Expedicoes Pelo Mundo Da Cultura Box II (81514) PDF
Expedicoes Pelo Mundo Da Cultura Box II (81514) PDF
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Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola
Conteudista
José Monir Nasser
ISBN: 978-85-5583-031-0
1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82
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nico, fotocópia, de gravação ou outros, somente será permitida com prévia autorização, por
escrito, do SESI.
O Processo
A Consolação da Filosofia
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.
Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.
Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.
Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).
Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.
Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.
No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.
José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.
Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.
Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.
O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).
A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.
Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.
Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.
Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.
Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.
Hoje vamos ver uma obra chamada O Processo, do Franz Kafka, e espero que
vocês no final desse exercício tenham compreendido algumas realidades,
alguns conteúdos desse livro que passarão a fazer parte da existência de
vocês. A cultura é verdadeiramente tudo aquilo que você incorpora à sua
vida, e não conhecimentos gerais sobre arte, sobre obras literárias, isso não é
o assunto desse curso aqui. Esse não é um curso de beletrismo. Antigamente,
essa ideia de você ser apenas sabido com relação a assuntos dos livros era
chamada de beletrismo; o sujeito sabia tudo sobre muitos livros e não
lia nenhum na prática, não entendia nenhum. Essa propensão acontece
muito com os cinéfilos hoje em dia. Os cinéfilos são aqueles sujeitos que
não podem viver sem ir ao cinema. O sujeito vai ver cinquenta filmes por
mês e não entende nenhum dos cinquenta. Mas ele acha bacana, assim, os
efeitos especiais, essas coisas. Então é isso que eu queria deixar claro para
vocês. Que não se trata de uma atividade de conhecimentos gerais, nem
de curiosidades. É muito mais uma apropriação. Nós vamos entrar na alma
dessa obra chamada O Processo, e vamos entender o que essa história tem
a ver com a nossa vida individualmente. A pergunta que você precisa fazer
Como eu disse a vocês outras vezes, não há modo de o resumo do livro dos
nossos encontros substituir a leitura do livro. Mesmo que eu fosse um sujeito
literário, mesmo que eu conseguisse escrever de um modo muito melhor do
que eu escrevo, não daria para substituir a obra. A obra é insubstituível. Como
acontece sempre, a gente começa a nossa conversa com considerações
sobre o autor chamado Franz Kafka, o autor e a sua época. E depois que a
gente tiver entendido mais ou menos o que aconteceu na época do autor, a
gente cai no resumo. Depois nós teremos uma conversa aqui entre nós para
tentarmos entender o significado dela.
Leibniz, que era um sujeito muito mais esperto do que nós todos aqui, dizia
assim: “Eu acredito em tudo o que me contam”, como primeira atitude. A
primeira atitude de Leibniz é acreditar em tudo aquilo que contam pra
ele. E a história engraçada ligada a esse mesmo fato é a história do São
Tomás de Aquino, que sendo um frade dominicano estava lá num convento
estudando, e aí os colegas do São Tomás dizem pra ele assim: “Corre aqui,
Tomás, corre aqui na janela que tem um boi voando”. Aí o São Tomás corre
lá na janela, larga tudo, e na hora em que ele olha na janela os colegas
caem na gargalhada, porque era obviamente uma piada. E ele fala assim:
“Olhem pessoal, até hoje eu achava que era mais fácil um boi voar do que
um frade mentir, mas acabei de mudar de ideia”. Vejam - São Tomás, que
escreveu quase a maior obra filosófica da história, a Suma Teológica, achava
que em primeiro lugar nós temos que ter credulidade. A primeira condição
para o conhecimento é que você comece sempre com uma atitude positiva
com relação àquilo que dizem pra você. Então não se arme contra, não crie
defesas, não estabeleça obstáculos a nada a não ser a entender a história do
Josef K. Essa história é uma das mais importantes do Franz Kafka.
Cronologia
Ele nasce no dia 3 de julho de 1883 em Praga, capital da Boêmia, que hoje fica
na Tchecoslováquia.
judeus após a Guerra dos Trinta Anos. O pai de Kafka, Hermann Kafka, um
comerciante de novidades bem sucedido, teve com Julie Kafka, mãe de Kafka,
cinco filhos, além de Franz, teve Georg e Heinrich, são os dois homens, ambos
Os dados sobre essa briga dele com o pai estão disponíveis num texto que
Kafka escreveu, chamado Carta ao Pai, uma carta furiosa que ele enviou
para o pai dele, mas que nunca foi entregue. Depois da morte de Kafka isso
foi publicado. No texto, que dá pra comprar nas livrarias, Kafka faz acusações
seriíssimas contra o pai dele, por ser um tirano, um sujeito inflexível, por
querer mandar na vida dele, por querer inventar uma vida que ele não
deutsches Gymnasium, que termina em 1901. Neste ano, visita Wossek pela
Em 1902, ele conhece o músico Max Brod (1884-1968), que também é judeu e
foi o melhor amigo dele. E depois, quando o Kafka estava perto de morrer,
estava no final da vida, já muito doente, ele pediu a Max que destruísse
todas as obras que não tinham sido ainda publicadas. E esse Max Brod,
desobedecendo o último pedido do Kafka, publicou os livros todos. Então
hoje nós só temos esse livro aqui, O Processo, porque o Max Brod desrespeitou
a vontade testamentária de Franz Kafka e publicou o livro do jeito que pôde,
da maneira que ele achou melhor. Todas essas obras que Kafka pediu que
fossem destruídas estavam inacabadas. Faltava acabamento, faltavam
últimos detalhes. Devemos então a existência de umas três ou quatro obras
de Kafka, as mais importantes, aliás, ao fato de que o Max Brod desrespeitou
a vontade final de Kafka.
no Tribunal Civil de Praga. Era obrigatório fazer assim, tinha lá uma lei que
obrigava.
italiana de seguros, até hoje existe. Pede demissão em 1908 alegando falta de
um negócio que você faz só para levar dinheiro para casa, mas pelo qual
Em 1908 ainda, por influência de Brod, que é aquele amigo dele, ele publica aos
Em 1910, começa a redigir O Diário, que depois foi publicado. Muitas das
firma asbestos de seu cunhado Karl Hermann. Kafka preferiria passar as tardes
estudando, escrevendo. Por meio do Yeddish Theater (ou Teatro Iídiche), aos
Em 1912, conhece a Felice Bauer, uma berlinense de quem ele se tornaria noivo
duas vezes. Ele foi noivo dela uma vez, rompeu, e depois foi noivo de novo.
ninguém sabe, mas o Peter Drucker que conta isso no livro, dizendo que
o Kafka nesse seu episódio de trabalhar nessa empresa de seguros, teve
grande sucesso. Foi um funcionário exemplar, mas profundamente infeliz
com aquela atividade. Porque aquela atividade era incompatível com a
única coisa que lhe interessava na vida.
minha única vocação, a literatura. Como sou apenas a literatura, e como não quero
nem posso ser outra coisa, o meu emprego não poderá nunca seduzir-me, só poderá
que a sua existência só poderia ser realizada se ele fosse apenas escritor e
nada mais do que isso.
Em agosto de 1914, começa a escrever O Processo, esse livro que vocês verão
comigo hoje. Esse tipo de informação vem de O Diário. Está escrito lá:
“hoje comecei a escrever um livro que é mais ou menos assim”, que você
interpreta como sendo O Processo. Nem sempre o título do livro já está
pronto no primeiro dia. Às vezes é a última coisa que você põe. Há escritores
que constroem toda a obra em cima do título e há escritores que o põe em
último lugar. Tem todo o tipo de situação.
Em 1915 (lembrem que nós já estamos na Primeira Guerra Mundial, não é?)
foi publicada por Kurt Wolff, numa determinada revista em Praga, a novela A
Deve ter vindo daí o bacilo da tuberculose que o infectou nessa data. Lê
Ela é judia, mas tinha o defeito de ser a filha do zelador. Adivinhem se o pai
de Kafka concorda com o casamento do filho (ele era um sujeito da classe
média, tinha uma loja)? Uma das mágoas que Kafka tinha do pai é que ele
impediu o casamento com essa Julie, por causa de preconceito econômico.
Não era racial, porque ela era judia também, era meramente econômico. Ela
era uma mulher pobre.
Nesse ano foi publicado o livro O Médico Rural (Ein Landartz), que é uma
jornalista Milena Jesenská, que se tornaria sua amante e traduziria seus textos
para tcheco. A Milena não era judia, mas ela acabou indo parar num campo
dizer, ele até então havia feito viagens rápidas, e agora pela primeira vez ele
vai morar noutro lugar que não Praga. Vai morar na Alemanha, que afinal
de contas é onde ele conseguia se comunicar bem. Dora provinha de uma
família judaica ortodoxa, e apresentou Kafka ao Talmud. É mais um passo do
Nesse mesmo ano, 1923, Kafka teria enviado carta testamento ao Max Brod,
com instruções para destruir após a sua morte, os manuscritos não publicados
diz o Kafka, “tem de ser queimado. E será melhor ninguém lê-lo antes”. Então
não é verdade que a obra de Kafka teria que ter sido queimada, o que é
verdade é que apenas a obra inacabada é que deveria ter sido queimada. E
Kafka publicou em vida uns três, quatro livros. E o que Kafka queria é que a
obra que ele não havia publicado fosse queimada depois da sua morte. Essa
história acabou dando num processo judicial, porque a família foi lá tirar
satisfações com o Max Brod. Há um crime - não sei muito bem como é, não
sei se tem no Brasil também -, que se chama Falsidade Testamentária. Você
é testamenteiro de alguém e não cumpre aquilo que foi estabelecido. E o
Max Brod defendeu-se assim: “Se ele quisesse de fato queimar, primeiro ele
podia ter feito sozinho. Segundo, vai logo pedir pra mim, isso? Eu que adoro
as coisas que ele escreve! Então, na hora que ele me pede uma coisa dessas,
está implícito que no fundo, no fundo, ele não quer que sejam queimados,
muito pelo contrário, ele quer que os livros permaneçam”. E foi assim que
o Max Brod se justificou perante a justiça do fato de não ter queimado os
manuscritos inacabados.
parenteral. Então Kafka morreu de fome e sede. Não conseguia comer nada,
a garganta estava completamente inviabilizada, não passava nada mais.
inteira.
Em 1954 são publicadas as cartas que ele escreveu para uma de suas mulheres,
obras de Kafka sem as contribuições do Max Brod. Quer dizer, começar do zero
é judeu, que teria conhecido Kafka, informa que este último acreditava na
criado pelo rabino Loew em Praga. Então há uma lenda judaica de que em
vendido por Ilse Ester Hoffe, por 1,1 milhão de libras. Foi vendido para o arquivo
diferente dessa aqui - não muito diferente, mas diferente, que é a edição do
Pasley, e não a do Max Brod. E, finalmente, em 2002, foi publicado um estudo
famoso que propõe que as bases de O Processo possam ser encontradas em
***
O que é que vocês acham da vida dessa pessoa? É uma pessoa comum? Não,
é um sujeito com uma vida muito original. Ele não é nem judeu totalmente,
nem alemão totalmente, nem tcheco totalmente. Não se deu muito bem
com as mulheres, dá para reparar que ele teve dificuldades com as mulheres.
Uma briga sistemática com o pai. O pai e ele viveram sempre muito mal. É
um sujeito que tinha de fato consciência da sua vocação literária. Que tinha
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Faça alguma coisa a respeito, o máximo que você puder.
Compreenderam? Quer dizer, a incapacidade de você entregar o seu coração
e a sua alma para o livro... os livros são completamente vivos, não tenham
a menor dúvida disso. O livro fala com você, você tem que conversar com
ele. Há uma mágica em volta disso. Se você não conversa com a história, ela
não responde as perguntas que você quer que sejam respondidas. Então
eu espero que vocês que são aí estátuas pétreas de ceticismo, que pelo
menos agora na leitura do resumo vocês cedam um pouco desse ceticismo
empedernido e aproveitem para viver um pouquinho todos os horrores que
Resumo da Narrativa
está entre as obras de Kafka não publicadas em vida cujos manuscritos deveriam
ter sido destruídos por Max Brod a pedido escrito do autor. Apesar disso, Brod
decidiu editá-la, tendo de lidar com o fato de os capítulos não estarem revistos
O texto trabalhado por Max Brod, chamado “edição definitiva”, no entanto, tem
Alimentadas pela polêmica, há outras edições da obra com uma ordem diferente
Prof. Monir: Por causa da Editora Fischer que as lançou. Então é assim, o
capítulo do inverno vem antes do capítulo do outono, determinados fatos
estão invertidos, mas isso tudo não tem a menor importância, em última
análise, porque não vai destruir a visibilidade que nós temos da obra, não
vai nos impedir de apreciá-la na sua totalidade.
das Letras, São Paulo, 2004), por sua vez feita a partir da edição definitiva de Max
Brod. Os títulos dos capítulos correspondem aos nomes sobrescritos por Kafka
resumidos aqui, de outros capítulos planejados para a obra que não puderam
Prof. Monir: Então vocês percebem aí que há uma dificuldade, mais uma
dificuldade que não precisava existir. Não vai no entanto nos atrapalhar
Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido
sem ter feito mal algum. A cozinheira da senhora Grubach, sua locadora,
era a pessoa que lhe trazia o café todos os dias por volta das oito horas, mas
dessa vez ela não veio. Isso nunca tinha acontecido antes. (pág. 9)
Prof. Monir: A história começa, portanto, com esse choque. Pela primeira
vez a cozinheira não traz o café para o Josef K. na pensão onde ele morava.
Dizer que ele deve ter sido caluniado significa que se tinha uma impressão
positiva dele, que ele não deve ter cometido nenhum crime.
expectativa de receber seu café da manhã, trazido pela cozinheira Anna, como
todos os dias. O que ele recebe, na verdade, são dois agentes policiais, Franz e
-Não – disse o homem junto à janela, atirando o livro sobre uma mesinha
enquanto se erguia. – O senhor não tem permissão para sair. O senhor está
detido.
tanta amabilidade ao senhor. Mas espero que ninguém mais ouça, além de
confiante.
K. desejava sentar-se, mas viu então que não havia outro assento na sala
- O senhor ainda vai perceber como tudo isso é verdade – disse Franz, andando
Josef K., vestido com um camisolão, protesta, pede para falar com o chefe deles,
“posto relativamente alto”. Os agentes tentam ficar com as roupas debaixo dele
O senhor está detido, isso é certo, mais eu não sei. Talvez os guardas tenham
tagarelado outra coisa, mas aí foi só tagarelice. Mesmo, porém, que eu não
menos em nós e no que vai acontecer e mais em si mesmo. E não faça tanto
reservado ao falar; quase tudo o que disse antes poderia ter sido deduzido do
seu comportamento, ainda que tivesse dito apenas algumas palavras; além
disso, não foi nada de extremamente favorável para o senhor. (pág. 22)
Prof. Monir: Bom, aqui está o Josef K. querendo saber de qualquer jeito
porque é que ele está preso, e o chefe dos dois lá diz pra ele que não sabe,
nem sabe se ele é acusado de alguma coisa, só sabe que ele está preso.
E que não é bom pra ele, Josef K, ficar alardeando inocência desse jeito.
Porque até agora ele tinha causado uma boa impressão, e que ficar falando
o tempo todo que é inocente pode ser visto como uma coisa antipática
pela polícia. Parece uma situação comum essa, vocês veem isso como uma
situação normal? Não. É uma situação muito estranha. Ninguém conta pra
você por que você está preso. Os sujeitos dizem lá que é melhor ficarem
com a roupa, sobretudo íntima do acusado, porque quando elas forem
mandadas para um depósito, para onde vão as roupas de todos os acusados,
elas serão roubadas; comem o café da manhã dele e depois pedem para que
ele lhes dê dinheiro para comprarem o café do outro lado da rua. Não é uma
situação muito estranha? Parece uma situação meio estranha. Alguém tem
a sensação de que isso é normal? Se tiver... já vai perder, tá? Porque a coisa
fica muito pior daqui para frente. Vamos ver o que acontece.
Prof. Monir: Para tornar as coisas ainda mais estranhas, a polícia se instalou
no quarto da vizinha do Josef K., e estão presentes lá três funcionários
subalternos do banco. Não é uma coisa mais estranha do que antes? Por
que logo três funcionários? Logo esses três estão presentes lá? Olhando as
fotografias da parede... O que será que tudo isso significa?
me entendeu mal. É claro que o senhor está detido, mas isso não deve
Prof. Monir: Esta situação vai ficando mais estranha, ou mais normal?
Agora o sujeito, apesar de estar detido, pode trabalhar, não tem problema
nenhum. Vocês sabem que por causa do Kafka nasceu no mundo em todas
as línguas uma expressão, um adjetivo, que você aplica a situações que
são completamente absurdas. Então toda a vez que alguém disser assim
“estou vivendo uma situação kafkiana”, é porque está vivendo uma situação
com sua namorada Elsa, que trabalha num cabaré, conversa com a locatária, a
senhora Grubach. Pede desculpas pela confusão; ela diz estar tudo bem, mas
insinua que as razões da detenção podem estar ligadas a uma eventual relação
Prof. Monir: É, a vizinha é essa em cujo quarto a polícia andava, que é a tal
da Bürstner, que é uma secretária, mas que chega sempre muito tarde em
casa. E a Frau Grubach, que é a senhoria, diz para o K. que talvez ele tenha
sido pego por causa dela. Apesar de que ele e ela não são muito chegados,
ele não tem ligações muito próximas com a vizinha, o Josef K. No entanto, a
Frau Grubach imagina isso e faz insinuações um pouco comprometedoras
sobre a vida da moça, insinuando que a Frau Grubach é alguma espécie de
prostituta.
Josef K., que quase nunca fala com a vizinha, a interrompe: “A senhora está indo
lo”. Vai para o quarto, mas não consegue dormir. Fuma um charuto e às onze e
quarto havia sido totalmente arrumado pela senhora Grubach, a datilógrafa não
- Já vou – disse K.; correu para a frente, agarrou-a, beijou a na boca e depois
no rosto inteiro, como um animal sedento que passa a língua sobre a fonte
Capítulo Segundo
Primeiro Inquérito
Josef K. recebe ligação no escritório que o manda comparecer, sem dizer a hora,
à rápida audiência no domingo, dia que teria sido escolhido para não perturbá-
corte está acomodada numa pequena sala superlotada com teto baixo, onde só
Prof. Monir: Isso é uma coisa normal? Que o teto seja tão baixo que só se
consiga ficar em pé curvado? Essa é a sala do tribunal onde o Josef vai dar
depoimento agora. Não parece estranho?
se é pintor de paredes.
Prof. Monir: Muito bem. Então não só ele é culpado de chegar atrasado a
uma audiência cuja hora ele não sabia, como o tribunal que o convoca não
declarar à audiência o quanto aquela corte é ridícula e confusa; diz que a coisa
toda é uma farsa, uma conspiração e que não viria mais a inquéritos.
Prof. Monir: O Josef K. a essa altura está muito irritado, e na hora então
que perguntam se ele é pintor de paredes ele resolve desafiar a corte. E faz
um discurso esculhambando aquele negócio. Vamos ver o que ele diz.
- Não há dúvida – disse K. em voz bem baixa, pois a escuta tensa de toda
de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de
e outros auxiliares, talvez até de carrascos, não recuo diante dessa palavra.
maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de
É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito. É por isso que guardas
tentam roubar a roupa do corpo dos detidos, é por isso que inspetores
invadem casas alheias, é por isso que inocentes devem ser aviltados, ao invés
dos detidos, quando não são furtados por funcionários gatunos. (págs. 61-62)
que havia puxado a lavadeira para dentro da sala, a levara para um canto e a
- Só queria chamar a sua atenção – disse o juiz – para o fato de que o senhor
hoje – isso ainda não deve ter chegado à sua consciência – se privou da
(pág. 64)
Capítulo Terceiro
Na sala de audiência vazia. O estudante. Os cartórios.
o juiz de instrução, mas não acha ninguém, exceto a mesma mulher da semana
anterior.
Prof. Monir: Que é a lavadeira. Aquela que indicou a sala, depois entrou
na sala com outro e tirou a atenção.
e utensílios domésticos. Ela explica que mora ali com o marido, mas desocupa
Prof. Monir: É uma coisa normal? Que agora tenham colocado móveis,
cama, sei lá, fogão, que tenha virado uma casa normal e que nos dias de
audiência tira-se tudo dali e coloca-se outra coisa no lugar? Eu imagino que
os fóruns às vezes têm um problema equivalente a esse... mas isso não se
espera que seja assim na justiça. É uma situação estranhíssima você voltar
àquele lugar e agora ser uma casa, não mais um tribunal.
direito, que a tem perseguido apesar de ela ser casada com um oficial de justiça.
juiz sobre a mesa e conclui que ele tem gosto por literatura erótica. Um deles
chama-se Os tormentos que Grete teve de sofrer com seu marido Hans.
relatório sobre o caso dele e depois tinha vindo vê-la dormir junto do marido.
Seu prestígio seria tão grande que o juiz até lhe teria dado meias de seda. Ela
A mulher oferece-se: “Se me levar, vou aonde quiser, pode fazer comigo o que quiser,
serei feliz se ficar o maior tempo possível longe daqui, de preferência para sempre”.
- Ah, isso não – disse o estudante. – Com ela você não fica, não. (pág. 75)
Sem saber o que fazer, Josef encontra um aviso de “Acesso aos cartórios dos
mulher (apesar de ela o aceitar de bom grado, já que o estudante é alguém que
poderá ser juiz um dia) e como adoraria que K. desse uma lição no universitário.
- Sim – disse K. – mas por isso mesmo deveria ter mais medo de que ele
- Sem dúvida – disse o oficial de justiça, como se o ponto de vista de K. fosse tão
correto quanto o seu. – Mas, via de regra, entre nós não se movem processos
Prof. Monir: Vocês não acham assustador esse comentário: “Entre nós não
se movem processos à toa”? O que o marido da lavadeira quer dizer com
isso? Quer dizer que o K., na opinião dele, já está mesmo perdido, portanto
dar uma surra no estudante de direito não faria a menor diferença. “Não se
movem processos à toa” quer dizer que se se moveu um processo contra
ele, é porque ele está condenado. Agora, já que ele já está condenado, o
marido da lavadeira não acha nada de mal no K. ir lá e encher de bolacha
o Bertold, que ficava transando com a mulher dele. Não é uma coisa um
pouco preocupante, isso?
K. está tentando descobrir do que ele está sendo condenado ou pelo menos
acusado, e como ele consegue interferir sobre isso. E ele tá conseguindo
fazer isso? Não. Ele vai de novo no mesmo lugar da audiência, encontra uma
casa de família, aí encontra a mulher e ela é mais ou menos raptada pelo
Bertold. Este o agride e ele discute com o Bertold, depois ele encontra o
oficial de justiça, marido da mulher, que insinua que ele, Josef K., não tem
salvação, porque esse tribunal não abre nenhuma acusação sem que tenha
um bom respaldo jurídico. A situação desse cara não está ficando ruim?
Muito, né? Cada vez pior.
No percurso dão com uma sala de espera onde homens esperam para receber
- Sim – disse o oficial de justiça -, são acusados, todos os que o senhor está
Agora o rosto dela estava próximo a ele, mostrava a expressão severa que
- Não se preocupe – disse ela -, aqui isso não é nada de extraordinário, quase
todos têm um acesso desses quando vêm para cá pela primeira vez. (pág. 87)
voltar mais.
largassem, cairia como uma tábua. Dos pequenos olhos de ambos partiam
notou que os dois falavam com ele, mas não os entendia, só ouvia o barulho
que preenchia tudo e através do qual, como uma sirene, um som alto e
Capítulo Quarto
A amiga da senhorita Bürstner (fragmento).
procurador envia-lhe cartas que ela não responde. Certo dia, percebe ruídos no
“frágil, pálida, que mancava um pouco”, estava se mudando do seu próprio quarto
Josef interroga a senhora Grubach, que lhe confirma a mudança. K. imagina uma
que, na sala de refeições, não lhe explica a razão da mudança, mas lhe diz que a
senhorita Bürstner não quer falar com ele. A senhorita Montag parece esconder
Prof. Monir: Ele não entende porque é que não consegue falar com a
vizinha. Desde aquele episódio da invasão e depois do beijo noturno, ele
não conseguiu mais falar com ela. Para ficar muito mais estranho ainda, a
senhorita Montag vai morar no quarto da vizinha. Na verdade, o significado
desse capítulo aí ficou muito misterioso porque ele seguramente poderia
ter tido um tamanho três, quatro vezes maior e o Kafka nunca terminou.
Então ele ajuda um pouquinho, mas é um capítulo um pouco misterioso na
história, o que nos remete para o capítulo quinto, O espancador.
Certa noite, ao sair do banco, K. ouve gemidos atrás de uma porta que supunha
que o prenderam no dia de seu aniversário, sendo surrados com uma vara
por um homem vestido “numa espécie de roupa escura em couro, que deixava o
Prof. Monir: É uma coisa normal, isso? No banco? Você no banco abre
uma porta, assim, e tem lá os dois guardas que haviam te prendido sendo
surrados por um sujeito com roupas nitidamente de sadomasoquismo. No
banco onde você trabalha, numa sala de despejo?
A dupla explica: “Senhor, devemos ser espancados porque se queixou de nós para
o juiz de instrução”. Franz e Willem pedem lhe que interceda por eles, contam os
seus problemas, mas o carrasco está obstinado em cumprir o seu dever. Josef
tenta suborná-lo, mas ele não aceita, com medo de ser denunciado também. Por
atraídos por um grito de Franz, K. sai do quarto, para impedir que os contínuos
Como não consegue esquecer o episódio, no dia seguinte à mesma hora volta
ao quarto e dá com a mesma cena. Desta vez, bate a porta e grita para alguém
limpar o quarto.
Prof. Monir: É uma coisa normal isso? Vejam, ele presencia essa cena
completamente inusitada e originalíssima. No dia seguinte ele abre a porta
e está lá a mesma cena... só que dessa vez ele não se dá ao trabalho de falar
nada, ele simplesmente bate a porta, supondo que ele estava alucinando a
cena, que ele havia apenas imaginado aquilo, que nada daquilo era verdade,
de fato. E a situação do Josef K. vai ficando cada vez mais estranha. Porque
agora ele não sabe mais o que é verdade e o que não é, está em dúvida
sobre se ele está vivenciando uma coisa real ou não está. Existem muitas e
muitas interpretações das obras de Kafka. Como é uma obra muito original,
ela permite muita interpretação. Então há, certamente, interpretações aos
montes que lidam com essa situação do Josef K. de ele estar alucinando
alguma coisa. Trata-se de alguém que não sabe de fato que está vivendo
numa espécie de sonho. Vocês não tem essa sensação de que ele está
vivendo numa espécie de sonho? Mais para pesadelo... mas alguma coisa
meio incompreensível em termos lógicos.
Capítulo Sexto
O tio. Leni.
O tio e antigo tutor de Josef, Karl K. (ou Albert K.), um pequeno proprietário rural,
o visita no escritório. Avisado da situação de Josef por Erna, sua filha que morava
numa cidade próxima a Praga (a mesma onde morava a mãe de K.), veio do
- Josef – exclamou o tio querendo se desvencilhar dele para poder ficar parado,
mas K. não o deixou -, você está mudado, sempre teve uma capacidade
processo? Sabe o que isso significa? Significa que vai ser simplesmente riscado
Quando se olha para você, quase que se acredita no ditado: Ter um processo
Prof. Monir: E agora? O tio vem ajudá-lo, vem do interior, e diz assim: “Olha,
você precisa fazer alguma coisa, porque a sua situação é ruim”. O que é muito
estranho nessa situação é que o tio já soubesse de tudo, do mesmo modo
que a lavadeira já sabia de tudo. Já repararam num outro fato interessante
desta história, que todas as pessoas em volta já sabem que o Josef K. é
acusado? Mas nenhuma pessoa lhe diz nunca, em nenhum momento, do
que é que ele é acusado, nem por que é que ele está sendo processado
pela lei. E aqui, também, o tio aparece do interior com a convicção de que
ele está numa situação muito grave, muito embora ele não tenha a menor
ideia do porquê. E o tio diz assim pra ele: “Olha, há um ditado que diz que
ter um processo desses é absolutamente garantia de perder, porque esse
processo não se ganha”. E é a segunda profecia sinistra que é feita sobre o
assunto. A primeira foi do oficial de justiça, e a segunda agora é a do próprio
tio, que veio do interior, e que tem dois nomes. Ele é chamado de Karl ou
de Albert; nós não sabemos se é um engano do Kafka – é possível que seja,
pode ser que o Kafka tenha ficado em dúvida entre os dois nomes, - mas
também pode ser que seja mais um detalhe diabólico desta história, em
que o tio tem dois nomes e os nomes se alternam durante todo o tempo.
Continuamos.
56 Professor José Monir Nasser
Nos mesmos subúrbios onde ficam os cartórios, vão juntos visitar um velho
colega de escola do tio, o advogado Huld, que está muito doente, mas que
conheceria bem o caso de Josef. Após alguma demora à porta, são conduzidos,
Huld, que fez carreira defendendo os pobres, está na cama e começa a conversa
surpresa.
se mexer. À luz da vela, que o tio agora segurava alto, via-se ali, junto a uma
pequena mesa, um senhor idoso sentado. Certamente, ele não tinha nem
respirado para ficar tanto tempo sem ser percebido. Levantou-se, então, com
Era como se quisesse repelir com as mãos, que ele movimentava como asas
Huld, Karl e o chefe do cartório conversam, mas a mente de Josef está fixada em
Leni, a enfermeira que lhes havia aberto a porta. No meio da conversa, há ruído
só queria ficar sozinha com ele: “...só atirei um prato contra a parede para fazê-lo
sair”. Ela quer que ele goste dela, mas ele está mais interessado no seu próprio
caso. Por exemplo, há na parede um retrato de um juiz. Será este o seu juiz?
- Quem disse isso? – perguntou K., sentindo o corpo dela no seu peito e
pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra
escapar – só aí. No entanto, mesmo isso não é possível sem ajuda externa, mas
não precisa se angustiar por causa dessa ajuda, eu mesma vou providenciá-
Ela quer saber tudo sobre Elsa, a namorada de K., e ele lhe mostra uma fotografia.
Leni pergunta se ele não gostaria de trocar a garçonete por uma namorada
melhor e pergunta-lhe se Elsa teria algum defeito físico como ela, mostrando-
para o chão e eles transam. Leni lhe dá uma cópia da chave da casa, dizendo-lhe
tio que o repreende por ficar farreando com a óbvia amante do advogado, no
- Jovem – bradou ele -, como pôde fazer isso? Você prejudicou terrivelmente
fica fora durante horas. Nem mesmo procura um pretexto, não oculta nada,
não, age abertamente, corre para ela e permanece com ela. E enquanto isso,
ficamos sentados o tio, que se esforça por você, o advogado, que deve ser
senhor, que domina diretamente o seu caso na fase em que ele se encontra.
(págs. 138-139)
Prof. Monir: Então, quando finalmente ele larga lá a Leni, saindo encontra
o tio que vinha do quarto do advogado Huld, e o tio fala: “Você é louco?
Como é que você faz uma coisa dessas? Vai lá transar com a mulher enquanto
eu estava lá no quarto com o advogado, que tem de estar do seu lado, mais
o chefe de cartório, que é o sujeito que manipula os documentos do seu
caso, como é que você faz uma coisa dessas?” E a vida do nosso amigo Josef
K. não fica muito melhor nesse episódio.
************
INTERVALO
************
Eu sei que vocês não têm elementos porque a história não nos conta nada,
mas vamos ver pela intuição. Levantem a mão as pessoas que acham por
intuição que o Josef K. é culpado. E quantos acham que ele é inocente? Há
alguns que não votaram. Não vou nem me dar ao trabalho de somar os
votos... Todas as vezes que eu somei votos na vida, sempre deu uns quatro
ou cinco votos a mais ou a menos. De modo geral dá a mais, né? Então
eu sei que a gente não sabe isso ainda, mas se vocês estivessem lendo o
romance propriamente dito, a essa altura vocês já teriam uma ideia, alguma
impressão sobre a culpabilidade do Josef K. Então nós sabemos que ele é
acusado de alguma coisa grave e ele não sabe o que é.
Prof. Monir: Porque todo o mundo acha que é. O discurso do tio, de que a
família será arrasada - não apenas ele prejudicado, mas a família arrasada. A
sensação que devemos ter desta história é que o mal que este Josef K. teria
cometido é um mal muito grave e sério, e esse mal nós não sabemos qual
é. No entanto, no fundo da história, como pano de fundo, há a indução de
que há alguma coisa séria acontecendo, muito embora nós não saibamos o
que seja. E pior do que isso, todas as situações que o Josef K. vive, ou quase
todas, são estranhíssimas. O que há de constante nisso? Há a estranheza
das situações, segundo, há uma escuridão permanente - tudo é escuro o
tempo todo. E a única luz que existe nunca é a luz do sol, mas é a luz de
alguma vela que é usada para iluminar o ambiente – velas essas que estão
Aluno: Aluno pergunta sobre a relação dele com as mulheres que querem ajudá-lo.
Prof. Monir: Ele é um sujeito ligado a mulheres, né? Então, ele tem uma
namorada, e esse namoro é, digamos assim, meio ousado. Segundo, ele tá
interessado na vizinha, a senhorita Bürstner, embora ela seja inacessível. A
senhora Grubach gosta muito dele, talvez não esteja muito claro isso no
resumo, mas ela gosta muito dele. E o tal do episódio da prisão tornou a
senhora Grubach mais próxima dele e ao mesmo tempo tornou a tal da
senhorita Bürstner mais distante. Ele entra no primeiro recinto do tribunal e
é automaticamente ajudado por uma mulher, que é a lavadeira, que o ajuda
porque gosta dele. Não só gosta dele como lhe oferece o que ele quiser –
“Vem comigo, eu sou sua”. Não é isso? Até que o Bertrand acaba nisso. E
a Leni joga um prato na parede para atraí-lo para fora. Ele não tem uma
atratividade alta para as mulheres? Tem, né? Ele é um homem com poder
de sedução das mulheres... não há dúvida. O único fracasso que ele tem até
agora é a senhorita Bürstner, mas o resto, tudo deu certo. Essa situação de
Capítulo Sétimo
O advogado. O industrial. O pintor.
K. está agora completamente obcecado com o seu caso que já dura seis meses.
Ocasionalmente reúne-se com o advogado Huld que lhe diz estar fazendo tudo
o que pode, mas que as coisas têm de ir devagar. Alega ser preciso preparar
muito bem a petição inicial, porque dela depende o rumo de todo o processo
e, além disso, considerar que “a defesa, na verdade, não é realmente admitida pela
Prof. Monir: Nunca percam de vista o fato de que o Kafka é advogado. Ele
domina este linguajar jurídico. E aqui o advogado dele, o Huld, está dizendo
a ele que o tribunal não permite nenhuma espécie de defesa. A defesa não
é um direito do acusado. A defesa é uma tentativa que o acusado faz de se
Aluna: [Quer saber por que o K. não pergunta para o advogado do que está sendo
acusado.]
Prof. Monir: O advogado nunca lhe diz nada. O que tem seis meses é o
processo do K., não a relação com o advogado. O advogado parece aos
olhos do Joseph K. um sujeito completamente incompetente que não faz
nada. Um sujeito inerte. Mas o advogado vai explicar porque que isso é
apenas uma aparência. Já vamos chegar lá.
Prof. Monir: Vocês sabem o que é rábula? Rábula é o sujeito que, embora
não tenha curso de Direito, tem conhecimento de Direito. É a mesma coisa
que o dentista prático, que é o sujeito que não tem formação odontológica,
mas que sabe tratar da sua boca. É como a parteira em relação ao obstetra,
entenderam? A parteira não tem formação médica, mas consegue fazer
e se proximamente K. for aos cartórios do tribunal, pode dar uma olhada na sala
dos advogados, simplesmente para tê-la visto. É provável que ficará assustado
diante das pessoas que estão ali reunidas. O próprio cômodo, estreito e baixo,
destinado a eles, mostra o desprezo que o tribunal tem por essas pessoas. A luz
só chega por uma pequena lucarna, colocada tão alto que, se alguém quiser
olhar para fora – aliás recebendo no nariz a fuligem de uma chaminé instalada
Prof. Monir: Você consegue imaginar uma situação dessas? Quer dizer, no
tribunal a sala dos advogados é um lugar que só dá pra ver luz se um subir
nas costas do outro. Então imaginem a situação...
No chão desse cubículo – para citar apenas mais um exemplo desse estado
de coisas – existe, já faz mais de um ano, um buraco, não tão grande que
completo uma perna. A sala dos advogados está situada no segundo sótão;
e também saber quem “mexe os pauzinhos”. Sem isso, o caso estaria perdido.
K. não consegue entender bem o que ele quer dizer e vai ficando impaciente.
Está sobretudo incomodado com o fato de o advogado não lhe perguntar nada
concretamente. Como nada está acontecendo, julga que o advogado não está
Prof. Monir: Ele não confia no advogado, porque não o vê fazer nada, nem
perguntas ele faz. Uma vez eu fui no alfaiate mandar fazer um terno, aí eu
falei assim: “Eu queria fazer um terno”, e ele: “Ah, tá bom”. Comecei então a
explicar como eu queria. E ele: “Não, não, eu entendi”. Aí eu falei assim: “O
senhor não vai tirar a medida?” E ele: “Não, não, pode deixar que eu sei”.
Eu saí muito preocupado do alfaiate naquele dia... porque, entendeu, é a
mesma atitude. Um sujeito que não te pergunta nada e é seu advogado...
ele não tá fazendo nada! Tem alguma coisa estranha nisso. Ele então resolve
fazer coisas por conta dele, independente do tal do advogado, que por
outro lado é o advogado que conhece o caso dele e, mais do que isso, é o
Prof Monir: Quer dizer, aquela vida que você tinha, dos seus trinta anos,
em que você já era procurador, e em que havia perspectivas de se tornar
importante no banco, de repente está praticamente inviabilizada pelo fato
de que você é réu de um processo. Com relação ao K. todos se assustam,
sem exceção; o veem com muito pessimismo. Você tá sempre só pensando
no seu processo, e lá onde você tá trabalhando já tem alguém querendo
ficar com seus clientes. O diretor adjunto, que já sentiu o cheiro de carniça
na história, está preparado para ficar com os melhores despojos... Vamos ver
então o que acontece.
Um dos seus clientes, um industrial, diz conhecer seu caso (“Há tanta gente ligada
ao tribunal”) e lhe indica o pintor Titorelli, que ganha a vida fazendo retratos de
Prof. Monir: Aí aparece mais um sujeito que não poderia ter nada a ver
com isso e que, no entanto, sabe do caso dele. Que é esse cliente.
ficar com os clientes dele que esperam na ante-sala: “Como o diretor adjunto
saber por que K. está ali. Titorelli o recebe expulsando as meninas e reclamando:
Quem é ele?
- Não há dúvida – disse K., que não queria melindrar ninguém com a sua
- Não – disse o pintor. – Não vi a figura nem o trono, tudo é invenção, mas me
- Sim – disse o pintor. – Mas não é um alto magistrado, e nunca esteve sentado
presidente de tribunal.
- Depende de muitas coisas sutis, nas quais o tribunal se perde. Mas no final
Prof. Monir: E agora? Quer dizer, o Titorelli tá dizendo pra ele que, no final
das contas, mesmo aqueles que são aparentemente inocentes percebem-
se com uma grande culpa. Vocês acham que o Josef K. é culpado? Alguém
agora já acha que o Josef K. é culpado? Nós tivemos zero votos na primeira
enquete aqui. E agora? Alguém acha que ele é culpado de verdade? [pausa]
Já temos dois. Uma grande melhora nessa votação, porque fomos de zero a
duas pessoas. De fato, o Josef K. é considerado culpado por todo o mundo
que está em volta dele, todo o mundo sabe qual é o caso dele, todos os
consideram culpado, e ele ainda não. Ele acha que é totalmente inocente e
não acha que seja culpado de modo nenhum.
Prof. Monir: Não, ainda não. Até esse ponto ele não se considera culpado.
Mas vamos ver, tá? Vamos ver se ele vai de fato em algum momento da
história mudar a sua opinião sobre a própria culpa.
Josef K. pede uma ajuda porque a esta altura já sabe que só com dificuldade o
Prof. Monir: É. Ele acha que está já condenado, porque todos lhe dizem
Titorelli lhe diz que a corte não pode ser dissuadida de modo nenhum e que
o tribunal é inacessível às provas que lhe são apresentadas, mas não às provas
apresentadas fora dele, como naquele ateliê, e por isso Titorelli pode ajudar.
Prof. Monir: Então, Titorelli diz pra ele: “Olha, não tem jeito. Uma vez que
o tribunal tomou a decisão, tá tomada, ele não volta atrás. Ele já é dono
de tudo! Essas meninas, por exemplo, são todas do tribunal, pertencem a
ele. Então não é possível contestar as decisões do tribunal... embora, em
ambientes externos ao tribunal, como aqui nesse ateliê, talvez eu possa
fazer alguma coisa por você”. E vamos ver o que é que o Titorelli quer fazer
pelo Josef K.
não existe nenhuma pessoa que pudesse ter influência sobre a absolvição
que o senhor é inocente, seria de fato possível que confiasse apenas na sua
inocência. Mas aí já não precisa de mim nem de qualquer outra ajuda. (págs.
185-186)
Titorelli lhe explica que não há absolvição definitiva, pelo menos ele nunca
soube de uma. Absolvições aparentes são possíveis, mas não garantem proteção
absolvição e assim por diante. Por isso mesmo elas são aparentes.
aspecto sombrio”. Para evitar o assédio das meninas, Josef sai pela porta dos
Ante o espanto do procurador, Titorelli comenta: “Não sabia que aqui há cartórios?
Eles estão em quase todos os sótãos, por que deveriam faltar logo aqui? O meu ateliê
também faz parte dos cartórios, mas o tribunal colocou o à minha disposição”.
K. havia se espantado não com o cartório em si, mas com o fato de estar sendo
haviam dado a volta, Josef encontra a saída com dificuldades e toma um táxi,
Prof. Monir: É, o oficial de justiça queria entrar no táxi com ele, e ele
expulsa o oficial de justiça do táxi (faltou escrever isso aqui). Então dessa
experiência com o Titorelli ele volta com mais um testemunho de que não
tem muito jeito, de que a situação dele vai muito mal mesmo, e ele então
pega os quadros e volta para o banco, de onde tinha vindo... lembram? Ele
só vai visitar o Titorelli porque aquele cliente o avisa de que ele poderia ter
alguma esperança no Titorelli. Nesse momento a esperança do Joseph K.
aumentou ou diminuiu?
Alunos: Diminuiu.
Capítulo Oitavo
O comerciante Block. Dispensa do advogado. (inacabado)
Prof. Monir: É, segurava uma vela por quê? Porque ali naquela casa, assim
como em todas as outras, não há nenhuma luz a não ser a das velas.
Ao ver K., Leni sai correndo e some. O homem chama-se Rudi Block e é
cozinha, onde Leni, recomposta, está fazendo sopa para o advogado. Pergunta-
lhe se eles são amantes, mas ela desconversa, dizendo que há novidades sobre
conta que o caso dele já durava cinco anos e segreda lhe que havia colocado
outros cinco advogados na causa: “Além dele, tenho mais cinco rábulas”. Na verdade,
cabeça: “Quando se quer fazer algo pelo seu processo, só pode se ocupar pouco de
outras coisas”. Também diz que sempre corre todos os cartórios em busca de
notícias e numa dessas visitas tinha visto Joseph K. Finalmente comenta uma
da forma dos lábios do acusado. Por aquele critério, segundo alguns, K. estaria
perdido.
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Mais essa ainda? Quer dizer, também lá no teste da superstição
o K. está condenado a perder o processo. Então, a situação do K. melhorou
ou piorou?
Alunos: Piorou.
Prof. Monir: Ele está impaciente, cada vez mais ansioso, nervoso? Está.
Tanto é que ele resolveu ir descontratar o advogado. No entanto ele
encontra lá uma testemunha nova, que é esse Rudi Block, que diz que o
processo dele já dura cinco anos, enquanto que o processo do K. só tinha
seis meses. Talvez alguma coisa mais do que seis meses a essa altura... Não
parece haver boas notícias disso, vamos ver.
ele sair, Leni conta que Block morava na casa, porque o advogado era muito
e nem todos eram como Josef, que podia marcar hora. Leni mostra o quarto
de Block, um cubículo de teto baixo sem janelas, totalmente tomado por uma
cama estreita.
Prof. Monir: Vocês não sentem uma angústia horrível de pensar em dormir
num lugar assim? Quer dizer, o quarto era do tamanho da cama, baixo, não
dava pra ficar em pé e não tinha janela. É uma espécie de dispensa baixa na
parede.
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Então agora o Block quer que o K. conte pra ele um segredo
também, já que ele contou um segredo terrível, que era um segredo de
traição, né? Porque ele havia traído o Huld colocando mais cinco advogados
pra trabalhar junto... e agora ele quer que o K. conte a ele um segredo
também.
caminho.
no seu caminho, motivo pelo qual ela lhe desferiu um golpe com os punhos.
Depois, com os punhos ainda cerrados, correu atrás de K., que no entanto
atrás dele, mas Leni, que a mantinha aberta com o pé, agarrou-o pelo braço,
querendo puxá-lo de volta. Ele, porém, apertou o pulso dela com tanta força,
que ela teve de soltá-lo com um gemido. Não ousou entrar no quarto, e K.
Prof. Monir: Porque será que deu esse pandemônio, porque será que o
Block e a Leni ficaram desesperados quando ouviram a notícia que ele ia
dispensar o advogado? Imaginem vocês a hipótese de que o K. já esteja
condenado na opinião dos dois, da Leni e do Block, o que é que o advogado
representaria para alguém já condenado? Uma daquelas três possibilidades
qual é? A do processo arrastado... que é o caso do Block, que já está a cinco
anos nessa história, não é isso? Então o que os dois podem ter imaginado,
com essa reação, é que ao perder o advogado, não havendo mais advogado,
ele iria ser condenado rapidamente e não poderia usufruir daquela
modalidade de absolvição, de libertação, que é o processo arrastado.
Provavelmente esse é o sentido. Vamos ver o que é que o K. diz agora para
o advogado.
dos acusados belos”. K. diz que sabe tudo sobre os casos de Leni com os acusados.
Réus, no final das contas, são atraentes, mesmo Block, “esse miserável”, enfatiza o
causídico.
Prof. Monir: Ou seja, a Leni tinha casos com todos os clientes do advogado,
porque achava que o fato de o sujeito estar mais ou menos condenado o
transformava numa pessoa sexy. Nos Estados Unidos, quando alguém é
condenado à morte, recebe milhares de cartas de mulheres apaixonadas...
porque há alguma coisa nessa situação, de não poder mais escapar de
estar condenado, que de alguma maneira torna a pessoa sexy. É mais um
sintoma de que a coisa vai muito mal. Todos os clientes do advogado são
condenados, não têm nenhuma solução, estão todos perdidos.
Josef diz ao advogado que está farto dele e o acusa de não ter feito nada. O
Prof. Monir: O que é que o Kafka tá afirmando com isso? Que ele é
culpado ou inocente? Inocente. Porque ele, como os outros condenados,
ficava muito chateado quando a coisa não andava, porque achava que a sua
inocência estava sendo desconsiderada. O K. acha-se inocente. Ainda acha-
se completamente inocente. E vocês, o que acham? Quantas pessoas acham
Para valorizar o caso de K., Huld declara só tratar de casos que lhe digam respeito
de perto, que era o caso de Josef, sobrinho de seu amigo Albert (ou Karl). Como
nem assim consegue impressionar, o advogado manda chamar Block para lhe
grita que o caso dele era dificílimo, que não havia nem começado e que a
corte o julgava perdido, mas que ele, Huld, ainda estava lutando por ele. Block
- Só uma vez ele pediu para beber água. Aí eu lhe estendi um copo pelo
postigo. Então, às oito horas, eu o deixei sair e lhe dei alguma coisa para
Prof. Monir: O Huld chama o Block e faz uma sessão de humilhação absurda
do Block. Mostra que ele vinha sendo tratado como se fosse um cachorro,
que era alimentado pela Leni quando ela achava que estava na hora, como
você faria com um animalzinho na sua casa. Já o K. não, ele era um sujeito
que não precisava nem morar lá, bastava marcar hora para ser atendido... No
entanto o Joseph K. acha que é tudo uma espécie de pantomina, de teatro,
que é feito lá pelos três, pelo Block, a Leni e o advogado, e fica firme na sua
decisão de descontratar o advogado. E esse fato é muito importante, porque
agora, mesmo você lembrando que o livro é um pouco desestruturado, por
causa da sua incompleição, mesmo assim agora acontecem os fatos que
conduzem a nossa história e a nossa personagem Josef K. para o clímax.
hora marcada para o encontro, às dez, chovia e a praça da catedral estava vazia.
K. lembrou-se de que “ainda criança, havia chamado sua atenção o fato de que,
nas casas dessa praça estreita, quase todas as cortinas das janelas estavam sempre
corridas”.
Josef entra na igreja e não encontra o italiano; só uma velha mulher embrulhada
num xale quente, ajoelhada diante de uma estátua da Virgem Maria. Fora da
percebe um velho sacristão manco que o observa e lhe aponta alguma coisa
longe parecia um nicho ainda vazio, destinado a acolher uma estátua de santo”,
preparando-se para fazer um sermão para uma igreja vazia e às onze da manhã.
Estranha que se utilize justamente aquele púlpito, quando havia outro maior.
Tenta sair, mas surpreendentemente o padre o chama pelo nome: “Josef K.” K. se
aproxima e o padre, do púlpito, diz que é “capelão do presídio”. Fala de seu caso,
Prof. Monir: Muito bem, agora o padre da igreja, [risos] o padre que não
deveria estar lá - quer dizer, a principio não foi para vê-lo que ele foi lá -
na hora que ele resolve ir embora, o padre o chama pelo nome: “Josef K!.”
Imaginem aquela voz naquela igreja vazia. E o padre diz que é capelão do
presídio?! [risos] E que o caso dele vai muito mal! Quer dizer, agora sim,
aparece até um padre que diz que a situação dele, Joseph K., é muito ruim.
Vamos ver o que acontece no diálogo entre esses dois.
a sua culpa.
humano pode ser culpado? Aqui somos todos seres humanos, tanto uns
como outros.
falar.
têm prevenção contra mim. Transmitem-na até àqueles que não participam
- Você se equivoca quanto aos fatos – disse o sacerdote. – A sentença não vem
de uma vez, é o processo que se converte aos poucos em veredicto. (pág. 258)
K. reage dizendo que nos próximos dias iria buscar mais ajuda. O padre retruca:
ajuda verdadeira”.
entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O
homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais
tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não”. Uma vez que a porta da
inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro
ri e diz: ‘Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja
bem: eu sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala,
porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo
tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele;
de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele
dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e cansa o porteiro
senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá lo entrar.
O homem, que havia se equipado para a viagem com muitas coisas, lança
mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita
tudo, mas sempre dizendo: ‘Eu só aceito para você não achar que deixou de
fazer alguma coisa’. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro
lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa
em voz alta o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga
consigo mesmo. Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro
anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas
inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes
para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um
aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido.
quer saber?’, pergunta o porteiro. ‘Você é insaciável’. ‘Todos aspiram à lei’, diz o
homem. ‘Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu
para entrar?’ O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda
alcançar sua audição em declínio, ele berra: ‘Aqui ninguém mais podia ser
admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora
o homem do campo. O padre insiste que não e que ele só estava cumprindo
sua missão e que estava cônscio e orgulhoso do seu ofício. Lembra a K. também
que talvez quem tenha sido enganado de fato seria o porteiro que nada saberia
“preso ao seu posto pela função que desempenha; não pode se afastar, mas segundo
todas as aparências também não tem permissão para ir ao interior da lei mesmo
que quisesse”, logo o verdadeiro subalterno seria ele e não o homem do campo.
Sendo assim, não se pode também acreditar que o porteiro esteja subordinado
ao homem. Ficar preso por ofício, mesmo que seja só à entrada da lei, é
apenas chega à lei, o porteiro já está lá. Foi incumbido pela lei de realizar um
- Não concordo com essa opinião – disse K., balançando a cabeça. – Pois se se
adere a ela, é preciso considerar como verdade tudo o que o porteiro diz. Que
(pág. 269)
por fazer. O padre lhe diz que ele, o padre, também pertence à corte, que não
quer nada com ele e permite que ele saia quando quiser.
O sacerdote tinha se afastado apenas alguns passos, mas K. gritou bem alto:
- Antes você foi tão amável comigo disse K. – Explicou-me tudo, mas agora
Seu regresso imediato ao banco não era tão necessário, como ele havia
exposto; podia muito bem permanecer ali por mais algum tempo.
- Pertenço pois ao tribunal – disse o sacerdote. – Por que deveria querer alguma
coisa de você? O tribunal não quer nada de você. Ele o acolhe quando você
Na véspera do seu trigésimo primeiro aniversário, por volta das nove da noite,
apartamento.
Prof. Monir: Dois homens gordos de casaca como dois tenores de ópera.
Exatamente um ano depois, ou melhor, um ano menos um dia após a sua
detenção - ele foi preso no dia do seu trigésimo aniversário, agora um dia
antes do seu trigésimo primeiro aniversário, ou seja um ano e um dia a
menos, dois homens gordos vestindo casaca como se fossem tenores de
ópera o procuram na sua casa.
rigidamente um braço, saem com ele pela cidade como se os três homens
sua direção. Ele a observa vindo até ela desaparecer numa transversal escura.
seu paletó e camisa e o deitam com a cabeça sobre uma pedra. Aparece uma
faca de açougueiro ”comprida, fina e afiada dos dois lados” que eles passam um
para o outro. Aparentemente, eles esperam que Josef K. tome a faca e a enterre
no próprio peito, mas ele não o faz, fixando a vista à distância numa pessoa na
janela de uma casa com a luz acesa. Seria um amigo? Onde estaria o juiz e a alta
corte que ele nunca conseguiu alcançar? Josef K. ergue as mãos e estica todos
os dedos.
Com olhos que se apagavam, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto,
Prof. Monir: Na hora que ele diz assim pros tenores: “Então vocês que me
foram designados”, não dá a impressão de que ele estava esperando que
viessem matá-lo?
Alunos: Dá.
Prof. Monir: Ele aceita porque ele percebeu que nada do que ele pudesse
fazer teria sido capaz de mudar o veredito. Mas ele não sabe por que ele vai
ser sacrificado, porque ele não se sente culpado.
Vocês repararam que sacrificar alguém sobre uma pedra é aquilo que se faz
com os animais. Os altares eram de pedra - você sacrificava os animais às
divindades sobre uma pedra, então a morte do Josef K. é mais do que uma
morte, é uma espécie de sacrifício ritual, não parece isso? Se é este o caso,
então nós temos aí uma figura de um sacrifício ritual em que um inocente,
por alguma razão, que não se sabe qual é, esse inocente é escolhido para ser
sacrificado como um cordeiro, que é sacrificado a um deus.
Mas por que vocês não topariam fazer um exercício comigo que seria mais
ou menos assim: E se o Josef K. fosse de fato culpado?
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Há algum fato que o livro nos conte que fez essa mudança
de destino e de sorte para Josef K., que tenha justificado isso? O livro é
incompleto, é verdade... Existe um fragmento – no final deste livro tem
Aluna: Será que não é um problema de consciência que ele tem e ele
começa então... Quando você tem um problema de consciência, você
começa a buscar explicação... a se sentir oprimido por alguma coisa, você
quer resolver, não sei...
Prof. Monir: É como se o mundo todo dissesse pra ele assim: “Eu sei o
que você fez no verão passado!” Seria essa a ideia? Esse é um filme que
os adolescentes adoram, em que as personagens adolescentes aprontam
misérias e aí no ano seguinte elas voltam lá para o mesmo lugar e são
perseguidas por um monstro, e tal...
Mas o problema dessa tese é que mesmo levando em conta o livro estar
inacabado, em nenhum momento há qualquer sugestão de que ele possa
ter sido desonesto, ladrão, ter matado a mulher... entendeu? Ter casado com
o Clodovil... coisas do gênero.
Alunos: [risos]
Prof. Monir: Bom, pela sequência em que o livro está organizado, aquela
recusa, e sobretudo a recusa vista pela Leni e pelo Block com tanta gravidade,
prenuncia que aquele ato havia quebrado a continuidade de um processo e
que aí ia haver uma espécie de modificação no quadro. E essa modificação
é o prenúncio da morte pela boca do padre, na catedral de Praga - catedral
católica. No entanto, vocês ainda não me disseram qual seria possivelmente
o crime que o Josef K. teria cometido.
Prof. Monir: Ele tenta se defender o tempo todo, mas não consegue. Ele
tenta falar com o juiz, ele não consegue descobrir do que é que ele tem que
se defender, ele não consegue que o advogado o defenda. Não é só que ele
não se defende, o advogado não o defende também.
Prof. Monir: É, mas ele não entra no mérito do caso. Ele entra no tribunal,
diz que aquilo é uma palhaçada ridícula, que é um circo, que é um troço ali
pra explorar as pessoas, que não tem nenhum valor, e eles que vão plantar
batata, que ele não quer mais saber daquilo. Então no tribunal, logo no
inicio, ele dá uma desancada geral naquela situação sem, no entanto, entrar
no mérito da própria acusação. Porque ele não sabe de fato, nem sabia ali
e nem saberá até o fim do que é que ele é acusado. No final da história ele
Aluna: Tem um trecho lá na conversa dele com o padre em que ele diz
assim: “Mas eu não sou culpado. É um equívoco. Como é que um ser humano
pode ser culpado.”
Prof. Monir: Ah, você agora pegou um caminho de ouro! É aquele caminho
da Dorothy, dos tijolos amarelos! Você conseguiu pegar um caminho muito
bom agora. Quer dizer, o padre diz assim pra ele: “Mas você tá enganado”. E
ele diz assim: “Mas como é que um homem pode ser culpado?”
Aluno: Parece que o problema é ele lutar contra alguma coisa que não
existe... e além disso ele ir buscar nos locais menos apropriados a solução
para o problema... É como se ele aceitasse uma coisa que não é dele, ele não
devia nem ir atrás, ele não tem essa culpa...
Prof. Monir: A única coisa que ele não faz... O que as mulheres mandam
fazer? Confessar. Não é isso que as mulheres mandam que ele faça? No
entanto, ele não confessa, em nenhum momento. Deixou claro na última
conversa com o padre, no final da história, que ele não tinha nada a
confessar, porque afinal de contas não era culpado de nada. A única coisa
que ele não admite nunca, jamais, é que ele possa ser culpado... Esse é o
coração do problema.
Então o Josef K. em nenhum momento se coloca nessa postura. Mas por que
ele não se põe nessa postura? Porque ele não sabe do que ele é acusado e
não reconhece o pecado, não é isso?
Prof. Monir: Mas ele tinha antes, né? Até o dia do seu trigésimo aniversário
ele parecia levar uma vida que ele podia controlar. A partir daí não, nunca
mais. O mundo desabou como um fato consumado que o foi empurrando
para uma inevitável morte.
Prof. Monir: Essa frase que a Leoni descobriu é a chave do mistério. É essa
Prof. Monir: Convenhamos que não é razão suficiente pro sujeito acabar
morto, você ter deixado de ir ao encontro da namorada...
Prof. Monir: Não, o resumo pode não estar perfeito, mas de alguma
maneira ele apresenta todos os componentes da história... O resumo não
é perfeito, mas quem leu o livro seguramente deve ter percebido que o
resumo representa fielmente a história; embora não seja nem de perto
comparável ao livro original, ele não é infiel. Quer dizer, não há nenhum fato
escondido de vocês. Não há nada que eu tenha escondido de vocês sobre
essa história, tá?
Aluno: [Comenta sobre o livro não ter sido finalizado pelo Kafka.]
Prof. Monir: Poderia ser o caso... mas se você continuar no caminho que
foi aberto ali pela Leoni, você vai descobrir que mesmo que ele tivesse
matado a mãe sem nenhuma boa razão, mesmo assim não teria nenhuma
diferença com relação ao que o Kafka quer nos contar aí. Ele está querendo
nos contar uma coisa extraordinária... e que vocês estão muito próximos de
descobrirem sozinhos.
Prof. Monir: Ele acha que ele é um ser humano e, como tal, esse ser
humano não pode ser acusado de qualquer coisa, porque ele é apenas um
ser humano. Mas isso que ele aos poucos teme que seja a razão da acusação
ainda não apareceu nessa explicação... Quer tentar?
Prof. Monir: É, pode ser que tenha alguma coisa a ver com os trinta, acho
que vale a pena lembrar isso. Tem um sentido essa observação que ele fez.
Mas há aí uma coisa absolutamente fundamental que é o que no fundo o
Kafka está nos contando, com essa história maravilhosa...
Prof. Monir: Bom, muito bem, é uma ideia... Mas nesse caso, por que
razão, de repente, no dia do trigésimo aniversário, essa situação teria
se transformado? Porque houve uma transformação da vida dele. Essa
transformação é um encaminhamento para a morte... E por que isso teria
acontecido logo naquele dia, não antes nem depois?
Aluna: [Acha que o K. acha que o ser humano não pode ser culpado, porque
errar é humano.]
Prof. Monir: Seria assim se ele fosse de fato inocente. Mas vocês não
me provaram ainda que ele é inocente! Ao contrário, tudo indica que ele
é culpado. Não está todo o mundo dizendo que ele é culpado? Se ele for
inocente essa tese vigora...
Prof. Monir: Ele não confessa o pecado porque não reconhece pecado
nenhum, é por isso que ele não ouve a recomendação das mulheres que
dizem para ele ir lá confessar...
Aluno: É culpado de não saber qual é o crime que ele cometeu. Pronto.
Prof. Monir: Essa é uma boa ideia, né? Culpado pela ignorância. Mas há
uma culpa absolutamente garantida...
Prof. Monir: O porteiro diz assim: “Você vai poder entrar, mas não agora”.
Não é? E ele passa a vida inteira tentando imaginar como é que entra, mas
ele não consegue entrar.
Prof. Monir: Mas ele não se arrepende não só porque ele não reconhece,
mas porque ele passa o tempo todo pecando o mesmo pecado, nessa
história. Qual é o pecado fundamental que o atormenta?
Aluno: A dúvida.
Aluno: [Pergunta se não é por usar o livre arbítrio que ele não vê o que fez de
errado.]
Prof. Monir: Ele tem o livre arbítrio para negar, mas nem isso o exime da
condenação, ele vai morrer igual.
Aluno: A luxúria.
Prof. Monir: Compreenderam que não faz nenhum sentido você fazer
campanha contra o prazer sensual? O pecado está em você transformar o
prazer sensual na sua vida. Aí é pecado. Compreenderam? O Dalton Trevisan
tem uma frase maravilhosa, que é assim: “Do que vale a sua vida se você não
pode comer três, quatro quindins?” De fato, né? Pense bem que vida besta
se você não puder comer três, quatro quindins.
Como os judeus acreditam nisso, que eles estão perdidos por causa do
pecado original - que é a única acusação de fato que você tem para atribuir
ao Josef K. (qual é o pecado que ele cometeu, do qual ele é acusado? É o
pecado original), então os judeus estabeleceram uma religião cuja essência é
ficar amigo de Deus. Isso que se chama judaísmo é uma espécie de exercício
de boas relações com Deus, de relações amistosas, porque eles imaginam
que na hora em que Deus for resolver esse problema aqui eles vão ficar em
melhor situação, porque afinal eles sempre foram bacanas, amigos de Deus.
A essência do judaísmo é a amizade com Deus, porque eles não acham que
haja de fato uma salvação antes da vinda do Messias. Mas o Messias não
veio ainda. Quem sabe ele não vem, não sei.
Qual é o pecado que está na outra ponta, como o mais grave de todos? É a
soberba. A soberba é o pior pecado, mas por quê? Porque ela é um desafio
direto à autoridade de Deus. Porque Deus diz assim: “Não é pra comer esse
negócio!” Você vai lá e come. Mas não é só esse o problema da soberba.
É assim: a serpente convence Adão e Eva de que era para comer a fruta
porque Deus estaria escondendo uma informação de que eles, Adão e Eva,
se comessem daquela fruta, ficariam tão poderosos quanto Deus. Você
consegue imaginar soberba maior do que essa? Você alçar-se ao mesmo
status e nível de Deus?
Então o que é que faz o Josef K. o tempo todo em que ele não admite que
ele é culpado? Ele sabe que é culpado, mas não admite. Ele está o tempo
todo reafirmando a soberba do pecado capital, que é justamente aquilo
de que ele é acusado. Mas como ele não acredita em salvação, ele não
consegue nunca pegar a estrada de Damasco... São Paulo consegue ainda
pegar a estrada de Damasco. Ele é cegado por Deus e perde a capacidade de
enxergar qualquer coisa, que é exatamente a situação em que o Joseph K. se
meteu. Mas na hora que São Paulo se humilha perante Deus, e confessa, e se
torna humilde, ou seja, na hora em que ele se coloca na posição de criatura,
então ele recupera a visão, porque ele se colocou ontologicamente no seu
verdadeiro lugar e não está mais tentando atingir o lugar mais alto no pódio,
disputando o lugar de Deus.
Prof. Monir: Pra isso ele teria que ter compreendido que ele está sob o
pecado de soberba. Ele não consegue entender isso.
Então o Joseph K. não reconhece a sua condição de criatura. Ele acha que
não é criatura, mas sim um criador... ele não reconhece jamais a sua posição
de subordinação divina, é por isso que ele não consegue ver a culpa,
porque a soberba o está cegando o tempo todo, sistematicamente. Ele não
consegue ver jamais que o problema é ele reconhecer-se como criatura, e aí
sim a salvação seria possível.
Aluna: É uma limitação, então, não é? Ele não se sentiu um ser limitado.
Prof. Monir: Não é isso, pessoal. Vejam bem, eu não estou aqui tentando
dar a vocês uma explicação religiosa para o problema. Eu estou dando uma
situação ontológica para o problema. O que o Josef K. faz e que o destrói é
enganar-se sobre a sua verdadeira natureza ontológica... Quer dizer, na hora
em que ele não é capaz de perceber-se como criação, ele então se torna
inviável como pessoa. Quer dizer, é exatamente a mesma história que depois
o Kafka conta em A Metamorfose... O que é a metamorfose? É um sujeito que
vira um inseto gigante, porque na hora em que você perde o status de criação,
A lei - Ele não consegue entrar na lei porque a única possibilidade de o porteiro
deixá-lo entrar é que ele confesse. Mas ele não confessa, ele fica imaginando
a hora em que o porteiro vai convidá-lo. Mas ele não será convidado jamais!
E pela mesma razão pela qual o homem do campo morre na porta da lei, ele
morrerá num ato sacrificial, sobre uma pedra de uma pedreira abandonada,
morto por uma faca de açougueiro que será enterrada no seu peito e virada
duas vezes. Conforme descrito no livro. A história de O Processo é a história
do gnosticismo, o pecado do Josef K. é ser gnóstico... é achar que pelos seus
próprios meios humanos ele é capaz de atingir a divindade, a sabedoria. É o
desprezo da existência e da autoridade de Deus, que é de todos os pecados
o mais grave. É por isso que a soberba é sempre o pecado pior. Quando
você reza no Pai Nosso: “e não nos deixei cair em tentação”, não é que você
da Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1997, tradução de Modesto Carone).
O que se entende por cultura aqui é que no final destes nossos encontros
vocês saiam daqui tendo domínio de determinadas características da reali-
dade humana, certos aspectos da condição humana que os ajudarão a vi-
ver de modo mais consciente, um modo melhor. É isso que se entende por
cultura. Não é uma distribuição de detalhamentos. O mundo da cultura não
deve ser confundido com uma espécie de beletrícia (da palavra francesa bel-
les lettres), não é isso. Nós estamos preocupados em saber o que significa
aquilo que está sendo dito ali. E essa é a razão pela qual nós misturamos
sempre livros de ficção com livros ensaísticos, livros sem pretensão ficcional.
O livro de hoje é uma fórmula mista, pois foi escrito de forma ficcional sem
ser de fato um livro de ficção. É um livro de filosofia escrito de um modo lite-
rário muito diferente de como no modo geral se fazem os livros de filosofia.
É um livro muito antigo. Foi escrito no século IV ou V século da era cristã.
Passamos aqui um resumo que não substitui a leitura do livro. O livro é muito
melhor do que o resumo, sempre. Não há modo de um resumo representar
o livro com a mesma competência. Não deixem de ler o livro. Se você quer
estudar filosofia na vida, e deseja começar por um determinado livro, pegue
este, em vez de pegar aquela coisa horrorosa chamada O Mundo de Sofia,
que é uma espécie de crime literário. Não leiam aquilo de jeito nenhum,
não indiquem pra ninguém. Se tiverem, escondam. Não deixem as crianças
pegarem de modo nenhum. Escondam das crianças, por favor! O Mundo de
Sofia é uma enganação. Se alguém um dia te perguntar como é que come-
ça a ler filosofia, você manda ler o Boécio, A Consolação da Filosofia. Feito
isso, podemos começar? Todo o mundo tá feliz com essa pré-explicação?
Alguém tem alguma dúvida? Vamos em frente?
império romano.
Prof. Monir: Há uma versão popular do assunto de que ele teria trans-
formado o cristianismo na religião oficial, o que não é verdade. O cristia-
nismo simplesmente foi autorizado, como qualquer outra religião. Parou-se
de perseguir os cristãos sob certo ponto de vista. Não que isso tenha sido
pra sempre, mas já foi um reconhecimento da legitimidade do cristianismo.
Duzentos e poucos anos depois da morte de Cristo o cristianismo é aceito
como religião. Nessa altura já havia um conjunto de obras de doutrina cristã
que são chamadas de patrística.
É muito importante saber algo aqui para entender toda esta história. O cris-
tianismo não é uma doutrina, não é uma tese filosófica, não é uma proposta,
uma hipótese ou uma proposição especulativa. O cristianismo é um fato his-
tórico. A gente não entende nada se não compreender isso. Por que aquilo
que nós chamamos de cristianismo resume-se fundamentalmente a quatro
evangelhos e o Atos dos Apóstolos. Todas essas coisas são narrativas de fatos
históricos. Há quarenta evangelhos, mas a Igreja só reconhece quatro. E a
razão pela qual a Igreja só reconhece quatro não é porque haja uma cons-
piração lá do Código Da Vinci ou coisa equivalente, mas é porque só esses
quatro têm certa sintonia, certa concordância entre si.
Porque era preciso escolher o que parecia mais provável. De todos os evan-
gelhos, esses quatro contam basicamente a mesma história. Tem lá um ou
outro ponto de divergência, mas fundamentalmente trata-se da mesma
Câmara Cascudo “Malasartes é figura tradicional nos sites de aposta populares da Península
de enganos, sem escrúpulos pois é o deus que ajuda os apostadores a ganharem”. Disponível
Prof. Monir: Se você achar isso, você é herege. Então lembre-se disso. Je-
sus tem de ser Deus obrigatoriamente, se não o cristianismo não faz ne-
nhum sentido.
tinopla.
Prof. Monir: Essa Constantinopla é uma cidade que foi batizada assim por
causa do Constantino e que antes chamava-se Bizâncio. A partir de 395, mais
ou menos na época em que tudo isso está acontecendo, o império romano
agora é dividido em dois pedaços, um fica com uma capital no oriente, onde
hoje é Istambul (a antiga Constantinopla), e uma no ocidente, em Ravena,
que mudaria para Roma.
c. 480 Anicius Manlius Severinus Boetius nasce em Roma, numa família patrícia,
cristã havia cem anos. Órfão aos sete anos, é adotado pelo aristocrata Quintus
Prof. Monir: Então o Boécio nasceu numa família patrícia, ficou órfão, mas
foi adotado por outra família patrícia. E casou com a filha do seu pai adotivo,
a Rusticiana.
Prof. Monir: Aqui tem uma coisa importantíssima: como o arianismo foi
muito importante, esteve muito disseminado no mundo cristão logo no iní-
cio da era cristã, os bárbaros eram todos arianos. Achavam de fato que Jesus
não era Deus. Os francos não, eles eram o único grupo de bárbaros que não
achavam isso, que não tiveram essa educação errada. Então esse que depõe
o outro e sobe ao poder, o Teodorico, é fundamentalmente ariano. Ele já era
cristianizado, mas ariano. E não sabe que quem é ariano não é cristão de ver-
dade, porque ser um herético implica em você cometer um erro tão grave
Prof. Monir: O Teodorico toma o poder mas não mata a nobreza, porque
eles não sabem lidar com aquela máquina judiciária sofisticadíssima. O im-
pério romano tinha uma máquina que era dirigida pelos romanos, você não
consegue substituir isso. Então o Boécio, como aristocrata, começa a ter fun-
ções sob o governo de um bárbaro, Teodorico, e começa a receber tarefas.
Prof. Monir: Depois eu vou explicar isso com muita calma, porque é muito
importante.
525 Boécio é executado em Pavia. O seu corpo está na igreja de San Pietro in
Cielo d’Oro, em Pavia, junto com o de Santo Agostinho. Boécio e seu pai eram
tempo depois.
Prof. Monir: O pai adotivo de Boécio foi morto pelo Teodorico em seguida
apenas porque defendeu o filho adotivo e genro.
526 Morre Teodorico. Segundo a lenda, o imperador teria sido assombrado por
Prof. Monir: Segundo o folclore, ele via todo o tempo os fantasmas dos
dois. Não conseguia dormir porque ficou assombrado pela culpa, né? Morre
de um modo muito lamentável. Passam-se muitos e muitos anos.
(747–814).
Paraíso:
Prof. Monir: É uma menção de muito valor. O Boécio está sendo visto aqui
pelo Dante, que é o intérprete da Idade Média, como uma pessoa de grande
mérito. Uma pessoa que foi martirizada, em última análise.
o império otomano.
PROF. MONIR: Por causa disso, a Catedral de Santa Sofia, uma das mais belas
do mundo, foi transformada numa mesquita. Preservada, porém reciclada. E
Constantinopla passou a se chamar Istambul. Durante muito tempo referen-
ciou-se a cidade com os dois nomes, mas hoje perdeu-se completamente o
nome de Constantinopla.
1883 A Sagrada Congregação dos Ritos canoniza Boécio como São Severino
PROF. MONIR: Portanto Boécio é santo. Santo da Igreja Católica. Esse fato é
de algum modo polêmico, porque como vocês verão na obra que nós va-
mos ler agora, não há uma única menção a Jesus Cristo. Por que não há? É
isso que eu preciso explicar pra vocês com toda a calma agora, pra gente
entender bem a obra. Boécio está escrevendo essa obra perto da sua morte,
que foi em 525 da era cristã. Nesse momento tinha o que havia sobrado do
mundo antigo, da filosofia grega, e já havia um corpo chamado patrística,
de doutrina cristã.
Mas está justamente em Boécio (não só nele, mas sobretudo nele), o germe
dessa transição. Quer dizer, foi feita uma abordagem filosófica em torno dos
conhecimentos que são factuais da doutrina católica, ou cristã (não tinha
diferença naquela época). Boécio, portanto, vocês verão pelo texto que vão
ler, é o sujeito que inventa isso. E a história que vamos ler em seguida é a his-
tória do corredor da morte. Ele havia sido torturado com um processo de se
apertar a cabeça com uma cinta de couro. Os olhos saiam pelas órbitas, uma
coisa medonha, horrorosa. E ele encontrava-se lá na prisão, destituído de
tudo – não tinha mais família, casa, não tinha importância nenhuma. Ele era
afinal de contas senador do império romano, não era um qualquer. Ele tinha
um poder enorme e tinha dado demonstrações a vida inteira de piedade e
generosidade ímpares. Era um sujeito extraordinariamente cuidadoso, e en-
contra-se lá torturado no corredor da morte, com a sua execução iminente.
Resumo da narrativa
na prisão por seu sogro, Símaco, que subornava os guardas. A narração, alter-
nando prosa e verso, transcreve o diálogo entre Boécio e uma mulher misteriosa
que o visita, a Filosofia. A Consolação da Filosofia teria sido o segundo livro mais
feita por São Gerônimo). Esta última obra do escritor patrício exemplifica a fusão
(pensador sobre a Idade Média) dizia de Boécio “ser o último dos romanos e o
I.1
PROF. MONIR: Ele só tem quarenta e cinco anos, é uma velhice meio anteci-
pada, mesmo pra época. Ele tem quarenta e cinco anos e acabou a vida! Vai
morrer dali a dias.
PROF. MONIR: Mas isso é por causa dos românticos, que achavam lindo fazer
isso. Teve uma época, no século XIX, que não havia nada mais charmoso do
que morrer bem jovem. Com mais de vinte e cinco anos, já não deu mais,
você já fracassou na sua vida. Mas veja, o Boécio é da aristocracia, é um sujei-
PROF. MONIR: Começa aqui com poesia. Vamos ter de vez em quando uma
poesia. Na verdade têm tantas poesias quanto capítulos em narrativa, nós
não colocamos no resumo porque não dá pra ver tudo. Mas tem uma poe-
sia bonita pra cada coisa, e ele então está dizendo aí o quanto a vida dele
acabou mal, né? Não esqueçam que não se trata de uma pessoa qualquer,
I.2
Enquanto meditava silenciosamente essas coisas comigo e confiava aos meus ma-
nuscritos minhas queixas lacrimosas, vi aparecer acima de mim uma mulher que
inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e revelavam uma
clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma
força inexaurível.
Ela parecia ter vivido tantos anos que não era possível que fosse do nosso tempo. Sua
estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras vezes parecia
atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos
céus e desaparecia dos olhares humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos
tarde ter sido ela própria quem teceu a veste. A poeira dos tempos, assim como acon-
tece com o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor.
PROF. MONIR: Essa mulher parecia um pouco maltratada pelo tempo, né?
Tão vendo? Não está cem por cento.
E, entre essas duas letras, via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento
inferior ao superior. No entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma
PROF. MONIR: Viram que a teoria está acima da prática? Porque para um gre-
go, nada mais importante do que a teoria. O ideal de sucesso humano para
um grego é o sujeito que consegue o ter o bios teoreticus, um sujeito que
consegue viver com capacidade de contemplação da verdade. Isso é o gran-
de ideal humano. Ganhar dinheiro é uma coisa que não é um valor humano
universal. Pode ser importante para um ou outro, mas para um grego, tudo
é teoria, a prática fica subordinada a ela. Não esquecer nunca isso. E está
dizendo que “mãos violentas rasgaram sua veste e cada um tomou um pedaço
dela”. Do que será que ele está falando? Vocês têm alguma ideia? Ele está
falando tanto do epicurismo, quanto do estoicismo, quanto do cinismo. Ou
seja, quando acaba a filosofia grega, quando morre Aristóteles, algum tem-
po depois o Epicuro inventa o Jardim de Epicuro.
Mas ela tinha livros na mão direita e um cetro na esquerda. Quando viu as Musas
da poesia junto a mim, cantando versos de dor, ficou muito perturbada e, lan-
amantes do teatro aproximarem-se deste doente? Elas não só não podem reme-
PROF. MONIR: Na hora em que ela vê lá o Boécio cantando sua dor com
as musas, ela fica furiosa, porque acha que aquela choradeira não vai levar
São elas que por lamentos estéreis das paixões matam a acuidade da Razão, fazem
com que a alma humana se acostume à dor e não a deixam mais sossegada. Se pelo
menos importunásseis um neófito com vossas insídias habituais, eu não daria gran-
Com essas palavras, o coro harmonioso baixou os olhos com tristeza e atirou-se pie-
PROF. MONIR: Quem era o coro harmonioso? Aquelas musas ali, que esta-
vam incentivando a choradeira.
Quanto a mim, estava com os olhos tão cheios de lágrimas que não podia discernir
essa mulher que tinha tanta autoridade; calado, atirei-me ao solo e esperei em silên-
cio o que ela iria fazer. Então ela se aproximou e se sentou ao pé da minha cama e,
vendo minha grande tristeza e terrível aflição, deplorou nestes versos a perturbação
I.3
PROF. MONIR: Quer dizer, sob o ponto de vista da Filosofia, o Boécio está
uma lástima e uma porcaria. Porque ele que pensaria coisas, que sempre ti-
nha feito progresso, agora encontra-se completamente perdido, lamentan-
do-se com as musas, naquela situação que ele está vivendo, que a Filosofia
pretende curar. Começa a nossa história agora nesse momento.
Mas és tu que outrora foste nutrido com nosso leite, com nosso alimento, que se exer-
cia com uma força viril? E, no entanto, tínhamos te fornecido todas as armas neces-
sárias para venceres, perdeste-as por tua culpa, e com elas vencerias! Tu me reconhe-
ces? Por que te calas? É a vergonha ou o abatimento? Oxalá fosse a vergonha! Mas
Ela põe a mão ternamente sobre o peito de Boécio, diz que ele nada deve temer
I.5
PROF. MONIR: A hora em que ela começa a falar com ele, ele de repente se
ilumina e começa a enxergar alguma coisa novamente. Essa frase é mui-
to bonita, e de certo modo foi mantida, de vez em quando você encontra
como referência por aí nos livros.
I.6
E dessa forma foram dissipadas as nuvens da tristeza; fui iluminado pela luz celeste e
PROF. MONIR: Vocês entendem o que é nutriz? É aquela que nutre. A mãe,
por exemplo, que dá o peito ao filho é nutriz. Usa-se essa expressão na me-
dicina também. Ele reconheceu finalmente a quem lhe dava de comer, que
era a Filosofia. Finalmente o Boécio reconhece aquela pessoa que está ali.
É claro que tudo isso é ficção, compreenderam? É uma ficção que tem, no
fundo, um sentido filosófico, mas isso não é muito comum. De modo geral
você não faz assim em livros de filosofia. Mas é um livro de filosofia, basica-
mente é isso.
Perguntada o que faz ali, a Filosofia responde que para ela “não é lícito deixar
caminhando sozinho um discípulo seu.” Lembra o caso de Sócrates que por ela, a
PROF. MONIR: Vocês sabem disso porque quem esteve aqui ano passado
fez a Apologia de Sócrates no programa, um dos mais importantes livros. A
Apologia de Sócrates é a história que relata, como os evangelhos... há mui-
ta semelhança, guardada as proporções, entre a Apologia de Sócrates e os
evangelhos. Porque Sócrates, assim como Jesus Cristo (sempre guardan-
do as proporções, por favor), é um sujeito que não escreveu uma linha. E a
Apologia de Sócrates, por todos os meios com que você analise, tem de ser
aceita como uma reportagem histórica. Porque o Xenofonte escreveu tam-
bém uma Apologia de Sócrates e é muito parecida com a de Platão. E os dois
não iam combinar. Então a Apologia de Sócrates é o relato do que aconteceu
de fato no julgamento de Sócrates. E Sócrates morre pela Filosofia, ou seja,
ele sabe que a única possibilidade de continuar havendo alguma Filosofia é
Mais tarde. A turba do popular Epicuro, os estóicos e muitos outros ainda disputa-
vam sua herança. Nem reclamando nem resistindo, escapei de ser eu mesma parte
da presa.
PROF. MONIR: Viu? Confirmando o que eu tinha dito pra vocês, os que estão
tentando arrancar a roupa da Filosofia são essa gente. Porque o epicurismo
é o fim do fim. Você pega os cínicos, pega Diógenes, que achava que o apro-
priado pra humanidade era ir ao banheiro em qualquer lugar. Achava estra-
nhíssimo que uma pessoa fosse ao banheiro num lugar específico. Como
é que pode, depois de Aristóteles aparecer um sujeito tão imbecil a ponto
de ter reduzido a Filosofia a uma coisa dessas? É isso que ela está dizendo
aqui. Nessa época o Boécio já sabia o quanto significava de regressão, de-
pois da morte de Aristóteles, essas filosofias helenistas, né? Digamos assim,
essas que foram pertencentes à Grécia helênica, do tempo de Alexandre,
não mais à Grécia clássica. Todas elas são decadentes.
A veste, que eu havia tecido com minhas próprias mãos, foi rasgada e arrancada, e os
desavisadas tomaram aqueles malfeitores por discípulos meus e foram levados por
de Zenão ouviste falar, pelo menos de Cânio, Sêneca e Sorano, cuja fama não é por
doutrina.
PROF. MONIR: Ela está dando exemplo de filósofos que foram martirizados.
O Anaxágoras é um pré-socrático e foi exilado, o Sócrates foi morto por ve-
neno. O Zenão de Eleia também foi torturado e morto, ele é discípulo de
Parmênides. E Cânio, Sêneca e Sorano são três filósofos latinos, romanos,
sendo que grande mesmo é só o Sêneca, os outros dois são menores. Todos
eles foram obrigados a se suicidar. Porque o Nero achou que os estoicos,
que era essa turma aqui, estava querendo derrubá-lo. Matou todos. Então
ela está dando exemplos de gente que foi martirizada como Boécio está
sendo agora.
O que os levou a serem malvistos foi que, imbuídos de meus princípios morais, eles
Boécio reclama do modo como a Fortuna o tratou. Culpa a Filosofia por ter dita-
do, pela boca de Platão, que “seriam felizes os estados governados pelos sábios ou
PROF. MONIR: Aí você tem uma coisa importantíssima que é a tese de Platão
em A República sobre o rei-filósofo. Então Platão achava, equivocadamen-
te – muito equivocadamente – que o governante tem de ser filósofo. Ele
tentou isso três vezes na prática e nas três vezes deu errado. Na primeira
ele foi vendido como escravo numa feira e foi comprado por um aluno. En-
tão eu espero, no dia que acontecer isso comigo, que vocês se lembrem de
mim com a mesma delicadeza. [risos] Já pensou que coisa mais estranha os
alunos comprarem o professor numa feira? Vendido como escravo... O Pla-
tão atesta, no livro A República, que o governante, para dar certo, tem que
ser filósofo. O rei-filósofo é o sujeito que governará civelmente a socieda-
de, ou seja, temporalmente, e que também tem as condições de sabedoria
ao mesmo tempo. Isso não dá certo. Embora eu diga pra vocês que não dá
certo (e esse assunto tomaria uma aula inteira), ele está justamente sendo
implementado hoje sob o nome de Nova Ordem Mundial. Eu digo que não
dá certo na teoria, porque em tese é o modo como o mundo está sendo
governado. Mas ele não dá certo na teoria porque o poder temporal, que
é o poder do rei, é profundamente diferente do poder espiritual, que é o
poder do sacerdote (que é o filósofo, de certo modo). Quem matou a cha-
rada foi o Eric Voegelin, que disse assim: “O poder espiritual, para poder ser
verdadeiramente poder, tem de ser aceito com total liberdade, se não, não
é poder de verdade”. Ora, você não pode então botar esses dois poderes no
mesmo sujeito, porque você nunca sabe se você está obedecendo o sujeito
Então o Boécio tá dizendo para a Filosofia: “Mas não foi você que disse, pela
boca de Platão, que era melhor que os filósofos fossem reis?” Porque Boécio
estava lá metido com a política de Roma. Entenderam que ele era um gover-
nante-filósofo? Ele tá dizendo isso: “Como é que isso não funciona, se você
que deu essa ideia?” Vamos ver como é que a Filosofia se defende dessa.
