A Governanta - A.S Victorian

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 302

A Governanta

A. S. Victorian
Copyright @ A S Victorian

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.


É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem o consentimento
prévio da autora.

Personagens, ambientes e acontecimentos presentes nesta obra são


completamente fictícios, suas semelhanças com a realidade são mera
coincidência.

Capa: Dri K. K. ( www.fb.com/DriKKDesign )


Aos meus amados,
por fazerem meus dias
cada vez mais doces
D. A. M. C. F. T. B. L.
“I am no bird; and no net ensnares me;
I am a free human being with an independent will”
~Charlotte Brontë, Jane Eyre
Capítulo 01

A França era um lugar lindo sob os primeiros raios do verão. O sol


brilhava intensamente, as cores no quintal reluziam e os pássaros cantavam
alegres e planavam baixo, passando a centímetros de minha janela. Estava
uma tarde muito feliz, mas a natureza se mantinha alheia a todo o sofrimento
que eu havia sido forçada a ocultar dentro do quarto.
Eu, ajoelhada perto da janela, escondia-me entre o parapeito e o
cortinado. Dali dava para ver o cortejo que levava o caixão, e era um bom
esconderijo para que ninguém lá embaixo me visse. Mantinha-me em
silêncio, deixando as lágrimas correrem timidamente pelo meu rosto e
fingindo não notá-las. Naquele caixão estava a pessoa que eu mais amava em
toda a minha vida.
— Oh, mamãe! — Sussurrei entre soluços engolidos. — Eu sinto
muito não estar aqui quando a senhora mais precisou de mim.
O cortejo era formado por papai, três empregados e Heloíse, nossa
governanta, que os acompanhava mais afastada, arrastando seu longo e
pesado vestido negro sobre a grama verde-esmeralda. Rumavam na direção
do cemitério, não muito longe do centro da cidade, onde minha irmã fora
enterrada e eu sabia que agora havia um espaço esperando por mamãe.
Eu queria poder acompanhá-los, mas me trancaram no quarto antes
mesmo do sol nascer, e eu continuava lá dentro. Pelo menos, a minha janela
era um bom observatório. Assisti enquanto a levavam para o sepultamento.
Vi quando sumiram pela rua e quando voltaram mais tarde. Só então retirei-
me de meu esconderijo. Fechei as cortinas e me deitei na cama, escondendo a
cabeça sob o travesseiro e não mais me importando com qualquer barulho
que meu choro pudesse causar.
A dor que sentia não podia ser medida e eu não fingiria que ela não
existia ou me impediria de chorar. Fiquei entregue àquele estado até
adormecer. O sono febril me trouxe as lembranças do dia anterior, o pior dia
da minha vida até aquele instante.
-

Don e Isabele Roche corriam na minha frente, gargalhando alto de


minha pessoa que se esforçava para acompanhá-los. Era uma brincadeira de
pegar e eu era a pior entre eles, mas nunca fui de desistir tão facilmente e
normalmente conseguia agarrar Isa quando ela se cansava. Foi o que
aconteceu: ela ficou um pouco para trás e eu pulei em seu alcance, caindo nós
duas no chão às gargalhadas. Don veio até nós e riu também.
Os dois eram irmãos e moravam duas ruas abaixo da minha. Isa era
quatro anos mais velha do que Don e eu, mas sempre brincava com nós dois e
nos tratava como seus animaizinhos de estimação. Era uma garota alta e que
parecia mais velha do que seus dez anos. Seus longos cabelos negros estavam
presos em uma trança que se bagunçara com toda a correria. Suas bochechas
finas e delicadas latejavam vermelhas de cansaço, e seus olhos cor de mel
faiscavam de animação.
— Ah, eu não queria perder para a Samantha. — Ela fechou a cara
em uma expressão divertida e mimada. — Ela nunca consegue correr tanto
quanto nós dois.
— Mas eu consegui te pegar de novo. — Eu respondi ainda em cima
dela. — Não sou tão ruim assim.
— É sim, garotinha. — Don me puxou pela cintura, erguendo-me no
ar e me colocando de lado.
Ele tinha a mesma idade que eu, mas, assim como sua irmã, parecia
mais velho. Seu rosto não era tão delicado quanto o de Isa, pelo contrário,
assemelhava-se bastante ao meu: redondo e sardento. Porém, os olhos dos
dois eram idênticos e sempre possuíam uma animação que me contagiava em
qualquer situação.
— Querem brincar de mais o quê? — Isabele finalmente se ergueu e
se colocou na nossa frente.
— Eu preciso ir para casa. — Arrumei meu vestido, que agora
estava sujo e amarrotado, muito mais do que eu esperava que ficasse. —
Mamãe já deve estar preocupada.
— A nossa também. — Don revirou os olhos, mas ria como se não
se importasse nenhum pouco. Eu não me divertiria pensando naquilo, já que
tentava nunca preocupar minha mãe. — Então nos vemos em breve, Sam.
Abracei-os com força e corri de volta para casa. Já havia passado da
hora de voltar e eu tinha certeza que Heloíse reclamaria da condição de
minhas roupas e da hora. Então, corri o máximo que conseguia para encurtar
o tempo que normalmente levaria das ruas até o pátio de casa.
Preferi entrar pelos fundos, passando pela porta da cozinha e assim
evitando Heloíse, mas foi apenas a cozinheira Paulette abrir a porta e eu
correr até o vestíbulo, que ela apareceu e me agarrou pelo braço. Puxou-me
em direção ao meu quarto sem falar nada, enquanto eu lutava para me
desvencilhar de sua imensa mão e continuar meu caminho até o quarto de
mamãe. Mostrava-se com muita pressa, e eu não me interessei nenhum pouco
em descobrir seus motivos.
Mas então papai saiu de seu quarto e nós duas paramos no corredor,
encarando-o estupefatas, como se não esperássemos encontrá-lo ali, mesmo
aquela sendo a sua casa.
— Papai! — Falei animada e puxei meu corpo para longe das mãos
da governanta, que haviam se afrouxado um pouco ao ver o patrão. Eram
raros os momentos que papai estava em casa e eu não iria perder a
oportunidade de abraçá-lo. Agarrei-o pela cintura, mas ele logo me afastou
com repulsa. Subi os olhos tristemente para sua face e notei seu rosto
vermelho e sua expressão de quem passara horas chorando.
— O que foi, papai? Aconteceu alguma coisa?
— Heloíse. — Ele fez um gesto impaciente para que ela voltasse a
me pegar. — Leve ela para o quarto.
— Eu quero ver mamãe antes, papai.
— Não vai ver sua mãe não! — Ele franziu a testa, e percebi que o
que estava errado tinha alguma coisa a ver com minha mãe. Heloíse voltou a
me segurar com ainda mais força, fincando suas longas unhas em minhas
mangas.
— Mamãe?! — Chamei alto, esperando uma resposta vinda de seu
quarto no final do corredor. Silêncio. — Mamãe?! Mamãe?!
— Pare de gritar! — Meu pai me repreendeu. — Você quer ver sua
mãe? Então vá lá vê-la. Só não me culpe pelo que encontrará.
A governanta me soltou e eu corri para a porta fechada do quarto de
mamãe. Mesmo tendo sido avisada, eu nem ao menos hesitei. Para mim, não
se tratava de algo sério, apenas papai em um mal dia, então entrei de uma vez
e me deparei com a cena que nunca minha cabecinha de seis anos apagaria de
sua memória.
O quarto estava escuro e abafado. Mamãe deitada em sua cama,
vestia uma camisola branca e estava coberta com a manta até os seios, mesmo
com o calor que fazia ali dentro. Caminhei vagarosamente até o seu lado e
toquei suas mãos cruzadas sobre a barriga. Ela estava fria e, em minha
cabeça, era por causa daquilo que as coisas deveriam estar quentes no quarto,
para que ela pudesse se esquentar também.
Arrumei sua manta ainda mais alto e passei os dedos carinhosamente
em sua testa, colocando de lado uma madeixa molhada que descia pela pele
azulada.
— Mamãe, tá na hora de acordar. — Beijei sua bochecha. Ela não se
moveu. — Eu cheguei, mamãe. Vamos ler alguma história e brincar juntas.
Ela continuava estática, sem responder a nada. Balancei-a levemente
pelo ombro e nem sinal dela despertar.
Papai e Heloíse estavam parados à porta, encarando-me sérios.
— Papai. — Corri até ele. — Por que a mamãe não quer acordar?
Ele se manteve em silêncio. Eu tentava puxá-lo pela mão para
próximo da cama, mas ele se recusava a se aproximar. Então, eu me virei
para a outra pessoa, mesmo ela sendo a última que eu escolheria em qualquer
situação. O desespero me fez recorrer a todas as ajudas.
— Mademoiselle Tissot — Falei baixinho, rebaixando-me da
maneira que ela gostava. — Por que a mamãe não quer acordar?
— Ela não vai mais acordar. — Heloíse respondeu sem nenhum
sentimento em sua voz, quase tão fria quanto a pele de mamãe. — Sua mãe
está morta, Samantha. Ela não vai mais acordar.
— Isso é mentira! — Gritei e corri de volta para junto de minha mãe.
Abracei-me com força a seu corpo e sussurrei, temendo chorar caso eu
falasse mais alto: — Acorde, mamãe. Vamos… Está na hora de acordar.
— Eu já disse que ela não vai acordar. — A governanta me puxou
pelo ombro e eu me agarrei com mais força ao corpo. Agora não conseguia
mais não chorar. Eu soluçava alto e sentia meu peito doendo.
Ela não estava morta, aquilo não podia ser verdade. Sua expressão
era a mesma de sempre quando dormia, ela não estava morta, ela não podia
me deixar daquele jeito. Eu não conseguia acreditar que fora embora e me
largado ali.
A governanta me agarrou pela cintura e me carregou até meu quarto,
mesmo eu esperneando e gritando que queria ficar com a minha mãe e que
aquilo não era justo. Ela me colocou sentada no chão e trancou a porta antes
que eu tivesse tempo de correr.
— Vai ficar gritando igual a uma criança mimada, é? — Colocou-se
na minha frente, com as mãos na cintura e sua carranca de sempre. — Não
adianta você chorar, ela não vai voltar por isso.
— Por que isso aconteceu comigo, Mademoiselle Tissot? Isso não é
justo!
— Deus castiga aqueles que merecem. — Heloíse começou a me
despir, retirando o vestido e me beliscando simultaneamente. — É você que
lava seus vestidos, Samantha? Acha engraçado chegar todo dia imunda em
casa? Sua mãe criou um animalzinho, isso sim. Uma criança sem modos, que
não sabe se comportar nem obedecer e, ainda por cima, se acha no direito de
questionar qualquer coisa. E por isso você está sendo castigada, porque você
é uma péssima criança e merece uma lição para crescer como uma mulher de
sua classe.
Aquela não era a primeira vez que me dirigiram a expressão “mulher
de sua classe”, mas foi a primeira que eu de fato me importei. A partir
daquele momento descobri que odiaria ser a pessoa que esperariam que eu
fosse.
— Não… — As lágrimas falhavam minha voz. — Eu quero minha
mãe de volta!
— Você acha que Deus irá escutar uma garota horrível como você?
Se Ele não trouxe de volta nem quem era bom para quem merecia, não trará
para você. Agora, pare de chorar que isso está me atormentando e não vai
melhorar o que está sentindo.
Eu não me calei e ela se enfureceu. Heloíse pegou a escova que
descansava sobre a penteadeira e voltou até mim. Ergueu-me pela orelha e
surrou incessantemente minhas costas e pernas. “Você não vai parar de
chorar?” Ela gritava perto de meu rosto, sua voz estava mais alterada do que
de costume.
Quando sua raiva diminuiu e ela se satisfez, deixou-me largada no
chão, chorando com ainda mais vontade, e foi chamar uma das empregadas
para arrumar meu banho. Eu já estava acostumada com os castigos impostos
por ela, mas aquele foi mais doloroso do que todos os outros. Não foi a dor
de ser surrada, foi a dor de ter perdido minha mãe e nem ao menos poder
mostrar que estava triste por causa daquilo. Foi a dor de ser abandonada sem
carinho e não ter nenhum ombro amigo para eu poder chorar. Foi a dor de
saber que tudo dali para frente seria diferente.

Acordei com alguém afagando meu ombro. Era a criada, uma moça
baixa e de cabelos castanhos cuidadosamente trançados e presos em um
coque. Chamava-se Amélia e seus olhos também estavam vermelhos de tanto
chorar.
— Mademoiselle Evans. — Ela sussurrou carinhosamente quando
despertei. — Dormiu aqui desse jeito?
Abri apaticamente os olhos e estudei onde dormira. Meu ombro se
apoiava na parede e eu estava caída em um canto do quarto, bem longe da
cama onde havia me deitado. Neguei com a cabeça e ela notou que eu estava
atordoada demais para entender qualquer coisa.
— Seu pai quer que a senhorita jante com ele.
— Não estou com fome. — Respondi secando os olhos. Minha
barriga roncou, mas eu a ignorei. Estava fraca e sem ânimo para qualquer
coisa.
— Minha querida, — Amélia tentou sorrir, mas seu sorriso foi
forçado e não conseguiu ser acolhedor. Percebi que dividíamos as mesmas
dores e me senti menos solitária. — foi uma coisa horrível a morte de
Madame Evans, mas a senhorita não deve ficar sem comer. Tem que ficar
forte e continuar sendo aquela menina alegre que dava vida a essa casa.
— Eu não estou com fome. Eu quero ficar só e chorar até poder me
juntar a minha mãe.
— Não diga isso, Mademoiselle! Uma coisa muito horrível para uma
criança tão pequena desejar. Deve ficar forte e bem! A senhorita verá que
tudo vai dar certo.
— Minha mãe não está aqui. Não vai dar certo! — As lágrimas
voltaram a escorrer. Ela me abraçou carinhosamente e beijou minha
bochecha. Nem papai, nem Heloíse gostavam quando os criados “se
misturavam com os senhores da casa”, mas mamãe sempre me ensinara a
gostar de todos e considerá-los parte da família, então correspondi ao seu
abraço.
— A senhorita está queimando em febre. — Ela se afastou
assustada. Seus braços fortes me ergueram com habilidade e me levaram de
volta para a cama. Fui coberta com carinho e meu travesseiro afofado do jeito
que eu gostava. — Vou pedir para seu pai chamar o médico e vou subir com
seu jantar.
Amélia saiu do quarto e eu voltei a me deitar. Estava cansada por
conta da febre, mas não queria voltar a dormir e sonhar novamente com
mamãe. Não queria acreditar que ela havia partido, mesmo sabendo que eu
teria que me convencer mais cedo ou mais tarde.
Fechei os olhos e cochilei mais um pouco. Quando acordei, Heloíse
estava parada junto à porta com a bandeja do jantar.
— Uma criança tão mimada que fica doente por coisas
desnecessárias. — Foi seu comentário assim que notou que eu estava
acordada. — Não preocupe seu pai com seus problemas, ele já tem os dele.
— O que houve com a mamãe? — A pergunta saiu como um sopro,
mas ela escutou bem. Colocou a bandeja em meu colo e se sentou na minha
frente.
— Sua mãe foi encontrada morta enquanto se lavava.
— Eu quero ficar junto com ela.
— Ela foi uma boa pessoa e está em um bom lugar. Se a senhorita
morresse, não ficaria com ela, iria para um lugar ruim pagar pelos seus
pecados.
— Por que a senhorita não gosta de mim?
— Eu gosto de você, Samantha. E por gostar que me preocupo e
quero lhe educar da melhor forma possível para que seja uma dama quando
crescer. Vou pedir para o médico vir amanhã lhe ver. Agora coma o seu
jantar e não fale mais de sua mãe para o seu pai. Ele está sofrendo muito com
isso e não vamos preocupá-lo mais.
— Sim, Mademoiselle Tissot.
— Ah! — Ela exclamou depois de se levantar e estar quase
atravessando a porta. — Agora que a sua mãe não está mais aqui, a senhorita
sabe que as coisas mudarão, não sabe? Então é bom passar a se comportar se
não quiser ser castigada. E dessa vez não vai ter ninguém para me fazer ser
mais tolerante com a senhorita.
— Sim, Mademoiselle Tissot.
Ela sorriu de lado. Seus olhos verdes brilhavam, eu sentia aquela
raiva com a qual estava tão acostumada. Eu sabia que as coisas seriam piores
para mim dali em diante.

O médico veio na manhã seguinte. Eu havia piorado e não conseguia


nem ao menos levantar minha cabeça. Ele pediu para que eu descansasse e
receitou alguns remédios – que Heloíse fez questão de não me dar. Passei
longos e entediantes dias sozinha no quarto, tendo todo tempo do mundo para
pensar sobre o ocorrido e chorar o quanto eu quisesse. Amélia vinha sempre
me trazer comida e me alimentava com carinho, como se quisesse mostrar
que, pelo menos, alguém naquela casa se importava comigo. Ela às vezes lia
alguma coisa ou me contava as histórias de sua família, mas nunca se
demorava.
Procrastinei minha melhora ao máximo. Depois de alguns dias, eu já
sabia que minha situação era causada pelo meu emocional e que, se eu me
esforçasse, melhoraria rapidamente, mas eu queria continuar longe do
mundo. Nem papai, nem Heloíse foram me ver naqueles dias e aquilo me
motivava mais ainda a continuar deitada. Eu pensava que quanto mais ficasse
de cama, mais demoraria para eu sofrer nas mãos da governanta.
Porém, era doloroso ter tempo para pensar em mamãe. Eu não queria
ficar prostrada naquela cama para sempre, nem ao menos morrer, mas pensar
que a minha vida continuaria sem ela era angustiante.
Mamãe e eu sempre fomos muito próximas. Eu fui a única filha de
três que sobreviveu. Minha irmã mais velha morreu aos três anos de gripe, e
meu irmãozinho, ainda na barriga. Por isso talvez minha mãe tivesse se
apegado tanto a mim. Fazíamos quase tudo juntas. Ela passava a maior parte
do tempo em casa, ensinando-me inglês, piano, a ler e a escrever. E
ficávamos contando histórias e criando nossos próprios contos.
Nós duas estávamos sempre juntas e nos amávamos muito. Papai
raramente aparecia em casa e eu quase não o via, então me apeguei mais a
mamãe. Heloíse também pouco ficava comigo, só nas horas de me arrumar
ou quando mamãe precisava sair para algum compromisso. Eu não conseguia
imaginar como seria dali para frente sem tê-la para me proteger de Heloíse ou
para me fazer sorrir nos dias de chuva ou em qualquer outra situação. Eram
tantos momentos bons que eu nunca mais teria…
Mas uma coisa eu tinha certeza: ela não iria querer que eu ficasse
triste ou sofresse por sua causa. Ela não iria querer que eu desistisse de minha
felicidade.
Peguei um livro de capa azulada que estava dentro do móvel ao lado
da cama e o observei por bastante tempo. Era o livro que mamãe costumava
ler para mim antes de dormir. Estava todo na língua materna dela, o Inglês, e
eu pouco conseguia ler sozinha, mas já havia decorado algumas histórias de
cor de tanto que a escutei lendo. Abri no meu conto favorito e passei o
indicador pelas letras marcadas no papel amarelo.
— Mamãe… — Sussurrei para o livro como se ele fosse capaz de
transmitir minhas palavras para o Céu. — Eu vou ficar bem, eu prometo.
Prometo que vou tentar voltar a ser feliz, mesmo doendo muito ficar longe da
senhora.
Guardei o livro de volta e tentei me levantar. Ainda estava fraca, mas
agora queria abrir as cortinas e tentar ver a trilha por onde levaram minha
mãe até o túmulo da família. Talvez, se eu me esforçasse de verdade,
conseguisse ver o cemitério dali. Caminhei tropegamente até a janela e me
apoiei no parapeito. Sequei minhas lágrimas no momento que manifestaram
descer e inspirei fundo.
Não conseguia ver nada dali.
Calcei meus sapatos e saí vagarosamente do quarto, rumando para a
porta da cozinha. Eu iria até o lugar onde mamãe estava e ficar com ela, nem
que por ínfimos segundos. Queria poder rezar como os adultos faziam para
que sua alma descansasse. Mas também queria algum tempo para me
despedir.
Não consegui andar muito, Heloíse apareceu no andar de baixo e me
impediu de continuar.
— Aonde acha que está indo?
— Eu queria ver onde mamãe foi enterrada.
— E quem disse que vou deixá-la sair? Está doente e não vai ficar
andando por aí para piorar.
— Ah, por favor. — Agarrei-me a sua saia. Ela franziu o cenho. —
Vai ser rápido, Mademoiselle Tissot. Eu só quero me despedir dela.
— Não. A senhorita vai voltar agora para seu quarto e se preparar
para o jantar. Seu pai irá jantar em casa e ele quer conversar com você. É
bom se comportar e parar com essa besteira.
— Não é besteira! — Respondi exasperada. O modo que Heloíse
falava do meu sofrimento estava começando a me aborrecer de verdade.
Quem era ela para falar que a minha dor era besteira?
— Vá agora para o seu quarto.
— Não vou!
— Está me desobedecendo? — Não esperou pela minha resposta:
pegou-me no colo e subiu comigo de volta, mas não fomos para meu quarto.
Heloíse me levou até o escritório de papai. Ele estava em casa e aquele
impressionante fato me fez esquecer rapidamente meu pranto.
Desde que me lembrava, tomava papai por um senhor alto, de
cabelos loiros bastante similares aos meus, e com um ar soturno. Não recordo
plenamente quando ele deixou de ser feliz. Alguns momentos raros voltavam
às vezes a minha mente, alguns sorrisos distantes e gargalhadas em família.
Eu, mamãe e papai. Raríssimos momentos, mas que se ocupavam em me
convencer de que, um dia talvez, aquele homem me amara como filha.
Eu mantinha meu amor de filha, mas era duro ter que enfrentar
aquele olhar fustigante, como se tudo que eu fizesse fosse errado e merecesse
ser castigado. Como se eu fosse o maior de seus problemas.
Não tinha liberdade dentro de minha própria casa por temer o que
me ocorreria caso Heloíse – a espiã de papai – me encontrasse. Além do
mais, odiava quando meu pai gritava com mamãe por minha causa, mesmo
que ela parecesse não se importar tanto com a repreensão. Então, ficava
sempre ao alcance dos braços de mamãe, onde me sentia protegida.
Uma coisa aprendida desde cedo foi que ele odiava quando eu
andava pela casa. De modo que eu conhecia muito pouco daquele imenso
lugar. E aquele escritório se excetuava em minha lista.
— O que ela faz aqui? — Ele ergueu os olhos castanhos para
Heloíse. Ela me empurrou para a frente dele.
— O senhor tem que dar uma lição em sua filha. Ela é uma criança
insuportável que nem mais segue minhas ordens. Não sei mais o que fazer.
Ele desceu os olhos novamente para mim e me estudou
demoradamente. Não havia nenhuma gota de afeto em sua expressão e aquilo
me magoou profundamente. Ele poderia nunca ter me amado, mas nunca
pensei que me odiasse o mesmo tanto que Heloíse.
— Por que desobedeceu à sua governanta, Samantha? — Perguntou
pausadamente.
— Porque quero visitar onde mamãe está, papai. Eu não me despedi
ainda.
— Você está proibida de falar de sua mãe e de sair desta casa. —
Declarou. Eu senti minha face perder o sangue e meu queixo cair. As
lágrimas surgiram em meus olhos, mas se mantiveram quietas lá. — Heloíse
me comunicou sobre seu comportamento e concordo com ela. Sua mãe lhe
deu muita liberdade e agora você tem muito o que melhorar. E não irá ver o
túmulo de ninguém ou sair de casa enquanto eu não estiver satisfeito com os
seus modos.
— Por favor, papai. — Eu abaixei a cabeça e encarei o chão. Nunca
consegui sustentar meu olhar fixo quando aqueles olhos sérios me
encaravam. Era como se sentissem necessidade de me humilhar e me fazer
sofrer, mesmo não pronunciando um mísero ruído.
— Castigue-a como quiser. — Ele disse para Heloíse. — Estou
ocupado para me preocupar com isso agora.
Heloíse abriu um sorriso e me puxou para fora do quarto.
Eu não tinha ninguém para me defender e nem ao menos conseguia
fazer aquilo sozinha, então preferi aceitar o conselho de Heloíse e decidi que
era melhor seguir todas as suas ordens sem questionar. Eu não queria mais
sofrer sem merecer, preferi apenas obedecer e fingir que estava tudo bem.
Mas dentro de mim eu sabia que nada estava, nem ficaria bem tão
cedo.
Sentada na penteadeira, encarando-me no espelho, eu sentia o frio do
quarto envolvendo minha pele. O dia e a semana inteira foram consumidos
por um calor insuportável, mas, naquele momento, eu só conseguia sentir
frio. Os olhos verdes da minha imagem no espelho perderam o brilho e a
única luz notável era o reflexo da luminosidade do quarto em minhas
lágrimas. Elas estavam quietas lá, prestes a escorrer pela pele esquálida, mas
imutáveis em seus lugares de vigia.
Heloíse penteava meus cabelos com força, desmanchando os cachos
dourados com a escova e movendo suas mãos com velocidade e destreza. Eu
gostava quando penteavam meu cabelo, normalmente só mamãe fazia aquilo
e, mesmo demorando uma eternidade por conta do tamanho e da quantidade
de fios, era sempre um momento agradável. Mas naquele instante não poderia
ser. Eu não conseguia apreciar nada que Heloíse fizesse, muito menos quando
passava a escova com tanta força que parecia querer arrancar-me tufos.
— Seria melhor se você tivesse o cabelo mais liso. — Comentou ao
término. Ergueu-se e eu finalmente pude ver seu rosto, que antes se escondia
atrás de minha cabeça.
— Obrigada por penteá-los. — Agradeci apenas para não
permanecer em silêncio. Não queria dar brechas para que falasse mais
qualquer coisa.
— Vamos descer para o jantar. — Ela me puxou da cadeira e me
colocou a sua frente. Estudou-me de cima a baixo como costumava fazer
quando me vestia. Eu odiava aquele tipo de roupa, muito tecido para pouca
necessidade. Preferia os vestidos mais simples que usava no dia a dia, mas
Heloíse nunca me permitiria descer para jantar com papai usando qualquer
roupa mais confortável. Não era roupa que condizia com meu nível social, ela
costumava dizer.
Descemos em silêncio até a sala de jantar e eu fui sentada em uma
cadeira de costas para a porta. Heloíse se sentou ao meu lado e ficamos
esperando papai descer, ainda em silêncio. Ele demorou como de costume.
Eu já lutava contra minha barriga para que ela não fizesse nenhum ruído alto
demais – para não ser castigada pela minha “falta de educação”, quando ele
entrou apressado e se sentou na cadeira de frente para mim.
— Boa noite, Papai. — Sussurrei.
— Boa noite, Monsieur Evans. — A governanta o cumprimentou
com um sorriso largo.
Ele nos respondeu com um gesto de cabeça e pediu para as criadas
servirem o jantar. Papai conversava com a governanta enquanto eu comia em
silêncio. Minha presença não importava para os dois e eu nem ao menos
sabia o que estava fazendo ali.
— Samantha. — Papai me chamou quando terminei e já estava me
entediando encarando a decoração da sala.
— Sim, papai?
— Achei isso em meio aos meus papéis. — Retirou um papel
dobrado do bolso. Estendeu-o para mim e eu me levantei vagarosamente para
pegá-lo. — Pensei que iria lhe interessar.
Era um desenho feito há anos. Eu e mamãe estávamos representadas
ali. Eu me lembrava bem da data que papai havia desenhado-o, até do modo
como parecia menos sério quando pediu para que nós nos sentássemos mais
próximas uma da outra e não nos movêssemos. Mamãe era sempre sorridente
nos raros momentos que ele passava em casa e eu ficava feliz também. Mas
então, esses momentos começaram a ser mais raros ainda e ele praticamente
sumiu de minha vida.
— Obrigada, papai. — Agradeci com lágrimas nos olhos, parte por
causa do realismo da imagem de mamãe, parte pelas lembranças de nossa
felicidade. — Vou guardá-lo com cuidado.
— Espero que assim seja feito. — Ele esboçou um sorriso de lado.
— Eu sei que o que aconteceu com a sua mãe foi algo muito triste e…
inesperado, mas peço que finja que não aconteceu. Não quero me chatear
com isso, nem que você fique sofrendo demasiadamente. Temos que seguir a
vida e tirar o melhor proveito do resto dela.
— Sim… Senhor.
— E me prometa que irá obedecer à Heloíse, sim? Não quero mais
ouvir reclamações a seu respeito e nem me preocupar com seu
comportamento.
— Prometo, papai. — Ele passou a mão “carinhosamente” em minha
cabeça.
— Amanhã poderá ir ao quarto de sua mãe e pegar o que lhe
interessar lá dentro. Os criados se livrarão do resto. Agora suba para seu
quarto, quero ficar um tempo a sós com Mademoiselle Tissot.
— Sim, senhor, e obrigada. — Despedi-me com um gesto de cabeça
e me retirei. Não fui para o quarto, caminhei um pouco pelo corredor e entrei
na cozinha.
Os criados jantavam perto do fogo. Amélia fez um gesto para que eu
me aproximasse e me sentasse ao seu lado. Guardei o desenho dentro do
vestido e me sentei no banquinho baixo entre eles.
Paulette me serviu mais um pouco de doce, mas eu não comi.
Encostei a cabeça no colo de Amélia e fiquei assistindo a conversa dos que
estavam na mesa. Serge, o mordomo, conversava sobre como as flores
estavam bonitas naquela semana, enquanto Paulette comentava que deveria
ser a alma de mamãe que agora cuidava de nossa residência.
“Durma um pouco, querida. Você ainda está quente.” Amélia
sussurrou em minha orelha. Eu não queria dormir, mas o calor da cozinha me
deixou sonolenta, transformando a imagem de todos ali em um borrão até se
findarem na escuridão de meus sonhos.
Capítulo 02

O mês que se passou foi pior do que os primeiros sete dias sem
mamãe. Se eu achava que meu sofrimento não aumentaria, estava muito
enganada. A proibição de papai se tornou regra, eu fui determinantemente
negada de sair de casa sob quaisquer circunstâncias. Até mesmo as idas para
a igreja foram afetadas.
Minha exclusão foi devastadora para mim, não estava permitida de
visitar Isa e Don e aquilo me entristecia. Eu não tinha ninguém com quem
brincar ou passar os dias e detestava me sentir tão solitária.
Pelo menos, nesse longo tempo, Heloíse se tornou menos presente
na minha vida. Ela sempre estava ocupada fazendo inúmeras outras coisas
que não me diziam respeito, e se preocupar comigo ficou em segundo plano.
Papai também pouco apareceu em casa, então o que me restou foi passar o
tempo que podia com os criados.
Não que eu reclamasse, pelo contrário, a companhia deles me
alegrava muito, quase tanto quanto a de mamãe. Mas nós não podíamos ficar
juntos todo tempo, e eu sentia falta de ter um pai que realmente se
preocupasse comigo. Eles gostavam muito de mim, mas não chegariam ao
amor que era esperado de uma mãe ou um pai, ainda mais para uma criança
que havia acabado de perder um deles.
A primeira visita que recebi foi de meus amigos muito tempo depois.
Eles não queriam ter esperado tanto tempo para nos reencontrarmos, mas as
coisas nem sempre eram como planejávamos, então a visita teve que ser
prorrogada para aquela data.
Naquele dia, Heloíse me fez descer até a sala e me sentar
comportadamente no sofá por um bom tempo, enquanto os adultos
conversavam sobre assuntos entediantes. Don e Isa me encararam,
necessitando dizer algo, mas não arrumando palavras ou coragem. Eu
também não saí de minha apatia, mesmo meu estado de espírito tendo
melhorado um pouco em apenas vê-los.
— Por que não vão brincar lá fora? — Madame Roche sorriu para
nós três, notando o silêncio pouco comum entre nós. Meus olhos se ergueram
para minha governanta, tentando não demonstrar tanto interesse, mas
praticamente implorando para que ela deixasse. Heloíse sorriu delicadamente.
— Samantha não pode sair de casa. — Respondeu sem se alterar. —
Ela estava doente esses dias e não queremos que sua situação deteriore por
conta do tempo. Mas se as crianças quiserem, podem subir para brincarem no
quarto.
— Vamos brincar lá em cima? — Don não precisou nem que
falassem duas vezes, ergueu-se de um pulo. Isabele se levantou calmamente,
demonstrando toda aquela graça e educação peculiar a seu ser e que parecia
nenhum pouco presente no irmão.
Don me puxou pelo braço e me levou escada a cima. Eu estava
animada por reencontrá-los, mas minha animação foi consumida pela apatia e
eu nem pude demonstrar a felicidade que era eles estarem lá para me ver.
— Como você está, Sam? — Isa me abraçou com força logo que
entramos no quarto. — Está de verdade, porque eu não acredito nenhum
pouco no que a sua governanta fala. Nós queríamos ter vindo antes, mas
Mademoiselle Tissot não parecia nenhum pouco contente em nos receber.
— Sim. — Don fez uma careta. — Não sei como você consegue
aguentá-la. Imagino como ficou quando a sua mãe…
— Está tudo bem. — Cortei a tempo de impedir que entrássemos na
discussão mais evitada por mim durante todo aquele tempo. — Eu já estou
acostumada com ela.
— Sam… — Isa apertou o abraço. — Você está tão franzininha e
tão triste. O que foi?
— Ah, Isa. — Algumas tímidas lágrimas desceram pela minha face,
mas eu virei o rosto para que Isabele não visse. Porém, Don estava
exatamente na direção em que olhei e sua face se tornou séria. — As coisas
estão tão diferentes aqui em casa.
— Mas eles estão fazendo alguma coisa com você?
— Nada demais. — Voltei a encará-la, já que o olhar fixo e
preocupado do garoto me incomodava. — Eu estou bem de verdade. Só as
coisas que estão diferentes mesmo.
— Não acredito que seja apenas isso, mas irei parar de perguntar se
prefere assim. Mas você tem que prometer que vamos nos encontrar mais
vezes. — Ela riu.
Eu sorri de lado e concordei com a cabeça. Não gostava de mentir,
mas também não queria que eles se preocupassem ainda mais comigo.
Nós nos sentamos no chão e brincamos sem nos importar com as
várias perguntas que eu sabia que flutuavam na cabeça de meus amigos. Era
bom ter alguém ali para brincar comigo e era melhor ainda serem eles. Isa e
Don me faziam esquecer de Heloíse que estava no andar de baixo. Mas como
as coisas boas sempre acabam, aquela tarde também se findou.
Isabele desceu na frente minutos depois de sua mãe chamá-la. Don
ficou comigo mais um pouco no quarto. Ele se aproximou acanhado e abriu
os braços convidativamente. Envolveu-me em um abraço tão intenso e
reconfortante que eu deixei de lado a vergonha e qualquer convenção social e
chorei em seu peito.
— Vai ficar tudo bem. Você tem que aguentar só mais um pouco,
depois as coisas vão melhorar.
— Eu espero, Don. — Escondi o rosto em sua camisa. Era bom ele
ser maior do que eu, já que eu me sentia mais confortável em seus braços,
como se ele fosse mais velho e realmente soubesse do que estava falando.
Mas ele continuava tendo a minha idade, e nós continuávamos com apenas
seis anos.
Ele e eu sabíamos que nada que falasse iria me reconfortar, mas era
bom ver que estava pelo menos tentando. Nós dois sempre fomos muito
próximos e Don sempre me tratou como uma irmã mais nova. Não seria
diferente daquela vez.
Separamo-nos assim que ouvimos passos pelo corredor. Sequei as
lágrimas e o encarei no fundo de seus olhos.
— Até mais, Don.
— Até mais, Sam. — Ele apertou minhas bochechas com força. —
Quando te ver de novo, quero ver um sorriso, viu garotinha.
— Está bem. — Tentei sorrir. Ele ficou sério por um instante, suas
bochechas enrubesceram, e eu o encarei sem entender o porquê da mudança.
Então, ele colou rapidamente a boca na minha e saiu correndo do quarto antes
mesmo de eu entender o que havia acontecido.
Meus olhos estavam fixos na porta quando Heloíse entrou e
perguntou porque eu estava tão vermelha. Apenas neguei com a cabeça e a
segui para o andar de baixo.
Demoraram anos para eu reencontrar meus amigos.

Heloíse e papai realmente se esqueceram que eu existia por um bom


tempo. Eu tentei manter uma pequena dose de esperança escondida dentro do
peito, mas logo ela foi se esgotando.
Como eu parecia não mais viver naquele lugar, todas as minhas
necessidades básicas foram deixadas à minha responsabilidade. Amélia me
ajudava sempre que possível, mas ela sabia que existiam coisas que eu
deveria seguir sozinha. Como por exemplo, meus estudos.
Com a morte de mamãe, minha educação foi deixada de lado, já que
era ela a responsável por boa parte das minhas lições. Nem Heloíse, nem
papai pareciam preocupados com minhas longas horas de ócio – ou tédio,
como eu preferia pensar. Então eu resolvi voltar eu mesma aos estudos.
Mesmo pequena, eu já sabia algo de Inglês e ler bastante em
Francês, então não tive tanta dificuldade para continuar de onde havia parado
em minhas lições. Ler e escrever em ambas as línguas se tornou tão fácil para
mim que muitas vezes me pegava rabiscando algumas coisas em Inglês sem
nem ao menos pensar no que escrevia.
Difícil foi voltar a tocar piano. As teclas no passado eram minhas
amigas, agora não passavam de terríveis lembranças da solidão que me
assolava e da morte de mamãe. Toda vez que me colocava a sua frente, sentia
que não deveria fazer aquilo longe de minha mãe. Porém, continuei
insistindo, mesmo passando horas chorando como se minhas mãos
queimassem toda vez que tocavam alguma nota. Mas aquele era o legado de
mamãe e eu a deixaria orgulhosa.
Pelas manhãs, descia para a sala de estar quando papai não estava
em casa e Heloíse se trancava no quarto. Treinava até meus olhos arderem de
tanto chorar e eu não ter mais motivação para continuar sentada ali. Às vezes
ficava mais tempo, e Amélia pedia para que parasse, para não ficar doente de
novo.
Porém, mesmo treinando com mais frequência que uma criança
como eu devesse, não eram todas as vezes que eu progredia nos estudos.
Naquela época, adquiri a horrível mania de distanciar minha mente e
me perder entre pensamentos e sonhos. Por vezes pegava-me pensando no
relacionamento de meus pais, no quanto papai teria amado mamãe e como
tudo agora parecia não fazer mais sentido. Dois meses se passaram desde a
morte de mamãe, e meu pai decidiu que a melhor forma de escapar de sua
solidão era se casando com Heloíse. Claro que eu sempre soube que aquilo
era inevitável, já que os dois sempre tiveram uma relação mais próxima do
que era aceitável.
Era a época do meu aniversário de sete anos e o restinho de
esperança de voltar a ter alguma importância esvaiu-se.
Eu não conseguia entender como ele havia se casado com a pessoa
horrível que era Heloíse, logo depois da morte da sua maravilhosa esposa.
Como ele podia ter seguido em frente enquanto eu ainda me entregava ao
luto?
Depois de um tempo, eu me forcei a parar de pensar naquilo. Toda
vez que aqueles pensamentos surgiam, eu estudava com mais empenho e me
mantinha ainda mais ocupada. O estudo era a única coisa que conseguia me
distrair.
Amélia ficava algumas vezes comigo e se preocupava com meu
estado. Para ela, uma criança tão nova não deveria se importar tanto com
aquelas coisas, deveria brincar e fazer coisas de criança, não se dedicar tanto
a aprender Inglês ou tocar com tanta perfeição piano. Porém, toda vez que ela
falava aquilo, eu me dedicava com ainda mais vontade.
Eu achava que não merecia ser uma criança normal, Heloíse sempre
dizia que eu era uma pessoa horrível e que deveria ser castigada, então
acreditei por um tempo ser realmente tudo o que ela me chamava. Eu não
merecia me divertir, eu precisava me esforçar para ser uma boa mulher de
minha classe.
Aquilo se estendeu pelo menos até meus oito anos, quando eles
finalmente se lembraram da minha existência.
Era um final de tarde e meus olhos estavam cansados de tanto ler. Eu
havia acabado de guardar o atlas sobre o consolo da lareira da sala de estar,
quando papai e Heloíse entraram e se sentaram de frente para o fogo.
Cumprimentei-os com um rápido movimento de cabeça e fiz menção de sair,
porém papai pediu para que eu me colocasse a sua frente.
Eu temia o olhar de papai. Foram raras as vezes que nos
encontramos pelos corredores naquele tempo, e ele sempre me observava
com aquele olhar que não era mais raivoso, mas sim de pena e curiosidade.
Talvez se questionasse o que eu ainda fazia viva andando pela casa dele…
Talvez sentisse alguma pena por eu não ter mais família… Talvez se
indagasse o quanto mais eu aguentaria…
— Você cresceu bastante. — Ele comentou depois de muito me
observar.
— Sim, papai.
— Já está com quantos anos, Samantha?
— Oito, senhor.
— Oito anos? E por que eu ainda não tenho notícias de seus estudos?
— Porque ninguém está me ensinando.
— A mãe dela que cuidava da educação. — Minha madrasta
comentou com as bochechas vermelhas, provavelmente por se sentir
envergonhada por não ter tomado conta direito de mim. — Acho que ela
nunca mais estudou depois que ela morreu.
— Verdade? — Ele virou o rosto para a esposa, mas ao contrário do
que eu esperava, parecia se divertir. — Então acho melhor nós contratarmos
um tutor para você.
— Querido — Heloíse interrompeu vagarosamente, afagando a
imensa barriga. — Não acha que é melhor mandarmos ela para uma escola?
Ainda mais agora que vamos ter nosso filho…
— Hum… Escolas são caras. — Ele franziu o cenho e me encarou.
— Você quer ir para uma escola, criança?
— Eu posso, senhor? — Tentei, em vão, conter minha animação. Eu
estava ciente que não seria fácil viver em uma escola, mas também que nada
era pior do que minha vida naquela casa.
— Uma garota como você, que é carente tanto em conhecimentos,
quanto em modos, acha que consegue ir bem em um sistema escolar rígido?
— Eu posso ter carência em muitas coisas, — E conhecimento não
era uma delas. — mas eu darei meu melhor e não ficarei atrás das outras
crianças da minha idade. Também irei me comportar e darei motivos para o
senhor se orgulhar de mim.
— Veremos. — Ele riu. — Vou providenciar logo sua ida para a
escola. Agora vá jantar e se retire para o quarto.
— Sim, senhor. — Despedi-me com mais uma mesura e saí rápido
da sala.
Um sorriso de ponta a ponta estampava minha face e não sumiu
mesmo depois das criadas começarem a discutir durante o jantar sobre o
quanto meu futuro seria triste. Nada iria me deixar para baixo, eu tinha
esperança de que seria uma ótima experiência ir para uma escola. Pelo menos
eu ficaria longe de Heloíse e papai, e poderia conhecer outras meninas iguais
a mim.
Eu estava confiante que seriam bons tempos dali para frente.

Meus anos na escola foram de fato muito proveitosos e felizes. Foi


bom poder ter contato com outras garotas e passar longos anos sem ter que
me preocupar com minha família postiça. Eu fui uma aluna exemplar em
todos os sentidos, principalmente por notar logo em minha chegada que
minha estadia ali seria bem mais fácil se eu seguisse as regras, mesmo que
ferissem meus princípios. Aprendera aquilo em casa, mas era muito mais
simples executar em um lugar onde ninguém me conhecia.
Em suma, mantive-me quieta por todos aqueles anos, guardando
para mim todas as dúvidas e pensamentos julgados “errôneos”, e dediquei-me
a aprender etiquetas, a religião e todos as atividades de senhorita exemplar.
Meu comportamento me rendeu boas – e breves – amizades e longas horas
permitidas na biblioteca e ao piano.
Não voltei para casa naquele tempo e poucas notícias tive. Mas na
minha vida tempos felizes nunca duravam para sempre, e aquele teve que
acabar também.
Meu regresso foi nove anos mais tarde, quando eu finalmente havia
terminado meus estudos e pareciam requisitar minha presença em casa.
Deixei as amizades para trás e voltei sem questionar, continuando seguindo
meu papel de filha exemplar.
Eu não sabia o que esperar, as únicas notícias que recebera haviam
sido relatadas em uma breve carta enviada por Amélia. Pelo menos já sabia
que o primeiro filho de papai e Heloíse falecera e que, anos depois, eles
tiveram uma nova criança, batizado de Maurice. Amélia também teve uma
filha nesse tempo, a pequena Alana, e ela estava animada para me apresentar
a criança.
Agora… O que eu deveria esperar a respeito de Maurice? Levando
em consideração quem eram seus pais e a situação em que havia nascido, eu
temi nossa convivência. E, como de costume, estava certa em temê-la.
Nosso primeiro encontro deixou claro que não nos daríamos bem.
Ele era mimado pela mãe e o pai. Eu a princípio não entendi porque papai
ficava mais tempo com aquela criança do que passou comigo e mamãe, mas
já não me importava mais com o que ele sentia ou deixava de sentir por mim.
Maurice era um garoto rechonchudo, de bochechas avermelhadas e
cabelos loiros. Seus membros eram roliços, desengonçados, e eu
provavelmente teria gostado daquela criança se não tivéssemos escolhido nos
odiar desde o primeiro momento. Ele me olhava com o mesmo ar de
superioridade de Heloíse e me tratou como se eu fosse apenas uma pessoa
que estava lá para satisfazer a todos seus desejos. Acho que a mãe dele
também acreditava naquilo.
Por outro lado, Alana era uma criança adorável e me lembrava muito
eu mesma. Ela se assemelhava fisicamente a mãe, seus cabelos castanhos
desciam pelas bochechas frágeis e seus olhos escuros brilhavam
intensamente. Era ainda pequena, mas bastante curiosa e não parava de me
indagar sobre qualquer dúvida que possuía.
Meu quarto fora transferido para o térreo, em um canto escuro e
abafado da casa. Era extremamente pequeno e pessimamente mobiliado, mas
eu não reclamei ou deixei claro que havia detestado o lugar. Não queria dar
mais nenhuma satisfação para minha madrasta. O que me alegrou naquilo
tudo foi o velho baú de mamãe arrumado perto da cama. Ali estavam as
coisas que peguei para mim de herança. Todas as lembranças boas, livros dos
mais variados temas, vestidos ainda com o perfume dela. Durante os nove
anos da minha ausência, esqueci da maioria das coisas guardadas ali dentro,
mas fiquei feliz quando percebi que estava do jeito que havia deixado.
Minha nova designação era lecionar ao herdeirinho e aprender a
cuidar de casa como era esperado de uma futura esposa. Não precisava de um
bom quarto para aquilo, já que os donos da casa continuavam ignorando
minha existência. Mas Maurice não ignorava e fazia questão de me lembrar
sempre que não me deixaria em paz.
Certa vez, ele comentou durante a aula:
— Eu não gosto de você!
— Eu deveria ficar lisonjeada? — Eu continuava escrevendo no
quadro, como se fosse apenas uma conversa casual de como estava o tempo
lá fora.
— Mamãe sempre diz que você é uma pessoa horrível e que se ela
pudesse já teria a expulsado de casa.
— Eu sei que teria.
— Então porque você não vai embora de uma vez e me devolve
meus pais?
— Eles não são meus, não se preocupe com isso.
— Mas eles só falam de você desde que chegou.
Eu ri baixinho e finalmente me virei para a criança. Caminhei
lentamente até a sua carteira e abri seu livro na página que ele fechara.
— Maurice, leia a primeira frase, por favor.
— Eu não quero.
Respirei fundo. Não adiantava ficar nervosa com aquela criança,
nunca adiantava. Eu fechei novamente o livro e me sentei na cadeira perto da
janela.
— Se não quer estudar, o que quer fazer?
— Eu… Eu quero ir lá fora. Brincar na rua! Mamãe quase nunca me
deixa sair.
Rodei os olhos até a criança e a encarei por longos segundos. As
probabilidades daquilo dar errado eram imensas, mas eu estava tentada a ver
até onde conseguiríamos ir.
— Está certo. — Sorri amargamente. — Vamos passear lá fora.
Ele se ergueu animado e correu para fora da sala. Eu andava com
mais cautela, tentando escutar em que cômodo Heloíse e papai estavam e se
era possível eu sair sorrateiramente daquela casa. Maurice passou velozmente
pela cozinha e, antes que eu me desse conta, já estava pulando a cerca do
quintal. Eu tive que me apressar para não perdê-lo.
Nunca teria permitido aquilo se não tivesse segundas intenções.
Planejava levar a criança até perto do cemitério e ver finalmente onde mamãe
descansava.
Ele corria sobre as lajotas da praça. Suas bochechas ficavam ainda
mais vermelhas sob os raios do sol e ele parecia bastante feliz de estar ali
fora. Eu tentava guiá-lo para a rua de cima, girando seu corpo pelos ombros
pelo caminho, mas ele sempre desviava e continuava sua corrida aleatória.
Por sorte ninguém parecia prestar atenção em nós e aquela cena
constrangedora não causou tantos olhares curiosos.
Tínhamos alcançado a rua do cemitério, mas então eu percebi que
não adiantaria de nada tentar levá-lo junto a mim. Decidi que o melhor seria
deixá-lo um pouco de lado e seguir sozinha. Agarrei a barra da saia do
vestido e corri o mais rápido que pude até os fundos da igreja, onde o
cemitério se localizava, procurando com os olhos o jazigo da família e
chegando lá com a mesma pressa.
A porta da construção de pedra estava coberta pela vegetação e o
descuido era visível. Aquele lugar fora esquecido assim como as lembranças
de mamãe. Forcei a entrada e o metal oxidado praticamente se dissolveu em
meus dedos.
A luz do dia iluminava bem ali, encontrei sem dificuldade o nome de
mamãe entalhado na pedra. Caí de joelhos e me controlei para não me agarrar
àquilo. As lágrimas voltaram a brotar em meus olhos. Haviam se passado
mais de dez anos e eu ainda não estava preparada para aquele momento.
— Finalmente eu consegui vir vê-la, mamãe. — Sussurrei entre
soluços. — Desculpa não ter vindo antes… Eu queria muito. Eu sinto muito
mamãe, por não poder ser a pessoa que você esperava que eu fosse. Sinto
muito por ter mudado só por conta do comportamento dos outros, mas esse
foi o único jeito de conseguir ser pelo menos um pouquinho feliz.
Parei um pouco e tentei controlar a enxurrada que lavava minha
face. Eu falava em Inglês, como se segredasse minha dor de todo o universo
que me envolvia.
— Eu fui para a escola. Foram bons anos e eu fiz amigas novas. Eu
sei que não vou vê-las nunca mais, mas foi bom o tempo que durou. Eu
também fui considerada uma das melhores alunas entre as meninas da minha
idade, sabia? Espero que a senhora tenha ficado orgulhosa de mim. Eu sinto
muito está perturbando seu descanso. Ah, mamãe! Faz tanto tempo e eu só
pude vir agora…
Minhas lamentações foram interrompidas por um choro alto e
estridente. Demorei um pouco para entender o que estava acontecendo e, só
depois, lembrei-me de Maurice. Despedi-me às pressas de mamãe e fui atrás
de meu meio-irmão.
A criança estava jogada perto de uma lápide. Tinha me seguido até
ali e deveria ter escorregado. Maurice se debatia e chorava incessantemente.
— O que aconteceu? — Coloquei-me a sua frente e desci meus
olhos para ele. Ele costumava chorar para chamar atenção e no momento
imaginei que fosse apenas mais um de seus espetáculos.
— Eu caí. — Ele berrou e apontou o joelho. O machucado era
profundo e ainda sangrava. Sensibilizei-me e ajoelhei a sua frente. Assoprei
delicadamente seu ferimento.
— Não se preocupe, eu vou fazer um curativo e isso vai melhorar
logo, logo. — Sorri o mais carinhosamente que conseguia.
Eu ajudei Maurice a se levantar e o levei no colo de volta para casa.
Meus braços estavam dormentes quando entrei pela cozinha, já que a criança
era muito mais pesada do que eu conseguia suportar, mas não o deixei no
chão até subirmos para o quarto.
Ele continuou chorando e chorando, até a mãe dele entrar correndo
para mimá-lo.
— O que aconteceu, meu bem? — Heloíse afagou as bochechas da
criança. Eu estava distante, perto da cômoda, arrumando a caixa de curativos.
— Eu caí, mamãe. — Ele intensificou o choro e foi respondido com
mais carícias.
— Caiu aonde, meu amor?
— No cemitério. A Samantha me deixou sozinho e eu tropecei e caí.
— Eu os observava de esguelha e consegui sentir o ódio na face do menor
quando ele virou o rosto para mim.
— Quem permitiu que fossem lá? — Heloíse também me encarou, e
eu voltei a prestar atenção nos curativos.
— A Samantha. Ela que me levou para lá e ainda me deixou
sozinho.
— Eu… — A voz de minha madrasta tremia. Ela estava se
controlando para não começar a gritar comigo ali mesmo. — Durma um
pouco, meu amor. Logo seu joelho vai ficar bom, está bem?
Maurice esbugalhou os olhos, como se pedisse um beijo em seu
joelho para ele se sentir melhor, mas Heloíse apenas se despediu com um
sorriso antes de pedir friamente para eu o colocar para dormir. Então, saiu
apressada e me deixou sozinha novamente com ele.
— Você não deveria ter mentido. — Comentei baixo, enquanto o
colocava sob os lençóis.
— Mamãe vai acreditar em mim se você falar que eu menti. — Ele
me encarou traiçoeiramente. Ele tinha pouco mais de seis anos e eu não
entendia como uma criança podia ser tão maldosa. Mas estava certo, Heloíse
sempre me culparia.
— Vá dormir então, garotinho mentiroso. — Ergui-me descontente.
Ele se enterrou no meio dos travesseiros e fechou os olhos, mas seu sorriso
perverso permaneceu até eu sair.
Minha madrasta me esperava no corredor. Eu não me assustei, tinha
certeza de que ela estaria ali. Heloíse me agarrou pela orelha como
costumava fazer quando eu era criança e desceu comigo até meu quarto. Eu
fui jogada contra a cama.
— No que você estava pensando? Você esqueceu que está proibida
de sair de casa?
— Se passaram mais de dez anos. Por que ainda querem me manter
longe? — Sentei-me na cama e encarei o chão. Eu sentia os olhos de Heloíse
presos a minha cabeça e sentia a raiva que eles emanavam.
— Não questione as ordens de seu pai! — Ela me deu um tapa
particularmente forte no rosto. Eu não ergui os olhos. — E que péssima
professora você é, hein? Deixou meu precioso sozinho enquanto ia lá chorar
suas besteiras. Ele poderia ter se machucado de verdade.
— Não são besteiras! — Respondi baixo, mas vigorosamente. — E
foi seu precioso que pediu para irmos lá fora e ele estaria bem se fosse mais
cuidadoso e me obedecesse.
— Como ousa insinuar que meu filho é mentiroso?
— Porque é o que ele é.
— Repita isso, sua vadia. — Ela me bateu novamente.
— A senhora pode me bater o quanto quiser, mas isso não exclui o
fato de que ele é uma péssima criança, mimada e que só pensa em si mesma.
Heloíse me bateu outras duas vezes. “Acho que um tempo sozinha
em seu quarto vai fazê-la aprender onde é seu lugar. Essa é meu último alerta:
me irrite novamente que da próxima vez será seu pai que vai lhe espancar.”
Ela se retirou e trancou a porta. Eu me deitei na cama e encarei o
teto. “Lar doce lar.” Falei para a única lágrima que escorreu de meus olhos.

Ficar sozinha não me incomodava mais como antes. Eu estava até


contente de ter aquele tempo só para mim, sem nenhuma companhia
indesejada ou alguém para dizer o quanto tudo em mim estava errado e todas
as outras coisas que adoravam comentar. Porém, minha barriga não ficou tão
animada em não poder sair. Eu havia comido apenas o café da manhã e no
final da tarde já não conseguia mais me concentrar em meus pensamentos
com o tanto que meu estômago se contorcia.
Era tarde quando a porta foi finalmente aberta. A pequena Alana
entrou trazendo uma bandeja com meu jantar. Eu já havia desistido de ser
lembrada por alguém, mas, felizmente, não me esqueceram.
— Mamãe pediu para eu trazer algo para a senhorita comer. — Ela
abriu um sorriso delicado e verdadeiro.
— Obrigada, Alana. — Respondi seu sorriso com um ainda mais
iluminado, até aliviado. Deitei a bandeja na mesinha perto da cama e fiz um
gesto para a criança se sentar do meu lado.
— Mademoiselle Evans — Alana esperou eu satisfazer um pouco
minha fome antes de falar o que parecia tanto querer. — Será que poderia ler
uma história para mim?
— Claro, querida. — Terminei rapidamente a minha refeição e
deixei a bandeja de lado. Peguei o livro de capa azul que guardava sob o
colchão e passei os dedos vagarosamente pela capa. Fazia algum tempo que
não lia aquelas páginas, mais por falta de tempo do que por falta de vontade.
Alana se arrumou sentada sobre meu colo, para conseguir ver
também o que estava escrito. Sua tristeza foi visível quando percebeu que
estava tudo em Inglês.
— Não se preocupe — Beijei o topo de sua cabeça. — Eu vou
traduzir para você.
— Mas eu queria aprender a ler também… — Seus olhos castanhos
me encararam suplicantes. Eu sorri carinhosamente e beijei novamente sua
cabeça.
— Então acho que vou ter que lhe ensinar a ler em Inglês, não é
mesmo?
O rosto infantil se iluminou e ela se acomodou ainda mais em meu
colo. A partir daquele dia eu daria aula para mais uma criança, pelo menos
era uma que me agradava em lecionar.
Eu até tentava gostar de Maurice. Acordava todo dia pensando que
aquele dia seria diferente, mas ele sempre se comportava da mesma maneira
deplorável e eu me esforçava ao máximo para não me enfurecer – ou deixar
muito visível meu descontentamento. Mas nem sempre aquilo era possível.
Eu não conseguia mais aturar o comportamento daquela criança.
Dois meses depois de minha volta para casa, eu estava na salinha de
aula, escrevendo a lição no quadro e escutando os insultos que ele dirigia a
mim. Ele parecia descontente, já que eu fingia não escutar nada e nem ao
menos me virava para pedir silêncio ou censurá-lo com o olhar.
— Mamãe estava conversando com papai ontem. Ela disse que acha
que vai ser muito difícil arrumar um esposo para você. Ela disse que nenhum
homem das redondezas vai querer se casar com uma garota tão estranha e
malcomportada. Papai está procurando um esposo para você, sabia? Eles
querem que você saia logo dessa casa. E eu vou ficar feliz quando você não
tiver mais aqui também.
— Faça seus exercícios de Aritmética. — Virei-me finalmente para
ele, não antes de inspirar profundamente.
— Eu não gosto de você e quero que vá embora.
— Eu também não queria ficar aqui dando aula para uma criança tão
insuportável e mimada.
— Eu não sou nem insuportável, nem mimado! — Ele franziu o
cenho e me fuzilou com o olhar. — Você que foi mimada pela cadela da sua
mãe.
— O que você disse?
— Cadela da sua mãe. — Repetiu pausadamente, testando ainda
mais a minha paciência.
— Você pode falar mal o quanto quiser de mim, mas não abra essa
sua boca sem escrúpulos para falar da minha mãe. — Aproximei-me
lentamente dele. Um sorriso debochado se contorceu em seus lábios e ele
cruzou os braços. Onde uma criança daquela idade havia aprendido aquele
tipo de coisa?
— Cadela. — Repetiu sílaba por sílaba. — Mamãe diz que ela era
muito pior do que isso.
— Já chega. — Sentei na cadeira ao seu lado e o puxei pelo braço,
deitando-o rapidamente sobre minhas pernas, de modo que ele ficasse com os
joelhos no chão e a cabeça sob meu braço.
Eu nem ao menos pensei em não castigá-lo. Não me impedi, nem
senti remorso. Maurice se debatia e chorava enquanto eu o punia. Ele gritava
tão alto que era certo Heloíse e papai terem escutado seu desespero, mas
mesmo assim, não parei.
Quando o solte, minha mão estava vermelha e a face rechonchuda da
criança também, de tanta raiva que sentia. Ele escorregou para o chão e me
encarou com ainda mais ódio do que de costume.
— Vou — Sua frase saiu cortada, tentando engolir os soluços. —
Contar… Para a minha… Mãe.
— Vá lá contar. — Ergui-me impetuosamente e sentei-me em minha
mesa.
Eu sabia no momento que o puxei pelo braço que aquilo aconteceria.
Encarei sem vontade a entrada e esperei Heloíse entrar. Ela passou correndo
pela porta e parou na minha frente, assim que notou meu olhar de descaso.
— Como ousa bater em meu filho, sua vadia? — Sua face estava tão
vermelha quanto a de Maurice. Eu não respondi, fiquei apenas encarando-a
com a mesma expressão vazia, e ela ficou ainda mais zangada. — Vou
chamar seu pai e quero ver se você não vai aprender uma lição dessa vez.
Observei-a também se retirar e esperei pelo meu pai. Ele demorou
um pouco e veio com calma. Papai nunca me batera em toda a minha vida,
mas a expressão em seus olhos me fez ter certeza que estávamos a segundos
da primeira vez.
— Por que bateu no seu irmão? — Ele perguntou calmamente,
mesmo eu sabendo que também estava zangado e apenas fingia sua calma.
— Ele não é meu irmão e não espere que um dia eu o considere
como um.
— Depois de tanto tempo, ainda não aprendeu a se portar como
deveria?
— Não sou eu quem deveria aprender e sim o seu filho. Eu o aturei
desde o momento que voltei, não queria que tivesse chegado a esse ponto,
mas ele não me deixou escolhas.
— Não aceito que fale assim de Maurice. Não tem direito…
— Não tenho direito? — Ri. Eu não queria estar provocando-o ainda
mais, mas naquele dia eu já não temia o que ele faria. — Eu passei por coisa
pior do que aquela criança e não foi por isso que eu tratava os outros como
ele trata. E mesmo assim o senhor e Heloíse continuam dizendo que eu não
sei me comportar. Estão longe de estarem certos, e eu estou cansada de ter
que aguentar tudo. O pior em tudo isso é que o senhor parece nunca ter se
importado de verdade comigo ou com mamãe.
Ele deu a volta na mesa e caminhou vagarosamente atrás de mim.
Estava em silêncio, mas sua respiração era pesada.
— Por favor, diga alguma coisa. Qualquer coisa! — Minha força
havia se esvaído de meu corpo e eu não conseguia mais manter a postura de
alguns segundos atrás. Sentia as lágrimas descendo pelo meu rosto. Eu
precisava escutar que ele se importara com mamãe e comigo. Eu queria que,
pelo menos, uma vez, ele agisse como meu pai.
— Levante-se. — Falou finalmente. Eu o obedeci de imediato.
Sequei rapidamente as lágrimas e encarei a porta, ainda não tendo coragem
de olhá-lo.
Papai empurrou meu corpo pelo pescoço até que eu me curvasse
sobre a mesa em uma posição humilhante. Ele pegou a régua de madeira que
descansava sobre a lousa e a balançou no ar, como se testasse sua resistência.
Sua respiração alterara-se ainda mais. Ele acertou a madeira de uma vez em
minhas costas e eu arfei de dor. Repetiu, batendo com força, como se
quisesse liberar todas as suas angustias em mim. Eu mordi o lábio inferior e
tentei impedir os gemidos de escaparem. Papai só parou de me castigar
quando eu escutei o som da madeira se partindo sobre a minha pele.
— Vou arrumar uma nova professora para Maurice. — Deixou o que
sobrou da régua onde a tinha encontrado. — E vou pensar sobre o que irei
fazer com você. Se não quiser ser expulsa dessa casa, peça desculpa para o
seu irmão e se comporte como uma moça decente. Não quero mais ouvir suas
lamurias ou dores. Elas não me interessam. Apenas obedeça e faça as coisas
corretamente.
— Sim… Senhor. — Escorreguei até meus joelhos baterem no chão
e escondi o rosto atrás do espaldar da cadeira. Eu chorava baixinho, tentando
não fazer tanto ruído para que ele não reclamasse de minha fraqueza.
— Aprenda as tarefas de casa e se esforce para ser uma boa esposa.
Espero que, pelo menos, para isso você sirva. — Sua voz ainda refletia a
raiva que há pouco fustigava minhas costas, mas também parecia que se
apiedava de meu estado.
— Sim, senhor.
Ele me deixou largada no chão, ainda chorando, e se foi sem nem ao
menos olhar para trás.
Mais tarde naquele mesmo dia, fui obrigada a me desculpar com
Maurice e fiquei mais longas horas trancada no quarto. Fui lembrada de qual
era o meu lugar naquela casa e porque deveria me esforçar para me manter
nele. Eu não fazia parte daquela família e não sabia se estava feliz ou não
com aquilo.
Capítulo 03

Heloíse fez da minha tristeza sua nova diversão. O tempo que ela
ficara longe de mim desde a morte de mamãe, foi compensado pelos minutos
que passou me ensinado a ser uma boa dona de casa e esposa. Se minha vida
já estava ruim dando aula para Maurice, piorou infinitamente sendo ensinada
por minha madrasta.
— Quero ver quanto tempo essa criança vai aguentar. — Paulette
comentou com a voz cansada pelo tempo, enquanto servia a mesa na cozinha.
Amélia e Alana estavam sentadas ao meu lado e me encaravam com
olhos curiosos sobre as torradas que comiam.
— Eu estou bem. — Respondi deturpando um pouco a realidade
para não preocupá-las, mas todos ali estavam cansados de saber que não era
verdade. — Eu fico pensando como será quando me casar e sair daqui.
— Espero que seu esposo seja bom pra a senhorita. — Amélia
finalmente comentou. — E que seja muito rico e lhe encha de coisas caras e
bonitas.
— Eu não me importo com isso. — Respondi enquanto um sorriso
tímido se dobrava em minha face cansada. — Não preciso de coisas caras
nem bonitas, só quero ter um pouco de paz e quem sabe alguém que se
importe comigo.
— A senhorita vai se casar com um homem que lhe dará muito
amor! — A pequena Alana me abraçou pela cintura. Eu correspondi seu
abraço e preguei um beijo em sua cabeça.
Amor. Eu não acreditava que um dia encontraria aquilo. Não que
não fosse uma mulher romântica, sonhando em encontrar o príncipe
encantado dos contos de fadas e ter uma vida feliz, mas desde sempre soube
que a vida era o contrário de um conto de fadas e que eu nascera para encarar
minha existência sem amor. Eu não esperava que um casamento arranjado
envolvesse tanta afeição, eu só queria encontrar a paz que havia perdido há
muito tempo. Porém, respondi afirmativamente ao comentário da criança.
A porta da cozinha foi aberta e Heloíse entrou aos saltos, o rosto
vermelho de raiva e as sobrancelhas franzidas sobre os olhos claros. Ela
queria saber o porquê da minha demora. Eu apenas tive tempo de engolir o
último pedaço de queijo e me levantei obediente.
Ela me fez voltar para o quarto para me trocar. Havíamos sido
convidadas a passar a tarde na casa de um nobre no outro lado da cidade e eu
deveria me arrumar imediatamente. Amélia me ajudou a vestir a crinolina e
aperta as cordas do corset. O vestido que minha madrasta comprara –
exatamente para aquele tipo de situação – era grande e pesado. Eu não tinha
prática para andar com a gaiola de aço, mas tive que fingir já estar
acostumada há anos com aquilo e me manter ereta e plácida.
O passeio na carruagem foi longo e entediante. Os cavalos pareciam
se arrastar, mas eu sabia que era apenas para que os homens que andavam
pela rua me olhassem e perguntassem quem era aquela moça na carruagem
dos Evans. No veículo aberto, eu não tinha como me esconder e o máximo
que consegui para abafar meu constrangimento foi abaixar um pouco o
chapéu e abrir o leque, o que não foi algo muito inteligente, já que todos se
inquietaram mais ao verem a “figura misteriosa”.
Aquela tarde seria a minha estreia na alta sociedade. Eu desaparecera
por longos anos, e todos queriam saber como estava a primeira filha de
Monsieur Evans. Eu não passava de um produto exótico na vitrine de alguma
loja.
Heloíse estava radiante ao meu lado, com certeza mais alegre em me
ver tão nervosa, enquanto ela mesma não tinha mais que se preocupar com os
comentários a seu respeito. Depois de tanto tempo, a governanta que casou
com o seu senhor não era mais um assunto tão interessante, muito menos
agora com a minha presença ali.
A mansão onde paramos era imensa. Tão grande quanto a casa de
papai. Construída no estilo em vigor da época, que encantava os franceses,
mas apenas me fazia franzir o nariz. Nós fomos levadas por um quintal
grande e depois por um vestíbulo apertado demais para a minha saia. Mas me
equilibrei o melhor que consegui e, antes que eu percebesse, já estávamos no
quintal onde haviam arrumado pequenas mesas redondas e diversas cadeiras.
Ali estavam mais pessoas do que eu esperava e aquilo me deixou ainda mais
constrangida.
Sentei-me em uma cadeira vazia, longe de todos e, depois de
cumprimentá-los, calei-me e me entreguei a minha insignificância. Eu sabia
que às vezes conversavam sobre mim, mas eu estava mais ocupada
observando o gato rechonchudo que corria entre os arbustos do quintal e, de
vez em quando, colocava a cara malhada por entre as folhas e me encarava
com um ar divertido.
Seus movimentos pareciam ser voltados a mim, como se percebesse
que apenas eu notava sua presença desastrada por ali. Depois de se cansar de
correr, aproximou-se de mim e puxou minha saia com suas patinhas,
querendo carinho. Eu o peguei no colo e passei a afagar sua cabeça redonda.
— Ah! Esse é o Sr Ratattoulie. — A dona da casa comentou e eu
finalmente voltei meus olhos para eles. Heloíse parecia controlar sua raiva e o
restante das pessoas me olhava com um misto de diversão e pena, como se eu
não passasse de uma criança sentada entre os adultos. — Ele parece gostar da
senhorita.
Deixei o gato no chão e abaixei o olhar para minhas mãos, sentindo
vergonha por estar ali, onde definitivamente não era meu lugar. Havia um
rapaz, com certeza o herdeiro do lugar, que me olhava com mais curiosidade
do que os outros, como se eu fosse a coisa mais interessante do mundo.
— Por que não você não vai com Mademoiselle Evans até a praça na
rua de baixo? Ela não parece conhecer muito esse lado da cidade. — O dono
da casa empurrou levemente o ombro do filho na minha direção. O rapaz se
ergueu com o rosto sorridente e estendeu a mão para mim.
Eu ignorei sua mão, não por falta de educação, mas porque as
minhas estavam sujas com a terra em que o gato havia se metido. O rapaz não
me disse seu nome, ou eu que não estava prestando atenção quando fomos
apresentados.
Ele me levou por um caminho pela porta dos fundos e saímos em
uma pequena pracinha deserta. Ao centro, uma fonte com uma escultura em
estilo greco-romano jorrava água para os lados e tornava o lugar um pouco
mais interessante.
— Quer dizer que já começou a estação da caça a um marido? —
Foi a primeira coisa que perguntou. Eu, involuntariamente, franzi o cenho,
aquela não era uma boa técnica para puxar assunto. Ele caminhava atrás de
mim e eu ouvia sua respiração calma e seus passos largos.
— Não é uma caça.
— A senhorita não parece tão interessada assim no assunto.
— Mas estou. — Afinal, é minha vida que minha madrasta está
decidindo. — Mas acho que a conversa poderia ir para outra direção.
Eu me sentei na fonte e encarei a água fixamente. Meu reflexo
estava ali, sério, e não demorou para o do rapaz se juntar a ele. Ele parecia
interessado em me observar, enquanto eu buscava apenas um jeito de sair
dali, ou fazer o tempo passar mais rápido e Heloíse aparecer para irmos
embora.
— Do que a senhorita gosta?
— Eu gosto de ler. — Respondi sem exitar. Ergui meus olhos de
volta para ele e notei seu sorriso de lado.
— Então é uma moça que gosta dos romances. O que gosta mais
neles?
— Talvez a visão do amor que se encontra neles. — Eu havia lido
sobre muitos gêneros e temas, mas preferi que ele pensasse que era uma
daquelas moças sonhadoras sempre ocupadas com devaneios e ingenuidades.
— Acha que todos os rapazes são iguais àqueles personagens?
— O senhor lê romances?
— Nunca os li, apenas ouvi falar. — Coçou a cabeça, tentando se
manter ainda guiando a conversa. — Eu leio livros de Filosofia e dos grandes
líderes, não espero que a senhorita conheça sobre eles.
— Sim, uma dama como eu não deve ler essas coisas, não é mesmo?
Damas como eu não entendem esse tipo de livro. Além do mais, as pessoas
não gostam de ideias liberais.
— Não era o que eu quis dizer. — Sua face acerejou. — Mas acho
que é melhor para as damas lerem contos de fadas, ou romances. Nada que as
preocupem demais.
— Hum. — Concordei com a cabeça e virei o rosto para o outro
lado. Como fui parar naquela praça com um rapaz que achava que mulher só
servia para sonhar com amor?
De súbito, seus dedos alcançaram meu pescoço e passearam para
cima e para baixo. Eu congelei. Meus pelos eriçaram com o toque gelado e
minha respiração parou. O que ele estava fazendo? Com certeza não
conversara com muitas senhoritas para saber que aquilo era errado.
“Se você quiser, podemos começar um romance dos seus livros.”
Sua voz se aproximou da minha orelha e eu senti seu hálito fresco. Virei meu
rosto para ele e sorri de lado, escondendo todo o meu desprezo e tentando
pelo menos dar tempo para ele retirar o que acabara de falar.
Ele poderia ser um bom rapaz, e talvez eu devesse dar mais uma
chance e ver se chegávamos a algum lugar. Afinal, eu teria que me acostumar
com gracejos se quisesse me casar logo e sair de casa. Mas dentro de mim eu
não estava nenhum pouco inclinada a aceitar aquela situação.
O rapaz segurou minha mão entre seus longos dedos e a beijou.
Como percebeu que eu não recuei, beijou-a novamente, mas subindo alguns
centímetros. Eu me mantinha estática, controlando meus pés para não
correrem dali.
— Por que não fala alguma coisa, Mademoiselle Evans?
— Não tenho nada o que falar.
— Então posso resolver esse silêncio com outra coisa. — Ele foi se
aproximando de mim, mas eu recuei antes que seus lábios tocassem os meus.
Quando dei por mim, eu estava em pé, rindo, e ele encharcado dentro da
fonte.
A graça teria continuado, se não fossem as unhas de Heloíse que
agarraram meu braço e me forçaram a me calar. Ela me obrigou a me
desculpar, mesmo a culpa não tendo sido minha, e me levou imediatamente
de volta para casa. O percurso foi tomado por um silêncio pesado e
constrangedor, já que eu tentava não rir com a lembrança da cena sob o olhar
de censura de minha madrasta.
— Não cansa de envergonhar sua família? — Ela indagou raivosa
assim que entramos em casa.
— Não me culpe por algo que não é minha culpa.
— Não me responda!
— Então não me faça perguntas.
Heloíse inalou ruidosamente e cerrou os punhos. Eu me encolhi
esperando meu castigo, mas ele não veio. No lugar, ela apenas me mandou ir
para meu quarto e eu a obedeci sem pestanejar.
Nem papai, nem Heloíse imaginaram o quanto seria difícil arrumar
um noivo para mim. Não que os rapazes não se interessassem quando me
viam, mas eu sempre dava um jeito de desencorajá-los, seja bocejando em
meio às conversas, por falta de interesse em qualquer assunto abordado; seja
lendo qualquer coisa que estivesse a mão, ou que eu levasse escondido dentro
do vestido, e me desligando de tudo; seja não demonstrando interesse nos
gracejos dos homens.
Mas depois de algum tempo, eles já conheciam minhas técnicas e me
avisaram do castigo caso eu repetisse qualquer uma delas. Era para me
comportar como uma moça interessante, bonita, delicada, mesmo nenhum
dos pretendentes me interessando.
Porque não, o comportamento invasivo dos homens não era errôneo,
mas sim meus modos. Eu novamente era o problema.
Os encontros seguintes continuaram com um padrão entediante. Os
rapazes de rostos parecidos entravam em minha vida em um piscar de olhos e
eram apagados da memória com a mesma velocidade. Muitas famílias me
consideravam uma moça sem graça, que se preocupava mais em estudar os
papéis de parede ou ler as lombadas que enfeitavam as estantes, do que
conversar com meu pretendente.
Porém um homem foi mais esperto do que os outros. Chamava-se
Gareth. Seus cabelos ruivos desciam longos pelo pescoço branco e findavam-
se a frente das orelhas em costeletas bem cortadas. Seus olhos faiscavam e
seus lábios raramente se contorciam em um sorriso, mas não se assemelhava
aos homens taciturnos e sisudos com quem eu já conversara. Parecia
interessado em meu desinteresse e inclinado a não desistir de estabelecer
comigo uma conversa que não se resumisse a duas falas.
Encontramo-nos pelo menos três vezes antes de conversarmos. Acho
que papai e Heloíse também notaram o interesse dele e passaram a me levar a
todas reuniões sociais que tinham certeza que o encontrariam. Passaram
também a pedir que eu mostrasse minhas habilidades ao piano, ou que
aceitasse o convite de algum dos nobres para dançar. Apenas para que Gareth
fosse cada vez mais cativado.
Nossa primeira conversa de mais de duas falas foi mais íntima do
que eu desejara. Havia me recolhido sozinha na sacada, para reclamar
livremente do corset que estava mais apertado e da saia que exercia um peso
desnecessário sobre minhas pernas. Ele aproveitou minha solidão, deslizou
pela cortina que escondia a entrada e me observou silenciosamente a
distância.
Eu fingi não notá-lo por alguns segundos, enquanto também o
estudava de canto de olho e me movia buscando uma posição mais
confortável para a vestimenta incomoda.
— Boa noite, Monsieur. — Cumprimentei, virando-me finalmente
para ele e inclinando levemente a cabeça.
— Boa noite, Mademoiselle Evans. — Aproximou-se a passos
vagarosos, como um predador se aproxima de sua presa. — O clima lá dentro
não agrada à senhorita?
— Não me importo com o clima lá dentro. — Retruquei medindo
minhas palavras e tentando não soar tão fria quanto parecia. Ele esboçou um
leve sorriso. — Eu só queria um pouco de ar fresco.
— Entendo. Está uma noite linda para ficar enclausurado em meio
ao rodar de saias. Aqui o ar é mais refrescante.
Concordei com a cabeça e me virei para apoiar no parapeito. Ele me
imitou e se apoiou ao meu lado, a centímetros de mim. Eu conseguia sentir
seu perfume forte e ouvir sua respiração calma, mas não dei sinal de ter
notado, já que mantive meus olhos presos ao jardim a baixo da sacada.
— Se entrássemos, dar-me-ia o direito a uma dança? — Indagou
com os pulmões cheios de ar. Seus olhos estavam fixos a frente, com uma
expressão séria, que tomei como embaraço.
— Essa noite não estou mais com tanta disposição para dançar. Mas
talvez em um próximo encontro.
— Pelo menos temos um motivo para nos encontrar novamente. —
Ainda encarava o horizonte. Então, inalou ruidosamente o ar e se virou para a
saída. — Esperarei nossa dança. Boa noite, Mademoiselle Evans.
— Boa noite.
Eu o segui com o olhar até se retirar. Quando me vi novamente
sozinha, maneei a cabeça para os lados, testando se ainda estava acordada.
Não sabia ao certo o que estava fazendo, mas, entre todos os rapazes aos
quais fui apresentada, Gareth parecia alguém com quem eu mais concordaria
em me casar. Era hora de eu aceitar de vez que aquele era meu destino e
facilitar as coisas.

