão que é o resultado necessário daquilo que foi admitido como

verdadeiro’. (pág. 109)

Por força deste mesmo princípio, uma nova conclusão terá de ser aceita.

Portanto, os desonestos se beneficiam quando são punidos, pois uma parte do bem

lhes é acrescentada – trata-se precisamente de sua punição, que é boa porque é justa

–, e essas mesmas pessoas, quando escapam do castigo, adquirem um mal suple-

mentar – trata-se da impunidade que reconheceste ser um mal devido à sua iniqüi-

dade’. ‘Não posso discordar’, disse eu. ‘Portanto, os desonestos são muito mais infelizes

se gozam de uma injusta impunidade do que quando recebem a punição merecida’.

(pág. 110)

Boécio concorda mas reage: “Quando examino teus argumentos, fico persuadido

de que não se pode dizer nada de mais verdadeiro. Mas, se considerarmos o juízo dos

homens, quem não acharia tuas idéias, já não digo críveis, mas nem sequer audíveis?”

É verdade o que dizes, pois as pessoas em geral são incapazes de elevar seus olhos

acostumados às trevas em direção à luz da verdade, onde a evidência se impõe, e

acabam por ser semelhantes aos pássaros, cujas faculdades visuais se intensificam à

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 201


noite e desaparecem com a luz do dia. Dessa forma, têm o olhar fixado não sobre a

ordem do universo, mas sobre seus próprios sentimentos, e crêem ser felizes por poder

cometer todo o tipo de má ação livre e impunemente. Mas vê o que prescreve a lei

eterna. Toma por modelo aquilo que há de melhor, e não terás mais necessidade de

um juiz que te traga uma recompensa: estarás tu mesmo participando do melhor.

Por outro lado, consagra-te ao que há de pior sem encontrar ninguém que te possa

punir: serás tu que te precipitarás sozinho no abismo. (pág. 111)

A Filosofia demonstra que a partir do “princípio que diz que uma conduta vergo-

nhosa, por sua própria natureza, torna a pessoa que a pratica infeliz, parece-nos que

a infelicidade recai não sobre a vítima, mas sobre o autor da má ação”.

Ora, em nossos dias os advogados agem de maneira inversa. Com efeito, é um favor

daqueles que sofreram um dano grave e severo que tentam convencer o juiz, enquan-

to essa piedade deveria manifestar-se principalmente com relação aos culpados; es-

tes deveriam ser chamados à justiça não por acusadores encolerizados, mas benevo-

lentes e cheios de consideração, assim como os doentes que são levados ao médico,

de forma que o castigo os curasse completamente do mal ligado aos seus crimes.

Nessas condições, a presteza da defesa seria menos grave ou, então, se ela preferis-

se tornar-se útil, endossaria o procedimento da acusação. E os malfeitores mesmos

seriam os primeiros a não considerar seu castigo como sofrimento, ou a juntar-se à

solicitude dos defensores e a se entregarem sem hesitação aos seus acusadores e ao

juiz se lhes fosse permitido entrever por uma fresta a virtude que abandonaram e vis-

sem a possibilidade de se livrar do fardo de seus vícios. É dessa forma que os sábios

não experimentam a menor parcela de ódio. Pois quem poderia odiar os bons, senão

os maus e viciados? Quanto a odiar os malfeitores, isso seria um contra-senso. (págs.

112-113)

202 Professor José Monir Nasser


IV.9

Ainda inconformado, Boécio insiste:

Mas agora que vejo ocorrer o contrário, e os castigos reservados aos criminosos se

abaterem sobre as pessoas de bem, enquanto os malfeitores se apoderam das re-

compensas devidas ao mérito, minha surpresa é grande, e gostaria que me explicas-

ses qual é a razão de um tal caos. Pois eu estaria menos surpreso se atribuísse essas

desordens aos efeitos do acaso. Mas o que me leva ao extremo do espanto é o fato de

que um Deus bom governa o universo! (pág. 114)

PROF. MONIR: Olha que maravilha de sintetização do problema. Quer dizer,


se acontece isso, é porque isso é ao acaso ou porque Deus quis? É quase o
maior problema da vida, né? Você perdeu o avião, o avião caiu, você não
morreu. Isso foi porque você dormiu demais e é preguiçoso, ou é porque
alguém fez com que isso acontecesse pra que você não morresse? Você
sabe? De quanto da sua vida você é o próprio autor? Quanto da sua vida
foi programado pra ser assim? Quanto você escolheu verdadeiramente a
pessoa com quem você casou ou namora, ou de quem você gosta? Quanto
é verdadeiramente escolha sua e quanto é um encontro cósmico, como se
houvesse uma programação pra tudo dar certo? Pense numa pessoa que
em vez de pegar um emprego, pega outro, e é nesse outro emprego que ela
arruma um marido, uma mulher. E que a atração entre os dois foi absoluta-
mente aleatória. Quanto por cento disso é programado e quanto por cento
é coincidência da vida? Pois é isso que a Filosofia irá discutir agora com o
Boécio. Primeiro, se existe acaso, e aí na medida em que se discute isso, essa
história aqui vai caminhar para um final absolutamente magnífico e que vai

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 203


nos ajudar a entender sob esse fenômeno sobre a vida com muita clareza.
No fundo, no fundo, vai acabar essa história na discussão sobre se existe ou
não uma coisa chamada livre-arbítrio. Ou se nós somos apenas prisioneiros
de regras que nos impõem os resultados que nós queremos.

A Filosofia retruca dizendo que “não surpreende que se consideramos acidente e

caótica uma situação quando ignoramos as leis que a regem”.

IV.11

A Filosofia admite que a questão é complexa: “E, de fato, a questão é de tal ordem

que, se tocamos um só dos problemas que comporta, vão surgindo outros ao infinito,

como as cabeças de Hidra, e não se poderá deter seu ritmo senão graças a um recurso

especial da inteligência”.

Com efeito, ao abordar essa questão, habitualmente caímos em outras mais compli-

cadas, que são as da indivisibilidade da Providência, do curso do Destino, dos acon-

tecimentos imprevisíveis, do conhecimento e da predestinação divinas e do livre-ar-

bítrio, questões essas cuja dificuldade bem podes avaliar. (pág. 116)

PROF. MONIR: E agora vamos ver, o que é muito importante, a Filosofia vai
explicar a diferença entre Providência e Destino.

A Filosofia inicia explicando a diferença entre a Providência e o Destino.