Tu, pela boca do mesmo filósofo, me persuadiste de que os sábios deveriam governar
os estados, para impedir que o governo caísse nas mãos de pessoas sem escrúpulos
e sem palavra, e que fosse uma praga para os bons. Então eu, inflado por essa supre-
macia e com os ensinamentos que foram dados no início e longe da multidão, decidi
aplicá-los na vida política. Tu sabes, e também Deus, que te fez penetrar no coração
dos sábios, que apenas o desejo de realizar o bem geral me arrastou à política. (pág.
11)
I.10
A Filosofia diz a Boécio que ele não foi desviado de sua pátria, mas baniu-se dela.
De fato, não podias ser banido por ninguém. Se te lembrasses de tua verdadeira pá-
tria, saberias então que ela não era, como a Atenas de outros tempos, governada
pela opinião da maioria, mas ‘por um só mestre e um só rei4’ , que se alegra com o
4 Homero, Ilíada.
De fato, deixar-se guiar e frear por ele e obedecer à sua justiça: nisso consiste a ver-
dadeira liberdade. Por acaso ignoras uma antiqüíssima lei de tua cidade, que proíbe
serem expulsos os que a escolheram como pátria? Com efeito, estando ao abrigo de
seus muros e fortificações, não se deve temer o risco de ser exilado. (pág. 18)
Mas eis que tua alma foi grandemente perturbada por sofrimentos e sentimentos
de cólera e desespero que te puxam por todos os lados e te fazem ter disposições de
espírito tais que não é possível ainda tratar-te com um remédio eficaz. Dessa forma,
por um tempo usaremos de alguns remédios paliativos: assim, a espessa casca que a
desordem de tuas emoções acabou por transformar num tumor será removida, pri-
meiro por uma leve massagem que a preparará para ser tratada mais tarde por um
PROF. MONIR: A Filosofia não vai dar o remédio, porque ele está muito mal.
Então ela vai começar com uma terapia mais leve.
A Filosofia pede permissão para interrogar Boécio “para saber que tipo de cura
deve aplicar”.
E ela disse: ‘Achas que este mundo é conduzido por fatos acidentais e governado pela
Fortuna, ou achas que é governado por uma Razão? Eu respondi: ‘Seria impossível
crer que um universo tão bem ordenado fosse movido pelo cego acaso: sei que Deus
preside aos destinados à Sua obra, e nunca me desapegarei dessa verdade’. (pág. 20)
PROF. MONIR: Nessa época, o mínimo que se espera de um ser humano nor-
mal é que você reconheça que há alguma ordem no mundo. Por mais que
exista uma dificuldade humana de enquadrar essa ordem em equações, por
mais que exista alguma variação nessa ordem em torno de um tema, não dá
pra você imaginar que isso é uma coisa aleatória. Nunca ninguém viu cho-
ver pra cima. Quando você vai pra casa de noite, ela está sempre no mesmo
lugar onde você deixou. Você não sai pela cidade inteira procurando a sua
casa que teria mudado de bairro. Não é assim? Claro, algumas pessoas be-
bem demais... talvez num caso desses isso seja possível, mas de modo geral
não é assim. Então o mínimo que se espera que alguém faça é que aceite
o fato de haver um cosmos, que é palavra grega para “ordem”. “Cosmos” e
“ordem” é a mesma coisa. Então há um cosmos em torno de nós que é de
alguma maneira irretratável, quer dizer, ele não pode ser completamente
descrito. Então há uma certa característica probabilística na ciência. A ciên-
cia não pode ser absoluta em hipótese nenhuma porque ela não consegue
pelos seus meios criar uma descrição perfeita do cosmos. Mas isso não quer
dizer que ele seja caótico.
PROF. MONIR: Sim, “Fortuna” é sorte, isso mesmo. Nesse sentido. O que acon-
tece? O Boécio tá dizendo que a sorte dele era muito boa e agora está uma
bela porcaria. Ele está reclamando que a sorte mudou, não é isso? A sorte
dele mudou – ele era quase rei e agora ele é um sujeito que vai morrer dali a
pouco, que vai ser executado com quarenta e cinco anos.
A Filosofia se declara surpresa com ele estar doente da alma, tendo pensamen-
um homem. Tendo ele respondido ser o homem “um animal racional e mortal”,
ela conclui:
Agora reconheço uma outra causa principal: deixaste de saber o que tu és. Assim,
De fato, é devido ao esquecimento que estás perdido, que te lamentas de ter sido exi-
lado e privado de teus bens. É porque desconheces qual é a finalidade do universo que
que regem o universo que julgas que a Fortuna segue seu curso arbitrário e que ela é
mente, tentando “por um tempo dissipar por atividades sutis e mesuradas as trevas
de tuas impressões enganosas, para que possas (Boécio) reconhecer o brilho da ver-
dadeira luz”.
Livro II
por sentires profundamente a perda de tua Fortuna anterior que desfaleces. É apenas
o que tomas por uma reviravolta da Fortuna que agita teu espírito. Conheço todos
os multiformes embustes que ela usa para enganar os homens até torná-los loucos e
PROF. MONIR: Agora a Filosofia vai desmascarar a Sorte. Já que a Sorte pare-
ce ser o alvo de reclamações do Boécio.
Ela convoca então a Retórica, “que só não se desvia do caminho quando segue as
no desespero? Sem dúvida, viste algo de novo e extraordinário. Pensas que a Fortuna
“Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prome-
tendo-te miragens. Descobriste a dupla visão desse poder cego. Enquanto ela ainda
dissimula seu verdadeiro semblante aos outros, diante de ti ela se desmascarou com-
PROF. MONIR: A Fortuna, a Sorte, não está te enganando agora. Agora você
sabe como é que são as coisas. Os outros continuam sendo iludidos por ela.
Agora a Filosofia fará uma campanha aqui contra a Fortuna.
ta-a de ti: seus jogos são funestos.” Demonstra que não é possível submeter-se aos
caprichos da Fortuna e “ao mesmo tempo sustar a rápida revolução de sua roda”,
PROF. MONIR: A Fortuna é um negócio que roda. Essa imagem de que a For-
tuna é uma roda é uma imagem do Boécio que veio para o presente. Você
não tem no Sílvio Santos um negócio desses? Você roda lá e cai lá... Um mi-
II.3
A Filosofia discursa a Boécio como se fosse a própria Fortuna, para que ele com-
PROF. MONIR: A Filosofia agora vai se fantasiar de Fortuna e vai fazer de con-
ta que é a Fortuna pra que o Boécio pare de reclamar.
Quando a Natureza te fez sair do ventre de tua mãe, estavas totalmente nu e não
tinhas nada. Fui eu quem te acolheu, tratou com o maior cuidado e, se não me supor-
tas mais, é porque te elevei muito, dedicando-me muito à tua causa, e fui excessiva-
mente pródiga em relação a ti. Mas agora decidi retirar minha mão de teu ombro. Tu
deverias agradecer-me o usufruto de bens que não te pertencem e não tens o direito
de te queixares como se tivesses perdido os teus próprios. Por que então essas lamen-
tações? Não foste agredido de nenhum modo por mim! (pág. 28)
trevas da noite. O Ano tem o direito de cobrir por um período a terra de flores e frutas,
um dia ser amável, apresentando uma superfície calma, e noutro de agitar as ondas
sublevadas pela tempestade. E, quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos ho-
mens que pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com
Não aprendeste, na tua infância, ‘sobre as duas ânforas, uma cheia de males e outra
Quem diz que já não saciaste de teu lote de bens? E que eu já te abandonei completa-
não te dá a esperança de uma nova reviravolta na Fortuna? Seja como for, não te
deixes ficar completamente tomado pela tristeza e, já que vives num reino cujas leis
são as mesmas para todos, não desejes viver sob tua própria jurisdição. (pág. 29)
5 Homero, Ilíada.
II.4
Desafiado pela Filosofia a rebater estes argumentos, Boécio retruca: “Sim, essas
são brilhantes palavras impregnadas do mal da retórica e de música, mas elas en-
cantam apenas no momento em que se as ouve. As pessoas que sofrem sentem mais
profundamente sua tristeza e, quando seus ouvidos cessam de escutar essas doces
PROF. MONIR: Ele diz o seguinte: “Você fala isso porque não é você que está
aqui, que vai morrer torturado na cadeia”. Entendeu o que ele falou pra Fi-
losofia? Que não era com ela o problema, por isso que ela ficava com essa
conversinha fiada.
A Filosofia reconhece o valor deste sentimento e adverte não ter ainda minis-
trado os remédios adequados, mas lembra-o da fortuna que teve quando, por
ocasião da morte do pai, ter sido “elevado junto aos homens de maior projeção” e
PROF. MONIR: Ele ficou lá uns sete anos, e nem por isso a vida dele acabou
ali. Ela está lembrando que ele também teve momentos bons e não é pra
reclamar da vida inteira.
reservados somente a ti: cargos honoríficos que assumiste mesmo quando jovem,
quando eles eram negados a pessoas mais velhas, mas eu me alegro sobremaneira
em recordar aquilo que foi o apogeu de tua glória. Se os sucessos humanos concor-
rem para a definição da felicidade, como é que algumas adversidades, mesmo con-
sideráveis, poderiam apagar de tua memória o extraordinário dia em que viste teus
dois filhos, cônsules na mesma legislatura, fazerem-se escoltar desde a tua casa até
o Fórum pelos senadores e todo o povo e quando, tomando eles seu lugar na Cúria e
tu pronunciavas o panegírico do rei que tornou célebres tua inteligência e tua elo-
triunfador, cumulavas de bens a multidão que vinha atrás de ti? (págs. 31-32)
Diz Boécio
Tens razão, ó mãe nutriz de todas as virtudes, e não posso negar a rapidez da minha
ascensão. Mas é precisamente essa lembrança que me fere mais. Com efeito, em toda
reviravolta da Fortuna, não há maior desgraça do que ter conhecido a suprema gló-
PROF. MONIR: O tombo é grande, né? Quem vocês acham que está sendo
mais convincente aqui? Vocês tão achando que a Filosofia está de fato con-
vencendo o Boécio de que não é tão ruim a situação dele, que vai ser morto
dali a pouco? O que vocês acham? [pausa silenciosa] Independentemente
do que vocês podem achar, é preciso compreender que a Filosofia serve jus-
tamente pra esse momento da vida. A Filosofia não é um processo de saber
coisas sobre os filósofos. Quando eu digo pra vocês não lerem o tal do livri-
nho de filosofia lá é porque além de ser errado, é um livro mal-intencionado,
é ignorante sobre muitos aspectos, e é um livro que acha que saber coisas
folclóricas, sobretudo com um verniz pseudofilosófico e politicamente cor-
reto, é igual à filosofia. Filosofia é alguma coisa que existe apenas dentro de
você na execução real do assunto. A filosofia é uma espécie de instrumento
existencial. Numa hora como essa é que a filosofia é importante. Essa coisa
de saber coisas sobre filósofos é uma atividade didática, mas está muito lon-
ge do significado da filosofia em si própria. É preciso entender que, estando
ela convencendo o Boécio ou não, é para isso que serve a filosofia. É por isso
que ela apareceu agora, e não quando ele estava feliz da vida – mas podia
ter feito também na outra hora.
PROF. MONIR: Ele, na verdade, está usando a filosofia no seu uso concreto,
real, verdadeiro... Ele se faz um pouco de burro por razões didáticas. Vejam,
pessoal, o assunto de que trata a filosofia são esses enigmas da vida, essas
questões fundamentais da realidade. O problema número 1 quando você se
mete a estudar filosofia é que tem uma parte dos problemas da vida real que
são absolutamente impenetráveis, ou seja, você não vai conseguir penetrar
jamais nisso. Os filósofos materialistas como Hegel, Marx e Comte pensam
que a história humana tem dentro dela própria a sua própria solução, sua
própria explicação.
Mas a explicação da história humana não pode estar dentro da sua própria
história porque existem coisas que afetam a vida humana que não foram in-
ventadas pela história. Por exemplo, o conceito de anterioridade – que uma
coisa que é anterior vem antes da outra, quem foi que criou isso? A história?
Um belo dia, o pessoal se reuniu, fez um concílio e falou assim: “Agora fica
estabelecido que o passado vem antes do presente e antes do futuro”. Pois
isso não foi inventado por ninguém, é uma coisa que foi feita antes de haver
a história. Portanto, o conceito de anterioridade é uma espécie de condição
metafísica para que possa existir história. Então o que na verdade é a histó-
ria? É alguma coisa que você de fato não compreende o sentido a não ser
fora da própria história. O sentido da história só irá se revelar no dia em que
a história acabar. Como nós somos pessoas que pertencemos à história, e
entramos e saímos da história o tempo todo – não tem gente nascendo e
morrendo o tempo todo? A nossa espécie entra e sai da história o tempo
todo, nós não saberemos nunca o que é de fato a história a não ser quando
a história acabar, e então nós teremos a revelação do sentido da história.
O que o Boécio quer com essa conversa aqui? Ele está interessado em deixar
uma recomendação dizendo isso que eu acabei de falar. Segundo, ele está
obviamente usando isso pra si próprio, como método de consolação dele
mesmo. Pra poder fazer isso ele desenvolveu uma metodologia literária, ele
inventou uma ficção, né? Ele inventou uma historinha ficcional que permi-
te então que até mesmo nos aspectos condenáveis do que se pensava na
época pudessem de alguma maneira ser confrontados aqui com uma visão
melhor. Essa é a beleza do texto do Boécio, porque ele se presta a essas coi-
sas todas ao mesmo tempo.
seu sogro, sua mulher e seus filhos estavam vivos. Boécio concorda com certa
Em suma: ninguém está contente com a sua situação, e cada situação comporta um
aspecto que não se nota a menos que seja experimentado, e quem o experimenta
sabe quão ruim ele é. Acrescento ainda o caso das pessoas mais favorecidas pela For-
as abate: é preciso muito pouco para tirar os afortunados de sua felicidade; a menor
adversidade as abate.
PROF. MONIR: Qualquer atraso de três horas te deixa furioso, porque você
estava indo pra Europa passar três meses morar em Cannes, nos Alpes... En-
tendeu? Ele tá dizendo isso, mesmo pra quem tem muito sucesso, qualquer
pequena coisa da vida parece ser uma desgraça.
quantos não se sentiriam muito afortunados se tivessem uma pequena parte daqui-
“uma vez que, naqueles que se satisfazem facilmente, ela não dura para sempre, e que
aqueles que se beneficiam muito dela estão sempre descontentes.” Ela decide mos-
trar a Boécio que a verdadeira felicidade consiste em se ter aquilo que a morte
não consegue arrebatar e que isto não pode estar no mundo material, porque
a morte faz cessar o sucesso material dado pela Fortuna. “Então pergunto: como
em seu termo?”
II.9
Nesta altura da terapia, a Filosofia decide usar remédios mais fortes. Demonstra
que têm verdadeiro valor apenas os bens que pertencem apenas a nós, o que
não é o caso das riquezas, que parecem “ter mais valor quando se vão do que
PROF. MONIR: No sentido de que o dinheiro parece ter valor quando se gas-
ta, não é? Se você tivesse um bilhão de dólares numa ilha deserta, esse bi-
lhão não teria valor nenhum a não ser como combustível de fogueira. Mas o
bilhão de dólares só tem valor porque existem shopping centers, agências de
automóveis, enfim, porque o dinheiro só tem valor na medida em que você
Uma vez que não é possível manter algo que só tem valor se for trocado, o dinheiro
só tem valor quando muda de mãos e deixamos de possuí-lo. Por outro lado, se todo
mais o teria. Muita gente no mundo se empenha em obter riquezas a todo custo, mas
sim, os que as possuíam devem necessariamente ficar mais pobres. Portanto, como
são limitadas e lastimáveis essas riquezas que não podem ser possuídas em sua to-
talidade por muitos ao mesmo tempo, nem se tornar propriedade de um sem deixar
PROF. MONIR: Isso é absolutamente verdade e essa é a razão pela qual exis-
te uma ciência chamada economia. Eu tinha um aluno no Rio de Janeiro,
num curso de transporte, que era engraçadíssimo. Ele tinha uma tese que
ele construiu a vida inteira contra essa ideia. Ele dizia assim: “Bom, mas peraí,
eu não admito que digam que o problema é falta de dinheiro. Eu tenho um
Argumenta que o brilho das pedras preciosas são “a luz própria das pedras, não
dos homens” e considera surpreendente que tais coisas suscitem nos homens
tamanha admiração.
Mas por que todo esse alarde com relação à Fortuna? Creio que é por temeres a ca-
motivo de grande preocupação ter de zelar por seus objetos preciosos, quando se os
damos grande importância a essas coisas, nos contentamos com o que nos dá a
Natureza e não temos uma ambição muito grande. Acaso não tens verdadeiramente
nenhum bem que seja teu próprio e inerente à tua natureza, para que seja preciso
procurares bens em objetos externos e estranhos a ti? A ordem das coisas se inverte a
tal ponto que um ser vivo, racional e feito à imagem de Deus, crê poder distinguir-se
Ele, o Criador, quis que os homens estivessem acima de todas as criaturas terrestres, e
vós vos aviltais colocando-vos abaixo do que é mais vil. Com efeito, se é evidente que
todo o bem pertencente a outro vos parece mais valioso do que para aquele que o
possui, quando considerais que os objetos mais insignificantes são bens para vós, en-
tão vos colocais a vós mesmos como inferiores a esses objetos. E, de fato, esse raciocí-
nio é exato; pois assim é a natureza humana: superior a todo o resto da criação quan-
do usa de suas faculdades racionais, mas da mais baixa condição quando cessa de
ser o que realmente é. Nos animais, essa ignorância de si mesmos é inerente à sua na-
tureza; no homem, é uma degradação. Como é grande o vosso erro, quando pensais
em vos exaltar com coisas externas! É algo inconcebível! E ademais, quando alguém
se distingue pelos ornamentos que ostenta, são os ornamentos que são admirados,
e não quem os traz. E afirmo ainda: não há bem material que não cause algum mal
a quem o possui. Dirás que minto? Tu não o negarias. Ora, as riquezas muitas vezes
dos bens dos outros, acreditam ser seu direito possuir todo o ouro e coisas preciosas
punhal, se tivesses entrado na estrada da vida sem fortuna, poderias viver cantando
*************
INTERVALO
*************
II.11
que a virtude não se adquire por causa das honrarias, mas são as honrarias que
E de que se trata afinal esse poder que achais tão desejável e vos comove tanto? Po-
bres mortais! Não vedes quem sois e a quem acreditais comandar? Se vísseis numa
assembléia de ratos um deles reivindicar e querer exercer sua autoridade sobre todos
os outros ratos, com que gargalhadas não seria recebida essa sua pretensão? (pág.
43)
tirano que pensasse poder fazer, por meio da tortura, um homem livre denunciar os
vor tornar-se-iam para o sábio uma oportunidade de mostrar sua virtude. (pág. 43)
O fato é o seguinte: é que vós vos costumais dar às coisas, independentemente do que
elas são, denominações falsas, cujo caráter enganador se revela facilmente quando
passam pelo crivo da verdade, que elas costumam esconder. E é por esse motivo que
não podemos verdadeiramente falar delas como sendo riquezas, poder ou honrarias.
Enfim, podemos dizer o mesmo a respeito da Fortuna: não há nada nela que me-
reça ser procurado, não há nada nela que seja intrinsecamente bom, uma vez que
ela também beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se
II.13
bição de sucesso neste mundo”, mas apenas tentou evitar que suas habilidades
manos habitam uma ínfima parcela do universo e até do planeta: “E o que tem de
Segue-se daí que o homem que busca a fama não tira o menor proveito de ter seu
nome espalhado pela multidão dos povos. Cada um, portanto, se satisfará em ver
sua fama propagar-se entre os seus, e a sua tão falada imortalidade se restringirá às
fronteiras de uma só nação. E quantos homens que foram célebres em seu tempo
não caíram no esquecimento por não terem deixado nenhum escrito! No entanto,
qual a utilidade de tais escritos, que desaparecem junto com seus autores na escu-
de, por que razão te alegras da longevidade de tua fama? (pág. 47)
PROF. MONIR: Os romanos tinham um ditado maravilhoso pra isso: sic tran-
sit gloria mundi. Significa: “é assim que passa a glória do mundo”. Então o
sujeito era importante e famoso, depois não se sabe nada mais sobre ele,
ele desaparece no passado pra nunca mais ser lembrado. Então toda a fama
humana é precária. É isso que ela está dizendo aqui, e vai continuar defen-
dendo essa tese.
(...)
Segue-se que a fama de alguém, seja qual for sua extensão, se comparada à eterni-
dade, cujo fim jamais se atinge, mostra-se não apenas de pouco impacto, mas, na
realidade, quase inexistente. E ainda por cima vós, para obtê-la, deveis granjear o fa-
vor do povo e dos vagos boatos para saber como agir de maneira conveniente, des-
(...)
buscar a glória com suas virtudes, uma vez que tudo acaba com a morte e a destrui-
ção do corpo? Isso, se é verdade o que dizem (coisa com a qual não posso absoluta-
mente concordar): que extintos os homens, sua fama cessa com eles, pois ela se atri-
bui a alguém que já não existe. Mas e pelo contrário a alma, consciente de si mesma,
ganha os céus depois de se libertar desta prisão terrestre, não irá ela desprezar todas
as suas antigas preocupações, uma vez que, tendo ganhado o Céu, pouco se impor-
PROF. MONIR: Vocês percebem que, no fundo, o que está por trás do que ele
está dizendo é a doutrina cristã? Ele está defendendo o cristianismo com
argumentos platônicos e aristotélicos, com argumentos filosóficos. Isso é o
que se chama depois de escolástica. Ele no fundo está defendendo aqui um
princípio cristão do mundo. Antes dele, é verdade, veio toda a patrística, e
veio Santo Agostinho, digamos num ponto mais alto, mas ninguém ousou
até Boécio tentar argumentar com argumentos filosóficos. Até mesmo havia
quem achasse que isso era uma espécie de sacrilégio, que não se podia fazer
isso de jeito nenhum.
Então ele está dizendo assim: “Eu também não posso concordar de jeito ne-
nhum com a ideia de que quando a pessoa morre, tudo acaba. Porque, se
fosse assim, se quando você morresse não houvesse mais nada, então me-
lhor seria mesmo se você tivesse comido mais quindins”. Teria sido melhor
negócio. Mas se isso não é assim, tem que ter outra coisa. E isso é aceito
tanto pelo platonismo, que veio quatrocentos anos antes (que acha que a
alma é imortal), quanto pelo cristianismo. Tanto na filosofia antiga quanto
no cristianismo existe aí uma concordância fundamental sobre o fato de
que o processo não se extingue com a morte. É isso que ele está dizendo.
Mas não quero que penses que estou a travar um combate impiedoso contra a Fortu-
na; por vezes acontece de ela não enganar os homens, mas esclarecê-los. Tal é o caso
quando ela se desmascara e mostra seus métodos de ação. Talvez não compreendas
ainda o sentido de minhas palavras. Há um motivo para ficares surpreso com minha
lavras adequadas para exprimir meu pensamento. Eis o que penso: A Fortuna é mais
benéfica aos seres humanos quando se mostra adversa do que quando se mostra
PROF. MONIR: É melhor se dar mal na vida do que bem. [risos] E eu que ti-
nha achado que é melhor ser rico com saúde do que pobre doente! Sempre
achei que isso era uma espécie de conclusão imbatível, né? Só que agora
estamos sendo contestados aqui pela Filosofia. Quer dizer, se você quiser
compreender Dostoiévski, a obra inteira dele, é essa linha que está aqui. O
Dostoiévski acha que o destino da vida humana é a perdição, e que a única
redenção possível é a espiritual. O Dostoiévski acha isso mesmo. Ele costu-
mava dizer que a única coisa de que ele tinha medo era de não conseguir
sofrer de modo decente e com honradez pessoal. Ela está querendo nos
dizer que às vezes é melhor você não ser mais enganado... que isso pode
parecer um problema no começo, mas depois não é bem assim. O que leva-
rá essa conversa para a própria dúvida sobre os desígnios de Deus. Por que
acontecem coisas que aparentemente são ruins? A vida humana é cheia de
coisas ruins, de que nós certamente não gostamos. Eles estão tornando esse
diálogo cada vez mais profundo. Se fosse feito no jeito platônico, seria um
diálogo muito parecido com o de Platão, de alguma maneira. Claro que não
foi escrito desse jeito, embora o Boécio tenha lido todo o Platão, porque
(...)
Acaso achas de pouca importância o fato de esta severa e temível Fortuna te reve-
lar quem são teus verdadeiros amigos, distinguir a franqueza e a hipocrisia de teus
companheiros e levar o que te foi dado por ela para deixar apenas o que é teu? Por
que preço buscarias adquirir esse discernimento quando não estavas abalado pela
isso mesmo tua mais preciosa riqueza: teus verdadeiros amigos. (págs. 50-51)
PROF. MONIR: Pra entender esse trecho, é só lembrar que ele saiu em defesa
de um colega e foi condenado à morte pelo Senado. Porque funcionava o
sistema jurídico romano, no tempo de Boécio. Não havia um sistema tirâni-
co. Claro que havia tiranias também, mas pra condenar um senador à morte,
você não faz isso assim porque quer. Você passa a responsabilidade para os
outros, alguma mediação tem que ter. Então o Boécio, apesar de ser defen-
sor intransigente dos seus colegas de Senado, foi condenado pelo parecer
do Senado. Ou seja, ficou claro quem era amigo dele e quem não era, quan-
do a Fortuna tirou as asas de cima de Boécio. Ela está dizendo que às vezes
é melhor saber a verdade do que ficar se iludindo.
Livro III
III.1
que antes pareciam “fortes demais.” A Filosofia anuncia então a Boécio que iria
Os mortais têm todos uma única preocupação pela qual não medem esforços, seja
qual for o caminho tomado, o objetivo é sempre o mesmo: a felicidade. Ora, trata-se
de um bem que, ao ser obtido, não deixa lugar para nenhum outro desejo. E é real-
mente o bem supremo, que contém em si mesmo todos os bens. É para aí, como dis-
semos anteriormente, que todos os mortais se dirigem pelos mais diversos caminhos.
Com efeito, todos os homens têm em si o desejo inato do bem verdadeiro, mas os
der supremo: “A maioria acredita ter obtido o soberano bem quando estão alegres
Para alguns, esses bens se transformam indiferentemente em meio ou fim. Dessa for-
ma, vemos homens desejar a riqueza para adquirir o poder, enquanto outros buscam
Mas nós tínhamos definido bem supremo como sendo a felicidade; dessa forma,
cada um considera que a felicidade reside naquilo que deseja mais do que qualquer
outra coisa. Assim, tens sob teus olhos as diversas formas de felicidade que os ho-
mens concebem: riquezas, honras, poder, glória, prazeres. É sem dúvida alguma pelo
fato de tomar apenas tais coisas em consideração que Epicuro, seguindo a lógica, foi
persuadido de que o soberano bem fosse o prazer, uma vez que todos os outros bens
Se você tem dúvida disso, de que o prazer seja quantitativo, tente comer
oitenta e dois quindins, pra você ver como a diferença entre gostar ou não
de quindins só depende da quantidade de quindins que você come. Não há
diferença nenhuma diferença de qualidade, só de quantidade. O René Gué-
non, no livro O Reino da Quantidade, demonstra facilmente isso mostran-
do que o que caracteriza a existência humana como tal é o fato de ela ser
uma existência qualitativa. E qualquer tentativa de transformar a existência
humana num aspecto quantitativo é uma degeneração ontológica. É uma
maneira de nós desistirmos de sermos seres humanos e sermos uma coisa
qualquer. Um cartão de crédito ambulante. Alguma coisa desse gênero.
franca/noticia/2012/04/morte-de-crianca-com-anencefalia-no-interior-de-sp-vai-completar-
Veja, pessoal, tem coisas que a gente não pode fazer. Por exemplo, clona-
gem. Na Folha de São Paulo tem hoje um artigo do Dráuzio Varella que diz
assim: “Depois da Dolly, como se pode ser contra a clonagem?” Pra quem
não sabe, a Dolly é uma ovelha que foi duplicada. Se você pega essas ár-
vores aí, são todas irmãs gêmeas, já existe isso no reino vegetal. Agora, o
próximo passo que esse pessoal vai propor é fazer clonagem de pessoas.
E porque eu não posso fazer clonagem de pessoas, mesmo tendo possibi-
lidade tecnológica pra isso? Porque eu não posso inventar um sujeito que
não tem pai nem mãe. Eu estou moralmente proibido de inventar alguém
que não tem referência familiar nenhuma, porque o clonado é um ser que
vive numa espécie de vácuo existencial. Ele não tem pai, não tem mãe, ele
não tem uma história familiar. Ele não tem nada. É um ser mecânico. Vocês
compreendem que é por isso que eu não posso fazer clonagem humana? E
a eutanásia é o mesmo problema. Eu não sei se eu posso interferir naquela
situação por minha própria vontade porque talvez aquilo tenha um sentido
que eu não seja capaz de perceber. Essas coisas todas são derivadas do fato
de que nós não conhecemos os mistérios do mundo. Eu não estou dizendo
que nós não somos capazes de conhecer coisas, porque se eu dissesse isso
III.5
ver em sonhos vossa origem e entrever o verdadeiro fim que é a felicidade através de
uma percepção que, embora não seja clara, tem ao menos o mérito de existir; e é por
essa razão que, de um lado, vossa inclinação natural vos leva ao verdadeiro bem,
mas, de outro, vossa cegueira quanto aos seus inumeráveis aspectos afasta-vos dele.
(pág. 59)
Isto acontece, continua a Filosofia, porque estes bens não oferecem o que foi re-
que não estavas satisfeito no meio daquele monte de riquezas?” pergunta a Filosofia
a Boécio. Como Boécio responde “sim” a Filosofia o faz notar que o dinheiro não
tem a propriedade de não ser roubado e que é necessária ajuda alheia para
protegê-lo.
Por conseqüência, chegamos a uma conclusão que contradiz a hipótese inicial: com
verdade seu possuidor dependente de ajuda alheia. Ora, de que maneira as riquezas
podem nos libertar de certas dependências? É verdade que os ricos não passam fome
nem sede. Seu corpo também não sente o frio invernal. Sim, dir-me-ás, os ricos têm
sempre com o que matar a fome, a sede, o frio. Dessa forma, as riquezas podem sem-
pre tornar mais suportável a dependência, mas elas não a suprimem. Com efeito, se a
necessidade, esta eterna boca escancarada ao fluxo das coisas, encontra a sua satis-
fação nas riquezas, resta sempre uma nova necessidade a ser satisfeita. Isso sem dizer
que é preciso muito pouco para satisfazer a Natureza, enquanto nada é o bastante
própria necessidade, como poderíeis crer que elas podem oferecer uma garantia de
III.7
Mas tu me dirias: ‘As honrarias e os altos cargos proporcionam àqueles que os exer-
o que explica nossa indignação ao vê-las cair nas mãos dos criminosos: eis por que
Catulo, sem levar em conta a cadeira curul onde se assentava Nório, deu-lhe o apeli-
PROF. MONIR: Esse Catulo era um poeta, um pouco anterior, que viveu um
pouco antes de Cristo. Ele não dava a ninguém importância pelo seu cargo,
e era capaz de xingar os poderosos.
A Filosofia discorre sobre o fato de não haver coincidência entre virtude e poder:
“É com efeito impossível adivinharmos por que as funções honoríficas dignas de res-
E para que reconheças que essas honras, que não têm valor em si mesmas, não pro-
exerceu por várias vezes a função de cônsul encontra-se de passagem entre os povos
bárbaros, essas distinções honoríficas torná-lo-ão mais respeitável aos olhos daque-
les povos? Ora, se as honrarias possuíssem algum poder por si mesmas, elas sempre se
distinguiriam onde quer que fosse, tal como o fogo que aquece da mesma maneira
por toda a Terra; mas uma vez que essas distinções não possuem tal propriedade,
III.8
PROF. MONIR: Que é o Nero. O fato de que Nero se vestia muito bonito, fi-
cava muito pintoso assim, mas não o tornava um sujeito melhor. Um sapo
dentro de uma gaiola de ouro continua sendo um sapo, não é um canário.
A realeza e a familiaridade com os reis podem tornar alguém poderoso? Não posso
negá-lo, se sua felicidade dura até o fim de sua vida; mas a Antigüidade e nosso sé-
em catástrofe. Ó raro poder que não consegue nem conservar-se a si mesmo! Pois,
se o poder real proporciona a felicidade, não é necessário admitir que, assim que ele
mem que quer mais do que pode, que só anda cercado de guardas, que teme mais
do que é temido e cujo poder se manifesta apenas com o consentimento de seus su-
bordinados”.
É como Sócrates, que quando é condenado à morte, diz assim: “Bom, pesso-
al, então terminado o julgamento, vamos embora. Eu vou para a morte, vo-
cês vão pra vida. Só Deus sabe quem faz o melhor negócio”. É o que Sócrates
diz nas últimas linhas da Apologia. Mostrando que como para ele, Sócrates,
nunca interessaram questões do mundo, ele então se encontrava num es-
tado talvez até privilegiado, porque “no outro mundo seguramente haverá
pelo menos justiça”, ele diz assim para debochar do tribunal.
III.10
III.11
Quanto à glória, quantas vezes ela nos engana! Como ela é vergonhosa! Assim, o trá-
gico estava com a razão ao exclamar: ‘Ó glória, ó glória! Quantos vis mortais, Graças
Muitas pessoas, com efeito, devem seu renome às opiniões errôneas da multidão: o
que pode ser mais vergonhoso que isso? Aqueles que são festejados injustamente de-
vem certamente enrubescer ao ouvir os elogios que lhe são feitos. E, mesmo quando
o mérito está na origem da glória, o que pode ela acrescentar à consciência do sábio,
que avalia o que é bom ou não em si, e não se apega ao rumor do público, mas à
III.13
E o que eu poderia dizer dos prazeres sensuais, cuja busca é sempre acompanhada
7 Eurípedes, Andrômaca.
frutam? Confesso ignorar que tipo de atrativo pode-se encontrar aí. Mas basta que
sofrimento. E, se os prazeres podem conduzir à felicidade, por que então não afirma-
ríamos que também os animais conhecem a felicidade, uma vez que todos os seus
III.15
Portanto, está fora de dúvida que esses caminhos para a felicidade levam a um beco
sem saída e não ao lugar aonde prometeram levar. Mostrar-te-ei como essas me-
tas são mal conduzidas desde o princípio. Vejamos: tu queres te esforçar para ficar
rico? Mas para isso terás de tornar alguém pobre. Pretendes alcançar o brilho das
honrarias? Mas para isso será necessário suplicar àqueles que as conferem, e tu, que
poder? Lembra-te de que sempre correrás o risco de uma traição por parte dos teus
é árduo, difícil e cheio de perigos. Desejas levar uma vida de prazeres? Ora, quem não
desprezaria e rejeitaria o escravo de uma coisa tão banal e vulnerável como o teu
III.17
‘Até agora eu te mostrei as falsas formas de felicidade, e que isso baste. Chegou o mo-
mento de te mostrar a verdadeira.’ E eu disse: ‘Vejo claramente que não se pode en-
Perguntada por Boécio por que isso ocorre, a Filosofia explica que “o erro huma-
e o perfeito no imperfeito”.
A Filosofia explica a Boécio que é a procura da parte e não do todo que empurra
PROF. MONIR: Agora a Sabedoria vai explicar o que é isso de tentar dividir o
que é uno. Vamos ver como ela nos explica:
e feliz. E a prova que dou de ter compreendido tudo é que reconheço sem hesitação
que é absolutamente feliz aquele que pode realizar apenas um dos bens citados
previamente, já que eles são todos o único e mesmo bem.’ Ela respondeu: ‘Meu caro
discípulo! Essa maneira de pensar fará a tua felicidade se lhe acrescentares o que se
segue.’ ‘E o que é?’, perguntei. ‘Esses bens mortais e perecíveis têm, segundo pensas, a
‘Estou convencido disso’, disse eu. ‘Nessas condições, já que sabes distinguir a verda-
deira felicidade de suas cópias, resta-te apenas descobrir onde podes encontrar a ver-
dadeira felicidade’. ‘É isso mesmo que há muito tempo ansiosamente procuro saber’.
E ela disse: ‘Mas já que, como diz nosso caro Platão no Timeu, é preciso, mesmo em
ocasiões sem grande importância, implorar o auxílio divino, que achas que devemos
todas as coisas, pois esse é o ritual com que se começam todas as coisas, respondi.’
Quando ele foi canonizado no século XIX houve grande polêmica, porque
alguns acham que ele não morreu em nome da Igreja. Ele não foi martiri-
zado pelo cristianismo... não parece mesmo que foi, né? No fundo ele está
sendo martirizado pela filosofia. Mas se você prestar atenção, atrás de tudo
que Boécio fala há uma clara estrutura cristã. Não há nenhuma dúvida disso.
Portanto, é completamente justo considerá-lo mártir da Igreja, porque ele
de fato é isso. A sua canonização tem todo o sentido do mundo. Embora
ninguém o chame de São Severino Boécio. Santo Agostinho, Santo Tomás,
todos eles ficaram santos no próprio nome, né? Mas Boécio, não. A Boécio
as pessoas referem-se apenas como Boécio. Há muito livro de história da
filosofia que não sabe nem reconhecer a canonização.
Desse modo, uma vez que já viste as formas que reveste o bem imperfeito assim como
as que reveste o bem perfeito, creio agora ser preciso te mostrar onde se encontra a
perfeita felicidade. A esse respeito julgo ser necessário antes de tudo perguntarmos
se um bem tal como o que acabas de definir pode existir na realidade deste mundo;
caso contrário, poderíamos passar ao lado da verdade sem vê-la e deixarmo-nos en-
que esse bem existe e é a fonte de todos os bens, o que é inegável. Com efeito, tudo o
também necessariamente nesse campo algo que seja perfeito. Pois, se não admiti-
mos que a perfeição existe, não poderíamos sequer imaginar como aquilo que é tido
Alunos: [risos]
A Filosofia explica a Boécio que o universo não foi criado a partir de elementos
Agora, se queres saber onde ela (a perfeição) se encontra, eis como deves raciocinar.
bom. E, como não podemos conceber nada melhor do que Deus, quem poderia du-
vidar de que aquilo que é melhor que todo o resto seja bom? Portanto, nossos raciocí-
nios mostram que Deus é bom a tal ponto que está fora de dúvida que o bem perfeito
também está presente nele. Caso contrário, Deus não poderia ser o princípio de todas
as coisas. Pois, se houvesse algo que possuísse o bem perfeito e parecesse ser anterior
a Deus e mais velho que ele, isso teria preeminência sobre Deus, pois tudo o que é per-
feito parece evidentemente ser o primeiro quanto a algo que é de certa forma deriva-
do. Eis por que, para evitar prolongar o raciocínio infinitamente, é preciso admitir que
Alunos: [risos]
Como Boécio concorda, a Filosofia o adverte que Deus e a felicidade são a mes-
de Deus, logo “é preciso admitir que Deus é a suprema felicidade”. Ela reforça a tese.
‘Examinemos agora’, disse ela, ‘se podemos provar tal afirmação de maneira mais
sólida partindo da seguinte proposição: não podem existir dois soberanos bens que
difiram um do outro. Pois, quando dois bens são diferentes um do outro, fica claro
perfeito dado que um falta ao outro. Mas o que não é perfeito evidentemente não é o
rir entre si. Ora, havíamos concluído que a felicidade e Deus são o soberano bem, por-
PROF. MONIR: E é por isso que é muito difícil definir Deus. Todo o processo
de definição é, necessariamente, um processo de restrição. Então quando
eu defino um mamífero, estou dizendo que o mamífero é um tipo de animal
que amamenta os filhos. Então quando eu defino um mamífero, eu estou
dizendo que aos mamíferos não é dada a capacidade de botar ovos. Então
falta aos mamíferos a ovoparidade. E às galinhas falta a viviparidade. Então
esses dois não podem ser o todo, porque cada um deles tem uma falta. En-
tão, ao definir, eu limito. Como eu não posso definir Deus de verdade, em
última análise – os metafísicos orientais costumam dizer que Deus é aquele
que não é. Porque ao dizer como a coisa é, eu também estou dizendo neces-
sariamente que ela não é outra coisa. Então é melhor não tentar dizer o que
Deus é, porque eu vou acabar dizendo que falta alguma parte, e aí então
não será mais Deus. É claro que é impossível para a mente humana definir
Deus verdadeiramente. É esse o sentido do que se está dizendo aí. Não dá
pra definir Deus, essa é que é a questão. Nós conhecemos aspectos de Deus,
mas não podemos conhecê-lo inteiro, não dá.
A Filosofia demonstra que é pela aquisição de justiça que as pessoas ficam jus-
tas; pela aquisição de sabedoria que elas ficam sábias, logo é só pela aquisição
do divino que elas podem se tornar felizes, “por conseguinte, todo homem feliz
seria um deus”.
buscamos o poder é porque ele também é tido como um bem; da mesma maneira
Por conseguinte, a essência e a causa de tudo o que é desejável é o bem. (pág. 80)
Como a felicidade e Deus são a mesma coisa, é forçoso reconhecer que o bem
PROF. MONIR: No entanto, se você se põe a pegar apenas uma parte – por
exemplo, o poder –, aí você vai tentar dividir o indivisível e aí vai apenas er-
rar. Então, o que ele está dizendo é que não é possível desvincular as coisas,
porque o bem é Deus, é uma coisa só. Essa é uma ideia de Parmênides, é
uma ideia que ele aprendeu com os eleatas. É uma ideia dos pré-socráticos.
III.21
‘Não havíamos demonstrado que as coisas que muitas pessoas buscam não são
bens verdadeiros nem perfeitos, pela simples razão de que eles diferem entre si e que,
como um falta ao outro, eles não podem proporcionar bem absoluto em sua ple-
nitude? Ora, não havíamos também demonstrado que o verdadeiro bem somente
existe quando todos os bens se reúnem para produzir uma só forma e um só efeito;
mesmos não possuem nada que lhes permita ser considerados bens desejáveis?’ ‘Sim’,
respondi, ‘e quanto a isso não resta mais dúvida’. ‘Por conseguinte, as coisas não são
bens verdadeiros quando diferem entre si, mas somente quando tendem a formar
uma unidade é que começam a sê-lo. Não acontece de elas se tornarem bens quan-
do realizam plenamente sua unidade?’ ‘Parece que sim’, respondi. E ela: ‘Mas dize-me
sim ou não: concordas que tudo o que é um bem o é pela sua participação no bem
supremo?’ ‘Sim’. ‘Tu deves então admitir, devido ao mesmo raciocínio, que o uno e o
bem são a mesma coisa: com efeito, as coisas que por natureza não provocam efei-
tos diferentes têm a mesma substância’. ‘É impossível negá-lo’, disse eu. E ela acrescen-
tou: ‘Sabes então que tudo o que existe subsiste tal qual é durante o tempo em que é
uno, e que morre e que se desagrega quando deixa de ser uno?’ (págs. 82-83)
PROF. MONIR: Então o que ele vai continuar fazendo agora é desenvolver a
ideia de Parmênides de que o que caracteriza a vida é que tudo tenta per-
manecer uno, por exemplo, a nossa alma com o nosso corpo. O que é tentar
manter-se vivo? É tentar manter essas duas coisas juntas, porque na hora em
que essas duas coisas se separam, o corpo vai pro cemitério e a alma vai pra
algum lugar que você não sabe qual é. Tudo o que existe no mundo tenta
manter-se uno. E ele com isso tenta demonstrar que se a gente seguir essa
regra do mundo e do cosmos, só tem uma saída pra nossa existência, que
é impedir a segmentação, é continuarmos desejando Deus, porque Deus é
que unifica tudo, é isso que ele quer dizer no diálogo em seguida.
que “todas essas espécies são como mecanismos vivos concebidos não apenas para
subsistir por certo tempo, mas também para adquirir cada qual uma espécie de eter-
nidade”.
Quanto aos seres que se acredita serem inanimados, também eles, segundo a mes-
ma lógica, não procuram o que lhes é próprio? Por que o fogo sobe verticalmente
levado por sua leveza, e a terra, devido a seu peso, segue o caminho oposto, senão
pelo fato de esses movimentos estarem conformes à sua natureza? Prossigamos nos-
so raciocínio: tudo o que está de acordo com uma outra coisa a preserva e, no sentido
oposto, tudo o que lhe é hostil a destrói. E os corpos sólidos, como as pedras, mantêm
suas partes firmes e não se deixam degradar facilmente. Quanto aos líquidos, bem
como ao ar e à água, é verdade que se deixam dividir facilmente, mas, uma vez dividi-
dos, logo se reconstituem; quanto ao fogo, este é impossível de ser dividido. (pág. 85)
A conclusão é de que tudo que existe busca sua perenidade e evita sua des-
truição a todo o custo. Boécio então conclui que todas as coisas que desejam
E ela exclamou: ‘Oh, meu discípulo, como estou contente! Pois acabas de desvendar
aquilo que constitui o centro da verdade! Acabas de dizer precisamente aquilo que
julgavas ignorar’. ‘O quê?’, perguntei. ‘Qual é o fim de todas as coisas?’ ‘Aquilo que sem
bem, temos de reconhecer que o fim de todas as coisas é o bem’. (pág. 86)
III.23
vez que tu me dizes essa verdade: na primeira vez perdi a memória devido à contami-
Boécio diz ter chegado à conclusão de que este universo, composto por partes
tão díspares e opostas entre si, não poderia ser constituído numa forma única
seus elementos a menos que houvesse um ser único capaz de manter a coesão
PROF. MONIR: Isso não é assim porque a vida diz que é assim, é assim porque
ele acabou de demonstrar isso filosoficamente. Entenderam onde é que o
Boécio entra com uma coisa completamente nova na história da inteligên-
cia humana? Ele acabou de demonstrar que isso é assim porque é obriga-
“bem supremo que dirige com o seu poder todas as coisas e as dispõe com harmonia”
nada pode se opor contra ele, e logo o mal não existe, “pois mesmo o que pode tudo
PROF. MONIR: Porque ele não pode ser autocontraditório. Se Deus é cem
por cento bem, não é possível Deus fazer o mal. E essa é obviamente uma
questão muito séria, porque é a principal restrição que as pessoas têm con-
tra Deus: “Poxa, mas como é que pode existir um Deus se acabou de haver
um acidente em que vinte crianças caíram num barranco, morreram afo-
gadas numa represa?” “E o tsunami, tinha trinta sujeitos de férias e todos
morreram? Como é que pode ter um Deus que faça isso?” Essa é a origem da
rebelião do século XX. O Ivan Karamazov, que é uma das personagens cen-
trais do livro Irmãos Karamazov, ele tem essa tese: “Eu não sou contra Deus,
eu sou contra a obra de Deus, mas que porcaria!” Então o sujeito acha que
a associação entre o Partido Comunista e o SUS vai fazer melhor. Entendeu
a estupidez contemporânea, a que ponto chega? Então o sujeito acha que
Deus é tão incompetente, tão burro, então seguramente o Partido Comunis-
ta mais um grupo de professores de Filosofia da Federal mais o SUS e mais
o Exército da Salvação vão fazer melhor do que Deus. E essa é a origem de
toda a rebelião metafísica do século XX que o Albert Camus conta no livro O
Homem Revoltado, justamente sobre isso.
Então ele vai discutir em seguida os desígnios de Deus. Isso é muito impor-
tante, e ele começa em primeiro lugar negando a possibilidade de que o mal
Mas existem outras dualidades que não são assim. Por exemplo, claro e es-
curo. Claro e escuro se excluem mutuamente. Se eu apertar o interruptor,
vai ficar escuro. Se eu voltar a acender, vai ficar claro. Então como o claro e o
escuro se excluem mutuamente, um só existe como ausência do outro. Sob
esse ponto de vista, o mal não tem uma existência real e concreta, mas o mal
é uma espécie de ausência do bem. Entenderam?
Livro IV
IV.1
Tu, que conduzes à verdadeira luz, sabes que todas as afirmações que me fizeste até
agora pareceram-me não só divinas mas também irrefutáveis pela lógica de teus ar-
Mas talvez a principal razão de minhas angústias seja que, apesar da existência de
um ser bom que comanda o universo, o mal possa existir e até ficar impune.
ção é pior ainda: enquanto o vício reina e prospera, a virtude não apenas não recebe
recompensa alguma, mas também é calcada pelos pés dos celerados e levada ao
suplício em lugar do crime. Que tais coisas aconteçam no reino de um Deus oniscien-
te, onipotente e que quer apenas o bem faz com que as pessoas fiquem admiradas e
PROF. MONIR: O que ele tá fazendo é a acusação que eu fiz agora há pouco:
como é que Deus permite que isso dê certo? Então o que a Filosofia fará em
seguida é justificar do modo como eu já fiz, demonstrando que na verda-
de essas pessoas querem o bem. Os sujeitos que são maus, eles querem o
bem, mas eles não sabem... porque para fazer que alguma coisa funcione,
é preciso você ter vontade e capacidade. Por exemplo, se você quer esquiar
na neve, é preciso que você queira fazer isso e ao mesmo tempo saiba fa-
zer isso. E o problema dos maus é que eles querem uma espécie de bem, a
vontade está voltada para o bem, mas, no entanto, eles não sabem como
fazê-lo. Aí então, como não sabem como fazê-lo, eles acham que fazer uma
coisa em busca do poder, por exemplo, à custa de qualquer coisa é bom.
Portanto, a inexistência da sabedoria é que é o sentido da ignorância. Ou
seja, é a treva no lugar da luz que produz essa ação equivocada dessas pes-
soas. É isso que ela provará em seguida.
Para apaziguar o espírito de Boécio, a Filosofia demonstra que para que qual-
quer ação humana surta efeito são necessárias duas condições: a capacidade
tendem à felicidade: “Portanto todos, bons e maus procuram com a mesma dili-
Vê com efeito com que clareza se revela a natureza dos homens corrompidos, que
não podem sequer dirigir-se para onde sua tendência natural os leva – e eu diria até
Mas, nesse caso, não apenas cessam de ser fortes, como simplesmente deixam de ser.
Pois aqueles que renunciam àquilo a que tendem todas as coisas cessam ao mesmo
tempo de ser. Certamente parecerá estranho dizer eu que os maus, que são a maioria,
não existem; no entanto é exatamente o que ocorre. De fato, não afirmo apenas que
são maus, mas, sem hesitar, que eles simplesmente não são. Com efeito, tu poderias
homem; do mesmo modo eu poderia admitir que os malfeitores são homens maus,
mas não que eles participam do ser e da essência, no sentido absoluto do termo. Pois
para ser é preciso conservar a boa ordenação da alma e preservar a própria natureza;
ora, aquele que se afasta de sua natureza renuncia também a ser aquilo de que sua
Lembra-te agora do corolário que te mostrei agora há pouco, que é sumamente im-
portante e que foi concluído da seguinte maneira: uma vez que o bem em si é a felici-
dade, fica claro que todas as pessoas de bem tornam-se felizes precisamente porque
são boas. No entanto, é evidente que os que são felizes são deuses. Eis, portanto, a
recompensa dos bons, que nenhum jugo pode alterar e que maldade alguma pode
tocar: em verdade, eles se tornam deuses como partícipes da divindade. (pág. 104)
(...)
Acabaste de aprender que tudo o que é é uno, e essa unidade é o bem, donde resulta
que tudo o que é parece também ser o bem. Dessa forma, tudo o que se afasta do
bem deixa de existir; os maus deixam de ser, mas o fato de conservarem a aparência
física de um ser humano mostra que eles já foram verdadeiros homens. E é assim que,
afundando na maldade, eles perdem ao mesmo tempo sua natureza humana. Mas,
necessário concluirmos que a maldade rebaixa os que a ela se aplicam para aquém
PROF. MONIR: Para que vocês possam entender o que o Boécio vai dizer
agora, o que a Filosofia diz para ele é que toda a vez que você é ignorante, o
que você faz na verdade é parecer com um animal. Porque o sujeito muito
voltado para os seus prazeres fica parecendo com um porco, o sujeito que
pensa o tempo todo em intrigas políticas fica parecendo com uma raposa, o
sujeito que pensa o tempo todo em rapinar os outros parece com um leão
ou uma hiena, e assim por diante. O que acontece quando você desconhece
o bem é você perder a sua própria condição humana.
IV.7
Boécio concorda com que as pessoas más tenham perdido sua condição hu-
mana e tenham se transformado em bestas, mas prefeririam que elas não pu-
dessem exercer sua “infâmia e crueldade” livremente. A Filosofia reage: “Mas isso
têm sucesso em realizar aquilo que desejam do que quando são incapazes de
PROF. MONIR: Aqui tem uma coisa importantíssima: ele está criando a pre-
missa na qual se baseia a ideia da caridade cristã. Ele está criando aqui a
explicação filosófica para a caridade cristã. Porque a caridade cristã é um
processo pelo qual o exercedor da caridade recebe como prêmio e como
Se, com efeito, sua vileza os torna infelizes, o homem médio é necessariamente cada
vez mais infeliz enquanto sua vida vai se prolongando, e eu consideraria esses pobres
indivíduos os mais infelizes dos homens se a morte não pusesse um fim à sua malda-
ras, fica claro que a infelicidade é infinita quando a maldade é eterna. (págs. 108-109)
‘Tens razão’, disse ela, ‘e, se encontrarmos dificuldade em aderir a uma conclusão, é
preciso demonstrar que alguma das proposições anteriores é falsa ou então provar
são; caso contrário tendo sido aceitas as proposições anteriores, não se pode negar a
conclusão. O que vou acrescentar, portanto, pode parecer mais surpreendente ainda.
Mas é uma conclusão que é o resultado necessário daquilo que foi admitido como
Por força deste mesmo princípio, uma nova conclusão terá de ser aceita.
Portanto, os desonestos se beneficiam quando são punidos, pois uma parte do bem
lhes é acrescentada – trata-se precisamente de sua punição, que é boa porque é justa
mentar – trata-se da impunidade que reconheceste ser um mal devido à sua iniqüi-
dade’. ‘Não posso discordar’, disse eu. ‘Portanto, os desonestos são muito mais infelizes
(pág. 110)
Boécio concorda mas reage: “Quando examino teus argumentos, fico persuadido
de que não se pode dizer nada de mais verdadeiro. Mas, se considerarmos o juízo dos
homens, quem não acharia tuas idéias, já não digo críveis, mas nem sequer audíveis?”
É verdade o que dizes, pois as pessoas em geral são incapazes de elevar seus olhos
acabam por ser semelhantes aos pássaros, cujas faculdades visuais se intensificam à
ordem do universo, mas sobre seus próprios sentimentos, e crêem ser felizes por poder
cometer todo o tipo de má ação livre e impunemente. Mas vê o que prescreve a lei
eterna. Toma por modelo aquilo que há de melhor, e não terás mais necessidade de
Por outro lado, consagra-te ao que há de pior sem encontrar ninguém que te possa
A Filosofia demonstra que a partir do “princípio que diz que uma conduta vergo-
nhosa, por sua própria natureza, torna a pessoa que a pratica infeliz, parece-nos que
Ora, em nossos dias os advogados agem de maneira inversa. Com efeito, é um favor
daqueles que sofreram um dano grave e severo que tentam convencer o juiz, enquan-
to essa piedade deveria manifestar-se principalmente com relação aos culpados; es-
tes deveriam ser chamados à justiça não por acusadores encolerizados, mas benevo-
lentes e cheios de consideração, assim como os doentes que são levados ao médico,
de forma que o castigo os curasse completamente do mal ligado aos seus crimes.
Nessas condições, a presteza da defesa seria menos grave ou, então, se ela preferis-
juiz se lhes fosse permitido entrever por uma fresta a virtude que abandonaram e vis-
sem a possibilidade de se livrar do fardo de seus vícios. É dessa forma que os sábios
não experimentam a menor parcela de ódio. Pois quem poderia odiar os bons, senão
112-113)
Mas agora que vejo ocorrer o contrário, e os castigos reservados aos criminosos se
ses qual é a razão de um tal caos. Pois eu estaria menos surpreso se atribuísse essas
desordens aos efeitos do acaso. Mas o que me leva ao extremo do espanto é o fato de
IV.11
A Filosofia admite que a questão é complexa: “E, de fato, a questão é de tal ordem
que, se tocamos um só dos problemas que comporta, vão surgindo outros ao infinito,
como as cabeças de Hidra, e não se poderá deter seu ritmo senão graças a um recurso
especial da inteligência”.
Com efeito, ao abordar essa questão, habitualmente caímos em outras mais compli-
bítrio, questões essas cuja dificuldade bem podes avaliar. (pág. 116)
PROF. MONIR: E agora vamos ver, o que é muito importante, a Filosofia vai
explicar a diferença entre Providência e Destino.
Tudo o que vem ao mundo, todos os seres sujeitos à mudança e à evolução, tudo o
que se move de uma certa maneira, encontram sua causa, sua ordem e sua forma
fixa uma regra multiforme ao governo do universo. Quando se considera essa regra
quando se a considera com reação àquilo que ela põe em movimento e ordena, é o
que os antigos chamavam Destino. Ver-se-á facilmente que se trata de duas coisas
que pode mover-se, e pela qual a Providência reúne todas as coisas, cada uma no seu
Mas isso nos joga então para um outro problema, que é o seguinte: para
que o livre-arbítrio possa existir, Deus não poderia ter conhecimento prévio
do que eu vou fazer. Porque se Deus tem conhecimento prévio do que eu
vou fazer, se Deus tudo sabe, então não há livre-arbítrio, porque Deus sabe
exatamente o que eu vou fazer e portanto tudo já está desvendado desde o
início. Essa é a conclusão a que se chega, se você parte da premissa de que
esse mundo é uma espécie de grande jogo complexo organizado pela men-
te de Deus, a partir de um conjunto de predestinações que nós cumprimos
como se fôssemos autônomos. E o que vocês pensam pessoalmente? Há
livre-arbítrio no mundo, ou não há?
Deus sabe o que nós livremente escolhemos, porque Ele está vendo a
nossa escolha realizada, concreta, como se fosse presente o tempo todo.
PROF. MONIR: É que na verdade, muito mais importante do que a gente de-
bater se é possível algum processo de profecia... porque os profetas sempre
puderam dizer como era o futuro, mas os profetas diziam isso porque eles
falavam com Deus diretamente. Então o que caracteriza um profeta é al-
guém que fala diretamente com Deus e tem aquela informação que Deus
deu. Mas o que é importante entender aqui é que há uma diferença ontoló-
gica tremenda entre a existência humana, que é uma existência, digamos,
limitada pela ideia do tempo e do fluxo, que faz com que aqui no âmbito
humano não possa haver de fato Providência, o que há aqui no âmbito hu-
mano é a providência.
Então até sob o ponto da física você pode justificar isso. Ou seja, somente
um sujeito que tivesse velocidade infinita – o que só é possível pra Deus –,
teria uma visualização de todas as coisas ao mesmo tempo, teria portanto
essa eternidade, que faz com que você anule o tempo. Se você pode estar
em todos os lugares ao mesmo tempo, então não há mais tempo! Compre-
enderam que o tempo desaparece? Pois esse é o mundo de Deus. Se para
Deus não há tempo nenhum, então tudo que acontece no nosso mundinho
aqui, que é o mundo de sequências temporais, é tudo visto ao mesmo tem-
po como se fosse tudo presente. Vocês estão entendendo?
forma de sua criação antes de passar para a realização, e além disso cumpre por eta-
pas sucessivas aquilo que estava representado em suas linhas gerais, assim também
Deus fixa pela Providência o que deve ser feito, uma só vez e definitivamente, enquan-
foi fixado. Por conseguinte, que o Destino seja movido por espíritos divinos ao serviço
da ”Providência, ou que a trama do Destino seja urdida pela alma, pela natureza, que
lhe é totalmente servil, pelo movimento dos astros no céu, pelo poder dos anjos ou
pela habilidade multiforme dos demônios – que um só ou mesmo todos esses fatores
cambiante e o decorrer temporal daquilo que a simplicidade divina fixou para ser
mais “livre” quanto mais alguma coisa se distancia da inteligência suprema e mais
Dessa forma, aquilo que o raciocínio é com relação à inteligência, e o ser criado ao
(pág. 119)
(...)
por outro lado, esse encadeamento domina por sua imutabilidade os seres sujeitos
ver somente confusão e desordem em todas as coisas, tudo é regido por uma lei que
Por conseguinte, tudo o que vês acontecer aqui de contrário a tuas expectativas é na
verdade a expressão da ordem que mais convém ao universo, mesmo se, a teus olhos,
(...)
e males: ela atiça uns para evitar que uma felicidade muito prolongada os corrom-
pa; permite a outros que sejam duramente golpeados, a fim de que suas virtudes se
reforcem pela prática e pelo hábito da paciência. Uns temem mais do que deveriam
os males que podem suportar; outros desprezam temerariamente penas que exce-
dem suas forças; é para fazer com que uns e outros se conheçam melhor que Deus
lhes envia essas provas. Uns adquirem ao preço de uma morte gloriosa o respeito
dos homens por seu nome; outros, não se dobrando à tortura, dão exemplo a todos
mostrando que os males não podem prevalecer sobre o mérito. Ora, que essas provas
Pois há uma ordem geral que abarca todas as coisas; o que escapa de um lado apa-
rece sempre de outro, a fim de que, no reino da Providência, nada seja deixado ao
acaso, ‘pois só um Deus poderia explicar esses mistérios? ’‘Mas acho difícil falar dessas
coisas como se eu fosse um deus’.8 Não há homem algum que possa compreender
apenas com seus recursos nem explicar com palavras todo o mecanismo da obra di-
vina. Que baste, portanto, ter compreendido apenas isto: é o mesmo Deus, criador de
todos os seres, que dispõe todas as coisas orientando-as para o bem e que, do mesmo
modo, assimila e mantém próximos a si todos os seres por ele criados, servindo-se do
Destino para eliminar o mal de onde se exerce a atividade divina. E é dessa forma que,
acaso sobre a Terra, poderás ver que não há aí nenhum mal. (págs. 123-124)
IV.13
Vês agora qual é a conseqüência de tudo o que havíamos dito? ‘Que conseqüência?’,
perguntei. E ela respondeu: ‘Que não há Fortuna que não seja boa’. ‘E como pode ser
isso?’, perguntei. ‘Escuta-me’, disse ela. ‘Uma vez que a Fortuna, quer se mostre favorá-
vel, quer temível, tem por objetivo ora recompensar ou por à prova os bons, ora corri-
gir os malfeitores, ela é invariavelmente boa uma vez que é ou justa ou útil. (pág. 126)
8 Homero, Ilíada.
V.1
Mal havia ela acabado de falar, começou a examinar outro assunto. Então eu lhe
disse: ‘Teus conselhos são sem dúvida certos e dignos de tua autoridade, mas o que
acabas de dizer a respeito da Providência, isto é, que essa questão não pode ser tra-
Peço-te portanto que agora me digas se achas que o acaso existe realmente e, caso
a significação da realidade a que ela se refere” porque “nada pode ser feito a partir de
nada”.
A Filosofia recorre a Aristóteles, que na Física estabelece que acaso é o que acon-
tece quando uma ação é realizada com determinado fim, mas algo além do que
estava sendo procurado acontece por uma razão ou outra, como um agricultor
uma finalidade precisa; ora, o que provoca um tal conjunto de circunstâncias é jus-
Providência, que dispõe todas as coisas em seus lugares e tempo. (pág. 133)
e a Filosofia lhe diz que aquele é tão maior quanto mais próximo da contempla-
V.5
Boécio, no entanto, está confuso em relação a este ponto e diz que, na sua opi-
nião, “o fato de Deus conhecer todas as coisas previamente e ao mesmo tempo existir
às coisas corporais, e menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o
fundo da servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter posse de sua própria
(...)
nidade, vê tais coisas e dispõe tudo o que está predestinado a cada uma, segundo seu
(...)
Pois, se Deus prevê tudo e não se pode enganar de forma alguma, tudo se produz
conforme a Providência previu. Deste modo, se ela conhece tudo previamente desde
toda a eternidade, e não apenas as ações dos homens mas também suas intenções
e suas vontades, não seria possível haver qualquer livre-arbítrio. Com efeito, não se
produzirá nenhuma ação ou vontade, seja qual for, que não tenha sido prevista an-
acontecimentos podem tomar outro rumo que aquele que ela previu, não falaríamos
mais numa firme presciência do futuro, mas na realidade de uma opinião incerta, o
sa de que “é porque algo deve acontecer que a Providência divina é instruída de tal
fato”.
...em que a divina Providência poderia manter sua superioridade sobre a opinião hu-
mana se, a exemplo dos homens, ela julga incerto aquilo cuja realização é incerta?
Mas, se do ponto de vista de Deus, a mais segura fonte de todas as coisas, não pode
haver nada de incerto, os acontecimentos que ele previu devem acontecer com toda
a certeza. E também não pode haver nenhuma liberdade nas decisões e nos atos
dos seres humanos, que a inteligência divina, prevendo todas as coisas sem risco de
claramente a nulidade dos valores que daí resulta. Com efeito, seria vão proporcionar
aos bons e aos malfeitores recompensas ou punições, pois seus feitos não se devem
injustiça o que se considera uma justiça perfeita – falo da punição dos malfeitores e
da recompensa dos bons –, já que eles não são levados a praticar o bem ou o mal por
sua própria vontade, mas pelo fato de serem obrigados a uma necessidade certa de
A Filosofia faz notar que se o problema ainda continua obscuro é porque o “en-
cia divina”.
Com efeito, eu me pergunto por que não concedes nenhuma pertinência ao racio-
cínio daqueles que procuram explicar o problema e cuja opinião é que, dado que a
presciência não é causa dos acontecimentos futuros, ela não impede de modo al-
coisas futuras a não ser no fato de que as coisas conhecidas de antemão não podem
tes não confere nenhuma necessidade às coisas futuras, caso que reconheceste há
pouco, qual seria a razão pela qual a realização das coisas que dependem da vonta-
A Filosofia pede a Boécio que considere que a presciência “não importa nenhu-
E a causa desse erro é que todos pensam que conhecem algo a partir das proprieda-
trário. De fato, tudo o que é conhecido não é compreendido segundo suas caracte-
rísticas, mas sim segundo a capacidade daqueles que procuram conhecer. (pág. 144)
(...)
der as subalternas, enquanto estas não podem jamais elevar-se ao nível das que lhes
são superiores. Com efeito, os sentidos não podem perceber nada além da matéria;
todas as coisas, não apenas vê a forma absoluta como distingue também a matéria
V.9
PROF. MONIR: Agora a Filosofia vai fazer uma análise do modo como o Boé-
cio explica e vai dar o golpe final na dúvida dele.
Se a realização de certos eventos não parece certa e necessária, eles não podem ser
conhecidos a priori com a certeza de que se realizarão. Por conseguinte, não há ne-
nós temos a razão, que é partícipe da inteligência divina, devemos pensar que, do
mesmo modo que a imaginação deve ceder à razão, é natural que a razão reconhe-
possível, ao nível dessa suprema inteligência; então, com efeito, a razão verá o que
ela não pode ver em si mesma, o que concebe a presciência divina, com toda a preci-
são e certeza, mesmo que esses acontecimentos não se realizem, e apreenderá, não
por uma simples conjectura, mas por uma intuição suprema, absoluta e sem limites.
(págs. 148-149)
Todas as pessoas que vivem de acordo com a razão partilham da certeza de que
Deus é eterno. Procuremos portanto ver o que é a eternidade, pois é ela que nos escla-
rece sobre a natureza divina bem como sobre sua sabedoria. Pois bem, a eternidade
é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la con-
PROF. MONIR: Essa frase é uma das frases mais importantes já ditas na filo-
sofia: “A eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como
podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
A existência própria de Deus, a razão pela qual Deus de fato existe, não é
alvo de fé. Não é alguma coisa em que eu acredito como eu acredito numa
promessa. A existência de Deus é absolutamente comprovada por meios
racionais e lógicos. É essa a missão que Boécio empreende em A Consolação
da Filosofia. E isso pode parecer banal, mas é mais ou menos um marco da
história. Porque a história do pensamento humano não pressupunha que
isso fosse possível. Quer dizer, havia a compreensão doutrinal da existência
de Deus, mas o que Boécio inaugura é um modo de debater Deus racional-
mente, sob o ponto de vista da metodologia da filosofia clássica grega. E o
nome disso é a catedral gigantesca chamada escolástica.
(...)
O olhar divino precede de longe todo o futuro, e ele o faz vir no presente segundo o
modo de conhecimento que lhe é peculiar, sem passar, como tu crês, da presciência
de uma coisa à outra, mas, de um só golpe de vista, ele prevê e abarca tuas mudan-
própria indivisibilidade.
PROF. MONIR: O tempo é abstrato no sentido de que ele só pode ser medido
em relação à distância.
E é também dessa forma que podemos resolver a dificuldade que acabas de men-
cionar e que se baseia no sacrilégio de se dizer que nossas ações futuras fornecem a
PROF. MONIR: Quando você não considera essa solução que o Boécio dá,
você pode defender duas teses. Uma é dizer assim: “Bom, Deus sabe tudo o
que vai acontecer, então eu vou tentar pegar o avião, mas Ele vai me fazer
atrasar porque Ele queria que eu escapasse” – então não há livre-arbítrio.
Ou então a outra solução, a do livre-arbítrio, é o seguinte: “Porque eu perdi
o avião, então eu fiz o meu destino, que é não ter morrido”. Entenderam?
Na verdade, a natureza desse saber, que abarca todas as coisas num conhecimento
imediato, fixa todas as coisas num limite sem depender em nada dos acontecimen-
tos futuros.
PROF. MONIR: Porque não há acontecimento futuro nenhum. Por isso é que
desaparece o problema de saber se aquilo que estava lá foi planejado por
alguém. Porque no fundo, todas as coisas acontecem simultaneamente.
Sendo assim, os mortais conservam seu livre-arbítrio intacto, e não há nenhuma in-
justiça nas leis que propõem recompensas e punições às vontades que são absoluta-
PROF. MONIR: Porque tava lá o Boécio dizendo: “Mas então, já que não tem
livre-arbítrio, por que eu posso castigar alguém? E por que eu deveria re-
compensar alguém, se aquilo ele fez já estava programado?” Porque eu não
consigo resolver o problema do livre-arbítrio a não ser que eu tire Deus do
esquema temporal. Porque se eu ficar com o esquema temporal mantido, ou
Deus sabia antes, e programou, e daí eu não tenho mérito nenhum, ou não;
então eu fiz o que quis e Deus apenas ratifica, sanciona isso com o nome de
Destino. Seja uma coisa ou outra, não haveria possibilidade de livre-arbítrio
nenhum, porque tudo seria meio carta marcada.
Agora com essa coisa de genética, então, já, já vão descobrir o gene do es-
tuprador, o gene do roubo... E aí sujeito vai chegar no tribunal e vai dizer:
“Olhem, vocês me desculpem, mas eu tenho aqui um gene que me transfor-
ma em ladrão de bancos, eu tenho o gene de roubar bancos”.
Então o que nós estamos fazendo nesse momento no mundo é que, extra-
polando os casos em que havia claramente uma psicopatologia que tornava
a pessoa irresponsável, alguém que é louco mesmo (tem também; esses são
inocentes sob o ponto de vista volitivo, não é isso? Eles não queriam fazer
aquilo, e tal), nós tendemos hoje a negar a possibilidade do livre-arbítrio. E
com o auxílio da pseudociência, e com a genética, então, nós vamos encon-
trar um gene pra cada tipo de barbaridade, e aí as pessoas vão alegar uma
inocência genética, assim como hoje alegam uma inocência social: “Não fui
eu quem matou cinco pessoas, é a sociedade que me oprime”. Quando a
gente chegar nesse ponto, nós teremos destruído completamente a possi-
bilidade de civilização humana. Porque sem responsabilidade não há mais
Aquele que nos observa do alto, que perdura eternamente, que tem a presciência de
todas as coisas, é Deus, que, com a eternidade sempre presente de seu olhar, concor-
aos maus os castigos. E não é em vão que colocamos em Deus nossas esperanças e
preces, as quais, sendo justas, não podem permanecer sem algum efeito. Afastai-vos
portanto do mal, cultivai o bem, elevai vossas almas à altura de vossas justas espe-
ranças e fazei chegar aos céus vossas humildes preces. A menos que queirais esconder
a verdade, é grande a necessidade que tendes de viver segundo o bem, quando agis
PROF. MONIR: Essa é última linha do livro, e aí o que o Boécio fez foi sim-
plesmente criar uma argumentação filosófica, portanto de natureza racio-
nal e especulativa no sentido de que usou apenas elementos lógicos, para
garantir, para confirmar aquilo que intuitivamente todo o mundo sabe. O
cristianismo não precisou esperar o Boécio para existir, o cristianismo sabia
se impor por várias razões, pela ação dos seus milagres, pela intuição que
as pessoas têm, ou pelo dogma, mesmo. No entanto, pela primeira vez na
Aluno: E a escolástica?
Há muitas maneiras pelas quais nós temos acesso a conhecer as coisas tais
como elas são, mesmo que essas coisas tais como elas são sejam enigmáti-
cas, e que não se possa saber muito delas a não ser a definição do enigma.
O enigma pode ser definido, embora eu não consiga decifrá-lo, em última
análise. Definir o enigma já é uma grande coisa. Pra começar a ler filosofia,
Boécio é o melhor caminho. E esse é um dos grandes meios de usarmos bem
essa tarde.
PROF. MONIR: Não é que ele previu. Cuidado, porque você está falando de
Jesus. Há aí um mistério. Jesus tinha uma natureza humana. O Jesus humano
estava submetido ao tempo, como nós. É difícil entender como Jesus pode
ser homem e Deus ao mesmo tempo. Quer dizer, é um homem que pode
apostar já sabendo o resultado da loteria. Esse que é o problema, né? É um
Mas para Deus não aconteceu uma sequência de fatos, tudo isso acontece
ao mesmo tempo. Nós não conseguimos entender isso porque não conse-
guimos entender a mente de Deus. Porque Deus não funciona nas mesmas
regras com que nós funcionamos. Deus não pertence a esse mundo. Ele re-
flete nesse mundo do mesmo modo que o sol reflete numa parede – você
vê a claridade. Mas Ele não é feito como nós, não tem a mesma natureza
que nós.
Entender isso é a primeira condição pra você poder estudar filosofia. Se você
não entende isso, você se torna incapaz de estudar a filosofia daqui pra fren-
te.
Você não pode imaginar, por exemplo, que a história acaba nela própria.
Porque se a história é uma sequência temporal de fatos... tem uma coisa
chamada filosofia da história. Quem foram os três maiores estudiosos disso?
O Senhor Hegel, que acha que a história acaba no Estado, quando o Estado
toma conta de tudo; o Senhor Marx, que acha que a história acaba quando
o proletariado toma o poder e destrói a estrutura de classes; e o Senhor
Augusto Comte, que acha que a história acaba quando a sociedade positiva
expulsa as sociedades anteriores que são todas sociedades cretinas, uma é
mitológica e a outra é metafísica. Então agora a sociedade da ciência posi-
tivista é que vai vencer. Então esses três aí são três sujeitos que acham que
conseguem encontrar na própria história a explicação da própria história.
Mas se isso fosse possível, a primeira coisa que eles tinham que explicar é
como e quando foi que alguém inventou o conceito de anterioridade, por-
que se a ideia de anterioridade está presente na história o tempo todo, sem
qualquer explicação ou qualquer circunstância... – tem uma coisa que vem
antes da outra, né? A história é sempre sequencial. Quem foi que inventou
isso? Ora, se a história não inventou a sua própria anterioridade – se não
teve lá em determinado momento um partido, ou uma classe, ou um herói
que fez isso, se não foi a história que inventou isso – então isso foi inventado
por alguém que existe além da história. Então há uma outra circunstância,
chamada meta-história (que está além da história), que ela só pode explicar
a história, e nunca a história em si mesma. Mas eu só compreendo isso se
É isso. Se você pelo menos leu o Boécio, você sabe que o conhecimento
que você pode ter da vida é um conhecimento imperfeitíssimo, embora seja
(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos foram adaptados da edição A
Consolação da Filosofia da Editora Martins Fontes, 1998, São Paulo, 1a. edição,
Edson Campagnolo
Kleberr Wlader
Pandita Marchioro
Conteudista
Revisão de transcrição
Patrícia Nasser
Revisão Literária e Palestras
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Capa e Diagramação
Ilustração Capa
Coordenação Geral
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Assessoria de Imprensa
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Edson Luiz Campagnolo
Presidente
Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola
Conteudista
José Monir Nasser
ISBN: 978-85-5583-032-7
1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82
A reprodução total ou parcial desta publicação por quaisquer meios seja eletrônico, mecâ-
nico, fotocópia, de gravação ou outros, somente será permitida com prévia autorização, por
escrito, do SESI.
Otelo
O Idiota
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.
Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.
Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.
Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).
Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.
Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.
No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.
José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.
Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.
Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.
O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).
A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.
Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.
Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.
Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.
Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.
1 Transcrição de Maria Cecília Noronha e Patrícia Nasser. Revisão da transcrição: Patrícia Nas-
ser.
O livro que nós veremos aqui hoje é uma das mais belas obras de Shakes-
peare. Dos cem livros escolhidos, oito são de Shakespeare. Esta é a quarta
obra escolhida, chamada Otelo. Sob muitos pontos de vista, é considerada
a melhor, sobretudo sob o ponto de vista teatral. Nenhuma delas se adapta
tanto à encenação quanto esta. Shakespeare escreveu um teatro tão extra-
ordinariamente amplo que ele pode ser lido com toda a facilidade. Existem
algumas peças de teatro que ficam muito mal postas fora do palco – não é
o caso de Shakespeare, que é antes de tudo um poeta, e escreve no original
em linguagem poética. Tem uma cronologia aí para vocês:
Cronologia
“Bloody Mary”, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão. Casada com Felipe II
protestantes. Também manda executar sua prima Jeanne Grey, possível concor-
cença”, a “Virgin Queen”, filha de Henrique VIII e Ana Bolena. O reinado da pro-
de proprietário de terras. Tiveram ao todo oito filhos. William foi o primeiro filho
homem. A família é católica, mas teria de esconder o fato nos anos que viriam.
anos, as melhores escolas disponíveis, sobretudo a King Edward IV (The King’s New
glaterra e é mantida presa por dezoito anos por Elisabete I, antes de ser executa-
da em 1587.
1578 O período que vai desta data até 1592, devido à pequena documenta-
1582 Casa-se aos dezoito anos com Anne Hathaway, que tinha vinte e seis e
1589 Ano provável em que se muda para Londres e inicia carreira de ator e
dramaturgo.
para vingar sua prima Mary Stuart, consolidando a soberania marítima da Ingla-
terra. Neste ano é inaugurado o regime de corso com Francis Drake (c.1540–
1596).
1594 Termina sua primeira peça, A Comédia de Erros, iniciada cinco anos an-
tes.
Seu pai, após longo período em desgraça política por ser católico, ob-
1598 Elogiado por Francis Meres, que menciona doze de suas peças na obra
Palladis Tamia. É terminada a obra do Globe Theatre, capaz de acolher mil e qui-
nhentas pessoas.
Stratford.
King’s Men, uma homenagem ao rei James I Stuart (1566–1625), novo governan-
te.
O rei James I manda escrever uma versão da Bíblia que seria doravante
pe de tradução.
doria.
ído.
1616 Sua filha Judith se casa com Thomas Quincy. Teriam tido três filhos que
1623 Publicado por John Heming e Henry Condell o primeiro folio, com as
obras completas.
Outra tese absurda é a de que Shakespeare seria mulher (que não foi ele
que escreveu, mas a própria mulher, com o nome dele), o que é muito mais
improvável ainda, já que a temática e a abordagem de Shakespeare é essen-
cialmente masculina. Quando você se acostuma a ler literatura, você perce-
be que uma mulher escreveria isso de outro jeito.
Esse é um mundo sem diversões públicas – não tem cinema, não tem shows
de rock, não tem televisão. Shakespeare então mistura todas as funções tea-
trais – ele é autor, ator, como era comum na época (no teatro shakespeariano
não há mulheres atrizes. No teatro clássico francês já tem mulheres atrizes
nessa época, mas na Inglaterra, não), ele é produtor teatral e é empresário.
Faz todas essas coisas ao mesmo tempo. Também não esqueçam que o tea-
tro no tempo de Shakespeare era um teatro estatal no sentido de que o rei,
para impedir que transformassem o teatro numa arma política, obrigava a
que as companhias de teatro fossem patrocinadas por um nobre. Um nobre
assumia responsabilidade pública por aquela companhia, de modo que o
Shakespeare durante toda a sua vida foi patrocinado por um ou outro nobre
importante. É um teatro que acontecia sob as vistas do Estado. Não era um
teatro livre. Mas, seja como for, deu muito dinheiro a Shakespeare. Deu tan-
to dinheiro que, quando morreu, Shakespeare era um sujeito rico.
Durante a sua vida ele escreveu uma boa quantidade de peças, todas fica-
ram de alguma maneira preservadas para o futuro. Há um problema sério,
que é a diversidade de versões. Da mesma peça há várias versões diferentes
(Otelo tem duas ou três versões diferentes), então interessa sempre pergun-
tar qual é a origem da tradução, porque dependendo da versão é de um
jeito ou de outro. Isso é assim porque não havia naquela época uma preo-
cupação de edição profissional da obra. O que acontecia é que depois que
era encenada a obra, alguém imprimia um texto meio clandestinamente. Os
escritores tinham uma impressora tipográfica e alguém imprimia com base
em um dos documentos que havia sido usado como texto pelos atores, ou
com base na memória de alguém que ouviu a peça várias vezes. Às vezes
esses tipógrafos/editores achavam que o final era muito trágico e resolviam
mudar o final da peça, porque achavam que seria mais bonito se determi-
nada personagem não morresse. Por exemplo, o final do Rei Lear foi modifi-
cado por um editor que achava uma tristeza a Cordélia ter morrido. Então o
sujeito vai lá e inventa um final em que a Cordélia não morre.
Seja como for, Otelo é uma das mais extraordinárias obras de Shakespeare.
Os especialistas dizem que sob o ponto de vista pura e simplesmente tea-
tral é a obra melhor construída, é uma maravilha para apresentação. Existe
uma ópera chamada Otelo de Verdi que vale a pena ouvir e existe um filme
dirigido por Orson Welles em que ele próprio faz o papel de Otelo, também
muito, muito bonito. É uma obra eletrizante e nossas emoções vão se acu-
mulando ao longo da leitura. A leitura é imprescindível. Foi usada aqui uma
tradução do Onestaldo de Pennafort, uma beleza de tradução, pena que só
se encontra em sebos. Acho que é a melhor tradução disponível do Otelo.
Foi feita para o teatro, tem uma clareza e uma objetividade extraordinárias.
RESUMO DA NARRATIVA
PROF. MONIR: Este é o famoso rei James da Bíblia, o que inventou o inglês
moderno. Quando o rei mandou traduzir a Bíblia para o inglês – como tam-
bém Lutero fez na Alemanha –, ele criou o padrão oficial da língua inglesa.
Comenta-se, sem se ter certeza, que Shakespeare teria feito parte da equi-
pe que traduziu a Bíblia para o inglês. Desconfia-se disso pela quantidade
anormal de expressões “shake” e “spear” dentro da tradução inglesa, como
se ele tivesse colocado suas impressões digitais. É claro que isso é um pouco
de folclore.
Cinthio (1504–1573). A ação passa se em Veneza e Chipre, por volta de 1570. A ci-
lavra, era uma república dirigida por um Doge. Shakespeare inicia a encenação
rar as tropas venezianas contra os turcos que ameaçavam Chipre, fato histórico,
mente para a montagem da peça, em março de 1956, pela então recém criada
dução, escrita em 1955 e editada em 1956 pela Civilização Brasileira, foi elogiada
por Manuel Bandeira em crítica no Jornal do Brasil onde lembra que “traduzir
É importante que vocês reparem que logo de início a história já começa com
a ideia do casamento. Nós não sabemos como é que esses dois se conhece-
ram, nós não sabemos se eles namoraram muito tempo... Na verdade eles
se casaram logo no início da peça. E isso tem muita importância depois, na
interpretação. Peço que vocês prestem atenção nesse detalhe.
Iago começa nos contando que o Otelo, que é um mouro – alguém que não
é italiano, um sujeito estrangeiro, seja árabe ou negro, vindo de uma região
do mundo que era vista como menor – casou-se com a Desdêmona, filha
do senador Brabâncio, quase o homem mais influente da República de Ve-
neza naquela época. Isso é um choque enorme. Hoje em dia não parece tão
chocante, mas se você recuar no túnel do tempo para essa época, haverá de
lembrar que isso é uma coisa muito chocante. Que este fato que aconteceu
é muito, muito grave.
E assim começa a história que, como quase em todas as peças, tem cinco
atos. Estamos em Veneza, 1570, na casa dos Doges, dos governantes de Ve-
neza, quando chega a notícia de que houve o tal do casamento.
Ato I
Rodrigo, um rico veneziano, e Iago, um alferes, vêm pelas ruas de Veneza conver-
sando. Iago queixa se de ter sido preterido pelo General Otelo na escolha de seu
um tal de Miguel de Cássio, um florentino janota...” que, na opinião dele, seria inca-
IAGO
de cristãos e de infiéis,
eu cá fico a sotavento
E emenda: “Pois bem, agora dize me tu mesmo: posso morrer de amores pelo Mou-
IAGO
PROF. MONIR: “Sob a capa de tais lérias...”: “embora eu fique com esta con-
versa afiada, no fundo, no fundo, eu só faço o que me convém”. O que vocês
acham desta declaração de personalidade do Iago? Ele está aqui fazendo
uma declaração de que ele é um sujeito que não serve a ninguém, mesmo,
que não é leal. Vocês simpatizaram com ele, agora? Vocês já perceberam
acorda dizendo lhe que ele havia sido “roubado”: “perdestes a metade de vossa
alma. Agora, neste instante, um velho carneiro negro está cobrindo a vossa ovelhi-
nha branca... Rápido! Rápido! Enquanto o diabo, num esfregar de olhos, não vos faz
um neto!”
Desdêmona, mas o rapaz declara ter vindo “com a melhor e a mais honesta das
intenções”. Iago confirma as boas intenções da dupla, insistindo que os dois ha-
viam vindo impedir que a filha dele fosse “coberta por um cavalo da Berbéria”.
IAGO
Quereis que os vossos netos relinchem para vos pedir a benção? Agrada vos
PROF. MONIR: Seja como for, é um pouco grosseiro esse jeito de falar. Já na
terceira página, a história está neste nível de intriga.
