Psicologia e A Pandemia de Covid - Finalizado-1
Psicologia e A Pandemia de Covid - Finalizado-1
Psicologia e A Pandemia de Covid - Finalizado-1
2022 Copyright by João Paulo Pereira Barros, Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro, Natá-
lia Santos Marques, Camilla Araújo Lopes Vieira, Aluísio Ferreira de Lima (orgs.)
Impresso no Brasil/Printed in Brasil
Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional
Reitora
Izabelle Mont`Alverne Napoleão Albuquerque
Vice-Reitor
Francisco Carvalho de Arruda Coelho
Conselho Editorial
Maria Socorro de Araújo Dias (Presidente)
Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque
Alexandra Maria de Castro e Santos Araújo
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Carlos Augusto Pereira dos Santos
Claudia Goulart de Abreu
Eneas Rei Leite
Francisco Helder Almeida Rodrigues
Israel Rocha Brandão
Maria Adelane Monteiro da Silva
Maria Amélia Carneiro Bezerra
Maria José Araújo Souza
Maria Somália Sales Viana
Maristela Inês Osawa Vasconcelos
Raquel Oliveira dos Santos Fontinele
Simone Ferreira Diniz
Renata Albuquerque Lima
Tito Barros Leal de Ponte Medeiros
Virginia Célia Cavalcanti de Holanda
Catalogação
Leolgh Lima da Silva – CRB3/967
Revisão de texto
Karina Matos
Editoração e Designer
Henrique Jhony Pinto Ferreira
Telefone:(88) 99635-2729
Foto da capa
Thamila Cristina dos Santos da Silva.
242p.
CDD 616.2
Sumário
Parte 01 Educação...........................................................................19
01 A pandemia que amplia as desigualdades: obstáculos da educação pública
diante do ensino remoto................................................................20
02 Contextos desiguais na escolarização em tempos de pandemia..............36
03 Pistas (inventivas) para desaprender em tempos de pandemias..............52
Parte 02 Saúde.................................................................................66
04 Tecendo laços em meio à pandemia de covid-19: relato de experiência sobre
um grupo de apoio psicológico a trabalhadores de serviços essenciais..........67
05 O SUS em tempos de pandemia: considerações sobre erospolítica..........83
06 Tessituras da saúde mental: modulação dos sofrimentos e governo da vida no
Brasil pandêmico........................................................................92
07 O consumo de drogas na pandemia de covid-19...............................101
Parte 04 Sociedade.........................................................................153
11 Precarização desigual da vida no contexto pandêmico: da necropolítica às mo-
dulações da clínica.....................................................................154
12 Vulnerabilidades em contexto de pandemia: o racismo e a fome como efeitos
de segregação...........................................................................173
4
13 Perda, morte e luto na pandemia de covid- 19................................187
14 O ornitorrinco em meio à Pandemia: notas sobre covid-19, crises e gestão
de mortes................................................................................200
15 Metodologias ativas e participativas no enfrentamento das vulnerabilidades
e desigualdades sociais com populações indígenas................................217
Os autores e as autoras...................................................................232
5
Psicologia e produção de conhecimento acerca da pan-
demia de covid-19 no Brasil
João Paulo Pereira Barros, Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro, Natália
Santos Marques, Camilla Araújo Lopes Vieira e Aluísio Ferreira de Lima
6
pós-graduação na área da psicologia. Seus corpos discente, docente e técnico-
-administrativo seguem, crítica e propositivamente, produzindo conhecimento
socialmente referenciado em meio às históricas desigualdades regionais quanto
à distribuição de recursos e oportunidades (BARROS et al., 2019).
7
populares) e negou-se o valor das vidas de pessoas pobres e negras, pessoas
idosas, mulheres, crianças, pessoas com deficiência e indígenas. Foi interdita-
do ou desqualificado o acesso a dispositivos que protegessem essas existências,
objetificadas e instrumentalizadas como supérfluas. São essas, afinal, as vidas
não passíveis de luto público, transformadas, quando muito, em números, pois
houve até a tentativa de ocultar os dados quanto às mortes por covid-19. As po-
líticas de morte no Brasil, pois, seguem operando por meio do desaparecimento
e perpetuam matrizes coloniais que induzem modos de subjetivação atravessa-
dos pela indiferença, pelo ultraindividualismo e pela manutenção de privilégios
históricos.
8
ções, a gestão da pandemia no Brasil buscou trivializar a perversa racionalidade
do capital ao naturalizar tanto a doença quanto a morte.
Assim, este livro traz textos que buscam se somar a outras produções
que, a partir da psicologia, buscaram pautar as discussões sobre a pandemia de
covid-19 no Brasil (p. ex. SPINK, 2020; NEVES; FERREIRA, 2020; RENTE;
MERHY, 2020; LEITE, 2020; COSTA et al., 2020; MOREIRA et al., 2020;
SANTOS; PEDRO, 2020; DIMENSTEIN et al., 2020; GONZAGA; CUNHA,
2020; BIANCO; COSTA-MOURA, 2020). Com base nos debates gerados no
curso, esta obra é formada por 15 capítulos, que estão organizados em quatro
seções temáticas, a saber: (a) educação; (b) saúde; (c) ética e ciência; e (d) socie-
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dade. Cabe frisar a diversidade desse conjunto de textos, que vão desde resulta-
dos de pesquisas a ensaios teóricos. Isso se deve ao fato de que às autoras e aos
autores foi facultada a possibilidade de tratar do assunto central da coletânea de
maneira coerente com suas perspectivas temáticas e teórico-metodológicas no
âmbito dos seus respectivos Programas.
Luciana Lobo Miranda,Tadeu Lucas de Lavor Filho, José Alves de Souza Filho,
Lara Thayse de Lima Gonçalves, Mayara Ruth Nishiyama Soares, Lorrana Caliope Castelo
Branco Mourão, Paulo Francis Jorge da Silva, Antonio Marlon Coutinho Barros e Luisa
Carolina Holanda Pereira, no texto Contextos desiguais na escolarização
em tempos de pandemia, articulam um conjunto de discussões/problema-
tizações acerca dos processos de vulnerabilização dos atores escolares, fruto dos
contextos de desigualdades sociais que atravessam a escolarização no âmbito das
10
escolas públicas, em tempos de isolamento social decorrente da pandemia de
covid-19. Assim, problematizam a desassistência do Estado no campo das polí-
ticas públicas educacionais e as precarizações de acesso às tecnologias no ensino
remoto emergencial.
Por sua vez, a seção temática “Saúde” é formada por quatro capítu-
los. A referida seção se inicia com o texto Tecendo laços em meio à pan-
demia de covid-19: relato de experiência sobre um grupo de apoio
psicológico a trabalhadores de serviços essenciais, de Francisco Pablo
Huascar Aragão Pinheiro, Nayana Rios Nunes da Silva, Natacha Oliveira Júlio, Quitéria
Alves Melo, Rafaela Sousa Alves, Cristina Silmara Duarte Rodrigues, Laiza Cristina Ca-
valcante Menezes, Emanuel MeirelesVieira e Louanne Carneiro de Oliveira. A experiên-
cia relatada surgiu como resposta a uma demanda institucional de um serviço
público de água e esgoto que via como imperativo o cuidado com a saúde mental
de seus trabalhadores durante a pandemia de covid-19. Construiu-se, assim,
um ambiente seguro de identificação, compreensão e partilha.Vários problemas
e dificuldades trazidos aos encontros pelos participantes eram preexistentes e
foram agravados pela pandemia. Entre os resultados da intervenção estavam o
desenvolvimento da autonomia e o aprofundamento dos vínculos entre os tra-
11
balhadores.
12
consumo doméstico privado. É debatido, então, como tal deslocamento produ-
ziu alterações nas formas dos coletivos humanos se relacionarem com as drogas.
Por sua vez, Rita Helena Sousa Ferreira Gomes, em Pensando a ciência
em tempos de pandemia, realiza um ensaio crítico sobre a ciência. No de-
correr do texto, contrasta a relevância da ciência hodiernamente com o modo
como ela é ensinada, inclusive para os(as) cientistas. Logo após, realiza apon-
13
tamentos acerca da relação da ciência com outras atividades e áreas do saber,
para compreender possíveis relações entre negacionismo científico, ascensão da
extrema-direita e a forma como temos produzido o conhecimento científico e
tecnológico. Por fim, defende o reconhecimento da ciência como um produto
coletivo e complexo que urge pela assunção formal e constante de sua respon-
sabilidade ética, política e social.
14
efeitos da segregação e das vulnerabilidades sociais, quais sejam: o racismo e a
fome. Sob uma perspectiva psicanalítica, discute-se o potencial traumático en-
volvido nos sofrimentos que se atualizam na ruptura que a pandemia propiciou.
15
presentes no contexto dos povos indígenas. Suas reflexões são orientadas pelas
seguintes questões: como caminhar junto com essas populações para a concreti-
zação dos direitos indígenas? Qual o papel da Universidade e da Psicologia nesse
processo? Quais as possibilidades de aproximações entre a Universidade Federal
do Ceará, neste momento de pandemia mundial de covid-19, e as populações
originárias?
Referências
16
S.; MARTINS, K. P. H. Problemáticas sociais e suas relações com a pesquisa e a
extensão: contribuições do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC.
Estudos de Psicologia, Natal, v. 24, p. 147-158, 2019.
17
MOREIRA, L. E.; ALVES, J. S.; OLIVEIRA, R. G.; NATIVIDADE, C. Mulheres
em tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra.
Psicologia & Sociedade, v. 32, e020014, 2020. Disponível em: https://doi.or-
g/10.1590/1807-0310/2020v32240246. Acesso em: 23 jun. 2021.
18
Parte 1
Educação
19
01
Francisca Denise Silva Vasconcelos, Bárbara Ellen Viana Sales, Jorge Samuel de
Sousa Teixeira e Luana Paiva da Silva
20
acompanhamento das aulas são alguns obstáculos enfrentados pelos estudantes
brasileiros, em especial, aqueles que compõem a educação pública.
Metodologia
Nosso estudo tem ênfase na Análise de Conteúdo de publicações es-
critas e divulgadas por diferentes sites nacionais acerca da educação da juventu-
de nordestina na escola pública no período de pandemia de covid-19. Analisa-
mos um conjunto de matérias jornalísticas publicadas entre 1º de março e 30 de
setembro de 2020, a partir de uma pesquisa com os descritores “Pandemia”, “Es-
cola Pública” e “Ensino Médio” no Google Notícias. Esse intervalo temporal foi
escolhido por compreender desde o início do confinamento, com o fechamento
das escolas, até o retorno gradativo das atividades escolares e as dificuldades que
cercam esse retorno até o momento.
21
pública nesse período de pandemia, considerando apenas as matérias que trou-
xessem dados ou questões, no todo ou em parte, acerca do contexto nordestino.
Como critério de exclusão consideramos a indisponibilidade do artigo na ínte-
gra e de forma gratuita, além do fato de não estarem voltados para a temática
proposta. Assim, fazem parte do corpus deste estudo seis textos que abordam
diferentes questões acerca da relação entre juventude, escola pública e desigual-
dades, aspectos que nos levaram a trazer considerações acerca dos obstáculos do
ensino remoto (DIÁRIO DO NORDESTE, 2020a, 2020b, 2020c, 2020d; G1,
2020a, 2020b). As etapas metodológicas percorridas podem ser visualizadas
na Figura 1, contendo também os aspectos quantitativos obtidos em cada fase.
Resultados e Discussão
A noção de tema, característica da Análise de Conteúdo, possibilita
uma descoberta dos núcleos do sentido que compõem o processo de comunica-
ção, em que sua presença e nível de frequência podem significar algo relevante
ao objetivo analítico escolhido (BARDIN, 1977), neste caso: compreender os
obstáculos da educação remota e seus impactos sobre os estudantes de escolas
públicas. Desse modo, por meio da análise e interpretação dos conteúdos te-
22
máticos foi possível formar as seguintes categorias: as dificuldades referentes à
estrutura; os obstáculos da preparação para o Enem; e o impacto das vulnerabi-
lidades sociais que atravessam essa juventude.
23
tigos que consultamos trazem diferentes dados, a partir de pesquisas realizadas
em diferentes regiões e anos. Desse modo, é importante considerar que seria
possível contabilizar um lar como tendo acesso à internet, mas com base em
um celular que fica sempre fora de casa por conta do trabalho de um membro
da família, ou mesmo que se tenha um computador em casa, mas que este seja
compartilhado com vários irmãos, o que faz com que seja difícil quantificar essa
questão do acesso.
24
Estamos vivendo tempos difíceis com a pandemia, sendo necessário desenvol-
ver, urgentemente, políticas públicas de igualdade educacional, pensando em
ações voltadas para o combate às desigualdades vivenciadas por esses sujeitos
(BARRETO; ROCHA, 2020).
25
(Enem). Inicialmente prevista para ocorrer entre os dias 1º e 8 de novembro de
2020, o adiamento da prova foi tema recorrente na mídia nacional, sobretudo
durante o período de pandemia, no qual os secundaristas tiveram que abrir mão
do ensino presencial e embarcar em uma nova modalidade.
Diante desse cenário, as principais queixas que surgiam por parte dos
alunos, dentro das matérias analisadas para a construção deste capítulo, diziam
respeito ao conteúdo insuficiente e às dificuldades de captação das matérias mi-
nistradas, visto que, partindo de um cenário nacional onde o abismo social e
econômico é visível, os obstáculos relacionados à instrumentalidade dos alunos
oriundos de classes populares acabavam por afetar seus desempenhos escolares.
Nesse sentido, uma diversidade de fatores está inclusa dentro desse emaranhado
de empecilhos que vão desde a relação com a família e professores até a manu-
tenção da saúde mental e da socialização entre pares.
26
ausência de instrumentos, tanto emotivos e afetivos quanto materiais e estrutu-
rais, considerando ainda os inconvenientes arquitetônicos, tais como a falta de
um cômodo na casa que seja minimamente silencioso e voltado aos afazeres es-
colares do aluno, acabam por contribuir, junto à pandemia, para que o caminho
tão almejado até a universidade se torne mais distante e heterogêneo.
27
mento social em consequência de uma pandemia capaz de causar uma crise na
saúde pública, aliado a um desgaste físico e emocional decorrente de uma série
de fatores externos, culmina em um processo subjetivo doloroso e repleto de
impasses que podem agravar ainda mais a separação de classes e reforçar a per-
petuação de um sistema socioeconômico piramidal vigente no meio social.
28
somada à falta de vínculo empregatício, também agravada pela covid-19.
29
de evasão escolar diante deste cenário e, talvez, a incerteza da volta dos alunos
que já não conseguem mais prosseguir com o Ensino a Distância.
Por fim, e não menos importante, outra variável que também ficou
presente em nossas pesquisas estava relacionada à violência, seja ela física, psí-
quica ou sexual. Compreendemos, a partir de Bourdieu (2015), que a escola,
para além de local legitimador de desigualdades, também é espaço de acolhi-
mento, o que contribuiria para que os jovens pudessem “escapar” de suas rea-
lidades em casa (MARQUES et al., 2020). Entretanto, devido ao período de
confinamento, os estudantes ficam expostos a quaisquer tipos de agressão que
podem vir a ocorrer no espaço da casa, não podendo, inclusive, buscar ajuda em
outros locais devido ao fechamento obrigatório de creches, igrejas, serviços de
proteção, dentre outros (MARQUES et al., 2020).
