MILL J S Sujeição Mulheres
MILL J S Sujeição Mulheres
MILL J S Sujeição Mulheres
câmara
A SUJEIÇÃO
DAS MULHERES
John Stuart Mill e
Harriet Taylor
Traduzido por
Leide Daiane de Almeida Oliveira e
Naylane Araújo Matos
Prefácio de Mary Del Priore
A SUJEIÇÃO
DAS MULHERES
Câmara dos Deputados Secretaria da Mulher
56ª Legislatura | 2019-2023 Coordenadora-Geral da
Bancada Feminina
Presidente Celina Leão
Arthur Lira
1ª Coordenadora Adjunta
1º Vice-Presidente Luísa Canziani
Marcelo Ramos
2ª Coordenadora Adjunta
2º Vice-Presidente Professora Rosa Neide
André de Paula
3ª Coordenadora Adjunta
1º Secretário Professora Marcivânia
Luciano Bivar
Procuradora da Mulher
2ª Secretária Tereza Nelma
Marília Arraes
1ª Procuradora Adjunta
3ª Secretária Maria Rosas
Rose Modesto
2ª Procuradora Adjunta
4ª Secretária Lídice da Mata
Rosangela Gomes 3ª Procuradora Adjunta
Leandre Dal Ponte
Suplentes de secretários
Diretor-Geral Secretária
Celso de Barros Correia Neto Soraya Santos
Câmara dos
Deputados
A SUJEIÇÃO
DAS MULHERES
John Stuart Mill
& Harriet Taylor
Traduzido por
Leide Daiane de Almeida Oliveira
e Naylane Araújo Matos
Prefácio de Mary Del Priore
edições
câmara
Câmara dos Deputados
Diretoria Legislativa: Luciana da Silva Teixeira
Consultoria Legislativa: Geraldo Magela Leite
Centro de Documentação e Informação: André Freire da Silva
Coordenação Edições Câmara: Ana Lígia Mendes
Edição: Ana Raquel Costa Geraldes
Preparação de originais: Francisco Diniz
Revisão: Tajla Bezerra
Projeto gráfico: Janaina Coe
Diagramação: Rafael Benjamin
Linha Legado.
papel/e-book
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Coordenação de Biblioteca. Seção de Catalogação.
Bibliotecária: Fabyola Lima Madeira – CRB1: 2109
CDU 396.2(091)
APRESENTAÇÃO7
CAPÍTULO I 17
CAPÍTULO II 53
CAPÍTULO III 81
A segunda razão pela qual esse livro segue necessário é a sua ine-
gável e triste atualidade. A obra é provisão fundamental contra a
permanência das desigualdades de gênero em nosso país. Seja na
sobrecarga feminina, decorrente da maior quantidade de horas
dedicadas aos afazeres domésticos, seja na diferença salarial entre
os gêneros ou na escassez de mulheres na política e em cargos de
direção e chefia, as discrepâncias seguem habitando nosso coti-
diano. E das notícias de violência doméstica e de feminicídio, tão
corriqueiras quanto bárbaras, retiramos os exemplos mais cruéis
dos limites inaceitáveis até onde pode chegar essa dominação.
7
Quem ganha com a publicação deste livro não são apenas as mu-
lheres, mas toda a sociedade. Parafraseando os autores, a perda
para o mundo é extremamente grave e generalizada quando se
denega igualdade à metade da humanidade.
8
PREFÁCIO
9
Essa troca de gentilezas – “Foi ele.” – “Não, foi ela” – demonstra
uma incrível fusão intelectual. Os textos eram revistos, palavra à
palavra, pelos dois. Em cartas, John insiste que em A sujeição das
mulheres só o nome de Harriet figurasse. Ela não aceitou. Pois,
como dizia o próprio John, “quando duas pessoas compartilham
os mesmos pensamentos, a mesma especulação e todos os temas
de interesse moral e intelectual são objeto de discussões cotidia-
nas”, do café da manhã ao jantar, um fala pelo outro. E ele subli-
nhava, não há importância em discutir a originalidade do texto,
ou em saber quem o escreveu; pois quem contribuiu menos à re-
dação, pode ter contribuído mais ao pensamento. Tratava-se de
um produto comum ou “joint production”, expressão que ele mes-
mo usava para designar os textos do casal.
10
mulheres atravessava todas as classes. Porém, esse poder corrom-
pia homens e, sobretudo, mulheres que se tornavam guardiãs da
ordem estabelecida e dos bons costumes. A supressão das relações
de poder seria a única forma de moralizar a sociedade e de fazê-
-la progredir.
11
NOTA DAS TRADUTORAS
13
um texto dito “original”. E, nesse sentido, reconhecer a autoria de
uma mulher em um texto filosófico, bem como o trabalho ativo
de tradutoras, parece ameaçar a ordem instituída das coisas, qual
seja: dos homens – análogos aos originais – como detentores de
conhecimento e únicos autores legítimos das ideias de qualquer
texto; das mulheres – análogas às traduções – como reprodutoras
da vida e de suas criações. Que John Stuart Mill defendeu ativa-
mente os direitos das mulheres, não há dúvida. No entanto, negar
a participação de Harriet na obra é contrariar um dos próprios
argumentos defendidos no texto, a saber, a circulação de ideias de
mulheres que se materializam pela escrita de homens.
14
consequentemente, da estrutura social. Ao utilizarmos o vocábulo
contemporâneo “escravizado/a”, elucidamos um campo semân-
tico distinto daquele em torno do vocábulo “escravo”, cuja carga
histórico-social naturaliza o processo de escravização das pessoas
negras, colocando-as como passivas desse processo e apagando
sua resistência.
2 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São
Paulo: Boitempo, 2016.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de
Ana Luiza Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mitos e realidades. São
Paulo: Expressão Popular, 3ª ed. 2013.
15
CAPÍTULO I
17
supor que a dificuldade do caso consista na insuficiência ou obs-
curidade dos fundamentos da razão nos quais se apoia nossa con-
vicção. A dificuldade é concernente a todos os casos em que há
uma gama de sentimentos a ser contestada. À medida que uma
opinião está fortemente enraizada nos sentimentos, ela ganha
mais do que perde em estabilidade por ter um peso preponde-
rante de argumento contra ela, pois, se fosse aceita como resul-
tado de um argumento, a refutação do argumento poderia abalar
a solidez da convicção; mas quanto mais se apoia unicamente no
sentimento e pior se sai na disputa argumentativa, mais persuadi-
dos são os adeptos de que seu sentimento deve ter um fundamento
mais profundo ao qual os argumentos não atingem; e, enquanto
o sentimento permanece, sempre se levantam argumentos intrín-
secos para reparar qualquer violação cometida no passado. E há
tantas causas que tendem a tornar os sentimentos relacionados a
esse assunto os mais intensos e os mais profundamente enraiza-
dos para todos aqueles que moldam e protegem velhas institui-
ções e costumes, que nem devemos nos surpreender por ainda os
encontrar menos abalados e despreocupados do que qualquer um
dos demais pelo progresso da grande transição espiritual e social
moderna; nem supor que as barbáries às quais os homens mais
se agarram devam ser menos bárbaras que aquelas das quais se
livraram anteriormente.
Sob todos os aspectos, a carga é árdua para quem ataca uma opi-
nião quase universal. Há de se ter muito fortúnio e capacidade in-
comum se conseguir alguma audiência. Tem-se mais dificuldade
em obter um processo do que qualquer outro litigante em obter
um veredito. Obtendo uma audiência, haverá um conjunto de re-
quisitos lógicos totalmente diferentes daqueles a que são submeti-
das outras pessoas. Em todos os outros casos, supõe-se que o ônus
da prova compete a quem acusa. Se uma pessoa é acusada de as-
sassinato, cabe àquelas que a acusam provar sua culpa, não a si
mesma provar sua inocência. Se houver uma diferença de opinião
18
sobre a realidade de qualquer suposto evento histórico, no qual
os sentimentos das pessoas em geral não estejam muito interes-
sados, como o Cerco de Troia, por exemplo, espera-se que aquelas
que sustentam que o evento tenha ocorrido produzam suas pro-
vas, antes que aquelas que tomam o outro lado sejam requeridas a
dizer qualquer coisa; e em nenhum momento estas são obrigadas
a fazer mais do que mostrar que as evidências produzidas pelas
outras não têm valor.
19
mas não serão pensados assim neste caso. Antes que pudéssemos
esperar causar qualquer impressão, deveríamos não apenas res-
ponder a tudo o que já foi dito por aqueles que tomam o outro lado
da questão, como também imaginar tudo o que poderia ser dito
por eles – desvendar suas razões, bem como respondê-las; e, além
de refutar todos os argumentos para a afirmativa, seríamos con-
vocados a provar os argumentos para a negativa. E mesmo se pu-
déssemos fazer tudo isso e deixar a parte oposta com uma série de
argumentos contra eles irrefutáveis e nem um único argumento
para a afirmativa sem resposta, seria insuficiente, em virtude de
uma causa sustentada, por um lado, pela convenção universal e,
por outro, por uma preponderância tão grande do sentimento po-
pular – supõe-se ter uma presunção a seu favor – superior a qual-
quer convicção que um apelo à razão tenha poder de produzir em
quaisquer intelectos, exceto naqueles de classe alta.
20
o que encontramos em nós mesmos e para o qual não podemos
traçar nenhum fundamento racional. Essa idolatria, infinitamente
mais degradante que a outra, e a mais perniciosa das falsas ado-
rações dos dias atuais, das quais hoje é o principal suporte, pro-
vavelmente se manterá firme até que ceda lugar a uma psicologia
sólida, que desnude a verdadeira raiz de tudo o que está inclinado
à intenção da Natureza e a ordenança de Deus. Quanto à presente
questão, nos predispomos a aceitar as condições desfavoráveis
que o preconceito nos atribui. Concordamos que o costume esta-
belecido e o sentimento comum sejam considerados conclusivos
contra nós, a menos que se possa demonstrar que o costume e
o sentimento de uma época para outra devem sua existência a
outras causas além de sua solidez, e têm seu poder derivado das
piores ao invés das melhores partes da natureza humana. Aceita-
mos o julgamento que possa vir contra nós, a menos que possamos
demonstrar que nosso júri foi corrompido. A concessão não é tão
grande quanto parece; pois provar isso é, de longe, a parte mais
fácil de nossa tarefa.
21
participação em questões públicas, e cada uma em particular sob
a obrigação legal de obediência ao homem a quem ela associou
seu destino – foi o arranjo mais propício à felicidade e bem-estar
de ambos, sua adoção geral poderia então ser razoavelmente con-
siderada uma evidência de que, no momento em que foi adotada,
foi o melhor; ainda que as considerações que o moldaram pudes-
sem ter posteriormente, como tantos outros fatos sociais primor-
diais de maior importância, ao longo dos tempos, deixado de exis-
tir. Mas o estado do caso é, sob todos os aspectos, o inverso disso.
Em primeiro lugar, a opinião a favor do sistema atual, que subor-
dina inteiramente o sexo mais fraco ao mais forte, baseia-se ape-
nas na teoria, pois nunca houve julgamento de outra experiên-
cia; portanto, não se pode fingir que a experiência, no sentido em
que é vulgarmente contrária à teoria, tenha pronunciado qual-
quer veredicto. Em segundo lugar, a adoção desse sistema de desi-
gualdade nunca foi resultado de deliberação, ponderação, ideias
sociais ou qualquer noção do que conduziu ao benefício da huma-
nidade ou à boa ordem da sociedade. Emergiu simplesmente do
fato de que, desde o crepúsculo mais antigo da sociedade humana,
toda mulher (devido ao valor atribuído a ela pelos homens, ad-
vindo de sua inferioridade de força muscular) foi encontrada em
estado de sujeição a algum homem.
22
Em tempos remotos, a grande maioria das pessoas do sexo mas-
culino era escravizada, assim como todas as do sexo feminino.
E muitas eras se passaram, algumas delas de alta cultura, antes
que qualquer pensamento apresentasse audácia suficiente para
questionar a legitimidade e a absoluta necessidade social, seja de
uma escravidão ou de outra. Gradualmente, tal pensamento foi
surgindo e (amparada pelo progresso geral da sociedade) a es-
cravidão do sexo masculino, pelo menos em todos os países da
Europa cristã (embora em um deles apenas nos últimos anos) foi
abolida por completo, e a do sexo feminino aos poucos foi sendo
atenuada em uma forma de dependência. Mas essa dependên-
cia, tal qual existe atualmente, não é uma instituição original que
parte de considerações de justiça e conveniência social – é o es-
tado primitivo da escravidão que perdura por meio de sucessi-
vas mitigações e modificações ocasionadas pelas mesmas causas
que suavizaram os modos comuns e colocaram todas as relações
humanas sob maior controle da justiça e da influência da huma-
nidade. Não perdeu a mácula de sua origem brutal. Portanto, ne-
nhuma presunção a seu favor pode ser extraída apenas do fato
de sua existência. Sua única presunção deveria estar fundamen-
tada no fato de ter durado até agora, quando tantas outras coisas
que vieram da mesma fonte odiosa já foram eliminadas. E isso, de
fato, é o que se torna estranho aos ouvidos comuns, a afirmativa
de que a desigualdade de direitos entre homens e mulheres não
tem outra fonte além da lei dos mais fortes.