Encontramo-nos inúmeras vezes depois daquela noite, mas nenhum


desses momentos resultou na prometida dança – mesmo que cada um fosse
um passo cada vez mais próximo ao noivado. De fato nos encontramos tanto
que eu poderia acreditar já ser sua noiva.
Uma certa noite, voltando para meu quarto depois de ensaiar horas a
fio no piano, escutei papai e Heloíse conversando na sala de jantar.
Discutiam, como de costume, sobre mim. Parecia que em pouco tempo
aconteceria o noivado.
Por mais que eu soubesse que aquilo era inevitável, choquei-me.
Ninguém teve a decência de me comunicar ou conversar sobre o meu futuro.
Eu era apenas um peso para aquela família, e eles queriam se livrar o mais
rápido possível de mim. Para mim, não existia mais a oportunidade de
recusar. O contrato estava selado. Em poucas semanas, tinha certeza, Gareth
me pediria em casamento.
Continuei meu caminho para o quarto, a cabeça doendo de súbito.
Sentei-me na cama e esperei pacientemente Alana aparecer para as aulas
noturnas. Vinha me dedicando a ensinar àquela criança pelo simples prazer
de vê-la feliz quando sabia as respostas.
Nesse tempo senti até um pouco de saudades de Maurice. Pouco nos
encontrávamos, mas, nas raras vezes que nos víamos, percebi o quanto ele
não estava nenhum pouco satisfeito com a nova professora. Era como se ele
não se divertisse mais chateando alguém.
Alana não demorou a aparecer. Seus olhos brilhavam sobre escuras
olheiras. Eu sorri de lado e a convidei a sentar.
— Tem certeza que quer continuar com essas aulas tão tarde? Parece
que não está dormindo bem.
— Eu estou sim, Mademoiselle Evans.
— Acho melhor eu conversar com a sua mãe sobre…
— Não! Mamãe disse que os donos da casa não podem saber disso.
Eu não quero que a senhorita pare de me ensinar. Eu gosto muito.
— Eu sei que gosta. Mas você ainda é uma criança.
— Mamãe disse que a senhorita estudava muito também quando era
pequena. E eu sei que eu não vou ser rica igual à senhorita, e mamãe sempre
disse que é perda de tempo estudar assim, mas eu adoro isso.
— Oh, meu bem. — Abracei-a com carinho. Fiquei pensando em
como ela prosseguiria com os estudos depois que eu desposasse. Ela pareceu
perceber o conteúdo de meus pensamentos, já que logo acrescentou.
— Eu vou estudar muito depois que a senhorita se for, porque aí,
quando nos encontrarmos novamente, você irá ver que eu me esforcei de
verdade.
— Fico feliz em escutar isso. Então vamos começar logo com a aula
e não perder mais tempo.
Ela sorriu radiante e se sentou comportada a minha frente.
Era engraçado como eu me dava melhor com a filha de Amélia do
que com meu próprio meio-irmão. Muitas vezes observando Alana,
lembrava-me de Maurice, mesmo os dois não sendo nenhum pouco iguais.
Talvez eu tenha negligenciado um pouco as necessidades dele. Nós sempre
nos preocupamos mais em nos provocar do que agir como… Irmãos. Eu
lembrava que dissera a papai que ele não era meu irmão e nunca seria, mas
foi mais pela raiva do que por pensar aquilo de fato.
Eu ainda refletia sobre aquilo durante a semana, quando subia para
ver se tudo estava bem com ele e sempre o encontrava com a expressão séria,
encarando o livro sem nenhuma vontade. Fui vê-lo várias vezes e todas com
o mesmo resultado. Até que um dia, no final da semana, não encontrei
ninguém na salinha de aula.
Estranhei a princípio, mas depois segui meu caminho de volta para o
andar de baixo antes que Heloíse percebesse que eu não estava fazendo
minhas tarefas. Não alcancei nem a escada, e Maurice apareceu correndo pelo
corredor, balançando no ar um colar de aparência cara e que agora deixava
pedrinhas brilhantes espalhadas pelo chão.
— Maurice! — O grito de Heloíse deve ter sido escutado até no final
da rua.
— Você quebrou o colar da sua mãe?
Ele não respondeu, estava muito assustado e se escondeu atrás do
meu vestido, agarrando com força minha cintura. Heloíse apareceu bufando
no corredor, empunhando uma escova de cabelo. Seu rosto franzira-se na
expressão que eu conhecia bem, mas que nunca imaginei que veria voltada
para Maurice, o filho precioso.
— Venha aqui agora! — Ela gritou para a criança.
— Foi só um colar. — Eu falei vagarosamente. — Irá espancar uma
criança por conta disso?
— Não se intrometa, sua infeliz. — Ela deu alguns passos para
frente, tentando agarrar Maurice, mas eu recuei e o envolvi com meus braços.
— Vá para o seu quarto, Maurice. — Falei sem nem ao menos
hesitar. Maurice não precisou escutar duas vezes, saiu em disparada pelo
corredor. A mãe até tentou passar por mim, mas eu lhe detive pelo braço. —
Bata em mim, mas não nele. Não irei deixar que o faça passar por tudo o que
eu passei.
— Desde quando se importa com essa criança?!
— Desde quando a senhora parou de se importar com o seu próprio
filho?
Aquelas palavras pareceram ferir seu orgulho, enfurecendo-a ainda
mais. Ela acertou as costas da escova na minha face. Senti minha bochecha
queimar, mas não me movi.
— Está feliz, agora? — Encarei-a no fundo de seus olhos. Sua
sobrancelha franziu ainda mais. — Deixe ele em paz. Ainda é uma criança e
não o machuque por futilidades.
— Futilidades? Se soubesse o quanto paguei por aquela joia iria
entender. Só não me dá razão porque não tem nenhuma joia igual a essa.
— Não me importo se posso ou não pagar por uma joia. Se meu pai
compra ou não coisas caras para mim. Mas sei que uma pessoa vale mais do
que qualquer artigo ou dinheiro. Não estrague a relação que tem com o seu
filho por conta disso.
— Eu só não lhe bato mais porque não quero que Gareth desista de
se casar com você por conta do rosto deformado que eu deixaria.
— Fico feliz que se importa com o que ele irá pensar, já que a minha
integridade física está longe de ser algo importante para a senhora.
— Vá para o seu quarto e só saia de lá quando eu permitir. Nem
deveria estar aqui para começo de conversa! — Seu semblante amenizou e eu
sabia que desistira de castigar o filho.
— Sim, Madame. — Curvei lentamente a cabeça e desci.
Minha reclusão terminou mais cedo do que o imaginado. Naquela
mesma tarde, recebemos a visita surpresa de Gareth, e eu tive que me
deslocar até a sala, mesmo com o rosto inchado.
— Boa tarde, Monsieur. — Cumprimentei como se nada estivesse
errado e ele não tivesse me lançado um olhar confuso.
— Boa tarde, Mademoiselle.
— Sente-se, Samantha. — Heloíse fez um gesto para que eu me
sentasse na poltrona a frente da visita. Movi-me sem reclamar e me coloquei
de frente ao homem. Ele me estudava com olhos curiosos e parecia que nada
mais ao nosso redor importava.
De súbito, senti minha face queimando e fitei minha saia. Era a
primeira vez que aquele olhar causava aquilo em mim. Por conta dos olhos
baixos, não notei quando ficamos a sós na sala. Só voltei a encará-lo quando
ele expressou aquele desejo verbalmente. Disse que precisava que eu o
olhasse nos olhos para que pudesse falar a que veio.
Mas ele ainda se demorou me estudando. Sua face estava séria e ele
parecia mais concentrado em seus pensamentos do que no que iria dizer.
— Algum problema, senhor?
— Case-se comigo. — Retirou uma caixa escura do bolso e mostrou
o anel.
Voltei ao meu silêncio. Meus olhos encararam a joia, meio
incrédulos, mas não chocados. No momento que me avisaram que ele estava
ali, eu sabia sobre o que conversaríamos, mas eu não esperava que fizesse um
pedido tão de súbito. Na verdade, eu queria acreditar que aquilo foi um
pedido e não uma ordem.
— Eu… Eu irei me casar com o senhor.
Ele agarrou minha mão e colocou o anel. Depois, ergueu-se de um
pulo.
— Irei conversar com seu pai sobre a possível data do casamento…
— Senhor — Interrompi. — Não me importo de me casar com o
senhor, mas peço que dê um pouco de tempo. As coisas estão acontecendo
com certa… Pressa. Quero ter algum tempo para organizar tudo e me sentir
preparada para isso.
Uma sombra correu sua face, tornando-a sombria por ínfimos
segundos. Então, ele voltou a me encarar com a expressão que eu conhecia.
— Depois desse “tempo”, iremos nos casar?
— Sim, senhor, eu serei sua esposa.
Gareth concordou com a cabeça e se retirou. Eu me vi sozinha, com
o anel pesando no dedo e uma série de perguntas rondando minha mente.
Precisava de um tempo, mas não para casar. Precisava ficar sozinha, para
pensar sobre tudo e compreender o caminho que minha vida ia tomando.
Era aquilo. Tudo mudava diante de meus olhos e eu não tinha o
controle de nada. Precisava meditar sobre o assunto.
Capítulo 04

Em vez de respeitarem meu pedido e me darem algum tempo para


respirar, papai e Gareth resolveram que o melhor era estreitarmos nosso
relacionamento e passarmos mais tempo juntos. A residência de Gareth era
afastada da cidade e, se possível, muito maior do que a casa de papai ou de
qualquer pessoa que eu conhecesse. Eram necessárias algumas horas de
viagem – que gastávamos praticamente toda semana – e eu nunca podia
voltar mais cedo de nossas visitas.
Eu me vi indo e vindo, incontáveis vezes, tanto que depois de pouco
tempo, já havia me acostumado com o quarto que separaram para mim. Já
estava familiarizada com tudo na verdade, com a imensa escada central de
pedra branca; com as teclas do piano na sala de estar; com os empregados
que sempre eram atenciosos e educados, mas se mantinham afastados; com o
jardim constantemente florido e colorido. Até mesmo com a ausência de meu
noivo. Por mais que passássemos longas horas juntos – praticamente todo
tempo que ele se encontrava em casa – Gareth era adepto a viagens curtas,
que demoravam poucos dias, mas eram o suficiente para me recompor.
Ficava longe de Amélia e Alana quando me hospedava lá, mas
também não tinha que ver Heloíse, já que ela preferia cuidar da sua vida de
madame em casa. Papai às vezes ficava comigo durante minha estadia, mas
logo que podia, largava-me em minha futura casa e sumia. Eles estavam
longe de pensar se me largar com meu noivo antes de nos casarmos era certo
ou não. Queriam apenas se ver livres do fardo que eu era.
Mas foi um bom tempo de paz, algo que eu não esperava reencontrar
tão cedo. Era difícil de não acreditar que dali para frente tudo daria certo e eu
poderia finalmente descansar. Talvez fosse um pensamento precipitado, mas
que me fez feliz por inúmeros dias.
Meu quarto naquele mundo novo localizava-se ao lado dos
aposentos do dono da casa. Era bem amplo, muito diferente do que me
esperava em casa, e havia sido arrumado com esmero. A janela dava para a
linda paisagem de um bosque não muito distante. Sempre que podia, sentava-
me sobre o parapeito e me entregava ao mais belo pôr do sol que eu poderia
desejar ver. Com certeza era a melhor hora do dia, deixava-me extremamente
alegre e decerto foi a causa de eu ter adquirido o costume de me empoleirar
em parapeitos e observar a natureza.
Momentos felizes, muito felizes. Animava-me até em seguir
piamente as etiquetas que Heloíse sempre fora tão interessada em me ensinar,
e parecer uma boa futura esposa. Sentia que faria de tudo para que
continuasse me sentindo bem daquele jeito.
As horas que passava com meu noivo se resumiam a monólogos,
sempre ele conversando sobre suas viagens ou qualquer outra coisa que eu
não conhecia bem para poder comentar. Mantinha-me quieta e paciente,
concordando sempre que necessário e mostrando interesse. Eu estava
inclinada a fazê-lo gostar mais de mim, e ele parecia corresponder às minhas
expectativas.
Contudo, em nenhum momento me senti apaixonada por ele. Era
mais um sentimento de dever cumprido, como se finalmente eu estivesse
fazendo o que organizaram para a minha vida e estivesse perto do meu tão
esperado lugar ao sol.

Era uma tarde morna e acolhedora. Estava eu sentada ao piano,


tocando uma das partituras que achara por ali e bastante concentrada no
trabalho de meus dedos. Escutei Gareth entrar, mas não parei, fingindo não
tê-lo notado. Ele caminhou calmamente até mim e ficou em pé por alguns
segundos às minhas costas. Eu ouvia sua respiração lenta e sentia o calor de
seus olhos em minha pele. Aquela calidez foi intensificada pelo toque de sua
mão. Ele passou os longos dedos pelo meu ombro e escondeu a mão sob
meus cachos, massageando meu pescoço e me fazendo parar
automaticamente de tocar.
— Boa tarde, Monsieur. — Cumprimentei sem tirar os olhos das
teclas.
— Por que parou? Estava muito bom. — Seus dedos continuaram
passeando pela minha pele em um movimento embalador. Meus pelos se
eriçaram e eu senti uma estranha sensação correr meu corpo.
— Tem algum pedido de música?
— Ouvi falar que a senhorita gosta de compor, mas nunca compôs
nada para seu futuro esposo? Componha algo que me faça não querer mais
tirar os olhos da senhorita.
— Não acho que possa compor algo assim. Porque não importa o
pianista e sim a melodia. De modo que nunca irei conseguir fazer com que eu
seja mais interessante do que a música.
— Acredite, consegue sim. Então crie algo que lhe faça sentir como
se se entregasse ao piano.
Meus dedos roçaram as teclas brancas. Gareth se sentou ao meu lado
no banco. Seus olhos me devoravam com uma lascividade até então
desconhecida por mim. Parecia divertir-se quanto mais eu me envolvia com a
melodia, como se eu estivesse me entregando para ele e não para a tarefa de
meus dedos. De súbito, seus lábios tocaram meu pescoço e eu interrompi
novamente a música.
— Não pare. — Sua boca sussurrou perto da minha orelha.
Respirei fundo e tentei continuar, mas o toque de Gareth em minha
pele me deixava tão nervosa que minhas mãos não queriam mais me
obedecer e toda minha criatividade parecia fugir de mim. Por que ele estava
fazendo aquilo? Por que ele estava tão perto de mim? Por que insistia em me
tocar?
Então ele beijou meus lábios. Nosso primeiro beijo e ele me beijou
como se nos conhecêssemos há anos e estivéssemos perdidamente
apaixonados. Não queria ceder, mesmo lembrando-me que um dia iriamos
nos casar e ouvindo meu eu gritar que precisava de um pouco de felicidade,
mas virei o rosto e o fastei ligeiramente.
— Resolvi marcar uma reunião. — Comentou assim que se separou
de mim, como se nada tivesse acontecido e minha face não queimasse
intensamente. — Irei anunciar o casamento dentro de dois dias.
Concordei com a cabeça, ainda atordoada com o que acabara de
acontecer. Ele colocou a mão em meu rosto e esboçou um raro sorriso.
— Quero que esteja magnífica e que todos sintam inveja por não tê-
la.
— Sim, Monsieur. — Abaixei intuitivamente os olhos para as
minhas mãos que descansavam sobre meu colo.
— Esse seu rosto… Ainda é uma menininha. Ainda tão rebelde…
Mas eu irei lhe transformar em uma mulher, não se preocupe.
Concordei novamente com a cabeça. As pessoas costumavam
comentar o quanto eu parecia mais nova. Meus grandes olhos verdes, as
sardas tímidas sobre as bochechas e o nariz, o rosto redondo… Eu não
passava de uma menininha para todos eles. Mas aquele comentário vindo
dele doeu mais do que o dos outros. Eu já estava com quase vinte e um anos,
não era mais uma criança e não queria que meu futuro esposo me visse como
uma.
Gareth colou novamente os lábios nos meus e se retirou. Eu fiquei
largada com as mãos no piano, sem mais vontade de tocar. Minha mente
estava em outro lugar e parecia que não voltaria tão cedo.
A “reunião” não tardou a acontecer. Eu não esperava tantas pessoas
e fiquei decepcionada e coagida quando percebi a casa enchendo. Gareth,
com um braço enrolado em minha cintura, arrastou-me pela sala,
apresentando-me a todos e fazendo questão de dizer que nos casaríamos em
breve. Sua mão me apertava como se temesse que eu escorregasse de seus
dedos a qualquer instante.
Por um momento, senti-me segura envolta por aquele braço e não
me importei tanto de ter que falar com tanta gente. Demorei para ser solta e
isso só aconteceu após eu finalmente pagar a dívida que tínhamos. Depois de
dançarmos, ele sumiu no meio de um grupo de senhores e eu fui envolta por
algumas moças.
Além de Isa e as alunas da escola, nunca tive contato com qualquer
outra mulher de “minha classe” fora do âmbito familiar. Era surpreendente
ver que poderíamos ter tanto em comum, mas, ao mesmo tempo, não ter
nada. Elas conversavam sobre rapazes, posses e outras coisas que ainda eram
distantes para mim.
Não me lembro quando ou como, mas alguém mencionou minhas
habilidades no piano e logo fui bombardeada por pedidos de música, que não
tive coragem de declinar.
Sentei-me em silêncio e toquei com a mesma paixão de sempre,
esquecendo as pessoas ao meu lado. Aos poucos o lugar foi ficando
silencioso e só minha música podia ser escutada. Não me dei conta do quanto
estava chamando atenção, já que sentia como se o piano fosse uma extensão
de mim e só me importasse a melodia que saía dele. Nada mais.
— Está na hora do jantar. — Gareth parou meus dedos com uma
única mão. Eu sorria, mas minha felicidade logo ruiu quando eu subi o olhar
para ele e o encarei. Seus olhos faiscavam como se a qualquer momento
fossem me atacar e não deixar vestígios.
Todos se retiraram para a sala de jantar e eu fui enxotada em silêncio
pelo meu noivo. Sua respiração estava calma, e aquilo me fazia duvidar do
que estava realmente acontecendo.
Mas tive que esperar os convidados irem embora, ou se retirarem
para seus aposentos para descobrir. Eu subi para o meu quarto e esperei
pacientemente sentada na cama. Sabia que Gareth apareceria mais cedo ou
mais tarde e que logo poderíamos conversar.
Ele não demorou. Entrou impetuoso, tão veloz quanto um raio e,
quando me dei conta, já havia me agarrado pelos cachos e me erguido da
cama.
— Senhor…? — Tentei, em vão, protestar. Ele me calou com um
tapa na boca.
— Olha, — Sussurrou. Suas pupilas queimavam e eram muito
assustadoras. — quando eu quiser que receba atenção, irá receber, entendeu?
Não faça nada sem me comunicar.
— Eu sinto muito, não pensei que…
— Não pensou que fosse me chatear? A senhorita ao menos
consegue pensar?
— Senhor?! — Eu estava chocada de mais para chorar ou gritar. Ele
segurava meu cabelo junto à raiz, apertando dolorosamente a minha nuca e
forçando minha cabeça a ficar imóvel perto da sua.
Soltou-me com violência contra a cama, e eu caí no chão, rolando de
dor. Tinha acertado o braço com força na madeira e agora doía intensamente.
— Obedeça-me, entendeu? — Ergueu-me novamente, mas agora
pelos ombros. Segurou-me a centímetros de sua face e me sacudiu com
violência. — Entendeu?
— Sim, Monsieur. — Respondi exasperada. — Eu irei lhe obedecer.
Aquilo pareceu acalmá-lo. Soltou-me e eu escorreguei para o chão,
caindo de joelhos e não mais escondendo as lágrimas de dor.
— Seja uma boa mulher e eu serei um bom esposo. — Segurou meu
rosto entre suas mãos e me forçou a encará-lo. Eu concordei com a cabeça.
Ele pregou com rigidez os lábios nos meus e os manteve lá até eu quase
perder o fôlego. — Descanse, o dia foi cansativo.
Deixei-me derreter no chão e encarei um ponto invisível no tapete.
Ele se retirou, mas, mesmo assim, eu não tive ânimo para me erguer.
Poderia acreditar que aquele havia sido um momento pontual, um
instante de insensatez, de descontrole. Mas, dentro de meu ser, eu sabia que
havia acabado de encontrar a verdadeira face de meu noivo. Eu torcia para
estar errada, mas infelizmente, não estava.

A paz desapareceu tão sorrateira e inesperadamente quanto surgira.


Momentos como aqueles se tornaram mais frequentes, como se o anúncio do
casamento tivesse permitido que ele me tratasse como “um animal
indomável, que precisa ser castigado para entender as ordens” – ele
comentara aquilo em uma manhã, depois de me espancar pelo simples fato de
eu ter derrubado o prato com queijo.
Quanto mais os dias passavam, mais eu sabia que estava me
dirigindo para o que seria o pior erro da minha vida.
Meus cabelos nunca mais foram vistos soltos. Eu passei a sempre
prendê-los em um coque, para dificultar as mãos de meu agressor a agarrá-los
e, dessa forma, ter mais tempo para escapar.
O engraçado era que em alguns momentos Gareth tentava ser
carinhoso, como se o incrível número de surras não tivesse significado nada e
ele quisesse que desse certo. Ele me tratava cada vez mais como uma criança
que precisa de correção, mas também de carinho.
Ele era controlador e fazia de tudo para eu não ter que resolver nada
– nem as roupas que usava para sair, que eram escolhidas por uma de suas
criadas de confiança. Os dias em que eu o visitava, a hora que eu tinha que
voltar para casa, o jeito que me portava… Tudo era milimetricamente
pensado e eu não possuía mais liberdade para nada. E quando eu teimava em
falar algo que ele não queria ouvir? Mais motivos para nunca mais abrir
minha boca.
Às vezes ele me fazia sentar ao piano e tocar incessantemente, até
meus dedos doerem, só para que pudesse me observar com aquele olhar
devorador e febril. Eu sentia a loucura em sua face, sentia que ele podia me
atacar a qualquer momento, mas ele continuava imóvel. Encarando-me.
Reclamando toda vez que eu não tocava com a mesma intensidade de
costume.
— Eu não quero me casar com Gareth. — Comentei certa vez,
sentada no sofá de casa, fitando apaticamente a janela. Eu não sabia mais o
que era sorrir, não sabia mais o que era ser feliz. Tudo o que me fez acreditar
que eu teria paz desmoronou de uma vez e eu me vi desnuda de qualquer
sonho, desejo, autoestima.
Papai estava sentado na poltrona ao meu lado. Era só eu e ele. O
silêncio foi quebrado pela minha frase, mas logo voltou a se restaurar
enquanto ele pensava no que responder.
— Posso saber o motivo?
— Ele… Eu não quero casar com alguém que me castigue todos os
dias. Eu quero alguém que me faça feliz, nem que minimamente.
— O que fez para ele lhe castigar? — Seus olhos não se ergueram do
jornal que lia.
— Eu não fiz nada, papai. Nunca fiz nada! — O pranto tomou meu
ser e quando vi, já estava ajoelhada no chão, agarrando as pernas de papai e
buscando um lugar para afogar minha dor. — Por favor! Não me faça casar
com ele.
— Samantha — Ele me distanciou de suas pernas. — Não posso
fazer nada se não se comporta como uma boa esposa. Ele está mais no que no
direito dele de lhe moldar como interessar.
— Por que o senhor nunca me defendeu? Por que eu sempre sou a
culpada e errada?!
— Cale! — Ergueu a mão com violência e eu me calei. — Não
quero conversar sobre isso. Você irá se casar com ele e se não se comportar,
irei eu mesmo lhe fazer obedecer a seu esposo. Lembra-se de sua última
surra?
As lágrimas lavavam meu rosto, mas eu tentei me colocar séria.
Concordei com a cabeça e ele prosseguiu.
— Seja uma boa mulher e ele não terá motivos para lhe castigar.
Agora não posso fazer nada se continuar se comportando como a criança
imatura que sempre foi.
— Sim, papai.
— Arrume suas coisas e se despeça da casa. Amanhã será seu último
dia aqui.
Concordei novamente. Ergui-me, sequei as lágrimas e me retirei em
silêncio, só para me trancar no quarto e desaguar tudo aquilo que me matava
por dentro. Infelizmente, não podia me livrar do que me matava por fora.

Despedir-me de casa foi doloroso. Mesmo estando me mudando para


um lugar não muito distante, sabia que seria a última vez que veria as pessoas
que amei e me amaram. Amélia, Alana, Paulette e todos os outros criados, era
a hora do adeus. Tentei não deitar mais lágrimas e passar uma imagem mais
séria e adulta, ainda mais porque Heloíse me observava. Dei de presente
alguns livros para Alana, que os agradeceu com os olhos úmidos e perguntou
quando eu iria visitá-las. Eu não iria mentir. Meu futuro era incerto e eu não
queria dar esperanças inúteis para uma criança.
Elas deveriam acreditar que aquilo era o melhor para mim, já que
nunca contei o que havia acontecido dentro daquela casa. Eu não iria
preocupá-las.
Estava quase me dirigindo à carruagem, quando notei Maurice
escondido perto da escada. Ele me encarava curiosamente, mas não fazendo
menção de se erguer e vir até mim. Depois do incidente do colar, não
conversarmos mais. Eu não sabia o que ele pensava, nem se estava feliz por
eu estar finalmente indo embora, mas peguei um dos meus antigos livros de
histórias infantis e me aproximei da criança.
— Fique com este livro. — Entreguei-lhe. — Não espero que tenha
boas lembranças de mim, já que nunca tivemos bons momentos juntos, mas
quero que seja feliz a todos os instantes. E que se lembre disso toda vez que
olhar para esse livro.
Ele ergueu as mãos e agarrou o livro. Quando se levantou, notei que
não era mais a criança que me recebera quando voltei do colégio. Já estava
crescido, e eu nem o vira mudando. Agora me dera conta de quanto tempo
havia passado.
Sorri carinhosamente e me distanciei. Dentro de segundos senti seus
braços envolvendo minha cintura. “Até o casamento” Ele sussurrou com o
rosto enterrado em meu vestido. “Até” respondi, envolvendo-o também em
um abraço.
Papai me acompanhou até a casa de Gareth. Um criado ajudou a
levar meu baú para o quarto, deixando-me sozinha com meu pai.
— Se o senhor me deixar entrar nessa casa — Comentei, séria,
encarando a fachada luxuosa do lugar que seria minha prisão. — não serei
mais a sua filha.
— Não será mais minha filha, porque dentro de poucos dias será de
seu marido.
— Então não espere mais nada de mim. — Continuei minha
caminhada para dentro, deixando ele sozinho sem nem ao menos me
despedir. Eu já não tinha nada o que falar. Ele havia feito sua escolha.
Veríamo-nos no casamento e seria a última vez que o receberia. Ele não era
mais meu pai.
Gareth me esperava no primeiro andar. Incrivelmente, sorria de
ponta a ponta. Em seus olhos eu vi aquela loucura que sempre surgia quando
me assistia tocando. Abaixei a cabeça e encarei a barra da saia. Ele pareceu
rir e me puxou pelo pescoço, trazendo-me para perto e me envolvendo em um
abraço.
Aquele abraço poderia ter sido acolhedor, carinhoso, fraternal. Não,
apenas me fazia temer mais o que aquela mente doentia poderia fazer. Ele,
ainda abraçado a mim, guiou-me para meu quarto e me sentou na cama.
— Comprei roupas novas para você. Quero que esteja sempre
impecável. — Fez-se uma pausa, enquanto me devorava com os olhos. —
Faltam poucos dias para que nos casemos e eu finalmente terei você só para
mim.
Eu não respondi. Continuava olhando o chão e não achava motivos
para subir os olhos e encará-lo. Ele se sentou ao meu lado e colou a boca ao
meu pescoço. Meu corpo se contraiu, encolhendo-se e empurrando-o para
longe. Ele tentou me segurar novamente, mas eu afastei seu corpo.
— Venha aqui, mulher.
— Senhor… Faltam pouco mais do que dois dias para nosso
casamento. Espere esse tempo. Eu não me sentirei bem se fizermos qualquer
coisa antes de nos casarmos. Não é certo.
Ele bufou e se afastou. Lançou-me outro olhar lascivo e deixou o
quarto. Era aquilo, não havia mais como escapar.
Se eu achava que ele não tentaria mais me levar para a cama até o
casamento, estava muito enganada. Mal esperou até o dia seguinte. Eu havia
me escondido na cozinha, tentando me concentrar no que cozinhava para
ocupar o tempo, quando me pediram para ir até o quarto de Gareth.
Movi-me temerosamente, decidindo-me se iria vê-lo ou não. Ao
final, não tive tempo para me escolher, já que a porta do quarto estava aberta
e não existia a possibilidade de passá-la sem que me visse.
Entrei em silêncio e me dirigi até ele. Gareth estava sentado em uma
mesinha redonda na sacada. Seu olhar vazio mantinha-se erguido, preso no
fim de tarde. Ele havia chegado há poucas horas e o dia parecia ter sido mais
cansativo do que de costume.
— Sente-se, Samantha. — Apontou a cadeira vazia ao seu lado. Sua
voz estava alterada, provavelmente por causa da garrafa de cheiro forte a sua
frente, já pela metade.
Sentei-me obediente e silenciosa. Não ousava olhá-lo. Ele passou os
dedos lentamente pelos meus lábios, como se brincasse com alguma massa de
modelar.
— O senhor andou bebendo? — A pergunta não saiu mais alto do
que um sussurro, mas ele pressionou minha boca com os dedos, pedindo
silêncio.
Sua face ia se aproximando da minha, mas eu recuei – o que foi
duramente repreendido com um puxão forte de meu rosto para mais perto do
dele. “Venha aqui, minha cadelinha. Não fuja de mim.”
Seus lábios alcançaram os meus e eu senti a urgência em seu toque.
O desejo parecia escorrer pela saliva quente. Minhas mãos tentavam afastá-
lo, mas apenas se cansavam.
— Beba! — Ele derramou um pouco da bebida em uma taça vazia.
— Senhor, é melhor descansar. Bebeu muito e…
— Eu não vou descansar se não for sobre o seu corpo. Você não é
mais uma criança e deve se comportar como tal. Nem que eu tenha que lhe
forçar a isso.
Ergui-me e tentei sair do quarto, mas ele me puxou com força e
colou o corpo ao meu. Uma mão agarrou meu pescoço, enquanto a outra
invadiu meu vestido e alcançou um de meus seios. O desespero subiu pela
minha face.
Eu não queria me entregar para ele. Era errado, ia contra tudo o que
eu acreditava. Além disso, eu não queria guardar aquele momento em minha
mente, eu não poderia viver sabendo que fui violentada por aquela criatura
deplorável.
Gareth me agarrou pela cintura e me jogou contra a cama, subindo
imediatamente em mim.
— Por favor, senhor, espere…
— Qual será a diferença? Você já é minha!
— Então espere o casamento! Eu serei toda sua, mas espere, por
favor!
— Cale essa boca, sua vadia. — Esbofeteou minha face. — Eu já
esperei tempo demais.
Seu corpo escorregou para o meio das minhas pernas, sua mão
prendia meu tronco, enquanto a outra, junto com sua pélvis, empurrava meu
vestido e todos os tecidos para cima. Então, voltou a agarrar meu pescoço,
enquanto continuava se ocupando em despir sob minha saia. Sua boca enfiou-
se dentro de meu vestido já escancarado e abocanhou meu mamilo com força.
— Eu não quero!
— Você é minha! — A resposta saiu entre um sorriso bêbado e
lunático.
— Não! Eu… Não… Sou… Sua!
Meu braço esquerdo não tinha o mesmo vigor desde o dia que meu
noivo me arremessara contra a cama. Em uma situação normal, não teria tido
forças para empurrá-lo, mas meu corpo foi tomado pelo desespero e, em uma
última chance de me salvar, conseguiu jogá-lo para longe. Gareth caiu
pesadamente no chão.
Minhas pernas se ergueram com uma velocidade desconhecida por
mim. Corri o máximo que consegui e cheguei ao meu quarto antes de Gareth
se recompor. Tranquei-me lá dentro. Não demorou para eu escutar os murros
na madeira da porta. O barulho era ensurdecedor. Ecoava pelo quarto e
parecia perfurar minha mente. Afastei-me até o outro canto do quarto e me
sentei escondida atrás da penteadeira.
As lágrimas lavavam meu rosto. Doía a força com que chorava, doía
me lembrar porque chorava. Tentava engolir o pranto e arrumar meu vestido,
mas ele não queria ser engolido. Queria ser ouvido. Estava cansado. Assim
como eu.

Acordei na manhã seguinte com o rosto inchado e as costas doendo


por terem dormido em uma posição nenhum pouco confortável. Estava
jogada perto da porta, atordoada, como se tudo não tivesse passado de um
sonho confuso. Mas logo a memória me atacou quando ouvi as batidas surdas
na porta e senti meu corpo gelar.
— Mademoiselle? — A voz de Madame Justina, a governanta da
casa, me fez soltar todo ar que meu peito resolveu prender. — Precisa comer
alguma coisa.
Arrastei-me até a porta e sussurrei:
— Ele está em casa?
— O amo? Não, ele saiu cedo.
Abri a porta e me joguei a suas pernas. Ela segurava a bandeja com o
café da manhã e se surpreendeu com o meu comportamento.
— Por favor, me ajude a sair daqui. Eu não posso ficar mais! — O
desespero voltou a me tomar. Eu chorava igual a uma criança e nada mais
fazia diferença. Ela colocou a bandeja sobre uma mesinha no corredor e
tentou me erguer, mas eu me mantive de joelhos.
— O que houve, querida? Está com saudades de casa?
— Não! Eu quero ir embora daqui e não voltar para casa! Quero um
pouco de paz e amor. Não quero ter que ficar…
— Mas a senhorita nem se casou ainda.
— Eu não quero me casar! Não quero ter que sofrer mais. Por favor,
Madame Justina. Me ajude a sair daqui.
Ela se apiedou da minha situação. Disse que falaria com o cocheiro,
para que ele me levasse para longe e que, quando Gareth voltasse, inventaria
alguma desculpa.
— Muito obrigada! Muito obrigada! — As lágrimas agora eram de
felicidade. Havia esperança.
— Agora se alimente, criança. Eu darei um jeito em tudo.
Agradeci novamente e voltei para o quarto para recuperar as forças e
arrumar minhas coisas. Não demoraram para me chamar no andar de baixo.
Desci animada com meu baú e em pouco tempo já estava dentro da
carruagem saindo daquele lugar infernal.
Quando o rapaz me indagou para onde iria, minha alegria voltou a se
dissolver. Para onde eu iria? Não tinha nenhum lugar. Não podia voltar para a
escola que era o único universo que conhecia além da casa de papai e a de
Gareth. Também não poderia pegar algum trem e sair dali. O dinheiro que
possuía não era muito, não daria para quase nada. De súbito, uma ideia surgiu
em minha mente. Então, guiei-o pelas ruas largas.

Isabele abriu a porta e me encarou meio assustada, meio feliz por me


ver. Mas logo a felicidade deu lugar ao assombro quando notou minha face
vermelha e meu semblante desesperado.
Ela mudara muito naquele tempo. Seu rosto estava mais maduro,
mas com o mesmo olhar carinhoso de sempre. Seu corpo tinha amadurecido
também e uma enorme barriga anunciava a chegada iminente de uma criança.
— Eu sei que não deveria estar aqui. — Comecei a me desculpar. As
lágrimas já engasgando. — Eu não sei para onde ir…
— Samantha. — Ela me abraçou carinhosamente. — Entre e me
conte tudo o que está acontecendo.
Escondi a cabeça em seu pescoço e fui levada para dentro.
Depois de lhe contar todos os acontecimentos, eu fiquei mais calma.
Porém, Isa absorveu todo o meu sofrimento e andava de um lado para o outro
pela sala, sob o olhar confuso do esposo. Não queria ter a deixado tão
nervosa, mas fui forçada a contar tudo e precisava de ajuda, então mentir não
era o mais aconselhável.
Jean, o esposo de minha amiga, acompanhava-a com os olhos. Seu
rosto quadrado mantinha-se sereno, mas seus olhos escuros também pareciam
tocados com o relato.
— A senhorita pode ficar o tempo que quiser. — Ele me assegurou.
— Não pretendo ficar muito tempo, não quero incomodar. Só
preciso de alguns dias para pensar no que farei.
— Você só vai sair daqui quando tiver um lugar para ficar e eu saber
que estará bem. — Isa colocou as mãos na cintura e me censurou com o
olhar. — Por que não me comunicou? Por que não me disse pelo que estava
passando? Eu poderia ter pedido a papai para lhe ajudar.
— Isa… Eu não quero atrapalhar, vou tentar arrumar logo algum
lugar para trabalhar e morar. Bem longe daqui, talvez no interior. Onde eles
nunca irão me encontrar.
Isa e o esposo foram bastante solícitos. Revoltaram-se quando eu
declarei que ajudaria com as tarefas de casa, anunciando que “convidados não
trabalhariam em sua casa”, mas eu fiz com que concordassem em deixar eu
fazer tarefas mais simples, nem que fosse apenas ajudar na cozinha.
Por mais que as semanas tenham passado velozmente, não deixei de
procurar um dia sequer por anúncios no jornal. Talvez uma casa no interior
precisasse de uma professora. Ou de uma empregada. Qualquer coisa que me
fizesse sair daquele lugar.
Enquanto nada aparecia, eu me dedicava a cozinhar quitutes para
meus amigos, bordar e costurar. Divertíamos muito juntos e eles me
mantinham protegida dentro de suas paredes.
Pelo menos duas semanas se passaram enquanto eu me escondia nas
propriedades de minha amiga e me censurava por ainda estar ali. Isa às vezes
trazia notícias sobre Gareth e papai, fazendo-me só ter mais certeza que não
queria ser descoberta. Eles pareciam estar atrás de mim, vasculhando toda a
França e mantendo minha fuga em segredo da maioria das pessoas ali.
Don visitou a irmã durante a minha estadia. Eu estava sentada na
sala, bordando umas roupinhas para a criança que Isa esperava, quando o
escutei entrando. Sua voz me fez parar imediatamente e me erguer. Ele não
sabia que eu estava lá e quando entrou na sala se surpreendeu também.
Se Isa havia mudado naquele tempo, Don mudara imensamente
mais. Era um homem feito, com o corpo formoso, os olhos energéticos e uma
expressão sorridente que parecia ter se tornado parte de seu ser.
— Samantha! — Ele correu para me abraçar. Eu deixei as agulhas
sobre a mesa e me levantei.
— Don, que saudade! Como está, velho amigo?
— Melhor agora. Não pensei que a encontraria aqui. Pensei que
nunca mais a veria, na verdade.
— Sente-se, Don. — Isa exclamou. — Precisamos conversar sobre
algo sério, que é o motivo de Sam está aqui e de eu ter lhe chamado.
Don obedeceu sem reclamar. Sentou-se ao meu lado e ficou
observando a irmã com olhos curiosos e obedientes, como costumava fazer
quando mais novo. Eu havia sentido saudade daquele jeito carinhoso de meu
amigo e a maneira que tratava sua irmã.
Nós três estávamos reunidos como nos velhos tempos.
Depois da narração, meu velho amigo estava quase tão furioso
quanto a irmã. Sua face avermelhou-se timidamente e ele franziu o cenho,
furioso. Mas não falou nada. Estava pensando no que dizer e, já que sempre
virava para mim e observava meu ar tranquilo, não achava palavras.
— Gareth tem sorte de eu não saber quem ele é e de ter que manter
Sam em segredo. — Comentou por fim.
— Precisamos ajudar a Sam a encontrar um novo lugar para morar.
Eu deixaria ela ficar aqui para sempre, mas ela não se sente confortável, além
de não ser seguro.
— Eu trouxe um jornal da Inglaterra da minha última viagem. — Ele
abriu a bolsa que trazia e retirou um jornal amassado e úmido. — Talvez
tenha algum anúncio que lhe interesse.
— Obrigada! — Peguei rapidamente o jornal de seus dedos e passei
a vasculhar as páginas em Inglês. Eu estava tão acostumada àquela língua que
nem ao menos notei que lia nela. — Aha!
— O que foi? — Os três perguntaram em uníssono.
— Não… Esse aqui não dá. — Voltei a vasculhar. — Tem um aqui
que precisa de um professor para uma criança de dez anos. Talvez prefiram
um rapaz.
Don pegou da minha mão e passou rapidamente os olhos sobre o
anúncio. “Acho que esse aqui é bom.” Comentou. “Vamos escrever uma
cartar e ver se nos respondem. Se mandarmos ainda hoje, talvez chegue antes
que eu vá embora.”
— Vocês acham que eu consigo? Eu não tenho nenhuma
indicação… — Meus olhos desceram para o chão. No fundo eu estava com
medo. Se as coisas com as quais já estava acostumada me faziam sofrer,
mudar-me para um lugar desconhecido poderia ser ainda pior. Mas parecia
ser a minha única salvação.
Eles concordaram com a cabeça. Isa procurou folha e tinta para que
eu redigisse. Depois, Don foi levá-la até os correios e voltou ainda antes de
eu terminar de bordar as roupinhas.
Jantamos juntos e ficamos mais boas horas conversando na sala. Isa
e o esposo se retiraram antes, deixando Don e eu sozinhos.
— Eu sinto muito pelo que passou, garotinha.
— Não sinta. Está tudo bem agora.
— Deveria ter nos avisado, teríamos pedido para nosso pai lhe
retirar da vida daqueles miserá… Desculpe falar assim da sua família, mas
não me agrada nenhum pouco imaginar o que faziam com você dentro
daquela casa. Ainda mais para lhe forçarem a se casar com um imbecil
desses.
— Está tudo bem agora, Don. Ou pelos menos enquanto ele não me
encontrar. — Sorri de lado. Ele se aproximou de mim e colocou as mãos em
minha bochecha.
— A senhorita cresceu e ficou ainda mais bonita.
— Eu… Obrigada. — Desviei o rosto para o lado e nós dois ficamos
vermelhos. Eu lembrava do que ele fizera comigo na última vez que nos
encontramos e, por mais que tivesse guardado com carinho aquele momento
por toda vida, não consegui não me constranger naquele momento. — Como
anda o senhor?
— Ando bem, mas sinto-me bem melhor quando volto para casa.
Viajar constantemente cansa e não há lugar melhor do que nosso lar.
— Lar. — Sussurrei involuntariamente. Não queria fazer com que
pensasse que estava reclamando de minha situação, mas passou-me
brevemente o pensamento de que não sabia o que era ter um lar.
— Um dia irá encontrar o seu. — Ele comentou para quebrar
definitivamente o constrangimento. Sua voz era carinhosa como sempre, e
senti na alma a fraternidade que sempre nos envolveu desde que éramos
crianças.
— Vocês sempre foram como irmãos para mim e seus pais sempre
me trataram como uma filha. Sou muito grata pelo amor cedido a mim pela
sua família e acho que é a única coisa que poderia me alegrar a voltar para
casa.
— Irmãos… — Seus olhos desviaram-se para o outro canto da sala.
Suspirei profundamente.
— O senhor sempre será como um irmão e espero que sempre me
considere como uma irmã. Quero poder contar com o seu carinho, ainda mais
agora que não me sobrou nada na vida.
— Eu sempre irei cuidar da senhorita. Mas não sei se sempre a
amarei como uma irmã.
— Sei que um dia nossas relações irão se afrouxar, como nesse
longo período que ficamos distantes, mas espero sempre possuir uma ligação
forte com vocês. Mesmo que o tempo passe, nós iremos nos reunir
novamente.
Ele riu. “Queria que entendesse o que eu quero falar.” Sussurrou
para que eu não escutasse, mas estávamos sentados tão perto que seria
praticamente impossível não ouvir. Passei delicadamente os dedos por sua
barba por fazer. O rosto amadurecera e ele parecia um perfeito cavalheiro de
“sua classe”, como Heloíse comentaria.
— Esperemos que a resposta chegue em breve. — Retirou minhas
mãos de seu rosto, mesmo que parecesse não se importar. — Deixe suas
coisas arrumadas, porque assim que soubermos se irá ou não, tirarei você
daqui o mais rápido possível para não ter chance de encontrar seu pai ou
Gareth.
— Obrigada.
— Está tarde. — Mudou o assunto. — O dia foi longo e sinto o
corpo cansado. Boa noite, Mademoiselle.
— Descanse bem. — Despedimo-nos com sorrisos cansados e fomos
cada qual para seus quartos.

De fato a resposta não demorou. O dono do anúncio procurava um


professor, mas decidiu me dar uma chance depois de ler minhas
qualificações.
Demorei um pouco para acreditar que estava acontecendo de
verdade e que me mudaria para a Inglaterra. Era aquilo. Eu iria sair da cidade
onde nasci e deixar para trás as ruas recheadas de memórias de mamãe. Pelo
menos, sabia que iria para um mundo novo, e que minha mãe sempre estaria
ali comigo para me apoiar.
Mesmo sendo o melhor para mim e que eu poderia respirar aliviada
e passear sem temer encontrar Gareth, ainda era assustadora a ideia de lugar
novo e desconhecido. Mas eu estava convencida que nada podia ser pior de
como a minha vida estava. Era hora de tentar algo novo e dar meu melhor
para que as coisas finalmente se arrumassem em minha vida.
Eu iria me esforçar para aquilo.
Mr. Luft. Reli a carta assim que me deitara para dormir. Mr. Luft…
Capítulo 05

O mar estava revolto. Ainda não chovia, mas ventava forte e


assustadoramente. Eu me dirigia para dentro da embarcação quando parei
para olhar a praia mais uma vez. Estava deixando meu mundo e indo para um
lugar novo que nunca pensei que ao menos visitaria.
— Mademoiselle Evans?! — Don me chamou com um aceno de
mão. — Vai começar a chover e a senhorita irá molhar seu lindo vestido. É
melhor subir logo a bordo.
— Sim. — Respondi sorridente. Ele e eu sabíamos que nenhuma
chuva ou vestido molhado acabaria com a minha felicidade. Era maravilhoso
me sentir finalmente livre.
Olhei pela última vez o porto e atirei ao mar o anel dourado que
segundos antes ornava minha mão direita. Ele não significava mais nada para
mim, como nunca deveria ter significado.
Segui Don até minha cabine. Era uma embarcação pequena de
maneira que o recinto era proporcional ao seu tamanho, mas aquilo não me
importava nenhum pouco. Qualquer lugar era melhor do que morar com
Gareth.
— Peço desculpas se o cômodo não lhe agrada, mas você só passará
uma noite aqui, então espero que não se importe. — Comentou fitando meus
olhos. Eu esperava não estar fazendo uma cara de decepção, porque não era
aquilo que sentia.
— Não se preocupe, está tudo ótimo e não sou capaz de reclamar. O
senhor sabe que não sou de me importar com esse tipo de coisa. — Sorri. —
Muito obrigada, Don.
— Por nada. Se não houver nenhum problema, chegaremos cedo à
Inglaterra. Samantha, acho melhor descansar pelo menos um pouco.
— Está certo. Obrigada, novamente.
Don ficou parado a minha frente. Coçava a nuca e tinha um sorriso
constrangido na face. Aquele corpo alto de fios negros como a noite parecia
até uma figura mitológica sob a escassa luz. Ele não parava de me encarar
fixamente e o ar místico diminuía de forma inversamente proporcional ao
meu constrangimento. Desde a saída da casa de Isa, notei que Don passou a
me lançar olhares furtivos, mas eu nunca os mencionei ou demonstrei
percebê-los. Mas, naquele momento, eu estava muito cansada para ficarmos
parados no meio do quarto nos encarando. Então, sorri para ele, ele percebeu
minha indireta e saiu apressado.
Meu baú já estava na cabine, junto à pequena cama. Despi meu
vestido e coloquei uma longa camisola clara.
A água balançava a embarcação ritmicamente. Aquilo me enjoava
um pouco, mas não era nada que me importasse tanto para ter que afastar os
pensamentos. Havia começado a chover e o ambiente ficara ainda mais
escuro. Eu escovava meus longos cabelos loiros e me olhava no espelho oval
a minha frente. A luz de uma velinha me permitia enxergar precariamente o
meu reflexo. Meus olhos brilhavam mais verdes do que nunca e minha pele
parecia fosca sob a luz que provinha de minhas órbitas. Eu sei bem que era
para estarem felizes, mas permaneciam úmidas.
No fundo eu queria pular. Gritar. Correr de um lado para o outro
como quando eu era criança. Mas minha expressão era o contrário. Eu não
conseguia fazer minha mente ter a caridade de não me lembrar do passado.
Deveria focar no futuro, mas ela nem sempre me obedecia.
Deixei a escova de lado e peguei o livro de capa azulada que tinha
tirado há pouco do baú. Retirei a folhinha amarelada que marcava uma das
páginas e examinei o desenho. Passei o dedo sobre a face já borrada de minha
mãe-desenho. O sorriso permaneceu ali através dos anos.
Minha expressão na obra se assemelhava a dela, eu sorria como
sempre sorri. “Sempre”, na verdade, eu me referia até os últimos minutos
com mamãe, depois daquilo, não sei se meus sorrisos foram com a mesma
veracidade de antes.
Foi há alguns dias, enquanto meditava sobre minha vida, que percebi
que teria continuado morando em casa. Teria suportado passar por tudo
novamente, teria me comportado como uma boa filha… Mas Gareth havia
mudado tudo. E agora minha família, postiça ou não, era apenas uma distante
lembrança. Eu sabia que não merecia os castigos, mas teria aguentado tudo se
não fosse pelo meu noivo. Ou ex-noivo como eu deveria chamá-lo.
E pensar que algum dia quis fazer com que aquele desprezível
gostasse de mim enquanto deveria estar preparando um plano para fugir. Se
tivesse percebido no que estava me metendo desde o primeiro instante…
“Cale essa boca, sua vadia!” Voltei a guardar o desenho. Os gritos
de Gareth ecoavam em minhas memórias. “Você é minha… Minha…
Minha… Minha…”
Escondi a cabeça sob o travesseiro. Queria abafar as lembranças,
mesmo sabendo que nada faria elas me deixarem. Mas, no fundo, elas não me
incomodavam tanto quanto já me incomodaram. Afinal, ali estava eu. Livre.

O barco bateu levemente contra um banco de areia. Eu já estava


pronta e arrastava meu baú até o convés. Don veio me ajudar.
— Já quer se livrar de mim? — Ele perguntou sorridente.
— Não, mas não posso me atrasar. Mr Luft deve ter mandado
alguém me buscar. — Respondi envergonhada e ele notou de imediato meu
constrangimento.
— Eu só estava brincando. Acho que o seu cocheiro já chegou. —
Apontou secamente um rapaz de roupas simples que esperava perto de uma
carruagem. O lugar estava movimentado, mas ele era a única pessoa parada
ali, perto de uma carruagem, parecendo esperar por alguém.
Don me ajudou a descer com o baú e a carregá-lo até onde o jovem
cocheiro esperava. “Miss Evans?” Ele indagou quando me aproximei.
Confirmei com a cabeça.
— Meu nome é Richard. Sou o Cocheiro de Mr Luft. Acho melhor
você entrar, temos um longo caminho até Winterfields.
— Claro. — Virei-me para Don e o abracei pelo pescoço. Ele riu
constrangido.
— Cuide-se, Samantha. — Falou quando já tínhamos nos separado.
— E não se esqueça de escrever para mim sempre que puder.
— Não se preocupe e vou escrever sim. Até algum dia, Don.
Ele maneou a cabeça, despedindo-se, e eu subi na carruagem. As
propriedades de Mr Luft se localizavam a 15 milhas do porto, chegaríamos lá
ao final do dia.
Richard guiava bem, era um rapaz centrado e que raramente perdia o
foco da estrada. Tinha cabelos loiros, olhos castanhos e pele amorenada pelo
sol. Suas vestes colavam-se levemente ao corpo por conta do suor, de modo
que não escondia seu físico trabalhado. Sua expressão era serena e ele parecia
aproveitar o vento que soprava seu cabelo. Por mais que seu aspecto fosse um
pouco bruto, ele dava a impressão de ser uma boa pessoa, talvez apenas
fustigado pelo trabalho e muito centrado naquilo que deveria fazer.
— A senhorita pode ir apreciando a paisagem, é uma vista linda até
a casa de meu amo. — Falou pela janelinha.
Era uma paisagem realmente linda. A oeste podia se ver resquícios
do canal da mancha. A leste, as planícies luziam um amarelo outonal
intensificado pela luz do meio dia. E aquela paisagem foi mudando de
tonalidade no decorrer do caminho. Ora alaranjada pelo fim da tarde, ora
arroxeada pelo pôr do sol, ora enegrecida pela noite.
Deviam ser quase nove horas quando chegamos. A carruagem entrou
por um portão prateado e seguiu a planície mais um pouco, antes de rodear
um lindo casarão e estacionar perto da porta lateral.
— É por aqui que deve entrar e sair. A senhorita deve se acostumar
com essa entradinha escondida. A porta principal é para convidados
importantes ou dias em que meu amo esteja de bom humor, o que é um pouco
raro. — Richard comentou baixo enquanto descia. Parecia frustrado quando
falou sobre o humor do amo, o que me assustou um pouco, mas eu me impedi
de indagar qualquer coisa a respeito. Abriu a porta e pegou meu baú.
Uma senhora baixa e de cabelos tão grisalhos que brilhavam naquela
escuridão se aproximou. Trazia um castiçal nas mãos idosas e, com a pouca
luz que vinha da velinha, dava para ver que sorria.
— Boa noite, meu bem. — Sua voz saiu animada e não pude deixar
de alargar meu sorriso. Era bom ser recebida por alguém tão contente em me
ver quanto ela. — Como foi a viagem?
— Maravilhosa, senhora.
— Deve estar se perguntando quem sou, não é? Meu nome é
Constance, mas pode me chamar de Connie se preferir. Sou a mãe de Richard
e eu que cuido da casa e dos empregados.
— É um prazer conhecê-la, sou Samantha Evans. — Curvei
levemente a cabeça, cumprimentando-a, e ela sorriu e concordou com a
cabeça.
— Eu sei, querida. — Ria baixinho. Não consegui entender se ria de
minha ignorância ou se se divertia com outra coisa. — Acho melhor
entrarmos, o amo não gosta muito de esperar.
Eu olhei para trás para pegar as minhas coisas, mas Connie me
puxou com força pela mão. “Não se preocupe, Richard irá levá-lo para o seu
quarto” a senhora entrou por um corredor escuro e eu me limitei a segui-la.
Andamos até o final da passagem, saindo no hall de entrada. Connie
continuava me puxando. Ela parecia dançar enquanto andava de tanto que
seus passos eram suaves e rápidos. Entramos na sala de estar. Estava escuro,
mesmo com a lareira acesa: a poltrona no centro interceptava a luz e nós, que
estávamos viradas para as costas do móvel, tínhamos que nos contentar com
o toquinho de vela. Alguém estava sentado ali e remexia os dedos sobre o
braço vermelho e fofo da poltrona.
— Miss Evans está aqui, meu amo. — A senhora fez uma leve
mesura para o espaldar banhado de sombra.
— Obrigado, Constance. — A voz forte da pessoa me fez tremer.
Pelo seu tom, não parecia muito contente. — Peça para que ela se sente.
Constance fez um gesto apontando a poltrona de frente para a de Mr.
Luft. Eu me arrastei lentamente e sentei. Meu corpo escorregou pelo
estofado, entrando de uma vez no acento, de modo que minha cabeça desceu
a altura de meus joelhos.
— A senhorita se senta feito uma criança. — Ele comentou com
certa repulsa. Tentei me endireitar, contudo, foi um esforço em vão.
— Não consigo me levantar, senhor. — Respondi constrangida.
Minha voz parecia fugir de minha boca e as palavras saiam fracas e quase
inaudíveis. Mr Luft me puxou pelo braço e eu finalmente consegui me livrar
da poltrona movediça. — Obrigada.
— Não agradeça. Acredito que é educada, mas o mínimo que falar,
melhor. — Retrucou frio. Eu preferi não voltar a me sentar. — Pensei que
fosse mais madura e responsável, vejo que me enganei. — Estendeu-me uma
xícara de chá, que educadamente recusei.
— Perdão, senhor, mas eu sou uma mulher madura e responsável.
— Parece ter 16 anos.
— Creio que pareço mais nova por causa de minhas sardas e olhos
grandes. Pelo menos era o que falavam na França, senhor. Mas isso não
significa que…
— Não me importo. Já disse que não aprecio quando fala em
demasia. — Deu de ombros. — Eu buscava um bom professor para ensinar
meu filho, mas quando li sua resposta pensei que pudesse dar certo. Parecia
uma boa professora e bastante capacitada. Agora já não sei… Você leciona
Matemática, Inglês, Piano e Geografia?
— Também Francês, Artes, Biologia e História, senhor. E sei um
pouco de Latim…
— Certo, certo. — Falou sem paciência, girando a mão direita no ar.
Ele rodava os olhos pela sala, impaciente e me evitando. — A quase falta de
sotaque em sua fala é notável. Deve falar inglês desde muito tempo.
— Obrigada. E sim, minha mãe era inglesa e ela me ensinou desde
pequena tudo sobre aqui, inclusive o idioma. Sempre quis visitar o país, mas
nunca pensei que teria a oportunidade. — Comentei mesmo percebendo que
sua fala havia sido mais uma constatação do que uma pergunta.
— Poupe-me dos detalhes. Não a contratei para me contar sua vida.
— Desculpe-me, senhor. — Encolhi os ombros.
O senhor ficou em silêncio por minutos que em minha mente
duraram quase o resto da noite. Levou a xícara até a boca e bebeu
demoradamente. Neste tempo, pude estudar suas feições. Seu rosto era
branco e quadrado, com algumas rugas que apareciam quando ele franzia o
rosto. Ele tinha cabelo castanho claro, um pouco comprido. Seus olhos eram
de um azul muito escuro e cintilavam sob a luz bruxuleante da lareira. Era
bastante bonito, mas tinha uma beleza um tanto quanto desconcertante e
severa. Aqueles olhos sérios e repreendedores, que finalmente tinham se
fixado em mim, fizeram-me estremecer.
Seu olhar me estudava com a mesma dedicação que o meu, mas o
dele era diferente, ele me despia, vasculhava cada parte de meu ser, buscava
as curvas, depois os olhos e voltava a me examinar. Aquilo me deixava ainda
mais nervosa.
Por mais que seus olhos me devorassem com a mesma insistência
dos de Gareth, notei que um não havia nada em comum com o outro. Mr Luft
parecia me ver como uma criança recém-recolhida da rua, maltrapilha e que
instiga mais suspeitas do que afeição.
Os únicos ruídos ali eram o crepitar das chamas e o som de nossas
respirações, a dele calma, a minha acelerada. O silêncio falava mais alto do
que qualquer palavra que poderíamos proferir e aquilo não era nada
acolhedor.
— O seu pagamento será ao final de um ano. — Seus olhos
brilharam ainda mais, ele parecia querer rir, mas seus lábios continuavam
comprimidos apaticamente. — Pode parecer muito tempo, mas aqui em casa
terá tudo o que necessita para sobreviver. Terá alimentação, abrigo e
vestimenta caso seja necessário, creio que não irá precisar de mais nada nesse
período. Mas veremos se ficará aqui por tanto tempo.
— Acho que conseguirei, senhor.
— Como eu disse, veremos. — Levantou-se. Colocou a xícara na
mesinha ao lado da poltrona. — Vou lhe mostrar a casa.
— Sim… Senhor.
Subimos para o primeiro andar. Mr Luft andava a frente e eu me
apressava para acompanhá-lo. Seu rosto se mantinha erguido, rígido, sem
mudar nenhum segundo de posição. Eu o observava de esguelha e me sentia
constrangida por ter causado uma má impressão logo no momento em que
nos conhecemos. A vela que ele carregava iluminava pouco de meu rosto por
conta da distância entre nós, mas, mesmo assim, eu não me sentia confortável
para olhá-lo diretamente.
Percebi que só iria ficar mais acanhada se continuasse estudando-o,
então desviei o olhar para aonde íamos. Cortamos alguns corredores e
ignoramos muitas portas até chegarmos a uma branca, maior do que as
outras.
— Este é o quarto de meu filho. — Ele abriu a porta. O lugar estava
escuro, mas com a ínfima luz que entrava pela janela e que fluía da vela, dava
para ver a criança dormindo em uma pequena cama. Deveria ter no máximo
dez anos. — Acho que não preciso dizer que deve lecionar o dia inteiro,
parando apenas para fazer as refeições. Não se preocupe em ser rígida, ele
precisa…
— Desculpe a pergunta, mas ele não tem horário para descansar e
brincar?
— Eu quero que Charles seja alguém na vida. Ele não tem tempo
para brincar. — Retorquiu, se possível, ainda mais sério.
— Mas ele é uma criança, precisa brincar, senhor.
— Não questione minhas ordens, Miss Evans.
— Só acho que o senhor deveria deixá-lo viver um pouco. Uma
criança triste não vai muito bem nos estudos… O senhor não brincava
quando criança? — Temi que respondesse que não.
— Sim, mas eu tive que estudar muito para ser quem sou hoje e
quero que Charles seja ainda melhor. Além do mais, ele não está triste e nem
se importa em estudar o tanto que o convém.
— O senhor trabalha com o quê?
— Eu sou médico. — Ele me encarou pasmo como se aquilo fosse a
coisa mais óbvia do mundo. — Só quero que me obedeça e não questione
minhas ordens.
— Sim, senhor. — Encarei o chão.
Continuamos a andar, mas não fomos tão longe. Desta vez, ele abriu
a porta ao lado. Era uma pequena sala de aula com uma carteira, lousa,
estantes e um piano. "É aqui que você dará aula. Mantenha o lugar sempre
organizado, irá facilitar suas lições. Agora irei lhe mostrar seu quarto." ele
voltou a fechar a porta e a andar.
Subimos uma pequena escada no final do corredor e adentramos um
patamar escuro e abafado. Parecia um antigo sótão dividido em quartos.
Entramos na penúltima porta.
Era um pouco pequeno, com uma cama perto da parede, janelões
baços e um com o vidro quebrado, um pequeno guarda-roupa, cortinas de
aparência surrada e um tapete pardo. Meu baú já estava lá.
O quartinho passava um sentimento triste e tinha um cheiro forte de
abandono. Entrei timidamente reconhecendo o lugar.
— Os outros empregados lhe ensinarão as regras e como se portar
em minha casa. Devo repetir que não aprecio quando fala de mais. Não
atrapalhe meus pensamentos com assuntos irrelevantes. — Ele fez uma
pausa. — Espero que goste do quarto. — Comentou dando extrema ênfase ao
goste e saiu batendo a porta.
Quase que instantaneamente as lágrimas brotaram de meus olhos. O
que eu estava fazendo ali?
Acordei cedo na manhã seguinte. O sol ainda não havia nascido e
tudo estava tão escuro quanto na noite anterior. Sentei-me sobre meus joelhos
e tentei identificar o que havia me acordado. Como se tivesse entendido a
minha dúvida, minha barriga roncou alto. Passei meus dedos alvos sobre a
camisola azul. Eu não havia comido nada no dia anterior e só poderia ser
aquele o motivo de meu estômago estar se contorcendo.
Fui me arrastando para fora da cama evitando pensar na fome. Entrei
no pequeno banheiro que era a porta a esquerda. Havia um balde com água
perto da bacia. A superfície da água congelara durante a noite.
— Como eles querem que eu me lave com isso? — Fiz uma careta.
Voltei ao quarto e peguei a minha escova de cabelo, retornando em seguida
ao banheiro. Com um golpe forte quebrei a camada de gelo. Despejei a água
na bacia.
Meus dedos foram os primeiros a sofrerem com a temperatura.
Asseei-me o mais rápido que consegui e voltei correndo para o quarto. O sol
já saía ao leste tingindo o céu de um magenta brilhante. Olhei o janelão com
o canto dos olhos. A janela daquele quarto proporcionava uma vista linda.
Mesmo quase congelando e com as bochechas roxas de frio, suspirei de
felicidade.
Para meu primeiro dia, escolhi me vestir da maneira mais séria que
consegui. Os vestidos que gostava de usar eram mais claros e frescos.
Aqueles de cores escuras quase não eram usados, ainda mais porque Heloíse
queria que eu passasse uma boa impressão. Mas Mr. Luft já não apreciava
minha aparência e, se eu fosse trabalhar vestida com algo mais colorido e
confortável, seria novamente censurada. A temperatura também não era
muito favorável a roupas veranis.
Sequei precariamente meu cabelo e o trancei, enrolando-o em
seguida até o topo de minha cabeça, formando um coque volumoso e fofo.
Finalmente me senti pronta e o sol já havia se mostrado por inteiro. Arrumei
minha cama por fim e fui em direção a porta.
Assustei-me com um par de olhos castanhos que me esperavam no
corredor. Dei um passo para trás e quase tropecei em meu próprio pé.
— Bom dia, Senhora Connie. — Cumprimentei-lhe, recompondo-
me do susto.
— Desculpa por lhe assustar, Miss Evans. — Ela abriu um sorriso
que fez suas rugas ressaltarem. A idade avançada não havia lhe deixado com
uma aparência cansada como conhecida em faces mais idosas, mesmo que
sua pele não mentisse seus anos, ela tinha um ar juvenil e divertido. — Vim
lhe chamar para tomar o café da manhã.
— Muito obrigada. Estou faminta. — Afaguei minha barriga. —
Não tive oportunidade de comer ontem.
— Se eu soubesse teria trazido algo ontem para você comer. — Ela
me lançou um olhar de pena.
— Não se preocupe, está tudo bem.
— Então acho melhor descermos, Mr Luft é um homem que não
gosta quando seus empregados atrasam suas atividades.
— Claro. Senhora Connie… Será que poderia me responder uma
coisa?
— Sim, com prazer.
— A água daqui sempre é tão fria?
— A senhorita deixou para se lavar hoje de manhã? Desculpa,
querida, deveria ter lhe avisado. Você precisa se lavar a noite, depois que as
meninas trouxerem a água ainda morna. Nessa época do ano, ela congela de
madrugada. Ah! É por isso que a senhorita está tão pálida. Sinto muito,
deveria ter avisado, mas a correria é tanta que não tive como subir aqui antes
da senhorita se deitar.
— Não se preocupe com isso, senhora. — Sorri constrangida.
Constance me puxou pela mão e eu fui enxotada até a cozinha. Antes
de abrirmos a porta já dava para ouvir o burburinho que vinha lá de dentro.
Entramos. Praticamente no mesmo instante que pisei dentro da cozinha a
conversa parou. Olhares assustados e curiosos se viraram para mim e eu corei
levemente.
— Esta é a Miss Samantha Evans. — Connie falou em bom tom.
Cinco pessoas estavam ali. Constance me apresentou uma a uma, e
eu me esforcei para decorar o nome de todos imediatamente.
A moça sentada mais afastada da porta onde eu estava se chamava
Anneliza. Era uma jovem alta – acho que não mais alta do que eu, mas nossa
diferença não deveria ser tão grande – de longos cabelos ruivos presos atrás
da cabeça. Seus olhos eram de um verde-esmeralda que cintilava a cada subir
e descer de suas pálpebras. Havia muita vida naquelas órbitas e aquilo me fez
gostar dela no mesmo instante.
Ao seu lado, estava sentada Serafine. As duas eram irmãs, sendo
Serafine a mais nova, e se pareciam muito, porém, a sua pele era mais clara
do que a da mais velha e seus cabelos, mais escuros. Seus olhos, contudo,
eram os mesmos, e eu também me identifiquei com ela de imediato.
Curvados sobre a bancada, onde o café da manhã recém-feito
esperava para ser levado à mesa, estavam Janet e Thomás. Janet era uma
senhora quase tão idosa quanto Connie e praticamente da mesma altura. Seus
cabelos pendiam entre um tom de cinza e branco e seus olhos eram escuros.
Já Thomás, o esposo de Constance e pai de Richard, era um senhor alto e de
mesma aparência bruta do filho – mas aquilo era atenuado pelo sorriso doce
que ele dirigia a mim. Seus olhos cor de mel faiscavam de animação. Para
completar o grupo, Richard sentara-se ao lado de Serafine.
Fora tudo aquilo que Constance me disse antes de eu me sentar à
mesa. As pessoas ainda me encaravam, menos Richard que se ocupava em
brincar com os longos cabelos encaracolados de Serafine.
— Eles estão apenas nervosos por terem uma nova colega de
serviço. — Connie disse em um sussurro, e, falando para todos os outros,
comentou: — Ela é francesa.
Então a cozinha explodiu em perguntas. “Como é a França?”,
“Como foi a sua viagem?”, “Fale um pouco em francês?”
— A França é um lugar lindo. — Respondi, os outros se calaram. —
Minha viagem foi boa, um pouco longa, mas boa e Je pense que je vais aimer
l'Angleterre. O que significa: acho que vou adorar a Inglaterra. — Sorri.
— Por que se mudou para cá? — Janet me fitou com suas íris
acinzentadas.
— Eu queria conhecer lugares novos e esquecer um pouco os meus
problemas.
Anneliza serviu a mesa. Era a única que se mostrava nenhum pouco
interessada em minha vida. Ela se mantinha séria, mas algo em seus olhos me
diziam que estava com raiva. Eu não sabia o porquê, tínhamos acabado de
nos conhecer.
Devo ter ficado tempo de mais encarando a moça e esquecido da
conversa, porque os outros empregados me imitaram e a encararam até ela
perceber, então viraram os olhos a esmo pela cozinha. Anneliza deu de
ombros e se sentou novamente ao lado de Serafine. A mais nova olhou da
irmã para mim e sorriu sem graça como se não entendesse o comportamento
da outra.
Janet serviu o chá. Comemos em silêncio e vagarosamente, mesmo
eu estando com muita fome e querendo satisfazê-la de uma vez. Antes que eu
pudesse terminar meu prato, Constance roçou seu braço em minha mão e,
quando me virei para ela, balançou a cabeça como se dissesse para eu não me
preocupar com Anneliza.
Ajudamos Janet a retirar a mesa e fomos cada qual para seu serviço.
Thomás foi para o jardim com o filho. Connie e Serafine levaram o café da
manhã para Mr Luft. Eu peguei a bandeja prateada com o desjejum de
Charles. Antes de me retirar, Anneliza me fuzilou com o olhar e cruzou a
porta a minha frente.
Suspirei. Eu pensara que Anneliza seria uma companhia agradável,
mas parece que me enganei. A estranha sensação de que aquele não era meu
lugar me invadiu. Obriguei-me a engolir as lágrimas antes mesmo que
surgissem e subir em silêncio para o quarto da criança.