30
Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo a iniciativa de buscar em notícias,
em âmbito do Nordeste, a exposição de dados que apresentassem o quadro de
impossibilidades do Ensino a Distância para jovens pobres estudantes de escolas
públicas. Diante dos fatos expostos, reafirmamos nossas suposições iniciais so-
bre a existência da desigualdade social de condições de acesso ao ensino remoto
diante da pandemia de covid-19 e nos propomos a analisar as variáveis negativas
no isolamento social, tão necessário para o combate desse novo vírus, porém tão
legitimador de barreiras entre a pobreza e a educação.
31
Referências
32
dos-pelos-estudantes-1.2978280. Acesso em: 12 ago. 2021.
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las-on-line-falta-de-estrutura-e-acompanhamento.ghtml. Acesso em: 22 ago.
2021.
G1. Estudantes cearenses relatam desafios em preparação para o Enem longe da sala de
aula durante a pandemia, 27 abr. 2020b. Disponível em: https://g1.globo.com/ce
/ceara/noticia/2020/04/27/estudantes-cearenses-relatam-desafios-em-pre-
paracao-para-o-enem-longe-da-sala-de-aula-durante-a-pandemia.ghtml. Aces-
so em: 22 ago. 2021.
33
MARQUES, E. S.; MORAES, C. L. D.; HASSELMANN, M. H.; DESLANDES,
S. F.; REICHENHEIM, M. E. A violência contra mulheres, crianças e adolescen-
tes em tempos de pandemia pela COVID-19: Panorama, motivações e formas
de enfrentamento. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 4, p. 1-6, 2020. Disponí-
vel em: https://www.scielo.br/j/csp/a/SCYZFVKpRGpq6sxJsX6Sftx/?lan-
g=pt. Acesso em: 15 dez. 2020.
34
cativa, v. 15, p. 1-15, 2020. Disponível em: https://revistas2.uepg.br/index.
php/praxiseducativa/article/view/16303. Acesso em: 19 dez. 2020.
35
02
36
Covid-19”, a profa. dra. Luciana Lobo Miranda, como coordenadora da referida
extensão e orientadora de diversas pesquisas desenvolvidas com escolas, trouxe
uma série de questões sobre a migração abrupta dos processos de escolarização
para o mundo virtual. Na ocasião, foram abordadas as preocupações de nos-
so coletivo de pesquisa/extensão sobre as condições psicossociais de (im)per-
manência dos vínculos escolares, quando as tecnologias, hoje, configuraram-se
como os principais meios de comunicação entre os atores, desde a transmissão
didático-pedagógica do currículo até a manutenção de vínculos entre membros
da comunidade escolar. Tendo como base a aula no referido módulo e, agora,
ampliada como um texto coletivo, daremos prosseguimento às discussões que
temos travado este ano.
Sobre desigualdades...
As questões de desigualdades sociais possuem diferentes contornos na
estruturação dos espaços sociais. Estas não deixaram de permanecer com suas
evidências em um período no qual a escola pública encontra-se, por um lado,
desafiada à manutenção da escolarização e, por outro, desassistida por políticas
públicas nacionais que garantam suporte e segurança. Vale ressaltar que cerca
de 30% dos estudantes da rede pública não possuem computador e internet de
37
qualidade para acessar às plataformas de ensino remoto, sendo muitas vezes ne-
cessário o uso do celular, por meio de pacotes de dados, o principal dispositivo
de conexão (AVELINO; MENDES, 2020). Dessa forma, questiona-se: como
planejar e desenvolver atividades pedagógicas por plataformas virtuais quando
nossos professores carecem de formação, seja inicial ou continuada, de conheci-
mentos técnicos e didáticos para a construção dos processos de ensino-aprendi-
zagem? (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020).
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Nacional por Amostra de Domicílio Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, houve um aumento de 79,1% no
acesso à internet nos domicílios brasileiros naquele mesmo ano, se comparado
a 2017, que foi de 74,9%. No entanto, é preciso observar que o rendimento
médio per capita dos domicílios em que havia internet apontado pela pesquisa
(R$1.749) é muito superior em relação aos que não a utilizam (R$940). Na
época, os motivos elencados foram: não havia interesse, o serviço era caro e
nenhum morador sabia utilizar. Dessa forma, é importante atentar que as desi-
gualdades sociais demarcam quem tem e quem não tem acesso à rede mundial
de computadores (IBGE, 2018).
39
conta do ensino e a omissão de medidas nacionais que possam auxiliar de modo
articulado e efetivo, considerando as dificuldades de acesso e o despreparo dos
educadores.
40
de ensino, em discordância com a aparente democratização da “educação vir-
tual”. Com isso, em meio às desigualdades de acesso e intensificação de discre-
pâncias sociais, o governo, por meio de falas como a do atual ministro da educa-
ção, Milton Rocha, reconhece a crise acarretada pela covid-19 na educação, mas
afasta do Ministério da Educação (MEC) a possibilidade de intervir no enfrenta-
mento das dificuldades de acesso por parte de estudantes, ou de envolver-se no
processo de reabertura das escolas. Em resposta a perguntas feitas de maneira
direta sobre o assunto, o ministro afirma:
Esse problema [fala sobre a acentuação das desigual-
dades educacionais de alunos que não possuem acesso à internet
devido à pandemia] só foi evidenciado pela pandemia, não foi
causado pela pandemia. Mas hoje, se você entrar numa escola,
mesmo na pública, é um número muito pequeno que não tem o
seu celular. É o Estado e o município que têm de cuidar disso aí.
Nós não temos recurso para atender. Esse não é um problema
do MEC, é um problema do Brasil. Não tem como, vai fazer
o quê? É a iniciativa de cada um, de cada escola. Não foi um
problema criado por nós. A sociedade brasileira é desigual e não
é agora que a gente, por meio do MEC, que vamos conseguir
deixar todos iguais (SOARES, 2020).
41
educacionais. Dessa forma, a partir de estratégias propagandísticas que vendem
a ideia de que “O Brasil não pode parar” devido à pandemia, refletimos sobre
quem, de fato, pode “não parar” nessa lógica, e quais iniquidades sociais se apre-
sentam e se intensificam neste cenário.
42
servir de base para supor como tem sido, na atual conjuntura, a desigualdade de
acesso entre jovens durante o ensino remoto.
43
de iniquidade presente na escolarização das pessoas e, com isso, sob uma visão
interseccional, reconhecemos uma estrutura social no país marcada pela meri-
tocracia, condições de acesso e subsídio de capital desiguais nas comunidades de
estrato social diverso, e de uma necropolítica racializada operante nas popula-
ções subalternas (LAVOR FILHO et al., 2018).
44
Algumas reflexões acerca do ensino remoto
O cenário da pandemia exigiu das escolas uma inversão de valores em
relação ao uso de tecnologias no contexto escolar, haja vista que a entrada das
mídias vinha se dando de forma muito lenta. No livro “Entre redes e paredes: a
escola em tempos de dispersão”, de Paula Sibilia (2012), a escritora já citava o
descompasso entre as subjetividades juvenis, permeadas pela noção da rapidez
tecnológica, e a disciplina da rotina escolar.
45
lives. Dessa forma, as TICs auxiliam na continuidade da relação com a comu-
nidade escolar e com os estudos, estimulando os encontros que propiciam a
construção dos processos de aprendizagem (SENHORAS, 2020).
Considerações finais
Buscamos apresentar algumas tessituras de reflexões acerca dos en-
frentamentos durante a pandemia no cenário de escolarização no Brasil. Não
intentamos generalizar os contextos de forma fatalista ao discutir os desafios e as
desigualdades relatadas e vivenciadas no campo educacional. Convocamos uma
discussão que não se finda, mas segue em curso devido às incertezas e inoperân-
cias que emergem em um cenário de conflitos inesperados no território escolar,
que continua a tentar formas de permanecer atuante neste novo e, esperamos,
temporário formato remoto.
46
mia são incertas. A instabilidade causada pelo número de mortos, da continuação
do ensino remoto, da (in)flexibilização curricular e da necessidade de constru-
ção de vínculos por parte da instituição escolar nos fazem não chegarmos a um
denominador comum, tampouco gerar conclusões acertadas sobre os próximos
passos a serem dados. Contudo, as pesquisas apresentadas, que exemplificam
maior letalidade da pandemia na população com baixa escolaridade, colocam-se
como uma evidência e revelam a precarização da dignidade humana e do acesso
a uma qualidade de vida melhor para comunidades pobres e marginalizadas.
47
Referências
BATISTA, A.; ANTUNES, B.; FAVERET, G.; PERES, I.; MARCHESI, J.;
CUNHA, J. P.; DANTAS, L.; BASTOS, L.; CARRILHO, L.; AGUILAR, S.;
BAIÃO, F.; MAÇAIRA, P.; HAMACHER, S.; BOZZA, F. Nota Técnica 11 –
27/05/2020 Análise socioeconômica da taxa de letalidade da COVID-19 no
Brasil. Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), 2020. Disponível em:
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bre o ingresso nas Universidades Federais e nas Instituições Fede-
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lia, DF, 29 ago. 2012. Disponível em: https://legislacao.presidencia.
gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=12711&ano=2012&ato=5dcUTRq1kM-
VpWT502. Acesso em: 12 abr. 2021.
48
se-da-covid-19/. Acesso em: 30 jun. 2020.
49
MARTINS, V.; ALMEIDA, J. Educação em tempos de pandemia no Brasil: sabe-
res-fazeres escolares em exposição nas redes e a educação on-line como perspec-
tiva. Revista Docência e Cibercultura, v. 4, n. 2, p. 215-224, 2020. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/article/view/51026.
Acesso em: 21 out. 2020.
SOARES, J.Voltas às aulas no País e acesso à web não são temas do MEC, diz minis-
tro. Estadão, 24 set. 2020. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/n
50
oticias/geral,voltas-as-aulas-no-pais-e-acesso-a-web-nao-sao-temas-do-mec-
-diz-ministro,70003450120. Acesso em: 22 out. 2020.
51
03
52
Este texto-ensaio foi escrito entre intervalos, em blocos de tempo; as-
sim, pôde-se ir tateando devagar, buscando alguma inspiração. No texto “Fim de
partida, ler, escrever, conversar e (talvez pensar) em uma Faculdade de Educa-
ção”, capítulo do livro “Tremores: escritos sobre experiência”, em que também
encontramos o inspirador texto “Notas sobre a experiência e o saber da expe-
riência”, Larrosa (2015) escreve no contexto das reformas neoliberais das uni-
versidades europeias. É um começo de texto em que ele visivelmente expressa,
pela escrita, como o entristece ter que dar respostas do que será a filosofia den-
tro da universidade e como as perguntas dirigidas à filosofia parecem sem senti-
do. Diante desse desânimo, sentimento político que atua em seu corpo-escrita,
nos diz o quanto precisa escrever para dizer coisas que fazem algum sentido.
Escrever, não pela ótica da utilidade, mas escrever para elaborar sentidos.
53
contexto. Esse mesmo contexto que me alegra por poder escrever como fruto
de uma experiência singular como docente na universidade pública brasileira,
ao mesmo tempo, “me pega” numa série de turbulências da vida cotidiana.
Busquei, então, essa ideia de escrever para fazer sentido. Como pode-
ria dar passagem a algo que não foi pensado, que é uma inquietação, um senti-
mento político e coletivo? Persegui essa ideia de escrever como quem pergunta,
para instaurar forças diante do que não se sabe. Quando escrevi, pensei que,
ao ouvirem minha voz e meus desalentos, isso poderia ser um contraponto aos
riscos de despotencialização do corpo, muito atrelado ao que vem nos sendo
exigido como professoras e como alunas, neste momento de isolamento social.
Quanto a esses planos pedagógicos emergenciais, pacotes de formação e elabo-
ração de atividades remotas, ou seja: estar diante da tela, dominar as plataformas
virtuais, saber utilizar recursos audiovisuais, elaborar videoaulas.
54
tece. Larrosa (2015) marca a existência desse pronome (nos) como relação que
nos envolve. Não se ater ao que acontece, ao que passa, ao que atravessa, mas ao
que nos acontece, nos atravessa.
55
Podemos ver fenomenicamente essa condição plural e diversa: escolas públi-
cas, privadas, modalidades de ensino diferentes, níveis de ensino diferentes etc.,
mas, genealogicamente, precisamos compor não apenas com o que parece ser
mais consensual e óbvio quanto a essa diversidade. Foucault (2000) fala que há
uma ordem discursiva que constrange o campo do dizer, na medida em que de-
termina modos de exercício do discurso. Nesse sentido, a educação vem sendo
atravessada por várias discursividades que, embora não escondidas, alimentam-
-se de processos de naturalização do que se passa em nós nesses contextos tão
distintos.
Pensamos que poderia ser um bom exercício pôr em análise como es-
sas discursividades têm tomado parte nesses modos de subjetivação (produzidos
em nossos corpos, nossos sentidos), tanto no território da universidade como
na Educação Básica, em tempos de pandemia. Pensamos nesses lugares de fala,
pois nosso encontro se dá entre pesquisadoras, professora de universidade pú-
blica, mãe de uma menina em idade escolar, supervisora de estágio em psicolo-
gia escolar e psicóloga escolar, artista, mestranda de universidade pública. Esses
lugares nos trouxeram cenas, imagens com as quais tentamos escutar esse cam-
po de forças, essa plurivocidade em torno da educação. O que tem se produzido
nesse conjunto de fatos, demandas, documentos, falas que estão dentro do cam-
po da educação, tão diverso, tão heterogêneo? Reunimo-nos em torno de cenas,
apostando que vocês também pudessem imaginar o que está nos acontecendo.
56
mília-escola, algo que não é absolutamente novo.Vejamos os grupos do WhatsA-
pp de mães (a maioria são mesmo as mães, pelo domínio do recorte de gênero
nas responsabilidades familiares) e suas diferentes funcionalidades: manutenção
de vínculos, vigilância, cobrança. A responsabilização das mães, mulheres e pro-
fessoras quanto à mediação das atividades domésticas e profissionais. A preocu-
pação quando, nessa relação família-escola, a escola sai de cena e o quanto isso
pode significar fator de vulnerabilização diante da necessidade de proteção de
crianças, adolescente e jovens. Como a escola integra uma rede de cuidado e
pode continuar agindo nesse sentido. Por outro lado, escolas privadas disputam
a cena como comércio que precisa se manter lucrativo em litígios com famílias
que não se sentem integralmente atendidas como consumidoras.
Temos visto também, por parte da gestão das políticas públicas, uma
atualização do discurso de descrédito em torno das famílias empobrecidas e
vulnerabilizadas, quanto à sua condição como bons mediadores. Deslegitimação
na forma de negativas: não pegam as cestas básicas, não respondem aos grupos
do WhatsApp. Outra linha nesta pandemia discursiva tem sido o lugar dos pro-
fessores: questões salariais, demandas de formação, precarização do trabalho e,
novamente, as consequências de uma feminilização da educação.
57
de comunicação e tecnologia, o afastamento das políticas públicas de educação
e assistência social representa o distanciamento cada vez maior no acesso e na
participação.