Tudo o que vem ao mundo, todos os seres sujeitos à mudança e à evolução, tudo o

que se move de uma certa maneira, encontram sua causa, sua ordem e sua forma

204 Professor José Monir Nasser


na estabilidade da inteligência divina. Esta, firme na cidadela de sua indivisibilidade,

fixa uma regra multiforme ao governo do universo. Quando se considera essa regra

do ponto de vista da pureza da inteligência divina, chamamo-la Providência; mas

quando se a considera com reação àquilo que ela põe em movimento e ordena, é o

que os antigos chamavam Destino. Ver-se-á facilmente que se trata de duas coisas

diversas, se examinarmos a natureza de cada uma delas. Com efeito, a Providência

é precisamente a razão divina que reside no princípio supremo de toda as coisas e

que ordena o universo; quanto ao Destino, trata-se da disposição inerente a tudo o

que pode mover-se, e pela qual a Providência reúne todas as coisas, cada uma no seu

devido lugar. (pág. 117)

PROF. MONIR: A Providência Divina é o plano, o Destino são os instrumentos


pelos quais o plano é executado. Então é aquela velha história de que Deus
é ótimo, o problema é a caligrafia. Vocês não têm essa sensação, de vez em
quando? Deus é muito bom, o problema é que ele escreve por linhas tortas.

O Destino opera de certa maneira porque ele é o varejo do processo, e o


varejo do processo é subordinado a algumas regras que são dele próprio.
Então, o que acontece na prática é que o Destino age de um modo incom-
preensível, sem que nós possamos desvendar a sua verdadeira intenção. Às
vezes ficamos impactados e surpreendidos com as coisas que ele organiza
– por que tal pessoa morreu, por que tal pessoa foi embora, por que acon-
teceu isso ou aquilo, por que você vai mudar de cidade... o Destino organiza
as coisas de um modo que você não entende, porque você não é capaz de
compreender a regra do sistema, porque isso não é acessível ao conheci-
mento humano. No entanto, todos os atos do Destino são organizados de
alguma maneira sob o ponto de vista da Providência, que é o plano maior.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 205


Quando a Filosofia explica isso assim, como eu acabei de explicar (eu estou
apenas reproduzindo o texto), nasce um problema enorme, que é saber en-
tão, se isso é assim, se existe ou não livre-arbítrio, não é? Nasce um proble-
ma filosófico enorme, porque se tudo é uma máquina infernal organizada
pela Providência, então todas as pessoas seriam mais ou menos joguetes,
como se fossem elementos dessa máquina, e tudo estaria mais ou menos
organizado. Mas é claro que não é bem assim porque você pode sempre di-
zer que isso funciona como um jogo eletrônico em que você tem uma regra
do jogo mas eventualmente a jogada que você faz – que seria o livre-arbítrio
– embora seja inesperada, está prevista no sistema. Isso é verdade.

Mas isso nos joga então para um outro problema, que é o seguinte: para
que o livre-arbítrio possa existir, Deus não poderia ter conhecimento prévio
do que eu vou fazer. Porque se Deus tem conhecimento prévio do que eu
vou fazer, se Deus tudo sabe, então não há livre-arbítrio, porque Deus sabe
exatamente o que eu vou fazer e portanto tudo já está desvendado desde o
início. Essa é a conclusão a que se chega, se você parte da premissa de que
esse mundo é uma espécie de grande jogo complexo organizado pela men-
te de Deus, a partir de um conjunto de predestinações que nós cumprimos
como se fôssemos autônomos. E o que vocês pensam pessoalmente? Há
livre-arbítrio no mundo, ou não há?

Alunos: [Fazem comentários.]

PROF. MONIR: Quantas pessoas acham que não há livre-arbítrio verdadei-


ramente? Uma, duas, três... Então eu estou supondo que os outros todos
acham que há livre-arbítrio. Ou seja, o que é o livre-arbítrio? É a possibilida-

206 Professor José Monir Nasser


de de tomar uma decisão com a sua própria responsabilidade. Mas qual é o
problema de você tomar uma decisão com a sua própria responsabilidade?
Isso que eu estou contando pra vocês é o que está escrito até o final do nos-
so texto. Qual é o problema de fazer isso? O problema é que se você defende
a ideia de que você pode tomar uma decisão que só você sabe qual é, como
é que fica a possibilidade de Deus tudo saber? Porque se Deus tudo sabe,
Ele também tem que saber o que você vai fazer. E isso obviamente destrói a
possibilidade do livre-arbítrio. Não é?

O Boécio dá uma solução maravilhosa. Eu queria até parar de ler o texto,


porque no fundo o que eu estou dizendo é o resumo real disso tudo. Eu
acho tão importante a gente entender esse pedaço, porque esse pedaço
terá um imenso impacto na nossa vida e no resto da filosofia. A explicação
que Boécio dá pra esse assunto é a seguinte – genial!

Qual é a origem desse impasse do livre-arbítrio? É o fato de que nós conhe-


cemos as coisas com alguma dificuldade, porque as coisas não podem ser
conhecidas na sua totalidade – nem mesmo o livro aqui mostra a capa e a
contracapa ao mesmo tempo. Então imaginem as dificuldades que há de
se conhecer o universo, o cosmos, e tudo que há. Não é muito mais difícil?
Então o problema é que o nosso processo de conhecimento é um processo
necessariamente imperfeito. E entre as confusões que nós fazemos, nós não
conseguimos compreender a diferença que há entre o mundo em que nós
vivemos e o mundo em que Deus vive. Porque a ideia de anterioridade... no
fundo a ideia que nós estamos debatendo aqui é a de que uma coisa futu-
ra pode ser sabida antes. Não é isso que implica a ideia de que Deus tudo
sabe? É que o futuro não é enigmático pra Deus. Pra nós é enigmático, mas

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 207


pra Deus não. Porque Deus pode ver o futuro. Se Deus pode ver o futuro, en-
tão não há de fato livre-arbítrio nenhum porque está tudo pré-definido. Mas
nós só chegamos a essa dúvida porque a gente pensa que o mundo em que
Deus vive é um que tem passado, presente e futuro como aqui. Quando na
verdade passado, presente e futuro é uma função temporal que só existe no
mundo manifestado real e concreto em que nós vivemos. Para Deus, todas
as coisas acontecem simultaneamente.

Deus não vive no mundo temporal, compreenderam? A ideia de tempo é


uma ideia do mundo material – o mundo concreto em que nós vivemos. No
mundo em que Deus vive não há tempo nenhum. Deus vive fora do tempo.
Ele não vive num mundo que não está subordinado como o nosso a tempo,
espaço e número. O que é que subordina o nosso mundo? Tempo, espaço
e número, essas três coisas criam o mundo tal como nós o conhecemos.
Pois a ideia de anterioridade, de que alguma coisa vem antes da outra, só
tem algum cabimento no mundo em que as coisas tenham uma sequência
temporal, em que elas existam no tempo. Mas o mundo em que Deus está
não tem tempo nenhum, porque não é o mundo concreto, real e físico ou,
em termos hindus, manifestado, como nós temos aqui.