Iago resolve desaparecer porque, “no seu posto”, não seria prudente “ser citado
PROF. MONIR: A filha tinha de fato sumido, e tinha de fato casado com Ote-
lo. Por casar se entende que os dois ficaram numa situação íntima naquela
noite, sem haver um ritual religioso. “Ficaram”.
O resumo não contou para vocês isso, mas vale a pena dizer que o Iago não
se deixa reconhecer pelo Brabâncio, só o Rodrigo. E aí ele se esconde, mos-
trando que além de todas as más características que ele tem, também é co-
varde e dissimulado.
Na mesma noite, numa outra rua de Veneza, conversam Otelo, Iago e oficiais.
Iago maliciosamente indaga a Otelo: “Mas, dizei me, senhor, é certo que casastes?”
Otelo confirma e Iago quer saber se ele não teme o poder do Magnífico4 .
Otelo diz que “mais alto falarão (seus) serviços prestados ao Estado que as suas quei-
OTELO
PROF. MONIR: Vocês se dão conta da enormidade que é este fato? O homem
é um general, um soldado, mouro, tem uma vida aventureira e de repente
ele casa com a mulher mais desejável de Veneza, filha do senador mais po-
deroso, e que de alguma maneira o civiliza, o transforma num ser controlá-
vel. É uma situação de uma gravidade extraordinária.
Chegam Cássio e oficiais com tochas. A comitiva vem convocar Otelo, em nome
do Doge, para uma assembleia cujo assunto está ligado a Chipre. Os senadores
Mouro.
bâncio que cobra de Otelo: “Ladrão, onde escondeste a minha filha?” Seus acom-
mas reluzentes, para que não as embacie o orvalho5”. Apesar de o senador desejar
prendê lo, submete se à convocação mais alta do próprio Doge e vão todos
PROF. MONIR: Eles não podem prender Otelo, que acabou de ser convocado
pelo próprio Doge – a maior de todas as autoridades da república. Agora
Otelo vai para o palácio, para ser acusado pelo ato de raptar a filha do sena-
dor e ao mesmo tempo para ser convocado para liderar as tropas venezia-
nas contra os turcos otomanos, que vão atacar Chipre.
5 Nota do resumidor – No original consta com concisão admirável: “Keep up your bright
Isto é o que acontece nesse momento com Otelo. Ele vai ser chamado a
responder pelo rapto e ao mesmo tempo ele vai ser convidado a liderar a
esquadra, as forças venezianas contra um inimigo poderoso. Esta luta entre
Veneza e os turcos otomanos aconteceu de fato. Estamos nos estertores do
domínio otomano que acontece nesta época.
Nova notícia dá conta de que os turcos, reforçados com uma segunda esquadra
nas imediações de Rodes, rumariam agora para Chipre. Neste momento che-
O conselho quer tratar da guerra, mas Brabâncio insiste em falar de seu infortú-
nio que “tal uma inundação... a tudo leva na enxurrada” e, para espanto do Doge
e de todos, indica Otelo como perpetrador de tal afronta, agravada por ter sido
feita com magia, porque Desdêmona seria “sossegada e tímida, a ponto que che-
gava a corar das próprias emoções”. Otelo confirma os fatos: de fato havia raptado
culpa daí não passa. Em meu falar sou rude, inábil no versar a linguagem da paz” e,
e que, por isso, ela se havia apaixonado por ele: “Ela me amou pelos perigos que
corri e eu a amei pela pena que ela teve”. No conselho, pouco depois, Desdêmona
PROF. MONIR: Então ela legitima a união. Não paira nenhuma dúvida de que
a união entre os dois tinha sido completamente voluntária, que Desdêmona
não tinha feito nada contra a sua vontade. Otelo é muito mais velho do que
a Desdêmona. Ele é um velho soldado, com histórias de muito grande bra-
vura, e ela é uma moça virgem, completamente inocente nas coisas da vida,
que se apaixonou por ele. E aí então este casamento foi consolidado. Não
resta mais dúvida, de agora em diante, de que este casamento é legítimo.
passar “aos negócios do Estado”, não sem antes entregar de má vontade Desdê-
mona a Otelo: “Aproxima te, Mouro. Aqui te dou, de todo o coração, o que também
O Doge apoia o gesto, lembrando que “o roubado que ri furta algo ao seu ladrão;
se a chorar perde tempo, a si se rouba então”, mas Brabâncio relembra que “senten-
ça que propõe consolo ao sofredor é mais fácil de seguir, quando é alheia a dor”.
PROF. MONIR: Claro. Não é a filha do Doge que fugiu com o Otelo, não é?
Vocês compreendem que para a sociedade da época esse casamento muito,
muito traumático?
DOGE
ti recai a nossa escolha que, aliás, reflete a opinião geral, para o comando
felicidade seja empanada por esta dura e turbulenta expedição. (pág. 60)
PROF. MONIR: Desta situação Otelo sai com a mulher legitimada pelo pró-
prio Doge e sai com uma missão perigosíssima, que é impedir que os tur-
cos otomanos invadam Chipre. Chipre é uma ilha no meio do Mediterrâneo,
perto da Itália, que nesta época estava ocupada pelos venezianos. Até o mo-
mento, a vida de Otelo parece bem-sucedida, porque ele tem a mulher que
ele queria, uma mulher quase impossível, e ao mesmo tempo ele é o maior
general de Veneza. Então não é pouca coisa, não é isso?
as provações mais duras”), Desdêmona pede ao conselho que permita que ela
o vosso genro é mais branco que escuro”. Um senador resume: “Adeus, valente Otelo,
teus olhos, Mouro, e sê bem cauteloso: se ela enganou o pai, pode enganar o esposo”.6
PROF. MONIR: Esta moça é vista como tendo feito uma malandragem, como
tendo feito um casamento escuso, sem pedir autorização. Muito difícil achar
alguém que chegou em casa dizendo: “Olhem, casei ontem à noite”. Nem
hoje se faz isso. Imagine naquela época, uma atitude destas da filha do sena-
dor. Shakespeare não nos conta em que circunstância tudo isso aconteceu.
Ele simplesmente diz que isso aconteceu. E esse fato de que ele entra direto
no assunto é muito importante na interpretação.
Esta moça então acabou neste pedaço da história saindo-se como traidora
da confiança paterna. Tudo indica que ela não tem mãe, porque a mãe nun-
ca é mencionada. Não está escrito aqui, mas saberemos mais tarde, que o
senador morre de desgosto por causa do casamento.
Otelo, que parte imediatamente, encarrega Iago e sua mulher Emília de trans-
na, quer “morrer” porque não tem “virtude bastante para (se) emendar”, mas Iago
6 Nota do resumidor – Mais tarde ficaremos sabendo que o Senador Brabâncio morreria de
IAGO
Virtude uma figa! De nós mesmos depende sermos deste ou daquele feitio. O
PROF. MONIR: Esta é a frase mais famosa desta peça, traduzida às vezes
como: “Nosso corpo é um jardim e a nossa vontade é o jardineiro”. Todo esse
pessoal envolvido com assuntos de medicina alternativa utilizam essa frase
para apoiar a ideia de que você é o que você come. No mundo moderno se
acredita nisso, como se toda a vez que o coelho comesse alface, o coelho
virasse alface, quando acontece justamente o contrário – é a alface que vira
coelho, não o contrário [risos].
variadas; torná lo estéril pelo nosso ócio ou fertilizá lo com o nosso amanho,
para equilibrar o outro prato das paixões, os nossos humores e a baixeza dos
PROF. MONIR: Completamente notável que quem tenha dito isso seja o Iago.
O Iago não é o sujeito que está lidando com os sentimentos de vingança?
Também de inveja, porque no fundo o Iago também tem uma certa tendên-
cia amorosa para com a Desdêmona. Mas vejam, um sujeito motivado pela
Iago, que não quer desistir, convoca Rodrigo para continuar (“Vem também para
ro e investir na empreitada.
IAGO
Não é possível que Desdêmona continue por muito tempo enamorada pelo
Mouro – põe dinheiro na tua bolsa – nem ele por ela. Amor que começa
Esses mouros são volúveis por natureza. Enche a bolsa de dinheiro. O manjar
que para ele por enquanto é adocicado como o mel, em breve lhe amargará
como fel. Ela mudará porque é moça. Quando se saciar das carícias dele e
PROF. MONIR: O Iago precisa agora convencer o Rodrigo, que é quem publi-
camente declara amor a Desdêmona, que é preciso investir contra aquele
amor. E que ali há disparidades tão grandes que a Desdêmona vai desistir
do Otelo e que, quando o fizer, o Rodrigo é que vai sair ganhando. O Iago
agora começa a montar um plano para destruir o casamento de Desdêmona
e Otelo.
te depois de ter satisfeito o teu desejo, que te afogares sem a teres possuído.”... “O mo-
tivo do meu ódio está arraigado no meu coração e assim deve estar a razão do teu.
IAGO
insinuante e belo,
Ato II
Entra Montano, governador de Chipre que seria sucedido por Otelo, com dois
gentis homens que comentam a grande tempestade7 que havia atingido a ilha.
Armada de Filipe II, fato contemporâneo a Shakespeare e que deu à Inglaterra o domínio dos
Nota o governador que “se a armada turca não se abrigou nalguma enseada ou
porto, deve ter ido a pique. É impossível resistir à tormenta”. Entra um terceiro gen-
til homem que confirma as “desastrosas perdas e soçobro quase total da armada
deles”.
gara antes Cássio, “bastante apreensivo, rogando aos Céus que se salve o Mouro, do
qual o separou o temporal no mar”. Chega também, com uma semana de anteci-
pação, a nau de Iago trazendo, “sã e salva, a divina Desdêmona!” Cássio recebe a
comitiva e faz elogios à Emília. Iago destila grosserias e ironias sobre as mulheres
PROF. MONIR: Esse Iago é bem grosseiro, cá entre nós. Vocês viram o que
aconteceu? Quando a tempestade destruiu a armada dos turcos, acabou o
problema militar do Otelo. Agora só tem o problema sentimental. Iago e
sua mulher Emília chegaram antes trazendo Desdêmona, e Otelo ainda está
perdido no meio do mato. O Cássio também já chegou. Começa então essa
conversa em que o Iago faz todo o tipo de grosseria possível, obviamente
dentro dos limites de prudência.
após certa hesitação, comenta: “Bela, clara e sutil, usa o espírito e o apura em saber
do o bom humor, diz dele ser “o mais atrevido e irreverente dos tagarelas”. Quando
Cássio se afasta com Desdêmona, que lhe oferece a mão, Iago comenta à parte:
IAGO
Pega lhe na mão... hum, muito bem, muito bem... Anda, cochicha lhe no
ouvido... Será com uma teia diáfana como essa que apanharei um moscardo
do tamanho desse Cássio... Aí... sorri para a tua bela... assim... Corteja a bem,
PROF. MONIR: Vejam que sujeito maligno: É nesta “teia diáfana que apa-
nharei um moscardo do tamanho desse Cássio”. Um moscardo é um inseto
grande. Ele já percebeu que está dando certo o plano, porque Desdêmona e
Cássio têm simpatia mútua, dá para você supor até mesmo alguma atração,
mesmo que platônica, e ele vê que há meios de sustentar a tese da infideli-
dade da Desdêmona com esse Cássio, pelo comportamento deles.
a “Minha bela guerreira”: “se para mim agora as tempestades serão seguidas de uma
tal bonança, então rujam os ventos insofridos até que a morte acorde...” Desdêmona
responde dizendo que “Deus há de permitir que o nosso amor e seus prazeres todos
Começando a execução do plano, Iago comenta com Rodrigo ter notado que
Desdêmona “estaria louca” por Cássio e que “uma vez saciado o ardor dos sentidos
pela prática do prazer, para que ele torne a se inflamar e dê à saciedade um novo
PROF. MONIR: Depois que passa aquela paixão sexual, aí conta a diferença
de idade, a diferença social, etc. Tudo isso o Mouro não tem, porque ele é um
sujeito da África e a Desdêmona é uma moça italiana, da corte de Veneza.
Rodrigo não acredita nesta hipótese porque acha que Desdêmona é virtu-
osa. Iago retruca: “Virtuosa só na casca! O vinho que ela bebe é feito de uvas”.
IAGO
PROF. MONIR: “Andou a cavalgar na minha sela” é ter saído com a mulher
dele, que é a Emília. Então vejam, ele deseja o mal do outro não apenas
por concupiscência – porque nesse momento Iago nos contou que também
deseja a Desdêmona. Conta que não é apenas isso que o motiva, mas que
ele está querendo se vingar (isso a gente não sabia ainda) porque acha que
o Otelo andou saindo com a mulher dele, a Emília. Isso é apenas uma supo-
sição, porque em nenhum momento da peça isso é realmente confirmado.
PROF. MONIR: Qual é a opinião sobre Iago que vocês têm até agora? Boa?
Média?
Com a cidade em festa, Otelo incumbe Miguel Cássio de providenciar para “que
seja observado o justo limite de discrição que até os divertimentos devem obedecer”.
Miguel Cássio diz já ter encarregado Iago. Otelo, Desdêmona e séquito saem.
Júpiter” e incentiva Cássio, que “tem a cabeça fraca para a bebida” a tomar vinho
pela bebida, não consegue colocar a postos a guarda, que havia bebido mais
do que ele. Durante a cena, Iago comenta maliciosamente com Montano que
sio, que reage: “Vou surrá lo tanto, que ele depois parecerá uma garrafa empalhada”.
PROF. MONIR: O Rodrigo é aquele rico que quer casar com a Desdêmona e
que o Iago está transformando em financiador do plano.
manda espalhar por Rodrigo que estava acontecendo um motim. Chega Otelo,
pede explicações: “Transformamo nos, por acaso, em turcos, para nos fazermos a
nós mesmos o que o Céu não permitiu que eles nos fizessem?” Iago em princípio faz
dor do distúrbio. Enganado pela malícia de Iago, Otelo destitui Cássio do cargo
de tenente: “Cássio, apesar de continuar a estimar te, não serás mais meu imediato”.
PROF. MONIR: Então, está funcionando o plano do Iago? Ele acabou de quei-
mar o filme do Cássio como tenente, como capaz de conduzir o forte mili-
tarmente.
CÁSSIO
minha reputação!
(...)
CÁSSIO
PROF. MONIR: O Cássio, que não entendeu nada, porque não sabe que aqui-
lo é um plano, está se autoculpando de ter se embriagado e perdido o con-
trole. Ele de certa maneira é culpado, porque podia não ter bebido, mas ele
não entende que o Iago planejou tudo aquilo. Então ele não vê ninguém a
não ser um amigo a quem ele pede conselhos, para ver se consegue conser-
tar a situação que foi criada ali. Está dando certo o plano do Iago? Comple-
tamente.
Iago tenta consolar Cássio estabelecendo um plano para sua reabilitação: “A mu-
lher do nosso general é que é o general agora... Confessa te francamente a ela. Impor-
tua amizade com o Mouro, hoje rota, ficará mais sólida que antes.” Insiste em que se
trata de “conselho de amigo sincero, ditado pela estima e pela lealdade”. Depois da
IAGO
Entra Rodrigo, machucado e trôpego, dizendo que com as pancadas que levou
lhe entrou “algum juízo no corpo” com que, embora depenado, iria voltar para
Veneza, enfastiado daquela situação. Iago responde: “Ai dos impacientes deste
IAGO
Ato III
No dia seguinte, a pedido de Miguel Cássio, músicos tocam. Entra o Bobo e diz
à orquestra que “o General gostou tanto de vossa música que vos pede, encareci-
damente, que não façais nenhum barulho com ela” e completa: “Se sabeis alguma
uma entrevista com a senhora. Emília diz que Desdêmona já havia sido informa-
da do caso dele (por ela própria) e que o “defende com todo o ardor”. Como ele
do palácio.
Otelo manda por Iago cartas ao navio que parte para Veneza e, em seguida, sai
Desdêmona assegura Cássio que fará por ele “tudo o que esteja a (seu) alcance”...
e declara, usando Emília como testemunha, que havia “se tornado a responsável”
DESDÊMONA
PROF. MONIR: Não é um pouco exagerado isso, cá entre nós? Ela diz para o
Cássio que prefere morrer a não conseguir ajudá-lo. Há aí uma simpatia um
pouco desmedida, até mesmo por ingenuidade.
OTELO
IAGO
PROF. MONIR: Vejam que venenoso! Ele disse: “Não, o Cássio não ia sair assim
correndo só porque você chegou”.
OTELO
E quem é este?
DESDÊMONA
ximo três dias. Pressionado, Otelo concorda: “Basta! Não digas mais. Ele que volte
OTELO
IAGO
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Vocês percebem que beleza que é essa tradução? Que tradu-
ção bem-feita! Ela é elegante, fiel, harmoniosa.
Otelo começa a cair na armadilha: “Tu tens alguma coisa na cabeça! Ainda há pou-
co, ao despedir se Cássio de Desdêmona, ouvi murmurares que aquilo não te agra-
dava. O que é que não te agrada... Se me estimas, abre me o coração”. Iago diz que
julga Cássio um homem de bem, mas completa maliciosamente que “os homens
são”. Iago insinua que sabe coisas escabrosas e minimiza hipocritamente: “Eu
posso estar errado em minhas conjecturas, senhor. Pois vos confesso que, em mim, é
uma segunda natureza o vezo inveterado de farejar em toda parte abusos” e pede
tudo mal”. Pressionado por Otelo, cada vez mais enciumado, Iago move mais
IAGO
PROF. MONIR: Olhem que barbaridade: “O senhor é o tipo de corno que so-
fre mais [risos], porque tem uns que sabem que não são amados e não se
importam mais com isso, mas no seu caso, não. O senhor é o caso grave, do
sujeito que não tem certeza...” É isso que o Iago está dizendo para o Otelo,
que agora está começando a ficar enlouquecido de ciúmes com aquela si-
tuação. O Iago está se dedicando a produzir toda a espécie de fantasmas na
mente do Otelo.
Otelo diz que não é do tipo que se deixa torturar por ciúmes:
PROF. MONIR: Otelo diz que ele não vai ficar sendo corno de modo nenhum.
Ele vai procurar a prova; se ela for negativa ele para de ter ciúmes, se for
positiva ele “manda o amor ao diabo”. Com isso ele insinua que iria produzir
um ato de violência, que ele não se manteria na situação de dúvida que Iago
está produzindo.
Iago aconselha o Mouro a vigiar sua esposa: “Observa a bem com Miguel Cássio.
Olhai a atentamente, com olhos nem zelosos, nem confiantes demais”... “Ela enga-
nou o pai para casar convosco... Mas, senhor, como estais perturbado!”
Iago faz mais um avanço, quando Otelo reconhece que “a natureza às vezes se
transvia...”:
IAGO
OTELO
Quando Iago sai, Otelo reflete com amargura e conclui: “Fui traído! E o meu recur-
OTELO
PROF. MONIR: Fartum são odores nauseabundos. De onde deve vir a palavra
“fart” (peido, flatulência) do inglês.
PROF. MONIR: Ele está atormentado pela dúvida, ele não está convicto de
que a mulher é infiel.
voz tão rouca? Por acaso não estais passando bem?” Otelo diz que lhe dói a cabeça
que ela tenta atar com um lenço bordado, o primeiro presente de Otelo à mu-
lher. O lenço é muito pequeno e ela o deixa cair no chão para se dedicar a Otelo.
Quando ela sai com o marido, Emília rapidamente apanha o lenço que Iago lhe
havia pedido “cem vezes que (ela) roubasse” e diz para si mesma:
PROF. MONIR: A tempestade nesta obra não tem o mesmo papel que tem
em A Tempestade e nem no Rei Lear. Mas ela tem o papel dramático de fun-
cionar como uma quebra. No começo tinha a história do sujeito que ia para
a guerra. Então a tempestade vem e dissolve a possibilidade de guerra ma-
tando o inimigo. Como matou o inimigo, é como se abrisse um palco novo
em que vai acontecer um feito dramático em que a verdade se revelará. E
essa verdade que se revelará agora vem depois da tempestade. Ela não é tão
forte como nos outros casos, mas tem um fator emblemático aí, de alguma
maneira.
Sem que a mulher saiba, Iago planeja deixar o lenço no quarto de Miguel Cássio,
infidelidade da mulher, embora tudo funcione como previsto: “Já sob o efeito do
meu veneno o Mouro está mudado. Nesses temperamentos, as suspeitas agem como
peçonhas, que a princípio provocam náusea apenas, mas depois, atuando sobre o
Entra Otelo perturbado e irritado. Diz a Iago: “Antes sermos traídos cem mil vezes
que suspeitar uma só vez que o somos!” e exige provas das insinuações que ele
tem feito:
OTELO
Infame!
IAGO
Iago faz se de ofendido: “Ser honesto e leal é perigoso! Que me sirva de lição! E dora-
vante não serei mais amigo de ninguém, pois que a amizade gera tais ofensas”.
PROF. MONIR: Vejam só que hipócrita. Ele está fazendo um teatro, uma cena,
para parecer que ele está sendo injustiçado nesta história, porque o Otelo
exige que ele apresente uma prova, e não apenas insinuações. Agora Iago já
tem a prova, porque ele já tem o lenço que a mulher dele roubou. Ela entre-
gou a ele o lenço que era indiscutivelmente o lenço da Desdêmona, porque
ele era bordado de um modo que só podia ser o lenço dela.
OTELO
se alojado uma noite nos aposentos de Cássio, ouviu o tenente falando durante
o sono: “Desdêmona querida, precisamos ocultar com cuidado o nosso amor”. Mais
do que isso, Cássio pensando ali estar Desdêmona e não Iago, teria se posto “a
apertar a minha mão, exclamando: ‘Oh! Querida da minha alma!’ E me beijava tanto
e com tal fúria, qual se fosse arrancar pelas raízes os beijos que florissem nos meus
lábios. Depois passava as pernas sobre as minhas e a me beijar, dizia, entre suspiros e
PROF. MONIR: Pois é, para o sujeito acreditar numa história dessas, precisa
ser realmente muito otário. [risos] Esta cena de Cássio enchendo Iago de
beijos, pensando que ele era a Desdêmona é de um ridículo atroz! No en-
tanto é isso que o Iago está contando para o Otelo. O Otelo só entra numa
fria dessas, só aceita um argumento ridículo destes porque ele já está com-
pletamente fora de si, já não consegue mais distinguir racionalmente o que
Iago apressa-se em confirmar que havia sido um sonho, mas Otelo está furio-
so: “Vou cortá la em pedaços”. Iago pede prudência a Otelo, mas não deixa de
morangos”. Otelo reconhece o primeiro presente que havia dado à mulher. Iago
confirma:
IAGO
Otelo, que está explodindo com a tensão, diz que tem “o peito estofado de serpen-
tes”. Iago pede lhe calma para não se arrepender depois, mas Otelo está quase
fora de si:
OTELO
Jamais,
PROF. MONIR: Isso é geografia antiga. Ponto é o Mar Negro. Então as águas
do Mar Negro saem, passam pelo Helesponto, que é aquele estreito que
Otelo. “Que ele ordene o que for e cegamente eu obedecerei. Seja para matar!” Otelo
agradece a lealdade e faz dele o seu tenente. Iago agradece: “Sou vosso para
sempre”.
PROF. MONIR: Pronto! O Iago já conseguiu uma parte do plano, que era ficar
com o lugar do Cássio. “Serei leal a você até para matar”. Quem é esse que
vai ser morto?
ALUNO: Cássio.
nente Miguel Cássio. Como ele não sabe (“Dizer que se aloja aqui, ou que se aloja
lá, é alojar uma mentira aqui ou uma mentira lá.”), pede a ele que o procure e
diga que já havia “disposto o marido a favor dele” e que espera que “tudo se há de
arranjar”.
PROF. MONIR: Pela última notícia que ela tem, ela acha que dispôs o marido
a favor do Cássio. Ela não sabe que enquanto isso está havendo um enorme
envenenamento do marido.
DESDÊMONA
Pois podes crer que eu preferia ter perdido a minha bolsa cheia de cruzados.
ciumeiras tolas, isso era bastante para despertar lhe certas idéias.
EMÍLIA
Chega Otelo e pede a Desdêmona o lenço que ele lhe havia dado. O Mouro
explica que o lenço havia sido dado à mãe dele “por uma cigana” e que aquele
objeto, enquanto na posse de sua mãe, garantia que o pai dele permaneceria
“submisso aos seus encantos e ao seu amor”. Otelo insiste em ver o lenço, mas ela,
sem dar importância ao caso, insiste por sua vez em que ele resolva a pendência
PROF. MONIR: Entenderam o que aconteceu? Ele vem e diz que o lenço tem
poderes mágicos. Que o lenço dá a quem o tem a capacidade de manter
a outra pessoa fiel. Ele quer ver o lenço. Mas ela não entende por que o
lenço é tão importante, porque na perspectiva dela só o assunto do Cássio
tem importância. Então ela piora muito as coisas quando insiste justamente
em ajudar Cássio, que é aquele fulano cuja morte Otelo já combinou com o
Iago. A situação vai ficando muito ruim.
Chegam Iago e Cássio que revela se desesperançado: “a meu pesar embora, terei
mesmo marido. E se estivesse mudado de semblante como está de gênio, eu não po-
de Estado, a alguma notícia de Veneza”. Conclui que os “homens não são deuses.
cimento” que ele atribui às tribulações recentes. Ele lhe mostra um lenço borda-
do: “Achei o no meu quarto. Achei muito bonito o bordado. E antes que me venham
reclamá lo, como certamente virão, queria ter uma cópia dele. Leva o e copia para
mim”.
PROF. MONIR: Muito bem. Agora sabemos que o lenço foi colocado no quar-
to do Cássio conforme Iago tinha planejado. Mais um ponto do plano do
Iago que dá certo.
********
Intervalo
********
PROF. MONIR: A história está clara, não é? Eu queria perguntar para vocês se
a opinião que vocês têm de Iago é positiva ou negativa?
mais, na cama, com um amigo, mas sem maldade alguma”, o que Otelo acharia?
Iago envenena mais Otelo dizendo que Cássio andava “chacoalhando o seu triun-
PROF. MONIR: Otelo acabou de sofrer um ataque epilético, cai no chão, de-
pois da conversa de Desdêmona ter ficado uma hora nua, sem maldade.
ALUNOS: [risos]
IAGO
Chega Cássio e presencia o ataque epilético de Otelo. Quer ajudar, mas Iago diz
que não, porque “é necessário que o letargo tenha um curso tranquilo e natural”.
Quando Otelo se recupera, ouve de Iago que, durante a crise, Cássio havia es-
tado ali e que ao voltar haveria a demonstração da sua culpa: “ocultai vos agora
blico que fará Cássio falar de Branca como se fosse Desdêmona.) Cássio volta e
sando tratar se de Branca: “Eu, casar me com ela? Com uma prostituta? Por favor,
não faças tão pouco caso do meu juízo! Achas que sou doido? Ah! Ah! Ah!...”
Chega Branca e atira o lenço na cara de Cássio dizendo: “e queres que eu acredite
que não é presente de alguma sirigaita descarada? E vais ao ponto de quereres que
eu copie o ponto do bordado, heim? Pois, toma o. Entrega o de novo à tua eguinha.”
PROF. MONIR: Pronto. Agora o Otelo, que está escondido, não só ouviu a
Branca dizer que o lenço tinha sido dado a ela por Cássio, como também
ouviu a outra chamar a sua mulher de “eguinha”. Não é uma situação muito
simpática. O plano do Iago está funcionando? Tá.
Otelo, que reconheceu o lenço, reaparece do esconderijo, diz querer “levar nove
anos a matá lo aos poucos” e decide matar Desdêmona naquela noite, estrangu-
PROF. MONIR: Ele queria na verdade envenená-la, mas o Iago disse que era
melhor estrangular.
Desdêmona, sua prima. Ludovico pergunta pelo tenente Miguel Cássio que de-
veria ficar no comando, porque Otelo iria se ausentar da ilha. O Mouro trata a
mudado”.
ela afirma que nunca viu nada de errado, assegurando que “ela é honesta, meu
senhor”.
EMÍLIA
Quando Emília sai, Otelo, desconfiado dela, imagina “que alcoviteira iria ser tão
Entra Desdêmona e Otelo pede lhe: “Deixe me ver teus olhos. Olha bem para mim”.
Desdêmona, assustada, diz ao marido que sente em suas palavras “um violento
furor, mas não entende nada!” Ele faz com que ela jure pela sua castidade e ela
conclama o Céu como testemunha. Ela se declara honesta e ele a compara com
“as moscas do verão, que nos açougues, umas sobre as outras, desovam na sujeira”.
DESDÊMONA
OTELO
PROF. MONIR: Chamar alguém de vaso público é uma ofensa muito grande.
Significa uma mulher pública, uma mundana. Vejam como essa conversa é
horrível. Se houvesse aqui um ator de verdade nós estaríamos todos muito
chocados. Seria terrível, angustiante ouvir esta história.
DESDÊMONA
OTELO
DESDÊMONA
então eu sou.
DESDÊMONA
OTELO
É possível? Será?
DESDÊMONA
Com a chegada de Emília, Otelo sai precipitadamente da sala. Sem saber o que
fazer, Desdêmona pede a Emília que convoque Iago, que ela supõe ter influên-
cia sobre o marido, a quem ela pergunta se ela merece o nome de prostituta.
PROF. MONIR: Ela não faz isso para confrontar o Iago, ela acha que Iago é
inocente. Ela chama o Iago para pedir ajuda.
IAGO
EMÍLIA
DESDÊMONA
É a minha má estrela!
IAGO
DESDÊMONA
PROF. MONIR: Como se ele não soubesse. Shakespeare faz frequentes men-
ções astrológicas. Quando ela diz “é a minha má estrela”, ela quer dizer que
astrologicamente atraiu esta desgraça.
absoluta inocência (“nem por todos os bens do mundo, nunca praticaria um ato que
pudesse corresponder a essa palavra horrível”) e ele lhe diz que tudo acabará bem.
Um pouco mais tarde, Rodrigo cobra de Iago resultados do plano dizendo que
“metade das jóias de mim que levaste para dar a Desdêmona daria para subornar e
PROF. MONIR: Iago deu o golpe no Rodrigo. Iago pediu para que Rodrigo lhe
desse as joias que ele entregaria secretamente em nome do Rodrigo para
Iago garante o desfecho para o dia seguinte e revela que as ordens de Veneza
investiam Miguel Cássio no lugar de Otelo que deveria ir com Desdêmona para
a Mauritânia, a menos que algum imprevisto prolongasse sua estada ali: “E que
Iago combina com Rodrigo de conduzir, naquela noite, Cássio para uma cilada.
Como Rodrigo está em dúvida, Iago diz que vai demonstrar lhe tão claramente
a absoluta necessidade da morte dele, “que (ele) próprio (se) achará na obrigação
de matá-lo”.
PROF. MONIR: Com esta notícia nova de Veneza, Iago tem de evitar que Ote-
lo saia de Chipre. Para isso é preciso matar quem o substituiria, que é o Cás-
sio. Então esses dois combinam de matar o Cássio naquela noite, depois do
jantar, em uma ruela escura dentro daquela fortificação para que o Otelo
tenha que ficar mais um tempo em Chipre e o plano possa ser levado até o
fim. Porque se Otelo e Desdêmona escaparem para a Mauritânia, o plano de
Iago falhará.
de que despachasse sua aia. Emília, a pedido da senhora, havia feito a cama do
PROF. MONIR: Desdêmona de alguma maneira intui que talvez aquela noite
seja a última. Então manda fazer a cama com os lençóis que foram usados
na primeira cama conjugal. Quando ela vê a cama feita com aqueles lençóis,
se arrepende de ter pedido. É como se não quisesse que aquela fosse uma
profecia autorrealizável. Então ela está na dúvida sobre o que fará nesta si-
tuação. É uma situação dramática terrível. Trata-se de um momento muito
triste. Vai ficar muito pior, ainda. Podem ir se preparando.
Bárbara, uma criada de sua mãe. A canção fala de morte: “Do salgueiro farei a
Antes de Emília sair, Desdêmona quer saber dela se ela trairia o marido para ter
EMÍLIA
DESDÊMONA
EMÍLIA
É claro que não o faria por um anel, nem por umas medidas de cambraia,
Mas pelo mundo inteiro! Quem não poria uma coroa de chifres no marido,
EMÍLIA
vosso erro, o mundo passasse a ser vosso, o erro seria um erro num mundo
PROF. MONIR: Olhem, essa parte é de uma importância tão grande! Este diá-
logo aqui é fundamental. Não o tirem da cabeça. Depois nós voltamos a ele.
DESDÊMONA
EMÍLIA
mundo que servisse de recompensa a tal erro e para a obtenção do qual elas
trabalham.
DESDÊMONA
PROF. MONIR: Eu não vou fazer uma votação aqui para saber quem está do
lado da Desdêmona e quem está do lado da Emília porque esse é o tipo da
votação a gente não deve fazer [risos]. Este risco eu não correrei.
ATO V
O plano da tocaia segue em frente. Num local escuro, Rodrigo está oculto. Iago
calcula que, no caso da morte de Rodrigo, ficaria com as joias que “astutamente
lhe arrancou das mãos sob o pretexto de presentear Desdêmona em seu nome” e,
no caso da morte de Cássio, ele não poderá ser desmascarado. Haveria lucro
dá lhe uma estocada que não o mata por causa de seu gibão de malha densa.
PROF. MONIR: Cássio usa uma roupa com uma espécie de malha (às vezes de
ferro) que impede que a lâmina abaixe. Por isso é que o Cássio não é morto
pela estocada que lhe dá Rodrigo.
Cássio puxa a espada e fere Rodrigo. Iago sai do esconderijo e fere Cássio pelas
costas. Há grande agitação e gritaria. Nos seus aposentos, Otelo conclui pelos
ruídos que o “honesto Iago” havia cumprido sua palavra. Todos correm atender
a Cássio que se lamenta aos brados de seus ferimentos. Iago pergunta fingindo
Rodrigo, ferido, para pedir ajuda e Iago o atinge com a espada, “confundindo o”
com um dos ladrões que haviam atacado Cássio. Chega Branca e atende Cássio
IAGO
Na escuridão da noite,
PROF. MONIR: Aí o Iago tenta fazer a sua versão dos acontecimentos, mas
na verdade quem matou o Rodrigo foi Iago mesmo, e quem feriu o Cássio
por trás também foi ele, Iago. No entanto com isso ele espera com isto ter se
livrado do Rodrigo e ter ficado com as joias. Agora a situação do Cássio, que
está ali ferido, mas não gravemente, é o problema que ele tem que resolver.
Aqui é um momento muito importante.
Como Branca é a última pessoa que havia estado com Cássio, Iago a prende
teatralmente e, à parte, comenta: “Meu destino esta noite se traça; ou o triunfo com-
9 Nota do resumidor – No original consta: “This is the night that either makes me or fordoes
me quite”, que poderia ter sido traduzido como “é esta noite que me valerá ou me destruirá”,
Cena II. Chipre. Quarto de dormir no castelo. Desdêmona dorme no leito, junto ao
OTELO
(Beija Desdêmona)
Balsâmico respiro,
(Beija a novamente)
Desdêmona desperta e Otelo lhe pergunta se ela lembra de algum pecado pelo
qual ainda não havia rogado a indulgência do Céu e pede que ela o faça naque-
Não! Deus me livre disso! Deus me livre de matar a tua alma!” Otelo acusa Desdê-
insiste: “Tens de morrer”. Ela suplica poder viver mais uma noite (“Deixai que eu viva
OTELO
mais da terra e torna os homens loucos”. Emília ouve gemidos e acode ao leito
ninguém lhe havia feito aquilo, exceto ela mesma: “ninguém... Eu mesma... Dá
Otelo deixa claro que ele a havia matado por ter se corrompido, tornando se
“uma rameira” e indica o marido de Emília, Iago, como fonte das informações. A
aia atira lhe na cara ter sido enganado. O Mouro a ameaça, mas ela não o teme:
EMÍLIA
Os gritos de Emília atraem todos, incluindo Iago que, acusado de caluniador por
sua mulher, responde: “Eu disse o que pensava e não foi mais que aquilo que ele
bucha e ruge! Pois mataste a mulher mais pura, entre as que possam andar na terra
de cabeça erguida”.
age: “Tu, estúpido, Mouro! O lenço de que falas eu o achei por acaso e dei o ao meu
Otelo, caindo em si, precipita se contra Iago que se desvia, fere mortalmente a
mulher pelas costas e foge. A aia canta uma estrofe da “canção do salgueiro” e
morre. Otelo, tendo nas mãos uma espada espanhola “temperada no gelo de um
regato”, diz que pode ser desarmado por qualquer “homúnculo” (...”sem a honra,
de que vale a bravura?”). Declama a Graciano, tio de Desdêmona que lhe montava
guarda:
OTELO
engolfai me em abismos
de fogo liquefeito!
São trazidos Miguel Cássio numa cadeirinha e Iago escoltado por oficiais. Otelo,
após verificar se ele tem pés de cabra, fere Iago com a espada (“Não temos os
pés de cabra, como se diz na fábula; porém, se eu não puder matá lo é que é mesmo
o demônio”), diz que o que o havia movido não havia sido o ódio, mas a hon-
ra. Admitiu também ter tramado contra a vida de Cássio e pede lhe perdão. É
revelado que nos bolsos de Rodrigo havia duas cartas incriminadoras contra
Iago, que, ferido sem gravidade, declara: “O que sabeis, sabeis. E doravante não
que fui!” Um oficial revela que Rodrigo, antes de morrer, havia acusado Iago por
como governador de Chipre e condena Iago: “No que toca a este monstro, se exis-
tir engenhosa tortura que o lacere, sem lhe tirar a vida, alongando, ao contrário, o seu
Antes de ser levado para o cárcere, Otelo declara que é um homem que “sem
saber amar, amou profundamente e que, apesar de infenso aos zelos amorosos, im-
sem lhe saber o preço, atirou fora a mais preciosa pérola da tribo”, apunhala se, cai
Em nenhuma outra obra fica tão clara uma noção fundamental para enten-
der dramaturgia como nessa. Não entendemos que o passado é composto
10 Nota do resumidor – No primeiro folio não se fala em indian, mas em judeu, referência à
A primeira diferença é que o teatro grego era baseado numa dicotomia que
veio já dos dois grandes épicos – a Ilíada e a Odisseia geraram respectiva-
mente a tragédia e a comédia. Da comédia só conhecemos Aristófanes –
provavelmente só tinha mesmo o Aristófanes. A comédia grega não tem
importância nenhuma perto da tragédia grega. A comédia grega é satírica.
É engraçada, mas qualquer peça de Eurípedes vale mais do que todo o Aris-
tófanes.
Aristóteles tenta fazer a sistematização disso na Poética, e ali ele nos ensina
que a diferença entre as duas é que na tragédia as coisas são feitas com o
maior esforço e boa vontade possíveis e, no entanto, dá tudo errado. É o
caso de A Ilíada, em que você tem gregos e troianos lutando por uma causa.
Você pode até debater se as causas são igualmente justas, mas no fundo
não interessa, porque os heróis gregos e troianos que morrem na Ilíada – es-
pecialmente Aquiles do lado dos gregos e Heitor do lado dos troianos – es-
tão tentando defender a honra, os seus semelhantes, enfim estão tentando
fazer alguma coisa, embora ambos já saibam de antemão que estão conde-
nados à morte. Tanto um quanto o outro. Tanto é que o Aquiles é lembrado
de que teria de escolher entre uma vida curta e gloriosa e uma vida longa e
medíocre. Ambos sendo condenados à morte por antecipação, aceitam-na,
atribuindo as suas mortes a maquinações dos deuses. A ideia da Ilíada é que
Vamos por exemplo pegar o caso de Castro, que é a maior tragédia em lín-
gua portuguesa já escrita. Castro conta a história de Inês de Castro, uma
moça por quem um príncipe se apaixonou. Mas o pai do príncipe, que era o
rei, não podia permitir o casamento porque ela era de uma classe social in-
ferior e ele tinha um acordo político para fazer, para manter o reino estável,
obrigando o filho a casar com outra moça. O rei manda matar Inês. Depois,
quando o príncipe vira rei, ele manda desenterrar os restos da moça e pas-
seia com seu esqueleto pelas ruas. Isso é uma tragédia, uma coisa terrível,
mas isso é uma tragédia grega. Porque mesmo que você considere que o rei
possa ter sido exorbitantemente cruel, ele não estava motivado para fazer
Quando você tenta olhar para a condição feminina sob o ponto de vista trá-
gico, então você pode chegar a concluir que isso que parece ser o resultado
de uma ação de manipulação da mulher pelo homem pode ser entendido
de outro jeito, mais ou menos assim: as dificuldades da situação feminina
são decorrentes não da ação propositada e arbitrária dos homens em con-
trolá-las, mas são coisas que acontecem apesar de que os homens possam
estar ao seu modo fazendo o que podem para torná-la boa. Aquela situação
de desconforto e de desvantagem que a mulher pode perceber na sua pró-
pria vida pode não ser causada maliciosamente pelos homens, mas ser o
resultado de uma tentativa de os homens fazerem o melhor possível para
que ela não seja assim.
Conforme você olha para um lado e para o outro, você tem uma interpreta-
ção completamente diferente da situação em que as pessoas vivem. Se você
olha para a situação feminina como uma situação trágica, você em seguida
é obrigado a concluir que também há uma tragédia envolvida na situação
masculina e que portanto há, como corolário disso tudo, uma tragédia da
condição humana. A condição humana é que é assim. Por mais que a gente
tente fazer bem, nem sempre a gente acaba se dando bem. Há coisas que
não são controláveis. Se você propõe a interpretação trágica para a condi-
Vimos uma peça dramática e não trágica. Ela não é trágica porque há cla-
ramente um autor do mal – Iago – que quer fazer todo o mal possível. A
segunda pessoa de quem se poderia esperar a malignidade é Emília, que
é uma personagem ambígua. É obviamente muito, muito melhor do que o
marido, mas no entanto tem uma certa ambiguidade por ter roubado o len-
PROF. MONIR: Pushkin, o grande poeta russo, ao analisar esta obra dizia que
o maior problema de Otelo era ser crédulo. Nós sabemos o que sobre ele?
Sabemos que ele é um sujeito que tem muito mérito, é uma pessoa que de-
monstrou na sua existência coragem, valores pessoais muito grandes. Ele é
honesto e teve uma história de heroísmo. Sabemos que o Otelo tem muitas
virtudes, mas ao mesmo tempo tem um problema sério, ser completamente
dominável pela conversa de Iago (Iago parece ser o mais inteligente deles,
inteligente no sentido popular da palavra, esperto). É importante notar que
o casamento de Otelo é muito surpreendente. E ele não só recebe a confir-
mação do casamento no palácio do Doge, na assembleia, como também
recebe uma missão que poderia, caso tivesse sido executada, nobilizá-lo
para sempre. Ele teria sido o vencedor daquela grande batalha contra os
turcos. No entanto, apesar disso tudo, quando a tempestade acontece – a
tempestade produz um caos que iria produzir uma revelação – o Otelo vai
se deixando dominar por um sujeito, o Iago, que o controla completamente.
E sobre a Desdêmona, qual é a impressão que vocês têm sobre ela? Boa?
PROF. MONIR: Desdêmona é a melhor pessoa dessas aí. Ela é pura e inocen-
te. A inocência dela a faz não perceber o perigo de investir excessivamente
no caso de Cássio. A interpretação mais honesta é que ela faz isso por in-
genuidade, e não porque ela tivesse uma queda por ele. E essa moça, no
entanto, vai se enredando numa situação tão grave que chega ao final da
Por outro lado, temos o Iago. Não sei se vocês se surpreenderam com ele,
mas eu fiquei muito surpreendido. É um sujeito de uma competência extra-
ordinária. Controlou a situação do começo ao fim. Criou todas as movimen-
tações por meio das quais as pessoas foram manipuladas. Nenhum de seus
planos deu errado a não ser o último, o de matar Cássio e Rodrigo. Ficaria
com o dinheiro de Rodrigo e com o lugar de Cássio. Teria já um grande prê-
mio, teria revertido totalmente a situação que ele mesmo criou. Além disso,
queria muito que vocês reparassem o quanto Iago é um sujeito argumenta-
dor. Ele tem uma espécie de dialética satânica. Está sempre argumentando
com muito bom senso, sempre coloca o problema nas partes certas. É o úni-
co com uma argumentação explicativa.
Afinal de contas, a pergunta que não quer calar é a seguinte: Como é que
um amor tão extraordinariamente ideal como esse de Otelo e Desdêmona
foi acabar nisso que deu? E é basicamente pela interação dessas três perso-
nagens que nós vamos desvendar este mistério. Mas antes alguém gostaria
de fazer uma consideração sobre o que foi visto até agora?
ALUNA: [Questiona se Otelo não teria se autossabotado por não se sentir mere-
cedor da moça Ele teria feito uma transferência da sua baixa autoestima para o
Iago, que se tornou uma espécie de carrasco consentido.]
PROF. MONIR: É uma boa ideia, mas há alguns fatos da história que não au-
torizam completamente essa hipótese. Por exemplo, o Otelo se revela cré-
dulo apenas do Iago porque ele é a única pessoa com quem Otelo conversa
3. O componente intelectivo.
Otelo até o último minuto é crédulo da hipótese do Iago. No final, teve que
vir a Emília dizer para ele que ela tinha achado o lenço para que ele pudesse
se convencer que o lenço foi um truque. No final da história ele reconhece o
grande mal que fez. De alguma maneira no final ele retoma a consciência da
verdadeira situação. Por aí podemos imaginar que o problema da autoesti-
ma não seja a causa dos acontecimentos.
OTELO
PROF. MONIR: No primeiro fólio, diz assim: “como o judeu”. Aí mudaram para
“índio”. Mas é índio no sentido de indiano, porque há uma espécie de lenda
da Índia em que o sujeito jogou fora a pérola achando que não valesse a
pena.
O modo de entender isso talvez seja pela interpretação do fato notável que
é a história começar logo com o casamento já resolvido, sem que Shakespe-
are tenha se dado ao trabalho de nos contar como foi que isso aconteceu.
Parece que significa isso, não é? Vejam, não é de somenos importância um
casamento deste tipo. Há o casamento entre um mouro e uma moça da no-
breza veneziana, e este casamento é feito não só sem a autorização do pai
dela, como sem que ele soubesse que estava acontecendo isso. E quem é
que nos conta que houve o casamento? Iago. Isso também não é informa-
ção gratuita. O fato de que Iago sabia também significa alguma coisa. Iago
nos conta que houve esse casamento, que é tratado por Shakespeare como
se fosse trivial, quando na verdade não é. É um casamento de gravíssimas
consequências, extraordinariamente surpreendente.
Quem é que está se casando, na verdade? Por que é que Shakespeare acha
que o casamento é uma coisa que se compreende naturalmente?
Otelo representa o contraste total disso, por isso que ele tende a ser muito
diferente dela. É por isso que o Shakespeare usa a diferença de cor para es-
tabelecer este contraste didático. Otelo é o sujeito da terra, da luta, da vida
violenta, da conquista....
Otelo representa a vida real e concreta aqui da terra. Mas ele não é um sujei-
to qualquer. Ele é o ser humano que viveu a vida humana da melhor manei-
ra possível, tem méritos indiscutíveis.
Ora, o que acontece quando essas duas coisas se encontram? Você tem o
casamento do céu e da terra, onde tudo começa. O casamento do céu e da
terra não é incomum na literatura. É a mesma situação que há entre Dante
Alighieri e Beatriz. Dante é conduzido no céu por Beatriz. Virgílio, o acompa-
Quem faz todo o possível para impedir que o céu e a terra casem? O demô-
nio, o único sujeito que sabia que os dois haviam se casado. A primeira fala
é de Iago, dizendo que ia acabar com aquilo. Para que ele possa ter sucesso,
ele precisa destruir aquele casamento que ele não suporta. É a única coisa
que ele quer. O diabo é essencialmente simbólico nessa história. O diabo
analisado metafisicamente não pode ter uma existência autônoma à de
Deus. Se Deus é a maior força de todas, então o diabo deve ser subordinado
a Ele e não pode ser inimigo de Deus. Seria ilógico. Você acha que isso é
assim? Então você é um maniqueísta – aquele que acha que esse mundo é
conduzido por um embate entre o bem e o mal, entre forças boas e forças
ruins. Essa é uma ideia absurda dentro do contexto cristão, porque você não
pode igualar o diabo a Deus. O diabo deve estar abaixo d’Ele, obrigatoria-
mente.
Os anjos e os diabos, que são anjos caídos, são aspectos da inteligência divi-
na. Quando falamos em anjos, estamos falando em entidades que não têm
Virtude uma figa! De nós mesmos depende sermos deste ou daquele feitio.
torná lo estéril pelo nosso ócio ou fertilizá lo com o nosso amanho, é em nós
mesmos, na nossa própria vontade que estão o alvitre e o poder para tanto.
outro prato das paixões, os nossos humores e a baixeza dos nossos instintos
Ora, esse é o mais claro discurso humanista que se pode conceber. Qual a
arma que o diabo usa para seduzir a mente de Otelo? Como ele possui Otelo
(no sentido da possessão demoníaca)? Pela razão.
PROF. MONIR: Mas a mentira tem origem na palavra mente. Em que idade
o céu e a terra estiveram casados? Na Idade Média, que havia acabado.
Shakespeare está nos dizendo que o advento do homem racional e renas-
centista, esse homem que depende apenas de si (olhem só o diabo falando
aqui: “De nós mesmos depende sermos deste ou daquele feitio”), que
esta declaração de autonomia humana, é inspirada pelo diabo.
Olhando por outro lado, como é que o diabo faz para dissolver o casamento
do céu e da terra? Ele interpõe a razão, que é capaz de convencer a terra de
que o céu não existe, de que não existe essa subordinação. É por esse meio
que Iago produz esse estrago gigantesco. Iago corresponde a um profes-
sor universitário moderno convencendo os alunos de que o mundo é assim
conforme Marcuse achou, conforme Freud achou, etc.
Que extraordinário mérito não tem essa gente que faz essas coisas hoje em
dia! Os Iagos todos que estão por aí, produzindo as ideias malucas de que
Deus não existe. Isto tudo como instrumento de prestígio universitário, pro-
pagando um ateísmo que não se pode propagar de modo nenhum porque
a afirmação de que Deus não existe não pode ser feita por ninguém que te-
nha espírito científico, pois para que se pudesse afirmar isso seria preciso ter
a totalidade do conhecimento – como isso não se pode ter, é uma afirmação
profundamente religiosa essa de que Deus não existe. O Ernesto Sábato,
que é o melhor filósofo que a Argentina já produziu, dizia que o ateísmo é
um tipo de religião.
É por isso que ele logo começa dizendo que o céu e a terra estão casados.
Ele não quer nem entrar no mérito disso, porque o casamento de Otelo e
Desdêmona é o casamento perfeito. É a mulher perfeita com o homem per-
feito. No modelo espiritual humano do catolicismo, a mulher é o modelo
humano perfeito (representada por Nossa Senhora), e Otelo, na sua base
humana, é um herói, um sujeito que teve todo o mérito. Esse casamento
perfeito só é desfeito com a dialética diabólica que a mente produz encon-
trando razões que justifiquem a destruição do vínculo.
A nossa mente pode ser o nosso maior inimigo. Por isso é que os antigos
diziam que mais importante do que a mente é o intelecto. E que o intelecto
não está na mente, mas está no coração. Cuidado para não achar que é o
coração fisicamente. Eles insistiam em dizer que além do corpo nós temos
uma alma, e que além da alma temos um espírito, ou intelecto.
EXPEDIÇÕES PELO MUNDO DA CULTURA Otelo 109
Neste caso houve vitória parcial da alma – da mente sobre o espírito. Vitória
essa que no final é completamente desmascarada, o que permite que haja o
reencontro em outro nível. O céu e a terra se casarão novamente lá em cima.
Outro pedaço emblemático é quando Iago volta preso. Otelo olha para os
pés dele para ver se o casco é fendido, se são pés de diabo. Vê que não, que
esta história de casco fendido é pura lenda. Aí ele tenta matar o diabo, para
ver se ele consegue. Ele fere Iago, mas não mata. Isso comprova a tese de
que o Iago representa simbolicamente o diabo. A gente não deve subesti-
mar Shakespeare, ele é extraordinário.
PROF. MONIR: Emília é uma criatura ambígua, ela topa fazer qualquer ne-
gócio. Isso não é uma atitude muito honesta. Tanto é que ela aceita roubar
alguma coisa para o marido. No fundo ela não vai roubar – que ela vai fazer
uma cópia para devolver o original, mas naquele momento ela age um pou-
co levianamente. No entanto ela não tem a culpa do Iago, porque ela não é
PROF. MONIR: Ela esclareceu a situação porque ela agora tinha a luz espiritu-
al, e explica. Ela morre em seguida, como se por ter tanta luz espiritual não
pertencesse mais a esse mundo. Mesmo o Otelo irá se reabilitar no final das
contas.
(Resumo feito por José Monir Nasser, com excertos traduzidos por Onestaldo de
ser.
INTRODUÇÃO DO PROFESSOR
12 Nota da revisora de transcrição: De 2004 até junho de 2007 Leão Lobo teve na Rede Ban-
deirantes um programa, De Olho nas Estrelas, que girava em torno das novidades da televisão
Teria um irmão mais velho, Mikhail, e uma irmã e um irmão (Andrei) mais novos.
de Daravóie e Tchermarchnia.
1834 Fiódor e seu irmão mais velho, Mikhail, entram no liceu Tchermák, em
Moscou.
tersburgo.
nhista.
palatinski.
conheceu ainda casada. Na noite de núpcias sofre violento ataque epilético. Ma-
1859 Volta da Sibéria, dez anos após ter sido preso na Fortaleza Pedro e Pau-
lo.
1861 Funda com o irmão Mikhail a revista literária O Tempo (Vriêmia), que
dinheiro no cassino local. Paulina, um tipo volúvel, iria deixá-lo por um estudante
de medicina.
1864 Morrem sua mulher, de tuberculose, e seu irmão Mikhail, de uma mo-
1865 Parte para a Europa com 165 rublos adiantados para um livro e os per-
1866 Publica Crime e Castigo aos poucos no Mensageiro Russo. Promete con-
tinuação, mas não cumpre, porque recebe encomenda de novo romance e con-
do editor F. T. Stiellovski, que lhe dava prazo de vinte e seis dias, sob pena de
com ela quatro anos pela Europa, começando por Berlim, Dresden, Frankfurt,
filha Sófia nasce em fevereiro, mas morre três meses depois. O casal visita Vevey,
Milão, Florença.
1869 O casal visita Veneza, Bolonha, Trieste, Viena, Praga e Dresden. Em se-
Demônios e emulado por Luís Carlos Prestes que, junto com outros comunis-
Demônios (Biêsi). Volta para São Petersburgo, onde nasce seu filho Fiódor. Dos-
pela crítica.
1878 Alexei morre após crise de epilepsia. Escreve Os Irmãos Karamázov, pri-
meira obra de uma trilogia planejada e não executada, pré denominada A Vida
de um Pecador.
um ataque a bomba.
“ditadura do proletariado”.
Dostoiévski teve uma vida muito difícil, além de ter sofrido cedo a perda da
mãe e de ter passado a vida toda tendo ataques terríveis de epilepsia – um
especialmente ruim na noite de núpcias do primeiro casamento. Veja que
maneira de impressionar a noiva, não? Deve ter ficado impressionadíssima.
Com vinte e poucos anos de idade ele entra num daqueles grupos de jovens
descontentes com a vida no império russo, com o imperador. Reúne-se lá
um grupo com pretensões revolucionárias, chamado Círculo Petrachevski,
de natureza fourieriana – adepto das ideias de certo Fourier, um dos inúme-
ros teóricos socialistas da época. Esse grupo não era revolucionário de fato,
ALUNOS: [Risos]
13 Nota da revisora de transcrição: As cinco obras sugeridas são Crime e Castigo, Os Demô-
Um dos truques para se ler Dostoiévski é dar se conta do problema dos no-
mes das pessoas na Rússia. Todo livro russo que nós lemos aqui tem esse
mapa das personagens – para não confundirmos os nomes, e depois ficar-
mos sem saber de quem estamos falando. É uma boa medida para roman-
ces longos. Eu não consigo ler nunca sem um papel do lado e uma caneta,
porque alguns mapas, alguns esquemas de parentesco, algumas ligações
entre as pessoas é fundamental fazer. Agora, no caso dos livros russos, se
você não faz esses mapas, a leitura fica muito mais difícil, porque as pessoas
têm nomes compostos de três nomes: o primeiro nome é o nome de ver-
dade, o segundo é o patronímico – o nome do pai da pessoa, e o terceiro é
o nome da família. Como isso é um sistema preciso e constante, pelos no-
O IDIOTA
(A transliteração utilizada é da tradução de Paulo Bezerra em O Idiota, 1a. edição, Editora 34)
RESUMO DA NARRATIVA
uma das escalas de sua temporada refúgio de quatro anos no exterior, que fez
ALUNOS: Gregório.
PROF. MONIR: Vocês viram só, não falei que vocês já sabem russo? Eu não
estava exagerando!
128 Professor José Monir Nasser
Para escrever a obra, Dostoiévski havia recebido adiantamento da revista Men-
sageiro Russo, mas a ideia central do romance já era antiga. Segundo sua corres-
de uma natureza absolutamente bela”. Dostoiévski continua: “De todas as belas fi-
guras da literatura, a mais perfeita é Dom Quixote. Mas Dom Quixote só é tão belo
PROF. MONIR: Dom Quixote é uma das maiores maravilhas literárias já es-
critas.
PROF. MONIR: que foi em fevereiro de 1861. Essa é quase a data mais impor-
tante da história da Rússia. O ano 1861 é o ano mais importante de todos,
porque esse foi o ano em que foi abolida a servidão na Rússia.
Entre as outras obras do autor, as mais próximas de O Idiota são Notas do Subsolo
e Humilhados e Ofendidos.
PROF. MONIR: Então sabemos que as duas primeiras personagens são Prínci-
pe Míchkin, que é a personagem central, o idiota propriamente dito, e o Ro-
gójin, que é o sujeito que ele encontra no trem. Eles não se conhecem, mas
Livro I
chkin tem “entre vinte e seis e vinte e sete anos, alto, muito loiro, olhos graúdos,
PROF. MONIR: Esse é o Rogójin, que não parece ser muito simpático, pela
aparência. Eles têm alguma semelhança entre si?
ALUNA: A idade.
tava voltando, sem ter sido completamente curado, de uma longa estadia de
quase cinco anos numa instituição para doentes mentais no cantão Wally na
interlocutores.
PROF. MONIR: A primeira coisa interessante aqui, que já nos revela muito
sobre o Príncipe Míchkin, é que não é normal você encontrar dois desco-
nhecidos num trem e dizer assim: “Olha, eu passei cinco anos internado em
um hospício, então não sei se eu estou muito bem ainda...” Isso não é uma
coisa que se faça normalmente, não é? No entanto vocês verão que o Prín-
cipe Míchkin, dentre outras características, é de uma sinceridade, de uma
espontaneidade absolutamente acachapante. Ele não tem nenhum jogo de
aparência, nada. Então está contando para dois desconhecidos que ele está
chegando de um tratamento mental na Suíça, e essa é a razão pela qual ele
esteve fora esse tempo todo.
Míchkin conta que, embora fosse órfão e não houvesse outros Míchkins (“acho
que sou o último”), tinha sido mandado para a Suíça às custas de Nikolai Andrê-
estudar nada.
PROF. MONIR: Míchkin, portanto, não estudou nada. Não tem formação ne-
nhuma, nunca foi para a universidade, nada.
Este benfeitor morrera havia já dois anos e, desde então, ele fora tratado de gra-
dades:
– Eu, n-n-não! É que eu... Talvez o senhor não saiba, mas por causa de minha
Rogójin narra também uma passagem de sua vida. Alguns meses antes ele havia
roubado do pai dez mil rublos para comprar um par de brincos de diamante
para uma mulher conhecida da cidade, Nastácia Filíppovna, por quem ele estava
apaixonado.
14 Nota do resumidor – No original “Iuródiv”, que significa bobo, mendigo alienado, vidente.
Quando seu pai descobriu a falta do dinheiro, ficou furioso ao ponto de querer
matá-lo e ele foi obrigado a esconder-se na casa de sua tia, em Pskov, onde ficou
muito doente durante um mês. Ele mal havia se recuperado quando chegaram
as notícias da morte do pai e por esta razão estava voltando a Petersburgo para
PROF. MONIR: Esse então vai buscar o dinheiro do pai que o expulsou de
casa, que o ameaçou de morte – teve que sumir para não ser morto pelo
próprio pai, e o outro está voltando depois de ter passado cinco anos num
sanatório para doentes mentais na Suíça, onde deveria ter melhorado algu-
ma coisa.
Na próxima cena, estamos na casa dos Iepántchins, uma família burguesa emer-
15 Nota do resumidor – Generala por força do casamento com um “general”, título que, na
Rússia Imperial, não correspondia necessariamente a um posto militar, mas a postos do servi-
linhagem, e Míchkin não tem mais ninguém nessa vida. Enquanto espera ser
recebido, sob olhos suspeitosos de sua aparência pobre, Míchkin comenta com
os empregados, com toda a ingenuidade, a respeito das coisas que tem visto e
experiente criado não podia deixar de notar que se algo que fica bastante
bem a um homem em conversa com outro homem já não fica nada bem a
deles, o criado meteu na cabeça que ali havia duas coisas: ou o príncipe
(págs. 39 e 40)
Míchkin diz ter assistido na França a uma execução pela guilhotina e explica sua
teoria de a morte por tortura ser melhor do que a morte instantânea, porque du-
suspeita que o príncipe viera buscar auxílio financeiro. Míchkin, apesar de só ter
alguns copeques,
nega peremptoriamente mais de uma vez, mas quando tenta explicar seus ver-
na.
Naquela noite, na festa de aniversário desta moça, esperava-se que ela anuncias-
de Nastácia e que Rogójin havia voltado no mesmo trem que ele, os presentes
PROF. MONIR: Se fosse o seu caso, vocês falariam isso?: “Ah, a Nastácia? Aca-
bei de ouvir falar nessa tal de Nastácia no trem agora a pouco, um tal de
Rogójin...”
Totski, livrar-se-ia dela, que ele teme, e casar-se-ia com a filha mais velha do ge-
neral, Alieksandra.
PROF. MONIR: Então a explicação é a seguinte: essa Nastácia, por causa des-
se seu modo de ser, tinha um protetor. O que é um protetor? É um homem
mais velho, de modo geral rico, que a sustenta. Então ele a mantém como
amante lá numa casinha. Só que Nastácia é um pouco perigosa, e ele está
querendo se livrar dela. Então está querendo casá-la com o Gánia, e ele fi-
caria por sua vez com a filha do general. O plano era esse, fazer essa trian-
gulação para que Totski, que é amigo do general, pudesse passar Nastácia
para Gánia. O Gánia, por sua vez, é um sujeito muito imaturo, que pertence
a uma família empobrecida que precisa alugar quartos pra viver. E para esse
Gánia a Nastácia é o superprêmio, não é? Porque afinal ela é muito cobiçada.
E haviam combinado fazer isso naquela noite em que o Príncipe Míchkin
chegou a São Petesburgo.
cia e receberia a soma de setenta e cinco mil rublos como dote, preço que Totski
sem amar Gánia, um rapaz de vinte e sete anos, ambicioso e arrimo de uma fa-
PROF. MONIR: Vocês se lembram de todos os nomes já, a essa altura, não é?
ALUNOS: [Risos]
Ao leitor é revelado que o “protetor” Totski, que a recolhera como órfã, havia se
mantido como amante numa pequena fazenda na “Aldeia das Delícias”. Míchkin
PROF. MONIR: Uma das coisas que o Míchkin faz muito bem: ele é um grande
intérprete de fisionomias. Então vê o retrato da Nastácia, que ele não co-
nhece, e lê na aparência daquele retrato orgulho e apatia, um misto dessas
duas coisas.
Era como se quisesse decifrar algo que se ocultava naquele rosto que
coisa. Esse rosto, incomum pela beleza e por alguma outra coisa, agora o
impressionava ainda mais. Era como se nesse rosto houvesse uma altivez
sem fim e um desprezo, quase ódio, e ao mesmo tempo algo crédulo, algo
até uma certa compaixão quando se olhava para aqueles traços. Aquela
gatório que ela ensaiava sobre o colar de pérolas que teria comprado como
PROF. MONIR: Tá vendo, não sobra ninguém. Então, quando a mulher vai co-
brá-lo por ele ter comprado um colar para a Nastácia, ele fala: “Olha, chegou
seu primo aqui”. E passa o príncipe para a mulher e para as suas filhas, que
vão depois conversar numa outra sala.
disse a generala.
sempre boa, esse é o meu único defeito, porque não se deve ser sempre bom...
Ivan Fiódorovitch, mas o que é detestável é que sou sempre mais bondosa
e imaginei que não entendo e não consigo entender nada. Isso acontece
pode conceber sobre a terra. Em seguida conta a história de Marie, uma moça
caída em desgraça na cidade suíça onde ele vivera. A moça havia sido repelida
pela comunidade (incluindo sua própria mãe, cuja morte “por desgosto” depois
fora atribuída pelo pastor à própria filha), porque havia sido seduzida por um cai-
xeiro viajante. Míchkin, apiedado dela, havia lutado para recuperar o seu concei-
to, mesmo às custas do seu próprio (a comunidade não lhe perdoou ter beijado
a moça) mas, finalmente, quando a moça morreu de tuberculose, seu caixão foi
16 Nota do resumidor – Exatamente o caso de Dostoiévski, que teve sua sentença de morte
para a execução.
foi bem perto da minha partida –; ele me disse que se havia convencido
criança, que apenas pelo tamanho e pelo rosto eu me pareço com um adulto
não sou um adulto e assim o serei mesmo que viva até os sessenta anos. Eu
ri muito: é claro que ele não tem razão, porque, que criança sou eu? (pág. 98)
com Nastácia e deixa entrever a rivalidade entre elas que aparecerá mais tarde
no romance.) O príncipe, como era de hábito, conta tudo, incluindo que havia
PROF. MONIR: Outra vez em que abriu a boca e não devia. Ele não tem a
menor preocupação de saber o impacto das coisas que ele diz, ele simples-
mente fala. É uma criança, sob esse ponto de vista, entenderam? Uma crian-
ça despreocupada, que vai falando mais ou menos o que lhe vem à cabeça.
do o príncipe vai voltando com a foto, Gánia pede a ele que entregue a Aglaia
um bilhete onde ele dizia só querer o dote e que se Aglaia casasse com ele, ele
PROF. MONIR: Pronto, então esse que naquela noite vai ficar noivo de Nastá-
cia contra setenta e cinco mil rublos está na verdade é querendo casar é com
a Aglaia. E ele manda o bilhete via Príncipe Míchkin – vejam, esse sujeito
chegou há quinze minutos, e já está metido até o pescoço em tudo quanto
é romance e encrenca.
Aglaia responde “que não faz barganhas”, o que enfurece Gánia contra Aglaia e
reage:
o príncipe –, que antes eu realmente era uma pessoa tão sem saúde que
de fato era quase um idiota; mas hoje estou restabelecido há muito tempo
entanto o senhor, movido por seu despeito, chegou até a me insultar duas
Vocês ficaram bem impressionados com o Míchkin até agora, ou não? A im-
pressão que você tem é boa? Vocês casariam com ele?
De fato, antes de sair, o general havia dado a Míchkin vinte e cinco rublos e a
ele alugar um quarto na casa de Gánia, para onde a dupla estava se dirigindo. A
A narrativa muda para a casa dos Ívolguins, a família empobrecida de Gánia. Se-
intenção de chamar a atenção e melhorar a sua velhice amarga. Gánia tem ver-
PROF. MONIR: Então Gánia tem uns problemas: o pai dele é alcoólatra, men-
tiroso, e pega dinheiro emprestado com os inquilinos. O outro inquilino
também pega dinheiro emprestado e não paga. A mãe e a irmã estão contra
o casamento dele com a Nastácia, cujo noivado seria naquela noite. Ainda
por cima, o plano que ele montou para tentar recuperar a Aglaia, filha do
seu patrão, de quem ele de fato gosta, deu errado.
moça chega na casa dos Ívolguins, confunde Míchkin com um empregado, en-
trega-lhe seu casaco, admoesta-o por sua incompetência (“Vejam, agora deixou
ALUNOS:[Risos]
PROF. MONIR: Nastácia veio à casa do noivo. Míchkin está tão malvestido
que parece um criado. Então ela já dá uma porção de ordens para ele, o
xinga.
quilinos (“Onde está o seu gabinete? E... os inquilinos? Sim, porque vocês não
sas. O general conta com intenso interesse o episódio do cachorrinho que ele
ALUNOS: Não.
ALUNOS: [Risos]
PROF. MONIR: Mesmo se fossem solteiros, não casariam? Muito bem. Vocês
cuidem, porque essas suas convicções estarão bem modificadas no final.
amigos vulgares (entre eles Liébediev, aquele do trem), incluindo duas mulheres
leva em frente o seu plano de “comprar” Gánia, a quem ele acusa de fazer qual-
quer coisa por dinheiro. Mais do que isso, Rogójin, entre outras grosserias, afirma
PROF. MONIR: Mas que coisa extraordinária, e com a mulher ali presente. Ele
diz: “Olha, você vai levar setenta e cinco mil, não é? Pois eu dou cem mil para
você se casar comigo”. Se eu fosse mulher, ficaria ofendida com uma con-
versa dessas. Não parece ser um modo muito elegante de conversar sobre
o assunto.
seus lugares e aguardavam assustadas e caladas até onde aquilo iria chegar;
(págs. 146-147)
Começa uma briga que envolve quase todos. Vária pede que alguém ponha
Nastácia (“esta sem-vergonhice”) para fora. Como o irmão não o faz, cospe-lhe
na cara. Gánia faz menção de agredi-la. Míchkin intervém para defender a moça
e é atingido por Gánia com uma bofetada. Nastácia faz pouco de Vária: “Isso sim
que é moça...”
de toda a família. Rogójin diz a Gánia que ele iria se arrepender por ter ofendido
“semelhante... ovelha”.
mente, ela faria o anúncio de seu noivado com ele). Rogójin sai debochadamen-
PROF. MONIR: A Nastácia, que vai noivar com Gánia naquela noite, sai com
outro antes da festa, convidando o noivo para o seu aniversário. Essa situa-
ção parece normal para vocês? Parece uma situação bem torta.
O que tinha era o hábito do dote, muito comum na França e na Europa toda,
até pouquíssimo tempo. Tem muitos países do mundo em que é assim ain-
da. Aqui no Brasil não tem mais, mas sobrou o hábito de os pais da noiva
pagarem a festa de casamento, o que é uma espécie de remanescente sim-
Míchkin vai para seu quarto onde Vária e Kólia, que simpatizavam com ele, o visi-
tam. Entra Gánia e se desculpa humildemente com o príncipe, mas seu orgulho
ressurge rapidamente, reafirmando que Nastácia iria se casar com ele porque
ele seria um homem original. Míchkin diz-lhe que ele é apenas um homem co-
mum e até mais fraco que a maioria. Insultado, Gánia diz que, com dinheiro,
ele será um homem “original” e ironiza Míchkin por sua excessiva simpatia por
PROF. MONIR: Olhem, pessoal, levem em consideração que esse Príncipe Mí-
chkin só está há três ou quatro horas nessa cidade, e já está metido nesse
grau de confusão. Gánia ficou agora com ciúmes de Míchkin, achando que
o Míchkin está interessado na Nastácia. Como não era incomum, não é? Fi-
carem interessados na Nastácia, nessa cidade.
sido convidado.
lhe dar dez dos vinte e cinco rublos que recebeu e lhe entrega a nota esperando
receber a diferença).
PROF. MONIR: Kólia, quem é? É o irmão de Gánia. Então são três irmãos: o
Gánia, a Vária e o Kólia. Portanto esse Kólia é filho do general que está passe-
ando bêbado com Míchkin de noite pelas ruas de São Petesburgo, tentando
mostrar para o Míchkin onde é a casa da Nastácia.
mulher “mantida” pelo aposentado, que recebe o velho com vários desaforos
por causa de certa dívida que ele teria contraído a expensas do patrimônio dela.
receber quinze de volta, e agora está novamente sem dinheiro nenhum. O ge-
PROF. MONIR: Então sabemos que o general tem uma amante, que é essa
Marfa Borísovna. Como é o nome do pai dela?
ALUNOS: Bóris.
tar publicamente a pior coisa que já haviam feito. Não se trata de contar para
publicamente.
O primeiro é Fierdischenko que confessa ter uma vez roubado uma pequena
quantidade de dinheiro, ato que se atribuiu a uma empregada que foi demitida.
uma sopeira, supôs ter sido uma velha de oitenta anos da casa de quem havia
aquilo outro” para em seguida descobrir que ela estava morta havia meia hora.
Conclui a história dizendo que para purgar a culpa, havia doado uma boa soma
à caridade. Totski conta a peça de mau gosto que pregou num conhecido apai-
xonado.
PROF. MONIR: Totski é o amante que quer se livrar de Nastácia para casar
com a filha do general.
passar o tempo.
que ficaria sem as flores, teve convulsões e delírio mas recuperou-se, apenas
diz que ela fará a última confissão. A moça comunica a Míchkin (que suposta-
mente não sabe de nada) que o General Iepántchin e Totski querem casá-la com
Gánia e lhe pergunta se ela deve ou não aceitar. Míchkin responde “não” a esta
PROF. MONIR: Pronto, acabou o noivado. Por obra do Príncipe Míchkin, que
conseguiu fazer com que o negócio desse errado.
Ainda por cima, anuncia que libera Totski do seu compromisso moral com ela;
rejeita o dote de setenta e cinco mil rublos e diz que planeja deixar São Pe-
mulher dele.
A confusão aumenta com a chegada de Rógojin com seu usual grupo de delin-
18 Nota do resumidor – Naquela época, fazia furor o romance A Dama das Camélias de Ale-
Confrontada com um pacote de notas, Nastácia lembra à audiência como ela foi
que ela é vista como uma mulher caída, ela é a primeira a desprezar a si mesma
e vê no seu orgulho sua única arma contra este mundo duro). Anuncia que vai
dizendo que a ama e irá amá-la por seu verdadeiro caráter e, quando começam
as risadinhas, o príncipe revela que lhe foi anunciada por carta grande herança
PROF. MONIR: Nastácia diz que não vai se casar com Gánia, porque não está
interessada nos setenta e cinco mil, e agora o Príncipe Míchkin diz que quer
casar com ela. Tudo isso em quatro horas depois que ele chegou na cidade.
– Eu não sei nada, Nastácia Filíppovna, eu não vi nada, a senhora tem razão,
pura, e isso é muito. De que se envergonha e por que quer ir se com Rogójin?
Isso é febre... A senhora devolveu ao senhor Totski setenta mil rublos e diz
que vai abandonar tudo o que existe aqui; ninguém aqui presente faria tal
coisa. Eu, Nastácia Filíppovna, a... a amo. E morrerei pela senhora, Nastácia
Filíppovna. Não permito que ninguém diga uma palavra contra a senhora...
(...)
ainda não sei ao certo, e lamento que até este momento, depois de um dia
inteiro, eu não tenha me inteirado de nada, mas na Suíça eu recebi uma carta
para receber uma herança muito grande. Veja esta carta... (págs. 196-197)
Nastácia concorda com casar com ele. Míchkin diz que desconsidera todo o pas-
sado dela e que iria sempre respeitá-la, mas a aceitação por Nastácia da oferta de
volta-se para Rogójin. Prepara-se para sair com ele, mas antes faz o último gesto
de rebelião contra Totski, Gánia e Iepántchin: atira o maço dos cem mil rublos
no fogo e desafia Gánia a apanhá-lo com as mãos nuas, condição para ele poder
ficar com o dinheiro. Gánia resiste sob protestos gerais e, finalmente, sob muita
invólucro e diz que o dinheiro é de Gánia, ainda desacordado. Míchkin sai atrás
PROF. MONIR: E então, não foi um bom dia, para começar a estadia em São
Petesburgo? O resultado final disso é que foi desmontado o plano do gene-
ral e do Totski. Nastácia foge com Rogójin, com quem ela tem uma ligação
de caráter, de personalidade; parecem ter muitas semelhanças esses dois
entre si. O Príncipe Míchkin a pede em casamento, é aceito, e depois recu-
sado. E parece que Gánia perdeu tudo, não é? Ganhou cem mil rublos por
um gesto de generosidade. Não foram acontecimentos muito intensos para
começar a história?
Livro II
O Príncipe Míchkin parte para Moscou para tratar de assuntos ligados à sua he-
se da forma mais distante da prática... Por outro lado, aí ele acabou fazendo
amigos, para os quais essa gentinha e todos esses tais credores não tinham
PROF. MONIR: Então, todo o mundo que apareceu lá dizendo que tinha di-
nheiro a ver com a herança, ele pagou dizendo que fazia isso porque afinal a
pessoa que estava pedindo havia sofrido também. Ele achava que tinha que
dar o dinheiro. Então, isso aumenta ou diminui, melhora ou piora a imagem
do Príncipe Míchkin para vocês? Aquelas que queriam casar com ele, conti-
nuam querendo casar? [risos] Muito bem, continuamos:
mente volta para São Petersburgo e, assim que chega na estação, percebe-se
PROF. MONIR: O Liébdiev era aquele que estava no trem, no início, aquele de
40 anos, conhecido do Rogójin.
quisera por compaixão e que achava difícil distinguir o amor dele (Rogójin) do
ódio. Rogójin retruca dizendo que Nastácia ama realmente Míchkin mas não
quer corrompê-lo com a ligação com ela e é por isso que ela voltou-se para ele
(Rogójin). Confessa que uma vez, por causa de suas provocações, ele a havia
espancado para valer. A atenção dos dois é atraída para uma aterrorizante pin-
Holbein, o Jovem, pintado originalmente em 1521. A obra está em Basileia, onde Dostoiévski
a viu.
tro encontros que teve com a fé. O primeiro estava associado a um ateu e o
segundo envolvia um homem religioso que matou seu amigo por um relógio
Depois de ouvir estas duas histórias, Rogójin comenta: “Um não acredita em
um soldado bêbado, que pensava que o enganava dizendo que era de prata, e
de uma mãe feliz cuidando de uma criança que disse: “Deus sente esta mesma
para orar diante Dele”. Como Parfen Rogójin queria saber se Míchkin acredita ou
20 Nota do resumidor – Este fato aconteceu num distrito chamado Míchkin. Dostoiévski leu a
que vai ser sempre diferente. Aí há qualquer coisa sobre a qual irão escorregar
No entanto, o principal é que a gente percebe isso com mais clareza e antes
leva o príncipe para conhecer sua mãe, entrevada desde a morte do marido,
PROF. MONIR: Essa história aí vocês não sabem que é importante, mas na
igreja ortodoxa, que é o cristianismo da Rússia, há uma polêmica enorme
se você deve abençoar com três dedos ou com dois. Houve na verdade uma
dissensão entre aquelas igrejas lá – porque tem uma igreja ortodoxa da Gré-
cia, outra na Rússia, e essa dissensão é por causa dessa polêmica, de saber
com quantos dedos você abençoa. Por isso é que está escrito isso aí; para
nós aparentemente não tem muita importância, mas tem importância lá no
contexto russo da história.
até chegar à casa de Nastácia Filippovna. Ela não está, mas o príncipe percebe
que tem sido seguido por Rogójin o tempo todo. Míchkin volta para seu hotel,
onde no alto de uma escadaria escura Rogójin tenta esfaqueá-lo. Neste momen-
to, Míchkin sofre um ataque epilético que “desarma” Rogójin, faz com que o prín-
mão direita ergueu se e alguma coisa brilhou dentro dela; o príncipe não
uma luz interior inusitada lhe iluminou a alma. Esse instante durou talvez
meio segundo; mas ele, não obstante, lembrava se com clareza inconsciente
peito por si mesmo e por força nenhuma ele seria capaz de deter. Depois sua
(págs. 269-270)
vlosk, Míchkin é visitado pelos Iepántchins (que têm sua própria dacha a trezen-
PROF. MONIR: Deve ser Schneider, mas ele está escondendo por alguma ra-
zão.
PROF. MONIR: Esses dois são personagens novas, são dois jovens que estão
cortejando as duas moças. É verão, porque ninguém na Rússia vai à dacha
no inverno, é impossível. Logo estamos aqui no verão, e o príncipe está des-
cansando num quarto que ele alugou. A família do General Iepátchin – o
general casado com a prima – mora ali pertinho, e aí aparece todo mundo
lá na casa dele.
ao leitor que Aglaia está apaixonada pelo príncipe, mas ela garante que não, e
capaz de ter um ideal, e em segundo lugar, uma vez que se propôs o ideal, foi
vida”, sem que se saiba se ela fala sério ou ironiza, como é quase sempre o caso.
não cômico. A princípio eu não compreendia e ria, mas agora amo o ‘cavaleiro
Natural e taciturno,
De ar pálido e soturno
(...)
(...)
(...)
PROF. MONIR: Não é um poema cruel, esse? Aglaia é a filha do general, aque-
la que é pedida em casamento pelo Gánia, a quem não aceita. E aqui nesse
Dá pra imaginar que ela tenha algum interesse no príncipe, que seja uma
poesia motivada por ciúme, pelo fato de que o príncipe está apaixonado
pela Nastácia?
Olhem só como isso é irônico: [repete o poema escrito por Míchkin]. O poema
descreve o príncipe, não é? Ou se trata de uma pessoa muito cruel, fazendo
uma piada com alguém por mera crueldade, ou é uma mulher indignada
de ciúmes. Sabemos aí que há chance de termos também Aglaia envolvida
nesse romance.
Neste mesmo dia, mais tarde, aparecem quatro rapazes que exigem ver Míchkin,
ele não é o verdadeiro filho de Pavilischov, mas Antip Burdovski, fruto de uma
por Liébediev):
23 Nota do resumidor – A herança que Míchkin recebeu era de uma tia e não de Pavilischov,
ele for analisado juridicamente nós não teremos o direito de exigir um único
– Ah, o senhor acabou de receber uma herança. Pois esse nosso companhei-
ro aqui tem direito à metade da sua herança.
– Aquele homem que foi seu protetor [Pavlischov], que o mandou para a
Suíça, teve um filho ilegítimo, que é esse aqui.
Mas a herança não vinha daquele homem. A herança vinha de uma tia do
príncipe Míchkin. Portanto a pretensão é de uma ilegitimidade tamanha, e
eles admitem que não têm capacidade jurídica de cobrar aquilo. Mas eles
vêm cobrar porque acham que o Príncipe Míchkin vai pagá-los. Que vai dar
a eles dinheiro, como deu a todos os pretendentes à herança lá em Moscou.
Vamos ver o que acontece:
verificar o caso e já descobrira que se tratava de fraude pura e simples urdida por
todos, o príncipe concorda com uma indenização, dizendo que não daria àque-
les homens dinheiro para aliviar a consciência, mas porque Pavlischov tinha in-
teresse em Burdovski (este era sobrinho de uma mulher por quem Pavlischov
havia gasto com sua (do príncipe) educação e saúde, supondo que Burdovski
havia sido enganado por Tchebarov, mas não sem lamentar a desfaçatez com
PROF. MONIR: É, porque Burdovski falou que a mãe dele teve um caso com
o advogado. Vocês entenderam o que aconteceu? A lógica do Príncipe Mí-
chkin é assim:
“Olha, você está me pedindo cinquenta mil reais, e eu sei que não lhe devo
cinquenta mil reais. Mas como acho que você está me pedindo isso porque
foi enganado pelo seu advogado, para você não ficar mal vou lhe dar os
cinquenta mil reais”.
PROF. MONIR: Mesmo que fosse, Míchkin não tinha a obrigação de pagar
aquilo, porque afinal de contas o dinheiro que ele recebeu não era do prote-
tor. Um pretenso filho do protetor chega lá e diz: “Olha, sou filho do fulano,
porque a minha mãe teve um caso com ele” (o que era uma maneira chata
de você expor sua mãe, naquela época pelo menos – hoje eu não sei se não
seria considerado bacana...). E continua: “Veja, estou querendo metade des-
sa herança, porque eu sou filho.” Daí Míchkin diz: “A herança não é dessa fon-
te, é de outra, mas mesmo assim vou te pagar. Porque afinal de contas você
veio aqui falar comigo, e tenho certeza de que você está sendo induzido. Se
eu não pagar, você vai ficar muito mal perante os seus amigos. Por isso vou
pagar você”. Vocês acham normal uma atitude dessas?
ALUNA: [Comenta que o Michkin é uma pessoa consciente, que quer retribuir o
bem que o protetor lhe fez.]
PROF. MONIR: É isso que Míchkin está alegando. Ele diz assim: “Do mesmo
modo que o seu pai gastou dez mil rublos comigo, para me manter em tra-
tamento na Suíça, vou dar dez mil rublos para você, vou lhe dar isso de pre-
sente, já que você diz que é filho dele mesmo”.
Uma pessoa normal nessa situação faria o quê? Pegaria uma espingarda e
expulsaria aqueles vigaristas de casa, porque eles queriam metade da he-
rança com aquela alegação. No entanto ele não fará nada disso; ele faz o
quê? De certa maneira ele concede a reivindicação, que parece exorbitante.
PROF. MONIR: Não, ele é príncipe mesmo, ele tem esse título. Não é porque
ele é altruísta, mesmo porque os príncipes não devem ser muito altruístas,
de modo geral.
Explica o príncipe:
– Sim, é claro que é uma vigarice! Porque se agora se verifica que o senhor
senhor Burdovski vem a ser uma franca vigarice (isto é, naturalmente se ele
sabia a verdade!). Mas o problema está exatamente em que ele foi enganado,
por isso eu insisto em absolvê lo; é por isso que eu digo que ele é digno de
pena, por sua ingenuidade, e não pode ficar sem apoio; porque senão ele
PROF. MONIR: O que Burdovski de fato é, né? Mas Míchkin está absolvendo
o homem!
(pág. 314)
PROF. MONIR: E aí, o que vocês acharam da atitude do príncipe? Foi correta?
PROF. MONIR: Ele não acredita, ele sabe que é mentira, mas está queren-
do fazer parecer que Burdovski não é vigarista. E como é que Míchkin faz
para dar a aparência de que ele não é um vigarista? Concordando com a
reivindicação que o príncipe sabe que é falsa. Ele sabe que o Burdovski não
tem direito a nada, mas não quer que o outro fique com fama de vigarista,
e para não deixá-lo passar por essa vergonha, ele finge que Burdovski foi
enganado pelo advogado, e que portanto deve receber uma compensação
financeira de dez mil rublos.
seguida de sua comitiva. O príncipe, por sua vez, ao ver o grupo de rapazes sair
ofendido, recusando o dinheiro que insiste em dar, acha-se culpado de ter sido
grosseiro e insensível.