58
tarefa? A pandemia pergunta para a escola como é possível inventar afetos para
não sucumbir? Como tem sido fazer interferências, contestar e negociar com a
ordem escolar? Faz sentido? Podemos, como psicólogas(os) escolares, produzir
sentidos, devir outros sentidos para a educação?
59
não gosto da aula, pois ela não tem emoção.
Aonde essas falas estão ecoando? O que dizem sobre afeto, saudade,
experiência, sobre o que nos atravessa? A que invenção temos nos disposto?
Nessa turbulência, nesse mar revolto, em que direção estamos indo? Não te-
mos tentado fazer a invenção caber no calendário, no chronos dos organogramas?
Num mapa que já foi traçado num outro tempo? Não parece fazer sentido con-
tar o que escapa, não faz sentido quantificar o que se gesta nos intervalos entre
essas falas, essas vozes.
60
A educação maior é aquela instituída e que quer
instituir-se, fazer-se presente, fazer-se acontecer. A educação
maior é aquela dos grandes mapas e projetos. Uma educação
menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os
fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula
como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de
aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias,
estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um
futuro aquém ou para além de qualquer política educacional.
Uma educação menor é um ato de singularização e de militância
(GALLO, 2002, p. 173).
61
Onde estão essas salas de aula que não têm um espaço definido e que
não é possível prever o que será aprendido? Elas têm que ser inventadas e, não
necessariamente, elas aparecem de uma vez por todas. Talvez todo dia uma pe-
quena invenção. Talvez assim possamos nos aproximar ou experimentar o que é
essa sala de aula como uma matéria em movimento.
Não parece ter necessariamente a ver com esse chamado aos professo-
res de que a gente precisa “se reinventar”, “continuar com a escola”, “não pode-
mos parar”, “nossos alunos não podem perder, não podem ficar para trás”. Eles
ficam para trás do quê? Embora haja preocupação com as formas de garantir o
direito à escolarização, não quero ser leviana e menosprezar as condições e as
situações de precarização que enfrentamos no âmbito da educação, mas pre-
tendo reivindicar a possibilidade de pensar na proposição de outros problemas
que parecem tão importantes. Pensar o que ainda não se sabe sobre a sala de
aula ou inventar problemas em vez de resolvê-los sob uma lógica produtiva e
naturalizada é um fôlego para continuar afirmando a importância da formação e
do pensamento como invenção de si e do mundo. Conforme nos inspira Walter
Kohan (2020): “Nós estamos infantilizados, mas não no sentido negativo. Assim
como uma criança, estamos num momento em que nós não sabemos”.
Convocar o outro a reinventar pode ter mais a ver com uma potên-
cia do exercício experimental. Nos inspiramos nos estudos de Kastrup (2012,
2019) sobre a potência cognitiva do experimental nas práticas de acessibilidade
para pensar uma sala de aula que experimenta o experimental como uma dire-
ção, uma política, um ethos.
Neste sentido, a presença do experimental na me-
diação a faz mais próxima do encontro do que da transmissão,
em que a aposta é a criação de um território afetivo de acolhi-
mento, propício à troca de experiências e à aprendizagem cole-
tiva. A mediação é distribuída pelo grupo, não se restringindo
a uma pessoa designada pelo Educativo. Ela é antes uma função
62
que uma pessoa. Enquanto função, a mediação se multiplica, se
propaga e se distribui. Os papéis se alternam ao longo de cada
encontro. Quem é mediador de quem? (KASTRUP; VERGA-
RA, 2012, p. 76).
Referências
63
nicand.com/wpcontent/uploads/2021/02/Gilles_Deleuze_Claire
_Parnet_Abeced_rioz-lib.org_.pdf. Acesso em: 13 mar. 2022.
64
LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiências. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015.
65
66
04
67
entanto, alguns trabalhadores não puderam aderir a essa forma de trabalho, na
medida em que atuavam em serviços e atividades essenciais. No Brasil, por meio
do Decreto n.º 10.282, de 20 de março de 2020, o governo federal elencou
diversos serviços públicos e atividades essenciais para a população, tais como
assistência à saúde, atividades de segurança pública e privada, telecomunicações
e internet. Coube aos Estados e Municípios, por sua vez, classificar os serviços
de captação e tratamento de água e esgoto como essenciais.
68
grupo de apoio psicológico para os profissionais da empresa, que foi chamado
de “Tecendo Laços”.
Sobre o grupo
Participantes
O grupo teve início com dez trabalhadores, dos quais seis tiveram
participação mais frequente: Luan, Abel, Davi, Gael, Flora e Sérgio (nomes fic-
tícios). Eles tinham entre quatro e 29 anos de trabalho na empresa e nem todos
se conheciam previamente.
69
a previsão inicial de que fossem realizados oito encontros, mas, a pedido dos
trabalhadores, ocorreram 11. A princípio, os facilitadores faziam registros por
meio de diários de campo, porém, em alguns momentos, os participantes auto-
rizaram que as interações fossem gravadas.
70
No sexto encontro foi realizada uma autoconfrontação simples e, os
demais, até o encerramento do grupo, foram dedicados a uma oficina de fotos.
O método da autoconfrontação simples consiste em debater com os trabalha-
dores vídeos que registrem sua atuação no trabalho. Dessa forma, é possível
colocá-los na posição de observadores de sua atividade, além de aproximá-los
de sua experiência (CLOT, 2010a). Seguindo esse método, vídeos gravados por
um dos trabalhadores foram reproduzidos durante uma reunião e mobilizaram
a discussão no grupo.
O desenvolvimento do grupo
Ao longo dos encontros, foram discutidas inúmeras questões relacio-
nadas às atividades e pré-ocupações (CLOT, 2010a) dos trabalhadores. Algumas
delas causaram comoção ou geraram controvérsias entre os participantes. Além
de ter ocasionado a perda de um colega e imposto novas rotinas e modos de
proceder, a pandemia de covid-19 agravou problemas que já eram vivenciados.
71
A seguir, são destacados alguns momentos que dão um vislumbre sobre como a
pandemia repercutiu no trabalho dos profissionais que participaram dos encon-
tros ou que mostram elementos importantes do ofício e foram debatidos pelo
coletivo que se formou com o grupo de apoio.
O falecimento de Levi
A morte e o luto foram temas recorrentes no grupo. No segundo en-
contro, Davi se mostrou afetado pela perda de um colega de trabalho, Levi, que
faleceu em consequência da covid-19. Ele relatou que, às vezes, não acreditava
na morte do amigo: “eu acredito que ele está fazendo uma viagem. Um dia ele
pode voltar”. Também disse que, eventualmente, ia aos locais que o companhei-
ro de trabalho frequentava com a esperança de reencontrá-lo. Ao comentar essa
fala, Sérgio afirmou que: “às vezes a dor não é sentida da mesma forma, às vezes
tem quem prefira negá-la, mas é melhor senti-la de forma inteira” e parabenizou
Davi por expressar seus sentimentos, na medida em que acreditava que ele não
deveria guardá-los.
72
treinadas para aceitar algo tão certo quanto a morte”.
Ela falava sobre temas comuns aos outros participantes, como os de-
safios de utilizar o WhatsApp para o atendimento aos clientes, as dificuldades
em lidar com os usuários do serviço e, como visto anteriormente, o luto pelo
falecimento de Levi, de quem era muito próxima. Apesar dessas semelhanças,
era a única a colocar questões domésticas como agravantes dos problemas cau-
sados pela pandemia.
73
O isolamento social, a mudança de rotina decorrente da pandemia,
com a necessidade de adaptações súbitas e urgentes, e o excesso de responsabi-
lidades se somaram à carga emocional pela morte de Levi, como visto no tópico
anterior. Apesar de reconhecer que, durante o período de internação do amigo,
precisou lidar com muitas demandas, sentia-se culpada por não ter conseguido
estar próxima a ele nos momentos finais.
Riscos
Nos encontros iniciais, os participantes que realizavam a manutenção
das redes de água e esgoto expressavam o temor de que pudessem contaminar
a si próprios e as suas famílias com a covid-19, posto que estavam expostos ao
sair para trabalhar. Houve relatos sobre as medidas que tomavam em campo e
ao chegar em casa para se prevenir contra o vírus. Ao longo das reuniões, viu-se
que o risco de adoecer por covid-19 se somava a inúmeros outros já vivenciados
cotidianamente.
74
gente pede para abrir [o buraco] bem grande, para evitar que
desabe) e o terceiro risco, a gente tem que mergulhar. Tem o
risco da contaminação de covid... Tem o risco de cortar os pés.
Mas se o policial fosse pensar no dano que uma bala [tem] baten-
do nele, não iria trabalhar (Abel).
75
dores a situações perigosas. Gael o classificou como “um trabalho espinhoso”.
Os participantes relataram que as equipes que vão aos bairros efetivar os desli-
gamentos sofrem ameaças, como pode ser visto na fala de Arthur:
Existem setores [os bairros são setorizados para fa-
cilitar a distribuição das equipes e dos trabalhos] que a gente
nem pisa lá. A gente é ameaçado é [na] hora, não é virtualmente.
Apontam é arma! Nós é que estamos responsáveis por fazer esse
serviço, [mas] é como se a gente estivesse cometendo um crime.
Davi, por sua vez, relatou que um usuário lhe apontou um revólver e
o obrigou a fazer a religação da água de sua residência. Gael, em outro encontro,
comentou que foi ameaçado com uma faca. Ele também relatou que já fingiu
não ser o responsável por um corte de água realizado em um bairro da cidade
considerado perigoso, logo após um cliente demonstrar raiva e questionar o
serviço.
76
essas circunstâncias ainda mais graves.
Os coletivos de trabalho
Os participantes diziam ter uma boa relação com os colegas do setor
em que atuavam e com os demais funcionários do SAAE. Não raro, festas mobi-
lizadas pelos próprios trabalhadores eram relatadas em tom de saudosismo, pois
a pandemia as inviabilizou. Existia até uma banda, formada por funcionários da
empresa, que tocava nesses eventos. Davi era um de seus integrantes.
77
O grupo, mesmo não sendo homogêneo, propiciou discussões de ofí-
cio e controvérsias (CLOT, 2007). Também houve indícios da existência de al-
gumas regras do gênero profissional constituídas e que puderam ser revisitadas,
na medida em que existiam interseções entre as várias atividades desempenha-
das e que alguns dos participantes já haviam transitado por diversos setores. O
gênero profissional é um traço de união, a memória que atravessa a atuação de
cada trabalhador individualmente e constrói a história coletiva do ofício. Ele
tem um papel mediador entre o coletivo, o indivíduo e a atividade, ao oferecer
uma prescrição informal e implícita, gestada pelos próprios trabalhadores, que
dá suporte para conseguir fazer o que é necessário. Assim, o gênero provê mo-
dos de agir e formas de comunicação que podem ser acessadas com agilidade
diante dos constrangimentos impostos pela atividade (CLOT, 2017).
Parecia haver, ali, uma regra de ofício: se o colega que estava traba-
lhando saísse do buraco, outro deveria imediatamente assumir a tarefa, pois,
tacitamente, admitia-se que ele estava cansado. Não era necessário, portanto,
qualquer ordem ou explicação. Outras regras de ofício também foram relatadas
por Abel. Elas estavam sintetizadas em algo que ele chamou de um “código” dos
profissionais:
(a) o que acontece no carro fica no carro; (b) passa
uma menina bonita, não deve falar. Nem olhar é bom! Pode
colocar nossa vida em risco. Além disso, o cara puxou conversa,
saia, vá trabalhar. Não vai se aprofundar em uma coisa que vai
78
lhe dar problema; (c) a gente não aceita dinheiro [dos usuários].
O SAAE já nos paga; e (d) se a pessoa for grosseira, tente, o má-
ximo possível, não revidar. Apesar de que eu sou um dos poucos
que quebra esse código aí [referindo-se à última regra]. Eu não
sou muito manso quando o cara pega nos nossos calos... Esse
tipo de coisa [o código] é proteção para a gente mesmo, porque
fora do contexto, tudo é pretexto.
Considerações finais
O capítulo relatou a experiência de um grupo de apoio psicológico a
trabalhadores de um SAAE em meio à pandemia de covid-19. O grupo surgiu
como resposta a uma demanda institucional de cuidado com a saúde mental
dos trabalhadores nesse período. Vários problemas e dificuldades trazidos aos
encontros eram preexistentes e foram agravados pela pandemia.
79
jamento dos participantes e ao distanciamento das atividades realizadas, o que
poderia impedir a articulação dialética entre atividade e subjetividade (PINHEI-
RO et al., 2016). Além disso, as limitações da conexão com a internet e a inex-
periência com a ferramenta de acesso aos encontros dificultavam a comunicação
em alguns momentos, mas isso não impediu que o grupo viabilizasse diálogos e
apoio mútuo.
80
Referências
ABREU, F.; MARQUES, F.; DINIZ, I. Divisão Sexual do trabalho entre homens
e mulheres no contexto da pandemia da Covid-19. Revista Inter-Legere, v. 3, n.
28, c21486, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/interlegere/ar-
ticle/view/21486. Acesso em: 13 out. 2020.
81
v. 37, e200090, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/estpsi/a/LR-
mfcnxMXwrbCtWSxJKwBkm/?lang=pt. Acesso em: 23 out. 2020.
ROGERS, C. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 2017. (Obra original
publicada em 1961).
82
05
83
problema mundial que, além da sua dimensão sanitária, é um problema social,
político, geoeconômico (ESTRELA et al., 2020) e que nos importa a partir des-
sa condição complexa, já que aponta para o tema de nossa fala, sobre vulnerabi-
lidade, políticas públicas e garantia de direitos.
84
a partir de demandas coletivas e individuais, aciona estrategicamente as equipes
de saúde da família e seus núcleos de apoio com vistas a assistir à população
(MENDES, 2015), com cobertura representativa. Como exemplos relevantes
de nosso acompanhamento a partir da realidade local, temos ações territoriais
que possibilitaram uma formação dialógica e horizontal acerca da realidade do
SUS, conforme apontam Amaral et al. (2018), com ações interprofissionais que
garantem relações efetivas e afetivas com os usuários.
85
da dimensão biológica da contaminação pelo novo coronavírus para entender a
complexidade de sua ação quando falamos em vulnerabilidades, na análise polis-
sêmica dos muitos significados que isso quer dizer.
86
feração do vírus, como higienizar as mãos, álcool em gel, realizar o isolamento
social, utilizar máscaras de proteção e fazer testes, parecem ser atos simples.
Contudo, quando 48% da população brasileira não tem coleta de esgoto, 35
milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e, só em 2017, quase 300
pessoas foram internadas por diarreia – 50% eram crianças de 0 a 5 anos –, é
possível entender não só de vulnerabilidade, mas também de seletividade do
vírus.
87
estado do Pará, que instituiu o trabalho de empregado doméstico como servi-
ço essencial. O dialeto bélico implementado pelos governantes do país na lida
cotidiana com o vírus, por sua raiz militarizada, convoca expressões que dizem,
por exemplo, que a pandemia é uma “Terceira Guerra Mundial”, em que pro-
fissionais de saúde são “soldados”, são os nossos “heróis nacionais”, negando a
dimensão do medo e da insegurança com a situação atual e fazendo supor que os
trabalhadores da saúde suportam tudo.