O resultado disso é que Deus vê todas as coisas com simultaneidade tre-


menda e profunda. Significa que o que caracteriza a existência de Deus é
a eternidade. A eternidade é a possibilidade de viver fora do tempo. Vocês
compreendem isso? Vejam, mesmo que nós acreditemos na promessa de
Deus de que nós teremos uma vida eterna, nós não teremos a eternidade
que Deus tem, porque nós fomos criados um dia. Pode ser que para frente
não pare, mas para trás nós não temos história. O que caracteriza a exis-

208 Professor José Monir Nasser


tência de Deus é a eternidade, no sentido de que Deus vive fora do tempo,
todo o resto vive dentro do tempo. E nada é como Deus. Santo Agostinho,
que é o precursor dessa ideia, dizia que isso que nós chamamos de condição
humana é o fato de que nós não temos capacidade de apreensão total das
coisas ao mesmo tempo. Então como a gente apreende tudo aos pedaços,
a diferença de sequência entre a apreensão dos pedaços é o que nós cha-
mamos de tempo. A teoria de tempo de Santo Agostinho é de que tempo
é aquilo que nós temos que ter para resolver o fato de que nós não temos
eternidade nenhuma. Compreendem que pra Deus tudo está acontecendo
ao mesmo tempo, não há uma diferença temporal, e é por essa razão que
Ele sabe tudo o que acontece, e sabe o futuro, o presente o passado, e sabe
o que nós livremente escolhemos?

Deus sabe o que nós livremente escolhemos, porque Ele está vendo a
nossa escolha realizada, concreta, como se fosse presente o tempo todo.

Alunos: [Fazem perguntas e comentários sobre profecias.]

PROF. MONIR: É que na verdade, muito mais importante do que a gente de-
bater se é possível algum processo de profecia... porque os profetas sempre
puderam dizer como era o futuro, mas os profetas diziam isso porque eles
falavam com Deus diretamente. Então o que caracteriza um profeta é al-
guém que fala diretamente com Deus e tem aquela informação que Deus
deu. Mas o que é importante entender aqui é que há uma diferença ontoló-
gica tremenda entre a existência humana, que é uma existência, digamos,
limitada pela ideia do tempo e do fluxo, que faz com que aqui no âmbito
humano não possa haver de fato Providência, o que há aqui no âmbito hu-
mano é a providência.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 209


Vocês compreenderam o sentido de previdência? É isso que faz o analista
econômico. Previdência é prever, não é? Então você faz uma avaliação do
futuro e diz: “Vai acontecer o seguinte: daqui há dez anos não vai ter mais
transporte de carne, a não ser em container refrigerado” (uma previsão do
âmbito da logística), e o outro: “Eu tenho aqui uma previsão de que a cidade
vai crescer pra tal lado e não pra tal lado.” Essas coisas todas aí são avalia-
ções de previdência: você tenta descobrir no fluxo do tempo o que é que
vai acontecer. O grau de sucesso disso provavelmente é muito baixo, mas
de vez em quando alguém acerta, porque foi capaz de lidar com as variáveis
certas. O que a Providência faz é controlar todo o processo, e ela tem esse
poder porque ela tem o mapa simultâneo de todas as coisas, porque é como
se ela estivesse – isso, aliás, é uma proposição da física moderna, de que
você teria acesso a todas as movimentações do mundo, se você pudesse ser
um observador que estivesse em todos os lugares ao mesmo tempo. Ora,
quem é que poderia estar em todos os lugares ao mesmo tempo? Apenas
quem tivesse velocidade infinita.

Então até sob o ponto da física você pode justificar isso. Ou seja, somente
um sujeito que tivesse velocidade infinita – o que só é possível pra Deus –,
teria uma visualização de todas as coisas ao mesmo tempo, teria portanto
essa eternidade, que faz com que você anule o tempo. Se você pode estar
em todos os lugares ao mesmo tempo, então não há mais tempo! Compre-
enderam que o tempo desaparece? Pois esse é o mundo de Deus. Se para
Deus não há tempo nenhum, então tudo que acontece no nosso mundinho
aqui, que é o mundo de sequências temporais, é tudo visto ao mesmo tem-
po como se fosse tudo presente. Vocês estão entendendo?

210 Professor José Monir Nasser


Embora se trate de duas coisas diferentes, elas dependem uma da outra: o de-

senvolvimento do Destino procede da indivisibilidade da Providência.

Com efeito, do mesmo modo que um artista começa representar mentalmente a

forma de sua criação antes de passar para a realização, e além disso cumpre por eta-

pas sucessivas aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também

Deus fixa pela Providência o que deve ser feito, uma só vez e definitivamente, enquan-

to o Destino organiza na multiplicidade e na temporalidade exatamente aquilo que

foi fixado. Por conseguinte, que o Destino seja movido por espíritos divinos ao serviço

da ”Providência, ou que a trama do Destino seja urdida pela alma, pela natureza, que

lhe é totalmente servil, pelo movimento dos astros no céu, pelo poder dos anjos ou

pela habilidade multiforme dos demônios – que um só ou mesmo todos esses fatores

venham a intervir –, o que é absolutamente evidente é que a forma imutável e sim-

ples do que se deve realizar é a Providência, enquanto o Destino é o entrelaçamento

cambiante e o decorrer temporal daquilo que a simplicidade divina fixou para ser

realizado. (págs. 117-118)

A ação do Destino, no entanto, embora subordinada à da Providência, é tanto

mais “livre” quanto mais alguma coisa se distancia da inteligência suprema e mais

“limitada” na medida em que alguma coisa se aproxima do pivô do universo:

Dessa forma, aquilo que o raciocínio é com relação à inteligência, e o ser criado ao

ser absoluto, o tempo à eternidade, a circunferência ao centro, eis aí precisamente o

que é a ordem variável do Destino comparada à unidade imutável da Providência.

(pág. 119)

(...)

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 211


Assim sendo, o universo é regido da melhor maneira dado que a indivisibilidade que

é a sede da inteligência divina, produz um encadeamento inevitável de causas, e,

por outro lado, esse encadeamento domina por sua imutabilidade os seres sujeitos

à transformação, que, sem ele, estariam abandonados ao acaso. E é dessa forma

que, mesmo se tua incapacidade de apreender o encadeamento das coisas leva-te a

ver somente confusão e desordem em todas as coisas, tudo é regido por uma lei que

orienta todas as coisas para o bem. (pág. 119)

Se “alguma coisa” adere firmemente à inteligência suprema, desprovida de todo

movimento, torna-se também imóvel e escapa à dominação do Destino.

Como não conseguimos compreender a complexidade e a justiça das ações do

Destino, ficamos perplexos com as aparências.

Por conseguinte, tudo o que vês acontecer aqui de contrário a tuas expectativas é na

verdade a expressão da ordem que mais convém ao universo, mesmo se, a teus olhos,

pareça ser uma desordem onde reina a confusão. (pág. 121)

(...)

A alguns, a Providência, segundo o seu temperamento, envia uma mistura de bens

e males: ela atiça uns para evitar que uma felicidade muito prolongada os corrom-

pa; permite a outros que sejam duramente golpeados, a fim de que suas virtudes se

reforcem pela prática e pelo hábito da paciência. Uns temem mais do que deveriam

os males que podem suportar; outros desprezam temerariamente penas que exce-

dem suas forças; é para fazer com que uns e outros se conheçam melhor que Deus

lhes envia essas provas. Uns adquirem ao preço de uma morte gloriosa o respeito

dos homens por seu nome; outros, não se dobrando à tortura, dão exemplo a todos

mostrando que os males não podem prevalecer sobre o mérito. Ora, que essas provas

212 Professor José Monir Nasser


aconteçam como convém, de maneira ordenada e no interesse daqueles sobre os

quais elas se abatem, não se pode duvidar. (págs. 121-122)

A compreensão total deste estado de coisas excede a capacidade humana.