PROF. MONIR: Os quatro dizem assim: “O quê, dez mil rublos? De jeito ne-
nhum, metade ou nada!” E vão embora chateados, recusam os dez mil ru-
Os chantagistas acabam ficando por ali, convidados pelo príncipe e pelo menos
um, Keller, seguirá na cena até o fim da história, tomando logo de cara a inicia-
metros até a sua dacha, aproxima-se uma carruagem de onde uma voz feminina
grita a Radomski, que cortejava Aglaia, que não precisava temer certa promissó-
ria, porque Rogójin a havia resgatado. Radomski, atônito, diz não saber de nada.
PROF. MONIR: Aglaia é uma das filhas daquele general, não é? Quando
Aglaia está andando com seu pretendente, Radomski, de uma carruagem
vem uma voz de mulher – que parece ser a voz de Nastácia – gritando alto,
para que todos ouçam, que Radomski não tem que se preocupar com aque-
la promissória, porque Rogójin já pagou. E Radomski fica atônito. Bom, ima-
ginem que isso seja mentira, que não tenha promissória nenhuma. Por que
será que a Nastácia teria feito uma coisa dessas?
PROF. MONIR: Mas por que ela quer denegrir o Radomski? Para ele perder as
chances de casar com Aglaia. E porque ela quer que ele perca a chance de
casar com Aglaia?
PROF. MONIR: É, haveria a chance de Aglaia se casar com Míchkin. Mas por-
que a Nastácia iria eventualmente desejar que a Aglaia casasse com o Mí-
chkin?
Nastácia está com Rogójin, não é? O Príncipe Míchkin está sem mulher ne-
nhuma, se recuperando da facada que recebeu do Rogójin, e o que a Nas-
tácia quer fazer? Ela quer criar condições para que o Príncipe Míchkin case
com a Aglaia.
PROF. MONIR: Mas o normal não seria que ela quisesse o príncipe pra ela?
[Alunos conversando]
ALUNA: [Comenta que como ela gosta do príncipe ela está tentando salvá-lo.]
PROF. MONIR: Pode ser, esta é uma possibilidade. Agora, vem cá. Vocês que
são mulheres, me contem: é normal que uma mulher, quando gosta de um
homem, arrume um jeito de ele casar com outra?
Alunos: [ Risos]
PROF. MONIR: Ah, é mesmo? Que faça um esforço desse tamanho? Bom, va-
mos deixar essa dúvida. Eu falei para vocês que essa é a história mais bacana
do Dostoiévski, essa história é maravilhosa.
com uma carta que o príncipe havia escrito para a filha dela. Ele alega que havia
escrito como irmão, não como amante. Ela revela que Vária havia aproximado
Nastácia e Aglaia.
*******
INTERVALO
*******
Naquela mesma noite eles vão para a festa na casa da Nastácia Filíppovna.
O Rogójin também aparece e ela vai embora com o Rogójin, demonstran-
do preferência por ele e estragando o próprio noivado. A noite, que come-
çou com uma brincadeira de cada um contar uma vergonha, acabou com
a Aglaia fazendo uma provocação, entregando todo o esquema que havia
lá. O Príncipe Míchkin vai embora, para cuidar da sua herança em Moscou,
herança que já veio diminuída, porque ele aceitou todas as alegações de
credores, por mais absurdas que fossem. De volta a São Petersburgo reen-
contra o Rogójin, que também havia estado em Moscou nesse meio tempo,
Esta parte começa com o aniversário do Príncipe Míchkin, na dacha dos Iepán-
que se declare liberal não é russo. Para ele, liberalismo seria alguma coisa impor-
tada da Europa e seus adeptos na Rússia não visariam a melhoria do país, mas
estariam solapando cada fundação sobre a qual a Rússia estava assentada. Estes
O Príncipe Míchkin, que não está se sentindo bem, pede que se desculpe seu
Às vezes lhe dava vontade de ir para algum lugar, sumir inteiramente dali, e
ao menos estar em sua casa, no terraço, mas de tal forma que não houvesse
ninguém, nem Liébediev, nem as crianças; queria deixar se cair no seu sofá,
para as nuvens brancas, para o velho castelo abandonado. Oh, como ele
Míchkin confessa que está cansado e dá longa explicação sobre suas limita-
ções: “... depois de vinte anos de doença, alguma coisa deveria restar, de maneira que
é impossível que não riam de mim... às vezes... não é assim?” Todos riem. Sua cân-
dida confissão é vista pelo grupo como nova demonstração de idiotia. Aglaia,
por seu bom e generoso caráter, mas o despreza por confissões como aquela.
Quando alguém faz pouco do príncipe, ela o odeia, sobretudo porque Míchkin
recebe os insultos como uma criança submissa. Ela grita com ele: “Por que você
se rebaixa a nível mais baixo que eles? Por que está tudo virado dentro de você, não
há orgulho em você?” Ela é orgulhosa e, apesar de amar o príncipe, não quer ser
vista seguindo um “idiota”. (O que ela não vê é a sutil dignidade do príncipe, que
aparenta submissão.)
PROF. MONIR: Este é um comentário que eu fiz que não deveria estar aí. É
um comentário despropositado porque não está no livro. Sou eu que estou
dizendo isso.
Neste encontro, Aglaia, sempre muito agressiva, acusa sua mãe e irmãs de esta-
rem conspirando para casá la com Míchkin, apesar de tal esquema não existir.
importa quanto ela for provocada. Ele responde: “Eu não te pedi em casamento,
Aglaia Ivanovna”. Depois desta resposta ela se acalma e até mesmo começa a rir.
Vão ouvir as bandas no parque. Aglaia, caminhando de mãos dadas com Mí-
chkin, aponta um banco verde e confidencia que ela senta ali todas as manhãs
antes de os outros acordarem. Ele reage com indiferença. Mais tarde, o príncipe
receberia um bilhete dela pedindo lhe que ele a encontre naquele banco na
manhã seguinte às sete horas. (Aglaia está desgostosa com o fato de ter de lhe
PROF. MONIR: É, ela fala assim: “Todo o dia de manhã eu estou aqui, não tem
ninguém comigo, eu fico aqui sozinha...”
ALUNOS: [Risos]
Então ela manda o bilhete, porque ele não reage. Ele não tem sutileza, malí-
cia. Ele não tem a percepção.
primeira vez, desde a festa de aniversário dela. O grupo Iepántchin fica chocado
em vê la. Ela é cada vez mais vista como uma desgraça para a sociedade de
não sabe, imaginem!”), com o objetivo de diminuir o prestígio do rapaz junto aos
Iepántchins.
PROF. MONIR: Alguma dúvida de que Nastácia está tentando minar a po-
sição política de Radomski frente à família? Ela sem dúvida quer que Ra-
domski saia da jogada para que o príncipe possa casar com Aglaia.
(Com isso, ela espera retirar o rapaz da disputa por Aglaia, deixando apenas o
príncipe Míchkin no páreo. Ela confessaria depois que amava o príncipe; mas
quer que ele seja feliz, coisa que só Aglaia poderia fazer.) O príncipe está inco-
Por causa das provocações da moça, um oficial amigo de Radomski insulta Nas-
tácia: “Esse é um simples caso para chibata” e ela lhe dá uma bengalada no rosto.
vem salvá lo, mas Míchkin agora corre o risco de ter de enfrentar um duelo.
Aglaia chega mesmo a lhe dar instruções sobre como agir num duelo e ele ad-
mite estar com medo. Como ela quer saber se ele é covarde, Míchkin esclarece
que “covarde é aquele que tem medo e foge; mas quem tem medo e não foge ainda
não é um covarde”.
O príncipe promete ir no dia seguinte. Rogójin revela que Nastácia e Aglaia têm
se correspondido.
prevalência do interesse próprio são sinais que simbolizam, de acordo com ele,
que a era do último cavaleiro25 chegou e com ela a própria falência da humani-
dade.
O tuberculoso Hippolit lê um artigo (tipo “carta aberta”) aos seus amigos. O do-
moi le déluge”26 .
26 Nota do resumidor – “Depois de mim, o dilúvio”, expressão atribuída a Luís XV, mas de
sões, mas também traz ideias interessantes. Hippolit, que vai morrer em poucos
turbado por ela, achando também que ela tem o poder de diminuir a fé em
Deus.
supliciado, surge uma pergunta especial e curiosa: se este cadáver fosse visto
exatamente assim (e sem falta ele devia ser exatamente assim) por todos os
seus discípulos, por seus principais e futuros apóstolos, pelas mulheres que
autenticidade duvidosa.
O grupo reunido pede a Hippolit que não cometa suicídio. Ele parece concor-
dar, mas quando o sol se levanta, ele sai da casa, puxa uma pistola, encosta o
cano na cabeça e puxa o gatilho. A arma não dispara, porque não havia bala no
cano. As opiniões sobre este incidente variam, ficando a maioria com a tese de
que se tratava apenas de uma exibição, não tendo Hippolit realmente intenção
de matar-se.
O príncipe vai ver Aglaia na manhã seguinte no banco verde, conforme com-
binado. O bizarro triângulo entre Nastácia, Aglaia e Míchkin revela se neste en-
contro. Aglaia vagamente confessa seu amor ao príncipe, propondo fugir com
ele. Ele recusa. Aglaia lhe entrega as cartas que Nastácia lhe havia escrito. Aglaia
sabe que Nastácia ama o príncipe, mas quer que ele case com ela. Aglaia ama
Míchkin, mas quer que ele se case com ela de vontade própria e não porque
(Aglaia), insistindo no fato de que ela só quer fazer o príncipe feliz, porque ele
sabe quão infeliz ela (Nastácia) é e tem simpatia por ela. A Nastácia destas cartas,
O problema é claro, não pode ser resolvido com facilidade, porque o príncipe
insiste em salvar Nastácia, que só ama Míchkin, que é vago e ingênuo nas coisas
do amor. Aglaia está apaixonada por Míchkin, mas não pode suportar a presença
Livro IV
O narrador volta a atenção para Vária, irmã de Gánia, que decide bancar a casa-
menteira e unir seu irmão a Aglaia. Voltando da casa dos Iepántchins, contudo,
oficial. Gánia cogita de ele não ser um pretendente aceitável por causa de seu
pai, mas ainda há esperança, porque Vária lhe entrega um bilhete em que Aglaia
havia sumido e havia apenas três suspeitos, o General Ívolguin, Keller e Fierdis-
chenko.
a carteira. Liebédiev, para punir o velho e deixá lo ansioso, fez de conta que
a Liébediev que perdoe o general: “Perdão, mas com o simples fato de que ele pôs
o perdido tão à vista do senhor, debaixo da mesa e na sobrecasaca, com isso ele já
está lhe mostrando francamente que não quer artimanha com o senhor e lhe pede
Mais tarde, Míchkin encontra se com o indignado general que lhe revela estar se
se mudado para a casa de Vária, que havia casado com Ivan Ptitzin.) Segundo
seu hábito de inventar histórias, o general conta a Míchkin que, quando era pe-
dele, o menino russo, de suas opiniões e lhe havia pedido conselhos militares.
Na casa dos Iepántchins, Míchkin pede a mão de Aglaia que brinca com ele e
distorce suas palavras. Desta vez, a família está certa de que ela ama o príncipe
e decide aceitá lo como noivo da filha mais nova. Para legitimar o compromisso,
PROF. MONIR: Então Míchkin afinal de contas resolveu pedir Aglaia em casa-
mento. Agora eles vão fazer uma recepção de noivado (acho que vocês mais
ou menos imaginam o que vai acontecer nessa festa) em que finalmente
haverá a comunicação do casamento dos dois.
sivo porque Aglaia o havia pressionado para não agir como um idiota e nem
– Ouça de uma vez por todas – finalmente não se conteve Aglaia -, se você
ficar contente e vou rir muito, mas eu o previno de antemão: não me apareça
depois diante dos meus olhos! Está ouvindo: eu estou falando sério! Desta vez
Para seu alívio, o príncipe acha a companhia dos aristocratas muito agradável,
sem se dar conta de que se trata apenas de uma máscara social.“...Todas elas (as
pessoas convidadas), sem exceção, sabiam que estavam fazendo uma grande honra
aos Iepántchins com sua visita. Mas, infelizmente, o príncipe não desconfiou dessas
sutilezas.” Míchkin entra numa discussão sobre religião com alguns dos presen-
tes motivado pela declaração por um deles, de que o seu velho protetor Pavlis-
a uma fé... não cristã?... O Catolicismo é o mesmo que uma fé não cristã! –
Fiódorovitch.
Cristo deformado, que ele mesmo denegriu e profanou, um Cristo oposto! Ele
prega o anticristo, eu lhe juro, lhe asseguro! Esta é uma convicção minha e
sem um poder estatal mundial a Igreja não se sustenta na Terra e grita: ‘Non
possumus!’
Terra, do trono terrestre e pegou a espada; desde então não tem feito outra
dinheiro, pelo vil poder terrestre. Isso não é uma doutrina anticristã?! Como
e como as pessoas são boas. Excitado por esta conversa, Míchkin esbarra num
grande e precioso vaso chinês que se espatifa. O príncipe cai num ataque epilé-
comenta com Lisavieta Prokófieva: “Bem, é bom e parvo; e se queres saber a minha
opinião, é mais parvo. Tu mesma estás vendo que homem ele é, um homem doente!”
Míchkin dá se parcialmente conta do que fizera no dia anterior, mas coisas pio-
res estavam por vir. Aglaia o leva para se encontrar com Nastácia. O encontro,
dir, naquele momento, quem ele ama, Nastácia ou Aglaia, e ele reluta. Aquela
demora é demais para Aglaia que só o quer de todo o coração. Ela vai embora
da noiva, fica com ela. Aglaia desiste de Míchkin. Nastácia desiste de Rogójin. O
para convidados na casa dos pais da noiva, na qual ele foi apresentado a
está feliz com o casamento, Míchkin responde: “Feliz? Ah não! Só estou me casan-
do.” Com isso, fica claro que o príncipe só quer salvar Nastácia de Rogójin. No dia
Ela grita para ser salva e os dois, Nastácia e Rogójin, fogem por entre a turba.
graúdos e negros brilharam sobre a multidão como brasas; foi esse olhar
captou. Ela correu até ele feito louca e lhe segurou as duas mãos:
– Salva me! Leva me daqui! Para onde quiseres, neste instante! (pág. 657)
diz que ele não está, mas o príncipe pensa o haver entrevisto na janela. Bate na
porta dos vizinhos e pergunta por Rogójin de modo alterado. Procura Nastácia
Mas ele já se acostumara, de modo que podia distinguir toda a cama. Nela
cabeça por um lençol branco, mas os seus membros era como se estivessem
O príncipe olhava e sentia que quanto mais olhava mais morto e silencioso
ficava o quarto. Súbito zuniu uma mosca que acordava, passou voando
trado três ou quatro polegadas sob o seio esquerdo e que apenas uma colher
afasta se da cama onde estava o corpo e cai numa febre delirante. A cada uivo
dele, Míchkin enxuga lhe a testa. Quando a polícia finalmente chega, atraída pe-
alto, em tom ríspido e desconexo; punha se a gritar e a rir; então o príncipe lhe
o e afagava lhe as faces... nada mais conseguia fazer! Ele mesmo começava a
tremer outra vez, e outra vez era como se as pernas voltassem subitamente a
com uma melodia infinda. Enquanto isso, havia clareado por completo; por
a essa altura talvez não sentisse mais as suas próprias lágrimas e já nada
Suíça, agora desistiria e diria como naqueles tempos: ‘Idiota!’ (pág. 677)
na Sibéria. Aglaia casa se com um polonês cujos títulos e fortuna provariam mais
[Aplausos]
Para começar a entender, gostaria de perguntar para vocês: Como é que vo-
cês descreveriam o Príncipe Míchkin? Primeiro só as características positivas.
Ele também tem um problema tão óbvio que vocês não lembraram – tem
um problema de saúde, ele é fisicamente fraco. Tem crises de epilepsia, por-
tanto tem uma redução da capacidade física.
ALUNO: [Comenta que Dostoiévski devia ter uma personalidade muito pareci-
da com a personagem.]
PROF. MONIR: No entanto não é uma coisa muito irônica que você batize
uma personagem literária de idiota? Ele não está escrevendo um livro de
saúde mental, está escrevendo um romance, com uma personagem deste
tamanho, tão grande como essa. Eu tenho uma desconfiança muito trivial,
mas vamos ouvir vocês.
ALUNA: Ele tinha tudo na mão para dar certo e estraga tudo.
PROF. MONIR: Muito bem. Então você está me dizendo que essa é a razão
pela qual ser chamado de idiota possa ser justificado?
ALUNA: Isso.
PROF. MONIR: Eu estou desconfiado de que Dostoiévski possa ter dado esse
nome para o título do livro tentando obter uma outra coisa qualquer, que eu
ainda não sei bem o que é. Mas acho que a gente vai descobrir isso.
ALUNOS: Positiva.
ALUNA: Não seria pelo fato de que sendo uma alma nobre, com esse senso
de justiça apurado, ele destoava da realidade da época, era visto como um
alienado, bobo?
PROF. MONIR: Financeiras? Ah, sim. Por que o editor achou que ia vender
mais livros com esse título? Às vezes é essa a razão pela qual um sujeito põe
um título num livro.
O que nós sabemos é que ele não age de uma maneira convencional, de
uma maneira que qualquer pessoa aqui reputaria de bom senso. Mas isto
também não acontece com o Dom Quixote, que do ponto de vista de seu
comportamento também é inadequado. Dom Quixote está certo com rela-
ção ao céu, mas com relação à terra está errado, porque ele agride as pes-
soas.
192 Professor José Monir Nasser
ALUNO: Talvez por todas as suas qualidades a sociedade o trate como idiota,
mas ele é uma pessoa boa.
ALUNO: Exatamente.
ALUNA: A mim parece que ele era o único ali que não era um idiota. Tudo
aquilo que ele fez, ele fez com o coração, sem maldade.
PROF. MONIR: Me parece que esse é um bom caminho. Ele tinha consciência
da sua situação. Ele não era um sujeito inconsciente, como seria um idiota
tecnicamente falando. Portanto nesse caso o título teria uma conotação irô-
nica. Ele quereria dizer: “Está vendo, esse sujeito bom parece ao mundo um
idiota”.
ALUNO: Ele é um idiota porque ser uma pessoa boa nesse mundo cruel não
é um modelo sustentável.
PROF. MONIR: Mas vocês acham que o Dostoiévski tem essa personagem
em boa ou má conta?
ALUNOS: Boa.
PROF. MONIR: Ele vê com simpatia o Príncipe Míchkin, não vê? E no entanto
o chama de idiota.
ALUNO: Nesse mundo o que importa é dinheiro e as outras coisas. Como ele
não valoriza nada disso, então ele é um idiota.
PROF. MONIR: A impressão que eu tenho sobre esse assunto, para darmos
um passo à frente, é que o que caracteriza esse título é o seguinte: como
Dostoiévski quer nos apresentar uma personagem que é extremamente
boa, ele precisa fazer alguma coisa para “desangelizar” a narrativa. Ele não
pode angelizar a narrativa, porque daí ele cria um livro muito óbvio, muito
fechado, muito claro. Ele precisa botar na cabeça da gente a dúvida sobre se
essa pessoa tem ou não tem cabimento. Por isso é que no título ele precisa
criar um contraste muito grande com a personagem. É preciso que a perso-
nagem seja tipificada de um jeito e xingada do outro para que se possa ficar
nessa dúvida em que nós estamos aqui agora, senão seria como se essa per-
sonagem não fosse humana, mas uma personagem de natureza angélica.
ALUNA: Mas tem alguns pontos em que ele coloca mesmo o príncipe como
se fosse um Cristo: alguém que não reage, e ele é comparado a um cordei-
ro...
Há claros momentos em que ele parece com Jesus Cristo ou com uma cria-
tura angélica. Ele tem uma associação com a divindade. De onde vem o Prín-
cipe Míchkin? Do alto da montanha. Ele vem do céu! Como ele está vindo do
céu, ele não pode ser angelizado, porque aí o livro perde completamente a
força dramática.
O fato de que ele vem do céu de certo modo explica a razão pela qual ele
é doente. Lembram que quando ele tem o ataque epilético ele diz que vê
uma luz? Tem um fenômeno ligado à epilepsia – é como se a epilepsia fosse
uma espécie de contato mal feito com o céu. Dá um curto-circuito. O que
Dostoiévski está dizendo para nós é o seguinte: que não dá para você ficar
com o céu e não perder alguma coisa da terra.
PROF. MONIR: É, porque você tem que compensar uma coisa com a outra.
Quem vê Deus? Os mártires da Igreja, todos os santos... São as pessoas que
mortificam o corpo. Uma pessoa religiosa é uma pessoa que tem uma espé-
cie de modéstia corporal, que faz voto de castidade, voto de pobreza; por-
tanto faz uma troca. Você tem que compensar – você não consegue ficar
com o céu e a terra ao mesmo tempo. Se você pretende estar no céu, algu-
ma coisa você tem que perder na terra.
PROF. MONIR: Se ele não fosse idiota ele não seria humano, porque Dos-
toiévski na verdade quer nos dizer que há certo grau de incompatibilidade
entre essas duas coisas – há uma tensão enorme entre o céu e a terra, o
tempo todo. Vejam, a obra O Idiota é o Dom Quixote de Dostoiévski, pessoal.
É a mesma obra, é a mesma história, exatamente a mesma estrutura, só que
uma escrita por um russo, no século XIX e a outra escrita por um espanhol,
no século XVI. O sujeito que está excessivamente associado ao céu é um su-
jeito desbalanceado, torto, porque não consegue ser as duas coisas ao mes-
mo tempo. É como se ele fosse um anjo que desceu. Esse anjo traz coisas
que são angélicas, e que parecem aos olhos dos terrestres, dos habitantes
da planície, como coisas absolutamente cretinas e idiotas. A infantilidade
que a personagem tem é uma infantilidade de pureza de espírito. Quando
diz na Bíblia assim: “Deixai vir a mim as criancinhas”, Deus não está falando de
quem tem até seis anos de idade. Não é um problema de idade cronológica.
Ele está falando de uma certa pureza de coração, que é o que esse príncipe
tem.
ALUNA: Mas aquele trecho em que eles estão analisando o quadro e que
eles dizem que o quadro é para a pessoa perder a fé...
ALUNA: Ninguém quer ser como o príncipe, porque não percebem nada.
Por isso é que só vamos conseguir entender de fato este livro quando vocês
conseguirem me responder qual é a ligação que há entre o Príncipe Míchkin
e o Rogójin.
ALUNOS: [Comentários.]
PROF. MONIR: A atração mútua que há é a atração que faz o duplo. O duplo
que há dentro de você e se reflete na outra pessoa como sendo uma alter-
nativa a você próprio.
ALUNA:[Comenta que quando sentimos estar indo para o lado do mal a gente
se reprime.]
Qual seria então o papel do Príncipe Míchkin nessa história? Qual é o papel
do anjo que vem do céu e que vem dar o exemplo da decisão pela luz?
Ele vem despertar a consciência moral, mas não consegue sucesso comple-
to, porque no final das contas o que predomina é o lado negro da bifurca-
ção.
ALUNA: Aqui também dá para fazer uma analogia com Dom Quixote, porque
o príncipe “é apenas um idiota novamente”, assim como Dom Quixote, que
não aceitou esse mundo, e então morreu.
PROF. MONIR: Pois eu estou dizendo para vocês que esta é a história de Dom
Quixote de Dostoiévski, porque como no caso de Dom Quixote, ele também
desiste. Mas por que desiste? Desiste porque de alguma maneira já cumpriu
a sua tarefa avatárica. É como se fosse um avatar que viesse para fazer um
processo de conscientização e que depois desaparecesse. A sua volta para o
céu é como a de um anjo que cumpre a sua função e não precisa mais estar
aqui, porque de fato é inviável aqui. Ele não pode continuar vivendo aqui,
porque teria de deixar de ser anjo. Logo ele só é viável na montanha. Ele
PROF. MONIR: Você pode fazer esta analogia, é verdadeira. Ele voltou dez
anos depois, completamente modificado. Só que ele conseguiu fazer uma
obra maior do que um episódio autobiográfico. Ele não escreveu a obra para
contar a vida dele, ele escreveu a obra para contar isso para o mundo inteiro.
PROF. MONIR: Então, ele não suporta que a generosidade supere o desejo.
ALUNA: [Comenta que é uma luta entre o bem e o mal, na qual a Nastácia é um
objeto, e que o Rogójin não suportou que ela amasse mais o príncipe do que a
ele.]
PROF. MONIR: Não é que ele tenha ciúmes, porque ele não tem ciúmes ne-
nhum... Ele tenta matar o príncipe, depois vai lá conversar com ele. Ele não
tem ciúmes do príncipe. É que Rogójin representa desejo puro – ele repre-
senta a carnalidade, a materialidade do duplo – mas Nastácia não repre-
senta o desejo puro. Embora ela goste do príncipe, ela é capaz de ficar com
Rogójin. É um tremendo desaforo para Rogójin que ela demonstre, pelo
fato de ficar com ele, que ela é capaz de colocar a generosidade acima do
desejo. Ele não suporta a possibilidade de alguém fazer isso porque ele é
o lado sombrio do duplo, subordinado à vida carnal, material, aos desejos
imediatos.
ALUNA: Seria muito mais pessimista se Nastácia tivesse ficado com Rogójin.
PROF. MONIR: Seria muito mais pessimista, mas é que não dá para falar de
pessimismo, porque no fundo o Dostoiévski está descrevendo a condição
humana. A condição humana é essa: você está sempre subordinado ao céu
e à terra. Você tem que escolher entre os seus desejos, que vêm da terra, e as
suas obrigações, que vêm do céu. O papel do Míchkin era ajudar a entender
qual era a escolha que tinha que ser feita. Nastácia, apesar de ser em princí-
pio uma moça voltada para a carnalidade, consegue com aquele compor-
ALUNA: [Comenta que Nastácia era uma figura amarga, pelos fatos que ti-
nham acontecido na vida dela.]
ALUNA: Também. Mas ela tinha uma amargura pela sua história de vida. Na
verdade o que desperta o lado bom, o sentimento bom nela é o amor que
ele tem, o respeito que ele tem naquele primeiro ato em que ele vai lá e
intervém em favor dela.
PROF. MONIR: Então. Pode haver alguma coisa mais ofensiva para alguém
que está olhando para o desejo como princípio da vida – que é o caso de
Rogójin (porque o Rogójin só tem desejos, é um material, sensorial puro) –
do que a mulher estar com ele para fazer um sacrifício, como generosidade
PROF. MONIR: Dostoiévski não conhece o catolicismo romano. Ele tem uma
visão teórica da diferença. Vou explicar isso: o catolicismo romano é mais
velho do que o catolicismo ortodoxo. É uma religião que tem uma coisa ex-
traordinária – não há nenhum assunto do corpo doutrinal do cristianismo
que não tenha de alguma maneira sido explicado ou debatido (pela esco-
lástica, por exemplo). Então, todos os assuntos que vocês possam imagi-
nar – o mistério da Trindade, a virgindade de Nossa Senhora... tudo que em
princípio parece inexplicável e deveria ser aceito por fé, de alguma maneira
andou sendo debatido por São Tomás de Aquino, por São Boaventura, San-
to Anselmo... Gente de uma inteligência, de um brilhantismo incrível entrou
no mérito de todos os dogmas. Portanto o nosso catolicismo ocidental é
um catolicismo profundamente sistematizado. Na Igreja Ortodoxa eles não
têm a menor intenção de analisar isso filosoficamente. Portanto é um cris-
tianismo místico, que nós não temos aqui. Nós temos misticismo dentro dos
aspectos monásticos, mas aquele pessoal do cristianismo ortodoxo vê todo
o dia Nossa Senhora no ponto de ônibus. É por isso que lá não tem dissidên-
cia, porque não tem pontos doutrinais para ter dissidência. Quando Lutero
começou o protestantismo, a primeira coisa que ele fez foi pregar na pare-
de uma lista de coisas que ele queria discutir. Na Igreja ortodoxa não tem
dissidência porque não há em torno do que você dissentir. Você tem ape-
nas uma sensação mística de comunhão com Deus. Dostoiévski olha para
o catolicismo e acha que é um negócio burocrático, dominado por Roma...
Mas é completamente injusto. Dostoiévski nunca, nunca entendeu o catoli-
PROF. MONIR: É normal que essas crises aconteçam nos momentos de gran-
des emoções. No entanto durante muito tempo se achava que a epilepsia
era um estado de comunicação com o mundo superior, o mundo espiritual.
Essa doença sempre teve uma conotação meio sagrada. É uma doença que
tem interpretações simbólicas muito grandes. Houve uma tendência de ela
ser interpretada como um momento de comunicação com o outro mundo.
É muito clara essa característica da existência de Míchkin como um ser que
está vindo de cima para baixo. Ele vem para desenvolver a consciência mo-
ral do mundo, e não é capaz de vencer isso, porque o mundo continuará
tendo essa ambiguidade, representada pelo duplo Míchkin-Rogójin. Essa
ambiguidade não pode ser resolvida, ela pode ser apenas inspirada – é o
conceito de avatar do hinduísmo. No hinduísmo há a ideia de que de vez
em quando aparece alguém aqui, como Krishna, para dizer que nós estamos
exagerando. De acordo com a teoria budista tem nove avatares, só falta um
para vir ainda.
(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos transcritos são da 1ª. edição de
Edson Campagnolo
Kleberr Wlader
Pandita Marchioro
Conteudista
Revisão de transcrição
Patrícia Nasser
Paulo Briguet
Capa e Diagramação
Ilustração Capa
Coordenação Geral
Assistente de Produção
Gilmar Lima
Assessoria de Imprensa
Rafaela Tasca
Ministério da Cultura
FIEP-Federação das Indústrias do Estado do Paraná
Edson Luiz Campagnolo
Presidente
Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola
Conteudista
José Monir Nasser
ISBN: 978-85-5583-033-4
1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82
A reprodução total ou parcial desta publicação por quaisquer meios seja eletrônico, mecâ-
nico, fotocópia, de gravação ou outros, somente será permitida com prévia autorização, por
escrito, do SESI.
Memórias Póstumas
de Brás Cubas
Os Noivos
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.
Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.
Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.
Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).
Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.
Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.
No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.
José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.
Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.
Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.
O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).
A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.
Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.
Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.
Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.
Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.
PROF. MONIR: O pai de Machado de Assis era filho ou neto de escravos al-
forriados, portanto estava muito próximo da escravidão. Machado nasce
numa situação não muito ruim, porque a família é agregada a uma casa rica
que tinha também propriedades em Itaguaí. Aquela situação toda daque-
le famoso conto chamado O Alienista, de Machado de Assis – que é uma
obra maravilhosa – ocorre em Itaguaí, uma praia no Rio de Janeiro. Quando
você vai do Rio para Paraty, a primeira cidade marítima que você encontra
é Itaguaí. E Machado de Assis viveu com essa família de posses. A dona da
casa, viúva de um senador, era madrinha do menino, e o menino teve algum
auxílio desde cedo na vida. Não era um favelado, portanto, o Machado de
madrasta. É frágil, epilético e gago. Teve apenas uma irmã, que morreria cedo.
PROF. MONIR: Ele era muito pequeno. Quando você for ao Rio de Janeiro,
não deixe de ir à igreja da Lampadusa rezar uma Ave Maria pelo velho Ma-
chado.
talentos.
PROF. MONIR: Esse é outro homem que o ajudou muitíssimo, que deu a ele
espaço na revista e depois o contratou para trabalhar na revista. Ele foi aju-
dado por pessoas muito significativas no início da sua vida.
Semana Ilustrada.
1862 Torna-se censor teatral, o que lhe dá acesso gratuito a todos os espetá-
culos.
PROF. MONIR: Não que ele fosse ser censor na prática, nunca censurou nada.
Ele só queria a carteirinha pra ir assistir às peças de graça, então não foi cen-
sor de verdade. Era um cargo, aliás, que não tinha remuneração, que se dava
pra quem quisesse, e tinha como compensação a entrada livre.
anos mais velha que ele, mulher culta que o apresenta aos clássicos portugue-
ses e a vários autores da língua inglesa. Apesar de o casamento ter sido feito
contra a vontade da família de Carolina, viveriam juntos trinta e cinco anos, mas
primeiro oficial.
Quintino Bocaiúva.
PROF. MONIR: Até aqui nós temos mais ou menos uma primeira fase da vida
de Machado de Assis.
PROF. MONIR: Naquela época era muito comum, aqui e na França – na Fran-
ça há muito mais tempo – os romancistas publicarem os romances em capí-
tulos nos jornais, uma vez por semana. Isso garantia a vendagem do jornal e
criava um mercado, para que quando saísse o livro todo o mundo compras-
se. Há inúmeros e inúmeros livros que foram publicados assim. Dostoiévski
Sua primeira peça Tu, só tu, puro amor foi encenada por ocasião das comemora-
PROF. MONIR: Os contos são maravilhosos, tem A Missa do Galo, por exem-
plo, um conto que ficou famoso, quase a maior obra de Machado de Assis. É
PROF. MONIR: É um cargo público que ele ocupava... Ele até tinha talento,
competência para isso, mas era escritor.
te.
PROF. MONIR: Passa muito mal depois da morte da Carolina, e publica o ro-
mance Esaú e Jacó, que é o seu romance mais complexo, mais sofisticado
de todos.
2005.
ALUNOS: [risos]
3 Nota da revisora de transcrição: Fuque ou fusca era o apelido pelo qual era conhecido o
carro Volkswagen Sedan, um carro popular e provavelmente o modelo mais barato de carro
No Brasil não dava para viver de literatura. Machado de Assis não viveu de
literatura, viveu de ser funcionário público, e graduado. Mas foi um sujeito
cultíssimo, nunca o subestimem: é um autodidata que leu todas as fontes
certas. Tinha uma dona de uma padaria francesa que lhe ensinou francês.
Então essa que é a regra mais importante da vida, não é? Quem quer apren-
der, aprende. Nada mais capaz de ensinar alguém do que a vontade de
aprender. Por isso que eu digo sempre que não há nenhuma atividade hu-
mana de resultados mais incertos do que a de professor. Um médico cance-
rologista tem mais probabilidade de sucesso do que um professor, porque
nem todos os casos são desesperadores, tem uns casos muito precoces que
dá para resolver. A atividade humana de maior incerteza de resultados cha-
ma-se educação. A atividade de um consertador de máquina de lavar roupa
é tremendamente mais eficaz do que a atividade de um professor, porque
para que funcione o processo de educação é necessário que a pessoa do
outro lado esteja interessada em aprender. É por isso que o padre Ivan Illich
dizia que a primeira condição para haver aprendizado é que o sujeito vá
aprender só se quiser, porque qualquer hipótese de obrigação escolar só
gera essa farsa coletiva chamada educação brasileira.
Machado de Assis teve todas as referências certas. Ele pegou todos os gran-
des modelos românticos do século XIX – que é o século em que ele viveu,
mais do que em qualquer outra época (ele morre em 1908, mal vê o século
XX) – e os utilizou muito bem. Então todas essas obras do Machado de Assis
têm várias influências que você vai perceber na medida em que conhece os
originais. Dom Casmurro era um tema muito importante, muito candente
ALUNA: Quem orientou a leitura do Machado, já que ele não teve uma ins-
trução formal?
PROF. MONIR: Ele teve a mulher dele, a Carolina, que era cultíssima e o aju-
dou a ler – ela era mais velha do que ele. O Paula Brito o orientou. Ele convi-
veu com todos aqueles grandes escritores... O século XIX foi o século do ro-
mance em todos os países do mundo. No Rio de Janeiro, que era a capital do
Brasil, o que havia de melhor ficava em torno daquelas livrarias no centro e
o Machado de Assis, que era um menino muito inteligente, muito interessa-
do, convivia com aquilo – e soube ir para as fontes certas. Não julguem que
ele seja um favelado, porque não é isso. Ele era um menino pobre, mas não
um menino que vivia à margem social, não era um sujeito largado na vida.
Cuidado com isso. Ele teve uma grande ajuda das pessoas que pressentiram
que ali havia um talento monumental.
PROF. MONIR: Passou a vida todinha lá, exceto num pedaço da juventude
em que ele andou, por razões ligadas a essa família, morando lá nesse sítio
Resumo da Narrativa
Segundo a maioria dos estudiosos, José Maria Machado de Assis começa a exis-
tir como escritor respeitável a partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas, pri-
“românticas” da mocidade.
PROF. MONIR: Eu não botei juventude porque se tem um sujeito que não
teve juventude, esse é o caso. Algumas pessoas jamais foram jovens. Macha-
do de Assis não é exatamente um realista, no mesmo sentido que os outros
realistas eram realistas – como o Emile Zola, por exemplo. Por isso é que está
entre aspas aí. Não é bem um realista, ele é um sujeito que tem uma visão de
concretude, mas não tem os traços peculiares da escola chamada Realismo.
veis, Machado de Assis teve desde cedo inúmeros auxílios: de sua madrinha,
Augusta Xavier de Novaes, quatro anos mais velha do que ele, era a culta irmã de
Fazendo uma formação clássica muito cedo e convivendo com uma intelectu-
alidade de alto nível, Machado tornou se homem muito culto, dono de finíssi-
Do livro de Brás Cubas, Otto Maria Carpeaux diz tratar se de “obra prima”.
nhauer (1788-1860).
PROF. MONIR: O próprio Machado diz isso no livro, que usou esses dois livros
como inspiração.
nagem central contar sua história depois de morto, temperada com a finíssima
de visão problematizadora”.
Brás Cubas, o herói da história, nasce em 1805, no Rio de Janeiro, de família rica.
Nasceu antes, portanto, da vinda da família imperial para o Brasil, que só ocorrerá
cidade do Rio de Janeiro, desde 1763, já era a sede da colônia, já não era mais
Salvador.) Criança mimada, Brás Cubas vive juventude transviada. Depois de vá-
rias peripécias na vida adulta, falece em 1869 com sessenta e quatro anos. Uma
vez morto, decide contar sua história, cuja dedicatória segue no frontispício:
MEMÓRIAS PÓSTUMAS.
Vocês não sabem o quanto esse homem escreve bem, viu? Eu queria muito
sugerir que vocês fizessem esse investimento de ler esses romances, todos
os romances. Ele escreve maravilhosamente, como um gênio. O problema
é que é um português do final do século XIX, início do século XX; algumas
expressões caíram da moda. Mas não confiem nas edições que andaram
modernizando a linguagem, porque isso não se faz, não é? Peguem os livros
com a linguagem original. Aos pouquinhos você aprende a ler o Machado, e
vai se deliciando com a ironia, com o sarcasmo, com a finíssima inteligência
com que ele analisa as situações com que lida.
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores,
consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem
PROF. MONIR: Estão vendo a ironia? Ele está fazendo ironia com ele mesmo,
não é?: “Stendhal achou que era para cem. Eu acho este aqui nem por cinco
será lido”.
Trata se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei
Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance,
ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei lo aí fica
privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas
máximas da opinião.
PROF. MONIR: Não vai agradar a esses dois tipos de leitor, que são os dois lei-
tores mais comuns. Os frívolos e os graves, esses dois não gostarão do livro.
Isso é uma advertência do autor antes de começar a história.
extenso,
PROF. MONIR: Ele já começa com uma ironia finíssima, maravilhosa, dizendo
que escreveu esse livro no além e que se baseou tanto no Sterne quanto no
Maistre. Ele mesmo está dizendo onde ele buscou as fontes.
O narrador explica que havia decidido começar a história pelo fim, porque
PROF. MONIR: Há uma diferença nessas duas coisas. Se ele fosse um autor
defunto ele podia começar pelo início, porque o defunto viria no final, mas
como ele é um defunto autor, tem de começar pela morte. Para ficar coe-
rente, não é?
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro
berço;
a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que
também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta feira do mês de agosto
e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! (pág. 31)
A causa “aparente” de sua morte teria sido uma pneumonia mal tratada:
método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me
trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta feira, dia aziago,
Segundo o narrador, sua morte de fato deve-se a uma invenção “grandiosa e útil”,
melancólica humanidade”.
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Ele não fez esse negócio, mas pensou em fazer, e essa ideia
obsessiva de fazer o tal do emplasto foi o que o acabou matando, acha ele.
Brás chamou a atenção das autoridades de que a cura que o emplasto traria
de tal produto. Já, do outro lado da vida, confessa que o real motivo era ver seu
Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo:
três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá lo? Eu tinha a paixão do
hão de reconhecer os hábeis. Assim a minha ideia trazia duas faces, como
Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é
nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de
Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de
PROF. MONIR: Primeiro ele arrumou uma maneira de fazer de conta que per-
tencia à família deste outro Brás Cubas, para depois passar o nome para os
filhos.
Quando Brás Cubas nasceu, houve grande festa. O pai estava orgulhoso de seu
filho homem. Atração da casa, o menino era tratado com mimos e foi crescendo
brejeiro:
ele próprio.
PROF. MONIR: E ele reconhece que de fato merecia ser chamado de Menino
Diabo.
porque ela lhe negara uma colher de doce de côco. Sadicamente, fazia de Pru-
mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava lhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava o, dava mil voltas a um e outro
lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer
Apesar das diabruras que fazia, seu pai, que o repreendia na presença dos ou-
tros, em particular lhe dava beijos e elogios. Desse modo, as traquinagens conti-
nuavam. Com nove anos, durante um jantar organizado pelo pai em comemo-
ração à derrota de Napoleão em 1814, porque não lhe davam a exigida atenção,
Na escola, o menino Brás Cubas fez amizade com Quincas Borba, que ele só re-
três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças-, umas
Como Brás Cubas, Quincas Borba era mimado e travesso: filho único, adorado
pela mãe, era acompanhado por um “pajem indulgente”. Apesar de tudo, Brás
a que me cativou logo foi uma.. uma... não sei se diga; este livro é casto, ao
tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a ‘linda
PROF. MONIR: Era uma prostituta, não é? É isso que ele quer dizer e está com
pruridos de contar.
financiava com o dinheiro pedido à mãe, depois sacando, por conta própria,
letras no comércio.
chuva de ouro de Dânae, três inventos do padre Zeus, que, por estarem fora
Não direi as traças que urdi, nem as peitas, nem as alternativas de confiança
PROF. MONIR: “As traças que urdi” são os estratagemas que eu bolei; as “pei-
tas”, são os subornos que eu fiz. Tudo para tentar conquistar Marcela.
PROF. MONIR: “O asno foi digno do corcel”: o jumento pareceu com um ca-
valo.
citado período; apeei me, bati lhe na anca e mandei o pastar. (pág. 67)
Quando a aventura foi finalmente descoberta pela família, o pai resolveu enviá
-lo para estudar na Europa, receoso do escândalo. Era o fim do caso com a bela
Marcela:
PROF. MONIR: Foi o quanto ele gastou, onze contos de réis. Era um dinheirão
para um menino de dezesseis, dezessete anos gastar com uma prostituta.
Meu pai, logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou se deveras;
PROF. MONIR: O pai dele descobriu porque alguém foi cobrar dele uma letra
de câmbio emitida pelo filho: “Ah, o seu filho passou na joalharia e comprou
um anel de brilhantes”.
– Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade,
mos na cara. – Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar o nome dos
a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas juízo, ou ficas sem cousa
Antes de partir para Portugal, Brás Cubas deu um último presente a Marcela: três
acabou com aqueles planos dourados. Quando o rapaz deixava a casa da aman-
devia seguir para Lisboa. Imaginem se resisti; mas toda a resistência era inútil.
(págs. 75-76)
PROF. MONIR: O pai resolveu sequestrar o guri antes que ele fizesse mais
alguma antes de ir embora. O pai, o tio e mais um outro agarraram-no na
saída da casa da amante, o levaram e o puseram num navio, à força, para
que ele fosse fazer misérias em Portugal, porque fica parecendo que é me-
nos miséria.
nem por isso teria deixado de conseguir o diploma. Brás Cubas descreve a ver-
PROF. MONIR: Embora não esteja escrito no livro, aqui está implícito que é
Direito que ele estudou.
O diploma recebido atestou “uma ciência que estava longe de trazer arraigada no
cérebro”.
De volta ao Rio, Brás chegou a tempo de rever sua mãe, à beira da morte, acama-
– Meu filho!
sobre o qual a morte batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira:
a beleza passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem
nunca. Mal poderia conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não víamos. Ajoe-
lhado, ao pé da cama, com as mãos dela entre as minhas, fiquei mudo e quieto, sem
Vão temor! Ela sabia que estava prestes a acabar, disse mo; verificamo lo na seguinte
Pela primeira vez, Brás Cubas deparava-se com uma perda real e reconhece que,
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha
mediocridade;
PROF. MONIR: “Na morte que diferença, que desabafo, que liberdade!” Ele está
completamente livre para ser sincero porque morreu. Ele não tem preo-
cupação nenhuma em “embaçar” os outros, quer dizer, em constranger os
outros. Tem agora apenas a preocupação de contar as coisas tais como se
passaram, sem nenhum rodeio.
Tijuca.
PROF. MONIR: A Tijuca, bairro da Zona Norte que hoje é próximo do cen-
tro do Rio, naquela época era um lugar ermo. Nós estamos falando aqui de
1800 e pouco. Havia então uma realidade urbana muito diferente no Rio
de Janeiro. Havia praias bravias como Flamengo, Botafogo. O pessoal tinha
casa de praia em Botafogo. O bairro da Tijuca devia ser um lugar longínquo,
quase inacessível, um lugar onde tinha chácaras.
Levou consigo alguns livros, uma espingarda, roupas, charutos e o escravo Pru-
dêncio.
Renunciei tudo; tinha o espírito atônito. Creio que por então é que começou a
PROF. MONIR: A hipocondria é aquilo que depois ele quer consertar com o
emplasto.
‘Que bom que é estar triste e não dizer cousa nenhuma!’4 – Quando esta
4 Nota da revisora de transcrição: “tis good to be sad and say nothing”. Fala retirada da comé-
voltar à cidade, quando Prudêncio lhe contou que na noite anterior havia se
mudado para a propriedade ao lado uma antiga amiga da família, dona Eusébia,
com sua filha Eugênia. Brás relutava em visitá-las, por causa de uma travessura
Prudêncio, entretanto, recordou-lhe que fora dona Eusébia quem vestira sua
mãe morta. Brás decidiu, assim, visitá-la, antes de retornar para a cidade. Nesse
mesmo dia, o pai de Brás subiu à chácara, pois o queria de volta à vida social.
Trouxe consigo dois projetos para o filho: uma candidatura a deputado e um ex-
Brás relutava, mas o pai não se deixava vencer. Aconselhou o filho, dizendo-lhe
que era preciso temer a “obscuridade” e “fugir do que é ínfimo”. Concluiu afirmando
dona Eusébia.
A visita à velha amiga da família retardou mais ainda a descida de Brás; por
chamava de “a flor da moita”, pois a jovem era fruto das relações ilícitas
Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra,
mas emendou se logo, e ficou como dantes, erecta, fria e muda. Em verdade,
parecia ainda mais mulher do que era; seria criança nos seus folgares de
sombra, e ela sorria, com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe
(págs. 97-98)
Brás Cubas conseguiu, é verdade, beijá-la, mas Eugênia revelou tal dignidade,
que confundiu o rapaz. Eugênia tinha um defeito de nascença: era coxa (man-
ca).
límpida e azul, e apesar disso deixei me ficar, não menos que no terceiro dia, e
PROF. MONIR: Não vão pensar que quando ele fala em descer e subir trata-se
de uma altura como a de Petrópolis; a Tijuca é um bairro do Rio de Janeiro.
Mas deve ter uma certa diferença de altitude em relação ao nível do mar.
Como naquela época não havia prédios, apenas o campo, a sensação de
subida era muito mais nítida.
ela tinha condição social inferior à dele. Brás voltou à cidade, disposto a levar em
comigo. Ia dizer lhe que não; ela retirou se lentamente, engolindo as lágrimas.
Alcancei a a poucos passos, e jurei lhe por todos os santos do céu que eu era
obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e muito; tudo hipérboles
PROF. MONIR: E ele mesmo diz que são hipérboles frias. Ele agora admite,
com toda a sinceridade, que ele falou isso para ela apenas por falar.
Naquele tempo contava apenas uns quinze anos; era talvez a mais atrevida
criatura da nossa raça e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe
e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda
ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele
feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins
secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante,
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo
destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário,
via se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice
precoce destruíram lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido terríveis;
davam uma sensação de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto,
logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão
poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia lhe
um diamante. Crê lo eis, pósteros? essa mulher era Marcela. (pág. 108)
que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de
acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso
surgiu, de repente, Lobo Neves, homem inteligente e astuto, que lhe arrebatou
tro meses, período durante o qual o velho repetia decepcionado: “um Cubas, um
Cubas, um Cubas...”
Os irmãos Brás e Sabina (e seu marido Cotrim) fizeram a partilha dos bens, duran-
ceder o Paulo e o outro preto, com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer
que não me convinha, mas Cotrim adiantou se e disse a mesma cousa. (pág.
119)
No fim da discussão, os dois irmãos saíram brigados. Por esta mesma época, Brás
recebeu de Luís Dutra, um primo de Virgília, a notícia de que ela estava voltando
reunião íntima em sua casa. Brás, por essa época, escrevia textos literários e polí-
Cerca de três semanas depois recebi um convite dele para uma reunião
íntima. Fui; Virgília recebeu me com esta graciosa palavra: – O senhor hoje
admira que ela me preferisse. Valsamos uma vez, e mais outra vez. Um livro
Creio que nessa noite apertei lhe a mão com muita força, e ela deixou a ficar,
como esquecida, e eu a abraçá la, e todos com os olhos em nós, e nos outros
Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das
não entendas o que aí fica; talvez queiras uma cousa mais concreta, um
Alguns dias depois, nova surpresa: Brás Cubas achou na rua um “embrulho miste-
PROF. MONIR: Que é um dinheirão! É quase metade do que ele tinha gasta-
do lá no joalheiro com a Marcela.
adúltero:
PROF. MONIR: Agora Virgília, que é casada com Lobo Neves, tem com ele
um romance escondido do marido, obviamente... Se ele tivesse casado com
Virgília, não seria o caso, não é? Mas ele continuou solteiro e agora tem um
romance com a moça com quem pretendia ter se casado.
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas.
O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro
em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não
lhes poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me,
o antigo colega de escola de Brás Cubas. Para sua surpresa, Quincas Borba pa-
recia um mendigo.
amarelo sem brilho; o pelo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos
botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras,
– Não me lembra...
não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba
pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o
Distanciando-se do antigo colega, na rua, após ele haver dado algum dinheiro,
Brás Cubas percebeu que Quincas Borba lhe havia furtado o relógio.
Por sua vez, Virgília andava triste, receosa de que seu marido desconfiasse de
alguma coisa.
– Creio que Damião desconfia alguma coisa. Noto agora umas esquisitices
nele... Não sei. Trata me bem, não há dúvida; mas o olhar parece que não é
o mesmo. Durmo mal; ainda esta noite acordei, aterrada; estava sonhando
que ele me ia matar. Talvez seja ilusão, mas eu penso que ele desconfia... (pág.
141)
só deles. Uma casinha na Gamboa foi, de fato, a saída encontrada pelos amantes
para continuar seu romance, que já era alvo de “suspeita pública”. Como facha-
da, foi instalada na residência dona Plácida, velha amiga da família de Virgília.
O plano deu certo: “Ao cabo de seis meses quem nos visse a todos três juntos diria
que Dona Plácida era minha sogra”. Brás Cubas filosofa sobre o destino de dona
muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma
Brás Cubas medita: “Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era
O rapaz estava ainda relutante, pois toda gente comentava seus amores com Vir-
trazia o número 13, que ele considerava ligado a acontecimentos tristes de sua
pre, insistia na tese de que Brás precisava se casar, já que alguém precisava her-
to, atingia seu ponto máximo. Para complicar, Virgília comunicou ao amante que
PROF. MONIR: Não se sabia quem era o pai. Como ela tinha dois “maridos”,
ninguém sabia verdadeiramente quem era o pai daquela criança. Portanto
ele só podia fantasiar ser o pai. É a mesma situação do Dom Casmurro. Dom
Casmurro vai pra São Paulo, e quando volta não sabe se quem engravidou
a mulher foi ele ou o Escobar. Este é um romance anterior a Dom Casmurro.
seu próprio filho, dono de um belo futuro, imaginando-o indo à escola, tornan-
PROF. MONIR: Viu como são os brasileiros? Logo começa a imaginar o seu fi-
lho em um cargo público, usufruindo de uma mordomia qualquer. O desas-
tre da incivilidade brasileira, a derrocada do Rio de Janeiro, que era uma das
cidades mais bonitas que se podia imaginar, é fruto deste conjunto de men-
talidades que já está no embrião dessa obra de Machado de Assis. Havia um
político comunista, na década de 1950 ou 19605 , que dizia que Machado
de Assis era uma porcaria porque ninguém trabalha nas suas obras, o que
é rigorosamente verdade, aliás. Dizia então que era uma obra da burguesia,
que só tinha personagens de natureza indolente. É claro que não dá pra
culpar o Machado por isso, mas é preciso compreender o que isso significa.
brasileira, 1999
Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preocupação exclusiva
por então, nem conflitos políticos, nem revoluções, nem terremotos, nem
uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras,
************
INTERVALO
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PROF. MONIR: A melhor definição para Brás Cubas é francesa: fait nien -
aquele sujeito que não faz nada. É a palavra em francês para personalidades
como a de Brás Cubas, muito comum em Machado de Assis – a daquele
sujeito que tem a vida mais ou menos garantida, que pertence à aristocracia
carioca. Machado de Assis só sabe lidar com personagens cariocas – acho
que nunca saiu do estado do Rio de Janeiro na sua vida. Talvez tenha ido
pra São Paulo uma vez ou outra, mas ele não é um ser do mundo, nunca
viajou para o exterior. Sabia línguas e coisas do estrangeiro pelos livros. Esse
Brás Cubas é um fait nien, um sujeito por quem temos muita simpatia. Agora
que o sujeito está morto, é de uma sinceridade acachapante, conta tudo
sobre a sua própria vida sem nenhum constrangimento, não joga mais para
ALUNOS: [Risos]
Prof Monir: Exatamente igual, portanto não tem muita novidade nisso, não
é? Quer dizer, ele não aprendeu absolutamente nada, passou todo o curso
universitário tomando cerveja. Voltou aqui, encontrou a mãe moribunda,
sofreu a perda da mãe, foi se refugiar em um sítio da família na Tijuca (num
tempo em que a Tijuca era um lugar ermo), e então conhece uma moça,
filha de uma vizinha, chamada Eugênia. Entre os dois nasce uma simpatia
mútua, o início de um romance. O romance não se desdobra porque a moça
estava em condição social muito diferente da dele. Ele resolve então aceitar
um plano do pai de casar com uma moça que ele nunca tinha visto na vida,
chamada Virgília. O pai dela, sendo um político importante, iria então lhe
conseguir uma vaga de deputado. Tipicamente um projeto da aristocracia
carioca do século XIX. O sujeito nasce de uma família de bem, nunca tra-
balha na vida, faz um curso universitário apenas para ter um diploma, e irá
viver de alguma sinecura pública – ou como deputado, ou como ministro
ou como um associado qualquer em instituição do governo imperial, que se
caracteriza pela proteção da nobreza.
E a família... ele só tem uma irmã, a Sabina, que faz de tudo para arrumar
uma mulher para o irmão. A Sabina não sabe que aquele romance adúltero
e secreto que há entre a Virgília e o Brás Cubas está no seu ponto máximo,
tendo a Virgília até mesmo engravidado, levando Brás Cubas a fantasiar que
esse seria seu filho, que ele teria então finalmente conseguido alguma coisa
na vida. Quando fomos tomar café, tínhamos deixado o Brás Cubas radiante
com a perspectiva da paternidade, não foi? Continuamos.
Com maior surpresa ainda, Brás Cubas recebeu carta de Quincas Borba, devol-
lhe seu sistema filosófico Humanitismo ou Humanitas. Quincas Borba havia rece-
Virgília perdeu o filho que estava esperando. Lobo Neves recebeu carta anôni-
Rigorosamente podíamos dispensar nos de falar todos os dias; era até melhor,
Ao demais, eu galgara os quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor
PROF. MONIR: Com quarenta anos, ele descobre que não é nada. Fez um
curso em que não aprendeu nada, é apenas bacharel de carteirinha... Ele é
rico – a única coisa que salva a sua vida é que ele não precisa lutar pela sua
sobrevivência, tem tudo garantido. Ele não tem mulher, não tem família. O
filho que ele sonhou e fantasiou ser seu, morreu. Nem a fantasia sobreviveu.
Ele não é nada. Não conseguiu casar de verdade com a Virgília, não foi depu-
Algum tempo depois, Lobo Neves reatou suas relações com o Ministério, des-
dente de província. O narrador brinca com o número do novo decreto, 31, res-
saltando que a simples inversão dos algarismos bastou para que a vida tomasse
novo rumo.
Data.
(pág. 202)
PROF. MONIR: Vejam que ironia maravilhosa, que maravilhoso o texto desse
homem.
nem mesmo dor, o fato trouxe-lhe apenas alguns poucos dias de reclusão em
Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem
prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses.
Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar lhe os
PROF. MONIR: Olhem que maravilha! Se ele contasse para o leitor que cho-
rou noites atrás de noites, que ficou três dias sem comer, que tentou suicídio,
isso tudo seria romanesco, mas não seria biográfico. Porque no fundo ele
não sentiu lá grandes problemas em ter perdido a Virgília. Ele simplesmente
sentiu uma espécie de perda, mas nada que fosse muito desesperador.
Morreram seu tio cônego, Ildefonso, e dois primos, pelos quais ele não sofreu:
Também nasceu sua segunda sobrinha, Venância. Brás Cubas se recolheu. Tal re-
clusão, entretanto, assim como seus pensamentos mais profundos, passou rapi-
dona Eulália9, chamada familiarmente de Nhã Loló, com dezenove anos e filha
Brás, mas tinha belos olhos e uma expressão angelical. O narrador a havia co-
nhecido ainda quando Virgília estava no Rio de Janeiro e grávida. Sabina insistia
em que Nhã-Loló seria uma excelente esposa para o irmão, que se esquivara na
época. Neste momento, tendo baixado a guarda, quando se deu conta, estava
praticamente nos braços da jovem e acabaram noivos três meses após a partida
9 Nota do resumidor – Eulália Damascena de Brito, um partido que a irmã de Brás Cubas se
– Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo
(1881-1955).
Idumeia até o alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos,
e tão nobre. Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que
que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o algoz que executa
PROF. MONIR: [Risos] Vocês já sabem analisar isso a essa altura. A gente está
a tanto tempo conversando aqui... Quando você cria uma tese panteísta so-
bre o mundo, que tudo nesse mundo é Deus, a decorrência é de que tudo
que tem nesse mundo é bom. Deus não pode ser ruim, então todas as coisas
teriam que ser boas necessariamente. Mas como as coisas não são boas, e
sabe-se bem disso, é preciso então arrumar os remendos nessa teoria para
provar que o mal é bom, que o péssimo é ótimo, que o escuro é luminoso,
que o errado é certo, e assim por diante. É preciso destruir a possibilidade de
Depois de algum tempo, Brás tornou-se deputado e Lobo Neves voltou ao Rio.
não sentiu nenhum remorso. Reencontrou a antiga amante num baile, em 1855.
PROF. MONIR: Fazia dois anos que o Paraná tinha se desvinculado de São
Paulo e se tornado a província do Paraná.
A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile
Brás Cubas observou que Virgília continuava muito bonita, ainda que fosse, é
claro, de uma beleza diferente. Os dois conversaram muito, mas sem falar do
PROF. MONIR: Cinquenta anos. Nessa época estava todo mundo aposenta-
do. Esse então que era um fait nien, aposentou-se de não fazer nada. O su-
jeito que se aposenta de não fazer nada, finalmente começa a fazer alguma
coisa. É o Gianni Agnelli, que passou a dirigir a Fiat com quarenta anos de
idade.
cama e de repouso.
PROF. MONIR: Olhem que maravilha! Os cinquenta anos dele, “não tolhidos
de frio, nem reumáticos, – mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos de
cama e de repouso”.
Sr. Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas
Preocupado com o vazio em sua vida, Brás decidiu participar de maneira mais
ativa nas discussões, já que tinha sido sempre um político indiferente aos pro-
blemas do País, como na vida pessoal. Um dos assuntos com que se envolveu
Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos cidadãos, e a
diante do poder; e concluí com esta ideia: o chorão, que inclina os seus
ALUNOS: [Risos]
ALUNA: [Comentário]
Brás Cubas almejava o cargo de ministro, que também não conseguiu. Nem
(...)
– Não sei; vou meter me na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado,
aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.
Brás recebeu carta de Virgília, pedindo-lhe que fosse ver dona Plácida, que esta-
ria morrendo na miséria. Ele considerou recusar, porque havia dado à velha os
Mas adverti logo que, se não fosse Dona Plácida, talvez os meus amores com
relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo? (pág. 237)
Morreu dona Plácida. Brás decidiu fundar um jornal com base na filosofia do
Humanitismo.
Urgia fundar o jornal. Redigi o programa, que era uma aplicação política
Como o jornal tinha índole oposicionista, Cotrim rompeu relações com o cunha-
se ao caixão, aflita; vieram tirá la e levá la para dentro. Digo vos que as
lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério; e, para dizer tudo, não tinha
(...)
Saí, afastando me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto dos
epitáfios; eles são entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e
menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que
sabem os seus mortos na vala comum; parece lhes que a podridão anônima
Brás Cubas reconciliou-se com o cunhado e filiou-se a uma Ordem Terceira, vol-
PROF. MONIR: Ordem terceira era o nome que se dava para ordens religio-
sas que incluíam leigos e que cuidavam de questões de caridade. As ordens
terceiras cuidavam das Santas Casas de Misericórdia, por exemplo. Têm co-
notação religiosa, mas não são enclausurantes; há pessoas leigas que fre-
quentam aquilo.
que, visitando um cortiço, para distribuir esmolas, achei... Agora é que não
reria em seguida.
A voz mal podia sair me do peito; e aliás não tinha descoberto toda a cruel
verdade. Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e
esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas,
mal; ao contrário, dizia me que era ainda uma prova de Humanitas, que
amuava se a um canto, com os olhos fitos no ar, uns olhos em que, de longe
que a dor era uma ilusão, e que Pangloss, o caluniado Pangloss, não era tolo
da criação do emplasto Brás Cubas. Conclui a narrativa, resumindo sua vida pela
contabilidade das perdas: não alcançou a celebridade, não foi califa, não se ca-
E vede agora a minha modéstia; filiei me na Ordem Terceira de ***, exerci ali
alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante,
calo me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos
(...)
emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade
é que, ao lado dessas faltas, coube me a boa fortuna de não comprar o pão
com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a
que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado
PROF. MONIR: E com isso acaba o livro. Temos mais uma parte pela frente,
mas o livro acaba aí. Antes de continuar, vale a pena a gente tentar levantar
aqui alguns pontos. Qual é a sensação que vocês ficaram da vida de Brás
Cubas? Uma vida bem-sucedida, ou uma vida sem sucesso?
PROF. MONIR: Quem é a personagem literária que nós já vimos aqui que se
parece mais com ele?
PROF. MONIR: Vocês não acham a Moll Flanders parecida com isso? – uma
pessoa que tem um horizonte de consciência muito baixo. Mas vejam, uma
pessoa que é capaz de escrever todos esses comentários sobre si mesma, de
fazer uma análise muito boa de si própria, não pode ser uma pessoa com um
horizonte de consciência muito baixo. Na verdade, ele é as duas coisas. Qual
é a condição para que ele tenha obtido o horizonte de consciência que tem
enquanto narrador da história? A morte. Foi só com a morte que ele passou
a ter consciência disso tudo, porque a vida que ele viveu era de uma incons-
ciência muito grande, uma vida de um horizonte de consciência baixíssimo.
Uma vida de baixíssimo interesse pelas coisas.
PROF. MONIR: Que agora, morto, lida com essa frustração ironicamente. Ele
faz piadas com isso, faz ironias com isso, sarcasmos, autogozações, não é
isso que ele faz?
PROF. MONIR: Não, acho que arrependido ele não é em nenhuma hipótese...
e esse é um bom comentário, justamente a questão é saber o que Machado
Há dois pontos essenciais nessa história, que nós temos que entender ago-
ra. O primeiro é o ponto associado à própria estrutura da história: o que é
que toda essa história quer nos contar? E o segundo ponto é um aspecto im-
portantíssimo desse romance, cuja natureza vamos investigar. Mas vamos
ao primeiro ponto antes.
Antes de morrer, durante o seu delírio final, Brás Cubas resume a essência da sua
crise existencial:
Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faça o eu,
PROF. MONIR: Isso acontece lá no início do livro; foi deslocado aqui para trás
por razões didáticas.
Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o
PROF. MONIR: Destro aqui é no sentido de hábil, não no sentido de não ser
canhoto.
me arrebatou. Deixei me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas,
a interrogá lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem
destino.
perguntando lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles
ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito,
abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve,
grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar nos um sol de neve. Tentei falar,
– Onde estamos?
– Já passamos o Éden.
cavalgadura.
não era impossível que os séculos, irritados com lhes devassarem a origem,
me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como eles.
debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais
brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez,
sepulcro: dissera se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? destacou se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma
o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo
não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum
tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade
de delírio.
PROF. MONIR: “Sou tua mãe e tua inimiga”. Aqui há algo importantíssimo, que
é a mesma noção que há no Livro de Jó, entre o Leviatã e o Behemoth: a
natureza é ao mesmo tempo a nossa salvação e a nossa perdição. Portanto,
a primeira coisa a fazer é parar de endeusar a natureza como fazem os am-
PROF. MONIR: Pode ser que seja. O Machado de Assis tem ligações enor-
mes com o Livro de Jó. Na Biblía não está dito que o Behemoth é um hipo-
pótamo, mas essa é a representação tradicional que se faz do Behemoth,
como sendo um hipopótamo.
externas.
– Não te assustes – disse ela –, minha inimizade não mata; é sobretudo pela
– Vivo? Perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar me
da existência.
– Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho;
provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives:
me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver lhe de perto o rosto,
que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma
de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente
não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só
mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto
– Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes
do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou
se me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu me sentir
os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que
– Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor
da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma,
matando-me?
– Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em
Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação.
A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o
nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um
desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios,
a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas.
terra tinha assim uma imensidade que lhe não podiam dar a imaginação nem
o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê la
obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava
até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria,
cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor,
Eram as formas várias de um mal que ora mordia a víscera, ora mordia o
da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que
era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o
e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia se,
Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de
idiota.
porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora,
Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo:
não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra
ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia se orador, mecânico, filósofo,
corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens,
enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil,
destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo
enfim ver o último – o último! mas então já a rapidez era tal, que escapava a
tamanho de um gato. Encarei o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à
PROF. MONIR: Que maravilha, né? Que beleza. Qual é a característica pre-
dominante nesse delírio que vocês acabaram de ouvir? Qual é a conclusão,
qual é o clima que parece decorrer dessa descrição que ele faz?
ALUNOS: [Risos]
ALUNOS: [Comentários]
PROF. MONIR: Todo o mundo morre, porque todos os projetos são infelizes.
Morre a Marcela, a prostituta, que era bonita e ficou feia. Ela destruiu a sua
existência, não é? Morre o Lobo Neves, morre o filho, o Quincas Borba, que
era o filósofo. O que é o Quincas Borba? Apenas um palhaço. Primeiro um
mendigo palhaço, depois um rico palhaço. Nada daquilo valia alguma coisa.
Pior do que isso, Quincas Borba enlouquece completamente. A noiva, Eulá-
lia, morre antes do casamento.
ALUNA: [Faz comentário sobre a alegria dele com a possibilidade de ter um fi-
lho.]
PROF. MONIR: Na primeira parte do livro, não na segunda. Mas há uma outra,
que me parece mais clara, que faz esse contraste no segundo livro, e não no
primeiro.
ALUNO: Fausto.
Depois, não conseguindo fazer isso, ele tenta recuperar a antiguidade greco
-romana pela recuperação da Helena de Troia. Também não consegue, mas
traz para o mundo moderno alguns elementos antigos – quando a Helena
de Troia vai embora, ela abandona simbolicamente alguns objetos. Aí ele se
mete num empreendimento enorme de sanear o mar, de aterrar um pânta-
no marítimo para fazer um loteamento de casas para todas as pessoas e vai
indo assim, um projeto atrás do outro. A cada coisa dessas que ele inventa,
ele dá uma errada também. Em cada um desses projetos tem um grande
erro. Por exemplo, quando ele faz o grande projeto de controle das águas do
mar e instala uma enorme quantidade de pessoas que não tinham casa, ele
vai lá e, arbitrariamente, sem nenhum pudor, retira um casal de velhinhos da
casa cuja localização ele queria pra si e os mata de susto. Não teve nenhum
empreendimento que Fausto tenha feito no segundo livro que tenha sido
isento de erro, de engano, de culpa. No final das contas, quando Fausto está
à beira da morte, já com noventa anos, finalmente pronuncia as palavras
que, de acordo com o diabo, lhe garantiriam a alma de Fausto: “Ora, para,
sois tão bela!”. Essas são as palavras que Fausto não poderia pronunciar, pois
ao pronunciá las entregaria a sua alma ao diabo.
No final das coisas, quando todo o mundo espera que o diabo leve Fausto
para o inferno, aparecem os anjos do céu e o carregam em glória para o céu.
Fausto foi perdoado. Muito embora tenha vendido a alma para o diabo, o
diabo não foi capaz de extorqui-la de fato. E por quê? Porque na visão de
PROF. MONIR: As obras são muito próximas, não é? Goethe está na verdade
querendo ser um anti-Schopenhauer, porque no fundo, no fundo, o que es-
tava em questão ali é a questão da ação humana e da não-ação humana. É o
pessimismo de Schopenhauer, que acha que nada pode ser feito, porque no
fundo tudo é inútil, e o otimismo goethiano que acha que você vai pro céu,
mesmo que você tenha feito pacto com o diabo. Mesmo que você seja um
sujeito muito mal, ainda você vai pro céu, apesar disso. Ou seja, você tem ca-
pacidade de salvação mesmo sendo um crápula, basta que você tenha feito
mais do que não feito. Ou seja, o que gera a perdição humana é a inação. É
a brás cubice. É a omissão perante a vida, é a falta de ação humana, de que
o Brás Cubas é um exemplo maravilhosamente claro, não é? É o cúmulo da
falta de ação humana.
O que você faz? Se omite, julgando prematuramente que nada vai dar certo,
que tudo é impossível? Então jogamos a vida fora, que é a sensação que se
tem do que aconteceu com Brás Cubas. Não parece que ele jogou a vida
fora? Nem o emplasto ele conseguiu fazer! Ele não tinha problema de di-
nheiro, tinha trezentos contos. Não podia ter feito o emplasto? E fez? Não
fez. Ou seja, era alguém que não conseguiu fazer absolutamente nada, por-
que era profundamente convicto da inviabilidade geral de todas as coisas.
Por outro lado, tem o sujeito que faz tudo o que pode, achando que é pos-
sível fazer alguma coisa, mesmo que seja pouco, e produzir algum efeito
sobre essa vida. Pois é preciso que cada um escolha a vida que quiser. Estas
são as duas possibilidades aparentes a partir dessa visão de Brás Cubas.
Mas o que é mais importante nessa história ainda não apareceu. O primeiro
passo é compreender o pessimismo machadiano, o segundo é compreen-
der que o pessimismo machadiano é schopenauriano e está em contrapo-
O que há de notável nesse livro é o fato de que ele é uma confissão since-
ra de uma vida que foi jogada fora. Muito embora o próprio autor talvez
ALUNOS: Não.
PROF. MONIR: Isso também não parece que seja. Agora, se não é desejável,
pode ser evitável? E aí não dá para saber mais, porque você não sabe o que
o autor pensa sobre isso de fato. É muito provável que o Machado de Assis,
pelo fato de que a visão pessimista é recorrente na sua obra, veja o mundo
dentro dessa perspectiva de pessimismo, de incapacidade. Como se o Ma-
chado de Assis tivesse vivido naquele casamento com a Carolina a única
coisa que fez sentido na sua existência. E o casamento o define, isso é fato
biográfico. A morte de Carolina é a morte de Machado também. De alguma
maneira, é como se ele não tivesse grandes perspectivas de vida. Para um
pessimista como Schopenhauer, a vida é uma transição para a morte, a vida
é composta só de duas coisas: de morte e de dor. Não tem mais nada que
faça parte da vida, nada pode ser feito além disso. Um homem como esse
Ou seja, nos ajudar a ver nessa personagem aquilo que nós deveríamos ser
sob o ponto de vista de atitude perante as coisas – não como concepção
de mundo, mas atitude perante as coisas – e que de modo geral nós não
somos. Este é um livro antibrasileiro, sob certo ponto de vista. Ele entra em
contraste e em conflito com a nossa maneira de nos correspondermos com
o mundo, mesmo que a nossa filosofia de vida seja mais associada à de Quin-
cas Borba, que de alguma maneira é contrária ao Schopenhauer. Na verdade
Quincas Borba tem no humanitismo a ideia de que todas as coisas vão dar
triunfalmente certo no final, que no fundo é a concepção que Teilhard de
Chardin fará com o seu evolucionismo. O evolucionismo que sai da pedra,
que sai da bactéria, e acaba em Cristo. Esta ideia evolucionista do Chardin,
que é uma ingenuidade, é exatamente o contrário da perspectiva do Scho-
penhauer. Compreendem que ele só botou o Quincas Borba para fazer esse
contraste, para que nós percebêssemos que aí há um confronto e que desse
confronto ele tem total consciência? O Brás Cubas tem total consciência do
que estava acontecendo com ele no final de sua vida. E então depois que ele
morre, ele tem total consciência da sua vida, ou seja, o horizonte de cons-
ciência do Brás Cubas aumenta dramaticamente e incrivelmente depois da
sua morte. E se transforma em plenitude.
A farsa que nós vivemos aqui, esse clima de farsa, é um efeito colateral da
nossa incapacidade de olharmos o mundo, a nossa vida, numa perspectiva
que transcende o tamanho da nossa vida biológica. Toda a vez que você
olhar para a sua própria vida de uma perspectiva menor ou igual ao tama-
nho da sua vida biológica, você terá uma incapacidade de entender de fato
11 Nota da revisora de transcrição: Itu é uma cidade do estado de São Paulo, conhecida como
a cidade do exagero: as coisas de Itu teriam proporções maiores do que as dos outros lugares.
Itu já foi a cidade mais rica do estado, tendo nela residido muitos barões do café e autoridades
PROF. MONIR: [...] quando o Sérgio Buarque de Holanda diz que o brasileiro é
cordial, ele não está explicando o brasileiro, ele está apenas revelando uma
característica do Brasil. Ele não está definindo o Brasil. É preciso que a gen-
te consiga compreender o brasileiro ontologicamente, e este estudo ainda
está por fazer. Mas por meio da grande literatura de Machado de Assis você
consegue pegar pistas.
PROF. MONIR: Todos os ensaístas sobre o Brasil acabam caindo nos sinto-
mas, porque ninguém é capaz de dar uma explicação espiritual. Como todo
o mundo é materialista, o sujeito sempre irá procurar em algum materia-
lismo a explicação para a alma brasileira. Quando você conseguir sair do
mundo mental e ir para o mundo espiritual, você será capaz de descobrir
então alguma coisa verdadeiramente.
(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos citados são da edição Memórias
CRONOLOGIA
1395 Fundado por Gian Galeazzo Visconti o Ducado de Milão, que existiria
1554 No Ducado de Milão, começa domínio espanhol que iria até 1706.
1631 Com a vitória das pretensões francesas e derrota do Sacro Império Ro-
sido Giovanni Verri, de uma família de notáveis, com quem Giulia teria tido uma
aventura extraconjugal.
bio aristocrático de Paris. Conforme as leis da época, Alessandro fica sob a guar-
1805 Morre Pietro Manzoni. Alessandro muda se para a casa de sua mãe na
apenas quarenta e três anos e brilha na sociedade. Estabelece amizade com a vi-
1808 Casa-se pelo rito calvinista com Henriette Louise Blondel, filha de um
Dedica-se a compor doze Inni Sacri, poemas religiosos, e um tratado sobre moral
1815 Pelo Congresso de Viena, a Itália é dividida em oito reinos, alguns deles
republicanos e carbonários).
mando a de “genial”.
gem, Il cinque maggio. Começa a escrever Fermo e Lucia, versão inicial de Os Noi-
Sposi: Storia Milanese del Secolo XVII). Esta edição é conhecida como Ventissettana.
1837 Alessandro Manzoni casa se de novo com Teresa Born, viúva do Conde
Stampa-Borri.
1860 Estabelecida por Vittorio Emmanuelle II, da casa de Sabóia, e pelo Con-
conseguiu assumir.
italiana.
1873 Morre seu filho mais velho, Pier Luigi, no dia 28 de abril. Profundamente
anos, vítima de uma queda na saída da igreja. Apenas dois dos nove filhos
cujas primeiras audições foram dirigidas pelo compositor – pela manhã na igre-
1929 Pelo tratado de Latrão (Mussolini e o Papa Pio XI), consolida se o estado
ticano.
da humanidade”.
Imaginem um país que estava ainda dividido em regiões. Até hoje isso é as-
sim... Eu tenho um amigo que é italiano, e para todo o mundo que pergunta
pra ele se ele é italiano, ele fala: “No, io sono romano”... Quer dizer, eles não
aceitam a generalização, na Itália ainda se resiste ao termo genérico “italia-
no” até hoje. A gente não percebe isso, tanto é que temos uma imagem da
Itália unificada, mas na Itália eles falam dialetos, uma língua que difere de
região em região.
Alessandro Manzoni, ao fazer esse romance, fez duas versões. Aqui no Bra-
sil tem as duas pra vender, e são ligeiramente diferentes. Ele fez a primeira
versão num dialeto e em seguida, na segunda versão, alguns anos depois –
alguma coisa como doze, catorze anos depois – introduz algumas variações
de modo de falar, que acabaram constituindo o italiano moderno. Isso que
nós chamamos de italiano moderno foi mais ou menos estabelecido no cor-
po da obra Os Noivos, por isso essa obra tem uma importância gigantesca
Manzoni queria alguma coisa deste tipo também para a Itália, era um ho-
mem muito sofisticado. A mãe dele era uma dessas mulheres deslumbran-
tes da sociedade, aquela mulher que num dado momento da sua vida é con-
siderada a mais desejável, a mais cobiçada da sociedade. E ela se separou do
pai do Manzoni, mesmo porque havia provavelmente ali uma certa prática
de infidelidade, ao que tudo indica, e foi morar em Paris. Ele ficou com o pai
porque pela lei italiana o pai tinha o direito de mantê-lo e, quando o pai
morre, ele vai então para Paris, onde sua mãe dava umas festas maravilho-
sas. Ela tinha um apartamento na Place Vendôme. É uma praça maravilhosa,
E esses dois aí são dois funcionários de uma tecelagem, portanto são dois
operários, e estão querendo casar um com o outro. É por aí que a história
toda começa. No entanto, essa região onde eles moram, esse pedacinho da
Itália, não é independente. Por força daquela situação que eu contei a vo-
cês, a Itália tendo sido dividida em oito reinos, cada um desses reinos era
dirigido por um aristocrata, por um nobre. Mas as pessoas das famílias no-
bres se casam com outros nobres, até para a preservação da nobilidade. E
como eles casam com outros nobres, às vezes esses casamentos são feitos
com nobres de outros países. E as famílias começam a se associar interna-
cionalmente. Está cheio de exemplos assim: a Maria Antonieta, mulher de
Luís XVI, era austríaca, não era francesa. E aqui a família real brasileira, a fa-
mília Bragança, está associada à família Bourbon, que é francesa. A cidade
de Joinville, por exemplo, se chama Joinville porque uma das irmãs do Dom
Pedro II, chamada Dona Francisca, casou com o Príncipe de Joinville, que é
um príncipe da família Bourbon francesa. E o Príncipe de Joinville recebeu
como dote aquela região lá onde é Joinville, em Santa Catarina. Na épo-
ca desses acontecimentos ocorrem aqueles distúrbios europeus de 1848...
Joinville foi fundada no dia 9 de março de 1851 e em 1848 houve aqueles
distúrbios enormes que acabaram com o que havia de nobreza na França.
O Príncipe de Joinville teve que sair correndo, fugido – já era casado com a
RESUMO DA NARRATIVA
PROF. MONIR: Na época em que o Manzoni escreveu esse livro era muito
comum a publicação do livro no jornal. Não tinha novela na televisão, en-
tão tinha novela no jornal. Um livro era publicado uma vez por semana, em
capítulos, e as pessoas compravam o jornal rigorosamente, para poder ter
a continuação da história. Aqui no Brasil também era assim: houve livros do
Machado de Assis que foram publicados desse jeito. Depois que acabava
de publicar a história inteira, saía em livro. Isso era comum. Na França era
comuníssimo fazer isso, publicar o livro em capítulos nos jornais antes de ir
para as livrarias. A segunda versão é a que foi usada para fazer este resumo.
messi Sposi) representa a vanguarda literária de sua época, seguindo a trilha en-
tão recém-aberta pelo britânico Sir Walter Scott que havia criado o subgênero
A trama retrocede duzentos anos, quando o Ducado de Milão, então sob do-
Os fatos históricos são reais e precisos, incluída a peste cuja impressionante des-
crição eternizou a obra que alia ao clima trágico inigualável humor cervantino
PROF. MONIR: Às vezes, né? Nem sempre. A obra, portanto, é de grande di-
mensão literária, independentemente de qualquer coisa, é uma obra litera-
riamente muito importante.
della, fiandeiros de seda, pretendem se casar, mas são impedidos por um sem
trional do Ducado de Milão, que incluía o burgo Lecco, de onde a família do pai
XVII. Benedetto Croce dele disse ser “uma obra-prima de toda a humanidade”
e Otto Maria Carpeaux disse que se trata do “maior romance histórico que já se
escreveu”.
Milão13
PROF. MONIR: Olhem como durou isso, pessoal, quatrocentos anos. Durante
quatrocentos anos a região de Milão foi um país autônomo da Itália. É uma
enormidade de tempo, né? Aí em 1797 passou para o domínio do Império
Austro-Húngaro. Quer dizer, já era Itália muito antes da unificação. O ver-
dadeiro dirigente do Ducado de Milão é Filipe IV da Espanha, da linhagem
dos Filipes.
Quando ocorreram os fatos que nos dispomos a narrar, essa povoação era
13 Nota do resumidor – O Ducado de Milão, que existiu de 1395 a 1797 passou por diversos
domínios estrangeiros, entre eles o dos Filipes de Espanha, entre 1554 e 1706. No momento
nacionais para o uso do título honorífico “dom” (do latim “dominum”). Segundo Napoleão
tes das casas reais portuguesa e brasileira, os monges beneditinos e personagens consagra-
dos como “Don Juan”. Em italiano “Don” é atributo de padres em geral e em espanhol equivale
ao nosso “senhor”. No texto resumido foram portanto corrigidos os enganos, o que gera
o uso de capangas era comum naqueles tempos. Sem poder se desviar da du-
– Que manda? – redargüiu Dom Abbondio, tirando os olhos do livro que lhe
– Isto é... – protestou o cura, com voz trêmula – isto é... Os senhores são homens
de sociedade; sabem como ocorrem essas coisas. O cura nada tem com isso...
quem vai receber dinheiro ao banco. E nós... nós somos servidores da comuna.
– Esse casamento não se realizará; nem amanhã nem nunca. (pág. 17)
ALUNOS: Casá-los.
PROF. MONIR: Dizer assim: “Olha meu amigo, eu sinto muito, mas quem
manda aqui é a Igreja, eu sou o representante, portanto se eles querem ca-
sar, eu caso”. Mas o Dom Abbondio, o Padre Abbondio, infelizmente não tem
essa atitude. Vocês verão que se trata de uma personagem de excepcional
e extraordinária covardia. Uma das personagens mais covardes da literatura
de todos os tempos. Esse Padre Abbondio, que tem a vantagem de ser en-
graçado, é o covarde engraçado (pelo menos tem isso, né), agora vai ficar na
dúvida se casa ou não casa o casal. Então esse negócio começa muito mal.
Ameaçado de morte e sem saber o que fazer, Padre Abbondio “enveredou pelo
atalho que levava à casa paroquial, movendo a custo as pernas quase tolhidas”. O
narrador nota que o cura não havia nascido “com fígados de leão”,
sobretudo naquela sociedade em que “quem usasse a libré de uma família sober-
Na casa paroquial, com o semblante transtornado, o padre pede uma taça de vi-
nho à criada Perpétua. Engole o conteúdo todo num trago, e com dificuldades,
Capítulo II
disse consigo o cura. – Ele pensa na namorada; eu tenho de zelar a minha pele. Sou o
maior interessado, além de ser o mais esperto. Meu filho, é natural que estejas impa-
PROF. MONIR: Olhem que covardão, né? Esse padre é o covarde típico.
horríveis pesadelos.
rapaz, com vinte anos, era fiandeiro de seda e possuía uma chacrinha que rece-
– Em que dia?
– Depois, o quê?
– Mas, em nome do céu, não me deixe assim aflito! Diga duma vez o que há.
votum, cognatio, crimen, cultus, disparits, vis, ordo, ligamen, honestas, si sis af-
finis...”, pede ao noivo que tenha paciência: “alguns dias, meu filho, não são a eter-
nidade”.
PROF. MONIR: Então, de fato, o padre não vai casar os dois no dia seguin-
te. E dá como desculpa a burocracia do direito canônico, que estabelece
não mais se casariam naquele dia. No caminho, encontra a aia Perpétua que lhe
insinua a verdadeira razão do adiamento. Renzo volta à casa paroquial, entra, tira
a chave da porta e obriga o padre a lhe contar quem estava impedindo o casó-
rio. O padre acaba contando a verdade, enquanto “Renzo ouvia, entre o furioso e
PROF. MONIR: Com muita razão, porque afinal de contas, o que foi que ele
fez lá pro outro? O que é que poderia haver nesse casamento de tão incô-
modo para que o outro tentasse impedir? São duas pessoas pobres, dois
jovens pobres querendo casar. É pedir muito? É por acaso uma meta muito
audaciosa na vida? Não é nada muito audacioso. É uma coisa meio natural...
que todo o mundo acaba fazendo, a maioria das pessoas casam. Não parece
ser muito excepcional. E, no entanto, está aí esse impasse, essa dificuldade
de fazer porque o padre não quer casá-los, tendo sido ameaçado por um
sujeito poderoso que morava ali.
dó...” Chega à casa da noiva onde já se reuniam as amigas para “formarem cortejo
à moça”.
PROF. MONIR: Olhem que maravilha. Se ele está incomodado com isso,
quanto não deve estar incomodada a noiva? Imaginem. Porque o casamen-
to, afinal de contas, é uma festa muito mais da noiva do que do noivo. Da
perspectiva da noiva, uma coisa como essa é muito pior do que da perspec-
tiva do noivo. Naturalmente é assim.
