Viol Once Lo
Viol Once Lo
Viol Once Lo
UM COMPÊNDIO BRASILEIRO
Organizador: William Teixeira
UM COMPÊNDIO BRASILEIRO
Reitor
Marcelo Augusto Santos Turine
Vice-Reitora
Camila Celeste Brandão Ferreira Ítavo
Conselho Editorial
Rose Mara Pinheiro (presidente)
Além-Mar Bernardes Gonçalves
Alessandra Regina Borgo
Antonio Conceição Paranhos Filho
Antonio Hilario Aguilera Urquiza
Delasnieve Miranda Daspet de Souza
Elisângela de Souza Loureiro
Elizabete Aparecida Marques
Geraldo Alves Damasceno Junior
Marcelo Fernandes Pereira
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Vladimir Oliveira da Silveira
UM COMPÊNDIO BRASILEIRO
Campo Grande - MS
2021
© dos autores:
André Micheletti
Bernd Alois Zimmermann
Bruce Duffie
Cristian Brandão
Fábio Presgrave
Hugo Pilger
Kalyne Valente
Marc Vanscheeuwijck
Tim Janof
William Teixeira
1ª edição: 2021
Revisão
A revisão linguística e ortográfica
é de responsabilidade dos autores
Direitos exclusivos
para esta edição
Editora associada à
ISBN: 978-65-86943-41-2
Versão digital: março de 2021
Traduções: William Teixeira e Vitória Louveira
Apresentação
Cristian Brandão e Kalyne Valente.................................................................. 9
1. As Histórias do Violoncelo......................................................................... 13
Marc Vanscheeuwijck
3. O Violoncelo no Brasil...............................................................................134
Hugo Pilger
Lista de autores.............................................................................................313
APRESENTAÇÃO
9
No Brasil, o inicio do século XX foi sem dúvida o momento mais
importante para a difusão do violoncelo com a vinda de muitos músicos
e artistas europeus que fugiam das guerras e situações economicamente
difíceis em seus países. Fábio Presgrave e Hugo Pilger discorrem sobre
a chegada desses extraordinários artistas que marcaram definitivamente
a escola do violoncelo no Brasil e do mundo, como a chegada de Tomaz-
zo Babini (1885-1949) em Natal-RN, dos portugueses Frederico Nascimento
(1852-1924) e José Guerra Vicente (1907-1976) ambos no Rio de Janeiro-RJ,
do descendente de italianos Calixto Corazza (1907-1987) em São Paulo e de
Jean Jacques Pagnot (1922-2003) em Porto Alegre-RS. Os frutos dessa “an-
cestralidade” são primorosamente relatados nestes dois artigos e seguem
enriquecendo o cenário musical por várias gerações.
10
uma importante ferramenta na prática do violoncelo, expandindo novas
possibilidades de investigação e estudo.
11
PARTE 1
PASSADO, PRESENTE E
FUTURO DO VIOLONCELO
12
AS HISTÓRIAS DO VIOLONCELO
Marc Vanscheeuwijck
13
A história não é uma disciplina estática, mas uma reconstituição con-
temporânea do passado através de metodologias sempre em evolução,
do crescimento contínuo dos conhecimentos e do constante acúmulo
de descobertas através da pesquisa. Portanto, é normal que, na história,
as abordagens baseadas na performance da música histórica sofram os
mesmos tipos de evoluções.
14
amarrado em torno do pescoço e ombros do instrumentista - surgiu
também como um instrumento alternativo para a execução de reper-
tórios solo e de baixo contínuo do século XVIII.
15
dos mais salientes na era barroca na Itália e em outros lugares da Europa
onde os violoncelistas italianos tiveram uma grande influência, tentan-
do compreender o violoncelo no início do período moderno. Depois de
explorar essa questão básica, vou tomar como meu ponto de partida o
mais antigo método de violoncelo escrito por Corrette (1741). Em vez
de adotar uma abordagem meramente cronológica, terei de fazer um re-
torno para o início dos séculos XVIII e XVII, através de dois centros de
desenvolvimento dos violinos baixo, Nápoles e Bolonha. Finalmente, eu
abordarei questões e problemas relativos ao violoncelo da spalla1.
O QUE É O VIOLONCELO?
RECONSIDERANDO A QUESTÃO
Os violoncelistas hoje interessados em práticas de performance
histórica adaptaram a abordagem geral de utilizar instrumentos que
são, tanto organologicamente como em termos de técnicas, muito pró-
ximos do violoncelo moderno. Na verdade, o violoncelo “barroco” foi
caracterizado por sua forma mais ou menos parecida com o violino;
suas quatro cordas (de tripa ou de tripa revestida) afinadas em quintas
(geralmente em C-G-d-a, exceto em alguns casos, como a Quinta Suite
1
Partes deste capítulo consistem em seções revistas e atualizadas, resumos e reelabora-
ções de vários textos que escrevi na última década. Estes incluem principalmente as notas
publicadas nos encartes dos CDs: Marc Vanscheeuwijck, “Nel Giardino di Partenope.
Sonate Napoletane per Violoncello”, encarte para Nel Giardino di Partenope. Gaetano Na-
sillo, Michele Barchi, Sara Bennici (1 CD Arcana/Outhere Music France A185, 2015).
Eles também incluem conferência não publicadas: “O Violoncello em Nápoles do século
XVIII” apresentado na Conferência Pietro Marchitelli, Michele Mascitti e la Scuola Stru-
mentale Napoletana (Villa Santa Maria, novembro de 2014); e “Se non è Vero è molto ben
Trovato: O “Violoncello da Spalla” no século XXI”, artigo apresentado na 18ª Conferência
Bienal Internacional de Música Barroca (Cremona, julho de 2019). E finalmente: “Cello
Stories” para Cello Stories. The Cello in the 17th & 18th Centuries. Bruno Cocset, Les Basses
Réunies (5 Cds Alpha Classics/Outhere Music France Alpha 890, 2016).
16
de Bach, com a afinação C-G-d-g2); espelho um pouco mais curto; es-
tandarte e cavalete mais planos e com formato diferente; a ausência de
um espigão; um comprimento total da caixa de cerca de 75cm e espaço
vibratório da corda com comprimento de cerca de 69cm, e às vezes até
mesmo um braço de ângulo diferente (muitas vezes mais reto). É sem-
pre tocado rigorosamente em uma posição da gamba. Os arcos que os
violoncelistas usam são frequentemente mais curtos, com varetas em
estilo italiano ou francês para repertórios do século XVII ou mais lon-
gas, embora ainda convexas ou retas, para a música do início do século
XVIII; e os chamados arcos de transição para repertórios posteriores.
Todos são tocados exclusivamente com pegada superior, isto é, com a
mão acima do talão, mais ou menos à maneira dos violinistas segura-
rem seu arco. Como mencionado anteriormente, o termo violoncello (ou
sua alternativa violoncino) é apenas um diminutivo do termo genérico
violone, que foi mais comumente usado no período barroco para indi-
car qualquer instrumento de cordas friccionadas que tocasse as partes
de baixo em um conjunto musical. Além disso, nas últimas décadas, o
termo violone tem sido usado principalmente para denotar um instru-
mento grande, geralmente transpositor de oitava descendente, como o
contrabaixo; veremos, na verdade, que esse uso é muito restritivo. Por
agora, vamos partir do pressuposto de que o violone era apenas o nome
mais comum para uma grande viola baixo - literalmente - e foi muitas
vezes um membro da família do violino ou das viola da braccio, embora
este fato se torne menos relevante à medida que exploramos o assunto.
2
Nota do Editor: Devido às muitas referências a diferentes afinações e à importância
em discriminar as oitavas de cada corda, o autor adota o sistema de grafia de alturas de
Helmholtz, de modo que o Dó, corda solta do violoncelo moderno, é grafado C, o Dó
oitava acima c, uma oitava acima ainda (dó central) c’ e assim sucessivamente (c’’, c’’’, etc).
A mesma distinção aplica-se a todas as notas dentro de cada oitava, também grafadas no
sistema norte-americano de cifras (C, D, E, F, G, A, B).
17
Como instrumentos baixo da família do violino (doravante,
“violinos baixo”), violoncelli e violoni têm sido objeto de muita discussão
e confusão nos últimos anos, particularmente desde que Stephen
Bonta publicou dois artigos em 1977 e 1978. O segundo ensaio, sobre
a terminologia dos violinos baixo na Itália do século XVII, mostrou a
enorme diversidade de nomes de violinos baixo que eram utilizados:
os termos encontrados, além de violone e violoncello, são bassetto, viola
basso, basso da brazzo, viola, violone da braccio, violonzono, violoncino, violone
piccolo, e muitos mais. O artigo de 1977 argumentou que o violone não
era necessariamente um contrabaixo de 16 pés, mas poderia ser um
baixo de 8 pés da família do violino3. De acordo com Bonta (1978), a
diferença entre o violone e o violoncelo - um termo encontrado pela
primeira vez na edição veneziana de 1665 da Sonata A 2. & a tre con la
parte di violoncello a beneplacito (Opus 4) pelo organista bolonhês Giulio
Cesare Arresti (1619-1701)4 - era que o violone geralmente era maior
e o violoncelo (a partir de 1660) foi encordoado com pelo menos uma
corda de tripa revestida de aço (um desenvolvimento na fabricação de
cordas que ocorreu aproximadamente na mesma década em centros
como Bolonha e Bérgamo) e era consideravelmente menor, oferecendo
assim tanto um bom som grave, quanto uma maior facilidade em tocar
passagens mais virtuosísticas.
3
Por 8 pés refiro-me à nota que um tubo de órgão de oito pés de comprimento produz
(no registo Praestant ou Principale), que é um C. Por 16-pés me refiro à oitava abaixo (C,-
B,), enquanto 4-pés se refere à oitava acima (c-b), de modo que não têm nenhuma relação
com o tamanho do instrumento,.
4
Apenas a parte de Violoncello sobreviveu em PL-WRu, 50258 Muz. Cf: ARRESTI, 1665.
18
têm em grande parte baseado sua técnica em preceitos de Corrette, em
questões sobre como segurar o instrumento e o arco, e como identificar o
violoncelo. No final, os violoncelistas que adotaram o violoncelo “barroco”
não precisaram se afastar muito de sua zona de conforto em termos
de equipamento e técnica. No entanto, eu acredito que o que Corrette
descreveu em seu tratado não era uma prática generalizada, mesmo em
1741, mas sim uma abordagem relativamente nova (aquela de Giovanni
Bononcini e provavelmente também de violoncelistas napolitanos
como Francesco Alborea e Salvatore Lanzetti), tanto na técnica como
no uso de um instrumento de ideal semi-padronizado, adotado bastante
recentemente, que oferecia as melhores características tanto dos tipos
grandes quanto dos pequenos. Corrette queria promover tanto o
instrumento quanto sua técnica de tocar como “a” maneira correta em seu
livro, que foi destinado principalmente para violoncelistas amadores. Em
resumo, a “maneira Corrette” de se tocar o violoncelo veio a ser utilizada
para os repertórios de meados do século XVIII e posteriores, mas acabou
sendo também adotada para os repertórios dos dois séculos anteriores.
19
lógico, então o violoncelo é o tipo de instrumento descrito acima, emer-
gente na década de 1660. Tudo isso sugere que a pergunta “o que é o
violoncelo?” seja muito restrita, quando o que pretendemos na verdade é
lidar com o instrumento baixo da família do violino no início do período
moderno. Estendemos então o tema a algo mais inclusivo e abrangente.
20
iconográficas, parece ser a maior das três categorias. Esta é definitiva-
mente uma noção que a erudição pós-grande narrativa não está mais
disposta a aceitar, porque não corresponde ao que hoje consideramos
ser a realidade do passado.
5
Refiro-me a diatônico quando a mão está posicionada de forma oblíqua na escala, como
no violino. O dedilhado cromático, como adotado na gamba baixo, utiliza uma posição
perpendicular dos dedos no espelho.
21
A afinação e as notas do violino.
22
instrumentista não seja prejudicado por ele (JAMBE
DE FER, 1556, pp. 61-63, ênfase minha)
23
O MÉTODO DE MICHEL CORRETTE (1741)
Nenhum documento antes do livro de Corrette (1974), Methode,
théorique et pratique. Pour Apprendre en peu de tems le Violoncelle dans sa
Perfection, nos diz em detalhes minuciosos e sistemáticos como tocar o
violoncelo. Corrette publicou métodos para praticamente todos os prin-
cipais instrumentos, sempre tentando oferecer o caminho mais eficiente
para aprender um instrumento em benefício dos amadores. Em muitos
casos, como ele fez aqui, ele incluiu alguns princípios básicos de música
(pp. 1-6). Seu extenso Préface começa da seguinte forma:
Há cerca de 25 ou 30 anos trocamos o grande Basse
de Violon afinado em Sol pelo violoncelo italiano,
inventado por Bononcini, que é atualmente mestre
de capela do Rei de Portugal. Sua afinação é um tom
mais alto do que o velho baixo, o que lhe dá muito
mais possibilidades” (CORRETTE, 1741, p. 1)
24
também serão capazes de aprender as posições no es-
pelho nos capítulos 4 e 5, onde eles vão encontrar a
maneira comum de ensiná-las. Eu também forneço
uma outra posição que deriva dos baixos antigos afi-
nados em Sol, que alguns têm usado no violoncelo,
mesmo que tenham abandonado o grande basse de
Violon, mas não as suas posições, o que cria várias “sei-
tas” entre os violoncelistas. A maneira melhor e geral-
mente mais aceita é a de Bononcini, que é usada pelos
mestres europeus mais qualificados (CORRETTE,
1741, p. C, ênfase minha)
25
Descrita de forma igualmente autoritária, a pegada do arco pode
ocorrer de três maneiras, todas por cima. A primeiro descrita (ABCDE)
é a posição que os violoncelistas barrocos modernos adotaram.
26
veram que mudar sua técnica habitual de pegada inferior para a pegada
superior, combinando assim com a dos violinos. De agora em diante,
vemos que na iconografia relativa à corte francesa, os baixistas consis-
tentemente tocam com a mão por cima do arco, enquanto que em outros
lugares do reino os violoncelistas muitas vezes continuaram a usar a téc-
nica mais normal de pegada por baixo do arco. Em todo caso, a pegada
superior que Corrette prescreveu aos alunos de violoncelo já tinha lon-
gos precedentes na França e em Nápoles, mas possivelmente também em
Roma, como vamos descobrir mais tarde .
27
Figura 3: Posições de mão esquerda em Corrette
28
posição sentada para se tocar com pegada superior do arco e uma posição
perpendicular (ao espelho) e cromática dos dedos da mão esquerda; o uso
da posição do polegar quando necessário em partes agudas, o que pare-
ce ter sido usado por violoncelistas como Bononcini, mas não de forma
padronizada ainda. Ao fornecer um método tão sistemático, Corrette
estabeleceu um modelo que seria seguido por muitos outros pedagogos
(principalmente os franceses) do violoncelo. As técnicas descritas esta-
beleceram a base para o Essai sur le doigté du violoncelle, et sur la conduite de
l’archet (1806), de Jean-Louis Duport e, através do uso do Essai no Con-
servatório de Paris, para toda a técnica moderna de violoncelo.
29
violoncelo piccolo: “Ittem un Violon de Estayner con su Caja en mil y quinienttos
Reales-/Ittem un Violon Chico con su Caja en doscientos Reales”. Em 1756,
Leopold Mozart descreve em seu Versuch einer gründlichen Violinschule que:
O sétimo tipo é chamado de Bassel ou Bassette, que
nós chamamos de violoncelo por conta do violon-
cello italiano. Ele costumava ter 5 cordas, mas agora
é usado com apenas 4. É o instrumento mais comum
para se tocar a parte do baixo, embora haja alguns li-
geiramente maiores e outros um pouco menores [...]
(MOZART, 1756, p. 3)
30
no início do século XVIII a situação ainda era caracterizada por uma
variedade muito maior de instrumentos e técnicas. Fontes iconográficas
e uma variedade de tratados, bem como alguns instrumentos
sobreviventes, confirmam a existência de vários tamanhos de violinos
baixo do tipo menor com quatro ou cinco cordas, afinados uma oitava
abaixo do violino (instrumentos de quatro cordas) ou em C-G-d-a-e’
(frequentemente também em C-G-d-a-d’), chamado violoncello (depois de
1665), violoncino, viola, violetta, bassetto (a partir de 1641), e também viola/
violoncello da spalla. Escrevendo em Treviso, Zaccaria Tevo menciona a
viola da spalla como um instrumento baixo (melódico?), enquanto ele
indica que a viola (um termo normalmente usado na região de Veneto
para o violino baixo) e o violone eram instrumentos para baixos e baixos
contínuos, respectivamente:
[...] violinos, cornetas e trombetas são os instru-
mentos usados para tocar as partes agudas. As viole
da braccio tocam as partes alto e tenor, as viole da
gamba, viole da spalla, fagote e trombones as partes
do baixo; os violonistas e os teóricos tocam o baixo
contínuo. Consequentemente, essas vozes e instru-
mentos são usados em tais composições em grande
escala como Salmos e Massas […]. Parece que nor-
malmente são utilizados os seguintes instrumentos:
dois violinos para as partes agudas, uma viola para a
parte de alto e uma viola, fagote ou trombone para o
baixo, que pode ser usado na música em quatro par-
tes. (TEVO, 1706, p. 360)
31
[...] não poderíamos dizer que o Basse de Violon que
é atualmente tocado na Itália é um verdadeiro Basse
de Violon do mesmo tipo que os tocados na França,
já que na Itália o seguram de uma maneira que aqui-
lo que é chamado de parte inferior aqui, na verdade
é a parte superior na Itália, porque eles o seguram
no braço, enquanto os franceses o colocam no chão.
(ROUSSEAU, 1687, p. 9)
32
O instrumento é preso ao peito com uma alça e, ao
mesmo tempo, é colocado no ombro direito, mas
muitos [instrumentistas] o seguram entre as pernas.
(MAJER, 1732, p. 99 ênfase minha)
33
escreveu suas peças de violoncelo para a corte de Modena, e assim fizeram
Giovanni Battista Vitali e Giuseppe Colombi. No início do século XVIII,
o período durante o qual o instrumento começou a tornar-se popular
em toda a Europa através da influência de alguns virtuoses itinerantes,
o repertório solo (principalmente com baixo contínuo) desenvolveu-
se rapidamente em alguns centros musicais, tais como Roma, Veneza,
Pádova, Viena, Nápoles, Würzburg, Wiesentheid, Leipzig, Dresden,
Praga, Paris, Londres e Amsterdã, nomeando apenas alguns dos mais
importantes. A questão central aqui é que tipo(s) de violoncelo(s) os
violoncelistas e compositores ativos nestas diferentes partes da Europa
tinham em mente ao escrever para o instrumento. Dada a diversidade
que eu continuo a aludir - e os esforços de Corrette para padronizar a
questão do violoncelo em 1741 - a busca por respostas a esta pergunta só
faria sentido se explorássemos cada centro separadamente, uma vez que
nenhum instrumento único seria apropriado para funcionar em todas essas
regiões. Por outro lado, não precisamos ser rigorosos sobre a identificação
de um violoncelo específico de Geminiani, Marcello, Vivaldi, Cervetto ou
Barrière ao executar suas músicas, particularmente as composições que
eles publicaram. Mesmo no século XVIII, um violoncelista francês que
decidisse tocar sonatas, por exemplo, de Geminiani ou Vivaldi, faria isso,
evidentemente, em seu próprio instrumento com sua técnica própria,
sem se preocupar muito com o violoncelo em particular que estava sendo
utilizado em Londres, Amsterdã ou Veneza. Ainda assim, nunca é demais
ter uma noção de que tipos de sons esses compositores tinham em mente
ao conceber sua música. Pode parecer algo artificial fazer tais distinções
regionais, especialmente porque muitos músicos viajavam de um centro
para outro, mas dado o fato de que o que hoje chamamos de Alemanha e
Itália não eram nações, mas conglomerados de estados independentes com
os seus próprios sistemas políticos, línguas e culturas, seria anacrônico
discuti-los usando limites nacionais e culturais modernos. Melhor do
que adotar uma abordagem puramente cronológica, eu irei proceder por
áreas em geral.
34
ROMA
A vida musical de Roma estava normalmente centrada nas casas
dos príncipes da igreja - geralmente nobres e/ou familiares de papas
com títulos de cardeais - e do ponto de vista do violoncelista, gravitava
principalmente em torno da orquestra do cardeal Pietro Ottoboni, no
Palazzo della Cancelleria, liderada por Arcangelo Corelli (1653 - 1713).
Outras casas importantes foram as das famílias Pamphili, Ruspoli,
Borghese, Chigi, Barberini e Colonna, que organizavam performances
de oratórios e cantatas comemorativas para uma variedade de ocasiões
e festividades sagradas e seculares, às vezes dentro de casa, às vezes ao
ar livre, muitas vezes usando grandes forças orquertrais. Além disso,
algumas igrejas, como San Luigi dei Francesi, San Giacomo degli
Spagnoli, San Marcello, San Lorenzo in Damaso (no Palazzo della
Cancelleria) e muitas outras, distinguiram-se pela apresentação de
composições vocais e instrumentais em larga escala, nas quais violinistas
baixo romanos participavam. Embora os Concerti Grosso Opus 6 de
Corelli tenham aparecido postumamente, em 1714, eles provavelmente
já estavam sendo trabalhados na década anterior de sua publicação. Eles
certamente não eram a única coleção de peças que contrapunham um
grupo solo (concertino) à grande orquestra ripieno (concerto grosso).
Outras coleções incluem composições instrumentais e mistas (vocais
e instrumentais) de Giovanni Lorenzo Lulier, Alessandro Scarlatti,
Giuseppe Valentini, Antonio Montanari, Giovanni Mossi, Giovanni
Battista Costanzi, Pietro Locatelli, sobrevivendo em numerosas
publicações, mas também em manuscritos preservados nas bibliotecas
de Roma, Dresden, Copenhague e em outros lugares6. Ao observarmos
tanto os instrumentos baixo mencionados nos materiais impressos e nas
fontes manuscritas, quanto os nomes dos instrumentistas mencionados
nos numerosos documentos de pagamento de músicos para ocasiões
6
Cf. PAVANELLO, 2006.
35
especiais, descobrimos uma complexidade notável na nomenclatura dos
instrumentos utilizados. Se acrescentarmos as poucas fontes iconográficas
que temos a isso, a imagem torna-se ainda mais heterogênea7.
7
Cf. LA VIA, 1990. Para um estudo sobre os luthiers alemães em Roman ver
HENTRICH, 2001.
36
coisa? Eu duvido disso. Estou mais inclinado a acreditar - como podemos
ver em alguns instrumentos de David Tecchler, luthier ativo em Roma
a partir da década de 1690 - que o violone pequeno era o instrumento
baixo mais comum de ser usado e que os vários tipos de violoncelli
significativamente menores começaram a aparecer onde era necessário
para partes mais virtuosísticas nos registros mais altos, como em muitas
seções concertino de concerti grossi, e em concertos e sonatas para violoncelo
solista. Os primeiros violoncelistas ativos em Roma incluiriam Giovanni
Lorenzo Lulier (“Giovannino del violone”, c.1662-1700), Flavio Lanciani
(1661-1706), Quirino Colombani (16??-c.1735), Nicola Francesco (1678-
1729) e seu irmão Giovanni Antonio Haym (ou Haim), o violoncelista
amador, cardeal Domenico Silvio Passionei (1682-1761)8, e até mesmo
Giovanni Bombelli pode ter tocado principalmente o tipo maior. Após a
chegada de Bononcini em Roma na década de 1690, podemos imaginar
que alguns músicos também adotaram o tipo bolonhês menor que ele
introduziu: Filippo “Pippo” Amadei (c.1665-c.1725), Pietro Gioseppe
Gaetano Boni, Stefano Penna, Giuseppe Perroni e Giovanni Battista
Costanzi (“Giovannino del violoncelo”, 1704-1778) podem ter preferido
o violoncelo menor, no caso de Costanzi, às vezes afinando em G-d-
a-e’. Em todo o caso, não há grande certeza sobre nada disso, exceto que
ambos os tipos estavam em uso em Roma, com uma preferência para
o violone no início, e para os vários tipos de violoncelo após 1720, por
causa das exigências crescentes de virtuosismo.
8
Cf. TALBOT, 2011.
37
o peito ou perto do ombro direito (da spalla) (ver figura 4). O arco
geralmente é segurado com a pegada inferior, à “maneira da viola da
gamba”, mas também sabemos que Corelli gostava (como fez Lully)
da uniformidade do movimento (do arco) em suas orquestras, o que
pode muito bem indicar uma técnica uniforme de pegada superior
para que batidas fortes fossem tocadas com o arco para baixo por to-
dos no grupo. Grande parte da música de vários desses compositores
foi felizmente preservada em manuscritos nos arquivos do castelo de
Schönborn, em Wiesentheid, no norte da Baviera9.
9
Para mais referências bibliográficas e documentais, ver VANSCHEEUWIJCK, 2015.
38
VENEZA - PÁDUA - VIENA - WÜRZBURG - WIESENTHEID -
DRESDEN - PRAGA E BOÊMIA
Já que as conexões musicais, especialmente entre os violinistas bai-
xo, dessas diferentes áreas eram bastante fortes, vou considerá-las juntas
aqui. Na Repubblica Serenissima di Venezia, que ainda incluía cidades até o
oeste de Bérgamo e regiões da Ístria e Dalmácia no sudeste, os termos que
se referem aos violinos baixo no início do século XVIII são principalmente
viola (e violotto) e violoncello, provavelmente ambos os instrumentos do tipo
menor com quatro ou cinco cordas, tocados tanto da spalla (no ombro di-
reito) quanto da gamba (verticalmente) (Figura 5). Nos primeiros anos de
Antonio Vivaldi (1678-1741) na Ospedale della Pietà, o violoncelo rapida-
mente se tornou um instrumento solista. Na verdade, após o violoncelista
bolonhês Giuseppe Maria Jacchini (1667-1727), Vivaldi foi o primeiro a
dedicar composições (concertos) para um violoncelo obbligato com dois
violinos, viola e baixo contínuo. Ele provavelmente escreveu seus 27 con-
certos de violoncelo (e um para dois violoncelos), todos preservados em
manuscritos, em dois momentos distintos de sua carreira, o primeiro entre
1705 e 1712, e o segundo em 1721.
39
No que diz respeito ao primeiro período criativo, sabemos que
Vivaldi produziu pelo menos oito concertos e três sonatas, porque Franz
Horneck foi enviado a Veneza em 1708-09 indo em busca de música
para violoncelo para o violoncelista amador Rudolf Franz Erwein von
Schönborn (1677-1754), de Wiesentheid, uma pequena cidade entre
Würzburg e Nürnberg. Além disso, Vivaldi teve alguma relação em 1711
e 1712 com um tal Van Regaznig, comerciante de Mainz e embaixador
em Veneza, que também estava encarregado de encontrar música
instrumental para o nobre violoncelista Schönborn. Os arquivos musicais
em Wiesentheid contêm centenas de composições para violoncelo e baixo
contínuo (sonatas) ou para violoncelo solo e cordas (concertos), que datam
dos três primeiros quartos do século XVIII, por compositores ativos em
Wiesentheid e Würzburg (particularmente Giovanni Benedetto Platti
[c.1692-1763], que compôs 36 concertos para violoncelo e 12 sonatas), ou
por outros que eram vagamente filiados à corte ou com cortes vizinhas:
Antonín Reichenauer (c.1694-1730), trabalhando em Praga; Josef
Antonín Gurecký (1709-1769), ativo em Kroměříž e Olomouc; Andrea
Zani (1696-1757), ativo em Viena; e Johann Adolf Hasse (1699-1783),
Hofkapellmeister em Dresden10. Na verdade, esta é a maior coleção de
composições para violoncelo na Europa.
10
Cf. ZOBELEY, 1982.
40
della Pietà em Veneza, de 27 de setembro de 1720 à 4 de abril de 1721.
Não podemos excluir a possibilidade de que Vandini tenha estudado
com o violoncelista Giuseppe Maria Jacchini em Bolonha, mas não há
documentos que possam confirmar isso. Embora o próprio Vandini
só tenha produzido seis sonatas para violoncelo e um concerto para
seu instrumento, ele também foi o violoncelista para quem Tartini
escreveu seus dois concertos para “viola”. O termo viola era comum na
República de Veneza, indicando um violino baixo de qualquer tipo, e
Vandini às vezes é mencionado como um instrumentista do “Violot[t]
o”, etimologicamente, uma viola uma pouco maior e “gordinha”11.
Foi Vandini que insistiu para que Tartini o seguisse até Praga para
participar das grandes celebrações da coroação do imperador Carlos
VI da Áustria, em junho de 1723, como rei da Boêmia. Em Praga,
Tartini e Vandini conheceram e colaboraram com Johann Joseph
Fux, Antonio Caldara (c.1671-1736), um violoncelista veneziano
ativo em Viena e na Boêmia (que também escreveu várias sonatas e
concertos para violoncelo) e o alaudista Sylvius Leopold Weiss, entre
muitos outros. Após a conclusão das festividades, Tartini e Vandini
decidiram permanecer em Praga e prestar serviços à família do Conde
Kinsky. Eles também estabeleceram contatos musicais com o Príncipe
Lobkowitz e ficaram na capital da Boêmia até 1726.
11
Cf. VANSCHEEUWIJCK, 2008.
41
possuísse mais de um instrumento, de mais de um único tipo. Nós na-
turalmente nunca saberemos seu nível técnico como instrumentista,
mas depois de estudar o repertório inteiro existente em Wiesentheid,
coletado para seu uso próprio, certamente podemos supor que ele tocou
pelo menos um “violone” de tipo maior com quatro cordas, e possivel-
mente dois ou três instrumentos do tipo menor de violoncelo, dois com
quatro cordas (um afinado em C-G-d-a e o outro G-d-a-e’ ou d’) e um
com cinco cordas, provavelmente afinado em C-G-d-a-d’. Algumas so-
natas e concertos de fato enfatizam fortemente os registros inferiores
e médios, que funcionam perfeitamente bem em um instrumento de
tipo maior; outros não vão além do meio da corda superior, enquanto
permeiam principalmente o belo registro de tenor do tipo menor afina-
do em C-G-d-a. Um último grupo de composições enfatiza claramente
registros mais altos e agudos que saltam uma quinta para a oitava acima
do grupo anterior. Algumas dessas composições não usam nenhuma
nota abaixo de G, enquanto outras envolvem todo registro de baixo de
C até o g’’. Se soubéssemos que o Conde fosse capaz de tocar passagens
virtuosísticas na posição do capotasto, toda essa música poderia de fato
ser tocada em violoncelo com afinação padrão C-G-d-a.
42
de 1770, Burney escreveu: “Foi notável que Antonio [Vandini], e todos
os outros violoncelistas aqui [em Pádua], seguram o arco da maneira
antiga, com a mão por baixo dele.” (BURNEY, 1773, p. 142)
12
Há também a imagem de um frade-violoncelista tocando um pequeno instrumento
com o arco com pegada inferior assumido por Van Der Straeten como sendo Vandini.
Veja VAN DER STREATEN, 1914.
43
Para concluir o meu breve relato sobre Veneza, uma palavra é
necessária sobre algumas das peças de violoncelo mais comuns no
repertório do violoncelista barroco moderno: as sonatas de Benedetto
Marcello (1686-1739) e Antonio Vivaldi. Um nobre veneziano, dilettante
di musica, e arqui-rival de Vivaldi, Benedetto Marcello publicou um
conjunto de Sei Suonate para o violoncelo e baixo contínuo em Amsterdã
c.1732 como seu Opus 1 (mais tarde republicado em Londres por Walsh
como Opus 2). Apesar de não terem um alto nível de virtuosidade, essas
composições podem causar algumas dificuldades técnicas ao violoncelista
barroco moderno, a menos que ele ou ela usem um instrumento pequeno
afinado uma quinta mais alto. De fato, exceto por um E no final do
primeiro Allegro da Sonata II, a corda Dó grave do instrumento nunca
é necessária, enquanto a maioria das melodias acontece no registro de
tenor. Uma vez que a nota mais grave pode ser facilmente tocada uma
oitava mais alta sem fazer qualquer diferença para a música, as sonatas
podem ser melhor tocadas em um instrumento afinado G-d-a-e’. Por
outro lado, o segundo conjunto de peças de Marcello, as seis sonatas para
dois violoncelos ou duas violas da gamba, impresso em Amsterdã c.1734,
provavelmente exige um instrumento de cinco cordas afinado em C-G-
d-a-d’, de modo que as duas cordas superiores sejam as mesmas que as da
gamba baixo. As nove ou dez sonatas de Vivaldi - a “décima”, anônima,
mas existente em um conjunto de manuscritos na coleção de Wiesentheid
com a sexta e nona sonatas - nunca foram publicadas como um conjunto
único. Três sonatas (1, 7 e 8) sobrevivem em um manuscrito não datado
na biblioteca do Conservatório de Nápoles e outro conjunto de seis
sonatas (números 1-6) é preservado na Bibliothèque Nationale em Paris.
Em 1740, Boivin e Leclerc publicaram este último conjunto, embora
sem a autorização de Vivaldi. Considerando que as sonatas conservadas
em Nápoles e Wiesentheid podem ter sido tocadas em instrumentos
de quatro ou cinco cordas, o grupo que circulou na França antes da sua
publicação um ano antes do aparecimento do Método de Corrette, foi
44
provavelmente tocado no violoncelo padrão que conhecemos, e com a
pegada superior do arco, pertencendo assim mais ao contexto parisiense
do que ao veneziano.
45
Naturalmente, ninguém sabe se Supriano escreveu ele mesmo essas
linhas posteriormente, mas a questão que surge é se ele usou ou não
a posição do capotasto. Em um violoncelo padrão seria certamente
inevitável e isso poderia possivelmente indicar um uso da técnica um par
de décadas antes de Corrette prescrevê-la. No entanto, as composições
funcionam muito melhor em um violoncelo de cinco cordas afinado em
C-G-d-a-d’. Curiosamente, embora não saibamos se os violoncelistas
napolitanos realmente tenham usado instrumentos de cinco cordas, a
maioria do repertório napolitano compartilha as mesmas características.
