A Governanta - A.S Victorian
A Governanta - A.S Victorian
A Governanta - A.S Victorian
A. S. Victorian
Copyright @ A S Victorian
Acordei com alguém afagando meu ombro. Era a criada, uma moça
baixa e de cabelos castanhos cuidadosamente trançados e presos em um
coque. Chamava-se Amélia e seus olhos também estavam vermelhos de tanto
chorar.
— Mademoiselle Evans. — Ela sussurrou carinhosamente quando
despertei. — Dormiu aqui desse jeito?
Abri apaticamente os olhos e estudei onde dormira. Meu ombro se
apoiava na parede e eu estava caída em um canto do quarto, bem longe da
cama onde havia me deitado. Neguei com a cabeça e ela notou que eu estava
atordoada demais para entender qualquer coisa.
— Seu pai quer que a senhorita jante com ele.
— Não estou com fome. — Respondi secando os olhos. Minha
barriga roncou, mas eu a ignorei. Estava fraca e sem ânimo para qualquer
coisa.
— Minha querida, — Amélia tentou sorrir, mas seu sorriso foi
forçado e não conseguiu ser acolhedor. Percebi que dividíamos as mesmas
dores e me senti menos solitária. — foi uma coisa horrível a morte de
Madame Evans, mas a senhorita não deve ficar sem comer. Tem que ficar
forte e continuar sendo aquela menina alegre que dava vida a essa casa.
— Eu não estou com fome. Eu quero ficar só e chorar até poder me
juntar a minha mãe.
— Não diga isso, Mademoiselle! Uma coisa muito horrível para uma
criança tão pequena desejar. Deve ficar forte e bem! A senhorita verá que
tudo vai dar certo.
— Minha mãe não está aqui. Não vai dar certo! — As lágrimas
voltaram a escorrer. Ela me abraçou carinhosamente e beijou minha
bochecha. Nem papai, nem Heloíse gostavam quando os criados “se
misturavam com os senhores da casa”, mas mamãe sempre me ensinara a
gostar de todos e considerá-los parte da família, então correspondi ao seu
abraço.
— A senhorita está queimando em febre. — Ela se afastou
assustada. Seus braços fortes me ergueram com habilidade e me levaram de
volta para a cama. Fui coberta com carinho e meu travesseiro afofado do jeito
que eu gostava. — Vou pedir para seu pai chamar o médico e vou subir com
seu jantar.
Amélia saiu do quarto e eu voltei a me deitar. Estava cansada por
conta da febre, mas não queria voltar a dormir e sonhar novamente com
mamãe. Não queria acreditar que ela havia partido, mesmo sabendo que eu
teria que me convencer mais cedo ou mais tarde.
Fechei os olhos e cochilei mais um pouco. Quando acordei, Heloíse
estava parada junto à porta com a bandeja do jantar.
— Uma criança tão mimada que fica doente por coisas
desnecessárias. — Foi seu comentário assim que notou que eu estava
acordada. — Não preocupe seu pai com seus problemas, ele já tem os dele.
— O que houve com a mamãe? — A pergunta saiu como um sopro,
mas ela escutou bem. Colocou a bandeja em meu colo e se sentou na minha
frente.
— Sua mãe foi encontrada morta enquanto se lavava.
— Eu quero ficar junto com ela.
— Ela foi uma boa pessoa e está em um bom lugar. Se a senhorita
morresse, não ficaria com ela, iria para um lugar ruim pagar pelos seus
pecados.
— Por que a senhorita não gosta de mim?
— Eu gosto de você, Samantha. E por gostar que me preocupo e
quero lhe educar da melhor forma possível para que seja uma dama quando
crescer. Vou pedir para o médico vir amanhã lhe ver. Agora coma o seu
jantar e não fale mais de sua mãe para o seu pai. Ele está sofrendo muito com
isso e não vamos preocupá-lo mais.
— Sim, Mademoiselle Tissot.
— Ah! — Ela exclamou depois de se levantar e estar quase
atravessando a porta. — Agora que a sua mãe não está mais aqui, a senhorita
sabe que as coisas mudarão, não sabe? Então é bom passar a se comportar se
não quiser ser castigada. E dessa vez não vai ter ninguém para me fazer ser
mais tolerante com a senhorita.
— Sim, Mademoiselle Tissot.
Ela sorriu de lado. Seus olhos verdes brilhavam, eu sentia aquela
raiva com a qual estava tão acostumada. Eu sabia que as coisas seriam piores
para mim dali em diante.
O mês que se passou foi pior do que os primeiros sete dias sem
mamãe. Se eu achava que meu sofrimento não aumentaria, estava muito
enganada. A proibição de papai se tornou regra, eu fui determinantemente
negada de sair de casa sob quaisquer circunstâncias. Até mesmo as idas para
a igreja foram afetadas.