Abri a porta do quarto com as costas. O garoto estava sentado perto


da mesinha de centro, encarando apaticamente a madeira e parecendo muito
entediado para uma criança. Quando ouviu a porta sendo aberta, ergueu os
olhos em minha direção e se assustou ao me ver. Parecia aguardar uma outra
pessoa.
Era uma criança pequena, provavelmente menor do que o esperado
para sua idade, e lembrava muito o pai. Seus cabelos eram amendoados e
seus olhos, azulados feito o céu. Por mais que os olhos do pai possuíssem o
mesmo brilho e a mesma cor, não eram tão claros quanto os do garoto, nem
tão vívidos.
— Bom dia. — Deitei a bandeja a sua frente.
— Bom dia. — Respondeu. Ele não se moveu para comer.
Continuava me encarando desconfiado, como se eu fosse um fantasma ou
uma miragem.
— Está tudo bem?
— A senhorita não é a moça que toma conta de mim. — Comentou
sem hesitar. Seus olhos eram tão fixos quanto os dos pais. Sua franqueza me
fez rir.
— Não sou, meu bem. Meu nome é Samantha Evans e eu vou lhe
ensinar daqui para frente. Cheguei ontem a noite, você já estava dormindo
então não pudemos ser apresentados.
— Você parece bem diferente das minhas antigas governantas, nem
parece uma para falar a verdade… — Finalmente levou a mão até o café da
manhã e pegou a grande maçã vermelha. Mordeu-a com força, como se
estivesse se castigando por ter falado daquela maneira.
— Querido, não morda com tanta força. Pode se machucar assim. E
por que eu não pareço uma governanta?
— Porque a senhorita parece boa. — Seu rostinho continuou sério,
enquanto eu me forçava para não rir da maneira que as palavras eram
pronunciadas. — As outras eram mais velhas, sérias e gostavam de me bater.
A senhorita não vai me bater, né?
— Não, meu amor, não irei lhe bater. E fico feliz por achar que
pareço boa. Se não me acha parecida com uma governanta, pode pensar então
que sou uma amiga que veio lhe ensinar.
— Quantos anos você tem?
— Vinte e dois.
Ele parou de mastigar, olhou para o chão por alguns segundos e se
virou de volta para mim. Por um instante, senti que ele quisesse me falar
alguma coisa ou fazer com que eu pensasse que estava tudo bem, porém
percebi imediatamente que algo o incomodava. Permaneci calada, eu não
tinha liberdade com ele para já sair indagando sobre sua vida.
Não falamos até ele acabar de comer. Eu fiquei estudando seu rosto.
Sua pela era tão branca que chegava quase a ser transparente. Ele sorriu, mas
eu não conseguia ver muita verdade naquela felicidade. Era uma criança
macilenta e com aparência de frágil. Seu rosto tinha detalhes delicados, mas
ele não me aparentava ser uma daquelas crianças criadas a base de leite, que
temem até sair do quarto para não pegarem um resfriado – como Maurice.
— Papai disse que iria procurar um professor. — Comentou
baixinho. Suas palavras segredavam ao prato vazio. — Ele disse que estava
cansado de procurar mulheres que não davam conta de mim.
— Por que ele diz isso?
— Porque elas me achavam uma criança estranha. E eu nunca fui
muito de seguir ordens.
— Isso foi um aviso? — Minha sobrancelha se arqueou, inquisitiva.
Ele virou o rosto para o outro lado e franziu o cenho.
— Talvez.
— E por que não gosta muito de seguir ordens?
— Porque são chatas! E nem existiam antes de…
— Antes de…?
— Nada. — Virou os olhos azuis na direção dos meus, e eu percebi
que estavam úmidos e se esforçavam para não deixar as lágrimas escorrerem.
— Pois bem — Comentei assim que notei o ar pesado que caíra
sobre nós. — Espero que continue gostando de mim para que possamos ter
uma boa relação.
— Sim, Miss Evans.
— Pode me chamar de Sam. Não vai doer se fizer isso. — Ele voltou
a sorrir. — Consegue se vestir sozinho, meu bem?
Ele concordou com a cabeça e eu pedi para que fosse se arrumar
para a aula. Aproveitei aquele tempo para arrumar sua cama e descer com a
bandeja.
Quando voltei a subir, ele já estava na sala de aula. As janelas
estavam semi-escondidas atrás de pesadas cortinas e eu quase não conseguia
enxergá-lo ali. Coloquei meu material na mesa a mim destinada e o encarei.
Ele me olhou com o mesmo interesse.
— Você sempre teve aula aqui?
— Sim, Sam.
— Nesse escuro?
Charles voltou a concordar.
Caminhei até a cortina e a puxei na intenção de abri-la, mas ela se
desprendeu do trilho e caiu pesadamente no chão. Levei a mão até a cabeça,
calculando o quanto aquilo me meteria em confusão, enquanto minha face
acerejava de vergonha. Juntei a cortina e coloquei de lado. Depois, abri a
janela e deixei que a luz tomasse o lugar.
Disfarcei meu constrangimento e peguei um livro na estante.
Estendi-o para a criança e pedi que lesse alguma coisa.

Precisei de, pelo menos, dois dias para que todo mundo ali se
acostumasse com a minha presença e também para suficientemente conhecer
cada um. Escrevi uma carta para Don no segundo dia, contando todas as
minhas impressões e como todos me tratavam. Meus colegas eram em sua
maioria carinhosos e preocupados, como se instantaneamente tivessem me
inserido na família. Todos me acolheram bem, menos Anneliza, que me
tratava com repulsa e fazia questão de mostrar que não estava satisfeita com a
minha presença.
Já o dono da casa era diferente. Eu encontrava raras vezes com Mr
Luft e ele sempre me ignorava sem nem ao menos piscar. Sentia-me um nada
ao seu lado, mesmo que, no fundo de meu ser, acreditasse que eu não era a
motivação de sua conduta.
Charles era o contrário. Mesmo passando muito tempo juntos, ele
parecia não perder o interesse em mim. Todo dia cedo, esperava-me com os
olhos pregados à porta, como se temesse que em algum dia não fosse eu a
entrar por ela. Como não tive que esperar muito para perceber que algo o
incomodava, também cedi à curiosidade e passei a estudá-lo com extremo
interesse em todos os segundos que estávamos juntos.
Ele parecia se divertir estando ao meu lado, mas era sempre sério
como o pai. Preferi seguir as regras de Mr Luft nos primeiros dias, para testar
o terreno e ver até onde as dificuldades daquele lugar chegavam, não
mudando de imediato o que me inquietava tanto. Charles não era feliz, assim
como Mr Luft não o era, mas, pelo menos no caso do pequeno, eu pensava
saber ajudá-lo.
No terceiro dia, depois de acabarmos as atividades de manhã, peguei
a criança pelo braço e a levei de volta para o quarto. Ele não entendeu o que
estava acontecendo, mas não reclamou.
— Onde você guarda os brinquedos? — Indaguei deixando-o
sentado sobre o tapete.
— Os brinquedos? — Ele apontou uma caixa de madeira
abandonada em um canto. Apressei-me a pegar e derramá-la no chão. Os
brinquedos eram antigos e pareciam não serem usados há muito tempo, mas
fizeram os olhinhos do garoto brilharem. — Por que precisa deles, Miss
Evans?
— Eu estava pensando, nós passamos muito tempo estudando e você
merece um descanso. Então achei que seria divertido brincarmos um pouco.
— Papai não gosta quando brinco. Ele vai brigar.
— Não se preocupe com o seu pai, esse é meu método de ensino. Se
ele reclamar, eu conversarei com ele.
Charles parecia que começaria a chorar a qualquer instante. Não
estava preparado para aquilo, mas ficou imensamente feliz. Sentei-me ao seu
lado e brincamos até a hora de buscar seu almoço.
Deixei Charles continuar sua brincadeira quando ia descer para a
cozinha. Minha surpresa foi imensa ao encontrar Mr Luft no outro lado da
porta com a mão estendida prestes a abri-la. Assustei-me.
— Por que todos aqui fazem isso? — Comentei baixo para mim
mesma. Levei a mão ao peito, eu arfava assustada. Ele estava sério como
sempre, seus olhos me matariam se apenas um olhar conseguisse matar. —
Desculpe, senhor… Boa tarde.
— Eu fui até a sala de aula e não os encontrei lá. Poderia me dizer o
que faziam?
— Eu deixei Charles brincar um pouco antes do almoço, senhor. —
Fechei a porta atrás de mim para o garoto não ouvir. — Ele estava cansado.
— A senhorita me desobedeceu.
— Se o senhor acha que lhe desobedeci porque deixei seu filho feliz,
sim, eu lhe desobedeci. — Ergui a cabeça. Meus olhos chegavam a altura de
sua boca. — E me desculpe por falar isso, mas o senhor não pode fazer nada
agora.
— Você está em minha casa, não tem o direito de me desobedecer
ou de falar desse jeito comigo! — Esbravejou. — Muito menos de me dizer
como cuidar do meu filho.
— Tem razão em dizer que não tenho o direito, mas o senhor me
chamou para educá-lo e cuidar dele, e esse é o meu modo de trabalhar. Sei
que para o senhor parece errado, mas Charles é apenas uma criança e merece
se divertir também.
Ele ergueu as mãos, prestes a me agarrar pelos ombros e despejar
toda a sua fúria, mas se restringiu a fechá-las com força e abaixá-las.
— Vamos, continue o que iria fazer. Sacuda-me, grite, faça o que
quiser. Se acha que não estou acostumada com homens que tratam as
mulheres como brinquedos, está muito enganado. Se quer tanto “me ensinar
uma lição”, que faça isso logo.
— Espero que a senhorita não esteja se esquecendo que posso
mandá-la embora. E não me importo de fazê-lo em sua primeira semana. —
Sua voz enchera-se de ódio.
Senti meus olhos se escancararem. Passou pela minha cabeça a ideia
de voltar para a França e continuar morando com Gareth ou com meu pai.
Aquilo não era uma opção. Joguei todo meu orgulho para os ares e cedi.
— Não, por favor. — Supliquei baixinho. — Eu… não teria para
onde ir…
— Então me obedeça e se comporte como uma adulta.
— Entenda, não consigo ver Charles tão triste, senhor. Não fiz
porque quis lhe desobedecer, mas ele é só uma criança… Ele não devia se
sentir tão triste. — Desci os olhos mecanicamente para o chão e o encarei
com vontade.
— Ele não está triste! Está muito bem, e a senhorita não deveria
interferir. Só faça o seu trabalho.
— O senhor sabe que ele não está… — Ergui timidamente o olhar e
notei que sua expressão ficara ainda mais zangada. Como ele podia ignorar o
estado do filho? Eu não precisaria nem passar meia hora com ele para saber
que havia alguma coisa errada ali. — Dê-me algum tempo, meu senhor. Dê-
me um prazo para eu poder provar que meu método funciona. Se o senhor
não ficar satisfeito, pode me despedir ou fazer o que julgar ser correto. Mas
apenas lhe peço que me dê um tempo.
Ele pensou um pouco. Eu sentia seus olhos grudados em mim e
ouvia sua respiração alterada. Ele me vasculhava como quando nos
conhecemos. Envolvi meu busto com os braços e voltei a encarar o chão,
agora com mais vontade.
— A senhorita tem duas semanas apenas.
— Obrigada, senhor.
— Agora volte ao trabalho. Não a contratei para ficar parada
encarando o chão.
Concordei com a cabeça.

Não falei com mais ninguém o restante do dia. Charles me olhava


como se esperasse mais animação de minha parte, mas eu me limitava a
sussurrar o que ele devia fazer. Minha mente focara-se em não ser despedida,
e nem ao menos consegui fingir que estava tudo bem. Era errado fazer com
que ele se preocupasse comigo, ainda mais agora que as coisas prometiam
mudar.
— Desculpe-me. — Falei antes de me retirar de seu quarto ao
colocá-lo para dormir. — Só não estou me sentindo muito bem. Amanhã
prometo que estarei melhor e que será diferente.
— Espero que a senhorita melhore. — Ele me abraçou
carinhosamente. Correspondi seu abraço com ainda mais carinho. — Boa
noite, Sam.
— Boa noite, meu anjo. — Não pude deixar de sorrir. Beijei sua
cabeça e me retirei.
Subi a escadinha e caminhei de cabeça baixa até meu quarto. Fechei-
me lá dentro. Olhei-o como se fosse a primeira vez e senti aquela tristeza
tomando meu corpo novamente. Sentei-me no chão e escondi o rosto entre os
joelhos. As lágrimas molhavam meu vestido.
Eu não podia falhar. Não podia ficar na Inglaterra por não ter
dinheiro e não podia voltar para a França. Meus amigos me deixariam ficar
em suas casas, mas seria muito fácil Gareth e papai me encontrarem. Eu não
queria voltar a sofrer.
De súbito, algo acertou a parede no outro cômodo. Eram objetos
pesados que faziam um estrondo quando caiam no chão. Ergui minha cabeça
e encarei a parede. A pessoa que morava no quarto ao lado parecia estar com
muita raiva. Levantei-me com os olhos ainda inchados de chorar e bati de
leve com o punho fechado na parede. O vizinho parou no mesmo instante.
Talvez tivesse se assustado.
Não sabia quem dormia ali. Normalmente eu subia antes dos outros
colegas, então não tive a chance de descobrir de quem era cada um dos
quartos daquele andar.
Voltei ao lugar onde antes estava e quase me concentrara novamente
em meus problemas quando o barulho se repetiu, ainda mais forte. Levantei-
me mais uma vez e fui ao outro quarto. Bati à porta. Tive que esperar por
longos segundos e várias batidinhas até a entrada ser aberta.
A surpresa foi tamanha quando Anneliza a abriu. Naquele segundo,
tudo havia se explicado.
— A senhorita gostaria de alguma coisa? — Ela me perguntou fria.
— Sim, poderia, por favor, parar de fazer tanto barulho? —
Respondi secando os olhos.
— Não. — Bateu a porta em minha cara.
Minha primeira reação foi me assustar, não pensei que ela fosse
capaz de tanta falta de educação, mas depois tive que ignorá-la. O que eu
menos queria naquele instante era arranjar confusão. Voltei ao quarto. Aquele
barulho continuou o resto da noite, ou pelo menos até eu adormecer.
Capítulo 06

Na manhã seguinte, forcei-me a levantar ainda mais cedo. Não


demorei para me vestir e desci antes que Anneliza saísse do quarto. Não
havia ninguém na cozinha, mas era exatamente aquilo que eu desejava.
Cozinhar sempre me deixava mais relaxada, eu colocava toda as
minhas frustrações para fora. Peguei o saco de farinha, os ovos, sal, açúcar,
manteiga. Misturei os ingredientes com uma colher de pau e estendi a massa
sobre a bancada. Sovei-a com força e a deixei repousar por alguns minutos, o
tempo que a madeira queimava e o forno aquecia. Passei manteiga dentro,
formei os bolinhos. Coloquei-os no forno.
Ao término, eu já havia afastado de minha mente as inseguranças e
tristezas e parecia até um pouco feliz. Janet apareceu quando eu arrumava a
cozinha, estava surpresa de me encontrar ali.
— A senhorita está bagunçando minha cozinha, é?
— Não, senhora. Só estava preparando algo. Todos pareciam tão
excitados para conhecerem um pouco da França que resolvi fazer uma receita
que gostamos muito lá.
— Pois, se já terminou de brincar, saía que eu tenho muito o que
fazer. — Falou ainda brincando.
— Sim, senhora. — Eu sorri.
Sentei-me à mesa e fiquei observando a senhora cozinhar. Janet era
rápida e experiente. Suas mãos trabalhavam com maestria e pareciam se
mover quase no automático de tanto que estavam acostumadas àquilo. Ela me
observava de esguelha e parecia esperar que eu falasse algo, mas eu
permaneci em silêncio, encarando-a.
— Está tudo bem? — Ela indagou já não contendo a curiosidade.
— Bem, — Eu cogitei responder que sim, mas não estava nada bem,
e Janet estava ali interessada em discutir meus problemas, então lhe disse a
verdade. — não muito.
— O que aconteceu, querida?
— Eu me sinto um pouco deslocada aqui, senhora. É apenas o meu
quarto dia e parece que tudo está dando errado.
— É por causa da Liza?
— Não só por ela, mas por conta de Mr Luft também.
— Querida — Ela suspirou. Deixou de lado o que estava fazendo e
se sentou à mesa junto a mim. — Muitas coisas aconteceram na vida dos
moradores desta casa. Eles até podem parecer pessoas comuns, mas levam
uma carga muito pesada do passado. A senhorita é nova e com o tempo irá
acabar conhecendo e aceitando cada um com suas peculiaridades. Não ache
que eles agem assim por ser a senhorita, porque não é verdade. Só dê um
tempo para que eles possam se acostumar com sua presença.
— E se Mr Luft não quiser esse tempo?
— Ele é o mais complicado de todos. — Ela revirou os olhos. —
Mas com o tempo você irá perceber que não há nada a temer e que aquela
raiva dele passa com os dias.
— Assim eu espero. Muito obrigada, senhora. — Sorri
carinhosamente. Ela me devolveu o sorriso.
Janet voltou ao trabalho. Antes que minha receita ficasse pronta, ela
já havia arrumado todo o café da manhã e o dividia com os empregados que
agora já entravam na cozinha e se sentavam um a um à mesa.
— O que é isso aí? — Thomás perguntou espiando dentro do forno.
— Croissant! — Respondi animada. — Fiz um para cada e um e
para Mr Luft e Charles.
— Acho que David não irá gostar. — Anneliza me encarava com um
olhar de gozação. Estava muito acordada para alguém que passou a noite
inteira jogando coisas na parede. Não existia sinal de olheiras ou cansaço,
pelo contrário, Anneliza estava radiante.
— David? — Perguntei servindo-os e fingindo não existir uma
tensão entre nós duas. Os olhos de Anneliza agora eram um misto de diversão
e raiva. Aquilo me interessou ainda mais.
Pode parecer estranho, mas eu gostava muito do brilho em seus
olhos para acreditar que ela era uma péssima pessoa. Desde pequena me
acostumei a estudar o olhar dos outros a minha volta e me afastar daqueles
que possuíam a mesma maldade de Heloíse e papai. Anneliza não possuía
nada que me remetia às minhas dores, pelo contrário, eu me sentia mais
tentada a descobrir os mistérios que ela guardava. Contudo, eu ainda me
criticava mentalmente por gostar de algo nela e me sentir curiosa para
conhecê-la.
— Sim, o seu patrão, “francesinha”. Ou é tão tonta a ponto de pensar
que o nome dele é “Mr Luft”? Ah, sim! Esqueci-me com quem estou falando.
— Ora sua…! — Precipitei-me em sua direção e ela pulou na minha.
Como ela conseguia ser tão rude e mal-educada?
Serafine agarrou a irmã e Janet me segurou pelo ombro. “Deixe-me
arranhar esse rostinho de criança dela!” Ela se debatia, mas Serafine a
segurava com extrema força.
— Não sei porque estão nos segurando, é melhor nos soltarem e
acabamos com isso neste instante. — Minha voz saiu mais fria do que eu
esperava. Não estava gritando, mas todos notaram a raiva em minhas palavras
e continuaram nos segurando por prudência.
— Parem já com essa briga! — Connie acertou a colher suja de
farinha em nós. — Não são mais crianças e vão acabar fazendo o amo descer
aqui. E você Miss Evans, não passou nem uma semana que está aqui,
comporte-se.
Aquelas palavras me acertaram como um balde de água fria e eu e
minha oponente nos sentamos anestesiadas, mas ainda rangendo os dentes e
lançando olhares de fúria uma para a outra. Janet e Serafine, receosas, nos
soltaram. Constance pegou a bandeja com o café de David e saiu. Eu peguei
o desjejum de Charles e me levantei.
— Não vai comer? — Serafine me perguntou com o croissant entre
os dedos, já de volta a seu lugar.
— Não obrigada, estou sem fome.
— Eu também não estou com fome. — Anneliza se levantou de uma
vez e saiu pela outra porta.
Encarei a porta recém-fechada e fiz uma careta. Thomás riu.
— Essas meninas… — Ele comentou sorrindo para mim. — Só
deixando de castigo mesmo.

O pequeno já estava acordado e me esperava em pé, junto à janela.


Quando me viu, correu em minha direção. Coloquei a bandeja na mesinha e
abri os braços para apará-lo.
— Pensei que dessa vez iria realmente acordar e não encontrar você.
— Disse abraçando-me com força. — Mas a senhorita ainda está aqui.
— Claro, meu bem. Não iria deixá-lo tão breve.
— Eu… Eu ouvi a senhorita e papai discutindo ontem à tarde.
— Ah, aquilo? Não foi nada. — Menti. — Está tudo bem.
— Que bom, então podemos brincar mais um pouco…
— Mas antes você tem que comer, se arrumar e estudar um pouco.
Vamos primeiro fazer as obrigações. — Afaguei seu cabelo amendoado.
— Mas eu queria tanto brincar. — Ele fechou a cara. Ajoelhei-me ao
seu lado e segurei seu rosto na frente do meu.
— Charles, meu bem, vamos fazer um acordo? — Ele concordou
com a cabeça e eu prossegui: — Eu lhe ensino, você estuda e antes do
almoço e no final da tarde eu brinco com você, está bem?
— Sim, Sam.
— Mas me prometa que vai prestar atenção em minhas aulas e se
esforçar. E eu prometerei que cuidarei bem de você e lhe divertirei.
— Eu prometo.
Beijei sua bochecha selando o acordo. Ele esfregou a mão no lugar e
fez uma careta de nojo. Eu ri. Charles se sentou para comer e eu fui arrumar
sua caminha.
— Isso é bom. — Ele apontou o croissant que comia.
— Que bom que gostou, eu que fiz. — Terminei logo o que estava
fazendo e me sentei junto dele. — Pensei em fazer algo diferente. E não fale
de boca cheia, querido. Não é educado.
David abriu a porta de uma vez, sobressaltando-me. Caminhou em
direção a Charles e ficou parado o encarando. Charles já estava acostumado
com aquilo, ergueu-se sem pestanejar e abraçou o pai desejando-lhe um bom
dia de trabalho. Mr Luft pregou os lábios à cabeça da criança e soltou um “eu
o amo, filho.” baixo, talvez para eu não escutar.
Pela primeira vez desde que cheguei, David mostrou que possuía um
coração e que ele batia dentro de seu peito.
— Bom trabalho, senhor. — Desejei-lhe antes de sair.
— Para a senhorita também. — Respondeu batendo a porta. Sim, ele
tinha um coração e ele batia, porém quase imperceptível. Era o que eu
pensava.
— Mr Luft trabalha onde?
— Ele comprou uma casa na cidade. Ele diz que é para ficar mais
perto dos pacientes, mas eu acho que é para ficar mais longe dessa casa e de
mim.
— Não deveria dizer isso, meu amor. Seu pai o ama e não acho que
iria querer ficar longe de você.
— E eu amo meu pai, mas depois daquele dia tudo ficou tão
diferente. — Objetivou sem demonstrar sentimento. Ele estava vazio. Sério.
Lembrava um pouco o pai. Naqueles quatro dias, Charles comentou com
frequência sobre como o pai era antes d'Aquele Dia, como as coisas eram
diferente depois de “Tudo O Que Aconteceu”. Falava como se fosse algo
trivial, mas eu não fazia ideia do que se tratava, apenas que O Dia teve um
papel importante em entristecer todo mundo ali dentro.
— Você se sente bem comigo, Charles?
— Claro, Sam!
— Então… Se você quiser se abrir sobre o que aconteceu, eu vou
estar aqui para lhe escutar e, se quiser, também para aconselhar. Não sei
sobre o que você tanto fala, mas sei que isso o aflige e não quero que fique
igual ao seu pa…— Calei-me. Charles me olhou de esguelha, mas não
comentou o meu deslize. — Apronte-se para a aula, sim?
— Sim, Sam.
Apertei a bandeja com força nas mãos e me retirei. Ia me censurando
mentalmente por falar tanta bobagem quando Anneliza passou como um raio
por mim. Não consegui desviar e deixei a bandeja cair com a força que me
empurrara. Ela nem ao menos se virou para ver o que havia acontecido.
Carregava uma grande trouxa de roupas e parecia apressada.
Por que ela me odiava tanto? Não nos conhecíamos e eu tinha
certeza que não fizera nada para que me odiasse. Infelizmente, aquele
comportamento fazia com que a primeira impressão que tive sobre ela
desaparecesse lentamente.

Entreabri a porta da sala de aula. Charles estava sentado em sua


carteira encarando o quadro-negro. Por mais que eu conhecesse aquele olhar
triste, estranhei o garotinho sentado ali. Meu pupilo já demonstrara
momentos tanto de felicidade, quanto de tristeza, mas nenhum tão sério,
pensativo e melancólico quanto aquele.
— Fará um buraco se continuar encarando-o tão fixamente. —
Comentei. Ele não sorriu nem desviou o olhar. — Pensei que poderíamos
começar com o piano. Sempre que me sinto triste eu toco, pode lhe ajudar a
se animar.
Ele deu de ombros e se sentou do meu lado ao piano. Comecei
tocando uma música infantil alegre. Pensei que ele fosse se alegrar, mas, ao
contrário, ele começou a chorar, primeiro baixinho, depois intensificando as
lágrimas e os soluços.
— Charles?! — Abracei-o, assustada. Ele escondeu o rosto em meu
vestido. — O que foi, meu anjo?
— Mamãe tocava essa música para mim antes de partir. — Ele
sussurrou. Sua voz era engolida pelas lágrimas.
Então era aquilo. Por isso nunca ouvira falar sobre uma “Mrs Luft”,
por isso que Charles parecia sempre tão tristonho e talvez por isso que Mr
Luft era do jeito que era. Abracei-o com mais força.
— Papai pediu para eu não falar. Mas eu não quero guardar mais
isso. É tudo confuso e dói demais. Ninguém me entende, ninguém sabe o que
eu estou sentindo. — Charles declarou um pouco mais alto. — Eu preciso
que alguém me diga porque minha mãe não está mais aqui.
— Me fale tudo o que está sentindo, eu tentarei o ajudar.
Ele se afastou e secou o rosto com o dorso das mãos. Olhou-me nos
olhos, examinando-me da mesma maneira que o pai fazia. Só depois de parar
totalmente com o choro e se sentir seguro ao meu lado, começou a contar sua
história.
Era uma manhã de sábado e Mrs Luft completava 22 anos.
Chamava-se Patrícia, tinha longos cabelos dourados e olhos que pendiam
entre o verde e o azul. Charles tinha apenas cinco anos na época.
— Mamãe, papai pediu para a senhora descer para a sala. — O
pequeno subiu no colo da mãe. Estavam na sacada do quarto do casal.
Patrícia olhava o horizonte avermelhado.
— Já vou, meu bem. — Beijou a bochecha do filho. — Desça e diga
para seu pai que não me demoro.
— Sim, mamãe. — Ele a beijou na ponta do nariz e desceu de seus
braços. — Eu a amo, mamãe.
— Eu também o amo, meu príncipe.
Charles desceu e deu a notícia ao pai. Eles e os convidados ficaram
esperando a aniversariante descer, mas ela não aparecia. David se cansou de
esperar e subiu para ver a esposa. Dez minutos depois, o tio de Charles o
pegou no colo e disse que precisava levá-lo para sua casa.
— Mas e o papai e o aniversário de mamãe? — Ele perguntou ao tio.
— Seu pai irá até lá mais tarde. Temos que ir agora.
E ele foi levado em meio àquela atmosfera de luto e sorrisos tristes
que tentavam deixar o garoto despreocupado. Ninguém queria que Charles
soubesse da morte da mãe. Mas eles teriam que contar mais cedo ou mais
tarde.
Na manhã do dia seguinte, David se incumbiu de passar a péssima
notícia para o filho. A conversa ficara em nível tão superficial que a criança
passou bom tempo acreditando que era tudo mentira, que sua mãe apenas
viajara por algum tempo e logo voltaria. Mas o tempo passou e o peso da
morte se tornou mais evidente, seja na ausência de Patrícia, seja no
comportamento de todos ao redor da criança.

Ao fim de sua narrativa, meus olhos estavam molhados. Mordi meu


lábio inferior e suprimi um soluço. Charles voltara a chorar e se agarrava com
muita força a minha cintura, escondendo o rosto em meu vestido. Fiquei sem
reação por um instante. Em termos por lembrar de minha própria história, em
termos por digerir todo o trauma pelo qual aquela família passou.
Ele me contou algo que parecia velado há anos, mesmo tendo nos
conhecido há tão pouco tempo. Não sei como inspirei confiança e ele se
sentiu confortável para se abrir verdadeiramente comigo, mas aconteceu e eu
estava feliz por agora saber o que tanto machucava Charles e David. Agora
conhecia o que estava enfrentando.
— Chore, querido, coloque tudo para fora. — Abracei-o com mais
força. Ele soluçava com força e parecia que desmaiaria sem ar a qualquer
segundo. Esperei que se acalmasse para continuar. — Seu pai nunca
conversou com você sobre o que ocorreu?
— Não. — Fungou. — Ele sempre disse que era para fingir que nada
acontecera para eu não sofrer. Mas fingir dói muito mais.
— Sei bem como é isso.
— Sabe? — Ele não parecia acreditar no que eu falava.
— Eu também perdi minha mãe quando pequena. Quando eu tinha
seis anos… Ela era a minha única família e perdê-la só me fez notar como
estava sozinha.
— A senhorita não tinha um pai?
— Tinha, mas meu pai não se importava nenhum pouco comigo.
Assim que minha mãe morreu, ele se casou com minha governanta e logo me
colocou em um colégio. E depois que me formei, foi atrás de um noivo…
Mas então me calei. Não estávamos ali para tratarmos das minhas
dores, mas sim das dele. Eu tinha que me controlar para não falar tanta coisa
desnecessária.
— Mas sabe o que a Samantha de seis anos falou para si mesma? Ela
falou que, por mais que as coisas descem errado, ela nunca desistiria de ser
feliz, porque era o que a mãe dela iria querer. E sabe o que a Samantha de 22
anos irá dizer para um lindo garotinho de olhos cor do céu?
— Não…
— A vida pode ser muito traiçoeira e nos fazer passar por momentos
difíceis, mas nunca desista de ser feliz, porque sua mãe não iri gostar de vê-lo
triste. Nem seu pai. Se você olhar ao redor, irá encontrar muitos motivos para
voltar a ser feliz e deixar sua mãe orgulhosa porque conseguiu seguir em
frente. — Beijei-lhe a testa. — Quer saber um segredo? Sua mãe está bem
aqui. — Peguei a mão dele e a levei até seu peito. — E eu estou aqui para lhe
ajudar no que precisar.
— Obrigado, Sam. Meu pai nunca falou nada disso para mim. Ele
preferiu continuar sua vida sem se preocupar comigo… Acho que ele não se
importa mais com o que eu sinto.
— Ele se importa, querido. Mas deve ser tão doloroso para ele
quanto é para você. — Beijei-lhe novamente.
Dei mais alguns minutos para meu pupilo se recompor antes de
voltarmos aos estudos.

Charles e eu estudávamos na frente da casa junto a uma velha e alta


árvore, quando David chegou na carruagem dirigida por Richard. Mr Luft
desceu antes da porta de casa e veio caminhando até nós.
— Charles tem alergia a abelhas, não deveria estar aqui fora.
— Eu não deixaria que ele se machucasse, senhor. — Respondi
encarando o chão.
— Por que a grama parece ser mais interessante que meus olhos? —
Indagou ríspido.
— Não é, senhor. — Forcei-me a fitar seu rosto. — Eu e Charles
estávamos estudando as plantas, achei que aqui seria o lugar perfeito. Não
pensei que o senhor fosse se importar de trazê-lo para fora.
— Então pensou errado. — Ele puxou o filho pelo braço. Charles
acompanhou o pai sem questionar. Eu me senti tentada a franzir o rosto, mas
ele permaneceu plácido.
— Senhor, posso lhe pedir uma coisa? — Deitei o olhar sobre a
criança e Mr Luft percebeu que era um assunto para conversarmos a sós.
David soltou Charles e pediu para que ele fosse na frente. Então,
concordou com a cabeça, voltando-se para mim.
— Sei que não é referente a Charles e não quero que pense que estou
reclamando, pois não estou de forma alguma, mas eu não poderia mudar de
quarto?
— O seu quarto tem algo quebrado? Está resfriando ou aquecendo
demais? Está com alguma infestação?
— A janela está quebrada no canto, mas não é por isso senhor…
— Irei pedir para alguém consertá-la. — Ele revirou os olhos,
visivelmente impaciente. — Se é outro motivo não deve ser importante, então
não vejo porque a senhorita ter de se mudar. Não estou certo?
— Sim, senhor. Acho que só foi um capricho meu. — Falei,
voltando a encarar o chão. — Desculpe incomodá-lo por isso.
— Fico feliz que compreendeu. E Miss Evans…
— Senhor?
— Quando falar comigo, lembre-se de olhar em meus olhos. — Em
seu rosto, a sombra de um sorriso se fazia presente. David parecia zombar de
mim.
— Sim, senhor. Lembrarei disso.
Ele seguiu o filho. Eu me apoiei na árvore e previ mais uma noite
atormentada pelos objetos de Anneliza.
O fim de tarde se aproximava rápido. Já que Charles agora estava
com o pai, pensei que talvez pudesse passear um pouco pelos campos e
respirar ar puro, mas afastei logo aquela ideia assim que me lembrei que toda
vez que ficava sozinha, as memórias me atacavam. Era melhor eu entrar
também e me contentar com a vida ali dentro.
Na noite daquele dia, antes de me retirar para dormir e logo após
deixar Charles em seu quarto, Constance me informou que nosso amo
gostaria de me ver. Não havia se passado nem um dia desde nosso acordo,
mas eu desejava com todo coração que ele não estivesse irritado por eu ter
levado o pequeno para o quintal e resolvido me mandar embora.
Devo confessar que me surpreendi quando entrei na salinha e o vi
sentado calmamente em sua poltrona. Uma xícara repousava em seus lábios,
e seus olhos azulados fitavam a lareira.
— Boa noite, meu senhor. — Abaixei a cabeça, cumprimentando-o.
Ele desceu a xícara e virou os olhos em minha direção.
— Boa noite, Miss Evans. Sente-se, por favor. — David maneou a
cabeça apontando o assento e eu me movi vagarosamente até a poltrona-
movediça.
Eu sentei temerosa, equilibrando o corpo para não afundar
novamente. Tentava me arrumar de um jeito que não parecesse que eu estava
com alguma dificuldade, mas David me encarava com um olhar divertido. Ao
fim, acostumei-me com o estofado macio e consegui sentar empertigada.
Depois de minha luta contra a poltrona, encarei-o demoradamente, esperando
que dissesse o porquê de me chamar àquelas horas.
Mr Luft por sua vez parecia mais interessado em me estudar do que
dizer qualquer coisa. Seus olhos me rondavam com uma calma nenhum
pouco peculiar a meu amo. Ele levava o chá à boca, depois pescava alguns
biscoitos no pote na mesinha ao lado. Tudo com uma serenidade que estava
me deixando ainda mais nervosa do que quando ele era arisco.
Aproveitei o silêncio para avaliar um pouco seu estado de espírito e
a falta que Mrs Luft deveria fazer. Eu não conseguia ver tristeza em seu
olhar, como nunca havia visto desde que nos conhecemos. Mas, mesmo o
conhecendo há tão pouco tempo, era visível que algo não estava bem.
— Senhor?
— Gostaria de um pouco de chá, Miss Evans? — Estendeu-me a
xícara sobressalente e me serviu a bebida quente.
— Obrigada. — O silêncio voltou a se apoderar do ambiente. Tive
tempo de beber a primeira xícara antes dele voltar a falar.
— Está vendo uma estante de livros atrás da minha poltrona? — Ele
indagou com os olhos fixos nos meus.
— Sim, meu senhor.
— Levante-se e escolha um livro.
Concordei vagarosamente com a cabeça, deixei a xícara de lado e me
levantei. A estante estava escura, já que a luz da lareira não chegava até ali.
Escolhi um livro a esmo e voltei ao meu lugar. Eu fiz menção de lhe entregá-
lo, mas ele ergueu a mão, pedindo para que eu me mantivesse com ele.
— Leia um pouco para mim.
— Qualquer página, senhor?
— Do início.
Abri o livro em sua primeira página. Era de medicina, escrito todo
em Inglês. Por mais que eu lesse e falasse bem a língua de minha mãe, sabia
que talvez tivesse alguma dificuldade com palavras de vocabulário específico
do ofício. Eu estava certa. Não alcançara nem vinte páginas de leitura e já
havia parado inúmeras vezes para descobrir como pronunciava algumas
palavras.
— Posso escolher outro livro? — Questionei com os olhos baixos. A
face séria de meu patrão zombava de mim, mesmo sua boca e olhos se
mantendo estáveis.
— Não, leia um pouco mais desse.
Eu obedeci sem reclamar. Não adiantaria de nada mesmo. Depois de
mais um tempo de leitura, ele fez sinal para que eu parasse.
— Achou uma leitura fácil, Miss Evans?
— Não, senhor. — Controlei-me para não franzir o cenho e fuzilá-lo
com o olhar. Ele não deveria me tratar daquela maneira e ficar brincando com
a minha dificuldade. Era errado. Era nenhum pouco cordial e esperado de um
bom patrão.
— Por isso Charles deve ter uma boa educação, para não ter a
mesma dificuldade.
— Desculpe, senhor, mas acabou de dizer que eu não tive uma boa
educação? — Meu queixo caiu. Minha expressão era de total perplexidade.
— Não disse. — David continuou me olhando zombeteiramente. —
Está bom por hoje. Boa noite, Miss Evans.
Ergui-me resignada e caminhei rapidamente até a estante, onde
guardei o livro e depois me retirei murmurando um “Boa noite, senhor” sem
nenhuma vontade, deixando claro não estar nenhum pouco contente com o
comportamento dele. Subi as escadas às pressas e bati a porta do quarto em
um ímpeto de fúria.
Ele era meu patrão, eu sabia. Ele poderia me demitir a qualquer
momento, eu sabia. A casa era dele e eu deveria seguir suas ordens, eu sabia.
Mas por que parecia tão motivado a me humilhar? Por que parecia querer me
fazer desistir de ficar ali? Aquilo fazia minha face queimar de raiva.
Eu me arrumei para dormir ainda pensando na raiva que sentia.
Deitei-me na cama e, quase imediatamente, os objetos de Anneliza
começarem a me atormentar.
Capítulo 07

Anneliza parara há pouco de espancar minha parede. Parecia que


finalmente havia desistido de me aborrecer, mas já não era sem tempo. O
relógio de pêndulo na sala acabara de bater meia-noite. Estava muito silêncio
sem os urros dos objetos que voavam no outro quarto. Pensando bem, eu
preferia o som deles ao silêncio pesado da noite. Era assustador pensar que eu
estava em um quarto escuro e um pouco abafado, ao lado de uma ruiva que
poderia me matar a qualquer instante e em um lugar que eu não conhecia.
Eu havia aproveitado o tempo que não conseguia dormir e o restinho
da vela que estava sobre meu baú, para escrever uma carta para Don. Estava
com saudades de conversar com ele e me convencera que deveria deixá-los
sempre informados sobre minha situação.
Conhecer a Inglaterra continuava sendo um sonho para mim. O
caminho do porto até Winterfields me proporcionara lindas paisagens e eu até
caminhara um pouco nesses dias pelos arvoredos perto da casa, mas ainda
não conhecia nada daquele mundo. E agora era como se eu estivesse presa.
Eu havia me acostumado tanto a ficar presa que pouco estranhava.
Minha vida toda passei daquele modo, seja dentro de casa, seja em um
colégio, seja com um noivo nojento e sedento por sexo. Mas, naquele
instante, aquilo começou a me incomodar. Eu fugi para viver tudo o que me
privaram, e notar que estava tudo acontecendo do mesmo jeito era
inquietante. Era como comichões nos dedos do pé ou uma tristeza profunda.
Ou talvez as comichões fossem por conta do frio.
Não era por viver constantemente dentro de um lugar, mas porque eu
não podia compartilhar meus sonhos e desejos com ninguém. Eu me sentia
sozinha, tentando enganar meu cérebro e fazê-lo pensar o contrário.
Identificava-me com Charles: ele se sentia coagido pelo pai a
esconder seus pensamentos, dúvidas, sonhos… No meu caso, não era apenas
um Mr Luft, era um mundo de Davids, Garethes, papais e Heloíses. Parecia
que todos sempre estavam contra minha felicidade.
Primeiro a morte incompreensível de mamãe. Ter acreditado que ela
morrera afogada na banheira. Depois ter me mudado para o colégio. Ter
aceitado me casar… Eu me boicotava ao aceitar as causas de minha tristeza.
A fuga foi a coisa mais certa que fiz em toda minha vida,
infelizmente fui parar embaixo das asas de David, que não é tão mau quanto
Gareth, mas é mais um responsável por arruinar meus sonhos. Sem falar de
Anneliza, mas ela era a que menos me preocupava. Era só mais uma pedra
em meio a tantas outras. Mas David… Por que ele me tratava daquele jeito?
Por que ele parecia querer brincar com o que eu sentia, como se meus
sentimentos não fossem importantes? Por que parecia sentir tanta repulsa?
Nós pouco nos falávamos, mas seu olhar dizia muito.
Contudo, minha promessa ainda vigorava e eu seria feliz, mesmo
não sabendo como. Eu ajudaria Charles a superar tudo o que aconteceu ou
aconteceria e o faria feliz também. Era outra promessa que fizera a mim
mesma.
Passou uma hora e eu não tinha voltado a dormir. Anneliza voltou a
me atormentar.
Então, algo acertou a parede com mais força e fez um barulho tão
alto que meu quarto tremeu. Era hora de acabar com aquilo.
Levantei-me e fui até o quarto ao lado. Bati à porta e, como na
primeira vez, ela não atendeu. Bati outra vez. Nada. Eu não estava com
paciência para aquilo. Abri a porta de uma vez. Ploft!
— Ai! — Levei a mão ao nariz. O livro que me acertou caiu no chão
com um barulho surdo. Olhei pelo meio de meus dedos e vi Anneliza rolando
de rir sobre a cama. — Eu vou acabar de uma vez com isso!
Entrei no quarto, fechei a porta e pulei na direção dela. Ela também
pulou. Encontramo-nos no ar e caímos pesadamente no chão. O que
aconteceu depois foi tão rápido que mal posso descrever. Eu e minha
adversária estávamos rolando, uma puxando o cabelo da outra, quando um
par de mãos me tirou de cima dela.
Serafine nos olhava assustada. Eu carregava uma madeixa vermelha
na mão e Anneliza, uma loira.
— Isso já passou dos limites. — Janet entrou atrás de Serafine. As
duas estavam cansadas e bravas. — Ou vocês acabam com essa rixa idiota,
ou serei obrigada a avisar a Mr Luft que duas de suas empregadas querem se
matar. Façam logo as pazes!
— Eu não. — Anneliza cruzou os braços de um modo infantil e
zangado.
— Nem eu. Eu não sei nem porque ela está agindo desse modo.
— Então não tenho escolha. — Janet empurrou Serafine para fora do
quarto. — Vão ficar trancadas aqui até se comportarem como gente. — Ela
saiu e trancou a porta.
Anneliza proclamou um palavrão e se sentou junto a parede, o mais
longe possível de mim. Eu estava perto da porta e dali dava para escutar Janet
e Serafine conversando: “Onde já se viu…duas mulheres dessa idade
brigando…”
Elas estavam certas. Não sei porque brigávamos, parecíamos duas
crianças mimadas. Acho que eu quis me livrar de algum jeito da tristeza e da
raiva que sentia e Anneliza veio bem a calhar.
Olhei Anneliza, que se encolhia com timidez em um canto. Seu
cabelo bagunçado parecia um ninho de pássaros avermelhado. Levei a mão
ao meu e percebi que não estava muito melhor. Então eu ri. Primeiro
baixinho, intensificando gradativamente.
— Está rindo de mim? — Ela se levantou com o punho fechado.
— Não, estou rindo de nós. Já viu como estamos? — Falei
apontando minha cabeça. Ela sorriu também. — O que viramos? Eu não lhe
odeio nem nada, mas, mesmo assim, estava agarrada a você rolando no chão.
Ela se sentou novamente.
— Eu não sei o que fiz para que me odiasse tanto, mas me desculpa.
Eu só queria que as coisas fossem diferente quando me mudei para cá. Não
queria deixar ninguém com raiva.
— Eu não te odeio. — Declarou baixinho, a cabeça escondida entre
os joelhos. — Pelo menos não diretamente.
Bom, aquilo era realmente uma surpresa.
— Eu odeio os franceses. — Anneliza continuou. — Não por sua
causa, mas por algo que aconteceu quando eu era criança. Não sei se posso te
contar.
— Não vou forçá-la, mas não me importarei em ouvir e ajudar se a
senhorita precisar. Também prometo não julgar se esse for o caso. — Sorri
encorajando-a, e ela realmente se sentiu livre para falar comigo.
— Eu tinha apenas dois anos. Meu pai era um marinheiro francês e
minha mãe, uma empregada em uma estalagem pequena. Nós vivíamos
juntos, mesmo meu pai não estando muito feliz com sua vida aqui na
Inglaterra.
“Não éramos ricos, ao contrário disso. Tínhamos pouco, mas com o
pouco que tínhamos dava para sobreviver. Até aquele fatídico dia em que
minha irmã nasceu. Eu amo muito minha irmã, amo mesmo. Mas acho que se
Serafine não tivesse nascido, estaria tudo perfeito até hoje. Estaríamos todos
juntos.
“Como já disse, eu tinha dois anos, mas me lembro muito bem como
se fosse ontem. Minha irmã nasceu e nossa vida ficou ainda mais difícil, mas
continuava dando para sobreviver. Por isso não entendo a atitude de meu pai.
“Ele se foi. Em uma madrugada, entrou em meu quarto disse adeus e
se foi para sempre.
“Era de se esperar que um miserável daquele não ficasse, mas ele
deixou a mim e a minha irmã recém-nascida. E se mal tínhamos dinheiro com
o salário de nossos dois pais, quem dirá de um só. Foi a época mais horrível
de minha vida. E dez anos se passaram assim. Dez anos demoraram para tudo
realmente ficar ruim.
“Era inverno, nossa casa era de apenas um cômodo e nós dormíamos
no chão de terra batida. Serafine havia acabado de completar dez anos e eu já
tinha doze. Naquela noite em que o frio foi mais intenso, minha mãe morreu
de pneumonia. Ela dormia ao meu lado e eu ouvi, no meio da noite, suas
tosses cessarem. Eu me virei para o lado e acariciei sua face. Ela estava
mortalmente fria. Entendi que daquele momento em diante seria apenas eu e
minha irmã. É assim até hoje.
“Eu achei um emprego como babá. Fiquei só alguns meses até Janet
me trazer para a casa de Mr e Mrs Luft. Eles nos abrigaram.
— Sabe… — Ela continuou com lágrimas nos olhos. — O problema
nem foi ele ter ido embora. Foi que, depois de alguns anos morando longe,
meu pai resolveu aparecer pela Inglaterra. Ele se vestia como rico, tinha se
casado com uma moça loira de olhos verdes e dado a ela um filho. Ele tinha
realmente se esquecido de nós. Nos considerava um nada.
— Eu sinto muito pelo que passou. Deve ter sido horrível ter que
enfrentar isso tão nova. — Comentei de cabeça baixa. — Mas se isso deixa
você mas feliz, eu também tenho muitos motivos para odiar os franceses.
— Por que teria? A senhorita é uma deles.
Meus olhos se fixaram em um ponto invisível. Era inevitável
lembrar de tudo o que aconteceu.
— Digamos que eu não tive um passado muito feliz também. Nem
muitas pessoas que me fizessem feliz.
— Então me conte… — Pediu tentando não mostrar muito interesse,
mas sua curiosidade era visível.
Eu neguei com a cabeça. “Não é nada de mais.” Meus olhos se
tornaram úmidos e eu não quis prosseguir para não me dissolver em lágrimas.
Anneliza notou que deveria ser duro de mais para mim, então não me obrigou
a continuar.

Anneliza estava ao meu lado quando acordei. Tínhamos passado o


resto da noite lendo os livros machucados de tanto serem arremessados contra
a parede. Descobrimos que nós duas tínhamos uma paixão por eles, mesmo a
minha sendo menos violenta do que a dela.
Sentei-me sobre meus joelhos e encarei minha colega. Ela dormia
calmamente. Os cabelos ainda bagunçados.
Uma escova descansava em cima do criado-mudo ao lado da cama.
Peguei-a sem me levantar e pus-me a pentear aqueles longos fios vermelhos.
Ela acordou com o toque.
— Bom dia. — Falei sem interromper o meu trabalho. Ela sorriu e
deixou que eu continuasse. Depois de pentear, deitei a escova ao meu lado e
comecei a trançar. Ela tinha muito cabelo, o que se transformou em uma
trança grande e pesada.
Anneliza se levantou de um pulo e foi se olhar no espelho. Seus
olhos brilharam de felicidade. “Você trança melhor que a minha irmã. Só não
diga para ela que eu te falei isso.” comentou afagando meu trabalho e o
prendendo no coque de trabalho. Eu sorri.
— Acho melhor eu me vestir. Já está quase na hora de trabalhar.
— Ãhn… — Ela apontou para o próprio nariz, mas me olhava
assustada. — Desculpa?
Toquei de leve a ponta de meu nariz e senti a pele entumescida. Foi
a minha vez de ir até o espelho. Ele estava muito inchado e roxo, mas neguei
com a cabeça como se não me importasse.
Alguém rodou a chave do lado de fora. Precipitei-me para a porta e
saí antes que Serafine conseguisse ver o meu nariz.
— Bom dia para a senhorita também. — Serafine falou quase ao
mesmo tempo que eu me trancava no quarto.
Preferi evitar o café da manhã e pedi para que Anneliza levasse o
desjejum de Charles para mim. Ela não reclamou, sabia que era por culpa do
nariz inchado e, consequentemente, sua. Subi apressada até o quarto do
garoto e fechei a porta. Seria horrível encontrar Mr Luft com aquela
aparência.
Charles ainda estava deitado e me olhou assustado quando entrei.
— Bom dia. — Falei deitando a bandeja na mesinha.
— O que aconteceu com o seu nariz? — Apontou seu
indicadorzinho para a minha face.
— Bati na porta… Não se preocupe. Está tudo bem.
— Pede para papai a examinar. — Ele aconselhou, sentando-se para
comer.
— Não é necessário atrapalhar seu pai. — Eu queria dizer que David
não podia saber daquilo, mas evidenciaria minha mentira. Juntei-me a cama e
comecei a dobrar os cobertores.
Como de costume, David entrou no quarto para se despedir do filho.
Eu me virei de costas para eles e continuei trabalhando como se não tivesse o
notado ali.
— Bom trabalho, papai. — Ouvi o beijo de Charles na bochecha do
pai.
Por segundos, senti os olhos de David em minhas costas. Mas então,
ouvi a porta batendo. Não sei se por aqueles instantes ele esperou que eu
dissesse algo, se ele queria me ouvir dizendo algo, mas eu sabia que estivera
olhando para mim antes de sair.
Virei-me para Charles. Ele me olhava desconfiado. Estudei-o
demoradamente antes de falar algo.
— Não quero que seu pai me veja assim. — Ele concordou com a
cabeça e voltou a comer. Calculei quanto tempo ainda faltava para meu prazo
terminar, eu teria muitos dias para conseguir dar o conteúdo programado e
para me divertir com Charles sem me preocupar.
— Pensei que poderíamos começar lendo uma história infantil. Você
gosta de histórias? — Indaguei sorridente. Ele continuava olhando o meu
nariz.
— Não temos livros infantis aqui.
— Como não? Você é uma criança.
— Papai acha que histórias não me deixam mais inteligente. —
Respondeu tristonho.
— E se eu ler para você uma história do meu livro favorito?
— Eu adoraria. — Ele abriu um imenso sorriso.
— E que tal se você for conhecer meu quarto e eu lhe contar a
história lá?
— Tá bom, Sam.
— Você já sabe o que fazer, não é?
— Me vestir e esperar na sala de aula.
— Hoje, espere-me aqui.

Charles estava sentado em meu colo. Nós observávamos a janela.


Meu quarto ficava muito iluminado durante o dia.
— No que você está pensando? — Ele me perguntou.
— Estou pensando como é lindo a queda das folhas durante o
outono.
Ele esticou o pescoço para ver melhor as árvores. Passei as páginas
do livro de mamãe e li duas histórias para ele. A última tratava sobre sonhos
realizados e como tudo poderia ser possível se acreditássemos e déssemos
nosso melhor. Aquela era a minha favorita de todo livro e eu não poderia
deixar de lê-la para o garoto.
— Não acredito em sonhos. — Ele comentou. — Papai disse que
isso é bobagem.
— Não é bobagem não. — Fechei o livro e virei a criança de frente
para mim. — Se você acreditar com força, eles se realizarão. Sonhos são mais
fortes do que imaginamos. São sementinhas plantadas dentro de nós. E, se
soubermos cultivá-las da maneira certa, crescem e nos tomam por completo,
transformando todo o universo dentro e fora de nós.
— Se eu sonhar que quero minha mãe de volta, ela não irá voltar. —
Retorquiu triste.
— Não, mas talvez isso lhe traga outra mãe.
— Uma madrasta?
— Sim, e ela vai ser boa… E você irá gostar muito dela.
— Ela vai ser a senhorita?
Eu engasguei com a pergunta. Levei a mão à boca e tossi várias
vezes dissimulando. Como ele podia perguntar algo como aquilo? Senti-me
insultada, mas logo aquele sentimento se derreteu quando me coloquei no
lugar da criança. Ele queria ser feliz, queria ter como mãe alguém que
gostasse dele e nem ao menos quis se prender ao que aquilo implicava. David
e eu? Aquilo chegava quase a uma anedota.
— Não, meu bem.
— Por que não? A senhorita é divertida, inteligente e parece com a
mamãe.
— Mas antes, seu pai e eu temos que nos gostar muito para nos
casarmos. E ele não gosta muito de mim e eu não gosto… O conheço
direito…
— Mas não precisa ser agora… Pode ser daqui a alguns meses. Eu
vou sonhar com isso todas as noites.
— Charles… Não, meu bem. — Acariciei seus cabelos. — Não
gaste um sonho com isso. Nós acabamos de nos conhecer, como pode pedir
uma coisa dessas?
— Mas parece que eu a conheço a uma eternidade. E você mesma
disse que se sonharmos com força, nossos sonhos se tornariam realidade.
— Disse, não é mesmo? Só não quero que fique triste se esse sonho
não se realizar. Há coisas na vida que nem sonhos resolvem, certo?
— Certo. — Por mais que sua resposta tenha vindo acompanhada de
uma expressão triste, seus olhos faiscavam. Uma pequena chama nomeada
esperança se acendeu dentro dele naquele dia.
Capítulo 08

Era manhã, mas a luz do sol não havia me despertado. Pela


luminosidade, eu já estava atrasada. Sentei-me assustada na cama e olhei pela
janela. O sol estava alto e provavelmente passava das nove. Eu realmente me
atrasara muito. Vesti o primeiro vestido que encontrei. Era rosa, com
babadinhos na barra e me deixava muito semelhante a uma boneca de louça.
Prendi meus cabelos em meu costumeiro coque e saí apressada.
Entrei no quarto de Charles mas ele não estava lá dentro, nem na
sala de aula, nem em qualquer outro lugar. Encostei minha orelha na porta de
Mr Luft, mas não havia nenhum barulho. Parecia que todos da casa haviam
desaparecido e só sobrara eu.
Corri pelo corredor que se findava na escada principal e me virei
para olhar o andar de baixo.
Estavam todos lá. Haviam colocado mais poltronas além da solitária
que existia no salão de entrada. David estava sentado com Charles em seu
colo. Do lado dos dois, Anneliza conversava alegremente com Connie e
Richard abraçava Serafine.
Quando meus pés tocaram os degraus brancos da escadaria de
mármore, todos olharam para mim.
— Desculpe o atraso. Eu não consegui acordar… — Desculpei-me
com o rosto queimando de vergonha. Eles não falaram nada, apenas sorriram.
Até Mr Luft sorria, e o seu sorriso era encantador. Senti-me alegre, tão alegre
que meu corpo pareceu ficar mais leve, como se eu pudesse voar. Era um
sentimento bom e eu não queria deixar de senti-lo.
Desci o primeiro degrau. Todos que estavam na sala pararam de
sorrir e olharam para algo além de mim. Virei-me, mas não havia ninguém
ali. Porém, eu senti mãos fortes me empurrando para trás. E eu caí.
O cenário ficou escuro e a única coisa que eu sentia era o vento em
meu rosto. A escada não estava mais lá, mas eu ainda caía e parecia que
nunca pararia
Senti um par de braços me segurando pela cintura.
Acordei assustada. Eu suava e arfava desesperadamente. Havia algo
na frente de meus olhos e grudado ao meu nariz. Levei as mãos até o rosto e
senti as ataduras. Desenrolei-as vagarosamente.
A luz ofuscou meus olhos. Fechei-os rapidamente e só voltei a abri-
los quando me acostumei com a claridade. O quarto em que estava não era o
meu, nem o de Charles, nem o de Anneliza. Eu nunca estive nele antes.
— Não deveria ter tirado o curativo. — Uma voz masculina veio do
meu lado. Uma mão pegou o curativo de meus dedos e o colocou novamente
em meu nariz. — Tapei seus olhos para a senhorita não acordar com a
claridade. Como machucou esse nariz? — Seus olhos azuis estavam um
pouco mais claros.
Eu demorei a responder, já que ainda estava ressentida pela noite
anterior, mas seu semblante necessitava urgentemente de uma resposta.
Amoleci após perceber que estava preocupado de verdade.
— Alguém me acertou um livro no rosto. — Respondi sem coragem
de mentir.
— Devia ter vindo até mim quando se machucou.
— Não queria incomodar o senhor.
— A senhorita poderia ficar com o nariz roxo para sempre. — David
se afastou novamente. — E devia também ter me contado que era sonâmbula.
— Ele iria sarar mais cedo ou mais tarde. — Fixei os olhos nele, mas
estava envergonhada demais para me sentir bem daquele jeito. — E não
contei porque minhas crises de sonambulismo só acontecem quando estou
muito nervosa. Não é algo que eu fique me vangloriando por aí.
— Então a senhorita estava muito, muito nervosa porque chegou até
a escada do salão de entrada. — Deu de ombros, mas tinha algo em sua
expressão que demonstrava mais interesse. — Teve sorte que eu acordei com
seus passos, senão a senhorita teria caído…
— Obrigada. — Sorri, mas acho que o curativo escondia minha boca
também. — É melhor eu voltar para o quarto…
— Não! — David falou apressado. Eu me assustei, detendo meu
corpo no mesmo instante. — O remédio que passei em seu nariz irá lhe
deixar um pouco tonta. É melhor você passar a noite aqui.
— Senhor? Isso não é certo… Onde o senhor irá dormir?
— Eu ficarei bem. Mas a senhorita pode cair… A não ser que… —
Encarou-me de esguelha. Algo parecido com um sorriso se formou em seus
lábios.
— A não ser que…? — Perguntei assustada. Sua expressão estava
começando a me dar medo.
David se levantou e veio até mim. Esticou seus braços e me pegou
no colo. Eu soltei um grito fino e assustado, joguei meus braços ao redor do
pescoço de meu patrão e juntei meu corpo ao dele, a princípio por medo de
cair, mas depois eu comecei a gostar daquela posição.
Ele me carregou para fora do quarto. Eu queria encostar o rosto em
seu peito e sentir melhor o perfume que driblava o cheiro forte do remédio e
me deixava apaixonada por aquele rosto sério e com barba bem feita.
Apaixonada? Era aquilo que estava acontecendo mesmo?
Pensando bem, casar-me com Mr Luft não era a pior das ideias e, a
partir daquele momento, eu comecei a sonhar com aquilo também.
Eu sabia bem como aquilo era errado, mas eu estava muito
atordoada para entender alguma coisa. Ele me carregava com carinho e eu
gostava imensamente daquele toque. Sentia-me aninhada em seus braços,
protegida como nunca antes. Sentia como se ele fosse meu porto seguro. Eu
estava mesmo muito atordoada.
Chegando ao meu quarto, ele me deitou na cama. Arrumou o
curativo pela última vez e saiu.
Eu sorri sonhadoramente para a porta fechada.

A manhã estava nublada, o que não combinava muito com meus


sentimentos. Apalpei o nariz e senti o curativo. Não fora um sonho. Tudo o
que havia acontecido na noite anterior foi realidade. Mas fora perfeito como
um sonho.
Desci muito cedo e fui levar a carta aos correios. Na volta, encontrei
Mr Luft sentado em um banco de pedra embaixo de uma velha árvore.
David estava com os olhos vagos, encarava alguma coisa que eu não
conseguia ver e permanecia sério como de costume. Minha análise de meu
amo, depois de descobrir sobre Patrícia, intensificou-se. Ele sempre
atravessava os corredores com muita pressa, a cabeça erguida e os olhos
inabalavelmente olhando para frente. Não olhava para mim, mesmo quando o
cumprimentava.
Mesmo assim, eu continuava sem ver tristeza em sua face. Ele
apenas parecia distante. Não conseguia me comover da mesma maneira que
Charles.
Parei longe dele e fiquei observando-o. Eu não conseguia parar de
pensar nele depois da noite anterior e me sentia feliz por ter ele tão perto
naquele instante. Eu podia observá-lo o quanto quisesse sem me sentir
constrangida com seus olhos presos a mim.
Contudo, não sei o que me deu, caminhei lentamente até o banco e
me sentei ao seu lado. Ele se assustou com a minha presença e me encarou
demoradamente. Eu já não mais olhava para ele, estava com os olhos
voltados para a linda casa de Winterfields. Eu sabia que minhas bochechas
estavam rubras e que um sorriso constrangido se formou em meus lábios, mas
eu me sentia bem ali ao lado dele.
Por mais que estivesse tentada a abrir a boca e falar qualquer coisa,
só para acabar com o silêncio e fazer com que ele conversasse, não o fiz. Pelo
menos não de imediato. David não gostava quando eu falava muito e não
seria eu a interromper mais uma vez seus pensamentos.
— Espero que não chova. — Comentei baixinho. Ele ainda me
encarava como se buscasse saber o porquê de eu estar ali. — O senhor
parecia tão solitário aqui. — Virei-me finalmente para ele. Mr Luft voltou a
olhar para frente. Ergui-me constrangida pelo seu descaso. — Desculpe
atrapalhá-lo. Tenha um bom dia, meu senhor.
Caminhei apressadamente para dentro de casa. Eu sentia os olhos de
meu patrão presos a minha nuca, mas não me virei.
Subi novamente para me trocar e desci dançando de alegria para a
cozinha. Janet e Anneliza conversavam. Elas me perguntaram o motivo de
tanta animação, mas eu preferi dizer apenas que havia acordado feliz naquela
manhã.
Anneliza encarou o curativo em meu nariz e abaixou os olhos com
uma expressão de culpa. Mal ela sabia que eu estava agradecendo pelo
machucado.
Os outros empregados foram chegando, uns sorriam para mim,
outros faziam comentários sobre meu nariz e me perguntavam o que
acontecera.
— Nada de mais. — Respondi sorridente.
— Ele está imobilizado. — Serafine comentou. — Deve ter sido
algo sério.
— Não se preocupem, está tudo bem. — Eu terminei meu desjejum
e peguei a bandeja com o do pequeno. Percebi que não havia outra bandeja,
como de costume. — Mr Luft já tomou café?
— Não, ele saiu bem cedo para trabalhar. — Constance respondeu,
rindo de minha curiosidade. — Ele parecia um pouco preocupado quando
subiu na carruagem.
— Hum… — Estreitei os olhos. Será que ele havia ficado zangado
comigo? Segurei a bandeja com força e subi.
Charles olhava a chuva descer por sua janela. Parecia entediado,
porém assim que me viu pulou alegre em minha direção.
— Bom dia. — Ele se sentou à mesa. Deitei a bandeja e lhe beijei a
cabeça.
— Bom dia, meu bem. Como foi a noite?
— Boa, e a sua, Sam?
— Maravilhosa.
— A senhorita está feliz. — Ele alargou o sorriso.
— E o senhorzinho não está?
— Papai veio aqui mais cedo se despedir. — Ele comentou com os
olhos no prato. — Ele parecia preocupado, talvez triste.
— E você está preocupado com o papai?
— Sim… Ele nunca ficou assim. Acho que isso não é uma coisa
muito boa.
— Ele é grande, Charles. Sabe se cuidar. Não se preocupe, tudo
ficará bem… — O silêncio caiu pesado. Eu tinha os olhos presos no rosto da
criança, mas minha mente já estava bem longe dali. O que eu fizera de errado
daquela vez? Por que David ficou triste? Voltei a mim quando Charles
balançou meu braço. — Se já acabou, acho melhor nos arrumarmos para a
aula.
— Está bem…
-

Passei a manhã e a tarde pensando em David. Não exatamente nele,


mas em seu comportamento. Eu sabia que era tudo culpa minha. Culpa minha
e de meu dom de me intrometer nas coisas em que não era chamada.
Ele voltou no horário de costume. Constance pediu para eu ir até a
sala de estar, por ordens de David. Obedeci de imediato e o encontrei da
mesma forma que da última vez.
— Boa noite, senhor. — Cumprimentei à entrada.
— Pegue o mesmo livro e se sente, Miss Evans. — Ele não desviou
o olhar das chamas. Obedeci e me sentei a sua frente. — Leia de onde parou.
Eu me esforcei ainda mais para conseguir pronunciar todas as
palavras com perfeição, já que algumas eram repetidas das primeiras páginas.
Subi ligeiramente os olhos para meu amo e o pegue encarando a lareira com
um sorriso de deboche. Minha face se tornou rubra e eu fechei o livro.
— Continue. — Ele ordenou com raiva, seu sorriso desapareceu e
seus olhos me observaram de esguelha.
— Eu sou uma brincadeira, senhor?
— Como disse?
— Só quero que o senhor diga se eu lhe divirto por não saber
pronunciar essas palavras tão difíceis. — Minha raiva deu lugar a indignação.
Meus olhos marearam e eu senti uma imensa vontade de correr para longe.
Como consegui me apaixonar, nem que minimamente, por uma pessoa que
sentia prazer em me humilhar? Como passei o dia feliz por gostar dele e
preocupada com seu comportamento? — Eu não deixo de ser inteligente ou
capacitada só porque não consigo pronunciá-las, não me trate como se eu
fosse apenas um jogo.
— Não é um jogo. — Sua face ficou lívida, mas logo recuperou a
cor. — Não queria que a senhorita pensasse que estou a usando só para me
divertir com as suas falhas.
— Então por que estou aqui?
Ele ficou calado. Seu olhar correu o meu rosto e depois se fixou em
meus olhos. Deve ter notado as lágrimas que se formaram, já que sua
expressão voltou a ficar assustada. “Está chorando por causa disso?” David
comentou baixinho. Sequei rapidamente os olhos e neguei com a cabeça.
— Está chorando sim. Mesmo com esse curativo, eu consigo ver
seus olhos, Samantha.
— Não estou chorando por causa disso. — Ergui-me
impetuosamente. Eu de fato não estava chorando pelo seu comportamento.
Estava me odiando por ter gostado dele um pouco que fosse. Ele não merecia
minha afeição. Eu não merecia me preocupar com ele.
Caminhei rapidamente em direção à estante. Ele segurou meu pulso
com força quando passei por ele. “Não se chateei por conta disso. Não estava
me divertindo às suas custas, só queria ouvi-la ler. Por nenhum segundo
sequer me diverti com seus erros, longe de mim julgá-la por isso. Se preferir,
escolha outro livro e leia.”
— Prefiro me retirar esta noite, senhor. — Sequei novamente os
olhos. — Amanhã posso voltar, mas não esta noite.
Ele concordou com a cabeça e me largou.
Eu voltei nas noites seguintes, mas adiantei-me e escolhi meu
próprio livro de histórias infantis para ler. Mr Luft não ficou muito contente
com a minha escolha, mas não pediu para que eu escolhesse outro ou me
impediu de lê-lo. David pouco prestava atenção em minhas palavras, ficava
mais entretido em rabiscar algo em seu bloquinho. Eu, por minha vez, tentava
prestar o máximo de atenção em minha tarefa, mas a curiosidade me fazia
desviar os olhos para o que ele escrevia, mesmo que eu não conseguisse
entender nada ali escrito.
Li todos os dias até meu livro de histórias terminar. Por vezes, descia
mais cedo acompanhada de Charles e ficávamos os três na sala tomando chá
e lendo.
Na noite em que o último conto foi lido, não me contive com o
silêncio que se estendeu depois de meu término. Estávamos só nós dois
naquela noite e eu acabei minha leitura muito mais cedo. Mr Luft estava mais
pensativo do que de costume e, em sua face, uma expressão triste se fazia
presente.
— O senhor teve um bom dia?
— Hm?! — Retirou os olhos do bloco e me encarou. — Sim,
obrigado.
— Parece preocupado com alguma coisa. Desde o dia que eu quase
caí da escada e o senhor me ajudou com o nariz. — Apontei meu nariz que há
muito havia se livrado do curativo.
— Não estou. Estou apenas pensando. E não gosto quando alguém
me interrompe a pensar. — Fez-se silêncio novamente, mas eu não queria
que ficasse daquele jeito.
— Ah! Eu sinto muito lhe forçar a afastar seus pensamentos, mas…
O senhor parece sempre distante. Não pode deixá-los de lado por um
momento sequer?
— O que tanto lhe interessa falar para me dar o trabalho de deixá-los
de lado?
— Não sei. Na verdade, meu senhor, eu estava pensando no que o
senhor gostaria de falar. — Sorri carinhosamente, mantendo os olhos
distantes da face dele, já que sabia que me envergonharia de minhas palavras
se conseguisse ver seu olhar carrancudo. — Eu estou aqui há quase duas
semanas e nesse tempo todo, não o vi tendo muito contato com as pessoas
daqui. Não quero que pense, porém, que estou dizendo que não é um bom
amo e que não se importa com seus empregados, o que não seria verdade, já
que os trata como parte da família. Só me assusta e entristece vê-lo todas as
manhãs sentado sozinho no quintal, ou tão indiferente ou distante quando
anda pelos corredores. Nem o pequeno Charles parece escapar e ele sente
esse seu distanciamento. Ele e o senhor, devo dizer, precisam conversar com
alguém. Eu sei que a perda foi… — Calei-me de imediato. David não sabia
que eu conhecia seu passado. Virei meus olhos finalmente para ele e me
deparei com dois pontos azuis coléricos.
— A senhorita parece estar bem a par da situação. — Sua voz era
embebida por dor, sofrimento e raiva. — Andou conversando com alguém ao
meu respeito? Escutando pelas paredes?
— Não, Mr Luft. Eu… Bem… Não se chateie, mas eu conversei
com Charles sobre isso. Ele estava muito abalado e pediu para que eu o
ouvisse.
— Eu tinha pedido a ele para não falar para ninguém. — Seu olhar
faiscou e uma sombra negra cruzou sua face. — Não posso nem mais confiar
em meu próprio filho!
— Meu senhor — Eu falei calmamente. — Charles é apenas uma
criança, ele podia ser pequeno na época que sua esposa faleceu, mas também
sentiu sua perda. Não deve forçá-lo a guardar suas dores só porque o senhor
não consegue lidar com as suas.
— Eu superei as minhas. Charles tem que aprender a fazer o mesmo.
— Superou? — Suprimi uma risada. — Bom, sendo assim, acho que
minhas preocupações não são necessárias. Sinto muito tê-lo atrapalhado os
pensamentos com minhas inquietações. Só espero que realmente tenha
superado e esteja bem.
— Acho que já está na hora da senhorita subir.
— Sim, está mesmo. Sinto muito por lhe externar minhas
preocupações. Boa noite, Mr Luft. — Fiz uma breve reverência e me retirei.
David deu um soco no braço da poltrona.