Esse repertório inclui as duas sonatas do aluno de Supriano, Francesco
Alborea (1691-1739, apelidado de “o Francischiello” ou “Francisquinho”)
preservadas em Praga; os concertos para violoncelo solo, dois violinos
e contínuo de Nicola Fiorenza (?-1764); os cinco concertos e a Sinfonia
concertante para violoncelo e cordas de Leonardo Leo (1694-1744); e
o concerto de Nicola Antonio Porpora (1686-1768). Em um violoncelo
padrão, todas essas composições requerem técnicas e habilidades
avançadas, ainda não utilizadas em outros lugares na Europa, porém
se tocadas em um instrumento de cinco cordas elas são de um nível
comparável com a literatura da época, o que poderia ser um argumento
persuasivo para se tocar esse repertório em tal instrumento.
46
Marzis, Salvatore Lanzetti (c.1710- 1780, ativo também em Turim
e em Paris) e Francesco Guerini, todos tendo publicado sonatas de
violoncelo, mas Lanzetti em particular atingiu um nível sem precedentes
de virtuosidade. É improvável que Lanzetti tenha tocado essas sonatas
segurando o violoncelo em seu colo, como ele faz na imagem satírica que
o representa com Domenico Scarlatti, Tartini, Sammartini, Locatelli e
o castrato Caffarelli (o gato!). Ele pode ter segurado o violoncelo dessa
maneira apenas enquanto tocava as linhas de baixo.
Fonte: http://edocs.ub.uni-frankfurt.de/volltexte/2003/7902571/original/Bild.jpg
47
cordas, existem também indicações de instrumentos de cinco cordas e
violoncelos menores afinados uma quinta acima, especialmente para
uso em sonatas publicadas para violino ou para violoncelo, este últi-
mo sendo tocando exatamente uma oitava abaixo do violino. Um ins-
trumento de cinco cordas também seria uma opção na realização das
sonatas do violoncelista nascido em Milão Giorgio Antoniotto (c.1692-
1776), que publicou um conjunto de cinco sonatas de violoncelo e mais
sete em Amsterdã (Opus I, 1736) para serem tocadas no violoncelo ou
no violino, antes de se estabelecer em Londres. O que não parece haver
na Inglaterra é o violinista baixo segurando o instrumento “da spalla”,
uma posição que mesmo no norte da Itália foi provavelmente reservada
para partes graves menos exigentes.
48
caram lá já mencionei Geminiani e Guerini, mas um que se mudou para
Amsterdã foi Jean Sebalt Triemer, de Weimar. Havia alguns composi-
tores holandeses nativos, não necessariamente violoncelistas, exceto o
compositor e violoncelista amador Jacob Klein [de Jonge] (1688-1748),
que publicou quatro coleções com várias composições para o violoncelo:
O Opus 1 (1717) é articulado em três livros, o último dos quais requer
a afinação D-A-e-b, um tom acima da afinação padrão do violoncelo;
no Opus 2, há um conjunto de duetos para dois violoncelos (1719) e a
última sonata é escrita para violoncelos em scordatura (C-G-d-g), como
na Quinta Suíte de Bach; o terceiro Opus está perdido e o Opus 4 (1746)
é de maior virtuosidade, contendo um grande trabalho de mão esquer-
da. O violinista e compositor holandês Willem De Fesch (1687-1761),
nascido em Alkmaar em uma família que se originou em Liège, foi ativo
em Amsterdã e na Antuérpia, antes de se mudar para Londres por volta
de 1733, publicando um primeiro conjunto de seis sonatas para violon-
celo em 1725 (Opus 4, livro 2). Uma vez em Londres, ele continuou a
publicar mais sonatas para o violoncelo: seis no Opus 8 (Londres, 1733);
seis em outro Opus 1 (Paris, 1745); e mais seis novamente no Opus 13
(Londres, c.1757). Todas são possíveis de se executar perfeitamente em
instrumentos de quatro ou cinco cordas. Um último músico holandês, o
organista e violinista Pieter Hellendaal (1721-1799), foi ativo em Utre-
cht e Amsterdã antes de ir para Pádua para estudar com Tartini. Após
seu retorno, ele muitas vezes ficou em Leiden, mas decidiu se mudar
para Londres por conta de sua carreira; ele eventualmente estabeleceu-se
em Cambridge, onde publicou um conjunto de oito peças para violonce-
lo e baixo contínuo como seu Opus 5, em 1780.
49
Kantor da igreja de São Tomás e Director Musices da cidade foi Johann
Sebastian Bach (1685-1750), que, além de ter usado vários tipos de
violoncelo em suas cantatas, deixou-nos um dos maiores monumentos
da literatura do violoncelo, as seis Suites para violoncelo solo. Embora
todo violoncelista hoje tenha tocado pelo menos algumas destas suites,
violoncelistas barrocos modernos tendem a usar um violoncelo normal
para as primeiras cinco suítes e um instrumento ligeiramente menor
de cinco cordas, tradicionalmente chamado violoncello piccolo, para a
sexta. Contudo, nos quatro manuscritos existentes do século XVIII,
nenhuma menção é feita ao tal violoncelo piccolo na Sexta Suite; tudo o
que temos é a menção às cinq cordes, sem especificações adicionais. Por
que então nós chamamos um violoncelo de cinco cordas de violoncelo
piccolo? Etimologicamente, faria sentido afirmar que o violoncelo
piccolo fosse de fato um violino baixo ainda menor do que o violino
baixo pequeno que é denotado pelo termo violoncelo. Além disso,
embora na terminologia moderna que geralmente temos usado o termo
violoncelo piccolo indique um violoncelo ligeiramente menor com
cinco cordas, na verdade encontramos o termo “violoncello piccolo”, na
música de Bach, apenas e exclusivamente no período entre outubro de
1724 e maio 1725, isto durante seu segundo ciclo anual da cantatas, e
nunca antes13. Mais tarde, nós encontramos o termo em um catálogo
de 1762, por J. G. I. Breitkopf, em que 41 composições para “violoncello
piccolo, ô violoncello da braccia” são listadas com essa descrição. A terceira
fonte é um concerto em Dó Maior para violoncelo piccolo, de Giovanni
Battista Sammartini, e a última fonte é um inventário de instrumentos
musicais de Cöthen, de 1773, em que são listados “(20) Ein Violon Cello
Piculo mit 5 Seiten von J. C. Hoffmann 1731” e “(21) Ein Violon Cello Pic. Mit
4 Seiten von J. H. Ruppert. 1724”14. Por conseguinte, os Violoncelli Piccoli
13
Cf. SMITH, 1998.
14
Um violoncelo piccolo com 5 cordas de J. C. Hoffmann e um violoncelo piccolo com 4
cordas de J. H. Ruppert. Cf. BUNGE, 1905, p. 38.
50
parecem ter existido em versões de quatro e cinco cordas; além disso,
Breitkopf considera os termos “violoncello piccolo” e “violoncello da braccia”
equivalentes. Isso significa que o violoncelo piccolo era tocado da braccio
(ou da spalla)? Possivelmente. Por outro lado, se o violoncelo piccolo
pode ser estabelecido, com certeza, como um instrumento de tamanho
maior que a viola, como Ulrich Drüner e Mark Smith alegaram
(DRÜNER, 1987 e SMITH, 1998). Essa é uma possibilidade fascinante
também, que não pode ser nem desconsiderada e nem confirmada.
15
Seções sobre o Violoncello (pp. 556-583), violoncello piccolo (pp. 584-601), e Violone (pp.
602-627): p. 585. Cf. PRINZ, 2005
16
Cf. DRÜNER, 2007 e BADIAROV, 2007 para um relato detalhado sobre a viola pomposa.
17
Cf. Ibid., pp. 93-95, and BADIAROV, ibid., p. 125 e nota de rodapé 10.
51
seu aluno e principal copista Johann Peter Kellner. A cópia mais usada
foi feita pela esposa de Bach, Anna Magdalena, e pode ser datada entre
1727 e 1731. Em contraste, várias cantatas de Bach, incluindo BWV 6,
41, 49, 68, 85, 115, 175, 180 e 183, pedem explicitamente um violoncelo
piccolo e usam uma tessitura maior no instrumento, quase comparável
à gama de notas da Sexta Suíte “à cinq cordes”. Apenas as cantatas BWV
6, 49, 85, 180 e 183 poderiam ser tocadas em um instrumento de quatro
cordas afinado uma quinta acima (G-d-a-e’), enquanto outras como
BWV 41, 68, 115, 175 e 199 funcionam melhor em um instrumento de
cinco cordas (C-G-d-a-e’).
52
de instrumentos de baixo e que, exceto os que são tocados no ombro,
geralmente seguravam-se o arco com a pegada inferior, o que também
era verdade para a Alemanha central (Turíngia e Saxônia).
53
moderna em encontrar a correlação perfeita entre um termo e o conceito
que o representa é muito irrelevante para o período em questão, porque
a nossa perspectiva é demasiadamente global para um período que se
preocupa apenas com o local, ou, na melhor das hipóteses, com questões
regionais. Um violoncelo em Leipzig pode ser exatamente a mesma
coisa que uma viola da spalla em outro lugar, enquanto um violoncelo
em Hamburgo pode ser um instrumento diferente do violoncelo em
Cöthen. O fato é que nós não sabemos e nem podemos saber, e temos
dificuldade em lidar com essa incerteza.
Devemos também estar prontos a aceitar que, uma vez que algu-
mas partes de violoncelo piccolo são notadas em clave de sol em algu-
mas cantatas e aparecem na parte do primeiro violinista, elas poderiam
possivelmente ser pensadas para um violoncelo menor tocado da spalla,
mas eu não posso provar que o comprimento total desse instrumento
seria de 70cm ou 95cm, ou em qualquer medida entre essas. Provavel-
mente dependia de qual instrumento o músico tinha e era capaz de to-
car. Além disso, se assumirmos que o violoncelo piccolo tocado no om-
bro foi de fato um instrumento do tipo de Johann Christian Hoffmann,
construído em Leipzig no anos de 1730 - dois foram alegadamente pre-
servados, um em Leipzig de 1732 e um em Bruxelas de 1741, embora o
estudioso de instrumentos de cordas Karel Moens argumente que eles
sejam falsificações do século XIX - então ficamos com outro problema
imenso, o da relação entre o comprimento da corda e sua afinação. Para
uma corda normal de tripa revestida, o comprimento exigido para estes
instrumentos de Hoffmann não é capaz de soar de forma satisfatória
quando afinada tão grave quanto o C. Tentativas recentes foram feitas
para tornar o instrumento funcional, de qualquer maneira, mas apenas
a solução de um revestimento duplo da tripa da corda Dó foi viável.
Infelizmente, não temos nenhuma evidência de tal revestimento duplo
de cordas de tripa antes da década de 1760, tornando essa proposta in-
teiramente anacrônica para a música de Bach. Este instrumento é ape-
54
nas um pouco maior do que uma viola e, embora tenha laterais muito
maiores do que a viola, o som que produz é, pelo menos para o meu
ouvido, não muito convincente. Por outro lado, o instrumento é longo
o suficiente para ser afinado uma quinta acima do padrão do violoncelo
e uma oitava abaixo do violino; para algumas cantatas é aceitável essa
possibilidade, embora não para a Sexta Suite de Violoncelo.
55
ideal é geralmente C-G-d-a-d’ - embora também seja possível imaginar
outras afinações, desde que permaneçam dentro destes limites, e o fato
de que Bach nota a afinação na sexta suite deve ser em função de algum
tipo de anomalia. Os violoncelistas precisam, portanto, encontrar um
instrumento de um tamanho muito específico para que a corda Dó soe
em toda a sua plenitude e a corda em Mi não se quebre constantemente.
Isso implica em um instrumento com comprimento de corda não supe-
rior a 60cm (em oposição aos 68-69cm do violoncelo padrão).
PARIS
Para fechar esta turnê europeia do violoncelo no início do século
XVIII, devemos retornar a Paris para dar uma olhada na situação em
vigor antes do apelo de Corrette, em 1741, pela padronização do ins-
56
trumento. Vimos como ele descreveu que, mesmo em sua época, ainda
havia várias “escolas” de violoncelo sendo praticadas na França. De fato,
em 1703, Sébastien de Brossard escreve em seu Dictionnaire de Musique,
publicado em Paris: “Violoncelo. É precisamente o nosso Quinte de violon ou
violino baixo pequeno com cinco ou seis cordas” (BROSSARD, 1703, p.
221). De acordo com Brossard, o instrumento não foi, portanto, consi-
derado um baixo, mas sim um instrumento barítono, no início do sécu-
lo, e (também lembrando da descrição de Rousseau) provavelmente era
tocado mais frequentemente “da spalla” do que “da gamba”. Os primór-
dios dos violinos baixo pequenos na França ainda são um pouco vagos.
57
Embora Le Blanc reconheça os sucessos do violoncelo sobre a
viola, ele desaprova profundamente o instrumento por causa de sua
afinação inexata e seu som alto e áspero. Ele conclui seu ensaio de 148
páginas escrevendo que:
Isso foi escrito apenas para reabilitar a viola em seus
direitos e não para elogiar aqueles que tocam melhor
do que os violoncelistas. Pelo contrário, estes últimos,
tendo feito imensos esforços que nos fazem tremer
ao ouvi-los improvisar, são muito respeitáveis; temos
de admitir isto, mas nunca que o seu instrumento seja
amável. (LE BLANC, 1740, pp. 147-148)
58
os comentários de Corrette sobre sua técnica inovadora de violoncelo.
Um esquecido, embora importante compositor e instrumentista, é o ve-
neziano Giuseppe Fedeli, conhecido como Sr. Saggione (c.1680-1733),
que é creditado por ter introduzido o contrabaixo na Ópera de Paris,
juntamente com Michel Pignolet de Montéclair. Mais importante para
a história do violoncelo na França é a publicação em Paris (1733) das Six
Sonates a deux Violoncelles, Violes, ou Bassons. Qui peuvent se jouer sur deux
Violons en les transposant à la Quinte, seguido de un menueto, una Chiacona
e una Musetta, de Fedeli. Tecnicamente, esses seis duetos são notavel-
mente desafiadores, quase do nível das composições de Jean Barrière,
com um intervalo de três oitavas (C-c’’) e uma grande predileção por
acordes quebrados, arpejos, cordas duplas, acordes, e saltos extrema-
mente grandes.
18
Cf. ADAS, 1989.
19
Cf. CYR, 2013.
59
elementos estilísticos franceses e italianos. Nos mesmos anos que Bar-
rière, Jean-Baptiste Masse (c.1700-c.1757), um Ordinaire de la Chambre
du Roi e violoncelista na Comédie Française, publicou cinco livros de
sonatas para violoncelo e contínuo ou para dois violoncelos sem baixo
cifrado, que possuem um certo interesse.
Embora seja fácil imaginar que grande parte desta música im-
pressa na França a partir de 1726 poderia ter sido tocada em instru-
mentos do tipo mais padronizado (incluindo o uso do capotasto quan-
60
do necessário), nós não podemos excluir inteiramente o uso de basses
de violon maiores para algo do repertório para amadores e até mesmo
instrumentos de cinco cordas (mais frequentemente afinados em C-G-
-d-a-d’ do que com a corda aguda em e’) para algumas das composições
de Berteau, Barrière e Masse. No entanto, em seu uso do violoncelo,
instrumentistas na França, Inglaterra, Espanha, Áustria, nos Estados
Papais (Roma, Ferrara) e nos Ducados de Módena, Parma e Mântua
parecem ter preferido instrumentos de quatro cordas. Por outro lado,
em Bolonha, parece ter havido um número maior de violoncelistas que
tocaram com um número mais variado de cordas e afinações: alguns
violoncelistas, como Antonio Maria Bononcini, foram treinados pela
primeira vez como violinistas e podem ter tocado o instrumento da
spalla, questão à qual iremos retornar na última seção deste capítulo.
61
enquanto seu tamanho também gradualmente aumentou até alcançar as
dimensões modernas. Finalmente, faz sentido aceitar que - assim como
a variedade de violoncelos - performers, particularmente do século
XVIII (quando o repertório evoluiu em termos de demandas técnicas),
não eram tão relutantes como somos hoje20 em reafinar seus instru-
mentos e usar os calibres de cordas mais apropriados a uma forma que
otimize não apenas a ressonância, mas especialmente a facilidade com
que uma composição em particular pudesse ser tocada.
TERMINOLOGIA
Como sabemos, o termo violoncelo não apareceu antes da publi-
cação de Arresti em 1665. No entanto, há muitas evidências iconográficas
e documentais de que violinos baixo pequenos têm sido usados desde o
primeiro desenvolvimento da família de violinos no início do século XVI.
20
Não devemos esquecer que todas as afinações que diferem da afinação “normal” C-G-
d-a são chamadas de scordatura ou discordato, literalmente significando “desafinado”, uma
descrição que começou a ser usada no final do século, logo que uma afinação padrão foi
percebida como tal. Veja SEGERMAN, 1995. Embora a afinação em C-G-d-g certamente
não fosse incomum no século XVII, Luigi Taglietti (na Brescia), em Suonate da camera À
Tre due Violini, e Violoncello, con alcune aggiunte à Violoncello solo…, Opus I (Bologna: Silvani,
1697), acrescenta “Discordatura” sobre as quatro notas da afinação (C-G-d-g), que ele
emprega em um solo no Capriccio à Violoncello, embora isso seja apenas por comparação
com todos os outros Capricci que estão na afinação do C-G-d-a.
62
violoncelli, como Bonta afirma, eu creio que isso não seja inteiramente
pertinente, embora não haja dúvida que seu uso cada vez mais gene-
ralizado entre 1670 e 1730 para as cordas mais graves contribuiu para
a eventual padronização do violino baixo pequeno sobre seu primo
maior. Mesmo que muitas vezes seja bastante claro a partir da tessitura
da linha musical se um instrumento baixo pequeno ou grande é o mais
apropriado, nem sempre é útil separar os dois, uma vez que não há ra-
zão para excluir um ou outro instrumento de um determinado tipo de
repertório ou gênero musical. Deveríamos também considerar o fato de
que, por exemplo, na Itália, a afinação C-G-d-a parece ter sido utilizada
em ambos os tipos, ao passo que afinações mais graves tendem a aplicar-
-se apenas aos instrumentos maiores e as afinações mais agudas a tipos
menores. Na Inglaterra, por outro lado, instrumentos menores eram
mais frequentemente afinados em Bb,-F-c-g21, enquanto na França essa
afinação mais baixa era a única usada no basse de violon maior, como Ma-
rin Mersenne menciona em sua Harmonie universelle22. Assim, embora
o termo “violoncello” só tenha aparecido na segunda metade do século
XVII, nesta seção considerarei os dois primeiros séculos da história dos
violinos baixo como uma grande categoria. Uma das principais razões
para esta abordagem é que há um continuum no uso de vários tamanhos
de instrumentos, que começou a diminuir apenas no início do século
XVIII. Além disso, o fato de que algumas peças específicas aparecem em
Bolonha e Modena no último quarto do século XVII não justifica sufi-
cientemente que seja discutido como uma categoria separada isolada do
contexto de que vieram.
21
Em seu artigo “The Cello in Britain: A Technical and Social History,” Galpin Society
Journal 56, 200, pp.: 77-115, Brenda Neece conclui na p. 89 que “Violino baixo indicava o
lugar do violoncelo na família do violino; o violoncelo sinalizou a chegada de violoncelistas
italianos que trouxeram os instrumentos e a terminologia, e viola baixo demonstrava as
semelhanças do violoncelo (e não o parentesco) com a viola da gamba e geralmente se
referia à violoncelos de igreja”.
22
Cf. MERSENNE, 1636 (IV), pp. 184-85.
63
TRATADOS
Não há espaço aqui para discutir todos os tratados que nos
fornecem algumas informações básicas sobre as afinações dos membros
das famílias violino e da viola da gamba, como os de Martin Agricola
(Musica Instrumentalis Deudsch, 1529 e revisado em 1545), Giovanni
Lanfranco (Scintille di musica, Brescia 1533), Silvestro Ganassi (Regola
rubertina & Lettione seconda, Veneza 1542/3) e muitos outros. No entanto,
alguns que oferecem informações importantes que precisamos levar
em conta incluem os tratados Prattica di musica de Lodovico Zacconi
(Veneza, 1592; IV, 218); Conclusioni nel suono dell’organo (Bolonha, 1609,
5-5) e L’organo suonarino, Op. 25 (Veneza, 1611) de Adriano Banchieri;
Syntagma Musicum e Tomus Secundus De Organographia (Wolfenbüttel,
1619, 25-26, 8 & Sciagraphia XXI) de Michael Praetorius23. Todos esses
três últimos autores mencionam os instrumentos graves da família da
viola da braccio afinados em quintas, seja F-C-g-d’ ou G-d-a-e’; isso não
cobre o que os modernos chamam de registo de graves, que assumimos
ser equivalente ao registo de 8 pés do órgão, começando no Dó grave
da clave de fá. Por outro lado, é igualmente útil compreender o que
se entende especificamente por basso, em vez de registo de contrabbasso
no período considerado. No Renascimento, qualquer altura abaixo do
Gamma-ut (o Sol grave na clave de fá) era referido como “in contrabbasso”,
mas este qualificador também se aplica a todo o registro abaixo do
Gamma-ut (ou Fá do registro de 6 pés) e aplica-se a qualquer corda ou
instrumento capaz de atingir apenas Mi abaixo dele. Nesse sentido a
Prima Violetta, Basso, de Banchieri (afinada em G-d-a-e’) é um verdadeiro
instrumento baixo (Figura 8).
23
Cf. VANSCHEEUWIJCK, Marc. The Baroque Cello and Its Performance. Performance
Practice Review 9, no. 1 (1996): 78-96; e meu capítulo “Violoncello and Violone,” in:
A Performer’s Guide to Seventeenth-Century Music, ed. Stewart Carter, revised and
expanded by Jeffery Kite-Powell (Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press,
2012): 231-247.
64
Figura 8: Modelos de afinação em L’organo suonarino
65
nece uma Regola p[er] suonare il viworoloncello da spalla em seu Compendio
Musicale (Ms. Ferrara, 1677 & 1694) em que escreve:
O violoncelo da spalla moderno é afinado em quin-
tas, exceto que a corda mais baixa, em vez de ser
afinada como Dó, deve ser afinada como Ré, e isso
é feito para a facilidade do instrumentista, mas tam-
bém pode ser afinada como Dó. (BISMANTOVA,
1677-1694, p. 119)
REPERTÓRIO E ICONOGRAFIA
Embora fontes iconográficas na maioria das regiões europeias nos
mostrem muitos exemplos de instrumentos do tipo pequeno com quatro
e cinco cordas, apenas um número limitado de composições disponíveis
para nós demandam inequivocamente um violino baixo pequeno24. A
primeira delas são as Sonate de Giovanni Battista Fontana publicada
postumamente em Veneza, em 1641, a nona delas exigindo um Fagotto ò
chitarone ò violonzono con violino ò cornetto. A extensão é limitada em F-c’,
24
Há dezenas de fontes iconográficas que mostram violinos baixo do tipo -pequeno.
Eu sugiro explorar o rico website de Joëlle Morton http://www.greatbassviol. com/
iconography.html. Especificamente:: http://www.greatbassviol.com/iconography/hont1.
jpg; http://www.greatbassviol.com/iconography/maes.jpg; http://www.greatbassviol.
com/iconography/troost2.jpg e http://pmg3alain.free.fr/Resources/28cello_bacanale_
corn%2374BF1.jpg.
66
que poderia funcionar em um instrumento pequeno afinado em F-c-g-d’,
embora todas as outras peças que exigem um Fagotto - como as Canzoni,
fantasie e correnti de Bartolomeo de Selma y Salaverde, (Veneza, 1638),
tenham uma extensão muito maior. Outras coleções que exigem um
violoncino incluem Musiche Sacre de Francesco Cavalli (Veneza, 1656),
notada em claves de tenor e baixo com uma extensão do D-f’; Messa e
Salmi de Domenico Freschi (Op. 1, Veneza, 1660; extensão E-d’); Salmi
di compieta 8 de Simpliciano Olivo (Op. 2, Bolonha, 1674; extensão D-d’);
Sonata a 3 de Gasparo Gaspardini (Op. 1, Bolonha, 168; extensão D-e’);
e Laetatus sum a 2 do compositor ferrarense Giovanni Battista Bassani
(sem data, extensão D-d’). Por outro lado, particularmente em torno de
Modena, Ferrara e Bolonha (a região agora conhecida como Emilia),
encontramos frequentemente os termos violetta, bassetto e bassetto viola
na última parte do século XVII, por exemplo, em coleções de Sebastiano
Cherici Op. 1, 2, 3 e 4 (1672, 1698, 1686; extensões D – d’ ou D – e’).
Os Salmi a 5 voci de Agostino Della Ciaia (Bolonha, 1700; extensão C-g’)
justapõem a violetta ao violoncello, como faz Antonio Caldara em sua não
publicada Messa a 4 composta em Veneza (I-Bc). Encontramos também
estes termos em várias coleções impressas por Giuseppe Colombi
(ativo em Modena), Giovanni Paolo Colonna (ativo em Bolonha),
Stefano Filippini (Rimini), Andrea Grossi (Mântua), Isabella Leonarda
(Novara), Giovanni Battista Mazzaferrata (Ferrara e Faenza), etc. Com
base na frequente ocorrência de violinos baixo tocados verticalmente
ou horizontalmente em Emilia e no Veneto, podemos supor que este
tipo de repertório que exige instrumentos baixo pequenos poderia
ser tocado em um violoncelo pequeno de quatro ou cinco cordas (um
instrumento que erroneamente tendemos a chamar violoncelo piccolo)
seja nas posições da spalla ou da gamba. Estes termos parecem ser
completamente intercambiáveis com violoncelo, que encontramos em
muitas coleções impressas desde o Opus 1 e Arresti (Bolonha, 1665),
67
embora principalmente na região do Vale do Pó, no norte da Itália25. Em
muitos dos casos já mencionados, violoncelo pode ser qualquer violino
baixo pequeno tocado da gamba (com pegada inferior do arco) ou em
alguns casos até mesmo da spalla, com afinações incluindo C-G-d-a,
C-G-d-g, D-G-d-a, F-c-g-d’, G-d-a-e’, G-d-a-d’ ou com cinco cordas,
afinado em C-G-d-a-d’, C-G-d-g-d’, D-G-d-a-d’, D-G-d-g-d’ e outras
de acordo com o que a música demandasse.
BOLONHA E MODENA
A narrativa agora padrão que trata do início da história do vio-
loncelo estabeleceu que Bolonha e Modena são o berço de seu desen-
volvimento. Na verdade, desde que o termo apareceu pela primeira vez
na impressão de Arresti, organista em Bolonha, parece plausível dizer
que ele teve origem lá. No entanto, isso só pode ser afirmado com uma
ressalva substancial: o que se quer dizer é o fato de que lá encontramos
as primeiras composições escritas explicitamente para violoncelo solo,
dois violoncelos, ou violoncelo e baixo contínuo. O termo usado nesses
casos é “violoncello”. De certa forma, isso também significa que em nos-
sas histórias do violoncelo estamos realmente recriando a história de
um termo mais do que a história de um instrumento e seu repertório.
25
Compositores como Pirro Capacelli Albergati, Giovanni Battista, Pietro Degli Antonii,
Attilio Ottavio Ariosti, F. C. Belisi, Bartolomeo Bernardi, Giovanni Bononcini, Giovanni
Battista Borri, Giovanni Paolo Colonna, Bartolomeo, Lodovico Filippo and Pietro Paolo
Laurenti, Ferdinando Antonio Lazzari, Giacomo Antonio Perti, Domenico Gabrielli,
Giuseppe Maria Jacchini, Giuseppe Torelli (todos ativos em Bolonha); Giovanni Maria
Bononcini e Tommaso Antonio Vitali em Modena, Evaristo Felice (Modena, Munique
e Bruxelas) e Joseph-Marie-Clément Dall’Abaco (Bruxelas e Verona), Domenico Della
bella (Treviso), Giuseppe Cattaneo (Lodi), Elia Vannini (Ravenna), Antonio Maria Fiorè
(Turin), Giulio de Ruvo (Milão?), Giulio e Luigi Taglietti (Brescia), Girolamo Bassani
(Veneza, Würzburg) Francesco Maria Zuccari (Assisi); Antonio Caldara and Benedetto
Marcello in Veneza. A maior parte desses compositores escreveu peças para violoncelo
solo. Ver também ZINGLER, Ute. Studien zur Entwicklung der italienischen Violoncellsonate
von den Anfängen bis zur Mitte des 18. Jahrhunderts. Frankfurt am Main, 1967.
68
Até aqui, fica claro que outros termos também se referem a violinos
baixo pequenos e que esses instrumentos foram usados bem antes do
termo violoncelo ser estabelecido. Por outro lado, também é verdade
que a partir de meados da década de 1670 um número de violinistas
baixo começou a mostrar um interesse particular por este violoncelo,
dedicando a ele várias composições que o apresentam como solista, o
que é realmente notável. Os contextos gerais em que isso ocorreu são
dois: primeiro, o conjunto instrumental da Capela Musical da Basílica
de São Petronio em Bolonha; e segundo, a corte do duque Francisco
II d’Este em Módena. Nas listas de pagamento de San Petronio vemos
que em 1674 - o ano em que o compositor bolonhês, organista e cons-
trutor de órgãos Giovanni Paolo Colonna foi contratado como o novo
maestro di cappella - o instrumentista Giovanni Battista Vitali deixa de
ter seu instrumento mencionado como violone e começa a ser mencio-
nado como Suonatore di violoncello. Quando Vitali deixou San Petronio
para se tornar um dos dois vice-Maestri di cappella na capela ducal em
Modena, ele foi substituído em 1675 por Petronio Franceschini (1651-
1680), que nos deixou composições sacras para coros, trompete(s) com
orquestra de cordas e óperas, mas nenhuma música para violoncelo.
Após sua morte, Franceschini foi sucedido por Domenico Gabrielli
(“Minghein dal Viulunzèl”, 1659-1690), um violoncelista bolonhês de
21 anos que produziu entre suas composições vocais sacras e secula-
res, algumas sonatas para trompetes e cordas que continham solos de
violoncelo bastante virtuosísticos. Quando Gabrielli passou a prestar
serviço regular ao duque de Módena em 1687, ele continuou a aparecer
em San Petronio por mais um ano, mas depois definitivamente se mu-
dou para Módena. É para essa corte que ele compôs os 7 Ricercari para
violoncelo solo, um cânone para dois violoncelos, e duas sonatas com
baixo contínuo, as duas preservadas em duas versões26. Todas as com-
26
Cf. VANSCHEEUWIJCK, Marc. Domenico Gabrielli: Ricercari per violoncello solo; Canone
a 2 violoncelli; Sonate per violoncello e basso continuo. Facsimile, introdução e aparato crítico.
Bolonha: Arnaldo Forni Editore, 1998, pp. 5-12.
69
posições sobreviveram em manuscritos na Biblioteca Estense de Mo-
dena. De fato, elas são as primeiras peças solo explicitamente escritas
para o violoncelo. Giuseppe Colombi e Vitali escreveram alguns solos,
provavelmente alguns anos antes (também na biblioteca de Modena),
mas os manuscritos mencionam violone e não violoncello ainda.
70
Entre os violoncelistas ativos em San Petronio nas últimas
décadas do século XVII estava também Angelo Borri, mas não temos
composições para o violoncelo dele. Também há as Sinfonie, Sonate
e Concerti para um, dois e quatro trompetes, algumas também com
oboés e cordas, escritas pelo violista tenor Giuseppe Torelli (1658-
1709), que contêm alguns solos de violoncelo. Além disso, os arquivos
de San Petronio possuem uma extraordinária Laudate Pueri a Canto
solo col violoncello obligato de Antonio Maria Bononcini, datada de 19
de fevereiro de 1693. A parte do violoncelo é tão exigente, com suas
cordas duplas, triplas e arpejos - na verdade, uma parte principalmente
harmônica - e muitas passagens rápidas, que ela pode ter refletido
uma abordagem para a realização da parte de baixo contínuo, como eu
propus em outro lugar27. Exceto para os violoncelistas que tocavam o
instrumento no ombro, a iconografia parece confirmar que a maioria
dos instrumentistas usava a pegada inferior do arco em seus violinos
baixo pequenos de quatro ou cinco cordas em todos esses repertórios
bolonheses e modeneses. De fato, no que diz respeito aos séculos XVI e
XVII, eu encontrei poucas imagens em que o músico segura o arco com
a pegada superior28.
27
Cf. WISSICK, 2006, LINDGREN, 1996 e VANSCHEEUWIJCK, 2020.
28
Cf. PASSE, 1612, em: http://www.vanedwards.co.uk/month/jan01/month.htm e
COSIMI, Nicola. Sonate da camera a violino e violone o cembalo... Opera prima (Amsterdam,
1702), frontispício: gravura de J. Smith [London, British Library] em http://www.haendel.
it/compositori/cosimi.htm.
71
maior ou da viola da gamba ou da família da viola da braccio, ou, talvez
ainda mais provável, algum “híbrido” dos dois. Em todas essas situações,
considerações sobre a tessitura geral da peça e uma compreensão de
onde a peça está principalmente “situada” no instrumento, devem de-
terminar o uso de um violino baixo pequeno ou grande. Em termos de
tipos de repertório, o instrumento foi mais frequentemente usado em
música de câmara/dança e como um instrumento baixo solo mais alto
na música sacra e no teatro durante o século XVII. Mais tarde, como
Mattheson afirmou, seu som penetrante teve um bom efeito também
nas partes de baixo.
29
Cf. GALILEI, 1581, p. 147: “La Viola da Gamba, & da Braccio, Tengo per Fermo che ne
Siano Stati Autori gli Italiani, & forse quelli del Regno di Napoli”.