Minha exclusão foi devastadora para mim, não estava permitida de
visitar Isa e Don e aquilo me entristecia. Eu não tinha ninguém com quem
brincar ou passar os dias e detestava me sentir tão solitária.
Pelo menos, nesse longo tempo, Heloíse se tornou menos presente
na minha vida. Ela sempre estava ocupada fazendo inúmeras outras coisas
que não me diziam respeito, e se preocupar comigo ficou em segundo plano.
Papai também pouco apareceu em casa, então o que me restou foi passar o
tempo que podia com os criados.
Não que eu reclamasse, pelo contrário, a companhia deles me
alegrava muito, quase tanto quanto a de mamãe. Mas nós não podíamos ficar
juntos todo tempo, e eu sentia falta de ter um pai que realmente se
preocupasse comigo. Eles gostavam muito de mim, mas não chegariam ao
amor que era esperado de uma mãe ou um pai, ainda mais para uma criança
que havia acabado de perder um deles.
A primeira visita que recebi foi de meus amigos muito tempo depois.
Eles não queriam ter esperado tanto tempo para nos reencontrarmos, mas as
coisas nem sempre eram como planejávamos, então a visita teve que ser
prorrogada para aquela data.
Naquele dia, Heloíse me fez descer até a sala e me sentar
comportadamente no sofá por um bom tempo, enquanto os adultos
conversavam sobre assuntos entediantes. Don e Isa me encararam,
necessitando dizer algo, mas não arrumando palavras ou coragem. Eu
também não saí de minha apatia, mesmo meu estado de espírito tendo
melhorado um pouco em apenas vê-los.
— Por que não vão brincar lá fora? — Madame Roche sorriu para
nós três, notando o silêncio pouco comum entre nós. Meus olhos se ergueram
para minha governanta, tentando não demonstrar tanto interesse, mas
praticamente implorando para que ela deixasse. Heloíse sorriu delicadamente.
— Samantha não pode sair de casa. — Respondeu sem se alterar. —
Ela estava doente esses dias e não queremos que sua situação deteriore por
conta do tempo. Mas se as crianças quiserem, podem subir para brincarem no
quarto.
— Vamos brincar lá em cima? — Don não precisou nem que
falassem duas vezes, ergueu-se de um pulo. Isabele se levantou calmamente,
demonstrando toda aquela graça e educação peculiar a seu ser e que parecia
nenhum pouco presente no irmão.
Don me puxou pelo braço e me levou escada a cima. Eu estava
animada por reencontrá-los, mas minha animação foi consumida pela apatia e
eu nem pude demonstrar a felicidade que era eles estarem lá para me ver.
— Como você está, Sam? — Isa me abraçou com força logo que
entramos no quarto. — Está de verdade, porque eu não acredito nenhum
pouco no que a sua governanta fala. Nós queríamos ter vindo antes, mas
Mademoiselle Tissot não parecia nenhum pouco contente em nos receber.
— Sim. — Don fez uma careta. — Não sei como você consegue
aguentá-la. Imagino como ficou quando a sua mãe…
— Está tudo bem. — Cortei a tempo de impedir que entrássemos na
discussão mais evitada por mim durante todo aquele tempo. — Eu já estou
acostumada com ela.
— Sam… — Isa apertou o abraço. — Você está tão franzininha e
tão triste. O que foi?
— Ah, Isa. — Algumas tímidas lágrimas desceram pela minha face,
mas eu virei o rosto para que Isabele não visse. Porém, Don estava
exatamente na direção em que olhei e sua face se tornou séria. — As coisas
estão tão diferentes aqui em casa.
— Mas eles estão fazendo alguma coisa com você?
— Nada demais. — Voltei a encará-la, já que o olhar fixo e
preocupado do garoto me incomodava. — Eu estou bem de verdade. Só as
coisas que estão diferentes mesmo.
— Não acredito que seja apenas isso, mas irei parar de perguntar se
prefere assim. Mas você tem que prometer que vamos nos encontrar mais
vezes. — Ela riu.
Eu sorri de lado e concordei com a cabeça. Não gostava de mentir,
mas também não queria que eles se preocupassem ainda mais comigo.
Nós nos sentamos no chão e brincamos sem nos importar com as
várias perguntas que eu sabia que flutuavam na cabeça de meus amigos. Era
bom ter alguém ali para brincar comigo e era melhor ainda serem eles. Isa e
Don me faziam esquecer de Heloíse que estava no andar de baixo. Mas como
as coisas boas sempre acabam, aquela tarde também se findou.