Charles estava inquieto no dia seguinte. Eu temi que Mr Luft tivesse


feito algo contra o filho por eu ter dito que fora a criança quem me contou
sobre Patrícia, mas o próprio garoto me disse que não era nada daquilo. Ele
estava novamente preocupado com o pai, já que naquela manhã ele não havia
aparecido para se despedir e saíra ainda mais cedo do que de costume – mais
cedo até do que minha caminhada até os correios.
Convencera-me que não deveria me culpar pelo comportamento de
meu amo, mas, no fundo, eu sabia que era eu a única culpada. David me
alertara que não gostava quando eu falava demais, e eu nunca consegui conter
minhas palavras. Dessa vez, pensei que ele me entenderia e nem me importei
com meus modos. Pensei que entenderia que eu queria apenas ajudá-lo, mas
acho que sua mente estava muito fechada no que ele desejava, ou esperava
que as pessoas fizessem.
Mr Luft chegou mais tarde do que de costume. Eu havia acabado de
deixar Charles quando cruzamos no corredor.
— Boa noite, senhor. — Desejei em bom tom, abaixando ainda mais
minha cabeça em minha costumeira mesura.
Ele estava com os olhos fundos, brilhantes de algo que eu não sabia
o que era. Pelo modo que andava, eu diria que estivera bebendo.
— O senhor está bem?
— Sim, sim. — Respondeu impaciente. — Acho melhor a senhorita
subir e ir dormir logo… E se eu fosse você, trancaria a porta para não tentar
se matar novamente.
Deixei meu queixo cair. A voz de David pingava veneno. Ele estava
sendo mais rude do que nunca.
— Senhor… Está bêbado… É melhor… — Objetivei
verdadeiramente preocupada. Por mais que ele me odiasse, ou sei lá o que
sentia por mim, não acho que falaria comigo daquela maneira a menos que
estivesse fora de si.
— Não me xingue de bêbado! — David se estressou.
— Não xinguei, o senhor está bêbado. Precisa ir para o quarto
descansar. — Segurei-o delicadamente pelo ombro. Nossos olhos se
encontraram por um instante. Ele me encarou com tanta veemência que senti
o gelo de seu olhar correr dentro de mim.
— Não encoste em mim! — Ele empurrou minha mão com violência
para o lado. Ergueu a mão, o dedo em riste. — Não me venha com essa
conversa falsa de quem se importa. Você não passa de uma criança malcriada
que gosta de se meter na vida dos outros. Sua falsidade me enoja! O que você
entende da vida? Não entende nem o que é certo e errado, quanto mais o que
eu sinto. Pelo que passou para achar que está com razão quando diz que eu
não consegui superar a morte de Patrícia? Não entende nada!
— Não diga isso… — As lágrimas surgiram em minha face,
timidamente, escorrendo pelas sardas e se acumulando no queixo. Quem era
ele para falar que eu não entendia nada?
— Digo sim. E digo mais! Você mesma não disse que preciso
conversar com alguém? Pois bem! Maldito foi o dia que lhe coloquei dentro
da minha casa! — Ele gritava e sua voz ecoava por toda mansão. David dava
ênfase em algumas palavras, apenas para deixar claro que eu deveria me
manter calada. — Uma criatura mimada, que vive em seus continhos de fada
e acha que tudo tem que ser do seu jeito. Pois eu tenho uma novidade para a
senhorita: nada é do seu jeito. A casa é minha. As coisas são do meu jeito! E
eu estou pouco me importando se você não vai ter para onde ir quando eu
demiti-la, pois só assim para a senhorita aprender que a vida não é o mar de
rosas que você fantasia ser…
David balançava o dedo a centímetros de mim, fazendo-me encolher
cada vez mais e me sentir mais e mais humilhada. Eu não tinha palavras para
me defender. Estava estagnada, chorando baixo e engolindo todas as palavras
que ele proferia.
— Sabe o que você é? É a culpada por tudo! Por tudo!
Ele me agarrou pelos ombros e me chacoalhou furiosamente. Eu
tentava me manter de pé, mas sua força era tanta que até minhas pernas
perderam o equilíbrio. Seus olhos perfuravam minha alma, invadindo meu
corpo com toda sua raiva e confusão.
Só me largou quando Constance apareceu para descobrir o que
estava acontecendo. Como suas mãos me deixaram em pleno movimento, não
consegui me manter de pé e fui jogada contra a parede, colidindo sobre o
braço esquerdo e fazendo, simultaneamente, um esgar de dor.
— Mas o que é isso?! — Connie agarrou David pelo braço e o
afastou de mim. Sentei-me sobre meus joelhos e abaixei a cabeça, chorando
em silêncio. Ela tentava enxotar o amo para o quarto, enquanto ele
continuava apontando o dedo para mim.
— Eu não quero que ela me faça sentir tudo de novo! — David
gritou já longe. Ele parecia tão transtornado quanto eu, senão mais. Parou o
escândalo por um momento e olhou para algo atrás de mim.
Virei-me para saber o que o fizera parar. A porta do quarto do
pequeno estava aberta e Charles me olhava com lágrimas nos olhos.
Sequei rapidamente o rosto e tratei de esboçar um sorriso. Ele
colocou a mão nos olhos e correu para dentro do quarto. Ergui-me apressada
e o segui.
A criança estava com a cabeça escondida sob o travesseiro. Chorava
baixinho, tentando abafar seus soluços. Sentei-me ao seu lado e o afaguei as
costas.
— Está tudo bem, querido. Não precisa chorar.
— A culpa foi minha! — Ele respondeu. Sua voz estava fraca e
entrecortada por soluços. — Ontem eu falei que queria uma nova mãe. Por
mim ele brigou com a senhorita.
— Querido — Afaguei seus cabelos. — não se culpe por isso.
— Eu queria que ele voltasse a ser feliz. — Girou o rosto em minha
direção. Beijei sua testa. — Queria que nós três fossemos felizes juntos.
— Eu também queria… — E percebendo o que eu havia acabado de
dizer completei: — Que você e seu pai fossem felizes.
— A senhorita não vai me deixar, não é?
— Eu… — Hesitei. Depois do ocorrido, não sabia o que David
guardava para mim, e ainda estava perplexa demais para saber o que eu
guardava para ele. — Não sei querido… — E tratei logo de mudar de
assunto: — Está ficando tarde, é melhor ir dormir.
— Me conta uma história? — Ele suplicou, suas mãos agarraram
minhas mangas, forçando-me a ficar.
— Claro. — Beijei novamente a testa.

Anneliza me esperava na porta do meu quarto. Trazia uma xícara de


chá em uma mão e biscoitos na outra.
— Connie pediu para que eu lhe trouxesse. — Sorriu de lado. Ela
queria falar algo para me reconfortar, mas não conseguia achar as palavras.
— Obrigada. — Abri a porta e fiz um gesto pedindo que entrasse.
Ela obedeceu.
Peguei o chá e beberiquei. Ela se sentou a minha frente, com o pote
de biscoitos entre os dedos e uma expressão penosa na face. Senti que queria
me abraçar, falar que estava tudo bem, mas apenas disse:
— David nunca foi assim. Não leve para o lado pessoal… Ele bebe
às vezes, mas nunca veio assim para casa.
— Acho que é em parte por minha culpa. Por ter tentado conversar
com ele e ter posto um sonho ridículo na cabeça de Charles.
— Que sonho?
— Bom… Que talvez o pai dele devesse se casar novamente. E
Charles quer que ele se case comigo.
— E a senhorita?
— Eu falei para ele não sonhar com coisas muito impossíveis.
— Não! — Ela riu. — Eu quero saber o que acha de se casar com
David.
Eu fiquei vermelha. Levei a xícara novamente aos lábios e virei o
rosto. Liza tirou suas próprias conclusões, riu baixo e me abraçou com
carinho. Estávamos finalmente nos entendendo e nem parecia que passamos
longos dias nos estranhando. Agora era como se fossemos amigas de longa
data.
— Acho que agora nada mais importa, não é mesmo? Não depois do
jeito que ele me tratou.
— Mas antes? O que sentia por ele?
— Não era amor, se é isso que quer saber. Porém… Algo nele me
encantava, mesmo com as frequentes chateações. É só uma paixão boba. —
Confessei. Eu não poderia dizer a profundidade de meus sentimentos, já que
nem eu mesma sabia. Era tudo muito novo e repentino. — Além do mais,
porque ele se casaria comigo? Sou apenas a governanta que pode ser
maltratada por qualquer homem, a qualquer hora. Queria que não me
tratassem como um brinquedo… E depois de hoje não sei mais o que achar.
— Se você acha isso de si mesma, por que as pessoas iriam tratá-la
diferente? — Ela sussurrou. — A senhorita tem que confiar em você mesma,
fazer os outros verem que você não pode nem deve ser usada como eles
querem.
Concordei com a cabeça. Meu interior se emocionava por finalmente
ter alguém para me acalentar e dizer que eu não estava errada como os outros
me faziam acreditar. Ela bagunçou meus cabelos com a mão livre. Eu sorri.
— Preciso ir. Tente descansar, depois eu falo com Mr Luft…
— Não, se ele se importar, virá falar comigo.
— Então, boa noite, Sam.
Saiu do quarto sorrindo carinhosamente. “Boa noite, Liza.”
Deitei-me e fiquei encarando o teto. Era duro perceber que minha
vida era o oposto de perfeita. Em todos os lugares aonde eu ia, as coisas só
ficavam mais e mais difíceis. Pensei que eu seria feliz morando ali, que não
me repreenderiam pelo fato de ser mulher ou simplesmente existir.
Fechei os olhos e deixei uma lágrima escorrer. Eu não deveria
continuar naquela casa, não depois de ter sido tão humilhada pelo meu
patrão. David poderia estar bêbado, triste e confuso, mas, se eu permanecesse
em Winterfields, era como se dissesse que eu era submissa e não me
importava em sofrer às custas de uma fraqueza masculina, além de
compactuar com tudo o que disse.
Mas para onde eu iria? Não tinha dinheiro suficiente, não tinha casa
e se eu voltasse para a França, seria espancada por papai e Gareth.
Meu braço esquerdo latejou em ritmo de advertência, mostrando-me
o que aconteceria se voltasse à tortura dos braços de Gareth.
Sentei-me sobre os lençóis e estudei novamente meu quarto.
Examinei-o intensamente, deliciando-me com os detalhes que não havia
notado antes. Mesmo tendo uma aparência mais decadente do que os outros
quartos, parecia um pouco mais novo do que estes como se tivesse sido
reformado há pouco tempo. O papel de parede estava limpo e novo. Os
móveis tinham um aspecto de recém-adquirido. A janela fora consertada a
pedido de Mr Luft.
Era um quarto até bonito se apreciado com cuidado. Fechei os olhos
e tentei recordar meu antigo quarto. Era quase impossível agora.
Eu não podia voltar, por mais que não quisesse largar mão de minha
dignidade e sucumbir ao comportamento de David.
Voltei a me deitar. Eu já não me esforçava para não chorar. As
lágrimas não mais questionavam surgir. Elas só surgiam. Fechei os olhos com
mais força e, pouco tempo depois, dormi.
Capítulo 09

Os primeiros raios de sol acertaram meu rosto, mas deixei meu


corpo ficar envolvido naquele estupor denominado preguiça. Era sábado,
acho que eu merecia um descanso depois de uma semana confusa e de minha
noite de sexta-feira. Fechei os olhos e tentei dormir mais um pouco. Meu
corpo começou a latejar ritmicamente e eu não senti mais ânimo, ou a falta
dele, para permanecer na cama.
Levantei-me ainda anestesiada pela noite e me sentei de cabeça
baixa. Meus cabelos desciam em caracóis até um pouco antes de minhas
pernas. Parecia uma vida desde que decidi os manter sempre presos, mas já
estava com saudade de senti-los aquecendo minha nuca.
Alguém bateu à porta. Com uma voz alta e trêmula, pedi que
entrasse. Connie abriu a passagem, entretanto, não entrou, encarou-me por
segundos e declarou em alto e bom tom:
— O amo fez o teste com o pequeno Charles. — Ela ficou séria.
Aquelas palavras me atropelaram como uma carruagem atropela a uma
pessoa. Já era o dia do teste e eu havia esquecido completamente. — Mr Luft
gostaria de falar com a senhorita.
— Sim. Poderia avisá-lo que apenas preciso me arrumar e logo
desço?
— Claro, Sam. Ele está na sala de estar. Tente não demorar muito.
— Dizendo isso, ela fechou a porta.
Oscilei a cabeça como se quisesse acordar de um pesadelo. Depois
de uma noite tomada pela insônia, parecia até uma boa ideia ir embora,
contudo, não graças ao meu trabalho. Arrumei-me depressa e desci para a
sala de estar.
David estava sentado como na vez que nos conhecemos. Seus olhos
rodaram pela sala e pousaram em mim. Ele estava sério como sempre fora.
— Queria falar comigo, senhor? — Perguntei tomada de receio. Eu
falava sonolenta como nunca. Ele não comentou, porém era visível que havia
notado.
— Sim, Miss Evans. — Respondeu calmo, com a voz fluindo
lentamente. — Sente-se.
— Prefiro não me sentar. — Repliquei. — O que falarei será rápido.
Quero me demitir.
Ele ficou assustado e eu também. Não me lembrou o que passou pela
minha cabeça para eu falar aquilo. O que eu acabei de fazer? O rosto de
David se tornou lívido. Ficara claro que não era aquele o motivo da conversa,
mas eu já não podia voltar atrás.
— Eu entendo o seu pedido de demissão. — Pela primeira vez ele
foi o primeiro a desviar o olhar e abaixar os olhos. — Sinto muito mesmo por
ontem, Sam. Eu simplesmente me descontrolei e liberei minhas frustrações na
primeira pessoa que vi. E infelizmente, foi na senhorita.
— Senhor, não quero ser tratada como alguém que merece ser
humilhada. Por mais que muitas mulheres não se importem, não acho certo
um homem se achar no direito de falar o que quer e machucar alguém assim.
Sei que não mereço passar por isso. — Eu tentava continuar séria, mesmo
deliciando-me com o fato de David ter me chamado de Sam. — Não quero
que me agridam…
— Compreendo sua situação. Acho que nenhuma pessoa mereça
passar por qualquer tipo de agressão. Peço seu perdão. Não a impedirei de ir
embora, porém, quero que me perdoe. Não sou aquele homem.
— Acredito, senhor. E o perdoou. Mas não acho certo ficar… Eu já
tenho um bom histórico com pessoas que julgavam ser certo me tratar aos
gritos e normalmente não ficavam só nisso.
— Longe de mim pensar em fazer qualquer coisa com você. — Ele
parecia verdadeiramente chateado, como seu eu tivesse acabado de tratá-lo
como o monstro que não era. Mudou de assunto depois de longos segundo
em silêncio. — A senhorita foi a melhor professora que Charles já teve. E,
pela primeira vez em muito tempo, eu vi meu filho sorrir. Sei que não fui um
bom pai esses anos todos, mas eu não consigo…
— Não acho que o senhor não tenha sido um bom pai. Mas acho que
está triste e confuso. Não é bebendo que o senhor esquecerá de tudo. Talvez
por hora, mas não depois…
— Sei que beber não é o caminho, mas não tenho muita escolha. —
David elevou a voz como de costume. Controlava-se para parecer que não
estava zangado, mas eu sabia muito bem que ele não gostava do meu tom de
voz. Suspirei ruidosamente, estava zangada com ele também, mas ele ainda
era o superior naquela situação e eu deveria me manter em minha posição.
— Todos temos escolhas. O senhor talvez precise apenas de alguém
com quem desabafar e receber concelhos.
— Com quem eu conversaria? As pessoas dessa casa não
entenderiam.
— Não entenderiam como é perder uma pessoa amada? Acho que
muitos aqui já sofreram muito na vida também. — Tentei sorrir o mais
carinhosamente que consegui, mas eu sabia que o sorriso pareceu mais uma
zombaria. — Não questiono suas dores e não as menosprezo. Mas também
acho que não é se prendendo a elas que conseguirá se libertar.
Fez-se um silêncio mortificante. Ele me encarava sério como de
costume. Lembrei de minha mãe e da perda de David e Charles. Eu não
consegui impedir meus olhos de ficarem úmidos.
— Não só o senhor sofre. Charles também…
— Imploro que fique um pouco mais. — Cortou-me.
— Pensei que não iria me impedir de partir.
— Não irei, só peço que pense mais um pouco. Dê-me a resposta ao
final do dia. Não estou pedindo por mim, mas por Charles. Se isso não basta,
faço verbalmente a promessa que nunca mais irei fazer nada contra a
senhorita. E se eu fizer, pode correr até a guarda para que me prendam como
louco.
Respondi com meu silêncio. Seus olhos começaram a me vasculhar
novamente. Senti um calafrio gostoso e por impulso concordei com a cabeça.
— Darei uma resposta ao fim do dia. — Respondi, um pouco mais
acordada e séria.
Fiquei ponderando o pedido de David. Ele aparentava ser verdadeiro
em sua súplica. Demonstrava satisfação misturada a culpa e parecia
orgulhoso de mim, mesmo um pouco desesperado. Pela primeira vez,
comportei-me como adulta perto dele, talvez ele ainda me achasse infantil,
contudo, não como antes.
Entreabri a porta de Charles. Ele não me notou, continuou
rabiscando com uma estranha agressividade uma folha branca. Seus olhos
estavam fundos, pareciam tristes. Eu sabia que Charles não era uma criança
feliz. Ele ficava sério e distante às vezes e seus olhos perdiam aquele brilho
peculiar a idade, mas tentava demonstrar o contrário e aquilo me doía.
Eu teria coragem de deixá-lo? Apaixonei-me pelo seu jeito carinhoso
e inteligente de ser. Ele me deixava feliz e o que eu podia dar em troca era a
sua felicidade. Não teria coragem de ir e abandoná-lo do jeito que estava.
Teria?
— Bom dia! — Falei sorridente, saindo de perto da porta e a
fechando com um estalo. — Fiquei sabendo que foi bem no teste de seu pai.
— Ele está orgulhoso de mim. — Sorriu em minha direção. — Mas
acho que não me importo se ele está orgulhoso ou não. Já que ontem…
— Seu pai não fez aquilo porque quis, mas as pessoas ficam
transtornadas às vezes. — Afaguei suas bochechas, mesmo sabendo que nem
eu acreditava naquelas palavras. — Ele me pediu desculpas, meu bem. E eu
as aceitei.
— Papai nunca foi assim, Sam. Ele era divertido, ele sorria… Antes
ele me amava mais do que agora.
— Não diga isso! Ele o ama e eu já lhe disse. Só tem um jeito
diferente de demonstrar, mas se preocupa muito com você e o quer bem.
Serafine entrou no quarto trazendo uma pilha de roupas limpas.
Sorriu para nós e se dirigiu à cômoda.
— Não tomou seu desjejum hoje, Miss Evans? — Ela falou de
costas para nós.
— Não, esqueci. Fui falar com Mr Luft esta manhã…
— Deveria comer algo, Sam. — Charles comentou. — Ou irá
adoecer.
— O pequeno está certo. — A moça se virou para mim com as mãos
na cintura.
— Não se preocupem, papai e mamãe. Mais tarde eu como algo.
Não estou com fome agora. — Alarguei o sorriso, ainda mais infantil.
Charles riu de minha expressão e Serafine não se convenceu.
— Mas não se esqueça de comer. Falando nisso… — Serafine
pensou um pouco. — Connie a convidou para almoçar na casa dela hoje.
— Onde seria a casa da senhora Constance?
— Nos fundos. — Ela riu de minha ignorância. Andou acelerada até
a porta resmungando baixinho que tinha muito o que fazer, parou virada para
nós. — Quando sair pela porta dos fundos, é só seguir o caminho do pomar e
chegará lá. Tenham um bom dia.
A porta foi fechada delicadamente. Rodei meus olhos em direção a
Charles que me examinava curioso. “Gosto de seus cabelos soltos.” Ele se
apoderou de um de meus cachos e o enrolou em seu indicador. Abracei-o
com força e preguei um beijo em sua bochecha. Ele colocou a língua para
fora, enojado, mas não me repeliu.
— O que quer fazer hoje?
— Não sei. — Respondeu se livrando de meus braços. — Vamos
brincar lá fora?
— Devo pedir permissão para o seu pai, ele ficou muito zangado na
última vez que o levei ao quintal. — Objetivei com os olhos fixos no teto. —
Não queremos que ele brigue novamente, não é verdade?
— Não. — Ele se ergueu. — Então vamos descer logo, antes que dê
a hora do almoço.
Confirmei com a cabeça.

David folheava um jornal quando entramos na sala. Ele levantou os


olhos e nos encarou sério como antes. Charles subiu no colo do pai e
perguntou olhando fixamente em seus olhos azuis:
— Papai, eu e a Sam podemos brincar lá fora?
— Vão estar apenas em minhas propriedades? — Mr Luft falou com
calma, dobrando o jornal e envolvendo o filho pela cintura com o braço. A
criança concordou com a cabeça. — Passou o repelente? — Perguntou depois
de pensar um pouco. — Não queremos que você tenha uma crise alérgica,
não é?
— Não, papai. — Ele sorriu. — Vou passar agora mesmo.
Charles subiu correndo. Fiz menção de segui-lo, mas Mr Luft
sinalizou para que eu parasse e me aproximasse de sua poltrona.
— Deixe-me ver o estrago que fiz. — Ele ergueu as mãos pedindo
para que eu lhe estendesse meu braço. Hesitei um pouco, mas logo fiz o que
queria. Ele apalpou meu antebraço. Eu não tinha notado o quanto havia
ficado roxo até observar os dedos hábeis de meu padrão sobre minha pele.
Examinava com atenção, como se fosse a coisa mais interessante do mundo.
Por vezes tentei puxar meu braço de volta, mas ele o segurava novamente
perto de seu rosto. — Isso dói?
— Um pouco, senhor. Mas a culpa não foi sua. Eu machuquei há
algum tempo, ainda dói às vezes.
— Foi a um médico quando fraturou?
— Não tive como ir. Mas não é nada.
— Foi uma fratura séria que não foi tratada como deveria. Eu posso
tentar dar um jeito, mas parece que já tem algum tempo, então pode não dar
tão certo como esperado. Por sorte, ela não está influenciando tanto os seus
movimentos, mas irá doer se tentar forçar muito o braço e não terá tanta força
como antes.
— Está tudo bem, não precisa se preocupar com isso.
— Sou um médico, esse é o meu trabalho. Sente-se ali, por favor.
Sentei-me na poltrona de costume. Ele pegou uma caixinha dentro
de um dos móveis da sala e se dirigiu até mim. Suas mãos trabalharam
velozmente, mas com perícia e cuidado. Olhou para mim distraído e esboçou
um sorriso de canto de boca.
Ele estava sorrindo. Era sempre tão sério que um simples sorriso o
deixava mais encantador. Eu tentei não corar. Estava ainda zangada com a
briga e por, mesmo depois de tudo, ainda me encantar com o sorriso dele.
Não deveria nem mais olhar em sua face, imagina me encantar com ela.
Infelizmente, não conseguia.
Em pouco tempo meu braço já estava enfaixado. Ele levou de volta a
caixa e se sentou em sua poltrona.
— Não faça muito esforço com o braço. Ele terá que ficar enfaixado
por algum tempo. Lá fora, tome cuidado com as árvores, animais e insetos.
Não quero que Charles se machuque.
— Sim, senhor. — Levantei-me. — Gosto quando o senhor sorri.
Ilumina seu rosto e o deixa mais sadio.
Ele ficou intensamente vermelho. Abaixou a cabeça como se
procurasse o jornal que lia. Devia estar se recompondo, já que, quando voltou
a se virar para mim, trazia a expressão séria de praxe.
— Obrigado. — Respondeu finalmente. O silêncio caiu pesado na
sala. Ficamos nos encarando, sem dizer nada verbalmente, só sentindo o calor
do olhar do outro.
Anunciei que iria ao encontro de Charles e que mais tarde voltaria
com a minha resposta. Ele concordou com a cabeça. Antes de sair, pensei ver
o seu sorriso ressurgir ainda mais largo.

Deixei Charles almoçando com o pai. Era pouco antes do meio dia e
o sol iluminava o caminho que encontrava a porta dos fundos. O pomar era
grande, tomava ambas as margens do estreito caminho e as árvores formavam
dosséis sobre minha cabeça. O lugar era muito bonito sob aquela luz. Sua cor
verde reluzia criando mosaicos de luz nas pedras do chão. Segui a vereda e
fui andando, sentindo o cheiro das frutas e flores. Era de se estranhar eu não
ter conhecido aquele lugar antes.
Não andei muito até me deparar com a casinha pequena. As vozes de
meus colegas de trabalho chegaram até mim, deveriam estar todos lá.
Bati à porta timidamente, mas Constance veio me receber de
imediato. Ela parecia ainda mais alegre e com um ar jovial, estava realmente
feliz e aquilo me animou.
— Entre, entre. — Ela me puxou para dentro. — Agora podemos
almoçar.
A sala de jantar era na entrada. A mesa estava posta, mas ninguém se
sentava ao redor dela. Estavam todos na saleta de estar, conversando
alegremente e rindo alto. Liza falava sobre cavalos com Janet e Thomás.
Richard e Serafine se esconderam em um canto, os dois muito próximos um
do outro, trocando sorrisos apaixonados e carinhos. Eles pararam quando me
viram entrar. Sorri para todos e todos devolveram o sorriso para mim.
— Hora de almoçar. — Connie ordenou com as mãos na cintura. Os
outros reclamaram baixinho, mas se arrastaram até a mesa.
Era surpreendente o gosto da comida de Constance, tão boa, senão
melhor, do que a de Janet. Fiquei pensando porque não era ela que cozinhava,
mas não mencionei nada, Janet poderia ficar chateada.
Conversamos a refeição toda e depois dela também. Quando
voltamos para a salinha, meus colegas me encararam com olhos curiosos e
Liza foi a primeira a juntar coragem e perguntar:
— A senhorita vai ficar, não é? — Sua voz era eufórica e esperava
uma resposta positiva. Dei de ombros, não tinha certeza e não poderia dizer
nada até o final do dia.
— A senhorita tem que ficar. — Constance me censurou com os
olhos. — Você não sabe há quanto tempo Charles e Mr Luft sorriram pela
última vez.
— Eu sei que está tudo mudado desde o dia que cheguei. — Declarei
de cabeça baixa. Fechei meus olhos por segundos. — Mas eles seguiriam a
vida sem mim, além do mais, foi pouco mais de duas semanas. Não pode ter
causado tantas mudanças em algo que durou anos.
— Você sabe o quanto mudou. — Serafine bateu de leve em minha
cabeça. — E imagine isso a longo prazo? Estaria tudo novamente perfeito…
Os outros começaram uma discussão caótica de qual deveria ser
minha resposta. Nenhuma daquelas propostas via meu lado da situação.
Pensavam apenas em quanto as coisas para eles seriam melhor dali para
frente e como eu seria egoísta de partir.
— Por que não pensam em mim também? Vocês só falam em Mr
Luft, mas a vítima aqui sou eu. Ele me agrediu. Fui humilhada e ainda
querem que eu fique? — Falei já alterada.
Eles se calaram, olhando-me assustados. No fundo, todos nós
sabíamos que eu queria ficar, mas eu ainda precisava pensar muito sobre o
assunto. Por fim, Connie se levantou, acariciou meus cabelos e saiu.
— Nós temos esperança em você. — Liza comentou em tom de
segredo. — E depois, irá ser bom até para você, Sam… Espero que esteja
pensando com cuidado.
— Estou. — Sorri envergonhada pelo meu ataque. — Irei voltar e
meditar sobre o assunto. Logo comunicarei David e vocês sobre minha
decisão.
— Esperarei. — Ela sorriu largo.

Eu ainda pensava em uma resposta quando Serafine me chamou no


quarto. Desci vagarosamente as escadas, levando mais tempo do que o
necessário. A lua já iluminava o céu. Era uma noite linda, pintada por
inúmeras estrelas cintilantes, criando uma imagem quase surreal. Eu poderia
ter aproveitado a vista da janela do corredor por mais tempo, mas Serafine me
empurrava com os braços e frases de incentivo.
A sala de estar estava escura como sempre. Mr Luft remexia a lenha
da lareira, tinha o braço apoiado no console de pedra branca.
— Boa noite, senhor. — Falei baixinho sob o portal. Ele se virou de
pressa e me encarou assustado.
— Boa noite, Miss Evans. Sente-se por favor. — Esticou o braço em
direção a poltrona na frente da sua. Sentei-me com as costas eretas e o nariz
virado para meu patrão, sem estar abaixado como de costume, erguido em
uma expressão confiante.
— Então… — Ele indagou um pouco eufórico. Para dissimular,
completou um pouco mais calmo: — A senhorita já chegou a uma decisão?
— Na verdade não, senhor. — Confessei. — Não por não ter
pensado em sua proposta, ao contrário, pensei o dia inteiro. Mas não consegui
chegar a nada concreto.
Ele franziu o cenho. Encarou-me fixamente, não me reprimindo,
estudando-me, solvendo meus detalhes. Deixei o rosto como estava,
vencendo a tentação de abaixá-lo. Seus olhos sorriam, contudo seu rosto
permanecia imutável.
— Precisa de mais tempo para pensar? Quem sabe até amanhã. —
Falou calmamente.
— Não, senhor. Eu prometi que lhe daria uma resposta até o fim do
dia e irei lhe dar. Eu sempre cumpro com os meus compromissos.
Ele me encarou novamente. Pegou o bule de chá que estava
descansando sobre a mesinha a nossa frente e serviu duas xícaras. Entregou
uma a mim e bebeu o líquido da outra.
Beberiquei sem muito interesse, deixei que a xícara ficasse
esquecida em meus lábios. Não tirei os olhos dele. Ele também tentava não
perder o contato visual. Pisquei demoradamente pensando no que dizer, no
que responder, mas nada parecia o mais adequado. Queria responder logo que
ficaria, mas muitos fatores desestimularam a resposta simples e direta.
Pensei em Charles, em seu sorriso e o quanto ele parecia triste nos
meus primeiros dias. Eu não poderia simplesmente deixá-lo, eu não me
perdoaria. Por mais que eu não fosse a mãe dele, Charles precisava de mim e
se eu fosse embora, tudo poderia voltar e deprimi-lo ainda mais. Também
medi a importância de minha resposta para os outros empregados, por mais
que tivesse considerado mais cedo o comportamento deles como egoísta, não
podia ignorar a preocupação deles para com o amo e Charles.
Fechei os olhos com força, tirando a xícara de perto do meu rosto e a
deitando novamente na mesinha.
— Senhor… — Falei baixo. — Sei que não devo exigir nada, mas se
importaria de mudar algumas coisas se eu ficar?
— Algumas coisas?
Eu respirei profundamente, juntando coragem.
— Sim… Primeiro acho que Charles deveria agir mais como
criança, ter mais brinquedos, livros infantis, tempo livre e talvez até um
animalzinho de estimação… — Ainda falava baixinho, temendo a reação de
David. — Segundo, acho que o senhor deveria passar mais tempo com ele,
conversar com seu filho… Ele não pode crescer sem ter uma relação mais
aberta e confiante com o senhor, e isso irá fazer bem para o senhor também.
E terceiro, gostaria que o senhor não bebesse muito antes de voltar para casa.
Não só por mim ou pelos outros empregados, mas principalmente por
Charles, ele precisa de bons exemplos…
Mr Luft engolia em seco. Seus olhos começaram a relampejar de
raiva e o canto de sua boca tremia. Contudo, ele não falou nada para se opor.
— Se eu fizer, a senhorita promete ficar?
— Prometo, senhor.
— Até eu achar que Charles não precisa mais de suas aulas?
— Sim, senhor. Eu prometo. Nem que isso dure para sempre.
Ele concordou com a cabeça.
— Está ficando tarde. — Ele se ergueu. Havia voltado a ficar
intensamente sério. — Acho melhor irmos dormir.
Concordei. Ele se retirou, deixando-me sozinha. Levantei-me e andei
até a lareira. Encarei as chamas alaranjadas e senti o calor acertar minha face.
Coloquei a mão sobre o console e toquei de leve o bloquinho de notas e uma
pena. Ele estava escrevendo algo. Mordi o lábio inferior, pegando o
bloquinho rapidamente. Encarei-o. Meus dedos coçavam e eu estava preste a
abri-lo para saber quais segredos da mente conturbada de meu amo aquelas
folhas escondiam.
O que eu estava fazendo querendo me envolver nos segredos dele?
Coloquei o bloco novamente no lugar e suspirei.
Peguei o balde com água perto da lareira. Olhei pela última vez as
chamas. Tinha um pedaço de papel queimando em meio às labaredas. Dei de
ombros, ele realmente não queria que ninguém lesse. Apaguei a lareira e subi
pé ante pé para meu quarto. De fato já estava ficando tarde.

David cumpriu com o combinado, nos dias que se seguiram,


comprou livros infantis e brinquedos de todos os tipos para o pequeno
Charles. O garoto não acreditou de início, mas eu lhe expliquei que havia
conversado com o pai. Em pouco tempo, o quarto mudou de expressão,
parecia que realmente uma criança dormia ali.
As quatro semanas subsequentes foram cheias de mudanças. Eu
passei a dar aula apenas de manhã e no início da tarde para Charles, usando o
restante do dia para brincar e passear por Winterfields, e a noite para ler. Nos
momentos livres, eu, Liza e Serafine ficávamos juntas, tanto trabalhando – eu
costumava ajudá-las com tarefas menores, como costurar ou arrumar camas –
quanto conversando.
Nós três estávamos muito próximas. Elas me tratavam como uma
irmã mais nova e sempre estavam junto a mim para me ajudar ou apenas ver
se estava tudo bem. Eu tentava não deixar tão clara a minha necessidade de
ter algum suporte, mas sempre demonstrava minha afeição e agradecimento.
Eu gostava da companhia das irmãs e elas, assim como os outros
empregados, me faziam sentir parte de uma família.
Nesse tempo, o que mais me alegrou e perturbou, ao mesmo tempo,
foi o comportamento de Mr Luft. Ele voltou a se aproximar do filho, ficava
mais tempo em casa e parecia mais feliz do que nas minhas primeiras
semanas.
Nós passávamos alguns momentos juntos, principalmente quando
nos encontrávamos depois de eu deixar mais uma carta nos correios.
Convidava-me para andar pelo longo campo que era Winterfields e
discutíamos sobre superficialidades. Nunca chegando a temas mais íntimos e
mantendo em segredo nossos verdadeiros sentimentos.
Porém, às vezes ele voltava a me lançar olhares de censura, e muitas
vezes, eu enfrentei seu semblante frio e repreendedor. Mas eu sempre
permanecia ao seu lado, não queria que ele pensasse que estava sozinho.
Mesmo que continuasse sem sorrir, ele estava mais feliz, até de ter
que ir trabalhar na cidade, o que era estranho, já que eu descobrira que ele
odiava o som e o calor de multidões. Mas se ele estava feliz, eu também
estava. Gostava daquela paz que havia se instaurado.
Foram dias muito bons, até o momento que se findaram.
Capítulo 10

Eu tomava meu café da manhã quando Serafine entrou conversando


com a irmã. Elas falavam baixo, praticamente sussurrando. Sentaram perto de
mim e eu pude ouvir o que parecia tão interessante para as duas.
— O amo está diferente, não está? — Liza comentou ainda em tom
de sussurro.
— Quando ele chegou de manhã, até sorriu quando nos cruzamos no
corredor. — Serafine confirmou com a cabeça. Estavam confusas e eu
confesso que também fiquei. Tentei fazer menos barulho para ouvi-las
melhor. — Acho que está acontecendo alguma coisa nesses dias que ele anda
chegando mais tarde.
Anneliza deu uma risadinha brincalhona. Eu me inquietei na cadeira.
Senti vontade de fazer um comentário, pedir mais detalhes, mas me contive.
— Comam antes que esfrie — Janet serviu as duas. As moças se
sentaram empertigadas e obedeceram à senhora com as faces intensamente
rubras. — e parem de conversar sobre as vidas dos outros. E você
Samantha… — Virou-se para mim. Eu ergui meus olhos, assustada. — Já
não está na hora de trabalhar?
— S… Sim, senhora. — Eu levantei e me apressei em alcançar a
porta. David entrou no instante que ergui a mão de encontro a maçaneta. Ele
me olhou de cima a baixo. — Bom dia, senhor.
Ignorou. Virou para a cozinheira e falou em alto e bom tom para que
todos, não só Janet, ouvissem: “Uma pessoa virá almoçar hoje. Quero que
prepare algo especial. E… Miss Evans?”
— Sim, senhor?
— Fique com Charles na hora do almoço. Quero que tudo saia
perfeitamente bem. Pode voltar para o que estava fazendo.
Concordei com a cabeça e me retirei de cabeça baixa. Subi para o
quarto de Charles.
— Papai disse que alguém importante vai vir aqui hoje. — A criança
declarou imediatamente assim que eu entrei. Parecia nenhum pouco feliz. Ele
estava sentado na cama folheando um livro de imagens.
— Deve ser um amigo dele.
— É uma mulher. — Charles franziu o cenho. — Ele disse hoje de
manhã. Ela é uma amiga dele e ele quer muito impressioná-la.
“Não quero ter outra mãe.” Completou depois de muito pensar
— Há algum tempo você disse que queria.
— …Mas eu quero que seja a senhorita, Sam. — Olhou-me com um
ar de súplica.
— Não quer dizer que ele se casará com essa amiga, Charles. E nós
já conversamos sobre isso.
— Eu sei! — Ele pulou da cama. — Mas eu nunca parei de pensar
nisso. Seria perfeito, não? Poderíamos ficar juntos para sempre. Você não
teria que ir embora.
— Eu gostaria de ficar para sempre com você. — Sorri constrangida.
Era muita presunção minha achar que algum dia aquilo viria a acontecer, mas
não podia me impedir de pensar ou desejar aquilo. — Mas nem tudo é como
queremos que seja. Seu pai tem um plano para a vida de vocês, e eu não estou
nele. Além do mais, você irá crescer, Charles. E não precisará mais de mim.
— Eu não quero crescer. — Charles cruzou os braços e franziu ainda
mais o rosto. Eu ri baixinho.

David andava pelos corredores junto à sua convidada. Haviam


acabado de almoçar e agora Mr Luft fazia a gentileza de lhe mostrar a casa.
Eu e Charles espiávamos por uma fresta entre a porta e a parede da sala de
aula. A mulher não era tão alta quanto eu, mas usava saltos, o que a deixava
quase da altura de David. Vestia um longo vestido verde que se projetava
para cima quando andava e deixava à mostra os sapatos também verdes. Seus
fios loiros estavam presos em um penteado trabalhado e seus olhos eram de
um castanho claro. Tinha um ar de desprezo e irrelevância em seu rosto, mas
ela conseguia dissimular com sorrisos.
Eles caminharam pelo corredor inteiro, um ao lado do outro, e,
quando chegaram perto de nossa porta, voltamos rapidamente a nossos
lugares. Entraram, e nós os encaramos como se não soubéssemos que
estavam se aproximando.
— Charles. — David o chamou com um gesto. — Quero que
conheça uma pessoa.
— Sim, papai. — Charles se ergueu polidamente e caminhou a passo
lento até o pai. Acompanhei-o cordialmente.
— Esta é Miss Lillian Ellis. Ela é sobrinha do Leonard, lembra-se
dele? — Ele acariciou os cabelos castanhos do garoto.
— O gordão? — Charles falou sem pensar. David ficou vermelho,
Lillian alargou o sorriso, eu contive uma risada. — Lembro sim, papai.
— Olá, pequeno Charles. — Ela se agachou com dificuldade por
conta da saia. — Estava morrendo de vontade de lhe conhecer. Seu pai me
falou muito sobre você.
— Estranho. — Charles sorriu constrangido. — Ele não me falou da
senhorita.
David fechou os olhos dolorosamente. Eu fazia um esforço muito
grande para não soltar uma gargalhada, enquanto Lillian apenas se ergueu
sem palavras. Finalmente se virou para mim.
— E a senhorita é…?
— Samantha Evans, a governanta, senhora. — Fiz uma leve mesura.
— Bem… — David interrompeu. — Deixe eu lhe mostrar o restante
da casa, Miss Ellis.
— Claro, David. — Ela sorriu carinhosamente. Antes de saírem do
quarto, Lillian encarou Charles com um olhar mortífero, tão gélido que nos
fez tremer.

A chama da vela estalava e dançava sobre a mesa, iluminando uma


pequena área circular. Eu estava na cozinha, meu material espalhava-se por
toda a mesa e eu escrevia o plano de aula para os dias seguintes. Além de
minhas coisas, um bule de chá me fazia companhia, esfumaçando pelo bico.
Alguém entrou vagarosamente na cozinha. Eu estava virada para a
porta de modo que não me assustei ao ver David. Ele porém, sobressaltou-se
quando me percebeu. Fingi não ter notado seu susto, mas senti vontade de rir
de sua cara de sono.
— Boa noite, senhor. — Sorri sonolentamente.
— Boa noite, Miss Evans. — Ele ainda estava assustado. Trazia as
mãos dentro dos bolsos do robe azul-escuro e arrastava com ruído os pés. —
Não devia estar dormindo?
— Sim, senhor. Mas estou fazendo o plano de aula de Charles. —
Alarguei o sorriso. — É um pouco desconfortável escrever em uma cama,
então, vim para cá. Algum problema?
— Não, nenhum. — Ele tinha os cabelos bagunçados e os olhos
cansados. Parecia ainda mais atraente sob a luz vermelha da vela. O assunto
morreu por alguns segundos. Ficamos nos encarando, ambos estudando
indiscretamente o outro e não parecendo se opor àquilo.
Seu robe abria na altura do peito, deixando sua pele clara à mostra.
Seu peito possuía poucos pelos, todos finos e saltando pela abertura de sua
roupa.
Endireitei-me na cadeira e baixei levemente meu rosto, tentando
esconder o rubor. Ele se aproximou.
— O senhor está bem? Não consegue dormir? — Perguntei voltando
ao assunto e tentando dissimular o constrangimento.
— Na verdade, não. Vim comer algo.
— Gostaria de um pouco de chá? — Apontei o bule.
— Foi a senhorita que fez?
— Sim. Algum problema?
— Não, nenhum. — Sentou-se a minha frente e se serviu. Bebericou
um tanto quanto preocupado e então afastou a xícara rapidamente da boca.
— Está ruim? — Indaguei tristonha. Afastei os cachos loiros para
longe do olho e o examinei melhor.
— É o pior chá que já provei. — Ele me encarou sério. Fiz um
muxoxo. Então, ele sorriu como nunca antes. — Não, está ótimo. Só um
pouco quente. — Senti minha face ficar ainda mais vermelha. — Acho que
irei comer uns biscoitos com geleia. Gostaria de alguns?
Recusei educadamente e ele se levantou. Caminhou até o armário,
pegou um prato, os biscoitos e a geleia. Voltou a se sentar, mas agora ao meu
lado, examinando meus papéis. “Sabe…” Falou passando a geleia em um
biscoito. “Acho que a senhorita não deveria ficar acordada até tão tarde.”
— Não se preocupe, senhor. Ficarei bem. — Sorri. — Mas e o
senhor? Não terá que ir a cidade pela manhã? Por que não pediu para uma das
meninas lhe levarem no quarto?
— Sim. Mas não queria acordar ninguém. — Concordou com a
cabeça. — A senhorita está me evitando?
— Não entendo o porquê da pergunta.
— Porque já tem alguns dias que não nos encontramos mais no
quintal de manhã, nem a senhorita desce como era de costume até a sala de
estar.
— Não estou o evitando. — Sorri carinhosamente, escondendo um
pouco minha felicidade por ele ter me esperado em todos aqueles momentos.
— Só passava pelo jardim quando tinha alguma carta para entregar ao meu
amigo. E só descia até a sala de estar quando chamada pelo senhor. Longe de
mim atrapalhar seus pensamentos com algum assunto inoportuno ou a minha
presença.
— Não me atrapalha… — Ele sussurrou sério. A conversa morreu
novamente. Ficamos cada um olhando para um lado.
— …Então, o que achou de Lillian? — Perguntou de chofre.
Estremeci.
— Bem, não a conheci direito, senhor. — Repliquei um pouco triste.
Finalmente um momento que estávamos juntos, tendo uma conversa que de
fato me interessava, e ele preferia falar sobre a sua querida amiga Lillian. —
Mas ela é muito bonita. — Completei sem muito ânimo.
— Deve dar filhos bonitos, não?
— Acho que o senhor deve pensar antes em ser feliz. O senhor já
tem Charles, e filho pode vir de qualquer pessoa, bonito ou feio.
— Eu não estou preocupado em ter mais um filho. — Revirou os
olhos. — Na verdade, não pretendo ter mais nenhum e, se por desventura isso
vier a acontecer, que seja daqui a muito tempo. — Mr Luft notou minha
expressão de repreensão e se explicou. — Eu não quero ter que passar
novamente pela mesma coisa, só depois de ter certeza que eu e meu filho
estejamos bem e que possamos aumentar nossa família.
— Acho melhor eu ir. — Eu me levantei para arrumar minhas
coisas. Ele me segurou pela mão.
— Acha que devo me casar novamente?
— Eu… Não sei, senhor. Não sei se seus pensamentos estão certos e
se será feliz dessa forma. Porém, desejo do fundo do meu coração que vocês
encontrem a felicidade. E acho que deve ser bom para Charles já que o
pequeno sente um vazio. E para o senhor também.
— Para mim…?
— O senhor precisa de alguém com quem contar. Para sentir-se
completo. Precisa de alguém que lhe ouça e o faça feliz. Para dividir seus
problemas e contar segredos e coisas assim.
— Não acredito que alguém possa completar outra pessoa. — Ele
ainda segurava meu braço. Estava se sentindo contrariado e aquilo o
estressava. Eu sentia seus dedos me apertando gradativamente com mais
força.
— O canto da sua boca está sujo de geleia. — Apontei discretamente
sua boca, tentando mudar de assunto. Ele pegou o guardanapo de pano sobre
a mesa e limpou o canto oposto ao sujo. Eu ri fraternalmente e tomei o
guardanapo de seus dedos. — É no outro lado, senhor.
Limpei sua boca com extremo carinho que, talvez pelo sono, não
percebi na hora. Afastei o pano de seu rosto e encarei seus lábios. Seu rosto
brilhava perfeição e seu peito seminu não parecia diferente. Por um momento
de loucura, senti vontade de deitar meus lábios sobre os deles e aproveitar
cada centímetro de sua boca. E tê-la só para mim.
O toquinho de vela se findou. Então, dei pelo meu estado de estupor
e me afastei apressada. Estávamos no escuro. Não falávamos e a única coisa
que dava para ouvir era o som da nossa respiração. Esperei meus olhos se
acostumarem com a escuridão antes de continuar o que estava fazendo.
— Acho que só o senhor pode decidir sobre a sua vida. — Juntei
minhas coisas e rumei em direção à porta. — Boa noite, senhor.
— Boa noite, Sam. — Disse sua voz grossa no breu.

Amanheceu nublado, mas com alguns raios de sol escapando pelas


frestas das nuvens. A paisagem ficava ainda mais bonita daquela forma. A
Inglaterra era um lugar realmente bonito. Eu gostava daquela calma escura e
fria.
Não demorei muito para sair do quarto, mas não fui para a cozinha,
virei à direita e bati de leve à porta de Liza. Ela veio me responder sonolenta,
os cabelos bagunçados e ainda de camisola.
— Bom dia. — Eu sorri para ela.
— Bom dia. Eu já estava descendo para trabalhar…
— Poderia me escutar um pouco? Preciso conversar com alguém. —
Juntei as mãos em súplica. Ela riu.
— Claro, entre. — Deu espaço para eu passar. A primeira coisa que
notei foi a cama bagunçada, não me contive e fui arrumá-la. — Pode deixar
isso assim. — Ela me repreendeu junto a um bocejo. — Depois eu arrumo.
— Tudo bem, eu não me incomodo em arrumar.
— Está bem, então. — Anneliza se sentou na cadeira de sua
penteadeira e se colocou a arrumar o cabelo para o trabalho. — O que queria
falar?
Eu hesitei um pouco, permanecendo-me em silêncio com meus
pensamentos, mas então respirei fundo e falei de uma vez.
— Já tem um tempo que percebi que estou gostando de alguém.
Dentro de mim, eu sei que é errado, porém, meu estúpido coração ainda se
mantém esperançoso.
Liza deitou a escova novamente na penteadeira e me observou pelo
espelho. Seus olhos brilharam com uma imensa alegria.
— É David? — Indagou sem nenhum pudor.
Sentei-me pesadamente na cama e a encarei. Dali conseguia ver meu
reflexo e meu rosto se contorcera em uma careta desesperada. Concordei com
a cabeça e minha amiga se ergueu de um pulo.
— Não seria maravilhoso se vocês se casassem?
— Para quem? Mr Luft tem outros planos em sua vida e eu não
estou neles. Ele deve se casar com Lillian e será feliz com ela. Eu… Eu terei
que arrumar outro lugar para morar depois disso.
— Lillian…! — Ela fez uma careta. — Sinto pena dele se se casar
com ela.
— Por quê?
— Ela é uma mulher horrível, Sam. E a fama de louca corre por toda
a cidade. Surpreendo-me por David não saber.
— Louca? — Perguntei baixinho. Ela não teve tempo de se explicar,
Janet batia à porta nos chamando. Anneliza foi se trocar. Eu me ergui
pensativa. Louca? O que ela queria dizer com aquilo?

Charles desenhava em um caderninho, não olhou para mim quando


entrei. Parecia absorto no que estava fazendo. Sentei-me ao seu lado e tentei
ver o que desenhava com tanto afinco, mas ele escondia o resto do papel com
o braço e eu apenas enxergava uma pequena parte.
— O que você tanto desenha, pequeno artista?
— É segredo. — Ele riu da minha curiosidade. — Papai está feliz
essa manhã. Vocês fizeram algo ontem?
Eu soltei uma breve exclamação, sem entender do que ele falava.
— Quando ele subiu ontem a noite, ria baixinho, como se estivesse
pensando em algo engraçado. E foi logo depois da senhorita ter passado para
o seu quarto.
— Você não deveria estar dormindo? Ficar escutando atrás da porta
é muito feio, rapazinho.
— Eu não estava conseguindo dormir. — Confessou. — E eu ouvi
papai indo até a cozinha e fiquei esperando ele voltar, mas você subiu
primeiro, Sam. — Ele alargou o sorriso. Seus olhos, então, se voltaram para
mim. Ele tirou o braço do papel e eu pude examiná-lo: o desenho era
composto de três personagens, um rapaz alto de cabelos negros, um garotinho
semelhante ao homem e uma mulher loira. Soltei um suspiro.
— Já conversamos sobre isso.
— Eu sei. — Retorquiu euforicamente, colocando o caderno na
frente do meu rosto. — Mas olha como seriamos uma família feliz juntos.
Até papai está sorrindo. — Ele deitou o dedinho indicador na face do pai-
desenho.
— Vocês serão felizes, mesmo sem mim. Logo, logo terão uma nova
família e esquecerão de mim. Vai ficar tudo bem no final.
— Está falando de Miss Ellis, não é? Não gosto dela. Não quero que
ela seja minha mãe, Sam.
— Mas eu não posso fazer nada com relação a isso. Você deveria
conversar com seu pai se não está satisfeito. Só não quero que ele ache que
eu que coloquei essas ideias em sua cabecinha. Ou melhor… Não faça isso.
Ele com certeza entenderá errado.
Ele não respondeu. Estava encarando a porta como se esperasse que
alguém a abrisse. Para minha surpresa, e nenhuma do pequeno, David entrou
no quarto. Seus lábios formavam um sorriso pouco usual. Ele nos
cumprimentou e nós o respondemos em uníssono.
— Charles, eu e Miss Ellis iremos passear a cavalo, gostaríamos que
você nos acompanhasse.
— Miss Evans pode ir também?
David me encarou. Seu rosto não pedia para que eu recusasse, mas
seus olhos pareciam estar se questionando sobre minha ida. Adiantei-me:
— Não, pequeno Charles, eu vou ficar para ajudar Liza e Serafine,
você vai com seu pai e aproveita esse dia de sol. — As nuvens negras tinham
se dissipado um pouco antes de eu entrar no quarto do menino e agora o dia
estava realmente brilhante.
— Sinto muito pela aula que a senhorita preparou. — David se
desculpou. — Lillian me veio com essa proposta inusitadamente e não tive
tempo de avisá-la.
— Não se preocupe, senhor. — Respondi. — Posso passar tudo na
próxima aula.
— Fico feliz por não se importar.
Eu me importava, ainda mais porque a culpa era de Lillian. Mas eu
forcei um sorriso para que acreditasse estar tudo bem. Era mais fácil.
Ele se aproximou da mesa, tentando identificar o que estava
desenhado no papel. Rapidamente, arranquei a folha e a escondi em minhas
costas.
— O que era aquilo? — David indagou, atordoado com minha
rapidez.
— Nada, senhor, apenas um desenho que Charles fez hoje de manhã.
— Posso vê-lo? — Estendeu a imensa mão em minha direção.
— Senhor?
— Deixe-me ver o desenho, Miss Evans. — Ele já estava se
estressando. Simultaneamente, entreguei-lhe o desenho e virei meu rosto para
o chão.
David ficou estudando o pedaço de papel por segundos que pareciam
uma eternidade. Antes que pudesse falar algo, outra pessoa entrou no quarto.
Lillian vinha trotando, enfornada em um vestido rosa bem diferente do que o
do dia em que nos conhecemos, era menos pomposo, mais simples e
apertado.
— Vamos? — Ela perguntou para Mr Luft.
— Sim, já estávamos indo. — Ele respondeu. Em um sussurro falou
para Charles: — Bonito desenho, Charles.
Lillian agarrou o pequeno pelo braço. Charles fez uma careta para as
costas da mulher mas a seguiu sem protestar. Eu e David ficamos a sós.
— Acho melhor a senhorita guardar este desenho.
— Sim, senhor. — Peguei a folha que ele me estendia. Ele deu meia
volta e foi em direção a porta. — Senhor — Ele parou e olhou novamente
para mim. — o senhor sabe que é apenas um desenho, não é?
Ele sorriu de lado e foi embora.

Anneliza pediu para que eu lhe ajudasse a limpar o sótão. Era


estranho eu não saber que aquela casa possuía um, mesmo depois de tanto
tempo morando ali. Mais estranho ainda era ele ficar no mesmo andar de meu
quarto. Um cantinho escuro e pouco habitado que eu nunca tivera a
curiosidade de visitar. Mas, de súbito, toda a falta de curiosidade abandonou
meu corpo e eu me senti tentada a irromper pela porta a minha frente. Ela era
velha, o marrom já desbotado. Cheirava a mofo, mas parecia guardar
segredos obscuros e inquietantes.
— O que estamos esperando? — Liza equilibrou os espanadores,
baldes e panos em um braço e empurrou a porta com o outro.
O cômodo era, como esperado, escuro, abafado e havia ali tantas
coisas empilhadas que me indaguei mentalmente se conseguiríamos terminar
de arrumar tudo aquilo até o final do dia. Liza entrou primeiro, deixando o
que trazia ao lado da porta e rumando para as janelas com os braços
estendidos em meio a escuridão. Abriu as finas cortinas e a janela. O vento
entrou forte e soprou em cima de mim a camada de poeira que descansava
nos objetos. Eu tossi.
— Obrigada. — Comentei encarando demoradamente a ruiva.
— Temos muito trabalho a fazer. — Virou o rosto para a bagunça.
— Acho que conseguimos acabar com isso antes de Mr Luft voltar de seu
passeio.
— Esse lugar parece que foi esquecido por anos. Ninguém mais veio
aqui?
— Não depois da morte de Mrs Luft. — Ela respondeu enquanto
fazia o espanador dançar sobre um jarro vermelho desbotado. — Este era um
dos lugares preferidos dela, entende? Patrícia e Mr Luft fizeram desse lugar
um refúgio do mundo. Trancavam-se aqui e passavam longas horas tocando
piano e lendo. Era um lugar acolhedor naquele tempo, mas agora…
— Agora parece que foi tomado por um furacão. — Eu peguei o
outro espanador. — Mas por que agora? Depois de tanto tempo
negligenciado…
— Não sei, ele pediu que eu limpasse. É estranho ele não estar
ressentido como há alguns meses. — Ela não tirou os olhos de seu trabalho.
Nossa conversa continuou assim, não nos olhávamos, falávamos para os
objetos que limpávamos. Ela continuou: — Você pode achar que não, mas
sua chegada mudou muita coisa nesta casa.
— Não deve ter sido eu. Talvez essas mudanças já estivessem para
acontecer, só que eu cheguei no momento exato que elas resolveram se
mostrar.
— Se você diz. — Retrucou com um ar de zombaria. — Só acho que
um dia irá perceber isso e será tarde demais para aproveitar…
Respondi com um muxoxo. A conversa se findou em seguida.
Ficamos apenas entregues ao nosso trabalho. Eu avancei até o fundo do
cômodo e principiei a limpar uma cômoda grande, de mogno velho e
carcomido. Passei primeiro o espanador. Era um objeto interessante,
chegando quase a ser fascinante. Limpando melhor, dava para perceber os
detalhes dourados conservados pela película de poeira. Parecia algo
importante.
Abri a primeira gaveta, a da altura de meus seios. Eram apenas
papéis e livros antigos. Arrumei os papéis em pilhas e coloquei os livros de
lado, com certeza aquele não era o lugar deles.
Fui para a segunda. Nesta encontrei objetos pequenos como brincos,
caixinhas de joias, bonecas de porcelana e mais livros. A antiga dona parecia
se interessar muito por objetos delicados. Limpei um a um cuidadosamente e
os arrumei sobre a cômoda.
A terceira gaveta continha apenas sapatos. Inúmeros deles. Cada um
mais belo do que o outro. “Se papai tivesse me dado um desses talvez eu não
teria importado tanto com o casamento dele… Ou talvez eu pudesse
comprar…” Pela aparência, julguei que tinham sido muito caros e fiquei
envergonhada por desejar algo que nunca conseguiria adquirir. Esses eu
arrumei com ainda mais cuidado, como se cada um fosse um bibelô prestes a
partir em minha mão.
Por fim, a última gaveta. Foi a mais difícil de abrir, algo parecia
travá-la nas bordas. Com os pés fixos no chão, empurrei meu corpo para trás,
colocando toda a minha força no braço. A gaveta se abriu com um barulho de
tecido se rasgando. Caí sentada, atordoada com a nuvem de poeira que subira
para meu rosto. Limpei a face com o dorso das mãos e fui a procura do que
havia rasgado.
— Liza, olhe isso. — Chamei minha amiga, que veio rapidamente
para meu lado. Tirei um vestido rosa da gaveta.
Ele era lindo, grande, com a saia volumosa. Liza e eu ficamos
admirando-o por alguns segundos até eu me dar conta do enorme rasgo que
dividia a saia em duas partes disformes. Franzi o cenho.
— Eu o estreguei. Mr Luft irá se zangar…
— Não se preocupe. — Ela tomou a roupa de minhas mãos. — É só
costurar, irá ficar igual novo.
— Mas e se David perceber o rasgo? Parecia ser um vestido muito
especial para Patrícia.
— Não me lembro se já a vi com este. — Ela examinou o tecido
minunciosamente. — E eu me lembro de praticamente todos os vestidos dela.
— Então por que ele está aqui separado dos outros?
— Não sei, David deve ter uma razão… Vou costurar isso, já volto.
— Não se preocupe com a limpeza, eu termino. Leve o tempo que
precisar. — Sorri. Queria que ela desse o melhor de si para que David nunca
notasse minha falta de cuidado.
Ela me devolveu o sorriso e se foi. Fechei a gaveta e também me
levantei.

Coloquei as mãos na cintura e examinei o resultado de meu trabalho.


O sótão estava tão diferente que era provável que não o reconhecessem
depois da arrumação. As caixas sumiram e seus conteúdos foram arrumados
no imenso guarda-roupa ao lado da janela. O velho sofá estava agora limpo e
convidando alguém a se sentar.
O cômodo havia adquirido um ar mais leve e eu estava começando a
entender porque Mrs Luft gostava dali.
Um velho piano vertical descansava à esquerda da janela. Havia me
controlado até aquele momento para não me sentar e começar a tocar.
Aproximei-me vagarosamente e encostei a ponta dos dedos na madeira negra
já sem brilho e corroída. Senti sua aspereza de abandono, mas ela só fez com
que eu me sentisse mais ligada a ele.
Sentei-me em um banquinho acolchoado e subi a tampa que
escondia as teclas. Toquei as primeiras notas que vieram a mente. O piano
poderia estar sujo e velho, mas tocava perfeitamente. Porém, alguma coisa
estava embaixo do pedal e me impedia de pisá-lo
Chutei o objeto para o lado e voltei a tocar. Era até melhor do que o
piano da sala de aula, o do sótão parecia soltar notas mais vivas e alegres,
como se apenas as boas memórias tivessem ficado ali e não o ar pesado que
tomava a casa na semana que cheguei.
Anneliza entrou trazendo o vestido e uma bandeja com um bule de
chá. Ela parou à porta e ficou encarando o cômodo. Estava surpresa com a
velocidade que eu arrumara tudo e como o lugar ficou como novo. Deixou a
bandeja sobre a cômoda e guardou o vestido no guarda-roupa.
Eu não parei de tocar e ela também não pediu para que eu parasse.
Liza sentou-se no sofá e me assistiu enquanto tomava seu chá. Sorria por
detrás da xícara e parecia tão extasiada quanto eu.
De súbito, ela retirou os olhos de mim e virou o rosto para a janela.
Eu conseguia ver de onde estava os três cavalos se aproximando, mas não
parei de tocar.
Richard foi recebê-los ainda longe da mansão. Charles desceu do
cavalo marrom de um pulo e, com a mesma velocidade, correu para dentro de
casa. Miss Ellis desceu zangada e foi arrastando o vestido sujo de lama.
David foi o último a desmontar. Não caminhou para dentro de imediato,
esperou que os outros se afastassem.
— Acho melhor eu ir arrumar a água para Mr Luft se lavar. —
Anneliza saiu apressada.
Apenas concordei com a cabeça, mas meus olhos não se
distanciaram da face de meu patrão. Ele fechou os olhos por longos
segundos, como se apreciasse alguma coisa com paciência. Então, voltou a
abri-los e olhou em minha direção. Não era um olhar voltado apenas para o
sótão, era para mim. Nossos olhos se encontraram e eu senti um delicioso
choque correr pelo meu corpo.
David não desviou o olhar e eu também mantive o meu fixo no dele.
Meus dedos corriam com ainda mais desejo pelas teclas, propagando toda a
confusão e beleza dos meus sentimentos.
Mas então eu parei de chofre. A face de Gareth pareceu surgir ao
meu lado, aqueles mesmos olhos devoradores e agressivos. Afastei-me
apressada do piano e envolvi meu corpo com os braços. Fora apenas uma
maldita lembrança. Encarei novamente a vista da janela.
David continuou o caminho para dentro da mansão. Andava ereto,
vestindo suas roupas de cavalgar que o deixavam ainda mais alto. Seus
cabelos balançavam ao vento e sua pele reluzia sob os raios alaranjados do
sol. Ele tinha em sua face um ar misterioso, porém brincalhão.
Inspirei vagarosamente, afastando Gareth de minha mente e tentando
voltar para onde estava. Só depois de convencer meu ser que estava tudo bem
e que não encontraria meu ex-noivo nunca mais, consegui me mover
novamente.
Agachei-me perto do piano para pegar o que havia chutado. Era um
livrinho de capa de couro vermelho. Suas folhas estavam velhas e
intensamente amarelas. As palavras escritas já desbotavam.
“Este é o meu primeiro dia morando com Mr David Luft. Como eu o
descreveria? Atraente, rico, mas gentil e educado. Não que as primeiras
características cancelassem as segundas, mas há de convir que nem todo
homem rico e bonito é gentil e educado com uma mulher.
Talvez eu tivesse me convencido muito cedo que não gostaria de
morar aqui ou me casar com ele, mas acho que até conseguirei sobreviver.
Afinal, agora sou Mrs Patrícia Luft.”
Minha respiração falhou. Fechei o livrinho e o envolvi com os
braços, tal como um tesouro que é finalmente descoberto. Aquele deveria ser
o diário de Patrícia, onde provavelmente ela contava tudo sobre sua estadia
em Winterfields. Guardei-o rapidamente no bolso da saia e desci com a
mesma agilidade até o quarto de Mr Luft.
Precisava conversar com Liza sobre aquilo e não queria ter que
esperar até a noite.
— Liza? — Perguntei baixinho à porta do quarto de David. Ela
estava entreaberta e minha cabeça se espremia pelo vão. Entrei, pé ante pé, e
fui até a porta do banheiro.
Um vapor quente saía dali. Tinha um cheiro bom de sabonete. Fui
caminhando acanhada, adentrando cada vez mais. O banheiro não era grande
e apenas um suporte para a bacia e uma banheira ocupavam o lugar… Se
tinha outras coisas não dava para ver com todo vapor.
— Liza? — Chamei um pouco mais alto.
— Ela não está aqui. — A voz de David entrou em minhas orelhas e
me fizeram tremer. Virei-me na direção da voz e me deparei com Mr Luft
logo atrás de mim.
Ele parecia não estar ali. Seu corpo coberto por um roupão claro se
misturava ao vapor, tornando-se praticamente parte dele. Seus olhos
brilhavam em plena confusão de cores. O tempo que minha mente levou para
entender que não era uma miragem, foi o tempo de minhas bochechas
enrubesceram e eu levar as mãos aos olhos.
— Desculpe, senhor. — Pedi envergonhada. — Não sabia que o
senhor estava aqui. Não quis atrapalhar.
— Eu sei que não queria. — Sua voz estava tão sombria quanto nos
primeiros dias que me mudei para aquela casa. Senti seus olhos vasculharem
meu corpo por inteiro. Pareciam mãos fortes me tocando. Eu estava parada
apaticamente sem saber o que fazer. David continuou:
— Anneliza não está aqui, como pode ver. Deve ter ido ajudar
Constance ou a irmã. — Respondeu pausadamente. — Se é só isso, acho que
pode ir agora.
— S… Sim, senhor. — Continuei com os olhos tapados. Virei-me na
direção em que havia vindo e fui caminhando tropeçando em meus pés, até
que escorreguei em uma poça e caí sentada.
Afaguei minhas nádegas. Uma exclamação infantil escapou de meus
lábios e eu esqueci por instantes do que estava fazendo. Lá estava eu, de
joelhos, em uma posição não muito contente, afagando minhas anáguas.
Ouvi o som de passos e logo senti a presença de David ao meu lado.
Ele estendeu a mão para me ajudar a levantar, mas eu apenas neguei
bobamente com a cabeça, sorrindo de ponta a ponta como se nada tivesse
acontecido e eu não estivesse ajoelhada a sua frente.
Por um momento de insensatez, tive vontade de sair dali
engatinhado. Meu cérebro deve ter entendido aquilo como uma ordem, já que
aquele foi exatamente o comando que mandou para as pernas.
Eu não estava olhando para Mr Luft, nem poderia, meu
constrangimento era tanto que seu eu parasse de engatinhar e me erguesse
para andar como uma pessoa normal, teria encontrado de imediato algum
lugar para enterrar minha cabeça.
Ele me agarrou pela cintura e me levantou no ar sem nenhuma
dificuldade. Colocou-me sobre meus pés e me arrastou até a porta.
— Desculpe-me, senhor. — Falei de cabeça baixa quando ele
finalmente me largou.
— Não precisa se desculpar, criança. — Bateu a porta.
Ele possuía motivos para me chamar de criança. Nada poderia ter
sido mais patético e constrangedor. O que eu queria entender era o que havia
me feito tão boba na sua frente e porque insisti naquele comportamento
infantil.
Olhei a porta batida e encostei minha testa nela.
— Eu sou uma idiota. — Sussurrei.
Meu rosto ainda queimava de vergonha quando encontrei Lillian no
corredor. Ela vestia um robe azulado, trazia os cabelos molhados e um esgar
de fúria no rosto.
— Como foi o passeio a cavalo, Miss Ellis? — Perguntei sorridente,
dissimulando o constrangimento. Ela me lançou um olhar raivoso.
— A senhorita acha engraçado? Está querendo me provocar, é? —
Avançou em minha direção, o dedo em riste.
— Não, senhora. — Recuei assustada. — Só queria saber como
havia sido o passeio. Sinto muito se a ofendi.
— Por que não cuida de sua vida, empregada?
— Governanta. — Corrigi. Apaguei o sorriso do meu rosto e
comecei a encará-la, séria. Ela também me fitava.
— Tanto faz. — Balançou as mãos impacientemente. Empurrou meu
corpo com o ombro quando passou. Ia bufando em direção ao quarto de
David.
— O que será que a mordeu? — Observei-a desaparecer pelo
corredor.
Entrei no quarto de meu pupilo. Charles rolava de rir sobre a cama.
Sentou-se assim que me viu, mas não parou de gargalhar.
— O que aconteceu?
— Ela está muito brava? — Perguntou entre gargalhadas.
— Sim, muito.
Ele ria tanto que não conseguia mais falar.
— Me conte o que houve. — Sentei-me junto a ele. Eu o encarava,
séria, mas, no fundo, também queria me divertir.
— Estávamos andando normalmente a cavalo. — Ele começou. —
Eu estava entediado e Miss Ellis parecia fazer questão de conversar comigo e
com papai com aquela voz estridente que ela tem.
E ele começou sua narração, ainda tomado pelo riso e parando
muitas vezes para respirar. Algumas palavras foram comidas pela graça, mas
no fim, entendi o que havia acontecido.
Os três cavalgavam um ao lado do outro. Charles não estava nada
contente de ter que passear ao lado de Lillian e não podia fingir que não a
escutava falar. No fundo, ela conversava sozinha, já que a criança e David
pareciam absortos em outra coisa e se limitavam a balançar a cabeça de vez
em quando como se tivessem entendido algo.
Miss Ellis falou sobre diversos assuntos, mas sempre voltava àquele
que parecia ser seu favorito: Charles.
— Você já está tão grandinho. Quando eu o vi a primeira vez, sua
mãe ainda estava… — Ela se calou imediatamente, encarando a criança nos
olhos. Para Charles, havia mais diversão em seu olhar do que qualquer outra
coisa. — Sinto muito, meu querido.
— Sim, foi algo muito triste. — Respondeu, o mais educadamente
possível. — Mas a vida continua, não é? Além do mais, papai está aqui para
cuidar de mim. Somos felizes juntos.
— Mas você não sente falta de ter uma mãe? — Ela continuou
falando.
— Sim. Mas… Por agora gosto como as coisas estão. Ainda não me
acostumei com a perda de mamãe… Acho que uma madrasta pode não ser a
melhor coisa…
Ela encarou a crina de L.M (little moon – pequena lua), a égua em
que montava, estava pensando no que ia falar em seguida:
— E você tem amigos?
— Sim, Miss Evans é uma ótima amiga.
— Quero dizer alguém da sua idade, não sua professora… Além do
mais… — Virou-se para David. — Não acha Miss Evans um pouco nova
demais? Afinal, estamos falando da educação do pequeno Charles.
— Samantha é uma boa governanta. — Ele respondeu sério, olhando
para frente. Seu cavalo negro, Ton, balançava a cabeça levemente em um
movimento de reprovação. — Não tenho dúvida de que ela seja uma boa
professora para Charles. E ele parece feliz com ela, e devo admitir que os
outros empregados e até mesmo eu me sinto bem com sua presença.
Os olhos de Lillian queimarem de raiva. Ela arrumou os cabelos, o
vestido e se aprumou em cima de L.M.
— Só acho que ela parece que não cresceu, que continua uma
criança. — Falou com o nariz empinado. — Se no futuro Charles não for um
homem bem-sucedido, não diga que não lhe avisei, David.
Assim que Lillian terminou a frase, L.M. se assustou com alguma
coisa e freou de uma vez. Lillian não conseguiu se segurar, jogou o corpo
para frente e caiu em uma poça de lama.
Charles nunca fizera tanto esforço para não rir. Tapou a boca com as
palmas das mãos e ficou observando ela se remexendo na lama. Parecia um
porco rosa e sujo de lama como todo bom porco.
— Ajude-me, David. — Ela erguia os braços suplicantemente.
Agitava o corpo tão desengonçadamente que se sujava cada vez mais.
Mr Luft olhou vagamente para a amiga. Fez uma expressão
desleixada como se só naquele instante tivesse visto Miss Ellis dentro da
poça. Pulou de seu cavalo e estendeu a mão para ela. Só assim ela conseguiu
sair da lama. Um sorriso zombeteiro estampava os olhos de David.