Pois há uma ordem geral que abarca todas as coisas; o que escapa de um lado apa-

rece sempre de outro, a fim de que, no reino da Providência, nada seja deixado ao

acaso, ‘pois só um Deus poderia explicar esses mistérios? ’‘Mas acho difícil falar dessas

coisas como se eu fosse um deus’.8 Não há homem algum que possa compreender

apenas com seus recursos nem explicar com palavras todo o mecanismo da obra di-

vina. Que baste, portanto, ter compreendido apenas isto: é o mesmo Deus, criador de

todos os seres, que dispõe todas as coisas orientando-as para o bem e que, do mesmo

modo, assimila e mantém próximos a si todos os seres por ele criados, servindo-se do

Destino para eliminar o mal de onde se exerce a atividade divina. E é dessa forma que,

se observas a repartição que efetua a Providência daquilo que se acredita ocorrer ao

acaso sobre a Terra, poderás ver que não há aí nenhum mal. (págs. 123-124)

IV.13

Vês agora qual é a conseqüência de tudo o que havíamos dito? ‘Que conseqüência?’,

perguntei. E ela respondeu: ‘Que não há Fortuna que não seja boa’. ‘E como pode ser

isso?’, perguntei. ‘Escuta-me’, disse ela. ‘Uma vez que a Fortuna, quer se mostre favorá-

vel, quer temível, tem por objetivo ora recompensar ou por à prova os bons, ora corri-

gir os malfeitores, ela é invariavelmente boa uma vez que é ou justa ou útil. (pág. 126)

8 Homero, Ilíada.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 213


Livro V

V.1

Mal havia ela acabado de falar, começou a examinar outro assunto. Então eu lhe

disse: ‘Teus conselhos são sem dúvida certos e dignos de tua autoridade, mas o que

acabas de dizer a respeito da Providência, isto é, que essa questão não pode ser tra-

tada independentemente de muitas outras questões, pude eu próprio experimentar.

Peço-te portanto que agora me digas se achas que o acaso existe realmente e, caso

exista, em que ele consiste’. (pág. 131)

A Filosofia começa a tratar o problema, dizendo que se por “acaso” se enten-

de um acontecimento produzido acidentalmente e não por uma sequência de

qualquer tipo de causa, esta palavra é “absolutamente desprovida de sentido, salvo

a significação da realidade a que ela se refere” porque “nada pode ser feito a partir de

nada”.

A Filosofia recorre a Aristóteles, que na Física estabelece que acaso é o que acon-

tece quando uma ação é realizada com determinado fim, mas algo além do que

estava sendo procurado acontece por uma razão ou outra, como um agricultor

que fura o solo e descobre um tesouro.

Podemos portanto definir o acaso como um acontecimento inesperado, resultado

de uma somatória de circunstâncias, que aparece no meio de ações realizadas com

uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal conjunto de circunstâncias é jus-

tamente a ordem que procede de um encadeamento inevitável e tem como fonte a

Providência, que dispõe todas as coisas em seus lugares e tempo. (pág. 133)

214 Professor José Monir Nasser


V.3

Boécio quer saber sobre o poder relativo do livre-arbítrio em relação ao Destino

e a Filosofia lhe diz que aquele é tão maior quanto mais próximo da contempla-

ção divina e menor quanto mais próximo da matéria.

V.5

Boécio, no entanto, está confuso em relação a este ponto e diz que, na sua opi-

nião, “o fato de Deus conhecer todas as coisas previamente e ao mesmo tempo existir

o livre-arbítrio são duas afirmações completamente contraditórias e incompatíveis”.

Quanto às almas humanas, são necessariamente mais livres quando se mantêm na

contemplação da inteligência divina, e menos livres quando descem para juntar-se

às coisas corporais, e menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o

fundo da servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter posse de sua própria

razão. (pág. 134)

(...)

E no entanto a compreensão da Providência, que prevê todas as coisas desde a eter-

nidade, vê tais coisas e dispõe tudo o que está predestinado a cada uma, segundo seu

mérito. (pág. 135)

(...)

Pois, se Deus prevê tudo e não se pode enganar de forma alguma, tudo se produz

conforme a Providência previu. Deste modo, se ela conhece tudo previamente desde

toda a eternidade, e não apenas as ações dos homens mas também suas intenções

e suas vontades, não seria possível haver qualquer livre-arbítrio. Com efeito, não se

produzirá nenhuma ação ou vontade, seja qual for, que não tenha sido prevista an-

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 215


teriormente pela Providência divina, que é incapaz de se enganar. De fato, se esses

acontecimentos podem tomar outro rumo que aquele que ela previu, não falaríamos

mais numa firme presciência do futuro, mas na realidade de uma opinião incerta, o

que seria, no meu ponto de vista, um sacrilégio. (pág. 136)

Boécio contrasta as tentativas de resolver este problema que partem da premis-

sa de que “é porque algo deve acontecer que a Providência divina é instruída de tal

fato”.

...em que a divina Providência poderia manter sua superioridade sobre a opinião hu-

mana se, a exemplo dos homens, ela julga incerto aquilo cuja realização é incerta?

Mas, se do ponto de vista de Deus, a mais segura fonte de todas as coisas, não pode

haver nada de incerto, os acontecimentos que ele previu devem acontecer com toda

a certeza. E também não pode haver nenhuma liberdade nas decisões e nos atos

dos seres humanos, que a inteligência divina, prevendo todas as coisas sem risco de

erro, liga e encadeia a um desenrolar único. Se admitirmos tal raciocínio, veremos

claramente a nulidade dos valores que daí resulta. Com efeito, seria vão proporcionar

aos bons e aos malfeitores recompensas ou punições, pois seus feitos não se devem

a nenhum movimento livre e voluntário da alma. E ainda pareceria ser o cúmulo da

injustiça o que se considera uma justiça perfeita – falo da punição dos malfeitores e

da recompensa dos bons –, já que eles não são levados a praticar o bem ou o mal por

sua própria vontade, mas pelo fato de serem obrigados a uma necessidade certa de

que assim será. (págs. 138-139)

216 Professor José Monir Nasser


V.7

A Filosofia faz notar que se o problema ainda continua obscuro é porque o “en-

cadeamento do raciocínio humano não se pode aplicar à simplicidade da presciên-

cia divina”.

Com efeito, eu me pergunto por que não concedes nenhuma pertinência ao racio-

cínio daqueles que procuram explicar o problema e cuja opinião é que, dado que a

presciência não é causa dos acontecimentos futuros, ela não impede de modo al-

gum a existência do livre-arbítrio. Podes encontrar uma prova da necessidade das

coisas futuras a não ser no fato de que as coisas conhecidas de antemão não podem

deixar de se produzir? Conseqüentemente, se o fato de se conhecerem tais coisas an-

tes não confere nenhuma necessidade às coisas futuras, caso que reconheceste há

pouco, qual seria a razão pela qual a realização das coisas que dependem da vonta-

de fosse dirigida forçosamente a um termo fixado anteriormente? (pág. 141)

A Filosofia pede a Boécio que considere que a presciência “não importa nenhu-

ma necessidade às coisas”, mantendo-a inteira e absoluta liberdade da vontade.