88
caminho erospolítico, precisamos situar de onde nossas elaborações se fundam.
Em psicanálise, Eros é um conceito que faz ligação e está entre o campo pulsio-
nal e a cultura. De acordo com Guimarães (2010), na teoria freudiana há um
entendimento, no trânsito de uma sexualidade primária para suas formas mais
elaboradas, da atuação de Eros “manifesta numa relação mais próxima entre se-
xualidade e cultura, como se as pulsões devessem percorrer um trajeto ou per-
curso para transformar o sexual no que ele tem de mais pulsional, mais destru-
tivo, numa sexualidade que atue em benefício do processo civilizatório” (p. 1).
89
também de Penia, deusa da pobreza, o que indica que podemos expressar o
amor na abundância, mas também na falta, a partir do que ainda não temos, mas
podemos ter, numa erospolítica, com pulsão de vida, a política da vida, pela vida
e para a vida de cada um de nós.
Referências
90
S0102-311X2020000600503&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 15 nov. 2020.
91
06
Magda Dimenstein
92
ampliação das necessidades em saúde mental e dos gradientes de vulnerabilida-
de associados às iniquidades sociais e às questões de gênero, raça e sexualidade.
93
Darwin e de Freud, essa pandemia veio afirmar nossa finitude e a nossa profunda
vulnerabilidade. Creio que isso tem consequências em relação ao modo como a
gente está vivenciando, encarando e circulando neste cenário de covid-19.
Ademais, esta pandemia, além de exigir de nós algo para que, subjeti-
vamente, a gente estava despreparado, não tinha acúmulo de experiência e um
arsenal de enfrentamento disponível, ela tem forçado o uso de algumas medidas
que implicam em mudanças muito bruscas, muito violentas, dos nossos hábitos,
dos nossos estilos de vida, que estão afetando o nosso cotidiano brutalmente.
A primeira delas é a questão do distanciamento físico, a quarentena. A segunda
é a necessidade de cuidados redobrados com a questão da higiene, da limpeza
dos ambientes, desinfecção dos corpos, espaços e alimentos. Isso tem sido para
muita gente um fator poderosíssimo de estresse.
94
ses após o início da quarentena, os medicamentos continuam a ser experimenta-
dos, a possibilidade de uma vacina ainda está por vir. Então, nos perguntamos o
tempo inteiro: Que mundo será possível? Que novas formas de vida precisamos
inventar?
95
irresponsavelmente recomendou. Outro aspecto em relação a este cenário de
hipocondria social diz respeito à nossa relação com a cidade e com os espaços
públicos.
96
todo. Não é só para um determinado grupo, mas é para a população de forma
geral. A expansão dessa vulnerabilização tem uma relação direta com o des-
monte das políticas públicas, com o desmonte do Estado Democrático, com as
políticas de morte e de extermínio que estão em vigor no Brasil e com a inten-
sificação do sofrimento psíquico. Ou seja, o clima de insegurança institucional e
democrática no Brasil é um poderosíssimo vetor de vulnerabilização de grande
parte da população brasileira. É uma das estratégias mais poderosas de captura
micropolítica, no plano das subjetividades, de governo dos corpos e de adesão
a uma racionalidade necropolítica, uma racionalidade de morte. Muitos países
tomaram medidas absolutamente distintas em relação, por exemplo, ao manejo
do isolamento, em relação às perdas salariais, à manutenção dos empregos, à
superlotação dos hospitais, à distribuição de alimentos etc. Existem inúmeras
experiências diferentes do que está acontecendo aqui no Brasil e isso fez toda
a diferença. Aqui, a gente está vivendo a política do descaso, essa política do “E
daí?”. “E daí?” é a total afirmação da lógica do extermínio. Então, este é o pri-
meiro ponto a ser destacado: o cenário antidemocrático que estamos vivendo
tem nos vulnerabilizado mais e mais.
97
do que para outros, que padecem de extrema vulnerabilidade, o que, por sua
vez, está associado ao racismo, à discriminação sexual e de gênero. A pandemia
deu visibilidade às iniquidades sociais. Ela não mata tão indiscriminadamente
quanto se pensa, deixando claro, por exemplo, quem pode ficar em casa, quem
tem acesso a material de limpeza, quem pode fazer home office, quem tem in-
ternet que lhe permite assistir aulas on-line em uma semana ou tem apenas
um pacote de dados de modo que, se assistir a meia hora de aula, se finda. Esta
pandemia está escancarando que, apesar de não fazer diferença, pois é democrá-
tica do ponto de vista de contágio, diferentemente do que está se propagando
por aí, nós não estamos, definitivamente, no mesmo barco. O custo subjetivo é
bastante desigual. O custo em termos de mortes também.
98
dades sociais no país e seu rebatimento no quadro de morbimortalidade, bem
como a relação indissociável entre saúde e democracia. Somente em um cenário
democrático é possível sustentar uma política pública de saúde mental ancorada
no pressuposto de que o cuidar em liberdade é terapêutico; os mecanismos de
controle social e participação dos usuários; a desconstrução do paradigma da
loucura como desrazão e doença mental, para uma nova acepção de existência-
-sofrimento; fazer a crítica aos especialismos, ao saber da psiquiatria sobre a lou-
cura, ao hospital psiquiátrico como local de tratamento e cura; investir no modo
de atenção psicossocial focado na produção de vida e sociabilidade e não apenas
em remissão de sintomas; em redes integradas de serviços e coordenação dos
cuidados em saúde mental no território; reconhecer a importância das Equipes
da Atenção Primária; dos vínculos com os usuários e familiares, seja de forma
remota ou não, da continuidade de cuidados – monitoramento telefônico/pre-
sencial; dos grupos de apoio mútuo e iniciativas de cooperação e solidariedade;
dos movimentos sociais; a educação em saúde com foco em estratégias de co-
municação e uso das redes sociais com usuários, com trabalhadores; das redes
virtuais em saúde neste momento, da atenção redobrada aos grupos mais vulne-
ráveis; e a importância da formação política e organização coletiva de usuários,
familiares e trabalhadores da saúde mental e das lideranças comunitárias.
99
coisas, mas muitas pessoas estão fartas da política do ódio e de violência que está
dando a tonalidade ao nosso cotidiano e ao nosso presente.
100
07
As drogas e a pandemia
Mediante o contexto da pandemia de covid-19, houve mudanças de
hábitos e de comportamentos diretamente relacionados ao consumo de substân-
cias psicoativas. Tais substâncias, comumente chamadas de drogas, fazem parte
do cotidiano da vida das pessoas, que foi alterado devido às medidas de preven-
ção à disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2).
101
As drogas são substâncias inertes até que sejam introduzidas num cor-
po, e não se tratando de pessoas, não podem, literalmente, forçar ninguém a
fazer nada (SZASZ, 1993). Seus efeitos psicológicos só atuam no psiquismo e
na vida social de uma pessoa a partir do momento em que ela os reconhece e
incorpora no quadro das representações coletivas mobilizadas pelo grupo para
descrever esses mesmos efeitos e definir condições adequadas para atingi-los
(BERGERON, 2012; BECKER, 2008).
102
cialmente aceita ou se tem uma representação negativa na sociedade, remete-se
a uma representação de poder, de status social ou se está relacionada a padrões
de beleza. Esses elementos influenciam em como os coletivos irão experimentar
seus efeitos.
103
outros significados, e, por certo, produzirão outros efeitos. Destarte, o consu-
mo de drogas tem aumentado neste período de pandemia de covid-19? Prova-
velmente, sim. Estamos diante de um momento de incerteza e de sofrimento. É
possível que o consumo dessas substâncias tenha aumentado como uma forma
de minimizar esses sofrimentos.
104
Cannabis no ano passado relataram um aumento em comparação com antes da
covid-19. Destaque para os países Austrália (49%) e EUA (46%), com maiores
aumentos no consumo entre os entrevistados. Entre as drogas comumente con-
sumidas em festas ocorreram as maiores quedas. Mais de um terço dos entrevis-
tados que relataram uso de MDMA (41%), cocaína (38%), anfetaminas (35%) e
cetamina (34%) indicaram que usaram com menos frequência em comparação
com o período anterior à covid-19 (WINSTOCK et al., 2020). Dessa forma, os
dados apontam para uma redução do uso de drogas normalmente consumidas
em momentos de socialização e aumento do consumo doméstico dessas substân-
cias como forma de minimizar os sofrimentos decorrentes da pandemia.
Drogas e violência
Em matéria publicada no Portal UOL, Dias (2020a) aborda o levan-
tamento feito no Brasil pelo Centro de Convivência “É de lei” com o apoio do
grupo de pesquisas em toxicologia do Laboratório de Estudos Interdisciplinares
sobre Psicoativos da Unicamp (LEIPSI), que entrevistou 4.000 pessoas entre
os dias 30 de abril e 15 de maio de 2020, apontando que 38,4% das pessoas
em quarentena relataram aumento do consumo de drogas legalizadas ou não.
Do total, 34% disseram ter diminuído a frequência de uso e 27% mantiveram
hábitos anteriores.
105
um lado, pode produzir resultados danosos, associando-se ao aumento da vio-
lência doméstica; por outro, pode estar associado à diminuição do número de
morte no trânsito, decorrente de um menor número de pedestres e condutores
alcoolizados circulando.
106
sita-se, além de medidas que possam restringir a venda de bebidas alcoólicas
per capita, de estratégias que aumentem as equipes de profissionais habilitados
para a prevenção e resposta a tais violências, ampla divulgação dos serviços dis-
poníveis, a capacitação dos trabalhadores da saúde para identificar situações de
risco, de modo a não reafirmar orientação para o isolamento doméstico nessas
situações, expansão e fortalecimento das redes de apoio informais e virtuais de
suporte social como alerta para os agressores de que as vítimas não estão com-
pletamente isoladas (VIERA; GARCIA; MACIEL, 2020).
107
momentaneamente o uso passa a ser mais doméstico. Faz-se pensar que medidas
preventivas, tais como: redução do fluxo de veículos, ampliação e melhorias na
qualidade do transporte coletivo venham a ser mais eficientes na redução da
violência no trânsito do que medidas punitivas para condutores alcoolizados,
quando estes já cometeram a infração.
108
(DIAS, 2020b).
109
No Brasil, a Associação Brasileira de Cannabis Esperança (ABRACE)
tem se adaptado para manter a produção do canabidiol em suas estufas e labo-
ratórios instalados na cidade de João Pessoa-PB. Foram instituídas escalas de
trabalho, regime de home office e uso obrigatório de máscaras. A produção dessa
substância beneficia pacientes com patologias crônicas, tais como: epilepsia, Al-
zheimer, Parkinson e autismo, melhorando a qualidade de vida dos pacientes e
de seus familiares (DIAS, 2020b).
Considerações finais
A Pandemia de covid-19 proporcionou formas diferentes de se rela-
cionar com as drogas. Houve alterações nos contextos de uso, nos motivos pelos
quais se busca e nas formas de consumir. As mudanças nos contextos de consu-
mo têm interferência direta em como os coletivos humanos irão experimentar
seus efeitos.
Referências
110
BERGERON, H. A. Sociologia da droga. Aparecida: Ideia & Letras,
2012.
DIAS, T. 52% dos jovens usam psicoativos para lidar com a pandemia
no Brasil. Universo Online – UOL, 06 jun. 2020a. Disponível em: https://tab.
uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/06/52-usam-psicoativos-para-lidar-
-com-a-pandemia-no-brasil-diz-estudo.htm. Acesso em: 23 out. 2020.
111
th-2018. Acesso em: 17 out. 2020.
112
Parte 3
Ética e Ciência
113
08
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vírus e para detectar mutações que possam alterar a evolução da doença.
115
crise, como a que estamos vivendo, a necessidade da ciência em nortear as to-
madas de decisões fica mais evidente. Mas na vida cotidiana, em que más deci-
sões políticas não têm efeitos tão diretos e/ou evidentes na sobrevivência das
pessoas, a ciência tem sido muito menos solicitada. As primeiras contribuições
científicas que alertavam para o risco de uma pandemia de covid-19 datam de
2007 (CHENG et al., 2007). Por que, então, o mundo não se preparou para isso?
Neste capítulo, discutem-se duas possíveis explicações do porquê não somos
ouvidos mais vezes e fora de situações de crise: o distanciamento entre ciência e
sociedade; o negacionismo científico sendo alimentado nas universidades.
116
autoritário.
Ainda nessa perspectiva, Pimenta afirma que Kant aplicou essa crítica
sobre a limitação do pensamento crítico pelos discursos das autoridades à polí-
tica, à religião e à ciência, especificamente o saber médico de sua época, apon-
tando-o como autoridade estabelecida que se furtava ao exame crítico. Como
um exemplo, uma afirmação política do tipo “Precisamos voltar à normalidade/
ao trabalho, ou o país vai ‘quebrar’!”, sem criar condições para que se examine
criticamente a real disponibilidade de condições de auxílio por parte do Estado,
os efeitos específicos e precisos do atraso no retorno ao trabalho presencial na
arrecadação aos cofres públicos e, consequentemente, nas ofertas de serviços
à população em curto, médio e longo prazo etc., consiste em um discurso que
apresenta suas proposições sem oportunizar esse pensamento crítico, ou seja,
um uso arbitrário de autoridade.
117
e, por isso, as pessoas agem de modo a mantê-lo, o que muitas vezes significa
evitar o exame crítico, a discordância, a avaliação pública, mantendo as relações
verticalizadas.
118
suas autoridades ao exame crítico e trabalha com verdades transitórias.
Aqui, porém, cabe questionar a quem tem sido reservado esse deba-
te. A discussão sobre o pensamento crítico como algo construído, e não dado,
relembra-nos a necessidade do compromisso ético do cientista com a redução
das iniquidades e horizontalidade das relações. Desse modo, possibilitamos a
criação das condições necessárias para que o debate crítico que fomenta o fazer
científico seja exercido por todos, e não apenas por uma minoria privilegiada.
De outro modo, permaneceremos distanciados do exame popular. Dentre os
inúmeros efeitos deletérios desse distanciamento, podemos apontar a produção
de uma ciência desconectada das demandas sociais e o fortalecimento do nega-
cionismo científico, cada vez mais forte no Brasil, que sobrepõe certos relatos
anedóticos às evidências mais fortes em ciência.
119
Negacionismo científico e anticientificismo
O discurso de negação – total ou parcial – da ciência de modo geral,
também chamado negacionismo científico, envolve muitas correntes, tais como
o terraplanismo, o negacionismo acerca das mudanças climáticas e o movimento
antivacina como as maiores representações atuais da total negação da ciência.
Embora aparentemente inofensivos, o fortalecimento desses discursos tem im-
plicado em sérias consequências sociais, inclusive para a sobrevivência, pois tem
orientado decisões individuais, e até políticas públicas. De acordo com a Pesqui-
sa FAPESP (2018), em 2017 as taxas de vacinação de crianças contra 17 doenças
foi a menor dos últimos 20 anos. De acordo com especialistas no assunto, um
dos motivos para esse efeito é o crescimento de crenças distorcidas em relação
às vacinas.