Eu fiquei encarando a criança, mas não estava prestando atenção em


Charles. Imaginava a cena. Pensar no quanto deveria ter sido engraçado ver
Lillian dentro de uma poça de lama, sujando seu vestido rosa e tudo mais,
fez-me esquecer do ocorrido com David e de todo resto.
Porém, por mais que me divertisse internamente com aqueles
pensamentos, eu não ri. Sentia algo estranho, era uma deliciosa sensação de
vingança, mas misturado à culpa.
Meu olhar se deitou no chão. Charles cutucou meu ombro, talvez
achando que eu não estivesse me sentindo bem.
— Não foi engraçado? — Ele indagou em voz baixa. — Por que não
está rindo?
— Não acho que devemos rir de Miss Ellis. — Segurei sua
mãozinha com carinho. — Ela é a convidada de seu pai, devemos mostrar
cordialidade, não a humilhar desse jeito.
Ele franziu o cenho igual ao pai e puxou sua mão. “Mas foi
engraçado” repetiu sem acreditar que minha reação não era igual à sua. Eu
deveria dar um bom exemplo para a criança, por mais que quisesse também
rir às custas de Lillian. Não era correto e não iria me entregar àquele desejo.
— Deve ter sido muito engraçado, sim. Bem, já deve estar na hora
do jantar, acho bom você se arrumar antes que Connie venha o chamar.
Charles concordou levemente com a cabeça.
Só saí do quarto quando Connie apareceu. Desci também para jantar
e me larguei na costumeira cadeira na cozinha. Tinha um sorriso divertido no
rosto e os olhos distantes, ainda me lembrando do ocorrido.
— A senhorita está bem? — A cozinheira me olhou de esguelha.
— Estou sim. Estou feliz.
— É, estou vendo. — Ela limpou as mãos na toalha. — Fico feliz
que, pelo menos, alguém esteja bem nessa casa, já que a energia negra da
Lillian hoje está contaminando todo mundo.
— Ela não irá me contaminar. — Respondi confiante.
Os outros empregados não haviam descido ainda, mas eu preferi
jantar sozinha e subir logo para o quarto. Pedi para que Janet pedisse para
Liza e Serafine passarem em meu quarto antes de se deitarem, e me retirei
com o mesmo sorriso estampando o rosto.
O dia fora bom, mesmo com o ocorrido dentro do banheiro. Estava
feliz por David ter mostrado desdém para com Lillian, mesmo me doendo
saber que aquele era o motivo de minha felicidade. Significava que eu estava
com ciúmes de meu patrão, que eu sentia algo errado e inútil. Não deveria
ficar feliz por acreditar que o relacionamento dos dois nunca daria certo.
Deveria ficar triste, já que eu também não teria nenhuma chance com ele e
não queria vê-lo sofrer.
Parei a frente da porta do amo, escorada sorridentemente à parede e
encarando a entrada como se fosse a coisa mais interessante do mundo.
Não era. Quem me interessava estava lá dentro, arrumando-se para o
jantar.
E então, David abriu a porta do quarto. Eu congelei. Estava
encarando-o com uma expressão que misturava surpresa e vergonha.
— Hã…Boa noite, senhor. — Fiz uma leve mesura, afastando-me na
mesma hora da parede.
— Boa noite. — Ele respondeu meio desconfiado. — Já está subindo
para o quarto, Miss Evans?
— Sim, senhor. Charles já está pronto para o jantar e depois descerei
para colocá-lo para dormir. Agora não tenho mais nada a fazer, senhor. Se me
der licença, irei para o meu quarto.
— Claro, claro. Pode subir. — David balançou a cabeça
concordando.
Corri para o meu quarto.

Serafine e Anneliza estavam sentadas em minha cama. Eu me


apoiava na parede oposta a elas, encarando as páginas encardidas do diário.
Lia aos murmúrios, para que o conteúdo do diário não saísse daquele quarto:
“Agora tinha certeza que me precipitei ao falar que odiaria me casar
com David. Ele está me divertindo como ninguém antes. Nunca pensei que
ele pudesse se dedicar tanto a mim, nem que seria tão delicado e cuidadoso.
Mas também eu não conheci nenhum exemplo de homem igual a ele. Os
únicos parâmetros que possuía eram meu pai e meus dois irmãos, e eles
nunca foram flor que se cheirasse.
Mas Mr Luft não se assemelha a eles. David conversa comigo,
pergunta minha opinião sobre as coisas e mostra verdadeiro interesse por
tudo. Parece que ele está se esforçando para que nosso relacionamento dê
certo, e agora até eu acredito que dará.
Hoje me contou sobre sua infância, sobre seus sonhos e desejos.
Sempre quis viajar o mundo e conhecer as terras no outro lado do oceano,
mas também sempre foi apaixonado por cuidar de pessoas. Ainda está
começando sua carreira de médico e muitos dos colegas da região acham que
não vai muito longe, mas eu acredito em seu potencial.
Quem o vê não acredita que um homem tão robusto possa ser tão
atencioso e divertido. Conversamos sobre animais de estimação e ele
segredou que sempre sonhou em ter um gato, mas que seu pai nunca lhe
permitiu ter um. Também declarou que é fascinado por histórias infantis e
livros conhecidos por agradarem mais às mulheres, gosta do imaginário
destas obras e como as coisas parecem sempre se arrumarem de um jeito ou
de outros.
Parece que nascemos um para o outro. Hoje no sótão, decidimos que
arrumaremos um gato no futuro e lemos muitos dos livros que eu trouxe
dentro do baú.
E o sótão? É um lugar incrível, infelizmente só quem já esteve lá
pode saber. Parece tomado por mágica. Não sei bem o que é, só sei que me
sinto muito bem ali.
Meus primeiros dias como Mrs Luft estão sendo infinitamente
melhores do que o esperado. E prevejo que será para sempre assim. Espero
não me decepcionar no futuro, mas David é bastante sincero no que diz.
Agora já é tarde e eu devo voltar para nosso quarto. Ele já deve estar
me esperando para dormir.”
Fechei rapidamente o livrinho e o guardei dentro do vestido. Alguém
batia à porta, e eu consegui me recompor do susto bem a tempo da pessoa
entrar.
David ficou confuso quando encontrou nós três ali dentro. Curvamos
respeitosamente a cabeça em sincronia e o observamos, esperando que ele
falasse algo.
— Boa noite. — Sua voz movia-se com leveza e polidez, quase
alegre. — Espero não atrapalhar.
— Não, senhor. Nós só estávamos conversando. — Serafine puxou
Liza para fora do quarto. — Tenham uma boa noite.
Despedi-me com um aceno de cabeça e voltei a observar David. Ele
deu alguns passos para dentro e me examinou demorado, tomando todo o
tempo que precisava – ou queria – para pensar no que ia dizer.
— Gostaria de se sentar, senhor? — Fiz um gesto apontando a cama.
Ele negou com a cabeça.
— Tenho um pedido a fazer. Sei que já está tarde e a senhorita
deveria estar quase se arrumando para dormir, mas gostaria que me
acompanhasse.
Levantei-me sem ao menos indagar aonde iriamos. Ele estendeu a
mão, como se quisesse me envolver pela cintura, mas logo a abaixou e apenas
mostrou o caminho com um gesto de cabeça.
Fui guiada até o sótão que limpara mais cedo. Ele entrou atrás de
mim e acendeu uma lanterna. Eu não saí do lugar. Fiquei parada na frente da
porta, observando seus movimentos.
— Poderia fechar a porta? — Ele pediu ainda arrumando as velas.
Hesitei. David notou que eu não sairia de minha posição e voltou até
mim. “Algum problema?” Ele ergueu a mão para tocar meu rosto, mas logo a
abaixou novamente. “Não se preocupe, eu não irei fazer nada.”
— Eu sei que não irá.
— Então não precisa temer. — Mr Luft passou o braço ao meu lado,
curvando-se sobre mim, quase em um abraço, mas então fechou a porta atrás
de mim. — Sente-se ao piano, por favor.
— Não está tarde para tocar, senhor?
— As paredes do quarto são bem grossas. Duvido que alguém irá
escutar.
Concordei com a cabeça e me movi pelo chão pouco iluminado.
Sentei-me na frente do piano e coloquei os dedos sobre as teclas. David se
sentou no sofá ao meu lado e pregou os olhos em um ponto invisível além de
mim.
— Toque alguma coisa.
Pensei que ele estivesse brincando, mas não estava nenhum pouco.
Meus dedos então dançaram rapidamente sobre as teclas, tirando do
instrumento alguma música que meu corpo inteiro já sabia de cor.
Desacelerei um pouco para observar Mr Luft e, assim que percebeu que eu
pensava em parar de tocar, pediu:
— Não pare. — As palavras escaparam de seus lábios de forma
quase espectral.
“Não pare… Não pare… Não pare…” A voz de David multara-se na
de Gareth e eu grudei os olhos nas teclas, temendo virar o rosto novamente e
me encontrar com aquele ser horrível.
Minhas mãos tocavam desesperadas uma melodia enebriante
acelerada, de tal forma que quase acompanhava o ritmo de meu coração. Eu
estava dando meu melhor, jogando sobre as teclas tudo o que se escondera
dentro de mim e gritando para meu corpo que ele não podia parar de tocar.
Mas os dedos pararam assim que a última nota foi tocada. Pararam e
se afastaram do instrumento com pressa, como se suas pontas queimassem.
Envolvi meu corpo novamente com os braços e abaixei a cabeça.
— Não consigo tocar mais, senhor.
Ele não respondeu. Estava sentado em um canto do sofá onde a luz
não chegava, e respirava ruidosamente. Eu diria que estava chorando,
escondido na escuridão.
— Algum problema, senhor? — Ergui-me temerosa e me sentei a
sua frente. Ele de fato chorava. Eu conseguia ver seus olhos se movendo
como pontos brancos no escuro, passeando sobre mim e evitando meu olhar.
Coloquei as mãos em sua face e sequei as lágrimas. E pensar que era
eu que há minutos me sentia inclinada a deitá-las.
— O que aconteceu, meu senhor?
Ele colocou suas mãos sobre as minhas, mas não as afastou, deixou
seus dedos lá, tocando minha pele.
— Desculpe meu comportamento. — Respondeu depois de muito
tempo. — Eu aqui chorando e fazendo a senhorita se preocupar.
— Não me importo. Por que me trouxe aqui?
— Escutei a senhorita tocando mais cedo e queria ter a chance de
ouvi-la novamente antes que o dia terminasse.
— O senhor está com saudade dela, não está?
— Saudade?
— De sua esposa.
Então, ele retirou minhas mãos e afastou o rosto. “Quando que não
terei mais saudade dela?” sua voz parecia distante, quase que dentro de meus
sonhos.
Eu poderia dizer que aquela dor passaria, que tudo ficaria bem, mas
seria mentir para nós dois.
— Acho que a saudade dói mais quando nos viramos para nossa vida
e descobrimos que não fizemos nada para sair da situação deplorável do
passado. — Sussurrei. — As pessoas vêm e vão. Deixam profundos sulcos
em nossos seres, lembranças boas, amores… Deixam também a promessa de
que o futuro será bom, mesmo se elas não estiverem mais ao nosso lado. Pior
é desistir desse futuro, só porque perdemos a esperança por um mísero
instante.
— A senhorita fala sobre mim. — Sua voz tomou forma, voltando
ao mesmo tom que eu estava muito bem-acostumada. — Diz que eu preciso
falar o que sinto, mas o que eu já percebi que a senhorita também se envolve
com dores do passado. E mesmo assim, parece assustada em contar para
alguém o que aconteceu. Ninguém aqui parece saber algo sobre quem era
você antes de entrar nessa casa.
— Não temo contar minha vida, senhor. Mas foram mais de
dezesseis anos aprendendo a guardar os acontecimentos para mim, que agora
já se tornou algo normal. — Tentei sorrir, mas aquela conversa me
inquietava. — Acho que é sempre mais fácil aconselhar do que seguir nossos
conselhos.
— Não acho nossa situação justa. — David tentou trazer um ar mais
divertido a sua voz, mas pareceu não funcionar junto com nosso estado
emocional. — A senhorita conhece praticamente tudo sobre mim e eu não
tenho nenhuma pista de quem você foi.
— Mas sabe quem sou e isso é o que importa. Um dia talvez eu me
abra com o senhor, mas quero ter certeza que terá superado seu passado antes
de ter contato com o meu.
Ele concordou com a cabeça e não insistiu.
— Miss Evans, você conseguiu fazer o que eu não consegui desde a
morte de minha esposa. Meu filho está feliz e os empregados também.
— E o senhor está feliz?
— Fico feliz porque todos também estão. Mas quero que a felicidade
da senhorita seja verdadeira. Eu a considero uma amiga, alguém que precisei
em minha vida há anos e só agora veio me acolher. E quero que me considere
um amigo também, alguém em quem pode se apoiar.
Eu não comentei. As lágrimas penduradas em meus olhos agora
desciam pelas minhas bochechas, e eu encarava minhas mãos ainda mais
brancas na escuridão.
— Eu também fico feliz porque todos estão bem. — Respondi baixo,
para que a voz não tremesse. Ele não notou meu pranto. — E serei uma boa
amiga para o senhor.
— Naquela noite que voltei bêbado para casa… Falei coisas que não
deveria ter dito. Nada daquilo era verdade, Sam.
— É passado, não se preocupe, senhor.
Ficamos longos minutos em silêncio, eu ainda lutando contra as
lágrimas. David tomou minhas mãos junto às suas e as afagou com carinho.
“Eu a trouxe até aqui e a senhorita fez o que lhe pedi. Agora peça algo e eu
farei para você.”
Pedir algo? Pediria que todos os dias nós pudéssemos ter um
momento como aquele. Que ele me amasse como eu o amava. Que seu
coração fosse só meu. Que meu futuro estivesse entrelaçado ao seu. Que ele
fosse meu final feliz.
— Posso guardar esse pedido para outra oportunidade? — Limitei-
me em perguntar.
Ele concordou com a cabeça. Forcei um sorriso a aparecer. Levantei-
me rapidamente e me despedi, alegando que já estava tarde e era bom ele
descansar também.
Retirei-me antes dele, para que não tivesse chances de ver a dor
descendo pela minha face.
Capítulo 11

Depois da conversa com Mr Luft, passei a noite em claro. Ainda


estava emotiva e, por mais que o sono tivesse chegado depois de algum
tempo, não dormi. Aproveitei para ler o diário.
Mrs Luft narrava pouco de si e muito de David e de seus dias com
ele. Se tivesse lido aquelas páginas antes do que aconteceu, acharia
impossível existir um Mr Luft do jeito que a esposa descrevera.
Mesmo assim, ainda era difícil imaginar David brincando de igual
para igual com Charles, divertindo-se com a esposa e os empregados, ou tão
sorridente.
Claro que eu deveria considerar que ele havia mudado muito desde o
dia que o conhecera e que suas mudanças poderiam evoluir mais e mais,
ainda mais agora com a presença de Lillian. Mas aquele David do diário
ainda parecia muito distante para mim.
Fechei o diário e o guardei embaixo da cama. Faltavam poucas horas
para me levantar, então preferi não tentar dormir.
Ergui-me e fiquei olhando os janelões mais embaçados do que de
costume. Fazia algum tempo que não olhava por aqueles vidros. Caminhei
lentamente até o parapeito, onde me sentei.
Os galhos de uma árvore arranhavam o vidro. Ela havia crescido um
pouco desde minha chegada àquela casa, de tal modo que se eu abrisse as
janelas, poderia descer pelos seus galhos até alcançar o tronco. Estava
plantada no jardim. Era um lugar muito bonito, com flores coloridas que se
mesclavam ao pomar.
Ou talvez não estivesse tão bonito assim. Não havia cor ali com a
falta de luz, e minha cabeça estava zonza, como se não tivesse despertado e
meu corpo se movesse dormindo.
Senti uma imensa vontade de caminhar por aquela vereda em meio
aos botões singelos. Era tão forte que meu corpo semiacordado nem
questionou o que fez posteriormente: empurrei com força o janelão que se
abriu com um rangido alto. Passei a perna esquerda pela abertura e me apoiei
no galho mais próximo ao quarto. Puxei o resto do meu corpo.
Eu parecia uma criança sentada no galho de uma árvore. Acho que o
mais estranho de tudo era eu estar vestida com a camisola, o tecido na altura
dos joelhos e as pernas nuas. Mas ninguém devia estar acordado para me ver
daquele jeito.
Meu corpo foi rápido, escorregou pelo galho e desceu de um pulo
quando se aproximou do chão. Aquilo me lembrava minha infância e as
brincadeiras com mamãe.
O chão coberto por pedrinhas pequenas estava frio e machucava um
pouco meus pés descalços, mas ignorei tudo. Eu estava feliz, não eram umas
pedrinhas bobas e o frio matutino que estragaria aquilo.
Andei em direção às flores.
Amanhecia quando encontrei a casa de Connie. Richard estava
sentado em um banco de madeira um pouco longe de sua casa. Tinha no rosto
uma expressão preocupada e remexia um embrulho de pano com os dedos.
— Bom dia. — Sentei-me ao seu lado. Ele me olhou assustado.
— Ah… Samantha… — Richard abriu um sorriso constrangido. —
Bom dia.
— Eu o assustei?
— Um pouco. Não esperava encontrar alguém aqui tão cedo.
— Senti vontade de passear um pouco. Desci pela janela. — Apontei
o janelão ao longe.
— Isso é perigoso! — Ele advertiu sério. — Ainda bem que não se
machucou.
— Está tudo bem. — Coloquei os pés descalços sobre o banco e
deitei a cabeça nos joelhos. — Mas e o que você faz aqui tão cedo?
— Eu vim pensar um pouco. Os roncos do meu pai atrapalham fazer
isso lá dentro.
— Entendo… Deve ser algo bem complicado para você precisar de
tanto silêncio… Acho melhor não incomodá-lo mais ainda. — Fiz menção de
me erguer, mas ele me segurou pela mão e me obrigou a ficar sentada.
Ele nunca me olhou daquele jeito. Seus olhos me agarravam,
seguravam-me, suplicavam algo. Senti pena de sua confusão e resolvi ficar e
esperar ele dizer algo.
— Preciso de ajuda. — Ele desdobrou o embrulho e ergueu o seu
conteúdo na altura de meus olhos. Era um anelzinho prateado, com um
aspecto barato, mas incrivelmente adorável. — Quero pedir Serafine em
casamento, mas não sei como.
— Ah! Isso é maravilhoso! — Pulei em seu pescoço. Ele se levantou
comigo abraçada a ele. Richard sorria envergonhado. Eu não tinha tanta
intimidade com ele para aquilo, mas a felicidade foi tanta que pouco me
importei com meus modos. — Ela irá adorar… Você pode preparar um jantar
romântico, ou um piquenique, ou levá-la para passear…
Abracei-o novamente. Estava tão alegre com a felicidade alheia que
não conseguia me conter. Richard se divertia com o meu interesse.
— Ou pode ser à luz do luar no jardim de Mr Luft…
— Acho que irei convidá-la para um piquenique. — Ele coçou a
cabeça. — Agora é só preciso achar tempo.
— Hoje. Na hora do almoço. Vou pedir para Janet arrumar tudo.
— Sam, não se preocupe com isso.
— Você não queria a minha ajuda? Agora me deixe ajudar.
— Certo, mas fale escondido, para ninguém desconfiar. Quero que
seja uma surpresa para todos.
Concordei animada com a cabeça
O sol já havia saído. Os pais de Richard faziam barulho dentro da
casa. Abracei Richard mais uma vez saí saltitando pelo caminho do jardim.

Depois de me vestir, e bem mais acordada, fui direto falar com Janet.
A princípio ela riu, mas prometeu arrumar tudo até a hora do almoço.
— Mas você está tão animada e o encontro nem é seu. — Ela
comentou sorrindo para mim.
— Eu gosto de ver a felicidade dos outros. — Respondi também
sorrindo. — Já que parece que irá demorar para eu ter uma como essa.
— Não diga isso. — Ela colocou a mãozona em meu ombro. —
Logo, logo a senhorita arranjará alguém. Não se preocupe se tudo parece
muito difícil agora, as coisas se arrumarão em breve. Basta esperar mais um
pouco.
— Espero que esteja certa. — Concordei alegremente com a cabeça.
Enquanto esse dia não chega, só me basta sonhar.
Era sábado, passaria o dia com o pequeno Charles, esperando chegar
segunda-feira para retomarmos aos estudos. Eu sabia que teria que me
dedicar muito ao pequeno, para não dar chance de minha mente ser tomada
pela curiosidade do desfecho do pedido.
Levei o desejum para a criança como de costume. Ficamos
conversando por muito tempo e percebi que ele estava menos chateado
comigo depois de não ter achado graça do tombo de Miss Ellis. Passamos boa
parte da manhã colorindo e fazendo cócegas um no outro.
Quando sentei para ler sua história favorita, fiquei pensando no
quanto era bom estar com Charles. Ele me deixava feliz. Sentia uma ligação
tão forte com o pequeno que a tomei pelo sentimento de uma mãe por um
filho. Era tão intenso que eu sabia que não me cansaria nunca de ficar ao seu
lado e fazê-lo rir.
E teria ficado, se Serafine não tivesse entrado no quarto anunciando
que levaria Charles para tirar as medidas para as roupas novas.
— Vão ter terminado até a hora do almoço? — Perguntei mordendo
o lábio.
— Provavelmente. — Ela revirou os olhos pensativamente. — Por
quê?
— Curiosidade. — Sorri largo. Serafine me mandou um olhar
desconfiado e enxotou o garoto para fora.
— Sozinha… — Sussurrei para o chão.
Saí do quarto e entrei na porta ao lado. Sentei-me ao piano. Eu
poderia ter subido até o sótão, mas não tinha permissão de Mr Luft para tocar
o instrumento de sua esposa, então me contentei com o da sala de aula.
Toquei uma tecla aleatória e deixei a melodia fluir pelos meus poros.
Não ousei cantar, mas recitava algumas palavras em tom baixo, para mim
mesma:

Não consigo entender


Como tudo aconteceu
Tão rápido e silencioso
Tão mágico e precioso.
Não me via
Amando alguém
Até você surgir
E mudar tudo em mim.
Não buscava me apaixonar
Mas então você estava aqui
E tudo ficou diferente
E agora não sei quem sou.
Eu não esperava me apaixonar
Mas aconteceu
E eu não me entendo
Por estar o amando.
Mas não consigo mais voltar atrás.

Não percebi os passos da pessoa que entrou na sala, nem quando se


sentou na cadeira de Charles. Apenas notei que havia companhia quando
finalizei a música e ouvi calmas palmas às minhas costas. Virei-me assustada
e me ergui confusa.
— Senhor. Desculpe, não o ouvi entrando.
— Não se preocupe. — David se levantou. — Só vim ver se Charles
já saíra para comprar as roupas novas.
— Sim, ele já foi, senhor. — Abaixei minha cabeça. Minha face
acerejou e eu não consegui mais erguer o olhar.
— Tocava algo como… — Ele andou até o meu lado. Deitou as
mãos sobre as teclas.
Tocou as últimas notas de minha música com perfeição. Deixei o
queixo cair, e a sombra de um sorriso surgiu em seu rosto.
— Eu e minha esposa costumávamos tocar algo e desafiar o outro a
acertar as notas. Depois de algum tempo treinando, isso fica fácil. Parece que
não estou tão enferrujado. — Explicou.
— Incrível. O senhor tem um ótimo ouvido. — Voltei a me sentar no
banco. Eu o observava pelo canto dos olhos com curiosidade.
— Permita-me pergunta para quem a música era destinada?
— Senhor? — Fiquei ainda mais pasma com a pergunta. Temi que
ele suspeitasse que fosse para ele. — Para ninguém, senhor.
— Pensei que fosse para Richard.
— Por que achou que era para ele?
— Vi vocês dois se abraçando quando olhei pela janela hoje de
manhã. — Ele encarou fixamente as teclas. Não consegui identificar se estava
com raiva ou envergonhado.
Caí na gargalhada. Ele me fuzilou com o olhar, mas eu não consegui
parar de rir.
— O senhor entendeu errado. Não tenho nada com Richard. Só
estava feliz porque ele vai pedir Serafine em casamento hoje.
Ele coçou a barba por fazer. Parecia que não havia dormido direito
também, já que seus olhos estavam envoltos por pesadas olheiras e seu
semblante era de cansaço.
— Eu só estava com vontade de tocar algo. — Toquei novamente o
início. — Mas… Por que isso lhe interessa?
David perdeu a cor por míseros segundos. Sua boca se abriu um
pouco, ele parecia pesar muito as palavras para não dizer algo que se
arrependesse depois.
— Porque achei estranho a senhorita e ele. Não que não formassem
um belo casal caso fossem um… — Ele falava rápido e eu tentava não rir. —
Mas nunca a vi com ele ou falando sobre ele…
— Seria um pouco estranho.
— Um pouco.
Ficamos nos fitando. Ele chegou com o rosto perto do meu e quando
eu percebi que estava prestes a me beijar, levantou e virou-se de costas para
mim.
— Tenho que ir. — Disse alto. — Tenha um bom dia, Miss Evans.
— O senhor também.
Ele fechou a porta com um clique surdo, o pior barulho da minha
vida. Significava que ele havia ido embora. Deixara-me depois de quase me
beijar – e eu tinha certeza daquilo.
Deitei a cabeça nas teclas e fiquei ouvindo o som estridente.

Anneliza estava sozinha na cozinha quando entrei. Era um pouco


antes da hora do almoço, mas Janet não estava lá. Sentei-me à mesa junto
com ela e fiquei observando sua expressão curiosa e nervosa.
— Você está bem? — Perguntei. Ela roeu a unha do polegar.
— Serafine e Richard saíram para um piquenique. Richard parecia
esconder algo e eu quero saber o que é.
Rodei os olhos. Mordi meu lábio com força para me impedir de
falar.
— Você sabe?! — Ela se ergueu sobre os braços. — Me conte.
— Eu prometi não contar… — Evitei encará-la.
Ela agarrou minhas mãos e me lançou um olhar suplicante.
— Está bem, irei lhe contar, mas tem que prometer que fingirá
surpresa. — Como ela concordou com a cabeça, segredei o que tanto queria
saber.
Anneliza levantou-se de um pulo, quase me derrubando com tanta
pressa. Pegou meu braço e foi me arrastando até a porta dos fundos.
— O que você vai fazer? — Perguntei temendo a resposta.
— Vamos vê-los, ora.
— Mas isso seria invadir o momento deles.
— Ela é a minha irmã, eu tenho o direito.
— Vamos andando até lá? Até chegarmos eles já estarão voltando.
— Vamos pegar o cavalo do amo emprestado, paramos ele longe dos
dois e continuamos a pé.
— A senhorita já sabia o que ele ia fazer, não é?
— Sim, — Ela riu da minha cara de boba. — mas eu queria uma
cúmplice.
Liza agarrou meu braço direito e eu não consegui me livrar de suas
mãos só com o esquerdo, então deixei que me levasse até o estábulo.
David possuía quatro lindos cavalos, Liza me apresentou seus nomes
e seus respectivos donos. O cavalo negro, Ton, pertencia a Mr Luft, era um
cavalo grandão, alto e com porte majestoso. Ali havia dois cavalos marrons,
Salt, o cavalo do pequeno Charles, e L.M, a égua que servia para os visitantes
e tarefas cotidianas. Estes dois últimos puxavam a carruagem da casa. Fiz um
carinho em L.M, em parte por agradecer pelo que fez com Miss Ellis, em
parte por ela me olhar suplicante.
O último cavalo estava mais distante dos outros. Era uma linda
fêmea, toda branca e quase tão grande quanto Ton, mas infinitamente mais
bela. Parecia aqueles cavalos de histórias de príncipes e princesas. Aliás, seu
nome era Princesa e eu descobri que havia sido o cavalo de Mrs Luft.
— Richard tem muito trabalho com essa garota. — Liza comentou
notando que meus olhos não se despregavam do animal. — Mr Luft gosta
muito desta égua e quer sempre que ela esteja bem. Veio com Patrícia quando
ela se mudou para cá e ela sempre tratou muito bem sua companheira.
— David deve sentir muitas saudades dela.
— Só ele deve saber quanta…
Ela colocou um pano sobre o dorso de L.M e subiu. Eu montei logo
atrás e abracei sua cintura.
— Se prepare porque esta garota corre muito.
E como corria. Não demorou para chegarmos ao córrego perto de
onde o casal havia arrumado as coisas. Prendemos L.M em uma árvore antes
da ponte e continuamos o percurso a pé.
Richard estava abraçado a Serafim. Eu e Liza nos escondíamos em
uma moita atrás dele. Tentávamos não fazer muito barulho, mas até nossa
respiração queria nos denunciar. Era um dia quente e nós suávamos. Nossa
posição, agachadas uma ao lado da outra, e as roupas que usávamos não
ajudavam nenhum pouco.
— Serafine… — Richard falou para ela. Seus olhos mantinham-se
pregados ao rosto envergonhado da moça. Ao meu lado, senti Anneliza
prender a respiração.
Ela o encarou curiosa, esperando que acabasse sua frase.
— Eu me sinto tão bem quando estou com você.
— Eu também, meu amor.
— E eu te amo tanto…
Ela se afastou um pouco, para poder analisá-lo melhor. Não tirava os
olhos da boca do rapaz e acreditei que almejava beijá-la.
— Você é a mulher com quem eu quero viver o resto da minha vida.
— Ele continuou. Pegou o embrulho no bolso e esticou na direção dela.
Abriu-o vagarosamente, aumentando a tensão. Serafine levou as mãos à boca.
Seus olhos brilhavam de excitação. — Você quer se casar comigo?
— Como posso não querer se você é a pessoa que mais amo em todo
mundo?
Serafine agarrou o pescoço do namorado e o derrubou de costas.
Eles se beijaram demoradamente. Richard se distanciou um pouco para
conseguir colocar o anel no dedo da moça, mas logo voltou a beijá-la com
carinho e desejo.
Não pude me impedir de invejá-los, não só por desejar passar por
aquela situação com David, mas por me lembrar que meu primeiro noivado
não passou de um imenso caos.
Mas sorri. A felicidade do casal era contagiante e eu sabia que
duraria por muito tempo.
— Acho que agora você pode ir falar com as garotas. — Richard
apontou a moita em que estávamos escondidas. Liza se levantou apressada.
— Como vocês sabiam? — Ela pôs as mãos na cintura e riu.
— A culpa foi da Liza, ela me obrigou a falar e a vir. — Tentei me
desculpar.
— Não se preocupem. — Richard também riu. — Nós ouvimos os
cascos do cavalo de longe. E onde ele está? O amo irá colocar todo mundo na
rua se acontecer algo com os cavalos dele.
— Perto da ponte. — Liza apontou a direção, visivelmente
decepcionada.
Richard e Serafine arrumaram as coisas de volta dentro da cesta. O
rapaz pegou tudo e foi na frente. Serafine ficou com a gente.
— Isso não é maravilhoso?! — Ela ergueu na altura de nossos olhos
o dedo com o anel. — Não acredito que está acontecendo de verdade.
— Fico muito feliz por você. — Sorri.
Anneliza abraçou a irmã com força e ela correspondeu do mesmo
modo. Fiquei em silêncio, deixando as duas com sua intimidade fraternal.
Elas mereciam achar sua felicidade. Usei aquele tempo para apreciar as
árvores ao meu redor, tentando por tudo manter Mr Luft longe de minha
cabeça.
— A senhorita não vai falar nada? — Liza me empurrou com seu
ombro. Foi mais forte do que eu esperava, ou não esperava. Estávamos
exatamente no meio da ponte, eu me desequilibrei e caí em direção ao
córrego.
Senti a água me engolindo, mas não percebi imediatamente o que
havia acontecido. Só depois de alguns segundos consegui fazer meu cérebro
entender onde estava e nadei para a superfície.
Liza e Serafine estavam com os braços apoiados sobre a grama.
Tentavam me ver, mas a água era turva demais para aquilo. Aproveitei que
estava praticamente invisível e agarrei o braço de cada uma, puxando-as para
dentro da água.

O sol já descia no horizonte quando alcançamos a mansão.


Demoramos mais do que esperávamos, divertindo-nos naquela calma tarde.
Ríamos alegremente, mas nos calamos de imediato quando fomos recebida
por uma Connie zangada. Estávamos encharcadas, com os cabelos soltos
pendendo sobre os vestidos danificados.
— É melhor não molharem a casa. — Constance foi até o armário da
dispensa e nos jogou três toalhas.
— Obrigada. — Tentei sorrir, mas ela me reprovava com tanto
fervor que ficara difícil não me constranger.
— Vocês duas. — Connie apontou para elas. — Não têm trabalho a
fazer?
— Sim, senhora. — Falaram em uníssono e foram correndo para a
cozinha.
— Eu esperava mais da senhorita. — Virou-se novamente para mim.
— Senhora? — Perguntei sem entender.
— Acho que deveria se comportar como uma moça de sua posição.
Não tem mais doze anos de idade, Miss Evans.
— Por que diz isso?
— Samantha, minha querida. — Ela segurou minhas mãos. — Mr
Luft nunca aprovou seu comportamento infantil. Deveria pelo menos tentar
refrear.
— Mas essa sou eu. — Puxei minhas mãos para longe dela.
— Eu sei, meu bem. Mas… Não é como Anneliza ou Serafine, o
amo não espera muito delas. Mas com a senhorita é diferente. Ele nunca mais
havia sorrido antes de você aparecer, e eu gosto muito de vê-lo feliz. Então,
poderia tentar ser só um pouco diferente, para ele não arrumar motivos para
você ir embora.
Ela fez uma breve pausa e continuou:
— Não é exatamente por isso, mas com Lillian em casa temo que ela
coloque ideias errôneas na cabeça de David e isso faça com que ele veja a
senhorita com outros olhos.
— Eu só estou sendo feliz. E não posso… — Respondi firme de
queixo erguido.
— Era só isso que queria dizer. — Ela me cortou e foi em direção à
cozinha.
Senti lágrimas frias descendo pelo meu rosto ainda molhado. Subi
para meu quarto. Eu sentia minhas pernas tremendo e o ar faltando nos
pulmões. Meus lábios vibravam secos e meus olhos ardiam.
Será que Connie escutara alguma conversa entre Lillian e David? E
será que algum dia Mr Luft daria razão à amiga?
Eu estava de cabeça baixa quando passei pelo quarto de meu amo.
Ele estava entrando, mas parou e olhou para mim. Minha cabeça desceu mais
ainda, e eu acelerei o passo.
— Miss Evans? — Ele se adiantou e segurou meu ombro, mas eu me
desvencilhei de sua mão.
Não sei como cheguei ao quarto. Eu não estava prestando atenção no
que fazia. Fechei a porta e minhas pernas cederam. Minhas mãos agarraram
meu rosto e as lágrimas finalmente se sentiram livres para descerem. Eu
sentia raiva, tristeza e repulsa. Tudo de mim. Deveria ser aquilo que todos
pensavam quando me viam. Eu era apenas uma criança para todos e não
passaria daquilo.
Fiquei de joelhos, abraçando meu corpo e tentando me fazer parar de
soluçar. Alguém bateu à porta. Eu poderia fingir que não escutara, mas não
iria melhorar nada.
— Samantha? — A voz de David foi abafada pelos meus soluços. —
Está tudo bem?
— Sim. — Sequei as lágrimas com as mãos. — Eu estou bem.
— Sua voz está chorosa, e a senhorita estava estranha e encharcada
no corredor. Não pode estar tudo bem.
Ah, David, tantas coisas não estão bem que eu nem ao menos saberia
por onde começar.
— Senhor, não é nada, acredite. Não se preocupe.
— Eu me preocupo. A saúde de meus empregados é importante para
mim. — Ouvi suas costas descerem pela madeira. Ele havia se sentado no
chão.
— Não estou doente, senhor. — Apoie-me na porta também. Havia
acabado de passar de amiga para empregada em menos de um dia.
— Espero que não esteja, mas sua tristeza é como se fosse a pior das
doenças.
Eu fiquei em silêncio. Deveria falar só por falar, apenas para que eu
não adoecesse chorando por besteira. Eu não importava a ele.
— Todas as pessoas ficam tristes. — Comentei.
— Elas ficam, não é mesmo? Mas a senhorita sempre arruma um
jeito de parecer sempre bem.
— Eu quero ficar sozinha. — Falei finalmente. Ele ficou em
silêncio.
— Acho melhor eu ir. Sinto muito me intrometer em sua intimidade.
— Ele se levantou.
Eu encostei minha orelha na porta e ouvi os passos de Mr Luft se
afastando. Fiquei lá por alguns instantes antes do vestido encharcado começar
a me incomodar.

Acabara de me secar e estava vestindo uma nova roupa quando


alguém bateu à porta. Arrumei-me rapidamente e abri a passagem na
esperança de ser novamente David. Não era, mas não me desapontei. Charles
me olhava com olhos desejosos, trazia um livro de histórias preso junto ao
peito.
— Boa noite, meu bem, já estava descendo para o colocar para
dormir. — Beijei sua cabeça.
— Sam, está tudo bem?
— Sim, está sim. — Sorri.
— Seus olhos estão inchados.
— Está tudo bem.
— Então poderia ler uma história para mim?
— Claro. — Peguei o livro. Pelo título percebi que se tratava de
mais uma história sobre a Lenda de Artur, o tema favorito de Charles. Puxei a
criança pela mão até minha cama e o sentei em meu colo.
“Há muito tempo, um cavaleiro de nome…”
Capítulo 12

Charles dormiu ao meu lado. Tínhamos lido até tarde e ele


adormeceu ali mesmo. Descansava tão profundamente e de modo tão
angelical que me deu pena de acordá-lo para que fosse para sua própria cama.
Peguei-o delicadamente em meu colo, meu braço reclamou do peso, mas o
ignorei. Ele se remexeu, aninhando-se em meu ombro. Desci com ele até seu
quarto e o deitei na cama.
— Bom dia, Miss Evans. — Encontrei Connie quando saía do
quarto.
— Bom dia. — Respondi sem muita vontade.
— Não queria que ficasse triste com o que disse ontem. Não acho
um problema seu jeito de ser, mas só penso que talvez devesse…
— Não fiquei triste, senhora. Acho que tem razão, meu
comportamento ontem não foi condizente com meu trabalho dentro dessa
casa ou com minha idade.
— Sei que ficou. O amo veio falar comigo. Perguntou o que havia
acontecido com a senhorita. Estava muito preocupado com você.
— Tinha dito que estava tudo bem. — Falei baixo com meus botões.
Então, mudei de assunto. — Só trouxe Charles para o quarto, vou subir e me
arrumar.
Connie concordou com a cabeça e eu a deixei.
Mais tarde no mesmo dia, eu estava lecionando Matemática para
Charles quando David entrou na sala. Ele não disse nada, sentou-se em uma
cadeira perto da porta e ficou nos olhando. A princípio, estranhei, mas
também não comentei, continuei a aula como se nada tivesse acontecido.
— Acho que está bom de Matemática por hoje. — Sorri para
Charles. Ele concordou com a cabeça, não gostava nenhum pouco da matéria.
— Acho que deixei o livro em Francês em seu quarto, será que poderia pegar
para mim?
— Sim, Sam. — Ele fechou os livros e correu para a porta. Parou à
frente do pai. — Olá, papai. Quando o senhor chegou aqui?
— Há pouco tempo. — Ele respondeu carinhosamente. — Vá logo
fazer o que Miss Evans pediu, sim?
— Sim, papai. — Sorriu e deixou a sala.
— Charles é um garoto inteligente. — Virei para o quadro, de costas
para David. Empilhei os livros de matemática, tentando organizá-los. — E a
cada dia fica ainda mais.
— É… — Ele respondeu. Não estava muito interessado em falar
sobre Charles, então entendi que fora ali com outras intenções. — Acho que a
senhorita não fará nada amanhã à noite…
— Eu? — Larguei os livros que segurava. Eles se espalharam
novamente sobre a mesa. Pelo menos um motivo para não olhar para Mr Luft.
— Por quê?
— Porque fui convidado para um baile e pensei que você gostaria de
ser meu par.
Minhas bochechas queimaram violentamente.
— Por que não leva Miss Ellis?
— Eu pensei em chamá-la, mas Lillian está viajando.
— Não teria outra… Pessoa? — Eu bagunçava ainda mais os livros
no lugar de empilhá-los.
— Não, pelo menos não alguém próximo… E eu gostaria de ir com
uma amiga. — Senti sua mão puxando meu braço. Ele me virou e segurou
minha pele com rigidez para que eu não corresse dali. E eu me senti
imensamente tentada a correr. — O que me diz?
— Eu… Não posso senhor…
— Por que não?
— Tenho que arrumar as aulas de Charles…
— Amanhã é sexta, você pode arrumar no sábado.
— Mas eu vou ter que cuidar de Charles.
— No horário do baile, Charles já vai estar dormindo.
— E minhas roupas não são adequadas para a ocasião.
— Não se preocupe, a senhorita tem a mesma estatura de minha
esposa, pode pegar um vestido emprestado no sótão.
— E eu não sei dançar. Não quero o envergonhar.
— Eu também não sei. — Ele sorriu. Aproximou o rosto do meu,
seu hálito fresco beijava minha face. — Se não tiver mais nenhuma
desculpa…
— Não tenho, senhor. — Cedi tomada por aquela perigosa
proximidade.
— Então está acertado. — Ele se afastou. — Amanhã a senhorita
escolherá um vestido no sótão… Qualquer um estará bom. E nos
encontramos no salão de entrada.
Concordei com a cabeça baixa. David já estava saindo pela porta
quando o pequeno chegou, então Charles não viu a cena constrangedora que
me fizera acerejar. A criança me entregou o livro.
Respirei fundo e sorri para meu pupilo.

Charles estava agitado. Queria saber o que eu e David tínhamos


conversado. Ele remexia os livros, o lápis e tudo o que tinha ao alcance.
— O que conversaram? — Ele perguntou pela milésima vez. — Me
conta.
— Um dia talvez você descobrirá.
Ele cruzou os braços.
— Podemos brincar um pouco? Estou cansado de estudar.
— Tudo bem. Acho que já estudamos o suficiente por hoje… Você
quer brincar do quê?
— Vamos brincar de esconder. Eu me escondo e você procura.
— Por mim tudo bem, desde que você não corra por aí e não quebre
nada.
— Prometo. — Ele alargou o sorriso. — Feche os olhos e conte até
50.
— Certo… — Coloquei as mãos na frente dos olhos. Ouvi os passos
de Charles correndo para fora da sala. — 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10…50!
Pronto ou não lá vou eu.
Eu me levantei calmamente e fui para o corredor. Dava para ouvir os
passos apressados de Charles, ele deveria ainda procurar um bom
esconderijo. Eu andava dançando, como se não me importasse com o jogo.
Desci as escadas alegremente e me virei para a sala de estar.
— Não fale para Miss Evans que estou aqui, papai. — Ouvi a voz de
Charles.
Esperei alguns segundos antes de resolver entrar.
— Boa tarde, senhor. — Sorri. — Será que o senhor viu um
rapazinho baixo, de cabelo castanho e olhos claros por aí?
— Hm… — Ele levou a xícara que segurava a boca. — Ele estava
usando uma camisa azul e short marrom?
— Sim, senhor.
— Não, não vi. Ele deve ter se escondido em outro lugar, mas não
aqui.
— Interessante… — Eu arquei a sobrancelha. Aproximei-me da
cortina e fiz menção de abri-la. — Mas eu não disse que ele estava se
escondendo…
Abri a cortina. Charles estava com as mãos no rosto, talvez
acreditasse que se ele não podia me ver, eu também não poderia vê-lo.
Encostei os lábios na cabeça dele, e ele me empurrou para trás.
— Isso não é justo. — Cruzou os braços.
— Agora é a sua vez de contar e eu vou me esconder.
Ele fechou os olhos. Andei calmamente até David e me escondi atrás
da poltrona dele. Ele continuou tomando o chá como se nada tivesse
acontecido.
— Pronta ou não, aí vou eu. — E ele correu para fora da sala de
estar.
— A senhorita é muito esperta. — David comentou sem olhar para
mim.
— Isso foi um elogio?
— Creio que sim. Por que não se senta e toma um pouco de chá?
— Devo avisar Charles, ou ele irá ficar me procurando. — Dei um
passo em direção a porta, mas ele me puxou pela mão.
— Sente-se. Logo ele desiste.
— Sim, senhor. — Sentei-me na poltrona de costume. Ele me
entregou uma xícara de chá e ficamos em silêncio, bebendo e nos
observando.
Eu não estava com vontade de conversar com ele, já que sabia que
aquele estranho constrangimento me tomaria de novo. Ele também nada
falou, então não seria eu a puxar assunto. David escrevia algo no bloquinho e
estava muito entretido naquilo. Apoiava-o sobre o encosto de braço voltado
para ele e eu não conseguia ler o que estava escrito.
— Isso lhe interessa. — Ele colocou o indicador sobre o bloco.
— Bem… Um pouco. — Preferi não menti. — Mas é porque eu
adoro ler.
— Ou porque é curiosa. — Ele sorriu. Como ele ficava diferente
sorrindo. — Você gostaria de lê-lo?
— Não, senhor. — Neguei veementemente com a cabeça.
— Gostaria sim. Pegue. — Apontou o bloco para mim. Ergui a mão
para pegá-lo, mas David o puxou para junto de si. — Talvez outro dia.
— Isso não é engraçado. Vou procurar por Charles.
— Sim, faça isso. — Ele continuava sorrindo da minha cara de boba.
— Não tem nada demais nesse bloco, mas, se lhe interessa tanto assim lê-lo,
prometo que deixarei um dia.
— Isso foi realmente uma promessa?
— Sim, foi uma promessa.
— Obrigada. — Saí sorrindo da sala.

Acordei no dia seguinte jogada no chão. Estava enrolada nos lençóis


de um jeito que minhas pernas quase não conseguiam se mexer. Não me
lembrava se sonhei com algo. A única coisa que havia pensado a noite inteira
era no sorriso de David e no convite dele. Estava tão feliz que nem parecia eu
mesma. Se pudesse sairia rolando pelo quarto rindo. Mas, mesmo estando
sozinha e muito alegre, me pareceu estranho. Então fiquei encarando o teto.
Alguém bateu à porta em uma frequência frenética. Desenrolei-me
do lençol e subi apressada a cama. Permiti que entrasse, e Anneliza voou pela
porta, sentando-se à minha frente e me encarando com olhos iluminados de
excitação. Ela também vestia sua camisola e seus cabelos ainda não tinham
visto uma escova naquela manhã.
— É verdade o que Connie falou?
— E o que ela falou?
— Que Mr Luft a convidou para um baile. — Seus olhos chegavam
a ser quase intimidadores de tanto que me devoravam de curiosidade.
— Ah, é verdade. Mas ainda não sei se é uma boa ideia. Ele disse
que eu poderia pegar algum vestido no sótão, mas…
— Isso é maravilhoso! Quer dizer que ele gosta da senhorita, mesmo
que um pouco. E nem para você me contar as novidades.
— Não contei porque ainda não estava tão certa. — Rodei os olhos
para baixo, não era apenas aquilo que escondia, mas toda a conversa no sótão
com David também. — A senhorita é sempre tão otimista assim? —
Empurrei-a para o lado. — David só precisava de um par. Acho que o que ele
menos quer é ir sozinho e virar o alvo de alguma solteirona. E eu nem fui sua
primeira opção, só me escolheu porque Lillian está viajando e ele não tinha
mais ninguém para levar.
— Viajando? — Ela desceu da cama. Seus olhos se prenderam no
chão também, de forma pensativa, quase misteriosa. Indague-lhe com um
chiado o que a incomodava e ela voltou a me olhar. — Eu fui à cidade ontem
e encontrei Miss Ellis.
— Talvez ela viaje hoje e não possa ir à noite.
— Talvez… Enfim, quando acabar suas tarefas arrumaremos um
lindo vestido para a senhorita.
Concordei com a cabeça e ela se retirou, quase trotando de
felicidade. Liza estava tão feliz quanto eu.
Mais tarde, quando subi com o café da manhã de Charles,
surpreendi-me ao entrar no quarto e encontrar David sentado na cama com o
filho. Estavam brincando com os bonequinhos medievais do garoto. Ambos
usavam suas roupas de dormir e aquilo me deixo envergonhada.
Fiquei ao lado da porta, observando em silêncio a cena que animou
minha manhã. Charles estava no colo do pai, David o envolvia em quase um
abraço, passando os bonequinhos para sua frente e fazendo questão de manter
o rosto perto do rosto do filho. Os dois riam felizes, uma felicidade esquecida
no tempo e retomada naquele instante.
Caminhei ainda em silêncio e deixei a bandeja na mesinha. Quando
estava saindo do quarto, David pediu para que eu não me retirasse.
— Eu já estava de saída. — Ele se levantou.
— Não, senhor. — Ergui alto as mãos, dizendo para que não saísse.
— Não quero estragar esse momento entre vocês dois.
Virei-me novamente para a porta, mas ele foi mais rápido. Deteve-
me pela cintura e sussurrou em meu ouvido para eu não me preocupar.
Minhas bochechas queimaram de tal modo que afetaram o movimento das
minhas pernas. O perfume de David a centímetros de meu rosto acertou
minhas narinas.
— Eu já estava de saída. — Repetiu, largando-me e continuando seu
caminho.
Eu ainda sentia seu calor junto a minha face. Sentia meu coração
acelerado e a as pernas bambas. Aquilo não estava certo, eu não deveria ter
ficado tão afetada com aquela proximidade. Não existia nada entre nós dois e
eu deveria parar de fantasiar que sim.
Virei-me constrangida para Charles. A criança me cumprimentou
com um imenso sorriso e se levantou para tomar café. Anunciei que talvez
não passasse o final da tarde com ele e aquilo foi a deixa para ele me
bombardear novamente com perguntas.
— Que menininho curioso. — Sorri. — Termine de comer, meu
bem. Talvez depois eu lhe conte.
Tive que deixar Charles mais cedo do que queria. Connie pediu para
que eu subisse para o sótão, onde Anneliza me aguardava. Quando entrei no
quartinho, ela já havia retirado todos os vestidos do guarda-roupa e os
espalhava sobre o sofá.
As roupas de Mrs Luft eram lindas, todas seguindo uma moda
passada, mas feitos de tal forma que ainda encantavam imensamente quem as
via. Passei os dedos sobre o tecido de um vestido e sorri ao lembrar que
naquela noite eu usaria um deles.
— Você tem que experimentar todos. — Liza me puxou pelo braço e
me colocou a frente do espelho perto do guarda-roupa.
— Mas eu só preciso de um vestido. Qualquer um vai servir.
— Samantha Evans, eu estou aqui fazendo trabalho de cupido e não
quero que atrapalhe. — Lançou-me um olhar divertido, fazendo-me rir. —
Você tem que estar linda, mais linda do que qualquer outra mulher das
redondezas.
— Eu tenho que estar invisível. Estarei lá apenas por falta de opção
e não quero envergonhar Mr Luft com a minha presença, afinal, eu não deixo
de ser só uma empregada. Também não quero que fiquem fazendo perguntas
impertinentes sobre minha relação com meu amo.
— Mr Luft não a convidaria apenas “por falta de opção”.
Simplesmente, ele não iria para o baile, como não foi em tantos outros. E a
senhorita não vai envergonhar ninguém, estará maravilhosa, e David não vai
nem ao menos conseguir tirar os olhos de você.
Sorri para mim mesma pensando nos olhos que David não tiraria de
mim.
Anneliza me estendeu um vestido azul e me ajudo a vesti-lo. Ela
deveria ter feito aquilo inúmeras vezes com Patrícia, já que não teve nenhuma
dificuldade. Mas aquele vestido, segundo Liza, ainda não estava bom. Então
me fez experimentar outro. E outro. E outro. E outro.
Nenhum ficava do jeito que ela queria, mesmo eu tendo gostado de
vários que vesti. Continuava me entregando vestidos e mais vestidos. Até
exclamar que já sabia a roupa perfeita.
Correu até o guarda-roupa e retirou a única peça que permanecera
ali. O vestido rosa.
— Este vai ficar perfeito. Combina com o seu tom de pele e é
animado, bem melhor do que seus vestidos escuros sem graça.
— Liza, não acho que é uma boa ideia. Mr Luft com certeza deveria
ter outros planos para ele.
— Ele disse que você poderia pegar qualquer um, não é mesmo? Vai
ser esse.
— Se David reclamar, direi que a culpa é toda sua.
— Você estará tão bonita que ele não vai arrumar palavras para
reclamar. Agora vista.
Coloquei o vestido com cuidado. Sentia o tecido beijando minha
pele, tocando-me com leveza e me envolvendo de tal modo que também
soube que estava perfeito em mim. Anneliza me ajudou com os cordões,
puxando-os com tanta força que por pouco não consegui mais respirar.
— Aguente mais um pouco. — Ela os puxou novamente.
Minha cintura diminuiu consideravelmente e meus seios se
projetaram em meio ao decote. Já imaginava porque Mrs Luft nunca havia
usado aquela roupa. Afaguei minha cintura por algum tempo. E eu pensava
que não teria que usar um corset tão cedo. Pelo menos não tinha que colocar
a minha gaiola.
— Ele ficou lindo em você. — Anneliza estava muito satisfeita, até
mais do que eu.
Sorri de lado, evitando comentar que estava morrendo ali dentro. Ela
caminhou até a gaveta de sapatos e retirou um salto rosa. Eu me recusei a
calçá-lo, já que David apenas permitira eu pegar um vestido emprestado.
Nada de sapatos.
Ela, por outro lado, não estava nenhum pouco incomodada. Forçou-
me a sentar no sofá e jogou meus sapatos longe. Por fim, examinou-me de
cima a baixo.
— Está perfeita. — Declarou. — Vou pedir para Serafine cuidar de
seu cabelo.
— Liza, não precisa… — Ergui os braços a fim de segurá-la, mas
era tarde demais. Ela havia atravessado a porta e eu me vi sozinha.
O tempo que tínhamos até a saída para o baile foi gasto com os
últimos retoques. Eu havia pedido para passar o resto da tarde com Charles,
mas, mesmo assim, as irmãs não me deixaram quieta por um minuto sequer.
Em suma, eu estava com três pessoas mais animadas do que eu com o
encontro.
A criança estava tão eufórica que gastou toda sua energia antes
mesmo da hora de dormir, e eu o levei mais cedo para o quarto. Mas me
livrar de Liza e Serafine não seria tão fácil.
Meu cabelo foi arranjado tantas vezes e minhas bochechas
beliscadas tantas outras, que pensei por um instante em desistir de tudo e ir
logo dormir. Mas não fui.
Estava sentada na frente do espelho no sótão. Havia distanciado
minha mente do quarto e só prestava atenção em meu reflexo. Eu estava
realmente muito bonita, tão diferente que pouco me reconhecia. Lembrava
mais minha mãe do que a pessoa que sempre fui.
— David irá ficar surpreso. — Comentei com elas. Eu sabia que era
verdade, já que nem eu acreditava no que via.
— Com certeza. — Liza sorriu de lado. — Nem parece você
direito… Acho que exageramos.
— Não. Não. — Serafine negou animada. — Está perfeita desse
jeito. O amo irá adorar.
Constance entrou sem bater, parou sorridente ao meu lado e
anunciou que Mr Luft já estava me esperando no térreo. Concordei com a
cabeça e respirei fundo. Era aquilo. A hora finalmente chegara.
Desci vagarosamente a escada, ainda respirando fundo e me
concentrando em meus pensamentos. Queria me convencer a não parecer
uma boba ao lado de meu patrão, nem de seus amigos. Precisava me
comportar, lançar mão de todas as odiosas etiquetas que um dia aprendi e
fazer com que ele se orgulhasse de mim.
David observava algo pela porta aberta. Estava sério como de praxe,
e seus cabelos se bagunçavam com o vento noturno. Virou o rosto quando
meu ouviu chegando. Seus olhos arregalaram-se e eu senti o embaraço que
caiu entre nós. Tratei de afastar a vergonha e o cumprimentei.
— Está incrível. — Elogiou-me, baixo, com a voz trêmula. Agradeci
com um sorriso tênue. — Podemos ir?
Mr Luft me acompanhou até a carruagem e me ajudou a subir. Deu
sinal para Richard partir. Não demorou para chegarmos ao baile. Era em uma
casa quase tão grande quanto a de David, mas com longos muros de pedras e
plantas altas. Assemelhava-se a uma fortaleza. Não era tão bela quanto a casa
de Mr Luft, mas tinha sua beleza. Eu não estava muito interessada pela
arquitetura, mas fiquei examinando-a para não ter que olhar David.
Richard abriu a porta para descermos. David me estendeu a mão,
mas eu a evitei. Não por falta de educação ou vontade, mas por vergonha.
Caminhamos a passos lentos até a entrada.
Um senhor baixo e gordinho veio pulando nos receber.
— David Luft! — Ele deu palmadinhas nas costas de meu par, o
lugar onde alcançava. O senhor estava surpreso e animado com a presença
dele ali. — Pensei que não iria vir. Há quanto tempo não o vejo em um baile?
— Há algum tempo com certeza. — Ele o cumprimentou com muito
menos animação.
— E quem é esta bela dama?
— Samantha Evans. — Abaixei a cabeça respeitosamente e a ergui
ainda a tempo de ver o olhar de reprovação que o anfitrião me lançou.
— Sou Josh Ferfait. — Respondeu por fim. — Juntem-se aos outros.
Já estão todos aproveitando.
— Obrigado. — David concordou educadamente. Envolveu minha
cintura com o braço, puxando meu corpo para mais perto do seu e me guiou
até o enorme salão.
O lugar estava cheio, mas não tanto quanto eu esperava. Acho que os
vestidos ocupavam mais espaço do que as pessoas em si. Os presentes nos
encararam quando entramos. Olhavam para mim na verdade, e então eu
fiquei com vergonha da minha roupa por chamar tanta atenção.
— Não se preocupe. — David sorriu. — Ignore eles.
— Não estou preocupada com eles, mas com o senhor. Não quero
estragar sua imagem.
Ele riu de deboche do meu comentário, mas não disse nada. Puxou-
me para um círculo de senhores que discutiam alto e bebiam vinho. Fui
apresentada a todos e também recebi o mesmo olhar de reprovação.
Aquilo me inquietou. Eu não fizera nada errado para todos estarem
me olhando daquele jeito. Então, intensifiquei meu comportamento ideal e
passei pelo menos uma hora ao lado de Mr Luft, apenas maneando a cabeça
ou fingindo que estava muito interessada no que discutiam.
— Vou levar esta senhorita para dançar um pouco. — David me
puxou novamente, agora pelo braço. Com certeza percebeu o meu desânimo.
Eu quis agradecê-lo por ter me tirado dali.
— Pensei que não soubesse dançar. — Sussurrei em seu ouvido,
enquanto ele me puxava para onde outros casais dançavam.
— Sou bom de improviso.
— David! — Uma voz fina e chata o gritou do meio do salão. David
ficou automaticamente sério e virou-se para ver quem era.
Miss Ellis vinha correndo, arrastando seu vestido longo e volumoso.
Parou um pouco antes e me encarou.
— O que ela está fazendo aqui?… Desculpe a pergunta.
— Eu queria que ela se divertisse um pouco. — Ele respondeu sem
se abalar. — Samantha é meu par nesta noite.
Lillian não ficou nenhum pouco contente e nem ao menos fez
questão de esconder.
— Poderia me convidar para dançar? — Indagou depois de muito
me desprezar com os olhos.
— No momento não posso, Lillian. Já prometi a outra dama que
iriamos dançar. — Olhou de esguelha para mim. — Mais tarde, com certeza,
dançaremos, está bem?
— Sim… — Respondeu seca. — Esperarei.
Antes de se afastar, lançou-me o pior olhar de ódio que alguém
poderia dirigir a outra pessoa. Eu continuei séria. Fingia que ela nunca
estivera ali.
— Pensei que o senhor havia dito que ela estava viajando. —
Comentei.
— Deve ter voltado cedo.
Revirei os olhos. Sabia que ele estava mentindo, mas não queria
pensar naquilo, não naquele instante e muito menos em Lillian.
Entrei em um estranho estado de estupor então. Tinha me desligado
completamente de tudo. Eu senti David colocar a mão em minha cintura e me
puxar para perto. Senti meus pés movendo-se no ritmo, mas eu não estava me
importando. Fiquei assim uma dança inteira. Apenas o que me importava era
o toque dele e sua respiração no mesmo ritmo da minha.
— Pensei que não soubesse dançar. — Ele comentou ao término.
— Sou boa de improviso. — Sorri.
— Vou pegar algo para bebermos. Sente-se ali, já volto.
Olhei para a cadeira que ele apontava. Sentei-me sem vontade. Um
senhor alto, de cabelos grisalhos e pele consideravelmente lisa, estava
sentado ao meu lado.
— Olá, senhorita. — Ele sorriu para mim.
— Boa noite, senhor. — Respondi por educação.
— Então é você a nova empregada de David Luft? Ouvi falar muitas
coisas sobre você.
— Sou a governanta… E de que coisas estamos falando?
— De sua vida na França, de seu noivo lá…
Eu gelei. Preguei finalmente os olhos nele e o observei com mais
vontade. Ele mantinha um olhar maldoso voltado para mim. Não parecia
mentir no que dizia.
— Não compreendo…
— Não diga que é mentira, eu sei que não é.
— Não disse que era mentira. — Respondi séria. — Só não
compreendo como sabe…
— As pessoas mais influentes sabem da vida de todos. — Ele riu
zombando. — Mas não se preocupe, sua vida na França não me interessa
nadinha.
— Então o que lhe interessa?
— Eu andei pensando. A senhorita é muito bonita… — Seu olhar
ficou ainda mais traiçoeiro. — Poderia trabalhar para mim, se é que me
entende.
O senhor levou a mão até minha face. Tentei fugir de seus dedos,
mas eles foram mais rápidos e me agarraram pelo pescoço. A mão livre
enlaçou minha cintura e me aproximou de seu corpo. Eu tentava me afasta,
empurrando seu peito para longe, mas a mão no pescoço se fechava quanto
mais eu lutava.
— Me deixe em paz! — Meus dedos se perdiam em sua casaca,
escorregando, lutando. Tudo em vão. Ninguém ali parecia notar o que estava
acontecendo, ou, se notavam, não tomaram providencia para tirá-lo de cima
de mim.
— Trabalhe para mim, criança. Irei fazer bom uso de você. — Ele
encostou o rosto no meu. — E vou fazê-la muito feliz.
— Saia de perto de mim! — Aceitei-lhe a mão espalmada em sua
face, mas ele apenas riu, achando engraçado meu desespero.
Ouvi o barulho de vidro se quebrando. Olhamos para o lado no
mesmo instante e nos deparamos com um David furioso parado ali. Mr Luft
examinava aquela cena com tanto desgosto que eu comecei a chorar
imediatamente.
— Não é nada do que o senhor está pensando. — As mãos do
homem se afrouxaram e eu escapei velozmente, pulando em direção a David.
Tentava engolir os soluços quando lhe agarrei a mão com força, suplicando.
— Por favor senhor… Não é nada disso… Eu não…
O baile parara. Todos nos encaravam novamente. David me deixou
de lado e caminhou lentamente na direção do senhor que agora nos fitava
com um olhar de diversão. Segurou-o pela gola, praticamente erguendo-o no
ar.
— Nunca mais encoste nessa mulher, está me entendendo? — Ele
rangia os dentes. As palavras foram ditas com desnecessárias pausas, apenas
para acentuar sua função. Ergueu o pulso e desferiu um soco no olho
esquerdo do outro. — Nunca mais, entendeu?!
— Sim… — O estranho respondeu assustado. — Eu…
David ia erguendo a mão para golpeá-lo novamente, mas eu intervi,
segurando-a ainda no ar.
— Por favor, senhor. — Eu chorava alto agora. — Não faça isso.
Mr Luft me olhou nos olhos. Eu via a raiva em sua face. Por fim,
largou o homem e me puxou pela mão.
— Vamos embora.
Arrastou-me para fora em meio aos olhares aterrorizados dos
convidados.