E a causa desse erro é que todos pensam que conhecem algo a partir das proprieda-

des e da natureza do que é conhecido, enquanto o que ocorre é justamente o con-

trário. De fato, tudo o que é conhecido não é compreendido segundo suas caracte-

rísticas, mas sim segundo a capacidade daqueles que procuram conhecer. (pág. 144)

(...)

O principal fato a ser considerado é que as faculdades superiores podem compreen-

der as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes

são superiores. Com efeito, os sentidos não podem perceber nada além da matéria;

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 217


a imaginação não é capaz de apreender a idéia geral da espécie; e a razão não pode

conceber a forma absoluta. A inteligência, no entanto, como que pairando acima de

todas as coisas, não apenas vê a forma absoluta como distingue também a matéria

contida na forma, e da mesma maneira distingue o absoluto, coisa que as outras

faculdades são incapazes de fazer. (págs. 144-145)

V.9

Eis, com efeito, como tu raciocinas:

PROF. MONIR: Agora a Filosofia vai fazer uma análise do modo como o Boé-
cio explica e vai dar o golpe final na dúvida dele.

Se a realização de certos eventos não parece certa e necessária, eles não podem ser

conhecidos a priori com a certeza de que se realizarão. Por conseguinte, não há ne-

nhuma presciência de tais acontecimentos e, se cremos que há presciência de tais

acontecimentos, é preciso consentir que tudo acontecerá fatalmente. Se portanto

nós temos a razão, que é partícipe da inteligência divina, devemos pensar que, do

mesmo modo que a imaginação deve ceder à razão, é natural que a razão reconhe-

ça a superioridade da inteligência divina. Dessa forma, elevemo-nos, tanto quanto

possível, ao nível dessa suprema inteligência; então, com efeito, a razão verá o que

ela não pode ver em si mesma, o que concebe a presciência divina, com toda a preci-

são e certeza, mesmo que esses acontecimentos não se realizem, e apreenderá, não

por uma simples conjectura, mas por uma intuição suprema, absoluta e sem limites.

(págs. 148-149)

218 Professor José Monir Nasser


V.11

Todas as pessoas que vivem de acordo com a razão partilham da certeza de que

Deus é eterno. Procuremos portanto ver o que é a eternidade, pois é ela que nos escla-

rece sobre a natureza divina bem como sobre sua sabedoria. Pois bem, a eternidade

é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la con-

forme ao que é temporal. (pág. 150)

PROF. MONIR: Essa frase é uma das frases mais importantes já ditas na filo-
sofia: “A eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como
podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.

Ou seja, a eternidade que só Deus tem é o todo. É a unidade absoluta e to-


tal, portanto é uma posse incondicionada, que não depende de nada, não
depende de ninguém. Qual é a importância desta afirmação do Boécio? É
como se fosse a primeira vez que alguém demonstrou filosoficamente a na-
tureza de Deus. Porque Deus pode ser compreendido intuitivamente, e essa
compreensão é absolutamente importante, Deus pode ser aceito dogmati-
camente, que é quando alguém diz pra você que ele existe. Mas o problema
que Boécio resolve aqui, e que servirá como exemplo pra todo o sempre,
é que no fundo, no fundo Deus não é alguma coisa em que se tenha que
ter fé. Porque fé é acreditar em alguma coisa. Por exemplo, numa promes-
sa. Então você pode ter fé em que Deus escreveu na Bíblia, que se você se
comportar direito, você vai salvar a sua alma. Isso é alguma coisa em que
você deve acreditar ou não. Fé é isso. Fé é quando você diz assim: eu estou
muito mal, mas Deus vai me ajudar. Isso é fé, porque você espera que ele
faça isso porque houve em algum momento a promessa de que ele faria:

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 219


“Batei e serás atendido.” Se Deus diz para você que “batei e serás atendido” é
verdade, então quando você está numa situação muito ruim, qualquer que
seja a situação, você espera que essa promessa seja cumprida.

A existência própria de Deus, a razão pela qual Deus de fato existe, não é
alvo de fé. Não é alguma coisa em que eu acredito como eu acredito numa
promessa. A existência de Deus é absolutamente comprovada por meios
racionais e lógicos. É essa a missão que Boécio empreende em A Consolação
da Filosofia. E isso pode parecer banal, mas é mais ou menos um marco da
história. Porque a história do pensamento humano não pressupunha que
isso fosse possível. Quer dizer, havia a compreensão doutrinal da existência
de Deus, mas o que Boécio inaugura é um modo de debater Deus racional-
mente, sob o ponto de vista da metodologia da filosofia clássica grega. E o
nome disso é a catedral gigantesca chamada escolástica.

Com a escolástica se tornou possível garantir a compreensão de determina-


das existências que estão acima da nossa compreensão sensorial, por meio
da prova lógica. Não estou dizendo que isso seja necessariamente bom. Isso
pode gerar facilmente uma espécie de mediocridade, porque você não pre-
cisa ser escolástico pra você salvar sua alma. Sob o ponto de vista da sua
questão pessoal, você salvará a sua alma se você tiver uma intuição natural,
um amor por Deus natural, você não precisa ser escolástico.

Mas isso abriu uma enorme possibilidade de conversa entre os sábios e aí


construiu-se uma catedral gigantesca, chamada escolástica, que fez da Ida-
de Média, sob alguns pontos vista, uma idade que foi muito, mas muito mais
inteligente do que a nossa. Nenhum escolástico cairia nessas armadilhas de

220 Professor José Monir Nasser


relativismo que tem hoje. A filosofia destrói isso automaticamente, você não
precisa nem de um filósofo pra isso. Basta um estudante interessado que
você consegue desmontar isso.

(...)

O olhar divino precede de longe todo o futuro, e ele o faz vir no presente segundo o

modo de conhecimento que lhe é peculiar, sem passar, como tu crês, da presciência

de uma coisa à outra, mas, de um só golpe de vista, ele prevê e abarca tuas mudan-

ças sem se modificar. E Deus possui essa imediaticidade da compreensão e visão de

todas as coisas, não da realização de acontecimentos futuros somente, mas de sua

própria indivisibilidade.