120
Essa segunda forma de negacionismo científico frequentemente emerge como
críticas ao cientificismo, ou seja, como anticientificismo.
121
um relativismo que se alinha à concepção de “pós-verdade”.
122
têm sido ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), voltadas para curar e
prevenir diversas doenças, como depressão e hipertensão.
123
Referências
CHENG, V. C. C.; LAU, S. K. P.; WOO, P. C. Y.; YUEN, K. Y. Severe Acute Re-
spiratory Syndrome Coronavirus as an Agent of Emerging and Reemerging In-
fection. Clinical Microbiology Reviews, v. 20, n. 4, p. 660-694, 2007. Disponível
em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17934078/. Acesso em: 30 dez. 2020.
LIMA, D. L. F.; DIAS, A. A.; RABELO, R. S.; CRUZ, I. D.; COSTA, S. C.; NI-
GRI, F. M. N.; NERI, J. R. COVID-19 no Estado do Ceará: Comportamentos
e crenças na chegada da pandemia. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 5, p. 1575-
1586, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/BtsPz7tPKSDfh-
TRKMzFCYCR/?lang=pt. Acesso em: 29 dez. 2020.
124
SKINNER, B. F. Beyond freedom and dignity. New York: Alfred A. Knopf, 1971.
125
09
Pandemia de covid-19 no Brasil: reflexões sobre as implicações éti-
cas e científicas
Este texto é resultante de uma fala que fiz para o Seminário 7 do Curso
de Extensão de que trata este livro, cujo tema foi “Ética e Ciência em Contexto
de Pandemia”. Minha apresentação destacou sobretudo a dimensão prática da
relação entre ética e ciência neste tempo de pandemia, acentuando os conflitos
e dilemas vividos, particularmente, por trabalhadores do campo da saúde que
estão na linha de frente do atendimento às vítimas do novo coronavírus. Focarei
na ética e, mais especificamente, na bioética como linha de condução das discus-
sões que o tema desperta. Tomo como premissa básica a convicção de que toda
a vida importa e precisa ser preservada. Com essa convicção é que desenvolvo o
tema falando acerca de conflitos e dilemas éticos neste contexto.
126
desigualdade social que temos no Brasil. Também são esses os que enfrentam
os efeitos do vírus mais intensamente, porque a desigualdade aí também está
presente. O vírus se dissemina por todos os setores, mas suas consequências são
bem distintas entre as diferentes camadas sociais. É com essa visão que procura-
rei desenvolver este texto.
127
a concebiam como conjunto de virtudes. Aristóteles desenvolve todo um pen-
samento explicativo sobre essas virtudes, destacando a prudência como a prin-
cipal delas e o valor da amizade e da justiça nas relações sociopolíticas entre os
seres humanos. Já na visão Kantiana, ética é compreendida como imperativo do
comportamento e seu parâmetro é o coletivo (o que vale para todos). Kant tem
por base o primado da razão. Entende que, por sermos seres racionais e respon-
sáveis, definimos e introjetamos normas para uma vida civilizada em sociedade
(CHAUÍ, 1997).
128
dentemente dos meios utilizados, desde que resultem em benefício para um
maior número de pessoas. Em tempos de pandemia decorrente de um vírus de
disseminação rápida e progressiva, a meta é encontrar uma forma de controlar o
vírus e descobrir uma vacina para preveni-lo. Nesse sentido, tomando por parâ-
metro o princípio utilitarista, podemos supor que para salvar a maior parte das
vidas humanas seria possível pôr em risco outras vidas que vão servir de objeto
para esses estudos. Ou seja, vidas descartáveis e que podem ser sacrificadas em
benefício daquelas qualificadas como referência de humanidade.
Foi por essa lógica utilitarista que se guiou a ciência, por exemplo, no
fascismo e no nazismo, justificando estudos que podiam levar à morte, como
aconteceu principalmente na Segunda Guerra Mundial, em que foram pratica-
dos horrores por pesquisadores para produzir uma eugenia dos humanos, de-
rivada da concepção nazista da superioridade da raça branca. Após o fim da
Grande Guerra, outras atrocidades continuaram a ser praticadas em nome da
ciência. Pesquisas foram desenvolvidas em vários campos disciplinares sem o
conhecimento, pelos sujeitos, de seus objetivos e procedimentos, e algumas
provocando danos graves aos que participavam. De acordo com Débora Diniz
e Dirce Guilhem (2017), em 1966 foi publicado um artigo por Henry Bee-
cher que listava 22 relatos de pesquisas financiadas com recursos de instituições
governamentais e empresas de medicamentos que revelavam o não respeito à
integridade e à vida dos participantes, que eram aqueles chamados “cidadãos de
segunda classe” (internos em hospitais de caridade, deficientes mentais, pacien-
tes psiquiátricos e outros).
129
o apagamento do outro. A ética, neste caso, se sucumbe a uma exacerbação da
autopromoção e autorrealização como ideais de felicidade que se sobressaem
nas relações sociais.
130
além da medicina, as normas de conduta, numa proposição de pensar a ética da
vida.
131
dentemente dos seus campos de atuação. Mas para nós, brasileiros, é preciso
analisar essa questão tendo em conta a compreensão do cenário político que
recebeu a pandemia.
Contextualizando a problemática
132
Essa limitação do SUS e as dificuldades encontradas pelos profissionais
da linha de frente se agravam com o fato de estarmos com um governante e sua
equipe que negam a gravidade do problema e se comportam no sentido oposto
ao que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde e pelos pesquisado-
res e profissionais da saúde. Não temos apenas um presidente perverso e incom-
petente, também assim é sua equipe de ministros ignorantes e despreparados,
que atuam em benefícios próprios e indiferentes à tragédia que assola o país,
que atinge, como sempre, principalmente a população pobre, negra e periféri-
ca, chegando a um índice de mortalidade acima de 150 mil pessoas1, colocando
o Brasil na segunda posição entre os países com maior número de mortos pela
covid-19.
133
social e exacerbação da contaminação e do índice de mortalidade. Surpreenden-
temente, assistimos à falta de ética, à insensibilidade e mesquinhez de ministros
de Estado e do próprio presidente, que desqualificam e debocham das mortes
e do sofrimento da população com expressões do tipo “o que tenho a ver com
isso?”, “não sou coveiro”, “vai morrer mesmo”, chegando ao absurdo de o pre-
sidente declarar para o mundo, na conferência da ONU de 2020, que o Brasil é
um dos países que menos sofreu com a pandemia, mesmo com mais de 150 mil
pessoas mortas no país em decorrência do vírus. Além disso, deparamo-nos com
posicionamentos como o do ministro da economia, que considerava desneces-
sária a compra de mais respiradores por não saber qual utilidade que eles terão
após passar a pandemia, e do ministro do Meio Ambiente dizendo que o governo
deveria aproveitar a “tranquilidade” do momento, com a imprensa voltada para
o novo coronavírus, para “passar a boiada”, numa menção a serem aprovados,
apressadamente, no Congresso, decretos e emendas inconstitucionais e que le-
vam à destruição das nossas riquezas e do ecossistema do Brasil, com repercus-
sões no mundo inteiro.
Assim, para nós, brasileiros, esta pandemia tem o agravante de nos co-
locar diante do risco não apenas dos efeitos do vírus, mas também de uma po-
lítica de descompromisso com a vida e de negação da gravidade do problema,
contribuindo para que boa parte da população desconsidere as recomendações
da Organização Mundial de Saúde, dos profissionais da área e de pesquisadores,
levando à expansão da contaminação e à prevalência da pandemia.
Neste contexto, falar sobre ética como uma prática de respeito e res-
ponsabilidade com o outro, com o diferente, é reagir a este estado de coisa, é se
comprometer com a solidariedade, o cuidado e a preocupação com os expostos
ao vírus, com os que estão trabalhando nos serviços essenciais, com os profissio-
nais da saúde que arriscam suas próprias vidas para preservar ou salvar as vidas
134
de outros, assim como com aqueles que não têm como seguir as recomendações
em face da precariedade da própria existência.
As diferenças entre as condições de vida dos extratos populacio-
nais no Brasil (e no mundo) fazem com que o medo da morte,
que perpassa todos, sempre, atinja mais profundamente aque-
les que já estão feridos no corpo ou na mente... As enormes
desigualdades dos diferentes estratos populacionais levam ao
questionamento sobre a existência real da coletividade (POR-
TO, 2020, p. 7).
135
outros, com a angústia de não terem como amenizar o sofrimento dos que aten-
dem e o seu próprio. Misturam-se afetos e tensões, o que requer maturidade e
muita responsabilidade para atuar. Isso representa a ética do cuidado e a ética da
vida de que trata a bioética.
E, para finalizar, trato do último ponto que mencionei: O que a ciência tem
a ver com isso? Como se entrelaçam ética e ciência nesta realidade? Assim como
na discussão sobre ética, também parto de uma visão de ciência como prática
social e produto da ação humana, portanto, sujeita às imperfeições, aos afetos
e implicações político-ideológicas dos seus produtores. Entretanto, é a ciência
que possibilita encontrar saídas para o enfrentamento da situação de tragédia
que assola o mundo.
136
posição híbrida entre a área da saúde e das humanidades.
137
paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser
também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente)”.
Referências
138
10
139
Procuro me equilibrar nessa delicada corda e me pergunto: “quem é
esse eu que fala (escreve)?”, “para quem acredito que falo (escrevo)?”. Certa-
mente, não sei responder à primeira pergunta, mas tenho pistas relevantes.
Quem escreve é uma mulher de classe média que desfrutou de uma educação
negada à maioria em seu país (e no mundo). Uma mulher que aprendeu acade-
micamente a discutir conceitos e teorias, em especial, filosóficas. Uma professo-
ra que, apesar dos desenganos, confia intensamente na educação como caminho
para a invenção de outros mundos. Uma brasileira que oscila entre o temor e
a esperança diante do futuro e, nesse balanço, lembra-se constantemente que a
ação política acontece cotidianamente e atravessa minhas aulas e minha vida nas
palavras que escolho, nos temas aos quais me dedico, nos afetos que sou capaz de
nutrir, nas fronteiras que consigo defender e naquelas em que me ausento. Sou
também aquela que pensou este texto em pleno isolamento social impelido por
uma pandemia que matou e segue matando, principalmente, aqueles e aquelas
que, diferentemente de mim, não são chamados(as) a falar sobre o que se passa.
140
qual eu pudesse criticar sem pudores a ciência como instituição. Acreditei – e
sigo confiante – que o público que me ouviu e este que irá ler-me, compreen-
derão que apontar os equívocos das instituições de pesquisa e ensino não se con-
funde, em hipótese nenhuma, com uma desvalorização da ciência como forma
de conhecimento válido sobre o mundo. Minha pretensão, ao contrário, é dar
material a docentes, discentes, pesquisadores(as) e defensores(as) do saber para
que possamos fortalecer a ciência, a filosofia e as instituições de ensino lá onde
elas, e nós, cegamos.
Faço essa introdução “histórica” e sei que, para alguns, ela pode parecer
um adorno intelectual sem efeitos práticos. No entanto, é justamente contra
141
isso que reside a tese que quero desenvolver em nossa conversa hoje. 2020. Em
meio à pandemia mais devastadora deste milênio.
Minha tese pressupõe que, para bem avaliarmos nosso tempo, preci-
samos não só olhar para o presente, mas situá-lo em constante diálogo com o
passado e com o futuro. Até aqui, nada de novo: só uma nova forma de dizer
que nosso saber sobre a História (e sobre as histórias) precisa servir para ajustar
nossas ações no presente e nossas lentes direcionadas para o futuro. Reconheço,
obviamente, que há algo de não humano na irrupção das pandemias e, nesse sen-
tido, qualquer ilusão de que há atos humanos capazes de evitar plenamente sua
emergência é danosa. Por outro lado, é extremamente perigosa a suposição que
reduz a pandemia a um fato natural, completamente desligado das ações huma-
nas. Ao pontuar isso, quero sublinhar que a pandemia é um fenômeno complexo
atravessado por fatores não humanos e humanos em sua origem e disseminação.
No entanto, a pandemia vai muito além disso, precisando ser analisada seguindo
as linhas propriamente humanas que a contornam. É aqui que entra meu desejo
de retornar ao problema da ciência e da ética a partir de uma porta filosófica.
Para mim, há pouco espaço para duvidar de que essa tensão vem se
142
construindo há muito tempo sob nossos olhos e, reiteradamente, ignoramos
sua relevância, como pessoas, mas, principalmente, como acadêmicos(as) e in-
telectuais. Pior, institucionalmente, ignoramos o impacto de sua gestação e seu
desenvolvimento ao nosso redor por anos a fio.
143
pazes de nos permitirem atribuir sentido ao que baseia boa parte das coisas que
dependemos diariamente. Quantos entre nós, provavelmente, privilegiados(as)
em acessar o universo intelectual e seus produtos, saberia responder “O que é
ciência?”, ou “O que é verdade?”, ou “Por que nossos objetos tecnológicos são
como são?”.
144
co-tecnológico estão direta e inevitavelmente entrelaçados com uma sociedade
complexa.
145
abandonar aos cientistas o dever de, sozinhos e sem guias normativas racionais
maiores, assumirem os eventuais ônus que suas teorias e tecnologias venham a
causar. Oliveira (1993) nos ajuda a notar o quão paradoxal é vivermos em uma
sociedade erguida e mantida em tantas instâncias por construções científicas e
tecnológicas, ao mesmo tempo que relegamos ao voluntarismo e à opinião os
problemas éticos.
146
uma formação científica – atua também reforçando uma visão departamentali-
zada da ciência e dificultando que a transdisciplinaridade se estabeleça mais con-
creta e plenamente no âmbito científico (DUARTE JR., 1995). Ressalto, ainda,
que uma formação acrítica em ciência tende a fortalecer preconceitos para com
outros saberes. Uma vez que o cientista não é capaz de reconhecer nitidamente
que a ciência é um conhecimento que visa atingir um objetivo específico e, logo,
é parcial em seu atendimento às questões humanas, ele pode acabar agindo para
contribuir para uma falsa hierarquização e conflito com outros conhecimentos.
Não é raro, portanto, que ouçamos, por exemplo, que “a ciência é mais rele-
vante que a arte”, ou que “a ciência é um conhecimento produtivo enquanto a
filosofia não serve para nada”, ou, ainda mais comum, “que a ciência nos torna
ateus”. Afirmações como essas evidenciam nossa inabilidade em circunscrever
quais as fronteiras da ciência, entendendo-a como se ela estivesse em competi-
ção com outras formas de conhecer. Longe disso, uma boa formação em ciência
deveria caminhar no sentido de nos ajudar a visitar e considerar as sutilezas e
potências dessas fronteiras, haja vista que a especificidade da ciência só existe e
tem significado em meio à pluralidade das atividades e saberes humanos.
147
soas duvidam dos dados científicos e supõem que a NASA é símbolo de uma
conspiração maior, isso só pode ocorrer porque elas se baseiam – mesmo que
não conscientemente – em uma teoria do conhecimento que cabia muito bem
na visão de mundo antiga e medieval, mas que é totalmente incompatível com
pressupostos basilares da modernidade e da contemporaneidade. Ora, isso de-
monstra que o silêncio dos setores científicos diante de tantos anos e políticas
de depreciação do conhecimento filosófico mostra agora seu alto preço para a
própria ciência.