David subiu comigo direto para meu quarto. Não havia falado nada
na volta para casa, estava tão sério que sentia seu olhar me queimar a pele. Eu
tentava comedir meu pranto. O choro agora era inaudível, eu engolia
qualquer soluço e apenas deixava as lágrimas escorrendo. Não queria que ele
se virasse para mim. Não queria ter que enfrentar toda a fúria de seu olhar.
Quando entramos no quarto, caí de joelhos erguendo as mãos sobre a
cabeça para me defender. As lembranças tomaram meu corpo e eu me vi
novamente a frente de Gareth, sendo morta aos poucos por aquele olhar
colérico e obsessivo.
— Eu não fiz nada. — O desespero mesclava-se a minha voz e eu
me sentia como uma criança desamparada. Esperei meu castigo, mas ele não
veio. Apenas senti o toque delicado das mãos macias de David me
envolvendo pelos braços e me erguendo.
Sentou-me na cama e abraçou meu rosto com seus dedos. Tomei
coragem e abri os olhos. Não foram os olhos raivosos de meu ex-noivo que
encontrei, mas sim o olhar triste e azulado de meu amo.
— Eu não fiz nada. — Repeti, tentando acalmar meu peito. — Não
sou uma vadia, meu senhor.
— Eu sei que não fez nada. — Seus lábios tremiam, mas sua voz
saiu firme. Ele me segurava com tanto cuidado que me senti como a maior
das preciosidades em suas mãos.
— Por que está zangado comigo?
— Não estou zangado com a senhorita. Longe disto. Estou
preocupado.
Ele tentou sorrir para mostrar que dizia a verdade. Senti uma mistura
de tristeza e felicidade tomar meu corpo e, por impulso, abracei-o com força.
Ele não me repeliu como era esperado, abraçou-me com carinho pela cintura,
mantendo meu corpo ainda mais perto do seu. Eu me permiti chorar em seu
peito.
David se sentou ao meu lado. Alguém bateu à porta e entrou, mas
meu patrão não se moveu. Constance deixou a bandeja com uma garrafa e
duas taças que trazia ao nosso lado e se retirou quase no mesmo minuto.
Mr Luft ainda me abraçou por algum tempo, até se afastar e pegar a
garrafa e uma das taças da bandeja. “Beba um pouco” estendeu-me, cheia até
a metade.
Eu não hesitei, tomei o recipiente de seus dedos e bebi como se fosse
água. Estava atordoada, cansada, triste. A bebida desceu queimando, mas não
reclamei. Esperei David se servir também para lhe estender novamente a taça,
pedindo mais. Ele a encheu novamente.
Os olhos de David me devoravam. Sua curiosidade me puxava para
mais perto e me repelia ao mesmo tempo.
— O senhor também sabe? — Indaguei depois de alguns segundos
em silêncio. Minha cabeça parecia rodar, mas eu sentia meu corpo parado,
como se aterrado.
— Sei o quê?
— Minha história na França.
— Eu… Me contaram sim.
— Então aquela conversa no sótão… O senhor já sabia de tudo? E
ainda mentiu?
— Eu não acredito no que falam. Queria que a senhorita se sentisse
livre para conversar comigo. Nunca iria julgá-la pela fofoca de pessoas que
não têm o que fazer. Além do mais, a senhorita deve ter tido um bom motivo
para sair daquele lugar.
— Me dá mais? — Pedi. Ele me serviu novamente.
O silêncio voltou a se instaurar. Só trouxemos de volta o assunto
quando já tínhamos esvaziado a garrafa e nos encontrávamos bem alterados.
Conversamos sobre muitas coisas, sobre o cotidiano, sobre o
passado. A primeira vez que nos abríamos de todo coração estávamos
bêbados e gargalhando de qualquer mísera palavra.
— Sabe. — Comentei com o dedo em riste, movendo a mão sem
muito controle. — Eu estava muito animada de me mudar para cá. Mas tudo
desapareceu quando conheci o senhor.
— E por quê? — Ele falava também engraçado.
— Porque o senhor era uma pessoa horrível. Muito mau. E quando
eu cheguei aqui, pensei em voltar. Só porque o senhor era muito mau. Toda
vez que eu sentia seus olhos sobre mim, minhas forças acabavam e eu me via
desprotegida.
Ele fez menção de falar algo, mas eu continuei rapidamente.
— Mas depois de uns dias, percebi que tinha alguma coisa estranha.
Por mais que eu quisesse, não conseguia odiá-lo. Eu não sei o que era, mas
alguma coisa cresceu dentro de mim. Cresceu tanto que parecia um monstro
que me deixava idiota a sua frente. E o senhor era tão mau. Mas tão bom.
Muito confuso. Tudo. Me entende?
— Entendo. — Ele encarou meus olhos tão profundamente que eu
sentia a sua alma tocar a minha. — Quando a senhorita chegou eu senti a
mesma coisa. Você me lembrava tanto a minha esposa, mas era tão diferente
ao mesmo tempo. Eu não sabia se gostava disso ou não. Ou se queria apenas
fingir que nada havia acontecido. Eu estava confuso e sentia que a senhorita
queria me controlar, me levar para tudo o que eu evitava. Não, não gostava
nada disso. Eu me sentia desprotegido por conta de alguém que queria me
proteger. Desarmado.
— Compreendo. — Sorri bobamente. Examinei-o por alguns
segundos e falei sem pensar. — Eu percebi que gosto muito do senhor. Muito
mesmo, mais do que já gostei de qualquer outro homem em minha vida.
Ele apenas sorriu e pergunto aonde eu ia, já que me levantei no
mesmo instante.
— Vou me arrumar para dormir. — Falei rindo, como se ele tivesse
acabado de fazer uma piada.
— Vai cair andando desse jeito.
— Não vou… — Colidi com a parede perto do armário. — Quem
foi que colocou essa parede aqui?
— Eu avisei.
— Não se preocupe. Eu estou bem. Pode ir dormir, já está tarde.
David se levantou. Ele deveria já estar perto da porta quando viu que
eu lutava com os cordões do corset que faziam questão de fugir de meus
dedos (ou eram os meus dedos que tentavam agarrar o ar). Minha cabeça
estava encostada na parede e eu fazia um esforço sobre humano para achar os
cordões. Mr Luft veio até mim e me ajudou a desatar o laço. Puxou o cordão
até a roupa se abrir.
— Este vestido — Ele passou a mão em minha cintura e a desceu
pela saia. — era o vestido que minha esposa usaria em seu último aniversário.
Pena que não foi um dia muito feliz.
— Sinto muito. — Comentei ainda com a testa na parede. — Se eu
soubesse, não teria usado este.
Ele não respondeu. Encostou a boca em meu ombro nu. Fechei os
olhos e senti seu toque. No momento, aquilo foi para mim a coisa mais
normal que ele poderia fazer. David foi descendo os lábios, chupando minha
pele e despindo o vestido de meu corpo.
— O que estamos fazendo? — Perguntei anestesiada com seu toque.
— Não sei. — Ele me virou de frente para ele. — Mas eu venho
querendo fazer isso há muito tempo.
Nossos lábios se encontraram. Mr Luft me envolveu em um beijo tão
intenso que me entreguei totalmente a seus braços, puxando-o para mais
perto. Suas mãos desceram pela minha saia e retiraram por completo o
vestido.
Aquele toque. Nunca em minha vida pensei que algum dia um
homem iria me tocar daquele jeito. David era tão carinhoso, suas mãos
quentes se moviam rápidas, mas suavemente, adentrando minha roupa de
baixo e afagando minha pele. Sua boca descera agora pelo meu pescoço e o
sorvia com vontade. Eu fechei os olhos e me deixei sentir o toque quente e
úmido. Ficamos daquele jeito por algum tempo.
Sua boca voltou a enlaçar a minha. Seus dedos também subiram,
vasculhando meu corpo sem nenhum pudor, e eu deixava que o fizessem.
Dirigiu-me para a cama, embaladoramente, puxando-me quase como numa
dança.
Deitei-me ainda envolvida pelo seu beijo. Ele se afastou um pouco
para se despir. Ouvi o som de suas roupas sendo retiradas e jogadas ao chão.
David se sentou ao meu lado. Estava escuro, mas eu conseguia ver seus olhos
brilhando pela noite. O azul me envolveu, consumindo meu ser.
Sorri envergonhada, pedindo que me tocasse novamente. Que não
parasse. Que continuasse sendo maravilhoso.
“Como é linda.” Sussurrou em minha orelha. Deitou os dedos em
minhas costas, passeando-os sobre minha pele. Contornaram a curva de
minha cintura e alcançaram minha barriga, puxando minha roupa íntima.
Quando dei por mim, já estava toda nua.
Seu toque fazia meus pelos se eriçarem. Era tão quente e delicado,
tão excitante. Ele se deitou sobre mim. Envolvi seu corpo com meus braços e
o puxei para mais perto. Ele passou os lábios em meu mamilo hirto. Seus
olhos estavam fechados, com a mesma expressão que fizera quando escutou
eu tocar piano. Deveria sentir a mesma sensação, como se estivéssemos
prontos a compor uma melodia. Eu e ele.
Assim como quando tocava, entreguei-me totalmente a ele, mas
dessa vez não era eu que guiava, e sim era guiada. Eu era o instrumento de
David. Movíamos com uma velocidade lasciva e a mesma intensidade
fanática.
Meu corpo se mesclava ao seu, tornamo-nos uma única coisa, um
único ser. Nossos narizes se tocavam, mas nossos lábios se mantinham
distantes, como que querendo ouvir os gemidos que escapavam dos a sua
frente.
Meu quadril dançava sob sua melodia inebriante, roçando em seu
corpo, subindo e descendo em um ritmo que nunca tive contato, mas parecia
que conhecia muito bem.
A sinfonia das nossas peles, dos nossos lábios, do nosso movimento,
tomava-me por completo. Não era mais o álcool que me embriagava, era
aquela sensação quente e acolhedora. Meu lugar era ali, envolta pelo corpo de
meu amado, seguindo nosso compasso.
Nossas notas demoravam-se às vezes, aproveitando cada parcela de
nosso ser uno. Mas então, aceleravam e todas as minhas células
correspondiam.
Não falamos nada no tempo que nosso ato durou. Eu não queria
estragar aquele momento com palavras vagas, e ele também achou que não
era uma boa hora para conversa. Não precisávamos falar, nossos corpos já
diziam por nós.
Eu poderia ficar ali para sempre, poderia me entregar a suas mãos e
deixar que me tocasse como a um piano, e derramar sobre ele qualquer oitava
que quisesse.
Então, nosso dueto acelerou gradativamente. Suas mãos estavam em
meus seios e elas os apertava com extremo carinho. Ele me segurou com
força pela cintura, permanecendo dentro de mim. Senti meu corpo
queimando. Nosso grande final.
David só me largou quando seu corpo cansado caiu ao meu lado na
cama. Ele me puxou para perto com o braço direito e caminhou com os dedos
da mão esquerda sobre meus lábios convulsos.
— Eu também gosto tanto da senhorita. — Colou a boca na minha e
me envolveu em mais um beijo estonteante.
Deitei a cabeça em seu peito e o abracei com carinho.
— Boa noite, senhor.
— Boa noite, Sam.
Capítulo 13

Minha cabeça latejava quando acordei. Sentei-me na cama e


massageei demoradamente minhas têmporas. Doía tanto que pensei que a
batera contra a parede. Meus olhos desceram rapidamente pelo chão e eu
notei a garrafa de vinho e as taças vazias jogadas ali. Não me lembrava do
que havia acontecido depois que subi com David para o quarto. Parecia tudo
uma imensa confusão mental.
Ainda era cedo, o sol não dava sinal de despertar. O lugar estava
escuro. Senti um frio percorrer minhas costas. Esfreguei meu braço tentando
me aquecer e notei estar nua. O vestido de Mrs Luft estava jogado em um
canto do quarto. Não me lembrava de tê-lo despido e, muito menos, de ter me
deitado. Encarei mais uma vez a janela. A dor em minha cabeça me fez deitar
novamente.
Minha mão encostou em algo. Passei meus dedos calmamente,
examinando o que era. Meus olhos estavam fechados e a dor os fez
permanecer daquela forma. Subi a mão pela coisa. Era macia, um pouco
aveludada e quente. Continuei explorando, subindo, sem me preocupar em
olhar. Então meus dedos se depararam com um pescoço grosso, cabelos, um
queixo com a barba por fazer.
Meus olhos se arregalaram de uma vez. Encarei a pessoa deitada ao
meu lado. Não era possível. Esfreguei o rosto com o dorso das mãos, mas
mesmo assim ele continuava lá.
Um grito estridente escapou pelos meus lábios. Empurrei meu corpo
para trás. Minhas pernas estavam enroladas na coberta, o que me fez cair
sentada no chão. Não! Não! Não! Arrastei-me de costas até bater contra a
parede e cobri meu corpo com o tecido. O que fizemos? Soltei outro grito,
agora de raiva e bem certa do que estava fazendo.
David acordou assustado. Observei seus movimentos. Ele se sentou
na cama, examinou seu corpo, observou o quarto, olhou para mim. Estava tão
assustado quanto eu. Levantou-se, e eu fechei com força meus olhos.
— O que houve? — Ele perguntou atordoado. Poderia estar fingindo
que não se lembrava, mas, como eu própria não me lembrava, acreditei. — A
senhorita está bem?
— Por favor. Vá embora.
— Sam… — Ouvi seus passos se aproximando. — Por favor…
Desculpe-me.
— Vá embora! Eu quero ficar sozinha.
— Precisamos conversar sobre o que aconteceu.
— Eu só quero ficar só.
Ele não insistiu. Deve ter se vestido, pego a bandeja com a garrafa e
as taças e ido embora, já que quando eu abri meus olhos não havia nenhum
sinal dele e a única coisa que sobrara da noite era o vestido, a cama
bagunçada e seu cheiro pelo quarto.
Fiquei ali no chão mais um pouco, digerindo tudo, antes de
finalmente tomar coragem e enfrentar a realidade. Ergui-me e andei a passos
trôpegos até a cama. O perfume de David tomava todos os lençóis. O quarto
estava empesteado por aquele cheiro, apenas para que eu não esquecesse do
que tínhamos feito.
Suspirei.
O que eu estava sentindo na verdade eu não sabia. Raiva por ter
bebido e cometido um erro tremendo. Tristeza por não me lembrar de nada
(mesmo sabendo que era errado querer me deliciar com lembranças de um ato
profano). Repulsa por pensar no que um dia meu futuro marido faria comigo
se descobrisse dessa noite. E Felicidade por ter sido com ele.
Eu era um misto de sentimentos confusos. Iria me odiar para sempre
depois daquela noite. Prometi nunca mais beber. Nunca mais na minha vida.
— Tenho que esquecer tudo sobre essa noite. — Falei comigo
mesma em tom de repreensão. — Nunca aconteceu.
Encontrei Liza quando desci para o café da manhã.
— Sua noite foi animada? — Perguntou sorrindo de lado.
— Não é engraçado. — Franzi o cenho. Ela reprimiu uma risada. —
Por culpa desse baile vou me odiar para o resto da minha vida.
Seus braços envolveram meu ombro e eu aninhei a cabeça em seu
colo. Queria chorar e escutar que tudo daria certo.
— Não foi nada demais. — Ela afagou as costas.
— Eu fui criada para esperar meu esposo. Para mim, foi muito
errado… Não quero imaginar o que papai fará se um dia descobrir o que
aconteceu ontem. Irá me matar. Isso… Eu vou morrer… Ou ser tachada de
prostituta para o resto de minha vida. Nunca terei paz.
Comecei a chorar. Chorava igual a uma criança que tinha aprontado
e sabia que seria castigada. Anneliza me abraçou com força.
— Vai ficar tudo bem, não se preocupe. E pare de se preocupar com
o que seu pai ou qualquer outra pessoa irão pensar. Eles não têm importância
agora.
— O que eu vou fazer da minha vida? Eu já não tenho boa fama pela
cidade, imagina se um dia eles descobrirem.
— Ninguém irá descobrir nada. Não chore, Sam.
Liza segurou meu rosto com ambas as mãos. Sorriu carinhosamente
e eu me acalmei um pouco. Ela conseguia fazer aquilo às vezes, conseguia
me acalmar só com o olhar. Seus olhos eram verdadeiros, passavam um
sentimento de cumplicidade, carinho e proteção. Sorri concordando.
— Tenho que falar com Mr Luft. — Comentei. — Falei que iriamos
conversar depois…
— David conseguirá lhe confortar melhor do que eu. — Beijou-me a
bochecha.
— Creio que não.
— Ele é uma boa pessoa quando quer. Irá fazê-la se sentir melhor.
— Vamos descer logo para o café. — Mudei o assunto. Eu tinha
certeza que a conversa com Mr Luft só iria me deixar ainda mais triste, mas,
por um momento, quis acreditar que daria tudo certo.
Liza me abraçou novamente e descemos juntas.
Janet e Serafine me encararam extremamente sérias quando
entramos na cozinha. Aquilo voltou a me entristecer. O que elas pensavam
sobre mim? Acho que não deveriam pensar o mesmo sobre David… Só
pensavam sobre mim. Eu era a única culpada.
Liza apertou delicadamente minha cintura e intensificou o sorriso.
Ela se sentou o mais longe possível das duas. Eu preferi não me sentar. Não
queria ficar sob aqueles olhares, pelo menos não naquela hora.
— Não vai tomar seu café? — Serafine indagou com uma xícara de
chá colada à boca.
— Não estou com fome. — Respondi tentando controlar a voz.
Estava trêmula, e meus olhos, úmidos, mas eu olhava firmemente para ela.
Ela deu de ombros. Segui com a bandeja para o quarto do pequeno.
Respirei fundo. Não poderia parecer abalada na frente do garoto. Charles não
poderia se preocupar comigo.
Empurrei a porta com a bandeja. Ele estava sentado no chão com um
livro sobre as pernas cruzadas.
— Bom dia! — Ele largou o livro de lado e veio me abraçar. Seus
bracinhos envolveram minha cintura. Eu senti toda a força que eu havia
juntado com dificuldade se esvair. As lágrimas voltaram a brotar e eu tive que
afastá-lo com os cotovelos. Coloquei a bandeja na mesa.
— Eu já volto, querido. — Sorri, dissimulando a tristeza. Ele me
olhou chateado, mas não impediu que eu saísse.
Fechei a porta atrás de mim e apoiei minhas costas nela. As lágrimas
desciam timidamente. Charles sempre lembrava o pai, mas não com a mesma
intensidade que naquele instante. Eu me senti fraca, desprotegida. Sentia-me
tão menor do que um garoto de dez anos por ele simplesmente fazer com que
a lembrança do meu erro voltasse à minha mente.
Alguém veio se aproximando a passos lentos de mim. Olhei para o
lado, David me observava preocupado. Tratei de secar rapidamente as
lágrimas.
— Miss Evans? — Ele indagou um tanto quanto baixo.
— Bom dia, senhor. — Sorri forçadamente.
— Está tudo bem?
— E como poderia estar bem?
— Não precisa chorar. — Ele me encarou nos olhos. Eu mantive o
olhar alto, encarando-o com toda vontade. Suas mãos envolveram meu rosto.
— Não foi nada demais.
— Para o senhor não — Repeli-o. — mas para mim foi.
Ele fez menção de falar algo, mas se calou quando percebeu Liza
subindo as escadas. Ela cantarolava baixinho, estava escondida atrás de uma
trouxa de roupas. Parou quando chegou perto de nós. Anneliza o
cumprimentou com um bom dia baixo.
— Bom dia. — Ele respondeu sem tirar os olhos de mim. Liza olhou
dele para mim e continuou seu caminho.
— Com licença. — Fiz uma leve mesura. — Charles está me
esperando.
Coloquei a mão na maçaneta, mas não abri. David segurou meu
ombro e sussurrou em meu ouvido.
— Precisamos conversar. Mais tarde, quando Charles já estiver
dormindo e os empregados estiverem em seus quartos. Não quero ser
interrompido mais uma vez.
Concordei com a cabeça. Girei a maçaneta.

A tarde passou muito rápido, mas de uma maneira monótona e


entediante. Eu brincava normalmente com Charles, mesmo assim, não me
sentia muito feliz e aquilo me chateava um pouco. Saí cansada do quarto do
pequeno. Eu me sentia culpada por fazê-lo pensar que estava aborrecida com
ele, mas não desmenti.
Era hora de conversar com David. Mesmo não estando nenhum
pouco interessada em passar por aquele martírio, desci direto para a sala de
estar. Enrolar não melhoraria nada e o dia havia passado, não havia mais para
onde correr.
Ele tomava seu chá com biscoitos. Apontou a poltrona de sempre e
eu me sentei de imediato. Eu me sentia vazia, cansada e triste. Observava Mr
Luft com olhos baços, como se não o visse. E queria não vê-lo mesmo.
A voz de David voltara a ser sombria, quase que me culpando
também pelo que aconteceu. Eu já estava com tanta raiva de tudo que não
precisava que mais alguém me dissesse o que já sabia.
— Por favor. — Ele respirou profundamente. — Temos muito o que
conversar.
— Não temos. O senhor mesmo disse que aquilo não era nada
demais.
— Não foi o que eu quis dizer.
— Mas foi o que disse, senhor. Pensei que entendesse que não sou
uma prostituta. Não sou mulher de uma noite, nem alguém que se entrega nos
braços do primeiro que aparece a sua frente.
— Eu sei disso.
— Então deveria ter parado ontem, quando percebeu que eu não
estava em meu normal.
— Ontem eu… Não sei o que me deu.
Minha face queimava de raiva. O que ele queria tanto falar? Por que
só eu estava dizendo alguma coisa? Ele iria esperar eu vomitar todos os meus
pensamentos para só então, quando estivesse mais calma, humilhar-me?
— Mas claro, para o senhor não era importante. Sou apenas uma de
suas empregadas. O que importa nisso, não é mesmo? — As lágrimas se
penduraram em meus olhos, mas eu as obriguei a ficarem lá. Não iria chorar,
não iria ser fraca naquele momento.
— Não disse isso. Eu me importo com os meus empregados,
senhorita.
— Creio que se importa. — Ri de desdém.
— Se está agindo desse jeito agora, por que estava chorando mais
cedo?
— Chorava de raiva. O senhor não sabe o que aquilo significou para
mim, não sabe como me guardei a vida inteira para tudo ruir em uma noite.
— Pensei que talvez a senhorita e seu noivo já tivessem…
— Não! — Lancei-lhe um olhar de nojo. — O senhor não conheceu
meu noivo. Não deveria pensar uma coisa dessas. Além do mais, eu deveria
ser só de meu esposo. Sinto-me suja!
— Isso é complicado, mas…
— Sabe o que meu pai irá fazer quando descobrir? Eu não sou um
rapaz, senhor. Não está tudo bem sair por ai devorando mocinhas. Eu não vou
ter sossego para o resto de minha vida.
— Eu não deixarei ninguém machucá-la. — Ele sussurrou tentando
me acalmar, mas suas palavras ainda soavam de forma sombria. — Ninguém
tocará um dedo em você enquanto estiver aqui. Pelo menos, não por um erro
meu. E ninguém saberá o que fizemos, será um segredo.
— As pessoas podem não saber o que aconteceu, mas eu sei e vou
me recriminar todos os dias.
— Não exagere, Miss Evans.
— Não estou exagerando. — E não estava. Iria me recriminar por ter
bebido, por ter me entregado a ele, por não lembrar de nada, por ter que
sofrer guardando aquilo e sentir todos os olhares a minha volta me julgando.
— E o que tenho que dizer para se sentir bem?
Encarei-o demoradamente. Meus olhos estavam embaçados e eu só
via um borrão branco que era Mr Luft. Ele não falou nada por alguns
instantes. Respirou fundo e objetivou por fim:
— Acho que é melhor nos casarmos, então. O casamento iria
resolver tudo.
Eu ri. Meu queixo caiu de perplexidade e eu maneei a cabeça para os
lados, zombando daquela solução.
— Não aceita se casar comigo?
— Não aceito, senhor.
Foi a vez dele ficar confuso.
— Mas… Não compreendo!
— E talvez nem deva tentar. É muito fácil propor algo assim, não é?
— Eu subi um pouco mais a voz. — Mas não vou me casar com alguém por
obrigação. Por isso saí da França e não quero cometer o mesmo erro. Não
quero me casar com alguém que me ache um equívoco. E não quero me casar
com alguém que não se importa comigo.
— Me importo! Tanto me importo que…
— Que está fazendo as escolhas? Se importa com o que eu sinto ou
como um casamento pode ser algo especial sob meus olhos? É algo para a
vida, é ter alguém ao seu lado todos os dias e não quero que essa pessoa me
olhe como se eu nunca devesse estar ali.
— Às vezes a senhorita deixa meus nervos a flor da pele. —
Levantou-se. Sua voz agora estava ameaçadora. David caminhou até mim e
segurou meu rosto com suas imensas mãos. — Acha que não me importo
com você? O que estou propondo é para o seu próprio bem.
— Eu! — Girei o rosto, e ele me soltou. — Apenas eu sei o que é
bom para mim. E isso não inclui me casar com um homem como o senhor.
— Sabe as consequências então. — Passou os dedos pelo cabelo. —
Pode ir agora, acho que já conversamos tudo.
Meu rosto se franziu por inteiro e eu saí batendo o pé.
Capítulo 14

A noite demorou a passar. Eu dormi pouco e esse pouco foi


alternado por lágrimas e um estranho mal-estar.
Mal vi o domingo passar e demorei para me levantar na manhã de
segunda. Eu precisava me erguer e trabalhar, mas meu corpo estava fraco.
Caminhei trôpega até o meu baú e vesti o vestido mais comprido e
sem graça que encontrei. Respirei fundo, juntando forças para sair do quarto.
Eu ainda andava daquele jeito estranho, minhas pernas estavam
muito enfraquecidas e eu pouco as sentia. Minha panturrilha doía muito, mas
eu engoli a dor. Ninguém precisava saber o que eu estava sentindo. Contudo,
não adiantou muito.
Encontrei Liza no corredor. Ela me olhou nos olhos e colocou a mão
em minhas bochechas.
— Nossa, você está queimando em febre. Precisa falar com Mr Luft,
ele deve ter algum medicamento.
— Eu estou bem.
— Não está não. Sam, suas bochechas estão vermelhas e você está
apática, pode ser algo muito sério.
— Não se preocupe. — Sorri friamente. Ela parou de falar. Por mais
que sempre gostasse quando se preocupava comigo, naquele instante só
queria que ficasse calada e me deixasse sofrer sozinha.
Descemos juntas para o café da manhã. Eu sentia muita fome, já que
passei o domingo inteiro em jejum. Mas não tinha ânimo, então comi pouco e
subi logo com o café de Charles.
O pequeno ainda dormia quando eu entrei no quarto. Não tive
coragem de acordá-lo de imediato. Parecia um anjinho entregue a seus
sonhos.
Deixei a bandeja na mesinha e me sentei ao seu lado da cama.
Charles dormia tão calmamente que me tranquilizou por alguns segundos.
Como era bom ser criança, sem ter que se importar com nada.
Passeei meus olhos pelo garoto. Fui virando o olhar até as cortinas
fechadas. O quarto estava escuro. Muito escuro. Levantei-me lentamente e
caminhei até a janela. Entreabri as cortinas e examinei a vista.
Estava um dia lindo e quente. Sorri para a paisagem. Eu não podia
ficar triste ou definhar por causa do que aconteceu. Não podia. Tinha que
fazer aquilo pelo pequeno. Eu não estava me importando com David, nunca
deveria ter me importado com ele, o único motivo de tudo era Charles e eu
ficaria feliz apenas por ele.
Charles se mexeu na cama. Eu me virei novamente para o menino.
— Bom dia, meu bem. — Sentei-me de volta ao seu lado.
— Bom dia, Sam. — Ele sorriu para mim e me abraçou. — Está
tudo bem? Você está quente.
— Está sim, querido. Quer fazer o que hoje antes de começar os
estudos?
— Não sei… Por que não andamos pelo quintal?
— Você gosta muito de sair de casa, não é?
— Acho que é porque quase não saía antes de você chegar. — Ele se
levantou. Eu o ajudei a retirar o pijama. — Mamãe gostava de caminhar com
papai pelos campos quando eu era bem pequeno. Eles me levavam às vezes e
nós fazíamos piqueniques e nos divertíamos muito.
Falar de David não estava me animando. Concordei com a cabeça e
forcei a conversa a mudar o rumo.
— Podemos andar por onde você quiser. Só se lembre de passar seu
repelente, não quero ter que falar com um Mr Luft zangado.
Ele sorriu. Já tinha vestido suas roupas de passeio e estava se
sentando para comer. De repente, a porta abriu e David entrou.
— Bom dia, Charles. — Ele sorriu para o filho.
— Bom dia, papai. — Respondeu com a xícara de chá perto dos
lábios.
David não parou perto da criança. Foi até mim e colocou as mãos em
meu pescoço. Eu me assustei.
— Anneliza estava certa. — Ele disse. — O que está sentindo?
— Não estou sentindo nada, senhor. — Empurrei suas mãos para
longe. Ele segurou minha mão e mediu meu pulso.
— Deve ser apenas seu emocional. — Passou os dedos para minhas
bochechas e puxou levemente minhas pálpebras inferiores. — Está tudo
bem…
— Obrigada. — Afastei-me dele. — Eu falei para Anneliza que
estava tudo bem. Não precisava ter incomodado o senhor.
— Não é um incomodo. Eu me preocupo com…
— Seus empregados. Eu sei senhor, o senhor já disse isso.
David me puxou pelo braço e me forçou a ficar de frente para ele.
Charles nos olhava assustado. Deveria estar com medo do pai ficar violento
igual ao incidente de algum tempo atrás.
— Papai… — Charles falou baixinho.
— Não se preocupe, Charles. — Eu sorri para a criança. — Seu pai e
eu só estamos conversando.
— Sim. — David me soltou e olhou o filho. — Já tem planos para
hoje, Charles?
— Sim, papai. — Ele sorriu. — Eu vou passear com a Sam antes de
estudar.
David voltou a me olhar. Seus olhos estavam com raiva. Deve ter
pensado que eu estava pondo seu filho contra ele. Depois de alguns segundos,
desejou que nos divertíssemos.
— Obrigada. — Sorri amargamente.
David cerrou os olhos, mas sorriu. Saiu nervoso do quarto.
— Está tudo bem entre vocês? — Charles olhou para a porta recém-
fechada.
— Está sim. Vamos para o nosso passeio.

Os dias voaram. As cinco semanas seguintes passaram tão de pressa


que nem parecia que eu já estava completando quatro meses de trabalho.
Quase não me encontrei com David nesse tempo, eu o evitava e ele me
evitava. Lillian voltou a frequentar a casa e a relação dela com Mr Luft se
estreitara de tal modo que ela praticamente se mudou para lá. Todos ali,
menos David, viam-na se tornando uma pessoa pior a cada dia.
Contudo, apenas aquilo não estava perfeito, já que as semanas
seguiram alegres e com uma leveza surpreendente, enquanto eu me dedicava
totalmente a Charles. Melhor ainda foi esquecer o que ocorrera na noite do
baile, indo contra o que eu acreditara no primeiro momento, mas me fazendo
muito bem.
Naquela época eu cresci, não fisicamente, mas já não era aquela
criancinha que todos me julgavam ser. Decidira seguir outro rumo em minha
vida. Dedicar-me, alegrar-me e entristecer-me pelas coisas certas.
Capítulo 15

Eu caí da cama. Não me lembro com o que havia sonhado, mas


aquilo me inquietara bastante. Tentei voltar a dormir, mas o sono não queria
aparecer. Porém, foi bom continuar acordada. Liza me dissera no dia anterior
que hoje era o aniversário de Charles, e eu ainda não havia pensado em nada
para fazer com que o dia do pequeno fosse especial.
Não tinha muito dinheiro, então as possibilidades reduziram
bastante, mas, mesmo assim, queria pensar em algo que pudéssemos fazer.
O dia precisava ser o mais especial de todos. David voltara a se
afastar do filho com a vinda de Lillian e aquilo deixava o pequeno tão
desolado que eu sentia ser minha a obrigação de fazê-lo feliz.
Arrumei-me o mais rápido que consegui e desci com uma carta para
Don. Resolvi comer alguma coisa antes de caminhar até os correios.
Ninguém havia acordado ainda, e a casa estava extremamente silenciosa.
Entrei vagarosamente na cozinha e dei um pulo para trás assustada.
— Não queria assustá-la. — David virou os olhos para mim. — Não
pensei que alguém viria aqui tão cedo.
Concordei com a cabeça. Levei a mão ao peito. Eu arfava baixinho e
aos poucos senti meu sangue voltando para o rosto.
— Também pensei que ninguém estivesse acordado. O que o senhor
faz aqui tão cedo? — Ele continuou me encarando sério. — Não era minha
intenção me intrometer em seus assuntos.
— Não está se intrometendo. — Olhou para a janela. — Eu só queria
pensar um pouco.
Fiz menção de sair, mas ele ergueu a mão pedindo para que eu
ficasse.
— Não se preocupe. Eu já estava de saída. — Ele se levantou.
— Senhor — Falei baixo. — poderia me ajudar com uma coisa?
— Fale.
— O que acha que Charles gostaria de fazer em seu aniversário? Eu
quero que o dia dele seja especial, mas não me veio nenhuma ideia para sair
do cotidiano.
— Hum. — Ele olhou novamente para a janela. — Eu estava
pensando nisso também. — Virou seus olhos para mim. — Gostaria de
caminhar um pouco?
Concordei um pouco confusa. Saímos pela porta da cozinha, mas
não seguimos pelo pomar, demos uma volta pela casa e fomos para o quintal.
David andava com as mãos nos bolsos do robe aveludado. Eu estava
ao seu lado, mas não o olhava. Sentia-me embaraçada, já que passamos as
últimas semanas praticamente sem trocar palavras e visivelmente nos
esquivando.
Ele estralava a língua. Estava nervoso e duvido que fosse por causa
do aniversário de Charles.
— Eu tenho uma surpresa para Charles. — Falou enfim, depois de
muito caminharmos. — Mas não sei se ele irá gostar.
— Acho que vai. — Sorri. — Pelo menos vai saber que o senhor se
lembrou dele. Charles anda um pouco calado ultimamente, deve estar
sentindo saudades de estar com o senhor.
— Isso só intensifica minha intuição de que ele não gostará da
surpresa. Não quero estragar o dia de hoje. — O silêncio se fez, mas logo foi
quebrado, por algo que eu entendi como uma mudança de assunto. — Meus
irmãos vem vê-lo. Charles adora brincar com seus primos.
— Isso é maravilhoso.
— Samantha. — Ele me olhou nos olhos. Minha face não acerejou
como costumava fazer e eu não me senti tentada a abaixar o olhar. Os olhos
de David eram suplicantes e só me fizeram ter mais vontade de observá-lo.
— Acho que minha vida irá mudar completamente depois de hoje.
— Mudar para melhor ou para pior?
— Espero que para melhor.
— Então deveria estar feliz, senhor. Mas seus olhos não demonstram
felicidade.
— Eu estou preocupado com meu filho. Talvez ele não aceite
minhas escolhas. Mesmo eu achando que são as melhores a serem tomadas.
— Charles é um garoto inteligente. Se suas escolhas realmente
forem as que devem ser tomadas, ele entenderá.
— Espero.
— Além do mais, ele estará muito feliz hoje. Porque eu prometo
deixá-lo assim.
— A senhorita sempre fez promessas que não dependem de você?
— De vez em quando, mas essa depende de mim. Eu darei meu
máximo para que ele fique sorrindo o dia inteiro.
— Acho que Charles tem sorte de ter uma professora como a
senhorita. — Ele sorriu.
— Eu tenho sorte de dar aula para uma criança como Charles. Acho
que ele é o único motivo para eu estar feliz.
Ele virou o rosto para o outro lado. Eu também desviei o olhar.
— Eu estava esperando Richard — Ele retirou uma bolsinha parda
de dentro do bolso. — Ia pedir para que ele comprasse um pão doce que
Charles gosta tanto e só vende na cidade. E Janet nunca conseguiu fazê-lo
com maestria. Mas… Se a senhorita puder me fazer esse favor, pode usar o
troco para comprar um presente para Charles.
— Muito obrigada, senhor. Eu lhe pagarei quando receber meu
pagamento.
— Não se preocupe com isso. — David me deu as instruções de
onde localizar a padaria, já que eu só conhecia os correios na entrada da
cidade, e que pão comprar.
— Vou logo então. Obrigada novamente.
Ele concordou com a cabeça e eu continuei meu caminho.

Queria voltar antes da hora de levar o café da manhã para Charles,


então, como o caminho era longo, andei mais rápido que conseguia e a barra
do vestido permitia.
Eu ainda pensava no presente quando cheguei à cidade. Ela cheirava
a pão quente e a chá. Uma mistura deliciosa de aromas e que me dava fome.
David atrapalhara meus planos de tomar café, e como agora teria que comer
na volta, tive que ignorar aqueles perfumes para não ceder à fome. Levei a
carta rapidamente até os correios a fui até a padaria, que ficava bem no
centro, envolta por vários outros estabelecimentos. O aroma que vinha dali
era delicioso.
O padeiro, um senhor rechonchudo, arrumava os pães sobre o
balcão. Pedi o pão doce de acordo com as instruções de Mr Luft e ele me
entregou em um embrulho pardo.
Voltei a caminhar examinando as vitrines. Havia tanta coisa ali que
era difícil me decidir. Depois de muito passear por entre as pequenas ruas,
escolhi levar um imenso livro de contos medievais. Eu sabia que ele adoraria.
Entrei por umas esquinas e, quando dei por mim, havia penetrado
tanto na cidade que não sabia mais o caminho. Caminhei apressada pelo
labirinto, acelerando na mesma proporção que a cidade acordava. As pessoas
me empurravam de um lado para o outro e eu não sabia para onde ir. A
confusão era tanta que eu apenas seguia meus passos, sem saber aonde me
levavam.
Em meio àquele movimento embriagador, cheguei à saída. Suspirei
aliviada e sequei o suor frio que descia pela minha testa.
Junto aos correios, uma senhora curvada e extremamente idosa
arrumava uma banquinha de cacarecos e outras coisinhas. Ela me encarou
com seus olhos baços e sorriu como se estivesse sonhando com uma coisa
maravilhosa.
Um gatinho que estava ao seu lado veio pulando em minha direção,
enroscou-se em minha saia e eu fui obrigada a sorrir.
— A senhorita parece cansada. — A voz surreal da senhora alcançou
minhas orelhas. As palavras saíram arrastadas, com uma calma peculiar e
acolhedora. — Acho que ele gostou da senhorita. — Ela apontou a
criaturinha com um manejar de cabeça. — Por que não fica com ele?
— Ele está à venda? — Coloquei os embrulhos em uma mão e
peguei o animalzinho com a outra. Ele era ainda bem filhote, de pelo
manchado e grandes olhos esverdeados que luziam animadamente. — A
senhora quer quanto por ele? — Aproximei-me da banquinha.
— É para a senhorita?
— Não, é um presente para uma criança especial. — Deixei o
animalzinho de volta no chão. Na verdade, lembrava-me mais do que havia
lido no diário de Mrs Luft. David sempre quis um gato, aquela seria uma boa
oportunidade e eu poderia usar a desculpa de ser um presente para Charles.
— Seu filho?
— Não. — Neguei envergonhada. — É meu pupilo, hoje é o
aniversário dele e eu quero fazer com que o dia seja muito especial.
— Que ótima tutora a senhorita deve ser. — Ela alargou o sorriso e
seus olhinhos castanhos sumiram em meio às rugas. — Se é uma data tão
especial, eu irei dá-lo de presente. Minha gata sempre tem muitos filhotes,
iria me fazer um favor se ficasse com ele.
— Mas senhora, eu não posso aceitar assim.
— Claro que pode. — Ela riu. Pegou o gatinho que rodava pelo chão
e o ergueu em minha direção. — Para fazer o dia de seu pupilo bastante
especial.
— Eu… — Ela me estendia o gato com tanta vontade que eu não
consegui dizer não. — Obrigada, senhora.
— E para a senhorita? Não quer levar alguma coisa?
Desci os olhos para os objetos que ela vendia. Acho que nada mais
justo do que comprar alguma coisa. Em meio a tantos cacarecos, um colar de
pingente verde reluzia. Peguei-o entre os dedos e o examinei demoradamente.
— Ele irá ajudá-la a achar o homem de sua vida e também lhe trará
felicidade. Mas lembre-se, uma coisa não está atrelada a outra. Você deve ser
feliz antes de procurar se encontrar em outra pessoa. — Ela comentou me
encarando com seus olhos vagos.
Deslizei o pingente pelos dedos, examinando-o com curiosidade. Ela
pegou o colar de mim e o pendurou em meu pescoço. Eu peguei a bolsinha de
dinheiro para pagar, mas ela empurrou minhas mãos para longe.
— Ficou lindo na senhorita, todos podem ver que foi feito para você.
Não posso aceitar dinheiro por ele.
— Por favor. — Ergui novamente as moedas, mas ela negou
euforicamente.
— Esse é o meu presente para a senhorita.
— Obrigada. — Fiz uma leve mesura e me afastei.
Caminhei de volta para casa. Afagava o pingente e pensava no que
ela quis dizer. Eu precisava ser feliz antes de tentar me encontrar em outra
pessoa. O gato ao meu lado miou baixinho e me retirou de meus devaneios.
— Espero que Mr Luft não se importe de ter um gato. — Encarei o
animal. Ele veio pulando para mais perto. — Você vai conhecer Charles e
vão se gostar muito, amiguinho.

David ainda caminhava pelo quintal quando eu voltei para casa. Ele
andava devagar, os olhos atentos em tudo. Veio até mim quando notou minha
presença.
— Onde estava? Por que demorou tanto?
— Eu me perdi na cidade. Não tenho o costume de caminhar por lá.
— Sorri, constrangida com aquele comportamento repentino. — Estava me
esperando?
Ele ficou sério e negou com a cabeça.
— Comprei o pão doce. — Continuei. — Vou levar logo para
Charles, já que estou atrasada.
— Obrigado, Miss Evans.
O gatinho se aninhou junto de meus pés. Peguei-o no colo e o ergui a
altura dos olhos de David.
— Posso dá-lo a Charles?
— Onde a senhorita arranjou um gato?
— Uma senhora… Na cidade.
David pegou o animal. Segurava ele de modo que sua cabeça estava
a mesma altura da do gatinho. O gato miou baixinho.
— Bem… é ela. — Comentou depois de muito examiná-lo.
— Senhor?
— É uma gata e não um gato. Gatos com três cores costumam ser
fêmeas e não machos. Li em algum lugar que só elas são assim.
— Ah, então desculpe ter o chamado de amiguinho. — Falei para o
animal. David pareceu querer rir, mas nada fez.
— Pode presentear Charles com ela. Mas a senhorita tem que ajudá-
lo a cuidar.
— Eu prometo, senhor.
Ele me entregou a gatinha. Antes de voltar ao que estava fazendo,
passou os dedos carinhosamente pela minha clavícula. Prendi a respiração e
só soltei quando notei que ele estava estudando o colar. Então, retirou a mão
de mim e se virou como se nada tivesse acontecido. Eu o acompanhei, um
pouco afastada, tentando não atrapalhar seus pensamentos.
A gatinha aninhava-se em meu colo. Ela acariciava meu braço com
sua cabeça e me fazia sorrir.
— Você é muito bonitinha. — Falei para o animalzinho. Ela lambeu
minha mão como se tivesse entendido.
— Acho que a senhorita não está muito bem. — David me encarou
de esguelha. — Fica conversando com animais.
— Mas isso é bem normal. — Fiz um muxoxo. — Animais nos
entendem também, senhor. Eles sentem o que sentimos e nos deixam felizes
quando tudo dá errado. — Acelerei o passo e o alcancei.
— Se você diz. — Ele parecia um pouco triste, sua voz continuava
firme, mas seus olhos temiam alguma coisa.
— O senhor nunca teve um animal de estimação?
— Não. Meus pais achavam que era perda de tempo se apegar a
animais insignificantes.
— Mas nunca quis ter um, senhor?
Ele fitou meus olhos e sorriu. “O que queremos e o que podemos ter
são coisas diferentes. Às vezes é melhor desistir antes de tentar.”
— Mas… — Virei os olhos para o animalzinho e acariciei sua
cabeça. O que acabara de comentar referia-se a nosso relacionamento? Ergui
a cabeça confiante e o olhei séria. — Não concordo com o senhor.
— E por que não concorda?
— Desistir é um ato de covardia, ainda mais sem nunca tentar. Por
mais que seja difícil, fracassar é melhor do que sentir que não conseguiu por
nem ter tentado.
— Interessante seu pensamento. Às vezes me pergunto se realmente
é uma mulher.
Como eu odiava quando algum homem achava que mulheres eram
seres inferiores. Mas David continuou antes que eu pudesse objetivar.
— Engraçado pensar isso, não é? É estranho viver com uma mulher
e não ser capaz de ver o quão inteligente ela é. Um pensamento equivocado
achar que elas só nascem para servir aos homens.
— Se meu pai e meu noivo pensassem assim, eu provavelmente não
estaria aqui.
— Então eu deveria está feliz por eles não pensarem assim. —
Comentou sério, mas com a voz fluindo como em uma conversa cotidiana.
Um tênue sorriso se formou em meus lábios. — Acho melhor se apressar
para levar o pão doce.
Concordei com a cabeça. David se afastou em direção à casa. Eu
parei de caminhar por um momento. Alarguei o sorriso para mim mesma e
abracei os embrulhos e a gatinha com mais força.

A sala estava cheia. Toda a família de David se encontrava ali, mas


eu fui apresentada apenas aos mais próximos: Aos dois irmãos, Clay e Wade;
à mãe, Betsy; e ao pai, cujo nome tinha passado para seu filho mais velho, no
caso, David. Conheci também os filhos de Wade, duas crianças um pouco
mais novas do que Charles, mas muito parecidas com ele. Eram elas Ellen e
Kermit.
Infelizmente, Lillian e sua família também foram convidadas. Ela
ficava me encarando como se eu fosse a pior pessoa que ela esperasse
encontrar em algum lugar.
Alguns colegas da alta sociedade apareceram, o que não me animou,
já que muitos ali estavam presente durante o ocorrido no baile. Mas poucos
notaram minha presença.
A festa parece ter sido bem animada, mas não posso dizer com
certeza, porque quando cansei de ver Charles brincando com os primos,
peguei um livro e me ocupei a lê-lo. Só o fechei quando David convidou a
todos para jantarem. O convite parecia se estender a mim também.
Esperei que todos se movessem para a sala de jantar e só depois
guardei o livro e os segui. Eu nunca havia jantado ali e aquilo me
incomodava. Fui me aproximando aos poucos, vendo se alguém ia me
impedir de dar mais um passo.
A primeira coisa que me fez parar foi o olhar de Lillian me
censurando e quase me convidando a me retirar. A segunda, David não havia
entrado ainda e eu parecia um pouco isolada.
Fiz menção de dar meia volta e sair, mas alguém me agarrou pelo
pulso e me puxou para junto da mesa.
— Espero que goste do jantar. — David falou enquanto puxava uma
cadeira perto de Charles para me sentar.
— Obrigada, senhor. — Abaixei a cabeça educadamente. Ele se
deslocou para seu lugar, ao lado de Lillian.
No momento que ergui a cabeça percebi que todos os familiares de
Mr Luft olhavam para mim. Sorri constrangida, mas não abaixei os olhos, o
que os constrangeu ao mesmo nível que eu.
O jantar demorou mais do que era esperado, já que os convidados
ficaram muito tempo conversando e rindo, e pouco comendo. Miss Ellis se
ergueu, depois de muito falatório, e bateu o garfo de prata na taça. O som
estridente fez com que todos se calassem.
— Boa noite a todos. — Ela disse animada, olhando discretamente
para mim. — Nosso anfitrião, David Luft, gostaria de se pronunciar.
David se ergueu vagarosamente. Estava medindo as palavras e
parecia não muito certo do que ia falar.
— Quero agradecer a todos que vieram comemorar mais um
aniversário de meu filho. E também… — Hesitou.
— Não se preocupe que eu mesmo falo. — Lillian sorriu
graciosamente para ele, então se virou novamente para os outros e ergueu a
mão direita. — Vamos nos casar.
As palavras de Miss Ellis acertaram Charles como um soco. Eu
também estava abalada, mas já esperava por aquilo.
— Está tudo bem, Charles? — Perguntei baixinho. Minha voz foi
abafada pelo barulho das palmas.
— Não. — Seus olhos estavam molhados e eu sabia que se eu
continuasse falando iria fazê-lo chorar ali mesmo.
— Depois nós conversamos. — Beijei delicadamente seus fios
amendoados. — Vai ficar tudo bem.
— Espero. — Falou em um sussurro.
Eu também, pequeno. Eu também.

Eu não tive muito tempo para pensar no que havia acontecido.


Focara-me de tal forma em tentar tranquilizar Charles que me desprendi de
meus sentimentos por hora.
— Durma bem, querido. — Beijei-lhe a testa depois de arrumá-lo
para dormir e lermos um pouco do livro novo. Ele ainda estava com os olhos
úmidos, mas não chorara uma gota sequer. Aquilo me assustava. — Não
fique triste, logo as coisas melhorarão.
— E se não melhorarem? — Encarou-me sério.
— Eu e a senhorita Mel estaremos aqui. — Acariciei a cabeça da
gatinha que se aninhou ao lado do garoto. — Vai dar tudo certo, eu prometo.
— Eu te amo muito, Sam. — Ele sorriu finalmente. Foi a vez dos
meus olhos marearam.
— Eu também o amo, pequeno. Agora está na hora de dormir.
Cobri Charles e me levantei silenciosamente. Fiquei alguns segundos
parada ao lado da cama, observando seu rosto infantil. Uma lágrima solitária
desceu pela minha face. Sequei-a rapidamente e me retirei do quarto.
Quase que no instante que saí, deparei-me com David.
— Boa noite, senhor.
— Charles já está dormindo?
— Sim, senhor.
— Uma pena. Acho que terei que conversar com ele amanhã.
Concordei um a cabeça. “Tenha uma boa noite” Subi para meu
quarto. Eu queria que ele falasse alguma coisa, que dissesse que tudo havia
sido uma brincadeira, mas era querer muito. Afinal, todos ali já esperavam
por aquilo.
Mesmo tentando me convencer que não o amava mais, sabia que
aquilo era mentira. Tinha esperança dele, algum dia que fosse, se apaixonar
por mim também, mas eu continuava sendo apenas mais uma de seus
contratados. E deveria me comportar como tal. Deveria permanecer em meu
lugar. No fundo eu sabia que estava sonhando demais e com algo irrelevante.
Sentei-me no parapeito da janela e fiquei encarando o jardim. Estava
muito escuro e a janela embaçada não permitia que eu enxergasse direito,
mas continuei olhando. Lembrei-me do dia que Richard fizera o pedido de
casamento.
Ergui minha mão e subi meu olhar para ela. Há não muito tempo, um
anel enfeitava meu dedo. Acho que aquela fora minha última oportunidade de
me casar.
Voltei a observar o jardim. Além de perder David, o casamento entre
ele e Lillian só traria tristeza para aquela casa. Os empregados não gostavam
dela, Charles não gostavam dela e ela não gostava de ninguém. E, com
certeza, eu seria demitida.
Lembrei-me de súbito das minhas primeiras semanas na casa de Mr
Luft. “Até eu achar que Charles não precisa mais de suas aulas?” Ele havia
indagado na noite que eu aceitei ficar. Será que aquilo demoraria? Será que
Miss Ellis iria fazer com que David mudasse de ideia?
Caminhei lentamente até minha cama e peguei o diário que eu
guardava embaixo do colchão. Voltei para o parapeito.
“Mas Mr Luft não se assemelha a eles. David conversa comigo,
pergunta minha opinião sobre as coisas e mostra verdadeiro interesse por
tudo. Parece que ele está se esforçando para que nosso relacionamento dê
certo, e agora até eu acredito que dará.” Será que David também tentaria
fazer aquele novo casamento dar certo?
Mr Luft nunca mostrara muito carinho para com Miss Ellis e aquilo
trazia questões à minha mente. No dia que me apresentou Lillian, falara sobre
casamento, mas não de um modo como se cogitasse a ideia. Então, por que
estariam se casando?
Eu poderia apostar que fora o ar sedutor de Lillian, mas David não
parecia alguém que se casaria por sedução.
Ou talvez ele de fato a amasse. Eu estava me iludindo muito ao
pensar que minha vida seguiria o rumo que eu desejava. Era verdade que eu
gostava mais de David a cada dia que passava, mesmo tentando ignorá-lo –
mesmo quando era ignorada, mas eu não podia fazer nada se ele não gostava
de mim da mesma forma.
Passei meu dedo pelas folhas velhas do diário. Minha unha se deteu
em um parágrafo, a cima das palavras que contavam a noite de núpcias dos
dois.
Nossa primeira noite talvez tivesse sido especial, mas, infelizmente,
eu não me lembrava de nada. E eu tentava lembrar, forçava-me ao máximo
para recordar o que havíamos falado naquela noite, mas nada.
Dormi no parapeito, tentando desesperadamente me lembrar de algo.
Estava David abraçado a mim. As taças conservavam-se em nossas
mãos. Vazias. Mr Luft falava algo de um jeito um pouco cômico, mas antes
que eu pudesse entender, fui eu a abrir a boca e dizer alguma coisa.
“Eu percebi que gosto muito do senhor. Muito mesmo, mais do que
já gostei de qualquer outro homem em minha vida.”
E ele sorriu. Aquele sorriso que eu tanto gostava de ver e que era tão
raro. Eu sentia verdade presente no dobrar de seus lábios, em seus olhos.
Então os fatos ficaram baços. A nitidez só voltou quando eu
experimentei o toque dos beijos de David em minhas costas. Aquele contato
quente, aquele estranho desejo.
“Eu venho querendo fazer isso há muito tempo.” Ele disse enquanto
seu toque me seduzia. Levou-me até a cama. “Como é linda.” Sussurrou.
Fechei meus olhos e quando voltei a abri-los, a cena havia mudado
novamente. Eu estava andando pelo corredor do primeiro andar. Estava bem
animada, mesmo estranhando o vazio da casa. Não havia ninguém ali, não
existia sequer barulho de vozes. Eu tinha a leve impressão de que aquilo
estava se repetindo.
Caminhei mais um pouco até a escada do salão de entrada. David
estava lá, em pé perto da porta olhando pelo vidro. Ele se virou para mim e
sorriu quando pisei no degrau mais alto.
— Pensei que nunca chegaria, querida. — Ele se aproximou da
escada. — Temos que ir, os convidados já estão esperando.
Eu olhei para meu corpo. Vestia um comprido e pesado vestido
claro, salto, luvas trabalhadas. Era meu casamento? Não sabia ao certo.
Assim que desci um degrau, observei a expressão de David mudar. Não era
mais felicidade e sim, pânico.
Virei-me assustada, mas antes que eu pudesse fazer alguma coisa um
par de mãos me empurraram e eu caí. O rosto da pessoa estava totalmente
nítido. Lillian. Ela sorria maldosamente e seu sorriso foi a última coisa que vi
quando tudo ficou negro e eu me vi caindo infinitamente.
Capítulo 16

Acordei ainda sentada no parapeito. Choveu à noite, a janela estava


fria e encharcada. Descolei a cabeça do vidro e encarei o quarto escuro. O
sonho daquela noite fora muito estranho. Eu esperava que tudo não passasse
realmente de um sonho e eu não tivesse me confessado para David.
Ergui-me ainda sonolenta e caminhei até o banheiro. Encarei o meu
reflexo no espelho. Meus cachos dourados estavam bagunçados e escuras
olheiras enfeitavam meus olhos. Penteei meu cabelo, lavei o rosto e forcei um
sorriso a aparecer. Mas continuei não estando nada bem.
Voltei para o quarto e abri meu baú. O vestido de Mrs Luft estava
em cima, seu cheiro ainda era o daquela noite. Eu me esquecera de guardá-lo
no sótão e ele continuava lá, praticamente intacto. Coloquei-o de lado
enquanto escolhia algo para me vestir.
Não estava feliz, mas desejei vestir algo animado. Queria que o
tecido que me envolvesse passasse para mim toda a felicidade que eu não
sentia. Escolhi uma roupa antiga, herdada de minha mãe, mas que continuava
com o tecido belo. Longos babados desciam pelas mangas e o tecido leve
beijava minha pele.
Guardei o diário novamente sob o colchão e saí para a cozinha. Até
que aquele vestido viera bem a calhar, parecia que estava envolta dos braços
de mamãe e senti-me amparada, pelo menos por um minuto.
Mas minha alegria durou pouco. Quando cheguei ao primeiro andar,
encontrei Lillian saindo do quarto de hóspedes. Ela vestia um robe com uma
estampa esverdeada e trazia os cabelos soltos sobre os ombros.
— Não sabia que empregadas podiam se vestir assim. — Olhou com
repulsa para a minha roupa.
“Bom dia, Miss Ellis. Vejo que não dormiu muito bem, acordou
mais mal-humorada do que de costume. E minha roupa não interfere no meu
trabalho de governanta. Não deveria ficar se importando tanto com o que eu
visto.” As palavras ficaram apenas no desejo de serem ditas. Resumi-me a
cumprimentá-la.
— Não está contente por eu ser a futura Mrs Luft? — Ela riu. —
Não fique com inveja, você nunca teria chance de se casar com David
mesmo.
— E por que acha que eu queria me casar com Mr Luft? — Não
consegui conter uma risada de deboche. Meu corpo decidiu por mim que não
mais demonstraria fraqueza perto dela. Ele estava cansado de se rebaixar e se
comportar com fragilidade. Eu era uma nova mulher.
— Sua cara não mente. — Ela se aproximou de mim. Lillian me
estudava de cima a baixo. Seu olhar não era igual ao de David, eu sentia algo
frio, algo que eu queria desafiar até uma sair vitoriosa. — Está tão
desesperada para ser notada…
— Desculpe, senhora, mas acho que não deve estar se sentindo
muito bem. Está começando a ver coisas.
— Quem é a senhorita para falar assim comigo? — Ela franziu o
cenho.
— Eu acho que não falei nada demais. — Sorri o mais
carinhosamente que consegui. — Agora me dê licença, preciso ir trabalhar.
— Pode ir. — Lillian saiu da minha frente. — Quando eu for me
casar com David vou fazer questão da você estar na primeira fileira só para
eu ver seu rostinho de derrota.
— Senhora, desculpe em decepcioná-la, mas não irei lhe dar essa
satisfação. Primeiro, porque não irei ao seu casamento. Segundo, porque não
serei derrotada. — Sorri de lado. — E cuidado com suas palavras, sim? As
paredes têm ouvidos e talvez falando tanto, seus planos nem tenham tempo
para serem executados. — E antes que ela falasse, continuei: — Agora com
licença, estou atrasada.
Desci rapidamente a escada, mas ainda deu tempo de ouvi-la
bufando e praguejando.
— Eu gosto desse seu espírito desafiador. — Liza apareceu ao meu
lado. Estava escondida atrás de uma porta.
— Me assustou, Liza. — Encarei-a confusa. — Desde quando está
aqui?
— Eu desci um pouco antes de você, mas ainda estava aqui quando
Lillian a encontrou. E é claro que eu não ia perder a oportunidade de ouvir o
que você tinha a falar. Eu admiro sua coragem.
— Eu não falei o que queria falar, na verdade. — Sorri. — Como ela
consegue ser desse jeito?
— Chata? — Ela disse abrindo a porta da cozinha.
— Quase isso.
— Quem é chata? — Janet nos olhou curiosa. — Espero que não
seja eu.
— Não, não. — Eu ri.
— Miss Ellis. — Anneliza continuou.
— Chata é uma palavra muito fraca para defini-la, minhas queridas.
— Janet nos abriu um sorriso. — Mas é melhor eu parar de falar essas coisas,
porque quando a megera se casar com o amo, eu pagarei pela minha boca.
— Acha que Mr Luft aceitaria os caprichos de Lillian? — Perguntei
mordiscando um biscoito.
— Espero que não. — Connie se juntou a nossa conversa. — David
deve ter, pelo menos, a decência de não ceder aos desejos dela.
— Ou de não se casar com ela. — Liza sorriu para mim. — Poderia
ter outra pessoa que talvez fizesse David mudar de ideia.
Anneliza estava me encarando indiscretamente. Connie e Janet a
imitaram, não para fazer com que eu falasse algo, mas porque estavam se
questionando sobre os planos de Liza.
— O que estão todas conversando? — Thomás entrou acompanhado
de Richard, e Serafine também se juntou a nós.
— Não é nada. — Tentei não parecer muito constrangida com a
situação. — Com licença, vou acordar o pequeno Charles.
Peguei a bandeja e me apressei a sair. Infelizmente, Liza me seguiu.
— Não sei porque você está agindo assim. — Ela se agarrou ao meu
braço. — Todo mundo sabe que a senhorita quer se casar com ele.
— Não quero mais. — Menti. — E minha chance já passou. — As
palavras foram proferidas para mim mesma, mas em um tom que parecia
continuação da conversa com Anneliza.
— Do que está falando?
— Eu não lhe contei, mas no dia seguinte ao baile e de nós termos…
Bem… Você sabe. Ele pediu para eu me casar com ele, porque assim ficaria
tudo certo. Eu recusei porque não achei que era o momento.
As bochechas de Liza ficaram brancas por dois segundos e, quase ao
mesmo tempo, fervilharam. Eu não esperava aquela reação. Ela ergueu a mão
e deu um tapa no meu rosto. Eu deixei a bandeja cair e recuei assustada.
— Por que fez isso?
— Por que você não aceitou?! — Ela estava zangada. Muito
zangada. — O que você tem dentro da sua cabeça? Como você pode ter
recusado o pedido dele?
— Por que está com raiva? Eu só…
— Você só pensou em você. Se tivesse dito sim, estaria feliz agora
sendo Samantha Luft e não aquela horrível da Lillian.
— Por que você quer tomar as decisões por mim? Eu não queria ser
forçada a casar. Por mais que eu amasse David, seria a mesma coisa de não
ter escolha. E se não era para ser David o homem com quem eu viverei a
minha vida inteira?
— E se era? E se essa tivesse sido sua única chance? — Ela estava
começando a me assustar. Tratava-me como uma criança que não entende a
lição depois de explicada pela milésima vez. — Você só pensou em você
com essa escolha. Não pensou em nós, não pensou em Charles, não pensou
em David e nem ao menos no que você realmente sentia.
— Para de ficar cuidando das minhas escolhas! — Peguei a bandeja
apressada. — Eu já sou grande para escolher o que quero e para viver as
consequências disso. Não preciso que alguém fique me repreendendo. Minha
vida só importa a mim, e não quero vivê-la pensando em como agradar mais
as outras pessoas!
Retirei-me de volta para a cozinha. Liza ficou parada lá, vendo-me
afastar.

Meu rosto, como esperado, ficou inchado pelo tapa. Eu estava


chocada com o comportamento de Anneliza. Tão chocada que nem prestava
mais atenção no que estava fazendo.
— Cuidado. — David se desviou assustado quando eu quase o
atropelei com a bandeja no corredor. — A senhorita está um pouco dispersa.
— Desculpa, senhor. — Fiz uma rápida mesura.
— O seu rosto…
— Não foi nada. Só o dom que eu tenho de ser azarada. — Respondi
sem pensar.
— Está bem inchado. — Ele colocou a mão em minha bochecha. —
Parece que alguém lhe bateu.
— Não foi nada senhor.
Lillian apareceu pulando no corredor. Parou ao nos ver. Seus olhos
me fuzilaram. David não percebeu que sua querida noiva estava ali, ele
continuava com a mão em minha bochecha.
— Eu — Olhei nos olhos dele. — estou bem, senhor.
Apressei-me a sair dali. Fiz uma breve mesura para Lillian e me
afastei. Acho que David me seguia com o olhar quando percebeu a presença
de sua noiva. Miss Ellis falou alguma coisa, mas eu estava longe para escutar
direito.
Cheguei bem rápido ao quarto de Charles. Ele tinha um fiapo de
linha entre os dedos e brincava com a Senhorita Mel. Quando entrei no
quarto, a gatinha e Charles vieram me receber. Cumprimentei-os com falsa
animação.
— Como foi sua noite, querido?
— Foi muito boa. A Senhorita Mel faz um barulho engraçado
enquanto dorme. — Ele acariciou a cabeça da gata.
— E como se sente agora que está mais velho?
— Não sei. — Ele me encarou sério. — O que mudou? Papai ainda
vai se casar com Miss Ellis e eu não posso fazer nada.
— Por que acha isso?
— Papai não me escuta.
— Mas você ainda nem tentou falar com ele.
— E nem preciso para saber que ele não vai mudar de ideia. — Ele
virou o rosto para a gatinha. Senhorita Mel mordia as pernas da mesa. — E
eu quero que ele seja feliz também. Se ele acha que Miss Ellis é a felicidade
dele, eu não vou fazer ele mudar de ideia.
— Mas seu pai quer que você seja feliz, meu amor. — Eu o abracei.
Charles sorriu, olhou novamente nos meus olhos e negou com a cabeça.
— Se você tiver que ir embora — Ele falou baixinho. A voz tremia e
seus olhos ficaram úmidos. O sorriso ainda estava em seu rosto. — Me leva
com você?
— Eu… Não posso fazer isso… — Assustei-me com o pedido. —
Mas prometo que não vou o abandonar. Nunca, nunca, nunca.
Ele me abraçou com força. Havia começado a chorar. A Senhorita
Mel nos encarava sem entender o porquê de tanta comoção.
— Agora coma o seu café e vamos para sua aula. — Beijei sua
cabeça. Ele se afastou e secou o rosto com a manga do pijama. — Vai ficar
tudo bem, eu prometo.
Concordou com a cabeça e fez o que pedi.

O que eu havia feito? Eu poderia ter aceitado o “pedido” de


casamento de David. Se eu tivesse me casado com ele, Charles não estaria tão
triste agora. Poderíamos ter nos tornado uma família feliz. Mas… Por que eu
recusei? Por que eu tinha que ser tão idiota e orgulhosa?
Eu estava pensando nisso na hora do almoço. Acho que algumas
lágrimas desceram pelo meu rosto, mas eu estava tão dispersa que nem
percebi que os outros empregados me olhavam. Só saí de meu estupor
quando alguém encostou algo gelado em minha bochecha.
— Me desculpa. — Liza segurava um pano úmido junto ao inchaço.
— Eu não queria ter feito isso.
— Está tudo bem. — Afastei o tecido de meu rosto. Ergui-me ainda
atordoada e saí para o quintal.
Eu não estava me sentindo muito bem, estava tonta e fraca.
Caminhei a esmo, escutando os passos de Liza me seguindo.
— O que está sentindo? — Ela perguntou longe.
Sentei-me no banco perto da casa de Connie. Minha cabeça parecia
rodar.
— Estou com dor de cabeça…
— Você anda dormindo direito? — Ela se sentou ao meu lado. Eu
neguei com a cabeça. — Pode ser isso.
— Acho que deve ser porque estou muito estressada. — Sorri
forçadamente. — Não deve ser muito sério.
Levantei-me um pouco trôpega. Não dei mais do que sete passos e
caí de joelhos no chão. Liza correu para me ajudar.
— Isso é sério! — Ela me ergueu. — É melhor descansar um pouco.
Se não melhorar, peça para David examiná-la. Ele deve ter um remédio…
— Eu estou bem. — Desvencilhei-me de suas mãos. — Vou ver
Charles. Ele já deve ter terminado o almoço.
— Sam… O que você está sentindo pode ser grave.
— Eu estou bem. — Falei com mais ênfase. Consegui fazer meu
corpo ficar em pé e caminhar até o quarto de Charles.
A dor de cabeça já havia melhorado quando saí de noite depois de
deixar a criança dormindo. Trazia meu livro de história sob o braço. Lê-lo
para Charles era sempre uma diversão para mim. Eu estava bem demais
comparado à hora do almoço. Estava feliz também. Caminhei alegremente
pelo corredor.
E então encontrei Lillian.
— Boa noite. — Falei sorridente.
— Por que está tão feliz, empregadinha?
— Senhora? — Assustei-me com seu tom de voz.
— Eu sei muito bem o que está planejando.
— Mas eu não estou planejando nada.
— Não está? Acha que não vi a senhorita com David? Como seus
olhinhos toscos o encaravam? — Ela ia se aproximando de mim. Eu recuava.
— Eu não fiz nada. — Ergui o queixo e a encarei séria. — Mr Luft
só estava preocupado com o inchaço do meu rosto.
— Não fez? — Ela riu maldosamente. — E por que está se vestindo
desse jeito? Por que não se comporta como uma empregada? Por que sempre
se encontra com David e parece tão boazinha?
— Do que está falando? — Recuei mais um passo.
Lillian me encarou séria. “Isso não é roupa de empregada usar.”
Repetiu. Puxou ambas as mangas de meu vestido e as rasgou. Depois,
agarrou o livro que eu carregava e o abriu em uma página a esmo. “Não
encoste nisso.” Tentei pegá-lo de volta, mas ela foi mais rápida e desviou.
Eu vi Miss Ellis arrancar inúmeras páginas do livro. Ela encontrou o
desenho de papai e o de Charles, que eu guardava ali dentro. Deixou cair o
que tinha sobrado do livro de mamãe no chão e os ergueu a minha frente.
— Esse sorrisinho ridículo. — Rasgou o desenho de papai até a
metade. Já o de Charles não teve tanta sorte, ela o dividiu em dois.
— Para! — Arranquei de suas mãos o que sobrou e a empurrei para
longe.
— Não encoste em mim. — Ela se aproximou novamente e me deu
um tapa na face oposta a inchada.
Eu estava com tanta raiva que nem pude pensar direito. Ela havia
acabado de rasgar o vestido de mamãe, o livro de contos e os desenhos que
me deixavam felizes. Não sairia impune. Ergui minha mão e a acertei na
bochecha rosada de Miss Ellis. Ela se afastou assustada, mas não demorou
muito para se recompor e virar sua face colérica para mim.
— Você me bateu?
— Eu me defendi. — Havia acabado de perceber o que fizera, mas
preferi não dar o braço a torcer. Mas tive que me desculpar quando a razão se
pronunciou novamente. — Eu… Sinto muito.
— Eu vou contar tudo para David. — Ela se afastou correndo. Eu a
acompanhei.
Lillian batia freneticamente na porta do quarto de Mr Luft. Ele
demorou um pouco para abrir. Tinha os olhos cansados, mas logo os
despertou quando nos viu.
— O que houve? — Levou a mão ao cabelo.
— Essa sua empregada me deu um tapa no rosto. — Ela se pendurou
ao braço dele.
— Isso é verdade, Miss Evans? — David me censurou com os olhos.
Sua voz estava fria e seu rosto, sério.
— Sim, senhor. Mas só fiz isso porque a Miss Ellis me bateu
também. — Minha face virou-se maquinalmente para o chão, não mais por
vergonha de seus olhos, mas não queria que visse minhas bochechas inchadas
daquela maneira.
Ele se desvencilhou dos braços de Lillian e segurou meu rosto com a
mão, forçando-o a se erguer. “Já disse que quero que olhe para mim quando
estamos conversando”.
— Sinto muito, senhor. — Senti meus olhos marejarem. A expressão
de Lillian era de repulsa e de vitória. Mas aquilo não durou muito.
— Não bata nela novamente. — David se virou para Lillian.
— Querido…? — Indagou sem compreender.
— Nem nela, nem em qualquer empregado. Eles não estão aqui para
apanharem.
— Sim, querido… — Respondeu ainda chocada. — Mas ela me
bateu…
— Eu sinto muito, senhora.
— Ela já pediu desculpas. — David continuava olhando para Lillian.
— Acho que agora é sua vez.
— Eu… — Ela cruzou os braços. — Sinto muito, Miss Evans.
Minha expressão era imutável. Estava triste demais por ela ter
estragado as lembranças de minha mãe para demonstrar qualquer outra coisa.
— Acho que já pode ir, Lillian. — Ele enxotou a noiva. — Boa
noite.
— Mas, David! Ela me agrediu… Não poder ficar impune.
— E o que quer que eu faça com ela?
— Poderia demiti-la.
— Desculpe, mas não posso. Eu e Miss Evans temos um acordo e só
irei demiti-la se Charles não precisar mais de suas aulas.
— Mas… — Lillian tentou falar mais alguma coisa, mas David
soltou outro “boa noite” sonolento e ela foi para seu quarto. Acompanhamos
Lillian com o olhar até ela sumir dentro do quarto de hóspedes.
— Acho que você é bastante azarada mesmo. — David me puxou
pela mão para dentro de seu quarto. Abriu uma caixinha marrom e tirou um
pote redondo. — Vou presenteá-la com isso. — Ele me ergueu o recipiente.
— É só passar sobre o inchaço quando se machucar.
— Obrigada, senhor. — Peguei o presente timidamente. Ele
examinou as mangas de meu vestido que pendiam agora em meus cotovelos.
Não comentou nada a respeito.
— Sobre Lillian — Rodou os olhos para a porta temendo que
alguém a abrisse. — Ela se enerva com facilidade, acho melhor a senhorita
evitá-la por algum tempo.
— Sim, senhor. — Eu não fazia questão de encontrá-la mesmo. — O
senhor deve estar muito cansado, é melhor eu deixá-lo dormir. Boa noite.
— Boa noite, Sam. — David se despediu com um bocejo.
Saí do quarto e voltei lentamente até onde meu livro jazia no chão.
Ajoelhei-me e o peguei delicadamente entre os dedos. “Eu sinto muito,
mamãe.” Acariciei a face rasgada de minha mãe-desenho. Meus olhos
umedeceram de forma que o desenho se tornou um imenso borrão em minhas
pupilas. Arrumei as folhas dentro da capa de couro e voltei a me erguer.
Ela poderia se casar com David, mas não acabaria com a minha
felicidade. Eu não deixaria que ganhasse.