30
Cf. WOODFIELD, 1984, p. 61; HOLMAN, 1993, p. 15; PIO, 2011 e CEULEMANS,
2011, p. 116.
72
Ao considerar a história dos violinos baixo, podemos desenvolver
uma hipótese semelhante. Aqui também, como mencionado
anteriormente, musicólogos têm tradicionalmente pensado no
violoncelo como um instrumento que se desenvolveu em Bolonha e
Emília. Dado que durante a maior parte do século XVII o violone maior
foi o baixo mais comum dos violinos na Itália, a primeira aparição
do termo violoncello em uma publicação de Arresti em 1665 deu aos
historiadores a impressão de que o violoncelo era de fato uma novidade
especificamente emiliana. Também a presença em Emilia de alguns
dos primeiros violoncelistas solistas e seu repertório especificamente
destinado ao violoncelo levou o raciocínio dos historiadores da música
nessa direção. Não há dúvida de que em torno da Cappella Musicale
de San Petronio em Bolonha e na corte de Francesco II d’Este em
Modena, havia uma grande variedade de violinos baixo de diferentes
tamanhos, números de cordas e até mesmo formas de tocar (segurando
o instrumento verticalmente, de pé ou sentado, ou segurando-o
horizontalmente, de pé). No entanto, isso não significa que outras
regiões/nações da península italiana não tivessem suas próprias
tradições (VANSCHEEUWIJCK, 2012).
31
OLIVIERI, 2009, ver pp. 116-17 e pp. 109-11.
32
Ibid., p. 117.
73
menor de violone não existia. Pelo contrário, se violone era o termo
mais comum em Roma para o baixo dos violinos, em Veneza, Pádua, e
em Nápoles viola (às vezes até mesmo violetta) foi mais frequentemente
utilizado, mesmo para instrumentos de baixo. Nestes casos, viola refere-
se à categoria organológica e somente quando necessário o registro
específico era adicionado, como em viola contralto ou viola alto, viola tenore
e basso viola (da braccio). Concordo com a hipótese de Guido Olivieri,
também confirmada pelas primeiras composições para o instrumento,
que a quatro Sonate a due viole de Rocco Greco (c.1650-1718)33, e os
duetos para dois instrumentos de baixo de Cristoforo Caresana (1681)
e Gregorio Strozzi (1683) são, sem dúvida, peças para algum tipo de
violino baixo. Além disso, também poderíamos nos perguntar por
que, por exemplo, um documento que menciona a manutenção feita
pelo luthier Nicola Vinaccia em 1734 em “Violini, Viole, Contrabasso
et altro Delli figlioli del Conservatorio di Sant’Onofrio a Capuana”
não menciona o violoncelo34. Muito provavelmente, a categoria das
“Viole” já o incluía. Uma questão adicional seria compreender que tipo
particular de violino baixo estava em uso em Nápoles ou se havia vários,
como em Emilia.
33
I-MC, Ms. 2 D 13 (referência de estante antiga 126 F 14op.1 na Biblioteca di
Montecassino), datado 1699.
34
Cf. NOCERINO, 2003.
74
encontramos em Paris nos anos de 1730. Proponho que isto foi uma
consequência do impacto dos violoncelistas napolitanos, em primeiro
lugar Salvatore Lanzetti (c.1710-c.1780), que chegaram a Paris naqueles
anos, e de seus seguidores que lançaram este “novo” instrumento e sua
técnica que provavelmente já estavam em uso há algumas décadas nos
conservatórios napolitanos e em contextos musicais napolitanos em
geral, como já superficialmente introduzido na seção passada sobre
Nápoles. Uma vez que a evidência em favor de tal hipótese não é direta,
vou explorar alguns exemplos de evidências indiretas. Primeiro, sabemos
muito pouco sobre a fabricação de instrumentos napolitanos, exceto por
alguns nomes de luthiers como Natale Mattone (ou Mautone), Jacovo
Lodi, Lorenzo Cotugno, os Gaglianos, Calace, Filano, Fabbricatore, os
Vinaccias e outros, que construíram violinos e viole35. Por outro lado,
o pequeno número de instrumentos sobreviventes, desde que sejam
autênticos (!), foi profundamente alterado e adaptado às exigências
estéticas subsequentes para ter hoje qualquer valor organológico
histórico. Aproximadamente cinquenta fabricantes de instrumentos de
cordas friccionadas ou dedilhadas estavam ativos em Nápoles naquele
tempo36, um fato que sugere uma produção substancial em algum grau.
35
Cf. NOCERINO, 2001, p. 243. Ver também: DE ANGELIS, 2009. Sobre luthiers alemães
em Nápoles, ver SISTO, 2010.
36
Cf. NOCERINO, 2003, II, pp. 800-804.
75
um punhado de outras imagens, incluindo o suposto retrato de Salvatore
Lanzetti. Com base nestes, podemos pelo menos indicar algumas
características comuns: os instrumentos são geralmente relativamente
pequenos; eles consistentemente têm quatro cordas; os violoncelistas
seguravam o instrumento bastante baixo entre as pernas, até mesmo no
chão; a pegada do arco é sempre superior (em oposição à pegada inferior,
que era a “norma” na maior parte da Itália); os dedos da mão esquerda
estão posicionados (quase que) completamente retos nas cordas. Todos
esses elementos são, de fato, os da técnica “clássica” na prática moderna
do violoncelo. Finalmente, a presença em Nápoles de instrumentos de
cinco cordas no início do século XVIII parece duvidosa, uma vez que
não temos provas nem de fontes iconográficas e documentais, e nem
da própria música. Novamente, o uso de instrumentos menores que o
tamanho padronizado (c.75cm de comprimento do corpo) não pode
ser excluído. Ao estudar o repertório de violoncelo desde as primeiras
partes obbligato para o violoncelo até as sonatas e concertos37 mais
conhecidos, notamos um alto nível técnico do violoncelo visto antes
de 1736 apenas em Nápoles (exceto as composições publicadas por Jean
Barrière na França entre 1733 e 179638). É realmente o Reino de Nápoles
que produziu os primeiros violoncelistas verdadeiramente virtuoses;
estes, a partir do início do século XVIII, e graças à sua emigração
ou emprego ocasional na Espanha, Áustria, França e Inglaterra,
37
Incluindo a Serenata Diana amante de Leonardo de Leo (1717, ver Olivieri, 2009, p.
114.); concerto de Giuseppe de Majo (1726, ver FABRIC, 2012, pp. 8-9.); os quatro
concertos/sinfonias (com dois violinos e baixo) para violoncelo solo de Nicola Fiorenza
(1728-29, in I-Nc, M.S. 2179-2183.); seis concertos de Leonardo Leo (1737-38, in
I-Nc, Rari 1.6.15/1-6.); as Sei Sonate de Pasquale Pericoli (Bolohaa, 1769); o Solo para
Violoncelo, dois violinos e baixo contínuo de Nicola Sabatino (em A-Wgm); as Toccate
e Sonate de Supriani (in I-Nc, M.S. 9607), Alborea (in Cz-Pnm, mss. XLI B 17 & 18;
a atribuição dessas suas sonatas a Alborea é duvidosa); e as três coleções de sonatas
publicados por Salvatore Lanzetti (Op. I, II, and V).
38
BARRIÈRE, Jean. Sonates pour le violoncelle avec la Basse Continüe, Livre Ier (Paris, 1733);
Livre IIe (Paris, 1733); Livre IIIe (Paris, 1733); Livre IVe (Paris, 1739).
76
estabeleceram uma abordagem para este tipo menor de violinos baixo
que acabou sendo muito mais influente para as gerações futuras do que
a tradição emiliana de Gabrielli e Bononcini. Enquanto, no norte da
Itália e em Roma, o violone e o violoncello com quatro ou cinco cordas,
tocados em uma variedade de posições e pegadas de arco, mantiveram-
se coexistindo bem no século XVIII, os violoncelistas napolitanos do
violoncelo de quatro cordas com a sua pegada superior de arco e seu
virtuosismo técnico avançado causaram uma impressão decisiva tanto
na visita de músicos estrangeiros a Nápoles como no público e críticos
na França e na Inglaterra.
39
Cf. OLIVIERI, 2009, pp. 112-13.
77
pequeno tratado manuscrito sobre o básico do violoncelo (Principij da
imparare a Suonare il violoncello); um Studio per violoncello; uma Sonata di
violoncello solo; e um conjunto de doze Toccate para violoncelo solo. Estas
toccatas ele transformou em sonatas em um segundo manuscrito, com
uma parte de baixo contínuo e uma versão ornamentada (ou melhor,
uma versão extremamente elaborada) das toccatas originais. Embora
não datados, esses manuscritos, agora no Conservatório de San Pietro
a Majella, em Nápoles, provavelmente remontam ao final da década
de 1720, um período que marca o início de uma verdadeira explosão
de repertório para o violoncelo solo40. Isso pode ser uma consequência
de encomendas feitas por violoncelistas amadores apaixonados como
Marzio Domenico IV Carafa, Duque de Maddaloni e o Marquês Otta-
vio de Simone41, que organizavam regularmente esercizi (concertos) em
seus palácios privados em Nápoles, onde convidavam violoncelistas vir-
tuoses e outros compositores para apresentar suas últimas peças para o
instrumento. A maioria dos concertos para violoncelo de Leonardo Leo
(1694-1744), Nicola Fiorenza (?-1764), Nicola Sabatino (1705-1796) e
Giuseppe De Majo (1697-1771), mas também as sonatas de violonce-
lo pelos conhecidos compositores de ópera napolitana e música sacra,
Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736) e Nicola Porpora (1686-1768),
foram destinados a estes eventos musicais. Esta é uma das razões pelas
quais este repertório nunca foi publicado: as peças apresentadas foram
destinadas a uma performance única por músicos profissionais, cuja téc-
nica incluía registros altos até uma quarta ou uma quinta acima da meta-
de da corda superior (d’’ ou e’’), grandes saltos sobre duas cordas, arpejos,
batteries, acordes e cordas duplas e articulações complexas e variadas. Em
tais peças, o uso da posição do polegar é praticamente inevitável e um
instrumento menor é definitivamente preferível para a facilidade do
40
Cf. I-Nc, M.S. 9607.
41
Cf. FERTONANI, 2003, pp. 933-34.
78
performer. No entanto, nas peças tecnicamente mais complexas, como a
oitava sonata de Supriani, um pequeno instrumento com quatro cordas
pode melhorar sua viabilidade, mesmo sem o uso do polegar.
42
I-Mc, Noseda O-46, 12-16.
43
CONSTANTINI; MAGAUDDA, 2019,
http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/24187.
44
Em 1736, Salvatore Lanzetti tocou suas próprias peças para violoncelo em três
performances no Concert Spirituel em Paris: no Dia da Ascenção (10 de maio), Pentecoste
(20 de maio) e no Corpus Christi (31 de maio). Ele foi o primeiro violoncelista a toca lá
como solista. Cf. PIERRE, 1975.
79
cou emprego no exterior, na corte de Saboia, e se apresentou nos locais
de concerto mais prestigiados da Europa. De fato, ele usou sua publica-
ção de 1736 como um cartão de visita para apresentar seu trabalho como
um compositor-violoncelista, disseminando assim o estilo e a técnica do
violoncelo napolitano em toda a Europa.
80
Janson, Jean-Baptiste Bréval e Jean-Louis Duport. Os dois últimos
(especialmente Duport, 1749-1819), foram os primeiros violoncelistas
a obter posições de ensino em violoncelo no novíssimo Conservatório
de Paris uma geração depois. Podemos então supor que o novo
“violoncelo” padronizado, como proposto e descrito por Corrette em
1741, foi, de fato, a codificação de um instrumento e sua técnica, como
usado por virtuoses napolitanos que passavam por Paris na década
de 1730, uma codificação que apresenta todas as características da
abordagem “clássica” do que viria a ser o violoncelo moderno. O sucesso
geral do estilo napolitano e o currículo dos conservatórios napolitanos
também influenciaram profundamente o currículo do Conservatório
de Paris algumas décadas depois. Esta abordagem napolitana ao
violoncelo virtuosístico finalmente floresceu em Londres com Lanzetti
e Pasqualino De Marzis, sendo emulada pelos Cervettos. Nesse sentido,
não era realmente a tradição emiliana, mas a escola napolitana de
violoncelo que seria a verdadeira base da escola de violoncelo “clássica”,
como se desenvolveria ao longo dos séculos XIX e XX.
81
permitindo que os músicos desenvolvessem mais registros do instru-
mento, combinado com todos os tipos de características pirotécnicas
que refletem as dos seus colegas violoncelistas. Foi assim em Paris; em
parte através de performances de virtuoses napolitanos, como Lanzetti;
em parte graças à publicação e à circulação do método de violoncelo
de Corrette; e em parte também através da imitação e divulgação de
exemplos napolitanos (por exemplo, Barrière), que o violoncelo “clás-
sico” começou sua longa e frutífera carreira como solista em meados
de 1730. Talvez sem saber toda a extensão de sua afirmação, Vincenzo
Galilei estava de certa forma correto ao escrever que os instrumentos da
família do violino e, por extensão, seus baixos foram estabelecidos no
Reino de Nápoles, e não em Emilia, como sempre foi reivindicado pelos
estudiosos modernos.
DEFINIÇÕES E ICONOGRAFIA
Muita tinta foi gasta para se tentar entender precisamente o que
era o violone nos períodos renascentista e barroco, e provavelmente
a própria questão seja a principal responsável pela confusão. O violo-
ne não é um instrumento específico; na verdade, nem sequer denota
uma família específica de instrumentos. Por exemplo, os estudiosos têm
muitas vezes postulado, com base em apenas alguns tratados, que violone
no século XVI era sinônimo de viola da gamba como uma família. Em-
bora isso possa ser verdade em um período e em um lugar específicos,
é muito restritivo. Ainda que a terminologia possa parecer, à primeira
vista, aleatória e confusa, ela era, pelo contrário, bastante precisa e es-
pecífica quando incluímos o tempo e a localização exatos na equação.
82
anacrônica, particularmente quando se trata de instrumentos grandes.
A maioria das fontes iconográficas e documentais consideradas juntas
acabariam indicando que os violoni eram quase todos “híbridos” se ob-
servássemos as características que se tornaram padrão em nossas des-
crições de ambas as famílias de instrumentos, como discutimos ante-
riormente. Na verdade, quer olhemos para pinturas e gravuras da Itália,
da Holanda, ou de outras partes da Europa, encontramos violinos baixo
relativamente grandes com quatro, cinco, seis e até oito cordas, alguns
apresentando o que reconheceríamos hoje como uma viola da braccio
“pura” e alguns com elementos que também nos lembram a família da
viola da gamba45. Mais uma vez, mesmo no caso dos tipos grandes de
instrumentos baixo de arco, devemos deixar as práticas, repertórios e
costumes regionais, ou principalmente locais, em um determinado mo-
mento, nos informar sobre o instrumento e como tocá-lo, ao invés de
tentar encontrar uma única solução completa para todo o início do
período moderno em toda a Europa.
INSTRUMENTOS
Em um artigo de 1994, Rodolfo Baroncini menciona a
existência de um Contrabbasso di viola da gamba (um termo do século
XVII emprestado de Monteverdi) afinado em G, (12 pés) com base na
famosa miniatura da capela musical do Duque Albrecht V da Baviera,
de Hans Mielich46. É em contextos venezianos que essa afinação baixa
em G, aparece pela primeira vez; como na Prattica di musica (1592) de
45
Cf. exemplos em https://www.greatbassviol.com/iconography/boulogne. jpg; https://
www.greatbassviol.com/iconography/falcone-concert.jpg; https:// www.greatbassviol.
com/FB%20images/lely.jpg; https://www.greatbassviol. com/iconography/molenaer.
jpg; https://www.greatbassviol.com/FB%20images/puget.jpg; https://www.
greatbassviol.com/iconography/sara1.jpg; etc.
46
Cf. BARONCINI, 1994; MIELICH, Hans. Orlandus Lassus and his Musicians of the
Hofkapelle in Munich (1565-1570), Munich, Bayerische Staatsbibliothek: https://www.
greatbassviol.com/FB%20images/mielich.jpg.
83
Lodovico Zacconi e com o uso do Contrabbasso di viola por Monteverdi
em Orfeo (1607), que se refere necessariamente a um instrumento
capaz de tocar a uma altura inferior a dos bassi da brazzo e dos bassi
da gamba. Um uso igual ou semelhante aparece novamente em 1624,
no Combattimento di Tancredi e Clorinda, e nas vésperas de 1610. Pelo
menos até c.1675, o “violone” sem especificação adicional seria uma
viola da braccio de oito pés não transpositora, do tipo maior e com
possíveis extensões no registro de 12 pés (F,-C). Tal violone poderia ter
a forma de uma viola da gamba tradicional (com seis cordas, afinadas
em G,-C-F-A-d-g, muitas vezes chamado de violone em Sol); ou um
violino baixo (com cinco ou quatro cordas); ou qualquer coisa no meio
(como podemos ver em algumas pinturas de Evaristo Baschenis)47.
Poderia possivelmente corresponder ao Groß Quint Bass do Praetorius
(afinado em F,-C-G-d-a) ou aos instrumentos de cinco cordas de Hans
Krouchdaler preservados nos Museus de Instrumentos Musicais em
Bruxelas, Berlim e Nürnberg. É possível notar também que muito do
repertório impresso no século XVII oferece a alternativa entre teorba e
violone para uma parte melódica do baixo (muitas vezes independente
do baixo contínuo), de modo que alguma correlação deva existir entre
os dois instrumentos; se aceitarmos os violoni de 12 pés como uma
possibilidade, pela teorba apresentar a mesma extensão, os dois se
tornariam facilmente intercambiáveis. Ambos são fundamentalmente
instrumentos de 8 pés não transpositores, com uma possível extensão
para a faixa de 12 pés (até o F, ou G,). Por outro lado, se compositores
ou editores do século XVII quisessem incluir um instrumento capaz de
tocar a maior parte da linha de baixo uma oitava abaixo do tom escrito,
eles identificariam um instrumento maior do que o baixo, adicionando
modificadores como grande, grosso, Doppio, contrabbasso, in contrabasso, ou
qualquer combinação parecida, como Stephen Bonta e Tharald Borgir48
hipotetizaram já no final de 1970. Na maior parte do século XVII,
esses violoni in contrabbasso foram usados apenas em situações muito
48
Cf. BORGIR, 1987.
84
específicas, principalmente em contextos sacros policorais concertato
venezianos, bávaros, bolonheses e romanos. Eles se tornaram mais
frequentes e, eventualmente, padronizados, em óperas do século XVIII
e em contextos de grandes conjuntos em toda a Europa. Na maioria
das situações de performance em que a instrumentação padrão era de
partes ‘uma para cada um’49, um contrabaixo de 16 pés transpositor foi
raramente usado no século XVII, e ainda era uma raridade durante a
maior parte da primeira metade do século XVIII.
REPERTÓRIO
Como vimos, praticamente toda a música italiana do século
XVII que exigia um violone (em Bb,-F-c-g ou em C-G-d-a) era tocada
no tom real, ou seja, não transposta, exceto pela possível extensão no
registro de 12 pés junto com (ou em vez de) a teorba e/ou o pedal de
órgão pequeno em 12 pés, se fossem utilizadas seis cordas na viola da
gamba (o chamado violone em Sol), cinco cordas na viola da braccio
(afinadas em G, ou F,-C-G-d-a), ou qualquer “híbrido”. Mais uma vez,
estes vários tipos de instrumentos eram bastante permutáveis e é ape-
nas o contexto regional que irá ditar certas preferências, embora sem
ser especificamente prescritivo.
49
Cf. MAUNDER, 2004 e PARROT, 2000.
85
para ter cordas suficientemente finas de tripa pura ou tratada para
proporcionar um som aceitável. Uma proposta também poderia ser
usar um violino baixo grande afinado em Bb,-F-c-g, evitando assim a
corda mais grave solta, ou mesmo um violone em Sol, evitando a corda
mais grave completamente: em ambos os casos, a nota mais grave que
soaria “bem” seria o Dó de 8 pés. De fato, em seu Il Scolaro per imparare
a Suonare di violino, et altri stromenti (o único método do século XVII
para instrumentos da família do violino), publicado em Milão em
1645, Gasparo Zannetti apresenta afinações para os três tamanhos de
instrumentos da família do violino e uma longa coleção de danças para
este grupo com tipicamente três ou quatro violinos, tanto em notação
convencional quanto em tablatura, com indicação ocasional de arcadas.
Graças às tablaturas é fácil deduzir a afinação regular do violino em
g-d’-a’-e’’, os instrumentos alto e tenor afinados uma quinta abaixo que
o canto (soprano), isto é, em c-g-d’-a-, e o baixo afinado duas quintas
abaixo do que o alto/ tenor, em Bb,-F-c-g.
86
Pier Francesco Mola50. Literalmente um “híbrido”, a viola bastarda
novamente não é uma categoria organológica específica, mas uma forma
de tocar o instrumento. No entanto, ela precisa ser um instrumento
com um alcance bastante amplo, como é também exigido no repertório
da viola bastarda como, por exemplo, por Girolamo Dalla Casa (Il Vero
modo di diminuir, 1584), Aurelio Virgiliano (Il Dolcimelo, c.1600), e Francesco
Rognoni (Selva de varii pasaggi, 1620).
50
Cf. MOLA, Pier Francesco. The Viol Player (meados do século XVII), Bellinzona, Palazzo
del Governo, ver: https://www.greatbassviol.com/new%20gamba%20 pics/mola.jpg.
51
Em suas várias peças solo para violone preservadas em manuscrito na Biblioteca
Estense em Módena, Colombi frequentemente usou Bb, , mas uma estranheza aparece
em seu Op. Sonate a 2 Violini con un Bassetto viola se piace (Bolonha, 1676) onde a
extensão também é Bb,-e’, praticamente invalidando minha teoria de que Bassetto
indicaria preferencialmente um pequeno violino baixo - a menos que em Modena a
situação fosse semelhante à do violino baixo na Grã-Bretanha (ver acima). Também
Trattenimento musicale Sopra il violoncello à solo de Galli (Parma, 1691) são escritos para
“violoncelo” e usam a mesma afinação baixa.
52
Uma longa lista de nomes dos compositores inclui (entre outros) em ordem alfabética
Albergati, Albinoni, Aldrovandini, Alli Macarini, P. degli Antonii, Baldassini, Bassani,
Bellinzani, Bernardi, G. M. Bononcini, Caldara, Cazzati, Colombi, Colonna (como um
contrabaixo de 16 pés), Corelli, Franchi, C. Grossi, Legrenzi (que muitas vezes usa viola
da brazzo), Leonarda, Merula, Migali, Milanta, Monteventi, Natale, Passarini, Penna,
Prattichista, Predieri, Ravenscroft, Reina, Silvani, de Stefanis, Stiava, Tarditi, Torelli
(como um contrabaixo de 16 pés)Uccellini, Urio, Valentini, Veracini, G.B.Vitali. Ver
também SCHMID, 1987.
87
faixa C-d’, com algumas exceções para o f#’ e g’, embora essas partes
mais altas muitas vezes sejam dadas a um violoncelo/violoncino/bassetto.
Outra tendência é o abandono gradual do violone de 8 pés (pelo menos
como um termo) após a década de 1680 em favor do violoncelo.
88
de cordas, posição de apoio (da spalla ou da gamba)” parece lógica; deve
ser o repertório e/ou o tipo de escrita musical que determina a escolha
de um instrumento específico com uma afinação particular, número
de cordas, posição de apoio e pegada de arco (inferior ou superior)
(VANSCHEEUWIJCK, 2012, p. 122).
O VIOLONCELO DA SPALLA:
UMA ABERRAÇÃO DO SÉCULO XXI?
Vinte anos se passaram desde que Gregory Barnett publicou
seu artigo inovador sobre o violoncello da spalla (BARNETT, 1998).
Também faz quase quinze anos que vários violinistas (na maior parte)
barrocos (liderados por Sigiswald Kuijken e seus seguidores em Bruxelas,
estimulados inicialmente pelo luthier russo Dmitry Badiarov) - (re)
inventaram um instrumento tocado no ombro, ou melhor, contra o
peito, que eles chamaram de violoncello da spalla. Tratados, fontes
documentais e iconografias atestam a existência de violinos baixo
tocados “horizontalmente” ou “da braccio”, mas vários mal-entendidos e
interpretações equivocadas, combinados com algumas falsi storici, levaram
a esse pequeno violoncelo da spalla do século XXI, tornando-se ele muito
aceito no mundo da performance historicamente informada. Proponho
aqui retificar certas suposições e reavaliar fontes escritas e materiais
89
iconográficos que os instrumentistas usaram recentemente para tocar
concertos solo barroco e até a Sexta Suite para violoncelo de Bach nesses
pequenos instrumentos. Levando em conta características organológicas,
cordas, técnicas de execução e o repertório (principalmente nas áreas de
língua italiana e alemã), mostrarei que esta invenção moderna é de fato
uma aberração baseada em um anacronismo duplo.
90
apenas partes simples de baixo, enquanto a execução de composições solo
virtuosísticas parece extremamente desconfortável e bastante improvável.
Em uma situação de música de câmara, na qual apenas o cravo tinha a
partitura, o violoncelista poderia efetivamente se aproximar da partitura
segurando o instrumento no ombro (Fig. 9). Isso explicaria porque o vio-
loncelo da spalla não deve ser considerado como uma categoria organoló-
gica específica, mas apenas um violoncelo regular tocado em uma posição
diferente e, de fato, praticamente todas as fontes iconográficas nos mos-
tram que os instrumentos tocados da spalla eram geralmente relativamen-
te grandes e sempre utilizados em situações de acompanhamento. Quan-
do praticamente e acusticamente possível, podemos muito bem imaginar
(pelo menos de nossa perspectiva do século XXI), que a posição preferida
era provavelmente da gamba com o instrumento colocado entre as pan-
turrilhas, no chão ou em um banquinho.
91
Por outro lado, os tratados às vezes atestam diferenças nas práticas
regionais ou vantagens de uma certa maneira de segurar o instrumento,
mas, com exceção da rara menção ao instrumento de ombro, no
Neueröffnete Orchester publicado por Matheson em 1713, sendo um dos
tipos menores (entre outros instrumentos pequenos), nenhuma fonte do
século XVII ou da primeira metade do século XVIII indica algo parecido
com o instrumento que hoje em dia é usado como violoncelo da spalla53.
53
Como as referências já mencionadas dos tratados de Rousseau, Walther, Mattheson,
Majer, Eisel, etc.
54
Cf. WISSICK, 2006.
55
Cf. FONTANA,; HELLER,; LIEBERWIRTH, 2008 e VANSCHEEUWIJCK, 2012;
Pdf em: https://www.sidm.it/index.php/pubblicazioni/atti-di-convegni/788-serie-
barocco-padano-a-m-i-s-como-disponibile-in-formato-digitale-e-download-gratuito.
92
Figura 10: Altar da catedral de Freiberg na Saxônia;
instrumento fabricado por Paul Klemm
56
Cf. https://www.thestrad.com/violoncello-da-spalla--story-of-a-rediscovery/6455.
article e também MOENS, 2015.
93
o violoncelo da spalla que Mattheson menciona. No entanto, surgiram
problemas quando o instrumento de Badiarov precisava ser encordoado,
principalmente na oitava de 8 pés, quando as medições desses
instrumentos “históricos” oscilavam entre 43-47 cm de comprimento
(os de Badiarov têm 44-46 cm) para um comprimento de corda vibrante
de 41-43cm (Badiarov: 43cm)57. A instalação de uma corda Dó regular
de violoncelo em um instrumento tão pequeno fez com que ela ficasse
muito frouxa para ser tocada. Posteriormente, Mimmo Peruffo,
fabricante de cordas e proprietário da Aquila Strings, em Vicenza, foi
convidado a fazer uma corda Dó de 8 pés que funcionaria. Ele propôs
uma doppia filata ou uma corda de tripa com revestimento duplo, cuja
primeira menção é encontrada em uma carta datada de 1767 ou início
de 1768 por Jean-Baptiste Forqueray (o jovem)58. Essa corda finalmente
produziu uma tensão alta o suficiente para tocar um Dó de 8 pés com um
som decente um Lá = 415Hz.
57
Para comparação, o violoncelo moderno padrão tem um comprimento de corpo de 75
cm para um comprimento de corda vibratória de 69 cm, enquanto a viola normalmente
tem um comprimento de corpo de 39-44 cm para um comprimento de corda vibratório
de 37-43 cm, tornando a corda Dó do violoncello da spalla de 8 pés obviamente poucos
centímetros maior do que a corda Dó de uma viola de 4 pés.
58
Forqueray, na verdade, rejeita a corda com “double filée” em sua carta ao príncipe da
Prússia, que foi descoberta por Yves Gérard em Merseburg e publicada em 1962. Cf:
GÉRARD, Yves. “Notes sur la fabrication de la viole de gambe et la manière d’en jouer,
d’après une correspondance inédite de Jean-Baptiste Forqueray au Prince Frédéric-
Guillaume de Prusse,” Recherches sur la musique française classique 2 (1961-62): 165-171. Um
pdf do manuscrito original está disponível em https://www.greatbassviol.com/treatises.
html, onde esta passagem relevante pode ser encontrada na p. [2r.].
94
das - sobreviveram inalterados nas coleções de Berlim, Nuremberg e
Praga, provavelmente por causa da existência naquele ponto de cordas
de revestimento duplo.
95
uma possibilidade como um baixo pequeno de 6 ou 8 pés - depois que a
corda de revestimento duplo foi introduzida, ou seja, provavelmente por
volta da metade do século XVIII.
BIBLIOGRAFIA
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96
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padano-a-m-i-s-como-disponibile-in-formato-digitale-e-download-gratuito.
Acesso em: 18 set. 2019.
103
O SISTEMA DE CLAVES DE LUIGI BOCCHERINI
André Micheletti
1. À ÉPOCA DE BOCCHERINI
59
Em HEARTZ, 1995, o autor descreve que no mesmo ano, 1754, há uma visita de seu pai,
Leopoldo, acompanhado por um de seus filhos à Roma, mas o nome do filho em questão
não foi mencionado nesta fonte. Remilio Coli (que escreveu uma biografia de Boccherini
em 1988) supôs que fosse Luigi, mas seu irmão Giovanni Gastone também tinha conexões
em Roma, tornando-se membro da Academia Arcadiana, em Roma, como descrevem
LINDSAY e SMITH, 1945, p. 75. Coli aponta outra ausência de Leopoldo em sua posição,
de novembro de 1753 a junho de 1754, conforme documentado no Archivo di Stato, em
Lucca. Supõe-se que Luigi Boccherini tenha sido enviado a Roma em 1756 para estudar
com o violoncelista e compositor Giovanni Batista Costanzi (1708-1778), como nos
descreve SPECK e CHAPMAN, 2005, p. 191. Por outro lado, Christian Speck e Laurenne
Chapman afirmam que Luigi foi enviado para Roma em 1753, e também que é incerto se
ele estudou violoncelo ou composição sob a orientação de Costanzi.
60
Não confundir com o compositor de ópera Giacomo Puccini (1858 - 1924), que é
seu descendente.
104
organista da Catedral de Lucca, e da Accademia Filarmonica de Bolonha
(SPECK, 2005, pp. 191–92). Essas aparições, além de algumas das festivi-
dades de Santa Croce, ocorrem novamente em 176661. Em suas viagens a
Viena, os “Boccherinis” aparecem sob os registros de pagamento da MS da
Teatralkassa rechnung, no Hofkammerarchiv, onde existe um documento
que nota que Luigi estava empregado de dezembro de 1757 a março de
1758 como violoncelista, e Leopoldo como contrabaixista (Basso para a
época não era tão somente o que conhecemos como contrabaixo, mas uma
gama maior de instrumentos) (HEARTZ , 1995, p. 105) .
61
Esses concertos estão bem documentadas nos registros salariais de Puccini
105
lista virtuoso em 1764, contratado para tocar seus próprios concertos, e foi
nessa época que seu famoso retrato foi pintado (ver Fig. 2 deste Capítulo).
106
compositor. Isso abriu as portas para a cena musical parisiense, onde
Boccherini toca suas composições no Concert Spirituel, em 1767-68. O
Mercure de France discorreu sobre seu concerto naquela ocasião: “Então o
Sr. Boccherini, já conhecido por seus impressionantes trios e quartetos,
tocou de maneira magistral, ao violoncelo, uma sonata de sua própria
autori” (ROTHSCHILD, 1965, pp. 28–29).
62
Não está claro se o contato com Don Luis, o infante espanhol, já havia sido feito, direta
ou indiretamente, através do embaixador espanhol em Paris, Joaquín Pignatelli de Aragão
e Moncalvo, conforme sugerido em PICQUOT, 1991 [1851], p. 58 (e muitos outros
biógrafos), pois não se tem registro das supostas cartas de recomendação.
107
de ir para Londres. Talvez Boccherini já tivesse conhecido a soprano
italiana Clementina Pelliccia, que se tornaria sua esposa em agosto de
1769, nesse caso, a promessa de trabalho para os dois na Espanha po-
deria ter ajudado a levar à decisão de ir a Madri.
63
Cf. LE GUIN, 2005, p. 55. Não está claro se eles viajaram todos juntos para Madri ou
se organizaram para se encontrar mais tarde. O fato é que podemos encontrar os três -
Boccherini, Manfredi e Pelliccia - trabalhando em Madri pouco tempo depois.
64
O tratado Dell’Origine e Delle Regole Della Musica, escrito pelo jesuíta espanhol Antonio
Eximeno durante seu exílio na Itália, descreve Boccherini como um membro destacado da
escola italiana de música instrumental criada por Corelli e aperfeiçoada por Tartini.
65
Mister ressaltar que essa afirmação, feita por Junker e citada por M. A. Marin em Images
of Boccherini through his Early Biographers, relata a visão de forma alemã e não leva em conta
o partimento romano, como forma e estudos sobre a melancolia em compositores e artistas
do século XVIII, como demonstram publicações de Elisabeth Le Guin, e NOVEMBER,
2007, destacando a melancolia descrita por Junker como algo positivo.