PROF. MONIR: Compreenderam? Nada pode estar dissociado. Essa é a tese


de Santo Agostinho sobre o que é a ação humana, é uma espécie de an-
dar sobre as pedras da dissociação. A vida humana é você ser andarilho da
sua própria incapacidade de perceber o todo. É tentar chegar num lugar
pelos pedaços... é isso que é o tempo. O tempo é aquilo que fica entre as
tentativas. No entanto, Deus não é assim. O mundo divino é o mundo da
simultaneidade. Não há tempo dentro da mente de Deus, Deus não vive
no tempo. É por isso que o livre-arbítrio está preservado, porque Ele sabe o
que você fez. Não porque Ele sabia antes, mas porque para Ele não tem an-
tes. Compreenderam? Deus sabe o que você vai fazer, não porque Ele sabe
antes, mas porque não tem antes. Não tem depois. Tudo é simultâneo. É
fácil de entender essa noção? Não, é bem difícil, mas dá para entender pela
negativa. Se o tempo é um processo de limitação, ele portanto não pode ser
atribuído a Deus. Porque se o tempo limita de alguma maneira, Deus não
está sob essa limitação. Portanto pra Deus não deve ter tempo. Foi o que a

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 221


Filosofia acabou de provar. Tempo é só para esse nosso mundinho vagabun-
do aqui, o nosso mundinho porcaria, em relação ao mundo d’Ele.

Aluno: [Pergunta se o tempo é abstrato.]

PROF. MONIR: O tempo é abstrato no sentido de que ele só pode ser medido
em relação à distância.

Aluno: [Responde ao comentário.]

PROF. MONIR: Ah, entendi. O tempo é passível de interpretações subjetivas.


É verdade, também. Mas o tempo é abstrato porque o tempo não se mede
diretamente. Essa é uma das teses que reforça a de São Agostinho, você só
mede o tempo como uma coisa que está ligada à distância. Diretamente,
nunca. O que é o tempo: quanto tempo demorou pra ir de A a B. O tempo
não tem medida direta. O tempo só é medido em função do espaço, nesse
sentido que ele é abstrato.

E é também dessa forma que podemos resolver a dificuldade que acabas de men-

cionar e que se baseia no sacrilégio de se dizer que nossas ações futuras fornecem a

causalidade do saber de Deus.

PROF. MONIR: Quando você não considera essa solução que o Boécio dá,
você pode defender duas teses. Uma é dizer assim: “Bom, Deus sabe tudo o
que vai acontecer, então eu vou tentar pegar o avião, mas Ele vai me fazer
atrasar porque Ele queria que eu escapasse” – então não há livre-arbítrio.
Ou então a outra solução, a do livre-arbítrio, é o seguinte: “Porque eu perdi
o avião, então eu fiz o meu destino, que é não ter morrido”. Entenderam?

222 Professor José Monir Nasser


No texto tem um pedaço anterior a esse aqui em que o Boécio, obviamente
fingindo-se de bobo, diz que tem essa solução e tal, ou seja, que é a ação
humana que gera o desígnio de Deus. A Filosofia diz que isso é um sacrilé-
gio, e é mesmo. É como se nós pudéssemos dirigir a vida de Deus, e isso não
é possível. O que resolve o problema é a compreensão de que pra Deus não
há tempo, não há outro jeito de resolver esse assunto.

Na verdade, a natureza desse saber, que abarca todas as coisas num conhecimento

imediato, fixa todas as coisas num limite sem depender em nada dos acontecimen-

tos futuros.

PROF. MONIR: Porque não há acontecimento futuro nenhum. Por isso é que
desaparece o problema de saber se aquilo que estava lá foi planejado por
alguém. Porque no fundo, todas as coisas acontecem simultaneamente.

Sendo assim, os mortais conservam seu livre-arbítrio intacto, e não há nenhuma in-

justiça nas leis que propõem recompensas e punições às vontades que são absoluta-

mente livres de toda necessidade.

PROF. MONIR: Porque tava lá o Boécio dizendo: “Mas então, já que não tem
livre-arbítrio, por que eu posso castigar alguém? E por que eu deveria re-
compensar alguém, se aquilo ele fez já estava programado?” Porque eu não
consigo resolver o problema do livre-arbítrio a não ser que eu tire Deus do
esquema temporal. Porque se eu ficar com o esquema temporal mantido, ou
Deus sabia antes, e programou, e daí eu não tenho mérito nenhum, ou não;
então eu fiz o que quis e Deus apenas ratifica, sanciona isso com o nome de
Destino. Seja uma coisa ou outra, não haveria possibilidade de livre-arbítrio
nenhum, porque tudo seria meio carta marcada.

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 223


Aluna: [Comenta sobre a necessidade de haver livre-arbítrio, da responsabi-
lidade humana. Senão seria tudo responsabilidade de Deus, os crimes, as cor-
rupções...]

PROF. MONIR: Isso mesmo, portanto o livre-arbítrio é absolutamente neces-


sário. No entanto, há uma tendência natural dentro do direito contemporâ-
neo de se justificar todos os atos humanos como sendo resultado de forças
que foram impossíveis de conter. Então há um processo de inocentação das
pessoas a partir da ideia de que quando um sujeito mata cinco pessoas, são
seis vítimas. Vai aparecer um sociólogo dizendo: “São seis vítimas! Cinco fo-
ram esses aí que tiveram esse azar de levar cinquenta tiros cada um. E o
outro que fez isso é uma vítima da sociedade, porque a sociedade é que a
tratou mal... Vejam a distribuição de renda, só é pior na Gâmbia. E no Brasil
é muito ruim, porque o Brasil é uma porcaria...” Eles dizem que não adianta
pensar em punição (não era aquela conversa que tinha aí no caso da maio-
ridade penal?) antes de resolver a educação, e não sei o que lá. Essa não é
uma conversinha exatamente ao contrário do que tem aqui? Quer dizer, é
uma conversa que propõe que não haja livre-arbítrio nenhum. Que o sujeito
matou cinco pessoas não porque ele seja mau ou sociopata, mas porque
ele de alguma maneira foi induzido a isso por nós. No fundo, quem será
culpado disso somos nós! Então essa ideia de que a sociedade é culpada, é
um mecanismo de destruição da ideia de livre-arbítrio. Não há livre-arbítrio.

Agora com essa coisa de genética, então, já, já vão descobrir o gene do es-
tuprador, o gene do roubo... E aí sujeito vai chegar no tribunal e vai dizer:
“Olhem, vocês me desculpem, mas eu tenho aqui um gene que me transfor-
ma em ladrão de bancos, eu tenho o gene de roubar bancos”.

224 Professor José Monir Nasser


Aluna: Os neurologistas já descreveram a mente do psicopata.

PROF. MONIR: Sempre houve psicopatas, o problema é transformar todas


as ações das pessoas em ações justificáveis por algum critério. A ideia do
livre-arbítrio, que está sendo finalmente aqui definida, é de que não há vida
humana possível sem que a pessoa assuma a responsabilidade sobre a sua
própria vida. Está aqui dito em um texto que foi escrito no ano de 524. Pois
quando você olha pra sociedade contemporânea, o que você vê é exata-
mente o contrário, que há uma tendência à inocentação. Por que o MST, por
exemplo, pode fazer o que bem entende? Porque eles são vítimas hipotéti-
cas de alguma maneira, e por isso estão protegidos por esta carta de corso.
Porque é que o fulano lá pode matar não sei quem e mesmo assim não ser
considerado culpado? Porque certamente ele é um sujeito que foi induzido
pela sociedade, pelo capitalismo, pela burguesia, seja lá o que for, para ser
isso.