Isabele desceu na frente minutos depois de sua mãe chamá-la. Don
ficou comigo mais um pouco no quarto. Ele se aproximou acanhado e abriu
os braços convidativamente. Envolveu-me em um abraço tão intenso e
reconfortante que eu deixei de lado a vergonha e qualquer convenção social e
chorei em seu peito.
— Vai ficar tudo bem. Você tem que aguentar só mais um pouco,
depois as coisas vão melhorar.
— Eu espero, Don. — Escondi o rosto em sua camisa. Era bom ele
ser maior do que eu, já que eu me sentia mais confortável em seus braços,
como se ele fosse mais velho e realmente soubesse do que estava falando.
Mas ele continuava tendo a minha idade, e nós continuávamos com apenas
seis anos.
Ele e eu sabíamos que nada que falasse iria me reconfortar, mas era
bom ver que estava pelo menos tentando. Nós dois sempre fomos muito
próximos e Don sempre me tratou como uma irmã mais nova. Não seria
diferente daquela vez.
Separamo-nos assim que ouvimos passos pelo corredor. Sequei as
lágrimas e o encarei no fundo de seus olhos.
— Até mais, Don.
— Até mais, Sam. — Ele apertou minhas bochechas com força. —
Quando te ver de novo, quero ver um sorriso, viu garotinha.
— Está bem. — Tentei sorrir. Ele ficou sério por um instante, suas
bochechas enrubesceram, e eu o encarei sem entender o porquê da mudança.
Então, ele colou rapidamente a boca na minha e saiu correndo do quarto antes
mesmo de eu entender o que havia acontecido.
Meus olhos estavam fixos na porta quando Heloíse entrou e
perguntou porque eu estava tão vermelha. Apenas neguei com a cabeça e a
segui para o andar de baixo.
Demoraram anos para eu reencontrar meus amigos.
Heloíse fez da minha tristeza sua nova diversão. O tempo que ela
ficara longe de mim desde a morte de mamãe, foi compensado pelos minutos
que passou me ensinado a ser uma boa dona de casa e esposa. Se minha vida
já estava ruim dando aula para Maurice, piorou infinitamente sendo ensinada
por minha madrasta.
— Quero ver quanto tempo essa criança vai aguentar. — Paulette
comentou com a voz cansada pelo tempo, enquanto servia a mesa na cozinha.
Amélia e Alana estavam sentadas ao meu lado e me encaravam com
olhos curiosos sobre as torradas que comiam.
— Eu estou bem. — Respondi deturpando um pouco a realidade
para não preocupá-las, mas todos ali estavam cansados de saber que não era
verdade. — Eu fico pensando como será quando me casar e sair daqui.
— Espero que seu esposo seja bom pra a senhorita. — Amélia
finalmente comentou. — E que seja muito rico e lhe encha de coisas caras e
bonitas.
— Eu não me importo com isso. — Respondi enquanto um sorriso
tímido se dobrava em minha face cansada. — Não preciso de coisas caras
nem bonitas, só quero ter um pouco de paz e quem sabe alguém que se
importe comigo.
— A senhorita vai se casar com um homem que lhe dará muito
amor! — A pequena Alana me abraçou pela cintura. Eu correspondi seu
abraço e preguei um beijo em sua cabeça.
Amor. Eu não acreditava que um dia encontraria aquilo. Não que
não fosse uma mulher romântica, sonhando em encontrar o príncipe
encantado dos contos de fadas e ter uma vida feliz, mas desde sempre soube
que a vida era o contrário de um conto de fadas e que eu nascera para encarar
minha existência sem amor. Eu não esperava que um casamento arranjado
envolvesse tanta afeição, eu só queria encontrar a paz que havia perdido há
muito tempo. Porém, respondi afirmativamente ao comentário da criança.
A porta da cozinha foi aberta e Heloíse entrou aos saltos, o rosto
vermelho de raiva e as sobrancelhas franzidas sobre os olhos claros. Ela
queria saber o porquê da minha demora. Eu apenas tive tempo de engolir o
último pedaço de queijo e me levantei obediente.
Ela me fez voltar para o quarto para me trocar. Havíamos sido
convidadas a passar a tarde na casa de um nobre no outro lado da cidade e eu
deveria me arrumar imediatamente. Amélia me ajudou a vestir a crinolina e
aperta as cordas do corset. O vestido que minha madrasta comprara –
exatamente para aquele tipo de situação – era grande e pesado. Eu não tinha
prática para andar com a gaiola de aço, mas tive que fingir já estar
acostumada há anos com aquilo e me manter ereta e plácida.