108
Dois anos depois, conseguiu estabilidade financeira, pois fora
contratado como virtuoso da cámara y compositor de música (composi-
tor e músico de câmara virtuoso) pelo infante Don Luis de Bourbon
(irmão mais novo do rei Carlos III da Espanha), cargo que manteve de
1770 a 1785, ano da morte de Don Luis.
109
Em 1776, o Infante foi exilado pelo rei (seu irmão) da área de Ma-
dri, na tentativa de impedir que ele ou seus filhos assumissem o trono.
Boccherini seguiu o infante onde quer que este fosse, incluindo estadias
em Talavera, Torrijos, Velada e Caldaso de los Vidros, até que Don Luis
finalmente decidiu morar em Arenas de San Pedro, perto de Toledo, em-
bora só fosse habitável depois de 1783 e o palácio nunca tenha sido real-
mente finalizado (LE GUIN, 2005, p. 57). Por conta disso, as cartas de
Joseph Haydn não encontraram Boccherini, causando muita irritação no
compositor austríaco, que considerou negligência do amigo.
110
[Professor de música a serviço da SMC [referindo-se
a Carlos IV, príncipe das Astúrias], compositor de
música de câmara da Majestade da Prússia Imperial
[referindo-se a Frederick William II, rei da Prússia]
e diretor do conservatório de sua Excelência Senhora
Condessa de Benavente, duquesa de Osuna, de Gan-
dia, etc. [referindo-se a Maria Josefa Télez-Girón]
(PICQUOT, 1851, p. 60 Tradução nossa)
111
de 1714 a 1746, era casado com Isabella Farnese, uma italiana que amava
as artes, em especial a ópera séria. Foi ela a responsável por levar para
Madri, em 1737, o cantor italiano mais famoso de sua época, o castrato
Farinelli (Carlo Broschi) (LE GUIN, 2005, p. 58). Fernando VI, casado
com María de Braganza, foi o sucessor de Felipe, e María era conhecida
por seu patronato a Domenico Scarlatti.
2. O VIOLONCELO E VIOLONCELISTA
À ÉPOCA DE BOCCHERINI
112
Figura 2: Boccherini ao Violoncelo
66
A obra é atribuída a Pompeo Batoni (1708-1787), que vivia em Roma, porém Boccherini
residia em Lucca. A pesquisa mais recente mostra, no entanto, que essa atribuição é
duvidosa e, além disso, não há registros de quem encomendou tal obra.
113
tos, G477 e G480, não possuem nenhuma nota sequer na corda Dó e um
deles, o G483, tem apenas algumas notas na corda Dó (KORY, 2005, p.
749). Esse último obviamente não é um argumento forte, pois é neces-
sária uma nota somente na corda Dó para que ela seja necessária no ins-
trumento para a performance. Porém, devemos levar em consideração
que, sim, dois desses onze concertos não fazem uso da corda Dó, além de
que, a sonata L’Imperatrice, redescoberta por Speck, não possui notas na
corda Dó, e o mesmo se aplica ao décimo segundo concerto (que não está
no catálogo Gérard e foi editado por Pais e Speck) (KORY, 2005, p. 750).
Além disso, como supra mencionado, na casa em que Boccherini residia
no momento de sua morte, foram encontrados dois instrumentos, um
violoncelo e um violoncelo piccolo67.
67
Cf. LINDSAY e SMITH, 1945.
114
caso, outro violoncelo está fazendo acompanhamento), o que parece ter
sido o caso para Boccherini na maior parte de sua obra para violoncelo.
Além disso, Boccherini viajava constantemente com o violinista Fillipo
Manfredi68 e não seria de se surpreender que Manfredi tocasse o acom-
panhamento para Boccherini em muitas dessas ocasiões69.
68
Margaret Campbell sugere que Boccherini e Manfredi estavam viajando juntos como dupla
pelo norte da Itália e também em seus concertos em Paris. Cf. STOWELL, 1999, p. 54.
69
Há evidências de apoio desta tese no Violinschule de Leopold Mozart (uma nota de rodapé
na edição de 1787): “Muitas vezes tive oportunidade de rir de violoncelistas que permitiam
que a parte do baixo de seu solo fosse acompanhada pelo violino, embora outro violoncelo
estivesse presente”. Existe uma tese nesse mesmo sentido (violino fazendo baixo continuo)
no depositório da Indiana University (IU Scholar Works), Figure it out: an approach to
playing basso continuo on the violin, de Daniel Stein.
115
De acordo com a descrição de Madame Gail, que visitou o visitou
em 1803, Boccherini possuía dois violoncelos, sendo que um deles era
um piccolo. Esta visita é assim descrita por Picquot:
Tal foi, no entanto, a angústia do sublime compo-
sitor, quando Gail o visitou em Madri em 1803, ele
tinha apenas uma quarto para ele e sua família. Quan-
do queria trabalhar em paz, ele subia, com a ajuda de
uma escada, em uma espécie de galpão de madeira,
construído contra a parede e mobiliado com uma
mesa, uma cadeira e um violoncelo menor com bu-
racos, faltando três cordas. (PICQUOT, 1851, p. 71)
116
1997, pp. 15–16). Eles receberam as seguintes críticas do Mercure de
France. Para Jean Pierre:
M. Duport nos permitiu ouvir novos trabalhos todos
os dias no violoncelo e ganhou nova admiração. O
instrumento não é mais reconhecível em suas mãos:
fala, expressa, realiza tudo isso com o charme que
se acreditava ser reservado exclusivamente para
o violino. (Mercure de France, 1762. Apud. LE
GUIN, 2005, p. 283)
117
Podemos apontar dois outros grandes violoncelistas cuja existên-
cia Boccherini teria reconhecido, mesmo que ele nunca os tivesse en-
contrado pessoalmente. Eles trabalharam em estreita colaboração com
Haydn: Joseph Weigl, para quem Haydn escreveu o Concerto para Vio-
loncelo em Dó maior, Hob.VIIb: 1, provavelmente escrito entre 1762 e
1765; e Ánton Kraft, para quem Haydn escreveu seu Concerto para Vio-
loncelo em Ré maior, Hob.VIIb: 2, escrito em 1783. Ambos trabalharam
com Haydn na orquestra em Esterháza.
118
outros violoncelistas, do posicionamento preferencial da mão esquerda
para expressar suas intenções musicais para determinada passagem.
119
Como não temos registros escritos de nenhum material peda-
gógico de Boccherini, podemos assumir que Romberg provavelmente
conheceu Boccherini e sabia exatamente quais eram suas reais intenções
em usar claves diferentes para posições diferentes ou, ainda, compreen-
dia tão bem o funcionamento do instrumento que assim deduziu.
120
Figura 4: Jean Pierre Duport, Etude No. 8
121
O violoncelo chegava agora a um ponto de desenvolvimento téc-
nico onde seu uso alcançou a expressividade do bel canto, mantendo a voz
como modelo e o virtuosismo, como o violino.
122
e o fato de que os instrumentos menores feitos por Stradivari, denomi-
nados forma B piccola, proporcionavam melhor manuseio. De fato, os
dois fatores, novas cordas (revestidas, no caso as duas cordas graves, Dó e
Sol) e um novo padrão em termos de tamanho do instrumento, influen-
ciaram o desenvolvimento técnico do violoncelo.
Fonte: do autor
123
Figura 7: Demontração do posicionamento da mão esquerda
na clave de dó na quarta linha
124
Figura 8: L. Boccherini, Sonata em Lá Maior, G. 4, Adagio.
Fonte: do autor
Fonte: do autor
125
Essas notas denotam a colocação de início da posição do capotasto
(posição do polegar), como mostra a Figura 11:
126
Figura 12: L. Boccherini, Sonata em Lá Maior G.4, Allegro, Prima Versione
Fonte: do autor
127
Na corda Lá, a notação é mostrada na Figura 14:
Fonte: do autor
128
Figura 16: Sonata em Lá Maior G.4, Allegro, Seconda Versione
Fonte: do autor
Fonte: do autor
129
Figura 19: Demonstração do posicionamento da mão esquerda
na clave de dó na primeira linha
130
Figura 20: Sonata em Lá Maior G.4, Allegro, Prima Versione.
Uma nova edição está sendo feita por mim (assistido pela mi-
nha classe de violoncelos do Departamento de Música da Faculdade de
Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo) onde mantemos uma parte com a escrita original de Boccherini,
preservando assim o pensamento de movimentação da mão esquerda
no violoncelo e uma outra parte, com a escrita contemporânea, ou seja
usando somente três claves, porém com dedilhados propostos, conser-
vando o pensamento original de Boccherini.
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133
O VIOLONCELO NO BRASIL
INTRODUÇÃO
134
caram, outros deixaram discípulos. Este período, possivelmente, foi o
que mais contribuiu para a vinda ao Brasil de instrumentos de grande
valor artístico, construídos por importantes luthiers. Os conflitos bé-
licos na Europa deixaram grande parte da população economicamen-
te vulnerável. Muitos músicos ficaram sem condições para manter os
valiosos instrumentos e, como resultado, tiveram que vendê-los para
conseguirem seu sustento.
70
Muitas igrejas possuíam orquestras, fato que colaborou para o surgimento de compositores
como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805), Marcos Coelho Neto (1763–
1823), Ignácio Parreira Neves (1730–1794) e Francisco Gomes da Rocha (1745–1808).
71
Um bom exemplo da importância da presença da família Real em território brasileiro,
foi a vinda de Sigmund Neukomn (1778-1858), amigo e discípulo de Joseph Haydn (1732-
1809). Deste período, destacam-se os compositores Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-
1830) e Marcos Portugal (1762-1830).
72
Foi durante o ciclo da borracha que se deu a construção do Theatro da Paz, em Belém,
bem como o Teatro Amazonas, em Manaus, confirmando o florescimento das artes
durante este período.
73
Uma leitura muito esclarecedora sobre este assunto é possível ser encontrada no livro A
Música nas Missões Jesuíticas nos Séculos XVII e XVIII, de Jorge Hirt Preiss.
135
como Luigi Boccherini (1743-1805) e Anton Kraft (1752-1820) entra-
ram em cena. Mais recentemente tivemos um exemplo contundente:
Mstislav Rostropovich (1927-2007). Este violoncelista foi dedicatário
de inúmeras obras, quase todas de grandes compositores: Dmitri Shos-
takovich (1906-1975), Serguei Prokofiev (1891-1953), Benjamin Britten
(1913-1976), Henry Dutilleux (1916-2013), Witold Lutoslawsky (1913-
1994), dentre outros. No Brasil, não podemos deixar de citar o violon-
celista Iberê Gomes Grosso, dedicatário de dezenas de obras escritas por
importantes compositores brasileiros como veremos à frente.
136
sitores que, assim como Villa-Lobos, contribuíram
muito para o desenvolvimento do repertório do
violoncelo: Bohuslav Martinu (1890-1959) e Darius
Milhaud (1892-1974); este último chegou a escre-
ver 18 quartetos de cordas, marca que Villa-Lobos
teria igualado, caso a morte não o tivesse arrebata-
do. Considerando apenas as obras para violoncelo
e orquestra, temos dois concertos e a Fantasia para
violoncelo e orquestra. Ele não foi o primeiro a com-
por para conjunto de violoncelos, mas após suas
Bachianas n° 1 e n° 5, transcrições de Prelúdios e Fugas
do Cravo Bem Temperado de Johann Sebastian Bach
(1685-1750) e a Fantasia para orquestra de violoncelos,
ele definitivamente consolidou esta formação. Hoje
em dia, praticamente todas as grandes orquestras do
mundo possuem um naipe de violoncelos que apre-
senta as obras do compositor brasileiro em algum
momento e, em muitos casos, se mantêm como um
grupo estável, como acontece, por exemplo, com os
violoncelistas da Orquestra Filarmônica de Berlim,
que há décadas desenvolvem o repertório para essa
formação, tendo inclusive realizado inúmeras gra-
vações (PILGER, 2013, p. 87)
137
penhava um papel preponderante neste meio, contribuíram para que ele
levasse essa vivência para suas composições dedicadas ao violoncelo. As
Bachianas Brasileiras nº 1 (cujo primeiro movimento é uma embolada74)
e a nº 5 (que tem em seu primeiro movimento, um perfume de roda de
choro e no segundo, um martelo75), são bons exemplos desta relação.
74
A Embolada, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, é um “Processo poético musical
que ocorre em várias danças, como o coco, em cantos puros, como o desafio, e que pode
também ter vida independente. Originária do Nordeste brasileiro, onde é frequente na
zona litorânea e mais rara na sertaneja, a embolada tem como características: melodia mais
ou menos declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos; texto geralmente cômico,
satírico ou descritivo, ou consistindo numa sucessão lúdica de palavras associadas pelo
seu valor sonoro. Em qualquer dos casos, o texto é frequentemente cheio de aliterações e
onomatopéias de dicção complicada agravada pela rapidez do movimento” (Enciclopédia da
Música Brasileira, 1977, p. 250).
75
“O martelo, informa João do Norte, é uma poesia historiada. O refrão em metro no geral
mais curto, chamam comumente de carretilha, me informa Ascenso Ferreira. Este martelo
se confunde com a forma genérica do coco nisso de possuir estrofe de música simples e
refrão mais melodico [sic] e bem curto” (ANDRADE, 1972, p. 138).
76
O Trensinho do Caipira, grafado com “s” pelo compositor, encerra a Bachianas Brasileiras
nº 2 e se tornou uma de suas obras mais conhecidas, ganhando inclusive, letra do poeta
alagoano Ferreira Gullar (1930-2016), gravada por Edu Lobo (n. 1943) em 1978.
77
Cf. BARBOSA, 2005.
138
Nascido em São Paulo, Iberê78 era sobrinho-neto do famoso com-
positor também campinense Carlos Gomes (1836-1896). Teve uma im-
portante carreira de professor, assumindo a cátedra de violoncelo do Insti-
tuto Nacional de Música em 1956 quando apresentou o trabalho intitulado
O “Demanché” no Violoncelo.
78
Iberê possui em Campinas, cidade de seus antepassados, mais precisamente no bairro
Jardim Estoril, uma rua com seu nome cujo CEP é 13046-285.
79
O violoncelista e compositor Homero Dornellas, amigo de Villa-Lobos, usava o pseudônimo
de Candoca da Anunciação e em parceria com Almirante (Henrique Foréis Domingues, 1908-
1980) compôs o samba Na Pavuna, que fez muito sucesso em 1930. Esta música entrou para
a história por ser a primeira a gravar instrumentos típicos de escola de samba. Foi gravada
na Parlophon em 30 de novembro de 1929, saiu em janeiro de 1930 e estourou no carnaval
daquele ano. Com o dinheiro que conseguiu arrecadar com os direitos autorais deste samba,
Dornellas comprou um violoncelo J. B. Collin-Mézin (1841-1923) de 1900, que atualmente é
de propriedade deste pesquisador (PILGER, 2015, p. 48).
139
localizada no Alto da Boa Vista: a música ficou a cargo da Associação Bra-
sileira de Violoncelistas (ABV). Segundo Marcio Malard, a ABV, fundada
em 1965, contava em seu quadro nomes como Iberê Gomes Grosso, Peter
Dauelsberg, Marcio Malard, Watson Clis, Nany Devos, Atelisa Salles, Ra-
fael Janibelli, Georgio Bariola, dentre outros (MALARD, 2020). A regên-
cia ficou a cargo do também violoncelista Mário Tavares.
80
Morelenbaum tornou-se um dos principais arranjadores e violoncelista do meio
popular. Dentre suas inúmeras parcerias, destaca-se a que desenvolveu com o cantor e
compositor Caetano Veloso.
81
Cantores, compositores e arranjadores como Egberto Gismonti (n. 1947), Francis Hime
(n. 1939), Caetano Veloso (n. 1942), Chico Buarque (n. 1944), Maria Bethânia (n. 1946),
Wagner Tiso (n. 1945), Dori Caymmi (n. 1943) e Gilson Peranzzetta (n. 1946), dentre
outros, seguem colaborando com a popularização do violoncelo no Brasil.
140
Começaremos com as pessoas próximas de Villa-Lobos: seu profes-
sor de violoncelo, Max Benno Niederberger (1860-?)82, dedicatário de
obras como Tarantella e Romance, ambos de Alberto Nepomuceno (1864-
1920), seguido pelo de harmonia, Frederico Nascimento (1852-1924),
que também era violoncelista e violonista; Newton Pádua83 (1894-1966)
com o qual nutria uma amizade próxima e Alfredo Gomes84 (1888-1977).
Completando este primeiro time, temos o português de nascença José
Guerra Vicente85 (1907-1976), compositor de obras para violoncelo
muito conhecidas como Cenas Cariocas para violoncelo e piano e o italiano
Tomazzo Babini (1885-1949), pai de Italo Babini86 (n. 1928), que em
entrevista contou que seu pai chegando ao Rio de Janeiro, “veio a conhe-
cer o Villa-Lobos. Tomazzo é considerado um expoente pela consolidação
da escola de violoncelo no Brasil. Na época, o compositor era o primeiro
violoncelista da orquestra sinfônica da cidade. Os dois construíram uma
82
A violoncelista Carmem A. Braga Bourguy (?-?) assim descreveu Niederberger em tese
apresentada ao concurso para provimento da cadeira de Violoncelo da Escola Nacional
de Música da Universidade do Brasil em 1952: “Professor Max Benno Niederberger,
fidalgo da corte de Viena, um dos fundadores do então Instituto Nacional de Música e seu
primeiro professor de violoncelo, notável por sua escola e grande dedicação ao ensino”
(BOURGUY, 1952, p. 14).
83
Coube a Newton Pádua (Newton de Menezes Pádua) a responsabilidade da primeira
audição do Grande Concerto nº 1 para violoncelo e orquestra, Opus 50 de Villa-Lobos, em
apresentação realizada em 12 de maio de 1919 (10 de maio, segundo o Museu Villa-Lobos)
com a Sociedade de Concertos Sinfônicos no Theatro Municipal, sob a regência do autor.
Pádua foi professor de Contraponto e Fuga, Instrumentação, Orquestração e Composição
de César Guerra-Peixe. Guerra-Peixe por sua vez, se refere a Pádua como “responsável pela
sua formação básica clássica e pela técnica de composição” (OLIVEIRA, 2007, p. 89).
84
É dedicatário do Grande Concerto nº 1 para violoncelo e orquestra, Opus 50 de Villa-Lobos.
Sobrinho do compositor Carlos Gomes e tio do violoncelista Iberê Gomes Grosso, Alfredo
Gomes possui uma praça com seu nome nas imediações do estádio Maracanã, no Rio de
Janeiro.
85
José Guerra Vicente participou da estreia da Bachianas Brasileiras nº 1.
86
Assim como Villa-Lobos, Italo Babini foi iniciado ao violoncelo por seu pai, que a
exemplo de Raul Villa-Lobos, também adaptou um espigão numa viola.
141
sólida amizade e meu pai ficou tocando na orquestra como o assistente
do Villa” (BABINI; PRESGRAVE, 2013, p. 269). Tomazzo foi responsável
pela formação de muitos violoncelistas no Nordeste e Italo tornou-se um
importante violoncelista, com sólida carreira internacional.
87
Aldo Parisot foi proprietário do violoncelo feito por Antonio Stradivarius (1644-
1737) intitulado “De Munck” (1730), que pertenceu ao lendário violoncelista Emanuel
Feuermann (1902-1942).
88
Atual Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo.
142
italianos Italo Rizzi (n. 1931), que por dois anos foi primeiro violoncelo
da Orquestra Sinfônica Brasileira, manteve um duo com o pianista
Heitor Alimonda (1922-2002) e chegou a tocar com Villa-Lobos e Atilio
Ranzatto89 (?-?), que além de violoncelista, foi também compositor.
Residiu por alguns anos no Rio de Janeiro onde ministrou cursos no
Instituto Nacional de Música90 e se apresentou ao lado de Alceo Bocchino.
É dedicatário da Suíte Sertaneja para violoncelo e piano de José Siqueira
(1907-1985) assim como a Dança, último movimento da Suite Brasileira
para violoncelo e piano de Bocchino. O próprio compositor declarou:
Na década de 40, chegou ao Brasil um violoncelista
italiano, professor do Conservatório de Milão, e filho
de um compositor de opereta chamado Attilio Ran-
zato. Ele preferia o virtuosismo das peças, era muito
hábil e usava no seu instrumento cordas de tripa que
lhe causavam colossais calosidades nos dedos. Fiquei
impressionado com a facilidade técnica do artista e
decidi nacionalizar a criatura escrevendo a última
dança da minha Suíte Brasileira (BOCCHINO, 1999).
89
Seu violoncelo era um Johannes Gagliano de 1805, e o arco, um Eugène Sartory. Antes
de voltar para a Europa, os vendeu a Antonio Rodrigues, médico e músico amador, de
quem o violoncelista Marcio Malard adquiriu em 1973. Este instrumento faz parte da
história da nossa música popular pois, Marcio realizou com ele inúmeras gravações com
os principais artistas brasileiros. Atualmente pertence a este pesquisador.
90
Em 1967 passou a se chamar Escola de Música da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
91
Foi aluno de Calixto Corazza e Jean Jacques Pagnot.
143
celista paulista, foi professor da UNICAMP. É dedicatário de inúmeras
obras de compositores como Camargo Guarnieri, Almeida Prado (1943-
2010), Osvaldo Lacerda (1927-2011) e Claudio Santoro. São Paulo tam-
bém foi o berço de Matias de Oliveira Pinto (n. 1960), professor da
Musikhochschule de Münster e responsável por uma classe repleta de
jovens, muitos dos quais brasileiros. No Paraná, um nome significativo
é Maria Alice Brandão (n. 1956), que estudou com o pedagogo alemão
Gerhard Mantel (1930-2012) e ocupa o cargo de professora da Escola de
Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP).
Certa vez, Juarez me confidenciou sobre o quão decisivo foi a boa acolhida que recebeu
92
144
Brasil; os norte americanos Robert Suetholz (n. 1960), professor da
USP e por muitos anos, violoncelista do Quarteto de Cordas da Cidade
de São Paulo, Dennis Parker (n. 1959), aluno de Janos Starker, atuou
alguns anos como primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica de Porto
Alegre (OSPA), período que deu aulas a Milton Bock93 (n. 1955), também
violoncelista da OSPA, e Jed Barahal (n. 1955), aluno de Aldo Parisot,
viveu por um tempo no Brasil, onde ocupou o cargo de primeiro violoncelo
da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), e atualmente é
professor da Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo do Instituto
Politécnico da cidade do Porto (Portugal), e finalmente, o inglês David
Chew (n. 1953), um verdadeiro entusiasta do violoncelo que, além de
dividir o posto de primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica Brasileira
por anos com Marcio Malard, foi, juntamente com este, o idealizador do
Rio Cello Ensemble, grupo que teve uma importante atuação na década
de 1990 e que deu origem aos encontros internacionais de violoncelos Rio
Cello Encouter, que acontecem há mais de 20 anos no Rio de Janeiro.
93
Que veio a ser meu primeiro professor de violoncelo.
Como a carreira de Meneses é extremamente rica, sugiro a leitura do livro Antonio
94
145
extensa lista: Alceu de Almeida Reis (n. 1946) foi primeiro violoncelo
da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (OST-
MRJ), professor da UNIRIO e atualmente é membro do Quarteto Carlos
Gomes; Ana Bezerra de Mello Devos95 (1925-1995), violoncelista da
Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (OSTMRJ), teve uma
significativa presença no meio musical, promovendo saraus quando im-
portantes solistas vinham ao Rio de Janeiro, encontros estes que ficaram
na memória dos felizes participantes (DAUESLBERG, 2011); Antonio
Guerra Vicente (1942-2019), foi professor da Universidade de Brasília
(UnB) e integrante do Quarteto de Brasília; Atelisa Salles (n. 1942), vio-
loncelista da Orquestra Sinfônica Brasileira e integrante da Associação
Brasileira de Violoncelistas; Cláudia Grosso96 (n. 1966), violoncelista da
Orquestra do Theatro Municipal de Rio de Janero (OSTMRJ); Cláudio
Jaffé (n. 1961), radicado há muitos anos nos EUA, onde mantém uma
sólida carreira; Gustavo Tavares (n. 1961), sobrinho de Mário Tavares,
primeiro violoncelo da Orquestra da Ópera Nacional da Noruega; Henri-
que Drach (n. ?) foi violoncelista da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN);
José Luiz Musa Pompeu (1916-1976), professor influente na cidade de
Belo Horizonte; Marcio Carneiro (n. 1950), um dos grandes pedagogos
da atualidade, foi professor por mais de 30 anos na Hochschule für Musik,
Detmold (Alemanha) e atualmente leciona na Haute École de Musique,
Lausanne/Sion - Suíça; Marcio Eymard Malard (n. 1941), foi primeiro
95
Esposa do fagotista Nöel Devos (1929-2018), era conhecida no meio musical como
Nany Devos, no entanto os violoncelistas a chamavam carinhosamente de “Mãe”.
Sugiro a leitura do livro Nany: Suite em cinco movimentos para uma violoncelista (2000) de
Valdinha de Melo Barbosa, que traz um retrato muito interessante do meio musical do
século passado. Para se ter uma ideia, naquele tempo, não seria aceitável numa cidade
do Nordeste brasileiro, uma moça tocar com a posição que conhecemos. Sendo assim,
seu professor, Tomazzo Babibi, ensinou Nany a tocar o violoncelo de lado. Ela somente
adotou a técnica tradicional depois de chegar ao Rio de Janeiro na década de 1950. Na
primeira aula que teve com Iberê, veio a sentença: “Amanhã vamos mudar todo o sistema.
Você vai tocar como uma violoncelista, com as pernas abertas” (BARBOSA, 2000, p. 66)
96
Neta de Iberê Gomes Grosso.
146
violoncelo por mais de 30 anos da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB)
e sucedeu Iberê no Quarteto da Guanabara; Nídia Soledade Otero (?-?)
foi uma importante pedagoga, responsável pela iniciação de Jaques Mo-
relenbaum, Marcio Carneiro e Antonio Meneses; Santiago Sabino (n.
1942), primeiro violoncelo da Orquestra Filarmônica de Londres; por fim,
Watson Clis (n. 1942), violoncelista do Trio Brasileiro, além de ter sido o
primeiro professor da classe de violoncelos da UNIRIO.
97
A Dissertação de Mestrado intitulado A Dimensão da Presença da “Escola Casals” no Rio De
Janeiro do Século XXI (2016), da pesquisadora e violoncelista Gretel Paganini, defendida
na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, traz um bom panorama
da influência que Iberê Gomes Grosso exerceu no Rio de Janeiro.
98
No meu caso tenho múltipla influência de Iberê: meu primeiro professor, Milton Bock,
foi aluno de Dennis Parker, que por sua vez, foi aluno de Janos Starker e Aldo Parisot.
Este último foi aluno de Iberê. Depois estudei com Marcio Malard e Alceu Reis, que
também foram alunos de Iberê. Quero aproveitar para explicitar minha admiração por
cada professor que tive. Cada um, a seu modo, me mostrou o quanto a arte pode ser
poderosa. O ato de ensinar possui um significado muito profundo e mostra ao discípulo
a dimensão mais humana do artista/professor.
99
Vem de uma linhagem de violoncelistas, pois é neto de José Guerra Vicente e filho de
Antonio Guerra Vicente.
147
da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro; Áureo Déo
de Freitas Júnior (n. 1963), pesquisador da Universidade Federal do Pará
(UFPA) e coordenador da Orquestra de Violoncelos da Amazônia (OVA);
Camila Pacífico (n. 1984), violoncelista da Orquestra Filarmônica de
Minas Gerais; Cristian Brandão (n. 1983), professor da Universidade
Federal do Pará (UFPA): Diego Schuck Biasibetti (n. 1982), primeiro
violoncelo da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA); Dora
Utermohl de Queiroz (n. 1988), professora da Universidade Federal
do Ceará (UFC); Eduardo Swertz (n. 1984), professor da Universidade
do Estado de Minas Gerais (UEMG); Fábio Soren Presgrave (n. 1977),
professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN);
Felipe Avellar de Aquino (n. 1968), professor da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB); Heloisa Meireles (1972), concertino dos violoncelos
da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP); Janaina Salles
(n. 1983), violoncelista da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN); Kalyne
Valente (n. 1982), professora do Conservatório Carlos Gomes, em
Belém/PA; Kayami Satomi (n. 1983), professor da Universidade Federal
de Uberlândia (UFU); Leonardo Altino (n. 1972), radicado nos EUA,
mantém uma importante carreira de professor e solista; Lui Coimbra (n.
1959), violoncelista que, assim como Jaques Morelenbaum, se especializou
em música popular; Marcelo Salles (n. 1970), primeiro violoncelo da
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (OSTMRJ);
Marcus Ribeiro (n. 1971), primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica
Nacional (OSN); Martina Ströher (n. 1988), primeiro violoncelo da
Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA); Milene Aliverti (n. 1969),
professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Pablo
Uzeda de Sá (n. 1985), primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica do
Theatro Municipal do Rio de Janeiro (OSTMRJ); Patrícia Johnson100 (n.
?), professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); os irmãos
gêmeos Paulo e Ricardo Santoro (n. 1967), violoncelistas da Orquestra
100
Patrícia é filha do violoncelista Juarez Johnson.
148
Sinfônica Brasileira (OSB) e integrantes do Duo Santoro de Violoncelos;
Pedro Bielschowsky (n. 1975), professor da Universidade de Brasília
(UnB); Pedro Ludwig (n. 1981), professor da Universidade Estadual
de Maringá; Raïff Dantas Barreto (n. 1968), primeiro violoncelo da
Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo (OSM); Roberto Victório
(n. 1959), violoncelista e compositor, professor da Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT); Rodrigo Silveira (n. 1978), violoncelista da
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP); Ronildo Cândido
Alves (n. 1962), violoncelista da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN)
e responsável pela iniciação de muitos da novíssima geração no Rio
de Janeiro; Saulo de Almeida (n. 1977), professor da Campbellsville
University; Susana Kato (n. 1969), professora da Universidade Federal
da Bahia (UFBA); Teresa Cristina Rodrigues (n. 1963), professora
do Instituto Federal da Paraíba (IFPB); William Teixeira (n. 1990),
professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS);
Wilson Sampaio (n. 1967), violoncelista que estudou com Leonard
Rose e teve passagem pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
(OSESP); e por fim, este que vos escreve, Hugo Pilger (n. 1969), professor
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
101
Responsável pela iniciação de Fábio Presgrave e Saulo de Almeida ao violoncelo.
102
Lars ocupou o lugar do grego Dimos Goudaroulis (n. 1970) depois de sua volta a
seu país natal.
149
o estadunidense/canadense Philip Everett Hansen (n. 1963), primeiro
violoncelo da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.
Numa de suas vindas ao Rio de Janeiro, conheceu o jovem Antonio Meneses o levando
103
150
CONCLUSÃO
151
de São Paulo, por exemplo, ainda consegue, a duras penas, manter essas
instituições, mas é uma das poucas exceções. Como professor da cáte-
dra de violoncelo da Universidade Federal do Estado do Rio de Janei-
ro – UNIRIO, posso afirmar que nossos alunos, em geral, vêm de uma
nova realidade: os projetos sociais. Apesar desses projetos serem muito
importantes, especialmente por proporcionarem aos jovens em situação
vulnerável o acesso à música, ainda não suprem, no que tange ao currí-
culo, a lacuna deixada pelos conservatórios. Uma metrópole como o Rio
de Janeiro praticamente não oferece a possibilidade de iniciação em al-
gum instrumento que não seja via aula particular ou projeto social. As
consequências já são percebidas de forma contundente nas universidades
pois os calouros chegam ao ensino superior com talento de sobra, muita
vontade e em grande parte dos casos, com preparo insuficiente. Solução?
Dentre muitas ações, teríamos que começar com uma conscientização,
tanto por parte do poder público, quanto da iniciativa privada, da necessi-
dade de investimentos em educação e cultura. Temos dados para avaliar a
eficácia desta possibilidade: o Conservatório de Canto Orfeônico fundado
por Heitor Villa-Lobos levou a educação musical do país a um patamar
nunca visto anteriormente. O canto orfeônico não se resumia apenas às
apresentações em estádios de futebol, apesar de não ser difícil encontrar-
mos pessoas que participaram de tais concentrações relatarem com olhos
marejados o significado daquela experiência para as suas vidas. Villa-Lo-
bos se preocupava com a educação musical em sua base e, para tanto,
treinava pessoalmente professores de sua confiança e esses, por sua vez,
repassavam seus conhecimentos aos professores que depois trabalhariam
diretamente com os jovens estudantes. Este processo foi muito semelhan-
te ao adotado posteriormente por José Antônio Abreu (1938-2018), no
famoso El Sistema venezuelano. Quem sabe nosso país não conseguiria
retomar essa iniciativa? Precisamos manter as esperanças.
152
que perderam suas vidas ou dos que neste momento lutam para recu-
perar sua saúde. Fico no âmbito da arte, mais especificamente da mú-
sica. Pergunto: como serão as apresentações daqui para frente? Como
as orquestras ou grupos de qualquer natureza se manterão? O que fa-
zemos ainda faz sentido?
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo:
Martins; Brasília: INL, 1972.
153
ASSOZIACIONE MOZART ITALIA. Notas de programa. https://mozartitalia.
org/it/ensemble-violoncelli-emilio-rizzi/, [s.d.]. Acesso em 12 maio 2020.
154
OLIVEIRA, Nelson Salomé de. A Didática no Ensino de Composição e
Orquestração. In: Guerre-Peixe: um músico brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar
Editora, p. 87-103, 2007.
PRESGRAVE, Fábio. Entrevista com Italo Babini. Opus. Porto Alegre, v. 19, n.
1, p. 265-278, 2013.
WILSON, Elizabeth. Rostropovich: the musical life of the great cellist, teacher,
and legend. Chicago: Ivan R. Dee, 2008.