Lúcia, “uma bela moça de tez clara e cabelos negros”, vê Renzo com o rosto des-
figurado de raiva e ouve as notícias. Ela reage como se aquele fato não fosse
o primeiro (“Ah!... Até a esse ponto!”) e dispensa as amigas alegando que o cura
estava doente.
PROF. MONIR: Sorte que é gente pobre, né? É uma festa de casamento muito
improvisada, não é um negócio complicado de desmanchar. É chato, mas
afinal, é contornável. Vamos ver se eles vão conseguir casar. O esforço de
casar continua, vamos ver pra onde vai.
Capítulo III
Lúcia, em prantos, confessa a Renzo e à sua mãe, Dona Inês, que dias antes, vol-
(que viria a ser o Conde Atílio, primo daquele). Os dois teriam falado baixo entre
si e dito: “Apostemos”. Lúcia havia relatado o encontro a Frei Cristovão, frade capuchi-
Renzo, indignado, quer fugir com ela imediatamente, mas ela o lembra de que
eles ainda não são marido e mulher. Dona Inês sugere que Renzo procure um
gando-o com os quatro galos sacrificados para o casamento, já que “não convém
Em Lecco, Renzo conta a história ao tal “rábula”, mas ouve dele desaforos e de-
sacatos: “Conte isso aos seus iguais, e não a um homem de bem que sabe avaliar
ça, no mundo”. Sobre esta atitude o narrador diz: “Prova evidente de que o homem
Capítulo IV
Chamado, Frei Cristóvão, quase sexagenário, vai à casa de Lúcia imaginando al-
aos trinta anos havia abandonado rica herança e uma vida atribulada, depois de
gado e desdenhoso”. No entrevero, para salvá-lo, morrera seu fiel criado Cristóvão.
Abalado pelo episódio, Luís se havia decidido pela vida religiosa, doando seu pa-
trimônio para a viúva e oito filhos do empregado e tomando para si o nome reli-
PROF. MONIR: Aí vocês têm a história do Frei Cristovão. Um nobre que ma-
tou outra pessoa e foi salvo pelo seu empregado, que morreu na briga. Ele
dá tudo que tem pra viúva do empregado e vai ser monge. E dá a si mesmo
Capítulo V
as mulheres, Renzo chega e Cristóvão lhe diz que confie em Deus e pede-lhe
que prometa seguir seus conselhos. O religioso propõe ir falar com o Senhor Ro-
drigo: “Se Deus lhe comover o coração e der força às minhas palavras, tudo irá bem,
PROF. MONIR: Viu só, não falei? Essa eu adivinhei, ein? [risos] O rábula era da
turma do Rodrigo.
banquete regado por vinho “sem par”, atribuindo a carestia do lado de fora15 à
propondo como remédio que se “apanhem e enforquem-se uns cinco ou seis (pa-
PROF. MONIR: Essa palavra “ambrosia” está aí mal escrita porque no Brasil
inventou-se escrever “ambrosia”, quando na verdade o nome desse negócio
é “ambrósia”, tanto é que antigamente havia pessoas com esse nome. Vo-
cês nunca ouviram falar de alguém chamado Ambrósio? Então, é a mesma
palavra. Ambrósia é uma comida que os deuses comiam. Modernamente, é
o nome de certo doce. Hoje em dia ninguém põe em um bebê o nome de
15 Nota do resumidor – O Ducado de Milão, pela coincidência de duas más safras e do esforço
Capítulo VI
A sós com o fidalgo, Frei Cristóvão pede-lhe um ato de justiça, dizendo que “al-
PROF. MONIR: Político, né? Estratégico: “Olha, vim falar com o senhor aqui,
por que parece que tem aí uns marginais que estão perseguindo padres...
vim aqui lhe contar isso”. É claro que o outro sabe, porque é ele que está
perseguindo. Mas, em todo caso, começa bem a conversa.
Como o castelão resiste, o frade o lembra de que “os gemidos, as queixas do pobre
vir sermões iria à igreja e que, já que o padre se preocupa tanto com Lúcia, que a
mandasse buscar “a sua proteção”. O padre fica furioso com o cinismo do fidalgo
e lhe diz, com o dedo em riste, que fala a alguém “a quem Deus desamparou, e
ciscano.
samento para o casal poder fugir “legalmente”. Dona Inês diz que se os nubentes
gosta da ideia, sai e vai procurar as testemunhas, que acabariam sendo Tônio, a
quem Renzo dá dinheiro para pagar uma dívida com o padre, e Gervásio, primo
daquele.
PROF. MONIR: Quer dizer, deu certo a solução de falar com o Rodrigo? Não
deu. Então aí a Inês diz que uma solução boa é a seguinte: “Vocês chegam lá
com duas testemunhas e declaram que já dormiram juntos”. Por que o que é
ser marido e mulher? É já ter dormido junto. Da perspectiva moral daquela
época, o casamento é automático pela relação sexual. Ou seja: dormiu junto,
casou. Acabou a história. Isso era assim até bem pouco tempo, não é? Não
é algo muito distante. Até bem pouco tempo tinha-se o hábito de se casar
na delegacia. Casar na delegacia caiu da moda, mas fundamentalmente era
isso: o casal dormiu junto, tem que casar porque é como se já tivesse casado
na prática. O que a Inês propõe é que os dois cheguem lá e se declarem ma-
rido e mulher, e isso equivaleria a admitir para o padre que eles já têm uma
vida marital, ou seja, já têm uma relação carnal. E como tal, então, o padre
fica obrigado a casá-los. Seria uma estratégia para tentar obrigar o padre a
casar o casal.
Capítulo VII
Chega Frei Cristóvão com as más notícias de sua embaixada, mas reanima os
noivos, dizendo ter “na mão um fio para lhes valer” e volta para o convento. Renzo,
que já havia negociado com as duas testemunhas, não confia naquele plano
misterioso e quer levar em frente a ideia anterior de “casar à força”, mas Lúcia
gimentos”.
PROF. MONIR: Ela não quer começar a sua vida de casada usando um estra-
tagema como esse.
Renzo, inconformado, quer fazer justiça, matando logo o fidalgo. Lúcia se deses-
pera, porque “contra os pobres sempre há justiça...” Fora de si, Renzo ameaça matá
-la: “Você não será minha mulher; mas também não será dele.” Trazido à serenidade
PROF. MONIR: Até muito pouco tempo a vida de uma cidade era dirigida
pelos diversos momentos em que o sino da igreja toca durante o dia – cada
momento desses tem um nome. Essa orquestração da vida humana pelo
PROF. MONIR: Bom, toca aqui? Mas isso numa cidade grande já não tem
mais. Toca-se de hora em hora para o pessoal acertar o relógio. Por que tem
o sino da igreja? É pra acertar o relógio, saber se são quatro da tarde, ou
cinco, ou seis, ou sete, ou oito, ou nove. Mas antigamente era assim, embora
essa história não seja medieval. Durante muito tempo era assim que funcio-
nava o ritmo da vida humana na cidade, ela era mais ou menos orquestrada
pelos diversos passos religiosos, que iam estabelecendo o passo da vida das
pessoas. Vamos lá então.
Enquanto isso, no castelo, o Senhor Rodrigo e seu primo, o Conde Atílio, con-
o havia convertido... Preocupado, no outro dia, Rodrigo chama seu sicário mais
fiel, Griso, e lhe diz que Lúcia teria de estar no seu palácio antes do dia seguinte.
A ideia era raptar Lúcia, naquela noite mesmo, assustar Dona Inês e dar em Ren-
16 Nota do resumidor: A aposta consistia em que Lúcia, até o dia de São Martinho (11 de
novembro), deveria estar no palácio de Rodrigo. Se ela não viesse, seria vencedor o Conde
Atílio.
PROF. MONIR: Bom, então aí o Rodrigo, querendo não perder a aposta, com-
bina esse rapto da garota. Só que ele não sabe que foi ouvido e aquele cria-
do que é amigo do Frei Cristovão, que quer salvar a sua alma, avisa o frei que
vai haver aquele golpe, aquele rapto. E agora então vai acontecer uma ação
muito importante na história. Vamos ver se dá certo a tentativa de rapto da
Lúcia.
a casa de Dona Inês de onde, todos juntos, vão à casa paroquial. Tônio, usando
Capítulo VIII
Tônio, o fiandeiro toma o braço de uma Lúcia toda trêmula e irrompe na sala.
PROF. MONIR: O Tônio é uma das testemunhas, que só topou ser testemu-
nha porque o Renzo deu o dinheiro pra ele pagar a dívida com o padre. E
com isso o Padre Abbondio ia recebê-lo.
lher”. Quando Lúcia vai dizer o mesmo, o padre tapa-lhe a boca, deixa cair o
PROF. MONIR: Dá pra imaginar a cena? Ela querendo dizer assim: “Eu tam-
bém sou...” [o professor tapa a boca] <risos> Ela não podia falar de jeito ne-
nhum, porque se acontecesse isso o padre ficaria obrigado a casar os dois. E
o padre tem que impedi-la, então, de dizer que ela é mulher do Renzo. Uma
cena absolutamente cervantina, uma cena de pastelão, como só Cervantes
foi capaz de fazer na literatura.
fica de pé.
PROF. MONIR: Há uma cena do Dom Quixote muito parecida com essa, uma
cena numa taberna, em que o Dom Quixote supõe que a Maritornes estava
indo lá namorá-lo e aí começa uma briga, exatamente como essa... Eu ima-
Inês, onde não encontram ninguém e, pressentindo algo errado, retiram-se ra-
por Domingos, um menino que trazia mensagem de Frei Cristóvão para que se
Dona Inês diz à turba que gente armada iria matar um “peregrino” e a celeuma
PROF. MONIR: Vocês veem a confusão que o duplo acontecimento que ge-
rou na cidade, né? A tentativa de casar à força e a investida fracassada dos
capangas do Rodrigo na casa de Dona Inês – eles não conseguem achar a
moça lá.
Frei Cristóvão os coloca imediatamente num transporte para fora da aldeia. Ren-
PROF. MONIR: É uma cena muito triste... imaginem, né? Vejam, tudo isso co-
meçou por quê? Porque esses dois queriam se casar. Dois pobrezinhos, fun-
cionários de uma tecelagem, duas pessoas humildes que querem se casar e
no entanto, já a essa altura, a confusão chegou a tal grau que são obrigados
a largar sua casa, sua família, e irem embora pra um destino desconhecido
porque queriam fazer uma coisa tão simples e tão natural quanto se casar.
Capítulo IX
indicado onde um religioso, ao ler a missiva, diz que tudo dependia de “a se-
nhora” querer “tomar este compromisso”... A “senhora” era uma freira que vinha de
Lúcia e Inês chegam ao claustro onde encontram a “senhora”, uma freira de vinte
beleza “triste e sem viço”, que daria a um observador, segundo o narrador, a im-
PROF. MONIR: Imaginem a cena: “Não, minha filha, você veio pro lugar cer-
to... ainda bem que você veio pra cá!” É a cena da raposa elogiando a escolha
que a galinha fez de entrar na sua toca.
que a havia destinado (junto com o irmão mais novo) ao convento, a fim de não
Estava ali desde os seis anos e, por causa da posição do pai, tinha grande influ-
“fausto secular”.
PROF. MONIR: Ela não tem vocação religiosa. Embora esteja lá num conven-
to.
Sua religião, “despida assim de sua essência, já não era religião, mas uma sombra
como as demais”17.
Capítulo X
Conforme a praxe, Gertrudes havia passado um mês em casa antes dos votos,
para ter sua vocação avaliada por um padre examinador, o vigário das freiras. A
contragosto, para agradar o pai, Gertrudes havia mentido ao vigário sobre sua
o travo dos desejos que jamais lhe seria dado realizar. Exaltava-a e lhe doía a sua
formosura inútil; torturava-a a pensar em que a sua mocidade definharia num lento
17 Nota do resumidor – Segundo comentaristas, esta monja (Monaca) de Monza teria de fato
tidas.
punindo as discípulas pelo mínimo deslize, ora excitando-lhes, com artes diabólicas,
as turbulências”.
PROF. MONIR: Vejam, não era um bom lugar pra Lúcia ir parar, né? Vejam que
desgraça. Ela só queria casar com o Renzo. Tudo que a menina queria era
casar com o Renzo, e agora os dois são fugitivos do Rodrigo e a Lúcia não vai
pro lugar, digamos, mais apropriado.
Na medida em que Gertrudes percebia o poder que tinha, passou a agir cada
vez mais escandalosamente, incluindo fazer desaparecer uma freira que a amea-
do convento”.
Capítulo XI
Rodrigo que não esperava outro resultado que o sucesso do rapto. O fidalgo
conclui que há entre eles um espião e dá ordens para vigiar a casa de Dona Inês
PROF. MONIR: Ele só não sabe que a Dona Inês sumiu junto com a filha e
com o Renzo, que foram embora.
car em Milão, junto a seu tio, um político importante, ajuda para perseguir o
monge.
No dia seguinte, Rodrigo dá-se conta de que Renzo, Lúcia e Inês haviam fugido.
Com pouco esforço de pesquisa descobre que as mulheres estavam num con-
vento em Monza e que Renzo estaria em Milão. Manda Griso em nova missão
vembro com uma carta de Frei Cristóvão para Padre Boaventura, do convento
da Porta Oriental.
PROF. MONIR: Onze de novembro não é o dia em que a moça tinha que estar
lá com o Rodrigo, na pior das hipóteses?
sacos de trigo nas costas. Julga que há muita fartura em Milão e que inventam
que há carestia em toda a parte. Quando reflete melhor, conclui que se trata, na
Capítulo XII
de Córdoba, havia fixado por decreto o preço do pão muito abaixo do custo do
18 Nota do resumidor – Onze de novembro, dia de São Martinho, dia do grande motim da
carestia do trigo e do limite para Lúcia estar no castelo de Rodrigo. O Conde Atílio ganha a
aposta.
19 Nota do resumidor – Vigário do abastecimento era um nobre escolhido todos os anos pelo
governador, entre seis fidalgos propostos pelos Conselhos dos Decuriões, para garantir a
oferta de alimentos.
Capítulo XIII
dava por linchamento. Renzo “mal poderia dizer se observava ou condenava a pi-
em Portugal e no Brasil, e que se refere a uma história elaborada com o objetivo de burlar
alguém. São várias as versões da origem do termo, mas em todas o tema principal é um golpe
“Um velho de aspecto diabólico ... pretendia pendurar o vigário morto aos batentes
Quando tudo parecia perdido, chega Antônio Ferrer, o dignitário espanhol que
havia reduzido o preço do pão. Passa pela multidão que o apulpa, entra na casa
que o estava levando preso. Na carruagem, o homem, lívido, diz a Ferrer que
iria viver “numa gruta, no cimo de um monte, como um eremita, longe desta gente
bestial”.
PROF. MONIR: Ele deixou a noiva com a Monja e agora está lá em Milão
olhando aquela bagunça toda, muito assustado com aquilo tudo. Tentando
entender o que fazer com aquela situação.
PROF. MONIR: É, ele foi para Milão pra poder se hospedar lá no convento,
mas chega lá e encontra aquela confusão. Os planos todos mudam.
Capítulo XIV
nantes e fidalgos. Propõe irem todos no dia seguinte procurar Ferrer, que lhe
havia causado boa impressão, e mostrar àquele homem “como correm as coisas”.
onde o vendeiro quer por força que ele preencha uma ficha de hóspede, obe-
estardalhaço. O fiandeiro come, bebe e discursa sobre medidas ideais para nun-
ca deixar de faltar o pão “necessário para todos os de casa”. Renzo continua be-
dos hóspedes.
ALUNOS: Não...
Capítulo XV
guinte”.
PROF. MONIR: O que era mentira, porque ele não ia fazer motim nenhum.
Ele queria ir lá falar com o Ferrer. Mas o povo já tinha trocado tudo, tinha
distorcido e o Renzo estava passando por agitador político.
acontecera nessa noite, para que a polícia se atrevesse a deitar mão em quem, horas
PROF. MONIR: Ele pensa, né? Que ele ficou popular. Ele pensa que fez suces-
so.
Lorenzo é levado preso por um notário21 com doces palavras venenosas e por
dois esbirros.
tra a escolta dizendo: “Prenderam-me porque ontem gritei ‘Pão e Justiça’... Não me
Renzo planeja fugir para Bérgamo, onde morava seu primo Bartolo Castagneri
que já o havia convidado muitas vezes a trabalhar numa fiação com ele, porque
gonzola.
PROF. MONIR: Que ficou famosíssimo porque nesse lugar tem um queijo
chamado gorgonzola. Todo o mundo conhece aqui, é um queijo comum na
cozinha brasileira.
Numa hospedaria local, Renzo descansa e busca informações para seguir via-
piorado muito, com “marotos” gritando e atraindo gente para saquear a casa do
havia baixado. Renzo fica sabendo também que à noite muitas prisões haviam
sido feitas e que os “cabeças” da rebelião, uns forasteiros, iriam ser enforcados.
PROF. MONIR: Que é o caso dele, né? Parece ser uma boa notícia essa?
O relatório continua com a notícia de que um “tipo” fora preso numa hospedaria:
– Esse viera não se sabe donde nem a mandado de quem. Mas era, sem
achadas com ele haviam, segundo aquele relato, desvendado “toda a cabala”.
Renzo ouve tudo isso chumbado à cadeira, com medo de que concluíssem que
o tal “tipo” era ele. Quando o assunto mudou, pagou discretamente a conta e
“enveredou pela estrada oposta à que o trouxera até ali”, na direção do rio Adda,
Bérgamo.
Aluna: Tá ruim.
PROF. MONIR: Mas será que tudo isso está desse jeito porque eles queriam
alguma coisa muito audaciosa, a sua ambição era muito desmedida? Não.
Dá pra imaginar ambição menor que essa? Não dá. É uma ambição abso-
lutamente natural, modesta e humilde que pessoas comuns têm. Queriam
casar um com o outro. Nem tinham fortuna pra herdar um do outro... Esses
dois aí primeiro arrumam essa encrenca com o tal do Rodrigo. Depois são
quase sequestrados, depois a moça acaba lá nas garras da Monja de Monza,
e agora o Renzo sai corrido lá de Milão... Na verdade sabem o nome dele
porque ele disse: “Eu sou o Lorenzo!” Quer dizer, fez todas as bravatas possí-
veis para se comprometer o resto da vida com aquilo. De modo que agora
ele é um proscrito, é alguém que provavelmente vai ser perseguido pela
justiça. A noiva, coitada, está lá nas garras da Monja de Monza e o Rodrigo
ainda continua com vontade de se vingar deles. Embora tenha perdido a
aposta, continua com vontade de se vingar. Será possível que possa aconte-
cer alguma coisa pior do que isso pra esse pobre casal? Certamente pode. E
vamos saber só depois do nosso intervalo.
************
INTERVALO
***********
Então o que nós temos aí é uma história muito simples, trata-se de dois jo-
vens no Ducado de Milão que têm uma meta na vida muito simples, muito
despretensiosa, que é casar um com o outro. Eles já descobriram que amam
um ao outro, estão certos da sua escolha. Não têm impedimentos familiares,
no entanto, esse desejo de se casar está transformando a vida dos dois num
inferno. Quando nós paramos aqui pra tomar café, o Renzo estava fugindo
da polícia e a Lúcia estava num convento suspeitíssimo. Os três saíram da
sua terra (Inês, a mãe de Lúcia, também não está mais lá), de modo que a
vida dessas três pessoas foi completamente desmontada por causa de res-
trições e obstáculos que estão aparecendo a esse plano de se casar, que
parece muito simples. E aí nós continuamos a leitura, se é que vocês não
têm nenhuma dúvida até agora. Vamos lá.
Noite escura, Renzo vai pela estrada real resmungando indignado por ser tão
caluniado: “Eu preguei que matassem os ricos? Um maço de cartas, eu?” Teme ser
Chega às margens do rio e vê do outro lado uma nódoa esbranquiçada que jul-
ga ser Bérgamo. Para esperar a alvorada, Renzo refugia-se numa casinhola aban-
e medita:
(...)
– Seja o que Deus quiser – disse ele, como resposta aos pensamentos que
mais o torturavam. – À vontade de Deus! Ele sabe o que faz, e existe para
Senhor não permitirá que ela padeça muito tempo. (pág. 130)
indigentes que mostravam a miséria mais no rosto do que no vestuário. Não eram
que “preza os operários, porque a crise passa e o negócio fica”. Renzo consegue um
lão.)
PROF. MONIR: Reparem que quando o Renzo atravessa o rio ele muda de
pátria, porque a República de Veneza é outro país, diferente do Ducado de
Milão. Entenderam o que era a Itália antes da unificação? Não é a mesma
nação, são países diferentes. A República de Veneza tem outro governo, ou-
tro sistema jurídico etc. Renzo então sonha em poder chamar a mulher e
a sogra pra começar a vida assim que puder. Como os fiandeiros de Milão
são os melhores da Itália, porque a indústria da seda na Itália fica em Milão,
Renzo se colocou facilmente.
E aí então temos uma situação em que o Renzo parece que vai conseguir
consertar um pouquinho a vida, está trabalhando. E agora o problema pa-
rece ser só o de chamar as mulheres. Esperar que ele ganhe algum dinheiro
pra chamar as mulheres e começar a vida fora da pátria, já que por causa
da perseguição àquele casamento, Renzo e Lúcia tiveram que se expatriar.
O que parece uma coisa absurda, porque afinal de contas, eles só queriam
fazer o quê? Casar.
Capítulo XVIII
havia voltado “ao seu primitivo domicílio”. A casa de Renzo é arrombada. O nome
Senhor Rodrigo.
PROF. MONIR: Na própria cidade ninguém levou aquilo muito a sério, por-
que conheciam a figura do Rodrigo. No entanto a situação civil do Lorenzo
O fidalgo, por sua vez, alegrou-se em saber ser o seu rival perseguido, apesar de
o capanga Griso ter trazido notícias pessimistas de Monza: Lúcia vivia asilada no
mosteiro, sob a proteção da tal “senhora”. Além disso, o Conde Atílio maquinava
julgava-se mais do que nunca no direito de reaver a moça, que agora era, afinal
PROF. MONIR: Que não tem direito a ter nada, muito menos a moça. Nesse
momento ele já perdeu a aposta, ele quer apenas desforrar-se do Renzo.
Circula finalmente pelo povoado a notícia de que Frei Cristóvão, por ordem do
ni. Com esta notícia, vem a do regresso inesperado de Dona Inês que, com Lúcia,
PROF. MONIR: A Dona Inês, sozinha, sai do convento e volta pra Lecco.
Neste capítulo, o narrador nos conta como o tio do Conde Atílio, “envenenado”
arruaças de Milão”.
PROF. MONIR: Como eu contei pra vocês, né? O capuchinho não está subme-
tido ao bispo, está submetido ao provincial. Há uma espécie de autoridade
intraordem. O bispo não tem ação política sobre ele, porque as ordens são
autônomas dentro do contexto católico.
capuchinhos e sua família (“somos uma família numerosa... que tem sangue nas
Enquanto isso, o Senhor Rodrigo, “decidido a levar a termo sua empresa execrável”,
o “Inominado” 22.
PROF. MONIR: Pois é. Esse l’Innominato (O Inominado), “aquele que não é no-
minado”, teria sido também uma personagem histórica. Tratava-se de uma
espécie de Marquês de Sade italiano, um sujeito que tinha um castelo e
grande poder político, um malfeitor que tinha uma vida sexual absoluta-
nham visto forçados a optar pela amizade ou pela inimizade deste tirano invulgar”.
Rodrigo, que julgava perigoso ter inimizade com aquele homem, cobre a cavalo
as sete milhas que medeavam entre seus castelos e vai pedir-lhe ajuda.
Capítulo XX
que ali nunca se havia visto esbirro nenhum, nem vivo nem morto.
PROF. MONIR: A polícia nunca havia entrado lá, pra vocês terem uma ideia.
O castelão, “alto e moreno”, com sessenta anos, ouve o fidalgo que “vinha pedir
conselho e auxílio. Encontrava-se numa situação difícil que lhe afetava a honra. Lem-
brara-se então de que soara talvez o momento azado para a retribuição prometida”.
dido e despede o fidalgo dizendo: “Em breve sereis avisado do que tendes a fazer”.
Depois que o fidalgo sai, o Inominado que tinha, às vezes, “a sensação de uma
(...)
dos ministros mais destros e audazes das suas iniqüidades, o mensageiro que
PROF. MONIR: Lembram do Egídio, que era um sujeito libertino que tava
preso num convento? E que era amigo da Monja? Esse Inominado tem lá
capuchos, sozinha, convocar certo monge, Lúcia (que nunca mais pusera os pés
na rua) foi agarrada no caminho pelo sicário “Milhafre” que a amordaçou e a le-
PROF. MONIR: Então. A situação da Lúcia não podia ficar pior, porque agora
ela não tem mais a Monja de Monza, mas ela tem o Inominado, que é o Mar-
quês de Sade em pessoa. Não parece que tá piorando a situação da Lúcia?
Viu como dá pra piorar a vida da moça? Muito bem, vamos lá.
Capítulo XXI
tado por culpas, resolve que não a quer em casa e a entrega aos cuidados de
uma velha criada. Ameaça mandar chamar Rodrigo imediatamente, mas recua:
encontra Lúcia encolhida num canto no quarto da velha criada. Ele quer saber
se ela estava sendo bem tratada. A moça implora misericórdia e pede, pelo amor
Deixada a sós com a criada, Lúcia tenta, mas não obtém dela informações sobre
aquele senhor. Enquanto sua carcereira dorme, Lúcia pede ajuda a Nossa Senho-
O Inominado, por sua vez, atormentado e sem poder dormir, decide libertar a
cera a sentimentos antigos, usuais; mas não vacilara em praticar mais uma de suas
inúmeras ações celeradas que ora lhe acudiam à lembrança, como outras tantas
como de coisa certa, fosse pura invenção dos padres, porque haveria eu de
morrer? Que importa o que fiz? Que loucura a minha!!! E, se essa vida existir!...
(pág. 157)
Pela manhã, o libertino arrependido é acordado por repique dos sinos e por
PROF. MONIR: Portanto esse libertino aí, esse Inominado, está no momento
prévio da sua própria conversão. Ele de alguma maneira é influenciado pela
presença da moça, porque ela, de certo modo, representa o oposto dele.
Enquanto ele representa, digamos assim, um arquétipo de perversidade, ela
representa um arquétipo de inocência. E ele então, ao se defrontar com isso,
acontece como está lá na Odisseia – eu tenho dito pra vocês sempre que
todos os esquemas literários ocidentais estão na Ilíada e na Odisseia.
arcebispo de Milão, que estava numa aldeia próxima, para onde a procissão se
no mesmo canto.
PROF. MONIR: Coitada da menina, né? Já imaginou, num canto da sala... você
sabe aquele cachorrinho que está com medo dos donos, do vizinho? É a
coitada da Lúcia, não sabendo o que vai acontecer com ela... tudo isso só
porque ela queria casar. Não é uma quantidade incrível de desgraça? Ela não
tem mais a mãe dela, está sozinha na casa de um sujeito que é um perver-
tido, lá no canto, tentando se salvar com Nossa Senhora, não é? Muito bem,
vamos lá.
prelado fundou a Biblioteca Ambrosiana, a qual anexou um colégio de doutores para o estu-
do de teologia, de história, das letras, das antiguidades eclesiásticas e das línguas orientais.
informa, “foi um dos raros homens de seu tempo que dedicaram um talento notável,
Capítulo XXIII
Apesar da resistência dos padres que não querem deixar o Inominado aproxi-
manda-o entrar imediatamente (“E não é felicidade, para um bispo, que semelhan-
PROF. MONIR: Olha só que beleza, né? Não querem deixar que o pervertido
fale com o cardeal, mas ele diz: “Mas é justamente com esse sujeito que eu
tenho que falar”. Lembrando sempre vocês que a essência do cristianismo é
que é uma religião feita para pecadores, não é uma religião feita para santos.
Porque se fosse o caso, se fosse pra santos, o Borromeo só falaria com São
Francisco de Assis. Mas o problema do cristianismo é que ele é feito justa-
mente para as pessoas que não são santas, logo não teria nada mais interes-
sante, mais oportuno para o Cardeal Borromeo do que conversar com o pior
de todos, o mais pervertido de todos os habitantes daquela cidadezinha.
As indicações são de que isso tudo foi assim mesmo. Essa é pelo menos a
versão que corre como tendo verdade histórica, ou seja, o Cardeal Borro-
meo de fato teria sido o conversor do Inominado, que de fato existiu.
ainda ido visitar “um dos (seus) filhos amados que mais desejava abraçar” e estende
a mão para o libertino que recua com vergonha, mas acaba aceitando o gesto
– Deus grande, Deus bom, percebo enfim quem sou! Vejo as minhas
uma alegria! Sim; uma alegria que nunca experimentei, na minha existência
PROF. MONIR: Tava desaparecido até então, né? Achando que tinha se salva-
do. Agora imagina que foi colocado de novo na encrenca.
Recebe a notícia de que Lúcia Mondella havia sido reencontrada e que ele de-
didata (para evitar a excursão com aquele homem), mas o cardeal não concorda.
PROF. MONIR: Então agora o Padre Abbondio tem que ir até o castelo do
Inominado, andando com ele assim pela rua. É a última coisa que ele queria
na vida.
formado com aquela tarefa: “Se este virou santarrão, porque não a trouxe de uma
vez?”... “Sinto muito, mas essa menina veio ao mundo para meu mal”.
infame castelo.
PROF. MONIR: Imaginem como deve ser sido a cena. Os três andando a pé,
indo na direção do castelo de terrores, ao castelo do Marquês de Sade.
Capítulo XXIV
comitiva, agora aumentada por Lúcia, volta para a aldeia, sob os olhares atôni-
tos dos sicários, já que a notícia da conversão ainda não chegara ao castelo. No
caminho, Lúcia descobre, arrepiada, pela mulher do alfaiate quem era aquele
PROF. MONIR: Ainda bem que ela descobriu depois da conversão e não an-
tes, né? Levou uma sorte danada.
Passam pela mente do cura as reflexões mais sombrias e, uma vez tendo deixa-
para sua aldeia.” Lúcia, após tomar um caldo, relembra aquela noite de angústias
e dá-se conta do voto que a condenaria a uma vida de renúncias: “Ah!, pobre de
Inês aproveita para lhe contar que o cura não havia cumprido suas obrigações
eclesiásticas.
PROF. MONIR: Pronto, agora deram para o Cardeal Borromeo a ficha do Dom
Abbondio. E agora vocês vão ver só o que vai acontecer.
De volta a seu castelo, o Inominado reúne seus fâmulos e sicários e declara que
o Senhor o havia intimado a mudar de vida e que estavam todos livres para es-
Capítulo XXV
O Senhor Rodrigo, “aniquilado por notícia tão extraordinária e tão diferente da que
partiu para Milão, esgueirando-se como fugitivo, bufando e jurando voltar “para
ouviria sobre Renzo não combinariam com os relatos de suas “diabruras” que
corriam em Milão.
PROF. MONIR: E agora vocês vão ver uma bronca que o cardeal vai dar no
Dom Abbondio. Eu, se recebesse dez por cento dessa bronca, me enfiava
embaixo da mesa e não saía nunca mais. Reparem que interessantíssimo:
senhor cura, fosse a de todos os seus confrades? Onde estaria ela, se surgisse
– É possível que eu não tenha razão, monsenhor ilustríssimo. Desde que não
se deve prezar a vida, nada me resta dizer. Mas a quem lida com o que tem a
– Ignora, acaso, que sofrer esta Justiça é a nossa vitória? Quem exige que o
senhor vença a força pela força? Ninguém lhe perguntará, um dia, se soube
os meios ao seu alcance, para agir como foi prescrito, embora tivessem os
Capítulo XXVI
mente está ocupada com o fato de que “Dom Rodrigo, são e vivo, havia de voltar,
não usava espada ou bacamarte nem tinha às suas ordens um bando de sicários”.
PROF. MONIR: Mas é covarde esse padre, né? Não é possível. Tá ouvindo uma
bronca dessas e tá só pensando assim: “Eta, esse cara aí. Depois que ele for
embora é que eu vou ter um problema aqui, quando voltar o Dom Rodrigo
com o bacamarte pra me matar”. Ele não tem a menor capacidade de com-
preender o que o Borromeo está dizendo pra ele.
lhe darão o ensejo de praticar um ato de bondade. Mas quem sabe se Deus
misericordioso não lhe oferecerá ocasião para isso? Ah! Não a deixe escapar!
Trate de aproveitá-la; rogue ao Senhor para que a faça aparecer. (pág. 180)
Como a mulher faz planos de buscar Renzo com o dinheiro, Lúcia, desfeita em
lágrimas, conta finalmente à mãe seu voto de celibato. Inês ouve estupefata,
consternada. Lúcia pede a mãe que conte o fato a Renzo e lhe mande metade
do dinheiro. Sobre o rapaz corriam todo o tipo de boatos, entre eles o de que o
fiandeiro montanhês a afronta ao seu rei mouro agrilhoado. O nobre senhor tinha
PROF. MONIR: A situação agora tem o seguinte impasse: o Renzo não pode
voltar porque será preso. O seu esconderijo na República de Veneza está a
perigo porque o Ducado de Milão está fazendo gestões diplomáticas para
persegui-lo lá. A moça não pode casar porque fez voto de castidade. Logo,
o que tem de bom é que eles têm cem moedas muito valiosas, mas eles não
conseguiram ainda que o Rodrigo parasse de persegui-los. Mas será que vai
melhorar?
Capítulo XXVII
O narrador, nesta altura, esclarece a razão dos conflitos que abalavam a região.
ros, o Ducado era disputado por várias partes25 e, no imbroglio estava o governo
ses (Charles de Nevers) e o duque de Savoia, Carlos Emanuel, apoiado pelos Habsburgos do
Em todo caso, Renzo, agora com o nome falso de Antônio Rivolta e morando
“quinze milhas mais longe”, apesar de ser analfabeto e escrevendo por meio de
mento projetado. Estupefato e furioso, manda dizer que nunca “desistiria do que
Lúcia, por sua vez, rezava para que Renzo a esquecesse, mas toda vez que Dona
homens de estado.
PROF. MONIR: Trezentos volumes numa biblioteca nessa época era muito
bom, porque os livros eram muito caros, muito mais caros do que hoje, mui-
to mais difíceis de obter. Logo trezentos volumes não parece muito para
uma biblioteca moderna, mas era muito para uma biblioteca da época. Esse
Ferrante, na casa de quem então a Lúcia está hospedada, é um homem culto
pra época, é mais ou menos isso que nós estamos ouvindo aqui do autor.
Depois da sedição do dia de São Martinho, o pão voltara a Milão, farto e barato.
Mas, com as facilidades, o povo começou a estocar trigo com tal sofreguidão
no lazareto, sofrendo até mesmo da falta de água pura. À estiagem e forte calor
número diário de mortos excedia uma centena. Fatos a que “se dá o título de
pas imperiais. Vinte e oito mil infantes e sete mil cavaleiros cruzaram durante
não se poupavam pancadas aos nativos abastados, enquanto estes não apontas-
26 Monferrato – Região dominada por Mântua que as forças imperiais do Sacro Império e dos
A “turba diabólica” chega à região de Lecco. O narrador nos conta que “quem não
viu Dom Abbondio no dia em que se divulgou a notícia da chegada iminente dos
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Ou seja, o Dom Abbondio... se ele já era covarde antes, ima-
ginem o comportamento deste homem frente ao advento de um exército
selvagem como esse. Que está só passando pelo país pra atacar o vizinho.
Para que vocês tenham o registro disso, o Sacro Império Romano Germânico
– que é o império que, depois de Carlos Magno, tenta substituir o Império
Romano – persistirá até a gestão de Napoleão como imperador. Será Napo-
leão Bonaparte, em 1806 (portanto duzentos anos na frente ainda), quem
finalmente extinguirá o Sacro Império Romano Germânico, que é esse aqui
que faz essa incursão desastrosa pelas terras de Lecco. Sobretudo pelas ter-
ras de Dom Abbondio.
O padre implora inutilmente ajuda à gente em fuga. Perpétua, mais realista, en-
tíveis, apanha o breviário e propõe seguir com os retirantes, mas chega Dona
constante e companhia numerosa”. “Dom Abbondio, por sua vez, vivia em contí-
da casa paroquial, segundo Perpétua, teriam sido vistos espalhados por outras
casas da aldeia.
PROF. MONIR: Então, o saque não é só por parte das tropas, mas dos vizinhos
aos vizinhos. Nesse momento há algo extraordinariamente importante na
história... Nós compreendemos o que aconteceu, né? A Lúcia está morando
com aquele casal, fazendo os serviços domésticos, e mais ou menos espe-
rando que o Renzo possa voltar, embora ela já tenha mandado dizer pra ele
que não tem mais casamento. O Renzo está escondido com nome falso lá
em Bérgamo porque está sendo assediado pela justiça já que o governo de
Milão está pedindo sua extradição para Milão.
Capítulo XXXI
nola, sucessor do Senhor Gonzalo, que havia deixado o cargo sob insultos e pedra-
festejos públicos pelo nascimento do infante Carlos, filho del-rei Filipe IV. Em fins
as hordas imperiais, para invadir e despovoar não só o território milanês, como boa
parte da Itália”.
nado pelos fiéis, permite que as relíquias de São Carlos permaneçam expostas
PROF. MONIR: Ela não estava completa. Uma das igrejas mais bonitas que se
possa conceber na vida. Tem pouca coisa tão bonita quanto aquilo.
trazidas por procissão que partiria ao alvorecer do dia 11 de junho. O ritual aca-
dentro em pouco, não havia lar que não fosse atingido e a população do
lazareto aumentou de dois mil para doze mil doentes. Em 4 de julho, o número
27 Nota do resumidor – Belíssima catedral milanesa que, na época, ainda não tinha a aparên-
cia moderna.
dois primeiros; além disso era necessário fornecer ao lazareto médicos, medica-
PROF. MONIR: A gente não tem ideia do que possa ser uma coisa dessas,
porque nunca mais vivemos isso. Mas no Brasil, quando houve a gripe es-
panhola, os acontecimentos foram muito parecidos com isso. Entre outras
coisas, os moribundos eram colocados na calçada e eram mortos a pauladas
pelos carregadores de cadáveres. Isso no Brasil, no século XX. Tivemos um
presidente da república, Rodrigues Alves, que morreu de gripe espanhola
nessa ocasião. A gripe espanhola, uma variante da gripe aviária (não da gri-
pe suína), é uma coisa de uma letalidade extraordinária. Nós não sabemos o
que é isso. As pessoas todas contaminadas, morrendo como moscas. Todas
as mínimas delicadezas humanas desaparecerem. Todos os respeitos, todas
as considerações, tudo desaparece da noite para o dia. Há uma coisificação
das pessoas. Esse é o quadro que se viveu lá e o Alexandre Manzoni descre-
ve com uma portentosa habilidade literária. Muito bonito no sentido literá-
rio da palavra, não no sentido da coisa em si.
geral para praticar extorsões e rapinas. Corria o boato de que a peste estivesse
“O terror dissolvia os laços mais íntimos, elevava sombria desconfiança entre esposos
Capítulo XXXIII
PROF. MONIR: O Atílio era o primo dele que tinha feito a aposta, né? Morreu.
interna, uma opressão, uma moleza que ele bem quisera atribuir só ao vinho,
O Senhor Rodrigo não consegue dormir: os lençóis lhe pesam como chumbo.
Mal fecha os olhos, acorda em sobressalto, com o corpo em fogo. Quando con-
segue adormecer, sonha estar numa igreja repleta de gente com “rostos ama-
cunstantes olhavam para Frei Cristóvão, “de mão erguida, na atitude que tomara
Manda Griso buscar o cirurgião Prego, mas Griso busca, na verdade, dois “monat-
ti” que o imobilizam enquanto o sicário arromba o cofre. Exausto com a luta, o
Senhor Rodrigo desmaia e é levado embora numa padiola. Griso, no dia seguin-
te, durante uma orgia numa taberna com o dinheiro roubado do patrão, sente
PROF. MONIR: Portanto sabemos agora que o Rodrigo está com a peste e
está internado no lazareto, como os milhares de outros doentes. Não acon-
teceu uma porção de reviravoltas do destino? Ainda não resolvemos o pro-
blema do casamento, no entanto.
por si, isto é, nada fez”. O fiandeiro decide voltar ao Ducado, “fosse como fosse”. Sob
o nome falso de Antônio Rivolta, Renzo toma o caminho de Lecco, onde chega
louquecido (dizia o tempo todo “A chi la tocca, la tocca”), havia acabado sozinho
sem sua numerosa família. O padre conta a Renzo que Lúcia estaria em Milão na
casa do Senhor Ferrante e que Inês havia se mudado para a casa de uns paren-
PROF. MONIR: “Agora que eu tava melhorando já, aparece você aqui, não é
possível que eu tenha um azar desse”, isso é o Abbondio dizendo.
O cura desfila o rosário dos nomes dos mortos; famílias inteiras e também Per-
pétua.
tigas, de fetos, de joio, de azedas”. O interior da casa arrombada está habitado por
ratos e aranhas.
No dia seguinte, partiu sem se apressar e “chegou à tarde nos arredores de Milão;
Capítulo XXXIV
Renzo encontra Milão devastada. “Em certo ponto do terrapleno, elevava-se densa
Viu-se, de fato, num quarteirão que lembrava uma cidade de criaturas vivas.
de todas as casas, exceto as dos prédios desabitados! Por toda parte, trapos
na cidade, quebrado apenas pelo rumor dos carros fúnebres, pelos berros
se uniam logo os das outras igrejas, dava o sinal das preces prescritas pelo
(...)
fatigados mas firmes, uma mulher cuja aparência denotava uma mocidade
mas intata, não obstante uma dor profunda e um langor mortal: a beleza ao
revelava uma alma consciente e pronta a senti-lo. Nem só o seu aspecto lhe
valera, entre tantas misérias, essa atenção compassiva, nem só ele reavivava
a piedade embotada, amortecida nas almas. É que ela trazia, sentada nos
braços, uma menina duns nove anos, morta, mas bem penteada, e envolta
para uma festa, prometida havia muito como um prêmio. A mãozinha, alva
como cera, pendia, inerte; a cabecinha pousara-se, em atitude que não era a
do sono tranqüilo, no ombro da mãe – que era a mãe bem o indicavam não
só a semelhança das duas fisionomias, como o que se podia ler na que ainda
exprimia um sentimento.
– Não! – disse a moça, recuando, sem mostrar irritação nem desprezo. – Não a
ao ‘monatto’ uma bolsa. – Prometa que não lhe tirará nem deixará que lhe
(...)
um lençol e disse:
tantes que, sem o conhecer e perturbados pela situação, tomam-no por um “un-
tador”: “O untador! Peguem o untador!” Renzo foge com a ajuda dos monatti que
Capítulo XXXV
(...)
Talvez ainda não houvesse pairado sobre aquele vale de dores hora pior que
Renzo encontra, fraco e desfigurado pela doença, Frei Cristóvão, que ali servia
havia três meses. O capuchinho, que não sabe de Lúcia, instrui o fiandeiro sobre
descontrola:
Infeliz! Olha, infeliz! Vê quem é que o pune, o que julga sem ser julgado, o que
é justiça? Vai, infeliz, vai-te! Eu esperava... Sim; esperava que, antes da minha
morte, Deus me desse o consolo de ver a minha pobre Lúcia viva, de receber
Tu me tiraste a esperança. Deus não pode ter deixado Lúcia na terra, para ti.
Ela, sim; porque era uma das almas a que estão reservadas as consolações
PROF. MONIR: Ele está pedindo vingança, né? O Renzo, quando ele é aler-
tado da possibilidade muito concreta de Lúcia ter morrido. E o Frei Cristó-
vão diz pra ele: “Não faça isso, quem é você pra pedir justiça? Olhe o que tá
acontecendo, não tenho tempo pra isso, pra ficar ouvindo você com as suas
arengas de justiça. De pequenas vinganças”. É isso que ele diz aqui. É um dos
momentos mais interessantes da obra. Logo em seguida aparecerá a ideia
do perdão como sendo uma das mais importantes lições que essa obra traz,
do ponto de vista do seu conjunto de considerações. Reparem.
Renzo, caindo em si, diz que perdoa Rodrigo, que perdoa sinceramente. Como
fidalgo, imóvel com os olhos arregalados que não viam, “dir-se-ia... um cadáver, se
Capítulo XXXVI
tornozelos. Procurando a noiva entre as doentes, ouve uma voz conhecida con-
fortando uma velha comerciante, deixada viúva pela peste. Era Lúcia que havia
se recuperado como ele e agora cuidava das doentes. Ela quer saber se Dona
Inês lhe havia escrito e, ao saber que sim, indaga porque havia vindo mesmo
primeira filha de Maria e ela lhe diz que vá embora pelo amor de Deus.
Renzo conta a Lúcia que Frei Cristóvão estava no lazareto e que havia pedido
para o casal rezar junto pelo Senhor Rodrigo. Como Lúcia resiste, Renzo procura
dos os três, o sacerdote diz a Lúcia que quando do voto a Nossa Senhora, ela
quando são só nossos, quando partem do nosso coração, de nossa vontade”. Em ou-
tras palavras, sendo o voto amoroso dos dois e não tendo Lorenzo desistido,
rescindir as obrigações que os homens contraem com Deus: “Se me pedir que eu
a declare desligada do seu voto, eu não hesitarei; desejo até que me faça este pedido”.
Ela pede. O frei a alivia e lhes aconselha: “Ensinem aos seus filhos a perdoarem
PROF. MONIR: Essa é a citação mais célebre da obra. Ela ganhou status de
citação eterna, é muito bonita em italiano, bonita também em português:
“Digam aos seus filhos que perdoem sempre tudo, tudo, tudo.”, que é uma regra
30 Nota do resumidor – No original, “Dite loro che perdonino sempre, sempre! Tutto, tutto!”,
Renzo parte para dar notícias a Dona Inês. Lúcia fica tomando conta da viúva,
– Lá em cima, espero.
PROF. MONIR: O padre também está doente, e está prevendo sua própria
morte.
esquerda um derradeiro olhar àquele asilo de sofrimentos. Via por toda parte
PROF. MONIR: Está para cair uma grande chuva... a água, dentro da simbo-
logia da literatura, é um dos elementos mais poderosos, porque a água tem
um conjunto de significados simultâneos muito grande. Então reparem que
no Rei Lear, quando ele é expulso de casa pelas suas filhas, ele cai numa tem-
pestade. A tempestade é uma desorganização de certa ordem para substi-
tuí-la por outra ordem que não está ainda presente. O que acontece aqui é
que essa tempestade marca de alguma maneira essa modificação profunda
do estado das coisas. Essa tempestade separa dois mundos, um do outro, e
a coisa assume uma conotação completamente diferente, reparem.
Capítulo XXXVII
ro. Em meio dessa revolução da natureza, sentia mais livremente, com mais intensi-
dade, a mudança que se operara no seu destino”. Alguns dias depois, constatou-se
negócios haviam se reaberto e “não se tornou a falar de peste, senão para aludir à
favoráveis”.
De volta à sua terra natal, enquanto espera acabar a quarentena de Lúcia, Renzo
“e fizera de sua existência um suplício tal que, exceto a morte, não seria possível con-
ALUNOS: [risos]
O casal Praxedes e Ferrante também morrera, sendo que Ferrante o fizera ne-
Capítulo XXXVIII
Chega à aldeia enfim Lúcia trazendo consigo sua protetora-viúva. Renzo procura
cabeça? [risos] Já pode casar-nos. Vim para lhe pedir isto; mas desta vez, estimaria
O cura não discorda, mas à sua maneira põe-se a opor argumentos e insinuar
precauções, “dando a entender que os noivos bem poderiam casar-se noutra parte”.
Renzo conta-lhe sobre o estado terminal do Senhor Rodrigo, mas o padre, des-
confiado, resiste.
Naquela tarde, as três mulheres vão à casa paroquial, mas o padre continua a
te, quer ajudar os noivos e o cura o incentiva a comprar por valor exorbitante
do Marquês que ceou separado com o cura, porque tinha humildade suficiente
“para descer abaixo dos aldeões, mas não a ponto de se pôr com eles no mesmo nível”.
PROF. MONIR: Uma ironiazinha do Manzoni, né? Ele é humilde pra descer,
mas não para ficar junto.
Em Bérgamo, apesar de Lúcia ter sido esperada com grande expectativa e não
se revelasse bela à altura das fantasias dos locais, Renzo compra uma fiação em
aprendi a não beber demais; aprendi a não puxar aldrabas, quando anda
ao seu moralista:
– E eu? Que quer você que eu tenha aprendido? Não fui buscar os
sorrindo – que o meu disparate seja querer-lhe bem e ser sua mulher.
os dois em que os dissabores não raro nos vêm da irreflexão, mas que o
nos tão justa e acertada, que aqui a transcrevemos, como suma de toda a
os dissabores não raro nos vêm da irreflexão, mas que o procedimento mais
PROF. MONIR: Ou seja, os dissabores não podem ser resolvidos apenas com
os nossos procedimentos.
PROF. MONIR: Essa é uma história maravilhosa, e seria melhor que vocês
lessem o livro, porque o livro está muito acima de qualquer possibilidade
de um resumo representá-lo. Não é isso? O livro é muito melhor, é muito
bom. Sobretudo naquele momento da descrição da peste, esse livro então é
soberbo, no sentido positivo da palavra. Eu queria antes de mais nada agra-
decer muito à Inês. Muito obrigado, você é um anjo. A Inês sempre faz uma
leitura magnífica aqui, melhora muito a compreensão do resumo.
Então eu queria dizer que esse livro é uma coisa extraordinária, e há aí uma
porção de reflexões importantíssimas sobre ele que nos cabe fazer agora
até o final do nosso tempo aqui. Essa história... vocês sabem que o método
de interpretação que a gente usa aqui é de interpretar a história em si. Nós
não estamos muito preocupados em saber quais são as implicações sociais,
Então essa é uma limitação que esse tipo de interpretação nos impõe. Ou
seja, a história é muito simples, temos um casal de jovens pobres que que-
rem casar, Lorenzo e Lúcia, e que, por uma série de obstáculos, não conse-
guem. Eles acham que estão prontos pra casar num certo dia, até arrumaram
quatro galos como refeição para a festa do casamento... Mas um determina-
do sujeito mau caráter, chamado Dom Rodrigo, e o seu primo Atílio, fazem
uma aposta em que Rodrigo garante que vai conseguir a mulher até tal dia.
E então esse Rodrigo começa a ameaçar um padre muito fraco, que é o Pa-
dre Abbondio (uma espécie de modelo de fraqueza humana, de falta de
coragem, de falta de decisão...), um modelo humano negativo. E esse Padre
Abbondio fica então com medo de casá-los.
Eles tentam todos os métodos, pedem ajuda ao Frei Cristóvão, que é o con-
trário do Padre Abbondio – ou seja, é um sujeito corajoso, nobre, que havia
decidido ser frei de verdade depois de passar por uma série de dissabores
pessoais. Esse homem inventa um plano de fuga para que eles possam sair
do controle do Rodrigo.
E a situação parece estar num impasse, não há muito o que fazer. A coisa co-
meça a mudar quando o Rodrigo resolve raptar a moça das mãos da Monja
de Monza. Ele tem um contato dentro do convento, o Egídio, uma espécie
de companheiro de libertinagem, e eles de fato conseguem raptá-la por
meio do Inominado, que é uma personagem muito interessante, muito in-
trigante nessa história toda. O Inominado então faz o rapto da moça, a pedi-
do do Rodrigo. Mas quando o Inominado se depara com a moça, e acontece
aquele fenômeno que eu expliquei, que é o contraste entre a perversidade
humana e a nobreza humana – a nobreza sendo representada pela Lúcia e
a perversidade por ele –, ele finalmente se dá conta de quem ele é. Ou seja,
ele toma consciência da sua própria vida. A tomada de consciência implica
que ele resolva mudar essa vida. E essa mudança de consciência que faz o
nosso Inominado é que começa a mudar o destino da história inteira. Por-
que tendo ele feito isso, e tendo sido convertido pelo Cardeal Borromeo,
que é uma figura essencial, não há mais uma perseguição sistemática contra
os dois.
Essa situação parece gerar um impasse impossível, tanto é que ela manda
uma carta para o Renzo em Bérgamo dizendo que não tem mais casamen-
to. Renzo fica muito aborrecido com isso e resolve vir atrás dela, e nesse
meio tempo acontece o advento de um fenômeno, um acontecimento sani-
tário, que é a Peste de Milão. Na Grande Peste de Milão há uma espécie de
equalização geral de todas as coisas, porque o Rodrigo, que tinha todos os
poderes do mundo agora não tem mais, porque se encontra à morte num
lazareto, ou seja, num lugar onde você coloca os leprosos. Vem de “Lázaro”. É
um eufemismo para dizer “leprosário”. E o Renzo acaba encontrando a Lúcia
salva, ele mesmo fica com a peste, mas se salva – o seu corpo reage sozinho,
não havia remédio. Portanto dependia simplesmente da habilidade indivi-
dual de cada um, ou seja, da capacidade de cada corpo resistir àquela agres-
são. E ele encontra a Lúcia também lá no lazareto, encontram-se os dois, e
encontram o Rodrigo.
Então se conta que apesar de tudo, tudo deu certo. Recebem no final das
contas uma bela compensação financeira pelo desastre todo, que foi o su-
cessor do Rodrigo ter comprado as terras de ambos em Lecco por um valor
exorbitantemente maior do que o que valia. Eles então vão pra Bérgamo
onde se transformam em capitalistas, empresários da seda. E daí supõe-
se que eles tenham tido uma vida feliz, talvez até melhor do que se eles
tivessem ficado em Lecco, e tivessem continuado apenas como dois fun-
cionários de tecelagem. Pode-se, portanto, imaginar que o resultado final
desse imbróglio todo é uma solução melhor do ponto de vista de conforto
existencial do que teria sido obtida simplesmente por um casamento puro
e simples, sem restrição.
E aí, o que pensar de uma coisa dessas? O que vocês acham? O que será que
isso tudo significa? Essa é que é a questão agora, né?
Vamos começar a conversar sobre isso? Qual é o primeiro ponto que interes-
sa entender aqui, diante desse resumo que eu fiz pra vocês? O primeiro pon-
to é que a vida humana tem uma característica que se chama livre-arbítrio. E
Então se ao cruzar uma esquina eu for decidir se passo ou não um sinal ver-
melho, essa decisão Deus tem que obrigatoriamente saber qual é, porque se
Ele tem omnisciência, Ele tem que saber se eu vou ou não passar o sinal ver-
melho. Mas se Ele sabe se eu vou ou não, ultrapassar o sinal vermelho, que
livre-arbítrio é esse que eu tenho? Porque se Ele sabe o que eu vou fazer, é
porque isso está de alguma forma programado, pré-determinado. Logo há
quem ache – isso é uma discussão filosófica na doutrina da Igreja – que o
livre-arbítrio exclui a omnisciência divina e vice-versa. Ou seja, se Deus tudo
sabe, então não há livre-arbítrio. E se há livre-arbítrio, então Deus não sabe
alguma coisa, alguma parte Deus não sabe. O que seria, nos dois casos, uma
solução ruim.
Santo Agostinho, no livro Confissões – que nós, aliás, já estudamos aqui – fez
uma interpretação desse assunto que resolve completamente esse proble-
ma. Diz assim, Santo Agostinho: “Olha, o livre-arbítrio e a omnisciência divi-
na são completamente compatíveis, porque a decisão que eu tomo sobre
se eu passo ou não o sinal vermelho é uma decisão que ocorrerá dentro do
tempo”. Não é assim? Lá na minha frente, daqui a cinquenta metros, tem lá o
sinal vermelho. Eu estou indo na direção do sinal vermelho. Eu só vou tomar
a decisão (posso tomar antes), mas eu só irei passar ou não o sinal vermelho,
daqui a cinquenta metros, ou seja, daqui a quinze ou vinte segundos. O fato
Por exemplo: o que é um ano? Um ano é o tempo que demora para que a
terra dê uma volta inteira em torno do Sol. O que é um mês? É o tempo que
demora para que a Lua dê uma volta inteira em torno da Terra. O que é o
dia? O dia é o tempo que demora para que a Terra dê uma volta inteira em
torno de si própria. Se não houver essas referências espaciais, eu não tenho
tempo. Por exemplo, imaginem vocês que nesse transcurso da terra em tor-
no do sol de repente a terra parasse. O que aconteceria, obrigatoriamente?
O tempo também pararia. O tempo só existe porque existe espaço. Tanto é
que eu não consigo calcular o tempo a não ser como referência ao espaço. O
tempo não tem possibilidade de contagem autônoma; na verdade, rigoro-
samente falando, o tempo não existe. Em última análise é isso. Nós achamos
que tem um negócio chamado tempo porque a nossa mente constrói uma
espécie de artificialidade: ela gera um passado presente e um futuro presen-
te e junta no presente presente. Mas o tempo, na verdade, é só o instante.
Só existe o instante, porque o tempo que já passou não existe e o tempo
futuro não veio ainda. Esse negócio do tempo é um pouco complicado, já
era um assunto que Aristóteles tratou na Física. É um assunto importantís-
simo. Quem resolveu os enigmas do tempo foi Aristóteles no livro Física e
depois Santo Agostinho, que para resolver esse assunto específico, ajuda a
O que um físico moderno iria dizer pra você é o seguinte: que Deus viaja a
velocidade infinita. Uma entidade que viajasse a velocidade infinita estaria
em todos os lugares ao mesmo tempo. É mais ou menos o que acontece
com Deus. Para Deus não há tempo porque todas as coisas acontecem ao
mesmo tempo.
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Perguntavam para Meister Eckhart quando foi que Deus fez o
mundo, aí dizia ele: “Deus está fazendo o mundo agora”. Porque sob o ponto
de vista divino, o mundo está sendo feito agora. Veja... a vida eterna que é
prometida pra você no cristianismo não é um dia que não acaba nunca. Não
é uma vida em que os anos passam e você não morre nunca. É uma vida em
que não há tempo nenhum – é eterna no sentido de que não está sujeita à
passagem do tempo físico. Compreenderam isso?
Porque no final das contas, em última análise, o que é a nossa vida? Hoje à
tarde nós discutimos com o grupo da Ortodoxia a ideia muito comum hoje
em dia de que o homem é fruto do meio. Pois essa é uma ideia completa-
mente sem sentido e sem cabimento. De fato, quando você nasce você re-
cebe uma porção de coisas que você não escolhe: você recebe uma família
que você não escolheu, você recebe um país que você não escolheu, uma
época em que você vai viver, que você não escolheu, você recebe um corpo
que você não escolheu, você recebe uma psicologia que você não escolheu,
porque você herda dos seus antepassados características psicológicas que
eles tinham e que você terá também. Do mesmo modo que você herda os
olhos azuis dos seus antepassados, você também herda as tendências com-
portamentais dos seus antepassados.
Você pode dar a isso o nome de karma, mas cuidado – quando estou falan-
do em karma, não estou imaginando nem de longe qualquer coisa como
vidas passadas, como essas esquisitices. Eu estou dizendo que pelo simples
fato de os seus antepassados terem um modo de agir, você tende a herdar
esse modo de agir dos seus antepassados, pela mesma razão óbvia de que
você herdou as características físicas das pessoas que vieram antes de você.
Tudo isso você herdou, nada disso você escolhe. Você recebe como uma
espécie de herança do destino. No entanto, a sua vida real não é isso que
Não dá pra entender a vida humana, a não ser assim. O que faz a vida hu-
mana ser a vida humana, portanto, é o conjunto de coisas que você recebeu
sem ter escolhido, o conjunto das coisas que você escolheu – e aí, sim, sua
vida começa a ter significado moral – antes disso, não. E também há um
terceiro conjunto de influências, que são as influências espirituais, sejam
positivas ou negativas, porque você não pode nunca afirmar que você não
foi conduzido na sua vida por influências que não são humanas, tanto boas
quanto ruins. Quem é que pode garantir que aquela intuição que você teve
de que não era pra ir num certo lugar, num certo dia, não salvou a sua vida?
Não é? O problema é muito complexo... Quem é que garante pra você que
aquele engarrafamento por causa do qual você perdeu o avião não possa
ter sido de alguma maneira fundamental pra você encontrar o seu marido
ou a sua mulher? Como você pode saber se não houve uma mão invisível
sobre a sua vida, tanto boa quanto má, e que isso possa ter modificado a
sua existência? Esse é o problema que nós estamos discutindo aqui em Os
Noivos.
Quer dizer, a pessoa que declara que o pobre é criminoso é uma pessoa que
tem essa perspectiva da vida. No fundo, essa perspectiva da vida, de achar
A ideia de que nós somos vítimas das nossas circunstâncias é puro darwinis-
mo. E é uma coisa terrível, porque nos transformou em seres sem nenhum
mérito moral. Como é que você vai fazer o julgamento moral das pessoas
se você não pode fazer nada, se você está desde o início carimbado para o
sucesso ou para o fracasso? Portanto, a primeira ideia de que apenas aquilo
que nós recebemos (a nossa herança, aquilo sobre o qual nós não temos
influência) é que irá estabelecer a nossa vida é uma ideia muito precária.
Mas, por outro lado, também se você for afirmar que a vida humana é o
resultado apenas das nossas ações concretas, daquilo que deriva do livre-ar-
bítrio... é também muito difícil de defender isso, porque na prática você sabe
que não é assim. Você sabe que na prática existem coisas que, a despeito
da sua ação e das suas decisões tomadas numa certa direção, acontecem
diferente daquilo que você havia planejado. Como dizia o John Lennon: “A
vida é aquilo que acontece enquanto você faz planos”. Então no meio dos
seus planos tem a vida real, que é o que acontece verdadeiramente. O John
PROF. MONIR: O negócio do preá, eu tava só dando como exemplo, não fi-
quem impressionados.
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Pessoal, é preciso não perder aqui o raciocínio, depois a gente
volta a esse ponto. Deixa eu explicar aqui uma coisa importante que é o se-
guinte: eu estou dizendo pra vocês que há três dimensões que influenciam
a vida humana. A primeira é aquilo que nós recebemos sem poder decidir,
um conjunto de circunstâncias dentro das quais nós nascemos. Ortega y
Gasset, um grande filósofo espanhol, diz: “Eu sou eu e as minhas circunstân-
cias”. Essas circunstâncias influenciam a minha vida? É claro que influenciam.
Mas elas não influenciam ao ponto de definir a minha vida, porque só seria
assim se eu fosse um bichinho, um preazinho. Como eu não sou um animal,
eu sou um ser humano, então eu tenho uma coisa chamada livre-arbítrio,
que eu espero ter conseguido provar a vocês que existe. É ele que estabele-
ce que eu posso de fato tomar decisões concretas sobre a minha vida, sim.
No entanto, se o livre-arbítrio não garante a sua vida, pelo menos ele esta-
belece um parâmetro pelo qual você vai ser julgado moralmente. Porque
o seu livre-arbítrio é, no fundo, a única coisa que podem cobrar de você. O
que é que vão te cobrar no juízo final? As suas decisões, as ações concretas
que você realizou de maneira livre. Aí vão dizer pra você: você fez isso e
isso. As coisas que você fez é que vão ser julgadas, não o que você obteve.
Porque além daquilo que você é como herança, além do seu livre-arbítrio,
também existe uma coisa extraordinária aqui, que se chama o mistério da
Vontade Divina. Há um terceiro conjunto de coisas que são estabelecidas
por alguma coisa que você não é capaz de entender, porque há limites da in-
teligência humana. A inteligência humana não é capaz de ter acesso a todo
o conjunto da compreensão do mundo.
O que aconteceu com Renzo e Lúcia? Com relação aos seus meios de ação,
aquilo que eles receberam do Destino, isso era forte em Renzo e Lúcia? Não.
Ao contrário, eles não têm nada, eles não são nada, eles não mandam nada.
Eles não têm meios de ação sobre o mundo. No entanto eles têm uma ca-
pacidade de decidir o que eles querem? Eles foram capazes de ter livre- ar-
bítrio sobre as situações que eles viviam? Foram. Tomaram as decisões cer-
tas? Tomaram, corajosamente. No entanto, o poder que Renzo e a Lúcia têm
sobre a situação que eles vivem é muito pequeno. E é por isso que eles não
conseguem reverter a situação de empecilho do casamento. Porque o Dom
Rodrigo tem muito mais poder do que eles. E é por isso que eles vão sendo
impedidos.
No entanto, há uma coisa chamada Vontade Divina, que acontece aí... por
que meios? Por um conjunto de circunstâncias que você pode chamar de
Destino ou de Providência. Esse conjunto de circunstâncias, que são situ-
Ora, quando você olha pra história dos dois, você descobre que a chave do
enigma, fundamentalmente, é ter uma coisa chamada fé naquilo que o Des-
tino está produzindo pra você. Na medida em que eles têm capacidade de
compreender que há um Destino, uma Providência, uma espécie de mão
invisível agindo o tempo todo sobre as coisas, e que essa mão invisível aca-
bará por prover a solução (“providência” vem de “prover”, não é?), então é
possível que eles consigam o que eles querem. Mas não conseguirão isso
pelas outras duas medidas, porque elas são insuficientes para obter mesmo
uma coisa tão relativamente insignificante quanto o casamento.
Aluno: [Faz um comentário dizendo que Renzo buscava a ação, enquanto Lúcia
se caracterizou pela busca da Providência Divina.]
Ele quis matar o Rodrigo várias vezes, ele quer quebrar tudo a pau, quer fazer
uma porção de coisas. Tem todo o tempo uma atitude masculina no sentido
de tentar fazer uma ação sobre o mundo, pra que ele possa mostrar que está
dando certo. Mas o problema da vida humana é que ela não é somente ação
sobre o mundo. Simbolicamente, se você quiser olhar pra esse problema da
dualidade de homem e mulher, aí você pode perceber o quanto é absoluta-
mente essencial a complementaridade. Só tem uma possibilidade pra vida
humana, é assim: dado o conjunto de circunstâncias que você recebe e que
você não é capaz de mudar, porque você continuará sendo mais ou menos
quem você é, até certo ponto – tem coisas que você não muda nunca: o seu
corpo pode mudar um pouquinho, pode fazer uma cirurgia plástica aqui ou
ali, mas você terá sempre uma porção de coisas que estão fixas e que não
poderão mudar. Ora, essa existência humana que você recebe, ela precisa
ser tratada com essa ambiguidade, com essa dualidade de ação.
PROF. MONIR: É, mais você não pode ficar sem ação. Sem ação não dá, por-
que a sua responsabilidade moral não é igual à passividade. Por isso é que
Jesus Cristo, quando fala com Maria e Marta, você lembra o que Ele diz? Ele
Essa perspectiva de fé nas coisas é aquilo que o Manzoni gostaria que nós
tivéssemos entendido aqui.
Aluna: [Comenta que as coisas começam a dar certo quando Renzo perdoa.]
PROF. MONIR: Não, porque você pode ser completamente salvo mesmo com
uma absoluta e total e completa passividade. Dentro do contexto luterano,
agostiniano, você não precisa fazer nada para ser salvo, basta você não fazer
nada errado. Quer dizer, você tem a possibilidade de salvação porque caiu
nos olhos de Deus. Por isso é que um cristão tem que ter uma atitude de se
tornar simpático aos olhos de Deus.
Agora, o que está aí em Os Noivos é outra coisa. Você não está isento de
tomar as medidas para a sua própria vida. Veja como esse livro ficaria com-
pletamente estúpido se fosse um livro em que chegasse o padre e dissesse
assim: “Eu não posso casar vocês”. E eles respondessem: “Ah, tá bom. Não,
certamente alguma ação da Providência vai gerar isso, alguém vai produzir
isso pra mim”. Se fosse esse o caminho que autor tivesse tomado, que senti-
do teria essa história? Nenhum.
PROF. MONIR: Tem uma coisa muito importante que você disse, que é o se-
guinte: perdoar é “perder o ar”, mas em que sentido? Perder o ar é exatamen-
te o que está lá no Sermão da Montanha, é dizer que os pobres de espírito é
que reinarão, que eles serão salvos.
(Resumo feito por José Monir Nasser, com excertos traduzidos por Marina Guas-
Edson Campagnolo
Kleberr Wlader
Pandita Marchioro
Conteudista
Revisão de transcrição
Patrícia Nasser
Paulo Briguet
Capa e Diagramação
Ilustração Capa
Coordenação Geral
Assistente de Produção
Gilmar Lima
Assessoria de Imprensa
Rafaela Tasca
Ministério da Cultura
FIEP-Federação das Indústrias do Estado do Paraná
Edson Luiz Campagnolo
Presidente
Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola
Conteudista
José Monir Nasser
ISBN: 978-85-5583-034-1
1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82
A reprodução total ou parcial desta publicação por quaisquer meios seja eletrônico, mecâ-
nico, fotocópia, de gravação ou outros, somente será permitida com prévia autorização, por
escrito, do SESI.
Tartufo
O Pato Selvagem
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.
Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.
Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.
Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).
Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.
Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.
No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.
José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.
Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.
Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.
O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).
A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.
Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.
Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.
Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.
Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.
Este programa é voltado para pessoas que querem obter mais cultura, no
sentido usado por Cícero. Cícero queria que, além de se cultivar o campo,
cultivássemos também o espírito. Nós não estamos usando “cultura” no sen-
tido antropológico da palavra. A palavra cultura é cheia de significados. Em
princípio, tudo aquilo que não está aí de modo natural é “cultura”. Vai desde
o modo de como se engraxa o sapato, até o modo como se operam as co-
ronárias. Tudo isso é cultura. Esse sentido amplo não nos interessa. Também
não usamos a palavra no sentido antropológico: cultura europeia, cultura
mineira, cultura hip-hop, etc. Não usamos nesse sentido idiossincrático, cul-
tura como sendo a representação de um modo de ser de um tipo de po-
A peça é tão importante que a expressão “tartufo” está na maioria dos di-
cionários do mundo, quase toda a língua moderna incorporou a palavra ao
seu vocabulário. Quando alguém chamar você de tartufo, não se sinta muito
lisonjeado, porque não é uma atribuição meritória. Um tartufo é um sujei-
to hipócrita, santarrão, fingido. Se você procurar no Aurélio, está lá “tartufo”,
significando hipócrita. É esse o sentido que se dá em português; a palavra se
incorporou ao nosso vocabulário. Há algumas palavras que são assim, como
no caso da palavra “ritz” que, sendo originalmente o nome de um hoteleiro,
passou a ser sinônimo de hotel no mundo inteiro.
CRONOLOGIA
te Poquelin, sendo seu pai, Jean Poquelin (1596 -1669), “tapissier ordinaire du roi”,
torna-se cardeal.
1624 – Richelieu entra para o gabinete de Luís XIII (1610-1643) como chefe do
Conselho Real e, na prática, governa a França, dedicando se, entre outras coisas,
mismo humanista.
Orleans, questão polêmica até hoje. Nesta época, teria sido influenciado pelo
gente do teatro.
1643 – Morre Luís XIII e começa a regência de Ana da Áustria (1601–1666), mãe
vezes vai à prisão por dívidas, de onde seu pai o resgata. Jean-Baptiste adota o
1646 - Molière começa período de treze anos como ator itinerante pelo interior,
1653 – Molière forma nova companhia sob a proteção do príncipe de Conti até
“italianos”.
1659 – Estreia com sucesso a peça Les Précieuses ridicules (As Preciosas ridículas).
importância política do partido dos devotos. Mazarin tenta, sem sucesso, dissol-
vê-lo.
1661 – Morre o Cardeal Mazarin. Assume Luís XIV, o “rei-sol”, com poderes absolu-
tos, graças à obra centralizadora dos cardeais Richelieu e Mazarin. Seu principal
ministro seria Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), que havia sido secretário par-
ticular de Mazarin desde 1651. Molière encena com fracasso a comédia heroica
Dom Garcie de Navarre e com sucesso L’École de maris (Escola de Maridos). O grupo
1662 – Molière casa se com Armande Béjart (1642-1700), vinte anos mais jovem,
acreditando ser irmã de sua amante Madeleine, mas que era, na verdade, filha
dela com o duque de Modena. Sucesso espetacular da École des femmes (Escola
de ter casado com a própria filha. O Rei, no entanto, toma o partido de Molière
e aceita ser padrinho de seu filho primogênito, que nasce no ano seguinte e
morre bebê.
com a peça A Princesa de Élis (ad hoc) e o Tartuffe que é, em seguida, censurada,
(1632-1687).
1665 – Molière encena Dom Juan ou O Festim de Pedra, baseado na obra de Tarso
de Molina em torno da vida de Dom João Tenório. Após algumas sessões, a peça
Sucesso de público com a peça L’Amour médicin. Molière e Racine rompem re-
lações após este último ter tirado de Molière a peça Alexandre le Grand e tê-la
co com a peça Le Médicin malgré lui. Luís XIV dissolve a Companhia do Sagrado
Sacramento.
Colbert.
1672 – Morre Madeleine Béjart. Estreia Les Femmes Savantes (As Sabichonas).
Rompimento como o compositor Jean Baptiste Lully, após oito anos de trabalho
1673 – O segundo filho do casal Molière morre com menos de um mês. Durante
na qual faz o papel principal, Molière sofre grave hemorragia bucal associada à
tuberculose. Morre em casa por volta das dez da noite. O fato de estar vestido de
amarelo no palco expulsou esta cor para sempre dos figurinos teatrais na Fran-
ça. Molière é enterrado na seção de não batizados, à noite, mesmo com a inter-
venção de Luís XIV, porque atores não podiam ser enterrados em solo sagrado.
1680 - Luís XIV manda fundir a companhia de Molière com a do Hotel de Bour-
1710 – Destruído por Luís XIV o convento de Port-Royal e com ele o coração
Se não me engano temos primeiro Corneille, o mais velho dos três, depois
Racine e por fim Molière. Racine e Corneille são dois autores clássicos no
sentido de que foram capazes de fazer peças suntuosas imitando os clás-
sicos gregos – é um teatro muito mais suntuoso do que o próprio clássico
grego. Quando você lê o teatro grego, você vai se acostumando aos poucos
e vai achando que aquilo é linguagem comum. Com Racine e Corneille não
é assim. Há sempre um pouco de pastiche, mesmo quando o pastiche é ge-
nial – porque se está tentando recuperar alguma coisa muito velha – o su-
jeito quer fazer teatro do mesmo modo como era feito dois mil anos antes.
Molière era mais ou menos assim, embora tenha tido uma vida de escânda-
los. Casou-se com a filha da atriz Madeleine Béjart, com quem tinha parceria
– e sua mulher era tida e havida como filha dele. Foi um escândalo muito
grande. Embora não se tenha nunca provado que isso tivesse sido assim,
ele passou por ter tido um casamento incestuoso com a própria filha. O que
não era pouca coisa.
Havia um fator importantíssimo na época de Luís XIV, que era a disputa en-
tre jansenistas e jesuítas. Sobre isso é preciso falar alguma coisa, porque vai
nos ajudar a entender O Tartufo. O catolicismo é uma religião muito antiga
e, como toda instituição velha, tem hábitos e vícios arraigados. O catolicis-
mo de matriz, romano, o catolicismo dos grandes arcebispados, do poder
real, sempre esteve associado a conspirações, problemas políticos, etc. Em
reação a isso foi que Lutero fundou o luteranismo. Sempre houve dentro
do catolicismo reações contrárias ao catolicismo. Sempre houve um padre
que se rebelava contra o baixo catolicismo do próprio catolicismo. A Igreja
Católica resolvia isso com muita habilidade dando ao religioso revoltado a
possibilidade de fundar uma ordem. O religioso montava a sua visão em
uma ordem, que era abençoada pelo Papa.
Luís XIV demorou a assumir o trono, era muito jovem quando o pai morreu.
Antes de Luís XIV assumir, mandava na França o cardeal Mazarin, substituto
do cardeal Richelieu (que mandava no tempo de Luís XIII). No final da vida,
depois da morte de Molière, Luís XIV acabou destruindo o que havia de jan-
senismo na França – o que foi uma pena – a título de que o jansenismo se
RESUMO DA NARRATIVA
sa, tendo a Comédie Française, em Paris, sido batizada assim para homenageá-lo.
PROF. MONIR: Paris tem um prédio chamado La Comédie Française, em ho-
menagem a Molière. Foi feito com a fusão de vários teatros, como aqui hou-
ve a fusão de vários museus para se fazer o Museu Oscar Niemeyer. Molière
tem uma unanimidade maior do que Corneille ou Racine.
Apresentado pela primeira vez (apenas os três primeiros atos) em 1664, O Tar-
tufo foi proibido na sequência. Em 1667, Molière voltou à carga com uma nova
versão da peça, com o título de Panulfo ou O Impostor. Esta versão também foi
proibida no dia seguinte. Em 1669, a peça foi proposta pela terceira vez e final-
candaloso, características que não compartilham com ele seus dois colegas de
PROF. MONIR: É como se fossem escritores de uma outra época. O nome “te-
atro francês clássico” não representa bem, não dá unidade para o conjunto.
Molière só escreveu sátiras. No sentido moderno, peças cômicas. Racine e
Corneille só escreveram teatro trágico. Há uma grande diferença entre eles.
Molière é o clássico cartesiano da comédia; mas não por isso, e sim além
é, quase como Homero, objeto de admiração unânime”. Embora haja opiniões qua-
2 Carpeaux, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1980, p.
768.
PROF. MONIR: Uma entidade secreta que reunia católicos, que faziam ma-
çonicamente (no sentido de não serem conhecidos) perseguições ao que
julgassem como atos anticristãos. Essa Cabala dos Devotos implicou imen-
samente com uma peça anterior de Molière chamada Escola de Mulheres,
perseguida até o limite. Eles boicotavam as peças de todos os modos possí-
veis: impediam que o teatro aceitasse a peça, depois impediam que o ator
fosse representar, depois impediam que o rei subvencionasse a peça... As
peças de Molière na verdade não são anticristãs, mas vocês repararão ao
longo dessa história como elas podem ser interpretadas assim.
viu bem assim e, em 1667, depois da segunda estreia, o arcebispo de Paris teria
Uma comédia muito perigosa que é muito capaz de prejudicar a religião, pois
regalias extravagantes.
expressa de modo artístico, é essa, sem dúvida, uma das maiores comédias
de todos os tempos. Além de gênio, era preciso ter boa dose de coragem para
mundo foi suficiente para proteger o autor das investidas dos que se julgavam
impostor e hipócrita.
PROF. MONIR: Os nomes que Molière usa nas suas peças são nomes absolu-
tamente fora de moda. Não tem nenhum francês moderno chamado Orgon.
Os nomes que estão em Molière não são nomes estranhos de propósito, são
nomes que as pessoas tinham naquela época. Tem a mesma coisa aqui -
quem é que se chama Epaminondas ou Ambrosina, hoje em dia?
Primeiro Ato
Cena I
A Senhora Pernelle acha que ninguém na casa de seu filho Orgon leva sua opi-
nião em consideração. Ela oferece seus conselhos a todos e acha que todos os
desprezam. A cada um dos presentes, seus netos Damis e Mariana; sua nora
DORINA
Se...
DAMIS
Mas...
SENHORA PERNELLE
MARIANA
Creio...
SENHORA PERNELLE
Mas não há água pior, diz se, que água que dorme,
Minha mãe...
SENHORA PERNELLE
PROF. MONIR: A Sra. Pernelle está infeliz com todo o mundo da casa. O neto
é um néscio, a neta é uma mosca morta, a nora é uma espécie de exibida e
saliente – todo o mundo tem algum problema.
CLEANTO
SENHORA PERNELLE
A única pessoa que ela elogia é Tartufo, um pobretão devoto recolhido pela
DAMIS
DORINA
ser empregada doméstica. Ela fará o que bem entende o tempo todo. A Dorina
é um tipo realmente molieriano. Molière tem uns tipos assim, sem papas na
língua.
DORINA
(...)
PROF. MONIR: Não é boa a tradução da Jenny Klabin Segall? Todo o mundo
acha que Tartufo é um hipócrita e um sujeito sem vergonha, exceto a Sra.
Pernelle e o Orgon.
A Senhora Pernelle acusa os que não gostam de Tartufo: “Quereis lhe mal e dele
as lições repelis, só porque a todos vós verdades meras diz”. Cleanto, irmão de Elmira,
a contesta: “Contra a maledicência é que não é baluarte: forçoso é pois deixar co-
chichos tais de parte, viver honradamente da melhor maneira. E deixar que ande o
com a velhice: “Enquanto dos galãs auferia homenagens, desfrutava a valer todas
suas vantagens”.
PROF. MONIR: Vocês não acham um pouco de má criação demais uma em-
pregada falar assim com a mãe do patrão? É um pouco fora de propósito,
convenhamos. Mas essa Dorina é mesmo linguaruda.
(mostrando Cleanto)
PROF. MONIR: Vocês têm uma impressão boa da Sra. Pernelle? Primeiro ela
fala mal de todo o mundo da casa, depois ela defende o Tartufo, dizendo
que é ele que está com a razão, porque está sendo perseguido por dizer
a verdade, e para terminar vai embora dando um safanão, um sopapo na
coitada da criada, que não tinha nada a ver com isso.
PROF. MONIR: Temos que tomar um pouco de cuidado com Molière porque
ele faz algo muito perigoso, que é simplificar as pessoas. As pessoas reais
são muito complexas e quase sempre você vai encontrar algo de bom numa
pessoa má. Em Shakespeare existem pouquíssimas personagens que são
completamente más. Iago, por exemplo, é completamente mau. Aarão, o
namorado da rainha Tamora, em Titus Andronicus, é a pior de todas as perso-
nagens shakespearianas, o mal encarnado. Mas de modo geral em Shakes-
peare você encontrará personagens complexas, com pontos positivos e
negativos. Porém alguns autores tendem a tornar as personagens muito es-
tereotipadas. Simplificam tanto a personagem que ela se transforma numa
coisa meio unilateral. Quando você lê um livro com muitas personagens
assim você tem que tomar um pouco de cuidado porque, se não for uma
sátira, trata-se na verdade de literatura panfletária. E aí você desconsidera.
Eu fui ver uma vez uma adaptação de Nelson Rodrigues para o teatro. Tinha
um cenário em que de um lado moravam os ricos e do outro moravam os
pobres. Os ricos eram calhordas, ladrões, delinquentes absolutos. Do outro
lado os pobres eram maravilhosos, bons e lindíssimos. Isso não é literatura
de gente adulta, isso é literatura panfletária.
O grande escritor é aquele que faz a personagem ter muitos matizes – cada
vez que você olha para a personagem, você percebe coisas diferentes. Como
são as pessoas na vida real. Aqui estamos falando de um autor satírico, e
sempre há uma simplificação para dar graça à sátira, que vive de estereó-
tipos. As personagens da commedia dell’arte, como o palhaço, o mordomo
safado, o conquistador, são todos estereótipos. São criaturas que têm até
um modo de vestir próprio. Essas personagens da commedia dell’arte, como
o arlequim e o polichinelo, caberão em qualquer época porque foram trans-
formadas em modelos de comportamento humano. Isso é coisa da sátira. A
obra de Molière é uma obra satírica, é preciso sempre levar isso em conside-
ração para não ficar com raiva das personagens de alta resolução de Molière
– porque quando o sujeito é burro, é burro demais, como esse Orgon.
Cena II
Cleanto não quer levar a senhora Pernelle até a porta, para não ter de ouvir mais
sermões. Ele não entende como a velha mãe de Orgon é capaz de se deixar en-
ganar àquele ponto. Dorina, contudo, acha o caso de Orgon, seu patrão e filho
DORINA
DORINA
PROF. MONIR: A crítica literária moderna de “cultural studies” acha que entre
o Orgon e o Tartufo há um caso homossexual. Não se assustem se lerem isso
por aí, porque hoje em dia acha-se que essa é a agenda secreta que está por
trás de tudo. Mas isto está absolutamente fora da cabeça de Molière, que
não pensou nem um minuto numa coisa dessas. É apenas uma pressupo-
sição moderninha, não é uma boa maneira de interpretar a obra. Achando
isso não vamos a lugar nenhum.
DORINA
do campo.
Cena IV
irmã Mariana com Valério, a que Tartufo parece opor-se. Damis deseja casar-se
obter o seu.
Cena V
Orgon quer saber de Dorina se as coisas haviam andado bem na sua ausên-
cia. Dorina inventa doenças para madame Elmira (“Madame ardeu em febre an-
teontem à tarde”), mas Orgon só quer saber da saúde de Tartufo, apesar de ele
ter passado muito bem durante o período, comendo como um glutão. Dorina
tranquiliza o patrão: “Tartufo! É da saúde espelho, nutrido e gordo, tez em flor, beiço
vermelho.” No entanto, toda a vez que Dorina relata os “graves problemas” de saú-
do homem”.
Cena VI
Quando Dorina sai, Cleanto tenta abrir os olhos do cunhado: “Pode hoje um ho-
mem ter encanto tão funesto, que estejais a esquecer, por ele, todo o resto?” Mas Or-
gon não admite reparos a Tartufo: “Alto lá, meu cunhado, estais falando aqui de
PROF. MONIR: A palavra “devoto” aparece o tempo todo porque Molière está
se referindo àquele grupo de católicos radicais que o perseguem. É claro
que é contra os devotos e não contra o catolicismo a história aqui. Com toda
a certeza.
ORGON
PROF. MONIR: É por causa desse tipo de comentário que os críticos moder-
nosos ficam achando que eles têm um caso, que essa peça é uma peça gay.
Tem que ter uma paciência gigantesca para aturar crítico moderno de arte.
ORGON
Sem mais ligar a tal que à unha de uma mão. (pág. 18)
PROF. MONIR: Está aí o Orgon dizendo que considerando as coisas que ele
ouve do Tartufo, o resto todo vale menos do que uma unha. Que podia mor-
rer todo o mundo, que eles não valiam nada comparados aos tão grandes
ensinamentos do Tartufo. O Orgon é tão burro que dá raiva dele ao longo da
peça. Mas isso é o que Molière quer; ele quer estereotipar as personagens
para que lidemos com elas da maneira mais emocional possível. É a regra
da sátira. É a simplificação que o cinema aprendeu a fazer. Quando você
tem no cinema uma personagem complexa? Nunca. Um ou outro filme de
algum gênio, como Kubrick. De modo geral, o cinema de Hollywood faz o
quê? O mocinho é sempre bacana, um sujeito simpático, de boa aparência,
enquanto o bandido é sempre um sujeito horroroso, que palita os dentes
no restaurante, faz umas coisas mal educadas... Não é assim? Essa fórmula
da sátira é a fórmula que passou depois para o cinema, que tem que contar
a história com pressa, em duas horas, e para isso faz uma simplificação tre-
menda das personagens. Na tragédia, as personagens são complexíssimas.
Por exemplo, eu tenho que chegar à conclusão de que Creonte, que é o tio
da Antígona, apesar de condená-la à morte tinha alguma razão, como diz
Albert Camus.