23
de algum pretexto aparentemente motivado por algum interesse
social comum. Este é o estado ostensivo das coisas. As pessoas se
lisonjeiam de que a mera lei da força está encerrada; que a lei
dos mais fortes não pode ser a razão da existência de qualquer
coisa que tenha permanecido em pleno funcionamento até o pre-
sente momento. No entanto, elas acreditam que qualquer uma de
nossas instituições atuais só pode ter sido originada e preservada
até este período de civilização avançada por um sentimento bem
fundamentado de sua adaptação à natureza humana e propício
ao bem comum. Elas não entendem a grande vitalidade e durabi-
lidade das instituições que se colocam ao lado do poder; quão in-
tensamente elas estão agarradas a isso; como tanto as boas quanto
as más propensões e sentimentos daqueles que têm o poder nas
mãos se identificam em retê-lo; quão lentamente essas más insti-
tuições cedem, uma de cada vez, as mais fracas primeiro, come-
çando pelas que estão menos entrelaçadas com os hábitos diários
da vida; e quão raramente aqueles que obtiveram poder legal,
porque tiveram primeiro o poder físico, perderam seu domínio
até que o poder físico tenha passado para o outro lado. O fato de
tal mudança da força física não ter ocorrido no caso das mulhe-
res, combinado com todas as características e peculiaridades deste
caso particular, certifica que desde o princípio este ramo do sis-
tema de direito fundado em poder, embora suavizado em suas
características mais atrozes em um período anterior em relação
a vários outros, seria o último a desaparecer. Foi inevitável que
esse caso específico de uma relação social fundamentada na força
sobrevivesse por gerações em instituições ancoradas em justiça
igualitária, uma exclusividade ao caráter geral de suas leis e cos-
tumes; mas enquanto não afirmar sua própria origem, e enquanto
a discussão não levantar seu verdadeiro caráter, não será contes-
tado pela civilização moderna, assim como a escravidão domés-
tica entre os gregos foi contestada pela noção deles próprios como
um povo livre.
24
A verdade é que as pessoas do presente e das últimas duas ou
três gerações perderam todo o senso prático da condição primi-
tiva da humanidade; e apenas as poucas que estudaram a his-
tória com precisão, ou as que muito frequentaram as partes do
mundo ocupadas pelos representantes vivos de épocas passadas,
são capazes de formar qualquer imagem mental do que era a so-
ciedade da época. As pessoas não sabem como, em épocas ante-
riores, a lei da força superior era a regra da vida; quão pública
e abertamente isso foi declarado, não digo cínica ou descarada-
mente – pois essas palavras implicam um sentimento de que havia
algo do se envergonhar, e nenhuma noção desse tipo poderia en-
contrar espaço nas faculdades de qualquer pessoa dessas épocas,
com exceção de um filósofo ou um santo. A história fornece uma
experiência cruel da natureza humana, mostrando como exata-
mente o respeito em relação à vida, posses e toda a felicidade ter-
rena de qualquer classe de pessoas foram mensurados pelo seu
poder de imposição; como todas as que resistiram às autoridades
que tinham armas nas mãos, por mais terrível que fosse a provo-
cação, possuíam não apenas a lei da força, mas todas as outras leis
e todas as noções de obrigação social contra elas; e, aos olhos da-
quelas a quem resistiam, eram não apenas culpadas de crimes,
mas também os piores de todos os crimes, merecendo o castigo
mais cruel que os seres humanos podiam infligir.
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pacto mútuo, ou em alguma união de pessoas de força não muito
desigual, proporcionaram, em consequência, a primeira instân-
cia de uma série de relações humanas cercadas e colocadas sob o
domínio de outra lei que não a da força. E ainda que a lei original
da força permanecesse em pleno vigor entre elas e seus escraviza-
dos – também (exceto até o limite expresso pelo pacto) entre uma
comunidade e seus súditos, ou outras comunidades independen-
tes –, o banimento dessa lei primitiva, mesmo que de forma res-
trita, deu início a regeneração da natureza humana, gerando sen-
timentos cuja experiência logo demonstrou seu imenso valor, até
mesmo para interesses materiais, e que, a partir de então, só pre-
cisavam ser ampliados, não criados. Embora os escravizados não
fizessem parte da comunidade, foram nos Estados livres que estes
primeiro sentiram ter direitos como seres humanos. Acreditamos
que os Estoicos foram os primeiros (exceto na medida em que a lei
judaica constitui uma exceção) a ensinarem como parte da mora-
lidade que os homens estavam vinculados por obrigações morais
a seus escravizados.
26
elas estavam dentro do sétimo (pelo nosso cálculo, o décimo quar-
to) grau de parentesco. Fez tudo isso; mas não podia fazer com
que os homens brigassem menos uns com os outros, nem tirani-
zassem menos cruelmente seus servos e, quando podiam, os cida-
dãos. Não poderia fazê-los renunciar a nenhuma das aplicações
da força – força militante ou força triunfante.3 Isso nunca pode-
riam ser induzidos a fazer até que eles mesmos fossem compeli-
dos por uma força superior. Somente com o crescente poder dos
reis pôs-se um fim à luta, exceto entre reis ou disputantes do rei-
nado; somente com o crescimento de uma burguesia rica e béli-
ca nas cidades fortificadas e uma infantaria plebeia que se mos-
trou mais poderosa no campo do que a cavalaria indisciplinada,
a tirania insolente dos nobres sobre a burguesia e o campesinato
tiveram limites. Isso permitiu – não apenas até então, mas mui-
to depois – que os oprimidos muitas vezes obtivessem um poder
que lhes permitia conspícua vingança; e no continente boa par-
te dela continuou até a época da Revolução Francesa, embora na
Inglaterra, a anterior e melhor organização das classes democrá-
ticas cessasse-a mais cedo, estabelecendo leis igualitárias e insti-
tuições nacionais livres.
27
Há menos de quarenta anos, os ingleses ainda podiam, por lei,
manter os seres humanos em cativeiro como bens vendáveis. No
século atual, eles podem sequestrá-los, carregá-los e executá-los
literalmente até a morte. Esse caso absolutamente extremo da lei
da força – condenado por quem pode tolerar quase todas as outras
formas de poder arbitrário, e que, entre todas as outras, apresenta
traços mais revoltantes aos sentimentos de quem a olha de uma
maneira imparcial –, era a lei da Inglaterra civilizada e cristã na
memória das pessoas que agora vivem. E, em metade da América
anglo-saxônica, há três ou quatro anos, não apenas existia escravi-
dão, como também tráfico e reprodução de escravizados expressa-
mente para este fim. Esta era uma prática comum entre os estados
escravagistas. Ainda assim, não havia apenas uma força maior de
sentimentos contra ela, como também, pelo menos na Inglaterra,
uma quantidade menor de sentimentos ou de interesse a seu favor
em relação a qualquer outro dos abusos costumeiros da força, pois
seu motivo era puramente o amor pelo lucro, sem disfarce; e os
que lucravam com ela era uma fração numérica muito pequena
do país, enquanto o sentimento natural de todas as pessoas que
não estavam pessoalmente interessadas era de absoluta aversão.
Uma instância tão extrema torna desnecessária a menção a qual-
quer outra, mas considere a longa duração da monarquia abso-
luta. Atualmente, na Inglaterra, há uma convicção quase universal
de que o despotismo militar é um caso da lei da força, sem outra
origem ou justificativa. No entanto, em todas as grandes nações
da Europa, com exceção da Inglaterra, ele ainda existe, ou acabou
de deixar de existir, e ainda há um forte partido a seu favor em
todas as fileiras do povo, especialmente entre pessoas influentes.
Tal é o poder de um sistema estabelecido, mesmo quando longe de
ser universal, quando não apenas em quase todos os períodos da
história, houve grandes e bem conhecidos exemplos de sistemas
contrários, mas esses quase sempre foram proporcionados pelas
comunidades mais ilustres e prósperas. Também neste caso, a pes-
soa detentora do indevido poder é apenas uma, enquanto quem
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sofre e está sujeito a ele é literalmente todo o resto. O jugo é na-
turalmente e necessariamente humilhante para todas as pessoas,
exceto para quem está no trono, junto com, no máximo, quem es-
pera ter sucesso com ele. Quão diferentes são esses casos do poder
dos homens sobre as mulheres! Não estamos agora prejulgando
a questão de sua justificabilidade, mas mostrando o quanto não
poderia ser muito mais permanente, ainda que não justificável,
do que essas outras dominações que, no entanto, duraram até o
nosso próprio tempo. Qualquer que seja o benefício do orgulho
que há na posse do poder, e qualquer interesse pessoal que haja
em seu exercício, nesse caso, não está reduzido a uma classe limi-
tada, mas a todo o sexo masculino. Em vez de ser para a maioria
de seus apoiadores algo desejável, principalmente em sua abstra-
ção, ou, como os fins políticos geralmente disputados por organi-
zações, sem importância particular para qualquer um que não os
líderes, isso se volta para a casa e o lar de cada homem chefe de
família, e de cada um que almeja sê-lo. O mais modesto exerce, ou
poderia exercer, o mesmo poder que o mais nobre dos homens.
E onde o desejo de poder é mais forte – para cada homem que de-
seja poder – exerce-o sobre aqueles que estão mais próximos a
ele, com quem sua vida é compartilhada, com quem ele tem mais
preocupações em comum, e em quem é mais provável que qual-
quer independência de sua autoridade interfira em suas prefe-
rências individuais. Se, nos outros casos especificados, os poderes
manifestamente fundamentados apenas na força, e tendo muito
menos apoiadores, cessaram tão lentamente e com tamanha difi-
culdade, ainda pior é neste caso, muito embora seus fundamen-
tos não sejam melhores que os dos outros. Devemos considerar,
ainda, que, neste caso, mais que em qualquer outro, os deten-
tores do poder têm vantagens para evitar qualquer resistência.
Cada uma das sujeitas vive sob os olhos, e quase, pode-se dizer,
nas mãos de um dos chefes – em maior intimidade com ele do que
com qualquer uma de suas companheiras; sem meios de confabu-
lar contra ele; sem nenhum poder para dominá-lo, mesmo local-
mente; e, por outro lado, com os motivos mais fortes para buscar
29
seu amparo e evitar ofendê-lo. Nas lutas pela emancipação polí-
tica, todos sabem quantas vezes seus vencedores são comprados
por subornos, ou intimidados por terrores.
30
sobre as mulheres, isto é, que existem diferentes naturezas entre
a humanidade: naturezas livres e naturezas escravas; que os gre-
gos eram de natureza livre e as raças bárbaras dos trácios e asiá-
ticos de natureza escrava. Mas por que retomar Aristóteles? Os
proprietários de escravizados do sul dos Estados Unidos não man-
tiveram a mesma doutrina, com todo o fanatismo com que os ho-
mens se apegam às teorias que justificam suas paixões e legiti-
mam seus interesses pessoais? Não chamaram céus e terras para
testemunhar que o domínio do homem branco sobre o negro é na-
tural, que a raça negra é por natureza inapta à liberdade e mar-
cada para a escravidão? Alguns chegaram a dizer que a liberdade
dos trabalhadores manuais não é uma ordem natural das coisas
em lugar nenhum. Da mesma forma, os teóricos da monarquia ab-
soluta sempre afirmaram que ela era a única forma natural de go-
verno; originada do patriarcado, que era a forma primitiva e es-
pontânea da sociedade, enquadrada no modelo paterno, anterior
à própria sociedade e, como argumentam, a autoridade mais natu-
ral de todas. Além do mais, nesse sentido, a lei da força em si, para
aqueles que não podiam pleitear outra, sempre pareceu a mais
natural de todas as bases para o exercício da autoridade. As raças
conquistadoras sustentam que, pela própria lei da Natureza, os
conquistados devem obedecer aos conquistadores, ou, como eu-
fonicamente parafraseiam, que as raças mais fracas e pacíficas
devem submeter-se às mais valentes e varonis.
31
Como a sujeição das mulheres aos homens é um costume univer-
sal, qualquer afastamento disso, muito naturalmente, parece an-
tinatural. Mas como o sentimento depende inteiramente do cos-
tume, mesmo neste caso, ele surge da ampla experiência. Nada
surpreende mais as pessoas de partes distantes do mundo do que,
ao aprender algo sobre a Inglaterra, saber que esta está sob o do-
mínio de uma rainha: isso parece-lhes tão antinatural que chega a
ser quase inacreditável. Para os ingleses, no entanto, isso não pa-
rece nem um pouco antinatural, pelo fato de estarem habituados;
mas, por outro lado, sentem que é antinatural que as mulheres
sejam soldadas ou membros do Parlamento. Nas eras feudais, ao
contrário, guerra e política não eram consideradas antinaturais
para as mulheres, porque não eram incomuns; parecia natural
que as mulheres das classes privilegiadas tivessem características
varonis, em nada inferiores, além da força física, a seus maridos
e seus pais. A independência das mulheres parecia menos antina-
tural para os gregos do que para outros povos antigos, devido às
magníficas amazonas (que eles acreditavam serem históricas) e o
exemplo outorgado pelas mulheres espartanas, que, embora não
menos subordinadas à lei do que em outros estados gregos, eram
realmente mais livres e, treinadas para exercícios corporais da
mesma maneira que os homens, deram ampla prova de que não
eram naturalmente desqualificadas em relação a eles. Sem som-
bra de dúvidas, a experiência espartana sugeriu a Platão, dentre
tantas de suas outras doutrinas, a igualdade social e política dos
dois sexos.
32
número crescente delas registrou protestos contra sua atual con-
dição social; e, recentemente, milhares, encabeçadas pelas mulhe-
res eminentes mais conhecidas do público, solicitaram ao Parla-
mento sua admissão no sufrágio parlamentar. A reivindicação de
que as mulheres sejam educadas com solidez e nos diversos ramos
do conhecimento, como são os homens, é crescente e intensa, com
uma grande perspectiva de sucesso, ao passo que a demanda por
sua admissão em profissões e ocupações até então negadas a elas
se torna mais urgente a cada ano.