155
REGOZIGEM-SE TODOS, INCLUSIVE
OS FLAGELLADOS PELA SÊCCA...AHI VEM DE ONDE
NÃO SABEMOS, O ILLUSTRE SR. TOMASO - UM OLHAR
SOBRE A SAGA DE THOMAZ BABINI
156
Nas primeiras pesquisas realizadas sobre o assunto que fizemos
na UFRN desde 2009, utilizávamos o termo Escola Norte-Riograndense
de violoncelo, mas com o tempo chegamos a conclusão que tal termo era
injusto, pois a produção se devia única e exclusivamente ao fato da vinda
de Babini para Natal. Esse texto aborda a história do mestre italiano e
as ações da UFRN para a preservação da sua memória e de seus alunos.
157
estudavam com ele. Cobrava rigorosamente o solfejo; os alunos tinham
que entoar corretamente tudo o que tocavam e era inflexível com as es-
calas, arpejos, estudos e com os concertos de Karl Davidoff que tanto
amava (PRESGRAVE, 2013).
158
tica de descrever a cena de Thomaz tocando, que é quase como se fosse a
descrição de um quadro. Fico imaginando também a dificuldade que não
deveria ser na época com as cordas de tripa no calor e umidade de uma
cidade litorânea do Nordeste. Essas cordas vinham de outros estados. Ita-
lo uma vez me disse de forma bem humorada que, quando criança, não
queria estudar e cortou as cordas do violoncelo sabendo que demorariam
a chegar; seu pai não ficou nada satisfeito e ele disse que o castigo foi pior
do que ter que estudar...
ITALO BABINI
A primeira vez que ouvi comentários sobre Italo Babini foi atra-
vés do icônico violoncelista Marcio Malard. Eram histórias que tinham
ficado no imaginário no meio musical do Rio de Janeiro, como a em
que Italo dormia no Teatro Municipal para poder estudar até tarde. Nos
Estados Unidos, na minha época de estudante, Babini era uma figura len-
dária, conhecido por seu som e refinamento incomparáveis.
159
poetisa brasileira Cecilia Meirelles; a principal sala de recitais do Rio de
Janeiro leva o nome da escritora e quantos concertos de Maria Meirelles
já tivemos a oportunidade de ouvir no Rio? Nesses momentos vemos
como a nossa memória artística é fraca e como valorizamos pouco o que
deveria ser colocado no pedestal da história. A gravação de Babini das
Variações Rococó com a Orquestra Filarmônica de Londres é pura poesia,
cada nota é um encanto.
O texto produzido pelos jornalistas Yuno Silva e Cinthia Lopes pode ser lido em: http://
105
www.tribunadonorte.com.br/noticia/belle-epoque-de-cordas-e-virtuoses/220536
160
e que às vezes ia para o fundo do auditório ouvir Fournier, Rostropovich
ou Tortelier e a projeção do som era fantástica. Reclamou bastante do
que ele chama de Mosquito Fart Sound (sic) que, segundo Italo, muitos dos
solistas atuais têm por não utilizarem a projeção do som perto do cavalete
e por exagerarem no mise-en-scène. Contou que foi assistir um concerto
de um grande solista da atualidade e que parecia um show de mímicas de
Marcel Marceau com muito movimento e pouco som. Babini enfatizou a
importância de se estudar em auditórios para se compreender a projeção
do som; disse que se ficarmos presos às pequenas salas de estudo não nos
acostumaremos com as técnicas necessárias para o palco.
www.youtube.com/watch?v=LexuVHBrSfw&t=68s
161
meditação, abordando como controlar a mente. Acho muito interessan-
te que ele poderia ter escolhido qualquer outro tema relativo à técnica
ou música e escolheu abordar a respiração e o autocontrole como o seu
conselho mais valioso à nova geração. Italo Babini é o decano dos vio-
loncelistas brasileiros e aos noventa e dois anos deveria ser colocado em
um pedestal em um país como o nosso, tão carente de bons exemplos!
ALDO PARISOT
Conhecido por seus alunos que estão espalhados pelo mundo, fa-
lamos pouco sobre uma dimensão importantíssima da trajetória do Prof.
Parisot, que é a sua carreira como intérprete. Ele teve entre os anos 50
e 70 uma carreira de extensão internacional e tocou como solista de or-
questras como as Filarmônicas de Berlim, Viena e Nova Iorque. O vio-
loncelista Matias de Oliveira Pinto comentou que seu professor Eberhard
Finke (primeiro violoncelo da Filarmônica de Berlim com Karajan) lem-
brava vivamente da performance que Parisot fez do Concerto de Schu-
mann em Berlim com a regência do então jovem Wolfgang Sawallisch.
Há alguns anos foram postados no YouTube algumas gravações de Pari-
sot, como a do programa Camera Three da rede americana CBS. Lembro
de falar com ele ao telefone logo depois dessa época e ele me perguntou:
“Fabio, viu a gravação da CBS?” e respondi: “Sim professor, ela é avassa-
ladora!”. Quando pensamos que um violoncelista brasileiro, portiguar,
esteve em um programa de televisão em horário nobre que durou meia
hora, é um feito extraordinário.
162
falou com muito carinho do seu pai, Luiz Parisot (Babini foi seu padrasto),
e discorreu entusiasmadamente sobre Thomaz, dizendo como ele se con-
siderava uma pessoa de muitíssima sorte por tê-lo tido como professor.
163
Parisot me falou muito sobre determinação. Ele disse ter tido
três sonhos na vida quando criança: tocar com grandes orquestras, ter
um Stradivarius e ensinar em uma grande universidade e ele realizou
os três segundo ele por jamais desistir de suas intenções. Enquanto eu
conversava por horas com Parisot sua esposa Elizabeth ficou um pouco
assutada porque minha filha Clara não queria sair do lado do cachorro
golden retriever que eles tinham. Parisot e Elizabeth foram muito ca-
rinhosos com Isabela e Clara.
164
Figura 4: Mais de cem violoncelistas homanageando os 100 anos
de Aldo Parisot na VIII Mostra de Violoncelos da UFRN
165
MARIO TAVARES E NANY DEVOS
107
Reportagem de Ramon Ribeiro: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/ufrn-
celebra-obra-de-ma-rio-tavares/380647
166
composta por Tavares, o Divertimento, que na minha visão é uma das
grandes peças escritas para grupo de violoncelos na história da música
foi apresentada e está disponível na internet108.
108
Registro em vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L_9_giXdEP8.
167
Em 2014 realizamos na UFRN o Festival Nany Devos. Dentre os
convidados estavam Jaques Morelenbaum e Matias de Oliveira Pinto.
Jaques foi colega de Nany no Teatro Municipal de Rio e lembrava com
muito apreço os anos que dividiu estante com ela. Um dos recitais do
Festival foi realizado no Salão Nobre do Teatro Alberto Maranhão, palco
de muitas apresentações das turmas de alunos de Thomaz Babini. A sala
fica no segundo piso do Teatro e naquele ano não contava com acessibi-
lidade. A irmã de Nany Devos, a pianista Martha Tinoco, não pode subir
as escadas por já ter mais de 90 anos. O Prof. Matias de Oliveira Pinto
não pensou duas vezes e desceu ao jardim de inverno do Teatro e fez
uma audição da Suite III de J.S. Bach especialmente para Dona Martha.
PENSAMENTOS FINAIS
BIBLIOGRAFIA
DIARIO DO NATAL. Haja musica, reine a alegria. 22 Setembro 1909.
168
KIRSCHBAUM, R. Cello Teacher with a License to Dazzle. New York Times.
Nova Iorque, p. 54, 7 abr. 2009.
169
SOBRE A NOVA SIGNIFICAÇÃO
DO VIOLONCELO NA MÚSICA NOVA109
B. A. Zimmermann
109
Texto escrito em 1968 para uma emissão de rádio em janeiro de 1969 na Südwestfunk
Baden-Baden. Publicado originalmente como “Über die neuerliche Bedeutung des Cellos in der
neuen Musik [1968]” em: ZIMMERMANN, B. A. Intervall und Zeit: Aufsätze und Schriften
zum Werk. Hg. Christof Bitter. Mainz: Schott, 1974, 73-82. Atualmente disponível em:
ZIMMERMANN, B. A. Intervall und Zeit. Hg. Rainer Peters. Mainz: Schott und Wolke-
Verlag, 2020. © With permission of SCHOTT MUSIC, Mainz – Germany
170
nesse meio tempo, percebemos que ela também requer um instrumental,
mesmo que seja muito diferente do instrumental tradicional: o fato de
estarmos falando de composições para dispositivos eletrônicos específi-
cos – osciladores e moduladores – é revelador. Qualquer que seja o proje-
to musical, é sempre a especificidade do material vibrado pelo intérprete
que determinará seu uso pelo compositor. É isso que confere a cada ins-
trumento sua função musical e seus requisitos são os que determinam o
caráter técnico e musical do instrumento.
171
realizadas tecnicamente. Vistas desse ângulo, as partes instrumentais e as
partes vocais de muitas obras de Bach ainda são eminentemente difíceis
hoje - o que também é verdade para as obras de Mozart e Beethoven; as
demandas impostas por Mozart às suas artistas do sexo feminino ainda
parecem exorbitantes hoje.
172
tata para violoncelo Canto di speranza pareciam, por muito tempo, não
serem possíveis de serem tocados, porque não se conhecia bem os meios
para alcançar o registro excepcionalmente alto exigido do instrumento
solista nesta peça. A Editora Schott então enviou a partitura aos cinco
violoncelistas mais renomados naquele momento: todos concordaram
que um registro tão alto era inacessível. Siegfried Palm foi o primeiro a
descobrir os meios que o tornaram possível.
173
e timbre. A preponderância do instrumento solo sobre o que era então
chamado de “acompanhamento” dificilmente era compatível com o pen-
samento serial, que via no domínio de um instrumento os vestígios de
uma representação tradicional considerada ultrapassada.
174
que medida as antinomias eram reconciliáveis e, em caso afirmativo, de
que formas. Essas antinomias eram entre o pensamento serial versus o
pensamento concertante. Essa reconciliação se mostrou impossível atra-
vés da forma tradicional do concerto, mas uma interpenetração com-
posicional das duas partes presentes - o instrumento solo e a orquestra
- para mim parecia um caminho possível. Em outras palavras, tudo ti-
nha que ser capaz de se desenvolver a partir de uma única ideia básica,
de uma única célula germinativa. As tarefas confiadas aos instrumentos
eram, deve-se lembrar, puramente composicionais; elas foram determi-
nados única e exclusivamente por essa ordem e não pelas peculiaridades
do instrumento escolhido. Em outras palavras, não se tratava de desta-
car através do concerto as possibilidades instrumentais específicas de um
ou de outro instrumento, mas de mostrar como esse instrumento, de
acordo com uma ideia musical central precisamente formulada, poderia
concretizar tais pensamentos musicais.
175
Desde a composição do Canto di speranza, não usei mais a forma de
três partes tradicional do concerto, como ainda aparecia em meus concer-
tos para violino e oboé. O Canto di speranza, cuja orquestra é desprovida
de violinos, portanto, se afasta conscientemente do gênero tradicional do
concerto, não apenas por sua forma, mas também e, sobretudo, pela com-
pleta integração do instrumento solo à ideia unificadora básica que, como
dissemos acima, se desenvolve a partir de uma única célula germinativa.
176
ou um novo desenvolvimento composicional. A Sonata para violoncelo
solo foi concebida durante a composição de minha ópera Os soldados.
110
...e há tempo para todas as coisas debaixo do céu.
177
publicação da peça aconteceram após a sua composição, sem qualquer
modificação ou alteração; cabe ao compositor definir a função musical
e a técnica de um instrumento.
178
ocasião, me parece, para conectar novamente esses eventos que agora se
tornaram dispositivos muito periféricos. Isto é, o ouvinte, exposto a tais
camadas de tempo prolongadas, sente a necessidade de conecta-las. Essa
necessidade ocorre quase automaticamente como um fenômeno psicoa-
cústico. O ouvinte não tem consciência disso e é muito interessante ver
como ele descreve as diferenças de tempo real - as quantidades de tempo.
O que quero dizer é que peças de Webern, que têm uma duração efetiva
de cerca de cinco minutos, são percebidas como grandes formas e, inver-
samente, peças muito grandes parecem comparativamente mais curtas.
179
englobasse essas três categorias para que uma interpenetração total
pudesse ocorrer: uma forma musical absoluta, portanto.
180
A METODOLOGIA DE PESQUISA EM
PERFORMANCE MUSICAL E SUA
CORPORIFICAÇÃO NO VIOLONCELO
William Teixeira
181
do alguma resposta para elas? Por que não simplesmente raspar o arco
na corda e deixar que o som produzido seja, enfim, o resultado único e
inevitável da leitura das notas pretas sobre o papel?
Ainda que esse pragmatismo pareça ser a saída mais breve e me-
nos dispendiosa de todas, infelizmente ele ainda parece não trazer a sa-
tisfação e paz interior devidas. Dia após dia nos vemos diante de uma es-
tante com a mesma partitura e as mesmas perguntas continuam a ecoar;
continuam a nos fazer duvidar da música que produzimos; continuam
a nos fazer duvidar se sequer temos alguma música dentro de nós para
aquelas notas tão conhecidas que ali estão.
182
A pesquisa é requerida quando não se dispõe de in-
formação suficiente para responder ao problema, ou
então quando a informação disponível se encontra
em tal estado de desordem que não possa ser adequa-
damente relacionada ao problema (GIL, 2002, p. 17)
111
Sobre como formular perguntas, ver pp. 9-30.
183
que não esteja funcionando. Finalmente, como resolver esse problema? A
partir de um estudo de escalas em uma só corda para se possibilitar o foco
em cada uma ou até mesmo com cordas soltas. Bons professores são há-
beis em responder a primeira pergunta; professores muito bons podem
resolver o segundo conjunto diagnóstico; já em relação ao terceiro gru-
po, apenas professores excelentes conseguiriam alcançar a proficiência
em seu cumprimento. O mesmo vale para o pesquisador. Principalmen-
te, o mesmo vale para todo músico em seu exame de si.
184
ter e outros abdicar de possuir. Se desde nossa primeira Constituição
Imperial, de 1824, temos a prescrição para a fundação da universidade
(Art. 179, parágrafo XXXIII) e, a partir de 1946, temos no texto cons-
titucional a atribuição da pesquisa outorgada ao ensino superior (Art.
174), nossa carta-magna, ainda que não em um momento de grande con-
sideração, define claramente os atributos constitutivos da universidade
brasileira, afirmando, em seu Artigo 207, que “as universidades gozam
de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira
e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988, grifo nosso) . Na medida
em que os cursos conservatoriais de música passaram a ser absorvidos
pelas universidades, em primeiro lugar no Rio de Janeiro em 1931 e, no
restante do país, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases de
1961 (PEREIRA, 2012, pp. 62-67), essa prescrição constitucional passava
a abranger também o ensino superior de música, ainda que tal transição e
substancial mudança de atribuição tenham sido realizadas sem qualquer
orientação. Essa dificuldade, como veremos, não é uma exclusividade de
nosso país, no entanto cabe a nós compreender como essa demanda in-
trínseca ao fazer musical pode encontrar guarida no ambiente acadêmi-
co, sendo positivamente potencializada por sua estrutura.
185
METODOLOGIA DE PESQUISA EM PERFORMANCE
186
justamente o que irá mudar entre cada abordagem.
112
Para um panorama mais detalhado desse percurso, Cf. TEIXEIRA e FERRAZ, Silvio, 2017.
Sobre os pressupostos envolvidos na fundação do Conservatório de Paris, Cf. o capítulo de
113
187
blicos 113 e escolas de belas artes e, por outro, a ciência cresce por meio da
expansão das universidades e da modificação radical de seus currículos
para privilegiar as disciplinas com viés mais voltado às Ciências Naturais.
Essa divisão, no entanto, separou ambas as instâncias de maneira a rom-
per com uma prática comum que vinha sendo mantida desde o século
XVI, onde os estudos prático e teórico estavam sendo conduzidos de ma-
neira razoavelmente paralela, resultando em uma formação ampla onde
o músico aprendia a compor, cantar, tocar e a dominar as regras estrutu-
rais que ordenavam a música de então. O projeto Iluminista, no entanto,
objetivou a expansão da qualidade técnica da arte e efetivou esse intento
com a super especialização dos saberes, no caso da música, de maneira a
isolar o estudo de um instrumento dos demais e mesmo da composição,
resultando em músicos cada vez mais hábeis em seu instrumento e cada
vez menos aptos em outras competências musicais.
188
Adler, possui um nome que já evidencia esse objetivo, Musikwissenschaft,
ou, traduzindo literalmente, a Ciência da Música.
189
avaliação da série de implicações que isso traria, assim como na Europa
um movimento mais recente, mas de iguais desdobramentos, tem acon-
tecido a partir da Declaração de Bolonha (1999), que tem promovido
um processo de adequação curricular em todas as instituições de ensino
superior do continente. Esses acontecimentos políticos somados à ine-
rência da pesquisa na prática da performance musical tornam urgente,
portanto, a construção de meios para que ela possa ser legitima e efeti-
vamente conduzida na academia. Entretanto, a proposta de Adler, bem
como a dicotomia ocidental acima relatada, não surgiram do nada e à toa.
Todo um modelo de conhecimento humano precisaria ser revisto para
que ação criativa e o movimento corporal empregados na performance
pudessem se constituir como algum tipo racional ou minimamente ra-
zoável de conhecimento. De alguma maneira, é justamente isso que duas
grandes viradas do século XX – a primeira na filosofia e a segunda na
ciência – podem ter nos proporcionado.
A VIRADA DA PRÁTICA
190
Semelhantemente, a filosofia anglófona da segunda metade do
século XX tem privilegiado a ação dentro de seu escopo de caráter mais
analítico. O filósofo Nicholas Wolterstorff pode ser mencionado como
um exemplo claro da aplicação desse método na análise das ações im-
plicadas no fazer artístico, inclusive o musical. Dentro desses termos,
Wolterstorff, definindo a performance musical como “qualquer tipo de
ocorrência de sequencia sonora que uma pessoa realiza”, inclui a sequên-
cia de sons e movimentos subsequentes à composição e ao dado estrutu-
ral à própria constituição da obra musical, diferentemente do paradigma
estético moderno que privilegiava apenas essas partes anteriores do fazer
musical. Wolterstorff atribui à crença um papel fundamental no proces-
so da performance. O performer não está condicionado ou obrigado a
tocar exatamente o que está em uma partitura x ou em uma linguagem
de improvisação y. Se ele o faz, preservando as “propriedades” funda-
mentais da obra, é porque de alguma maneira crê que haja algo naquele
conjunto estrutural que necessita ser atualizado assim como foi registra-
do pelo compositor. Em distinguir as instâncias performer (P), obra (W)
e compositor (C), Wolterstorff inclui, finalmente, o performer como
agente fundamental para a existência da música114.
114
Cf. WOLTERSTORFF, 1980. “What is it to perform a musical work”, pp. 74-83.
191
ponto de vista da estética. Entretanto, já um filósofo com Martin Heide-
gger, no início do século, iria apontar a valor fundamental da técnica não
apenas para a existência humana, como para a consequente existência da
arte e da própria filosofia (HEIDEGGER, 2007), por proporcionar uma
experiência plena do ser em seu contato corporificado com o mundo
em sua dimensão temporal de constante transformação. A técnica seria
finalmente reabilitada no trabalho do filósofo francês Gilbert Simondon,
especialmente porque, além de aprofundar a concepção de técnica, ele
iria revisar de modo bem-sucedido a distinção moderna entre técnica
e estética. Pelo contrário, Simondon proporia uma “tecno-estética” (SI-
MONDON, 1998), um método onde a satisfação sensorial e física de
quem realiza a arte se integra como elemento essencial da experiência
estética. Desse modo, Simondon ambiciona enfatizar o papel do sujeito
que pratica a arte e não apenas daquele que a experimenta, valorizan-
do sua própria experiência criativa, o que será de extrema valia quando
combinada com a segunda grande virada do século XX.
192
Essa dicotomia moderna entre sujeito e objeto tornava impossível
qualquer conhecimento do segundo que trouxesse algo do primeiro para
a relação, impasse esse agravado por Karl Popper, já em meados do século
XX, com sua proposta de uma renovação do método científico por meio
de uma nova objetividade suportada pela presunção da transitoriedade
das teorias científicas115. Esse percurso mais ou menos linear da ciência
moderna, ainda que com suas dualidades, encontraria em dois filósofos
da ciência seu desafio mais pungente. O primeiro foi Thomas Kuhn, que
ao contrário de Popper, acreditava que o impulso inicial da ciência estaria
não na tentativa ou no erro que definem o resultado a ser obtido a partir
de um experimento, mas em uma certa intuição, que ele chega a deno-
minar de dogma, que direciona o sujeito que realiza a pesquisa científica
(KUHN, 2012). Na verdade, os grandes avanços da ciência, dizia Kuhn,
estavam não no aprofundamento daquilo que um método já estabelecido
poderia produzir, mas na subversão das normas vigentes e do conjunto
de possibilidades que um conjunto de métodos proporciona. Sendo assim,
seria não o objeto, em última instância, que direciona os resultados, mas
as inclinações que o sujeito implica sobre ele.
115
Cf. WOLTERSTORFF, 1980. “What is it to perform a musical work”, pp. 74-83.
193
música, onde nossa experiência absolutamente física, sensorial e emo-
cional ultrapassa em muito os limites da linguagem. Sem prescindir da
honestidade da objetividade, o que essa abordagem propõe é suplantar
a divisão estanque entre sujeito e objeto que, por vezes, apresenta com
uma falsa aparência de objetividade uma pesquisa motivada por razões
fortemente pessoais, que, se fosse explicita e seriamente conduzida, po-
deria disso se beneficiar.
194
volumosa, ainda na própria Alemanha, em meados do século XX, dentro
de uma área denominada Aufführungspraxis, algo como aquilo que seria
chamado no inglês de Performance Practice ou, como tem sido traduzido
ao português, ‘práticas interpretativas’ (PACE, LOUVEIRA e TEIXEIRA,
2020(b), p. 3). Essa linha de pesquisa iniciaria esforços para compreender
a dimensão artística sob o ponto de vista da performance, porém acaba-
ria por se concentrar, especialmente nos países germânicos, no estudo da
performance historicamente informada, concebendo propostas de per-
formance para o repertório antigo baseadas em tratados de época, que
divergiam em muito da prática corrente da música de concerto de então.
195
ressasse em abordar com seu ponto de vista o fenômeno da performan-
ce. De maneira até mesmo despretensiosa, os Estudos em Performance
(Performance Studies) surgem apenas como essa reunião de especialistas
para observar a grande quantidade de aspectos que poderiam nela ser es-
tudados. O mencionado volume contém, em sua maioria, capítulos que
objetivam utilizar da teoria e análise musicais, especialmente em seus
métodos de leitura estrutural, para conceber e propor tipos de perfor-
mance, sem, no entanto, lidar com a performance em si como produtora
de questões e dados. Mesmo que com novas contribuições, os trabalhos
seguem na esteira daquilo que já era proposto pelo analista Heinrich
Schenker ainda na virada do século XIX para o XX. Propostas notáveis
no livro poderiam ser aquelas de Patrick Shove e Bruno H. Repp em
avaliar o movimento implicado na performance, ainda que sob o ponto
de vista da psicologia experimental, o capítulo de William Rothstein,
em que ele discute os limites da análise musical tradicional em oferecer
caminhos para a performance e o capítulo do próprio John Rink, que
aborda a questão da performance da Fantasia de Brahms para piano, no
que tange seu agenciamento rítmico (rubato), impulsionando um estudo
aprofundado das camadas temporais da peça.
196
o crítico e outras entidades alheias à performance. Ainda assim, capítulos
importantes como o de Stefan Reid sobre o estudo do instrumento e o de
Jonathan Dunsby sobre a avaliação que performers fazem do seu próprio
desempenho apontam caminhos muito frutíferos para a área.
197
da performance como a instância responsável pela existência da música.
Sendo assim, Pace questiona que as críticas de Cook, além de reducionis-
tas e exageradas, se contradizem por não encontrarem respaldo no pró-
prio método utilizado pelo autor, que aliás, é um teórico por excelência.
Em detratar o estudo acadêmico da música, Cook não apenas diminui
seu próprio trabalho, como exclui outras possibilidades de convivência
para a performance com as demais áreas, o que, aliás, o volume de Clarke
faz de maneira muito bem-sucedida. Em diminuir o papel do compositor
e do teórico, Cook chega ao extremo de reduzir até mesmo o valor da
partitura, relegando a ela um lugar mínimo, muito inferior ao da gra-
vação sonora, por exemplo, utilizada por ele como um objeto de estudo
mais digno de análise, justamente por ser o registro de uma performance
e não de uma composição. No entanto, como nota Pace, as análises de
Cook além de serem enviesadas e metodologicamente restritas, pouco
produzem de conclusões para a performance em si. Finalmente, em meio
a muitas avaliações negativas, Pace observa que Cook se porta com um
moralismo acentuado, qualificando e desqualificando performances por
critérios estéticos, em última instância, baseados somente em seu gosto
pessoal, o que ele sustenta ao ponderar o restrito conjunto de referências
de performances e, sobretudo, pelo conjunto restrito de categorias com
as quais ele rotula os músicos que julga, tudo isso, como lamenta Pace,
evidenciando o caráter profundamente ideológico de seu trabalho.
198
estudo da performance musical. Essa adoção de pontos de vistas externos
pode auxiliar no alcance de um grande número de objetivos que possam
ser atingidos com eles, no entanto, nem sempre irá contemplar o dado da
performance como produtora de questões e como um meio de elaborar
possíveis soluções. Também no Brasil, como categoria metodológica pio-
neira que é, os Estudos em Performance têm sido hegemônicos em ditar
os parâmetros para a pesquisa em performance musical. Compreender
seus limites, portanto, é fundamental para que outros caminhos possam
ser construídos, de maneira a beneficiar mais plenamente questões pró-
prias à performance e ao performer.
199
sobre performances e performers; 4) estudos sócio-históricos sobre per-
formers e grupos; 5) estudos sobre performances tradicionais; 6) pesquisa
histórica sobre performers e grupos; 7) pedagogia da performance; 8) es-
tudos sobre a teatralidade da performance. Novamente, é importante fri-
sar a colocação de Rink, endossada por Pace, de que, em muitos casos, es-
sas áreas se sobrepõem na prática da pesquisa. Dentre os novos domínios,
as categorias 3, 4, 5, e 6 parecem estar claramente vinculadas aos métodos
próprios dos estudos culturais (história, antropologia, etnomusicologia,
etc), a categoria 7 aos métodos da pedagogia e da educação musical e a ca-
tegoria 8 às artes dramáticas, de modo a se integrarem consistentemente
na proposta dos Estudos em Performance de fazerem uso de métodos e
pontos de vista de outras áreas do conhecimento sobre a performance. A
categoria 2, por fim, será melhor descrita na Metodologia III.
200
te, que nem todo ato artístico possui esse componente necessariamente.
A maneira como a pesquisa se insere no processo artístico, entretanto,
pode variar, e é para organizar essa variabilidade mais precisamente que
algumas categorias metodológicas têm sido propostas, tendo especial va-
lor, como veremos, em otimizar a contribuição que a pesquisa possa dar
a nossas necessidades particulares.
Para aprofundamento na pesquisa artística sob o ponto de vista da prática como pesquisa em
116
música, Cf. os volumes dos Cahiers of Artistic Research, produzidos pelo Polo da Universidade
de Aveiro do INET-md, Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos de Música e
Dança. Disponíveis em http://artisticresearch.web.ua.pt/
Para aprofundamento na pesquisa artística como pesquisa conduzida pela prática em
117
201
surgem. A segunda categoria, a pesquisa conduzida pela prática117, pode ser
definida pelo fato da pesquisa acontecer em se praticar. Isso aconteceria,
por exemplo, quando ficamos em dúvida na escolha de um dedilhado para
uma escala de uma Sonata de Beethoven e, como solução, consultamos
o tratado de Duport ou outros escritos da época para buscarmos opções
mais adequadas sob o ponto de vista histórico. Ou também se notamos
uma dor ao tocar e vamos consultar trabalhos do psicomotricidade para
buscar explicações e formas de resolver aquele problema. Desse modo,
a pesquisa sempre acontece dentro do campo produtor de questões da
performance, atendendo às suas necessidades. Em terceiro lugar, a práti-
ca baseada em pesquisa118, compreende a pesquisa realizada para a prática.
Nesse caso, a pesquisa assume um papel preparatório, antecedendo a prá-
tica, seja em um levantamento de repertório sobre uma temática ou com-
positor específicos, ou mesmo uma reflexão filosófica que se proponha
auxiliar na compreensão dos estados afetivos demandados por uma peça
ou repertório. Nessa última categoria, Frayling propõe que a pesquisa seja
ulteriormente “corporificada” na prática.
118
Para aprofundamento na pesquisa artística em música como prática baseada em
pesquisa, Cf. o número dedicado à temática na revista Dutch Journal of Music Theory,
Vol. 12, no. 1, 2007. Disponível em https://lup.be/pages/archief-tijdschrift-voor-
muziektheorie-2007-volume-12
202
nosso caso, que a performance em si, seja de uma peça, um repertório
ou uma gravação, seria o resultado final esperado. O resultado escrito
será o relato do processo de pesquisa implicado em cada caso, porém terá
apenas esse papel parcial e provisório de descrição.
203
Como fica evidente nessa descrição introdutória dos métodos da área,
nem toda performance musical se enquadra dentro da pesquisa artística.
Dessa forma, adotar um desses três direcionamentos pode ser de extre-
ma valia para disciplinar a relação entre pesquisa e performance, sem
deixar que nenhuma se sobressaia indevidamente sobre a outra. Além
disso, todas elas concordam com a importância de uma reflexão que seja
relatada por meio da escrita, aspecto da pesquisa que muitas vezes ame-
dronta performers, mas que é componente integral de toda a tradição
musical ocidental desde a Renascença, especialmente no que tange aos
escritos sobre formas de se tocar em diversas escolas instrumentais. Por
essa razão, a pesquisa artística é uma categoria metodológica que pode
contribuir para novas expansões dentro de tradições como aquela do
violoncelo, na medida em que se relacionarem com a expansão do pen-
samento que a pesquisa acadêmica pode oferecer.
204
em artes ou música:
ela origina-se no modus operandi contemporâneo da ci-
ência, engenharia, tecnologia e da pesquisa médica, no
qual o trabalho de pesquisa é direcionado não apenas à
elucidação de ideias falseáveis, mas também à produção
de resultados práticos. (SMITH e DEAN, 2009, p. 7)
205
mance. (MCKECHNIE; STEVENS, 2009, p. 96)
206
entre o compositor, seu entorno, o performer e as próprias circunstân-
cias em que sua realização acontecerá.
207
Cook sobre a composição e a crítica e o que continua sendo tomado como
premissa nos estudos em performance. Esse conjunto imanente auxilia o
performer a disciplinar sua ação, sem se colocar abaixo nem acima da mú-
sica, nem mesmo do compositor, ainda que alguns possam ter cultivado
certa misantropia em relação ao performer, como Edgar Varèse em sua
profecia119. Voltando a John Rink, ele parte da premissa, em um trabalho
recente, da supremacia da performance em relação às demais agências,
por exemplo, afirmando, em relação ao compositor, que “as intenções
(variáveis?) do compositor não possuem autoridade dominante” (RINK,
2019), sendo que em muitos casos do processo de construção de uma
performance podemos admitir sem prejuízo nenhum que certas escolhas
possam ser revistas a partir de percepções do compositor. Humanamente,
afirmar o contrário pareceria inclusive bastante arrogante. Rink também
considera que “a notação musical (a partitura) [...] precisa ser interpretada
em termos da prática e da performance em tempo real” (RINK, 2019).
Obviamente estamos aqui defendendo a voz do performer, mas parece
ingênuo diante da experiência de qualquer performer não levar em conta
que constantemente nos equivocamos em leituras por inúmeras razões e
que somos nós que nos adaptamos, nesses casos, à partitura.
119
“O executante e o virtuoso não devem mais existir: uma máquina os substituirá com
vantagem. Encontraremos novas intensidades, porque o campo do som ainda é muito
imperfeitamente explorado. [...] O compositor terá meios sofisticados e flexíveis para se
expressar. Suas ideias não serão distorcidas pela adaptação ou pela execução, como as de
todos os clássicos” VARÈSE, Edgar. Entrevista para J. Vidal, « Le film sonore engendrera-
t-il de nouvelles tendances musicales ? », Pour vous, Paris, 30 de janeiro de 1930; In: Edgar
Varèse, Ecrits, Louise Hirbour éd. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1983, p. 57.
208
como rascunhos e cartas, já serão indicadores preciosos para a constru-
ção interpretativa, pois contém a maior parte do que importa do compo-
sitor em seu ato composicional. Essa abordagem difere, no entanto, do
modelo de Performance Historicamente Informada incluído por Rink
nos estudos em performance por não se bastar apenas a tais informa-
ções, incluindo também toda a “lógica da experimentação” (ASSIS, 2018)
daquele que irá realizar uma performance hoje. Dessa forma, a análise
imanente se configura como um método hermenêutico capaz de arbitrar
a relação entre pesquisa e prática independentemente do objeto musical
em análise ter sido concebido há 300 anos, 10 anos ou se está sendo cria-
do no momento da pesquisa.
O problema, na maior parte das vezes, acaba sendo uma certa in-
disposição dos performers em buscar formas de construção textual para
209
esse processo, etapa indispensável a todos os três grandes grupos meto-
dológicos e, como já dito, processo razoavelmente comum na história
da performance no Ocidente, e até mesmo do violoncelo, quando nos
lembramos dos grandes textos de Bernhard Romberg, Gerhard Mantel,
Bazelaire, Bylsma e tantos outros. A importância de compreendermos,
ainda que rapidamente, o percurso histórico da pesquisa em música e
em performance musical internacionalmente e em nosso próprio con-
texto nacional é verificarmos a novidade desse tipo de demanda, o que
exige, de fato, a invenção de novos meios, técnicas e, até mesmo, estilos
de escrita para a pesquisa.