A casa ficou bem mais alegre depois que Lillian partiu. Nós
sabíamos que era por um curto período, mas aquilo não iria estragar nossos
momentos livres dela.
Era manhã e nós estávamos no jardim. Charles corria atrás da
senhorita Mel enquanto a gatinha explorava alegremente o lugar. Eu
caminhava um pouco afastada dele, sentindo o cheiro adocicado e me
alegrando com as cores.
Olhava por entre as árvores um pouco distantes, depois da casa de
Constance, quando avistei Serafine e Richard em pé em meio ao arvoredo.
Richard a abraçava pelas costas, a cabeça colada ao pescoço da moça
e os olhos fechados. As mãos de Serafine enlaçavam as dele. Mesmo com a
distância, era possível ver o brilho das alianças nos dedos do casal. Tinham se
casado há uma semana e estavam muito contentes com tudo e todos. Eles
dançavam lentamente, sentindo um ao outro.
O amor deles era uma das coisas que me alegrava, era algo tão
verdadeiro que não conseguia ser menos do que encantador. Eu ficava feliz
pelos dois, mas será que um dia eu teria a mesma felicidade deles?
Estava tão entregue a meus pensamentos que só voltei a mim quando
senhorita Mel começou a puxar meu vestido. Olhei assustada para frente e
peguei Charles olhando na direção do casal. Ele se virou para mim e sorriu,
agarrou minhas mãos e começou a dançar de um lado para o outro como em
uma valsa infantil.
— Você dança bem, querido. — Acompanhei seus passinhos.
Charles riu e me soltou.
— Obrigado. — Fez uma mesura exagerada como quando um
homem se despede de uma mulher em uma dança. Eu o agradeci com outra.
Ficamos nos encarando e rindo. Eu teria continuado ali rindo com
ele, senão fosse o enjoo que se apoderou de meu corpo. Dei um passo para
trás e levei as mãos até a boca.
— Sam — Charles fez menção de se aproximar, mas eu me afastei
mais rápido. — Está tudo bem?
Concordei com a cabeça e saí apressada dali. Não consegui me
segurar por muito tempo, na verdade dei uns míseros passos antes de cair de
joelho, apoiar o corpo com os braços e vomitar meu café da manhã. Eu não
estava nenhum pouco bem.
Charles veio correndo atrás de mim.
— Sam! — Ele se desesperou. — Precisa ir até papai. Ele vai cuidar
de você.
— Não meu amor. — Sequei a boca com a manga. — Eu não vou
incomodar seu pai com um enjoo sem importância.
— Mas Sam… — Ele parecia realmente preocupado. Falava tão alto
que chamou a atenção de Janet que passava para a casa de Connie.
Eu me levantei antes que ela passasse por nós, queria que tivesse
seguido em frente, mas Charles a puxou pela mão e a trouxe até mim.
— O que foi, minha querida? — Ela colocou a mão em minha testa,
sentindo a temperatura. — Está enjoada?
— Não é nada. — Sorri de lado.
— É sim. — Charles me censurou com o olhar do mesmo jeito que o
pai fazia.
— Comeu algo diferente? — Janet segurava minhas mãos.
— Eu — Virei o rosto para Charles. — Querido, pegue a senhorita
Mel e vá para seu quarto, sim? Logo subo.
Ele não queria subir, mas acho que meu olhar o convenceu. Ele
recolheu a gatinha e entrou em casa.
— Eu não sei o que está acontecendo comigo. — Encarei Janet nos
olhos. — Não estou me sentindo muito bem desde… desde…
— Desde…?
— Acho que desde quando eu e… — Fiquei vermelha. — Desde o
baile.
Janet ficou pálida. Colocou a mão em minha barriga, na altura de
meu ventre. Afastou a mão e sorriu de leve.
— O que foi? — Eu a encarei assustada. — É muito ruim?
— A senhorita terá um bebê.
— Como disse?
— Está grávida.
Por mais que parecesse óbvio, eu não queria aceitar a verdade.
Sentei-me em um banco próximo e fiquei encarando o ar, atônica.
— Como sabe disso? — Virei meu olhar novamente para ela.
— Eu tive cinco filhos. — Ela riu. — Depois do segundo a mulher
entende sobre gravidez.
Eu abaixei a cabeça. Encarava o chão agora. As lágrimas começaram
a descer, a princípio, timidamente, depois se intensificaram. Janet se sentou
ao meu lado e me abraçou. “Vai fica tudo bem.” Ela dizia calmamente.
O que eu iria fazer com um filho? Eu não era casada. Não tinha uma
família para me apoiar. Não tinha nem como sustentar uma criança.
— Tem certeza? — Encarei-a novamente.
— Posso estar errada. — Sua sobrancelha se ergueu em tom de
dúvida. — Mas você precisa ir a um médico. Talvez Mr Luft…
— Não! — Eu me assustei com a ideia. — Ele não pode saber que
estou grávida.
— Samantha. — Ela falou calmamente. — Uma gravidez não é uma
coisa fácil de se esconder. Além do mais, ele é o pai e deveria saber.
— Não. — Falei baixinho. — Ele não precisa saber. Ninguém
precisa.
— Mas como a senhorita irá esconder?
— Eu darei um jeito. — Forcei um sorriso. Levantei-me apressada.
— Vou ver Charles. Obrigada, senhora.
— Deveria ir a um médico.
— Não se preocupe. Se tiver uma criança aqui ela irá aparecer mais
cedo ou mais tarde. — O que eu temia na verdade era criar uma onda de
histórias sobre minha gravidez pela cidade. Nada daquilo podia chegar aos
ouvidos de Mr Luft, sendo verdade ou mentira.
Subi apressada para o quarto do pequeno.
— Está tudo bem? — Ele pulou em minha direção assim que abri a
porta.
— Está sim. — Alarguei o sorriso. — Não se preocupe, só foi um
mal-estar.
Charles sorriu e pediu para que tocássemos algo no piano. Saímos
para o quarto ao lado. Sentei-me ao piano e toquei uma música escolhida por
Charles. Era triste e me deprimiu, mas eu não deixei as lágrimas voltarem a
descer.
Capítulo 17

Depois de um mês, a gravidez se tornou evidente. Eu ainda teimava


em acreditar que não era verdade, que apenas meu corpo estava mudando,
mas aquelas mentiras não funcionavam nenhum pouco. Já passavam dois
meses desde a noite do baile, os enjoos ficaram no primeiro mês, mas eu
sentia dor no corpo com mais frequência que desejava. Minha barriga
crescera de tal modo que meus vestidos ficaram apertados, mas não era nada
que uma afrouxada não resolvesse, ou os velhos vestidos de mamãe não
escondessem.
O segredo da gravidez sobreviveu por uma ou duas semanas, tempo
que levou para chegar aos ouvidos de Connie e Liza, o que era relativamente
bom, já que elas me apoiaram e estavam me ajudando a esconder de Mr Luft
e Lillian – mesmo Connie sendo do time que torcia para eu contar a David.
— Acho que teremos que fazer roupas novas para você logo, logo.
— Liza estava sentada em minha cama enquanto eu me arrumava.
— Que dia é hoje? — Perguntei baixinho. Alguma coisa dentro de
mim me dizia que eu estava esquecendo algo, mas, por mais que eu me
esforçasse para lembrar, tudo parecia estar certo.
— Dia 12… Acho. Por quê?
— Eu estava sentindo que esquecia alguma coisa, mas agora já sei o
que é.
— O que era?
Neguei com a cabeça, respondendo que não era nada importante.
— É algo importante sim. — Ela me encarou curiosa. Como eu
adorava aqueles trejeitos infantis que ela sempre fazia quando queria saber
algo.
— Hoje… bem… é meu aniversário. — Minha voz não saiu alta,
desejando que ela não tivesse entendido. E antes que ela comentasse,
continuei: — Não é importante, eu não tenho o costume de comemorá-lo.
— Mas se é seu aniversário, deveríamos comemorar.
— E por quê? Só serve para contar os anos.
— Samantha, vai ser bom para você ser mimada um pouco.
“Uma criança tão mimada que fica doente por coisas
desnecessárias.” A voz de Heloíse ecoou em minha cabeça. Meus lábios se
estreitaram. Não vou incomodar ninguém com os meus problemas.
— Não. — Encarei-a nos fundos de seus olhos. — Não conte a
ninguém que dia é hoje. Por favor.
Anneliza percebeu meu tom de voz e se calou. Talvez quisesse me
fazer acreditar que não contaria para ninguém, mas, conhecendo Liza aquele
tempo todo, eu sabia que não guardaria segredo.
— Vamos trabalhar logo. — Falei agora sorrindo. — Assim a
senhorita se ocupa com outras coisas e esquece de mim.
— Eu não vou me esquecer de você. — Ela arqueou a sobrancelha.
Não iria. Não por eu ser algo interessante que merecesse seus
pensamentos, mas porque depois do casamento de Serafine, fui promovida ao
posto de irmã mais nova, o que incluía se preocupar mais do que o
necessário.
Ela desceu para a cozinha. Eu fui logo atrás dela.
A manhã foi corriqueira. Lillian apareceu para passar o dia e nos
atormentar, David dedicou seu tempo quase que exclusivamente à noiva, e
Charles chateou-se logo nas primeiras horas do dia.
Sim, apenas a manhã e o início da tarde foram bem normais, mas
algumas horas antes do jantar eu senti que aquela normalidade sumiria antes
de eu me recolher para dormir. Liza me empurrou até a cozinha. Eu já
suspeitava o que era, mas preferi não a impedir de fazê-lo. Na verdade, eu
estava bem alegre com o meu aniversário. Era o primeiro que passava longe
de minha realidade na França e eu deveria ficar feliz por aquilo.
— O que quer tanto que eu veja? — Cruzei os braços fingindo
impaciência, mas meus risos me denunciavam.
— Você vai ver. — Ela abriu a porta a minha frente.
— Surpresa! — Os outros empregados, todos sentados na mesa da
cozinha, anunciaram animadamente.
Eu não era acostumada com surpresas, nunca tive muitas na minha
vida e as poucas que tivera não foram nada boas. Então, apenas sorri
constrangida para todos e agradeci.
— Você não gostou. — Liza se sentou triste.
— Gostei sim. — Respondi envergonhada, mais pelo meu
comportamento do que pela surpresa em sim. — Eu nunca fui acostumada
com surpresas e já tem algum tempo que não comemoro meu aniversário.
Mas muito obrigada.
— Vamos parar com essa enrolação. — Janet me puxou para junto
da mesa. Ela tinha feito um bolo pequeno de trigo, vários pães, chás e doces
variados. — Coma alguma coisa, aniversariante.
— Quantos anos está fazendo mesmo? — Serafine colocou alguns
doces e uma xícara de chá em minhas mãos.
— Vinte e três. — Respondi quase junto a um dar de ombros.
— E continua com essa carinha de criança. — Liza apertou minhas
bochechas, fazendo-me sorrir.
— Não tenho mais tanta cara de criança. — Respondi também em
tom de brincadeira. — Só um pouco, mas não muito.
— Sim. — Ela alargou o sorriso. — Só um pouco. Imagina o que
seu filho achará da carinha de bebê da mãe?
Janet, Connie e eu desmanchamos o sorriso e a encaramos sérias. Os
outros empregados não perceberam, já que Constance se intrometeu logo:
— Parem com essa besteira toda e deixem Samantha aproveitar o
jantar de aniversário. — Constance sorriu para mim.
Conversamos muito e estávamos bastante alegres quando o sininho
tocou, anunciando que Mr Luft precisava de algo. Connie se retirou
apressada, mas não demorou a retornar.
— Miss Evans. — Ela colocou a mão em meu ombro. Seu rosto
estava um pouco sombrio e suas palavras saíram fracas. — O amo gostaria de
falar com você.
Apenas concordei com a cabeça e segui meu caminho até a sala de
estar. O que ele queria conversar tão tarde e com a ilustre presença de sua
noiva em casa? Não que eu achasse que não poderíamos conversar com
Lillian por perto, mas Mr Luft sempre preferia dar atenção a ela do que a
qualquer outra pessoa.
Lillian estava sentada na poltrona que eu normalmente ocupava.
David estava em pé perto da lareira. Outra pessoa estava ali, sentada em uma
poltrona de costas para a porta, um pouco ao lado da de David. Miss Ellis
conversava animada com o visitante e só aquilo já foi o suficiente para me
assustar.
— Pediu que me chamassem, senhor? — Dirigi-me a Mr Luft. Ele se
virou para mim. A pessoa sentada se levantou no mesmo instante que escutou
minha voz.
Minhas pernas por pouco não cederam. O meu assombro foi
tamanho, que meu queixo caiu e eu dei um passo na direção de David,
distanciando-me ainda mais da pessoa. Aqueles olhos cinzentos me fuzilaram
e eu sabia que não era apenas uma fantasia de minha cabeça.
Por mais que eu soubesse que estava furioso, sua voz saiu
mansamente:
— Samantha, meu amor. Há quanto tempo.
— E teria sido mais se não tivesse vindo até aqui. — Respondi séria.
Seu olhar ficou ainda mais assustador.
— Eu vim lhe trazer seu presente de aniversário. — Sua voz era
agora traiçoeira. Ele estendeu uma caixinha para mim, mas eu me mantive
inerte em meu lugar. Seus olhos cinzentos passearam pelo meu corpo e se
prenderam às minhas mãos. Assim que notei, escondi-as depressa. — Onde
está nosso anel de noivado?
— Deve estar no mesmo lugar de nosso noivado. — Eu continuava
séria. Queria fugir dali, mas o olhar de vitória de Lillian me dava forças para
ficar. — Em um lugar onde ninguém poderá dizer que um dia existiu. Gareth,
o senhor não deveria estar aqui.
— E por que não? — Ele riu. — A senhorita ainda é minha noiva.
Tenho meus direitos de vir buscá-la.
— Eu não sou nada sua.
A raiva de Gareth tornara-se visível, mas ele respirava ruidosamente
tentando se controlar. Aproxime-me mais um passo de David, achando que
quanto mais perto de meu patrão, mais protegida estaria.
— Poderiam nos deixar a sós? — Gareth perguntou a David e
Lillian. Miss Ellis não precisou que pedisse outra vez, levantou-se com uma
velocidade surpreendente para alguém que usava um vestido tão
desconfortável e saiu trotando pela porta.
Eu me virei para David. Meu olhar era suplicante, aterrorizado. Ele
sorriu de lado.
— Desculpe, senhor, — Falou calmamente. — mas devo
permanecer aqui. Não gosto muito que estranhos fiquem sozinhos com
minhas empregadas. Mas não se preocupe, eu não vou atrapalhá-los. — Ele
se sentou em sua poltrona e pegou seu bloquinho.
Gareth revirou os olhos, impaciente.
— O que acha que está fazendo, sua vadia? — As palavras saíram
em francês e eu desejei não ter entendido. Ele se aproximava sorrateiramente
de mim, tentei recuar mais, porém seus dedos apanharam meu pescoço com
força.
— Só estou cuidando de mim. — Respondi séria, tentando impedir
meu rosto de se contorcer em uma careta de dor.
— Cuidando de você? — Ele continuava falando aos sussurros.
David parecia não se importar. Gareth aumentou ameaçadoramente o tom de
voz. — Como uma vadia como você irá se cuidar? Sua fama por aqui não é
das melhores.
— Não me importo com o que anda espalhando por aí. — Minha
face se aproximou perigosamente da dele. — Eu não sou sua, nunca fui e
nunca serei. Não pode fazer nada comigo, seu monstro! E por que veio até
aqui? Sua honra foi destruída por que sua noiva fugiu?
Ele rodou os olhos rapidamente pela sala e, ao perceber que David
estava muito distante do que acontecia ali, parou-os sobre mim. Sua fúria
queimava minha pele, e eu me sentia como se estivesse sendo torturada.
— Que mulher casará com um homem que foi largado pela própria
noiva… — Antes que eu pudesse acabar, ele apertou meu pescoço com mais
força e, em um movimento monstruoso, arremessou-me contra a poltrona.
— Fale isso de novo! — Gareth avançou em minha direção. Eu
escondi o rosto nas costas da poltrona e esperei que suas mãos me agarrassem
novamente.
Nada aconteceu, então eu me virei novamente para ver porque
parara.
— Não bata nela. — David falou em um impecável francês. — Ela
não é mais nada sua. Suma da minha casa, antes que eu resolva fazer o resto
da sua honra desaparecer de vez.
Gareth se desvencilhou de David. “Está bem!” Sibilou cheio de
cólera. Pegou suas coisas e antes de sair da sala cuspiu em mim. “Cadela”.
Voltei a esconder o rosto na poltrona. O pranto tomou meu corpo
com força e o balançou como se nada mais importasse. David saiu também e
eu fiquei lá, chorando, sozinha.
Quando ele retornou, eu já estava sentada e encarava indiferente as
chamas da lareira.
— Como ele me achou? — Meus lábios se moveram
maquinalmente.
— Não importa. Ele não vai voltar. E se voltar eu o coloco para fora
novamente. — Ele se ajoelhou a minha frente, mas eu não movi meu olhar.
Mr Luft secou minha face com as mangas de seu robe.
— Amiga… — Um breve sussurro escapou de seus lábios. — Sinto
muito.
— Não sinta. — “Sempre fui uma pessoa horrível mesmo” Gritei
dentro de mim. Os Céus acreditavam que eu não era digna de felicidade, o
que eu poderia querer? Um final feliz? — Irei me deitar um pouco.
— Vou pedir para Constance lhe levar um pouco de chá.
Apenas concordei com a cabeça. David se ergueu, mas não saiu de
minha frente, de modo que quando me levantei, nossos corpos se tocaram.
Ele passou o indicador pela minha face, secando uma última lágrima.
— Não se aborreça. — Sussurrou com os lábios perto de meu rosto.
— Não quero que fique doente novamente.
— Não irei.
Ele se afastou de mim e eu dei alguns passos em direção à porta.
Minhas pernas tremiam e meu caminhar foi cambaleante. David segurou
minha cintura para que eu não caísse, mas eu desviei rapidamente.
— Não quero mais confusão por hoje.
Ele sabia que eu estava falando de Lillian, então, apenas concordou
com a cabeça e me deixou partir.

Anneliza entrou no quarto sem bater. Eu ainda estava entregue


àquele torpor, pouco importando com o que acontecia ao meu redor. Meus
dedos afagavam meu ventre e meus lábios entoavam uma canção de ninar.
— Era para ser um bom dia. — Ele colocou a bandeja com chá a
minha frente. — Como Mr Luft deixou que ele entrasse?
— Não me importo. — Ignorei a xícara que me estendia e continuei
a cantar para meu filho.
— Sam, eu sei que ninguém esperava por isso e que tem seus
motivos para estar triste, mas você ainda tem uma criança aí dentro. Não
deixe que os acontecimentos a aborreçam. Não faz bem.
Ignorei também suas palavras e me deitei largada, encarando o teto.
Lágrimas silenciosas desceram pela minha pele febril.
— Eu estou com sono. — Respondi finalmente. — Amanhã as
coisas estarão melhor.
Pensei em ouvi-la sair, mas não sei ao certo. Desliguei-me
completamente de tudo e me entreguei rapidamente a um sonho profundo e
conturbado.

Acordei junto a Anneliza. Meu rosto estava perto de seu pescoço,


minhas mãos na altura de seus seios. Ela me abraçava com força pela cintura.
Não me lembrava quando se deitou comigo, mas não me importei. Seu
abraço era reconfortante e protetor.
Ela se mexeu, mas não acordou. Fiquei sentindo sua respiração em
meu cabelo. Dormia calmamente, sem se importar com as horas ou qualquer
outra coisa.
Escapei de seu abraço e me levantei. Queria escrever uma carta para
Don e contar tudo o que havia acontecido. Talvez ele soubesse de alguma
notícia que estivesse correndo na França sobre mim.
— Já está na hora de acordar? — Liza perguntou ainda com os olhos
cerrados.
— Acho que sim. — Observei a moça ainda deitada pelo canto dos
olhos. — Bom dia.
— Bom dia. — Ela se sentou e espreguiçou-se. — Está melhor?
— Estou sim.
— Que bom. — Ela se levantou de um pulo. — Vou me arrumar
antes que Janet venha brigar.
Ela não falava com medo, na verdade, parecia se divertir em pensar
que Janet iria se importar dela se atrasar.
— Ela trata vocês como filhas, não é? — Falei me lembrando do
casamento de Serafine e das lágrimas de felicidade de Janet. Rodei os olhos
novamente para a folha e trabalhei rapidamente com os dedos.
— Sim. — Ela sorriu um pouco comovida. — Ela é como uma mãe
para nós também. Se não fosse por ela, nem sei o que seria de mim e de
minha irmã.
— Ela tem cinco filhos? Como nunca ouvi falar deles? — Era
visível que eu estava puxando assunto para não termos que conversar sobre a
noite passada. Ela não se opôs, continuou falando.
— Acho que porque ela não gosta muito de falar. — Suspirou —
Eles se casaram e foram para longe, nunca mais deram notícias. É como se
não se importassem com a mãe… Mas não faz mal, ela está melhor sem
aqueles interesseiros.
— Sinto muito por ela. — Sussurrei.
— Mas eu estou aqui e vou cuidar dela como ela cuidou de mim e de
Serafine. Vou estar sempre aqui.
— Você não pensa em se casar?
Ela ficou em silêncio. Encarou-me séria, mas logo sorriu.
— Não acho que isso seja algo necessário por enquanto. Quero ficar
aqui e trabalhar, isso me deixa feliz. Nunca almejei casar.
— Mas não acha que sua irmã e Janet querem que se case? Não para
você ir para longe, mas para morar aqui como Serafine..
— Devem querer. — Olhou para a porta. — Mas eu não quero.
Eu dei de ombros. Nenhuma de nós estava a fim de conversar sobre
aquilo, então matamos o assunto ali mesmo. Ela se retirou para se arrumar.
Aproveitei aquele tempo para descer logo e levar a carta.
A manhã estava escura e parecia que a chuva não demoraria tanto a
cair. Encontrei Mr Luft sentado no banco a frente da casa, mas eu não parei
para cumprimentá-lo. Segui direto para a cidade.
Eu me envolvia em um xale pesado e a minha touca esquentava
minhas orelhas. Ventava forte e eu pouco via do caminho. Não havia sido
uma boa ideia sair com aquele tempo, mas caminhar distrairia minha mente.
Andava junto à estradinha, chutando as pedras do caminho e
sussurrando baixo, para despregar aquela paisagem enegrecida da minha
cabeça.
Ouvi o som de cascos se aproximando e me afastei da estrada,
pensando ser uma carruagem querendo passar. Com aquele tempo, seria
difícil o cocheiro me ver entre as brumas e eu queria voltar inteira para
Winterfields.
O som ficou mais alto, mas então cessou de súbito. Virei-me para
ver o que havia acontecido e, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, um
par de mãos fortes taparam minha boca e me puxaram pela cintura.
Eu esperneava enquanto me arrastavam para junto da carruagem,
mas aquela força desmoronou quando me lançaram lá dentro e eu fui
trancada. Minhas mãos, a princípio, projetaram-se diretamente para a porta,
mas uma voz grossa me fez parar.
— Ora, ora, se não é minha querida Samantha.
Meu coração parou por um instante. O mundo ao meu redor pareceu
desacelerar quando senti mãos me erguendo pela cintura e me sentando. A
minha frente, os olhos tempestuosos de Gareth me encaravam.
— Está emocionada em me ver? — Ele gargalhou. — Achou que eu
a deixaria em paz depois da humilhação que me fez passar? Pronto, você já se
divertiu durante esses meses, agora vamos voltar à paz de nosso lar.
— Eu não vou voltar com você para lugar nenhum. — Minha voz
saiu fantasmagórica. Ele alargou o sorriso. — Abra essa porta e me deixe
descer.
— Não, meu amor. Nós vamos voltar para nossa casa, eu irei cuidar
muito bem de minha menininha e seremos felizes, está bem?
— Como eu posso ser feliz com você? Você é um monstro! Uma
pessoa horrível. Prefiro me matar do que voltar com você.
— E acha que eu irei deixar que faça isso? — Ele se aproximou de
mim. Tentei virar meu rosto, mas sua boca foi rápida e logo se encontrou
com a minha. — Agora fique quietinha aí, que logo chegaremos ao porto.
— Por que acha que eu vou ficar quieta? — Meu tom de voz subiu.
Ele tapou minha boca com as mãos.
— Olha, colabore, está bem? Você não tem para onde correr e sabe
muito bem o que posso fazer com você.
Então, ele desceu os olhos para minha mão e descobriu a carta que
eu carregava. “O que é isso?” Tentei esconder o papel sob o xale, mas ele o
puxou agressivamente de mim.
Gareth leu tudo em silêncio, enquanto eu o observava com olhos
assustados.
— Ah, meu amor. Como pode falar tanta coisa ruim sobre mim?
Ainda mais eu, que me preocupo tanto com a senhorita. Sabe quanto trabalho
me deu vasculhar toda a França atrás de você? Por sorte alguém me enviou
uma carta e comunicou que teria a visto aqui na Inglaterra. E eu vim levá-la
para sua casa. Para ser minha esposinha linda. Imagina como será bom? Você
e eu, criando nossos filhos e vivendo calmamente em nossa casinha.
— Você é louco. Eu lhe odeio e nunca terei um futuro com você.
Ele me puxou para o banco a sua frente. Segurou minhas mãos no
alto, empurrando-me em direção à parede. Eu lutei contra seu corpo e venci
por hora. Ele por sua vez, percebendo que eu não cederia, pegou sua
bengalinha que descansava ao lado e a ergueu ameaçadoramente no ar.
Eu me virei para o outro lado, abaixando meu corpo até encostar no
estofado negro e abraçando minha barriga com força.
Ele acertou a madeira inúmeras vezes em minhas costas. Não gritei,
não chorei. Apenas arfava enquanto sentia o bastão contra minha pele. Meu
vestido umedeceu, e eu soube que estava sangrando, mas, mesmo assim,
continuei calada.
Gareth deixou a bengala de lado e me puxou agressivamente,
encaixando seu corpo entre minhas pernas. Suas mãos torciam meus braços e
eu tremia de dor.
Em pouco tempo, já havia se livrado da minha roupa íntima e
estocava com agressividade seu corpo dentro do meu. Eu não conseguia fazer
nada. Tentava me desprender de suas mãos, mas elas eram mais fortes,
torcendo e apertando vigorosamente meus pulsos. Minhas pernas também
lutavam, mas ele havia se arrumado de tal maneira no meio delas que meu
esforço era em vão.
“Nós vamos ser felizes.” Sussurrava em minha orelha enquanto me
estuprava. “Vamos ter uma família e você vai ser uma ótima esposa e mãe.”
Então parei de reagir. Perdi as forças, mas não desmaiei. Continuei
lá, sentindo seu corpo contra o meu, e desejando com todo o coração perder
os sentidos.
Gareth se movia com tanta fúria que meu interior ardia. Meus braços
continuaram sendo torcidos, e, depois de um tempo, não mais os senti.
Ele afastou a pélvis de mim e grudou rapidamente seus lábios nos
meus.
— Prefiro quando fica quietinha assim. — Riu. Suas mãos
vasculharam dentro de meu vestido, desnudando meus seios, para que sua
boca pudesse passear por eles.
Deixei que fizesse o que queria, que roçasse sua língua em mim, que
me mordesse e beijasse o quanto quisesse. Nada mais fazia sentido.
Demorou para que finalmente me deixasse. Sentou-se novamente em
seu assento e me mandou me recompor. Meus dedos trêmulos fecharam
vagarosamente meu vestido, errando as casas dos botões e tentando se
controlar. Meus olhos continuavam vagos, observando um ponto invisível.
Não havia lágrimas em meu rosto. Não tinha forças para chorar,
apenas me arrumei e me encostei perto da janela, com a cabeça apoiada
apaticamente ali.
Gareth ainda falou algumas coisas, mas eu não o escutava mais.
O tempo passou e eu sabia que já estava dentro de meu Inferno. Não
tinha como fugir, era aquilo. Eu voltaria para a França, seria enclausurada em
casa e teria que passar pela mesma situação humilhante de alguns minutos
toda vez que ele quisesse.
Por um instante, meus dedos subiram até o pingente verde e
brincaram apaticamente com ele. Como eu queria que David estivesse ali,
que ele pudesse me proteger e não permitir que eu fosse embora. Mas era
tarde demais. Tudo em Winterfields não passaria de uma distante lembrança
depois de mais algumas horas.
Estava entregue a minhas dores quando uma carruagem se
aproximou da nossa. Levei alguns segundos para notá-la, mas logo que
apareceu em meu campo de visão, enchi meu peito de coragem e comecei a
socar a janela e a gritar. Eu já estava morta por dentro, o que Gareth fizesse
dali para frente não importava, mas eu não perderia a chance de tentar fugir.
Gareth acertou a mão fechada em meu rosto e eu caí atordoada sobre
o estofado. O que aconteceu em seguida foi rápido e, para mim, não pareceu
mais do que uma alucinação.
A carruagem parou. Gareth me empurrou para um canto longe da
porta e desceu para ver o que havia acontecido. Em alguns minutos, a cabeça
de Liza atravessou a abertura e ela me puxou com carinho pelo braço. Assim
que me vi fora do veículo, abracei-me com força ao corpo de minha amiga e
deixei que me guiasse para dentro da carruagem de David.
Ela me sentou ao seu lado e deixou que eu apoiasse a cabeça em seu
ombro. Mantivemo-nos abraçadas por longos minutos, enquanto uma de
minhas mãos afagava meu ventre e eu tentava não chorar.
Ainda estava atordoada, o mundo ainda girava em minhas órbitas e
eu não entendia o que estava acontecendo, só não queria que ela me largasse.
Mr Luft entrou na carruagem e ela começou a andar. De onde estava,
consegui ver suas mãos vermelhas de sangue. Se era dele ou de Gareth, não
sabia.
Ele e Liza trocaram algumas palavras e David até tentou examinar
meu corpo, mas eu me afastei nervosa. Não queria sentir suas mãos no meu
corpo. Não queria que ele sentisse toda dor que eu estava sentindo. Não
queria que descobrisse sobre nosso filho e sofresse junto comigo pelo que ele
teve que passar.
Em casa, fui levada imediatamente para meu quarto e deitada em
minha cama. Eu não falei nada, apenas me afastava toda vez que David
chegava perto de mim, e me aninhava em algum canto de minha cama. Por
fim, ele notou que eu não cederia e achou melhor deixar Liza cuidar de meus
ferimentos.
Não sei quanto tempo passei deitada, observando as figuras turvas de
Liza, Serafine, Connie e David irem e virem, como sonhos. Apenas fique lá.
Eu sabia que todos estavam preocupados comigo, mas meu corpo não reagia
a nada e minha mente parecia ter fugido de meu ser.
Eu pouco dormi naquele tempo, mas, em uma noite, o cansaço foi
tanto que me entreguei ao sono.
Sonhei que estava caminhando em um bosque escuro, correndo
pelos troncos caídos. Eu não sentia medo, mesmo enxergando pouco. Estava
bem.
Ao longe, uma figura esguia e alta apareceu. Ela brilhava na
escuridão e eu percebi de imediato que deveria andar até ela.
— Eu estava esperando por você, meu amor. — A pessoa se virou
para mim e eu sorri para o rosto angelical de mamãe.
— Eu morri, mamãe? — Indaguei assim que seus braços me
acolheram.
— Você? Não, meu anjo. Acho que não existe ninguém nesse
mundo mais forte do que você.
— Mas por que a senhora está aqui?
— Isso é um sonho e você sabe bem. Eu estou aqui porque quero
que continue buscando a felicidade.
— O que aconteceu com Gareth?
— Muitas coisas aconteceram, mas não é para mim que deve
indagar. Eu sou apenas uma figura de sua mente.
— Por que ele fez isso comigo? — Senti as lágrimas descerem pela
minha pele. — Eu me sinto nojenta, nunca vou apagar a imagem dele sobre
mim. Foi…
— Você não irá esquecer, meu anjo, mas superará. Assim como
superou todas as coisas ruins da sua vida. Ao seu redor estão pessoas que a
amam e a querem bem.
— Mas eu sinto Gareth ainda em mim. Como se a todo momento eu
sentisse o corpo dele invadindo o meu e me obrigando a ser dele…
Ela apenas sorriu complacente, e eu imaginei se algum dia ela teria
passado por aquilo. Será que papai alguma vez a forçou àquilo e a machucou
da mesma forma que eu estava machucada? Mas eu nunca saberia, ela era
apenas uma imagem da minha cabeça.
Distanciei-me dela e afaguei minha barriga. Ela beijou minha testa e
comentou com sua voz maternal: Seu filho está bem, mas você tem que
melhorar para que ele continue aí, certo?
Concordei com a cabeça, sem saber ao certo o que estava fazendo. A
música de ninar que eu costumava cantar para meu bebê tomou o lugar e a
imagem de minha mãe foi desaparecendo aos poucos.

Acordei perto da janela. Estava bem melhor, sentindo como se nada


daquilo houvesse acontecido. Liza dormia sentada em uma cadeira ao meu
lado. Estava muito cansada e aquilo me doeu.
Ergui-me rapidamente e me vesti. Demorei algum tempo me
examinando no espelho. Meu rosto ainda estava inchado, mas parecia que
melhoraria logo. Meus pulsos agora pendiam entre roxo e verde, e ainda
latejavam. Desci as mãos rapidamente pela minha barriga, até parar um
pouco abaixo do ventre e sentir ali a lembrança dos movimentos de Gareth.
Por sorte, meus dedos subiram maquinalmente e afagaram o lugar onde
minha criança descansava.
Eu iria fazer aquilo por ele. Iria esquecer do ocorrido e não
preocupar mais ninguém.
Saí do quarto sem despertar Anneliza e desci silenciosamente. Não
fui para a cozinha, entrei no quarto de Charles e me sentei em uma cadeirinha
perto da porta.
David estava ali com o filho, os dois dormiram abraçados e a cena
me fez sorrir. Havia ido ver se estava tudo bem com a criança, mas não tive
coragem de me aproximar quando vi os dois. Então me deixei ficar velando o
sono deles.
Mr Luft foi o primeiro a acordar. Sentou-se atordoado na cama,
penteou os cabelos com os dedos e assustou-se ao me ver. Mas então,
levantou-se rapidamente e veio até mim.
Suas mãos abraçaram meu rosto e eu não o repeli, mesmo sentindo
uma estranha sensação com o toque de seus dedos. Seus olhos estavam
cansados e aliviados.
— A senhorita está bem?
— Estou um pouco tonta.
— São os remédios.
— Quanto tempo passou?
— Uma semana. Mas eu diria que passou um mês de tanto que nos
preocupamos com a senhorita.
— Não era necessário.
— Samantha, pare com isso! Claro que era necessário, todos aqui
gostam muito de você.
— O que aconteceu?
— Você não lembra? Você saiu para deixar uma carta e não voltou
mais. Eu pedi para Liza, Richard e Thomás me ajudarem a procurá-la. A
encontramos dentro da carruagem daquele…
— O senhor sabe de tudo o que aconteceu?
— Eu… Não. Não de tudo. — Ele se ajoelhou à minha frente. Suas
mãos permaneciam em meu rosto. Seu olhar demonstrava que sabia mais do
que estava falando. — A senhorita está bem agora e ele não vai voltar para
buscá-la. Nunca mais. Está tudo bem.
— Não está tudo bem. Eu fui…
— Eu sei. — Cortou-me. — Mas as coisas logo vão voltar ao
normal. E a senhorita já se levantou e só está um pouco febril por conta do
trauma. Vai melhorar em pouco tempo.
Concordei com a cabeça. Não sabia se ele estava falando do estupro
ou do sequestro. Preferi não prosseguir para descobrir, era melhor apenas eu
sentir nojo daquilo tudo. Ele voltou a se erguer.
— Encomendei alguns vestidos com Mrs Grein para você. Não sei
se lembra de ter tirado as medidas, já que estava muito atordoada no dia, mas
logo devem ficar prontos.
— Por quê?
— Porque é seu presente de aniversário. Pedi para que ela viesse no
dia treze, mas Gareth resolveu estragar meu planos, então veio alguns dias
depois.
— Não era necessário.
— Agora é mais do que nunca. — Sorriu constrangido. — Eu não
gosto de vê-la triste, e o vestido que usou durante o incidente cheirava
àquele… Então pedi para que o jogasse fora. Sinto muito se gostava dele,
mas não queria que lembrasse de seu noivo nem do que aconteceu toda vez
que o vestisse.
— Eu… Obrigada. — Deitei os olhos no chão, ainda aturdida.
Charles acordou e veio correndo assim que notou que eu estava em
pé e em seu quarto. Ele subiu em meu colo e me abraçou com força. Eu o
abracei com a mesma vontade e o prendi em meus braços por longos
minutos.
David notou que sua presença não era mais importante ali e se foi.
Eu continuei abraçada à criança.
— Você está bem, Sam? — Ele virou o rostinho para mim e eu sorri
emocionada. Seus olhos estavam úmidos e era visível que havia se
preocupado.
— Agora estou, meu amor. Agora estou.
Capítulo 18

Os dias passaram e eu melhorei gradativamente. Ninguém mais


comentou sobre Gareth (a não ser Lillian que sempre arrumava um jeito de
me alfinetar), mas todos continuaram cuidando de mim com carinho e
dedicação. Eu já não recordava aquele toque repulsivo em meu corpo, mas
algumas cicatrizes daquele dia ficaram em minhas costas, apenas para me
lembrar de continuar buscando minha felicidade. Não me esqueci do
ocorrido, pelo contrário, lembrava-me com frequência, mas tentando superar
minhas dores e medos.
Em uma manhã ensolarada, já perto da hora do almoço, Charles
tocava piano para mim quando Serafine entrou na sala de aula e pediu para
que eu a acompanhasse. Estranhei um pouco sua urgência, mas a segui sem
comentar nada.
Subimos até meu quarto e me deparei com uma senhora alta e
esguia. Descobri naquele momento que se tratava de Mrs Grein. Ela bebia
uma xícara de chá e estava sentada sobre o meu baú. Tinham se passado
quase três semanas desde que acordara de meu pesadelo e eu havia me
esquecido que iria receber um presente de David.
— Bom dia, senhora. — Sorri carinhosamente. Serafine nos deixou a
sós.
— Olá, minha querida. — Ela deixou a xícara sobre o baú e se
levantou com um pulo. — Vejo que está bem melhor do que na vez que nos
conhecemos. Desculpe a demora. Seus vestidos me deram muito trabalho.
Ela apontou a cama e eu finalmente notei as roupas novas estendidas
ali. Não eram dois vestidos, nem ao menos três. Eram sete, todos de cores
diferentes e com bordados trabalhados nas saias.
— A senhorita deve experimentá-los — Ela pegou o vestido azulado
que estava bem em cima. — para eu poder ajustá-los.
— Mas por que tantos?
— Mr Luft pediu. — Ela começou a me despir antes que eu pudesse
falar algo. Deixei que suas mãos habilidosas fizessem o trabalho. — Ele
queria que a senhorita tivesse mais opções.
Ela me estendeu o primeiro e me ajudou a colocá-lo.
— Sua barriga já está maior do que da última vez. — Ela riu.
Arrumou os cordões do vestido. Eu cobri meu ventre com os braços, tentando
entender como ela sabia daquilo. Mrs Grein percebeu minha confusão e
completou: — Aquela menina, Anneliza, ela pediu para que eu fizesse
maiores para a gravidez. Não se preocupe, não contei nada a ninguém.
— Obrigada. — Meus braços relaxaram. O presente de Mr Luft
chegara em boa hora, minhas roupas antigas já estavam apertadas demais.
Ela arrumou a barra do vestido, deu alguns pontos e passamos para
os próximos, até que todos receberam seus devidos ajustes.
— Você deve estar bem feliz. — Ela me encarou nos olhos e riu. —
E o seu esposo também.
Eu fiquei vermelha. Não falei nada, apenas concordei com a cabeça.
— Um bebê é um presente. — Ela continuou sem perceber meu
constrangimento. — É um pequeno milagre e trará muita felicidade para
todos.
— Espero que sim. — Sorri amarelo.
Mrs Grein se despediu e sumiu pela porta. Vesti rapidamente meu
antigo vestido e o xale por cima, e acariciei minha barriga novamente.
“Espero que você traga felicidade.” Sussurrei.
Peguei os vestidos que estavam sobre a cama e os guardei no velho
guarda-roupa. Não restou nem mais um espacinho quando tinha acabado.
Passei meus longos dedos pelos tecidos novos e sorri. Gostava quando David
me tratava bem. Era bom pensar que ele talvez gostasse de mim, mas, mesmo
assim, continuava achando ser uma péssima ideia falar sobre nosso filho.
Estava pronta para voltar para a aula. Eu sorria enquanto caminhava
em direção à porta, porém, antes que eu pudesse atravessá-la, senti um par de
mãos me empurrarem para trás. Ouvi o som da porta sendo fechada.
— Você não vai sair daqui. — A voz estridente de Lillian entrou
perfurando meu ouvido.
— Me deixe passar, Lillian. — Minha face se tornou séria e eu a
fuzilei com os olhos.
— Me diga quem é o pai desse monstro, sua infeliz! — Os olhos de
Lillian ardiam de raiva. Seu semblante assemelhava-se ao de um louco. Ela
apontava minha barriga com intensidade.
— Não chame meu filho de monstro! — Empurrei-a com força para
trás. — E por que está tão interessada em saber? Não tem nada a ver com a
senhorita.
— David é meu noivo, sua prostituta barata! — Ela pulou para cima
de mim com as mãos abertas na direção de meu rosto. Girei meu corpo para o
lado e consegui escapar de suas unhas enormes.
O que se seguiu pareceu uma caça de um gato a um rato. Nós
corríamos em círculos pelo quarto.
— Sua vadia! — Ela gritava.
— Tem medo que David descubra? — Eu provoquei. — Acha que
ele irá largá-la para ficar comigo? O amor dele pela senhorita deve ser nada
se tem medo disso.
— Cale! — Ela finalmente conseguiu me agarrar. — Eu deveria ter
visto isso nos seus olhinhos toscos antes. Uma criança. — Riu. — Isso é o
mais baixo do desespero. Ele nunca irá me deixar para ficar com uma
prostituta.
— Mais baixo para mim ou para você? — Eu afastei com habilidade
suas mãos da minha. — E por que acha que tenho culpa nisso tudo?
— Só está fazendo isso para usá-lo contra mim. Mate essa criança,
vadizinha.
— Você tem noção do que acabou de pedir? Eu não irei matar meu
filho! Que pessoa louca é você?!
Lillian agarrou-me pelos ombros e me empurrou de encontro à
parede. “Não se preocupe que eu mesmo irei matá-lo.”
A porta foi aberta e Liza entrou correndo. Agarrou Lillian com força
pela cintura e a colocou de lado.
— Deixe a Sam em paz! — Anneliza gritou com Lillian.
— Como ousa falar assim comigo? — Miss Ellis examinou Anneliza
com olhos assustados. — David irá saber sobre seu mau comportamento.
— Fale algo para Mr Luft e eu irei até ele contar sobre o bebê e o
que a senhorita veio fazer hoje aqui. — Coloquei-me entre Liza e Lillian. —
Acho que ele não ficará feliz de saber que você queria dar um fim ao filho
dele.
— Você não ousaria. — Estreitou os olhos.
— Não me provoque. — Sorri ameaçadoramente. — É melhor
deixar todos aqui em paz. Agora saia do meu quarto, por favor.
Ela fechou ainda mais a cara, transformando-a quase em uma
máscara cômica. Saiu bufando e batendo os pés.
Liza observou a porta fechada por alguns segundos, até ter certeza
que ela não voltaria. Então, colocou a mão em meu ventre e sentiu o bebê.
— Você tem que falar para David. — Encarou-me muito séria, o que
não era nenhum pouco comum. — Lillian pode realmente matar seu bebê.
— Não acho que ela possa fazer isso.
— Todos aqui conhecem a loucura dela, não sabemos até onde pode
chegar, mas temos uma grande suspeita.
— Mas de todo jeito, se eu contar para David ela irá dar um jeito de
matá-lo, mesmo que isso custe tudo. Irá se vingar de uma vez por todas. —
Fiquei séria. Eu não queria perder meu bebê, já tinha me acostumado à ideia
de ser mãe e lutaria até o fim por ele. Não o perderia, ainda mais para Lillian.
— Samantha. Isso é perigoso. David iria ajudá-la a cuidar do filho
de vocês.
— Lillian nunca irá me deixar em paz. — Suspirei. — Eu quero que
a gravidez continue sendo um segredo. Pelo menos até David descobrir por si
mesmo.
— Sam!
— Por favor. — Peguei suas mãos e a olhei no fundo dos olhos. —
Não insista, já me decidi.
— Está bem então. — Suspirou nenhum pouco satisfeita. — Só
quero ter certeza que ela, nem ninguém fará alguma coisa para machucar
você.
— Eu não sou mais uma criança. — Sorri de lado. — Já sei me
defender, Liza.
Anneliza concordou com a cabeça e me deixou para continuar o
trabalho.
Desci de volta para a sala de aula. Demorara muito mais do que
esperava e Charles havia cansado de esperar ali. Entrei na porta ao lado. O
garoto estava deitado sobre sua cama, brincava de colocar os bonequinhos de
chumbo em pé e ver Senhorita Mel derrubá-los.
Encostei-me à porta e fiquei observando-os brincar. Charles soltava
risadas fartas e a gatinha parecia estranhar a alegria da criança.
— Gosto de vê-lo animado assim. — Comentei depois de observá-lo
por um bom tempo. Ele se virou ainda sorridente para mim.
— Pensei que só voltaria depois do almoço.
— Desculpa demorar tanto e o deixar sozinho. — Sentei-me ao seu
lado na cama. — Estava arrumando o presente que seu pai me deu.
— Presente?
— Sim. — Acariciei sua cabeça. — Preciso agradecê-lo mais tarde.
— Então vamos agradecer. — Ele se levantou e me puxou pela mão.
— Mas agora? Ele nem deve estar em casa.
— Podemos esperar ele chegar. — Riu. — No quarto dele. Iremos
fazer uma surpresa.
— Não acho que seu pai irá gostar disso. — Charles ia me puxando
pelo corredor. Eu não estava tentando impedi-lo, na verdade, estava pensando
em David e não no menino. Quando dei por mim, já estávamos adentrando o
quarto de Mr Luft.
— Não se preocupe. Eu e mamãe costumávamos nos esconder aqui e
tentávamos assustá-lo quando chegava. — Ele ria. — Papai gostava muito.
— Mas, meu bem, era diferente vocês três.
— Não é não. — Repetiu. Charles me levou até a sacada e fechou as
cortinas. A Senhorita Mel foi empurrando os tecidos até nos alcançar. —
Agora é só esperarmos, papai já deve estar chegando.
— Eu ainda acho que não é uma boa… — O som da maçaneta me
fez calar. Charles colocou um olho entre as duas cortinas e ficou observando
o quarto. Eu o imitei.
David entrou seguido por Lillian. Andavam devagar e conversavam
sobre alguma coisa que a distância não me deixou entender. Ouvi Charles
soltando um suspiro de desapontamento. Não nos movemos, quase não
respirávamos.
— Espero que o seu dia tenha sido bom. — Lillian falou com sua
voz chata, agora mais perto de onde estávamos.
— Foi sim. — Ele deixou as coisas que trazia sobre a cama. Tirou a
casaca e o colete, seu colarinho estava arrumado frouxamente no pescoço.
Por fim ficou apenas com a camisa branca. — Então nossa viagem já está
certa.
— Sim querido. — Ela lhe beijou os lábios animadamente. Ele
também parecia animado ao beijá-la. — Vamos semana que vem. Vou voltar
para casa e avisar papai sobre a viagem.
— Faça isso. — Ele sorriu. Ia continuar sua frase, mas algo em seu
pé chamou sua atenção. Ele e Lillian ficaram encarando o chão. Nem eu, nem
Charles conseguíamos ver, já que a cama escondia os pés do casal.
— O que essa criatura está fazendo aqui? — Lillian soltou um
gemido.
David se agachou para pegar o animalzinho no colo. Eu e Charles
olhamos para trás em busca da Senhorita Mel, mas ela não estava mais com a
gente. Estava nas mãos de David.
— Ela deve ter entrado quando abrimos a porta.
Lillian fez uma careta para a gata que o noivo acariciava.
— Vou me arrumar. — Ele sorriu para a noiva. — Depois desço
para o almoço
— Está bem. — Ela deu outro beijo nele e se foi.
David esperou a mulher sair, sorriu para a Senhorita Mel e caminhou
até perto da sacada. Abriu a cortina e estendeu a gata para o filho.
— Acho que essa mocinha atrapalhou seus planos, pequeno. —
Sorriu, agora para o garoto. Charles pegou a gata decepcionado. David subiu
os olhos para mim. Não comentou nada.
— Nós quase conseguimos. — Charles resmungou.
— Quase. — Mr Luft acariciou a cabeça dele. — Já está quase na
hora do almoço, vão na frente que eu já vou.
— Espere, papai. — Ele sorriu para mim. — Sam tem uma coisa
para lhe dizer.
— Tem? — Ele voltou a olhar para mim, agora surpreso.
— Ah… Eu quero agradecer pelos vestidos.
— Vá na frente, Charles. — Ele empurrou o filho em direção à
porta. — Miss Evans logo descerá.
Charles sorriu vitorioso e foi pulando porta afora com Senhorita
Mel.
— Obrigada, senhor. — Eu falei baixo. — Pelos vestidos. Não
precisava ter se incomodado, ainda mais ter comprado sete.
— Não precisa agradecer. — Ele caminhou lentamente até a cama e
retirou a camisa. Olhou em meus olhos um pouco provocativo. Examinei seu
peito nu, sua pele branca, seu corpo forte. Minhas bochechas queimaram
intensamente e eu congelei, sem saber como reagir. O que ele estava
fazendo?! Ele vestiu o robe pendurado no espaldar da cadeira. — Gostaria de
viajar com a gente?
— Senhor? — Saí de meu estupor.
— Semana que vem. Eu, Lillian e Charles iremos viajar para minha
casa na praia. Gostaria de vir também?
— Não acho que devo. É um momento para os três ficarem juntos.
Acho que vou atrapalhar.
— Não vai. Pode cuidar de Charles quando estiver lá. Isso irá ajudar
muito. Além do mais, será um bom tempo para a senhorita se divertir
também.
— Mas Miss Ellis não gostará que eu vá.
— Na verdade, Lillian foi quem me deu a ideia.
Aquelas palavras me acertaram com um balde de água fria. O que
Lillian estava aprontando? Não deveria ser nada bom.
— Não acho que devo. — Falei firme.
— Samantha. — Ele segurou minhas mãos. — Faça isso por mim.
— Eu… — Seus olhos pareciam tão verdadeiros que eu não pude
dizer não. — Está bem.
— Obrigado. — Beijou delicadamente minha mão. — Então esteja
pronta para viajar até o início da semana.
— Sim, senhor. — Puxei minhas mãos para junto do corpo. —
Obrigada novamente pelos vestidos. Não era necessário.
Ele sorriu e concordou com a cabeça. Eu saí do quarto com o
coração acelerado.
Capítulo 19

Não estava muito feliz em viajar. Não que eu não quisesse viajar
com David e Charles, aquilo me interessava bastante, mas o que Lillian
planejava me preocupava. Além do mais, era a primeira vez que saía de casa
depois do que havia acontecido com Gareth e o que me esperava ainda era
um mistério.
Charles estava tão feliz quanto eu. Ele ficou com a cara emburrada a
manhã de segunda inteira quando soube que íamos viajar a tarde.
— Pelo menos a senhorita vai. — Ele sorriu para mim. — Pena que
vou ter que deixar a Senhorita Mel.
— Vão ser só três dias. Ficará tudo bem com ela e conseguiremos
sobreviver à Lillian. — Eu tinha esperança que tudo ocorresse bem, mas algo
me dizia que não seria como eu planejava.
— Eu queria ficar em casa. — Fez um muxoxo. — Aí eu não teria
que ficar vendo papai beijar Miss Ellis. Eu não gosto nenhum pouco disso.
— Querido — Ajoelhei-me a sua frente. — Você já deveria ter se
acostumado com o fato de que eles vão se casar.
— Eu nunca vou me acostumar com isso. — Ele deu a volta em
mim. Obriguei-me a levantar e me virar para continuar olhando-o.
— Já estão com as suas coisas prontas? — Serafine entrou no quarto.
Ela sorriu para o garoto e se virou para mim. — Richard já está esperando
para levá-los.
— Sim. — Concordei com a cabeça. Peguei a pequena mala de
Charles que estava em cima da cama. — Eu preciso subir para pegar a minha.
— Eu levo a de Charles para a carruagem então.
Concordei com a cabeça e deixei os dois. Subi apressada para o meu
quarto. Minha bagagem estava sobre o baú, era pequena e estava leve. Eu não
precisava de muita coisa para três dias. Desci tão rápido quanto subi e
encontrei Serafine ainda na carruagem. Richard arrumava as malas.
— Tome cuidado. — Serafine deu um beijo demorado no esposo.
Charles os observava com um ar curioso e triste.
— Quanto tempo de viagem? — Indaguei quando o casal se separou.
— Acho que devemos chegar lá a noite, se não tiver nenhum
problema pelo caminho. — Ele arrumou minha mala junto com as outras.
Sorri. Peguei Charles pela mão e entrei com ele.
— Fique pelo menos um pouquinho alegre. — Tentei fazê-lo
também sorrir, mas ele não estava querendo se animar. — Eu vou estar com
você, vai ficar tudo bem. E será divertido.
Ele me abraçou com força. Só o soltei quando David colocou a
cabeça para dentro do carro.
— Já estão aqui? — Comentou com bastante animação. Recuou um
pouco e deixou Lillian entrar.
Miss Ellis se sentou a minha frente, suas pernas encostando nas
minhas e nossas saias roçando. David se sentou ao lado de sua noiva.
— Podemos ir! — Lillian gritou impaciente para Richard que ainda
estava conversando com Serafine. Ele se sobressaltou, deu um último beijo
na esposa e subiu.
Os cavalos começaram a trotar.

Chegamos no início da noite. Charles estava dormindo em meu colo


quando paramos na frente da casa. David ajudou Lillian a descer e eu desci
com Charles em meus braços.
Meu braço esquerdo reclamou um pouco, Charles havia crescido
muito naquele tempo e eu não tinha mais costume de carregá-lo. Minha
barriga também atrapalhava, mas não tornava a tarefa impossível.
— Quer que eu o leve? — David veio ao meu encontro. Neguei com
a cabeça.
— Não se preocupe, eu cuido dele. — Arrumei-o melhor em meu
colo. David ficou um pouco sério, mas não insistiu.
Antes de entrar, eu pude observar a estrutura da casa. Como estava
escuro e a iluminação da porta aberta não ajudava muito, consegui distinguir
pouco da fachada. Era bem menor do que a casa de Mr Luft. Mesmo
pequena, era muito bonita e de aparência aconchegante.
— Não parece muito o estilo de David. — Sussurrei para a criança.
— Não duvido que tenha sido uma ideia de sua mãe.
Richard levou as malas até o quarto que Charles dormiria, que era
por acaso, ao lado do meu. Dormiríamos no corredor leste do primeiro andar,
enquanto os quartos de David e Lillian eram do lado oposto.
Deitei Charles delicadamente em sua cama. “Boa noite, meu bem”
Sussurrei.
O quarto que destinara a mim era bem mais acolhedor do que o da
casa de Mr Luft. Era menor, mas fora arrumado com tanto zelo que era difícil
não gostar do lugar. Os móveis eram brancos e dourados, pareciam um quarto
de princesa e aquilo me fez estranhar.
Eu teria ficado pensando sobre aquilo mais um pouco se não tivesse
deparado com o espelho na parede. Era comprido, eu conseguia me ver por
completo. Minha barriga já estava bem grande, mas não parecia ainda uma
barriga de grávida, só aparentava que eu engordara muito. O xale que eu
usava cobria bem meu corpo.
Meus dedos roçaram as cordas do vestido e eu fui desfazendo
vagarosamente os nós. Despi meu corpo e fiquei encarando-o. Meus seios,
antes pequenos e imperceptíveis, estavam maiores. Minha barriga estava
grande, por mais que muitos não percebessem de imediato a gravidez, tenho
certeza que já era de se estranhar para as pessoas que me conheciam a mais
tempo.
Passei meus dedos lentamente sobre meus mamilos antes rosados.
Aquele toque me lembrava David e nossa noite que eu recordava tão pouco.
Mas também me fazia recordar dos beijos de Gareth. Afastei rapidamente a
mão da minha pele e franzi o cenho.
— Eu tenho que parar de pensar nisso. — Apressei a vestir a
camisola e me joguei na cama.
Era possível ver o mar pela sacada do quarto. Eu me sentei ali, sobre
a congelante grade branca. Minha camisola se agitava com o vento do mar.
Era um lugar lindo e com um cheiro delicioso.
— Aqui é muito maravilhoso, se não pensar em Lillian.
Eu conhecia muito pouco do mar. Agradava-me o cheiro salgado e a
umidade diferente. Meus cabelos estavam embaraçados pelos ventos, mas eu
até gostava daquilo.
Alguém bateu à porta e eu me assustei. Corri a atender, mas abri
timidamente já que ainda estava vestindo minha camisola.
— Bom dia. — Uma moça sorriu para mim. Seu cabelo era castanho
escuro, seus olhos de um negro profundo. — Mr Luft gostaria que a senhorita
descesse para o desjejum.
— Ah. Obrigada. — Maneei brevemente a cabeça. — Só irei me
vestir, logo desço.
Ela alargou o sorriso e desceu andando rápido.
Vesti-me, coloquei um xale para esconder minha barriga e desci
apressada. David, Lillian e Charles já estavam na mesinha, esperando-me
chegar. Desculpei-me envergonhada e sentei ao lado de Charles.
— Já que estão todos aqui… — David fez um gesto para a mesma
moça que pediu para eu descer. Ela trouxe três bandejas com o café da
manhã. — Obrigado, Nancy.
Nancy fez uma mesura e se retirou. Comemos em silêncio. Lillian
ficava me encarando e aquilo me dava náuseas.
— Vamos passear por aí. — Lillian comentou olhando para os lados.
— Eu e David…
— Se quiserem podem vir também. — Mr Luft objetivou antes de
abocanhar uma torrada. Lillian detestou ser contrariada.
— Acho que seria uma boa ideia. — Sorri para Charles. — O que
acha, meu bem?
— Seria bom. — Mas ele não parecia muito alegre em passear com
Lillian.
— Faremos um piquenique na hora do almoço. — David falou
novamente. — Vou pedir para Nancy algo para levarmos.
O resto do desjejum foi bem silencioso, Lillian continuou me
encarando, mas eu a ignorava. Saímos logo depois de acabarmos de comer.
A casa ficava vazia o dia inteiro. Nancy fizera todos os trabalhos
pedidos por David no dia anterior e ela não ficava trabalhando na casa
quando não havia o que fazer.
Morava em um chalé afastado e David fez questão de ir
acompanhando a empregada. Iam conversando sobre o tempo que ele
demorara a aparecer e estavam bem animados. Lillian os observava séria,
mas às vezes soltava uns comentários com a voz alegre.
Eu vinha com Charles logo atrás. Ele me contava sobre o que
lembrava daquele lugar.
— Papai construiu essa casa para podermos ficar um pouco a sós.
Quase ninguém conhecia aqui e quase não recebíamos visitas. — Ele sorriu.
— Mamãe gostava daqui. Nós fazíamos muitos piqueniques. Quase sempre
que vínhamos.
— É um lugar bem bonito. — Sorri. Ele tinha ficado triste ao
lembrar da mãe.
— Sim, mas agora não vai ser mais com Miss Ellis.
Não comentei. Fiquei encarando David a minha frente. Tínhamos
chegado ao chalé e ele conversava com o esposo de Nancy. Seu nome era
Rupert, parecia tão jovem quanto a esposa. Trabalhava como ferreiro ali
próximo.
— E como você cresceu. — Rupert se abaixou para falar com
Charles. — Já é um homenzinho.
— Olá, Mr Bright. — Charles sorriu para o rapaz.
— E a senhorita é…? — Rupert se virou sorridente para mim.
— Samantha Evans. — Sorri também. — Sou a professora do
pequeno Charles.
— Prazer. — Respondeu alegre. Ergueu a mão e eu o cumprimentei.
Rupert virou-se novamente para Mr Luft. — Hoje está um ótimo dia para
passear, senhor. Está bem calmo por aqui, e o sol não está forte, mas também
não faz tanto frio a essas horas.
— Espero que seja um passeio bom mesmo. — David sorria como
nunca antes. Estava muito diferente do que em sua casa. — Vamos indo
então.
Despedimos do casal e continuamos andando.

Tínhamos nos sentado perto do mar. Brinquei com Charles na areia


enquanto Lillian e David conversavam, sentados sobre a toalha esverdeada. O
Almoço foi rápido e silencioso. Almoçar com Miss Ellis deixava Charles e eu
constrangidos, e David não parecia arrumar assunto. Ajeitamos tudo muito
rápido e voltamos para casa. Nem Lillian, nem David estavam se divertindo e
não tinha porque continuarmos sentados ali.
Estávamos a meio caminho quando Lillian avistou um conhecido
vindo ao longe.
— Só um segundo, querido. — Ela lançou um sorriso para David e
correu a cumprimentar o senhor.
Era um homem atarracado, cabelos castanhos misturados a alguns
fios grisalhos, a pele idosa e cheia de rugas. Vestia-se de uma maneira
simples e sua face o dava uma expressão de poucos amigos.
Mais estranho do que o senhor, era o fato de Lillian ter se apressado
para falar com ele, já que caminhávamos em sua direção e logo nos
encontraríamos.
— Miss Ellis parece bem animada. — Comentei observando a moça
que conversava euforicamente com o estranho. David preferiu continuar
calado.
A conversa de Lillian ficara um tanto quanto sinistra quando
finalmente a alcançamos.
— Esse é Mr Heig. — Ela o apresentou para David. — Esse é
David, meu noivo, e o pequeno Charles. — Apontou um de cada vez.
— Muito prazer. — Mr Heig cumprimentou David e sorriu para
Charles. — E a senhorita… — Ele se virou para mim, notando que eu fora a
única a não ser apresenta.
— Esta é a governanta. — Lillian concluiu sem vontade. —
Samantha Evans.
— Samantha… — Ele sussurrou com um sorriso maligno no rosto.
Um calafriou subiu pelas minhas costas.
— Mr Heig é um amigo de família. — Lillian continuou. — A casa
dele é perto da sua de praia, querido. Ele nos convidou para uma
comemoração hoje à noite.
— Agradeço o convite, mas não sei se seria uma boa ideia. — David
comentou ainda sério.
— Vamos, querido. — Lillian agarrou o braço do noivo. — Irá ser
divertido.
— Bem. — Ele ponderou. — Podemos ir então. Mas Charles…
— Não se preocupe, senhor. — Acariciei a cabeça da criança. — Eu
cuido dele essa noite. Vão e divirtam-se.
David me encarou sério. Era óbvio que queria que eu tivesse dito
outra coisa, impedindo-o de ir, mas eu desejava que ele fosse. Sorri
carinhosamente e ele se virou para a noiva novamente.
— Então está tudo certo. — Lillian disse para Mr Heig. — Nos
vemos hoje à noite.
— Esperarei. — Ele sorriu. Despedimo-nos e continuamos a
caminhada.
David e Lillian saíram no final da tarde. Fiquei eu e Charles
observando pela janela do quarto do pequeno os dois se afastarem.
— Hora de ir dormir.
— Ah. — Ele estralou a língua. — Estamos sozinhos em casa,
podemos brincar em qualquer lugar. Não quero ir dormir agora.
— Mas está tarde. — Eu ri. — E eu não deixaria você brincar em
qualquer lugar.
Ele franziu a testa. “Vou dormir então” disse por fim. Seus olhinhos
estavam cansados, mas ele ainda não estava contente em ter que se deitar.
— Se precisar de mim, eu estarei aqui ao lado. — Beijei sua cabeça.
Ele se deitou e eu o cobri. Saí vagarosamente para meu quarto.
Eu não estava com um pingo de sono, mas Charles não podia saber
daquilo, então movi-me lentamente até a sacada e me sentei ali. A casa era
extremamente silenciosa e um tanto quanto assustadora. Era a primeira vez
que ficava em um lugar onde não se ouvia nada. Nem os passos dos
empregados, nem a respiração das pessoas.
Encostei minha cabeça nos joelhos e fiquei encarando o mar
novamente. Já estava escuro, a lua e as estrelas refletiam-se sobre as águas
agitadas.
Demorei a dormir e dormi pouco já que a posição não era das mais
confortáveis para uma noite de sono. Mas não foi exatamente aquilo que me
acordou. Eu ouvia um som vindo de perto. Pareciam passos. Passos
silenciosos vindo pela estradinha que dava para a casa.
Estava atordoada, mas tinha certeza que ainda era cedo para ser
David e Lillian. Estudei com os olhos ainda cansados o caminho de pedras.
Era apenas uma pessoa, não muito baixa nem muito alta. Ela andava curvada
e tinha um tamanho surpreendentemente grande que a dava um formato
quadrado.
“Deve ser só alguém passando.” Suspirei e encostei a cabeça
novamente tentando dormir. Voltar a dormir naquele momento era a coisa
mais estúpida que eu poderia ter feito, mas eu ainda estava sonada e minha
cabeça não despertara para pensar direito.
Não demorei a acordar novamente. Agora por causa do estranho
calor que tomara a sacada. Era noite, estávamos a beira mar e eu estava na
sacada, por que tinha ficado tão quente de repente?
Abri meus olhos vagarosamente e me assustei com o que vi. O
quarto estava laranja, o teto coberto por uma fumaça espessa e os móveis,
tomados pelas chamas. Despertei de imediato. Tapei o nariz com o xale que
usava e driblei as labaredas para sair do quarto.
A casa estava muito quente e as chamas, altas. Entrei tão rápido no
quarto de Charles que mal me lembro como consegui evitar o fogo. A criança
estava sentada em sua cama. Seus olhos encharcaram-se, e ele tremia de
medo. O fogo quase o alcançava.
— Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem. — Peguei-o no colo e o cobri
com o xale. — Vamos sair daqui.
O térreo estava consumido pelo fogo. Os móveis caíam em brasas e
se espalhavam por todo caminho. O primeiro andar ensaiava tombar a
qualquer momento. A escada se despedaçava enquanto eu corria por ela.
A entrada fora bloqueada por um armário e eu não conhecia um
outro jeito de sair daquela casa. “Espero que tenha uma janela em algum
lugar por aqui.” Corri pela primeira porta que encontrei e me deparei com
uma sala vermelha com aparência de inferno. Ali tinha uma janela.
— Vai ficar tudo bem. — Repeti para Charles.

Arrastei meu corpo para um gramado ao longe. Sentei-me abaixo de


uma árvore e olhei a casa distante. A construção fora consumida por inteiro, e
o fedor das chamas chegava até ali. Charles se aninhara em meu colo e só
agora que eu havia começado a sentir seu peso. Ele se agarrava com tanta
força ao meu pescoço que suas unhas pareciam perfurar minha carne.
Não reclamei. Depois de passar a adrenalina, meu braço começou a
doer intensamente e eu sentia que minha pele estava chamuscada.
A criança ao meu colo tremia de medo e frio. Eu o agasalhei com
meu xale e ficamos os dois encolhidos ainda mais perto da árvore.
Havia uma figura parada ali, olhando fixo a casa. Estreitei meus
olhos para enxergá-la melhor. Era a mesma pessoa que vinha pelo caminho
de pedras antes de eu dormir. As chamas iluminavam seu rosto assustador e
idoso. Um sorriso maligno estava estampado em sua face alva.
Quem era ele? Inclinei meu corpo para frente tentando identificá-lo,
mas o sujeito se assustou com o som dos cavalos se aproximando e fugiu.
De onde nós estávamos, conseguimos ver David sair correndo de
dentro da carruagem e olhar para a casa com as mãos na cabeça, desesperado.
— Charles! — Ele gritou tão alto que pudemos ouvir nitidamente. O
desespero era praticamente palpável, o que fez uma lágrima escapar de meus
olhos.
Charles olhou aliviado para onde os gritos do pai vinham e gritou
com toda força que conseguiu juntar.
— Papai!
David procurou de onde o som estava vindo. Seus olhos
desesperados buscaram pela escuridão. Descobriu onde estávamos e correu
até nós. Lillian vinha logo atrás, não com o mesmo alívio de David, estava
séria.
— Meu filho. — David pegou Charles de meus braços. — Está tudo
bem?
— Sim, papai. — A criança chorava, agora agarrando o pai com a
mesma força que me agarrara.
— O que aconteceu aqui? — Lillian me perguntou fria e
dissimulada.
Eu me ergui. Meus olhos estavam fixos no chão, minha mente,
distante, e a única coisa que eu conseguia pensar era em meu filho. Impedi-
me de afagar minha barriga para não levantar suspeitas.
Ele deve estar bem. Ele tem que estar bem. Eu repetia em minha
cabeça. Meus olhos marearam e eu deixei que meus lábios respondessem sem
ao menos pensar nas palavras.
— Eu estava dormindo. A casa pegou fogo.
— Vamos para a casa de Mr Heig. — Ela comentou com David. —
Ele com certeza poderá nos dar abrigo por uma noite.
David concordou levemente com a cabeça. Ele estava tão agarrado
ao filho que talvez nada conseguisse separá-los naquela noite. Deixei que os
três fossem andando na frente. Coloquei a mão em meu ventre e senti a
criança se mexendo.
— Você é um verdadeiro guerreiro. — As lágrimas aliviadas
lavaram-me a face. Meu corpo tremia de frio e o xale que usava quase se
destruíra no incêndio. — Eu sinto muito por ter vindo em uma pessoa tão
azarada quanto eu.
Eu não tinha me preocupado com meu filho na hora de salvar
Charles. Nem ao menos me lembrado dele e me repreendia por aquilo. Como
eu não me importara com meu filho? Como eu sempre era tão desleixada a
ponto de esquecer que estava grávida? Sei muito bem que se eu me lembrasse
disso na hora do incêndio provavelmente nem Charles, nem eu, nem meu
filho estaríamos vivos, mas, mesmo assim, eu deveria começar a tomar mais
cuidado.
A imagem dos restos da casa me assolou. Meu corpo tremia
intensamente, não mais de frio, mas de medo. Alguém tentou nos matar
aquela noite, eu tinha certeza. A figura sombria não saía de minha cabeça.
Alguém nos queria mortos.
Eu estava com Charles, quem machucaria uma criança?
Sentei-me ao lado de Lillian na carruagem. David permanecia
agarrado ao filho. Não demoramos para chegar a casa de Mr Heig, e eu
permaneci tremendo ao longo do caminho.

Estavam todos sentados na sala de estar de Mr Heig. A festa já havia


acabado e o anfitrião deixou de se preocupar com as empregadas para se
preocupar conosco. Alguém me cobriu com uma manta, mas, mesmo assim,
eu não parei de tremer.
Eu abracei meu corpo com força e me entreguei à dor de imaginar
que minha morte satisfaria alguém. E que esse alguém não se importava de
matar Charles também.
— Que tragédia. — Alguém comentou. As vozes eram muito
distantes, mesmo eu sentindo o calor dos presentes bem perto.
Uma empregada me deu um copo de chá quente, mas eu não estava
com nenhuma vontade de beber. Fiquei segurando a xícara apaticamente
entre os dedos enquanto estudava o vapor erguendo-se no ar e dançando a
minha frente.
— E como conseguiram sair de lá? — Mr. Heig indagou curioso.
Alguém me cutucou pelo ombro e percebi que esperavam uma resposta de
mim. — As chamas deveriam estar bem altas já, não é mesmo?
— Estavam sim, senhor. — Respondi sem vontade. — Eu quebrei
uma janela. A porta estava bloqueada.
— A senhorita foi muito corajosa.
— Coragem… — Abaixei a cabeça e sorri para a xícara. — Eu não
pensei no que estava fazendo. Mas não poderia deixar Charles ali dentro.
David finalmente tirou os olhos do filho e me encarou. Seu olhar
estava úmido e sua boca levemente aberta em uma expressão de admiração.
— Já está tarde, não? — Lillian também notou o olhar do noivo. —
Acho que para resolver esse susto, só uma boa noite de sono.
Ouvindo isso, Charles se desgrudou do pai e estendeu os braços para
mim. “Não quer dormir comigo, Charles?” David sussurrou para a criança.
Charles negou com a cabeça e continuou insistindo para que eu o pegasse.
Meu braço ainda doía muito, mas eu já não estava mais me
preocupando com aquilo. Deixei a xícara de lado e fui pegá-lo no colo. Subi
com o pequeno para o quarto que Mr Heig arrumara para nós. A empregada
já havia ajeitado a cama e o lugar era bastante acolhedor. Eu não tinha mais
sono depois do que aconteceu. Mas Charles dormiu pesadamente aninhado
em meus braços.
Estava eu sentada ao lado de Charles na cama de casal. Matinha meu
olhar vago, ainda tentando entender o que acontecera. Meus braços estavam
queimados e ardiam, mas logo esqueci aquela dor também.
Então, ouvi passos no corredor. Era natural que eu me assustasse já
que a última vez que ouvi passos de estranhos acabei em uma casa em
chamas.
Levantei-me silenciosamente e caminhei pé ante pé até a porta.
Coloquei minha cabeça entre o vão e encarei o corredor tomado pelas trevas.
Uma luzinha foi subindo a escada. Um casal conversava baixo sob a
luz bruxuleante da vela.
— Desculpe pelo ocorrido. — Ouvi a voz do Mr Heig.
— Seu empregado tinha que ter acabado o trabalho com sucesso. —
Lillian sussurrou zangada. — Se o fogo não deu certo, ele tinha que descobrir
outro meio de dar.
— Não acha que está sendo um tanto… Má… demais? Afinal,
Charles é só uma criança.
— Não é Charles meu alvo. — Retorquiu risonha. — Charles é o
menor dos meus problemas e depois que eu me casar com David darei um
jeito de mandá-lo para mais longe possível. Mas… Aquela empregadinha me
dá nos nervos. Ela e o filho que traz…
— Entendo. — Mr Heig comentou sombrio. — Acha que David
ficará com ela, não é? Quando descobrir sobre o bebê.
— Tenho quase certeza disso. Por isso seu empregado não poderia
ter falhado esta noite. Era para ela estar morta. São um bando de
incompetentes. Nem o noivo dela conseguiu tirá-la da minha vida.
— Mas ela pode ter perdido o bebê com o acontecido. Seria muito
difícil um feto sobreviver a um nível de adrenalina tão alto.
— Se eu tiver sorte deve ter morrido, mas algo me diz que não terei
a honra de ver essa criatura destruída.
— Tente acelerar o casamento. David não quererá voltar atrás depois
de casados.
— Já tentei, mas David quer se casar no inverno. — Deu um suspiro
tão alto que até eu pude ouvir. — Faltam ainda um mês e meio. É muito
tempo…
— Por que ele tem esses desejos estranhos?
— Não sei, mas não quero ficar implicando com ele antes de nos
casarmos.
Mr Heig fez um estralo com a língua e se despediu da amiga. Fechei
a porta antes que Lillian passasse por mim.
Essa mulher só poderia ser louca. Arrastei-me na escuridão de volta
para a cama e fixei meus olhos na porta. Não piscava e não piscaria. Estava
em campo inimigo e não deixaria que fizessem nada com Charles, com meu
filho ou comigo.