Orgon começa a listar os vários atos pios que Tartufo havia feito, como recusar
da piedade”.
Cleanto se defende dizendo que, para Orgon, “quem adoração nega a vãs pa-
PROF. MONIR: Olhem que maravilha de frase: “Os verdadeiros devotos são
aqueles que não trazem para si a missão de defender o céu mais do que o pró-
prio céu quer.” Os verdadeiros devotos são pessoas que não querem impor
sua vontade aos outros.
CLEANTO
Mariana a Valério. Orgon, no entanto, responde com evasivas, dizendo que iria
fazer “o que quiser o céu”. Cleanto sai para avisar Valério de que seu casamento
corre perigo.
PROF. MONIR: Parece que o casamento não vai sair. Parece que Orgon, in-
fluenciado por Tartufo, decidiu outro destino para a sua filha Mariana, em-
bora Valério não tenha feito nada para desmerecer o acordo.
Cena I
Orgon acha sua filha sozinha e pergunta lhe se ela o obedeceria em todas as
circunstâncias. Ela diz que sim, com ênfase: “É no que vejo, aliás, minha glória mas
viva.”
PROF. MONIR: Mas que coisa mais perigosa, concordar com uma coisa des-
sas.
Cena II
Orgon então manda a filha dizer que acha Tartufo um homem de grande mérito
PROF. MONIR: E agora? Orgon agora resolveu casar a filha com o monstro
do Tartufo. Há também uma diferença enorme de idade entre os dois; tudo
indica que Tartufo tem trinta anos a mais do que Mariana.
Mariana responde que se fizesse isto estaria dizendo “uma impostura”, mas Or-
gon quer que, por meio daquela união, Tartufo entre para a família. Dorina in-
terrompe a conversa, dizendo ter ouvido uma piada. Diz a Mariana: “Chi! Não
acrediteis no senhor vosso pai; está brincando.” Como Orgon insiste na tese, Dorina
lembra o patrão de que Tartufo não tem fazenda, tampouco “alianças sociais”.
declarando sua origem8, o que lhe parece contraditório. Termina sua argumen-
tação sugerindo que uma mulher obrigada a casar naquelas circunstâncias seria
infiel ao marido:
DORINA
Orgon tudo faz para não prestar atenção em Dorina, mas acaba mandando a
calar e continua a conversa com sua filha, mas Dorina não desiste. Orgon, furio-
so, faz menção de esbofetear a criada. Dorina foge desviando do golpe. Orgon,
PROF. MONIR: A Dorina não dá uma folga para o Orgon. Ela tem razão, mas
é meio malcriada, convenhamos.
Cena III
Sozinhas, Dorina insiste em que Mariana não aceite casar com Tartufo. A moça,
no entanto, não quer afrontar o pai. Mariana ralha com ela: “Propõem-vos em
união de causar arrepio, e, para a repelir, não soltais nem um pio?” Mariana argu-
menta: “Contra um pai absoluto, o que queres que eu faça?” Dorina pressiona Ma-
riana para revelar se gosta mesmo de Valério. Ela confirma (“É extrema a minha
DORINA
PROF. MONIR: Cá entre nós, não é divertida, esta Dorina? É ótima, uma per-
sonagem divertidíssima. E é engraçado, ela não tem o prestígio que tem o
Tartufo. Devia ser quase a personagem principal da obra. Deveria ser levada
em consideração pela crítica literária com o mérito que ela tem.
Mariana declara que era Valério quem deveria impedir o casamento, mas Dorina
não a deixa transferir a culpa para o namorado e lembra Mariana que Orgon é
um “raio de carrasco que tem o seu Tartufo e nada mais no casco...” Como Mariana
com Tartufo: “Hás de viver demais feliz com tal marido”... “E como haveis de sentir na
alma o gozo de serdes mulher de tão distinto esposo.” Horrorizada com a perspec-
tiva, Mariana declara se rendida e pede ajuda para evitar o casamento. Neste
PROF. MONIR: Dorina armará um truque para ver se consegue fazer o Orgon
desistir da ideia de casar sua filha com o tal do Tartufo. No entanto nesta
altura já correu a notícia de que Mariana vai casar com o Tartufo, e chegou
agora o namorado, que acabou de ouvir a notícia por aí. Não chega muito
feliz, como vocês podem imaginar.
A moça explica que “não sabia” o que fazer. Valério, com ironia, a aconselha a a
“acolher o esposo”.
PROF. MONIR: Dizendo algo do tipo: “Ah, é? Então case! Não sabe o que
fazer? Então case com ele!”
O casal faz jogo de braço, ele fingindo que quer que ela aceite, ela fingindo que
pensa que ele quer que ela aceite. Dorina comenta: “Vamos ver até onde os leva
essa disputa”. Valério, despeitado, faz menção de sair, mas de fato não quer partir.
PROF. MONIR: É uma briga de mentira, só para fingir que estão brigando.
O teatro continua. Dorina interfere: “Quero vos pôr de bem e vos tirar do embrulho”.
DORINA
(a Valério)
PROF. MONIR: O projeto é assim: vai ter um plano, mas enquanto isso se
adia o casamento com desculpas. Então ela diz que sonhou que derrubou
sal no pé. Poucas coisas são tão graves quanto derrubar sal no pé, sinal de
que o casamento vai dar errado. E com isso ela vai adiando o casamento, e
cansando o Tartufo e o pai.
Terceiro Ato
Cena I
Damis, irmão de Mariana, está furioso com a presença de Tartufo na casa: “Não,
tenho de impedir desse infame as conjuras, e lhe dizer na cara umas verdades duras.”
Dorina aconselha o a deixar “nesta questão agir vossa madrasta”, com quem Tartu-
Dorina acha que o santarrão estaria apaixonado por Elmira e montou uma arma-
dilha. Para ouvir a conversa, Damis se esconde num gabinete no fundo da sala.
PROF. MONIR: Pela primeira vez, vocês vão ouvir agora o Tartufo. O Tartufo
ainda não tinha aparecido em cena.
Cena II
Assim que avista Dorina, Tartufo, para parecer beato, diz em voz alta ao seu cria-
do Aurélio:
TARTUFO
PROF. MONIR: Ele só diz isso porque a empregada está ouvindo. Então ele
está se fazendo aqui de santarrão.
PROF. MONIR: É uma espécie de cinto cheio de pregos que as pessoas anti-
gamente amarravam na cintura para passarem o dia inteiro sofrendo, para
purgar os seus pecados. Os padres, as freiras, quando sentem tentações
de todos os tipos correm lá e põem o cilício para que a dor provocada seja
ximar da criada, Tartufo pede lhe que cubra o colo: “Causam prejuízo à mente
PROF. MONIR: Colo é a parte superior do peito, cuja visão, através do decote,
é completamente insuportável como tentação, diz Tartufo, o sem-vergonha.
Alguém aqui tem simpatia por este canalha?
Cena III
TARTUFO
PROF. MONIR: Isso dito do jeito certo é capaz de conquistar qualquer mu-
lher! Às vezes a gente lê teatro, não vai ao teatro. O Eugène Ionesco nunca ia
ao teatro, achava chato. Preferia ler a peça do que ir ao teatro. Diz Mortimer
Adler que o jeito para ler teatro é sempre ficar imaginando como você orien-
Elmira diz tê lo chamado para tratar de um assunto em que a alma “se exprima”.
Tartufo pega a mão de Elmira e a aperta. Ela reage: “Aí é apertar demais”. Tartufo
põe a mão sobre os joelhos de Elmira. Ela recua na poltrona, mas ele se aproxima
ELMIRA
TARTUFO
(...)
PROF. MONIR: Vejam que coisa. Ele fez uma declaração de amor à Elmira.
PROF. MONIR: Ele não era mendigo, era um sujeito quebrado. Um sujeito
que tem cultura religiosa. Não é uma pessoa analfabeta, ignorante. É um
pobretão, alguém sem eira nem beira.
Ela ameaça relatar aquela confissão ao marido, mas ele pede que ela trate com
PROF. MONIR: Muito bem respondido. O Tartufo aqui agora deu a primeira
de Garrincha, depois de várias de Cafuringa. Ele está dizendo que se acon-
teceu alguma coisa de inconveniente entre eles, Elmira é que é culpada, por
ser tão bonita assim. Está bem argumentado.
Elmira propõe nada dizer se, em retribuição, Tartufo influenciar Orgon para con-
*******
INTERVALO
*******
Cena IV
DAMIS
Elmira pede ao enteado para evitar o escândalo, mas Damis diz que outras ra-
zões lhe convêm: “Faltava que o traidor seu perdão extorquisse”. O rapaz, volunta-
Cena V
Damis repassa o relatório que faria a seu pai, enquanto Elmira adverte em que é
Cena VI
Na frente de Orgon, já informado por seu filho dos acontecimentos com Elmira,
denável: “Como um meliante, um cão, tratai de me enxotar. Sim, por cruel que seja
o opróbrio a que me exponha, eu sei que mereci ainda maior vergonha”. O estrata-
PROF. MONIR: O plano não deu certo porque Tartufo se diz o pior dos
monstros, exagera nas autoacusações, aumenta as acusações que lhe foram
feitas, inventa outras, e aí o sr. Orgon vai achando aquilo irreal e rebela-se
contra o Damis, como se o filho estivesse tentando caluniar o Tartufo. Deu
completamente errado, Orgon é inacreditavelmente burro.
TARTUFO
(dirigindo-se a Damis)
lhos e abraça Tartufo, queixa-se de estar sendo vítima de uma conspiração para
enxotar dali aquela “santa alma” e insiste em casar Mariana com Tartufo. Ameaça,
logo mais naquela noite, “dar a saber quem manda na casa”. Como Damis não se
rende, Orgon ameaça bater nele com um pedaço de pau, depois o expulsa e o
deserda.
Cena VII
Tartufo encena uma afetadíssima cena de misericórdia para com Damis: “Per-
TARTUFO
(...)
ele seja visto próximo de sua mulher e decide doar todos os seus bens a Tartufo.
PROF. MONIR: E também decide pedir a Tartufo que seja visto a maior parte
do tempo com sua mulher, para deixar claro que não teme a denúncia de
ORGON
TARTUFO
ORGON
Cena I
Cleanto conversa com Tartufo e pede lhe que interceda junto a seu
TARTUFO
PROF. MONIR: Ou seja, não é mais possível haver o convívio de Tartufo com
Damis, por causa daquele escândalo. Ele não quer interceder para que o pai
chame o filho de volta.
TARTUFO
Tartufo diz que “sabem que (ele é), e assim não haverá quem queira ver naquilo a
dade moral:
CLEANTO
PROF. MONIR: Diz o Cleanto: “Como é que você pode ter feito isso, sendo um
devoto como você é?”
CLEANTO
Tartufo desconversa.
PROF. MONIR: “Numa ação que o jus e a praxe arrasa”: tanto o direito quanto
os costumes estão contrários a essa ação. O Cleanto é sempre o oráculo do
bom senso. A Dorina é parecida com o Tartufo porque ela também é esper-
ta. Só que a Dorina não é má como o Tartufo. Mas o Cleanto faz justamente
o contrário do Tartufo. É o sujeito que não joga, que quer levar as coisas de
uma maneira correta.
Cena II
Elmira, Mariana, Cleanto e Dorina esperam a chegada de Orgon para mais uma
Cena III
lhe suplica só por um instante desistir “dos direitos de pai” e a liberar daquele
Orgon está irredutível: “Quanto mais nojo esse himeneu te traz, tanto mais ocasião
de mérito terás”.
PROF. MONIR: Olhem que bacana essa, hein? [Risos] Esse casamento como o
Tartufo passou a ser uma coisa maravilhosa, sob o ponto de vista do Orgon,
porque como ela tem nojo do marido, conviver como o marido será uma
espécie de purgação, de esforço cristão de melhoramento...
Cleanto e Elmira tentam intervir, mas Orgon os rejeita. Elmira propõe ao marido
Cena IV
Elmira pede ao marido que fique debaixo da mesa e escute a conversa que
ela teria com Tartufo. Orgon concorda de má vontade: “Confesso que é mostrar
complacência incomum. Mas devo ver como é que saireis da empresa” e se esconde.
Chega Tartufo, convocado por Elmira, que se justifica ao santarrão, dizendo que
entre os dois:
PROF. MONIR: Aquela conversa romântica que havia sido enterrada quando
o Damis interrompeu, dizendo que ia denunciar tudo ao pai.
ELMIRA
PROF. MONIR: Ela está dizendo para ele que reconsiderou os sentimentos
que ela tinha por ele.
TARTUFO
Quando antes vos ouvi, era outro vosso estilo. (págs. 96-97)
PROF. MONIR: Tartufo está dizendo agora que ela mudou, que está agora
mais simpática com relação a ele.
feminina.
ELMIRA
PROF. MONIR: Ela está dizendo que todas as vezes que as mulheres se apai-
xonam, ficam com pudor, e por isso ela teve aquela reação inicial contrária.
ELMIRA
PROF. MONIR: Ou seja, a voz da virtude nela já está se abafando, ela já não
está tão certa de poder conter os seus sentimentos.
ELMIRA
PROF. MONIR: Ela está aqui sugerindo que está interessada nele.
PROF. MONIR: A conversa é bem erótica para a época. Esta peça aqui era
encenada no gabinete do rei... Racine e Corneille fariam coisas muito mais
sutis. Aqui há sempre um certo deboche.
TARTUFO
PROF. MONIR: Ele está pedindo que ela lhe ofereça um penhor cabal, isto é,
um compromisso sem nenhuma dúvida, uma garantia real de que ela está
interessada nele. Acho que podemos imaginar o que ele quer que ela dê
para ele, para que ele possa acreditar na conversa dela.
Tartufo insiste em que “nada (há) de dar crença, encantadora dama, sem que uma
prova real persuada a (sua) flama”. Ela reage: “Céus! esse vosso amor, senhor, como
é tirânico!” e completa: “Mas como consentir àquilo que almejais, sem ofender o céu
PROF. MONIR: O último recurso que ela tem é dizer: “Como é que eu posso dar
essa prova sem ofender o céu? Afinal você fala do céu o tempo todo...” E aqui
Tartufo, numa genial passagem literária, diz de fato quem ele é.
TARTUFO
TARTUFO
PROF. MONIR: Então como é que faz? Precisa lembrar apenas da intenção.
O ato em si não precisa. Se for uma intenção amorosa, verdadeira, daí então
não tem problema.
TARTUFO
PROF. MONIR: Então, que tal essa?: “Eu não conto para ninguém, fica só entre
nós dois. Aquilo que não vem à luz, não é pecado. Então não se preocupe”. Ele
acabou de arrumar uma argumentação obviamente falaciosa para que ela
não tivesse mais o argumento de dizer que a tal da prova cabal não era pos-
sível porque ela ofenderia o céu.
sobre Orgon:
PROF. MONIR: Elmira diz assim: “Eu concordo, mas se estiver errado, a culpa é
sua, não é minha. O senhor é moralmente responsável por isso”.
TARTUFO
ELMIRA
TARTUFO
PROF. MONIR: Essa é a opinião que Tartufo tem sobre o outro que está ou-
vindo debaixo da mesa: [risos] “É um homem de se levar pelo nariz”; “Eu até
faço com que ele negue a luz do sol” (ou seja, o Orgon é um sujeito totalmen-
te controlado por mim). Será que o Orgon ainda tem alguma dúvida sobre
quem é o Tartufo?
Cena VI
Quando Tartufo vai verificar se o marido estava perto, Orgon sai debaixo da
mesa e confessa à mulher: “Não me refaço, está a arrasar-me o que ouvi! Confesso
-o, homem mais nefando nunca vi!” Na volta de Tartufo, Orgon esconde-se atrás
de Elmira.
Cena VII
Tartufo anuncia não ter encontrado pista do marido: “Ninguém se encontra ali, e
ORGON
(...)
TARTUFO
Quis...
ORGON
TARTUFO
Quem ousa aqui falar de fazer com que eu saia. (págs. 103-104)
PROF. MONIR: Tartufo é o dono de tudo, não é? Ele recebeu em doação. Por-
tanto ele é o dono da casa. Quem tem que sair é o Orgon e a família, ele não.
Sozinho com Elmira, Orgon confessa estar mais preocupado em saber se certo
cofrinho “ainda está lá em cima”, do que com a doação dos bens da família que
havia feito.
PROF. MONIR: Aí tem uma história que vocês não conhecem. Um amigo de
Orgon, chamado Argaz, havia fugido da França e deixado aos cuidados dele
um cofre com documentos que o comprometiam.
O fato histórico, que não está escrito na peça, se relaciona com o gover-
no de Luís XIII. Existiram vários Luíses que governaram a França. Entre eles,
São Luís – o Luís IX – foi um santo que fez a Sainte-Chapelle em Paris, e que
conduziu cruzadas. Esses Luíses todos são da casa de Bourbon. Os últimos
são Luís XVI, que foi guilhotinado, e Luís XVIII, que ainda fez o pequeno go-
verno da Restauração, depois de Napoleão Bonaparte. Mas a casa Bourbon,
a última casa real francesa, teve seu auge com Luís XIV e Luís XV – porque
o Luís XVI, embora fosse um rei muito bom, acabou pagando o preço da
Revolução Francesa.
Luís XIII era um homem fraco dirigido pelo Cardeal Richelieu. O cardeal li-
dava com uma nobreza muito agressiva, muito exigente e havia feito uma
porção de restrições de poder à nobreza quando mandava na França. Com
a morte de Luís XIII começou o reinado de Luís XIV, que por ser muito jovem
ficou sob a regência da mãe. A mãe por sua vez também não mandava nada;
ela não era uma governante. Quem mandava era o Cardeal Mazarin, que se
defrontou com uma rebelião da nobreza chamada La Fronde. Esta rebelião
durou muitos anos, e teve várias consequências graves. Muita gente mor-
Quinto Ato
Cena I
o cofre onde haveria documentos secretos de seu amigo Argaz: “E aquilo são
papéis, ao que pôde dizer-me, que além dos bens também envolvem sua vida.”10 Cle-
anto acusa seu cunhado de imprudência. Orgon, revoltado, promete mudar sua
atitude para com devotos: “Ter-lhes-ei doravante horror e ódio medonho, e con-
tra eles me vou tornar pior que um demônio”. Cleanto diz que ele está sempre a
se “lançar dum noutro excesso”.
CLEANTO
PROF. MONIR: “Dar o cavaco” significa “mostrar zanga”, uma expressão an-
tiga, dessas que não se usam mais, como “macacos me mordam”. Já não se
usava mais mesmo em 1968, quando foi feita a tradução. Mas como é uma
tradução em verso, às vezes a tradutora precisa buscar palavras antigas para
poder fazer as rimas.
Cena II
Damis, sabendo da ameaça que pesa sobre seu pai, quer agredir Tartufo.
DAMIS
Cleanto diz que ele fala como “mero rapazote” e que aquele mal “pela violência
não se emenda”.
Cena III
A senhora Pernelle, mãe de Orgon, chega e pede explicações, pois ouvira dizer
ORGON
PROF. MONIR: Ser “pago à cunha” significa ser pago com abundância. Ele
está falando ironicamente que recebeu pagamento farto pela generosidade
dele. Outra expressão antiga.
Prof, Monir: Orgon está explicando para a mãe que o objetivo de Tartufo é
deixar Orgon tão pobre, tão pobre quanto Tartufo estava quando foi salvo
pelo Orgon.
A Senhora Pernelle não acredita e insiste em que “sempre o povo inveja os que
devotos são”. A matriarca faz defesa de Tartufo, apesar de seu filho afirmar: “Mas eu
vos disse já que eu mesmo tudo vi”.... “com os próprios olhos vi lhe o temerário crime.”
mais leva a engano, e, pelo que se vê, julgar algo é leviano.” Os presentes a contra-
eu que ele tinha em mãos aquelas armas, não teria levado o caso a mais alarmes e...”
Cena IV
O sargento vem da parte do Senhor Tartufo. Apresenta-se e diz já ter sido servi-
SENHOR LEAL
ORGON
Como! vindes...
SENHOR LEAL
PROF. MONIR: Que tal? Agora chegou o oficial de justiça com uma ordem de
despejo para tirar tudo da casa, os móveis incluídos, para que o Tartufo vá
morar lá na casa do Orgon.
O senhor Leal confirma que a casa agora pertence a Tartufo. Damis reage agres-
menta que aquele “senhor Leal tem carranca bem desleal”. Leal, com hipocrisia,
diz que havia trazido para si o caso para evitar outro oficial, “cujo proceder talvez
para desocupar a casa, contanto que possa passar a noite lá com “uns dez ho-
mens” para colocarem para fora, logo na manhã seguinte, “até o último utensílio e
A Senhora Pernelle está estupefata com a cena e “despenca das nuvens”. Começa
um conselho de família.
PROF. MONIR: Esta agora convenceu-se de que o Tartufo não era o que ela
achava que era.
Cena VI
VALÉRIO
PROF. MONIR: Um amigo de Valério, ligado ao governo, disse a ele que Or-
gon seria preso a qualquer momento. O Tartufo havia levado a caixinha para
o rei e o rei mandou prendê-lo como cúmplice de conspiração. Orgon devia
fugir o mais rápido possível para não ser preso, porque iam piorar muito as
coisas.
Valério prepara Orgon para fugir: “Golpe tão fulminante só se apara a fugir sem
Cena VII
oficial de justiça.
Quando lhe pedem que mostre gratidão à ajuda da Senhora Pernelle, Tartufo
devolve:
ELMIRA
missão:
O OFICIAL DE JUSTIÇA
TARTUFO
O OFICIAL DE JUSTIÇA
Sim, vós.
TARTUFO
O OFICIAL DE JUSTIÇA
O OFICIAL DE JUSTIÇA
a Orgon)
PROF. MONIR: Então vejam. O rei, esperto como é, de acordo com a descri-
ção do oficial de justiça, desconfiou que aquele homem era uma espécie de
delinquente, já o conhecia de outras circunstâncias, e foi investigar a situa-
ção. Molière está dizendo aqui que o rei é um gênio. Tendo descoberto que
Tartufo usava um nome falso, que tinha dado outros golpes, manda então
prender Tartufo no lugar de Orgon, que será perdoado pelo fato de ter reti-
do a caixa consigo.
O OFICIAL DE JUSTIÇA
O OFICIAL DE JUSTIÇA
DORINA
SENHORA PERNELLE
ELMIRA
MARIANA
Cena VII
CLEANTO
ORGON
PROF. MONIR: Não achem por causa disso que Orgon é o Molière, porque
não é. Cuidado.
(Resumo feito por José Monir Nasser, com excertos traduzidos por Jenny Klabin
Shakespeare também fez isso. Quando se pensa num judeu literário, pensa-
se em Shylock. Nenhum judeu literário é mais forte do que esse. O que Mo-
lière faz é nos ajudar a entender esses tipos. Comparado com Shakespeare,
Molière está na epiderme da história. Não é possível interpretar uma peça
de Molière com a profundidade com que se pode interpretar uma peça de
Shakespeare.
Prof. Monir: A mentira é uma coisa que acompanha a vida humana. Vocês
vão ver isso em O Pato Selvagem do Ibsen, que é o maior estudo que alguém
fez sobre uma mentira. É a história de uma mentira e de suas consequências.
PROF. MONIR: Como é que nós tiramos esta dúvida entre o mentiroso que
quer alguma coisa e o mentiroso existencial?
ALUNOS: Não.
PROF. MONIR: Se ele não mente para si mesmo, ele é um mentiroso estraté-
gico. Para obter o que deseja, usa a mentira como instrumento.
O Dr. Jekyll no fundo tem uma espécie de desejo. O que se imagina que ele
faz de madrugada? Que caia na gandaia. É claro que irá produzir assassina-
tos. O Mr. Hyde é um monstro, na verdade. Mas não devemos interpretar a
obra pelo valor de face, pois estamos falando da Inglaterra puritana. Se fos-
se o Oscar Wilde, e não o Stevenson, talvez fosse um outro jeito de contar a
história. Mas a simbologia do Dr. Jekyll é de uma pessoa que tem vida dupla.
Ele mente para si mesmo muito mais do que para o outro, pois ele passa a
ter uma espécie de duplicidade existencial e não sabe mais qual dos dois ele
é. Essa é a angústia do processo, ele tem uma existência quebrada em dois
pedaços. O Pato Selvagem não lida com este assunto, lida com o primeiro
tipo de mentira. O Mr. Hyde e o Dr. Jekyll são uma mesma pessoas com uma
fratura de personalidade. No caso do Dr. Jekyll, trata-se de uma psicopatolo-
gia grave. O Pirandello lida sobretudo com este problema.
Mas o Tartufo não parece ser isso de modo nenhum. Ele sabe muito bem
que está mentindo, que está fazendo uma coisa errada, porque no fundo é
apenas um vigarista.
Mas o mais notável nessa história – é isso o que devia nos chamar mais aten-
ção na análise deste livro – é saber por que, afinal de contas, um vigarista
como este consegue tanto sucesso?
PROF. MONIR: Esse expediente tem capacidade de funcionar até certo pon-
to? Tem. É claro que todos imaginam que essas pessoas serão desmascara-
das num dia, como foi o Tartufo. Mas vocês devem ter percebido que seu
desmascaramento na história foi quase como um deus ex-machina. Tinha
uma figura no teatro grego que se chamava deus ex-machina. Chamava-se
PROF. MONIR: Talvez. O deus ex-machina que há nessa peça é motivado pelo
fato de que era preciso que o rei com sua clarividência, competência, inte-
ligência e iluminação entrasse nessa história para colocar ordem na casa,
então soa um pouco falso.
Molière queria dizer que existe um tipo humano chamado Tartufo que é o
hipócrita profissional. Esse tipo humano é um problema. O hipócrita profis-
sional que ele via como alvo de sua crítica era o devoto – um pessoal que
vivia de maneira licenciosa e libertina, fazendo o que queria, mas que ficava
perseguindo e patrulhando a vida alheia como exercícios de pequena mo-
ral.
PROF. MONIR: Por isso que o Tartufo é o Tartufo. Ele não consegue sê-lo se
não tiver alguma espécie de autoridade. Que autoridade ele se arroga e lhe
dá legitimidade para que ganhe o sr. Orgon? A autoridade religiosa, espiri-
tual. O Tartufo não é o Tartufo por si só, mas porque representa um conjunto
de valores que não são ele – os valores religiosos –, ele é uma espécie de
modelo de cristão. Tanto é que a Sra. Pernelle, quando o elogia, diz que ele
está fazendo a divulgação do verdadeiro cristianismo.
O Dr. Jekyll vive um problema de culpa moral. Tanto é que ele sofre terri-
velmente porque está dividido. Mas Tartufo não sente culpa porque é um
vigarista intelectual.
Quais são os instrumentos que ele usa para ser Tartufo? Como se “tartufeia”
os outros?
1. Ele tem que estar munido de valores que não são dele – valores maiores, e
que os outros aceitem como tal. Se ele aparecesse como líder de uma seita
satânica, não seria recebido na casa do Orgon. Ele só é recebido porque re-
presenta os valores cristãos predominantes da época.
2. Ele tem que parecer não ter vantagens em defender isso. Por isso ele se faz
de pobretão, perseguido, que dedica sua vida àquela causa.
1. Primeiro você não pode propor o plano sem que ele pareça que é bom.
Porque a primeira regra é: o plano tem que ter valores coletivos, ele não
pode ser feito fora do contexto de valores coletivos. Haverá alguém nes-
te mundo contra os direitos humanos? Portanto se você chamar o plano
de Plano Nacional dos Direitos Humanos todo o mundo fica achando que
é bom, liminarmente. Isso é uma abordagem tartúfica – no nosso mundo
irreligioso, em que a maioria das pessoas não tem mais valores religiosos, os
direitos humanos viraram a religião, substituíram os valores religiosos ante-
riores. Então você diz que é direitos humanos, e todo o mundo já olha para
você com bons olhos.
2. Mas aqueles que estão propondo o plano dizem que não é para eles não,
que é para os outros. Ou seja, eles não serão beneficiados com isso porque
não são sem-terra, porque eles não são jornalistas, não são do meio de co-
municação, portanto você também está garantindo a segunda condição, de
que você não é beneficiário daquilo. Você está inocente, necessariamente,
porque afinal das contas não ganha nada com isso.
Se você fizer isso bem feito, todo o mundo concorda. Ficam todos aneste-
siados pelo método do Tartufo. Na verdade, quem fez o plano queria uma
PROF. MONIR: Eu não tenho a menor ideia. Só sei que há pouquíssima re-
ação. Quem reclamou? O Estado de São Paulo fez editoriais contra, Denis
Rosenfield escreveu artigos maravilhosos contra o plano...
Você tem uma quantidade tão pequena de anticorpos, que um Tartufo bem
instrumentado é capaz de fazer o que bem entender. Portanto, não ache-
mos que Orgon, cuja cretinice fiquei o tempo todo enfatizando, seja muito
diferente do quadro do brasileiro médio moderno. Todos nós somos mais
ou menos uns Orgons. O orgonismo é uma espécie de doença nacional que
abateu o Brasil.
Para terminar, gostaria de dizer que a grande literatura existe para ensinar as
pessoas a serem normais. Somente para isto é que serve a grande literatura.
O que acontece quando Tartufo é desmascarado? Volta-se à normalidade. É
isso que nós precisamos fazer aqui.
O livro de hoje é praticamente desconhecido, não pelo fato de ser ruim, mas
porque com Ibsen aconteceu um fenômeno interessantíssimo. Ele sempre
esteve muito na moda. Ibsen é um teatrólogo do século XIX que teve muito
sucesso em vida. Morou praticamente vinte e sete anos fora da Noruega,
onde nasceu – na época um país muito complicado, porque havia passado
centenas de anos sob o domínio da Dinamarca.
Foi o que aconteceu com a Polônia, para dar um exemplo mais próximo de
nós. A Polônia uma hora era russa, outra hora era Polônia mesmo, depois ou-
tra hora era russa de novo... Passou a vida inteira transformada em massa de
controle dos seus vizinhos. Fica difícil saber de quem você é. Como alguém
que nasce na Alsácia. Lá você não sabe se é alemão ou se é francês – a cada
50 anos pertence a um dos dois países (embora nos últimos tempos a região
esteja aparentemente consolidada como território francês).
CRONOLOGIA
1828 – Henrik Ibsen nasce no dia 20 de março em Skien, Noruega. Filho de Knud
incentivou no filho o interesse pelas artes. Ibsen teria mais quatro irmãos mais
Ibsen.
1843 – Sem poder mais estudar, parte para Grimstad, para trabalhar como
assistente de farmacêutico do Sr. Reimann. Com quinze anos, Ibsen inicia vida
econômica autônoma.
trão. Ibsen sustenta a criança, batizada como Hans Jacob Henriksen, sem ter
contato com ela. Ibsen pinta, sobretudo paisagens. Cogita de se tornar pintor
profissional.
1849 – Ibsen escreve sua primeira peça, Catilina, em que apresenta o célebre
1850 – Ibsen muda-se para Oslo (então chamada Cristiânia). Um amigo, Ole
Schulerud, publica com recursos próprios Catilina. A obra vende muito pouco e
os volumes remanescentes são vendidos como sucata. Tenta, sem êxito, entrar
de ser preso.
1851 – Começa a trabalhar, como diretor artístico, com o violinista clássico e di-
retor de teatro Ole Bull que queria montar em Bergen, onde havia mais riqueza,
tipo de atividade teatral. Em princípio, teria de escrever uma peça por ano.
teatral de Ibsen.
o filho Sigurd (nascido em 1859). Suzannah era filha da famosa escritora Magda-
lena Thoresen.
1860 – Ibsen não consegue produzir peças “leves” e é pressionado pelo conselho
diretor do teatro.
1864 - Na guerra dos Ducados, a Prússia toma metade de seu território da Di-
namarca. Ibsen muda-se para Roma, com o auxílio de uma bolsa de viagem do
governo. A não ser por pequenas visitas, não voltaria à Noruega por vinte e sete
anos.
peças de Ibsen.
luterano fanático. A peça é a mais kirkgaardiana das escritas por Ibsen. O sucesso
1867 - Escreve Peer Gynt, uma personagem de certo modo oposta a Brand.
1868 - Muda-se para Munique, onde ficaria até 1878. Já famoso, sua presença
diária no café Maximilian viraria atração turística. Após sua partida, o dono do
1899 - Escreve Quando Despertamos dos Mortos (Naar vi Doede Vaagner. En Dra-
matisk Epilog), peça autobiográfica e última de Ibsen. Seu estilo minimalista an-
Ibsen nasceu numa família de classe média alta, uma família burguesa bem
situada; o pai tinha uma destilaria e também trabalhava com comércio. Em
seguida a família vai à falência. Uma das versões é que o governo proibiu a
destilaria. Ibsen então teve que trabalhar muito cedo. Muda-se para outra
cidade da Noruega, onde começa a se interessar por teatro. Lá escreve a sua
primeira peça, Catilina. De modo geral uma peça de juventude, a não ser
quando o jovem é genial, não tem grande valor artístico. A literatura exige
certa maturidade.
12 Nota da revisora de transcrição: O Teatro Norueguês Cristiânia foi uma iniciativa de Johan-
nes Bendictus Klingenberg. Surgiu como escola dramática em 1852, e passou a funcionar
como teatro em 1854. Ibsen trabalhou no teatro como diretor de 1857 até sua falência em
Henrik Ibsen vai embora para a Itália, para Roma, fica lá muitos anos e de-
a I Guerra Mundial.
Ibsen morre sob o signo do espanto. É um homem que morre em 1906 cuja
obra, ainda do século XIX, havia lidado com todos os temas que fariam parte
da agenda do debate social do século XX. Por isso que quando se lê Ibsen
com pouca atenção e profundidade (o que acontece frequentemente com
o livro A Casa das Bonecas), acredita-se à primeira vista que se trata de uma
espécie de escritor social, que está estabelecendo uma agenda de reivin-
dicações sociais, entre elas a da libertação das mulheres (como no caso do
episódio da vida de Nora, a principal personagem da história). Mas quando
A peça escolhida para ser lida aqui, de acordo com Otto Maria Carpeaux, é a
mais profunda de Ibsen. É uma peça terrível, muito dura de se lidar. Terrível
em termos emocionais. É muito cruel, muito dolorosa e tem um grau de
competência teatral como poucas vezes você terá visto na vida. É absoluta-
mente emocionante. Faz parte daquelas peças de conotação social.
Dizem, de modo geral, que Ibsen tem duas fases. A fase romântica ainda na
Noruega, antes de ele viajar, que acaba mais ou menos com Peer Gynt, e a
fase realista. Obviamente é uma questão que se atribui a Ibsen, porque ele
mesmo não disse isso. Aliás, ele manda ler a obra na sequência rigorosa, da
primeira à última. Ele acha que a obra só pode ser compreendida do começo
ao fim. Para os brasileiros isso é difícil, porque tirando A Casa de Bonecas,
só temos seis traduções, que são um terço, ou um quarto da obra. Então é
difícil ler Ibsen, a não ser que você tenha alguma capacidade de ler língua
estrangeira - em espanhol já tem a obra completa.
Otto Maria Carpeaux diz que O Pato Selvagem (Vildanen), que estreou em 11 de
PROF. MONIR: Vai aí enorme exagero, porque não se pode comparar Shakes-
peare com Ibsen. Shakespeare é de um tempo em que a linguagem simbó-
lica era muito mais forte – é um autor metafísico. Mas não é o caso de Piran-
dello, não é o caso de Ibsen, não é o caso de Strindberg, de nenhum desses
grandes dramaturgos modernos. Portanto Ibsen não tem comparabilidade
com Shakespeare – o grau de profundidade é muito diferente.
Pode parecer exagerado, mas este elogio, vindo de quem vem, não é de se
como poucas. O drama pertence à série “realista”, que começa com Os Pilares da
Sociedade (Samfundet Stotter), em 1877. Uma das oito peças que notabilizariam
autocrítica, como aliás todas as outras em que o autor parece estar exigindo
moralidade.
PROF. MONIR: Toda vez que você vê o Ibsen remetendo a alguma causa so-
cial, a primeira pergunta a se fazer é a seguinte: “De que aspecto da própria
vida Ibsen está falando?” Embora pareça ser um autor pedagógico que tem
por objetivo ensinar a sociedade sobre coisas ligadas à moral, Ibsen está
sempre tendo uma atitude pessoal. Vocês se lembram do Dr. Stockmann,
de O Inimigo do Povo? Nós aqui acabamos concluindo que o Dr. Stockmann
tinha problemas muito graves que advinham daquela atitude moralista que
15 Nota do resumidor – Tradução de Otto Maria Carpeaux: “Vida significa luta com os fantas-
“Além disso, é de uma habilidade teatral quase diabólica. Nem em Sófocles nem em
Bernard Shaw considerou a peça “uma tragédia profunda” que, no entanto, pro-
Primeiro Ato
Soerby?17”
O jantar era em homenagem a Gregers Werle, filho do industrial, que havia che-
gado no dia anterior das usinas de Heydal. Outro criado entra na sala anuncian-
PROF. MONIR: O velho Ekdal é pai de Hjalmar, que estava na festa. Esse ve-
lhinho havia sido sócio do Sr. Werle há uns dezesseis anos. Agora ele humil-
demente presta serviços ao antigo sócio e entrou na casa pela porta dos
fundos para apanhar um material que copiava. Na época só havia a cópia
manual.
O velho pede a Petersen para ir aos escritórios conversar com o tesoureiro Gra-
uma hora. O criado concede, mas adverte o a sair pela outra porta, “porque temos
visitas”.
JENSEN
Não. Dão lhe coisas para copiar quando há pressa. Mas no seu tempo, podes
JENSEN
PETERSEN
JENSEN
PETERSEN
Foi. Mas, depois disso, quis negociar em madeiras ou coisa que o valha. Foi
então que, segundo dizem, ele pregou uma formidável peça no patrão.
PROF. MONIR: Pelo que tudo indica, essa exploração em Heydal é de madeira.
Esses países nórdicos têm uma quantidade tão estúpida de madeira, que apesar
de que a árvore lá demora trinta anos para crescer contra sete anos aqui – aqui
o pinus, o eucalipto crescem a ponto de corte em sete anos – apesar dessa di-
árvores que já estão plantadas com cuidados, eles conseguem produzir papel
mais barato do que o Brasil. Esses países são uma floresta, tirando a Finlândia,
Unidos e nos países nórdicos - a Stora, por exemplo. São florestas incrivelmente
JENSEN
PETERSEN
Bem... Está claro, Jensen, que sou eu quem paga. Acho que a gente deve ser
JENSEN
PETERSEN
JENSEN
Na cadeia?
PETERSEN
167-168)
Entra no escritório a senhora Berta Soerby com dois senhores. Aos poucos apa-
O café seria servido na sala da música. O velho Werle comenta com o filho, Gre-
gers, que eles haviam sido treze na mesa, quando normalmente o grupo era de
doze pessoas.
GREGERS
Como? Então dizem que a festa é em minha honra e eu não teria o direito de
HJALMAR
Não creio ter causado grande prazer ao teu pai: nunca venho por aqui.
GREGERS
Sei disso. Mas fiz questão de te ver e de te falar porque, com certeza, em breve
me irei e voltarei para lá. Pois é! Hjalmar, nós nos perdemos de vista desde a
escola. Já lá vão dezesseis ou dezessete anos que não te vejo. (pág. 169)
desde que deixaram de (se) ver”. Dá como exemplo o caso do pai dele que mora
em sua casa: “Só tem a mim no mundo”. Hjalmar lamenta se das “ruínas acumula-
PROF. MONIR: Depois que o velho Ekdal sofre aquela condenação judicial,
sai da prisão e vai morar com o filho, Hjalmar, que é fotógrafo.
Como não pôde continuar a estudar, Hjalmar havia se estabelecido como fotó-
grafo com ajuda do velho Werle, pai de Gregers, que lhe havia emprestado di-
nheiro. Gregers fica sabendo que Hjalmar havia casado com Gina Hansen. Como
PROF. MONIR: Gregers descobre que seu amigo de infância tinha virado fo-
tógrafo ajudado com o dinheiro de seu pai. Descobre também que Gina,
empregada da casa de seu pai, casou-se com o Hjalmar. Achou estranho que
o pai nunca tivesse comunicado isso, já que a moça era da casa.
HJALMAR
De um modo muito simples: Gina tinha deixado a casa onde tudo estava em
reviravolta... desde a doença de tua mãe, compreendes? Ela não podia mais
GREGERS
HJALMAR
Pois bem, Gina foi para a casa da mãe dela, uma mulher ativa e
GREGERS
HJALMAR
Escuta: foi depois disso – depois do teu noivado – que me pai te aconselhou...
HJALMAR
mais fácil. Gina era da mesma opinião. Ah! é verdade! Havia ainda outro
Não é? Não achas, meu caro, que era uma linda combinação?
GREGERS
E é forçoso convir em que meu pai foi uma espécie de providência para ti.
HJALMAR (comovido)
podes crer.
Graberg e o velho Ekdal. “Os risos e pilhérias cessam entre os convidados. Hjalmar
O velho Ekdal e Graberg saem pela porta dos fundos. Hjalmar faz de conta que
HJALMAR
Sim.
GREGERS
GREGERS
HJALMAR (dolorosamente)
sa: “Não, não venha à minha casa. Minha casa é triste, Gregers, sobretudo depois de
Depois que Hjalmar sai, Gregers tem dura conversa com o pai.
GREGERS
Que há?
GREGERS
Eu queria falar-te.
WERLE
GREGERS
WERLE (aproximando-se)
GREGERS
WERLE
GREGERS
Sim, falo dos Ekdal. Houve, entretanto, uma época em que o tenente Ekdal
WERLE
Sim, infelizmente estava ligado a mim... estreitamente ligado. Com isso sofri
bastante durante anos. Graças a ele, uma espécie de lama salpicou o meu
nome.
GREGERS
WERLE
GREGERS
feito juntos.
Mas foi Ekdal quem desenhou o mapa do terreno... aquele mapa errado. Foi
ele quem fez o corte ilegal nos terrenos do Estado. Sabes perfeitamente que
era ele quem dirigia toda a exploração em cima. Quanto a mim, ignorava os
GREGERS
WERLE
É bem possível. Mas um argumento sem réplica é que foi condenado e eu fui
absolvido.
GREGERS
WERLE
Uma absolvição é uma absolvição. Para que mexer nessas histórias que me
ALUNA: Parece que Ibsen já estava anunciando a tragédia quando ele colo-
ca treze pessoas à mesa, como uma referência à Santa Ceia.
O velho Werle insiste em que nada mais pode fazer e que, quando Ekdal ha-
via saído da prisão, “era um homem liquidado”. Completa como para justifica se:
“Arranjei para Ekdal trabalho de cópia no escritório e pago lhe muito mais do que o
serviço vale”.
PROF. MONIR: Como se ele tivesse querendo redimir alguma espécie de cul-
pa por ter saído ileso enquanto o seu sócio acabou indo preso.
Hansen.
criada.
GREGERS
E tinhas razão. Mas... (Baixa a voz.)... mas havia em casa alguém que se
WERLE
Sim, é a ti.
PROF. MONIR: Pronto. Gregers primeiro acusa o pai de ter deixado o sócio
se dar mal e agora o acusa de ter tido um caso com Gina, a mulher atual de
Hjalmar.
WERLE
Tu ousas! Tu te permites! Esse ingrato, esse fotógrafo, como pode ele... como
GREGERS
Hjalmar não me disse uma única palavra a respeito. Não creio que ele suspeite
de alguma coisa.
WERLE
Mas então de onde te vem essa ideia? Quem te pode dizer semelhante
loucura?
GREGERS
Foi a minha pobre, a minha infeliz mãe, na última vez que a vi. (págs. 176-177)
PROF. MONIR: Essa é uma das linhas-chaves da obra. Gregers faz uma insinu-
ação muito clara de que a morte da mãe dele teria sido de alguma maneira
causada pelo marido. Aqui há uma acusação de adultério. Gregers insinua
que seu pai havia tido um caso com Gina, que na época deveria ser muito
jovem, e de depois, para se livrar da moça, ter-lhe arrumado um casamen-
to conveniente com Hjalmar, o filho de seu antigo sócio. Além disso, para
um simples empregado sem querer ganhar nem um vintém a mais que os ordenados
comuns” e propõe ao filho sociedade e uma troca de lugares: “Tu poderias dirigir
a casa de comércio, e eu iria estabelecer-me nas usinas”. Gregers retruca que “deve
de mais companhia do filho. Gregers diz ao pai que não se oporia ao casamento
dele com a Senhora Soerby. O pai agradece: “É para mim um grande conforto
saber que posso contar contigo nesse assunto”. Gregers ironiza: “Como seria lindo se
pudessem dizer que, arrastado pela piedade filial, o filho voltara a casa para assistir
ALUNA: Mágoa.
PROF. MONIR: Tem uma mágoa aqui, que está associada a uma coisa muito
antiga. Essa coisa muito antiga parece ser a morte da mãe.
GREGERS (baixinho)
WERLE
era essa criatura com quem fizeste Hjalmar Ekdal casar se quando não
PROF. MONIR: Aqui está o filho acusando o pai de ter tido vários casos com
diversas moças e de que Gina foi apenas a última. E acusa claramente o pai
de ter arrumado um casamento de conveniência para que Gina desapare-
cesse. Essa é a acusação que o filho faz ao pai.
E eis essa natureza confiante, essa criança grande, emaranhada numa rede
de perfídias, morando sob o mesmo teto que uma mulher dessa espécie, sem
suspeitar que o seu lar, como ele o denomina, repousa numa mentira.
PROF. MONIR: Vocês não acham que Gregers parece levar essas coisas um
pouco a sério demais? Não sabemos ainda. Parece. É um começo muito do-
loroso. Na festa de homenagem à sua vinda, o filho faz estas acusações to-
das ao pai.
ALUNA: [Pergunta se ele não estava agindo de acordo com a moral rígida da
época.]
PROF. MONIR: Certamente eram mais rígidos do que hoje, mas mesmo as-
sim aqui há alguma hipérbole, uma espécie de exagero. Há um tipo humano
que não admite nada que não seja certo, que tem uma exigência moral mui-
to grande. Vocês verão que esse Gregers é mais ou menos assim, um tipo de
militante moral.
É também a minha opinião. Por isso pego o meu chapéu e vou me embora.
WERLE
GREGERS
Sim. Por fim achei uma finalidade para a minha vida. (pág. 179)
PROF. MONIR: Essa é uma das frases-chaves da história: “Achei uma finalida-
de para a minha vida”. Qual é a finalidade da vida de um sujeito que é um
militante moral? É tentar trazer a verdade à tona. Essa expressão “trazer a
verdade à tona” é absolutamente adequada para essa história por causa da
história do pato, que vocês verão em seguida.
Segundo Ato
A cena muda para o ateliê de fotografia de Hjalmar Ekdal. Gina Ekdal e a filha do
casal, Hedvig, uma menina de treze anos, estão sentadas. A mãe costurando e
a filha lendo.
PROF. MONIR: Porque a menina tem um problema de vista. Aí a fraqueza da
vista é a metáfora central da obra. A menina tem uma doença, enxerga mal,
havia prometido pedir à Senhora Berta Soerby “alguma coisa boa” para ela. Che-
PROF. MONIR: Quem? Não sabemos ainda. Daqui a pouco vocês descobrem.
O velho Ekdal, sem cear, vai para seu quarto e pede para não ser interrompido.
Gina, desconfiada de que ele iria beber, pergunta a Hedvig: “Explica me, se pu-
deres, onde ele arranjou dinheiro.”20 Chega Hjalmar e quer falar com seu pai. Gina
tenta impedi-lo, dizendo que aquela noite ele não queria ver ninguém, mas o
velho tenente, vestido com o robe de chambre, sai do quarto fumando cachimbo
velho ouve e depois, meneando a cabeça, comenta: “Está ouvindo, Gina! Ele es-
teve numa reunião onde só havia camaristas, ninguém mais, a não ser camaristas”.
PROF. MONIR: Camaristas são vereadores, stricto sensu. Lato sensu, são polí-
ticos em geral (pessoas da Câmara). Não confundir (ou confundir) com ca-
marilha.
20 Nota do resumidor – Na verdade, a Senhora Soerby, na saída, havia dado ao velho uma
garrafa de conhaque. Todo o dinheiro que o velho ganhava era entregue diretamente para
Gina.
PROF. MONIR: Puxa vida, a menina estava esperando que o pai trouxesse
da festa uma comida gostosa para ela. Olha só como ele vai consertar isso:
HJALMAR
Palavra! Esqueci me! Mas espera um pouco. Tenho aqui outra coisa para te
HEDVIG
HJALMAR
HEDVIG
Só tens isto?
Pois eu não te disse que me esqueci! Todas essas gulodices são um divertimento
Hedvig!
O velho Ekdal volta para o seu quarto. Seu filho comenta: “Pobre velho náufrago!”
PROF. MONIR: Na verdade já alugavam dois quartos em baixo para dois in-
quilinos. Tinham uma casa grande, mas precisavam alugar os quartos para
levantar o dinheiro do mês.
HEDVIG
HJALMAR
HEDVIG (solícita)
GINA
contra o peito.)
Hedvig, Hedvig!
Papai querido!
HJALMAR
HJALMAR
Oh! Não! Mas não me queiram mal por isso. Vocês bem sabem quanto as
quero.
Hjalmar toca flauta para a mulher e a filha. A família parece feliz, apesar das difi-
culdades.
PROF. MONIR: Não parece uma situação feliz, apesar das dificuldades? Os
dois têm uma profissão moderna, trabalham bem, tem uma menina de treze
anos, tem o velhinho que mora com eles, e eles vivem mais ou menos bem.
Há uma certa felicidade nesta situação familiar, não parece uma situação
ruim.
Werle filho não é difícil de ser reconhecido.)” O rapaz comunica que havia deixado
a casa de seu pai e havia ido para um hotel. O jovem Werle observa Hedvig, que
vai buscar uma cerveja na cozinha. Os pais explicam ao visitante: Hedvig é “nossa
GREGERS
HJALMAR
GREGERS
Sim. Até agora só aparecem os primeiros sintomas. Isso pode durar algum
GREGERS
GREGERS (impressionado)
Hereditário?
GINA
HJALMAR
É o que meu pai afirma. Quanto a mim, não me lembro nada dela.
GREGERS
HJALMAR
Como deves compreender, não temos coragem de lhe dizer tal coisa. Ela não
GREGERS
GINA
GREGERS
GINA
GREGERS
HJALMAR
Com certeza, quinze anos, mês mais, mês menos. (pág. 188)
O velho Ekdal entra com o velho quepe de militar e encontra o filho do velho
nho. O velho tenente declara ter matado nove ursos. Continuam as lembranças
e Gregers quer saber como o velho suporta a vida fora da floresta. O velho Ekdal
GREGERS
ar fresco e vivificante, a vida livre das florestas e dos grandes planaltos, a caça
de pena e de pelo?
EKDAL (sorrindo)
GREGERS
HJALMAR
Hjalmar convida Ekdal para voltar com ele à usina. O velho insiste com o filho:
Finalmente decidido, o grupo, menos Gina, desloca se para o sótão, onde o luar
“cesto cheio de pasto”, dentro do qual Gregers pensa ter reconhecido um “pássa-
ro”.
EKDAL
GREGERS
É um pato, não é?
Evidentemente, é um pato.
HJALMAR
HEDVIG
EKDAL
Cala a boca!
EKDAL
GREGERS
EKDAL
HEDVIG
GREGERS
EKDAL
HJALMAR
O pato selvagem havia sido ferido numa asa por João Werle, durante uma ca-
çada:
EKDAL
Seja como for, é a João Werle que nós devemos, Gina. (À Gregers.) Ele estava
caçando num barco, compreende? Atirou nele... Mas o seu pai enxerga tão
PROF. MONIR: Mais uma metáfora de visão: o Sr. Werle enxerga mal.
GREGERS
HEDVIG
Ele ficou ferido embaixo da asa, de modo que não podia mais voar.
GREGERS
quanto podem, seguram se com o bico nas ervas marinhas e nos juncos e em
GREGERS
EKDAL
Foi porque o seu pai tinha um bom cão. Ele mergulhou e trouxe o pato.
GREGERS (a Hjalmar)
HJALMAR
Não imediatamente: a princípio ele ficou em casa de teu pai. Mas não se dava
Como vês foi assim que ele veio ter aqui. Meu pai que conhece um pouco
Petersen soube da coisa e arranjou-se de modo que ele nos cedesse o pato.
GREGERS
HJALMAR
tanto tempo que já esqueceu a vida selvagem. Isso é tudo o que se quer. (págs.
191-192)
Gregers prontifica se a alugar o quarto vago na casa dos Ekdals. Hjalmar aceita
“com prazer”, embora Gina o advirta de que o quarto é muito pequeno e inade-
quado. Além disso, lembra o rapaz de que embaixo moravam outros dois inqui-
linos, o candidato Molvik e o médico Relling. Este último Gregers diz conhecer:
Gina diz tratar-se de um “par de farristas da pior espécie. Passam a vida na pân-
dega, voltam muito tarde da noite, e, então, algumas vezes...” Gregers diz que não
liga, fala mal de sua origem e diz que queria ser como o cão que busca o
pato selvagem quando eles “mergulham até o fundo e enterram o bico na lama,
agarrando-se aos sargaços”.
Gregers parte para voltar de mudança no dia seguinte e a família cogita qual
velho Ekdal poderia correr perigo. Levam o tenente para a cama com precaução.
Terceiro Ato
Hjalmar Ekdal trabalha no seu ateliê, retocando uma prova de fotografia. Gregers
Tentando apagar o incêndio, tinha molhado o chão ao ponto de não poder usar
o quarto antes da noite. O rapaz tinha ido dar um passeio. Era esperado para
Hjalmar e seu pai vão cuidar de reparos no sótão. Hedvig retoca fotos no ateliê.
PROF. MONIR: Imaginem como eram as fotos naquela época. Eram todas
retocadas, as fotos eram pintadas, os rostos ficavam rosados. Essa maneira
de fotografar sumiu do mundo, não existe mais.
Chega Gregers e conversa com a menina. Ela conta não poder ir à escola por
causa de seus olhos. Conta também que adora ler os livros deixados ali por um
PROF. MONIR: Hedvig gosta de ler, mas não tem olhos para ler. Ela não pode
ler de noite, por exemplo.
emprestado “todas as vezes que eles quiserem”. A menina diz a Gregers que com
PROF. MONIR: Essa linguagem popular está na própria tradução. Vejam que
importante é essa frase. A menina diz que ninguém conhece o pato, que
ninguém sabe de onde ele veio. No entanto ele é um pato amado – por ela,
pelo menos. O pato era cuidado, porque não estava no rol de caça. Era uma
espécie de hóspede ilustre na casa. E isso pareceu notável à menina.
seu pai estavam caçando os coelhos com uma pistola de cavalaria que mostra
ao amigo, agora inquilino, e depois vai guardar com uma recomendação: “Não
mexas na pistola, Hedvig: não te esqueças de que um dos canos está carregado.” Gre-
GREGERS
HJALMAR
HJALMAR
HEDVIG
HJALMAR
A não ser isso, ele não tem nada. Na verdade é extraordinário, quando se
pensa que ele recebeu uma carga de chumbo no corpo e que o cão o teve
A gente lendo assim é muito mais fácil de entender, não é? Mas numa peça
de verdade, em que as coisas vão no tempo real, fica mais difícil. Ler teatro é
muito mais fácil do que assistir teatro. Ionesco dizia que nunca ia ao teatro,
apesar de ser um dos maiores teatrólogos do século XX.
Pois é.
Esse maldito pato! Não é por falar, mas ele nos traz atrapalhações. É um
PROF. MONIR: E essa frase agora! Qual é a diferença entre a Gina e o Hjalmar
com relação à situação verdadeira daquele matrimônio?
PROF. MONIR: Porque ela teria sido amante do patrão, ela teria entendido
que aquele casamento era para resolver a situação dela. Por isto o que está
escondido a incomoda de alguma maneira, mas incomoda por quê? Porque
ela sente alguma culpa por isso.
Hjalmar conta a Gregers seus planos, por meio de uma invenção ligada à foto-
GREGERS
HJALMAR
inquéritos, ele se tornou outro homem. Vês aquela pistola que está ali, a
da família Ekdal.
GREGERS
A pistola? Realmente?
HJALMAR
Quando a sentença foi proferida, quando ele ia ser levado para a prisão,
pegou da pistola...
GREGERS
Queria?...
HJALMAR
Sim, mas não teve coragem. Foi covarde. A sua alma já estava enfraquecida,
GREGERS
Compreendo perfeitamente.
HJALMAR
pavorosa para mim!... Os estores das minhas duas janelas estavam abaixados.
Ao olhar para fora eu via o sol brilhar como de costume. Não compreendia
Não compreendia mais nada. Parecia-me que tudo o que existe deveria parar
pai, mas havia desistido: “No momento decisivo, triunfei sobre mim mesmo. Conti-
nuei a viver. Mas, acredite me: é preciso ter coragem para escolher a vida nessas cir-
GREGERS
Sabes, meu caro Hjalmar, que, a meu ver, há em ti qualquer coisa do pato
selvagem?
PROF. MONIR: Está aí o Gregers fazendo uma análise psicológica do seu ami-
go Hjalmar, dizendo que ele tem alguma coisa do pato selvagem. Neste sen-
tido, o pato selvagem está relacionado ao ato de esconder alguém, à ideia
de criar um segredo.
HJALMAR
GREGERS
HJALMAR
Estás pensando talvez, nesse golpe quase mortal que nos feriu na asa, a meu
pai e a mim?
GREGERS
Não é exatamente isso. Não quero dizer que tivesses ficado estropiado. Mas
PROF. MONIR: Olha que coisa terrível para se dizer para o outro. A conversa
do Gregers é uma conversa de militante moral, aqueles sujeitos que fazem
HJALMAR
GREGERS
PROF. MONIR: Está aqui confirmado que o Gregers resolveu salvar a existên-
cia do Hjalmar. Ele decidiu que pela ação restauradora da verdade ele iria
salvar o amigo, prisioneiro numa espécie de mar de mentiras. Gregers, como
bom cão caçador de patos, vai arrancar o sujeito lá de baixo. Esta é a visão
do Gregers. Todo o mundo que lê Ibsen vê o Ibsen como se fosse o Gre-
gers, porque as pessoas não prestam atenção no que leem e não entendem,
tomando a obra pelo valor de face. No teatro, você não tem tempo para
prestar atenção, pois a peça vai andando e você não pode mandar o ator
voltar um pouco porque não entendeu um trecho. Você se contenta com o
que tem. Quando você sai do teatro, você pensa: “Olha, se houvessem mais
Gregers nesse mundo, ele seria melhor, porque ninguém é tão importante
quanto um sujeito como esse, cuja vida é voltada para caçar a mentira”. Ele
tem um potencial de convencimento enorme. Um leitor ou ouvinte comum
fica altamente convencido pelo Gregers. Reparem como ele vai melhorar o
seu desempenho mais ainda.
É bem possível. Mas eu te peço que me deixes fora de tudo isso. Posso
GREGERS
PROF. MONIR: Estão vendo? Gregers diz ao amigo que sentir-se bem é um
problema da própria doença, que é um defeito. Que ali é que está o proble-
ma.
Servido o almoço, chegam Relling e Molvick, que veste preto. Relling reconhece
Gregers Werle e comenta: “Ora essa, é o senhor Werle filho! Sim, nós nos engalfinha-
PROF. MONIR: Ficamos sabendo agora que entre Relling e Gregers já havia
uma bronca antiga e por coincidência se encontraram novamente.
Relling conta que Molvik havia bebido de novo. À mesa, Relling faz provocações
a Gregers. Chega o velho Ekdal trazendo a pele de um coelho que havia matado
PROF. MONIR: O velho Ekdal veio do sótão e fala com os presentes como
se tivesse vindo de uma caçada no campo. Ele matara um coelho no sótão.
GREGERS
RELLING
Dos pântanos?
HJALMAR
Já vais recomeçar!
PROF. MONIR: Vejam que coisa mais indelicada. Dizer na frente da dona da
casa: “Eu estou com horror deste cheiro de pântano que tem aqui”. Não é
coisa que se diga, mas militantes moralistas não têm constrangimentos des-
sa espécie, porque para eles a educação é apenas um verniz social.
ALUNO: [Comenta que o velho Ekdal está sempre passando por algum lugar,
chegando de algum lugar, como um estrangeiro.]
PROF. MONIR: É. Ele mora com o filho, fica no seu quarto a maior parte do
tempo, quando não está indo para o sótão caçar coelhos, ou vai até a casa
do velho Werle apanhar material para cópia... Ele é um pouco móvel, é ver-
dade. Mas não sei se há algum significado.
GINA
Eu lhe juro, senhor Werle, que aqui em casa não há maus ares, porque arejo o
HJALMAR
O mau cheiro!
GINA
RELLING
Desculpe, mas não será por acaso você quem traz esse mau cheiro, lá de cima
das usinas?
GREGERS
É bem coisa sua, isso de chamar mau cheiro ao que eu trago para esta casa.
(pág. 207)
WERLE
se em casa dos Ekdal, sou tentado a crer que tens algum mau desígnio a meu
respeito.
GREGERS
O desígnio que tenho é o de abrir os olhos de Hjalmar Ekdal! É preciso que ele
PROF. MONIR: Estão vendo o militante moral? Ele só tem esse objetivo na
vida. Fazer com que o outro saiba da verdade, de toda a verdade em torno
da qual a vida do outro está baseada. Ou seja, contra a qual, sem a qual a
vida do outro não está baseada. Vocês têm simpatia pelo Gregers? Ele é uma
pessoa positiva?
ALUNO: Um importuno.
WERLE
GREGERS
do armaram aquela armadilha contra o tenente Ekdal”, mas que não havia feito
por medo.
PROF. MONIR: Temos certeza de que foi uma armadilha? Não sabemos exa-
tamente, porque o autor nos deixa na dúvida sobre o fato que gerou a pri-
são do velho Ekdal, mas o jovem transformou isso num fato indiscutível. Ele
acha que o pai prejudicou Ekdal de propósito.
WERLE
GREGERS
PROF. MONIR: Esta é a pergunta que eu farei para vocês um minuto depois
de terminada a leitura, se vocês acham que o que o Gregers está fazendo é
uma boa ação. Porque essa é a questão central desta história, que é uma his-
tória sobre consciência moral, que debate o problema da decisão moral. To-
dos que estão aqui já passaram por essa decisão em sua existência, muitas
WERLE
Julgas, talvez, que o fotógrafo Ekdal é homem para te agradecer essa prova
de amizade?
GREGERS
Sim, creio.
WERLE
É o que veremos.
GREGERS
PROF. MONIR: Opa, mais uma frase-chave. Gregers está dizendo que para
poder continuar vivo precisa encontrar uma solução para a sua própria
consciência doente.
ALUNO: Ele sabe de coisas; ele não está supondo, ele está sabendo.
PROF. MONIR: Ele supõe que sabe. Agora exatamente quanto ele sabe, nós
não sabemos.
isto de tua mãe, Gregers: aliás, é a única herança que ela te deixou.
PROF. MONIR: Werle está dizendo que Gregers herdou da mãe uma espécie
de consciência doente, para sempre. O que justificaria o fato de Gregers ter
a vida voltada para moralizar o mundo. Pessoas assim têm problemas.
Até agora não pudeste digerir o teu logro em relação à fortuna com qual
contavas casar.
PROF. MONIR: Mais uma informação aqui: Gregers acusa o pai de ter se casa-
do com sua mãe por interesse econômico. Que o pai estava interessado no
dinheiro da mãe.
WERLE
GREGERS
WERLE
Está bem. Nesse caso eu me poderia ter poupado o trabalho de vir te falar. É
É!
WERLE
GREGERS
Não.
WERLE
Está bem. Mas como eu desejo casar-me, quero também dar-te o que te toca.
WERLE
GREGERS
GREGERS
GREGERS
que eles precisavam conversar. Gina e Relling tentam impedir, mas o fotógrafo
confiar nele”.
PROF. MONIR: O que será que foram fazer esses dois? Não parece uma boa
ideia que esses dois tenham saído depois da conversa entre Gregers e o pai
dele.
GINA
Infelizmente não. Não está mais louco do que a maioria dos mortais. Mas o
GINA
RELLING
Eu lhe digo, Sra. Ekdal: ele está atacado de febre de justiça aguda.
PROF. MONIR: Taí a doença de Gregers. Ele tem febre de justiça aguda, tem
que fazer justiça a qualquer custo. Largou toda a história de sua vida, empre-
go, sociedade com o pai, a própria herança, com o objetivo de fazer justiça
naquela situação. Há alguma coisa boa sobre Gregers? É um sujeito corajo-
so.
GINA
HEDVIG
Isso é doença?
RELLING
Sim, uma doença nacional, mas que só aparece em estado esporádico. (Com
um gesto de cabeça para Gina.) Até a vista. (Sai pela porta do saguão.)
PROF. MONIR: Essa é a opinião da Hedvig, que acha aquela conversa estra-
nhíssima... O que será que está acontecendo que ela de fato não entende?
PROF. MONIR: É uma crítica que Ibsen faz à Noruega do seu tempo. Isso pode
não ter significado maior. Os curitibanos, por exemplo, são muito cruéis uns
com os outros, mas toda a vez que alguém fala mal de Curitiba, ficamos
ofendidos e furiosos e a defendemos. Os nacionais entre si têm o direito de
se criticarem, às vezes de modo excessivo; mas com os estrangeiros, você
se comporta de outro modo. Aqui há uma crítica à Noruega do tempo dele,
porque Ibsen passou a vida meio que brigado com Noruega. Ela era um lu-
gar difícil de se amar, porque era um país que não era um país; primeiro era
Dinamarca, e depois Suécia. Por isso Ibsen no início da carreira usa temas
folclóricos para ajudar a construir a nacionalidade, como com Peer Gynt. Ib-
sen tem uma mágoa do seu próprio país, mas esta mágoa passa muito lon-
ge do conteúdo do livro - esse livro não é para falar mal da Noruega - mas de
vez em quando ele aproveita para dar uma cotovelada no fígado de algum
inimigo, solta umas pérolas pintadas aqui e ali de ironia.
*******
INTERVALO
*******
Quarto Ato
A ação se passa, ao início da noite, no ateliê de fotografia dos Ekdals. Gina des-
pede se de uma cliente que desce as escadas para ganhar a rua. Hjalmar Ekdal
ainda não havia voltado do passeio com Gregers. O jantar do fotógrafo estava
esfriando. Hedvig se impacienta: “Oh! Se ele pudesse vir de uma vez! Estou achando
GINA
Não.
HJALMAR
HJALMAR
Bem? Não, não estou muito mal. Demos um passeio cansador, Gregers e eu.
(pág. 211)
Hjalmar está agressivo. Diz que não porá mais os pés no sótão. Quando Hedvig
HEDVIG
HJALMAR
É verdade. Pois bem! Será a partir de depois de amanhã. Esse maldito pato!...
PROF. MONIR: Agora Hjalmar diz à menina que quer matar seu pato. Ele está
com raiva do pato por quê? Porque o pato veio do Werle, que caçava o pato.
Lendo simbolicamente este trecho, ele tem raiva do pato porque o pato é
o segredo.
Do pato selvagem!
GINA
HEDVIG (sacudindo o)
Não me animo, por tua causa, Hedvig. Mas sinto, perfeitamente, que eu
devia proceder de outra forma. Eu não deveria tolerar sob o meu teto um ser
PROF. MONIR: Olha que coisa horrível, isso: “Um ser qualquer vindo daquelas
mãos”. Então vocês já devem ter desconfiado de que tem mais coisa aqui do
que aparenta, não é?
GINA
Mas tu sabes bem que foi aquele idiota do Petersen que deu o pato ao avô.
PROF. MONIR: E aqui agora tem uma maravilhosa conversinha kantiana, que
estava faltando para descobrirmos quem estava por trás deste Gregers. Kant
achava que os problemas morais não podem ser resolvidos pela experiência
humana, por ela ser muito enganadora. Por exemplo, você não pode achar
que o agradável/prazeroso contra o desagradável/desprazeroso possa re-
solver os problemas de ética humana. Algumas sensações agradáveis são
imorais, e algumas sensações desagradáveis são morais. Logo, Kant acha-
va que deveria haver uma mediação externa para o problema moral, que é
uma mediação a priori – em termos kantianos. Essa mediação externa a prio-
ri é o foco central de sua própria filosofia. Kant cria a ideia de que assuntos
Hjalmar pede para a filha ir dar seu passeio diário. Ela concorda com a condição
de seu pai não fazer mal ao pato na sua ausência. Depois que a menina sai, Hjal-
mar diz à mulher que a partir do dia seguinte iria conferir as entradas de dinheiro
da casa 21: “Parece me que o dinheiro dura mais tempo nas tuas mãos”.
PROF. MONIR: Por que é que ele está falando isso? Porque está desconfiado
de que o velho Werle esteja financiando a família dele sem que ele saiba.
Enquanto ele cuida da fotografia, sua mulher faz a gestão econômica da
casa. Agora ele quer saber se é o Werle que está pagando mesmo – ele está
com o seu orgulho ferido, pois Gregers foi dizer que toda a sua vida era uma
farsa, uma invenção do velho Werle para produzir uma compensação pelos
acontecimentos anteriores.
GINA
Varia tanto... Ele recebe mais ou menos o que nós gastamos com ele, e além
PROF. MONIR: Quem guarda é ela, uma espécie de economia que ela faz
para o velho.
21 Nota do resumidor – Era Gina que administrava a casa, enquanto Hjalmar trabalhava como
GINA
Eu não podia te dizer isso. Tu tinhas um prazer tão grande em acreditar que
HJALMAR
GINA
PROF. MONIR: Pronto. Começou a ruir o castelo da família Ekdal.
que tivesse havido alguma coisa entre ti e Werle na época em que servias na casa?”
Ela reage:
GINA
Não é verdade. Não foi dessa vez. Que o Sr. Werle me procurava, isso é verdade.
E Mme. acreditou numa porção de coisas. Ela então fez uma barafunda
PROF. MONIR: Quer dizer que a mãe do Gregers havia descoberto o caso da
empregada com o marido e foi lá bater na empregada.
GINA
Sim. Eu então voltei lá para casa, como tu sabes. A mãe não estava tão bem
como tu pensavas, Ekdal: ela me contou isto e mais aquilo... Nessa época o Sr.
HJALMAR
E então? Vejamos...
GINA
Enfim, é melhor que tu saibas, ele não sossegou enquanto não conseguiu
PROF. MONIR: Ela só admite ter tido um caso com Werle depois da morte da
dona da casa, por razões de necessidade.
E é essa a mãe da minha filha! Como me pudeste esconder uma coisa dessas?
GINA
Sim, não foi direito da minha parte. Eu devia ter te contado isso faz muito
tempo.
HJALMAR
Deverias me ter dito logo. Pelo menos eu ficava sabendo quem eras.
HJALMAR
GINA
Aí está por que não me animei a dizer nada. Eu tinha tanto amor por ti, tu
bem sabes. E além disso eu não podia fazer a minha própria desgraça.
E é essa a mãe da minha pequena Hedvig! E saber que tudo o que me cerca...
(Dá um pontapé numa cadeira.) Todo o meu lar, eu o devo a esse homem!...
GINA
Dize-me, não gemeste todos os dias, todos os minutos, sobre essa trama de
GINA
Ah! meu querido Ekdal... Francamente: eu tive bastante que fazer só de pensar
ela” e o desafia: “É que te metias por quanto mau caminho havia no tempo em que
PROF. MONIR: A esta altura é possível ter uma impressão sobre Hjalmar. Ele
é um sujeito meio perdido, e esse casamento, seja lá feito com que grau de
conveniência para outros, foi uma maneira de lhe dar uma existência estável
– é isso que Gina disse para ele.
GINA
Está direito, está bem, não digo que não. Não vou remexer nisso tudo agora.
Tu te tornaste um homem tão bom assim que tiveste uma casa e família.
Era tão agradável e tão sossegado em casa agora. E, além disso, eu e Hedvig
íamos poder dentro de pouco tempo nos comprar uns vestidos e umas coisas
boas...
HJALMAR
GINA
Oh! e logo agora havia esse horrível sujeito de meter nariz aqui!
HJALMAR
Eu também me sentia bem no meu lar... E não era mais do que uma ilusão...
De onde me virá agora a força de que preciso para trazer a minha descoberta
para o terreno das realidades? Ela morrerá talvez comigo, e nesse caso, Gina,
Como podes falar assim, Ekdal... Eu que toda a minha vida só quis o teu bem!
HJALMAR
Sim, eu pergunto: que será feito agora dos sonhos concebidos pelo pai de
esse dia seria também o da despedida. E o meu sonho era que tu vivesses
Chega Gregers e pergunta ao amigo de infância se “ainda não está feito?” Hjalmar
diz que está feito e que havia vivido “a hora mais amarga da (sua) vida”.
PROF. MONIR: Agora vem o Gregers saber se Hjalmar já havia aberto o jogo,
se já havia cobrado uma explicação da Gina. Vocês não acham que tem al-
guma coisa errada com esse Gregers?
GREGERS
HJALMAR
GINA
HJALMAR
GREGERS
Essa grande liquidação devia servir de ponto de partida para uma nova
PROF. MONIR: Então é isso que o Gregers achou que ia acontecer? Ele está
dizendo que falou aquilo tudo, que puxou o pato debaixo da água justa-
mente para eles recomeçarem certo agora.
HJALMAR
GREGERS
PROF. MONIR: Deu tudo errado, não é? E pode ficar pior ainda.
GINA
GREGERS
A senhora não me quer compreender, Sra. Ekdal. Mas tu, Hjalmar? Esta grande
HJALMAR
PROF. MONIR: O Hjalmar não está muito elevado não, ao que parece.
GREGERS
PROF. MONIR: Não parece o diabo imitando um santo? Não parece um sujei-
to hipócrita, não parece o Tartufo falando?
HJALMAR
Crês que um homem possa digerir tão facilmente o cálice amargo que acabo
de engolir?
GREGERS
Meu Deus! Sim, eu sei. Mas tu me deves estimular, Gregers. É preciso tempo,
não vês?
GREGERS
Chega Relling e, referindo se a Gregers, diz que o “charlatão devia voltar para a
casa dele”: “se ficar aqui, é capaz de os destruir aos dois”. O jovem Werle contrapõe
que ele (Relling) está vendo “na sua frente pessoas que não temem a destruição”.
RELLING
GREGERS
PROF. MONIR: O Gregers quer fundar uma verdadeira união conjugal! Ele fez
o que fez porque queria fundar uma verdadeira união conjugal?
RELLING
GREGERS
Ela vale tanto quanto muitas outras, infelizmente. Mas quanto a ser uma
PROF. MONIR: Olhem o Kant de novo. O direito do ideal é “recht ist recht”,
como se diz em alemão – o certo é o certo, e o errado está errado. Não tem
meio termo. Isso é o imperativo categórico em filosofia.
RELLING
Idiotices, meu rapaz! Mas desculpe me, senhor, se lhe pergunto: quantas
redondos.
GREGERS
PROF. MONIR: É o Gregers dizendo isso, que nunca viu na vida dele um casal
que funcionasse do jeito que ele quer que os outros dois funcionem.
RELLING
Nem eu tampouco.
GREGERS
Vi, porém, uma infinidade do gênero oposto. E tive ocasião de ver de perto os
estragos que uma tal união pode fazer num casal humano.
PROF. MONIR: Qual foi o casal humano que ele viu na prática? Os pais dele.
Todo alicerce moral de um homem pode esboroar se sob os seus pés... Eis o
que é horrível!
RELLING
impossível dar opinião a respeito. Mas o que eu sei é que a união conjugal
em paz.
HJALMAR
RELLING
Sim, vocês terão a bondade de não meter Hedvig nessa mixórdia. Vocês dois
vocês, se é que isso lhes agrada. Quanto à Hedvig, porém, é preciso tomar
em perigo. O médico esclarece: “Não se trata dos olhos dela. Mas Hedvig atingiu
uma idade crítica. Ela é suscetível de todas as más inspirações”. Chega a senhora
Berta Soerby para se despedir de Gina. Ela seguiria no dia seguinte para Heydal.
O senhor Werle já havia partido. Na prática, ela anuncia o casamento dos dois,
deixando claro que não era por amor (“Aliás eu sempre tomei cuidado de não obe-
decer a meus impulsos. Porque, afinal, uma mulher não deve sacrificar inteiramente.”)
PROF. MONIR: Está aí o exemplo contrário do que Gregers acha que é um ca-
samento feliz. É uma mulher e um homem, ambos viúvos, que se casam por
conveniência social. Os dois fazem companhia um para o outro, vão casar e
morar em Heydal, nas usinas. Ela vem para anunciar isso e dizer que ela não
o faz por grande amor, não. Que é preciso ser prático na vida.
Quando Gregers comenta a franqueza dela, ela devolve: “Sempre fui franca. Ainda
SENHORA SOERBY
Quanto a isso, Gina, o que há de mais seguro é fazer como eu fiz. Hoje tenho
certeza disso. Werle também nada me escondeu do que lhe diz respeito. Foi
mesmo isso o que nos ligou mais solidamente um ao outro. Agora, ele pode
passar o tempo sentado junto de mim, conversando sobre tudo, com uma
franqueza de criança. Isso foi uma coisa que sempre lhe faltou. Um homem
melhores anos da vida a ouvir recriminações e, muitas vezes, pelo que estive
GINA
GREGERS
SENHORA SOERBY
Oh! não! Pode ficar. Nada mais direi. Mas fiz questão que soubesse que nunca
fiz uso de mentiras, nem de subterfúgios. Julgam, talvez, que estou tendo uma
sorte grande... e até certo ponto é verdade. Entretanto, parece me que não
recebo mais do que dou. Nunca o abandonarei, é certo. E lhe posso ser mais
útil, mais necessária, do que quem quer que seja, quando ele não puder mais
HJALMAR
Está bem, está bem. Não fale nisso, Senhora Soerby. – Não é possível esconder
por mais tempo, embora ele o deseje: Werle está em vésperas de perder a vista.
HJALMAR (estremecendo)
Antes de sair, a Senhora Soerby põe o senhor Graberg à disposição dos Ekdals.
Hjalmar diz que vai procurar o tesoureiro sim, mas para saber o quanto estava
devendo. “Em resumo: quero pagar tudo, com cinco por cento de juros”. Quando a
mulher sai, Hjalmar orgulha se de si mesmo e é apoiado por Gregers: “És o ho-
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Não sei se vocês estão percebendo isso, mas a relação que se
estabeleceu agora entre Gregers e Hjalmar é tipicamente diabólica. Gregers
faz-se de conselheiro diabólico, ou seja, produz conselhos disfarçados de
conselhos bons, sob uma casca moral boa, enquanto Hjalmar vai destruin-
do totalmente a sua vida por trás disto. É como se o diabo estivesse dando
conselhos e o outro estivesse atendendo, porque os conselhos são bem em-
balados, nas embalagens certas.
HJALMAR
Pai de família, terei de gemer e de labutar nesta tarefa. Não é uma brincadeira,
uma dívida enterrada, por assim dizer, sob a poeira do olvido. Não importa!
HJALMAR
Sim.
GREGERS
Não é uma felicidade... que se tivesse feito luz sobre todas essas relações?
Não digo que não. Mas há uma coisa que revolta o meu sentimento de
equidade.
GREGERS
O que é?
HJALMAR
É que... oh! meu Deus! Não sei se me posso referir tão livremente a respeito do
teu pai.
HJALMAR
que seja ele e não eu que contraia, neste momento, uma verdadeira união
conjugal.
GREGERS
HJALMAR
Mas é assim. Teu pai e a Senhora Soerby vão fazer um pacto conjugal baseado
entre eles, nenhuma mentira por trás de suas relações: eles se concederam,
GREGERS
GREGERS
HJALMAR
Não posso impedir que haja aí uma coisa que fere os meus sentimentos de
(págs. 219-220)
PROF. MONIR: Depois ele lembra que o Werle vai ficar cego, vê aí um castigo
e fica feliz.
Hedvig volta do seu passeio, dizendo que havia encontrado a Senhora Soerby
e que ela havia dado “uma coisa” para o seu aniversário do dia seguinte. A “coisa”
era uma carta e era a primeira vez que a menina recebia uma. Hedvig está muito
feliz: “E além disso tem ‘senhorita’ em cima... ‘Senhorita Hedvig Ekdal’. Imagine só...
Sou eu!”
A letra no envelope era do senhor Werle. Hjalmar pede para abrir a carta. Gina
quer deixar para o dia do aniversário. Hjalmar está impaciente. Hedvig deixa o
pai abrir. Depois de lê-la, o fotógrafo fica perturbado. A carta continha docu-
mar diz para si mesmo, com os punhos fechados: “Esses olhos, esses olhos! E além
disso esta carta!” Na carta estava também estabelecido que, após a morte do
PROF. MONIR: Ela está muito feliz, porque resolveu o problema de dinheiro
da família. E agora vem um diálogo muito triste.
Contente? Oh! que visão, que perspectiva se desenrola ante os meus olhos! É
PROF. MONIR: Hjalmar desconfia que a garota seja filha do Werle, embora
disso não se tenha nenhuma prova.
GINA
HEDVIG
HJALMAR
HJALMAR
GREGERS
Quando ele veio hoje de manhã ele me disse: Hjalmar Ekdal não é o homem
que julgas.
23 Nota da revisora de transcrição - Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como Fernan-
GREGERS
HJALMAR
Queria dizer que ides ver que me desarmariam com dinheiro, não é?
HEDVIG
Hedvig, a ponto de chorar, sai pela porta da cozinha. Hjalmar rasga o termo de
doação: “Eis a minha resposta”, ao que Gregers acrescenta: “Era o que eu esperava.”
Não sei.
PROF. MONIR: É claro que ela sabe. Provavelmente é filha dele mesmo, nós
não sabemos. Mas neste momento ela está tão horrorizada que resolve fa-
zer o jogo. Já que é considerada um monstro, então Gina agora faz o jogo
do monstro.
Não sabes!
GINA
GREGERS
vocês três fiquem juntos se queres alcançar a esse espírito de sacrifício que
HJALMAR
Não quero nada disso! Jamais, jamais! Meu chapéu! (Pega o chapéu.) Meu lar
Bom.
HJALMAR
Não te aproximes de mim, Hedvig! Vai te! Não te posso ver. Oh! Esses olhos!
HJALMAR
Ele nos deixou, mamãe! Ele não vai voltar nunca mais!
GINA
GREGERS
A senhora pode crer, Sra. Ekdal, que eu quis arranjar tudo do melhor modo
possível.
GINA
Pode ser que sim. Mas em todo o caso que Deus lhe perdoe. (pág, 223)
Gina põe o manto e o chapéu e sai atrás do marido. Hedvig, sentando e enxu-
gando as lágrimas, pergunta: “Agora é preciso me dizer o que é que há. Por que é que
GREGERS
Não deve perguntar isso enquanto você não for grande e razoável.
HEDVIG (soluçando)
Mas é que eu não posso ficar assim com esse desespero no coração até que
eu fique grande e razoável. Eu já estou vendo o que é. É capaz que eu não seja
filha do papai.
GREGERS (inquieto)
HEDVIG
Pode ser que mamãe me tenha achado e que papai tivesse sabido ainda há
GREGERS
Parece me que assim mesmo ele podia me querer do mesmo modo e até
PROF. MONIR: Coitadinha, ela não consegue entender bem o que é um adul-
tério, mas está se colocando na posição do pato selvagem — se o pato foi
achado e mesmo assim pode ser amado, por que ela não pode ser amada
também?
HEDVIG
Pobre pato! Papai também não quer ver mais ele. Imagine só; ele falou em
GREGERS
HEDVIG
Não, mas ele falou nisso. Que coisa feia papai ter dito aquilo. O senhor não
sabe? Eu rezo todas as noites pelo pato, que ele não morra, nem lhe aconteça
nada de ruim.
GREGERS (olhando a)
Costumo, sim.
GREGERS
HEDVIG
GREGERS
E então?
HEDVIG
Então, eu rezei para ele quando fui me deitar, e desde aí eu continuei a rezar.
GREGERS
HEDVIG
Eu pensei que ele também precisava: estava tão doente quando chegou...
GREGERS
HEDVIG
Por quê?
HEDVIG
De manhã está claro, não tem por que a gente ter medo.
GREGERS
E esse pato de quem você gosta tanto, seu pai quer torcer lhe o pescoço?
HEDVIG
Não. Ele disse que devia fazer. Mas ele não faz por minha causa. Isso sim, que
O pato selvagem?
GREGERS
Se, por sua livre e espontânea vontade, você lhe sacrificasse o que tem de mais
precioso no mundo?
HEDVIG
Experimente, Hedvig.
GREGERS
HEDVIG
GREGERS
HEDVIG
Por quê?
GREGERS
HEDVIG
Gina volta com a notícia de que Hjalmar, Relling e Molvik haviam saído juntos.
Abraçando a filha, Gina medita: “Meu Deus! Meu Deus! Bem razão tinha Relling. Aí
está o que acontece quando há loucos que vêm apresentar essas malditas cobran-
ças.”
Quinto Ato
Num dia pardacento e frio, Hedvig diz à mãe que acha que seu pai está em-
baixo, no quarto de Relling. O velho Ekdal sai do quarto vestido com o robe de
À saída do velho, Hedvig comenta: “Mamãe, que achas, quando o pobre vovô sou-
ber que papai quer nos deixar?...” Chega Gregers e pergunta: “Estão na pista dele?”
Entra Relling e confirma que Hjalmar estava nos seus aposentos. Gina quer saber
GINA
RELLING
HEDVIG
RELLING
GINA
RELLING
GINA
HEDVIG
RELLING
GREGERS
Isso se compreende. Depois da luta que teve de sustentar a alma dele... (págs.
226-227)
Quando a mãe e a filha saem para arrumar a sala, começa reveladora conversa
de Ekdal?
RELLING
Palavra que não notei que a alma dele estivesse trabalhando.
GREGERS
Como? Num momento de crise em que toda a vida dele se reconstrói sobre
RELLING
Ele, um caráter?... Se jamais ele teve em germe uma dessas deformações a que
GREGERS
RELLING
GREGERS
Essas duas mulheres, posso declarar lhe, nunca deixaram murchar os direitos
PROF. MONIR: Os direitos do ideal é uma ideia kantiana que o Gregers está
colocando na cabeça do Hjalmar. É o Gregers que domina esta ideia.
Não, não estou com disposição para isso. De resto estou bem informado: ele
RELLING
A desgraça de Ekdal foi ter passado sempre por um fênix aos olhos dos que o
cercam.
GREGERS
RELLING
Eu nunca o notei. Que o pai dele tivesse acreditado nisso, não me admira. O
GREGERS
Teve uma alma de criança durante toda a vida, é o que você não percebe.