210
buscar estratégias textuais para narrar suas experimentações no pro-
cesso de construção de uma performance. Assim como Berio disse que
“a análise mais significativa de uma sinfonia é outra sinfonia” (BERIO,
2006, p. 125), poderíamos cogitar que a análise mais significativa de
uma sonata para violoncelo seja tocar essa sonata.
211
dividindo-a, examinando-a, dissecando os tendões que movem a natu-
reza, as sociedades ou seja qual for a parte da realidade sobre a qual lança
seus olhos. Dessa maneira, a ciência não produz conceitos, mas functivos,
que nomeiam o funcionamento de uma trajetória física, seja uma função
matemática ou um mecanismo biológico. Ela também opera por pros-
pectos, que, por sua vez, nomeiam um estado de coisas, uma proposição,
como quando dizemos que ‘a Sonata em Lá Maior de Beethoven possui
uma estrutura clara e leve’. Essa asserção não demanda a experiência no
tempo da sonata, mas apenas produz uma predicação abstrata que visa
descrever o todo da experiência em um tipo de generalização mais ou
menos adequada. Finalmente temos a arte, que mais nos interessa, por se
constituir em um bloco de sensações. Esse bloco é composto por perceptos
e afectos, que não são apenas uma percepção ou um afeto particular de
um indivíduo em sua experiência com esse bloco, mas borbulham em
tal bloco de sensações, que atinge e é penetrado em seu contato no mun-
do. Assim, a arte consiste em se modelar tais possibilidades de penetrar
física, sensível e emocionalmente por meio de um meio material, seja
uma pedra, uma tela, ou, no nosso caso, uma peça e um instrumento,
reunindo-as naquilo que poderíamos chamar de um plano de composição.
212
dar. Não se trata de manipular ou comprometer o processo artístico por
conta da potencial transdução que deverá ser realizada, mas em buscar
corpos filosóficos ou científicos que façam jus a nossa arte caso a caso.
Por vezes, precisaremos de uma abordagem mais científica; algumas ve-
zes mais filosóficas; algumas vezes até mesmo literária, poética ou vul-
garmente prosaica. O que está em jogo deve ser uma busca por energias
textuais que correspondam mais adequadamente à nossa própria energia
sensível posta em jogo em se tocar música. Para isso precisamos garim-
par e nos enriquecer em galerias de arte, em livros de poesia, literatura,
ciência, filosofia, em um infinito mundo de autores e estilos particulares.
A natureza artística de nosso trabalho não merece um texto monótono,
frio e cansado apenas porque deve ser acadêmico. A atenção às normas
acadêmicas reside em um certo conjunto ético de atribuições de referên-
cias, que não necessariamente precisa empobrecer o texto. Sendo assim,
esta proposta de análise imanente busca uma musicalidade na pesquisa
para que, de fato, a pesquisa possa se tornar música.
213
e ferramentas que ele cria para levá-lo além de si na busca por aquilo que
o move e o impulsiona a viver. Nesse caminho a ser percorrido por uma
pesquisa, precisamos também desse tipo de ferramenta ou instrumento.
Se, para nós músicos, ‘instrumento’ denota um artefato muito especial
e, na maior parte das vezes, muito sofisticado, é interessante notar que
na maior parte das línguas antigas nem mesmo havia qualquer palavra
que diferenciasse a categoria de instrumentos musicais de outros instru-
mentos ou ferramentas de construção, cozinha ou caça, e mesmo hoje,
precisamos atribuir o adjetivo ‘musical’ para nos referirmos claramente a
essa categoria específica (NETTL, 2005).
214
seção. Em primeiro lugar, apresentar o instrumento musical como um ins-
trumento de pesquisa, discutindo procedimentos através dos quais podemos
extrair dados da realidade musical por meio de nossa experiência como
instrumentistas, em especial, no nosso caso, tendo o violoncelo como esse
instrumento. Em segundo lugar, compreender maneiras de utilizar ins-
trumentos de pesquisa convencionais na pesquisa aplicada ao violoncelo.
215
seguir com sua proposta, compreendendo um instrumento enquanto seu
mecanismo de emissão sonora, constituído por três partes: o mecanismo
vibratório (aquilo que vibra e, logo, emite som), o mecanismo excitador
(aquilo que põe o anterior a vibrar) e o ressonador (aquilo que prolonga ou
mantém a vibração estimulada). A partir da interação entre as três partes
uma identidade sonora será composta e, portanto, um instrumento.
216
nos aponta boas direções para a análise do fenômeno da performance,
porém, observar somente o que de estrutural faz um instrumento ser
‘musical’, acaba por ignorar o que de intrinsicamente humano há nessa
atribuição. A tradição de um instrumento vai além de um conjunto deli-
mitado de possibilidades sonoras, mas abrange uma complexa relação de
pessoas com seus respectivos meios, resultando em camadas históricas
acumulativas, porém nem sempre lineares. É em respeito a essa impor-
tância do instrumentista como componente da construção da tradição de
um instrumento musical, que o compositor Luciano Berio conclui que
“é muito importante entender (...) que um instrumento musical é por
ele mesmo um fragmento de linguagem musical” (BERIO, 1983, p. 78).
217
quais são seus processos anteriores de produção dessa música interior. A
própria Kintzler apresenta uma proposta interessante, baseada na dialé-
tica materialista, onde essa análise aborde, respectivamente:
a força de trabalho (a energia humana gasta no ato
do trabalho), o objeto de trabalho (ao qual o trabalho
se aplica e que ele se transforma, incluirei o objeto
transformado, o resultado) [...] os meios de trabalho
(as coisas intermediárias entre a energia humana e o
objeto do trabalho) [...], a técnica e método de traba-
lho (KINTZLER, 2011)
Esse vasto campo potencial aponta para um futuro por ser feito,
mesmo em um instrumento secular como o violoncelo. Um bom exem-
plo das duas últimas potencialidades descritas por Lacombe poderia ser o
trabalho da violoncelista e musicóloga Elizabeth Le Guin (2006) em sua
pesquisa sobre Boccherini120. Em buscar uma maneira de se tocar a música
do compositor italiano de maneira mais próxima daquela tocada por ele
próprio, não lhe bastou um mero levantamento de dados, sendo necessá-
rio uma imersão no mundo de possibilidades físicas do instrumentista e
seu instrumento. Além dos desdobramentos particulares, descritos e em
muito desenvolvidos no capítulo de André Micheletti, nos interessa aquilo
que Le Guin chama de “musicologia carnal”, uma maneira bastante revolu-
cionária e convidativa de articular o discurso sobre música a partir do dado
físico, constituindo assim um novo tipo de instrumento de pesquisa, isto é,
como um produtor de questões e soluções de pesquisa, apto, especialmen-
te, a oferecer dados a serem trabalhados na investigação acadêmica.
120
LE GUIN, 2006.
219
te esses mecanismos não estão dissociados da busca por um certo som,
mas é justamente a conexão tecno-estética entre movimento e som em
que consiste nosso trabalho e com a qual poderíamos ajudar a outros e
a nós mesmos por meio da pesquisa. Nossa voz enquanto performers e
violoncelistas pode ser consistentemente pronunciada sem que recaia-
mos em reducionismos ou em relatos meramente opinativos, na medida
em que conectamos nós e nosso instrumento a uma realidade musical
maior. Essa realidade pode ser elegante e claramente descrita a partir de
conexões como as que sugerirmos a partir de Deleuze.
220
formance musical, mas a qualquer especialidade acadêmica, pois, assim
como a música pode ser vista sob a ótica de outras disciplinas, a per-
formance também é capaz de conhecer realidades convencionalmente
restritas a campos determinados através de seus meios próprios. Mini-
mamente, esse conhecimento produzido pode ser um componente que
acrescenta solidez ao que a pesquisa acadêmica entende enquanto música.
Como bem demonstra Ian Pace (2011), a técnica instrumental vai muito
além de um conjunto mecânico e é parte do próprio construto ideológico
e, por que não, da cosmovisão de um indivíduo ou uma sociedade.
a) Revisão bibliográfica
221
ser feitos com mais facilidade a partir de consulta, em primeiro lugar,
a bibliotecas, porém dada a novidade da pesquisa na área, nem sempre
as bibliotecas brasileiras possuem um acervo capaz de suprir as deman-
das de pesquisa. Outra possibilidade são os anais de eventos mais volta-
dos à temática pesquisada, como é o caso, no Brasil, dos congressos da
Associação Brasileira de Performance Musical (ABRAPEM), a área de
Performance da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM), o Encontro de Violoncelos de Natal, ou mesmo em
trabalhos isolados apresentados em outros eventos. Além disso, revistas
com boa qualificação pela CAPES (Qualis) têm todo seu acervo disponí-
vel gratuitamente na internet. Mesmo assim, a produção bibliográfica
brasileira sobre performance e violoncelo é muito recente, o que torna
praticamente obrigatória a consulta a matérias escritos em línguas es-
trangeiras, disponíveis nos sites de revistas internacionais ou em bancos
de dados institucionais com tese e dissertações.
222
nos níveis de monografias de graduação ou dissertações de mestrado,
por se constituírem, muitas vezes, em processos ainda incipientes. Po-
rém qualquer pesquisa de ponta necessita de um estágio de levantamen-
to e revisão bibliográfica pelas razões já apontadas. Além disso, muitos
trabalhos importantes resultam da aplicação quase que exclusiva desse
instrumento, como o The Cambridge Companion to the Cello (STOWELL,
1999), onde a maior parte dos artigos resulta na síntese de dados produ-
zidos por terceiros. Um outro tipo interessante de pesquisa que adota a
revisão bibliográfica como instrumento principal são os levantamentos
de repertório, que buscam um certo nível de compreensão a partir de um
conjunto de peças já existentes e que não objetiva uma nova visão analí-
tica, adotando leituras também já realizadas, como é o caso da bela tese de
doutorado La littérature pour violoncelle seul au XXème siècle: entre tradition
e modernité [A literatura para violoncelo solo no século XX: entre tradi-
ção e modernidade], de Catherine Roblin (2000). Esse tipo de pesquisa
possui hoje um referencial bibliográfico bastante amplo no violoncelo,
desde os tratados históricos, mais minuciosamente listados no Apêndice
do compêndio de Cambridge e, em sua maior parte, disponíveis em acer-
vos virtuais como a International Music Score Library Project – IMSLP.
b) Pesquisa documental
223
versões manuscritas preliminares da peça, e até mesmo cartas trocadas du-
rante o processo composicional com Roham de Saram, violoncelista para
quem Berio escreveu a peça (FERRAZ e TEIXEIRA, 2015). Trabalho se-
melhante foi realizado na análise da Sonata para violoncelo de Bernd Alois
Zimmermann, que exigiu consulta a manuscritos, rascunhos e cartas na
Akademie der Künste, em Berlim (TEIXEIRA e FERRAZ, 2019).
c) Instrumentos quantitativos
d) Entrevista
224
performance, em especial por poder reunir contribuições de grandes ins-
trumentistas que não possuem o ofício da escrita para registrar e difun-
dir seu conhecimento, seja ele empírico ou até mesmo academicamente
construído. Entrevistas podem ser realizadas pessoalmente, por telefone,
por vídeo-chamadas, mas é importante saber que cada pequena variável
nesse contato pode torná-la mais ou menos enriquecedora, a começar
do tipo de atitude do entrevistador. Há três tipos básicos de entrevistas:
a entrevista não-estruturada, que geralmente segue o fluxo de fala do
entrevistado e que, portanto, não será sistematicamente comparada com
outras, tendo como ponto positivo a fluência da resposta obtida, devido
à liberdade que o entrevistado sente, como nota-se, por exemplo, nas
entrevistas de Rostropovich e Starker presentes neste volume, bastante
mais prolíficas do que outras dos mesmos músicos; a entrevista semies-
truturada, que estabelece eixos de questões a serem respondidas, mas que
dá espaço para desenvolvimentos próprios do entrevistados, almejando
um potencial sistemático posterior e também uma desenvoltura da res-
posta, como pode ser visto, por exemplo, nas entrevistas realizadas por
Fábio Presgrave (2008) em sua tese de doutorado; finalmente, a entre-
vista estruturada, que estabelece perguntas que serão necessariamente
endereçadas pelas respostas do entrevistado e que proporcionam compa-
rações e sistematizações mais claras, instrumento esse plenamente ado-
tado pela tese de Pedro Bielschowsky (2019) e mesmo pelas entrevistas
realizadas com violoncelistas brasileiros neste volume.
TEIXEIRA, 2015.
225
terclasses, especialmente quando o professor entrevistado fez parte de uma
realidade musical estudada. Um exemplo que poderia ser aqui mencionado
é o de uma aula-entrevista por mim realizada com Roham de Saram em
sua casa em Londres, em janeiro de 2014123. Essa entrevista revelou in-
formações inéditas sobre a Sequenza para violoncelo de Berio, exatamente
porque, no processo de tocar a peça para Saram, ele ia se recordando de
eventos e conversas com o compositor, falas essas que não seriam reme-
moradas no contexto de uma simples entrevista, como fica claro quando
comparadas a um livro de entrevistas promovido por ele próprio (STEI-
NHEUER e SARAM, 2013). O ambiente afetivo e corporificado de uma
aula tem o instrumento como parte da conversa, o que, mais uma vez, faz
jus à natureza do conhecimento próprio à performance musical.
e) Relato de experiência
226
experiência (SANTOS, 2017) Se afastando para o polo diametralmente
oposto da objetividade científica do início do século XX, este instrumen-
to metodológico toma a subjetividade do pesquisador em sua vazão de
impressões e conclusões como parte da própria pesquisa. No entanto,
ainda que seus proponentes estejam cientes do risco de se recair em um
relato personalista, Ian Pace nota que a maior parte das aplicações desse
instrumento no relato da performance musical tem resultado, em grande
parte, em leituras que, de tão particulares, acabam pouco interessando à
comunidade mais ampla, acabando por serem ineficazes em produzir co-
nhecimento124. Dessa forma, seja por meio da autoetnografia ou outros
gêneros de relatos de experiência, o pesquisador deve estar atento em
manter a realidade musical à frente de seus próprios gostos e precon-
ceitos, de preferência com um arcabouço conceitual que o resguarde de
qualquer tipo de egomania.
* *
Com aquilo que estudamos até aqui, parece mais do que certo
afirmarmos a viabilidade de uma pesquisa em performance musical que
considere a prática de cada instrumento, e em nosso caso o violonce-
lo, dentro de sua singularidade e com uma metodologia que favoreça as
questões próprias a esse processo de construção. Mais uma vez, é impor-
tante frisar que diferentes métodos e categorias metodológicas podem
se sobrepor, sendo que diferentes pesquisas irão demandar conjuntos
distintos de métodos e instrumentos de pesquisa e, ainda que tenhamos
tratado de um conjunto grande deles, um dos valores deste estudo pode
estar justamente em reunir e apresentar referenciais para aprofunda-
mento posterior. A análise imanente e o instrumento musical enquanto
instrumento de pesquisa são acréscimos que aqui fazemos para ampli-
124
f. PACE; LOUVEIRA; TEIXEIRA, 2020a
227
ficar a potência de nossa própria forma de conhecimento. Ainda que
em convivência, a sistematização metodológica é importante para que
possamos disciplinar nosso esforço de pesquisa, esclarecendo a nós e a
outros os procedimentos por meio dos quais iremos atingir um objetivo
de pesquisa. Por essa razão o quadro aqui elaborado (Quadro 1) busca au-
xiliar a compreensão do lugar de cada categoria, bem como seu potencial
em cada caso que possamos delas necessitar.
228
musical, esse modo de existência, como identificamos na introdução, é
parte de quem somos e, nesse sentido, uma dimensão inevitável de nos-
so trabalho. Assim apresentada, a pesquisa deve contribuir para nosso
crescimento e não ser apenas um validador social. O desejo pelo conhe-
cimento, pela descoberta e por saber algo que antes não se sabia deve nos
mover e, portanto, estar presente na formulação de possíveis projetos
de pesquisa, ainda que alguma visões tentem nos d esanimar com certa
aura de intransponibilidade e rigidez. Dessa forma, a pesquisa pode nos
ajudar não apenas a conhecermos melhor o violoncelo e sua música, mas
a construí-lo com um potencial para o futuro.
I 3. Análise e performance
4. Reflexão crítica, filosófica e teológica sobre a performance
5. Estudos culturais sobre a performance
Estudos em performance
6. Pedagogia da performance
7. Teatralidade da performance
8. Outros domínios interdisciplinares
1. Prática como pesquisa
II
Pesquisa artística 2. Pesquisa conduzida pela prática
3. Prática baseada em pesquisa
1. Pesquisa aplicada
III
Prática conduzida pela pesquisa 2. Análise imanente
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234
PARTE 2
MÃOS E VOZES DO VIOLONCELO
235
ENTREVISTA COM MSTISLAV ROSTROPOVICH
Uma conversa com Bruce Duffie (Maio de 2004)125
125
Publicada originalmente em: http://www.bruceduffie.com/rostropovich.html
236
que ele colocou em sua partitura. É por isso que Tchaikovsky eu faço com
grande prazer, ensinando seu estilo e fazendo de maneira mais plena. Eu
rejo com grande prazer outras óperas e farei algo muito especial com elas.
Por exemplo, eu conduzi a Tosca de Puccini, e estava muito orgulhoso,
porque Nadia Boulanger estava na minha performance e fez muitos elo-
gios para mim em seu livro. Isso me tocou muito. Eu regi aquela ópera,
porque também achei algo muito especial para mim. Claro, eu interpreto
composições sempre que um compositor me dedicar a partitura, como a
Sinfonia No. 6 de Schnittke, por exemplo. Também Timbres, espace, mou-
vement, uma composição para orquestra que Dutilleux fez para mim. Lu-
tosławski fez para mim outra peça para orquestra e há muitos outros com-
positores. É claro, sempre mantive contato com esses compositores, por
isso sei como os compositores gostariam que fossem suas performances.
MR: Vou dizer para você. Claro que tenho uma experiência e uma li-
gação muito profunda com um grande número de compositores. Por
exemplo, meu currículo agora conta com 135 estreias mundiais como
violoncelista e 87 como regente. Quando o meu contato com composito-
res começa, às vezes não consigo dormir à noite. Isso porque quando eu
toco sua composição, eles me dizem: “Slava, você sabe, eu acho que este
trecho seria melhor um pouco mais rápido e outro trecho seria melhor
se você tocasse um pouco mais devagar”. Eu não durmo porque penso
comigo mesmo: “Por que eu não havia, através da partitura, entendido
isso antes?”. Quando um compositor me dá sua música (música sinfônica
ou música para violoncelo) eu nunca vou tocá-la no violoncelo imediata-
mente. Primeiro analiso e leio esta música na minha memória.
237
composição. Só depois disso, quando entendo na minha mente, eu pego
meu violoncelo. Então eu já sei qual dedo usar, qual é o som e qual voz eu
devo usar para isso. Primeiro eu preciso conhecer a idéia do compositor,
e em segundo lugar eu sigo para interpretações, porque eu quero que a
minha interpretação seja exatamente a partir do que o compositor gos-
taria. Para mim, a música de um grande compositor é como uma carta
para mim. Estas são também cartas de Brahms ou de Bach. Como uma
carta, ele me diz: “Slava, isso é muito lento e muito suave aqui. Isso é um
piano muito concentrado, e isso é Mysterioso, e isso é Animato, etc”. Para
mim, isso é o que compositor quer significar e esse é o objetivo mais
importante, a idéia mais importante.
BD: É uma carta para o senhor, é uma carta para a orquestra ou é uma
carta para o público?
MR: Ah, é claro. Esta carta veio para mim. Primeiro devo entender, e
depois interpreto esta partitura, traduzo-a para a orquestra com gestos
e com algum tipo de hipnose... ou mesmo algo diferente [Ambos riem].
Eu digo à orquestra o que o compositor gostaria. Eu tenho muitos, mui-
tos contatos com compositores... Para não tomar muito tempo, somente
entre os compositores franceses estão primeiro Dutilleux, meu querido
amigo, e Messiaen, também Andre Jolivet, Jean Wiéner, George Auric,
Henri Sauget, e muitos outros, muitos outros. Todos estes compositores
dedicaram-me peças. Depois, da Grã-Bretanha, tenho dois compositores
que me dedicaram coisas; Sir William Walton, sua última composição
para violoncelo e orquestra, e seis composições feitas para mim por Ben-
jamin Britten. Minha compreensão não vale apenas para as composições
que foram dedicadas a mim, mas também para o War Requiem, que ele
compôs em um período em que já éramos amigos. É por isso que eu sei
exatamente o que ele gostaria, o que ele quer dizer.
238
que eles regem da mesma maneira a grande orquestra e a orquestra de
câmara. Mas isso é um erro, porque na orquestra de câmara eles têm
apenas dois solistas, tenor e barítono, que são soldados da guerra. Eles
são inimigos um do outro e é por isso que para a primeira apresenta-
ção, o tenor era inglês, Peter Pears, e o barítono, Fischer-Dieskau, era
alemão. Com a orquestra de câmara, isso é um mundo completamente
diferente e é mais difícil do que reger a grande orquestra. O próprio Brit-
ten regeu a orquestra de câmara. É um réquiem para essas pessoas que já
morreram. Eles estão juntos no carro funerário, perto um do outro. Eles
fizeram contato e disseram um ao outro, “Eu reconheço você, você quem
me matou. Por quê?”. É um mundo à parte com a orquestra de câmara.
Quando dirijo a grande orquestra com o coro e a solista soprano, uma
parte que foi escrita para a minha esposa, Galina, convido sempre amigos
que são melhores maestros do que eu para conduzir a pequena orques-
tra. Muitas vezes são amigos amados, como Seiji Ozawa, que conduzem
a orquestra pequena. Sobre este Réquiem, fiz algo interessante, porque
iniciei uma grande amizade entre Britten e Shostakovich. Tenho cópias
de cartas onde Britten conta a Shostakovich sobre mim e Shostakovich
conta a Britten sobre mim. Após a estreia do Réquiem, Ben me deu a fita
desta performance e uma pequena partitura, e disse: “Slava, talvez você
pudesse dar para Dmitri. Gostaria que ele ouvisse e visse a partitura da
minha nova composição”. Quando fui para Moscou dei a Shostakovich
a partitura e a fita cassete, e disse-lhe que Ben gostaria que ele ouvisse.
Shostakovich, é claro, estava sempre ocupado compondo, e pensei que
talvez depois de uma semana ele me ligasse. Mas ele ligou depois de
dois dias e disse: “Slava, preciso vê-lo!”. Quando eu fui encontrá-lo, ele
me disse: “Eu ouvi este Réquiem de Guerra várias vezes e devo dizer-lhe
que é a minha opinião muito decidida que é uma das... não, é A MAIOR
composição do século XX”.
239
MR: Este é Shostakovich falando. É por isso que digo a você cada palavra
exatamente como ele me disse.
MR: Deixe-me falar-lhe dos prêmios oficiais. Durante seus cinco últi-
mos verões [1948-52], eu fiquei hospedado na cada de campo de Proko-
fiev. No dia 10 de fevereiro de 1948, aconteceu o escândalo absoluto. O
governo soviético, o Partido Comunista, Stalin, Zhdanov, protestaram
contra o formalismo na música, contra Prokofiev, contra Shostakovich.
“Isso é música muito ruim; isso não é música para o nosso povo”. De
1948 até 51, nenhuma de suas composições foi executada. Foi proibido
executar qualquer coisa de Prokofiev e Shostakovich na União Soviética.
Quando estava na sua casa naquele verão de 48, depois deste escândalo,
fui um soldado muito, muito bom para os meus ídolos Shostakovich e
Prokofiev. Enquanto caminhávamos juntos, Prokofiev dizia-me sempre:
“Slava, não quero morrer antes de ouvir finalmente a minha versão de
Guerra e Paz”. Ele fez uma versão para uma noite, mas antes disso era
para duas noites. Ele fez sua versão para uma noite, mas ele não a ouviu
em vida. É por isso que é muito difícil dizer se ele está completamente
satisfeito com as minhas performances.
MR: Ele não conhece a minha gravação, porque fiz a gravação depois da
sua morte. Mas vou perguntar-lhe imediatamente quando o vir, então
240
encontre-me lá. [Risos] Eu teria gostado de executar esta versão de sua
Guerra e Paz, uma das maiores óperas do século, quando ele ainda estava
vivo. [Rostropovich conduziria o trabalho no Bolshoi em 1969 pela primeira vez
na versão original do compositor, levando Shostakovich a comentar: “A ópera
soou como deveria soar... Aqui, finalmente, estava um verdadeiro maestro no
pódio, um verdadeiro músico e um intérprete de imenso talento.” Shostakovich
contribuiria com seu próprio arranjo de uma parte da música, como Rostropo-
vich relata na entrevista...]. Na última cena, depois que Kutuzov, o mare-
chal de campo, havia vencido esta grande guerra, ele entrava em cena
no Teatro Bolshoi com um cavalo branco ao vivo, e todo o seu exército
estava na Praça Vermelha. É um grande palco o do Teatro Bolshoi e
acomodaria a cena da Praça Vermelha. A orquestra no fosso tocava uma
marcha para este momento e, enquanto eu estou regendo, digo ao di-
retor de palco que aquela era uma cena muito fantástica, mas que seria
melhor se esta marcha fosse tocada não por essa orquestra, mas por uma
banda de metais na Praça Vermelha. O diretor de palco diz que era uma
idéia fantástica, mas como seria possível realizá-la? Disse-lhe que tería-
mos que fazer um novo arranjo, não para orquestra sinfónica, mas para
uma banda de metais. Todas as pessoas estavam muito entusiasmadas
com a minha ideia e o Teatro Bolshoi disse-me que tinham alguns músi-
cos que podiam fazer a nova orquestração. Isso é muito bom, eu pensei,
mas eu também pedi à Shostakovich para fazer uma nova versão desta
marcha. Quando comecei a ensaiar, eu fiquei emocionado, porque era
um som tão fenomenal. Claro, isso é música. Após esta performance, ele
escreveu um artigo, e por um longo tempo nenhum jornal imprimiu este
artigo. Então Shostakovich me ligou depois de dez dias e disse: “Depois
da sua performance eu não conseguia dormir e não conseguia comer.
Eu escrevi uma crítica para o jornal, mas como o jornal não vai registrar
isso, vou dar-lhe o meu novo manuscrito”. Devo dizer-lhe que isto foi
muito, muito raro na minha vida. Nunca, como maestro, recebi elogios
tão elevados como os de Shostakovich. Agora tenho este manuscrito,
que é a sua versão das Canções e Danças da Morte, de Mussorgsky.
241
BD: Qual é o propósito da música?
242
que é um pouco famosa, é que eu disse à minha esposa: se eu morrer em
Paris, pague imediatamente por um avião Concorde inteiro. Leve meu
corpo no caixão no Concorde para Nova York com 100 dos meus mais
queridos amigos e familiares. Por quê? Porque o Concorde sai de Paris às
11 da manhã e chega às 8:30 em Nova Iorque. Eu chegaria com eles três
horas antes de morrer! [Ambos deram uma enorme risada].
MR: Sim, sim! [Mais risos] Outro gadget eletrônico agora é o celular.
Agora tudo é computador, computador, computador. Eu não toco no
computador. Eu o evito, mas o computador mudou a vida... E não só
para melhor. Eu lhe digo, porque antes tudo o que eu sabia, toda a minha
informação, eu obtive de um professor ou de amigos ou familiares. É isso
que você precisa. Agora eu tenho netos, e tudo vem do computador, to-
das as suas informações. O que está faltando é contato, contato humano.
Por exemplo, antes, quando eu tinha interesse em algo, meu amigo me
dizia: “Fantástico, interessante. Eu aprecio essa coisa, então aqui está um
contato de outras pessoas que podem te dar mais”. Isso é o que ele me
daria, e eu daria algo a ele. Agora quem dá é o computador. E o que você
pode dar ao computador?
MR: Sim.
243
BD: [Risos] O senhor deve tocar música para o Sr. Gates, e fazê-lo colo-
car mais emoção em seus dispositivos?
MR: Vou te dizer que olho muito para o pai dele, porque o pai dele é
muito simpático. Troco correspondências com o pai dele. Ele estava no
meu concerto em Seattle há dois anos. Ele é uma pessoa muito, muito
legal. Eu o conheço, mas todas as pessoas que usam computadores não
sabem se ele é legal ou não. [Ambos riem]
BD: A música que o senhor toca é para todos? Seus concerto são para todos?
MR: Até música nova, sim, porque eu vou dar o meu coração a estas
pessoas. As pessoas podem aceitar o meu coração ou não, mas o meu
trabalho é ter uma reação para esta música. Minha ação é que eu toco
apenas composições que eu gosto. Eu tive talvez quatro exceções na mi-
nha vida quando eu toquei composições que eu não gostava o suficiente
e eu sei que foram meu erro.
244
Tenho uma montanha de composições enviadas para mim, mas não te-
nho tempo para ver tudo. Não há tempo, e sinto muito por isso. Eu digo
ao meu assistente para se desculpar por não olhar para tantas partituras.
Muitos anos atrás eu fiz um concerto em Buenos Aires, Argentina. Um
jovem compositor veio até mim e disse: “Você toca meu coração, e eu
compus algo para você”. Era o Le Grand Tango, para violoncelo e piano.
Não era um tango para se dançar, mas uma grande peça. O compositor
era Astor Piazzolla! [Ambos riem] [Piazzolla é na verdade seis anos mais
velho do que Rostropovich!]. Muitos anos mais tarde um amigo me pergun-
tou por que eu não tocava esta peça. “Foi um compositor muito bom que
a dedicou para você e tem sido publicada por muitos anos!”. Eu tinha me
esquecido dela. Quando voltei a Buenos Aires com a Sinfônica Nacional,
eu estava no carro e parei em um sinal vermelho. Todos os tipos de
crianças pequenas vieram até o carro pedindo um pouco de comida para
comer. Eles eram lindos, crianças pequenas! Depois do meu concerto, os
patrocinadores me deram um grande jantar! Eu nunca tive tal jantar na
minha vida! Havia uma montanha do melhor caviar da Rússia, fantásti-
co! Mas depois disso, saí pensando nessas crianças pequenas. Eu disse a
alguns amigos que dois anos mais tarde eu estaria voltando para um reci-
tal no Teatro Colón. Pedi-hes para ajudar a organizar isso. Não aceitaria
dinheiro para este concerto, mas pedi-lhes que pegassem o dinheiro e o
dessem a crianças que pedem comida. Então eu vim e fiz meu recital e,
neste recital, como a última peça eu toquei aquele Tango de Piazzolla.
Eu mudei um pouco a parte do violoncelo e perguntei se ele aprovava,
e ele ficou encantado. Eu também pedi desculpas por não ter tocado sua
bela peça muitos anos atrás. Mas, depois daquele concerto, arrecadamos
muito dinheiro para as crianças!
245
ENTREVISTA COM JÁNOS STARKER
Uma conversa com Bruce Duffie (1987)126
Podemos ser gratos por sua mente e por suas habilidades criati-
vas. Sua carreira como violoncelista deu noites gloriosas a muitas audi-
ências ao redor do mundo, suas inúmeras gravações têm melhorado o
mundo dos discos e sua vontade de compartilhar tanto com tantos fez
este homem subir ao topo.
126
Publicada originalmente em: http://www.bruceduffie.com/starker.html
246
Bruce Duffie: Para onde a música está indo hoje?
János Starker: Para glórias e mais glórias. Claro, quando alguém me faz
essa pergunta, há sempre duas maneiras de eu responder. Um dos meus
escritos127 lida com o fato de que, no século XXI, a música pode ser proi-
bida, porque está ficando tão alta que pode causar câncer de ouvido. Mas
é nos meus momentos pessimistas que eu sinto isso. Caso contrário, os
padrões subiram imensamente! Em relação à música instrumental, que é
o que eu estava falando na aula, a maioria dos jovens de hoje está muito
mais bem equipada do que jovens de gerações anteriores.
JS: Como eu vivo no presente, o que eu vejo indica este padrão crescente
mencionado anteriormente, estou otimista de que ele continuará.
BD: Os padrões crescentes dos quais o senhor fala são capacidades téc-
nicas ou são intuições musicais?
127
N. do E.: Este texto está presente em STARKER, 1985.
247
existe como sempre, mas o próximo nível é muito mais elevado! Isso
é o que proporciona que os padrões musicais, em geral, sejam muito
superiores a qualquer coisa do passado
BD: Estarão os grandes atuais, então, num nível mais elevado do que
os grandes do passado?
JS: Em certo sentido sim, porque você não pode tocar melhor piano
do que já foi tocado; você não pode tocar violino melhor do que já foi
tocado por Heifetz e Paganini, provavelmente. Mas há áreas da música
onde os padrões ainda estão aumentando. Por exemplo, o nível das
orquestras está subindo, porque o próximo nível de músicos é agora
superior em suas habilidades mecânicas e em seu treinamento musi-
cal. O meu próprio instrumento, o violoncelo, ainda não atingiu o seu
potencial máximo. Isso ainda está em fase de desenvolvimento, e para
aqueles instrumentos que estão vindo à tona agora - a flauta e a viola,
por exemplo - ainda há possibilidades de subir todos os níveis. Portan-
to, há áreas onde os padrões artísticos ainda estão subindo.
248
contribuição é a chave para as coisas. Carreira significa que você con-
tribuiu para uma causa ou não. Se você fez algo pela causa, você fez
uma carreira. Ser conhecido pelos motoristas de táxi nas ruas ou pelo
zelador não mensura sua contribuição.
BD: Vamos falar um pouco sobre a música em si. O que você procura
para encontrar a grandeza na música?
BD: Essas leis e regras musicais mudam à medida que o tempo passa?
JS: As leis e regras não mudam, eles são apenas aplicadas de forma di-
ferente para diferentes compositores.