Embora não existam neste país, como nos Estados Unidos, conven-
ções periódicas e um partido organizado para debater os direitos
das mulheres, existe uma significativa e engajada sociedade, or-
ganizada e gerenciada por mulheres, com o fim mais específico
de obter o direito de voto. Tampouco é apenas em nosso próprio
país e na América que as mulheres começam a protestar, mais ou
menos coletivamente, contra as precariedades sob as quais traba-
lham. França, Itália, Suíça e Rússia são exemplos disso. Quantas
mais mulheres silenciosamente nutrem aspirações semelhantes,
ninguém pode saber; mas há abundantes indícios de que muitas
delas poderiam nutri-las, não fosse o fato de serem tão categori-
camente ensinadas a reprimi-las como contrárias à condição de
seu sexo. Também, vale lembrar que nenhuma classe escraviza-
da jamais pediu liberdade completa de uma só vez. Quando Simon
de Montfort convocou os deputados da Câmara dos Comuns a se
sentarem pela primeira vez no Parlamento, algum deles sonhou
em exigir que uma assembleia eleita pelos seus constituintes pu-
desse criar e extinguir ministérios e ditar ao rei assuntos de esta-
do? Nenhum desses pensamentos poderia penetrar a imaginação
dos mais ambiciosos deles. A nobreza já tinha essas pretensões;
os Comuns pretendiam nada mais que estar isentos de impostos
arbitrários e da opressão individual extrema dos oficiais do rei.
É uma lei política da natureza que aqueles que estão sob qualquer
poder de origem antiga nunca comecem a reclamar do poder em
33
si, mas apenas do seu exercício opressivo. Nunca faltaram mulhe-
res para se queixar dos maus tratos dos maridos. Haveria infini-
tamente mais se essa queixa não fosse a maior das provocações
para a repetição e o aumento dos maus tratos. É isso que contra-
ria todas as tentativas de manter o poder, ao invés de proteger a
mulher de seus abusos. Em nenhum outro caso (exceto o de uma
criança), a pessoa que provou judicialmente ter sofrido uma lesão
é novamente exposta ao poder físico do acusado de tê-la agredido.
Assim, as esposas, mesmo nos casos mais extremos e prolongados
de maus tratos corporais, dificilmente ousam se valer das leis fei-
tas para sua proteção; e se, em um momento de indignação irre-
freável ou pela interferência de vizinhos, são induzidas a fazê-lo,
todo o seu esforço é expor o caso o mínimo possível e resvalar o
tirano de sua devida punição.
34
que é dever da sua natureza viver para os outros; fazer completa
abnegação de si mesmas e não ter vida além de seus afetos. E por
seus afetos entendem-se os únicos que lhes são permitidos ter –
aqueles aos homens com os quais estão vinculadas, ou aos filhos,
com quem constituem um vínculo adicional e irrefutável entre
elas e um homem.
35
inculcava; os servos e senhores, plebeus e patrícios não seriam tão
amplamente distintos hoje em dia quanto os homens e as mulhe-
res são? E todos, exceto um pensador aqui e outro ali, não acredi-
tariam que a distinção é um fato fundamental e inalterável da na-
tureza humana?
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tar, a não ser pela vontade de seu senhor. Na maioria dos países
europeus foi apenas no final da Idade Média, como resultado do
crescimento do poder real, que os plebeus puderam tornar-se no-
bres. Mesmo entre os nobres, o filho mais velho era por nascença
o herdeiro exclusivo dos bens paternos, e muito tempo se passou
até que se estabelecesse plenamente que o pai poderia deserdá-lo.
37
autoridade, exceto quando para proteger os direitos de terceiros,
certamente será perniciosa. Essa conclusão deu-se lentamente e
não foi adotada até que quase todas as aplicações possíveis de teo-
rias contrárias tivessem tido resultados desastrosos; e agora (no de-
partamento industrial) prevalece universalmente nos países mais
avançados e quase universalmente em todos os que pretendem
qualquer tipo de avanço. Não é que todos os processos sejam igual-
mente bons ou que todas as pessoas sejam igualmente qualifica-
das para tudo, mas essa liberdade de escolha individual finalmen-
te é vista como a única coisa que possibilita melhores processos e
delega cada atividade para quem está melhor qualificado para ela.
38
mundo não poderá abandonar esse princípio por tão cedo e retor-
nar ao antigo sistema de regulamentações e restrições. Mas se o
princípio é verdadeiro, devemos agir como se acreditássemos nele,
e não ordenar que nascer menina em vez de menino, ou negro em
vez de branco, ou plebeu em vez de um nobre, definirá a posição
das pessoas durante toda a vida, interditando-as, com exceção de
poucas, de ascender a todas as mais elevadas posições sociais, e
a ocupações respeitáveis. Mesmo que fôssemos nós a admitir ao
extremo que sempre foi pretendida a aptidão física superior dos
homens para todas as funções que agora estão reservadas para
eles, aplica-se o mesmo argumento que proíbe uma qualificação
legal para os membros do Parlamento. Se apenas uma vez em uma
dúzia de anos as condições de elegibilidade excluíssem uma pes-
soa apta, haveria uma perda real, enquanto a exclusão de milha-
res de pessoas inaptas não seria um ganho; pois, se a constituição
do corpo eleitoral se dispuser a escolher pessoas inaptas, sempre
haverá muitas delas para se escolher. Em todas as coisas de qual-
quer dificuldade e importância, aqueles que podem fazê-las bem
são menos que a demanda, mesmo com a liberdade de escolha
mais irrestrita; e qualquer limitação do campo de seleção priva a
sociedade de algumas chances de ser atendida por pessoas compe-
tentes, sem nunca a salvaguardar das incompetentes.
39
muitos homens, ainda que da mais humilde origem. As dificul-
dades, para a maioria, são de fato insuperáveis sem o auxílio de
um acontecimento favorável, mas nenhum ser humano masculi-
no está sujeito a qualquer proibição legal; nem a lei nem a opinião
superam obstáculos artificiais aos naturais. A realeza, como já foi
dito, é uma exceção, mas, neste caso, todos a consideram uma ex-
ceção – uma anomalia no mundo moderno, em forte oposição a
seus costumes e princípios, e justificada apenas por conveniências
especiais extraordinárias, que, embora indivíduos e nações dis-
cordem quanto a sua importância, inquestionavelmente existem.
Mas neste caso excepcional, em que uma alta função social é, por
razões importantes, outorgada ao nascimento em vez de ser subme-
tida à competição, todas as nações livres conseguem aderir con-
substancialmente ao princípio do qual nominalmente derrogam,
pois circunscrevem essa alta função por condições declaradamen-
te destinadas a impedir que a pessoa a quem pertence ostensiva-
mente a execute de fato; enquanto a pessoa por quem ela é exe-
cutada, o ministro responsável, obtém o cargo em uma competição
da qual nenhum cidadão adulto do sexo masculino é legalmente
excluído. As restrições, portanto, às quais as mulheres estão sub-
metidas pelo simples fato de terem nascido mulher, são exemplos
isolados desse tipo na legislação moderna. Em nenhum caso, ex-
ceto este, que compreende metade da raça humana, são as fun-
ções sociais mais elevadas negadas àquelas que, por uma fatali-
dade de nascimento, nasceram mulher e que nenhum esforço ou
circunstância pode superar; nem mesmo restrições religiosas (ape-
sar de que na Inglaterra e na Europa elas praticamente deixaram
de existir) fecham qualquer carreira para a pessoa desqualificada
em caso de conversão.
40
todo o resto, mas reteve-se naquilo de maior interesse universal;
como se um gigantesco dólmen, ou um vasto templo de Júpiter,
ocupasse o local da Catedral de St. Paul e recebesse adoração diá-
ria, enquanto as igrejas cristãs circundantes fossem apenas recor-
ridas em jejuns e festas. Toda essa discrepância entre um fato so-
cial e todos os que o acompanham, e a oposição radical entre sua
natureza e o movimento progressista que é o orgulho do mundo
moderno, e que varreu sucessivamente todo o resto de caráter
análogo, certamente oferece, para quem observa de modo cons-
ciente as tendências humanas, um sério assunto de reflexão. Isso
eleva uma presunção prima facie ao lado desfavorável, superando
em muito o que o costume e o hábito de tais circunstâncias gera-
riam para o lado favorável; e deveria pelo menos ser suficiente
para fazer disso, como a escolha entre republicanismo e realeza,
uma questão equilibrada.
41
mas se essa prosperidade foi alcançada mais cedo ou se é agora
maior do que teria sido no outro sistema, isso a experiência não
demonstra.
42
pectos, mais fortemente reprimidas – o que nelas não foi refreado
com ferrete, geralmente foi deixado em paz, e, quando permitida
alguma liberdade de desenvolvimento, desenvolveu-se de acor-
do com as suas próprias leis; mas, no caso das mulheres, a cultu-
ra de estufas e fogões sempre esteve associada às capacidades de
sua natureza, para benefício e prazer de seus senhores. Então, en-
quanto certos frutos de força vital comum brotam exuberante-
mente e alcançam um grande desenvolvimento nessa atmosfera
aquecida e sob nutrição e regas ativas, outros brotos da mesma
raiz são deixados do lado de fora no ar invernal, com gelo proposi-
tadamente empilhado ao redor deles, atrofiando seu crescimento,
e alguns são queimados com fogo e desaparecem; os homens, com
essa incapacidade de reconhecer seu próprio trabalho em distin-
guir a mente analítica, acreditam indolentemente que a árvore
cresce por si mesma da maneira que a fizeram crescer, sem reco-
nhecer que ela morreria se metade não fosse mantida em um ba-
nho de vapor e a outra metade na neve.
43
são incapazes de um governo livre. Em função de os gregos terem
enganado os turcos, e os turcos terem apenas saqueado os gre-
gos, há pessoas que pensam que os turcos são naturalmente mais
sinceros.
44
sexos considerados como seres morais e racionais; e como nin-
guém ainda detém esse conhecimento (pois dificilmente existe um
assunto que, proporcionalmente à sua importância, tenha sido tão
pouco estudado), até agora ninguém tem direito a nenhuma opi-
nião positiva sobre o assunto. Conjecturas são tudo o que atual-
mente pode ser feito; conjecturas mais ou menos prováveis, de
acordo com o conhecimento mais ou menos autorizado que ainda
temos das leis da psicologia, como as que são aplicadas à forma-
ção do caráter.
45
tanto à qualidade quanto à quantidade, ele deve ter aprendido
algo sobre algum departamento restrito à sua própria natureza –
um departamento importante, sem dúvida. Mas, de todo o resto,
algumas pessoas são geralmente mais ignorantes, porque há al-
gumas para quem isso é cuidadosamente escondido. O caso mais
favorável que um homem geralmente pode ter para estudar o ca-
ráter de uma mulher é o de sua própria esposa, uma vez que as
oportunidades são maiores e os casos de completa simpatia não
tão indescritivelmente raros. E, de fato, concordamos que essa é a
fonte da qual geralmente vem qualquer conhecimento que valha
a pena ter sobre o assunto. Mas a maioria dos homens não teve a
oportunidade de estudar desta maneira mais do que um único
caso, portanto, é possível, em um grau quase risível, inferir como
é a esposa de um homem a partir das opiniões dele sobre as mu-
lheres em geral. Para que mesmo este caso produza algum resul-
tado, a mulher deve ser considerada detentora de conhecimento,
e o homem não apenas um juiz competente, mas também ter um
caráter tão favorável a si mesmo e tão bem adaptado ao dela, que
pode inclusive ler sua mente por intuição solidária, caso não haja
nele algo que a intimide por expô-la. Dificilmente qualquer coisa
pode ser mais rara do que essa conjunção. Muitas vezes acontece
de haver a mais completa unidade de sentimentos e conjunto de
interesses em relação a todas as coisas externas, ainda que uma
tenha tão pouca admissão na vida interna da outra, como se elas
tivessem imbricadas. Mesmo com verdadeiro carinho, a autori-
dade, por um lado, e a subordinação, por outro, impedem a con-
fiança perfeita. Embora nada possa ser intencionalmente ocul-
tado, nem tudo é explícito.
46
A verdade é que a posição de superioridade é extremamente des-
favorável a uma completa franqueza e abertura ao outro. O medo
de perder terreno em sua opinião ou em seus sentimentos é tão
forte que, mesmo em uma posição vertical, há uma tendência in-
consciente de mostrar apenas o melhor lado, ou o lado que, em-
bora não seja necessariamente o melhor, é o que se mais gosta de
ver; e pode-se dizer com confiança que quase nunca existe um
conhecimento profícuo entre pessoas que, além de íntimas, são
iguais. Quão verdadeiro deve ser tudo isso. Quando não basta a
mulher estar sob a autoridade do homem, ainda tem-se incutido
que é seu dever considerar-se subordinada ao conforto e prazer
dele, além de não permitir que ele veja ou sinta algo advindo dela,
exceto o que é agradável para ele. Todas essas dificuldades impe-
dem que um homem obtenha qualquer conhecimento profícuo,
mesmo sobre a única mulher que, em geral, ele tem oportunidade
suficiente de analisar. Quando consideramos ainda que entender
uma mulher não é necessariamente entender qualquer outra mu-
lher; que, mesmo que um homem pudesse estudar muitas mulhe-
res de uma posição ou de um país, ele não entenderia mulheres
de outras posições ou países; e mesmo que ele o fizesse, elas ainda
seriam apenas as mulheres de um único período histórico; pode-
mos afirmar com segurança que o conhecimento que os homens
podem adquirir acerca das mulheres – mesmo que tenham sido,
e são, sem referência ao que podem ser de fato –, é terrivelmente
imperfeito e superficial, e sempre será assim, até que as próprias
mulheres tenham dito tudo o que têm a dizer.
Mas esse tempo não chegou, e nem irá chegar, a não ser gradual-
mente. Foi apenas recentemente que as mulheres foram qualifica-
das por realizações literárias, ou permitidas pela sociedade a dizer
qualquer coisa ao público em geral. Até então, muito poucas delas
se atreveram a dizer algo do qual os homens de quem depende seu
sucesso literário não estavam dispostos a ouvir. Lembremo-nos
de que maneira geralmente, até um período muito recente, era e
47
ainda é recebida a expressão – mesmo por um autor masculino
de opiniões não convencionais, ou do que são considerados posi-
cionamentos excêntricos – e podemos formar uma vaga concep-
ção de quais os impedimentos para uma mulher, educada para
pensar de acordo com os costumes e opiniões que ditam sua go-
vernança, tentar expressar nos livros qualquer coisa extraída das
profundezas de sua própria natureza.