Partimos cedo no dia seguinte. Meus olhos pesavam de sono, mas eu


os mantinha abertos. Charles parecia um pouco mais tranquilho e fingia que
nada havia acontecido. Lillian estava bem animada e David, tão cansado
quanto eu.
Voltamos bem mais rápido do que viemos. Passei o resto da tarde
me ocupando em me arrumar, curar as queimaduras, contar o que acontecera
para os outros empregados e ficar com Charles. Escrevi uma carta para Don
também, não tive tempo de pedir a Liza que a levasse até os correios (já que
evitavam que eu saísse desacompanhada novamente), mas decidi fazê-lo na
manhã seguinte. No final da noite eu estava com tanto sono que não me
lembro direito quando fui dormir. Mas dormi. Até alguém me acordar.
Sentei-me cansada na cama. As batidas eram baixas e incessantes.
Esfreguei meus olhos com o dorso da mão para despertá-los e cobri meu
corpo com o xale pendurado no espaldar. Levantei apaticamente e me arrastei
até a porta.
David estava do outro lado. Vestia seu costumeiro robe e parecia
andar dormindo.
— Boa noite, senhor. — Fiz uma leve mesura.
— Boa noite. Posso entrar?
— Sim. — Dei espaço e ele se sentou na cama como de praxe. —
Algum problema?
— Não… Eu vim agradecer por ter salvado meu filho. Não sei o que
seria de mim se tivesse perdido uma das coisas mais preciosas da minha vida.
— Não precisa agradecer, senhor. É o meu trabalho proteger Charles
e eu não teria conseguido fugir e ter deixado-o morrer. Se não conseguisse
salvá-lo, iriamos morrer juntos pelo menos.
— Não sei qual ideia me doeria mais. — Declarou baixinho. — Eu
queria entender como aquele acidente aconteceu. As coisas estavam muito
bem-arrumadas e não tinha nada que pudesse levar a um incêndio.
— Queria acreditar nisso, mas não acho que foi um acidente.
— E por que não acha? Suspeita de alguém?
— Na verdade, eu suspeito sim, senhor. Eu estava na sacada e vi um
homem se aproximando. Estava escuro e eu não pude ver direito. Nem me
preocupei. Então peguei no sono e quando acordei estava tudo em chamas.
— Qual deveria ser o plano daquele homem? — Indagou
preocupado.
— Creio que tinha sido mandado por alguém. Alguém que não
quisesse que eu e Charles… Bem… Continuássemos vivos. — Meus olhos
desceram para o chão e depois subiram novamente para a face descorada de
meu patrão. — Suspeito que outra pessoa tivesse mandado-o nos matar.
— Suspeita de Lillian, não é mesmo?
— Suspeito sim, senhor. — Respondi depois de muito pensar. Por
mais que tivesse certeza que fosse Lillian, David não acreditaria em mim já
que só existia a minha versão da história.
Ele olhou para o lado. Seus olhos queimavam de uma estranha raiva
que para mim parecia estar misturada a dúvida. David se ergueu e me agarrou
pelo ombro.
— A senhorita não tem provas! — Começou a me sacudir. Escondi
minha barriga com o xale e puxei meu corpo para trás. Ele me soltou. — Suas
acusações são sérias. Não deveria criar mentiras só porque não gosta de
Lillian.
— Não queria dizer, mas eu ouvi sua noiva e o Mr Heig
conversando no corredor noite passada. O senhor pode não acreditar em mim,
mas não estou mentindo. E eu não criaria mentiras com relação a isso só por
não gostar da pessoa.
— Eles poderiam só estar conversando como sempre. — Ele
queimava em raiva. — Não quer dizer que estivessem tramando algo.
— Não estavam tramando, estavam discutindo sobre o trabalho
malfeito de um dos empregados dele. Um empregado que deveria ter posto
fogo em uma casa. Deveria ter matado três… Duas pessoas e não deixar
provas.
— Pare de ser infantil e de criar essas ficções. Eu e Lillian vamos
nos casar e eu não aceito que fale assim de minha noiva.
Noiva. Pela primeira vez ele havia dito aquela palavra com algum
sentimento.
— Não me importo com o seu noivado ou com quem o senhor acha
que será feliz. Mas me importo com Charles. — Fiquei tentada a mencionar
nosso filho, mas me detive. — E quero que ele também seja feliz. O senhor
pode se casar com quem quiser, só quero que seja uma boa mãe para Charles.
— Lillian é a escolha certa. — Retorquiu cheio de ódio. Nunca o
vira tão abalado falando de Lillian.
— Devo discordar do senhor. Mas infelizmente só sou uma
empregada, não é? — Eu estava tão séria que me estranhava. — Se o senhor
só veio perguntar isso, acho que não tem porque continuarmos discutindo
sobre algo que irá nos levar a nada.
— A senhorita tem razão. — Arrumou o cabelo, respirou fundo e
caminhou até a porta.
— Tenha uma boa noite, senhor.
Ele não respondeu. Fechou a porta com um estrondo.
Capítulo 20

A carta foi entregue assim que acordei. Queria que ela chegasse o
quanto antes para meu amigo, então, despertei Liza cedo e fomos nós duas
levá-la.
A resposta demorou quase sete dias e me aliviou bastante, já que não
estava aguentando ficar me encontrando com Lillian pelos corredores. Não só
Lillian me chateava, mas David também. Ele ainda acreditava que o que eu
havia dito a dias atrás fora uma mentira para incriminar sua noiva, e estava
me tratando pior do que quando nos conhecemos – o que eu achava não ser
possível.
Eu estava no sótão com Anneliza quando abri o envelope. Ela
colocou a cabeça em meus joelhos e ficou esperando eu ler a resposta em voz
alta.
“Querida Samantha,
Fiquei muito feliz quando recebi sua carta mas me assustou
demasiadamente seus relatos.
Nunca pensei que uma mulher pudesse ser tão má quanto essa
Mademoiselle Ellis. E tudo por causa de ciúmes do doutor Luft? Quanta
loucura. Espero que a senhorita, sua criança e Charles estejam bem – nunca
se sabe quando uma louca agirá.
Eu voltarei para a Inglaterra dentro de cinco dias. Tenho uma amiga,
a mãe de um colega para falar a verdade, que é dona de uma estalagem na
cidade. Já entrei em contato e ela está animada para hospedá-la. Tive que
mencionar o caso da gravidez e das aulas de Charles, sinto não ter lhe
contatado antes disso.
Se possível, arrume seus pertences dentro desse período e eu irei
buscá-la. Não se preocupe com mais nada, eu cuidarei de tudo.
Carinhosamente,
Don”
— A carta é de três dias atrás. — Comentei ao terminar de ler.
— Não acredito que vai embora. — Ela se sentou no chão e ficou me
encarando tristemente. — Mas essa é a melhor opção para a saúde de seu
filho. Só espero que esse seu amigo cuide de tudo mesmo.
— Ele cuidará. Sempre foi um rapaz muito responsável e, se
tratando de mim, acho que ficaria mais ainda.
Ela franziu o cenho, mas logo voltou a seu olhar triste. Pegou a carta
entre minhas mãos e tentou relê-la. “Quando vai contar a Charles… e a
David?”
— Para Charles irei contar amanhã mesmo. Quero que ele já se
acostume com a ideia de me ter longe. Mas não pretendo contar para David.
— Mas ele tem que permite que Charles vá ter aula com você todos
os dias. Precisa falar com ele, ainda mais se vocês têm um acordo.
— Eu sei. — Suspirei. Encarei a janela embaçada pela chuva. — Só
não quero que ele me faça ficar.
— E você sabe que ele irá fazer se não der um bom motivo para ir…
— Não vou contar sobre a gravidez se é isso que está sugerindo. —
Lancei-lhe um olhar oblíquo. Ela sorriu de lado.
— Tudo estaria bem se ele soubesse sobre o filho de vocês.
— Você não entende…
— Que você está sendo egoísta? — Ela sussurrou.
— Não. — Virei-me totalmente para ela. — Eu quero alguém que
me ame. Que me ame por ser quem eu sou. Que não queira casar comigo por
causa de uma droga de noite que estávamos bêbados. Que não queira se casar
comigo porque me deu um filho e se sente culpado por causa disso. Eu quero
alguém que se sinta feliz ao meu lado e que me faça feliz. Não quero me
casar porque a sociedade manda que assim seja feito.
— Eu entendo… Mas como sabe que ele não a ama?
— Se ele me amasse não me trataria como está tratando agora. Mas
não me importo nenhum pouco com o que ele sente, ou se vai casar com
Lillian ou com qualquer outra. No momento só quero que Charles e meu filho
fiquem bem. E a distância é a melhor opção.
— Não acha que, se for embora, Lillian atormentará Charles.
— Não, ela não fará nada enquanto não se casar. Lillian é
inteligente, ela não implicará com o pequeno porque sabe que David mudaria
de ideia sobre o casamento no mesmo instante.
— Talvez tenha razão.
— Mas quero que cuide dele quando ela estiver aqui. — Sorri
suplicante. Ela concordou com a cabeça e colocou a língua para fora.
Ficamos conversando um pouco mais até voltarmos para nossos
quartos.

Charles não reagiu bem à notícia, como eu já esperava, mas não


imaginei que ele ficaria tão comovido.
— Querido. — Peguei a criança em meu colo. — Vamos nos ver
todos os dias, eu ainda vou continuar dando aula para você, só não vou mais
morar aqui.
— Isso não é justo. — Ele chorava alto. — Por culpa da Lillian você
está indo embora.
— Não, meu bem… Não é por causa dela na verdade.
— É por minha causa então? — Ele arregalou os olhos.
— Claro que não. Se eu lhe falar o porquê promete não contar para
ninguém?
Charles me olhou curioso. Concordou com a cabeça. Sentei-me na
cama, ele ainda em meu colo, peguei sua mão e coloquei sobre minha
barriga. “Sente algo?” Sorri.
— Tem alguma coisa aí. — Ele secou as lágrimas e encarou
fixamente meu vestido.
— Eu vou ter um bebê, Charles.
— Vai ter um bebê? — Sua expressão foi totalmente o contrário do
que eu esperava. Ele ficou desesperado. — Quer dizer que vai me esquecer?
Vai ter uma criança mais importante em sua vida.
— Não! Claro que não vou esquecê-lo. Nunca! Eu só vou ter duas
crianças importantes em minha vida. E você terá um irm… Amiguinho.
— Mas por que tem que ir embora?
— Porque se eu me abalar demais, eu posso perdê-lo. E você sabe
que Lillian não é uma pessoa muito confiável.
— Ela sabe que você vai ter um bebê?
— Sabe sim, meu bem. E por isso que ela está sendo tão malvada
com a gente. E esse é outro motivo para eu ir embora, não quero que ela o
machuque por minha causa.
— Eu não me importo, Sam. Por favor, não vá embora.
— Mas eu me importo. — Pensei em dizer o que ouvira na noite do
incêndio, mas ele era só uma criança, não precisava se preocupar com aquilo.
Já bastava eu. — Não quero que ela faça nada com você e ela não fará
enquanto eu estiver longe.
— Mas… — Ele abaixou a cabeça. — Promete que vou vê-la todos
os dias?
— Prometo sim.
— E… Papai também?
— Não, meu amor. Seu pai vai estar ocupado com o trabalho e o
casamento. E eu vou estar ocupada com o bebê e com você. Não vamos ter
tempo para nos ver.
Ele ainda queria discutir, mas não falou mais nada. Continuamos
nosso dia normalmente e ele já havia se contentado com minha decisão antes
de dormir.
Encontrei David quando saí do quarto da criança à noite. Ele me
olhou de cima a baixo e continuou caminhando pelo corredor. Sua grosseria
que me dava ânimo para sair de casa. Subi apressada para meu quarto e
comecei a arrumar minhas malas. Eu jogava as coisas com força dentro do
baú apenas para distrair minha mente e não pensar em David.
Passei o dia seguinte inteiro com Charles. O tempo que eu ainda
tinha naquele lugar só queria aproveitar com ele.

Era o dia que Don iria me buscar. O meu quarto já estava vazio e
minhas malas, sobre a cama esperando para descer. O diário de Mrs Luft
havia voltado para o sótão, arrumado na mesma gaveta que encontrara o
vestido. Retirei o colar que a senhora da cidade havia me presenteado no dia
do aniversário de Charles. “Ele irá ajudá-la a achar o homem de sua vida e
também lhe trará felicidade.” Como alguém poderia acreditar naquilo? E por
que eu o usara todos os dias na esperança de algo novo acontecer? Deitei o
pingente sobre a cama. Ele só me trouxera azar aquele tempo todo.
— Não quero lembrar da pessoa que pensei em todos os segundos
enquanto o usava. — Falei para a pedra esverdeada.
— Seu amigo já está aqui. — Liza abriu a porta.
— Obrigada. — Sorri. Peguei o baú, mas Liza o tirou de minhas
mãos. “Você ainda está grávida.” foi o que ela disse. Então desceu com
minha bagagem até a carruagem.
Antes de sair, fui me despedir de Charles. Ele estava sentado na
cama, encarando a janela. Dei um beijo estralado em sua bochecha.
— Nos vemos amanhã, não é? — Perguntou tentando esconder as
lágrimas.
— Nos vemos sim. Liza irá levá-lo até onde eu morarei. Não se
esqueça de levar seus livros para que eu possa continuar a matéria.
— Certo.
Senhorita Mel veio pulando em minha direção. Acariciei sua cabeça
e me despedi dela também.
Infelizmente aquele era o momento que deveria falar com David.
Não podia simplesmente ir embora e ainda pedir para ver Charles todos os
dias sem uma explicação. Ele estava sentado na sala, escrevendo algo em seu
bloco.
— Senhor… — Falei baixo. Ele não levantou os olhos do que estava
fazendo. — Não quero atrapalhá-lo, já que o que está fazendo parece muito
importante, mas devo comunicar que estou indo embora.
Então ele deixou o bloquinho de lado. Encarou-me, branco. “Como
disse?”.
— Não quero mais atrapalhar sua vida, senhor. Mas não precisa se
preocupar com Charles, eu estarei morando ainda na cidade e quero continuar
dando aula para ele. Liza disse que pode levá-lo todos os dias.
— Não permito que vá.
— Desculpe, senhor. Minha decisão já está tomada e a carruagem
me esperando. Não tenho como voltar atrás e nada irá me fazer mudar de
ideia.
— Nós temos um acordo.
— Temos, senhor. E eu peço desculpas por quebrar minha promessa,
mas eu continuarei dando aula para o pequeno, só não aqui.
Ele se levantou e caminhou até minha direção.
— É por causa daquela história ridícula sobre Lillian que colocou
em sua cabeça? — Ele continuava se aproximando.
— Não tem nada a ver com a sua noiva. — A raiva me tomava
sorrateiramente, mas eu me esforçava para manter a postura. — Não tem
nada a ver com o senhor ou com ela. Ou com os dois juntos. O motivo está
além de seu entendimento, senhor.
— Além de meu entendimento? — Ele riu resignado. — Sabe o que
eu vejo? Uma criança falando coisas sem sentido.
— Está errado. — Ergui ainda mais a cabeça. Meu olhar agora era
de ódio. — Não está vendo uma criança porque nunca me senti tão adulta em
toda a minha vida. Essa foi a melhor decisão que tomei até agora. E nada,
nem o senhor, irá me fazer voltar atrás.
— Não permito que vá!
— Não sei se lembra, mas eu lhe devo um pedido. E peço que me
deixe ir, mas que eu possa continuar lecionando a Charles.
— Então… — Ele já tinha feito eu recuar até a parede, então voltou
para a poltrona. — Vá embora. Não quero mais vê-la também.
— Não preciso que queira me ver. — Sorri incrédula. — Meu único
propósito nessa casa foi Charles e só Charles. Passar bem.
Retirei-me antes que ele falasse mais alguma coisa. Liza e Don me
esperavam perto da porta da frente. Eles não se olhavam e Liza estava com os
braços cruzados. “Ela ainda odeia franceses.” Pensei. Tinha me esquecido
que não era uma boa ideia juntar os dois, mas já haviam se conhecido, então
era tarde demais.
— Podemos ir. — Tentei sorrir, mas minha raiva era tanta que
ambos perceberam.
— A conversa não foi muito boa. — Falaram em uníssono, cada um
em sua língua. Entreolharam-se e Liza se virou novamente com os braços
cruzados e uma expressão infantil no rosto.
— Não, mas vamos embora logo. — Subi apressada na pequena
carruagem. Liza sentou-se ao meu lado e Don com os cavalos.
— Tem sorte que sou sua amiga. — Liza comentou baixinho. —
Porque eu odeio esses franceses.
Mesmo no estado em que me encontrava, ri.
— Don não é qualquer francês. Ele é muito gentil e um verdadeiro
amigo. Deveria conhecê-lo, iria gostar.
— Não quero conhecê-lo. — Torceu o nariz.
— Então está bem…

A estalagem servia também como um pub. Estava cheia quando


chegamos, mas a dona, Mrs Rousborn, fez questão de deixar o que estava
fazendo e vir nos ajudar.
— Então esta é a Samantha. — Ela sorriu para mim. — Mais bonita
do que o meu filho disse.
— Seu filho?
— Sim, Ebert Rousborn. Ele trabalha com Don.
Ebert… Lembrava-me daquele nome de algum lugar. Acho que era
um dos marujos que tinha vindo na embarcação quando cheguei da França.
Sim! Isso mesmo. Um sujeito baixinho e sorridente, assim como a mãe.
— Ah! Ebert. Lembrou-me dele. — Sorri.
— Vou levar suas coisas logo para cima, assim pode se arrumar
logo.
Concordei com a cabeça. Subimos nós quatro pela escadinha estreita
e entramos em um corredor tão estreito quanto.
— Espero que não se incomode com os homens do bar. — A
senhora comentou. — Eles fazem barulho, mas são inofensivos. E as trancas
são fortes também…
— Não se preocupe. — Tentei não pensar no que ela havia acabado
de dizer. — Eu não acho que será um problema.
— Uma mulher bonita como a senhorita sempre é um problema. —
Ela riu simpaticamente. — Aqui está seu quarto. Tem um sininho na parede
caso queira alguma coisa ou… Esteja tendo o bebê. Qualquer coisa é só tocar
e eu venho ajudá-la.
— Obrigada.
— Espero que seja do seu agrado, ainda mais que dará aula para uma
criança.
— Sim. Está ótimo. — Sorri constrangida.
— Peço para que a criança entre pelos fundos que dá direto para a
escada dos quartos e não precisa passar pelo bar. Será melhor…
— Está bem. — Liza concordou percebendo que era para ela que se
destinava a sugestão.
— E o pagamento. — Comentei envergonhada. — Eu não recebi
ainda de Mr Luft então…
— Não se preocupe com isso. — Don se colocou a minha frente. —
Eu cuidarei de tudo.
— Não. — Empurrei meu amigo para o lado. — Não tem como eu
trabalhar? Posso trabalhar depois de dar aula para Charles, limpar as mesas,
pratos… Pelo menos até receber meu pagamento.
— Não acho que seria uma boa ideia. — A senhora ficou pensativa.
— O seu bebê…
— Não se preocupe, é só eu não fazer muito esforço, mas posso
ajudar com coisas fáceis. Arrumar as mesas não seria um problema.
— Eu também não acho que seria uma boa ideia. — Don sussurrou
em minha orelha. Colocou a mão em minha barriga. — Queremos que essa
criaturinha fique bem até nascer, não é mesmo?
— Mas não é nada demais. — Fiz um muxoxo. — Eu estou grávida,
não doente. Quero pagar minha estadia, você já fez muito Don.
— Eu vou descendo. — Mrs Rousborn comentou. — Tenho que
cuidar das coisas lá embaixo.
Concordamos com a cabeça e ela se foi fechando a porta do quarto.
— Não me importo em pagar. — Don declarou. — Na verdade, me
anima muito a ideia de ajudar.
— Mas não precisa. — Dei-lhe um leve tapa no ombro. — Eu
consigo cuidar de mim mesma.
— Mas…
— Sem “mas”.
— Está bem. — Virou-se para Liza que nos encarava séria. —
Vamos senhorita, eu vou deixá-la em casa.
— Eu sei chegar em casa sozinha. — Respondeu secamente.
— Liza, ele está sendo gentil. Não poderia ser educada também? —
Repreendi-a.
— Tanto faz. — Deu de ombros. — Vou sozinha e pronto.
— Então a acompanho até a saída. — Don insistiu.
— Não. Eu sei fazer isso também sozinha. — Ela se despediu de
mim, lançou um olhar raivoso para Don e se foi.
Don se sentou ao meu lado na cama.
— Qual o problema dela? — Ele acariciou meus cabelos.
— Ela não gosta de franceses. — Afastei suas mãos.
— Garota estranha. — Tentou colocar suas mãos novamente em
mim, mas eu me afastei. — O que houve?
— Eu sei o que você está tentando fazer. Estive ignorando há algum
tempo. — Rodei os olhos até pararem sobre a porta. — Não vai dar certo.
— Nós podíamos dar certo. Era só você querer. Podíamos criar seu
filho e ser uma família.
— Eu não sou a mulher ideal para você. — Falei baixinho. — Nunca
fui, só você que não vê.
— Não quero uma mulher ideal. Quero você.
— Desculpe. — Olhei-o nos olhos. — Você é o meu melhor
amigo… Só isso. Eu queria me apaixonar por você, você é o único homem
que se importou comigo esse tempo todo e me fez feliz, mas não consigo. E
eu sei que estou o magoando, mas me desculpa.
— Eu entendo… A senhorita realmente se apaixonou pelo Monsieur
Luft.
— Sim. — Confessei. Ele ficou sério. — Foi uma das piores coisas
que fiz na minha vida… Não fique triste porque foi por ele e não por você.
Um dia você irá achar uma ótima mulher e nem irá se lembrar que se
apaixonou por mim.
Não respondeu. Ainda me olhava e eu o olhava. Então abriu um
sorriso no canto da boca.
— Eu sinto muito que não tenha se apaixonado por mim também.
Mas fazer o que, não é? Espero que a senhorita encontre o homem perfeito
também, e eu sempre estarei lá para apoiá-la e ser seu amigo.
— Eu sei que estará. — Sorri também.
— Vou indo. Antes que meu superior reclame. Volto ainda nesta
semana, prometo.
— Está bem. — Despedimo-nos com um abraço.
Ele se foi e eu fiquei sozinha.
Capítulo 21

As primeiras semanas passaram bem rápidas. Eu acordava cedo para


dar aula para Charles e dormia tarde por causa do trabalho no pub. Por mais
que estivesse exausta, sentia-me bem por não ter que ver Lillian nem a face
zangada de David. Estava feliz também por poder tocar o piano do Pub todo
dia.
Passei a maioria das manhãs com Charles e às vezes com Liza e Don
– que, por mais que se encontrassem cedo quando Liza vinha trazer a criança,
e Don, visitar-me, nunca eram os dois ao mesmo tempo já que Liza
continuava ignorando-o. E as noites, com a Mrs Rousborn e Carrie, sua filha.
O que mais me incomodou nesse tempo foi minha barriga. Ela
crescera muito mais do que em toda a gravidez e agora era evidente que mais
uma pessoa habitava aquele corpo. Os clientes do pub às vezes implicavam e
faziam piada, mas eu tentava ignorar.
— Não se preocupe com eles. — Carrie comentou em uma noite
enquanto limpávamos as mesas. — Eles são inofensivos.
— Não me importo com eles.
— Já está bem tarde. Pode deixar que eu arrumo o resto.
— Não se preocupe, eu posso acabar.
— Você está bem cansada. É melhor ir dormir, — Seu sorriso era
fraternal, mas havia um leve ar suplicante. Concordei com a cabeça e me
despedi.
Dormi um pouco e acordei de madrugada com uma vontade de
comer framboesas. Encarei aborrecida minha barriga. “Tudo culpa de David.”
Pensei. Fazia tempo que não pensava nele e me sentia uma idiota por tê-lo
novamente em minha mente.
— Por mim você nunca conhecerá seu pai. — Comentei para minha
barriga.
“Me deixe em paz.” Ouvi alguém falar no corredor.
“Por que não vem me amar?” Falou uma voz grossa.
“Eu não quero.” A outra pessoa respondeu.
“Você não tem escolha!”
O tom da conversa era agressivo. Entreabri a porta e espiei pelo vão.
Um senhor alto e esguio agarrava Carrie. Ela se debatia e tentava afastá-lo.
Ele se chamava Vicent, era o esposo da jovem. Nunca tínhamos conversado,
apenas nos vistos à distância.
— Me solte por favor! — Ela queria gritar, mas temia acordar
alguém.
— Você é minha, tem que fazer o que mando. — Sua voz rouca me
acertou. Era impossível não me lembrar de Gareth. Minha vida parecia ser
reproduzida a minha frente. Eu conseguia praticamente prever o que
aconteceria.
— Você é um monstro, me largue!
Ele ergueu a mão e lhe deu um tapa. O estalo ecoou pelo corredor.
Segurava a mulher com força pelo antebraço de modo que ela não tinha como
fugir.
Em meu esconderijo, sentia meus músculos retesando-se. Meu corpo
projetava-se para frente, querendo ultrapassar a porta e agarrá-lo. Impedi-lo
de bater novamente. Acabar com aquilo de uma vez.
O desespero dela se tornou o meu. Minha raiva emanava pelo meu
corpo e eu me impedia duramente de prosseguir.
Estava grávida, não poderia me envolver em uma briga. Ainda mais
em uma que não conseguiria ganhar. O que ele faria comigo se espancava sua
própria mulher?
Carrie tentava não gritar. O pranto escorria pela pele, quase em tom
negro. Eu não aguentaria mais ver aquilo. Respirei fundo, tomei coragem e
abri a porta.
Vicent desceu a mão e me encarou. Em seus olhos jazia aquela fúria
que me era tão familiar.
— Boa noite. — Enchi o peito. — Desculpe… Mas eu queria
dormir.
O homem soltou a mulher agressivamente, bufou e entrou em seu
quarto. Carrie secou as lágrimas e virou-se para mim com a cabeça baixa.
— Desculpe tê-la incomodado. — Disse trêmula.
— Você está bem?
— Não se preocupe.
— Venha aqui. — Puxei-a pelos ombros, levando-a para dentro de
meu quarto. — Tenho um remédio…
— Eu estou bem. — Ela me empurrou para o lado.
— Não está. — Respondi sem me alterar. Nossas dores mesclaram-
se de tal forma que eu era capaz de cair a sua frente e chorar o mesmo pranto.
— Sei que não está.
— Não sabe.
— Daria tudo para não saber. — Ajoelhei-me calmamente a frente
do baú e comecei a buscar pelo remédio de David. — Sente-se que eu passo
em você.
Ela se sentou silenciosamente na cama.
— Por que os homens são assim? — Perguntou enquanto eu
espalhava a pomada em sua face inchada.
— Por que somos assim?
— Acha que deveríamos apanhar sem reclamar?
— Não. — Ri baixo. — Acho que apanhamos porque deixamos.
Nosso silêncio deixa. Nosso medo. Percebi isso há algum tempo atrás.
Quando decidi que não seria mais esse tipo de mulher. Os homens esperam
que sejamos “boas esposas”, que não questionemos, que passemos por tudo
em silêncio. Não nascemos para isso, nascemos para sermos felizes. Nem que
isso seja ir contra tudo o que nos ensinaram.
— Queria ter coragem. — Fez-se silêncio. — Não é a primeira vez,
sabe? Minha mãe também sofreu com isso… E eu desde que me casei.
— E por que se casou?
— Às vezes não temos escolhas. — Seu sorriso foi triste, tão triste
que me comoveu ainda mais. “Sempre temos escolhas” falei para mim
mesma. — Vou deixá-la dormir agora.
— Boa noite.
— Samantha — Sussurrou antes de sair. — Se um dia achar um
homem que valha a pena, não o deixe escapar. E se nunca achar, seja feliz
sem nenhum.
Concordei com a cabeça, e nos despedimos.
Desde aquela noite eu comecei a evitar o pub. Não tinha medo de
encontrar Vicent ou qualquer outro homem, mas não queria que Charles
presenciasse cenas como aquela, já bastava lembrar do pai me agredindo.
Naquela manhã, estávamos caminhando pelo arvoredo atrás do
estabelecimento. Eu andava devagar, cansada, e meus olhos quase não
conseguiam se manter abertos. Liza estava com a gente e notou minha
exaustão.
— Anda muito cansada. — Ela comentou quando Charles se afastou
um pouco.
— Não se preocupe.
— Deveria parar um pouco e descansar. Trabalhar demais irá lhe
fazer mal.
— Eu preciso trabalhar. — Comentei. — Não posso parar Liza. Eu
preciso.
— Converse com o Mr Luft então, ele entenderá.
— Não. Não quero envolver David nesse assunto. Eu saí de sua casa
porque quis e preciso viver com as consequências. Não preciso da ajuda dele.
Ela não respondeu, apenas concordou com a cabeça e continuou
andando. Alguma coisa estava incomodando os dois aquela manhã. Eu não
questionei de imediato porque sabia que mais cedo ou mais tarde um deles
iria me dizer. Não demorou muito. Liza já voltara para a casa e eu estava
sentada com Charles sob uma árvore.
— Papai está bem diferente. — Ele disse de súbito. — Ele não está
ficando tanto tempo em casa como quando você estava lá e está mais sério
também.
— Ele deve estar preocupado com algo no trabalho.
— Miss Ellis também está diferente. Quando você saiu ficou até
animada, mas alguns dias depois ela só ficou mais chata. — Suspirou. —
Pelo menos está indo muito menos lá em casa.
Não comentei. Encarei veementemente o livro.
— Realmente acha que está tudo bem? — Ele perguntou baixinho.
— Acho que sim. Não se importe com questões de adultos, isso só
irá lhe deixar mais nervoso.
— Mas ele é meu pai. Eu preciso me importar.
— Não, meu amor. — Sorri calmamente. — Ele não quer que você
se preocupe com essas coisas. Tudo irá se resolver, você vai ver.
— Se você diz. — Ele sorriu. — Deveria ir lá em casa algum dia.
Ver a Senhorita Mel pelo menos.
— Gostaria muito, meu bem. Mas por enquanto não é o melhor a
fazer.
Concordou com a cabeça.
Encontrar David era o que eu menos queria na verdade. Por mais que
às vezes eu sentisse saudade e eu quisesse vê-lo pelo menos uma vez, eu
recorria ao meu orgulho e me fazia mudar de ideia. Mas, infelizmente, como
minha vida era oposta da que eu queria, eu o encontrei.
Era de tarde, Liza havia levado Charles para casa e eu acabara de
deixar uma carta para Don nos correios. Estava voltando para o pub quando
atravessava a rua e estava quase chegando quando olhei para o lado e vi uma
figura morena saindo por uma porta relativamente escondida.
A rua estava cheia. Muitas pessoas passavam por nós e eu pensei que
ele não me veria. Fiquei encarando-o, parada em meio a rua, esperando que
ele me visse e, ao mesmo tempo, que não. Claro que ele tinha que me ver,
não é? Eu não teria a sorte de passar despercebida. Seus olhos viraram em
minha direção, ele desviou o olhar por um instante, mas logo voltou a cabeça
para mim. Seus olhos pareciam assustados, emocionados e intrigados. Não
demorou muito para cruzar a rua em minha direção.
Muitas pessoas andavam ali. Tantas pessoas, que ele se viu obrigado
a andar desviando. Tive tempo de sair de meu estupor e apressar-me a entrar
no Pub. Eu esperava que ele não tivesse visto por qual porta entrei, mas meu
interior sabia que vira.
— Se um senhor perguntar por mim — Falei para Carrie. — Diga
que não me conhece e nunca me viu. Por favor.
Ela concordou com a cabeça. Eu me escondi atrás da parede do
corredor e fiquei observando o Pub de soslaio.
David entrou. Caminhou um pouco até o centro, o tempo que Carrie
teve para chegar até ele e perguntar se queria uma mesa, ou beber algo. Ouvi
Mr Luft perguntando por mim. Ela negou a cabeça com uma impressionante
cara de dissimulação que até eu pensei que estivesse falando a verdade. Ele
não parecia muito convencido, mas agradeceu com a cabeça e saiu.
— Por que está fugindo do médico? — Carrie se aproximou de mim.
Mantinha um sorriso curioso na face.
— Só não quero que ele me ache…
— Parece ser um bom senhor.
Eu não respondi, apenas balancei a cabeça sem vontade e subi para
meu quarto.

David foi ao Pub diversas vezes em diferentes horários. Sempre que


aparecia, eu me escondia no primeiro lugar que encontrava, e normalmente
em um esconderijo onde pudesse vê-lo. Seu rosto não era triste, parecia mais
esperançoso do que triste.
Comentei isso uma vez com Liza e ela me respondeu que ele e
Lillian não estavam indo muito bem. Eu não acreditava que David realmente
se distanciava de Miss Ellis, mas as coisas na casa pareciam que não estavam
indo nada bem.
Por causa da insistência de Charles, e em termos por minha
curiosidade, fui visitá-lo em casa. Era um dia em que nem David, nem Lillian
se encontravam, então pude aproveitar a manhã com a criança.
— Espere papai chegar. — Charles me puxava pelo braço. — Ele
vai querer vê-la.
— Ele não quer me ver. — Sorri de lado. — Eu não vou atrapalhá-
lo.
— Mas… Mas você faz papai ficar feliz.
— Eu… — Senti vontade de rir alto, mas apenas permaneci com o
sorriso no rosto e não completei minha frase.
Charles me fez ficar até o fim da tarde e seu plano teve êxito. David
chegou em casa cansado e se arrastou sem vontade para seu quarto. Charles
me deixou por um instante e foi conversar com o pai. Mr Luft saiu correndo
do quarto e foi em direção ao do filho. Eu, que antes estava com a cabeça no
vão da porta, só tive tempo de correr para longe da luz e ficar de costas.
— Samantha… — A voz de David entrou junto com a luz do
corredor. Eu ainda estava no escuro.
— Boa noite, senhor.
— Por que não pediu para me avisarem que estava aqui?
— Não pensei que o senhor ficaria feliz em me ver. Afinal, o senhor
disse que não queria mais me ver.
— Eu… — Sua voz ficou menos animada. Eu sabia que havia ficado
sério. — Tem razão, mas como disse, eu me preocupo com meus
empregados.
— Por isso correu tão animadamente até aqui?
— Não corri animado.
— Se diz. — Franzi o cenho.
— Vire-se para mim, Samantha.
— Não, senhor. Prefiro não ver seu rosto. Sei que está me
censurando e não quero ver sua raiva novamente.
— Eu não estou lhe censurando.
— Não vou me virar.
Ouvi seus passos caminhando até mim e senti sua mão em meu
ombro. Fugi de seus dedos e me escondi ainda mais dentro do quarto.
— Não quero que me veja também. — Afirmei.
— Está em minha casa e não quer que eu a veja?
— Sim. E se me der licença, eu quero passar e ir embora.
— Não quero que vá embora.
— Não dependo da sua autorização para ir. Só quero que saia.
— Por que quer tanto ficar longe daqui? O que tanto a afasta?
— Eu… — Respirei fundo, enchi o peito. — Eu amo uma pessoa. E
por causa dela não posso mais morar aqui.
— Que pessoa? Quem é esse homem que não a deixa mais morar em
minha casa?
— Ele, senhor… É uma das pessoas que mais amarei em toda a
minha vida. E não posso deixar que nada estrague nossa vida juntos. Nem o
senhor, nem Lillian.
— Então vá embora logo. — Esbravejou. Saiu batendo os pés.
Sorri de lado. Ele estava com ciúmes de meu filho porque julgava
ser outro homem. Alarguei o sorriso e voltei feliz para o Pub.
Charles e Liza não apareceram por alguns dias. Eu esperava
pacientemente todas as manhãs, mas quando os relógios soavam meio dia, eu
me convencia que não viriam. David deveria estar com muita raiva de mim e
aquilo ficou evidente quando Anneliza foi me visitar quatro dias depois.
Vinha sozinha e trazia um envelope.
— Mr Luft pediu para lhe entregar. — Ela colocou o que trazia em
meu colo. Seus olhos estavam tristes.
Abri o envelope apressadamente. Era meu primeiro – e único –
pagamento.
— O que isso quer dizer? Por que Charles nunca mais veio?
— Sam… Mr Luft não quer mais que você dê aula a Charles. Ele
agradece pelo seu tempo e trabalho, mas seus serviços não são mais
necessários.
Joguei o dinheiro de lado. As lágrimas brotaram em meus olhos.
— Ele não pode fazer isso! Eu preciso ver Charles! David não pode
me afastar dele!
— Ele não é seu filho, Samantha. Mas é o de David.
— Eu prometi que faria Charles sempre feliz. Por que David está
fazendo isso comigo?
— Ele acha… Que você está morando com um homem.
— Mas eu não estou!
— Eu sei, mas se falarmos isso para ele, ele quererá saber a verdade
e ver Charles significaria desistir de seu plano. — Suas palavras soavam mais
como um eu-disse-que-era-melhor-não-ter-feito-isso.
— Mas deve haver outro jeito. Liza, você é bastante esperta. Pense
em alguma maneira de convencê-lo.
— Não dá… As coisas na casa estão bastante tensas. David brigou
até com Miss Ellis. Já brigou com todos os empregados e só Charles que não
teve que enfrentar a raiva do pai.
— Por favor, Liza. Eu não posso ficar sem ver Charles. Ele é o único
motivo que me faz aguentar todos os dias.
— Você tem seu filho, Samantha. Logo esquecerá de Mr Luft,
Charles e qualquer um daquela casa. — Seus olhos também estavam
molhados e sua voz tremia. — Vai ter uma vida nova.
— Eu nunca vou esquecê-los! Não quero esquecer.
— Eu sinto muito. — Levantou-se às pressas e saiu correndo do
quarto.
Escondi o rosto no travesseiro e chorei até dormir.
Charles e Liza não voltaram ao Pub. A tristeza me fez adoecer. Eu
não achava motivos para me levantar da cama e, por mais que eu estivesse
preocupada com o bebê, pouco comia. Não tinha ânimo para trabalhar nem
para conversar com qualquer pessoa.
Recebi uma visita uma semana depois. Eu não estava nenhum pouco
contente de receber alguém.
— Eu disse que não queria ver ninguém que não fosse Charles. —
Cobri o rosto com o travesseiro.
— Eu tive que chamá-lo. — Carrie me fez sentar. — Você está me
preocupando.
— Não precisava ter incomodado Don. Eu estou bem. Não precisava
tê-lo incomodado. — Conversávamos como se o rapaz não estivesse no
quarto, bem ao nosso lado, encarando-nos sério. Pensava no que dizer e se
manteve em silêncio enquanto escolhia as palavras.
— Como não, Samantha? — Ele se ajoelhou a minha frente e
segurou minha mãos. — A senhorita está muito doente. Precisamos procurar
um médico.
— Não preciso de um médico! Eu estou bem.
— Carrie — Ele se virou calmamente para a moça. — Poderia nos
deixar a sós?
Ela saiu de imediato. Don se sentou ao meu lado.
— Não fique triste por David.
— David? Eu não estou triste por causa dele. Estou com raiva
porque ele não me deixa ver Charles.
— Tem que tentar se controlar. Ainda tem um filho aí dentro.
— Você! — Eu agarrei seu rosto euforicamente. — Você pode me
ajudar!
— Ajudar?
— Por favor… Vá até David e peça para ele me deixar ver Charles.
— E como quer que eu faça isso?
— Ele acha que eu estou morando com um homem. Você pode ir até
ele e dizer que não estou. Tentar convencê-lo…
— Como acha que vou convencê-lo? Se eu for, é bem capaz dele
achar que sou eu quem mora com você.
— Não vai. Você irá convencê-lo.
— Eu…
— Você vai convencê-lo. — Estreitei os olhos. — Ou nunca mais
iremos nos ver.
Não queria tê-lo ameaçado, mas precisava tomar medidas drásticas.
Don tirou minhas mãos de seu rosto. Levantou-se em silêncio e caminhou até
a porta. “Vou ver o que posso fazer.” Saiu ao proferir a última palavra.
Eu sorri alegremente para a porta. Por mais que eu não quisesse
receber visitas, a de Don me deixou um pouco mais animada. Voltei a
trabalhar e me alimentar melhor. Estava até um pouco mais feliz.
Continuei esperando todos os dias, mas mesmo que a resposta não
chegasse, eu me mantinha animada.
Foram três dias até minha resposta aparecer e ela chegou com uma
Liza agarrada a orelha. Era final de tarde e eu estava me preparando para
trabalhar. Liza estava com tanta raiva e segurava a orelha de Don com tanta
força que eu temi o que vinha.
— Agora conte para ela! — Ela soltou o rapaz.
— Qual o seu problema? — Don afagava o ouvido. — Vai ficar
vermelho.
— Eu vou deixar mais ainda! — Liza estreitou os olhos. — Fale
logo o que você fez.
— Fala você! — Ele cruzou os braços.
Eu, que me mantive calada até aquele instante, mandei que os dois
se sentassem e me falassem de uma vez o porquê, caso contrário os dois
ficariam com as orelhas vermelhas.
— Don foi falar com Mr Luft. — Liza começou.
— Eu sei. Eu que pedi a ele.
— Pediu para ele contar sobre seu filho?
— Don! — Virei-me resignada. — Você falou sobre meu filho?
— A senhorita queria que Mr Luft a deixasse ver Charles…
Ameaçou-me até de não poder vê-la mais. Pensei que não iria se importar.
— Se eu quisesse que David descobrisse sobre o bebê eu mesma
teria contado! — Ergui-me de uma vez e senti uma pontada na barriga.
— Não se levante assim. — Ele me segurou pelos braços.
— Não mude de assunto!
— O que tem de mal ele saber que vai ser pai novamente? Deixe de
ser infantil e se convença que ele é o pai e isso não mudará nunca.
— Eu sei que ele é o pai, mas ele não precisava saber. Eu não quero
que David pense que tem algum dever para com meu filho.
— Deveria ter me dito antes de ter me mandado tentar convencê-lo.
— Pensei que já estivesse bem claro que não queria que David
descobrisse sobre ele.
— Mas não era por causa de Lillian? — Ele me encarou sério. Eu
odiava quando os homens me tratavam como uma criança que não sabia o
que estava fazendo.
— Também.
— Pois não tem mais Lillian para impedi-la de voltar. — Ele falava
muito sério. Eram raras as vezes que Don ficava daquele jeito e eu sabia que
era porque se preocupava comigo.
— O que quer dizer?
— David — Liza falou baixinho. Tentava segurar um riso. —
Terminou com Miss Ellis. Eles não vão mais se casar. Tinha que ver como
Lillian saiu lá de casa.
— Eu não queria que David tivesse mudado só por conta do bebê.
— Não. — Ela sacudiu as mãos tentando me convencer de que
estava errada. — Ele terminou antes de Don aparecer. Não fazia ideia que
seria pai novamente. Mas agora faz e é por isso que quer tanto vê-la.
— Ele quer me ver? — Sentei-me extasiada.
— Sim… Tentou até me fazer falar onde estava morando. — Don
comentou. — Isso eu não falei. — Franziu o cenho antes que eu reclamasse.
— Mas parecia que já tinha uma leve ideia de onde poderia encontrá-la.
Bati com a mão na cabeça e fiz um muxoxo. Liza indagou se eu
havia encontrado-o pelas ruas ou no Pub e eu contei sobre o dia que o vi e ele
me seguiu.
— Sabe, se quiser ver Charles terá que vê-lo também. — Ela
objetivou. — Acho que ele não perderá a chance.
Fiquei encarando a porta fechada. Eles falaram mais algumas coisas
que eu não prestei muita atenção.
— Eu quero ficar sozinha. — Falei por fim. Encarei mais fixamente
a porta e eles entenderam que era hora de irem.
Levantei-me calmamente e me sentei no parapeito da janela. Sabia
que, mais cedo ou mais tarde, teria que encontrar David e tinha que me
preparar emocionalmente para aquilo. Acariciei minha barriga e sussurrei
doces palavras para meu bebê. Não queria que pensasse que estava chateada
com ele.

Eu fiquei um pouco aérea na semana que se passou. Estava


trabalhando mais de manhã e tarde do que à noite, receando encontrar David,
mas às vezes tinha que ajudar Carrie quando o lugar ficava muito cheio. Eu
não estava prestando atenção em nada e parecia sempre ter a mente muito
cheia de pensamentos.
Preparava-me para descer para o Pub àquela noite. Minha barriga
estava ainda maior do que de costume e os vestidos, apertados, de modo que
eu demorava mais tentando ajustá-los. Deixei meu cabelo solto, era muito
raro eu me sentir a vontade com ele daquele jeito, ainda mais do
comprimento que ele se encontrava, mas eu estava me sentindo bem o
suficiente para querê-lo solto. Não que eu estivesse feliz, eu não estava
nenhum pouco. Mas me sentia bem.
Desci rapidamente para o Pub e encontrei Carrie no corredor.
— Não corra assim. — Ela riu. — Senão terei que fazer seu parto
aqui mesmo.
— Acho que ainda falta um pouco para o bebê nascer.
— Sua barriga está bem grande. Não acha que é melhor parar de
trabalhar? Pode acontecer algo com o bebê.
— Ele está bem e o trabalho não requer tanto esforço. São só alguns
pratos…
Ela ia me responder, mas Mrs Rousborn apareceu e a interrompeu.
— Miss Evans será que podia me acompanhar até o gabinete?
— Sim, senhora.
Segui a senhora até o antigo gabinete de Mr Rousborn. Era um
ambiente pequeno, com prateleiras de bebidas especiais, uma mesinha de
mogno e três cadeiras da mesma madeira. Um homem sentava de costas para
a porta. Tomava chá calmamente. Eu fiquei encarando-o por vários segundos.
Tinha finalmente acordado do meu estranho estado de estupor, mas, mesmo
assim, não sabia como reagir. Fiquei apenas o observando enquanto Mrs
Rousborn me empurrava para dentro.
— Este cavalheiro quer falar com a senhorita. — Ela continuou.
O homem, percebendo finalmente que tínhamos entrado, retirou a
xícara dos lábios, deitou-a na mesa e se virou para trás. Em seu rosto, os
lábios faziam uma curva como um sorriso polido. Eu não sabia o que sentir
com aquele sorriso, só sabia que estava vermelha, mas de raiva.
Mrs Rousborn se sentou atrás da mesa e ergueu a mão apontando a
cadeira vaga. Sacudi a cabeça, afastando meus pensamentos e me virei para a
porta.
— Eu não quero conversar. — Dei um passo para fora, mas um par
de braços fortes enlaçaram meus ombros.
— Não vou deixar que fuja de mim. Não novamente. — Ele
sussurrou em meu ouvido. Senti meus pelos eriçarem.
— Então vá embora e eu não terei que fugir do senhor.
— Sabe que não irei soltá-la até que a senhorita me escute.
— Por que está aqui? — Virei-me para ele. Seus braços ainda
estavam me abraçando de modo que nossos corpos estavam praticamente
grudados, mas eu estava com tanta raiva que acho que ninguém que visse
aquilo acharia a cena romântica.
— Vim atrás de você.
— Já encontrou, agora pode ir.
— Me escute. — Seu tom foi menos afável e mais autoritário como
de costume. Empurrei meu corpo para trás e fugi de seus braços.
— Eu preciso ir trabalhar.
— Não precisa. Eu paguei sua estadia aqui, não precisa mais
trabalhar.
— Eu não preciso de seu dinheiro. Estou muito bem sozinha. —
Caminhei até a escada que levava ao primeiro andar. Ele me seguia mantendo
uma certa distância.
— Samantha!
— Eu não sou mais nada para o senhor. — Abaixei a cabeça. Senti
as lágrimas quentes descerem pela minha face. Eu não sei de que chorava,
acho que de raiva, já que era a coisa que mais sentia naquele momento. — Vá
embora. Faça esse favor para nós dois.
— Eu disse que não iria sair daqui enquanto não conversássemos.
Sequei o rosto com a manga do vestido. Ele insistiria até conseguir o
que queria e eu só iria me irritar ainda mais.
— Está bem então. — Continuei subindo para o quarto. Ele me
seguia mantendo a mesma distância, o que era bastante prudente.
Abri a porta do quarto e dei espaço para que ele entrasse. Ele ficou
parado centímetros da porta encarando o ambiente. Entrou cautelosamente e
se sentou no parapeito almofadado da janela. Sentei-me na cama de frente
para ele.
— Fale. — Franzi o cenho.
— Só um instante, quero poder ver melhor a senhorita grávida.
— Como se fosse importante para o senhor.
— É sim. A gravidez é uma coisa linda. Eu queria ter estado ao seu
lado esse tempo todo.
— David — Suspirei. — Não precisamos passar por isso. Eu não
sou nada para o senhor, não precisa fingir.
— Eu nunca disse que você não era nada para mim.
— Não precisa dizer. Por favor, fale logo a que veio.
— Por que não aceitou meu pedido de casamento?
— Que tipo de pergunta é essa?
— Diga que nunca me amou. — Ele estava nervoso. — Diga que
recusou porque não me queria ao seu lado.
Fiquei em silêncio. Encarei além da janela por tempo indeterminado.
“Eu não recusei por não o amar.” Respondi ainda encarando o vidro. “Só não
queria que as coisas fossem do jeito que foi. Não queria dizer sim por
obrigação.”
— Então quer dizer que me amou.
— Amei… Mas isso não quer dizer nada agora.
— Quer dizer sim. — Ele se ajoelhou a minha frente e agarrou
minhas mãos. — Poderíamos viver juntos e criar Charles e nosso filho.
Seríamos felizes.
— Pena que o senhor irá se casar com Miss Ellis. — Sorri
secamente. Por mais que eu soubesse do final do noivado, queria ouvir aquilo
da boca dele.
— Não! Eu terminei meu noivado com Lillian.
— Uma pena.
— Não fale como se importasse com ela. A senhorita sempre soube
como ela era, não é? Colocar fogo por conta de sua gravidez… Que pessoa
faz isso?
— Pergunte a ela.
— Eu entendo porque saiu de minha casa. Na situação em que
Lillian se encontrava, era mais seguro para nosso filho. Mas… Por que não
me disse sobre a gravidez? Eu poderia ter cuidado de você. Só soube por
causa de seu amigo.
— Primeiramente, não fale nosso filho. Ele é meu, o senhor não
precisa se considerar pai dele. Segundo, não era para o senhor saber que eu
estava grávida. Infelizmente, Don abriu a boca. E o senhor mesmo disse que
não queria ter a infelicidade de ter um novo filho. Por que está tão interessado
agora?
— Pare de ser infantil. É meu filho sim. E eu serei o pai dessa
criança.
— Eu já disse que não sou nada para o senhor. Só pedi para
continuar dando aula a Charles. Não precisamos fingir que somos mais do
que patrão e empregada só porque me engravidou.
— Não quero fingir que somos algo mais por causa de nosso filho.
Não quero fingir de jeito nenhum. Eu quero que tudo seja verdadeiro.
— Mas eu não quero.
— Não fale desse jeito. — Segurou minhas mãos com mais força. —
Sei que quer. Em nossa noite juntos…
— Finja que aquilo nunca aconteceu.
— Não! — Seus olhos tinham muito sentimento, mas seu rosto
permanecia sério. — Eu não me sentia feliz com uma mulher há muito
tempo. Aquela noite me alegrou tanto e você conseguiu estragar tudo no dia
seguinte quando recusou meu pedido.
— Eu que estraguei? — Empurrei suas mãos para o lado e me
levantei. — O senhor não deveria ter me levado para aquele baile. Estaria
tudo certo se não tivesse me forçado a ir com o senhor.
— Qual o seu problema? — Ele voltou a se sentar no parapeito. —
Eu queria que se divertisse um pouco. Eu estava pensando em você.
— Me divertir? Acho que o senhor que queria se divertir.
— Não pense que eu estava me aproveitando de você.
— Não estou pensando em nada. Por isso não queria vê-lo. Não sabe
como está me fazendo mal. — Eu já estava muito nervosa. Não sei porque
ainda chorava, mas agora eu tinha certeza que era de raiva. — Por favor… Vá
embora.
— Quero que se case comigo. — Falou calmamente como se eu não
tivesse dito nada. — Quero ser seu esposo e fazê-la feliz.
— Eu… — Deitei os olhos no chão. — Eu… Acho que minha bolsa
rompeu.
— Não era para acontecer. — Ele se ergueu de uma vez e me ajudou
a sentar. Havia uma poça onde eu estava antes. — Foram apenas sete
meses… Está muito cedo.
— Culpa sua. — Empurrei-o para longe. As contrações começaram
irregularmente. Algumas eram fortes e me fizeram gemer alto, mas outras
não eram tão dolorosas.
— Preciso levá-la para meu consultório. É aqui na rua, não vai ter
que andar muito.
— Não! — Gemi alto, fora uma contração particularmente dolorosa.
— Ele pode nascer.
— Não vai nascer agora. São só as primeiras contrações. O bebê está
treinando.
— Mas está doendo.
— Vai doer mais quando for a hora, acredite. — Ele falou baixinho.
Arregalei os olhos. — Vai dar tempo de chegar lá. Vamos.
— Não vou a… — Ele me pegou no colo antes que pudesse acabar
de falar. Agarrei seu pescoço assustada.
Ele desceu comigo para a rua. O Pub estava cheio, mas por causa da
escuridão da noite, as pessoas não nos viram. David não demorou para chegar
na casa de onde, semanas antes, eu o vira sair. Mesmo comigo em seu colo,
ele conseguiu abrir a porta e me levar em meio a escuridão até uma espécie
de quarto. Deveria ser onde dormia quando não voltava para a sua casa.
Deitou-me na cama arrumada com lençóis brancos.
— Eu farei seu parto. Arrumarei o que preciso para quando a hora
chegar.
Eu soltei um grito estridente. As contrações estavam mais fortes e
vinham mais rapidamente. Ele me olhou assustado e saiu do quarto para
pegar o que precisava para o parto.
Capítulo 22

Acordei com um choro baixo. Sentei-me na cama e encarei o escuro.


David estava sentado em uma poltrona perto da cama. Sua cabeça se apoiara
no móvel perto da janela de cortinas fechadas. Segurava um rolinho branco
que se remexia incessantemente querendo acordar o homem, mas não
conseguindo.
Levantei-me calmamente, um pouco ainda dolorida. Peguei a criança
no colo e voltei a me sentar na cama.
— Está com fome? — Retirei meu seio de dentro do vestido e
coloquei o mamilo em seus lábios arroxeados. Ela começou a sugar bem
fraquinho, o que me deixou um pouco temerosa, mas logo o leite foi puxado
para fora. — Deve estar faminto mesmo.
David acordou quando o bebê finalmente se sentiu satisfeito. Ele
esfregou os olhos e me encarou.
— É uma menininha linda. — Comentou sorridente. — Parece
muito com a senhorita.
Apenas concordei com a cabeça. Não me conformara ainda de estar
ali.
Ele se levantou sonolento e se sentou ao meu lado.
— Foi um parto bem complicado e eu estava preocupado por ela
nascer tão cedo. Mas nasceu forte e não muito pequena. E a senhorita parece
estar bem agora. — Ele continuava sorrindo. — Acho que teria sido um parto
melhor se você não tivesse me xingado tanto.
— Não queria ofendê-lo. — Eu o encarava séria. Seu sorriso me
incomodava.
— Tem que escolher um nome para ela.
— Eu… Juliet… Eu gosto desse nome… — Sorri para a criança. —
O que o senhor acha?
— Acho um nome lindo. — Ele afagou minha mão. Estava quase
abraçado a mim, seu rosto muito perto do meu.
— Então você irá se chamar Juliet. — Beijei a testa de minha filha, o
que também era um pretexto para manter meu rosto longe do dele. Virei-me
então para ele. — Eu quero ver Charles, senhor.
— Irá vê-lo. Ele tem que conhecer a irmãzinha.
— Não quero confundi-lo, acha que só podemos ter um filho se
formos casados, mas não somos.
— Mas a senhorita pode aceitar meu pedido e finalmente seremos.
Suspirei ruidosamente. “Tenho que pensar muito.” Respondi.
— Fique à vontade. — Ele continuava sorrindo. — Irei preparar algo
para o café da manhã. Logo volto
— Não sabia que o senhor cozinhava.
— Eu venho nessa casa para ficar sozinho. — Comentou encarando
a porta. — Longe de empregados… De todo mundo… Precisei aprender
algumas coisas para sobreviver.
— Charles acha que o senhor não o ama. Passa tanto tempo aqui que
parece não se importar com seu filho.
— Eu me importo. Por isso que fico aqui. Sei que me aborreço muito
e tenho medo de machucá-lo quando estou com raiva. Por isso passo algum
tempo aqui.
— Aquele dia… Que o senhor me…
— Eu não deveria ter ido para casa. Mas queria tanto vê-la que mal
consegui pensar.
— Queria me ver? — Virei-me assustada para ele. — E por isso me
agrediu?
— Vou fazer o desjejum. Depois conversamos.
Concordei com a cabeça. Ele saiu e me deixou a sós com a bebê.
Juliet dormia em meus braços. Eu me sentia muito bem com ela em
meu colo. Sentia uma felicidade tão grande que mal sabia como explicar.
Deitei-a ao meu lado na cama e fiquei observando-a dormir. Seu cabelinho
loiro despenteado enquadrava o rostinho rosado. Dormia tão calmamente que
me deixava também calma.
Encarei o quarto. Duvidava que o lugar fora arrumado por David.
Tinha aquele jeito simples e elegante que eu gostava tanto nas casas de Mr
Luft, mas que sempre havia relacionado a Mrs Luft.
Um bloquinho pequeno fora esquecido sobre a poltrona onde Mr
Luft dormia. Ergui-me sentindo o corpo doer e caminhei lentamente até ele.
Sentei-me com ele entre os dedos. Sentia comichões de curiosidade, mas
sabia que não deveria ler os pensamentos secretos de David.
— Ele não está aqui. — Falei com meus botões. — E ele disse que
um dia me deixaria lê-lo.
Eu espiei a primeira página. Falava sobre Mrs Luft e a falta que ela
fazia. Algumas páginas seguintes eram sobre o emprego e também sobre a
falecida esposa – suas palavras sobre ela eram tão carinhosas que era claro
que realmente a amara. Continuei folheando, lendo por cima sem me ater a
detalhes, até que chegou na primeira parte em que fui mencionada.
Surpresa eu não estava. Era aquilo que buscava quando abri o bloco
e sabia que encontraria. Seus primeiros comentários sobre minha pessoa
carregavam um ar de dúvida e censura, mas censurava não a mim e sim seu
sentimento. Parecia não querer se apaixonar de novo e tinha medo de que o
que sentiu por mim quando me viu, passasse de atração.
Depois dessa folha, muitas outras tratavam sobre mim. Algumas
eram mais agressivas, como se eu fosse a culpada por fazer todos as
lembranças dolorosas voltarem, mas muitas falavam sobre seus sentimentos,
sobre o que eu o fazia sentir. Palavras tão doces, tão carinhosas e até mesmo
lascivas.
“Como eu me sinto confuso quando estou perto dela. Não que ache
que seja uma coisa ruim, há muito que compreendi que o que sinto não pode
mais ser desfeito. Sinto-me bem ao lado dela, quando ela age daquela forma
infantil quando me vê, quando suas bochechas ficam de um vermelho tão
deslumbrante quando conversamos, ou quando meus olhos vasculham seu
corpo tentando puxá-lo para mais perto de mim. Mas a culpa é minha de não
conseguir controlar meus olhos? Como posso me controlar perto dela? Eu me
forço ao máximo para não deixar meus sentimentos tão visíveis, mas eu, na
verdade, queria tê-la em meus braços.
Sendo sincero – porque devemos ser sinceros com nossos corações –
eu queria poder impedi-la de cair da escada todas as noites, só para ter um
motivo para levá-la a meu quarto, para deitá-la em minha cama e poder
observar seu corpo respirando inabalavelmente. Queria carregá-la no colo e
sentir seu perfume perto do meu rosto. Sentir sua respiração na minha pele.”
Minhas bochechas estavam tão intensamente vermelhas que me
obriguei a mudar de página, mesmo antes de acabar de ler. Os seguintes
desabafos não mudaram muito o foco, apenas alguns, onde ele se questionava
minhas ações para com ele.
“Por que ela sempre age dessa forma? Sempre fala daquela maneira
ingênua enquanto a coisa que eu mais queria que fizesse era me dar uma pista
do que sente por mim. Nossas conversas começam tão bem, eu começo a
achar que ela finalmente começou a gostar de mim, mas então ela se aborrece
e levanta a voz, e eu faço o mesmo, e acabamos brigando.
Por que sempre agimos assim um com o outro? Eu poderia tentar
acalmá-la, falar palavras carinhosas e fazê-la sorrir, mas algo nela me faz
querer continuar discutindo. E ela sempre parece querer me testar. Sua voz é
sempre desafiadora e sedutora, mas ela sempre se afasta quando penso que as
coisas estão indo bem.
Às vezes me sinto tomado de raiva, mas depois fico me perguntando
como posso sentir raiva dela.”
Passei a folha também sem terminar de ler. Ele escrevia muito e sua
letra era pequena e, sob a escassa luz que passava a cortina, ficava ainda mais
difícil de ler. Pulei para a parte referente ao incêndio e Miss Ellis.
“Machuca-me muito discutir com Samantha, é uma coisa que eu
evito ao máximo mas nunca nos falta oportunidade para brigar. Mas dessa
vez creio que a culpa tenha sido mais minha do que dela. Mas… como eu
poderia ter ficado ali ouvindo as coisas que dizia sobre Lillian? Não que eu
me importe com Lillian mais do que me importo com Sam, mas é por me
importar tanto com ela que fiquei furioso quando ela expôs suas suspeitas.
Por que Lillian incendiaria uma casa? Por que ela iria querer matar a
Samantha e o Charles? Não me parece coisas que uma pessoa faria, por mais
que estivesse tomada de fúria. Era tão impossível ver Lillian tentando
machucar Charles e Sam que eu não consegui prestar atenção no que
Samantha dizia. Não era possível, deveria ser tudo mentira.
O incêndio quase retirara a vida das pessoas que mais amo e
acreditar que Lillian era a culpada, só faria com que eu também
enlouquecesse.
Eu prefiro não acreditar no que Samantha diz para poder respirar
aliviado. Eu não estou nenhum pouco tranquilo, mas, pelo menos, não me
desesperei. Por mais que eu queira acreditar nisso, ainda devo ficar de olho
em Lillian e tentar evitar qualquer coisa que possa acontecer.”
Passei para a última folha que tinha sido usada.
“Eu deveria me censurar pelas lágrimas que estou derramando, mas
não vou fazê-lo para poder finalmente aprender. Por minha culpa, Samantha
foi embora. Eu poderia ter me empenhado mais para não deixá-la ir, mas
como eu poderia dizer não? Eu deveria ter dito tudo o que sentia, mas seria
voltar atrás na nossa discussão do dia anterior. Seria largar todo o meu
orgulho… Mas eu me livraria do orgulho, livrar-me-ia de tudo para tê-la em
meus braços, para fazê-la parte de minha família.
Eu sei que ela provavelmente irá me odiar para sempre – e por isso
nunca vou me perdoar – mas eu queria tanto poder dizer o que sinto, poder
finalmente lhe contar sobre meu amor. Eu poderia ter feito-a aceitar no
momento que a pedi em casamento, mas novamente o orgulho me subiu a
cabeça – maldito orgulho que sempre me separava dela.
E agora eu não sei onde está. Não sei aonde ir para encontrá-la. Não
sei se irei voltar a sorrir se não vê-la novamente…”
Uma lágrima solitária descia pela minha bochecha. Sequei-a
rapidamente e fechei o bloquinho. Assustei-me com David que me encarava
sentado na cama.
— Senhor! — Soltei o bloquinho como se quisesse me livrar das
provas.
— Não deveria ficar andando. Tem que descansar… Disse que o
parto foi difícil.
— Eu sei. — Respondi baixinho. Ele me ajudou a me levantar e a
deitar na cama. Colocou a bandeja do café da manhã em meu colo. Pegou
Juliet carinhosamente nos braços e se sentou ao meu lado.
— Espero que goste. — Comentou encarando a bebê.
— O senhor estava aqui há muito tempo?
— Algum tempo sim. Não sabia que em meu bloco havia tantas
coisas divertidas ou emocionantes. Na maioria delas eu não estava rindo igual
à senhorita quando leu.
Eu enrubesci. Coloquei a torrada na boca e me ocupei em mastigá-la
para não ter de falar. O silêncio só durou o tempo de comermos.
— Acho melhor a senhorita ficar algum tempo aqui até ter se
recuperado totalmente do parto. — Ele me entregou a criança e pegou a
bandeja. Não demorou muito para levá-la até a cozinha e voltar.
Sentou-se a minha frente dessa vez. Retirou um embrulho do bolso e
o mostrou para mim.
— Você esqueceu. — Retirou o colar de pedra verde. Colocou-o
delicadamente em meu pescoço.
— Não esqueci. Eu só não o queria mais.
— Por quê? Ele fica lindo em você.
— Ele só me trouxe azar. Seu noivado, Lillian, Gareth… E a senhora
que me presenteou disse que ele me ajudaria a achar a felicidade e o amor da
minha vida. Mas quando saí de sua casa, eu não queria mais pensar no amor
da minha vida.
— E agora quer pensar?
Encarei-o fixamente. Senti tímidas lágrimas escorrerem pela minha
face. Se eu não estivesse segurando minha filha, teria me jogado em seus
braços e declarado todo meu amor por ele.
— Por que está chorando? — Ele riu.
— Estou chorando porque fui muito infantil todo esse tempo e fiz o
senhor sofrer.
Ele ficou sério. Aproximou sua cabeça da minha e selou seus lábios
nos meus. Aquele beijo poderia ter durado para sempre e eu teria ficado ali,
entregue a seu toque, para sempre. Mas então, ele afastou a cabeça da minha,
apenas alguns centímetros para poder me olhar nos olhos.
— Quando eu estive com o seu colar, eu só conseguia pensar na
senhorita. Espero que ele funcione comigo, já que com você não foi muito
eficaz. — Abriu um sorriso sedutor.
Foi a minha vez de sorrir e colar meus lábios nos dele.
— Quer casar comigo, Miss Samantha Evans? — Sussurrou, seus
lábios a centímetros dos meus.
— David…
— Por favor, não me diga que irá recusar.
— Não é isso… Mas nós precisamos conversar antes disso. Para o
senhor ter certeza do que quer. Eu preciso lhe contar meu passado, senhor.
Para que possa me entender.
— Mas eu já sei…
— Não! Tudo. Eu não quero guardar segredos do senhor, não quero
que no futuro apareça algo que possa estragar nossa vida. Como Gareth… Eu
sei sobre seu passado, mas o senhor pouco sabe do meu e o que sabe deve ser
muito confuso. Só quero que tenha certeza sobre mim.
Ele suspirou e concordou com a cabeça. Eu inspirei com força,
juntando energia e serenidade para contar minha história. Então, narrei tudo,
desde a morte de mamãe, os dias com papai e Heloíse, os anos de escola,
minha volta para casa, meu noivado. Narrei também a época que cheguei a
Winterfields, meus dias com Charles, meus sentimentos por David, o que
lembrava ter sentido em nossa noite juntos, os motivos para esconder o bebê,
o sequestro, o incêndio.
David me encarava assustado depois que finalmente parei e
descansei meu coração. Algumas lágrimas desciam pela minha pele, mas eu
não me importava com elas.
— Eu não quero que sintam pena de mim. Não quero que sofram
com o que passei, ou olhem para mim como se eu fosse um artigo raro só por
ter um passado triste e uma história que comove. Todas as minhas decisões e
segredos foram para tentar não sofrer novamente e não fazer com os que
estão a minha volta sofram também. Eu não queria voltar ao zero.
— Eu não sinto pena, meu amor. — Beijou a ponta de meu nariz e
secou as lágrimas com os polegares. — Claro que fico triste porque teve que
passar por tudo isso, mas sou apaixonado pela mulher forte que todo esses
anos criaram. Mas agora pode ter uma vida feliz e esquecer todos que já a
fizeram sofrer.
— Eu o amo, senhor.
— Eu também a amo, Sam. Amo muito.
— Aceito. — Virei a cabeça rapidamente para baixo, mas logo a
subi novamente. — Eu aceito me casar com o senhor.
Eu concordava com a cabeça, mas também com toda minha alma,
com todo o meu ser. Ele me envolveu em um abraço carinhoso, tomando
cuidado com nossa bebê em meus braços, e tocou meus lábios com os seus.
Senti seu corpo se entregando a mim, e me entreguei a ele também.
David fez questão que eu esperasse mais alguns dias antes de sair da
cama. Só então minha felicidade ficou completa, estava indo finalmente ver
Charles.
— E o que vamos falar? — Comentei já na carruagem voltando para
casa.
— Vamos falar que iremos nos casar. — Ele riu. Sua expressão era
tão infantil quanto a minha. — O mais rápido possível.
— Mas… — Ele me beijou antes que eu pudesse continuar.
— Todos já devem estar esperando por isso, querida. Não vão
estranhar nosso casamento.
Franzi o nariz, mas logo sorri. Sabia que ele estava certo, tinha quase
certeza que era aquilo que todos ali mais queriam.
— Senhor. Por que o senhor queria se casar no inverno?
— Bem. Meu primeiro casamento foi no inverno e eu queria que
esses ares frios me trouxessem sorte no próximo passo que tomaria na vida.
Acho que trouxeram.
Sorri de lado e aninhei a cabeça em seu ombro.
Havíamos alcançado as terras de David e quase chegávamos à casa
quando avistei Liza ao longe, sentada sobre um banco de pedra entre algumas
árvores. Não estava sozinha, alguém lhe fazia companhia, mas, naquela
distância, eu não conseguia identificar.
— Espere só um pouquinho. — Fiz um gesto para o colcheiro. Ele
parou a carruagem. Eu desci com Juliet no colo, David não me acompanhou,
sabia que eu queria falar com Anneliza e contar as novidades.
— Pensei que odiasse franceses. — Comentei logo atrás dela e já
identificando o corpo malhado de meu amigo.
Liza e Don se separaram tão rapidamente que eu me assustei com a
agilidade. Ambos estavam intensamente vermelhos e aquilo me fez rir.
— Não é o que você está pensando. — Anneliza começou.
— Claro que é, Liza. — Don riu.
— Eu sei que é. — Ri também. — Fico feliz que tenham feito as
pazes de uma briga que nunca existiu. E também que estejam se dando tão
bem…
— E você e Mr Luft? — Perguntaram praticamente em um uníssono.
— Digamos que estamos bem até demais… — Sorri. — E que agora
temos mais um anjinho para cuidar.
Olhei para minha filha. Liza e Don se levantaram para ver o bebê.
Os olhos de Liza faiscavam de felicidade, Don parecia um pouco
constrangido.
— Daqui a pouco pode ser nós a termos uma criança. — Ele riu.
Anneliza lhe deu um tapa no ombro.
— Daqui a pouco? Já está correndo? — Ela tinha o cenho franzido,
mas ria. — E Charles já sabe das boas novas?
— Ainda não. Estamos indo contar para ele.
— Então vá lá. — Ela alargou o sorriso. — Não sabe o quanto ele
quer vê-la.
— Não sabe o quanto quero vê-lo. — Despedi-me com um sorriso e
voltei para a carruagem.
Charles estava sentado em sua mesinha. Tinha giz de cera em mãos e
rabiscava algo.
— Seu talento me impressiona muito, meu bem. — Falei atrás dele.
Ele soltou o giz, assustado, virou-se para mim e pulou para me
abraçar.
— Como está, querido? — Eu me ajoelhei a sua frente. Segurava as
lágrimas. Charles não parecia se importar se chorava ou qualquer outra coisa.
Agarrara-se ao meu pescoço e eu podia sentir seu rosto úmido no meu.
— Pensei que nunca mais a veria.
— Eu não iria deixá-lo. Por nada nesse mundo iria deixá-lo.
— O papai sabe que está aqui? Ele pode ficar zangado de novo.
— Na verdade, fui eu que fui buscá-la. — David entrou no quarto.
Trazia Juliet consigo.
— Quer dizer que Sam vai voltar a morar aqui. — Os olhos da
criança se iluminaram.
— Mais do que isso. — David se ajoelhou junto a nós. Mostrou a
criança para Charles. O garoto ficou encarando o bebê. Era um misto de
felicidade e dúvida. — Temos mais duas integrantes na nossa família. Essa é
Juliet, sua irmã.
— Quer dizer que vão se casar? — Ele parecia não acreditar. — Eu
vou ter uma nova mamãe e uma irmãzinha?
— Sim, meu amor. — Ele voltou a me agarrar pelo pescoço.
— Vamos ser uma família muito feliz e você não irá se sentir
sozinho novamente. — David sorriu para o filho.
Charles se desprendeu de mim. Ainda chorava de felicidade. Andou
até a mesa, pegou o giz de cera e desenhou mais alguma coisa. Pegou a folha
e trouxe para nós vermos. Era eu, David, Charles e Juliet.
Não consegui mais evitar de chorar. David me deu um beijo na testa
e outro em Charles.
— Seremos uma família bem feliz. — Sorri. Juliet abriu os olhinhos,
encarou o irmão e pareceu sorrir também.
Alguns anos depois…

A manhã estava bastante clara, mas fazia um frio delicioso. Charles


corria com Juliet pelo caminho de pedrinhas, ambos às gargalhadas.
— Cuidado para não caírem. — Alertei, mas sorria com a felicidade
das crianças.
Mais de dois anos se passaram e nossa família crescia envolta por
uma maravilhosa felicidade. Enquanto seguia os dois, observava a paisagem
ao meu redor. As cores eram mais vivas, o jardim estava florido e só
ressaltava minha alegria.
Todos estavam bem também. Serafine entrava e saía de casa,
carregando sempre seu filho, ainda novinho, no colo. Liza não estava lá
naquele dia, fora visitar Don na cidade e demoraria um pouco até voltar.
Thomás cuidava com bastante atenção do pomar e parecia dançar enquanto se
movia pelas árvores cheirosas.
Sorri. Aquele ar matutino era restaurador. Sentia uma energia nova
tomando meu corpo. Então, essa energia foi substituída por duas fortes mãos,
que enlaçaram minha cintura.
— Chegou mais cedo. — Não precisava me virar para saber que
David sorria para mim. Ele passou sua cabeça pelo meu ombro e beijou
minha bochecha.
— Sentiu minha falta?
— Nenhum pouco. Mas fico feliz que esteja aqui. — Ri, zombando
de seu comportamento romântico.
Ele deitou os olhos nas crianças e parecemos compartilhar o mesmo
sentimento de alegria.
— Esses pequenos crescem muito rápido. E Charles é um bom irmão
para Juliet, nem parece que já está para completar quatorze anos.
— Continua sendo uma criança maravilhosa. Mas acho que logo não
vou poder chamá-lo mais de criança. Já está quase passando da minha altura.
Charles se aproximou com a irmã.
— Mamãe, papai. — Juliet vinha gargalhando.
Peguei a criança no colo, mas David a retirou rapidamente de mim.
“Seu braço, querida.”
— Agora não vai deixar nem eu carregar minha filha? — Juliet
voltou para meus braços. Ele me encarou com olhos preocupados, mas não
discutiu. “Eu estou bem, não se preocupe.”
Charles nos olhou fixamente talvez se recordando da época que era
ele a subir em meu colo.
— Eu estava pensando — Afaguei os longos cabelos do garoto. Ele
estava bem mais parecido com o pai. — Por que não fazemos um piquenique,
já que o pai de vocês nos presenteou com sua ilustre presença?
— Vamos! — Charles pegou Juliet de meu colo. Era um ótimo
irmão, tão bom que nem confiava Juliet mais a mim. Queria estar com a
irmãzinha o tempo todo.
Foram os dois em direção à cozinha, arrumar as coisas para o
piquenique.
Mr Luft enrolou minha cintura com seus braços. “Gosto do seu
sorriso.” Sussurrou em minha orelha.
— Gosto de estar com você. — Respondi alargando o sorriso.
Pregou os lábios rapidamente no meu.
Eu estava feliz. Não só por estar casada com David, não só por poder
ficar com Charles sempre que quisesse, não só por ter uma linda filhinha que
crescia cada dia mais radiante. Estava feliz por poder ser quem eu era, libertar
meu eu e falar tudo aquilo que me inquietava. Estava feliz por não ter mais
que sofrer as injustiças impostas pelo mundo desde meu nascimento, nem ter
que guardar segredos. Estava feliz por estar envolta por pessoas que me
amavam e me queriam bem. Estava feliz porque todos os outros também
estavam.
Mas, claro, estava feliz por ter me casado com David. Feliz por viver
com Charles e vê-lo crescer. Feliz por ter uma linda garotinha, a qual irei
cuidar e educar, e não farei com que passe pelo mesmo que eu.
Estava feliz.
Apalpei o colar verde que pendia em meu pescoço. Feliz.

Você também pode gostar