RELLING
Está bem, está bem! Mas depois disso, quando o pequeno Hjalmar se tornou
estudante, os colegas dele, também, apressavam se a ver nele uma das luzes
do futuro. Ele era bonito... a coisa ia... branco e rosa... tal como as jovens
RELLING
Com sua licença, sim. É só para lhe mostrar o íntimo desse ídolo, ante o qual
GREGERS
RELLING
Pois não está longe disso. Vou dizer lhe: você é um doente, você também.
GREGERS
RELLING
Oh! Se tenho. Seu caso é muito complicado. Para começar, essa febre maligna
da equidade. E depois, o que ainda é pior, esse delírio de adoração que o faz
RELLING
Sim, mas você tem enganos lamentáveis, graças a essas moscas maravilhosas
que lhe passam diante dos olhos e lhe zumbem aos ouvidos!... Aqui está você
outra vez em casa desta gente a quem você reclama os direitos do ideal. Pois
fique sabendo que, nesta casa, não existe ninguém em condições de pagá-
los.
PROF. MONIR: Relling está dizendo que o Gregers exige uma humanidade
que não existe – propor a verdade total e completa para pessoas como Hjal-
mar, que é um sujeito muito frágil, que passou a vida se autoenganando, é o
mesmo que dar a ele uma sentença de morte. Ele não é capaz de lidar com
isso.
GREGERS
Mas se você não forma melhor conceito de Hjlamar Ekdal, por que motivo
RELLING
Ora, meu Deus! Tenho vergonha de dizê lo, mas, segundo parece, sou médico.
Tenho pois a obrigação de me ocupar dos pobres doentes que moram sob o
GREGERS
GREGERS
RELLING
GREGERS
RELLING
estimulante.
GREGERS
está possuído?
RELLING
Ah! não! Não revelo esses segredos aos charlatães, você seria capaz de estragar
o meu paciente mais do que ele já está. Mas o método já está comprovado.
RELLING
Que diabo quer você que signifique isso: “um demoníaco”? É uma pilhéria que
eu inventei para manter lhe a vida. Do contrário, há muitos anos que o meu
GREGERS
RELLING
Sim. Que me diz você desse matador de ursos que vai caçar coelhos num
sótão? Não há caçador mais feliz do que esse pobre diabo, quando tropeça na
mixórdia que há aqui. Árvores de natal secas, que ele guarda cuidadosamente,
cimo dos pinheiros. Os coelhos que atravessam o salão saltando, são os ursos
GREGERS
Pobre velho! Teve de desbastar o que servia de ideal para a sua mocidade.
RELLING
Ouça, senhor Werle filho, por favor não empregue esse termo elevado de ideal,
Acredita então que haja algum parentesco entre esses dois termos?
RELLING
GREGERS
Doutor Relling! Não descansarei enquanto não arrancar Hjalmar das suas
garras.
RELLING
Nesse caso, será tanto pior para ele. Se você tirar a mentira vital de um homem
comum, tira lhe ao mesmo tempo a felicidade. (A Hedvig que volta do salão.)
Vamos! Mãezinha do pato, vou ver se o seu papai ainda está deitado no sofá
refletindo na sua famosa invenção. (Sai pela porta do saguão.) (págs. 227-
229)
PROF. MONIR: Está aqui o Dr. Relling dizendo que é um médico que ajuda
esses pobres coitados que não têm elementos pessoais para entenderem
o que acontece com a verdade a viverem suas mentiras existenciais. É exa-
tamente isso que Gregers está tentando não fazer, destruir. Portanto, se há
aqui duas personagens que estão em contraste são o Gregers e o Dr. Relling.
E está dizendo o Dr. Relling que o caminho dessa situação é a destruição
e não a melhoria, talvez porque Gregers exija uma humanidade que não
existe de fato.
HEDVIG
GREGERS
PROF. MONIR: Olhem que comentário diabólico, dizer isso para uma criança
de treze anos: “Você é covarde, você não matou o pato ainda”.
HEDVIG
Não, não foi isso. Mas quando eu me acordei hoje de manhã e pensei em
tudo o que nós dissemos, eu achei que era tudo tão extraordinário!
GREGERS
Extraordinário, acha?
HEDVIG
Sim... Não sei... Ontem de tarde, naquela hora, eu achava que ia ser delicioso.
Mas depois que dormi e que me lembrei, já não era a mesma coisa.
GREGERS
Ah! não é impunemente que você foi educada sob este teto.
HEDVIG
Oh! Se você tivesse olhos para ver o que dá valor à vida, se você tivesse uma
como ele voltaria para junto de você! Mas eu creio em você, Hedvig, ainda
Chega o avô, que havia ido dar seu passeio sozinho, dizendo que o dia esta-
va ruim para caçadas: “Está muito escuro. Não se enxerga a dois passos.” A menina
farias, vovô? Não se trata do meu pato, mas de um outro qualquer.”) O velho entra
a pistola no lugar.
Hjalmar Ekdal entra na sala. “Está de sobretudo, sem chapéu, nem lavado, nem pen-
teado, com os cabelos revoltos, os olhos cansados e abatidos”. Declara que havia
voltado para desaparecer imediatamente. Hedvig vê o pai e corre para ele, mas
ele a repudia:
Que livros?
HJALMAR
Enquanto Hjalmar recolhe suas coisas, Gina comenta: “Que Deus te perdoe o mal
que pensas de mim”. O fotógrafo diz que seu pai irá deixar a casa com ele. Procura
o seu chapéu. Gina quer saber onde ele havia estado com “aqueles dois libertinos”.
A mulher traz um café com uma torrada e arenque defumado. Ele recusa.
Um pouco de arenque defumado? Sob este teto? Nunca mais! Há quase vinte
e quatro horas não ponho nada de sólido na boca. Não importa! – Minhas
botei o meu diário e o que há de mais importante nos meus papéis? (Abre a
GINA
HJALMAR
Vamos, sai!
(A Gina.) Durante os últimos momentos que vou passar no meu antigo lar,
GINA
chorar.)
O pato selvagem!
Hjalmar e Gina discutem. A mulher acha que o velho vai sentir falta dos coelhos.
Hjalmar não quer a flauta, mas vai levar a pistola. Procuram na. Como não está na
te. Gina tenta convencê lo a ficar no salão, na casa de Relling ou de Molvik. Ele
reage: “Não pronuncies o nome desses tipos. Só de pensar nisso, sou capaz de perder
o apetite. Não! Terei de ir no meio da neve e da tormenta, de casa em casa, para pro-
Hjalmar aceita ficar no salão por um dia ou dois, porque não vê como poderia
“fazer a mudança de seu pai em tão pouco tempo”. Continuam a separar as coisas
marido se quer que ela prepare o quarto ou lhe arrume as malas. Ele escolhe os
dois: “Arruma a mala e prepara o quarto”. A mulher sai para tomar as providências.
crer que ele poderia fazer grande descoberta no terreno da fotografia e, mais
HJALMAR
GREGERS
Quanto amor eu senti por essa criança! Quanta alegria, cada vez que ao
entrar na minha pobre casa, ela vinha correndo para mim com o piscar dos
seus lindos olhos! Ah! Louco confiante que eu era! Amei a tanto!... E, para mim,
era um sonho poético a ideia do amor que ela tinha por mim... Seu amor,
como eu o imaginava.
HJALMAR
Como o poderei saber? Nada posso arrancar de Gina. E, além disso, ela não
compreende o lado ideal do que se está passando. Mas, diante de ti, Gregers,
sinto a necessidade de abrir meu coração. É esta dúvida atroz, estás vendo?
Talvez que Hedvig nunca tenha tido por mim uma afeição verdadeira.
GREGERS
Ela talvez te possa provar essa afeição. (Escuta:) Que há? Parece me ouvir o
HJALMAR
GREGERS
Ah! ele está no sótão? (O seu rosto exprime alegria) Eu te digo que é bem
possível que venhas a ter a prova do amor de Hedvig, dessa pobre Hedvig de
quem suspeitas.
HJALMAR
Oh! E que prova poderia ela me dar? Não posso crer em protestos de amor
GREGERS
Ah! Gregers! É justamente disso que não tenho certeza. Quem sabe o que
Gina e essa Sra. Soerby puderam tramar aqui, tantas vezes? E Hedvig não tem
por hábito tapar os ouvidos. É capaz que essa doação, afinal de contas, não
PROF. MONIR: Agora Hjalmar coloca a filha de treze anos como conspiradora
contra ele.
GREGERS
HJALMAR
Meus olhos se abriram. Presta atenção: verás que essa doação não é mais do
que um primeiro passo. A Senhora Soerby sempre teve um fraco por Hedvig.
Ela agora tem o poder de fazer tudo o que lhe agrade pela criança. Podem
GREGERS
HJALMAR
Não te fies muito nisso. Se eles lhe fizerem um sinal, com as mãos cheias?... E
eu que tanto a quis!... Eu, cuja felicidade toda teria sido de pegá la suavemente
pela mão e de a conduzir como se conduz, num grande quarto vazio, uma
criança que tem medo das trevas! Tenho agora a dolorosa certeza de que o
houve aí nada mais que um ardil para viver em boas condições com ele até
um momento dado.
GREGERS
HJALMAR
O horrível é justamente isso: eu não sei o que devo pensar, jamais o saberei.
Mas tu crês que é impossível que assim seja? Meu bom Gregers, tu te fias
cheguem com as mãos cheias, que lhe gritem: “Vem conosco, a vida aqui está
HJALMAR
Se eu lhe pedisse: “Hedvig, queres dar a tua vida por mim?” (Ri sarcasticamente.)
Hjalmar!
HJALMAR
GINA (entrando)
Ekdal, creio que o velho está outra vez sozinho no sótão a dar tiros de
espingarda.
HJALMAR
Vou ver.
HJALMAR
GREGERS
HJALMAR
Que prova?
GREGERS
selvagem.
GREGERS
Imagina só.
HJALMAR
Para quê?
GREGERS
Ela quis sacrificar te o que tinha de mais precioso. Pensa por esse modo
GINA
GREGERS
Ela quis reconquistar o teu amor, Hjalmar. Aí está. Ela achava que não podia
HJALMAR
Hedvig, vem cá! Vem para perto de mim! (Olha.) Não, ela não está aí.
GINA
GINA
Meu Deus! pode ser, tu não querias que ela ficasse em casa.
HJALMAR
Oh! se ela pudesse voltar o quanto antes, para eu lhe dizer... Agora, tudo irá
bem, Gregers, agora sinto que uma vida nova poderá começar para nós.
HJALMAR (estupefato)
EKDAL
Eu? Eu não!
HJALMAR
HJALMAR (entrando)
GREGERS
Estendida no chão!
(Reúne se a Hjalmar.)
Hedvig! (Precipita-se no sótão.) Ah! Meu Deus! Ekdal! – Há! Há! Ela se mete a
HJALMAR (transtornado)
A floresta se vinga.
Ela vai voltar a si daqui a pouco. Está voltando a si. Sim, sim, sim.
RELLING
HJALMAR
Socorro!
RELLING
HJALMAR
Relling? Quase que não há sangue. Isso não pode ser perigoso!
RELLING
HJALMAR
GINA
HJALMAR
RELLING
A floresta se vinga. Mas mesmo assim não tenho medo. (Entra no sótão e
HJALMAR
RELLING
HJALMAR
RELLING
HJALMAR (saltando)
RELLING
sótão, e se matou por amor de mim. (Soluçando) Não poder nunca reparar
isso! Não poder nunca dizer lhe...! (Estorce as mãos e grita erguendo a cabeça)
GINA
Não diz esses horrores. Parece que nós não tínhamos o direito de ficar com
ela.
MOLVIK
RELLING
Imbecil!
GINA
HJALMAR
Sim, deixe a pistola com ela. Mas a criança não pode ficar aí, em exposição.
É preciso que ela vá para o quarto dela, na saleta. Vem, Ekdal, vamos levá-la.
GINA
Nós nos ajudaremos um ao outro. Agora, creio que ela é dos dois.
RELLING (baixo)
(Hjalmar e Gina levam o corpo pela porta da cozinha. Molvik eclipsa-se pela
porta do saguão.)
sacudidos)
O tiro queimou a blusa. Ela, com certeza, atirou, apoiando o cano contra o
peito.
GREGERS
Hedvig não morreu em vão. Viu como a dor libertou o que há de sublime nele?
RELLING
GREGERS
Como? Ele não o conservará toda a vida? Não o aumentará dia a dia?
RELLING
Dentro de alguns meses a pequena Hedvig não será para ele mais do que um
GREGERS
RELLING
Tornaremos a tocar neste assunto quando tiver secado a primeira relva sobre
atenção.
Se você tem razão e se estou errado, a vida então não vale a pena ser vivida.
RELLING
Vale sim! A vida teria muita coisa boa, apesar de tudo, se não fossem esses
credores que vêm bater à porta de pobres gentes como nós, para lhes
RELLING
RELLING
(Resumo feito por José Monir Nasser, com excertos traduzidos por Vidal de Oli-
ALUNOS: [Silêncio.]
Conheço um sujeito que foi contar para o sobrinho que havia se separado
da mulher. O sobrinho demonstrou alívio, dizendo que tinha pena do tio
quando o via com aquela mulher. Uma semana depois o tio diz que vol-
tou com a mulher. Desde então ele cumprimenta a mulher do tio só com
um aceno de cabeça [risos]. São situações complicadas. Falando em termos
práticos, não se deve entrar no mérito de brigas entre marido e mulher, de
questões emocionais, pois sempre há muito mais problemas do que você
pensa que tem. Mas nós temos que lidar com esse assunto mais filosofica-
mente, que é o nosso tom aqui.
ALUNA: [Diz que acha que envolve mais uma questão psicológica.]
.
PROF. MONIR: Seguramente também tem aspectos psicopatológicos nisso.
Mas aqui há uma questão de natureza conceitual anterior a essas questões
emocionais. O que se está debatendo aqui nessa peça é o problema da ver-
dade – se ela deve ser dita ou não. O primeiro problema grave de Gregers
é que ele não tem dúvida se deve dizer ou não a verdade para Hjalmar. Em
nenhum momento da história ele pensou assim: “Será que eu deveria con-
Mas, para entender o problema do Gregers, temos que fazer uma compara-
ção com O Tartufo. No caso do Tartufo, também havia quem o denunciasse.
Orgon era o sujeito manipulado por Tartufo, que era um santarrão. A família
inteira de Orgon, com exceção de sua mãe, o avisava que aquilo não estava
certo, que ele estava sendo vítima de uma conspiração. No final das contas,
Tartufo é desmascarado por uma série de circunstâncias e a família acaba
vencendo, destruindo Tartufo. A situação familiar volta à normalidade.
Por que a denúncia é diferente no caso de O Tartufo? O que está sendo de-
nunciado no caso de O Tartufo? O Tartufo, que é uma pessoa. E aqui? A situa-
ALUNO: O Tartufo está fazendo uma brincadeira, não tem muita fé. É só um
interesseiro, meio oportunista. Gregers não é vigarista, ele acredita mesmo
naquilo.
PROF. MONIR: Cuidado, porque Gregers não está no papel do Tartufo – ele
é o denunciante, equivale à família de Orgon. A família de Orgon denuncia
o Tartufo, que é um vigarista, puro e simples, e aqui você tem o Gregers
denunciando uma situação. Qual é a diferença entre essas duas denúncias?
Tem uma diferença enorme entre essas duas denúncias. A família de Orgon
denuncia o Tartufo porque está querendo se defender de uma possível per-
da patrimonial, porque o Tartufo ia levar tudo embora. E aqui? O que Gre-
gers quer? À primeira vista, a justificativa é a de querer restituir o império da
verdade, tirando o pato debaixo da água, que ele irá buscar como o cachor-
ro. A mobilização da família do Orgon é defensiva apenas. Já a mobilização
de Gregers é do tipo kantiano. O certo é o certo e o errado é errado, não ha-
vendo meio termo. Ele tem que restituir a verdade porque é sua obrigação,
ou seja, há o imperativo categórico de se fazer isso. Não é uma motivação
muito diferente?
Mas vocês não desconfiam de uma segunda motivação, bem concreta? Gre-
gers quer se vingar do pai para vingar a mãe. Ele quer destruir o plano que o
pai dele fez. O Sr. Werle montou um plano, que embora tenha sido feito para
resolver um ato errado, não deixava de ter algum valor. É que usamos sem-
pre o raciocínio errado de acharmos que os atos de uma pessoa má têm que
ALUNO: O Werle é o Tartufo que deu certo. Ele roubou o dinheiro da mãe,
prejudicou o sócio, a mulher...
PROF. MONIR: Ele certamente é uma pessoa má. Fez coisas erradas, no en-
tanto tentou consertar as coisas no final. Mas o problema do Gregers é que
ele não está querendo na verdade defender a justiça, ele está querendo ape-
nas vingar a mãe, cuja morte ele atribui à ação do pai.
Esses tipos justiceiros de Ibsen são todos para nos passar a perna, nos en-
ganar – porque não é possível que Ibsen esteja apoiando essa gente – esse
Gregers é um monstro. Justamente porque é um sujeito que tem uma visão
de moral absoluta é que se ele se transforma num Torquemada24, num exe-
cutor de uma política de destruição de todo o mundo que não está dentro
dos seus conceitos morais. É esse sujeito que irá produzir todas as tiranias
revolucionárias na vida, porque ele acha que aquela verdade tem de ser re-
velada a todo o custo, seja qual for o preço. Mas na realidade ele não tem
toda a verdade. Nesse caso aqui, vamos conceder que haja veracidade no
quadro que Gregers está traçando – que, de fato, aquela situação familiar
seja artificial, que estivesse sendo construída em torno de falsidades há
dezesseis anos. Vamos aceitar isso. Mesmo assim, é preciso pensar se você
dor”, foi o inquisidor-geral dos reinos de Castela e Aragão no século XV e confessor da rainha
Isabel a Católica. Torquemada é conhecido por sua campanha contra os judeus e muçulmanos
quisidor é controversa, mas o número mais aceito é 2.200. Disponível em: https://pt.wikipedia.
Aliás, como regra básica do cristianismo, você não tem obrigação ne-
nhuma de resolver as injustiças do mundo. Só tem obrigação de não
fazer nenhuma. Prestem atenção nisso, senão a vida fica impossível.
Gregers faz uma militância em torno da verdade que, no fundo, é uma mili-
tância em favor de suas pequenas doenças emocionais. Qual foi a vantagem
de produzir toda essa confusão? Desestabilizar o que está estável.
PROF. MONIR: Sim, porque o pai estava tentando consertar as coisas erradas
que havia feito, e Gregers tem aquela atitude do moralista extremado, do
militante da verdade, motivado por razões escusas e profundamente im-
plícitas que ele não tem coragem de admitir para si mesmo. Ele não se dá
conta das verdadeiras intenções que tem. As suas motivações são para ele
completamente invisíveis. É um sujeito que está mais doente do que o Hjal-
mar; ele é que é o pato selvagem – mas acaba produzindo o efeito contrá-
rio. Ele não se dá conta do que é de verdade, porque não tem capacidade de
refletir sobre o que faz. Em nenhum momento desta história ele pergunta
assim: “Meu Deus, mas será que eu deveria fazer isso?”
PROF. MONIR: Ele é um grande escritor, esse Ibsen. Ele faz conosco uma es-
pécie de jogo. Fica brincando com a cegueira contra a luz e está nos indu-
zindo o tempo todo a cair na armadilha – porque, na aparência da história,
Gregers é um crítico da sociedade da época que está produzindo, com a sua
atuação corajosa e destemida, uma recuperação da verdade, está destruin-
do a mentira existencial das pessoas. É isso que o leitor desavisado vai achar
que era para entender dessa história.
Ibsen tem essa cara de ser um escritor que faz a crítica social, como no caso
de Nora, a personagem de A Casa de Bonecas, uma mulher tratada como
criança pelo marido. É isso que aparentemente é. Aqui no Brasil fizeram
dezenas de encenações na década de 1970. Qualquer resenhador iria dizer
que se tratava de uma peça feminista – quando na verdade, a Nora, no final
da peça, abandona os filhos e vai embora de casa. Não sei se Ibsen que-
ria torcer pelo feminismo. Parece que não. Nas outras peças da mesma leva
não há nenhuma simpatia pelo feminismo, de modo nenhum. Foi o mundo
moderno, com seus vieses e com suas idiossincrasias, que inventou que a
genialidade de Ibsen está em ser apoiador das teses politicamente corretas
do mundo moderno. Pois a genialidade de Ibsen está justamente no fato
de que ele se pergunta se tem o direito de interferir na mentira existencial
dos outros. Esse é o problema central aqui. Quando você tem consciência
moral, você se faz esta pergunta. Mas o sujeito que está justamente fazendo
o proselitismo da moralidade, da verdade indiscutível, esse sujeito é o pri-
meiro que não tem consciência moral ele mesmo? Gregers podia imaginar
que aquilo não daria certo. Se ele não se perguntou isso, é porque estava
altamente autoiludido.
PROF. MONIR: Isto a gente não sabe, é uma suposição que não está no texto.
Ele só fica sabendo que a Gina era mulher do Hjalmar na noite em que eles
se reencontraram. Ele estava há dezesseis anos curtindo uma grande raiva
porque o pai teria se casado com a mãe por interesse, que teria tido aman-
tes, e que por causa disso tudo a mãe teria morrido. Então ele atribui ao
pai as causas indiretas da morte da mãe. Depois houve o episódio do velho
Ekdal, mas ele não tinha ideia de que o velho tinha estado tão mal. Quando
ele volta, a quantidade de informações que ele tem sobre a situação é muito
pequena ainda. Ele vai obter todas as informações na noite em que a peça
começa. No entanto, a legitimidade de suas intenções é o problema aqui.
Tudo que a gente tem na vida está sempre coberto por uma certa quan-
tidade de ignorância. Por mais que tenhamos acesso à realidade, sempre
teremos acesso limitado. Por exemplo, vocês não podem dizer que horas
são neste relógio porque estou escondendo o visor. A natureza do relógio
é impedir que vocês possam ver ao mesmo tempo o fundo e a frente. Uma
coisa exclui a outra. Tudo que há na estrutura da realidade tem, portanto,
visibilidade desigual. É preciso ter sempre essa percepção para não fazer
como esse sujeito que depois teve que engolir o fato de que o casal voltou.
Você deve tomar um enorme cuidado com essas coisas e a sua própria cons-
ciência moral deve lhe perguntar: “Será que faço ou não?”
Edson Campagnolo
Kleberr Wlader
Pandita Marchioro
Conteudista
Revisão de transcrição
Patrícia Nasser
Paulo Briguet
Capa e Diagramação
Ilustração Capa
Coordenação Geral
Assistente de Produção
Gilmar Lima
Assessoria de Imprensa
Rafaela Tasca
Ministério da Cultura
Gerência de Cultura
Anna Paula Zétola
Conteudista
José Monir Nasser
ISBN: 978-85-5583-035-8
1. Literatura – História e crítica. 2. Serviço Social da Indústria. I. José
Monir Nasser.
CDU 82
A reprodução total ou parcial desta publicação por quaisquer meios seja eletrônico, mecâ-
nico, fotocópia, de gravação ou outros, somente será permitida com prévia autorização, por
escrito, do SESI.
O Processo Maurizius
Comentários sobre
o Sermão da Montanha
Escrever o Prefácio de Expedições pelo Mundo da Cultura não é somente escrever
uma página para iniciar o livro e instigar sua leitura. É escrever sobre uma viagem
por mundos a serem descobertos a cada volume, em cada história que se apresenta
página após página, personagem a personagem, cenário após cenário. É escrever
sobre uma viagem que permite nos transportarmos de espaços inusitados para o ra-
cional e o imaginário; que nos dá oportunidade de sair do lugar comum para lugares
consagrados da literatura clássica.
Certa vez, meu amigo Monir Nasser disse, durante o encontro que discutia a novela
A Morte de Ivan Ilitch, que não adianta olhar para a morte a partir da vida, mas a
única solução é olhar para a vida a partir da morte; não há outro jeito de orientarmos
a vida.
Ao longo dessa caminhada pude conhecê-lo cada vez mais, tanto suas origens como
sua obra. Seu brilhantismo era lastreado por uma formação clássica herdada. O pai,
médico, cursara especialização em Paris como bolsista da Aliança Francesa, dirigida
em Curitiba pelo casal Garfunkel; a mãe, secretária da Aliança Francesa até casar-se.
O berço familiar transpirava atmosfera cultural. Quando o pai ia para o consultório
à tarde, levava junto o filho adolescente para ficar na Biblioteca Pública do Paraná,
na quadra vizinha, até o final de sua jornada. ‘Lia de tudo’, dizia; Roberto Campos o
influenciaria com seu estilo polêmico e afiado. Frequentou também a Escolinha de
Arte, da própria Biblioteca Pública. O José Monir falava e escrevia fluentemente fran-
cês, inglês e alemão; na juventude participou de programas de intercâmbio escolar
nesses três países; ainda jovem chegou a morar por mais de um ano na Alemanha,
vindo a trabalhar como operário numa fábrica, experiência marcante à qual se refe-
ria com frequência. Até o final do 2º Grau teve apenas formação clássica, isto é, de
humanidades, sem direcionamento profissional, voltada apenas para o desenvolvi-
mento da capacidade de expressão do espírito humano. Sua primeira faculdade foi
em Letras, mas já no final desta resolveu cursar Economia, provavelmente em de-
corrência do clima político do país no final dos anos setenta. Discorria com domínio
sobre os mais variados assuntos, indo de arte a filosofia, religião, ciência, literatura,
economia e outros tantos. Teve forte influência de Virgílio Balestro, hoje com mais
de 80 anos, Irmão Marista professor do colégio em que estudou; com ele tinha au-
las particulares de latim e grego. Amadureceu profissionalmente entre seus vinte
e cinco e trinta anos, sob a influência marcante de Rubens Portugal, nosso diretor
e grande mentor. Mesmo tendo contato com gestão empresarial só nesta idade, o
José Monir superou pelo caminho muitos que tinham se iniciado mais cedo.
Interagia com todos os segmentos sociais, frequentando as mais diversas ‘tribos’ civi-
lizadas. Gostava de merecer o prêmio e a vantagem, em vez de dar-se bem às custas
alheias. Sua nobreza de caráter dispensava as competições predatórias; perder para
ele era reconhecido como ganho até pelos adversários; nunca o vi tripudiar sobre
alguém. Era dono de uma verve humorística ímpar: à sua volta sempre predomina-
vam as satíricas risadas de um ‘fair play’. Sabia portar-se com franqueza lhana; para
ele a verdade podia ser dita sem precisar ferir. Era um ‘curitibano da gema’; ainda
não consegui encontrar alguém que superasse sua capacidade de entender a ‘alma
curitibana’. Dizia que em Curitiba não é bem assim para namorar uma moça de fa-
mília: ‘antes de pegar na mão, você tem que se apresentar, dar provas, frequentar e
... esperar ser convidado; ser ‘entrão’ pega mal; somos uma sociedade da serra, não
da praia’. Sempre aproveitava as oportunidades de aprender quando reconhecia nas
pessoas capacidades e experiências extraordinárias; hauriu muito da convivência
com Rubens Portugal, com Professor Tsukamoto (de São Paulo) e Arthur Pereira e
Oliveira Filho (do Rio).
Sua trajetória profissional foi intensa, árdua e cheia de iniciativas inovadoras, sempre
trabalhando por conta própria. Nos anos noventa tornou-se um famoso consultor
empresarial junto a grandes clientes do circuito São Paulo-Rio-Brasília. Teve um es-
critório de consultoria em Curitiba, AVIA Internacional, que editava uma ‘letter’, lide-
rava um Programa de Análise Setorial (Papel/Celulose, Seguros, Bancos), desenvolvia
projetos sobre as experiências internacionais de Jacksonville e Mondragon, dentre
outros projetos. Nesse período dedicou-se à pintura com atelier próprio; frequenta-
va aulas particulares e convivia no meio artístico local.
Desencantado com a inércia brasileira por ideias inovadoras, no início do novo mi-
lênio passou a dedicar-se ao projeto do Instituto Paraná Desenvolvimento (IPD), um
centro de pensamento sob a liderança de Karlos Rischbieter. Nesse período partici-
pou com Olavo de Carvalho do Programa de Educação (Filosofia), patrocinado pelo
IPD. Em 2002 fundou a Tríade Editora e escreveu os livros ‘A Economia do Mais’ sobre
‘clusters’, e o ‘O Brasil Que Deu Certo’, com o empresário Gilberto J. Zancopé, sobre a
história da soja brasileira. Chegou a ter um programa de televisão em que corajosa-
mente discutia temas quentes de forma crítica.
No final da primeira década dos anos 2000 imprimiu novo rumo a seu projeto pro-
fissional, lançando ‘Expedições ao Mundo da Cultura’. Consistia numa engenhosa
adaptação ao Brasil do trabalho do norte-americano Mortimer Adler, a leitura de
cem obras clássicas básicas como programa de formação de um cidadão culto. ‘Nada
do que eu fiz na vida me deu tanto prazer quanto este trabalho’, dizia. Em menos de
um ano tinha grupos em Curitiba, São Paulo e algumas cidades do Paraná. Sua gran-
de inovação foi fazer um resumo de cada obra, com vinte páginas em média, para
contornar a dificuldade dos brasileiros em ler um livro a cada quinze dias. Os encon-
tros eram concorridos, animados e muito proveitosos no despertar os participantes
para a dimensão cultural. Até que um AVC o abateu.
José Monir Nasser costumava dizer que nós não explicamos os clássicos; eles é que
nos explicam. Da mesma forma, podemos afirmar que qualquer tentativa de explicar
o trabalho do professor Monir resultará em fracasso, pois toda explicação possível
advém do próprio trabalho. É preciso dizer de uma vez por todas: ele é o professor e
nós somos os alunos.
Aristóteles discordou de seu mestre Platão em muitas coisas, mas certa vez decla-
rou: “Platão é tão grande que o homem mau não tem sequer o direito de elogiá-lo”.
Quem somos nós para elogiar ou explicar o mestre Monir? Ninguém. No entanto,
tentaremos fazê-lo, do modo mais sucinto possível, para não tomar o tempo precio-
so do leitor.
Os textos reunidos nesta série são transcrições de aulas de José Monir Nasser sobre
clássicos da literatura universal, dentro do programa Expedições pelo Mundo da Cul-
tura, que funcionou entre 2006 e 2010. O objetivo era trazer para o conhecimento
do público os temas que ocupavam o espírito dos grandes autores. São nomes e
histórias que muitas vezes estão presentes na vida e na linguagem cotidiana – vide
os adjetivos homérico, dantesco, quixotesco, kafkiano –, mas que em geral ficam
adormecidos na poeira das estantes. A missão de Monir era trazer esses enredos e
personagens clássicos para a luz do dia.
O foco das palestras de Monir não era a crítica literária ou a análise estilística, mas
sim a discussão do conteúdo. Ele possuía uma verdadeira e sagrada obsessão por
esclarecer mesmo as passagens mais difíceis das obras discutidas. Seu lema, repeti-
do diversas vezes, era: “É proibido não entender!” Todos ficavam à vontade para in-
terromper sua fala com perguntas, reflexões, ponderações, comentários. O objetivo
não era transformar os alunos em eruditos, mas dar acesso a um conhecimento va-
lioso, universal e atemporal, que pode fazer toda diferença na vida das pessoas. E fez.
Monir pretendia fazer a leitura de 100 livros clássicos da literatura universal. Não foi
possível: ele discutiu “apenas” 92. A lista inicial dos clássicos partiu da obra Como ler
um livro, de Mortimer Adler e Charles Van Doren, sendo aperfeiçoada ao longo do
tempo. Na presente seleção há dez obras: Gênesis e Jó (textos bíblicos), Fédon (de
Platão), Os Lusíadas (de Camões), O Mercador de Veneza (de Shakespeare), O Inspe-
tor Geral (de Gógol), A Morte de Ivan Ilitch (de Tolstói), Moby Dick (de Melville), O
Senhor dos Anéis (de Tolkien) e Admirável Mundo Novo (de A. Huxley).
A ideia de trabalhar com os clássicos já havia sido colocada em prática por Monir e
o filósofo Olavo de Carvalho, em um curso que ambos ministraram na Associação
Comercial de Curitiba, patrocinado pelo IPD (Instituto Paraná de Desenvolvimento).
O programa Expedições pelo Mundo da Cultura nasceu em 2006 e já no primeiro
ano passou a contar com a parceria do SESI. De Curitiba, onde foram realizadas as
primeiras aulas, o programa foi estendido a outras cidades paranaenses: Paranavaí,
Londrina, Maringá, Toledo e Ponta Grossa. O programa também foi realizado em São
Paulo a partir de 2007, desvinculado do SESI.
Em todas essas cidades, Monir fez alunos e amigos. Porque era quase impossível ou-
vi-lo sem considerar a sua maestria e o seu amor ao próximo. Os encontros duravam
cerca de quatro horas, com um intervalo para café. Monir começava as palestras com
uma apresentação genérica sobre o autor e a obra. Em seguida, havia a leitura de um
resumo do livro, entremeado por observações de Monir. Esses comentários forma-
vam um rio de ouro que conduzia o aluno pelas maravilhas da literatura universal.
As quatro horas passavam com uma rapidez quase milagrosa – e você tem em mãos
a oportunidade de comprovar essa afirmação.
Não bastassem a fluidez e a sutileza de suas observações, José Monir Nasser tinha a
capacidade de enriquecê-las com um fino senso de humor, livre de qualquer pedan-
tismo ou arrogância. Ao final das aulas, nota-se um inusitado clima de emoção entre
os presentes. Algumas vezes, ao concluir seus pensamentos sobre a mensagem dos
clássicos, Monir chegava às lágrimas, como testemunharam alguns de seus alunos
e amigos.
Em cada cidade por onde Monir levou os clássicos, espalhou também as sementes
do conhecimento, da cultura e dos valores eternos. Ele era um autêntico líder de
primeira casta, um homem cujo sentido da vida era fazer o bem e elevar o espírito
de seus semelhantes. Muito mais do que explicá-lo, cumpre agora ouvir a sua voz –
nas páginas que se seguem. Jamais encontrei o professor Monir pessoalmente; mas,
após ouvir as gravações e ler as transcrições de suas aulas, posso considerar-me, tal-
vez, um aluno, um amigo, um leitor. Conheça você também o mestre Monir.
Este segundo box com palestras do professor Monir é apenas mais uma parte do
imenso legado que ele deixou ao Brasil: uma enciclopédia educacional em que os
clássicos da literatura são as bússolas que nos orientam no mar tenebroso da vida
contemporânea. Nas palestras de Monir, a cultura não é sinônimo de belles-lettres
ou pedantismo literário, mas uma força viva que nos orienta como indivíduos e per-
mite a cada um ordenar a sua própria alma. Os dez livros aqui comentados não são
vistos como meros registros históricos ou modelos estilísticos; constituem, muito
mais do que isso, um “conjunto de intuições, formas e símbolos portadores de verda-
de e valores universais”, para usar as palavras de um grande amigo e incentivador de
Monir, o filósofo Olavo de Carvalho.
Os cinco volumes que você tem em mãos, caro leitor, são portais de sabedoria capa-
zes de ampliar o horizonte intelectual de qualquer pessoa sinceramente interessada
em fazê-lo. Ao promover um diálogo supratemporal com os gigantes da literatura,
José Monir Nasser estende as possibilidades do futuro e enche os nossos corações
de esperança pela felicidade definida por Aristóteles: a contemplação da verdade.
Que este novo volume de sua admirável obra seja mais um passo rumo à consolação
última imaginada por Boécio na prisão: a eternidade — “posse inteira e perfeita de
uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal”.
Reencontrar Monir é reencontrar a nós mesmos.
Ele é judeu, desses que têm no judaísmo um problema. Há judeus para quem
o judaísmo não é tão complicado, mas para este era. Não viveu muito – viveu
antes do início da II Guerra Mundial, antes do afloramento total do nazismo
– embora tenha já sofrido consequências, muito pequenas ainda, porque
ele afinal morre em 1934. Hitler sobe ao poder em 1933, quando começa
o nazismo tecnicamente falando. Ele já havia feito antes uma tentativa
de golpe numa cervejaria em Munique. Não deu certo porque foi numa
cervejaria; ninguém o levou muito a sério. Quando Hitler torna-se Kanzler
Lord Keynes, que não era um sujeito muito inteligente, mas tinha lá seus
bons momentos, escreveu um livro após o final da I Guerra dizendo que
dentro do Tratado de Versalhes, que estabeleceu as condições de rendição
da Alemanha, estava a garantia da próxima guerra. No que ele tinha total
e completa razão. Fizeram um conjunto de ações tão draconianas que a
Alemanha tornou-se uma economia inflacionadíssima, como aqui não se
viu. Nós tivemos uma inflação muito alta, mas como aqui havia a correção
monetária, havia instrumentos de convívio com ela; então nós não sentimos
nem de longe o que era a situação alemã, em que um sujeito vendia um
piano de manhã pra comprar um pão à noite com o dinheiro que tinha
2 Nota do Professor Monir: Chanceler é o nome que damos no Brasil para o Ministro das
Eric Voegelin, um dos maiores cientistas políticos do século XX, diz que se
você quiser entender o que aconteceu na Europa na preparação da II Guerra
Mundial, não é para ler os historiadores. Leia esses grandes romancistas de
língua alemã – alemães ou austríacos, basicamente (e Kafka, embora este seja
tcheco e muito particular) – como Thomas Mann, Hermann Broch, Heimito
von Doderer, Alfred Döblin; nomes que não estamos acostumados a ouvir
por causa da nossa falta de cultura. Todo o mundo conhece Alfred Döblin
por causa do livro e depois filme Berlin Alexanderplatz, que é uma prévia
do Ulisses do James Joyce, embora Döblin não tenha ficado tão famoso
quanto foi o Joyce. É um sujeito genial, escritor de primeiríssima qualidade.
Aí vocês têm também Heimito von Doderer, austríaco, que escreveu um
livro famosíssimo chamado Os Demônios. E Robert Musil, austríaco também,
escreveu O Homem sem Qualidades, outro livro maravilhoso. A somatória
desses livros é que explica de fato o que aconteceu no mundo no início
do século XX, na Europa. É muito difícil entender o que aconteceu lá sem
essa referência literária. Por mais que pareça estranho dizer isso a vocês,
não houve ainda competência de historiografia à altura do que esses livros
representam.
anos.
Simplicissimus.
1901 – Casa‑se com Julie Speyer, uma judia excêntrica nascida numa rica
família vienense.
1908 – Publica Caspar Hauser oder Drei Trägheit des Herzens, base de um filme
1921 – Publica Mein Weg als Deutscher und Jude (Minha Vida como Alemão e
1933 - Com a subida de Hitler à chancelaria, começa o III Reich, que duraria
Alemanha.
O conjunto desses três livros dá uma ideia de como foi que o povo mais
educado do mundo, o povo mais extraordinariamente sofisticado do mundo,
que é o povo alemão, foi capaz de fazer aquela barbaridade chamada
nazismo. É uma coisa tão extraordinária que isso tenha acontecido na
Alemanha... Como foi que o povo que fez metade da filosofia, que escreveu
95% da música erudita, que fez contribuições civilizatórias tão grandes
pôde cair numa coisa dessas? Agora – há pouquíssimo tempo, porque tudo
isso aconteceu ontem, de uma perspectiva cronológica mais ampla – só se
compreende isso através de enormes contribuições não especulativas, não
Resumo da Narrativa
Franz Kafka (que era tcheco, mas só escreveu em alemão), Robert Musil, Heimito
entender a Europa entre as duas guerras não deveria procurar analistas políticos
ano de 1924.
PROF. MONIR: O assunto é grande, mas foi Schiller que disse a Goethe para
deixar de frescura e lançar Fausto de uma vez. Ele demorou setenta anos para
fazer os dois Faustos. Como artista, diz Otto Maria Carpeaux que o maior
dramaturgo alemão de todos os tempos chama-se Heinrich von Kleist, que
escreveu A Marquesa D’O e Michael Kolhaas, a sua grande obra.
Goethe só escreveu duas grandes peças de teatro (as outras são medianas),
que é Fausto. Fausto é tão grande, tão grande, tão grande que obscurece
todas as outras obras. A grande obra de Schiller é Guilherme Tell – que
antigamente se lia o tempo todo, e hoje ninguém mais dá atenção – e
Maria Stuart. Eu diria que o peso específico maior é o de Goethe, por causa
do Fausto. Aí você tem obviamente gênios, e gênios, e gênios. Há gente
maravilhosa.
Para evitar um escândalo, usa seus poderes de jurista para fazer um acordo
com a mulher que desaparece, vai morar na Suíça, some de vista, e abdica
de qualquer espécie de poder maternal sobre o menino. Faz o amante
assinar um documento que na verdade era um falso testemunho, e por
causa disso o sujeito queima tudo e se suicida. E aí quando a gente passa
a conhecer esta história o juiz Andergast, que agora é procurador geral –
está no momento mais alto da sua carreira – vive numa casa com seu filho
Etzel de dezesseis anos, que nasceu dois anos depois dos acontecimentos
ligados ao Caso Maurizius. E tem lá a governanta Rie, que cuida do menino
e de Wolf Andergast. O juiz leva uma vida completamente metódica, cheia
de regramentos: sai de manhã, vai para o tribunal, trabalha o dia inteiro,
volta para casa à noite. Todos os dias à noite ele conversa duas horas com o
filho. O filho vai para a escola. Essa conversa à noite não é amistosa, é uma
conversa do tipo:
Capítulo I
mais situar. Quanto mistério em uma carta fechada! Aquela trazia, em letra
Wolf de Andergast. “Rie, que poderá conter esta carta?” indagou, dirigindo‑se
Havia nove anos e meio que o barão de Andergast, pai de Etzel Andergast, se
divorciara da mulher que, desde então, mudara‑se para a Suíça, sem direito de
ver ou escrever ao filho: “Desse modo, aos dezesseis anos, o rapaz nada sabia da
mãe”.
única coisa que lhe haviam dito, incidentemente, e fazia já há muito tempo,
Genebra e que, por razões que saberia quando fosse homem, não podia vir
visitá‑lo. (pág. 7)
Etzel interroga a empregada sobre a frequência das cartas de sua mãe, Sofia
Rie havia assumido o rapaz como seu próprio filho: “Este erro constituía a sua
felicidade”.
II
Etzel familiarizara com esta noção de distância, embora sua natureza, inversa à do
pai, o levasse a se aproximar dos outros, tendência aliás que a sua miopia parecia
acentuar exteriormente”.
III
agitado, de opiniões radicais”. Entre eles havia relações fundadas “sobre o princípio
durou até o dia em que, entre os autos do pai, Etzel pôs a mão no documento
IV
seco”, com alguma coisa como setenta anos, de “aspecto vigoroso”. Etzel o vira
pela primeira vez na ponte inferior do Meno3, logo após o rapaz, distraído, quase
desta vez, foi capaz de distinguir “o pardo amarelado dos olhos e mesmo os botões
PROF. MONIR: Etzel não tem a menor ideia de quem seja Maurizius, embora
o pai dele saiba quem é. Esse Maurizius aí está associado ao tal do processo
em torno do qual foi feita a carreira de Wolf Andergast.
quando mais não fosse pelo olhar inquiridor com que examinou o rapaz
desde o primeiro encontro, pela obstinação com que o seguiu passo a passo,
(...)
Tudo isso não durou mais de um minuto e meio, mas Etzel tem agora a certeza
de que seu pai, também ele, conhece o homem de gorro de marítimo e não
foi naquela escada que o viu pela primeira vez. Adivinha tudo pela expressão
do pai, pelo sinal de mau humor, pelo movimento das costas e pela maneira
como desce agora a escada, degrau por degrau, enquanto Maurizius, ainda
de pé, contra a parede, tem os olhos fixos na penumbra da escada. (págs. 16-
17)
VI
“Etzel acertara. O barão Andergast vira muitas vezes o velho surgir em sua frente com
PROF. MONIR: A cidade tem uns 200 mil habitantes, segundo informações
do próprio livro. Dá para imaginar que Frankfurt, em 1924, tivesse 200 mil
habitantes; parece razoável.
Capítulo II
à imagem da carta selada da Suíça, cuja letra lhe falava uma linguagem familiar.”
PROF. MONIR: Na verdade não há nenhuma ligação entre essas duas coisas,
mas o menino que não sabe onde anda a mãe, que tem com relação à mãe
os maiores mistérios, acha que esses dois mistérios estão associados.
um fato que precisamos estabelecer antes de mais nada. Etzel sabia o que
exatamente onde tinha o nariz: a prova disso é que, à uma hora e quinze,
PROF. MONIR: O que o autor está nos contando é que Etzel Andergast não
é um menino romântico, com uma atitude emocional pura e simples; não
é um menino movimentado apenas pelas suas emoções. Etzel tinha uma
atitude racional permanente com relação às coisas. Olhem, pessoal, como
isso é interessante: não é possível explicar a juventude hitlerista apenas
pelos critérios emocionais. Não estou dizendo que Etzel fundou a juventude
hitlerista. Mas o autor aqui faz questão de nos dizer que em Etzel Andergast
há alguma racionalidade, uma ligação com o raciocínio. Não é apenas de um
jovem romântico que nós estamos falando aqui.
II
não tinha vida social e não gostava de aparecer em público. “Não tinha a menor
necessidade de estar com os outros”. Uma vez por mês ia ver sua mãe, a generala4,
“entrava no plano de sua vida do mesmo modo como o estudo dos autos”.
PROF. MONIR: Eu não sei se isso não é um pouco de ironia do autor, o autor
querendo deixar ambíguo se o barão achava que isso era importante
para a educação do menino, ou se era uma obrigação que ele cumpria
mecanicamente como todas as outras, como homem absolutamente
disciplinado que era.
ALUNOS: [risos]
relógio de ouro, ‘mas abusa de fintas e rodeios com os quais é preciso tomar
porque seguramente não era aquele elogio que julgava haver merecido. (pág.
22)
Todas as noites, às nove e meia, quando Etzel deixava o escritório do seu pai,
fato de o rapaz o ver “como uma torre inacessível, sem portas nem janelas, que se
ergue bem alto, poderosa, e que, da base ao topo, guarda inúmeros segredos”.
PROF. MONIR: Uma coisa dessas devia ser comum entre pais e filhos, mesmo
aqui.
III
havia comentado com o procurador o fato inusitado de o rapaz andar por ali
filho, mas a conversa daquela noite versava sobre o assunto da noite anterior,
PROF. MONIR: Vocês não acham que um menino de dezesseis anos, entrar no
mérito de um julgamento político... O barão ficou meio escandalizado com a
audácia do menino. Com dezesseis anos você não sabe quase nada da vida. É
muito difícil achar alguém maduro com essa idade. Um menino de dezesseis
anos que tem opiniões muito fortes sobre assuntos que estão muito,
muito além da sua compreensão... parece um pouco fora de propósito. Os
meninos de hoje têm opiniões aos dezesseis anos porque foram ensinados
pela “Escolinha Walita”5 que ser um bom aluno é ter pensamento crítico.
com o objetivo de se introduzir no mercado consumidor brasileiro – que até então desconhecia
a utilidade dos eletrodomésticos – bolou uma estratégia para difundir os benefícios e ensinar
os comprava – em geral as donas de casa. Desta forma, a Escolinha Walita era utilizada para
PROF. MONIR: Isso em alemão chama-se “recht ist recht” (“o certo é certo”).
O barão, que tem uma visão absolutista do direito – de que o direito é
absoluto e não relativo, acha que não é para contaminá-lo com questões
de natureza sentimental. De certo modo ele tem razão; basta você colocar
sentimentalismo na história que já não tem mais direito nenhum. Quando
acontece um assassinato muito chocante, no dia seguinte todos os
apresentadores de televisão ficam perguntando como um advogado tem
coragem de defender tal monstro. Ora, se não houver a defesa do maior
monstro que seja, acabou o Direito. Alguém tem que ir lá defender, mesmo
que o sujeito não esteja muito feliz em fazer isso. A existência da justiça
velharia-escolinha-walita.htm)
IV
Naquela noite, deixando o gabinete, como sempre, às nove e meia, Etzel vira‑se
e pergunta: “Quem é esse Maurizius, meu pai?” Antes disso, interrogara Rie sem
sucesso. O barão diz não se tratar de assunto de que podem falar um com
o outro. Etzel resolve escrever uma carta para sua mãe em que se queixa de,
Talvez que, uma vez desfeitos os laços, se esteja para sempre subjugado e
paralisado. É isso, sem dúvida, o que eles querem. É indispensável que se seja
fazer para que nos possamos encontrar? Farei o que quiser, mas é preciso
guardar segredo. Você deve compreender por quê. Ele sempre sabe de tudo. É
imprescindível que esta carta permaneça secreta. Ficarei adulto com o tempo,
me compreende, não? Sinto que foram injustos para com você. É verdade?
de injustiças que chegam todos os dias aos nossos ouvidos. É necessário que
O rapaz dá‑se conta de que não tem nem mesmo o endereço para enviar a carta
à Suíça e, além disso, teme o pai: “Criança, imaginava o pai residindo no centro do
recebido duas cartas: “Melchior Ghisels era um deus para Etzel. Cada frase dos
seus livros constituía uma revelação. Somente os jovens de dezessseis anos podem
ressentir uma tal veneração por um autor. E unicamente um espírito cujo ardor ainda
noite, antes de dormir, Etzel pegou um dos livros dos Ghisels para ler.
fizera grandes viagens. Ocupava‑se com a pintura. “Não se entendia com o filho,
procurador geral. A seu ver, ele era muito autoritário e a fazia lembrar‑se do marido
morto...” “A mãe não lhe perdoava a dureza com que condenara a mulher ao exílio”.
“Etzel achava a vó encantadora. Sozinha, continha mais mistérios que a maior parte
PROF. MONIR: A avó Cecília passava o dia inteiro pintando na sua propriedade
numa cidadezinha ao lado de Frankfurt, e era o contrário de seu filho – o que
o filho tinha de rígido, ela tinha de complacente, flexível.
VI
Etzel almoça com a avó. Pergunta‑lhe sobre o nome Maurizius. A avó fica
33)
A velha senhora não quer retomar uma história que, segundo ela, havia
avó começa a recuperar a memória do crime, enfatizando que havia sido “um
falou nisso.” Embora condenado, Maurizius havia afirmado sua inocência até o
fim. Embora jovem, então com vinte e seis anos, Maurizius “possuía posição social
naturalmente não retive um só fato. Sei apenas que ele teve tudo contra si,
mérito do seu pai foi, ainda me lembro, estabelecer e fazer sobressair esse
Capítulo 3
tem ele? Você sabe?” Raff pede a Thielemann que investigue Etzel Andergast.
PROF. MONIR: Alguma coisa está acontecendo com este menino, porque o
professor também notou que ele está mudando o seu comportamento. O
professor pediu que um colega de Etzel fizesse uma investigação.
II
por Pedro Paulo Maurizius em favor de seu filho Oto Leonardo Maurizius, há
uma das gavetas. Etzel distrai Rie pedindo‑lhe que lhe faça sonhos recheados e
PROF. MONIR: A Rie ficou lá três horas fazendo os sonhos, enquanto isso ele
ficou três horas bisbilhotando os documentos do pai.
Em dois lugares consta o nome de Gregório Waremme, que parecia ter sido uma
III
Nos feriados de Páscoa que se seguem, Etzel disfarça seu verdadeiro estado de
espírito, dando a impressão que estava de bom humor e alegre: “Como supor
que escondesse intenções tão opostas às do rapaz gentil, do filho modelo que
hipocritamente representava?”
Por enquanto, porém, tudo ainda estava em germe. Talvez mesmo o rapaz
não soubesse muita coisa do que com ele se passava. É isso que eu acabo
(...)
aproximadamente, seis mil seiscentos e trinta dias. Atenção: seis mil seiscentos
e trinta dias e seis mil seiscentas e trinta noites porque, é preciso distinguir, os
PROF. MONIR: Que tempo é esse? O tempo em que Leonardo Maurizius está
preso.
(págs. 43-44)
amigo Robert Thielemann, cujos pais, como sempre, estavam brigados e ele,
viesse precisamente naquele dia!” Etzel diz ao amigo que não gostava de falar
Expõe a Roberto a situação de sua mãe, dizendo não poder obter nada de Rie,
de sua avó ou de seu pai: “... meu pai deve estar envolvido nisso”. Etzel diz estar
desta conspiração ou no centro desta aliança, pouco importa, está meu pai”.
PROF. MONIR: Descartes era uma espécie de santarrão, era coroinha. Era
um sujeito absolutamente crente, no sentido católico da palavra, temente a
Deus. Só que ele produz uma filosofia que logo de início destrói a existência
do espírito como mediador da realidade. Portanto ele faz uma coisa incrível:
apesar de ser um sujeito de confissão católica, muito rigoroso, ele faz uma
filosofia tão absolutamente laica, tão materialista, que é um dos pináculos
de sustentação da filosofia contemporânea, completamente material. É
uma das contradições mais interessantes que há – assunto para psicanalista
tentar descobrir: como se produz uma contradição desse tamanho entre a
carolice verdadeira e sua absoluta materialidade filosófica.
espírito de pesquisa. As coisas sucedem assim e ele quer que sucedam assim.
Etzel sente tudo isso como uma injustiça. Pergunta a si mesmo se deve
Etzel pergunta a Thielemann o que deve fazer. Se deve deixar o seu pai conduzir
a sua vida ou firmar‑se “sobre os seus dois pés e fazer... o que é preciso fazer”.
Thielemann começa a ponderar, mas Etzel pensa consigo mesmo: “Desde que
alguém me diz ‘mas’, não me serve mais” e distrai‑se desenhando um cavalo com
chifres de veado.
ao dar‑lhes de comer.
Deixando a casa do amigo humilhado, Etzel decide: “Tudo isso não serve de nada,
não conseguirei paz enquanto não for encontrar aquele velho lá, em Hanau”.
6 Nota da revisora de transcrição - Truman fez um trocadilho com esta expressão idiomática,
cuja tradução é “Por um lado..., por outro lado...”. No entanto, a palavra “hand” também pode
ser traduzida literalmente por “mão”, e neste caso a tradução fica assim: “Em uma mão..., na
outra mão...” Nas palavras do Professor José Monir: “Nesse episódio do Truman, a expressão
idiomática inglesa quer dizer que não há nenhuma solução fácil para a economia. Se eu subir a
taxa de juros, por um lado vou reduzir o consumo e a inflação, mas em compensação, por outro
documentos jurídicos,
PROF. MONIR: É quando você soma os dezoito anos e meio que se haviam
passado. Daí temos a data da história – 1924.
“...uma coleção de impressos que diziam respeito ao crime e ao processo de seu filho.”
que ele era muito jovem. “Etzel concordou ser realmente moço, disse sua idade e
vulgaridade.”
VI
Gelnhansen. Em 1904 uma epidemia de tifo lhe havia levado a mulher, a menina
e dois de seus filhos homens. Sobrara‑lhe Leonardo, com vinte anos, que
estudava em Bonn. Leonardo já era o filho predileto do pai e, com a morte dos
Leonardo, com vinte e dois anos, havia se casado com Eli Hensolt (Eli Jahn
quando solteira), viúva de um rico fabricante de papel, sem avisar o pai que o
soube a posteriori “por intermédio de umas poucas linhas lacônicas”. O velho ficou
ofendeu.
PROF. MONIR: Reparem. O pai fez tudo para que o filho desse certo. De todos
os filhos que ele tinha só sobrou esse filho, o Leonardo. Daí o filho casa sem
avisá-lo, sem falar com ele antes... E ele depois só comunica ao pai que tinha
casado com essa Eli. Acho que o incômodo do velho é justificado, há um
pouco de desconsideração.
afetuosa tirania há muito tempo lhe pesava. Depois, sentia vergonha do pai,
das suas maneiras, da sua rudeza, da sua falta de educação. Por esnobismo
burguês, e de boa vontade, lançava discreto véu sobre sua origem. É que
não necessitava mais do velho: sua mulher trouxera um dote de oitenta mil
marcos – fortuna que herdara do marido, não lhe tendo dado nenhum filho.
(pág. 53)
PROF. MONIR: Não é muito dinheiro, não. No entanto, na hora que Leonardo
viu que tinha casado com uma mulher que tinha algum dote, ele deixou
o pai de lado, o que indica que ele via o pai como uma fonte provedora,
apenas. Não tinha pelo pai grandes sentimentos.
físicos à altura de seu filho, segundo seu modo de ver. Mesmo o dote de oitenta
mil marcos lhe parecia pequeno: “Uma miséria, comparado com o valor de
Leonardo, dado seu futuro e o que ele prometia!” Além disso, ela era quinze anos
mais velha.
VII
controle que Eli exercia sobre um marido muito mais jovem, segundo amigos,
parecia fazer bem ao rapaz, um “eterno indeciso, tão fácil de extraviar...” No entanto,
com uma dançarina, com que ele tivera um caso e uma menina, um ano antes
do casamento.
PROF. MONIR: Ele não teve esse caso durante o casamento. Antes do
casamento ele havia tido um caso com uma bailarina e deste caso nasceu
uma menina. E esses fatos só vieram ao conhecimento da Eli depois de eles
casarem.
paternas.
No primeiro momento, Leonardo não contou nada à mulher, mas apenas para a
cunhada, Ana Jahn, que levou a menina de dois anos, Hildegarda Koerner, para
antipática no início porque ela ironizava o controle que sua irmã exercia sobre
ele, como se Leonardo fosse um colegial “sob a vigilância de uma aia severa”. De
fato, por causa deste excessivo controle, “cedo o abismo entre os dois esposos se
PROF. MONIR: “Fora a natureza que o criara”. Isso significa: “Fora a diferença
de idade entre os dois”.
importantes; era muito inteligente para não ver o erro que cometia agindo
assim, mas um instinto mais forte que tudo a forçava a mantê‑lo subjugado
PROF. MONIR: Tem cara de que vai dar certo este casamento? Ela é mais
velha do que ele, não é bonita. Ela usa a diferença de idade e o fato de que
é a dona do dinheiro para controlar o marido. E o marido submete-se e é
VIII
sucesso para apoderar‑se da menina. Certo dia, três anos e meio depois da visita
pós‑núpcias, Leonardo foi despedir‑se do pai “antes de partir para longa viagem”.
Pede‑lhe dinheiro. Com a frieza do pai, ainda magoado, Leonardo parte de mãos
vazias. (O velho, após vender as propriedades, tinha trinta e cinco mil marcos,
PROF. MONIR: Aí vocês veem que oitenta mil marcos não é muito dinheiro. O
velho tinha quase metade do que tinha a mulher do filho.
IX
Aos poucos, com o convívio, o velho Maurizius passou a ver em Etzel “uma
verdadeiro assassino.
morte durante seis semanas. Quando pôde enfim depor, havia sido tratada com
condescendência, como “uma vítima daquele monstro, a virgem pura, imolada por
Waremme.
PROF. MONIR: Sabemos uma porção de coisas agora. Sabemos que a Ana
Jahn ficou doente, que o Leonardo Maurizius, embora negasse a autoria,
nunca disse quem tinha sido o autor do crime e sabemos que a pessoa-
chave, cujo depoimento produziu a sua condenação, é Gregório Waremme.
Capítulo 4
casado em 1913 com o diretor de uma grande fábrica de tijolos “que estava em
Eli, a fortuna de Eli havia passado para ela, mas quando a herdeira havia voltado
Ana Jahn, havia mais de doze anos, chegara em casa dessa mulher numa
lassidão, com uma pequena valise, tal como uma criada desempregada,
solitária, muda, pobre. Não disse de onde vinha, nada contou de sua vida
PROF. MONIR: Depois que acontece o crime, Ana Jahn some. Quando volta
tenta evitar todas as pessoas que havia conhecido antes e, nesse episódio
contado aqui, ela tem um ataque epilético quando alguém menciona
Leonardo Maurizius e a possibilidade de o crime não estar esclarecido.
O que vocês acham disso? Podemos concluir que Ana Jahn tem algum
envolvimento nesse mistério do crime? É possível.
Mais tarde, já refeita, teria se casado com um alsaciano, com quem viveria
II
III
mas sem achar meio de fazer a pergunta, acaba conversando sobre os últimos
para o filho.
Waremme havia sido visto com Ana Jahn em Deauville, em 1908. Dele, o velho
diz que “só o diabo sabe o que é preciso fazer para poder retratá‑lo”, mas dá um
quadro aproximado.
a Universidade no bolso. Quem era ele? Pouco importa fosse ele um filósofo
9 Nota do resumidor – Há vários ocultistas com este mesmo quadro de mistério, como
ALUNO: E Rasputin?
PROF. MONIR: Rasputin não era dessa turma, era somente um curandeiro.
Ele não tinha adeptos; era um monge que tinha poderes de cura com as
mãos e cuidava do filho hemofílico dos Romanov. Não fazia proselitismo.
Esses quatro fundaram organizações – até hoje há adeptos do Conde de
Saint-Germain, de Cagliostro e da Blavatski. O que é esse Instituto Nova
Acrópole, que tem no mundo inteiro? É uma instituição teosófica fantasiada
de escola de filosofia, para vocês verem como isso é forte e poderoso.
Luís XV usufruiu desse ambiente criado pelo seu antecessor. Luís XVI é quem
pagará todo o preço do fausto e da riqueza dos governos anteriores. Luís XVI
tem um filho – Luís XVII, o Delfim, que desaparece na Revolução Francesa;
tiram-no da mãe. A versão mais leve conta que o menino foi posto numa
sala escura e deixado lá meses, e meses, e meses. Depois foi levado para o
sol e cegado pela agressividade da luz. Luis XVII desapareceu. Mais tarde
apareceram inúmeros candidatos a Luís XVII, como no caso de Anastásia,
a filha perdida dos Romanov. Quando há a Restauração na França, sobe ao
poder Luís XVIII, o irmão mais novo de Luís XVI, que reinará por uns quinze
anos e será substituído por Carlos X, que também era irmão, porém não
tinha o nome da sequência. Com a destituição de Carlos X, em 1830, a
dinastia Bourbon chega ao final. Continuamos?
caso de suicídio de sua noiva, Lili Quaestor: “Um belo dia a moça se matou sem
que ninguém soubesse por quê”. Pressionado, o velho Maurizius acaba contando
a Etzel, sob promessa de sigilo, que Waremme estava em Berlim, vivendo sob
nome falso de George Warschauer, coisa que descobrira por meio de um detetive
astuto. Waremme havia também morado em Chicago entre 1910 e 1921 e fora
daí que a pista havia sido seguida. Em Berlim, Waremme (ou Warschauer) vivia de
dar aulas de inglês, morando na esquina da rua Usedom com a Jasmund, num
terceiro andar na casa de cômodos de Madame Bobike, cujas filhas ele ensinava
pelo valor do aluguel. O velho Maurizius havia ido vê‑lo, mas desistiu de lhe falar
na última hora: “Como entrar no assunto? Por onde começar? E se ele me atirasse
pela escada?”
fato de Rie lhe contar que sua mãe estava agora morando em Paris não o retirou
daquele transe.
Etzel vai se aconselhar com o doutor Camilo Raff, professor carismático que
mantinha um pequeno grupo de estudantes sob sua orientação. Certa vez Etzel
tudo”. Ficou muito surpreendido, porque lhe pareceu estar ouvindo seu pai.
PROF. MONIR: O seu pai, que está o tempo todo discursando contra os
sentimentos. E Etzel está horrorizado por achar que o professor Camilo Raff
pensa que isso é o que pensa Etzel. O professor acha que ele é um menino
sentimental, mas Etzel se tem em conta de um sujeito racional e objetivo, e
não é nada disso.
Mas, que se passara com ele? Não era coisa cômoda sondá‑lo. Era astucioso
e reservado. Camilo Raff não o quer assustar e avança tateando como sobre
diz Etzel, ‘é preciso tomar posição, deliberar, pesar. Ao agir, é pela inteligência
(pág. 79)
PROF. MONIR: O professor ouve ele falar assim e diz que está entendendo,
achando que o menino obviamente está dizendo tudo ao contrário do que
ele é. O menino tem um discurso de racionalidade, de objetividade, mas no
fundo é apenas um sentimental. É isso que o professor está querendo dizer.
79)
de consciência moral são “insondáveis poços de minas”. Raff dá‑se conta de que a
PROF. MONIR: “Ostenta a bandeira”, quer dizer, aparenta viver pelo cérebro.
“E, sem dúvida, foi por isso que Etzel ultimamente se melindrou tanto comigo ao ver
PROF. MONIR: Ele acha que entendeu agora porque é que Etzel está mudado.
que viver sem contar com o cérebro, esbanjando sentimentos, pura atitude
É verdade: não fomos muito longe com essa política do coração. Isso a que
felizes com o ato de aceitarem ainda de nós um pedaço de pão. E não sei se
PROF. MONIR: Olhem a pergunta que ele faz para o professor dele: “Há
conflito de deveres ou há apenas um só dever?” Etzel não aceita nenhuma
espécie de conjunção adversativa: mas, no entanto, contudo. Ele no fundo
quer que digam para ele: “Só tem uma coisa para você fazer na sua vida, que
é isso”. Ele não admite o contraditório, de modo nenhum.
como recentemente fizera com o velho Maurizius, Camilo Raff pela manga
é possível que seja um inocente, é possível mesmo que se possa provar sua
inocência. Temos o direito de nos deixar desviar desse fim por um motivo
O professor, meio constrangido, diz que ele tem o direito, ou talvez o dever.
Depois que se separam, Raff cogita se deveria ou não informar o pai sobre a
crise de Etzel.
VI
*******
INTERVALO
*******
Capítulo 5
Três dias depois da visita à avó, Etzel deixou a casa paterna e a cidade, pretextando
uma excursão a Hohen Kanzel com uns amigos. Rie estranha quando o rapaz
parte carregando um fardo com dificuldade. Etzel atribui o peso a livros que
iria devolver: “Rie sabia que ele mentia, mas não supôs nada de mais e ficou mesmo
comovida quando o viu censurar‑lhe por haver se levantado tão cedo”. O rapaz
parte. O barão viajando, Rie se inquieta com a demora da volta de Etzel, que não
II
O Barão de Andergast lê a carta e sua fisionomia não muda. Rie não consegue
tudo que ele havia levado e vai procurar o delegado de Atschul, a quem pede
das razões da fuga, o barão Andergast atribui o fato a “uma travessura do menino”.
III
trechos da carta: “não posso dizer o que nos separa, porque tudo nos separa” e “não
tenho mais repouso desde que conheci o destino e o processo de Leonardo Maurizius
preciso que ele se habitue “com a ideia de ter sido enganado por um fedelho”.
IV
Etzel. Sua mãe confirma que havia dado dinheiro ao neto. Enquanto ouvia
Cecília Andergast, o barão exprimia pelo silêncio “tudo o que desdenhava dizer em
culpado de tudo, ele e o “seu sistema de caserna” e que o menino deve ter fugido
uma bala na cabeça. O barão a ouve lívido e despede‑se dizendo: “Está certo,
mamãe, não tenciono ajustar as suas visões romanescas. No futuro, se você quiser
manter as nossas relações, espero que tenha a bondade de evitar qualquer alusão à
Etzel sobre a mudança da mãe para a França, “ainda que sem má intenção”.
PROF. MONIR: O barão sabe que seu filho não foi atrás da mãe, mas sim atrás
do caso Maurizius.
O barão vai visitar o professor Camilo Raff. Wolf Andergast não tinha estima por
perfil de Etzel como “justiceiro”, provando com o relato de um caso quando uma
‘Tive dificuldade em impedir que ele saltasse sobre mim com a sua cômica
indignação, com a sua fria audácia, exigindo das pessoas o que deveriam
menos complicado, mas era esse mesmo; as pessoas devem ser consequentes
nos seus atos, quem tem um negócio deve conhecer o seu negócio, um juiz
só deve julgar quando não existe mais sombra de dúvida sobre um crime...
Eu me senti na obrigação de replicar: ‘Meu caro, todas estas coisas são muito
Rosenau, que fora incriminado por Eric Fenchel, um antissemita, e salvo pela
professor responde que não sabia exatamente o que ele pretendia, mas que
havia reconhecido o direito do rapaz de “seguir sua inspiração”. “Eu não o nego – e
falo sempre daquele momento – nunca o desviei da resolução que a ele se impunha
naquela trágica luta interior”, por não querer “derrubar água naquele vinho”. Quando
PROF. MONIR: O barão diz: “Você tem consciência de que você incentivou um
menor de idade a fugir de casa?”, coisas deste gênero. Daí diz o Camilo Raff:
“Olha, existem leis mais altas do que essa que senhor está mencionando,
que impedem que alguém incentive um menor a fugir de casa”.
suspenso durante dois meses e foi depois enviado para “um buraco na província
de Hesse”, o que constituiu para ele, que já se sentia asfixiado, uma catástrofe
física e moral.
O barão Andergast convida o presidente Sydow, seu único amigo, para jantar.
jurídica” e “considerava o veredicto dos júris como ridículas farsas”. Depois que
Sydow parte, o barão começa a folhear processos e, sem querer, anota o nome
mesa e levantou‑se, descontente”. O barão vai visitar o quarto de seu filho. No dia
seguinte, sem se interessar por nenhum outro assunto do expediente, pede que
VIII
naquelas catacumbas não seria coisa divertida e iria submeter sua paciência a dura
prova”. Depois que fecha o dossiê, volta a pensar em Etzel e no que havia dado
feito, por decoro. E eu, eu censuraria sua falta de maturidade? Oprimiria sua
mocidade? Eu? O que seria verdade, muito antes do que isso, é que desperdicei
elemento. Ele tem uma tara moral no caráter, herdada de sua mãe. Era de
PROF. MONIR: No entanto, ele ainda não admite que tenha feito algo errado
e atribui o “mau caráter” do menino à mãe. Já havia brigado com ela, então
acha que é da mãe que o menino herdou esse comportamento selvagem,
arredio.
Capítulo 6
Todas as noites, (o barão) fica ali até tarde, sentado em face dos autos
II
“Um fato, apesar de tudo, era inegável: faltava uma coisa para a absoluta perfeição
não havia conseguido quebrar um elo da cadeia das provas. Volland, medita
vai chegando à conclusão de que “alguma coisa existe neste processo que não está
III
O juiz conclui: Eli Hunsolt casara com Leonardo Maurizius relutantemente, por
fortuna da mulher, que não tinha mais que oitenta mil marcos?
IV
marido confessaria os antigos amores. Eli estranhou o fato de a irmã saber dos
casados, Leonardo havia passado todas as noites em casa: “Para a grande surpresa
de seus antigos amigos, não era visto nem no café nem nas reuniões habituais”.
“Não gosta de fazer nada, sente não ter sido feita para ganhar a própria subsistência;
se chamava ‘a vida’, quando não se fazia mais do que passear em torno da existência.”
Por sua vez, Eli reprovava a irresponsabilidade de sua irmã, que esperava um
casamento redentor.
PROF. MONIR: Vocês conhecem pessoas como a Ana, tal como descrita
aqui pelo narrador? Pessoas que não têm vontade de fazer nada, que
não querem se subordinar a nada, que não aceitam nenhuma espécie de
trabalho porque tudo lhes parece muito complicado, muito chato, e que
têm uma solidariedade com a vida? Gostam de ficar por aí, curtindo a vida.
Ana Jahn aparentemente era uma dessas pessoas.
PROF. MONIR: Nossos políticos são muito piores, são todos uns picaretas,
vigaristas, 171, safados e delinquentes, tirando uma meia dúzia de exceções.
Esses aqui não são como os nossos políticos. Esse pessoal aqui é um tipo
muito comum hoje em dia. Uma pessoa que não tem referência nenhuma
da vida e que fica por aí, em uma existência flutuante. Fica imaginando que
as relações que tem com a vida irão resolvendo as coisas. Não tem nenhuma
responsabilidade. Em última análise, é uma espécie de incapacidade de
Leonardo a via como uma aventureira e ela o via como um golpista “do baú”. O
assim que Ana ficou encarregada de buscar Hildegarda na Suíça e levá‑la para a
PROF. MONIR: Começou a dar tudo errado. Eli é uma mulher mais velha
que controla o marido, que tem uma cunhada muito jovem e bonita. Nesse
episódio da Hildegarde, Eli não tem nenhuma participação. Leonardo
Maurizius combina com a cunhada Ana que ela é que iria cuidar da menina
para ele. Não parece que há um problema nos bastidores?
aproximam, e, coisa muito natural, suas relações se tornam mais fáceis. Eli se
comporta como alguém que, tendo a corda no pescoço, se esforça por fazer
sente vigiada. Nasce nela o desejo de fazer bravatas. Uma observação irônica,
um com o outro?’ Eli sorri, pede desculpas, não encontrando mais as palavras
ela responde: “Foi você mesmo quem quis essa tutela, como proteção contra você
próprio. Sendo preciso, e mesmo contra a sua vontade, defenderei você contra você
mesmo”. Nunca Eli havia falado com ele daquela maneira. Leonardo começa a
abertamente; compreende, a cada passo, estar avançando num terreno minado.” Ele
VI
“Ninguém o conhecia, e uma coisa dita a seu respeito poderia ser tão verdade quanto
(...)
e declara que o país fatalmente morrerá asfixiado entre seus estreitos limites
e perecerá sob a ação dos elementos destruidores que nutre, a não ser que se
retrucava: “Você parece não ter a menor idéia de quem é Gregório Waremme”.
Certa noite, Leonardo mentiu à mulher e foi a uma festa com Ana. Ela ficou
sabendo por uma amiga e sentiu “o coração encher‑se de fel”. Preparou‑se para
uma guerra:
acreditar que tudo esteja acabado. Ainda espera; espera e pensa que tudo
promessa que lhe fez e sobre a qual edificou sua vida. Mas, enquanto se
sustentá‑la nessa luta que travará para conservar Leonardo a todo custo e
VII
com olhos de súplica. Ana recobra a calma, apanha suas coisas e dirige‑se “como
um furacão” para a porta, olhando Leonardo com tal gesto de desprezo que ele
lança à cunhada o mesmo olhar de súplica que fizera para sua mulher. Depois
que Ana sai, Leonardo diz à mulher: “Por Deus, Eli, ela não é culpada”... “Ela é tão
pura como o dia”. Como Eli vê nisso alguma sinceridade, conclui que nada teria
ouvido pela empregada atrás da porta, foi o necessário para caracterizar Ana,
uma moça de “dezenove anos apenas, sem experiência”, como vítima de assédio,
tentando, por todos os meios, trazer Leonardo de volta à razão. Leonardo, por
sua vez, visto como aproveitador da situação conjugal para seduzir a cunhada, é
onde está; manda Frieda à casa dos que não têm telefone, em diversos
riem à sua custa. Waremme tem uma frase de espírito: ‘Leonardo é o audacioso
desertor que uma fita de mulher faz tropeçar’. Furioso, pede explicações
cidade, erra como uma louca pelas ruas, fita insolitamente pessoas que não
(pág. 126)
Com o resto de suas energias, Eli cobra do marido suas atitudes e amaldiçoa a
irmã. Leonardo é incapaz de romper. Eli suplica: “Mate‑me, terei paz, pelo menos”.
Todas as noites as mesmas cenas, cada vez mais inúteis, mais ásperas, mais
infernais. O casal dorme em quartos separados. “Uma noite, Eli soltou um grito
tão forte que o guarda‑noturno tocou a campainha para saber se havia acontecido
alguma coisa”.
Uma tarde, Eli sai de casa, passa em casa da costureira, toma chá em uma
confeitaria, bebe dois copos de conhaque e dirige‑se para casa de Ana, que
cogita: “Onde arranjou dinheiro para isso?” Na verdade, Gregório Waremme a havia
empregado como secretária “part time”. Enquanto espera, Eli remexe as coisas
da irmã. Numa gaveta, uma foto de Leonardo com o sobrescrito: “18 de maio de
1905, sete horas da noite; desde essa hora sei que possuo uma alma eterna”.
Eli olha fixamente o retrato e cai na gargalhada. Chega Ana e Eli, na cara dela,
rasga o retrato, atirando os pedaços aos pés da irmã: “Até quando você pensa
PROF. MONIR: Já é a segunda vez que Ana cai num ataque epilético.
leva Eli para casa. Ela dorme treze horas seguidas. Leonardo passa uma semana
alegria”. Ana está morando com Eli. Leonardo obedece Waremme que não quer
que ele veja Ana. O rapaz deve ao misterioso estrangeiro dois mil e oitocentos
marcos (que foram pagos dois dias antes do assassinato de Eli, ninguém sabe
Resolve ir disfarçado até sua casa e propor a Ana fugirem juntos naquela mesma
IX
apresenta “fendas e falhas por toda a parte”. O juiz alterna reflexões sobre o caso
e sobre Etzel. Lembra‑se de que um pastor lhe havia dito certa ocasião: “Na
verdade esse menino tem um espírito difícil; só acredita no que pode ser demonstrado
com a clareza da luz do dia. E a única coisa que o diverte é procurar uma agulha num
Capítulo 7
seu quarto. Wolf Andergast as vê e, sem que elas percebam, sai de casa sob uma
tempestade.
Sob a chuva, o barão medita sobre os “pontos fracos” do processo Maurizius, cada
vez mais convencido de que alguma coisa tinha andado mal. Entre eles, “não
11Nota do resumidor – Coisa que já sabíamos quando Leonardo foi despedir‑se do pai para
antes:
do casal – a herdeira legal. Mas, não podemos nos aventurar tão longe, descer
barão cogita de perguntar ao velho Maurizius onde ele poderia estar. Por que
Mas esse édito, por mais definitivo que fosse seu tom, não conseguiu abafar
III
Havia três anos o barão mantinha um caso discretíssimo com Violeta Winston,
uma californiana que havia vindo fazer seus estudos no conservatório Stern: ‘Suas
barão, toda indiscrição tinha sido evitada até então’. Depois do desastre de seu
casamento, o barão havia desistido da vida amorosa até encontrar Violeta, que
era mais uma distração leve e agradável, do que uma possibilidade conjugal
séria.
IV
Naquela noite de chuva, o barão vai visitar Violeta. Depois que ela adormece,
‘Cara Violeta, esta noite era infelizmente a última que podia passar com você.
marcos será paga até 1º. de julho. Desejo a você felicidade na vida. W. A.’ (pág.
151)
PROF. MONIR: Não é interessante essa imagem aí? O barão está sendo
modificado pelos acontecimentos. Essa Violeta era uma mulher que ele
“mantinha”, tinha com ela um caso – isso sempre foi muito comum, sobretudo
com atrizes de teatro. E ele a dispensa, como se alguma coisa estivesse
acontecendo com o barão que o estivesse fazendo mudar de ideia sobre a
sua própria vida. Quando sai da casa de Violeta, não está mais chovendo e o
céu tem estrelas cintilantes, como se houvesse acontecido algum fenômeno
em sua existência – na medida em que ele vai entendendo que pode ter
cometido um erro no Processo Maurizius.
confessa ao barão que poderia ter salvo o filho, se tivesse lhe dado o dinheiro que
ele pedira e ele então não teria voltado “para sua maldita casa com o desespero no
coração, e não teria precipitado no laço como um pássaro desarvorado. Então teria
‘Era sua vida que estava em jogo, naquela noite, e essa sua vida não me
pareceu valer três mil marcos. Reflita, senhor procurador, sobre o preço de
uma existência. Reflita, senhor procurador, sobre o valor de uma vida. Pode
avaliá‑la em números? Não tem preço, como o céu, e achei‑a muito cara por
Lágrimas correm sobre a face devastada do velho. Ele explica que o menino
havia sido para ele como uma aparição, que ele havia contado o que sabia e
que Etzel havia ido falar com Gregório Waremme, mas recusa‑se a dizer onde
PROF. MONIR: Para ser possível completar a leitura no nosso horário, fiz um
resumo de um jeito diferente para tornar nossa leitura mais econômica.
Etzel Andergast
Anklam. A família aluga quartos para inquilinos. Etzel Andergast está com sorte.
hóspedes. Mesmo sob nome falso ele correria perigo de ser descoberto.)
PROF. MONIR: A essa altura já correu uma espécie de aviso geral para todas
as cidades alertando a polícia de que um menino de dezesseis anos estava
viajando sozinho, e que poderia estar usando um nome falso. Então ele seria
pego na hora.
PROF. MONIR: Daí vocês veem que esse menino é espertinho para dezesseis
anos, não é? Ele está montando um plano bem urdido.
PROF. MONIR: Ele sabe inglês porque passou um tempo nos Estados Unidos
antes de voltar para a Alemanha, lembram?
árabe. Etzel, às vezes, tem a impressão de que o professor encena ser pobre.
Aos poucos, Etzel propõe‑se a fazer pequenas tarefas, como organizar os livros,
tempo que vai se impressionando com o seu charme. Certo dia, Waremme põe
Num salto, Etzel desceu da pilha de livros: ‘Talvez eu me chame tão pouco
sabe?...’
o rapaz: ‘Olá garoto!’ E sua voz saía do peito, diferente, nova, uma voz de
além‑túmulo: ‘Olá garoto!’ ‘Eu disse somente talvez’, insistiu Etzel, num tom
Pode ser que eu me chame Maurizius. Há outros que se chamam assim. Por
PROF. MONIR: Acabou o disfarce. Claro que Waremme não sabe quem
é Etzel, mas sabe que Etzel sabe que ele é Waremme. Agora não há mais
possibilidade de confusão. Nesse momento, Etzel abriu o jogo. Tornou-se
Waremme admite sua identidade e confessa que o velho Maurizius havia vindo
vê‑lo em Berlim. Etzel pergunta‑lhe se ele achava que Maurizius havia disparado
o revólver.
Como única resposta, Warschauer dirigiu sobre ele um olhar frio, vazio de
qualquer expressão. Parecia que não havia ouvido a pergunta ou que a tinha
imediatamente esquecido. Etzel não pôde evitar ligeiro tremor. (pág. 224)
Mohl, gosto de você loucamente”. As conversas entre os dois estão cada vez mais
Waremme, que ele era judeu e havia forjado uma identidade‑fantasia para deixar
de ser o que era e fingiu ser uma pessoa ideal: alemão, católico, inteligente, rico
e influente.
PROF. MONIR: Que era como ele se apresentou em Frankfurt, e seduziu todo
mundo. Na verdade o nome dele era Georg Warschauer, e ele inventou a
personagem Gregório Waremme.
recusam; seu bem mais precioso, naquilo que não possui. É sempre a história
A língua que era tão minha como meus olhos; amava a história deles, seus
heróis, seus cantos, suas províncias, suas cidades. Amava‑os com um amor
mais profundo que o deles e compreendia‑os melhor que eles próprios. (pág.
235)
PROF. MONIR: Isso é o Jakob Wassermann falando sobre o seu problema com
o judaísmo. Depois ele escreveu um livro chamado Mein Weg als Deutscher
und Jude (Meu Caminho como Judeu e Alemão). Este era um de seus maiores
problemas: ele está em uma sociedade que o repele, que não o aceita como
igual, embora seja apaixonado por aquela sociedade, pela sua cultura, e
passa a vida inteira numa espécie de tensão entre a sua existência judaica e
a sua existência alemã. Não consegue ser uma coisa nem outra. E é por isso
que quando Waremme resolve deixar de ser judeu, fantasia-se de alemão e
tenta criar uma existência alemã completamente falsa. Depois percebe nos
Estados Unidos que isso é besteira, e volta para a sua personalidade judaica,
que é a que ele tem agora, nesse momento.
conhecido a moça, então com dezessete anos. Deixa claro o romance entre eles.
Relata também que depois do assassinato ele e Ana ficaram juntos e gastaram
toda a herança de Eli. No fim do dinheiro, ele teria ido aos Estados Unidos e ela
a Paris. Nos dez anos que havia passado na América, Waremme havia aprendido
Havia seis semanas que Etzel estava em Berlim, dinheiro no fim, e nada arrancara
de concreto de Waremme.
Estão em junho. Etzel resolve visitar seu ídolo Melchior Ghisels para buscar
capital”.
Diz a ele que o compreende: “Conservou‑se esse hábito como se o mérito supremo
277)
PROF. MONIR: Olhem só que coisa importante. Ghisels está dizendo para ele:
que essa coisa de bem e mal não está na relação entre os homens, mas está
nas relações do homem com ele mesmo, porque se trata essencialmente da
consciência moral, e a consciência moral é individual.
‘mas... não me vá tomar por tolo... sou obrigado a lhe dizer... é um simples
Não posso então exigir senão uma coisa: o direito, a justiça. Devo deixá‑lo
apodrecer na prisão? Devo esquecê‑lo? Devo dizer: o que tenho a ver com
isso? Que fazer? O que é a justiça, se não conseguir fazê‑la triunfar, eu, eu, Etzel
Como Etzel insiste na sua arenga justiceira, o escritor encerra a conversa: “Não
tenho nada mais a responder senão o seguinte: perdoe‑me, sou apenas um homem,
um frágil caniço”.