6 “Um homem é capaz de opor-se a uma opinião; uma mulher deve submeter-se a
ela.” Do romance Delphine (1802), de Madame de Staël.
48
Detemo-nos às dificuldades que atualmente obstruem qualquer
conhecimento real dos homens sobre a verdadeira natureza das
mulheres, porque nisso e em muitas outras coisas, opinio copiæ
inter maximas causas inopiæ est e há pouca chance de se ter um
pensamento razoável sobre o assunto enquanto as pessoas se van-
gloriarem de que compreendem perfeitamente um assunto sobre
o qual a maioria dos homens não sabe absolutamente nada, e
sobre o qual é atualmente impossível que qualquer homem, ou
todos juntos, possam ter conhecimentos que os qualifiquem a esta-
belecer legalmente para as mulheres o que é ou não sua vocação.
49
social para fazer com que a maioria faça uma coisa em detrimento
da outra. Quaisquer que sejam os serviços mais desejáveis para
as mulheres, o livre jogo da competição oferecerá os mais fortes
incentivos para que elas os empreendam. E, como as palavras su-
gerem, elas são mais desejáveis para as coisas que melhor lhes
cabem, por meio da atribuição das faculdades coletivas dos dois
sexos que podem ser aplicadas ao todo com a maior soma de re-
sultados valiosos.
Supõe-se que a opinião comum dos homens seja que a vocação na-
tural de uma mulher é a de esposa e mãe. Aqui dizemos “supõe-
-se” porque, a julgar pelos atos – de toda a atual constituição da
sociedade – pode-se inferir que a opinião das mulheres seria justa-
mente o contrário. Poder-se-ia pensar que a suposta vocação natu-
ral das mulheres seria, entre todas as coisas, a mais repugnante à
sua natureza, de modo que, se elas fossem livres para fazer qual-
quer outra coisa – se qualquer outro meio de vida, ou ocupação
de seu tempo e faculdades estivessem abertos, o que há alguma
chance de parecer desejável para elas –, não haveria número su-
ficiente delas que estivessem dispostas a aceitar a condição consi-
derada natural para elas.
Se esta é a opinião real dos homens em geral, seria bom que fosse
declarada. Que alguém enunciasse abertamente a doutrina (já im-
plícita em grande parte do que está escrito sobre o assunto): “É ne-
cessário para a sociedade que as mulheres se casem e produzam
filhos. Elas não o farão, a menos que sejam obrigadas. Portanto, é
necessário obrigá-las”. Assim, o mérito do caso estaria claramen-
te definido. Seria exatamente o dos proprietários de escravizados
da Carolina do Sul e da Louisiana. “É necessário que algodão e
açúcar sejam cultivados. Homens brancos não podem produzi-los.
Os negros não o farão, por nenhum salário que escolhermos lhes
dar. Ergo, devem ser forçados.” Um exemplo ainda mais próximo
à questão é o de recrutamento. Os marinheiros são absolutamen-
te necessários para defender o país. Acontece que muitas vezes
50
eles não se alistam voluntariamente. Portanto, deve haver o poder
para forçá-los. Quantas vezes essa lógica foi usada!
E, não fosse por uma falha inerente, sem dúvida teria sido bem-
-sucedida até hoje. Mas está aberta a réplica: Primeiro paguem aos
marinheiros o valor honesto de seu trabalho. Quando valer a pena
para os marinheiros lhes servir, assim como trabalhar para outros
empregadores, então não terão mais dificuldade do que os outros na
obtenção de seus serviços. Para isso, não há resposta lógica, exceto
“Eu não farei”. E como as pessoas agora não apenas têm vergonha,
como também não desejam usurpar o salário do trabalhador, o re-
crutamento compulsório não é mais defendido. Aqueles que ten-
tam forçar as mulheres a se casar, fechando todas as outras portas
para elas, expõem-se a uma réplica semelhante. Se os homens real-
mente pensam o que declaram, é evidente que sua opinião não tor-
na a condição de casada tão desejável para as mulheres, a ponto de
induzi-las a aceitá-la por suas próprias recomendações.
Não é sinal de que alguém pense que o benefício que se oferece seja
muito atraente quando se permite apenas a escolha de Hobson,
“isto ou nada”. E aqui pensamos estar a pista para os sentimentos
daqueles homens que têm uma verdadeira antipatia à liberdade
igualitária das mulheres. Acreditamos que os homens têm medo
não de que as mulheres não estejam dispostas a se casar, pois não
cremos que alguém tenha realmente essa apreensão, mas de que
insistam que o casamento tenha iguais condições para ambos; de
que todas as mulheres autênticas e hábeis prefiram fazer qualquer
outra coisa, que não seja degradante a seus próprios olhos, em vez
de se casar, quando casar significa dar a si mesmas um senhor,
inclusive de todas as suas posses terrenas. E, de fato, se essa con-
sequência fosse necessariamente incidente ao casamento, essa
apreensão estaria então muito bem fundamentada.
51
um inevitável entrainement, ao tornarem-se temporariamente in-
sensíveis a algo que não elas mesmas, escolham tal destino quando
quaisquer outros meios estiverem abertos a elas para que ocupem
uma posição convencionalmente honrosa na vida; e se os homens
têm determinado que a lei do casamento deve ser uma lei do des-
potismo, eles têm toda a razão, por mera política, em deixar para
as mulheres apenas a escolha de Hobson. Mas, nesse caso, tudo o
que foi feito no mundo moderno para enfraquecer o que aprisiona
a mente das mulheres foi um erro. Elas nunca deveriam ter sido
autorizadas a receber uma educação literária. As mulheres que
leem, e muito mais mulheres que escrevem, são, na constituição
existente das coisas, uma contradição e um elemento perturba-
dor: e era errado criar mulheres com quaisquer aptidões, exceto
as de uma odalisca ou de uma empregada doméstica.
52
CAPÍTULO II
53
desleais e não por meios justos, mas este é o único caso em que
a injustiça persistiu substancialmente até os dias atuais. Origi-
nalmente, as mulheres eram levadas à força ou regularmente
vendidas pelo pai ao marido. Até um período tardio da história
europeia, o pai tinha o poder de dispor sua filha em casamento
ao seu bel-prazer e vontade própria, sem qualquer consideração
ao desejo dela. Embora a igreja, fiel a uma moral superior, exigisse
formalmente um “sim” da mulher na cerimônia de casamento,
nada assegurava que o consentimento não era compulsório; e era
praticamente impossível para a menina recusar a obediência im-
posta pelo pai, exceto nos casos em que ela podia obter proteção
religiosa mediante uma determinada resolução de fazer votos
monásticos.
54
lei durante toda a sua vida. Os casuístas podem argumentar que a
obrigação da obediência não chega à participação no crime, mas
certamente se estende a todo o resto. Ela não pode fazer nada sem
a permissão, ao menos tácita, do marido. Ela não pode adquirir
propriedade a não ser por meio dele; e no momento em que algo
se torna dela, ainda que por herança, torna-se dele ipso facto.
55
exceto para o tornar responsável pelos atos dela perante terceiros,
como um senhor é responsável pelos atos daqueles que escraviza
ou de seu gado.
Longe de sugerir que as esposas em geral não são mais bem tra-
tadas que os escravizados; mas nenhum escravizado é escraviza-
do na mesma medida, e em um sentido tão completo da palavra,
como uma esposa. Dificilmente alguma pessoa escravizada, exce-
to uma diretamente ligada ao seu senhor, é escravizada todas as
horas e minutos; em geral, ela tem, como um soldado, sua tare-
fa fixa, e quando esta é cumprida, ou quando está fora do espa-
ço de exploração, ela dispõe, dentro de certos limites, de seu pró-
prio tempo e tem uma vida familiar na qual o senhor raramente
se intromete.
“Pai Tomás”, sob seu primeiro senhor, teve sua própria vida em
sua “cabana”7 quase tanto quanto qualquer homem, cujo trabalho
o afaste de casa, é capaz de ter com sua própria família. Mas o
mesmo não é possível para a esposa. Apesar de tudo, uma mulher
escravizada tem (nos países cristãos) o direito admitido, e está
sob uma obrigação moral, de recusar qualquer intimidade com o
seu senhor. Não é o mesmo para a esposa. Infelizmente, por mais
brutal que seja o tirano ao qual ela possa estar acorrentada – em-
bora ela saiba que ele a odeia, embora possa ser seu prazer diário
torturá-la e embora ela possa achar impossível não o detestar, –
ele pode reivindicá-la e impô-la à degradação mais baixa a um ser
humano: ser feito o instrumento de uma função animal contrária
às suas inclinações.
56
elas. Ela não pode agir em relação aos próprios filhos, exceto por
delegação do marido. Mesmo depois da morte dele, ela não tem
a guarda legal dos filhos, a menos que ele tenha determinado em
testamento. Ele poderia inclusive mandá-los para longe dela e
privá-la dos meios de ver ou de se corresponder com eles, até que
esse poder fosse em certa medida restringido pelo ato de Serjeant
Talfourd.8
57
seria, uma vez que sua vida depende da obtenção de um bom se-
nhor, de que ela deve estar autorizada a mudar de novo e de novo
até encontrá-lo. Não significa dizer que ela deveria ter esse privi-
légio. Essa é uma consideração totalmente diferente.
58
o poder total da tirania com o qual o homem está legalmente am-
parado fosse exercido. Os defensores da forma atual da instituição
pensam que toda a sua iniquidade é justificável e que qualquer
reivindicação é mera briga com o mal cujo preço se é pago por
todo grande bem. Mas, na prática, as mitigações que são compa-
tíveis com a manutenção em plena força legal deste ou de qual-
quer outro tipo de tirania, em vez de serem qualquer apologia ao
despotismo, só servem para provar que tipo de poder a natureza
humana possui de reagir contra as instituições mais vis e com que
força as sementes do bem no caráter humano, assim como as do
mal, se difundem e se propagam.
9 N. T. Luís XVI, rei da França (1774-1792). Filipe, o Belo, rei da França (1284-305).
Nader Xá, xá do Irã (1736-1747) e o mais poderoso soberano de sua época no
Oriente Médio. Calígula, imperador romano (37 d.C. – 41 d.C.).
59
a das instituições mais atrozes. Faz parte da ironia da vida que
os sentimentos mais fortes de fiel gratidão aos quais a natureza
humana parece estar suscetível sejam evocados nos seres huma-
nos para aqueles que, tendo total poder para esmagar sua exis-
tência terrena, voluntariamente se abstêm de usá-lo. Seria cruel
indagar qual lugar esse sentimento ocupa para a maioria dos ho-
mens, mesmo na devoção religiosa. Vemos diariamente o quanto
sua gratidão aos Céus parece estar estimulada pela contemplação
de criaturas semelhantes a quem Deus não tem sido tão misericor-
dioso quanto é com eles mesmos.
60
homens a quem todos os poderes legais de um marido são outor-
gados. O mais vil malfeitor tem uma pobre mulher vinculada a ele,
contra a qual ele pode cometer qualquer atrocidade, exceto matá-
-la, e, se toleravelmente cauteloso, pode fazê-lo sem muito perigo
de penalidade legal.
61
foram impedidos de, através da lei do casamento, obter uma víti-
ma, a amplitude e profundidade da miséria humana causada ape-
nas por essa forma instituída de abuso aumentam para algo ter-
rível. Ainda que esses sejam apenas os casos extremos, há uma
gradação na profundidade desse abismo até alcançá-los. Na tira-
nia doméstica, bem como na tirania política, o caso dos monstros
absolutos ilustra principalmente a questão da instituição, demons-
trando que quase não há horror que não possa ocorrer sob ela se
assim aprouver ao déspota, e então desnuda qual deve ser a terrí-
vel frequência das coisas que são apenas um pouco menos atrozes.
Demônios absolutos são tão raros quanto anjos, talvez mais ra-
ros ainda. Contudo, selvagens ferozes, com toques ocasionais de
humanidade, são muito frequentes; e no amplo intervalo que os
separa de quaisquer representantes dignos da espécie humana,
quantas são as formas e gradações de animalismo e egoísmo, mui-
tas vezes sob o verniz superficial da civilização e até da cultura, vi-
vendo em paz com a lei, mantendo uma aparência digna de credi-
bilidade perante todos que não estão sob seu poder, mas que são
suficientes para tornar a vida das que estão um tormento e um
fardo para elas!
62
Até os homens mais comuns reservam um lado violento, mal-
-humorado e indisfarçadamente egoísta de seu caráter para aque-
las que não têm poder para lutar contra isso. A relação dos supe-
riores com os dependentes é o berçário desses vícios de caráter,
que, onde quer que eles existam, estão extrapolando essa fonte.
Um homem que é taciturno ou violento para com seus iguais é
certamente aquele que viveu entre os inferiores, a quem pode-
ria amedrontar ou atormentar via submissão. Ainda que a famí-
lia em suas melhores formas seja, como costuma ser dito, uma es-
cola de simpatia, ternura e resignação, no que tange a seu chefe,
é ainda mais frequente que esta seja uma escola de obstinação,
autoridade, autoindulgência ilimitada e um egoísmo idealizado
e duplamente marcado, do qual o sacrifício em si é apenas uma
forma particular; o cuidado com a esposa e com os filhos é ape-
nas parte dos interesses próprios do homem e a felicidade deles
imolada de todas as formas às suas menores preferências. O que
de melhor pode ser almejado diante da atual forma da institui-
ção? Sabemos que as más propensões da natureza humana só são
mantidas dentro de limites quando não há margem para sua in-
dulgência. Sabemos que, por impulso e hábito, quando não por
propósito deliberado, quase todo aquele a quem os outros cedem,
continua molestando-os, até chegar a um ponto em que são com-
pelidos a resistir. Sendo essa a tendência comum da natureza hu-
mana, o poder quase ilimitado que as instituições sociais atuais
dão ao homem sobre pelo menos um ser humano – aquele com
quem ele reside e com quem ele tem sempre estado presente –,
tal poder procura e evoca os germes latentes do egoísmo nos can-
tos mais remotos de sua natureza, abana suas mais fracas faíscas
e brasas fumegantes, oferece a ele uma licença para a indulgência
daqueles pontos de seu caráter original que, em todas as outras
relações, ele consideraria necessário reprimir e ocultar, e cuja re-
pressão com o passar do tempo torna-se sua segunda natureza.