Então o que nós estamos fazendo nesse momento no mundo é que, extra-
polando os casos em que havia claramente uma psicopatologia que tornava
a pessoa irresponsável, alguém que é louco mesmo (tem também; esses são
inocentes sob o ponto de vista volitivo, não é isso? Eles não queriam fazer
aquilo, e tal), nós tendemos hoje a negar a possibilidade do livre-arbítrio. E
com o auxílio da pseudociência, e com a genética, então, nós vamos encon-
trar um gene pra cada tipo de barbaridade, e aí as pessoas vão alegar uma
inocência genética, assim como hoje alegam uma inocência social: “Não fui
eu quem matou cinco pessoas, é a sociedade que me oprime”. Quando a
gente chegar nesse ponto, nós teremos destruído completamente a possi-
bilidade de civilização humana. Porque sem responsabilidade não há mais

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 225


civilização, ninguém mais poderá ser condenado, não haverá mais utilidade
para o sistema judiciário, serão todos inocentes, porque alguma coisa que
não a própria pessoa será culpada pela situação. Isso que foi resolvido pelo
Boécio há mil e quinhentos anos é um problema com o qual nós não sabe-
mos mais lidar no momento em que nós estamos aqui. Portanto a Filosofia
não está nos trazendo consolação suficiente no mundo contemporâneo,
né?

Vamos ver como ele termina o raciocínio?

Aquele que nos observa do alto, que perdura eternamente, que tem a presciência de

todas as coisas, é Deus, que, com a eternidade sempre presente de seu olhar, concor-

da com a qualidade futura de nossas ações distribuindo aos bons as recompensas e

aos maus os castigos. E não é em vão que colocamos em Deus nossas esperanças e

preces, as quais, sendo justas, não podem permanecer sem algum efeito. Afastai-vos

portanto do mal, cultivai o bem, elevai vossas almas à altura de vossas justas espe-

ranças e fazei chegar aos céus vossas humildes preces. A menos que queirais esconder

a verdade, é grande a necessidade que tendes de viver segundo o bem, quando agis

sob os olhos de um juiz que tudo vê. (págs. 155-156)

PROF. MONIR: Essa é última linha do livro, e aí o que o Boécio fez foi sim-
plesmente criar uma argumentação filosófica, portanto de natureza racio-
nal e especulativa no sentido de que usou apenas elementos lógicos, para
garantir, para confirmar aquilo que intuitivamente todo o mundo sabe. O
cristianismo não precisou esperar o Boécio para existir, o cristianismo sabia
se impor por várias razões, pela ação dos seus milagres, pela intuição que
as pessoas têm, ou pelo dogma, mesmo. No entanto, pela primeira vez na

226 Professor José Monir Nasser


história, o Boécio faz um arranjo e organiza isso sob o ponto de vista filosó-
fico. Como vocês podem ter percebido, e era essa a ideia, ele faz isso com
uma extraordinária competência, muito bem. E aí vocês têm então mais ou
menos comprovado o cristianismo. Pela primeira vez, o cristianismo passou
pela prova lógica, que é a prova que Platão e Aristóteles exigiriam de al-
guém que tivesse feito algum comentário.

Aluno: E a escolástica?

PROF. MONIR: A escolástica é a transformação disso numa verdadeira ca-


tedral. Então todos os assuntos dogmáticos do cristianismo, todas as afir-
mações sobre Deus ou coisa que o valha são trabalhados com sofisticação
metodológica, de modo que tudo isso que se fala do que a escolástica trata
tem algum aval filosófico. Isso é a primeira vez que acontece na história, isso
tudo está dentro desse texto – está no De Trinitate, mas também sobretudo
neste texto que é o exemplo concreto de uma mudança na abordagem da
patrística. Então em vez de ser apenas um esforço de defesa do cristianismo
frente aos ataques que se fazia, agora o cristianismo sai ao ataque e propõe
uma metodologia de investigação de si próprio, que foi capaz de produzir
o corpo doutrinário do cristianismo e que viabilizou, por exemplo, a con-
tinuação do cristianismo no mundo. Não fosse assim, talvez nem mesmo
tivéssemos conseguido.

O Boécio tem essa grande contribuição, que é a contribuição da filosofia.


No fundo o que se quer dizer aí é que não há nenhuma incompatibilidade
entre o que as grandes religiões contam pra você – não é só o cristianismo,
qualquer outra grande religião –, e aquilo que a filosofia bem executada é

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 227


capaz de demonstrar. Seja por um lado ou por outro, você vai chegar ao
mesmo lugar. Então fica mais que comprovado que existem quatro fontes
de conhecimento. Essas quatro fontes de conhecimento são convergentes.
A primeira é o conhecimento tradicional, que está nas religiões; a segunda
é o conhecimento filosófico, que é o conhecimento especulativo – esse, por
exemplo, que nós vimos em ação hoje; a terceira é o conhecimento científi-
co, que é uma maneira diferente de abordar, muito embora você possa, sem
grande exagero, considerar que a abordagem científica é apenas um tipo de
abordagem filosófica; e finalmente há o conhecimento composto, que está
dentro das grandes obras ficcionais, na arte da literatura. E que diz a mesma
coisa por outro caminho.

Há muitas maneiras pelas quais nós temos acesso a conhecer as coisas tais
como elas são, mesmo que essas coisas tais como elas são sejam enigmáti-
cas, e que não se possa saber muito delas a não ser a definição do enigma.
O enigma pode ser definido, embora eu não consiga decifrá-lo, em última
análise. Definir o enigma já é uma grande coisa. Pra começar a ler filosofia,
Boécio é o melhor caminho. E esse é um dos grandes meios de usarmos bem
essa tarde.

Aluno: [Faz um comentário.]

PROF. MONIR: Não é que ele previu. Cuidado, porque você está falando de
Jesus. Há aí um mistério. Jesus tinha uma natureza humana. O Jesus humano
estava submetido ao tempo, como nós. É difícil entender como Jesus pode
ser homem e Deus ao mesmo tempo. Quer dizer, é um homem que pode
apostar já sabendo o resultado da loteria. Esse que é o problema, né? É um

228 Professor José Monir Nasser


mistério que nós não entendemos. Mas é preciso aceitar a existência de mis-
térios, porque não é possível que tudo seja passível de compreensão. Seria
uma porcaria de mundo se tudo fosse tão compreensível assim. Não dá para
ser. Os mistérios são absolutamente fundamentais para que nós possamos
entender o mundo de alguma maneira. Então, como faz para entender essa
duplicidade? Eu não sei resolver esse problema. Ninguém sabe, na verdade.

Mas para Deus não aconteceu uma sequência de fatos, tudo isso acontece
ao mesmo tempo. Nós não conseguimos entender isso porque não conse-
guimos entender a mente de Deus. Porque Deus não funciona nas mesmas
regras com que nós funcionamos. Deus não pertence a esse mundo. Ele re-
flete nesse mundo do mesmo modo que o sol reflete numa parede – você
vê a claridade. Mas Ele não é feito como nós, não tem a mesma natureza
que nós.