Wolf Andergast
Sofia Andergast, avisada pelo advogado, decide vir de Paris tratar do sumiço do
Kressa. Durante as conversas iniciais, Wolf Andergast, mesmo dizendo que sua
pergunta quem havia atirado, mas Maurizius não responde. Os dois conversam
procurador:
contra a sua própria eloquência, que acabava de ouvir saindo de uma outra
207)
O barão sugere que Maurizius tinha, na verdade, poupado Ana Jahn. Combinam
havia vindo atrás de Ana Jahn, com quem ele parecia ter tido alguma coisa de
“horrivelmente decisivo”; de como ele concluíra que Waremme a havia violado aos
dezessete anos; de como ele tentara vingar a honra de Ana, mas fora controlado
se suicidado; de como as irmãs haviam iniciado uma disputa entre elas; de como
Eli havia se transformado numa “loba feroz”. Leonardo Maurizius confessa ao juiz
que havia cogitado de matar a mulher, tamanha era a tirania que ela exercia
sobre ele.
pareceu então uma boa ação, porque tal existência é um suplício para
quem a vive, pensei, e um fardo, um suplício para aqueles que têm de viver
em sua companhia. Então, não haverá saída possível, não se terá o direito
de reconquistar a paz? É evidente que, tendo tido esse desejo criminoso, não
De volta a Frankfurt, Wolf Andergast recebe a visita de Sofia que o acusa pelo
‘Sonhei uma noite que imensa multidão se jogava a seus pés, suplicando
tomou meu filho, sim, meu filho; não há nada sobre a terra como uma mãe
dezoito anos de sua vida na prisão. Fala de como foram os primeiros dias na
prisão; de como era visto como diferente por ser professor; de como havia sido
como havia sofrido com a abstinência sexual; de como havia tentado estudar,
para depois descobrir que era apenas “Maurizius fazendo o papel de Maurizius”; de
como havia estabelecido uma parceria intelectual com o guarda Klakusch, que
depois se suicidaria.
só ter oitenta e seis dos trezentos emprestados pela avó, concede. É cuidado
tomem, não serve. Desconfio que todos os que embarcam nessa canoa são
‘Ninguém, com exceção dos alemães, pode compreender sua lógica muito
criança deve ser cortada ao meio. Não fique indignado com o que lhe estou
dizendo, Mohl, é a verdade. Suas idéias humanitárias não são nem mesmo
ridículo todos os pacifistas. Já se viu, desde que o mundo é mundo, uma guerra
ter uma causa justa? Já se viu um general travar suas batalhas pela justiça?
ser obrigado a prestar contas, a não ser quando sua empresa fracassava?
exemplo? Eu, por mim, não conheço. Onde está o pelourinho em que será
homens utilizados nas minas do Brasil? Onde está o juiz que tentará punir os
sua disposição. Você vai‑me responder que seu ideal moral mais caro e mais
agressão de Eli), que Ana Jahn havia matado a irmã e que ele havia dado um
no julgamento. Etzel não entende como Ana pôde deixar Maurizius levar a
Nenhuma luz brilha neles. Seu sombrio destino, eles o desejam; chamam‑no,
dobrar, render‑se: querem ser esmagados. Era o caso de Ana.’ (pág. 372)
‘Não tive escrúpulos em falar sem subterfúgios, já que você tinha tanto
interesse em saber. Por que lhe recusar essa satisfação? Isso não tem para você
nenhum valor prático. Há muito tempo que meu falso testemunho caiu em
prescrição. Meu Deus, sim... afinal, isso não teria nenhuma importância para
mim; tudo neste mundo se tornou indiferente aos meus olhos. Mas, gostaria
de conservar o leme nas mãos ainda por um momento. Não vá você conceber
Declara‑se apaixonado pelo rapaz e diz que partiria para procurar sua filha na
Alta Silésia polonesa. (Toda a conversa foi ouvida por Melita através do tabique.)
disse: ‘Bom‑dia, Etzel Andergast.’ Eram sete horas. Saltou da cama e começou
PROF. MONIR: Missão cumprida. “Bom dia, Etzel Andergast”: Edgard Mohl,
nunca mais. Agora ele era Etzel Andergast e iria ter com o pai para dizer-lhe
que descobriu enfim quem matou Eli Maurizius e recuperaria a justiça.
encontrar Hildegarda, que quase não ouviu falar do pai. Imagina como seria o
reencontro. Sai meio tonto da prisão e aprecia as mulheres na rua. Vai à casa de
seu pai.
olhos, fica petrificado. Seu rosto se torna purpúreo, o corpo verga para a
frente, os braços se apóiam na ombreira da porta. ‘Eu sabia’, disse com voz
por um soluço. Dir‑se‑ia uma tosse rouca, dolorosa; não oculta o rosto e as
quase sinistra.
do local, despertam nele vago temor. Ainda não havia pensado no futuro.
(pág. 382)
O pai lhe mostra um testamento com a doação de todos os seus bens, mostra
estaria em Colônia. Leonardo sobe a seu antigo quarto e vê suas roupas: “Parecia
menina para fora...’ Ana Duvernon levanta os ombros, num gesto idêntico ao
que teria se lhe tivesse pedido cem mil marcos. ‘Nada tenho a ver com isso’,
porém, não estou disposto a ceder’, observou ele com aspecto sombrio.
‘Apenas, você errou a porta. É ao tutor que compete decidir. Há muitos anos
A seguinte idéia lhe atravessa a cabeça: ‘Santo Deus! Mas como ela é estúpida,
aquilo que se tomava por sua alma), sua graça, seu encanto, aquele misterioso
sofrimento, tudo aquilo nada mais era do que uma leve camada de verniz que
estúpida, eis o que ela é, estúpida como todos aqueles que pararam no meio
do caminho, como todos aqueles que são animados por uma vida fictícia e
que estão mortos, estúpida como todos aqueles que não percebem que seu
aquilo, por aquilo, oh! Deus misericordioso! por aquilo, o seu sacrifício e o
seu martírio, o suplício que o arruinou e aqueles dezenove anos vividos num
túmulo... Deita‑se de bruços sobre o assoalho, apoiando nele sua face. Sobre
(págs. 390-391)
Leonardo Maurizius começa a viajar a esmo. Vai para a Mogúncia, para Basileia,
passeia o dia inteiro, fala com as pessoas e sobretudo com as crianças, acha
os leitos de hotel confortáveis demais, vai para Berlim e conhece no trem uma
moça que o convida para o amor. Depois de fracassar, conclui que o seu “sexo
Com estridor o trem passa pela beira de um viaduto, muito alto, sem parapeito.
impressão de que o mundo está subitamente de pernas para o ar, com o céu
Deu aquele passo como se passa de uma sala para outra. Foi um passo no
Etzel Andergast volta para casa no trem da quarta classe, após vinte e quatro
horas de viagem. Fica sabendo que sua mãe está na casa da avó, mas não se
apressa em fazer contato com ela. Encontra o pai transformado: certo dia ficara
‘Que é preciso fazer depois disso?’ E ele responde, glacial, imperturbável. ‘Nada.’
Etzel salta: ‘Como... nada?’ ‘Não é preciso fazer nada. Nada resta a fazer.’ Etzel
não pode deixar de abrir a boca como um idiota. Gagueja qualquer coisa.
na gargalhada. Sabe que é uma falta de respeito, mas não pode evitá‑la.
Frase oca. Etzel esquece o respeito que lhe inculcaram. Grita: ‘Mas se ele é
inocente’, responde o barão Andergast em tom decisivo, ‘e, além disso, procure
PROF. MONIR: Etzel Andergast está furioso porque o indulto pressupõe que
se perdoou a culpa. A culpa portanto continua implícita na situação do
Maurizius. Ele não quer que o Maurizius seja indultado. Ele quer que ele seja
inocentado, que é outra coisa muito diferente. É claro que nem o barão nem
Etzel sabem que Maurizius já morreu.
revisional e pede que o filho se contente com o indulto. O menino não aceita:
“Não, repete, isso não pode me satisfazer e com isso não me quero contentar”.
aceitou‑o sem reservas.’ Etzel dá dois pulos para a frente. Junta as mãos
à altura dos olhos, depois coloca‑as sobre a boca. ‘Ele aceitou... aceitou o
viver? Tem coragem de pesar sobre si essa injustiça? Fica calado? E continua
verdade, um outro morrer dela!’ ‘Etzel!’ berrou o barão Andergast. ‘Então você
(tudo quanto fez foi em vão; tudo em que se apoiava como sobre um rochedo
ficar calado... se ele continua a viver, não recebeu senão o que merecia... talvez
que você o enxotou da prisão. Muito obrigado, senhores, pelos dezenove anos
de cadeia, hein!... Então, você não sabe quem foi que atirou? Certamente que
sabe. Foi isso, sem dúvida, o que provocou seu indulto... onde está o juiz, para
que lhe cuspam o seu indulto no rosto... como poderei agora apresentar‑me
(pág.406)
demônio. ‘Espere’, vocifera com a boca espumante, ‘você não sairá disso
ileso. Terá de pagar, sua vez chegará!’ O barão Andergast fica um instante
segurar o rapaz. Prende‑o pelo ombro, Etzel se livra dele. Tem o rosto
convulsionado de horror, cólera e náusea. ‘Eu não quero mais ser seu filho!’
entanto, todo ele tem ar de súplica. Etzel correu para a sala de jantar. Rápido,
o barão o segue. Atrás deles, as portas vão ficando abertas. Etzel derruba
as cadeiras que encontra pelo caminho. Rie surge em sua frente. Afasta‑a
brutalmente e corre para seu quarto, Rápido, o barão o segue. Aquele corpo
enorme e poderoso que corre com as mãos estendidas para a frente tem
sai nenhum som. Chegando ao quarto, Etzel bate a porta com fúria, dá uma
prolongado de vidros quebrados. Rie solta um grito que faz acorrer todos os
locatários. O barão exerce toda a sua força hercúlea contra a porta e consegue
arrombá‑la. Num pulo, está dentro do quarto. Rie vem atrás dele, torcendo
balbucia. Alguém corre para buscá‑la. Rie junta as mãos para rezar.
Que aconteceu? Etzel quebrou a vidraça das duas janelas e também o espelho
O sangue corre pelas suas têmporas, pelas faces e pelo nariz. Atirou‑se de
olhos. Súbito, seu espírito fica extraordinariamente tranquilo, como se, com
que perdeu e do qual se desviou, não encontra nenhuma direção para sair do
de certo modo um pouco mais baixo e sobre a qual era obrigado mesmo
enormes. E foi assim, com a boca entreaberta, que se deixou cair numa
órbitas como duas bolas. (Quando, pela tarde, partiu, acompanhado por um
olhos e, enquanto Rie se dispunha a lavar o sangue que corria em suas faces,
sua fronte e suas mãos, disse, com voz infantil, seca e clara: ‘Mandem chamar
minha mãe’.
(págs. 407-408)
que Etzel Andergast atribuiu a seu pai, a quem ele via como o todo-poderoso.
O médico se interessa pelo rapaz, que é muito inteligente. Recebe uma carta
da mãe dele, a Sofia Andergast, explicando o que havia acontecido com Etzel.
Ela conta tudo isso que vimos aqui, resumido em trezentas linhas. Ela pede ao
médico que cuide de seu filho, agora com uns vinte anos. Etzel é muito bem
recebido pelo médico carismático, com abnegação absoluta, que começa
a cuidar do menino. Vão se conhecendo, vão trocando ideias sobre esses
Etzel Andergast aos pouquinhos passa a conviver com o médico com muita
proximidade, e aproveitando que o médico só pensava em seus pacientes e
trabalhava 18 horas por dia, aproxima-se de Maria Kerkhoven, a mulher do
médico, e tem um caso com ela, com a mulher do seu “mestre” – Andergast
chamava Kerkhoven de mestre, tamanho o respeito que ele tinha pelo
médico. Quando no final das contas o médico descobre o caso, há uma
ruptura com ele.
O primeiro livro termina com Etzel dizendo: “Eu quero minha mãe”. No
segundo livro, quando ele finalmente encontra a mãe, depois de toda a
PROF. MONIR: Essa teoria eu já ouvi, de que o Etzel Andergast foi produzido
pelo seu pai, Wolf Andergast. Pode ser um pouco assim, porque nosso
autor faz todo o possível para pintar o Barão Andergast com cores muito
rígidas. Também não contei o que acontece com o barão, que a gente só fica
sabendo no segundo livro. O barão, após ser levado para uma clínica, nunca
mais volta para casa. Ele sofre um abalo nervoso tão grande que irá passar
alguns anos num sanatório e depois é completamente inviabilizado como
procurador, perde o cargo, e morrerá quatro ou cinco anos depois. Não
morre louco, mas absolutamente deprimido e desesperançado com a vida.
Mas a questão central aqui é saber se vocês acham que o Etzel está ou não
com a razão. Quem acha que ele está, levante a mão. [Pausa] Há uma maioria
de pessoas que acha que ele não está com a razão. Mas vamos entender
melhor a personagem; afinal de contas, o que ele está querendo?
Ontem dei uma palestra sobre Viktor Frankl. Eu explicava que Viktor Frankl
escreveu sobre sua estada no campo de concentração e que em nenhum
momento do texto há qualquer espécie de acusação direta aos alemães.
Os judeus engajados em explorar o holocausto por meios políticos ficaram
muito revoltados com Viktor Frankl. Queriam que ele tivesse aproveitado
para denunciar o nazismo. Frankl disse que isso de denunciar um conjunto
de pessoas, denunciar coletivamente, é coisa de nazista: “Já que não aceito
que digam ‘Os judeus fizeram isso’, também não sou eu que vou dizer ‘Os
alemães fizeram isso’ ”. É completamente nazista partir dessa criminalização
coletiva, que é uma das bases da própria perseguição contra os judeus.
Bastava ser judeu para ser culpado. Viktor Frankl diz que não cabia a ele
como vítima criminalizar coletivamente os alemães. Não há nenhuma
palavra contra os alemães no livro. Zero. Obviamente ele menciona os fatos
e lugares alemães, mas não faz nenhum proselitismo antigermânico por
causa do sofrimento que passou.
ALUNA: [A aluna diz que ora sente-se a favor da pena de morte, ora pensa o
contrário.]
PROF. MONIR: Temos uma atitude oscilante com relação às noções de justiça,
pois é um assunto que envolve não só um elemento racional, mas também
um elemento emocional muito forte. Toda a vez que você está próximo de
um crime, ou que aquele crime tem características próximas de alguma
coisa que você abomina – por exemplo, alguém que matou uma criança
pequena, como aquele casal em São Paulo14 – a tentativa que você faz é de
vingar-se deles. É isso que o Waremme diz para Etzel, quando faz aquela
peroração sobre justiça – que não dá para separar muito justiça de vingança.
Tanto é que há na história do pensamento humano essa separação na peça
grega Eumênides, em que aparece claramente a divisão entre o conceito de
justiça como retribuição brutal – portanto como vingança – do conceito
de justiça como reparação, como atribuição precisa de uma punição. Na
cultura grega existem dois nomes para a palavra justiça: Dike, que é a justiça
moderna, como conhecemos, e Têmis, a justiça como retribuição brutal.
de cinco anos de idade, que aparentemente foi arremessada por uma janela do sexto andar
de um edifício pelo pai e pela madrasta em São Paulo, na noite do dia 29 de março de 2008.
Fonte: Wikipédia
PROF. MONIR: Quer se vingar do pai, que matou simbolicamente sua mãe. O
pai lhe tirou a mãe. Ele precisa criar alguma espécie de sistema de retaliação
contra o pai. Mas o pai é o espírito. Sempre que usamos a expressão “pai” e
“mãe” sob o ponto de vista simbólico, o pai é sempre o espírito e a mãe, nessa
comparação possível, é o amor. Essa é uma conclusão muito importante que
é preciso que vocês compreendam – é a razão pela qual os filhos devem ser
criados pelas mães. O pai não precisa estar presente como a mãe precisa.
Porque do pai é preciso que se tenha até mesmo certa dúvida sobre o
paradeiro. O pai precisa ter uma certa distância da criança, enquanto a mãe
precisa do convívio amoroso, permanente, cotidiano.
A razão pela qual Héracles (ou Hércules) não deu certo é porque ele é filho
de Zeus, que é o espírito, mas não é filho de Hera, o amor. Hércules é filho
de Alcmena, uma humana. Por isso ele tem uma capacidade espiritual
extraordinária, mas é um fracasso amoroso total. Ele tem uma incapacidade
de controlar seus impulsos – quaisquer que sejam: sexuais, de ódio... Todos
os sentimentos em Hércules são absolutamente descontrolados. Os doze
1950), de estilo alemão, que em sua origem era animado por um sanfoneiro.
Etzel Andergast quer uma coisa que não existe, chamada justiça perfeita. Ele
quer uma justiça perfeita porque julga que este mundo pode ser perfeito.
Mas esse mundo não é perfeito, de modo nenhum. Todo o revoltado
metafísico diz que Deus é uma porcaria, senão teria feito um mundo perfeito
– que o mundo deveria ser perfeito, já que é feito por alguém perfeito. Essa é
uma argumentação um tanto infanto-juvenil para explicar a imperfeição do
mundo – é a ideia de que Deus não é perfeito, ou simplesmente de que não
há Deus nenhum e por isso o mundo é assim desse jeito.
Pois esses outros dois (Gregers Werle e Etzel Andergast) são os advogados da
revolução pura e simples. Porque eles são os sujeitos que aparecem e dizem
que os outros vivem na mentira total e completa, e que por esta razão temos
de ser despertados dela. E são eles que se incumbem de fazer isso. Mas
depois de construir em sua cabeça a ideia de que é ele que limpa o mundo
de suas mentiras, esse tipo irá em seguida aumentar a carga tributária –
pois vai precisar criar uma Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, dos
Direitos do Anão, dos Direitos dos Sem-Não-Sei-o-Quê para ações positivas
de todos os tipos e assuntos...
PROF. MONIR: Isso é muito diferente, porque isso é criança sendo criança:
“Não querem que eu seja como sou, então serei como sou”. O que há
aqui é algo muito mais grave, que não é apenas emoção. Por isso o autor
nos diz todo o tempo que Etzel Andergast não deve ser tomado apenas
como um jovem impulsivo – ele é o sujeito que racionalmente chegou a
alguma conclusão que diz a ele que ele pode fazer um trabalho melhor
que o de Deus sobre a terra. Dá para imaginar prepotência maior do que
essa? É o Ivan Karamazov dizendo que não tem nada contra Deus; só acha
uma porcaria o Seu trabalho, que quer consertar. É o tipo que se propõe
a organizar a sociedade civil como governo e através de um complexo de
ONGs fazer um trabalho melhor do que o de Deus. Esse é o pensamento
que gerou o nazismo e todos os movimentos que empestearam o século
XX de matanças e que agora empesteiam o século XXI com a maior onda
de totalitarismo jurídico que você pode imaginar. Vejam só o que é esse
ALUNO: Waremme voltou dos Estados Unidos para dar aulas com o nome
verdadeiro. Disse para Etzel que o que ele estava fazendo era motivação
pessoal. Então ele não quis mexer no passado, mas de certa forma deixou
de ser um cafajeste.
PROF. MONIR: Não, de certa maneira ele continua sendo. Ele é um cínico,
mas mesmo um relógio quebrado está certo duas vezes por dia. Waremme
Wolf Andergast disse para o filho que não adiantava reclamar com o juiz,
pois ele não tinha como voltar atrás no tempo. A liberdade não volta –
alguém já viu algum juiz desmarcar um pênalti? Ele disse para o filho deixar
o pênalti para lá, porque isso é assim mesmo; nem todos os pênaltis são
bem marcados e ele já havia dado um jeito, indultando o Maurizius. Mas
Etzel acha a solução inaceitável, pois ele queria ou a justiça total, ou nada. E
o que ele consegue com isso? Apenas destruir o pai. É apenas essa histeria
moderna, no fundo aquilo que Albert Camus chama de revolta metafísica.
ALUNA: [Comenta que os nomes são traduzíveis, que têm sentido: “Wolf” é
“lobo” e “Andergast” é o “convidado da parte de baixo”.]
da Cultura”, não podendo ser divulgada por nenhum meio, sem autorização.
programa que tem por objetivo restaurar a verdadeira cultura brasileira, que nós de alguma
maneira perdemos e que precisamos buscar a todo custo porque é a única maneira pela qual
nós conseguimos sair da terrível e profunda crise civilizatória em que nós nos metemos.”
Cronologia
recita na missa.
lhe ensinam o trivium. No final deste ano, Agostinho vai a Cartago para
e desregradamente.
amigo de seu pai. O rapaz, que vai estudar retórica, é conquistado pela
375 Formado, retorna a Tagaste para ensinar gramática. Sua mãe negalhe
acesso à casa.
obcecado.
escola de retórica.
angustiado sob uma figueira, ouve uma voz infantil que lhe diz: “Tolle,
lege, tolle, lege”, o que o faz ler a Epístola de São Paulo aos Romanos,
voltar a Tagaste com sua mãe, Adeodato e seus amigos. Mônica, com
395 Agostinho polemiza com Jerônimo (mais tarde São Jerônimo), autor
Arbítrio.
396 Torna-se bispo de Hipona, sucedendo Valério. Ocuparia este cargo por
Principiantes e De Trinitate.
Confissões.
426 Obtém permissão para estudar cinco dias por semana e nomeia
pública.
Hipona. Seu corpo, mais tarde, seria transferido para a catedral San
Romano do Ocidente.
Seu maior objeto de luta foi o maniqueísmo, que não é uma heresia cristã.
O maniqueísmo não é cristão de modo nenhum, pois para poder ser
heresia precisaria ter necessariamente uma base cristã. Não é este o caso
do maniqueísmo, que foi a maior de todas as lutas de Santo Agostinho.
Santo Agostinho foi maniqueísta. Maniqueísta é aquele que acha que o
mundo se divide em duas forças antagônicas: o bem contra o mal, e que
a vida dos seres humanos devia ser a favor do bem. Mas esta ideia de que
possa haver um mal do tamanho do bem é uma ideia profundamente
anticristã. Isso não é cristianismo de modo nenhum. Se você achar isso,
você já não é mais cristão. Mário Ferreira dos Santos dizia que ninguém
em sã consciência, nenhum filósofo do mundo foi capaz de defender um
dualismo desse tamanho. É muito difícil, porque essa ideia é profundamente
autocontraditória. Mesmo o maniqueísmo não sendo uma doutrina cristã,
portanto nem mesmo uma heresia, foi de todos os assuntos aquele com o
qual Santo Agostinho mais trabalhou.
Santa Catarina de Siena conta nas suas memórias que lá na cidade onde
ela morava havia um padre muito mau. Ela, que via imagens de demônios,
via coisas medonhas e horripilantes, conta que o padre mau vivia cercado
de demônios, ou seja, andavam os demônios como em comitiva junto com
o padre. Mas quando este padre fazia a consagração da hóstia, aparecia
Jesus Cristo em pessoa e assumia o ato da consagração. Ou seja, no ato da
consagração quem estava ali não era o padre mau, era Jesus Cristo. Apenas
para mostrar uma coisa importantíssima: os rituais religiosos sempre
funcionam.
E isso é uma coisa tão importante! Essa é a razão pela qual na praia, quando
falta luz, você não deve ficar brincando de invocar espíritos com copos,
porque mesmo que você ache que isto é brincadeira, mesmo que você não
leve isso muito a sério, estas coisas todas funcionam e não é uma boa ideia
fazer isso. Sabe estes adolescentes que ficam na praia, fingindo que estão
invocando espíritos? Isso tudo é muito perigoso. Este é um debate muito
antigo dentro da própria teologia. Por exemplo, quando alguém é batizado
com três dias de vida, este batismo funciona, mesmo que aquela pessoa não
tenha a menor ideia do que está acontecendo? Resposta: – Sim, funciona. O
ritual funciona sozinho, mesmo que as circunstâncias não sejam as ideais.
Essa é a razão pela qual a consagração da hóstia, dentro do espírito do
cristianismo, é sempre válida. Mesmo que o padre que a faça seja um padre
mau. Porque é possível que os padres sejam maus eventualmente.
Mas hoje em dia isso já é uma coisa meio pacífica, ninguém mais briga
por causa disso. No tempo de Santo Agostinho essas divergências eram
enormes, porque afinal de contas o cristianismo como doutrina, ou seja,
o corpo doutrinal do que nós chamamos de cristianismo, estava sendo
formatado ainda. É preciso sempre lembrar que o cristianismo em si não
é uma doutrina. Porque o que temos na base do cristianismo é apenas um
relato jornalístico de três testemunhas oculares e um relato não direto de
uma quarta que escreveram fatos sobre a existência e a vinda de Jesus
Cristo aqui. O cristianismo, portanto, na sua origem é uma espécie de relato
biográfico. Vocês compreendem isso? São testemunhas oculares que viram
uma série de acontecimentos e os relataram. Para que isso se transformasse
numa doutrina religiosa, foi preciso que fosse muito trabalhado e muito
aumentado por um conjunto de pessoas muito mais espertas do que nós
todos juntos aqui, que passaram dois mil anos fazendo isso. O que nós
temos aí então é uma enorme história de gente extraordinária que aos
poucos foi construindo uma doutrina cristã. De todos esses, é preciso que
se diga que o primeiro realmente importante foi Santo Agostinho.
Essa é, me parece, a introdução necessária para a obra que nós vamos ler
hoje, que se chama Comentários sobre o Sermão da Montanha – talvez o
pedaço central de todas as declarações que Jesus Cristo fez na sua estada
sobre a terra. É muito comum que se acuse o cristianismo e o catolicismo
de inviáveis justamente por causa de O Sermão da Montanha. Entre os
acusadores está este indiano chamado Gandhi, que teria declarado que se
encontrasse um cristão que levasse ao pé da letra o que está em O Sermão
da Montanha, ele se converteria imediatamente ao cristianismo. O que, me
perdoem a sinceridade, em primeiro lugar é um desaforo muito grande,
vamos ser sinceros. Em segundo lugar, vindo de quem vem, sobretudo,
porque ele é o primeiro que não cumpre as leis de Manu. Do mesmo
modo que temos O Sermão da Montanha, também os indianos têm as Leis
de Manu. Você as consegue na internet. A vida de um hindu (nem todo
indiano é hindu, embora todo hindu seja um indiano) está regulamentada
ao ponto de ter lá até mesmo o modo de como andar na rua. O primeiro
PROF. MONIR: [Dirigindo-se ao irmão marista que foi seu mestre no colégio
religioso]
Irmão Balestro, o que o senhor acha?
2 Nota da revisora de transcrição – Gandhi (1869-1948), tendo nascido na casta dos vaixás (de
comerciantes, camponeses e artesãos) não poderia exercer atividades reservadas à casta dos
ALUNOS: [risos]
Agora, sobre o Gandhi, temos que cuidar. Tenho lido e meditado a biografia
do Gandhi. Então nós temos dois Gandhis: o Gandhi do palanque eleitoral,
que vê que a cruz é a bandeira do inimigo do qual tem que se libertar –
aí, ele, naturalmente, está no Bhagavad Gita e não tanto na Bíblia. Depois
ele vai para a vida pessoal de jejuador bravio e ali está com o Evangelho
de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque aqui é a vida eterna. Ali eu sou um
político, eu sou César. Aqui sou de Jesus. E ele até dizia: “Jesus, se tiver a
vontade de se reencarnar, venha para a Índia, não vai se arrepender”.
Todos: [risos]
O Sermão da Montanha
5. 6 e 7
nele se encontra “no tocante à retidão moral, a regra perfeita da vida cristã”. De
De fato, foi necessário esperar até o século XVIII, já na idade moderna, para
moral prático é, pois, prova da complexidade da moral cristã, que precisa ser
PROF. MONIR: A Igreja tem trinta e três doutores e não terá mais,
seguramente, porque chegou ao número que corresponde aos anos de
vida de Jesus Cristo e me parece que já é alguma providência escatológica
manter assim. Uns quatro ou cinco foram incluídos muito recentemente.
Há, no entanto, quatro doutores antigos: Santo Atanásio, Santo Ambrósio,
Santo Agostinho e São Jerônimo. Estes são os quatro originais que, digamos,
3 Nota da transcritora – Na coluna da esquerda está o texto bíblico traduzido pelo padre An-
tonio Pereira de Figueiredo. Na coluna da direita está o texto de Sobre o Sermão do Senhor na
Montanha, de Santo Agostinho, (Edições Santo Tomás, Campo Grande, Mato Grosso do Sul,
2003) sendo que os trechos bíblicos são da tradução do padre Matos Soares (Bíblia Sagrada,
São Paulo, Pia Sociedade de São Paulo para o Apostolado da Imprensa, 1949).
PROF. MONIR: Ah, é? A gente tem que tomar muito cuidado com as
referências bíblicas, porque a primeira coisa que Lutero fez foi escrever
a sua tradução da Bíblia para o alemão. E ele fez a tradução que bem
entendeu. Portanto, é preciso tomar um enorme cuidado quando a gente
lê a Bíblia, que é saber que bíblia a gente está lendo. Não sei até que ponto
devemos aceitar pacificamente toda e qualquer modificação. Todas as
correntes luteranas fizeram as modificações que acharam por bem. Vamos
nos lembrar de que aqui é a Bíblia católica que está em questão.
A primeira coisa que interessa aqui é que Jesus Cristo estabeleceu dois
patamares diferentes de leis: a Lei antiga e a Lei moderna. Outro ponto a notar
é que Jesus ensina sentado, o que é próprio da dignidade do magistério. Eu
sempre disse que a gente deve dar aula sentado. Eu nunca, na minha vida,
gostei de dar aula de pé. E aqui está explicado, obviamente numa esfera
muito maior do que aquela que me toca, o quanto é importante dar aula
sentado e não ficar fazendo discurso em pé como político, transformando
toda a aula numa espécie de comício.
Mateus - cap. 5
4. Bem-aventurados os Quer pois dar Ele a entender que se trata da solidez e
ser expulsos.
Qual o sentido de ser manso? Manso é aquele que não resiste ao que lhe pede
a Lei maior. Ser manso é não resistir às coisas que Deus ensina. A mansidão
aqui não está associada à covardia, mas é uma humildade respeitosa, uma
espécie de atitude de respeito e consideração. O que está sendo descrito
eterna.
PROF. MONIR: Se vocês olharem para este outro documento, verão as rela-
ções que existem entre as sete bem-aventuranças e os sete pedidos do Pai
Nosso. Logo, Santo Agostinho percebeu que há uma sintonia entre essas
duas coisas. É isso que ele conta em seus comentários ao Sermão da Mon-
tanha.
Aventurança
É muito importante saber que Jesus Cristo não disse Pai Meu, e sim Pai Nos-
so. O que é uma coisa de uma importância extraordinária! E aí é importante
que vocês estendam bem o seguinte: Jesus Cristo é absolutamente, cem por
cento, humano. E Ele é absolutamente, cem por cento, Deus. Ele tem as duas
naturezas simultaneamente. Qualquer possibilidade de que não seja isso,
tenha certeza de que você está enganado. Não tem jeito de ser de outro
modo.
Eu queria que vocês compreendessem que Jesus Cristo é cem por cento
homem e cem por cento Deus – por mais que pareça incompreensível. Por-
que é isso mesmo, há duas naturezas em uma só. Quando digo que as duas
naturezas estão numa pessoa só, estou querendo dizer que Jesus Cristo é
homem e é Deus ao mesmo tempo. Mas a natureza divina é obviamente
superior à natureza humana, por definição. Portanto, se tivermos que achar
que alguma coisa veio antes, temos que achar que Jesus Cristo, antes de ser
homem, era Deus. E nunca o contrário, o que seria completamente absurdo.
Se Jesus Cristo antes de ser homem era Deus, então Ele é o ser humano
por excelência. É a própria natureza humana encarnada. Quando Ele diz “Pai
nosso que estais no céu”, está falando em nome de toda a humanidade. Não é
que Ele queria dizer que somos todos irmãos. Não é nesse sentido. É porque
Ele está falando do ponto de vista humano real e concreto, que é o ponto
de vista coletivo toda a humanidade. É muito importante entender isso para
você não achar é apenas um pedido pessoal. Não é um pedido pessoal. Je-
sus é a própria natureza humana.
Por que Ele diz “santificado seja o Vosso nome”? Essa é outra coisa interes-
sante de explicar. Jesus Cristo está nos dizendo que quem tem que ser san-
tificado somos nós, seres humanos. Porque Deus já é santo sozinho, não é
preciso que nós peçamos que Ele seja santificado. Quem tem que ser san-
Aventurança
ALUNOS: [risos]
O que é o manso? O manso é aquele que não resiste. O que não resiste tem
um dom chamado piedade. Sabem qual é a definição de piedade? É uma
inclinação natural à imitação. Quando você tem piedade, você quer imitar
Deus. Você imita aquele Deus que lhe inspirou a piedade. No Pai Nosso a
correspondência disso é “Venha a nós o Vosso reino”. Ou seja, significa que
nós aceitamos a ordem do céu.
Aventurança
3.Os que choram Saudosos Ciência Seja feita a vossa A terra submetese
no céu.
Aventurança
dai hoje.
PROF. MONIR: Depois vêm os famintos e sedentos, que também são bem-a-
venturados. A interpretação que faz a Pastoral da Terra e o MST é que são
famintos e sedentos do terreno da Araupel4, mas esta é apenas uma inter-
pretação infantil, para não dizer coisa pior. O que os famintos e sedentos
fazem na verdade é rejeitar os bens falsos e desejar os bens verdadeiros.
Deixam de desejar certas coisas e passam a querer outras. Ora, para que
você possa vencer os desejos ilegítimos, é preciso ter o dom da fortaleza. O
correspondente no Pai Nosso é “O pão nosso, necessário à nossa subsistência,
nos dai hoje”. Precisamos do pão espiritual da verdade contra a ilusão.
conflito com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que promove assenta-
Aventurança
nós também
perdoamos aos
nossos devedores.
PROF. MONIR: No item cinco, os misericordiosos. Quem são eles? São aque-
les que perdoam, mas que perdoam por uma razão mais importante do que
perdoar simplesmente. Perdoam porque se compadecem da dor alheia.
Esse é na verdade o sentido de ser misericordioso: compadecer-se da dor
alheia. E a virtude que advém daí é o conselho. Conselho é uma palavra difí-
cil de explicar. Eu tentei explicar com “prudência” e estou arrependido neste
momento. Acho que conselho não é bem prudência. “Conselho” é a origem
da palavra conselheiro, que é aquele que diz para você o que você deve
fazer. Portanto, conselho na sua origem significa aquilo que é o certo a ser
feito. Quando você se compadece dos outros e coloca-se no lugar daquele
que sofre, então você tem uma medida de como é que você deve lidar com
ele. Este é o sentido da palavra conselho aqui.
ALUNA: É compaixão?
ALUNA: Por que a Igreja transformou este texto aqui em “perdoai nossas
ofensas”?
PROF. MONIR: É que nós estamos pedindo a Deus que nos ajude a nos tornar
santos.
ALUNO: Exato. E aí, esta parte que estamos concluindo agora do item cinco,
parece que está invertendo: “Perdoai as nossas ofensas assim como nós
também perdoamos”, parece que nós estamos pedindo para Deus lá no Céu
imitar a gente. Não parece isso?
Aventurança
mostrar valor.
“E não nos deixeis cair em tentação” Pessoal, olhem só: Deus não está
preocupado se você come três ou quatro quindins. O que me aborrece
nessa história é que o sujeito fica achando que isso aqui quer dizer que ele
não pode comer uma caixa de Bis. Será que Deus fica preocupado se você
comeu mais ou menos Bis?
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Será que alguém é capaz de manter esta ideia? A tentação
que você tem que evitar – a única tentação que interessa (é essa tentação
que está aqui): é a tentação de achar que você pode fazer um mundo
melhor do que Deus. Porque este é o problema da tentação do sujeito
de pé inchado. Ele fala assim, como o Ivan Karamazov: “Não é que eu seja
contra Deus; o que eu acho chato em Deus é como Ele é incompetente.
Que desgraça, que porcaria de mundo que Ele fez!” Essa é a posição do Ivan
Karamazov, que acha que ele, mais o SUS, mais o INSS, mais o Aeroclube de
Balsa Nova farão o mundo perfeito que Deus não foi capaz de fazer.
PROF. MONIR: Eles argumentam que já que as pessoas são doentes e têm
problemas de saúde, é só darmos todo o dinheiro que temos no bolso
para o SUS. É assim que eles fazem. No fundo dizem isso porque querem
tirar todo o dinheiro do seu bolso. Vocês compreendem que tudo isso se
chama vaidade, soberba, übris em grego? É essa a desgraça número um da
condição humana, que você rezando o Pai Nosso deveria tentar neutralizar
em sua própria vida. Qual a tentação que não podemos ter? A de querer
virar Deus, querer virar criador e esquecer que somos criaturas. Deus não
está preocupado com quantos quindins você come.
Também não é um pedido, segundo Santo Agostinho, para que nós não
tenhamos tentações, mas é um pedido para não cair nas tentações. Porque
ter tentação é fundamental! Se você não tem tentação, como você mostra
o mérito de não ter caído nela? Compreendem? Senão nossa vida seria
equivalente a de um poodle. Sem tentação nenhuma, a nossa vida seria
equivalente a de um poodle.
ALUNOS: [risos]
ALUNOS: [risos]
Aventurança
que já estamos.
e Recife. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e grande
defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. Pregava uma Igreja simples,
vida eterna.
voltada para os pobres, e a não-violência. Por sua atuação, recebeu diversos prêmios nacionais
e internacionais. Foi o brasileiro por mais vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, com qua-
Acesso em 05/10/2017.
porque eles verão a Deus. que coração simples; e, assim como esta luz
PROF. MONIR: Onde está a sujeira? No pé inchado. Nada impede tanto de ver
as coisas como são do que levar nossas próprias ideias demasiadamente a
sério. Veja que toda a fórmula da bem-aventurança é a fórmula da humildade.
O que é que significa que você topa que o céu venha para a terra? Significa
que mesmo que você não entenda bem porque é assim, mesmo que
você ache que este mundo tem alguma imperfeição, é preciso ter alguma
Havia um filme circulando por aí, que agora saiu de moda, chamado Quem
Somos Nós e este é um filme absolutamente equivocado. Quando o filme
estava no auge eu fazia uma palestra, fiz em vários lugares, com função de
saúde pública mesmo, com a minha função social de consertar a cabeça
dos outros. Porque este é um filme que diz que o mundo é do jeito que
você quer que ele seja. Porque você afinal de contas é uma espécie de
Deus, e você então pode arbitrar sobre a realidade, se você quiser. É uma
ideia tão infantil! As crianças têm essa ideia até os quatro ou cinco anos,
depois elas desistem disso. No entanto, o mundo moderno completamente
infantilizado continua acreditando numa coisa dessas.
Mas para os casos mais graves em que as pessoas ficavam muito impactadas
pelo filme e se encontravam em grave estado de contaminação, eu
recomendava que alugassem na locadora, na sessão infantil, um filme
chamado O Pequeno Milagre. É a história de uma criança, de um menino
chamado Simon Birch, que tinha uma vida tão ruim – nasceu surdo, torto,
era quase cego... Olhem, a criança era tão horrorosa que tiveram que botar
insulfilme no berçário! Os pais esqueceram a criança na maternidade. Mas
este menino, apesar de ter todas as piores situações que alguém possa ter,
achava que era daquele jeito por alguma razão. Ele não sabia qual era, mas
sabia que aquilo tinha algum sentido. Pois achar que algo tem sentido,
mesmo quando você não sabe, é o que significa, aqui na Bíblia, ser pacífico.
É aceitar o que está à sua volta com uma confiança cega de que Deus fez
PROF. MONIR: Pois é da mesma turma. Tomem cuidado com este negócio.
Continuamos!
PROF. MONIR: São esses que são capazes de aceitar alguma coisa
pacificamente, ou seja, têm a capacidade de submeter-se àquilo.
PROF. MONIR: Não, não, mas isso já é outra coisa. Isso é uma espécie de
espiritismo. Toda a tentativa de achar que o sujeito nasceu torto porque na
outra encarnação passou com o automóvel por cima de alguém, isso tudo é
gnosticismo. Não tem absolutamente nada com o que a gente está falando
aqui.
PROF. MONIR: Mas no Brasil é assim. Quando o René Guénon descobriu que
aqui no Brasil tinha padre maçom, ele ficou três dias de boca aberta sem
conseguir fechar a boca.
PROF. MONIR: Há uma bula papal que diz se você é maçom, você está
excomungado automaticamente, mesmo que ninguém saiba que você é
maçom. Pois aqui no Brasil não tem padre maçom? Pois é, o Brasil não é
critério para coisa nenhuma.
ALUNOS: [risos]
cap. 5
A perfeição reside na paz, em que não há resistência
porque eles serão chamados filhos oposição de tudo quanto temos em comum com
PROF. MONIR: Que maravilha, não é? Vamos explicar aqui um ponto que
talvez vocês não compreendam... Santo Agostinho separa a mente em
espírito e razão. Essa é uma noção aristotélica. Aristóteles dizia que temos
três funções da alma:
A Função Vegetativa que preside a vida, esta função também têm os animais
e as plantas.
perseguição por amor da justiça: porque deles é de fora o que fora foi lançado, não fará
PROF. MONIR: É para você não ficar reclamando por aí que você é perseguido.
Ora, haverá coisa mais normal do que ser perseguido? Se Jesus Cristo foi
perseguido, porque cargas d´água nós não seríamos? Nós que somos
um nada! Não adianta ficar reclamando que não gostam de você, que o
perseguem, que você é discriminado... Pois se Jesus Cristo, que é Deus, foi
discriminado e foi perseguido – por que nós, com nossa porca vidinha, não
11 Bem-aventurados sois, quando vos tais coisas para receber o prêmio; há que
todo o mal contra vós, mentindo, por meu paciência, mas também com alegria. Muitos
PROF. MONIR: Portanto, até então Ele não falou com quem está ouvindo,
Ele falou genericamente. É só a partir deste momento que Jesus fala
diretamente a quem está ouvindo seu sermão ao pé daquele monte.
ninguém.
metem debaixo do alqueire, mas põe-na um canto a pregação da verdade por temor
sobre o candeeiro, a fim de que ela dê luz a de experimentar alguma perda nos bens
Aqui, pessoal, uma coisa fundamental, pra nunca esquecer: Quando digo
pra vocês que a natureza humana é tensional, eu estou na verdade dizendo
que a tensão ocorre porque estamos sempre oscilando entre dois polos que
são em si opostos. Temos a materialidade da nossa existência física e temos
O conhecimento que Deus tem é simultâneo. Mestre Eckhart dizia que Deus
está fazendo o mundo neste momento. Para Deus não há a noção de tempo,
por isso Ele permite que você escolha e não abre mão da Sua onisciência.
Essas duas coisas existem em graus de realidade muito diferentes um do
outro. A explicação para isso é a de Santo Agostinho, nas Confissões. A
referência para isso está lá.
16 Assim luza a vossa luz diante dos quando Lhe levaram aquele paralítico, e
homens. Que eles vejam as vossas obras e quando as turbas, ao vê-lo curado, Lhe
glorifiquem a vosso pai, que está nos céus. admiraram o poder, qual se escreve no
PROF. MONIR: É preciso mostrar amor a Deus e não ficar usando essas coisas
como vaidade, para você não sair das bem-aventuranças.
17 Não julgueis que vim destruir a lei, ou os Pois, se se realiza o que se acrescentou para
profetas. Não vim a destruí-los, mas sim a maior perfeição, com mais razão se realizará
PROF. MONIR: Isso é muito importante! O que Jesus está dizendo aqui é
que está autorizado o Velho Testamento dentro do cristianismo, portanto o
cristianismo incorporou o Velho Testamento no seu corpo doutrinal.
cumpridas.
PROF. MONIR: Esse “i” é o iota grego. O “ápice” que está em cima do iota é um
sinal gráfico que indica o alongamento do som do i – pode ser um tracinho
ou pode ser uma virgulazinha; há diversas notações em grego para essa
mesma coisa. É isso que se chama de ápice. É um sinal gráfico para indicar
um valor fonético diferente.
PROF. MONIR: O que parece que está escrito aqui, sem olhar para os
comentários de Santo Agostinho, é que aquele que desrespeitar as coisas
minúsculas, não é que vai perder o reino dos céus, mas vai entrar por último
na fila. Por isso é que não está aqui estabelecida a condenação daquele que
for pequeno, mas este que é pequeno vai para o fim da fila. Santo Agostinho
não entende assim. Santo Agostinho tem dúvidas, tanto é que ele escreveu
talvez. Ele não tem coragem de dizer assim: “Estes que desprezaram o iota,
estão fora”. Ele diz talvez, porque ele mesmo tem dúvida.
PROF. MONIR: Porque a justiça nova, essa que Jesus Cristo produz, é a que
tem que ser atendida. Mas ela não exclui a anterior, apenas a aperfeiçoa e
a modifica de alguma maneira, sem excluir nenhum pedacinho, nem o iota
com seu ápice.
ALUNA: [Faz comentário de que na religião judaica Jesus Cristo é visto como
um grande rabino.]
21 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não o que mostra que há vários graus de
matarás: e quem matar será réu no juízo. condenação, do mais leve ao mais grave, ou
Agostinho
Há graus, portanto, nestes pecados. No
22 Pois eu digo-vos: que todo o que se ira contra só elemento: a ira; no segundo há dois:
seu irmão, será réu no juízo. E o que disser a seu a ira e a exclamação irada; no terceiro há
irmão: Raca, será réu no conselho: e o que lhe três: a ira, a exclamação irada e, nesta, a
disser: És um tolo, será réu do fogo do inferno. expressão ofensiva. Eis pois os três estados
geena.
Entenderam a diferença entre as duas Leis? A Lei antiga vai pela aparência,
por isso é possível ser muito hipócrita pela Lei antiga, pois consigo ser um
fariseu, no sentido negativo de hipocrisia. Eu finjo bem e me safo. Pela
Lei nova, não. Se estiver fingindo, estou muito mal desde o início. Pode
ser que eu tenha feito uma coisa errada, mesmo que eu tenha feito com
bom coração. Pois esse engano que cometi pode ser perdoado, porque a
intenção era boa. Ele está mostrando aqui que a diferença da velha para a
nova Lei está fundamentalmente na sua intenção.
***********
INTERVALO
***********
23 Portanto, se tu estás fazendo a tua oferta irmão, para o qual teremos voado nas asas de
diante do altar, e te lembrar aí que teu irmão um terno pensamento, na presença d’Aquele
tem contra ti alguma coisa: 24 deixa ali a a quem temos de fazer a oferta. Igualmente,
tua oferta diante do altar e vai-te reconciliar se ele estiver presente, poderás sem nenhum
primeiro com teu irmão: e depois virás fazer fingimento apaziguá-lo, e atraí-lo novamente
PROF. MONIR: Santo Agostinho diz que esse item é alvo de muita confusão,
porque ele acha inconcebível que alguém ache certo largar tudo ali e viajar
três mil quilômetros – porque seu inimigo está em Manaus – e voltar de
A frase “Não se ponha o sol sobre a vossa ira” significa que você não pode
dormir com ira sobre alguém. Você não deve guardar rancor de ninguém.
Este é o ponto. A questão não é tanto você ir pedir desculpas, mas de não
ter mais rancor no seu coração. Também vale você pedir desculpas pro seu
irmão falando com Deus. Não precisa procurar a pessoa fisicamente para
fazê-lo. Às vezes isso pode não ser possível.
25 Concerta-te sem demora com o teu amigos, enquanto estamos com ele no caminho. Não pode
adversário, enquanto estás posto a ser senão o diabo, ou o homem, ou a carne, ou Deus, ou
caminho com ele: para que não suceda o preceito de Deus. Ao diabo não nos ordena a mostrar
que ele adversário te entregue ao juiz, e benevolência. Também não podemos concordar com
que o juiz não te entregue ao seu ministro: quem já renunciamos e declaramos guerra, nem havemos
e sejas mandado para a cadeia. 26 Em de consentir aquele que, para não cairmos jamais neste
verdade te digo, que não sairás de lá, até abismo de misérias, nunca deveríamos ter consentido.
não pagares o último ceitil. Quanto aos homens, se alguém prejudica a outrem a ponto
Reconciliar-se com Jesus é perder todo o ódio do coração. Toda a ira, todo
o ódio, jogar fora.
5
É este, portanto, o sentido: Qualquer coisa que
e para o corpo.
Ontem, na palestra do Luc Ferry, depois que ele propôs que não haja
qualquer espécie de religiosidade presidindo a vida, ele disse assim: “No
fundo, a instituição que interessa é a família”. Mas o que ele não tem a
menor ideia – porque ele não conseguiu nem fazer este raciocínio –, ele não
compreende que essa ideia de família (mesmo quando ela não tem filhos) é
uma ideia essencialmente sagrada, porque a família é o casamento do céu
com a terra.
Nós vamos ter aqui no nosso programa o livro de T. S. Elliot, Notas para uma
Definição de Cultura, em que ele vai nos dizer assim: “A cultura, qualquer que
seja ela, é uma invenção religiosa”. Chesterton nos conta como dois sujeitos
param de brigar. Duas tribos não param de brigar porque fazem um acordo
social, como diz Rousseau. Elas param de brigar porque dizem assim: “Este
solo é sagrado e não convém que a gente brigue aqui em cima”. Ponto.
Acabou a briga.
Não há possibilidade social sem o processo religioso e sagrado por trás. Não
existe isso! Não há sociedade humana que não tenha uma mediação do
sagrado. É impossível! É por isso que não adianta ficar dizendo que a família
é a solução, porque a família nada mais é do que uma forma do sagrado. É
uma forma social do sagrado, como outra qualquer. Não ter filhos é apenas
PROF. MONIR:Para o homem não diz nada. Mas o Santo Agostinho acha que
vale para os dois.
ALUNA: Oba!
Mateus - cap. 5
33 Igualmente ouvistes que foi A justiça dos fariseus consiste em não perjurar, e ela
dito aos antigos: Não jurarás confirma-se por Aquele que proíbe jurar, o que pertence
falso: mas cumprirás ao Senhor já à justiça do reino dos céus; porque, assim não pode
os teus juramentos. 34 Eu porém mentir aquele que não fala, assim tampouco pode
não jureis, nem pelo céu, porque Assim ensina o Senhor que não há nada tão desprezível
é o trono de Deus: 35 nem pela entre as criaturas de Deus por que se possa perjurar,
terra, porque é o assento de seus uma vez que todas, desde a mais alta até a mais baixa,
pés: nem por Jerusalém, porque desde o trono de Deus até um cabelo branco ou preto,
é a cidade do grande rei: 36 nem são regidas pela divina Providência. Por isso não disse
jurarás pela tua cabeça, pois não o Senhor: Tudo que daqui passa “é mau” (pois que não
podes fazer que um cabelo teu procede o mal aquele que usa bem do juramento, o qual
seja branco ou negro. 37 Mas juramento, conquanto não seja bom, pode ser todavia
seja o vosso falar, sim, sim: não, necessário para persuadir a outrem do que lhe é útil a ele
não; porque tudo o que daqui próprio), mas sim procede do mal, ou seja, daquele por
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Mas não é por isso que fica ilegítimo o que ele está dizendo.
Entenderam? Quando ele diz que procede do mal, ele não quer dizer que do
mal em si, mas do fato de que determinadas pessoas são tão fracas que só
conseguem acreditar se você jurar. Nesse sentido é que procede do mal, da
insuficiência do outro, da fraqueza do seu interlocutor.
Mateus - cap. 5
A justiça menor dos fariseus consiste em não passar de
38 Vós tendes ouvido o que pena maior do que a de que foi vítima ele próprio, que não
(...)
Aquele que veio não para destruir a lei, mas para cumprila,
mas misericordiosa.
PROF. MONIR: Vocês entenderam que o “olho por olho, e dente por dente” é
um limitador para que a resposta a uma injustiça não seja maior do que a
própria injustiça? É um limitador em si.
Não se esqueçam nunca do que vou dizer agora: A cultura ocidental, tal
como a conhecemos, é uma mistura de quase cem por cento de cristianismo
e helenismo. Se você quiser entender o mundo ocidental, basta você
compreender que ele é o resultado da mistura dessas duas coisas. Devemos
nossa ancestralidade à cultura judaico-cristã e à cultura helênica. Somos
basicamente isso. Talvez uns dez por cento que não estão nessa conta seja
atribuível aos outros.
PROF. MONIR: Têmis é a justiça velha, aquela que vinga. O sujeito matou
a tia do outro, o outro pode matar a tia dele também. É mais ou menos
isso, é essa a ideia. Essa justiça velha, do olho por olho e dente por dente,
equivale no mundo grego à justiça da deusa Têmis, que na história Oréstia é
representada pelas Fúrias ou Erínias. As Fúrias ou Erínias são três mulheres
diabólicas – sendo a mais conhecida a Megera – que passam a vida inteira
no fundo do inferno, no Tártaro, e ficam infernizando os pecadores,
contando para eles tudo o que fizeram de ruim, não lhes dando um minuto
de sossego – a não ser contar o tempo todo, o tempo todo, o tempo todo.
É, portanto, completamente natural que estas personagens diabólicas
sejam personificadas em mulheres, não é? Porque não poderia ser de modo
nenhum um homem a fazer esta função, não é? Seria completamente
inadequado...
PROF. MONIR: As mulheres ficam lá: “No dia 13 de maio de 1985 você olhou
pra outra mulher no posto de gasolina; no dia 16 de outubro de 1948 você
esqueceu o meu aniversário; no dia 15 de abril....” Quem quiser saber o que
são as Erínias, é só se lembrar disso. As três Erínias são Alecto, Megera e
Tisífone. Mas há algumas obras em que elas são muitas. Na Oréstia o coro da
peça é feito de Fúrias.
- cap. 5
Mas por acaso pensamos que disse: Vai com ele
39 Eu porém digo-vos, que não
mais outros dois mil só por dizer? Ou será que quis
resistais ao que vos fizer mal:
completar o número três – número que denota
mas se alguém te ferir na tua face
perfeição – para que todo aquele que assim proceder
direita, oferece-lhe também a
se lembre de que pratica a justiça perfeita ao suportar
outra. 40 E ao que quer demandar-
misericordiosamente as fraquezas daqueles cuja
te em juízo, e tirar-te a tua túnica,
salvação deseja? Além disso, pode-se observar que
larga-lhe também a capa. 41 E se
também por este motivo insinuou tais preceitos em
qualquer te obrigar a ir carregado
três exemplos: primeiro, se alguém te ferir na face;
mil passos, vai com ele ainda mais
segundo, se alguém te quiser tirar a túnica; terceiro,
outros dois mil. 42 Dá a quem te
se alguém te obrigar a dar mil passos, tendo, neste
pede, e não voltes as costas ao que
terceiro exemplo, acrescido o dobro à unidade para
deseja que lhe emprestes.
completar o triplo.
que nos fazem, seja igual a ela, seja, ainda, maior que
PROF. MONIR: Isso explica porque Ele fala assim: já que querem que você dê
mil passos, dê ainda mais dois mil, porque dois mil mais um mil dá três mil
– volta a simbologia do três. Portanto, o que Santo Agostinho está fazendo?
Está interpretando a fala de Jesus Cristo sob o sentido simbólico. Essa
simbologia, não a sabe Jesus Cristo porque estudou com os pitagóricos. Não
é porque Ele foi para a Índia fazer um curso secreto, ou porque fez um curso
técnico por correspondência, mas porque essas simbologias são naturais
e implícitas à condição humana. Nós as percebemos por intuição, porque
intuímos a simbologia, mas nem sempre nos damos conta conscientemente
dela. Por isso aqui está Santo Agostinho dizendo que há aí uma simbologia
pitagórica implícita. Não porque Jesus seja pitagórico! Por favor, não
entendam isso! Mas porque a simbologia que os pitagóricos nos apresentam
é a simbologia da estrutura da realidade. Ela não é pitagórica em si própria,
mas é pitagórica na medida em que é enunciada pelos pitagóricos. Mas não
porque seja em si pitagórica, porque não é.
ALUNO: [Lendo] Sim, porque qualquer que seja o significado da face direita, é
patente que é algo mais apreciado que o significado da face esquerda; e que
aquele que tolerou um agravo no que lhe é mais caro faz menos se o tolera em
algo que não aprecia tanto.
ALUNO: [Lendo] Depois nos diz que temos que dar a capa a quem nos queira
tirar a túnica, o que ou equivale meramente a dar a capa, ou o supera um
pouco, sem chegar, todavia, a ser-lhe o dobro. Quer isso dizer que, seja menor
que a anterior a nova ofensa que nos fazem, seja igual a ela, seja, ainda, maior
que ela, devemos sempre tolerá-la com espírito sereno.
PROF. MONIR: É isso que Jesus Cristo quer dizer: Seja maior a ofensa, grande
ou pequena, tanto faz, você sempre deve tolerá-la com espírito sereno.
Como diz isso? Simbolicamente por estes exemplos.
ALUNO: [Lendo] Diz: a todo aquele que te pedir, e não àquele que te pedir
tudo, de modo que dês o que possas sem faltar à honestidade nem à justiça. E
que dizer daquele que peça dinheiro emprestado para oprimir um inocente? E
daquele que pretenda um ato de fornicação?
PROF. MONIR: Se alguém pedir dinheiro emprestado pra você para sair com
a mulher do vizinho? Você deve dar o dinheiro ou não? É isso que se está
perguntando aqui.
ALUNO: [Lendo] Não prosseguirei, pois não terminaria nunca; basta-me dizer
que deves dar de modo que não prejudiques a ti nem ao próximo, dentro do que
o homem pode conhecer com probabilidade ou com certeza; e a quem negares
PROF. MONIR: Sem ciência do que você quis dizer ao negar. Aqui está a razão
pela qual não devemos imaginar ingenuamente, como se faz nos programas
de televisão, que você consegue de Deus o que você quiser, bastando pedir
para tanto. Porque essa não é a experiência real que todo o mundo tem da
vida concreta. Mas toda a vez que você alega isso para você mesmo, vem a
pergunta: será que eu não estou pedindo direito, por isso é que não estou
recebendo?
Mas está aqui Jesus dizendo que quando pedem pra você, tem que ter
juízo naquilo que você faz, porque a intenção tem que ser boa. Se há
indícios contrários a uma boa intenção naquele pedido, então você não
deve dar. Compreenderam? Não devemos ter esta visão infantil, ingênua...
Porque as pessoas pedem as coisas mais absurdas! Há quem peça para não
morrer nunca. Há na mitologia grega um sujeito assim. A deusa estava tão
apaixonada por um mortal, que pediu a Zeus, que desse a imortalidade a
este mortal. Zeus concedeu. Só que ela se esqueceu de pedir que desse pra
ele a juventude eterna.
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: E aí ele foi ficando cada vez mais velho e não morria nunca,
jamais. Foi ficando uma porcaria, porque não tinha graça nenhuma! Você vai
lá, e pede a Deus para não lhe dar sofrimento. Parece um pedido bacana...
Deus vai te transformar numa samambaia!
PROF. MONIR: Você acha bom negócio, isso? Como Deus pode lhe dar
alguma coisa que destrói e descaracteriza sua própria condição humana?
Deus não pode fazer isso. Então, Ele não fará nada por você que seja contra
você mesmo. Mesmo que ele seja generoso. Portanto vamos deixar de ser
infantis e achar que é só bater na porta, porque não é assim. Quando você
bate na porta (falta um pouquinho ainda para este pedaço), vocês verão
que é outro sentido.
ALUNO: [Lendo] Assim darás sempre algo a todo aquele que te peça, ainda que
nem sempre lhe dês o que te pedir, e alguma vez lhe darás algo melhor que o
que se te peça, se conseguires corrigir coisas injustas a quem o pede.
PROF. MONIR: Porque você pode dar um conselho para quem quer um
dinheiro para comprar um revólver para matar o vizinho: “Olha, não faça
isso!”. Pronto. Você está dando alguma coisa. Não está dando o dinheiro para
comprar o revólver, mas está dando algo muito melhor, que é o conselho
de não matar o vizinho, por mais que o vizinho mereça. Em última análise,
pessoal, vale a intenção, e é essa a regra central de toda a nova Lei.
- cap. 5
Sim, porque, sem este amor que nos leva a amar até
Está dizendo o seguinte: Se vocês não amarem os que não amam vocês, qual
é o mérito que isso tem? Porque amar o outro que ama você, amar alguém
que lhe deu de presente um carro em bom estado... não tem muito mistério
numa coisa dessas. O problema está em que a gente pode facilmente ser
induzido a acreditar que se tem que amar os outros de qualquer jeito, e não
é bem assim. Santo Agostinho fará um reparo na interpretação deste trecho.
ALUNO: [Lendo] Sim, porque, sem este amor que nos leva a amar até os nossos
inimigos e perseguidores, quem poderá cumprir o dito anteriormente? Deve-se
compreender de tal modo que devemos amar os inimigos, fazer bem aos que
nos odeiam e rezar pelos que nos perseguem, que compreendamos igualmente
que por certos pecados dos irmãos não se nos manda orar, e desse modo
evitemos que pela nossa ignorância pareça contradizer-se a divina Escritura, o
que, afinal, é de todo impossível.
PROF. MONIR: Esses certos pecados pelos quais não se deve orar são os
pecados contra o Espírito Santo. O sujeito que tem propostas demoníacas
– você não deve ajudá-lo. É isso que ele está dizendo. Portanto, não se
deve orar por todos. Agora o fato de que você não deve orar por todos
não significa que você possa orar contra alguém. Orar contra alguém? Não,
ninguém. Mas orar por todos também não, porque alguns pecados não
podem receber oração.
ALUNO: [Lendo] Mas, assim como está claro que por alguns não devemos
PROF. MONIR: É porque na verdade você não tem nada. Você só tem aquilo
que Deus deu.
contemplar.
intenção e propósito.
- cap. 6
Assim, na Igreja, como em toda a vida humana,
2 Quando pois dás a esmola, na faças aquele que ser tido pelo que não é, é um hipócrita.
tocar a trombeta diante de ti, como Finge-se justo, mas não pratica a justiça; porque
praticam os hipócritas nas sinagogas, põe todo o seu prêmio no louvor humano, o qual
e nas ruas, para serem honrados dos louvor podem conseguir os fingidores enquanto
homens. Em verdade vos digo, que enganam os que, tomando-os por bons, os louvam.
eles já receberam a sua recompensa. Tais fingidores, porém, não recebem recompensa de
homens.
PROF. MONIR: É o sic transit gloria mundi, diziam os antigos – é desse jeito
que passam as glórias do mundo.
PROF. MONIR: Não é para você entrar na sua casa, mas você ora para
dentro, você ora para a sua interioridade, e não para a exterioridade.
cap. 6
Assim como é próprio dos hipócritas fazer-se notar
7 E quando orais não faleis muito, aos mesmos homens, assim é próprio dos pagãos
como os gentios: pois cuidam que pelo pensar que serão ouvidos a poder de palavras. E
seu muito falar serão ouvidos. em verdade todo o palavrório vem dos pagãos, que
purificar o coração.
8 Não queirais portanto parecer- passagem, todas quantas passaram e todas quantas hão
sabe o que vos é necessário, Por que temos de empregar até estas mesmas poucas
primeiro que vós lh’o peçais. palavras, se Ele conhece todas as coisas antes de elas
PROF. MONIR: Deus já sabe de tudo de que você precisa. Pode ser que você
não saiba do que você precisa.
Por isso que eu digo que a melhor definição de filosofia é que filosofia é a arte
de olhar e ver o que é – como que por intuição. É isso que Santo Agostinho
está dizendo aqui também. Nós percebemos a verdade pela intuição e não
pelas palavras. Aqui mais um paralelo muito interessante entre o mundo
grego e o mundo judaico-cristão.
Agostinho
Disseram-se muitas coisas em louvor
grande Pai?
Agora, como nós somos filhos, temos direitos especiais: podemos explorar
um pouco a paciência de nosso Pai.
Agostinho
10 Venha a nós o vosso reino. Seja feita a vossa da terra, está porém ausente para os que o
vontade, assim na terra, como no céu. ignoram. Não obstante, ninguém ignorará
fecundação do céu.
Quando o Sr. Luc Ferry reclama que não quer o cristianismo porque o acha
bárbaro, acha que o cristianismo é mau, e quer colocar a família no lugar...
Ora, Meu Deus, mas onde ele vai arrumar uma família que não tenha base
religiosa? O conceito de família é absolutamente religioso. Não há como sair
dele. O casamento do homem com a mulher é o casamento do céu com a
terra. Por isso o casamento gay – viável ou não no civil – sob o ponto de vista
ontológico é absolutamente frustrado.
subsistência, nos daí hoje. para as coisas do alto e outras vezes para
ALUNOS: [risos]
cap. 6
É patente que por dívidas se compreendem
sacrifícios.
12 E perdoai as nossas dívidas, assim perdoe a dívida aos devedores, mas sim qualquer
como nós também perdoamos aos pecado que outrem tenha cometido contra ele;
No trecho “peca contra ti aquele que, tendo dinheiro, se recusa a pagar-te o que
deve”, a pessoa não peca por causa do dinheiro em si, mas pela ofensa em si.
13 E não nos deixeis cair em tentação. Mas tentação e a tribulação o fazem ao homem
misericórdia do Senhor.
O diabo tem de ser de alguma forma um anjo. De fato é, e é descrito como tal.
O diabo é um aspecto da mente de Deus que de alguma maneira resiste ao
ser humano. Não porque Deus não gosta de nós, mas resiste ao ser humano
do mesmo modo que um milionário que, achando que vai morrer, não quer
deixar trezentos milhões de dólares para o filho vagabundo que vai torrar
todo o dinheiro cheirando cocaína. Então ele faz um testamento dizendo:
“Deixo trezentos milhões de dólares para o meu gato Félix; deixo um dólar
para o fulano. Mas se o fulano fizer isso e aquilo, ficar três dias sem beber,
ficar uma semana sem tomar cocaína, parar de bater na namorada, aí eu
dou dez dólares; se ficar seis dias....” e aí vai criando uma escala de méritos.
E aí até deixa tudo para ele, se o fulano ficar bom. O diabo é equivalente
a isso. É uma entidade metafísica que metafisicamente tem que estar
ALUNO: [Lendo] Assim, tenta Satanás os homens não por seu próprio poder,
mas com a permissão de Deus,
ALUNO: [Lendo] a qual é dada quer para que os homens sejam punidos pelos
seus próprios pecados, quer para que sejam provados e experimentados de
acordo com a misericórdia do Senhor.
ALUNA: Então o diabo é submisso a Deus, e uma força muito menor? Uma
força do mal, bem mais fraca?
PROF. MONIR: Muito menor, porque no fundo ele é apenas um auxiliar. Deus
mantém o controle do processo. No caso de Jó, Deus diz assim: “Eu estou
querendo ver se o meu filho Jó gosta de mim mesmo. Então, diabo, vá lá e
Então o que acontece é que o diabo não pode ser visto como um ser maligno
no âmbito metafísico. No âmbito físico, sim, mas no âmbito metafísico não
pode, porque é ilógico. É preciso nunca esquecer que Santo Agostinho não
á apenas um padre, um religioso. Ele é um filósofo.
- cap. 6
Depreende-se destas palavras que toda a nossa
16 E quando jejuais, não vos buscando um prêmio exterior, adiramos a este século
porque eles desfiguram os seus será tão mais firme e sólida quão mais interna for, e
rostos, para ver aos homens, que em virtude da qual nos elegeu Deus para que nos
jejuam. Na verdade vos digo, que tornássemos conformes à imagem de seu Filho. [Rom.,
17 Mas tu, quando jejuas, unge E nem pelo fato de os fingidores adotarem aparência
a tua cabeça, e lava o teu rosto. humilde para seduzir os incautos deve o cristão buscar
18 A fim de que não pareças aos agradar com adorno supérfluo o olhar dos outros: os
homens que jejuas, mas somente a cordeiros não devem desprender-se da sua pele só
teu Pai está presente a tudo o que porque uma que outra vez os lobos se cobrem com ela.
há de mais secreto; e teu Pai que vê Assim também lavará o rosto, ou seja, limpará o
o que se passa em secreto te dará coração, aquele que há de ver a Deus sem nenhum véu
conferem.
PROF. MONIR: Aderir ao século não significa ser do século XX, ou do século
VIII. Aderir ao século significa aderir à matéria, ao mundo material. “Século”
significa mundo material. Lembram-se do Réquiem de Mozart? Tem a frase
solvet saeclum in favilla, que quer dizer que Deus irá dissolver o mundo em
cinzas no dia do Juízo Final – esse mundo material e concreto. Por isso que
Entenderam? Não é porque se usa a religião para ser hipócrita que você não
deve ter nenhuma religião. O cordeiro não deve perder a sua pele e jogá-la
fora, só porque o lobo a usa.
cap. 6
Algo se suja quando se mistura com uma natureza
PROF. MONIR: E vice-versa: onde está teu coração, está o teu tesouro. Ou
seja, quando você quer saber o que te interessa na vida mesmo, para saber
onde está o teu coração, é perguntar: “Do que eu gosto, afinal de contas?”
Quando você pergunta isso, você sabe como você é.
Mateus - cap. 6
O sentido deste passo é que nos temos de persuadir de
a obra, seja qual for o seu resultado; mas este resultado, por
será tal obra imputada não pelo seu resultado, mas pela
Você fez por amor de verdade? Então tá bom, não tem problema, é aceitável.
Mas você fez porque queria ser mau? Mesmo que tenha dado certo no final,
você não agiu bem. Por este hábito você é condenado.
ALUNO: [Lendo] E, assim, se agi com boa intenção, ela me era conhecida
enquanto eu agia, e por isso é chamada luz; e também me fica iluminada a obra,
seja qual for o seu resultado; mas este resultado, por incerto e desconhecido,
é chamado trevas. Ou seja, se a própria intenção do coração, a intenção com
que fazes o que fazes, e que te é conhecida, for maculada e enceguecida pelo
apetite das coisas terrenas e temporais, quão mais sórdido e tenebroso não será
o resultado, que desconheces?
cap. 6
Os Hebreus chamam a mammona à riqueza,
24 Ninguém pode servir a dois senhores:
enquanto no idioma púnico é Mammon o
porque ou há de aborrecer um, e amar
nome para lucro ou ganho; e quem serve ao
outro: ou há de acomodar-se a este, e
mammonae serve em verdade àquele que, posto
desprezar aquele. Não podeis servir a
à frente dos negócios temporais, é em razão da
Deus, e às riquezas.
sua perversidade chamado pelo Senhor príncipe
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: A CNBB poderia ter dito: não se pode servir a Deus e as
mammonas6, teria ficado muito mais adequado sob o ponto de vista do
espírito da Campanha da Fraternidade.7
banda nacional de rock cômico formada em 1990, que alcançou grande sucesso em 1995 a
partir da gravação de um álbum com músicas irreverentes, de gênero popular. A banda acabou
em 1996, quando o grupo sofreu um acidente aéreo que ocasionou a morte de todos os seus
09.nov.2017.
lançada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que se chamava “Economia
e Vida” e tinha o lema “Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” – capítulo 6, versículo 24 do
cap. 6
O Senhor, no entanto, nos exorta a lembrar que o
25 Portanto vos digo, não andeis por cujo cuidado não quer que se nos divida o
cuidadosos da vossa vida, que coração. Porventura – diz-nos Nosso Senhor – não
comereis, nem para o vosso corpo, vale mais a vida que o alimento? [Mat., VI, 25],
que vestíreis. Não é mais a alma que a querendo fazer-nos compreender que quem
comida? E o corpo mais que o vestido? nos deu a alma nos dará muito mais facilmente
PROF. MONIR: Santo Agostinho está dizendo que esse versículo implica no
estabelecimento de uma hierarquia de valores, que começa com as coisas
de cima para as coisas de baixo – nunca ao contrário.
- cap. 6
26 Olhai para as aves do céu, que
27 E qual de vós discorrendo pode a sua providência, vesti-lo; e um sinal de que não se
acrescentar um côvado à sua deve a vós que o vosso corpo tenha tal estatura é que
PROF. MONIR: “Segam” é colhem. Um côvado são 45 cm. Você não consegue
aumentar a sua estatura, então você deve deixar isso para quem pode. (Deus
fala a mesma coisa para Jó.)
- cap. 6
28 E por que andais vós solícitos pelo
lírios do campo: eles não trabalham, (...) mas quis aqui o Senhor deduzíssemos quanto
nem fiam. 29 Digo-vos mais, que se preocupa Ele, que é bom e justo, com os que
nem Salomão em toda a sua glória a Ele recorrem suplicantes, uma vez eu até um
se cobriu jamais como um destes. 30 homem tão injusto, ainda que tão-somente para
Pois se ao feno do campo, que hoje livrar-se do incômodo, não pôde afinal repelir quem
pelo dia de amanhã. Porque o dia Logo, quando fizermos algum bem, pensemos não
de amanhã a si mesmo trará seu nas coisas temporais, mas nas eternas, e assim nos
cuidado. Ao dia basta a sua própria será boa, nos será perfeita a obra.
aflição.
Mateus - cap. 7
E, dado que não se sabe com que intenção procedem os
julgado temerariamente.
Para podermos entender o que está escrito aqui agora, temos que entender
o seguinte:
Há dois tipos de mistérios: os grandes e os pequenos mistérios. Os pequenos
mistérios são os cosmológicos, aqueles associados ao cosmos, à ordem
geral das coisas materiais, às coisas que pesquisamos como cientistas, por
exemplo. Mas existem os grandes mistérios, que são as coisas associadas a
Deus. E esses grandes mistérios são impenetráveis.
O que ele está pedindo é para não fazer o seguinte: por exemplo, aparece
um sujeito na cadeira de rodas, e vem alguém criar a teoria de que ele está
daquele jeito porque em outra vida ele atropelou alguém, fugiu, não deu
assistência à vítima e por isso nasceu paraplégico nessa. Se você é espiritista
e acha isso, você não está sendo cristão, e então não tem o direito de me dizer
que é cristão. Do ponto de vista cristão, isso é uma barbaridade gigantesca!
Porque, afinal de contas, isso significa dizer que você lê a mente de Deus,
sabe dos desígnios da divindade, que sabe tudo que irá acontecer e não
está admitindo nenhum outro mundo a não ser este. Porque quando se fica
por aí discursando que aqui se faz e aqui se paga, se está dizendo que há
somente uma única referência existencial, que é este mundo. Ora, mas isso
não é ser cristão. É justamente o contrário! Isso é ser materialista! Portanto
não temos o direito de fazer tal declaração sendo cristãos. Porque existem
coisas misteriosas que nunca se compreenderão, nem mesmo talvez no
próprio Juízo Final. Há que se partir do pressuposto de que a realidade, tal
PROF. MONIR: Você cometeu uma injustiça porque julgou sem saber alguma
coisa que estava oculta. Mas isso no caso de alguém que está com um
problema físico é muito mais fácil de descobrir. Agora imagine uma criança
que nasceu sem cérebro. A imprensa começou uma conversa de que seria
um absurdo manter aquela criança viva. Se não tem cérebro, por que mantê-
la viva? Qual o raciocínio que está por trás disso? Ela não vai poder ter conta
no banco, não terá cartão de crédito, nem celular... então pra quê viver?
Vocês percebem a barbaridade que é uma coisa dessas? Como você pode
julgar se aquela criança deve viver ou não, se você não conhece o plano de
Deus para aquela criança? Você não tem a menor ideia. Você não é Deus!
Você não sabe o plano de Deus, portanto não se meta a julgar isso! E se há
uma pessoa vivendo em coma, por aparelhos, você sabe se é para desligar o
aparelho ou não? Como você sabe uma coisa dessas? Você não sabe o plano
de Deus! Portanto, não se meta a julgar isso, só porque você acha, de acordo
com a sua perspectiva humanitária, que determinada pessoa não deveria
viver. No tempo de Santo Agostinho uma coisa dessas nem era cogitada.
Hoje, se fizerem um plebiscito, é muito capaz de votarem que as pessoas
estropiadas devem ser condenadas à morte. Só porque nós achamos que
PROF. MONIR: Quer dizer, você está supondo que o sujeito não se emenda.
Essa é outra suposição muito grave. Novamente você está julgando, a não
ser que você o faça amorosamente. E como você faz amorosamente? Você
faz irado, mas não odiando. E aí Santo Agostinho irá estabelecer em seguida
a diferença entre a ira e o ódio. A ira pode ser positiva porque foi a reação de
Jesus Cristo quando encontrou os vendilhões do templo. A ira pode ser boa,
pois pode ser uma reação amorosa a um objeto que está indo mal. O ódio
não! O ódio é mortífero e fatal. Temos que impedir o ódio, não a ira. A ira tem
viabilidade. O próprio Hamlet diz assim: “é preciso às vezes ser mau para ser
bom”. Está escrito em Hamlet, e ele tem toda a razão.
cap. 7
Se cometemos um juízo temerário, por acaso
2 Pois com o juízo com que julgardes, porque compreendo por medida o próprio juízo.
sereis julgados: e com a medida com De modo algum são temerários os juízos de Deus,
que medirdes, vos medirão também nem a ninguém aplica Ele nenhuma medida injusta.
PROF. MONIR: Quando a gente diz assim: que nós seremos julgados como
nós julgarmos, isso não quer dizer que Deus também será temerário com
relação a nós. Porque Deus não pode ser mau, nem errado.
ALUNO: [Lendo] Digo isto porque compreendo por medida o próprio juízo.
De modo algum são temerários os juízos de Deus, nem a ninguém aplica Ele
nenhuma medida injusta. Inequivocamente, o sentido de tais palavras é que
a mesma temeridade com que ofendes a outrem haverá de ser o teu próprio
castigo; não penses jamais, portanto que a injustiça prejudica tão-só o que é
vítima dela e não o que é o seu autor.
7
Quanta distância entre a aresta e a trave, ou
3 Por que vês tu pois a aresta no olho de pela longa duração, que justíssimamente pode
teu irmão: e não vês a trave no teu olho? chamar-se viga. Aquele que se encoleriza contra
querer.
ALUNO: [Lendo] Quanta distância entre a aresta e a trave, entre a ira e o ódio.
PROF. MONIR: Pronto! Está aqui ó! A aresta e a trave (ou viga) não são a aresta
e a trave materiais. Uma coisa é a ira, que é a pequena, e outra coisa é o ódio.
O que não pode ter é o ódio. Ira é bom ter. É até positivo ter. Mas o ódio não
se pode ter. Quando você fica bravo com seu filho é porque você quer que
ele melhore. Não há nada de errado em ficar bravo com um menino que fez
uma besteira. Você quer o bem dele, não é?
cap. 7
que se revelou.
PROF. MONIR: Por causa desse trecho aqui nasceu esta ideia de que se
você quer um BMW novo, basta ir até a catedral e pedir muito, que Deus
manda um para você. Pode até ser que mande. Não estou nem dizendo
que não vai mandar. Só que essa é uma compreensão muito parecida com a
compreensão que o Edir Macedo tem de religião. É muito primário! Analisar
as coisas desse jeito é você perder totalmente a profundidade do próprio
cristianismo.
Tenho uma lista de convertidos, que eu faço quando encontro um. Todos são
convertidos para o catolicismo, nunca para o protestantismo. Aí eu pergunto
assim para os convertidos: “Mas por que você escolheu o catolicismo e não
ALUNO: [Lendo] O pedir visa a obter a saúde e a firmeza da alma, para que
possamos cumprir o que se nos manda; o buscar visa a encontrar a verdade;
porque, como a vida bem-aventurada é constituída pela ação e pelo
conhecimento, e como a ação requer o uso das próprias forças, e a contemplação
requer a revelação das coisas, é preciso pedir a primeira, para obtê-la, e buscar
a segunda, para encontrá-la. E, conquanto nesta vida o conhecimento do
caminho anteceda ao conhecimento do bem que se há de possuir, no momento
mesmo, porém, em que alguém encontre o caminho verdadeiro, alcançará a
própria posse deste bem, posse que todavia só se abre àquele que bate.
PROF. MONIR: Portanto não adianta você pedir um BMW, uma casa na
praia, uma caixa d’água azul bem bacana e um jeito de ir almoçar de táxi
em Antonina todo o dia, porque isso é de uma futilidade tremenda. O que
Deus quer fazer por você é ajudar você a melhorar a sua alma. É isso que Ele
fornece, se você pedir. Essas outras coisas todas são ingenuidades. É claro
que Deus pode atendê-las. Pode. Mas é uma coisa muito abaixo do que a
gente deveria compreender por esta determinação.
cap. 7
Como é que os maus podem dar bens? Sucede
PROF. MONIR: Então Ele está dizendo que nós somos maus. Mas é preciso
entender o que se quer dizer com “maus” aqui. Somos maus porque somos
materiais e temporais – nesse sentido é que nós somos maus.
Mateus - cap. 7
Parece, pois, que este preceito se refere ao amor
12 E assim tudo o que vós quereis homens, e, assim, no próprio preceito de querer para
que vos façam os homens, os outros o que quereríamos para nós mesmos, estaria
fazei-o também vós a eles. subentendido o de amar a Deus e aos homens. Como
Porque esta é a lei, e os profetas. todavia o Senhor se refere expressamente aos homens:
[Mat., XXII, 39]. Mas notese que no preceito que aqui nos
as profecias.
Mateus - cap. 7
13 Entrai pela porta estreita:
A este respeito, devemo-nos precaver sobretudo
porque larga é a porta, e
daqueles que prometem a sabedoria e o conhecimento
espaçoso o caminho que guia
da verdade, sabedoria e conhecimento que eles próprios
para a perdição, e muitos são
não têm, como é o caso dos hereges, os quais amiúde
os que entram por ela. 14
se recomendam a si mesmos por ser pequeno o seu
Que estreita é a porta, e que
número. Assim, tendo dito o Senhor que são poucos os
apertado o caminho que guia
que encontram a porta e o caminho estreitos, acrescenta,
para a vida! E que poucos são
precisamente para que não se sintam aludidos tais hereges
os que acertam com ele! 15
quando fala Ele em poucos: Guardai-vos dos falsos profetas,
Guardai-vos os falsos profetas,
que vêm a vós com vestidos de ovelhas, e por dentro são
que vêm a vós com vestidos
lobos rapazes. [Mat., VII, 15] Mas estes não enganam o olhar
de ovelhas, e dentro são lobos
simples, que sabe distinguir a árvore pelos seus frutos.
roubadores!
ALUNOS: [risos]
PROF. MONIR: Não. A palavra “rapazes”, que ilustra os seres humanos jovens
do sexo masculino vem daí porque não há gente tão destrutiva quanto
esta turma! De onde você pensa que vem a palavra “rapaz”? Na sua origem
vem de rapacidade, pois o que há ser mais destrutivo e perigoso do que
um fulano de dezenove anos, com som atrás do carro, tocando Leandro e
Leonardo bem alto na praça?
ALUNOS: [risos]
- cap. 7
A esta altura, é preciso ter particular cuidado com
16 Pelos seus frutos os conhecereis. provar que essas duas árvores não lhes favorecem a
Porventura os homens colhem teoria. Primeiramente, porque é tão claro que Cristo
uvas dos espinhos, ou figos dos se refere aqui aos homens, que quem quer que
abrolhos? 17 Assim toda a árvore analise o que antecede a estas suas palavras e o que
boa dar maus frutos: nem a árvore Depois, fixamse eles nestas palavras: Não pode uma
má dar bons frutos. 19 Toda a árvore boa dar maus frutos, deduzindo delas que nem
árvore, que não dá bom fruto, a alma boa pode fazerse má, nem a má pode tornarse
será cortada e metida no fogo. 20 boa, como se se tivesse dito: Não pode uma árvore boa
Assim pois pelos frutos deles os fazerse má, nem uma árvore má tornarse boa. Mas as
PROF. MONIR: Logo é possível mudar. É por isso que é possível que um
homem mau faça uma ação boa. Se o Fernandinho Beira-Mar8 salvar uma
criança lá que estava com câncer, se ele melhorar e salvá-la, então esta é
uma ação boa, mesmo vinda do Fernandinho Beira-Mar. Porque na prática
da vida humana, as pessoas não são totalmente más ou totalmente boas. É
da natureza humana ser conflituoso. Nós estamos sempre naquela condição
tensional entre o céu e a terra. Logo é natural que tenhamos uma vida
8 Nota da revisora de transcrição – “Luiz Fernando da Costa, mais conhecido como Fer-
nandinho Beira-Mar (Duque de Caxias, 4 de julho de 1967), é um criminoso brasileiro, líder
ALUNO: O que seria “Toda a árvore, que não dá bom fruto, será cortada e
metida no fogo”?
cap. 7
Não pensemos, pois, que pelo mero dirigir-se
a Nosso Senhor e dizer-Lhe: Senhor, Senhor,
alguém produz já aqueles frutos que distinguem
21 Nem todo o que me diz: Senhor, a árvore boa. Os únicos frutos bons consistem
Senhor, entrará no reino dos céus: mas em fazer a vontade do Pai, que está nos céus,
sim o que faz a vontade de meu Pai, este mesmo fazer a vontade do Pai de que se
que está nos céus, esse entrará no reino dignou dar-se-nos Ele próprio como exemplo.
dos céus. 22 Muitos me dirão naquele Segue-se, então, que há dois modos de dizer: o
dia: Senhor, Senhor, não é assim que dos que expressam aquilo que apreendem com
profetizamos em teu nome, e em teu o entendimento e querem com a vontade, e o
nome expelimos os demônios, e em teu daqueles que somente dizem com a voz. A este
nome obramos muitos prodígios? 23 E eu sentido é que se referia o Senhor ao afirmar:
então lhes direi em voz bem inteligível: Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará
Pois eu nunca vos conheci. Apartai-vos no reino dos céus. Mas dizem com verdade e
de mim, os que obrais a iniqüidade. 24 propriedade aqueles cuja mente e cuja vontade
Todo aquele pois que ouve estas minhas não estejam em desacordo com a sua palavra,
palavras, e as observa, será comparado e neste sentido é que se expressou o Apóstolo
ao homem sábio, que edificou a sua ao afirmar: E ninguém pode dizer Senhor Jesus
casa sobre rocha. 25 E veio a chuva, e senão pelo Espírito Santo.
transbordaram os rios, e assopraram Com efeito, não temeu este sábio nenhuma
os ventos, e combateram aquela casa, superstição tenebrosa (que outra coisa se pode
e ela não caiu: porque estava fundada entender aqui por chuva, usada como está
sobre a rocha. 26 E todo o que ouve estas para significar algum mal?); nem os rumores
minhas palavras e as não observa, será dos homens, que julgo estão aqui comparados
comparado ao homem sem consideração, aos ventos; nem o rio desta vida, figura das
que edificou a sua casa sobre areia. 27 concupiscências carnais que correm, caudalosas
E veio a chuva, e transbordaram os rios, e transbordantes, sobre a terra. Aquele que se
e assopraram os ventos, e combateram deixa seduzir pela prosperidade é alquebrado
aquela casa e ela caiu, e foi grande a sua por essas três adversidades, das quais nada
ruína. tem que temer aquele que edificou a sua casa
sobre rocha, ou seja, aquele não só ouve os
mandamentos de Deus mas os cumpre.
Eu acho que nesta história toda quem tem mesmo razão não é o Santo
Agostinho, mas um monge agostiniano – que portanto de alguma maneira
compartilha o que pensa Santo Agostinho. Esse monge agostiniano se
chama Martinho Lutero. Ele está com a razão não porque tenha criado o
luteranismo e um cisma dentro do cristianismo – acho que ele fez errado,
que isso não devia ter acontecido, que não foi uma boa ideia (mas não
vamos entrar no mérito desse assunto) – mas Martinho Lutero está certo
porque ele resume toda essa história no seguinte:
Portanto ser cristão não é você ser igual ao que está aqui, porque isso
não se consegue fazer exatamente – as exigências são tão amplas que é
muito difícil que você as conquiste todas, digamos, no espaço de uma
vida concreta, sempre muito curta. A vida humana é curtíssima! Mesmo se
vivida longamente, ela ainda é muito curta – dentro de uma perspectiva
comparativa. Mas se você encara a vida humana, a vida cristã, como sendo
uma tentativa de santidade, aí você se encontra numa posição muito
diferente, porque afinal de contas há toda a diferença entre a velha Lei e a
nova Lei.
Quando você junta, então, essas duas coisas: a ideia de que não é a santidade,
mas é a busca da santidade com a permeação permanente da boa intenção
– você descobre finalmente o que é o cristianismo. O cristianismo não exige
de você nenhuma perfeição, exige de você a maior boa vontade do mundo
para conseguir isso. Essa é a razão pela qual é perfeitamente possível não
estar dentro do padrão, digamos, das normas sugeridas pelo Sermão da
PROF. MONIR: Sim, tem toda a razão. Santo Agostinho dizia assim: “Ai,
Senhor, dai-me a castidade, mas não agora!”
ALUNOS: [risos]
[Aplausos]
(Resumo feito por José Monir Nasser, com excertos traduzidos por Carlos Ancê‑
Edson Campagnolo
Kleberr Wlader
Pandita Marchioro
Conteudista
Revisão de transcrição
Patrícia Nasser
Revisão Literária e Palestras
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