Minha tese é que se a ciência não se irmanou com a filosofia (ou com
as artes) para que estas mantivessem seus financiamentos e produções, isso se
deve a uma fragilidade da visão que a ciência criou de si, a uma certa cegueira
em notar como remodelamentos e destruições em outros campos que lhe fazem
fronteira reverbera – ainda que em longo prazo – na própria ciência. Não é
coincidência, pois, que as políticas que antes desmereciam a filosofia e as artes,
cortando investimento e acusando-as de improdutivas socialmente, estendam-se
agora às áreas da ciência mesma. Alastrando-se rapidamente de um desrespeito
às formas de investigações e corte de financiamentos das ciências humanas para
outros campos que pareciam mais assegurados, como é o caso das ciências da
saúde, como vemos agora ocorrer na pandemia.
Ainda nessa seara das fronteiras, parece-me importante frisar que a as-
censão ao poder de uma extrema-direita descaradamente pseudointelectual e
de tendência anticientífica muito se deve aos anos de fertilização e mau enqua-
dramento da relação entre ciência e religião, ou razão e fé. A confusão entre os
objetivos e os âmbitos desses conhecimentos, reduzindo uma relação complexa
a uma mera oposição, facilitou que as pessoas fossem manipuladas a terem de
optar entre acreditar em uma divindade ou em uma teoria científica. Ora, sendo
a ciência tão presente, mas tão incompetente em se entranhar simbolicamente
148
no cotidiano, não é de admirar que as pessoas escolhessem – lembrando que
essa oposição é falsa! – permanecer com suas crenças religiosas que, eficiente-
mente, sustentam-lhes e dão amparo em tempos de crise. Não quero aqui dizer
que a ascensão de uma religiosidade que beira o fanatismo e que se vincula com
a abertura necessária para assunção ao poder de uma extrema-direita se deve
unicamente à inércia da ciência.Todavia, interessa-me que, como pessoas ligadas
à ciência, notemos nossa participação neste processo.
149
quando alguém lhes diz o que deveria ser evidente: opinião e ciência não são
equivalentes.
150
tíveis desavenças, não se furta de perguntar sobre as normas éticas, políticas,
econômicas, estéticas, epistemológicas e culturais que a amarram. Não estou
supondo que, ao se reconhecer como produto comunitário e complexo atado a
incontáveis pressuposições sociais, a ciência irá se tornar ferramenta de harmo-
nia e progresso. Esse ideal iluminista já mostrou bem seus limites e nos trouxe
até a encruzilhada na qual nos encontramos agora. Longe disso, minha aposta é
aquela de seguir escancarando que por trás das cortinas existem apenas pessoas,
uma vez que a potência humana é menos a amplificação de uma só voz e mais a
força do que muitas vozes diversas podem alcançar quando se dispõem a incan-
savelmente construir juntas.
Referências
151
politics of knowledge. Indianapolis: Indiana University Press, 1995. p. 175-194.
MORIN, E. Ciência com consciência. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
152
Parte 4
Sociedade
153
11
João Paulo Pereira Barros, Ana Carolina Borges Leão Martins, Lara Brum de
Calais, Dagualberto Barboza da Silva e Carla Jéssica de Araújo Gomes
154
como o contexto de pandemia acentuou o caráter multilinear, multifacetado e
interseccional das desigualdades historicamente estabelecidas no Brasil, dialo-
gando com referências como Judith Butler, Achille Mbembe e produções que
analisam, pelo prisma analítico da interseccionalidade, as conexões entre raça,
classe e gênero. Na segunda, trabalharemos a relação da pandemia com práticas
antidemocráticas e com a branquitude, entendendo ambas como faces de uma
necropolítica à brasileira, a partir de teorizações da psicologia social e áreas
afins sobre questões raciais no Brasil. Já na terceira seção, abordaremos as inci-
dências do debate para uma concepção de clínica não privativa, “deselitizada”,
interessada e engajada nas atuais reconfigurações do espaço público, a partir de
interlocuções com a psicanálise.
155
modo acertado, que, em si, produziram mais violência, como induzem os argu-
mentos daqueles que assumem o discurso negacionista ou minimizam a existên-
cia da pandemia. Contudo, o contexto pandêmico, pelas respostas políticas que
lhe foram dadas, acentuou uma rede de violências e de precarização nas peri-
ferias, evidenciando como tais territorialidades historicamente vêm sendo sub-
metidas a um perverso abandono socioassistencial que as vulnerabiliza diferen-
cialmente. Outro exemplo disso é a relação entre a crise do novo coronavírus
e o possível aumento da pauperização dessas populações (GERBELLI, 2020).
156
à morte. A precariedade também caracteriza a condição politi-
camente induzida de vulnerabilidade e exposição maximizadas
de populações expostas à violência arbitrária do Estado, à vio-
lência urbana ou doméstica, ou a outras formas de violência não
representadas pelo Estado, mas contra as quais os instrumentos
judiciais do Estado não proporcionam proteção e reparação su-
ficientes (BUTLER, 2018, p. 40-41).
157
cionadas, mais estavam vulnerabilizadas pela pandemia. Logo, torna-se possível
situar esses movimentos no âmbito das operações de uma tecnologia de poder
em ação pela colonialidade e que se volta à produção, a partir de processos de
racialização, de corpos coisificados como supérfluos – logo, matáveis – e mun-
dos de morte.
158
tunidade de viver... Essa lógica do sacrifício sempre esteve no
coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroli-
beralismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que al-
guém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser
descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos
não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas ra-
ças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros (MBEMBE,
2020a, p. 15).
159
rearticular as ideias de Butler e Mbembe para pensarmos também linhas de re-
sistência a esse estado de coisas e de coisificação? Resistir neste e a este contexto
estaria relacionado à criação de formas de comunalidade (espaços simbólicos de
pertencimento e partilha) em meio à calamidade, tendo a condição precária, a
vulnerabilidade compartilhada e a interdependência como dispositivos de pro-
dução de aliançamentos? Nesse processo, resistir estaria articulado à luta pela
garantia, como prioridade política, do direito à existência para todas e todos?
160
ser problematizada ao se considerar o motor racial da necropolítica à brasileira.
Uma das mais caricatas ilustrações dessa relação mórbida foi a realização de
manifestações contra as medidas de distanciamento social adotadas por prefeitos
e governadores para conter o avanço da contaminação por covid-19, a favor do
presidente, contendo contumazes mensagens em defesa de intervenção mili-
tar no Brasil e sem preocupações quanto ao uso de máscaras e prevenção de
contágios (G1, 2020d). São demasiado caricatos os sujeitos de tais carreatas e
motociatas bolsonaristas, que se consideram “invulneráveis” e, ao mesmo tem-
po, avessos a qualquer preocupação de contaminar outrem, assim como o são as
diversas fake news de cunho negacionista que foram acionadas sobre e durante a
pandemia a fim de perpetuar retóricas e persuasões que escamoteiam sua gra-
vidade e desigual incidência letal. Não à toa, portanto, a construção da suposta
“farsa dos caixões vazios” (LEMOS, 2020) – reificando a minimização das mor-
tes – também ganhou destaque nas redes sociais, denunciando a disseminação
de notícias falsas como dispositivos de controle e de governo, sobretudo com
a ascensão de grupos de extrema-direita, não só no Brasil. Negacionismo, anti-
ciência, neofascistização e necropolítica e neoliberalismo se (re)articulam, por-
tanto, no contexto pandêmico brasileiro.
161
sendo permeada por políticas de subjetivação produtora de indiferença diante
da morte do “outro”, que a colonialidade criou.
162
p. 25).
163
(necro)políticas dos espaços públicos incidem no cotidiano das práticas psicoló-
gicas, mais especificamente, na prática do(a) psicanalista. Os eixos da “tecnolo-
gia” e da “segregação” serão agora inseridos em uma reflexão política do estatuto
da clínica, que não está apartada do contexto de excessiva vulnerabilização que
estamos atravessando.
164
Mas o que seria a esfera pública? Neste capítulo, que se centra em dis-
cussões sobre vulnerabilizações e condições precarizantes agravadas pela pan-
demia de covid-19, é fundamental definirmos em qual território essas vidas
precárias se constituem e se formam.
165
Nessa acepção, a psicanálise se insere no mundo fazendo a passagem do
privado para o público, promovendo o deslocamento de uma esfera a outra, dan-
do voz e lugar a mulheres que tradicionalmente nunca tiveram sua voz escutada
na esfera pública, em que o cidadão era o homem, o sujeito universal masculino.
Uma clínica dos silenciados, dos invisíveis, dos periféricos. A psicanálise tem
uma relação de solidariedade com os corpos vulnerabilizados desde sua origem,
desde a sua constituição, e é muito importante lembrar disso em um momento
em que existem tantas apropriações elitistas do discurso e da prática analítica.
166
como nós, analistas, logramos nos inserir na esfera social? Com todo debate
sobre a institucionalização da psicanálise, sobre a entrada de analistas nas es-
colas de ensino fundamental e médio, em hospitais, nas comunidades, essas e
outras iniciativas interrogam a inserção de analistas na esfera social, como sendo
a grande esfera política da modernidade.
167
gital. É uma nova produção de segregação que vemos nesse terceiro momento,
assim como uma radicalização dos processos de exclusão.
O que está em jogo nesse formato digital? Eis o que precisamos pensar
e construir em conjunto, avançando na estranheza do digital, em que o privado,
o privativo, torna-se a própria condição da política e da esfera do aparecimen-
to. Se não tivéssemos nossa casa e nosso computador ou smartphone, como
teríamos a possibilidade de aparecer no espaço remoto em meio à pandemia?
Então, isso nos possibilita pensar, por exemplo, no estatuto de uma vida não di-
gitalizada, das pessoas que não conseguem cadastrar o CPF para receber auxílio
emergencial, dentre outras ilustrações possíveis. Essas pessoas, que têm de en-
frentar filas em meio a uma pandemia para conseguir o auxílio, são as vidas não
digitalizadas, situadas para além das telas, presentes nas ruas, e estão certamente
em uma condição muito mais precária, de maior vulnerabilidade do que nós.
Se, em uma das seções anteriores do capítulo, falamos das fake news de
supostos caixões vazios durante a pandemia, com vistas a minimizar seus efeitos
mortíferos, o que nos faz retomar a ideia do quanto a esfera pública continua ar-
ticulada à tradicional dimensão do aparecimento, podemos pensar agora que, na
pandemia, manifesta-se também uma outra modalidade de (des)aparecimento,
uma nova relação com a morte, uma dupla morte, mais além do corpo físico,
porque são mortes que não se enquadram nos espaços digitais. Dentro dessa
nova esfera do digital, em que o privativo se torna a condição de aparecimento
na ordem pública, o que cabe à clínica psi?
Nas análises on-line, é o alcance das nossas escutas que será interro-
gado. Como podemos escutar, por exemplo, as formas de sofrimento que não
entram na rede, que escapam às telas dos computadores e dos smartphones?
Como podemos escutar a violência contra as mulheres durante a pandemia,
que, por estarem em situação de quarentena, estão também mais vulneráveis a
168
seus parceiros violentos? E como escutar o luto, o desespero daqueles que estão
morrendo de covid-19? Tais questões tocam nas práticas de cuidado em um novo
formato de articulação entre o público e o privado, relacionado à digitalização
da vida e dos corpos.
169
ciais das vidas para a manutenção dos privilégios (brancos), e outras modulações
entre os corpos e os territórios, conforme exposto ao longo do texto. Desse
modo, teremos meios de recuar diante de práticas psicanalíticas/psicológicas
que se alinhem em cumplicidade com os processos de exclusão/segregação,
e reafirmar o completo rechaço da psicologia e da psicanálise diante das mais
variadas políticas de mortificação.
Referências
170
CÊNCIA. Coronavírus e homicídios: o Ceará sob duas epidemias. Ceará: CCPHA,
2020. Disponível em: https://cadavidaimporta.com.br/news/nota-tecnica-
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brasil/a-farsa-dos-caixoes-vazios-usados-para-minimizar-mortes-por-co-
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171
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Acesso em: 13 out. 2020.
ROLNIK, S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. 2. ed. São
Paulo: n-1 edições, 2019.
172
12
Vulnerabilidades em contexto de pandemia: o racismo e a fome
como efeitos de segregação
Karla Patricia Holanda Martins, Aline Gabriele Carvalho de Lima, Angela Tere-
sa Nogueira de Vasconcelos, Samanta Basso e Tatiana de Souza Santos Neves
173
Dessa forma, a pandemia está deixando marcas, feridas, que acrescen-
tam ao seu domínio uma experiência individual e coletiva de perda que colapsa
a nossa crença no futuro, a confiança em si e nos outros humanos. A partir dessa
compreensão, a pandemia afirma-se como um trauma coletivo, conforme o en-
tendimento retomado por Gondar (2012) do conceito cunhado pelo sociólogo
Erikson, nas suas palavras:
Por trauma coletivo me refiro a um golpe nos tecidos básicos
da vida social que destrói os vínculos que ligam mutuamente as
pessoas e que causa um prejuízo no sentido existente de comu-
nidade [...]. O eu continua existindo, ainda que tenha sofrido
dano e mesmo mudanças permanentes; o tu continua existindo
ainda que distante, e pode ser difícil se relacionar com ele; mas
o nós deixa de existir (ERIKSON, 2011, p. 69 apud GONDAR,
2012, p. 196-197).
Por essa perspectiva de trauma social como desarranjo nos vínculos en-
tre as pessoas, destacamos a segregação como um fator que, embora anteceda
a pandemia de covid-19, se sobressai (ou se intensifica) a partir dela. Neste
trabalho, a partir da noção de segregação em Lacan, pensado aqui enquanto um
fator associado à precarização das vidas e ao incremento das vulnerabilidades,
objetiva-se apresentar dois possíveis efeitos da segregação atualizados no con-
texto atual da pandemia de covid-19, quais sejam: o racismo e a fome, ambos
relacionados aos desmentidos históricos brasileiros. Sob uma perspectiva psica-
nalítica, pretendemos alcançar a dimensão do trauma e da catástrofe envolvidos
nos sofrimentos que se atualizam na pandemia atual.
174
a vida já estavam sendo negligenciadas: “infelizmente prevemos que muitos não
passarão pelo buraco da agulha”.
175
das prisões do mundo “e outras pessoas cuja vida é despedaçada contra muros e
outras técnicas de criar fronteiras”.
176
Diante disso, gostaríamos de indicar os efeitos da atual política de isola-
mento para uma política da segregação, considerando-se o termo cunhado rapi-
damente em alguns momentos específicos na obra de Lacan, mas muito potente,
ainda que pouco comum ao vocabulário usual da psicanálise. A segregação esta-
ria no princípio da fraternidade, afirma Lacan (1970/1992) no seu “O Seminá-
rio, Livro 17”:
só conheço uma única origem da fraternidade [...] é a segrega-
ção. [...] na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação,
e a fraternidade em primeiro lugar. Nenhuma outra fraternida-
de é concebível, não tem o menor fundamento, [...] o menor
fundamento científico, se não é por estarmos isolados juntos,
isolados do resto (p. 120-121).