63
tornar a vida do homem extremamente desconfortável e com esse
poder é capaz de levantar muitos pontos em que ela poderia e
muitos em que ela não poderia obter êxito. Mas esse instrumento
de autoproteção – que pode ser chamado de “o poder da ranzinza”
ou “sanção da megera” – tem o defeito fatal de ser mais utilizado
contra os superiores menos tiranos e a favor das dependentes que
menos precisam se valer dele. É a arma de mulheres geniosas e
obstinadas; aquelas que fariam o pior uso do poder se elas pró-
prias o detivessem e que geralmente fazem mau uso desse poder.
As benevolentes não podem usar tal instrumento, as mais sober-
bas o desdenham. E, por outro lado, os maridos contra os quais
é usado com mais eficácia são os mais gentis e mais inofensivos;
aqueles que não podem ser induzidos, mesmo por provocação, a
recorrer a qualquer exercício muito duro de autoridade. O poder
da esposa em ser hostil geralmente apenas estabelece uma contra
tirania e suas vítimas são principalmente os maridos menos incli-
nados a ser tiranos.
64
consideração própria, o que, em um homem capaz de nutrir sen-
timentos por outras pessoas, estabelece as bases para que ele a
ame por ela mesma; e, finalmente, a influência naturalmente ad-
quirida sobre quase todos os seres humanos por aquelas pessoas
que lhes são próximas (se não forem realmente hostis para com
eles), que, tanto por seus pedidos diretos quanto pela propagação
inconsciente de seus sentimentos e disposições, geralmente são
capazes (a menos que haja alguma influência pessoal contrária
igualmente forte) de obter um grau de comando sobre a conduta
do superior totalmente excessivo e irracional.
65
todos os interesses externos à família. A ela é ensinado que as coi-
sas fora dessa esfera não lhe competem; como consequência, ela
raramente tem qualquer opinião honesta e consciente a respeito;
e, portanto, quase nunca se intromete com um propósito legítimo,
a não ser que seja do seu interesse. Ela não sabe nem se importa
em conhecer o lado certo na política, mas ela sabe o que trará di-
nheiro ou convites, o que dará título ao marido, uma posição ao
filho ou um bom casamento à filha.
66
seus acordos. Contudo, parece haver menos perigo na distribuição
de poder no caso da sociedade do que no caso do casamento, uma
vez que o sócio inferior é livre para cancelar o poder retirando-se
da sociedade. Já a esposa não tem tal poder, e mesmo que tivesse,
é quase sempre desejável que ela tente todas as outras medidas
antes de recorrer a ele.
A real decisão prática dos assuntos, a quem quer que seja dada a
autoridade legal, dependerá muito, como ocorre agora, de qualifi-
cações comparativas. O simples fato de que o homem é geralmente
o mais velho, dá a ele a preponderância na maioria dos casos; pelo
menos até que ambos atinjam um momento da vida em que a dife-
rença de idade não tenha importância. Naturalmente também ha-
verá predominância da voz, seja ela qual for, de quem fornece os
meios de subsistência. A desigualdade dessa fonte não depende da
67
lei do casamento, mas das condições gerais da sociedade humana
tal qual constituída hoje. A influência da superioridade mental,
seja geral ou específica, e de decisão superior de caráter necessa-
riamente dirá muito. Sempre disse muito até o momento. Esse fato
demonstra como há pouca base para compreender que os pode-
res e responsabilidades dos parceiros de vida (como dos sócios nos
negócios) não podem ser satisfatoriamente divididos por acordo
entre si. E sempre foram divididos dessa forma, exceto nos casos
em que a instituição do casamento é um fracasso. As coisas nunca
chegam a ser uma questão total de poder por um lado, e de obe-
diência por outro, exceto nos casos em que a relação seja um com-
pleto erro, e seria uma bênção para ambas as partes livrarem-se
dela. Poder-se-ia dizer que o que torna possível uma solução ami-
gável das diferenças é o poder da compulsão legal que se sabe que
está disponível; assim como as pessoas se submetem a uma ar-
bitragem porque existe um tribunal em segundo plano, ao qual
sabem que podem ser forçadas a obedecer.
68
legal de despotismo de um lado e sujeição do outro, e que toda
concessão que o déspota faça possa, para seu bel-prazer, ser re-
tirada sem qualquer aviso. Além de que nenhuma liberdade vale
muito quando mantida em um cargo tão precário, é provável que
suas condições não sejam as mais justas quando a lei coloca um
peso tão prodigioso em um lado da balança; quando o ajuste entre
duas pessoas se baseia na declaração de que uma tem direito a
tudo e a outra a nada que não seja para o bel-prazer da primeira,
ainda estando sob a mais forte obrigação moral e religiosa de não
se rebelar ante qualquer excesso de opressão.
Mas isso não será dito agora por quem vale a pena discutir. Não
é doutrina dos dias atuais que as mulheres sejam menos suscetí-
veis do que os homens aos bons sentimentos e à consideração por
aqueles com quem estão unidas pelos laços mais fortes. Pelo con-
trário, somos perpetuamente informados de que as mulheres são
melhores que os homens, por aqueles que se opõem totalmente a
tratá-las como se fossem realmente boas; de modo que o ditado
se transformou em uma ladainha cansativa, destinada a dar um
ar lisonjeiro a uma injúria, e lembrando aquelas celebrações de
clemência real que, segundo Gulliver, o rei de Lilliput10 sempre
69
prefixava a seus decretos mais sanguinários. Se tem algo em que
as mulheres são melhores que os homens certamente é no autos-
sacrifício imposto por sua própria família.
Contudo, pouco enfatizamos isso, uma vez que elas são universal-
mente ensinadas que nasceram e cresceram para o autossacrifício.
Acreditamos que a igualdade de direitos diminuiria a autoabnega-
ção exagerada sobre a qual se baseia atualmente a ideia artificial
do caráter feminino, e que uma boa mulher não se autossacrifica-
ria mais que o melhor dos homens; por outro lado, os homens se-
riam muito mais altruístas e abnegados do que o são atualmente,
porque eles não seriam mais ensinados a venerar sua vontade pró-
pria como uma coisa tão grandiosa, como é de fato a lei para outro
ser racional. Não há nada que os homens aprendam tão facilmen-
te quanto essa autoveneração; todas as pessoas privilegiadas e to-
das as classes privilegiadas já o tiveram.
70
subordinação legal tende a tornar as mulheres suas personagens
mais frequentes. Se o homem exerce todo o seu poder, é claro que
a mulher é esmagada: mas se ela é tratada com indulgência e per-
mitida a assumir o poder, não há regra para estabelecer limites
para suas usurpações. A lei, não determinando seus direitos, mas
teoricamente também não lhe permitindo nenhum, praticamente
declara que o tanto de direito que ela tem é o tanto que ela própria
pode conseguir.
71
Quanto tempo mais uma forma de sociedade e vida poderá se con-
tentar com a moralidade feita para outra? Já vivenciamos a mora-
lidade da submissão e a moralidade do cavalheirismo e da gene-
rosidade; chegou a hora da moralidade da justiça. Sempre que, em
épocas anteriores, foi feita qualquer aproximação da sociedade
à igualdade, a Justiça afirmou suas reivindicações como funda-
mento da virtude. Foi assim nas repúblicas livres da Antiguidade.
Mas até na melhor delas, os iguais estavam limitados aos cidadãos
livres do sexo masculino; escravizados, mulheres e residentes não
emancipados estavam sob a lei da força. A influência conjunta da
civilização romana e do cristianismo obliterou essas distinções e,
em teoria (pois na prática só parcialmente), declarou que as rei-
vindicações do ser humano, como tais, eram primordiais para as
de sexo,11 classe ou posição social.
72
Instituições, livros, educação, sociedade, todos seguem treinando
seres humanos para o velho, muito depois de o novo ter chegado;
ainda mais quando o novo acabou de chegar. Mas a verdadeira vir-
tude dos seres humanos consiste na capacidade de viverem juntos
como iguais; não reivindicando nada para si além do que eles con-
cedem livremente a todos os outros; considerando o comando de
qualquer tipo uma necessidade excepcional e, em todos os casos,
temporária; e preferindo, sempre que possível, a sociedade junto
àqueles com quem podem alternar reciprocamente a liderança.
73
amor à liberdade na Antiguidade e na Idade Média: um inten-
so sentimento de dignidade e importância à sua própria pes-
soa, que o faz desdenhar de um jugo de si mesmo, do qual ele
não tem propriamente aversão, mas que está abundantemen-
te pronto para impor aos outros por seu próprio interesse ou
glorificação.
74
Ademais, na parte mais naturalmente brutal e sem instrução mo-
ral das classes mais baixas, a escravidão legal da mulher, e de al-
guma forma a sua mera sujeição física como um instrumento a
serviço dos homens, faz com que eles sintam uma espécie de des-
respeito e desprezo pela própria esposa que eles não sentem por
nenhuma outra mulher, ou por qualquer outro ser humano com
quem tenham contato; e que faz com que ela lhes pareça uma su-
jeita apropriada a qualquer tipo de indignidade. Que um observa-
dor acurado aos sinais de sentimento, tendo as devidas oportuni-
dades, julgue por si mesmo se este não é o caso; e, se achar que é,
não se surpreenda com qualquer dose de desgosto e indignação
que possa ser sentida contra instituições que naturalmente con-
duzem a esse estado depravado da mente humana.
12 N. T. Carta de São Paulo a Efésios, 5:22 e 6:5, respectivamente. Bíblia Sagrada. Edição
Pastoral. Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1990. Tradução de Ivo
Storniolo e Euclides Martins Balancin.
13 N. T. Carta de São Paulo aos Romanos, 13:1. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral.
Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1990. Tradução de Ivo Storniolo
e Euclides Martins Balancin.
75
Fingir que o cristianismo tinha a intenção de estereotipar as for-
mas existentes de governo e sociedade e protegê-las contra mudan-
ça é reduzi-lo ao nível do islamismo ou do bramanismo. É precisa-
mente porque o cristianismo não fez isso que tem sido a religião
da parcela progressista da humanidade, e o islamismo, o brama-
nismo, etc. têm sido as das parcelas estacionárias; ou melhor (pois
não há uma sociedade realmente estacionária), das parcelas em
declínio. Houve abundância de pessoas, em todas as eras do cris-
tianismo, que tentaram torná-lo em algo do mesmo tipo, a fim de
nos converter em uma espécie de muçulmanos cristãos, com a
Bíblia no lugar do Alcorão, proibindo todo progresso; e grande foi
o seu poder, de modo que muitos tiveram que sacrificar suas vidas
resistindo a isso. Mas houve quem resistisse, e a resistência nos fez
o que somos, e ainda nos fará o que devemos ser.
76
Essa injustiça particular e a opressão às mulheres, que é, para
apreensões comuns, mais óbvia do que todas as outras, admite
o remédio sem interferir em nenhum outro mal; e pode haver
pouca dúvida de que será um dos primeiros remediados. Em
muitos dos novos e vários dos antigos Estados da Confederação
Americana já foram inseridas disposições, até mesmo nas consti-
tuições escritas, garantindo às mulheres a igualdade de direitos
a esse respeito; e, assim, melhorando materialmente a posição
das mulheres – pelo menos das que possuem propriedade – na
relação matrimonial, deixando-lhes um instrumento de poder
do qual não abriram mão; e prevenindo também o abuso escan-
daloso da instituição matrimonial, que é perpetrado quando um
homem engabela uma garota para se casar com ele sem acordo,
com o único propósito de obter o seu dinheiro.
77
seu trabalho para a renda da família. Em um estado injusto das
coisas, fazê-lo pode ser útil para ela, tornando-a mais valiosa aos
olhos do homem que é legalmente seu senhor; mas, por outro
lado, isso o possibilita de ir além no abuso de seu poder, forçando-a
a trabalhar, e delegando o sustento da família aos encargos dela,
enquanto ele passa a maior parte do seu tempo na bebedeira e
no ócio. O poder de provento é essencial para a dignidade de uma
mulher, se ela não tem propriedade independente.
78
questões, se alguma vez fossem corretamente direcionadas, po-
deriam ser seguramente deixadas à regulação pela opinião, sem
qualquer interferência da lei.
79
CAPÍTULO III
81
que desde o nascimento elas não são, e não têm a menor possibi-
lidade de se tornar, aptas para empregos legalmente abertos aos
mais estúpidos e mal-intencionados membros do outro sexo, ou
que, por mais qualificadas que possam ser, esses empregos lhes
são proibidos a fim de serem preservados para o benefício exclu-
sivo dos homens.
Mas, para tornar essa razão plausível (não estamos dizendo vá-
lida), aquelas pessoas por quem isso é instado devem estar pre-
paradas a levá-lo a ser cumprido até as últimas consequências,
diante da experiência atual. Não basta sustentar que em certas
faculdades mentais mais elevadas, as mulheres, em média, têm
menos talento do que a média dos homens, ou que há um número
menor de mulheres do que de homens capacitados para ocupa-
ções e funções de níveis intelectuais mais soberbos. É necessário
sustentar que mulher nenhuma se adequa a elas, e que as mulhe-
82
res mais eminentes são inferiores em faculdades mentais aos mais
medíocres dos homens para quem essas funções atualmente são
delegadas. Pois, se o desempenho da função for decidido por con-
corrência ou por qualquer modo de seleção que garanta respeito
ao interesse público, não haverá apreensão de que quaisquer em-
pregos importantes caiam nas mãos de mulheres inferiores à
média dos homens ou à média de seus concorrentes homens.