249
música por meia hora; então eu a aprecio por cinco ou seis minutos, mas
depois de um tempo ela começa a aborrecer-me. Há pessoas vindo que
estão dando sinais de terem linguagem própria. Não me peça para nome-
á-los, porque não há ninguém conhecido por mim que vá se desenvolver
no tipo de pessoa criativa, ou cuja produção será tão consistente que se
pode compará-lo com aqueles que já consideramos grande.
JS: Eu acho que este é um dos aspectos mais prazerosos da vida do mú-
sico, quando se é confrontado com uma obra menor e faz ela parecer
uma obra-prima. E quando me perguntam o que considero uma obra-
-prima, eu relembro uma definição que dei há muito tempo atrás: uma
obra-prima é aquela que não pode ser destruída; mesmo quando mal
tocada, ainda é uma obra-prima. O problema é que as obras menores
se tornam muitas vezes cansativas e pouco satisfatórias. Mas o trabalho
dos músicos que as tocam deve ser fazê-las parecer uma obra-prima.
250
positores escreveram sinfonias com um protagonista principal, que é
o violoncelo. Meu maior problema com a audição de muitas das per-
formances é que elas são tocadas como uma peça de exibicionismo do
instrumento solo e à orquestra é relegada a uma posição secundária,
embora o compositor tenha escrito, basicamente, uma obra sinfônica.
BD: Então, que conselhos o senhor tem para o público que o ouve tocar?
251
ouvir gravações, é importante fazer parte da experiência musical total;
mas uma experiência musical não é uma experiência teatral. Então, ao
me ver tocar e ao ver a orquestra tocar, tente deixar que os sons ve-
nham até você e que os sons afetem você emocionalmente, de forma
alegre ou provocando lágrimas. Mas ainda assim, a música deve fazer
isso e não o aspecto visual.
BD: Mas algo como o Don Quixote - não é uma experiência teatral?
JS: O som deveria refletir isso. O fato é que, se eu atuar como o Don
Quixote, isso pode melhorar o aspecto teatral da coisa, mas a priorida-
de ainda deve permanecer a música.
128
N. do E.: Artigo presente em STARKER, 2004.
252
que você pode fazer com ela nessas circunstâncias. Se o maestro não é
alguém tão bom quanto Erich Leinsdorf, então você pode ter que su-
portar tocar mais devagar ou mais rápido e mudar seu conceito à medi-
da que o processo avança. Não posso sentar no palco tentando mostrar
meu desagrado, indicando que os outros não são tão bons quanto eu!
Portanto, a obra está em minhas mãos - e aqui mora a contradição com
aquilo que eu costumo afirmar, que só a música importa -, mas uma
vez que o público tenha pago seu ingresso e veio para me ouvir, se
não consigo transmitir a mensagem com meios puramente artísticos
e musicais, então tenha a certeza de que terei de fazer algo para que o
público ainda tenha uma noite de entretenimento. Então você começa
a fazer gestos e assim por diante, para se certificar de que eles não saiam
de mãos vazias, por assim dizer.
JS: Durante muitos, muitos anos na minha vida, tudo o que me interes-
sava era fazer meu melhor em qualquer circunstância, e cheguei a afir-
mar uma vez que, para mim, o público estava meramente ali, ouvindo.
Eventualmente, à medida que fui amadurecendo, encontrei algum pro-
blema nisso, baseado na ideia de arte pela arte, que ainda está em algum
lugar em mim. Mas enquanto mais velho fico, mais e mais percebo
253
que não posso esperar que o público procure o mesmo aspecto de uma
composição musical. Passei a vida toda para aprender, para melhorar
e para mudar todo esse processo evolutivo. Com o público, especial-
mente com obras que não fazem parte de sua ‘dieta diária’, tenho que
ter cuidado para ter certeza de que estou lhes apresentando a música de
uma forma que possa ser apreciada até mesmo por aqueles que nunca
ouviram a obra antes. São, basicamente, pequenas modificações, nada
muito grande que afete meus princípios artísticos.
BD: Então o senhor está constantemente refinando tudo que você faz?
BD: Por exemplo, os discos que gravou há quinze, vinte, trinta anos
ainda estão por aí e ainda são tocados e apreciados. O senhor não quer
renegá-los porque pode fazer muito melhor hoje, correto?
254
a produção de som do CD é melhor do que a produção de som mono de
quarenta anos atrás quando eu fiz a primeira gravação. A busca artística
deve descobrir mais e mais nessa caça ao tesouro. Eu acho que isso foi
muito belamente afirmado por Fritz Reiner. Uma vez, após um concer-
to, quando lhe perguntei porque ainda usava a partitura para a Sinfonia
Eroica, ele disse: “Quando olho para a partitura tenho ideias novas”. É
uma das muitas coisas que agradeço por ter aprendido com ele. Todas as
obras que eu costumava tocar de cor, agora eu coloco a partitura; e no
meio da performance enquanto eu olho para ela, eu digo, “Por que não
fazer dessa forma? Por que não me ocorreu antes?”.
JS: Na maioria das vezes eu não escolho os concertos. Há uma lista, algo
como quarenta e cinco diferentes obras orquestrais das quais o maestro
deve escolher de acordo com seu plano básico de programa para aquela
noite. Então nós negociamos. Aqui em Chicago eu deveria originalmente
tocar, eu acho, o Concerto de Saint-Saens, porque é um programa fran-
cês. Como ele é muito curto, eu propus também o Concerto de Darius
Milhaud. O Sr. Leinsdorf disse: “Eu não tenho certeza se eu gosto desse,
então que tal outra coisa?”. Então consideramos um concerto barroco
francês, mas que não foi interessante o suficiente para a orquestra. Então
eu disse: “Por que não fazemos o Concerto de Bartók ou o Concerto de
Hindemith?” e Leinsdorf respondeu: “Vamos fazer Hindemith. Ele ainda
não foi feito e é uma peça maravilhosa!”. Considero-o provavelmente o
melhor concerto de violoncelo escrito e construído do século XX.
BD: Então, até certo ponto, realmente não importa para o senhor o que
será selecionado? O senhor virá e deste repertório vai simplesmente
tocar o seu melhor diante do que é proposto?
255
JS: Isso é basicamente o que um profissional deve fazer. Antigamente,
o artista de concerto viajava por uma temporada com dois concertos
e dois programas de recitais e era isso que ele tocava. Eu nunca acre-
ditei nisso, então praticamente em todas as temporadas eu fiz vinte
diferentes obras com orquestra e cerca de seis programas de recitais
diferentes. Isso me mantém vivo muito mais do que repetir as mesmas
coisas várias vezes. Eu disse há muitos anos que me recuso a ganhar a
vida tocando o Concerto de Dvořák todas as noites!
JS: Se alguém é confrontado com um maestro que não fez seu traba-
lho, ou que não tem, digamos, o mesmo nível de experiência que você,
então é o trabalho do solista iluminar o regente quanto ao que deve ser
feito com a peça. Se você está diante de um grande músico como o Sr.
Leinsdorf, então torna-se um esforço cooperativo. Ele diz: “Você não
acha que se fosse um pouco mais lento, seria melhor?”. E eu concordo
ou não. Na maior parte do tempo, esta colaboração é um acordo alegre
em todos os casos e nós dois estamos tendo um tempo maravilhoso
juntos. Ele fez algumas pequenas mudanças, eu fiz algumas pequenas
mudanças, e funcionou. É uma colaboração absolutamente prazerosa!
JS: Supostamente eu ganho, a menos que o maestro seja tão ruim que
você desista, o que acontece em raras ocasiões. Mas então isso nos for-
nece histórias muito boas para depois do jantar.
256
com a Orquestra de Câmara de Nova Iorque, com Gerard Schwarz.
E acabei de concordar em fazer uma gravação de uma peça que eu ti-
nha na minha biblioteca, mas nunca tinha tocado antes, a Fantasia, de
Villa-Lobos. Os compositores estão sempre me enviando suas obras,
mas se eu não as toco, em seguida, passo para alguns dos meus alunos
tocarem, se eu gostar da peça.
BD: Isto volta à minha pergunta - como é que o senhor decide quais
irão ser tocadas? O que procura em uma peça que diz: eu devo tocar
isto ou não posso tocar aquilo?
JS: Costumava ser uma decisão muito simples; se eu vejo uma peça que
eu sinto que eu não posso fazer nada a mais com ela, ou qualquer coisa
diferente com ela, do que qualquer outra pessoa pode, então eu geral-
mente fico menos interessado. Há certas obras que estão chegando à
nossa atenção que praticamente qualquer um pode fazer uma apresen-
tação aceitável. Até descobrir que há outra coisa que quero fazer com
ela, não a toco. As novas obras que se tocam hoje em dia são geralmen-
te escritas para você, então você está no processo criativo e trabalhan-
do a peça com o compositor. No momento em que a composição é
concluída, ele é meio que sua também, então não é tanto um problema
aprendê-la. Mas quando as pessoas continuam a enviar peças que já
foram executadas e editadas, então a escolha é se eu posso fazer alguma
coisa, onde ela fala comigo e, portanto, se eu posso falar através dela e
passar algum tipo de mensagem musical que possa ser esperada.
BD: Para peças escritas pelo senhor ou em colaboração com o senhor, elas
se tornam suas peças. Isso as impede de serem tocadas por mais alguém?
JS: Não, não, não, não. Se eu gosto de uma peça, quero que todo mun-
do a toque. Não acredito na exclusividade de uma obra durante cinco
anos. Acho isso ridículo. Isso costumava ser apenas um negócio, uma
proposta econômica, para que se um solista não tivesse oportunida-
257
des suficientes de ser convidado para tocar com certas orquestras, em
virtude de uma nova peça ser realizada - a primeira performance na
Europa ou na Alemanha ou na França - ele teria um certo número de
convites. Nunca acreditei nisso porque acho que isso é infantil.
JS: Se você está falando dos conjuntos barrocos que estão usando esses
instrumentos, a minha opinião sempre foi de que eu não gosto que al-
guém finja tocar música barroca de acordo com o estilo antigo, a menos
que essa pessoa volte para os instrumentos que foram usados naquele
momento, com o mesmo som, as mesmas cordas de tripa, sem o espi-
gão, e com os arcos que foram usados. Outro problema vem quando
eles se apresentam em um tipo moderno de sala de concerto, com um
tamanho grande que torna isso absurdo. Se fica claro que é apenas uma
aproximação, ou o mais próximo possível da apresentação original da
música com os instrumentos como eles eram na época, então eu acho
que isso pode ser muito esclarecedor. Mas eu iria querer gastar muito
do meu tempo ouvindo ou fazendo isso? Eu não toco o instrumento as-
sim, porque não acredito que estou disposto a fazer isso agora, embora
eu tenha um violoncelo de cinco cordas. Mas desde que seja apresen-
tado como uma tentativa de aproximar ao máximo da apresentação da
época dessas obras, eu acho muito importante, muito esclarecedor, e às
vezes muito agradável, desde que seja feito por performers excelentes.
258
será como qualquer outra coisa, uma experiência musical muito agra-
dável. Não é diferente do que eu faço ou do que os meus colegas fazem.
JS: Muito mesmo, porque o efeito é que quando uma gravadora pro-
duz um disco e o distribui por todo o mundo, isso ajuda a trazer nomes
para a consciência do público. Portanto, esse sistema de grandes estre-
las, que sempre existiu, chegou a um extremo que às vezes é lamentá-
vel, mas por uma razão diferente. Porque o sistema de grandes estrelas
259
exige que o público pague uma quantidade incrível de dinheiro para
assistir a algumas dessas performances das estrelas, comprometendo
seu orçamento, de maneira que eles não têm dinheiro suficiente para
ouvir a música disponível em suas comunidades. Em alguns casos, isso
pode causar algum dano temporário.
JS: Deus me livre que um dia eu me veja não gostando de tocar. Já pas-
sei do tempo em que gostava de me deslocar de uma cidade para outra;
essa é a única parte ruim real da profissão, ir com o violoncelo de um
continente para outro. Mas tocar, fazer música, ainda é meu hobby.
REFERÊNCIAS
STARKER, Janos. The Roll Call of the Blessed Ones: text by Janos Starker,
illustrations by Jorge Sicre. Washington: Occidental Press, 1985
260
ENTREVISTA COM SIEGFRIED PALM
Entrevista concedida a Tim Janof em março de 1998129
129
Publicada originalmente em: http://www.cello.org/Newsletter/Articles/palm.htm
261
TJ: O que o senhor acha do método Suzuki?
SP: Eu não o suporto. Eu vejo isso mais como um método militar do que
musical. Quando vejo uma centena de jovens tocando a mesma música
no violino, não posso deixar de imaginar que eles estão, na verdade, car-
regando metralhadoras. Eu sei que estou sendo bastante duro e é uma
coisa estranha para o Presidente da ESTA [Associação Europeia de Pro-
fessores de Cordas] dizer, mas acredito verdadeiramente nisso. Digo isto
sabendo que há muitos professores com o método Suzuki de sucesso no
mundo.
SP: Não. Se fizerem isso tudo bem, mas eu prefiro que eles encontrem
sua interpretação a partir da partitura e de si mesmos ao invés de imitar
os outros. Digo isto até sobre as minhas próprias gravações, que são mui-
tas. Acredite ou não, exceto durante a fase de edição, nunca mais ouço
nenhum dos meus discos.
SP: Não tenho certeza se isso é verdade. Há muitos jovens músicos mara-
vilhosos hoje. Eu me preocupo mais com a obsessão de hoje com a per-
feição técnica, e como isso pode impedir um certo elemento emocional
espontâneo em uma performance.
SP: Não, não precisamos, mas por que não as ter? Talvez alguém tenha
algo novo a dizer com essas peças. Mas só porque alguém grava um CD
novo, isso não significa que eu tenha que comprar ou ouvir. Um grande
problema na indústria da música clássica é que as pessoas agora substi-
262
tuíram seus discos de vinil por CD’s das sinfonias de Beethoven e outros
clássicos. E, como a maioria das pessoas não é de colecionadores, a grande
maioria do público não tem desejo de comprar mais gravações dessas mes-
mas obras, e muito menos estão interessados em obras contemporâneas.
Como resultado, a indústria de gravação de música clássica está em apuros.
SP: Não, isso é música. Se algo é ou não artístico depende do que o com-
positor faz com ele.
SP: Não, eu acho que não. Você não pode simplesmente olhar para o
resultado final, a música. Você deve olhar para o processo geral e as téc-
nicas do compositor, o que também deve incluir uma compreensão de
sua formação pessoal e profissional. Isto é verdade para qualquer bom
compositor como Penderecki.
SP: É claro. Essa música é cheia de humor e ironia. O ponto principal desta
263
peça é o acorde de Dó Maior e como ele brinca com esse acorde. Mas você
não pode apreciar isso a menos que conheça a música muito bem.
TJ: Então esta peça contém piadas internas para músicos, ou pelo me-
nos para aqueles que conhecem a partitura. O senhor acha que muito
da música contemporânea é escrito mais para a apreciação de músicos e
compositores do que para o público em geral?
SP: Acho que tenho uma noção da linguagem, ou das linguagens, da mú-
sica contemporânea, que vem de anos de experiência. A performance
deve ser inspirada e cheia de nuances, assim como qualquer outro tipo
de música. Acho que a maioria dos alunos ignora os detalhes mais especí-
ficos da partitura, então chamo a atenção para as instruções dos compo-
264
sitores e compartilho minhas percepções sobre a mensagem interior da
música. Tenho a sorte de ter trabalhado pessoalmente com muitos dos
compositores, por isso tenho uma certa vantagem. Devo estar no cami-
nho certo, já que acho que sou capaz de comunicar a música para o pú-
blico. Claro, como em qualquer período da história da música, nem toda
música contemporânea é ótima, assim como nem toda música clássica é
ótima. Mas, se uma peça é boa, e a comunidade musical está ciente disso,
ela vai perdurar, enquanto peças menores vão desaparecer na história.
TJ: O senhor acha que tocar música contemporânea lhe dá uma outra
visão da música mais antiga?
SP: Eu acho que eles vão apreciar muito disso ao longo do tempo, em-
bora provavelmente haverá certas peças que nunca serão totalmente
compreendidas. Mas isso não é exclusivo da música do século XX. Veja
os Quartetos de Beethoven. Duvido que 10% dos amantes de música te-
nham a menor compreensão deles. As pessoas não gostam de admitir
que podem não compreender Beethoven, mas não tenho medo de di-
zer, mesmo depois de todos estes anos de atuação, que não compreendo
completamente o Quarteto Opus 131.
265
pintura e ainda assim saber muito pouco sobre técnica de pintura. Poderá
sempre haver algumas obras que o público nunca entenda, assim como al-
gumas obras tardias de Picasso podem nunca serão totalmente apreciadas.
Mas as peças não devem ser banidas do palco por causa disso, assim como
as pinturas de Picasso não devem ser tiradas das paredes dos museus.
SP: Algumas peças são mais difíceis de transmitir ao público do que ou-
tras. Algumas requerem mais estudo e familiaridade, mas isso não signi-
fica necessariamente que há algo errado com a peça. Assim como alguns
livros exigem uma leitura cuidadosa e deliberada, certas peças requerem
repetidas audições e estudo também. Fazemos o nosso melhor para co-
municar a peça para o público. Se eles a entendem, então realizamos algo
verdadeiramente maravilhoso.
Eu diria que isso é verdade para além do que apenas a música con-
temporânea. Por exemplo, apenas um tolo afirmaria compreender com-
pletamente as Suites para violoncelo de Bach. Qualquer músico dedicado
passa a vida a aprofundar a sua compreensão destas obras maravilhosas.
266
é importante na arte, uma vez que ajuda a unificar um trabalho em um
todo compreensível. Caso contrário, por que estudar música, e por que
não deixar um macaco escrevê-la para você?
SP: O que Bach fez dentro de suas regras é inacreditável. Mas nem todos
os grandes compositores do passado seguiram as regras de seus dias. Bee-
thoven, por exemplo, foi um grande rebelde, destruindo as convenções
da forma e da harmonia em suas últimas vinte e poucas grandes obras,
inclusive quebrando suas próprias regras recém-estabelecidas.
TJ: O senhor julga uma obra por ter uma estrutura discernível?
SP: Eu não gosto de julgar obras de arte. Eu acho que o meu critério final
é se isso me entedia ou não. Quando eu toco uma peça, me esforço para
tocá-la da forma mais interessante possível, para que o público tenha
267
uma oportunidade justa de apreciar a peça, em vez de rapidamente des-
cartá-la como chata. Quero fazer justiça ao compositor.
TJ: O que o senhor acha de um compositor como John Cage, que era co-
nhecido por jogar dados em certas peças para determinar as notas em uma
composição? O senhor consideraria seu processo deliberadamente aleató-
rio como sendo sua estrutura interna unificadora? Ou era apenas o caos?
TJ: Eu tenho um livro, “The Solo Cello”, de Dimitry Markevitch, que con-
tém centenas de obras para violoncelo solo, a maioria das quais foram es-
critas no século XX. O problema de um violoncelista não é que não haja
música suficiente por aí, é que muito poucos a tocam ou a conheçam.
SP: Há muita música escrita para violoncelo. O violoncelo tem sido mui-
to popular entre os compositores nas últimas décadas. Mas aposto que
a viola, daqui a vinte ou trinta anos, será o instrumento escolhido pelos
compositores. Então devemos aproveitar a atenção enquanto a temos!
268
ENTREVISTA COM ALDO PARISOT
Entrevista concedida a Tim Janof em abril de 2001130
130
Publicada originalmente em: http://www.cello.org/Newsletter/Articles/parisot.htm
269
de 1982, ele foi premiado com a “Medalha da Paz das Nações Unidas” após
sua performance em suas cerimônias do Dia da Equipe e, em 1983, ele
recebeu o “Prêmio Artista/Professor” da American String Teachers
Association. Em maio de 1997, Parisot recebeu o “Governor’s Arts Award”
do Estado de Connecticut por suas realizações como músico e professor.
Aldo Parisot: Isso mesmo, graças a Deus. Eu não concordo com alunos
que pulam de professor em professor.
Ele disse que me ajudaria ir para onde eu quisesse, então eu disse que
queria estudar com Emanuel Feuermann nos Estados Unidos. Ele manteve
270
sua promessa e foi tudo arranjado para que eu estudasse com Feuermann
no Instituto Curtis. Infelizmente, Feuermann morreu três meses antes de
eu deixar o Brasil, em 1942. Isso foi extremamente decepcionante, já que
ele era a única pessoa com quem eu estava interessado em estudar.
271
no próximo ensaio para o meu concerto solo, o que foi duplamente
ruim, porque a peça tem uma parte muito importante do quarteto de
cordas e eu faria muita falta. Eu mal consegui falar, “Sr. Hindemith, eu
não poderei” quando ele praticamente pulou em cima de mim, de tão
irritado que estava. Eu apenas fiquei lá olhando para ele enquanto ele
gritava comigo, não gostando de ser insultado. Eu finalmente disse: “O
senhor terminou?”. Ele só parou e olhou para mim, chocado que um
estudante humilde poderia mostrar-lhe tal desrespeito, dado que ele
era um deus em Yale. Então eu disse: “O senhor e sua orquestra podem
ir para o inferno!” e eu fui para o meu quarto. Uma hora mais tarde,
uma associação de estudantes me fez uma visita, advertindo-me que eu
poderia ser deportado. Eu disse: “Se me quiserem deportar, por mim
tudo bem. Ele foi muito rude comigo e eu respondi de acordo”.
Alguns dias depois, eu estava andando pela rua indo para a laven-
deria quando vi Hindemith com Howard Boatwright, um violinista e seu
melhor aluno de composição. Howard deve ter explicado a Hindemith
porque eu tive que faltar ao ensaio, enquanto eu andava com a cabeça
abaixada para evitá-lo. Hindemith colocou a mão no meu ombro e disse:
“Tudo bem, Parisot. Você pode ir tocar o seu concerto, já que você conhece
a minha peça”, Eu olhei para ele e disse: “Por que o senhor não me deixou
explicar? O senhor me forçou a fazer o que eu não queria fazer!”. Hinde-
mith apenas disse: “Tudo bem, tudo bem”. Mas ele nunca me perdoou. Ele
se vingou anos depois, quando eu toquei seu concerto com a Filarmônica
de Nova York com ele regendo; a orquestra tocava tão alto que eu prati-
camente tive que me curvar sobre o cavalete para conseguir me escutar.
272
orquestra para o resto da minha vida e ter um maestro a dizer-me como
tocar. Então eu economizei algum dinheiro, aluguei o Salão da Câmara
Municipal em Nova York, e fiz minha estréia em um recital, que recebeu
ótimas críticas. A Columbia Management viu as críticas e me contratou. A
orquestra em Pittsburgh também viu e se ofereceu para dobrar meu salário
se eu ficasse, o que eu não fiz porque eu queria uma carreira solo.
Meu sonho de infância era fazer turnês pelo mundo como solis-
ta, tocar com grandes maestros e orquestras, comprar um Stradivarius
e ensinar em uma grande universidade, e tudo isso se tornou realidade.
Minha carreira solo me permitiu comprar o Stradivarius ‘Feuermann’,
que eu possuo há 40 anos. Então eu fui dar aulas na Universidade de Yale
em 1958, onde estou desde então. Eu tive uma vida maravilhosa.
AP: Sim, eu fui à casa dele no Monte Kisco três ou quatro vezes, porque eu
iria tocar sua sonata para violoncelo em Nova Iorque. Ele era um homem
muito simpático e nada dogmático sobre como sua música deveria ser to-
cada. Quando eu perguntava a ele como tocar uma certa passagem, ele dizia
algo como: “Deixe-me ouvir você tocar. Ok, agora faça de outra maneira.
273
Agora, que tal a terceira maneira que você mencionou?”. Então ele escolheria
sua preferência, mas ele não insistia nisso. Ele principalmente apontava par-
tes onde o equilíbrio entre o violoncelo e o piano não estava bom.
274
Lembro-me de minha última performance do seu concerto, sob
regência do próprio Villa-Lobos. Foi um concerto ao ar livre no Lewi-
sohn Stadium, em Nova Iorque. Villa-Lobos já tinha leucemia naquela
época, embora não o soubesse. Também no programa estava sua Bachia-
nas Brasileiras para oito violoncelos e soprano, para a qual Villa-Lobos
solicitou que eu tocasse a parte solo do violoncelo. A soprano foi a len-
dária cantora Bidu Sayão, e aconteceu de ser seu último concerto antes
de se aposentar. Eu ainda tenho uma imagem maravilhosa daquele dia
quando eu toquei ao lado de Bidu Sayão em sua performance final.
AP: É pura coincidência. Como Starker, meu objetivo é tornar meus alu-
nos tecnicamente livres. Ao longo da minha vida as pessoas disseram que
o violoncelo parecia ser uma parte de mim, que é porque eu estou livre
de tensão quando eu toco. Estou cansado de professores que dizem que a
música é mais importante, quando se pode ver claramente que seus alunos
são tão tensos. Como os alunos podem tocar a música se estão travados?
275
Eu respondi: “Eu tenho que ir para a Holanda para outro concerto”.
“Não, toco daqui três dias, mas tenho que ensaiar com o pianista”.
276
locar o dedo e, em seguida, todos os seus professores falam é sobre a
música, como se isso fosse tudo o que importa. Enquanto isso, seus dedos
continuam a lutar e os anos passam. Eventualmente, eles percebem que
não podem chegar ao próximo nível, não importa o quanto pratiquem.
Por que você acha que Starker toca tão bem aos 77 anos? É porque
ele estabeleceu sua incrível técnica quando ele era criança. A máquina de
Starker é como um Rolls-Royce. Ele é o exemplo perfeito de como tocar
violoncelo. O melhor é que ele não tem que pensar em tocar violoncelo
quando ele se apresenta. Em vez disso, ele pensa sobre o que ele quer
dizer com a música, que é o que todos nós devemos almejar. A técnica
tem que estar imaculada e em sintonia antes que se possa discutir sobre
interpretação. Admiro imensamente Starker.
277
Perguntei-lhe qual era o problema. Ele disse: “Você vai ouvir esta noite.
Não é como costumava ser”.
Eu respondi: “Vamos lá! A maneira como você toca, você vai ter
100 anos e ainda vai ser incrível!”. E sua Konzertstuck de Dohnanyi foi
fantástica naquela noite.
AP: Você sabe que está sentado corretamente se puder se levantar pronta-
mente. Este é um bom indicador de que seu corpo está completamente li-
vre e que você está deixando o violoncelo vir até você em vez de você ir até
ele. Seu centro de gravidade deve estar entre você e o violoncelo, não de tal
forma que seu corpo tenda a cair para trás. Inclinar-se para a frente muito
ligeiramente produz isso, o que naturalmente traz seus pés para trás. De-
ve-se sentar de tal forma que se obtenha uma postura equilibrada e livre.
TJ: Uma objeção que ouvi sobre colocar os pés para trás e inclinar-se para
a frente é que é preciso mais energia para manter o corpo ereto, o que co-
loca uma pressão na sua parte inferior das costas. Não concorda com isso?
278
TJ: O senhor incentiva os alunos a girar levemente o violoncelo, depen-
dendo da corda em que estão tocando.
AP: Você poderá alcançar as cordas com muito mais facilidade se o fi-
zer. Se você precisar tocar a corda Dó, gire o violoncelo para a esquerda
para que fique no nível da corda Sol. Se você precisar tocar a corda Lá,
gire o violoncelo para a direita para que fique no nível da corda Ré.
Caso contrário, tocar nessas cordas externas pode ser desconfortável.
Por que tornar a vida desnecessariamente difícil, mantendo o seu vio-
loncelo em uma posição fixa?
AP: A cabeça deve estar livre para se mover para onde for necessário, a
fim de evitar o acúmulo de tensão. Certifique-se de relaxar a mandíbu-
la também. Você pode praticar isso tocando com a boca aberta. Se sua
mandíbula está tensa, você não conseguirá liberar o resto do seu corpo.
TJ: O senhor se opõe a pessoas que balançam suas cabeças com a música
enquanto tocam. Por que?
AP: Geralmente é um sinal de que eles estão tendo problemas com seu
senso de ritmo. A maneira de corrigir isso é ter certeza de sentir as ba-
tidas fracas, além das batidas fortes. Por exemplo, em vez de contar “1-
2-3”, contar “1-e-2-e-3-e”. Eu não estou dizendo que alguém tenha que
ter uma precisão semelhante a uma máquina; eu prefiro um tempo que
tenha alguma flexibilidade, que é o que torna a música tão humana.
279
-horário. Você não será capaz de fazer isso, no entanto, a menos que
possa planejar com antecedência.
280
TJ: E o braço do arco? O senhor lidera com o cotovelo?
AP: Não, tudo começa com os músculos das costas, que são seguidos pelo
braço, antebraço, mão e dedos, como um chicote, onde a ponta dos dedos
se move mais rápido. Isto também se aplica à mão esquerda.
AP: A maioria das pessoas fica cansada porque está tentando forçar o arco
a pular, o que faz com que o polegar, a mão, o braço e o ombro fiquem
tensos, eliminando assim qualquer esperança de um bom spiccato. Para
evitar isso, é preciso aliviar a pressão do polegar e o arco vai saltar por si só.
AP: Sua mão deve traçar uma ligeira figura-oito no talão, fazendo um
movimento no sentido horário ou anti-horário na ponta. Se você apenas
281
vai para frente e para trás com o arco, você vai ouvir um ligeiro acento
cada vez que você mudar a direção do seu arco. Claro que isso só é neces-
sário se você quiser tocar um legato sem interrupção.
TJ: O senhor mencionou que os alunos muitas vezes trazem seu arco
para a corda com um movimento vertical em vez de um horizontal. O
que há de errado com isso?
AP: Você vai ouvir um ataque, porque está pressionando a corda para
baixo em vez de incentivá-la a soar livremente. De um modo geral, o
arco deve ser parte de um forma de arco imaginário durante a sua tra-
jetória. Quando o arco está na corda, ele traça apenas um pequeno seg-
mento deste grande arco. Portanto, quando você se aproxima da corda,
deve estar “pousando” na corda em uma direção basicamente horizontal,
não vertical. Afinal de contas, a ação do arco consiste em empurrar e
puxar a corda para o lado, e não em pressioná-las para baixo.
282
Acredito que a sua respiração deve se relacionar com a música
que está sendo tocada. Se for começar uma frase forte, você deve rapida-
mente inflar seus pulmões para aumentar o seu nível de energia, como
se estivesse prestes a gritar. À medida que a frase continua, então expire
e respire mais normalmente. Se for começar uma frase mais suave, sua
respiração deve se ajustar de acordo. Respirar ajuda a pontuar a música.
TJ: Vamos falar sobre algumas das idéias musicais que o senhor men-
cionou em sua masterclass. Primeiro de tudo, o senhor não gosta de um
vibrato largo. Por que?
AP: Porque ele soa desafinado! Por que você acha que Starker toca tão afi-
nado? É porque ele não tem um vibrato largo que faz “wow-wow-wow”. O
vibrato deve começar na nota e, em seguida, ir ou a um oitavo de tom para
cima ou para baixo da nota, mas nunca ambos. Um vibrato estreito nunca
é ofensivo para o ouvido. Starker é um modelo perfeito para isso.
TJ: É uma regra geral sua que, se há um grande intervalo, deve-se tomar
mais tempo com a mudança?
AP: Naturalmente! Cante! Veja como pode ajudar tomar um pouco mais
de tempo quando se canta um grande intervalo. Ainda deve se manter
um senso de pulso, mas permitindo alguma flexibilidade para que se te-
nha mais qualidade vocal. Afinal, o que estamos fazendo é tentando can-
tar através de nosso instrumento, não soar como máquinas. Claro, você
não quer se empolgar, já que não pode tocar tão livremente que os outros
não possam segui-lo.
283
Alguém que fez isso magnificamente foi Frank Sinatra. Eu cos-
tumo dizer aos meus alunos para ouvirem suas gravações para apren-
der sobre esse canto maravilhosamente livre. Enquanto a orquestra
estabelece o ritmo ele flutua lindamente sobre ela, sempre conseguin-
do pousar perfeitamente no final da frase. Ele não sabia o que estava
fazendo, mas era fabuloso. Casals fez isso também, mas é claro que ele
sabia exatamente o que estava fazendo.
TJ: Starker diz: “Crie emoção, não fique emocionado”. O senhor dis-
corda disso.
AP: Depois de um certo ponto, você deve conhecer a música de trás para
frente. Quando chegar a este ponto, você deve ser capaz de relaxar, sentir
a música antes de tocá-la, e, em seguida, basta deixá-la vir da forma que
se sente, como se estivesse se juntando a uma peça que já está acontecen-
do. A antecipação é a chave mais uma vez.
284
TJ: O senhor disse: “Adore a Deus, não ao compositor”. Por que?
TJ: O senhor também disse: “As nuances não estão nas notas. Elas vêm
do intérprete”.
285
Quando um compositor cria uma obra-prima, o meu trabalho
não é recriá-la; é tentar criar outra obra-prima ainda maior do que a
que o compositor escreveu. Eu experimentei isso muitas vezes quando
trabalhava com compositores contemporâneos. Por exemplo, em 1959
me pediram para tocar o Concerto de Hindemith no Carnegie Hall com
o próprio Hindemith conduzindo a Filarmônica de Nova Iorque. Eu sa-
bia o quão dogmático Hindemith poderia ser, então eu me certifiquei de
que eu seguia sua notação ao pé da letra, incluindo suas indicações de
metrônomo. Quando eu estava pronto, meu agente me disse que Hin-
demith queria me ouvir tocar seu concerto antes do ensaio. Então fui ao
seu quarto de hotel em Nova Iorque e bati à porta. Quando ele abriu a
porta, percebi pela sua expressão que ele se lembrava de nossa briga em
Yale. Então ele me convidou a entrar e disse: “Parisot, toque meu con-
certo”. Eu, então, toquei o concerto inteiro, de frente para ele, enquanto
ele regia. Quando terminamos, ele manteve a cabeça baixa, ainda olhan-
do para a grade. Eu esperei um pouco mais e finalmente perguntei: “Sr.