177
Feita essa breve explanação sobre a noção de segregação em Lacan,
podemos retomar o contexto da pandemia. É importante relembrarmos que,
mesmo antes da pandemia chegar em território brasileiro, vivíamos em cidades
divididas, separadas e isoladas. O alto nível de desigualdade e violência no Brasil
contribuiu para novas formas de moradia e convivência no espaço público (SPO-
SITO; GÓES, 2013). Como exemplo claro temos uma enorme quantidade de
shoppings centers e condomínios de luxo que normatizam uma área comum,
fiscalizando quem entra e quem sai, quem pode e quem não pode circular nesses
espaços, geralmente em nome de uma segurança exigida por determinada classe
socioeconômica (DUNKER, 2015).
Se antes já existia uma clara prática segregativa, cujo principal alvo era
(e ainda é) o indivíduo considerado perigoso encerrado em espaços de segrega-
ção (favelas, cracolândias e presídios, por exemplo), hoje essa lógica é atualizada
em nome do novo coronavírus. Agora se trata dos que podem ficar isolados e
dos que não podem. Anteriormente, tínhamos a violência policial eliminando
várias vidas não passíveis de luto, hoje temos também o descaso do governo e
das elites diante de uma enorme parcela da população que não possui recursos
mínimos para manter os cuidados necessários de prevenção à covid-19.
178
preensão de como a sociedade brasileira se organizou permanecem recalcados,
inscritos como traços de memória nacional que insistem em se presentificar,
em que pese o trabalho sistemático de silenciamento das elites e de alguns seto-
res da sociedade brasileira. Destacamos o racismo como um desses elementos
importantes na compreensão da história da nossa organização social – racismo
reiteradamente negado como forma de manutenção do maior de todos os mitos
brasileiros, a saber, o mito da democracia racial. Segundo Souza (1994), esse
mito fora construído para sustentar uma imagem fantasiosa de Brasil, cercado
de belezas naturais e de uma cultura dita exótica, onde as três raças conviviam
de forma pacífica e harmoniosa. O exotismo e a dita democracia racial se fixa-
ram como imagem que teria conferido certa projeção internacional, reforçada
pelas elites ávidas por fazerem-se reconhecidas pelo mundo.
179
Pesquisa realizada pelo Instituto Pólis (2020), entre os dias 1º de março
e 31 de julho deste ano e divulgada pela Agência Brasil em agosto de 2020 pela
repórter Camila Boehm, revelou que, na cidade de São Paulo, a taxa de mor-
talidade por covid-19 entre negros foi maior que entre a população branca. A
pesquisa demonstrou que, na capital paulista, a taxa de mortalidade da popu-
lação negra foi de 172 mortes por 100 mil habitantes, enquanto a taxa entre a
população branca foi de 115 por 100 mil habitantes.
180
Os efeitos de segregação da pandemia sobre a insegurança alimen-
tar
181
fome é um evento que poderia ser evitado – demonstra um caráter contingente,
envolvendo aí a desigualdade social, a má distribuição de renda, mas que não é
necessária, uma cena da catástrofe humana.
182
temos todos a mesma condição de abrigo, ou seja, não estamos no “mesmo
barco”.
Considerações finais
183
Referências
GÓES, E. Parece normal 100 mil pessoas morrerem e a maioria ser ne-
gra. FAPESP, set. 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/e-
-considerado-normal-100-mil-pessoas-morrerem-e-a-maioria-ser-pobre-ne-
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2020.
184
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cia IBGE, 17 set. 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.
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MARTINS, K.; RABELO, F. (no prelo) A escrita da história e do luto nas catás-
trofes coletivas. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, v. 11, n. 3, p. 28-44, 2020.
185
Cj0KCQjwv7L6BRDxARIsAGj34p01Qg37YRe
8AHQXAMXjipMnxs_PnIk63viPX0WgGLaNd9T0tVET8aApfOEALw_wcB.
Acesso em: 20 set. 2020.
186
13
187
As mortes de familiares, amigos ou conhecidos na pandemia, ocorren-
do, muitas vezes, em massa e em pouco tempo, afetam diretamente o funciona-
mento coletivo das comunidades, assim como a organização psíquica das popu-
lações afetadas. Além disso, outras perdas estão sendo vivenciadas na pandemia
e seus impactos também devem ser considerados no estudo do luto e saúde
mental (SCHMIDT et al., 2020). As desigualdades sociais foram evidenciadas
e ampliadas devido às restrições de liberdade como medida de segurança para
conter a contaminação por covid-19, afetando trabalhos, formações e relações
sociais. Dessa forma, compreender essas perdas e as consequências delas para
a elaboração do luto na pandemia torna-se fundamental, considerando que os
afastamentos gerados pelo distanciamento social são aspectos relevantes para
estudar as dificuldades que o contexto atual nos apresenta nessas vivências rela-
cionadas ao luto (CREPALDI et al., 2020).
188
de acordo com cada contexto, afetando todo o processo de elaboração do luto.
Devido à importância desses cenários é indispensável a apropriação desses as-
pectos para o reconhecimento das formas de elaboração e quais os impactos que
esses processos terão futuramente.
189
autodestrutivos ou por causas externas.
190
Embora a finitude esteja presente em vários momentos da vida humana,
nota-se um afastamento desses aspectos relacionados à morte e ao morrer, cons-
tituindo-se como tabus em nossa sociedade (hiper)moderna (FRANCO, 2007).
Muitas vezes, discorrer sobre reflexões acerca do luto é malvisto por diversos
sujeitos e culturas, apresentados em uma posição negativa e indesejável, sendo,
ainda, aqueles que buscam discutir sobre essa experiência taxados como “som-
brios”, quando não ocorre o silenciamento direto dessas pessoas.
191
a teoria da vinculação e seus impactos nas relações humanas, como no enten-
dimento do luto. O vínculo, a partir dessa teoria, pode ser entendido como a
relação entre o bebê e a figura de cuidador, auxiliando na forma de cuidado e na
própria sobrevivência do bebê, existindo diferentes vínculos que terão reper-
cussões também na vida adulta desses indivíduos. Nota-se que, inicialmente, a
morte pode ser entendida como a ausência dessa figura de apego, estando pre-
sentes sentimentos como angústia, raiva e ansiedade resultantes dessa ruptura
do vínculo e da ausência da figura de carinho (DALBEM; DELL’AGLIO, 2005).
192
Psicologia e o processo de luto
193
fragilizados e mais suscetíveis a desenvolverem transtornos mentais graves, po-
dendo, assim, prejudicar os processos de saúde-doença. Desse modo, a saúde
biopsicossocial dos enlutados deve receber atenção reforçada pelos profissionais
da saúde, avaliando os limites individuais e a disponibilidade pessoal de estraté-
gias para a travessia desse processo de luto, como também apreender modos da
própria comunidade sanar essas necessidades, principalmente em lutos coleti-
vos e complicados, como os vivenciados atualmente na pandemia (CREPALDI
et al., 2020).
194
maneira veemente pelas grandes mídias e redes sociais, o processo de luto pode
ser intensificado e, muitas vezes, dificultado. Dessa forma, o psicólogo possui
papel fundamental para contribuir com a elaboração desses lutos, contribuindo
para resoluções coletivas, divulgando informações confiáveis com embasamento
científico sobre o processo de luto e, além disso, priorizando a atuação multi-
profissional com diversos profissionais que possam contribuir nessa situação.
195
vos e adaptados para o momento atual, criando formas de laços interpessoais e
sociais, consolidando e garantindo o suporte social e comunitário. Essas ações
podem envolver, principalmente, as formas virtuais de comunicação, através
de videoconferências entre a comunidade, transmissão ao vivo de cerimônias
religiosas, novas formas de homenagear a pessoa falecida, como por meio de
gravação de vídeo ou fotos de espaços dedicados a essas pessoas. Esses aspec-
tos de proteção devem ser estimulados e criados em toda a rede de saúde, da
Atenção Primária à Saúde até a Atenção Terciária, evidenciando a integração e
intersetorialidade da rede.
Considerações finais
196
e os estigmas envolvidos, desenvolvidos em programas de educação em saúde
sobre o advento da perda.
Referências
197
org/pdf/2290/229017444003.pdf. Acesso em: 09 ago. 2020.
198
TO, T. H. Luto: uma perspectiva da terapia analíticocomporta-
mental. Psicologia Argumento, v. 33, n. 83, 2017. Disponível em: ht-
tps://per iodicos.pucpr.br/psicolog iaargumento/ar ticle/view/
19593. Acesso em: 22 ago. 2020.
199
14
200
ticas reptilianas, não poderia ser mais apropriado para descrever um país que se
caracteriza como altamente urbanizado,
[com] pouca força de trabalho e população no campo, dunque
nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agro-
business. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial
completo, avançado, tatibitate, pela Terceira Revolução, a mo-
lecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito
diversificada numa ponta, quando ligada aos estratos de altas
rendas, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; nou-
tra, extremamente primitiva, ligada ao consumo dos estratos
pobres (OLIVEIRA, 2008, p. 132-133).
201
Sabemos muito bem quais foram os resultados disso. A eficácia do pro-
jeto de derrubada da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, somada ao fortaleci-
mento dos espíritos conservadores, reacionários e fascistas, que paulatinamente
apresentaram planos e justificativas para o retorno à política para poucos no
país, com discursos contrários ao desenvolvimento das políticas sociais. A forma
de exceção permanente do capitalismo na periferia do mundo. Desatenta, a
esquerda não percebeu que enquanto nos últimos anos os intelectuais focavam
suas energias nos estudos e denúncias dos problemas relacionados à cidadania,
inclusão, injustiças a reparar, superação dos preconceitos, direito ao dissenso,
entre outras pautas, o capitalismo feroz vinha corroendo toda e qualquer mol-
dura reguladora da democracia.
202
ram o cargo), Ricardo Vélez, discípulo do guru bolsonarista Olavo de Carvalho,
tornou-se o protagonista das primeiras polêmicas do governo. Entre elas, a exi-
gência de que as escolas que executassem o Hino Nacional gravassem e lessem
uma carta de sua autoria que continha o slogan da campanha de Jair Bolsonaro:
“Pátria acima de tudo, Deus acima de todos”. Absurdo que foi ridicularizado
em todos os meios de comunicação e, diante da repercussão negativa, abando-
nado em sua execução. Também foi publicada uma portaria do Ministério da
Educação (MEC) que suspendia a avaliação da alfabetização dos estudantes por
dois anos, também revogada após críticas. O ministro ainda propôs a criação de
uma comissão de avaliação para as questões da prova do Enem (a avaliação anual
do Ensino Médio, cujos resultados servem para o ingresso nas universidades
públicas do país), com a justificativa de ajustamento delas à “realidade social e
assegurar um perfil consensual ao exame”.
203
tos, o que correspondia a menos da metade do executado no mesmo período
de 2018 (o que se repetiu em 2020, uma vez que Abraham Weintraub esteve à
frente do Ministério da Educação até junho). O único setor da Educação a não
sofrer cortes, mesmo com menor investimento, foi o das escolas cívico-milita-
res, uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro. Em 2020, de acordo
com o Ministério da Educação, foram atendidas 54 escolas, espalhadas por 23
estados e pelo Distrito Federal. Nos colégios militares, cada aluno custa, em
média, R$ 7.397,10 aos cofres públicos, ao passo que o governo federal gasta,
em média, R$ 832,05 para cada aluno na rede pública de ensino.
204
se refere ao presidente do país e seus seguidores e apoiadores, tanto a covid-19
quanto a própria crise econômica foram tratadas, em 24 de março de 2020,
como infortúnios passageiros, efeitos de “uma gripezinha”, conforme o próprio
Jair Bolsonaro classificou a doença, mesmo correndo o risco de agravar ainda
mais essa crise econômica por aqui, uma vez que se tornou objeto de fake news
nas redes sociais.
205
versão em castelhano, publicada em 16 de maio, no Uruguai; no texto, diante
dos anúncios cada vez mais banais acerca do aumento das mortes e publicização
de caixões sendo enterrados sem identificação, assinalei que “os números não
morrem, só as pessoas morrem” e que a forma de utilização dos números e
apresentação das imagens estavam servindo a um propósito muito específico:
o respeito aos mortos, ao próprio corpo, ora tomado como sagrado, ora como
objeto médico, estava sendo destruído de forma ampla e espetacularizada na
internet.
206
e restrições adotadas por governadores e prefeitos, raramente faz uso de más-
caras em público e frequentemente promoveu aglomerações, desrespeitando
recomendações da Organização Mundial da Saúde para conter a disseminação
do vírus. Além disso, o presidente criticou vacinas e comemorou como uma
vitória pessoal nas redes sociais e entrevistas concedidas a breve interrupção,
determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), dos testes
no Brasil da CoronaVac, pelo Instituto Butantan, vinculado ao governo do es-
tado de São Paulo. O Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a colocar um
prazo de 60 dias para que o governo federal apresentasse um plano detalhado de
vacinação da população brasileira. O governo simplesmente ignorou o pedido,
fazendo apenas uma afirmação de que a requisição deveria ser feita ao Ministério
da Saúde.
207
gar e pegar em todo mundo”.
208
direito, favorecendo os interesses de acumulação de capital por meio de condi-
ções pautadas na exploração maximizada da força de trabalho e na desvaloriza-
ção do trabalho afetivo e doméstico (FRASER; JAEGGI, 2020).
209
nome de um risco que não podia ser especificado e o medo que já nos assom-
brava muito antes da pandemia: um governo terrorista, dependente do caos, do
medo e da destruição para sustenta-se no poder. Não por acaso, Jair Bolsonaro
continua afirmando publicamente que não acredita na efetividade de lockdown,
implementado pelos governadores dos estados, isto é, das medidas de restrição
à circulação de pessoas e funcionamento de comércio e serviços para tentar
frear o avanço da pandemia de covid-19. Além disso, sustenta o argumento de
que o lockdown atrapalha a produção de empregos e auxilia no aumento da fome.
Faz a gestão federal em favor da pandemia, com ações pouco efetivas e não
preocupadas em garantir o mínimo de dignidade e de recurso de sobrevivência.
Passadas as festas de final de ano, iniciamos 2021 com uma nova onda
ainda mais forte por conta da variante da doença que apareceu em Manaus,
estado do Amazonas. No dia 7 de janeiro, o Brasil atingiu a marca de 200 mil
mortos pela covid-19. Na ocasião, o presidente chegou até a lamentar os óbitos,
seguido da frase “a vida continua”. O comentário sobre a quantidade de mortes
não tomou 1 minuto do tempo de sua narrativa, em uma live nas redes sociais
que superou uma hora de duração. De forma curiosa, a frase do presidente não
se tornou tão polêmica como as anteriores, pois estávamos em um processo de
abertura e retomada da economia, ao ponto de os noticiários sustentarem uma
forma de notificação das mortes que parece querer justificar a fala de Bolsonaro.
A subjetividade atacada por números, em que as contaminações e as mortes
da população, pela covid-19, são registradas e divulgadas pelos diversos meios
de comunicação como números negativos que se contrapõem aos números de
recuperados, como uma forma de estatística perversa utilizada para incitar a
população para a retomada da economia, reforça a máxima benjaminiana de que
“quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava
nele o que é ouvido” (BENJAMIN, 1994, p. 204-205).