Não é suficiente e mais que suficiente que seja considerado uma ti-
rania para elas, e um dano à sociedade, não permitir que elas pos-
sam competir com os homens pelo exercício dessas funções? Não
é um mero truísmo dizer que essas funções costumam ser desem-
penhadas por homens muito menos aptos do que inúmeras mu-
lheres, e que estes seriam derrotados por mulheres em qualquer
campo de competição justa? Que diferença faz que possa haver
homens em algum lugar, totalmente empenhados em outras coi-
sas, que possam ser ainda mais qualificados para tais coisas do
que essas mulheres? Não é isso que ocorre em todas as competi-
ções? Existe uma superabundância de homens aptos para funções
83
mais altas que a sociedade possa se dar ao luxo de rejeitar o ser-
viço de qualquer pessoa competente?
84
quia. Ter voz na escolha das pessoas por quem se deve ser gover-
nada é um meio de autoproteção que deve ser acessado por todos,
embora determinadas pessoas possam ser excluídas da função de
governar: pode-se presumir que as mulheres já são consideradas
aptas a fazer tal escolha, já que a lei lhes concede, no mais impor-
tante de todos os casos para elas (o casamento), uma vez que a es-
colha do homem que deve governar uma mulher até o fim de sua
vida é sempre feita voluntariamente por ela mesma. No caso de
eleição para cargos públicos, é dever da lei constitucional cercar o
direito de sufrágio de todas as garantias e limitações necessárias;
mas, sendo as garantias suficientes no caso do sexo masculino, ne-
nhuma outra necessita ser requerida no caso das mulheres. Sejam
quais forem as condições e limitações em que os homens são ad-
mitidos no sufrágio, não há mínima justificativa para não se admi-
tir as mulheres sob as mesmas.
No que diz respeito à aptidão das mulheres, não apenas para par-
ticipar das eleições, mas também para ocupar cargos ou exercer
profissões que envolvam responsabilidades públicas importantes,
já observamos que essa consideração não é essencial na questão
prática em debate, uma vez que qualquer mulher que tenha êxito
numa profissão aberta prova por esse mesmo fato que é qualificada
85
para tal. E, no que se refere aos cargos públicos, se o sistema polí-
tico do país excluir homens inaptos, excluirá igualmente mulheres
na mesma situação; caso não seja assim, não haverá nenhum mal
adicional no fato de pessoas inaptas admitidas serem mulheres
ou homens. Portanto, como se tem ciência que as mulheres, ainda
que poucas, podem ser aptas para essas funções, as leis que fe-
cham as portas para essas exceções não podem ser justificadas por
nenhuma opinião que possa ser respeitada quanto às capacidades
das mulheres em geral. Mas, embora essa última consideração não
seja essencial, está longe de ser irrelevante. Uma visão sem pre-
conceitos dá força extra aos argumentos contra a inabilidade das
mulheres, e os fortalece através de importantes considerações de
utilidade prática.
86
às deles nessas linhas de excelência. Esse fato negativo, no má-
ximo, deixa a questão incerta e aberta à discussão psicológica.
Mas é certo que uma mulher pode ser uma rainha Elizabeth, ou
uma Deborah, ou uma Joana d’Arc, já que isso não é inferência,
mas um fato. Agora, é um fato curioso que as únicas coisas que a
lei vigente impede as mulheres de fazerem são as coisas que elas
provaram que são capazes de fazer. Não há lei que impeça uma
mulher de ter escrito todas as peças de Shakespeare ou de ter com-
posto todas as óperas de Mozart. Mas se a rainha Elizabeth ou a
rainha Victoria não tivessem herdado o trono, não poderiam ter
sido confiadas aos menores deveres políticos, nos quais a primeira
se mostrou uma igual para com os maiores.
87
rainhas são melhores que os reis porque sob reis as mulheres go-
vernam, mas sob rainhas, são os homens que governam.14
88
príncipe entre seus contemporâneos. O imperador Carlos Quinto,
o príncipe mais político de seu tempo, que possuía um número ja-
mais visto de homens capazes em seu serviço como governante, e
foi um dos soberanos que provavelmente menos sacrificaria seus
interesses por sentimentos pessoais, fez duas princesas de sua fa-
mília sucessivamente governadoras dos Países Baixos, e manteve
ora uma, ora outra naquele posto durante toda a sua vida (mais
tarde foram sucedidas por uma terceira). Ambas governaram com
muito sucesso e uma delas, Margaret da Áustria, foi uma das polí-
ticas mais competentes de sua época. Isso considerando um lado
da questão.
89
soube perceber o valor de um Chanceler de l’Hôpital. Mas também
é verdade que as maiores rainhas foram grandes por seus pró-
prios talentos para governar, e foram bem servidas precisamente
por esse motivo. Elas mantiveram a direção suprema dos negócios
em suas próprias mãos; e se deram ouvidos a bons conselheiros,
com isso deram a maior prova de que seu discernimento as tor-
nava aptas para lidar com as grandes questões do governo.
É razoável pensar que aquelas pessoas que são aptas para grandes
funções da política são incapazes de se qualificar para as funções
menores? Existe alguma razão, pela natureza das coisas, para que
as esposas e irmãs de príncipes possam, sempre que convocadas,
se mostrar tão competentes quanto os próprios príncipes para cui-
dar de seus negócios, mas que as esposas e irmãs de estadistas
e administradores, de diretores de empresas e gerentes de insti-
tuições públicas devem ser incapazes de fazer o que fazem seus
irmãos e maridos?
90
diz respeito às tendências e aptidões características das mulheres,
como elas têm sido até agora. Não estamos falando sobre como
elas continuarão a ser; pois, como já dissemos mais de uma vez,
consideramos presunção de quem quer que seja supor que pode
decidir o que as mulheres, por sua constituição natural, são ou
não são; ou que podem ou não fazer. Até agora, elas sempre fo-
ram mantidas, no que concerne ao desenvolvimento espontâneo,
em um estado tão antinatural que sua natureza não pôde deixar
de ter sido grandemente distorcida e atenuada; e ninguém pode
afirmar com segurança que, se à natureza das mulheres fosse per-
mitida escolher sua direção tão livremente quanto à dos homens,
e se nenhum desvio artificial lhes fosse dado, exceto aquele exigi-
do pelas condições da sociedade humana e comum a ambos os se-
xos, haveria alguma diferença material, ou talvez alguma diferen-
ça em geral, no caráter e nas capacidades que se desdobrariam.
91
Estas são resultados de uma lenta e cuidadosa coleta e compara-
ção de experiências; e, em geral, nem os homens, nem as mulhe-
res de intuição costumam brilhar neste departamento, a menos
que, de fato, a experiência necessária seja aquela que se possa ad-
quirir sozinho. Porque o que se chama de sagacidade intuitiva as
torna particularmente aptas a reunir tantas verdades gerais quan-
tas possam ser coletadas de seus meios individuais de observação.
Consequentemente, quando elas têm a oportunidade (usamos a
palavra oportunidade, pois, no que diz respeito aos conhecimen-
tos que tendem a capacitá-las para as maiores preocupações da
vida, as únicas mulheres instruídas são as autodidatas) de obter o
mesmo benefício que os homens com os resultados da experiência
de outras pessoas, através da leitura e da educação, elas, em geral,
são bem mais providas do que os homens dos requisitos essenciais
para uma prática competente e bem-sucedida.
Admitimos que não possa haver boas práticas sem princípios e que
o lugar predominante que a rapidez da observação ocupa entre as
faculdades da mulher a torna particularmente apta a construir
92
generalizações apressadas com base em sua própria observação;
embora, ao mesmo tempo, não estejam menos preparadas para
retificar essas generalizações quando sua observação aumentar
seu alcance. Mas a correção desse defeito é o acesso à experiên-
cia da raça humana; conhecimento geral – exatamente aquilo que
a educação pode oferecer de melhor. Os erros de uma mulher são
especificamente os mesmos de um homem inteligente e autodida-
ta, que frequentemente enxerga o que os homens habituados à ro-
tina não veem, mas cai em erro por falta de conhecimento de coi-
sas que há muito são conhecidas. Claro que ele adquiriu muito do
conhecimento preexistente, ou não poderia ter progredido; mas
aquilo que sabe captou de forma fragmentada e aleatória, como
as mulheres.
93
comparável para manter seus pensamentos dentro dos limites das
coisas reais e dos fatos reais da natureza.
94
pensador pode esperar, pode levar algum tempo para considerar,
pode coletar evidências adicionais; não é obrigado a completar
sua filosofia de uma só vez, por medo que a oportunidade lhe es-
cape. O poder de tirar a melhor conclusão possível de dados in-
suficientes não é de fato inútil na filosofia; a construção de uma
hipótese provisória consistente com todos os fatos conhecidos é
frequentemente a base necessária para uma investigação mais
aprofundada. Mas essa faculdade é mais um benefício em filoso-
fia do que sua principal qualificação; e, tanto para a operação au-
xiliar quanto para a principal, o filósofo pode permitir-se quanto
tempo quiser. Ele não precisa da capacidade de fazer nada rapida-
mente; do que ele mais precisa é de paciência para trabalhar de-
vagar até que luzes imperfeitas se tornem perfeitas, e uma conjec-
tura tenha amadurecido em um teorema.
95
que essas frases resumem a maior parte das objeções comumen-
te feitas à aptidão das mulheres para questões sérias e do mais
alto nível. Muito de tudo isso é o mero transbordamento de ener-
gia nervosa desperdiçada, e cessaria quando a energia fosse di-
recionada para um fim definido. Muito também é o resultado de
um cultivo de hábitos, consciente ou inconsciente; como vemos
pelo quase desaparecimento total de episódios de “histeria” e des-
maios, uma vez que saíram de moda.
Mas as mulheres que foram criadas para trabalhar pelo seu sus-
tento não apresentam nenhuma dessas características mórbidas,
a menos que sejam obrigadas a um excesso de trabalho seden-
tário em ambientes confinados e insalubres. Mulheres que, em
seus primeiros anos, compartilharam da educação física saudável
e da liberdade corporal de seus irmãos, e que depois, desfrutam
de ar puro e exercícios, muito raramente apresentam suscetibili-
dade nervosa excessiva, que poderiam desqualificá-las para tare-
fas ativas. Há, de fato, uma certa proporção de pessoas, em ambos
os sexos, nas quais um grau incomum de sensibilidade nervosa é
constitucional, e de caráter tão marcado a ponto de ser a caracte-
rística de sua estrutura que exerce a maior influência sobre o ca-
ráter total dos fenômenos vitais.
96
Essa constituição, como outras conformações físicas, é hereditá-
ria e transmitida a filhos e filhas; mas é possível e provável que o
temperamento nervoso (como é chamado) seja herdado por um
número maior de mulheres do que de homens. Assumiremos isso
como um fato; e permita-nos perguntar: os homens de tempera-
mento nervoso são considerados inaptos para os deveres e ativi-
dades geralmente empreendidas pelos homens? Se não, por que
as mulheres com o mesmo temperamento o seriam? As peculia-
ridades do temperamento são, sem dúvida, dentro de certos limi-
tes, um obstáculo para o sucesso em determinadas ocupações, em-
bora funcione como auxiliar em outras. Mas quando a ocupação é
adequada ao temperamento, e às vezes até quando é inadequada,
os exemplos mais brilhantes de sucesso são sempre provenientes
de homens de alta sensibilidade nervosa. Eles se distinguem em
suas manifestações práticas principalmente porque, por serem
suscetíveis a um nível de excitação mais alto do que aqueles que
tem outra constituição física; suas capacidades, quando estimu-
ladas, diferem, em relação a outras pessoas, daquelas em seu es-
tado comum; são elevados, por assim dizer, acima de si mesmos,
e fazem, com facilidade, coisas que em outras ocasiões seriam in-
capazes de fazer.
97
chamar de departamento executivo de liderança da humanidade.
É o material de grandes oradores, grandes pregadores, difusores
impressionantes de influências morais.
98
tantes na ciência, em negócios públicos, em proeminências legais
e judiciais ou na guerra? Há evidências abundantes de que os gre-
gos foram uma das raças mais excitáveis da humanidade, como
ainda o são seus descendentes e sucessores. Seria supérfluo per-
guntar em quais, entre as conquistas da humanidade, eles não se
destacaram. Os romanos, como um povo também do sul, provavel-
mente tinham o mesmo temperamento em sua origem, mas o ca-
ráter severo de sua disciplina nacional, como o dos espartanos, fez
deles um exemplo do tipo oposto de caráter nacional; sendo apa-
rente a força maior de seus sentimentos naturais, principalmente
na intensidade que aquele mesmo temperamento original possi-
bilitou ao artificial.
99
persistir por muito tempo no mesmo esforço contínuo, mais aptas
a dividir suas faculdades entre muitas coisas do que seguir em
determinado caminho até alcançar um ponto mais elevado, isso
pode ser dito sobre as mulheres no estado em que se encontram
agora (embora não sem grandes e numerosas exceções) e pode
explicar o fato de terem sido deixadas para trás por homens do
mais alto escalão exatamente nas coisas em que é necessária uma
absorção total da mente em um conjunto de ideias e ocupações.
100
Tem-se frequentemente notado a capacidade real que as mulheres
demonstram ter para refletir em circunstâncias e momentos em
que quase todo homem daria uma desculpa para não o fazer, e a
mente de uma mulher, embora possa se ocupar apenas com pe-
quenas coisas, dificilmente se permite estar vazia, como frequen-
temente fica a mente do homem quando não está envolvido no
que escolhe considerar a ocupação de sua vida. A ocupação da
vida cotidiana de uma mulher se relaciona com as atividades de
modo geral, e é tão provável que essas atividades parem de acon-
tecer quanto o mundo pare de girar.