Hindemith, o que o senhor achou?”. Ele disse: “Parisot, você toca meu
concerto muito bem. Você respeita até mesmo os dedilhados e as arcadas
do meu irmão, que era violoncelista. Mas gostaria de lhe fazer uma per-
gunta. É assim que sente a minha música?”.
Ele disse: “Ok, ainda temos dez dias. Por que você não volta em
alguns dias e toca do jeito que realmente quer?”. Eu não podia acreditar
nos meus ouvidos! Felizmente, eu tinha o hábito de aprender uma peça
de três ou quatro maneiras diferentes, então eu não entrei em pânico.
Alguns dias mais tarde voltei e desta vez afastei-me dele, deixando-o se-
guir-me desta vez, e toquei o concerto como realmente queria. Coloquei
um rubato aqui e ali, levei um pouco mais de tempo em outros lugares, e
quando terminei, ele disse: “Bravo, Parisot!”.
286
Então o que eu estou dizendo é que as notas escritas são apenas o
começo, porque é impossível transmitir a visão artística e os sentimentos
de alguém para outro ser humano através de notas em uma página, ou
mesmo pessoa-a-pessoa. Lembro-me de quando ouvi Fritz Kreisler tocar
a Sonata Kreutzer dois dias seguidos. Um concerto foi no Carnegie Hall e
o outro na Brooklyn Academy. As interpretações eram tão diferentes que
era como se duas pessoas diferentes tivessem tocado, e no entanto ambas
eram magníficas. Tenho certeza que Kreisler respeitava Beethoven tanto
quanto qualquer um, mas ele não deixou seu respeito se tornar uma prisão
artística. Devemos também honrar nossa própria singularidade.
TJ: Parece que o senhor não tem muita consideração pelas edições Urtext.
AP: Não! Estes são truques para ganhar dinheiro. Veja a Sonata em
Lá Maior de Beethoven, por exemplo. Você sabia que apenas o ma-
nuscrito do primeiro movimento existe e que os outros movimentos
estão perdidos? Como se atrevem essas pessoas das edições Urtext a
imprimir os outros movimentos, como se eles soubesse o que Beetho-
ven realmente queria. (Há algumas cartas para o editor de Beethoven
sobre correções para a primeira edição, uma das quais eu vi há muitos
anos. Foi a partir desta carta que eu descobri que ele queria que nós
tocássemos Dó sustenido no compasso 37 em vez de Dó natural. Eu fui
um dos primeiros a tocar Dó sustenido).
287
Em última análise, meu objetivo ao ensinar é dar aos meus alunos
as ferramentas para se tornarem músicos bem informados, que sejam
fiéis à partitura e a si mesmos. Mas eles só podem fazer isso se estive-
rem bem equipados tecnicamente, o que só pode ser alcançado através de
uma dedicação ao longo da vida para eliminar pontos de tensão. Quero
que os meus alunos sejam tão tecnicamente livres que possam se expres-
sar completamente à sua maneira. O sucesso deles significa mais para
mim do que qualquer diploma honorário.
288
IBERÊ, VIOLONCELISTA BRASILEIRO
Iberê Gomes Grosso talvez não seja um nome conhecido pelas no-
vas gerações de violoncelistas brasileiros e, muito menos, internacionais.
Sua importância, para o violoncelo e para a música brasileira, no entanto,
o coloca entre os grandes de nossa história, que, infelizmente, ainda re-
conhece pouco o valor dos instrumentistas na construção de uma cultura
musical. Iberê, como aponta seu primeiro sobrenome, fazia parte da dinas-
tia dos ‘Gomes de Campinas’, à qual pertenceu seu tio-avô, o compositor
Antonio Carlos Gomes. Iberê, como veremos, foi, de certa forma, uma
ponte entre os dois compositores de maior prestígio internacional que o
Brasil já teve, seu Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos131.
289
(1876-1973) na Ecole Normale de Musique em Paris, onde além das aulas
com o violoncelista catalão foi minuciosamente formado por um dos gran-
des pedagogos do violoncelo naquele momento, o assistente de Casals, Di-
ran Alexanian (1881-1954), que publicara em 1922 seu influente ‘Tratado
teórico e prático do violoncelo’. Desde sua formação até sua vida madura,
Iberê teve trânsito constante pelos palcos europeus. Em uma de suas tur-
nês europeias, Iberê, além do repertório brasileiro em grande parte a ele
dedicado, tocou também as principais peças francesas da época, incluindo
a recente e desafiadora sonata de Debussy. Sobre isso, impressiona ler as
críticas da época, que apontavam sua performance com das mais notáveis
e encantadoras que os parisienses já ouviram, com unânime destaque à
qualidade sonora do seu som de pizzicato.
290
tidas por Iberê como sua grande vocação, não lhe agradando tanto tocar
com orquestras ou para gravações, ainda que, mesmo assim, fossem alvo
de seu conhecido profissionalismo.
132
BARBOSA, Airton. Iberê Gomes Grosso - homenagem. Rio de Janeiro, 403.6201, 1980.
291
apresentarem pontos de vista distintos que complementam esse retrato, já
que, como qualquer violoncelista sabe, alunos diferentes extraem aspectos
diferentes de um mesmo professor. São eles: Alceu Reis, que já foi chefe
de naipe dos violoncelos da Orquestra Sinfônica Brasileira, da Orquestra
Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e da Orquestra Sinfô-
nica do Estado de São Paulo, além de professor da UNIRIO; Márcio Ma-
lard, que sucedeu Iberê no Quarteto da Guanabara, além de ter sido chefe
de naipe da Orquestra Sinfônica Brasileira; Watson Clis, ex-professor da
UNIRIO e da USP, além de chefe de naipe da Orquestra Sinfônica do The-
atro Municipal do Rio de Janeiro.
IBERÊ, O MÚSICO
292
Watson Clis: O Iberê era um violoncelista de personalidade muito forte e
sua forma de tocar, como pode ser comprovado por qualquer uma de suas
gravações, era absolutamente inconfundível. Ele nunca procurou imitar
a sonoridade de nenhum violoncelista ou acompanhar qualquer tendên-
cia da época. Eu mesmo, posso nunca ter conseguido, mas sempre tive o
Pierre Fournier como um modelo de som para mim. Entretanto, o Iberê
sempre procurou e sempre estimulou os alunos a procurarem o seu pró-
prio som. A maravilha da música é que nós sempre acabamos tocando do
nosso jeito e passando a nossa própria mensagem, por mais que tenhamos
referências. O Iberê foi basicamente formado pelo Casals e pelo Alexanian,
que revolucionaram a técnica do violoncelo na época. Embora o livro te-
nha sido escrito pelo Alexanian, ele foi concebido conjuntamente com o
Casals, como o Iberê nos relatava. Mesmo assim, o Iberê não se parecia
com ninguém, era único. Nós, os seus alunos da época, tínhamos um brin-
cadeira, que era dizer que se colocássemos quarenta violoncelistas atrás de
um biombo, o único que identificaríamos com certeza seria o Iberê. Do
ponto de vista técnico, ele tinha um relaxamento notável. Sua técnica de
mão esquerda era impressionante, ainda mais levando em conta sua mão-
zinha pequena. Sua afinação era ótima e sua agilidade não havia igual, era
fantástica. Quanto ao vibrato, era um capítulo a parte. Pessoalmente, não
era a abordagem que mais me agradava ou que eu tenha adotado, mas era
um vibrato bastante estreito e rápido, que, no caso dele, se fundia mara-
vilhosamente ao seu som. Esse vibrato curto era reflexo da sua enorme
preocupação com a afinação. Ele próprio, quando tocava e estudava, estava
sempre mais preocupado com a afinação e com a firmeza da nota. Sua so-
noridade, em relação à mão direita, era muito boa, um arco sempre solto,
sem pressionar demais a corda. Iberê era um violoncelista absoluto, sem
qualquer comparação com qualquer violoncelista brasileiro da época.
IBERÊ, O PROFESSOR
Alceu Reis: Como professor, o Iberê era muito exigente, com pouca pa-
ciência, mas sempre focado naquilo que podia melhorar no aluno. Tinha,
293
como falávamos, um olho clínico. Ele via sempre o nosso ponto fraco,
sempre, impressionante! Ele estudou com Diran Alexanian e tinha como
método de cabeceira o seu Tratado. Só para exemplificar um detalhe, ele
dizia: há duas grandes regras no violoncelo: a primeira, o dedo nunca sai da
corda, somente na sua exceção, que é o vibrato; a segunda, o arco nunca sai
da corda, somente na sua exceção, que é o staccato. Outro conselho cons-
tante era a importância do relaxamento e da antecipação. É difícil dizer se
havia algo particular nele como professor, porque tudo nele era novidade
para nós e, com tempo e paciência, acumulava-se muito conhecimento.
A maneira de explicar um problema é sempre, para mim, uma questão
da hora de aprender. Cada um, através de palavras diferentes, aprende a
mesma coisa se estiver interessado.
Watson Clis: A mesma preocupação que o Iberê tinha com a própria téc-
nica de mão esquerda ele passava para os alunos, que foi algo que sempre
busquei muito nele. Era implacável com a afinação e com o relaxamento
dos dedos. Ele utilizava as Suites de Bach, o concerto em Si bemol Maior
de Boccherini e os concertos de Haydn com esse foco. A mesma soltura de-
veria sempre ser observada pelo arco também. Ele trouxe essa concepção
de construir uma classe com o Alexanian, formando uma grande escola de
294
violoncelistas. O próprio Alexanian, ele dizia, não gostava muito de tocar,
por conta do nervosismo no palco, e preferia estudar, pesquisar e dar aulas,
embora tocasse muito bem. Mas, além disso, o Iberê era um homem de
um coração muito bom, sempre incentivando e encorajando os alunos.
Pelo violoncelista que era, era até um homem simples demais, totalmen-
te acessível para todos que o procuravam. O Thomazzo Babini mandava
todos seus alunos avançados para ele, incluindo seu filho e seu enteado,
que aprenderam muito com o Iberê. Um de seus melhores amigos era o
Radamés Gnatalli, o que representa a importância muito grande que ele
dava para os compositores da época, sempre nos fazendo estudar as novas
peças que estavam sendo escritas.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mario. Crítica no Diário de São Paulo. In: BARBOSA, Valdinha
de Melo. Iberê Gomes Grosso. Rio de Janeiro: Edição Sindicato dos Músicos
Profissionais do Estado do Rio de Janeiro, 2005
295
ENTREVISTA COM ANTONIO DEL CLARO
Entrevista concedida a William Teixeira em maio de 2020
296
fônica do Theatro Municipal de São Paulo. O que o senhor poderia dizer
sobre como aconteceu esse início e sobre seu pai?
135
João Gehr foi um dos primeiros professores de violino e violoncelo em Ponta Grossa,
tendo se formado na Escola de Música do Rio de Janeiro. Posteriormente, integrou o
naipe de violoncelos da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal do Paraná. Cf:
VENDRAMI, 2010, p. 57.
297
concepção equivocada pode no futuro gerar todas aquelas ‘ites’: tendinite,
bursite, etc. Mas eu sempre fui muito policiado e progredi lentamente. Só
depois que eu comecei a frequentar o grupo escolar regular; lá, quando
eu falava que tocava violoncelo, achavam que eu era um extraterrestre ou
coisa pior, algo que hoje chamariam de bullying. Em termos de repertório,
ainda era muito difícil conseguir material. No início, tocava muito alguns
álbuns de coletâneas de pequenas peças, temas de óperas e sinfonias, até
que abriu uma loja de música próxima à Praça João Mendes, a Casa Ama-
deus, que começou a trazer muito repertório para violoncelo, isso quando
eu já tinha uns 12 anos. Foi ali que comecei com as sonatas de Marcello,
Vivaldi, concertos de Vivaldi também, avançando progressivamente. A
cada 15 dias ou a cada mês íamos lá e comprávamos umas duas ou três
partituras e assim fui montando o meu repertório. Depois passei a intro-
duzir o polegar e pude começar a aprender peças mais consistentes como
o concerto em Ré Maior de Haydn, o Dó menor de Vivaldi. Nesse ponto,
quando eu tinha de 12 para 13 anos, meu pai, que já era efetivo no Theatro
Municipal, quis que eu começasse a ter alguma experiência com orquestra.
Como não havia orquestra jovem naquela época ou qualquer tipo de festi-
val, ele conseguiu com os quatro Maestros da orquestra – Maestro Souza
Lima, Maestro Armando Belardi136, Maestro Eduardo de Guarnieri (pai
do ator Gianfrancesco Guarnieri) e o Camargo Guarnieri (que não tinha
nenhum parentesco com o Eduardo) – que eu tocasse lá na última estante.
Para mim foi uma grande oportunidade e eu estudava todas as partituras
com meu pai em casa. A primeira obra que toquei com a orquestra, qual
foi? A sétima sinfonia de Beethoven! Com todas as dificuldades, foi ali que
comecei a aprender todas as questões de orquestra, contar pausas e tudo
mais. Naquele ponto meu tio não era mais chefe de naipe da orquestra,
136
Conhecido por ter sido um dos fundadores da Orquestra Sinfônica do Theatro
Municipal de São Paulo e do Coro Lírico do Theatro, Armando Belardi originalmente
era violoncelista, tendo estudado violoncelo com Guido Rocchi, italiano radicado em
São Paulo, e depois na Itália, na Academia Real Santa Cecilia, em Roma, e no Liceo Musical
Gioacchino Rossini, em Pesaro. Cf: BELARDI, 1986.
298
pois já havia sido convidado a integrar o Quarteto de Cordas da Cidade de
São Paulo. Era interessante a forte influência italiana na orquestra naquele
tempo. Pelo menos 50% da orquestra era de italianos, alguns vindos de
companhias de óperas e outros imigrantes de outra natureza. Até que hou-
ve um regente chamado Bernardo Federosvki, que tinha um programa na
antiga TV Tupi, que me viu tocando e disse que havia vaga para tocar com
a orquestra do programa. Foi uma experiência um pouco assustadora para
mim, que tinha meus 13 anos e era muito inocente; de repente estava em
um ambiente profissional, cheio de pessoas mais velhas. Meu pai tinha que
ir junto e eu precisava de uma autorização do Juizado de Menores para
trabalhar e, se meu pai não fosse, eu precisava de um tutor responsável por
mim no grupo. Esse foi meu primeiro trabalho profissional e a partir dali
comecei a desenvolver minha carreira com orquestras.
WT: Em algum desses momentos o senhor teve aulas com seu tio, Ca-
lixto Corazza?
299
1965, o Schnorrenberg havia fundado o Festival de Música de Curitiba
(que se tornaria a Oficina de Música) e, em 1966, após ter me conhecido
na orquestra, me convidou para ir ao Festival para tocar música de câ-
mara com ele e para conhecer um grande nome do violoncelo de quem
se falava muito, o Jean-Jacques Pagnot.
WT: E foi nesse momento que o senhor passaria a ter aulas com ele?
300
veterano, como o Capella, que era o spalla, vinha até mim me aconselhar
e eu podia escrever, porque tudo o que eles falavam funcionava. Naquela
época, a formação no fosso era: primeiros violinos, depois os violoncelos,
depois as madeiras, os contrabaixos ficavam atrás dos violoncelos, e do
outro lado ficavam as violas e os segundos violinos e, atrás deles, os metais
e a percussão. Algo muito bom era que as primeiras estantes ficavam em
cima de um pódio, para amplificar um pouco o som. O curioso foi uma vez
que, como as madeiras ficavam do meu lado, eu vi, durante a La Traviata, o
primeiro clarinetista, Leonardo Righi, que tinha o som mais maravilhoso
de clarineta que já ouvi na vida e que até hoje me lembro, tocando a ópe-
ra sem nenhuma partitura na estante; quando fui ver, ele estava sentado
em cima da partitura! Todos os italianos que tocavam lá sabiam todas as
grandes óperas italianas literalmente de cor, incluindo o enredo. Havia ali
um grande respaldo cultural na maneira de se tocar ópera, que foi minha
pós-graduação em orquestra.
WT: Como aconteceu essa sua transição internacional até se mudar defi-
nitivamente para a Europa?
301
ADC: Em 1973, eu completei 5 anos de orquestra e, pela lei do funcionalis-
mo público da época, eu poderia tirar 1 ano de licença-prêmio, renovável
por mais 1 ano. Ao mesmo tempo eu ganhei uma bolsa de estudos da Se-
cretaria de Cultura de São Paulo, concedida por uma comissão que tinha o
Souza Lima como presidente, também a Dinorá de Carvalho, que inclusive
tem uma bela Suite para violoncelo, estreada pelo Iberê Gomes Grosso e da
qual gravei o terceiro movimento, seguindo algumas sugestões do próprio
Iberê. Essa comissão também tinha o Sérgio de Vasconcellos Corrêa e o
Theodoro Nogueira e foi com essa bolsa que pude ir para a França, estu-
dando primeiramente com o Robert Salles, um camerista incrível, mem-
bro do quarteto de cordas Pascal. Com ele tive aulas por 1 ano e depois
fui até Genebra para conhecer o Pierre Fournier. Me apresentei com uma
recomendação do Souza Lima, que era amigo dele e que o recebia em sua
casa em São Paulo constantemente. O Fournier gostava muito do Brasil e
vinha bastante para cá, não apenas para São Paulo, mas também para o Rio
de Janeiro, Belém, Porto Alegre, onde era recebido pelo Pagnot. Em mi-
nha primeira aula eu estava muito nervoso, mas felizmente ele me aceitou
para que eu continuasse a ter aulas com ele.
WT: Tendo sido aceito, por quanto tempo o senhor teve aulas com ele?
ADC: Tive aulas com ele por aproximadamente 5 anos e, por essa razão,
tive que pedir minha exoneração do Theatro Municipal, o que não foi
nada bem aceito pelos meus amigos e colegas no Brasil, já que eu poderia
me aposentar com 30 anos de trabalho. Entretanto, esse período com o
Fournier foi incrível, pude trabalhar todo o grande repertório do violon-
celo, incluindo concertos, sonatas, todas as Suítes de Bach. Me lembro es-
pecialmente do grande trabalho que fizemos na Sonata para Arpeggione,
de Schubert, que com a quarta Suite de Bach, o concerto em Ré Maior de
Haydn e o Concerto Tríplice de Beethoven, são, na minha opinião, as mais
difíceis peças do repertório, pois as tocamos como que pisando em cascas
de banana, prontos a sermos derrubados a qualquer momento. Quando
302
eu disse que gostaria de tocar essa peça para ele, ele me disse para estudar
muito bem antes de tocá-la para ele, pois era uma peça muito difícil, o
que me deixou ainda mais nervoso. E assim prosseguíamos lentamente,
trecho a trecho, estudando o mês todo somente esta peça de maneira mui-
to minuciosa. Ele se atentava mais para a parte musical, porém chegou a
apontar questões técnicas para mim, como a antecipação da mão esquerda
e o controle de arco, especialmente o arco lento, porém tudo de maneira
bastante relacionada do que eu já havia tido com o Pagnot. Nesse período
ele tinha uma classe incrível. Me lembro do Rocco Filippini, por exemplo,
que estudou com o Fournier por 9 anos e que tinha uma precisão incrível.
Era impressionante ouvir o som do Founier de perto e ele valorizava me-
nos o repertório virtuosístico e mais peças com alguma densidade, mesmo
as curtas, como Aprés un Rêve do Fauré, o Rondó de Weber, o Intermezzo da
ópera Goyescas de Granados, que eram peças que ele dizia que demonstra-
vam o refinamento do músico. Há muitas pessoas que tocam bem, porém
são poucas as capazes de emocionar, que é a finalidade da música. Obvia-
mente a parte mecânica é importante, ter uma base técnica sólida, porém
muitas vezes vejo que os violoncelistas param por aí. Temos uma literatura
técnica excelente, com os 40 estudos de Popper, os estudos de Grutzma-
cher (que o Navarra passava para seus alunos moldarem a mão esquerda),
porém são estudos que devem ser trabalhados de maneira homeopática,
focando em pequenos trechos, sempre muito lento e sem vibrato, para
podermos observar as imperfeições da mão esquerda e da mão direita. In-
felizmente, muitos dedicam tempo a esses fundamento e não dão o próxi-
mo passo para uma construção musical. Depois desses anos lá, a situação
começou a ficar um pouco difícil para mim e foi quando decidi voltar para
o Brasil, assumindo a cadeira de Primeiro Violoncelo na Orquestra Sin-
fônica da USP, que foi onde me aproximei mais do Camargo Guarnieri.
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ADC: Bom, quando eu conheci o Guarnieri ela ainda só tinha duas sonatas
para violoncelo e piano. A primeira é de 1931 e a segunda de 1955. Há um
grande intervalo para a terceira, que é de 1977. Além disso, ele já tinha
duas Cantilenas, o Ponteio e dança e o Choro, para violoncelo e orquestra. O
primeiro trabalho que fiz com ele foi no Choro, que o Aldo Parisot havia
encomendado e gravado com algumas modificações feitas à revelia do
Guarnieri. E eu entendo as razões que levaram o Aldo a fazer isso, pois
havia alguns trechos inexequíveis, como acordes de quatro notas na
região do segundo harmônico de Lá. Algum tempo depois da gravação, o
Guarnieri encontrou o Aldo e ele falou que havia gravado a peça e lhe deu
o disco, gravado em Viena, que tinha no outro lado o Segundo concerto de
Villa-Lobos, que ele também havia encomendado. O que eu sei é que, após
ouvir o disco, o Guarnieri ficou muito descontente, pois achava que não era
aquilo que tinha escrito, e fez várias anotações nas partes modificadas pelo
Aldo, coisas de metrônomo também que o Aldo tinha tocado um pouco
mais rápido, especialmente no último movimento, de modo que em alguns
momentos as articulações ficavam muito confusas, pois passavam do limite
de serem distinguíveis, o que se agrava ainda mais em uma gravação. Então
o Guarnieri me fez uma cópia para que eu pudesse examinar a peça a partir
do original dele, sem as interferências do Parisot. Essa é a cópia que tenho
até hoje, com diversas modificações que trabalhei junto com ele, inclusive
com uma assinatura dele na última página dizendo: “corrigida”. O que
fizemos foi, por exemplo, pegar acordes inexequíveis e buscar inversões
que mantivessem todas as notas, mas que fossem tocáveis, ainda assim
mantendo o gesto que ele idealizou. Isso, na verdade, na história da música,
sempre foi comum. Brahms sempre trabalhava junto ao Joachim em suas
peças para violino, tanto que, se alguém toca o concerto para violino de
Brahms sem a cadência do Joachim, não parece o concerto de Brahms.
Essa versão retrabalhada nós estreamos em Porto Alegre, em um concerto
comemorativo aos seus 70 anos de idade, em 1977. Desde então toquei
ela diversas vezes, com a Sinfônica de Campinas, a Filarmônica de Minas
304
Gerais, e muitos outros lugares. Infelizmente, nem sempre os regentes
foram receptivos com peças novas de compositores brasileiros. Creio que
nós, como intérpretes brasileiros, temos que ter esse tipo de idealismo de
fazer a divulgação da nossa música. Veja, se um alemão vem tocar aqui
ele vai tocar Beethoven; se vem um italiano, Vivaldi; se vem um francês,
Debussy ou Ravel; os russos, Tchaikovsky ou Rachmaninoff; enfim, todos
vão representar sua cultura. Eu fico muito bravo quando um brasileiro que
mora fora vem tocar aqui e toca o mesmo repertório que os estrangeiros
e coloca apenas uma ‘pecinha’ brasileira, lida na última hora. Há alguns
dias eu estava no trânsito ouvindo a Rádio Cultura e comecei a ouvir uma
peça brilhante, que na hora soube que era Camargo Guarnieri. Quando
a peça terminou, anunciou que era o Nelson Freire tocando a Toccata
do Guarnieri. É um outro tipo de músico, que com toda sua bagagem e
renome mantém essas grandes peças no seu repertório. Infelizmente,
muitos regentes não se interessam por esse repertório brasileiro, então, na
verdade, eram poucas as situações em que havia abertura para essas peças.
Depois desse trabalho com o Choro, o Guarnieri veio até mim di-
zendo que gostaria de trabalhar sua segunda sonata para violoncelo e pia-
no, que também havia sido tocada apenas uma ou duas vezes. Nesse caso,
eu tive que mexer bastante no terceiro movimento, que já começava com
uma subida de cordas duplas em quartas, intervalo de pianista, péssimo
para o violoncelo. Inclusive, por isso, sempre falei para os alunos, ao es-
tudarem um arpejo – Dó, Mi, Sol, Dó – conferirem o Sol com Dó; se esse
intervalo de quarta estiver bom, o resto estará bom também, até o agudo.
Essas quartas em cordas duplas nós modificamos, semelhantemente, bus-
cando inversões. No primeiro movimento, houve apenas um ou dois tre-
chos que tivemos que retrabalhar, como um trecho que subia rapidamente
do Dó grave até o superagudo, que não estava soando bem, e com alguma
inversão conseguimos inserir um harmônico que já ajudava com uma refe-
rência para uma subida tão brusca quanto aquela. De qualquer modo, eram
apenas pequenos detalhes. Infelizmente a segunda e a terceira sonata e o
Choro até hoje não foram editados com essas alterações.
305
Quando ele decidiu escrever a terceira sonata para mim, foi um tra-
balho semelhante. Ele escreveu a peça toda, sem me consultar em nada, e
depois de terminada nós começamos a trabalhar juntos, também com essas
pequenas alterações. Trabalhar com o Camargo Guarniei era um aprendi-
zado fantástico, pois era uma pessoa de uma cultura musical incomparável.
WT: O Guarnieri foi o compositor com quem o senhor teve essa relação
mais íntima ou houve um trabalho semelhante em suas colaborações com
o Claúdio Santoro e o Almeida Prado?
306
WT: Sobre o seu acidente automobilístico, como foi o processo de
recuperação para voltar a tocar violoncelo?
WT: Sobre seu trabalho como professor da UNICAMP, sempre foi muito
lendário entre seus alunos seu método de trabalho que incluía o estudo
de todos os 113 estudos de Dotzauer, todos os estudos de Duport, todos
os exercícios de Feulliard e todos os estudos de Popper. Como o senhor
chegou à sua abordagem pedagógica?
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ADC: Minha abordagem contou com um pouco daquilo que eu trazia
do Pagnot, depois do Fournier e minha experiência na Europa com o
Aldulesco, Mainardi, Filippini, e todas essas influências. Quando eu voltei
ao Brasil, um pouco antes de assumir a Orquestra da USP, eu tive muitos
alunos particulares, como o Júlio Cerezo, Vana Bock, Adriana Holtz, Malu
Cameron, o Sérgio Freitas, enfim, todos esses meninos para quem eu dei
aula antes de entrar na UNICAMP. Lá também pude formar muita gente,
como praticamente todo o naipe da Sinfônica de Campinas, que passou
pela Sala 11. Além disso houve muitos que foram para outros lugares,
como o André Micheletti, o Mauro Brucoli, o Alberto Kanji, tendo um
fluxo de alunos bem intenso. Então minha abordagem foi se formado
com essa experiência também, ajudando a direcionar melhor os alunos.
Esse trabalho demora alguns anos para render frutos, até uma geração se
formar. Há alunos que reconhecem seu trabalho e outros viram as costas
sem nem dizer “até logo”.
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com quem pude trabalhar e que também me homenagearam dedicando
várias peças para mim. Mesmo antes de ir para Europa eu já tinha esse
hábito de ter pelo menos duas ou três peças brasileiras no meu programa
ao lado de Bach, Beethoven e todo o restante do repertório standard.
ADC: O que percebo hoje é uma ansiedade maior do que via nos alunos
do passado, que os impedem de conhecer um pouco da história e entender
o percurso que levou as coisas a serem como são. Infelizmente muitos
alunos não sabem mais quem foram Fournier, Janigro, Tortelier, Navarra,
e se referenciam em violoncelistas da internet que mais privilegiam as
expressões faciais do que a música, uma expressão sem espontaneidade
alguma, que cria um personagem totalmente efêmero. Infelizmente,
vivemos um momento político muito difícil e, como bem sabemos, a
cultura em nosso país é sempre a primeira a ser negativamente impactada.
Mesmo assim, precisamos nos focar naquilo que temos que fazer para
crescer como músicos. Não adiante ir estudar com um celular do lado,
porque esse estudo não vai render nada. Eu mesmo, quando vou estudar,
deixo o aparelho em um outro cômodo. Também precisamos abrir nossas
perspectivas para outros locais. Até pouco tempo atrás, parecia que se
você não estivesse nesse meio em São Paulo você era um “João Ninguém”.
Também vejo uma pressa para se ir ‘estudar fora’, mas as pessoas não se
preocupam com quem elas irão estudar, achando que apenas em sair do
Brasil haverá um passe de mágica. Infelizmente já vi muitos talentos que
saíram do Brasil voltarem totalmente castrados. O importante é ter uma
visão, um objetivo ao qual se almeja para sua vida, escolhendo o melhor
caminho para aquele objetivo. Muitas vezes vale mais a pena investir em
um lugar onde, a princípio, a dificuldade de se realizar o trabalho seja
maior, mas onde será possível se construir um legado. Há um ditado que
309
sempre me orientou nisso: “é melhor ser cabeça de minhoca, do que bunda
de baleia”. O trabalho é muito difícil, especialmente quando se está dentro
de uma universidade, com uma estrutura burocrática tão pesada onde se
gasta muito tempo para pouco resultado. Precisamos saber dividir nosso
tempo, saber interagir nos contextos sociais em que estamos, sem querer
cair de cabeça em tudo, mas dedicando-nos ao que realmente interessa no
nosso trabalho. O jovem, que hoje está estudando, precisa saber que todos
esses aspectos fazem parte do trabalho. Muitas vezes um aluno entra no
curso com pouca experiência no instrumento e, diferentemente de outros
cursos, não vai ter um estágio no mercado de trabalho para aprender a se
comportar ali. Mas temos que ter essa flexibilidade em dar oportunidade
para alunos que não tiveram chance de ter uma formação básica, como na
UNICAMP já aceitei vários alunos que outros não achavam que deveriam
estar em uma universidade, em um curso superior. Os estudantes precisam
entender que um curso de música contém um conjunto de disciplinas e
elementos teóricos que fazem parte da construção do músico. Quando
se pergunta para um aluno de Medicina qual curso ele faz, ele não irá
responder “Ortopedia” ou “Cardiologia”; ele vai responder “Medicina”.
O violoncelista também precisa entender que tem que ter sua formação,
em primeiro lugar, como um músico. É necessário se estudar harmonia,
análise, tudo isso que forma um músico completo. Caso contrário, o que
acontece é que os violoncelistas passam a querer basear sua interpretação
no vídeo x, y ou z que viram na internet e não porque analisaram a peça e
construíram uma ideia a partir dela. O problema é que cada interpretação
traz um contexto consigo e copiá-la ignora tudo isso.
WT: Nesse ponto, parece que o senhor enxerga uma certa influência
negativa da internet no processo de formação do músico?
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Quando o jovem entra em uma orquestra, ao invés de procurar comprar
um bom arco para investir em sua carreira, sua pressa é para comprar
o novo modelo de celular. Precisamos ter prioridades e saber que o que
vai ajudar a construir nossa carreira; nesse sentido, o que vai contribuir
é ter um bom instrumento, um bom arco, uma boa edição da peça que
se está estudando. Essa oferta fácil de partituras na internet torna toda
a relação com a música mais superficial. Às vezes alguns alunos me
falam que determinada peça “é fácil” e eu penso que estou há 60 anos a
estudando e ainda não consegui entende-la tão bem. Não existe música
fácil. Me lembro de uma ocasião, quando estava dando aulas no Festival
de Campos do Jordão e apresentei o Estudo 7 do Duport a um aluno.
Depois do final de semana ele veio até mim e disse: “Professor, já aprendi
aquele golpe de arco”. Quando ele tocou, obviamente nada aconteceu.
Eu lhe perguntei: “quanto tempo você estudou isso?”. Ele disse: “sábado e
domingo”. Eu lhe repliquei: “eu estudo isso há 40 anos e você vem me falar
que em um final de semana aprendeu isso?”. A paciência e a inteligência
são elementos essenciais do estudo. Quando uma passagem ascendente é
difícil, toque-a descendente. Na escala, a volta sempre é mais difícil, pois
estamos contra a gravidade. Se é ligado, estude separado; se é separado,
estude ligado. Há uma série de estratégias que aprendemos para ter
uma efetividade melhor em nosso estudo e precisamos cultivar essa
disciplina, essa visão de planejamento. E isso inclui também conhecer
todo o contexto musical de uma obra. Se é um concerto, conhecer toda
a orquestração; se é uma sonata, conhecer bem a parte do piano. E esse
é o processo que a internet não ensina, pois ela já mostra o resultado
acabado. Sentar várias horas com uma partitura para analisá-la não
rende boas selfies. No entanto, o que mais existe é gente dizendo que está
acabando de começar a estudar uma peça (o que é mentira) e já publica
vídeo na internet. Além disso, a internet possui apenas os dias bons do
violoncelista e quando se toca, na vida real, sabemos que há dias bons e
dias ruins, e aos poucos aprendemos a racionalizar isso.
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REFERÊNCIAS
ANTONIO del Claro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.
itaucultural.org.br/pessoa19303/antonio-del-claro. Acesso em: 09 de Jun. 2020.
BELARDI, Armando. Vocação e arte: memórias de uma vida para a música. São
Paulo: Casa Manon, 1986.
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LISTA DE AUTORES
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Professor
Colaborador do PPGMUS da USP. É Doutor pela UNICAMP e, com
bolsa da CAPES, realizou em colaboração com o Prof. Matias de Oliveira
Pinto sua pesquisa Pós-Doutoral na Westfaelisch Wilhems-Univesitaet.
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USP. Já atuou como solista frente à Orquestra Sinfônica da UNICAMP,
Orquestra de Câmara da USP, USP-Filarmônica, entre outras. Foi aluno
dos professores Francisco Paes e Eduardo Bello até se tornar discípulo
de André Micheletti. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
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Este livro foi editorado com as fontes Crimson Text e Roboto.
Publicado on-line em: https://repositorio.ufms.br
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