Entender isso é a primeira condição pra você poder estudar filosofia. Se você
não entende isso, você se torna incapaz de estudar a filosofia daqui pra fren-
te.

Aluna: [Comenta que é preciso aceitar.]

PROF. MONIR: Não, não é questão de aceitar de forma resignada... É, isso é


assim mesmo, porque o mundo é complexíssimo, a vida é complexíssima, a
realidade é complexíssima. Então quando a gente chega à conclusão de que
há uma diferença ontológica entre nós e Deus – é isso que no fundo o que
ele está dizendo, que há uma diferença ontológica entre nós e Deus porque
nós somos criaturas circunstanciadas pelo tempo, espaço e número (embo-

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 229


ra Boécio só fale em tempo), e Deus não está. Quando isso é estabelecido,
torna-se automaticamente impossível uma quantidade enorme de filosofias
modernas. Daí para frente já não dá mais pra ser kantiano, já não dá pra ser
hegeliano.

Você não pode imaginar, por exemplo, que a história acaba nela própria.
Porque se a história é uma sequência temporal de fatos... tem uma coisa
chamada filosofia da história. Quem foram os três maiores estudiosos disso?
O Senhor Hegel, que acha que a história acaba no Estado, quando o Estado
toma conta de tudo; o Senhor Marx, que acha que a história acaba quando
o proletariado toma o poder e destrói a estrutura de classes; e o Senhor
Augusto Comte, que acha que a história acaba quando a sociedade positiva
expulsa as sociedades anteriores que são todas sociedades cretinas, uma é
mitológica e a outra é metafísica. Então agora a sociedade da ciência posi-
tivista é que vai vencer. Então esses três aí são três sujeitos que acham que
conseguem encontrar na própria história a explicação da própria história.
Mas se isso fosse possível, a primeira coisa que eles tinham que explicar é
como e quando foi que alguém inventou o conceito de anterioridade, por-
que se a ideia de anterioridade está presente na história o tempo todo, sem
qualquer explicação ou qualquer circunstância... – tem uma coisa que vem
antes da outra, né? A história é sempre sequencial. Quem foi que inventou
isso? Ora, se a história não inventou a sua própria anterioridade – se não
teve lá em determinado momento um partido, ou uma classe, ou um herói
que fez isso, se não foi a história que inventou isso – então isso foi inventado
por alguém que existe além da história. Então há uma outra circunstância,
chamada meta-história (que está além da história), que ela só pode explicar
a história, e nunca a história em si mesma. Mas eu só compreendo isso se

230 Professor José Monir Nasser


eu for capaz de perceber que há uma diferença ontológica entre o mundo
histórico e o mundo meta-histórico, que é o que o Boécio está nos ajudan-
do a entender. Então, no final das contas, a história nunca vai ser explicada
por ela própria, ela só vai revelar o seu verdadeiro sentido no final dos tem-
pos. Mas o final dos tempos não pertence mais à história. Na hora em que
acontece o final dos tempos, a história revela o seu sentido. Até lá então, é
impossível ela revelar o sentido dela própria porque ela não é autocriada,
ela não se criou a si própria, ela não existe causa sui (por causa dela mesma).
Há alguma coisa que criou a história que é a única fonte de onde vai vir a
explicação do sentido da história.

A tentativa de dizer que o sentido da história é luta de classes, e que no dia


em que essa luta tiver sido vencida pelo proletariado acabou a história, ou
dizer, como o Francis Fukuyama, que também acabou a história porque o
liberalismo teria tomado o poder... qualquer espécie de evolucionismo tam-
bém é assim – todas essas tentativas de estabelecer, buscar o conteúdo da
história e o seu significado em si própria são todas cretinices que você só faz
quando não percebe que esse mundo contingenciado, que é esse mundo
real, concreto aqui, funciona com regras diferentes do mundo que o criou.
É na meta-história que vai haver explicação da história, e não o contrário.
Essa ideia simples está aqui em Boécio. E ela deveria ter sido mantida. No
entanto, por alguma razão muito grave, nós perdemos completamente a
noção desse bom senso mínimo – porque o livro é todo composto de ideias
de bom senso.

É isso. Se você pelo menos leu o Boécio, você sabe que o conhecimento
que você pode ter da vida é um conhecimento imperfeitíssimo, embora seja

EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA A Consolação da Filosofia 231


possível compreender em partes. E o único conhecimento possível é o co-
nhecimento da Eternidade, para quem não existem restrições. Portanto isso
significa que a missão humana de conhecer alguma coisa será sempre uma
missão difícil, custosa, e passaremos nossa existência temporal, que é mi-
núscula, para conseguir algumas pedrinhas de conhecimento real, quando
na verdade a nossa possibilidade de conhecer será sempre limitada. No en-
tanto, naquilo que nós pudermos conhecer de verdade, como esse fato – eu
estou dizendo pra você que somos capazes de conhecer a nossa enorme di-
ficuldade de conhecimento – esse fato é em si profundamente iluminador, e
é um fato que deveria nos empurrar para uma certa humildade e modéstia,
para não acharmos que somos protagonistas do mundo, porque não somos
mesmo. Tudo está em Boécio, no ano de 525. De lá pra cá, esquecemos qua-
se tudo. Esta é outra razão pela qual é melhor ler livros velhos do que livros
novos. Quanto mais velho o livro, melhor, porque talvez tenha conservado
melhor o espírito original. Funciona ao contrário da data de validade do io-
gurte. É mais ou menos como os vinhos, relativamente. E isso nos remete
para o final do nosso encontro.

(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos foram adaptados da edição A

Consolação da Filosofia da Editora Martins Fontes, 1998, São Paulo, 1a. edição,

tradução de Willian Li).

232 Professor José Monir Nasser


Federação das Indústrias do Estado do Paraná - FIEP | Presidente

Edson Campagnolo

Serviço Nacional da Indústria Paraná - SENAI | Diretor Regional Senai - PR

Serviço Social da Indústria Paraná - SESI | Superintendente do SESI/IEL - PR

José Antonio Fares

Assessora Executiva de Assuntos Estratégicos - Sistema FIEP

Maria Cristhina de Souza Rocha

Gerente de Cultura - Sistema FIEP

Anna Paula Zétola

Analista Técnico – Cultura - Sistema FIEP

Thaisa Bonato Lourenço

Analista Técnico – Cultura - Sistema FIEP

Kleberr Wlader

Normalização – Cultura - Sistema FIEP

Pandita Marchioro

Conteudista

José Monir Nasser (in memorian)

Revisão de transcrição

Patrícia Nasser
Revisão Literária e Palestras

Paulo Briguet

Capa e Diagramação

Maria Cristina Pacheco dos Santos Lima

Ilustração Capa

José Monir Nasser

Coordenação Geral

Anna Paula Zétola

Produção Executiva e Prestação de Contas

Luiz Roberto Meira

Assistente de Produção

Gilmar Lima

Assessoria de Imprensa

Rafaela Tasca

Programa Nacional de Apoio à Cultura PRONAC

Ministério da Cultura

Você também pode gostar