101
duvidar de que exista uma relação muito próxima. O cérebro é cer-
tamente o órgão material do pensamento e do sentimento: e (abs-
traindo a grande e instável controvérsia em relação à atribuição
de diferentes partes do cérebro a diferentes faculdades mentais)
admitimos que seria uma anomalia e um desvio de tudo que sa-
bemos sobre as leis gerais da vida e da organização, se o tamanho
do órgão fosse totalmente indiferente à sua função; se não houves-
se nenhum ganho de capacidade que fosse proveniente da mag-
nitude do instrumento. Mas o desvio e a anomalia seriam ainda
maiores se a influência exercida pelo órgão fosse apenas por sua
magnitude.
102
Em primeiro lugar, poder-se-ia esperar que as operações mentais
dos homens fossem mais lentas. Eles não pensariam com tanta
prontidão quanto as mulheres, nem seriam tão rápidos para sen-
tir. Corpos grandes levam mais tempo para entrar completamente
em ação. Por outro lado, uma vez que isso tenha acontecido, o
cérebro dos homens suportaria mais trabalho. Seria mais persis-
tente em sua primeira incursão; teria mais dificuldade em mudar
de um modo de ação para outro, mas, na única coisa que estivesse
fazendo, poderia continuar mais tempo sem perda de energia ou
sensação de fadiga. E não achamos que as coisas nas quais os ho-
mens mais se destacam, se comparados com as mulheres, sejam
aquelas que exigem mais esforço e persistência em um único pen-
samento, enquanto as mulheres fazem melhor o que precisa ser
feito rapidamente? O cérebro da mulher fica fadigado e exausto
primeiro; mas, dado o grau de exaustão, deveríamos esperar que
se recuperasse também primeiro. Repetimos que essa especulação
é inteiramente hipotética; ela não pretende nada além de sugerir
uma linha de investigação.
103
Tão igualmente ridículas são as noções elaboradas sobre a natu-
reza das mulheres, meras generalizações empíricas, forjadas, sem
filosofia ou análise, nas primeiras instâncias que se apresentam,
que a ideia popular em relação a elas difere de país para país, con-
forme as opiniões e as circunstâncias sociais que o país ofereceu
às mulheres que nele vivem. Um oriental pensa que as mulheres
são por natureza peculiarmente voluptuosas; como se percebe no
abuso violento sofrido por elas nos escritos hindus. Um inglês ge-
ralmente pensa que elas são, por natureza, frias.
104
resistem a ela: a regra pode ser mais forte do que a natureza, mas
a natureza ainda está lá.
Uma pessoa inglesa não conhece a natureza porque não teve opor-
tunidade de observá-la; uma pessoa francesa geralmente a conhe-
ce bem, mas com frequência a confunde, porque só tem a seu
respeito uma visão sofisticada e distorcida. Porque o estado ar-
tificial superinduzido pela sociedade disfarça as tendências na-
turais do que está sendo objeto de observação através de duas
maneiras diferentes: extinguindo a natureza ou a transforman-
do. No primeiro caso, resta apenas um escasso resíduo da natu-
reza a ser estudado; no outro caso, há muito, e pode ter se ex-
pandido em qualquer direção, mas não naquela em que cresceria
espontaneamente.
105
todas as causas artificiais da diferença sejam retiradas, que cará-
ter natural seria revelado. Não estamos a ponto de tentar aquilo
que afirmamos ser impossível; mas as dúvidas não proíbem a con-
jectura, e onde a certeza é inatingível, ainda pode haver meios de
chegar a um certo grau de probabilidade. O primeiro ponto, a ori-
gem das diferenças realmente observáveis é o mais acessível à es-
peculação; e tentaremos abordá-lo pelo único caminho pelo qual
ele pode ser alcançado: rastreando as consequências mentais das
influências externas. Não podemos isolar um ser humano das cir-
cunstâncias de sua condição, de modo a determinar experimen-
talmente o que teria sido por natureza; mas podemos considerar o
que ele é, e quais foram suas circunstâncias, e se a primeira seria
capaz de produzir a outra.
106
Em todas as coisas para as quais ainda houve tempo – em todas,
exceto as mais altas na escala de excelência, especialmente no de-
partamento em que estão há mais tempo envolvidas, literatura (na
prosa e na poesia) – as mulheres produziram tanto, e obtiveram
prêmios tão altos e tão numerosos como se poderia esperar pelo
tempo decorrido e pelo número de concorrentes. Se voltarmos ao
período anterior, no qual poucas mulheres tiveram a oportuni-
dade de tentar, ainda assim, algumas dessas poucas o fizeram com
êxito notável.
107
afastam muito dos tipos existentes. Esse é o tipo de inferioridade
que suas obras apresentam, pois, no que diz respeito à execução, à
aplicação detalhada do pensamento e à perfeição do estilo, não há
inferioridade alguma.
108
terior. Foi o Sr. Maurice, acreditamos, que observou que, na atua-
lidade, os pensadores mais originais são aqueles que conheceram
mais profundamente o que os seus antecessores pensavam: e esse
sempre será o caso a partir de agora.
Sem dúvida, acontece muitas vezes que uma pessoa, que não tenha
estudado ampla e precisamente os pensamentos de outras pessoas
sobre um determinado assunto, tenha, por sagacidade natural,
109
uma intuição acertada, que pode sugerir, mas não pode provar, e
no entanto, quando amadurecida, pode ser um importante acrés-
cimo ao conhecimento; mas, mesmo assim, não se pode fazer ne-
nhum julgamento até que outra pessoa, que possui as aquisições
anteriores, a tome nas mãos, a teste, a forneça uma forma prática
ou científica e a encaixe em seu lugar entre as verdades existen-
tes da filosofia ou da ciência.
110
Vemos que, na França e na Itália, a imitação da literatura antiga
interrompeu o desenvolvimento original mesmo após seu início.
Todas as mulheres que escrevem são discípulas dos grandes es-
critores. Os primeiros quadros de um pintor, mesmo que ele seja
um Rafael, não se distinguiriam do estilo dos quadros de seu mes-
tre. Mesmo um Mozart ainda não deixa ver sua poderosa origina-
lidade em suas primeiras peças. O que os anos são para um indi-
víduo talentoso, são gerações para a massa. Se a literatura escrita
por mulheres se destina a ter um caráter coletivo diferente da dos
homens, dependendo de qualquer diferença de tendências natu-
rais, será necessário um período muito mais longo do que já de-
correu, antes que elas possam se emancipar da influência de mo-
delos já aceitos e guiarem-se por seus próprios impulsos.
111
próprio sustento ou reconhecimento social. As mulheres artistas
são todas amadoras.
112
mes do mundo moderno, do que pintar; e é só de vez em quan-
do que um Reynolds ou um Turner (de cuja posição entre os ho-
mens eminentes não pretendemos emitir opinião) se aplicam a
essa arte. A música pertence a uma ordem diferente de coisas;
não requer as mesmas capacidades gerais da mente, mas pare-
ce depender mais de um dom natural; e pode parecer surpreen-
dente que nenhum dos grandes compositores musicais tenha sido
uma mulher.
Não obstante, mesmo esse dom natural, para estar a serviço das
grandes criações, requer estudo e devoção profissional para que
seja alcançado. Os únicos países que produziram compositores
de primeira classe, mesmo do sexo masculino, são a Alemanha
e a Itália – países nos quais, tanto do ponto de vista do refina-
mento cultural específico quanto do geral, as mulheres perma-
neceram muito atrás das da França e da Inglaterra, sendo ge-
ralmente (pode-se dizer sem exagero) muito pouco instruídas
e tendo cultivado pouco de qualquer das faculdades mentais
superiores. E nesses países, os homens que são familiarizados
com os princípios da composição musical devem ser contados
às centenas, ou mais provavelmente aos milhares, as mulheres,
apenas por dezenas; de modo que aqui, novamente, na doutri-
na das médias, não podemos razoavelmente esperar ver mais
de uma mulher eminente para cada cinquenta homens eminen-
tes; e os últimos três séculos não produziram cinquenta compo-
sitores homens eminentes na Alemanha ou na Itália.
113
às coisas de ordem prática. Há, primeiro, os cuidados com o lar e
as despesas domésticas, que ocupam pelo menos uma mulher em
cada família, geralmente uma de idade madura e experiência ad-
quirida; a menos que a família seja tão rica a ponto de admitir de-
legar essa tarefa a uma agência contratada, e se submeter a todos
os desperdícios e malversação inerentes a esse tipo de investida.
114
que poderiam gastar com essas atividades. Se fosse possível que
todas essas pequenas questões práticas (que se fizeram grandes
para elas) pudessem dar lugar ao lazer, ou a mais energia e liber-
dade de espírito, para serem devotados à arte ou especulação, elas
teriam uma maior provisão de originalidade no que se refere às
faculdades ativas do que a maioria dos homens.
115
prática também deve ser mantida em constante exercício para al-
cançar alta habilidade.15
116
característica inerente às mulheres. É apenas a consequência na-
tural de suas circunstâncias.
117
outra situação na vida em que não seja a ordem estabelecida, e con-
siderada bastante natural e adequada, que o melhor deva obede-
cer ao pior. Se essa conversa fiada serve para alguma coisa, será
apenas como admissão, por parte dos homens, da influência cor-
ruptora do poder; pois essa é certamente a única verdade que o
fato, se é que é um fato, prova ou ilustra. E é verdade que a servi-
dão, exceto quando realmente brutaliza, embora corrompa a am-
bos, corrompe menos os escravizados do que os senhores. É me-
lhor que a natureza moral seja restringida, mesmo que por um
poder arbitrário, do que permitido o exercício do poder arbitrá-
rio sem restrição. Dizem que as mulheres raramente são enqua-
dradas pela lei penal – estão em número muito menor entre os
acusados nos registros criminais do que os homens. Não duvida-
mos que a mesma coisa possa ser dita, com a mesma verdade, dos
negros escravizados. Aqueles que estão sob o controle de outras
pessoas não podem, com muita frequência, cometer crimes, a me-
nos que sejam sob encomenda e para os propósitos de seus senho-
res. Desconhecemos um indício mais flagrante de cegueira, com a
qual o mundo, incluindo uma horda de homens eruditos, ignora
e reproduz todas as influências das circunstâncias sociais do que
sua depreciação tola da natureza intelectual das mulheres e seus
tolos panegíricos sobre a moral.
118
Deve-se considerar também que toda a educação que as mulheres
recebem da sociedade inculca nelas o sentimento de que os indi-
víduos próximos a elas são os únicos a quem elas devem alguma
satisfação – os únicos cujo interesse elas são solicitadas a cuidar;
enquanto, no que diz respeito à educação, são deixadas alienadas
mesmo das ideias elementares que se pressupõe que estejam pre-
sentes em qualquer consideração inteligente, em relação a inte-
resses maiores ou objetos morais superiores. A queixa contra elas
se resume meramente nisto: elas cumprem com demasiada fideli-
dade a única obrigação que lhes é demandada, quase a única que
lhes é permitido praticar.
119
próprio marido ou dos maridos das amigas. O mesmo deu-se em
todos os outros casos de servidão, pelo menos no início do movi-
mento emancipatório. A princípio os servos não se queixaram do
poder de seus senhores, mas apenas de sua tirania. Os Comuns co-
meçaram reivindicando alguns privilégios municipais; depois pe-
diram a isenção de tributos sem seu consentimento; mas, naquele
momento, teriam achado uma grande presunção reivindicar qual-
quer forma de participação na governança soberana do rei.
120
CAPÍTULO IV
121
má-fé, levando em consideração apenas os casos extremos ou que
vêm a público, podem dizer que os males são excepcionais; mas
ninguém deixa de enxergar sua existência, nem, em muitos casos,
sua intensidade.
122
restrições às mulheres – o reconhecimento delas como iguais aos
homens em tudo que diga respeito à cidadania – a abertura de
todos os empregos dignos para elas, e o treinamento e a educação
que as qualifica para tais empregos – há muitas pessoas para as
quais não é bastante que não haja uma justificativa legítima para
a desigualdade; elas exigem que se lhes diga qual seria a vantagem
expressa obtida ao aboli-la.
123
maioria das mentes masculinas. Pois, entre as pessoas benfazejas
e bem-educadas, a desigualdade é mantida, tanto quanto possível,
fora da vista; principalmente fora da vista das crianças. Exige-
-se dos meninos equitativa obediência à mãe e ao pai: eles não
têm permissão de oprimir suas irmãs, nem estão acostumados
a vê-las preteridas, mas o contrário; as compensações do senso
cavalheiresco são destacadas, enquanto a servidão que as fazem
necessárias são mantidas em segundo plano.
124
tão boas quanto ele, por nenhum mérito ou trabalho próprio,
mas simplesmente por ter tido, como dizia Fígaro, o trabalho de
nascer. A egolatria do monarca, ou do senhor feudal, é análoga à
egolatria do homem. Os seres humanos não saem da infância na
posse de distinções pelas quais não se esforçaram sem se vanglo-
riar delas. Aqueles cujos privilégios não foram adquiridos por seu
próprio mérito, e aos quais não se sentem merecedores, inspiram
com ainda maior humildade, são sempre a minoria e a melhor
minoria. Os demais só se inspiram no orgulho, e o pior tipo de
orgulho, aquele que é vangloriado por suas vantagens acidentais,
e não por seu próprio mérito.
125
substituí-las por aquelas da justiça permanecerá meramente na
superfície se a cidadela do inimigo não for atacada.
126
Em qualquer âmbito, a superioridade mental de qualquer tipo
está atualmente muito abaixo da demanda; existe uma deficiência
de pessoas competentes para realizar, de forma excelente, qual-
quer coisa que exija uma considerável capacidade. A perda para
o mundo é extremamente grave quando se recusa a fazer uso da
metade de toda a quantidade de talento que existe. É verdade que
essa quantidade de poder mental não está totalmente perdida.