210
Todavia, o horror que seguiria nos dias seguintes reposicionou algumas
dessas notícias. Manaus ficou ainda mais em evidência por conta da crise que
eclodiu no dia 14 de janeiro, quando o estoque de oxigênio acabou em diversos
hospitais e pacientes internados por covid-19 morreram. O episódio mostrou-
-se ainda mais absurdo ao observamos que entre os dias 11 e 13 de janeiro, o
3º ministro da Saúde nomeado por Bolsonaro durante a pandemia, Eduardo
Pazuello, esteve em Manaus para, entre outros pontos, promover o tratamento
precoce contra a covid-19 com remédios como a cloroquina e a ivermectina,
sem eficácia comprovada. Dois dias antes da crise e ciente dos problemas no
fornecimento do gás, Bolsonaro responsabilizou o governo do Amazonas e a
prefeitura de Manaus por “deixar acabar” o oxigênio que seria destinado aos
pacientes de covid-19. Aproveitou a entrevista aos jornalistas para promover o
uso da cloroquina e ivermectina, ao dizer que a cidade não estava aplicando o
“tratamento precoce” contra a covid-19 – sem comprovação científica –, o que
segundo ele teria contribuído para a situação dramática. A mobilização para a
crise veio mais rapidamente por meio das redes sociais e organização de artistas
e ativistas que fizeram doações de tanques de oxigênio, uma vez que não era
possível depender de ações urgentes e eficazes do governo federal.
211
o Instituto Butantan segue sofrendo inúmeras vezes com atrasos de chegada de
insumos para a produção da vacina, em muitos casos por pronunciamento e
posturas do presidente, que insiste em acusar a China de ter criado o vírus em
laboratório e tantas outras fake news. No mês de março de 2021, registramos
mais de 300.000 mortos; o discurso do presidente Bolsonaro pareceria ser deli-
rante, se não fosse cínico e mentiroso, ao dizer: “o governo não deixou de tomar
medidas importantes tanto para combater o coronavírus como para combater o
caos na economia”. No dia 23 de abril, ele conseguiu aprovação do orçamento
para 2021. No pior momento da pandemia de covid-19 no país, os valores efeti-
vamente aplicados em saúde serão quase os mesmos de 2019, quando não havia
pandemia (AGÊNCIA SENADO, 2021). O segundo maior corte do orçamento
ocorreu no Ministério da Educação, que perdeu R$ 3,9 bilhões (MÁXIMO,
2021). Em maio, passamos dos 400.000 mortos e apenas 4,1% da população foi
vacinada completamente. O desinvestimento em políticas públicas e ações que
poderiam, de fato, combater os efeitos orgânicos e sociais da covid-19 expres-
sam a imagem de um país que desde sua invasão e genocídio por Portugal faz
política a partir do descaso pela vida dos outros, inclusive dos mais próximos. O
presidente é a imagem que evidencia a aparência, a ostentação e os delírios de
um “novo normal”, no cotidiano das pessoas sem conteúdo.
“A imagem tem sua força drenada pela maneira como é usada, pelos
lugares onde é vista e pela frequência com que é vista” (SONTAG, 2003, p.
88), escreveu Susan Sontag, e essa sentença não poderia ser mais certeira para
analisarmos o modo como a imagem da morte, sua tradução em números e
as performatividades narrativas do presidente Jair Bolsonaro foram e têm sido
utilizadas durante a pandemia para negar sua gravidade e a dor provocada pelas
mortes apresentadas nas estatísticas. Sontag (2003) ensina que, para que a dor se
torne uma imagem em nossa sensibilidade e abra espaço para que ela faça parte
de um processo de travessia, de ressignificações, de narrativas, de histórias, é
212
necessário que nos identifiquemos com ela, é importante que ela seja como
um espelho. Entretanto, a imagem que se apresenta não é capaz de promover
nenhuma emancipação. No máximo, ela representa o ornitorrinco, que é “uma
acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão”, como bem
descreveu Chico de Oliveira (2008, p. 150). No contexto da pandemia de co-
vid-19, nosso ornitorrinco se apresenta como um desafio de compreensão para
nosso pensamento, nossa análise e ação. O que nos resta é continuar seguindo
com a luta, que é como um círculo onde não sabemos bem quando se inicia e
não sabemos onde termina.
213
e chorar nos dias que passaram e virão pela frente, deverão ser compreendidos
como os novos limites de nossa capacidade de se indignar, pensar, escrever e
lutar.
‘Quando os mortos choram, é porque
estão começando a se recuperar’, dis-
se o Corvo em tom solene. ‘Lamen-
to ter de refutar meu amigo e colega
ilustre’, disse a coruja, ‘mas, no que
me diz respeito, creio que quando
os mortos choram, significa que não
querem morrer’ (Carlo Collodi – As
aventuras de Pinóquio).
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SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
216
15
Zulmira Áurea Cruz Bomfim, Maria Zelfa de Souza Feitosa Oliveira e Nara
Maria Forte Diogo Rocha
A opção pelo nome povos originários, no Brasil e nos estudos das popu-
lações indígenas, marca uma mudança na forma de reconhecimento dos indíge-
nas brasileiros, partindo de uma concepção integracionista relativa à sociedade
brasileira, conforme a criação do Estatuto do Índio, em 1973, para uma relação
em que o Estado brasileiro reconhece, pela Constituição de 1988, a organização
social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários sobre as terras
que ocupam, sendo, portanto, dever da União demarcá-las. A expressão “povos
originários” remete às raízes de cada cultura e permite compreender que o pro-
cesso recente de etnogênese de muitas etnias não significa sua anterior extinção
nem trata de pessoas que desconheciam sua ancestralidade. Para sobreviver, os
indígenas precisaram, por muito tempo, utilizar a estratégia de se esconder, sob
identidades impostas pelos colonizadores, mas a luta ancestral atravessou gera-
ções, de maneira que esse processo de etnogênese significa uma nova estratégia
de sobrevivência e, acima de tudo, a possibilidade de reassumir publicamente
aquilo que nunca deixaram de ser.
Essa pontuação faz-se ainda mais importante diante das atuais ameaças
impostas pela tese do Marco Temporal, configurada como uma pressão ruralista
217
para restringir os direitos constitucionais desses povos. Essa tese, que tem sido
usada para pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a favorecer os grandes
latifundiários nas definições e julgamentos acerca dos conflitos de terra, defende
que somente podem requerer o direito ao território os indígenas que, na data de
05 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal vigente,
estivessem estabelecidos nesses espaços, o que desrespeita seus direitos e busca
invisibilizar as existências marcadas pela violência da colonização, que desenrai-
za muitos povos, com práticas contra as quais esses não puderam resistir naquele
momento, e, por isso, forçados a abandonar suas terras originárias. É preciso
dizer que os modos de vida desses povos estão intimamente integrados à sua
ancestralidade, à “com-vivência” da coletividade, à Mãe-Terra e tudo o que há
nela. Nessa dimensão, América Profunda é o termo cunhado por Rodolfo Kusch
(1999) para referir-se à ancestralidade latino-americana.
A partir do Censo de 2010 (IBGE, 2012), verificou-se que 817 mil pes-
soas se autodeclaram indígenas, o que representa 0,4% da população brasileira,
das quais 19.336 habitam o território cearense. Do total de autodeclarados indí-
genas brasileiros, 502.783 vivem em áreas rurais, enquanto 315.180 moram em
áreas urbanas (IBGE, 2012). No Ceará, oficialmente, a Coordenação Regional
da Fundação Nacional do Índio (Funai) reconhece 14 etnias, distribuídas em 19
218
municípios e que somam cerca de 31 mil indígenas dos seguintes povos: Anacé,
Tremembé, Jenipapo-Kanindé, Kanindé, Tapeba, Tabajara, Potyguara, Kalabaça,
Pitaguary, Gavião, Kariri, Tapuya-Kariri, Tupinambá e Tupiba-Tapuia (FUNAI,
[20--]). Entretanto, além desses povos, existem etnias ainda lutando por seu
reconhecimento, a exemplo do povo Karão, já reconhecido pelas demais etnias.
O Ceará tem sido um dos Estados brasileiros que mais tem negado a
existência de suas etnias indígenas em seu território e o lugar onde a hegemonia
do Estado atuou de forma preponderante para a perda de visibilidade indígena,
que, segundo Pinheiro (2018), só começou a ser revertida a partir da década de
80, pela mobilização do povo Tapeba. Já quanto ao povo Pitaguary, esse processo
teve início na década de 90, quando começaram a se organizar politicamente
para pressionar pela demarcação de sua terra.
219
Não podemos deixar de considerar que a desigualdade e a opressão social são
fenômenos diretamente implicados nas bases produtivas, econômicas e políticas
de uma determinada sociedade; desdobram-se na constituição do indivíduo que
vive e sente na carne as mazelas da exclusão/inclusão, conforme aponta Sawaia
(2011).
220
questão, ritos devem ser realizados de modo que o espírito possa se encantar.
A realização dos rituais para o fortalecimento e cura também faz parte de sua
realidade.
221
serão aqui abordadas como pioneiras no sentido da produção de conhecimentos
comprometidos com os povos originários, valorizando seus saberes, cultura e
modos de vida. Sabemos, portanto, que muito há a caminhar e construir. Aler-
tamos, contudo, que tal construção precisa ser sensível às necessidades e singu-
laridades dos envolvidos.
222
volvido propostas de trabalho com os povos originários. Neste caso, as atuações
no território caracterizaram-se pela transdisciplinaridade e profunda integração
entre alunos de diferentes níveis acadêmicos (graduandos e pós-graduandos),
reunindo, além dos indígenas, colaboradores da psicologia, economia, geogra-
fia, ciências biológicas e farmácia, da Universidade Federal do Ceará e de outras
Instituições de Ensino Superior públicas e privadas.
223
Metodologias ativas e participativas: mantendo a conexão univer-
sidade e aldeia
224
Para a aproximação do arcabouço teórico e metodológico que nos pro-
pomos, pela afetividade e decolonialidade, optamos por metodologias ativas e
participativas pela dimensão ético-política relativa ao campo, considerando os
objetivos de: a) articular de forma dialética sujeito pesquisado/pesquisador; b)
ter como referência os afetos como base para a formação do pensamento, da éti-
ca e de uma racionalidade ético-afetiva; c) considerar a vivência como dimensão
mediadora para a construção de significados e de reflexão para a aprendizagem;
e d) articular ferramentas que acessem a dimensão vivencial, da arte e de pro-
cessos emancipatórios.
225
Desde as primeiras aproximações do Laboratório com as populações
indígenas, realizamos as trilhas socioambientais, metodologia construída a par-
tir das ciências geográficas, que tem por objetivo reconhecer cognitivo-afetiva-
mente os ambientes construídos e naturais, proporcionando as inter-relações
dos participantes entre si e com os ambientes (SIEBRA et al., 2015). Nessas
experiências, do ponto de vista metodológico e de formação, conseguimos
perceber que o contato com o campo pelos alunos e professores mostrou um
processo rico de convivencialidade ao entrar em contato com as aldeias, expe-
rimentar a natureza e a cultura indígena. Isso ficou implícito, por exemplo, na
fala de uma aluna do 7o semestre, do curso de psicologia, em seu relatório da
visita de campo:
Gostaria de externar o quão gratificante foi participar da tri-
lha ecológica organizada pelo LOCUS. Uma experiência ímpar,
que com certeza contribuiu para mim como estudante e como
pessoa. Sei que ao passar por esta experiência aprendemos a
respeitar um pouco mais a natureza, os animais, enfim, cada ser
vivo.
226
21 km de perímetro, que abriga as aldeias Santo Antônio, Olho D’Água, Horto
e Aldeia Nova, na região de Maracanaú e Monguba. Guiados pela metodologia
etnográfica, realizamos um processo de inserção, planejamento e realização de
ações em íntima relação com os indígenas. Desse percurso de vivências afetivas,
construímos conjuntamente a proposta de um grupo intitulado Guardiões do
Ambiente, cujo objetivo era o fortalecimento da cultura Pitaguary, voltado para
crianças e adolescentes, com enfoque participativo e intergeracional.
227
cial moderna e desenvolvimento tecnológico, com suas novas e sutis práticas de
colonialidade, que criam atrativos concorrentes ao interesse pela própria cultu-
ra, e da constatação da inexistência de materiais semelhantes que viabilizassem
essas aproximações com a própria cultura. O jogo é cooperativo, contando com
perguntas relacionadas à cultura Pitaguary e a proposição de situações-problema
que devem ser discutidas pelos jogadores. Todo o material foi construído com a
participação dos indígenas e baseado em acontecimentos vivenciados por eles.
Para a sua construção, realizamos trilhas socioambientais, rodas de conversa in-
tergeracionais, com a participação dos troncos velhos e lideranças locais, utili-
zamos o recurso fotográfico e a produção gráfica de artistas indígenas Pitaguary.
228
Considerações finais
229
do foco comum na problematização da vida como centro das ações humanas na
terra.
Referências
230
KUSCH, R. America Profunda. Buenos Aires: Editorial Biblos, 1999. 182 p.
231
Os autores e as autoras
Aline Gabriele Carvalho de Lima
Mestra em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Cea-
rá (UFC). E-mail: alinegclima@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-0276-3277
1
Antonio Marlon Coutinho Barros
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Especialista
em Saúde da Família pela Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasi-
leira (UNILAB). E-mail: marloncoutinho@gmail.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0003-1996-7476.
2
Dagualberto Barboza da Silva
Mestrando em Psicologia (UFC). E-mail: dalgobarboza92@gmail.com. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0003-3788-1780
3
Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
Doutor em Educação (UFC). Professor do Curso de Psicologia (campus Sobral)
e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas Públicas (UFC). Bolsista
de Produtividade e Interiorização (FUNCAP). E-mail: pablo.pinheiro@ufc.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9289-845X
4
Karla Patricia Holanda Martins
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e da Gra-
duação em Psicologia (UFC). Bolsista de Produtividade CNPq. E-mail: kphm@
uol.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3242-6287
5
Louanne Carneiro de Oliveira
Mestranda em Psicologia e Políticas Públicas (UFC – campus Sobral). E-mail:
louanne.anne@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1354-2995
6
Magda Dimenstein
Doutora em Saúde Mental (UFRJ). Professora visitante no Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Professora Titu-
lar do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: mgdimenstein@gmail.com. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-5000-2915
7
Nara Maria Forte Diogo Rocha
Doutora em Educação Brasileira (UFC). Professora da graduação e do Mestrado
Profissional em Psicologia e Políticas Públicas da UFC. E-mail: narafdiogo@
gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5040-1492
8
Paulo Francis Jorge da Silva
Graduando em Psicologia (UFC). Colaborador do LAPSUS. Bolsista de Inicia-
ção Científica (PIBIC-UFC). E-mail: paulofrancisjorge@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5194-8120
9
Raiza Lopes Pires
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral.
Membro do Laboratório Clínica,Sujeito e Políticas Públicas (CLIPSUS).
Samanta Basso
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Especia-
lista em Clínica Psicanalítica pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
E-mail: samanta.basso@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-
0961-9710
10
Ceará. E-mail: santosthamilaa@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-
0001-8616-0731
11