Grande parte é empregada, e o seria de qualquer forma, na admi-
nistração doméstica e nas outras poucas ocupações abertas às mu-
lheres; e do restante, o benefício indireto é obtido em muitos ca-
sos individuais, através da influência pessoal de certas mulheres
sobre certos homens.
127
Dessa maneira, a ampliação do campo de ação das mulheres es-
taria permanentemente em funcionamento por meio da elevação
do seu nível educacional ao nível dos homens, fazendo cada pes-
soa participar de todas as melhorias feitas pela outra. Mas, inde-
pendentemente disso, o mero rompimento da barreira teria em si
uma virtude educacional do mais alto valor. O simples afastamen-
to da ideia de que todos os campos mais amplos do pensamento e
ação, todas as coisas de interesse geral e não apenas de interesse
particular, são assuntos dos homens, dos quais as mulheres de-
vem ser afastadas – totalmente interditas para a maioria delas,
tolerada friamente no pouco que lhes é permitido – a mera cons-
ciência que uma mulher teria de ser um ser humano como qual-
quer outro, com direito a escolher suas atividades, instigada ou
convidada pelos mesmos incentivos que qualquer outra pessoa,
no sentido de se interessar pelo que quer que seja, com o direito
de exercer sua parcela de influência sobre todas as questões hu-
manas que pertencem à esfera individual, buscando ou não parti-
cipar delas – isso por si só causaria uma imensa expansão das fa-
culdades das mulheres, bem como a ampliação da gama de seus
sentimentos morais.
128
da civilização. Mesmo na época de Homero, o αιδως para com
Τρωαδας ἑλκεσιπεπλους17 é uma motivação reconhecida e pode-
rosa da ação do grande Hector.
129
com o cultivo de uma classe de virtudes totalmente diferente – a
da gentileza, da generosidade e da abnegação em relação às clas-
ses não-militares e indefesas em geral, e uma submissão e ado-
ração especial dirigida às mulheres; que, por sua vez, se distin-
guiam das outras classes indefesas pelas altas recompensas que
elas tinham o poder de conceder àqueles que se esforçavam para
ganhar seu favor, em vez de extorquir sua sujeição.
130
ocupação da sociedade passou da luta para os negócios, da vida
militar para a industrial.
131
– em estimular os sentimentos e continuar as tradições e a genero-
sidade. Nesses aspectos do caráter, o padrão delas é mais elevado
do que o dos homens; na qualidade da justiça, um pouco mais baixo.
132
mero considerável delas se ocupou de forma prática na promoção
de questões que ultrapassam sua própria família e lar. A influên-
cia das mulheres é notável em dois dos aspectos mais marcantes
da vida europeia moderna – sua aversão à guerra e seu vício em
filantropia. Duas excelentes características; mas, infelizmente, se
a influência das mulheres é valiosa no encorajamento que dá a es-
ses sentimentos em geral, nas aplicações particulares de tais dire-
cionamentos é tão prejudicial quanto útil. No âmbito filantrópico,
mais particularmente, os campos mais cultivados por mulheres
são o do proselitismo religioso e o da caridade.
133
bem, é imensamente aumentado pelas contribuições das mulhe-
res e estimulado por sua influência. Não que este seja um erro
passível de ser cometido preferencialmente por mulheres, já que
elas realmente têm a gestão prática de esquemas de beneficência.
Estas considerações mostram como seria útil que a parte que cabe
às mulheres na formação da opinião geral fosse modificada para
melhor, por meio de uma ampliação em sua instrução, e por uma
discussão mais voltada à prática sobre as coisas que são influen-
ciadas por suas opiniões, o que derivaria necessariamente de sua
134
emancipação social e política. Mas a melhoria trazida da influên-
cia que exercem, cada qual em sua própria família, seria ainda
mais notável.
135
Em primeiro lugar, porque sempre há algum sacrifício de inte-
resse pessoal requerido; seja de importância social ou de meios
pecuniários; talvez até mesmo o risco dos meios de subsistência.
Ele pode estar disposto a se deparar sozinho com esses sacrifícios
e riscos, mas hesitará antes de os impor à sua família. E sua fa-
mília, neste caso, significa esposa e filhas; pois ele sempre espera
que seus filhos se sintam como ele se sente, e que o que ele puder
prescindir, eles, de bom grado, prescindirão. Mas o casamento das
filhas dele pode depender disso; e sua esposa, que é impossibili-
tada de participar ou de entender os objetivos pelos quais esses
sacrifícios são feitos – caso achasse que valem algum sacrifício,
pensaria assim com confiança e unicamente por causa do marido
– que não pode participar do entusiasmo ou da autoaprovação que
ele pode sentir, enquanto as coisas que ele está disposto a sacrifi-
car são todas para ela; o melhor dos homens e o mais altruísta não
hesitará o máximo possível antes de lhe impor essa consequência?
Mesmo que não dissesse respeito aos confortos da vida, mas ape-
nas a consideração social estivesse em jogo, ainda assim, a car-
ga sobre sua consciência e seus sentimentos seria muito severa.
Quem quer que tenha esposa e filhos os deu como reféns à Sra.
Grundy.18 A aprovação desse potentado pode lhe ser indiferente,
mas é de grande importância para sua esposa. O próprio homem
pode estar acima da opinião, ou pode encontrar uma compensa-
ção suficiente na opinião daqueles que compartilham de sua ma-
neira de pensar. Mas para as mulheres ligadas a ele, não há com-
pensação que possa ser oferecida. A tendência quase invariável
da esposa de colocar sua influência na mesma escala da conside-
ração social é, às vezes, vista como censura às mulheres, e repre-
sentada como uma característica peculiar de fraqueza e infantili-
dade de caráter nelas, o que certamente é uma grande injustiça.
18 N. T. Originalmente, foi uma personagem ficcional aludida na peça Speed the Plough
(1798), de Thomas Morton (1752–1812); e tornou-se um nome figurativo para se
referir a pessoas conservadoras.
136
A sociedade torna a vida inteira de uma mulher, das classes mais
favorecidas, um contínuo autossacrifício; exige dela uma restrição
incessante de todas as suas inclinações naturais, e o único retorno
que lhe dá pelo que, muitas vezes, merece ser chamado de martí-
rio é a consideração. Sua consideração está inseparavelmente li-
gada à do marido e, depois de pagar o preço integral, ela descobre
que pode perdê-la por qualquer razão banal. Ela sacrificou sua
vida inteira por isso, e seu marido não sacrificará nem um capri-
cho, uma aberração, uma excentricidade; algo não reconhecido ou
permitido pelo mundo, e que o mundo concordará com ela que é
uma insensatez, se não coisa pior!
137
e que impede que ela e o marido recebam convites, talvez honras,
que, na sua visão, sua família tem o mesmo direito que outras
pessoas. Com tal influência em cada lar, exercida ativamente ou
operando com mais força por ser disfarçada, não é de se admirar
que as pessoas em geral sejam mantidas nessa medíocre respei-
tabilidade que está se tornando uma característica marcante dos
tempos modernos?
138
autoridade que rivaliza com a do marido, e suscita uma revolta
contra sua infalibilidade.
139
ceder – quase sempre sofrendo amargamente; e, com ou sem in-
tenção, sua influência oculta continua a contrariar os propósitos
do marido.
Em geral, terão que abrir mão, por não haver outra solução, e re-
nunciar à tentativa de ter, na convivência íntima de sua vida co-
tidiana, esse idem velle, idem nolle, que é o elo de qualquer so-
ciedade que realmente se pretende como tal; ou se o homem
consegue lograr êxito, o faz escolhendo uma mulher que esteja
tão completamente anulada, que não tenha de forma alguma nem
velle nem nolle, e estará disposta a consentir sobre qualquer ques-
tão. Mesmo esse cálculo pode falhar; a estupidez e a falta de espí-
rito nem sempre são uma garantia da submissão que se espera tão
confiantemente. Mas, se fossem, seria esse o ideal do casamento?
Nesse caso, o que o homem obteria, exceto uma serva, uma cuida-
dora ou uma amante?
140
cada uma adquirindo os gostos e capacidades da outra e somando
à sua própria.
141
se restringe àquela de intelecto inferior e a elege como sua esco-
lhida e única companheira íntima. Qualquer sociedade que não
está melhorando está se deteriorando; e quanto mais se deteriora,
mais próxima e familiar ela é.
142
ele poderia ter sido obrigado a procurar) pela sociedade de seus
iguais e de seus companheiros cujas buscas são mais elevadas.
Vemos, por consequência, que homens jovens e mais promissores
param de evoluir assim que se casam, e ao não evoluírem, inevi-
tavelmente degeneram. Se a esposa não empurra o marido para a
frente, ela sempre o mantém atrás. Ele deixa de se importar com
o que ela não se importa; ele não deseja mais e acaba detestando
e rejeitando a sociedade que antes era compatível com suas aspi-
rações anteriores, e as quais agora envergonharia suas faculda-
des superiores, tanto as mentais quanto as emocionais, que já não
estão mais em uso. E essa mudança coincide com os interesses
novos e egoístas criados pela família. Depois de alguns anos, ele
não se difere em nenhum aspecto material daqueles que nunca ti-
veram desejos por nada além das futilidades mais comuns e dos
mais comuns objetos pecuniários.
143
Até aqui, os benefícios que parece que o mundo obteria ao deixar
de fazer do sexo de uma pessoa uma desqualificação de privilé-
gios e um símbolo de sujeição são mais sociais do que individuais;
consistindo no aumento do bem geral para o pensamento e ação,
e uma melhoria nas condições gerais nas relações de homens com
mulheres. Mas seria uma grave omissão, no caso, não citar o be-
nefício mais direto de todos: o indescritível ganho de felicidade
restrita à metade liberta da espécie.
144
regulação de seus assuntos –, sua tendência é perguntar: quais são
suas queixas? A qual dano foram realmente submetidas? E em
que sentido elas consideram seus negócios mal administrados?
E, se não conseguem entender respondendo a essas perguntas, o
que lhe parece um caso suficiente, ele não as escuta mais e consi-
dera suas queixas como uma indecisão fantasiosa de pessoas que
nunca se contentarão com o razoável.
145
Não é isto parte importante da felicidade individual? Que cada
homem lembre o que sentiu ao emergir da infância – da tutela e
controle de pessoas mais velhas, mesmo sendo amáveis e afetuo-
sas – e assumir as responsabilidades da vida adulta? Não foi como
o efeito físico de tirar um peso das costas ou se libertar de laços
obstrutivos, mesmo que não fossem dolorosos? Não se sentiu duas
vezes mais vivo, duas vezes mais humano que antes? E ele ima-
gina que as mulheres não têm nenhum desses sentimentos? Mas
é um fato impressionante que as satisfações e mortificações do
orgulho pessoal, pelo menos para a maioria dos homens quando o
caso é o deles próprios, são menos admitidas para outras pessoas
e menos levadas em consideração como fundamento ou justifi-
cativa de conduta, do que quaisquer outros sentimentos huma-
nos normais; talvez seja porque os homens as enaltecem e as no-
meiam com os nomes de muitas outras qualidades, que raramente
percebem a influência poderosa que esses sentimentos exercem
em suas próprias vidas.
Podemos ter certeza de que sua influência não é menor nem me-
nos poderosa nas vidas e nos sentimentos das mulheres. As mu-
lheres são instruídas a suprimi-los no que tem de mais natural e
salutar, mas o princípio interno permanece, de uma forma exter-
na diferente. Uma mente ativa e enérgica, se lhe for negada a li-
berdade, buscará poder; se lhe for recusado o comando de si mes-
ma, afirmará sua personalidade tentando controlar os outros. Não
permitir a qualquer ser humano uma existência própria a não ser
a que dependa das outras pessoas é dar um prêmio muito alto à
submissão das outras aos próprios propósitos.
146
ção; e todos os males que daí decorrem, na forma de luxo pernicio-
so e da imoralidade social. O amor ao poder e o amor à liberdade
estão em eterno antagonismo. Onde há menos liberdade, a paixão
pelo poder é a mais ardente e inescrupulosa. O desejo do poder so-
bre os outros somente cessará de ser uma agência de depravação
entre os seres humanos quando cada pessoa individualmente for
capaz de abdicar de tal poder; o que só poderá acontecer quando
o respeito pela liberdade de cada um, e tudo que lhe diz respeito,
for um princípio estabelecido.
147
adaptaram; e permanecem com igual capacidade, mas sem em-
prego, a menos que talvez uma filha ou uma nora esteja dispos-
ta a abdicar em seu favor o desempenho das mesmas funções em
sua família recém formada.
148
transportadas exatamente como estão, da sala de visitas para a
Câmara dos Comuns. Eles esquecem que os homens geralmente
não são selecionados nessa idade precoce para um posto no Par-
lamento ou para funções políticas responsáveis. O bom senso lhes
diria que, se tais encargos fossem confiados às mulheres, seria
àquelas que não tivessem vocação especial para a vida de casada,
ou que preferisse empregar suas faculdades em outras atividades
(como muitas mulheres agora preferem, ao casamento, algumas
das poucas ocupações honrosas ao seu alcance), tendo passado os
melhores anos de sua juventude na tentativa de se qualificar para
as atividades nas quais desejam se envolver; ou ainda mais fre-
quentemente, talvez, viúvas ou esposas de quarenta ou cinquenta
anos, cujo conhecimento sobre a vida e as aptidões para admi-
nistrar que adquiriram em suas famílias, poderiam, com a ajuda
de estudos apropriados, ser disponibilizados em escala menos
limitada.
149
ou totalmente negado a uma grande parte da humanidade; e, por
essa ausência, muitas vidas se tornam um fracasso, mesmo que
aparentemente fornidas com todos os requisitos para o sucesso.
150
e preconceito, mais restrições às mulheres, além dos males que a
natureza já as inflige.
151
edições câmara
LEGADO