O passeio na carruagem foi longo e entediante. Os cavalos pareciam
se arrastar, mas eu sabia que era apenas para que os homens que andavam
pela rua me olhassem e perguntassem quem era aquela moça na carruagem
dos Evans. No veículo aberto, eu não tinha como me esconder e o máximo
que consegui para abafar meu constrangimento foi abaixar um pouco o
chapéu e abrir o leque, o que não foi algo muito inteligente, já que todos se
inquietaram mais ao verem a “figura misteriosa”.
Aquela tarde seria a minha estreia na alta sociedade. Eu desaparecera
por longos anos, e todos queriam saber como estava a primeira filha de
Monsieur Evans. Eu não passava de um produto exótico na vitrine de alguma
loja.
Heloíse estava radiante ao meu lado, com certeza mais alegre em me
ver tão nervosa, enquanto ela mesma não tinha mais que se preocupar com os
comentários a seu respeito. Depois de tanto tempo, a governanta que casou
com o seu senhor não era mais um assunto tão interessante, muito menos
agora com a minha presença ali.
A mansão onde paramos era imensa. Tão grande quanto a casa de
papai. Construída no estilo em vigor da época, que encantava os franceses,
mas apenas me fazia franzir o nariz. Nós fomos levadas por um quintal
grande e depois por um vestíbulo apertado demais para a minha saia. Mas me
equilibrei o melhor que consegui e, antes que eu percebesse, já estávamos no
quintal onde haviam arrumado pequenas mesas redondas e diversas cadeiras.
Ali estavam mais pessoas do que eu esperava e aquilo me deixou ainda mais
constrangida.
Sentei-me em uma cadeira vazia, longe de todos e, depois de
cumprimentá-los, calei-me e me entreguei a minha insignificância. Eu sabia
que às vezes conversavam sobre mim, mas eu estava mais ocupada
observando o gato rechonchudo que corria entre os arbustos do quintal e, de
vez em quando, colocava a cara malhada por entre as folhas e me encarava
com um ar divertido.
Seus movimentos pareciam ser voltados a mim, como se percebesse
que apenas eu notava sua presença desastrada por ali. Depois de se cansar de
correr, aproximou-se de mim e puxou minha saia com suas patinhas,
querendo carinho. Eu o peguei no colo e passei a afagar sua cabeça redonda.
— Ah! Esse é o Sr Ratattoulie. — A dona da casa comentou e eu
finalmente voltei meus olhos para eles. Heloíse parecia controlar sua raiva e o
restante das pessoas me olhava com um misto de diversão e pena, como se eu
não passasse de uma criança sentada entre os adultos. — Ele parece gostar da
senhorita.
Deixei o gato no chão e abaixei o olhar para minhas mãos, sentindo
vergonha por estar ali, onde definitivamente não era meu lugar. Havia um
rapaz, com certeza o herdeiro do lugar, que me olhava com mais curiosidade
do que os outros, como se eu fosse a coisa mais interessante do mundo.
— Por que não você não vai com Mademoiselle Evans até a praça na
rua de baixo? Ela não parece conhecer muito esse lado da cidade. — O dono
da casa empurrou levemente o ombro do filho na minha direção. O rapaz se
ergueu com o rosto sorridente e estendeu a mão para mim.
Eu ignorei sua mão, não por falta de educação, mas porque as
minhas estavam sujas com a terra em que o gato havia se metido. O rapaz não
me disse seu nome, ou eu que não estava prestando atenção quando fomos
apresentados.
Ele me levou por um caminho pela porta dos fundos e saímos em
uma pequena pracinha deserta. Ao centro, uma fonte com uma escultura em
estilo greco-romano jorrava água para os lados e tornava o lugar um pouco
mais interessante.
— Quer dizer que já começou a estação da caça a um marido? —
Foi a primeira coisa que perguntou. Eu, involuntariamente, franzi o cenho,
aquela não era uma boa técnica para puxar assunto. Ele caminhava atrás de
mim e eu ouvia sua respiração calma e seus passos largos.
— Não é uma caça.
— A senhorita não parece tão interessada assim no assunto.
— Mas estou. — Afinal, é minha vida que minha madrasta está
decidindo. — Mas acho que a conversa poderia ir para outra direção.
Eu me sentei na fonte e encarei a água fixamente. Meu reflexo
estava ali, sério, e não demorou para o do rapaz se juntar a ele. Ele parecia
interessado em me observar, enquanto eu buscava apenas um jeito de sair
dali, ou fazer o tempo passar mais rápido e Heloíse aparecer para irmos
embora.
— Do que a senhorita gosta?
— Eu gosto de ler. — Respondi sem exitar. Ergui meus olhos de
volta para ele e notei seu sorriso de lado.
— Então é uma moça que gosta dos romances. O que gosta mais
neles?
— Talvez a visão do amor que se encontra neles. — Eu havia lido
sobre muitos gêneros e temas, mas preferi que ele pensasse que era uma
daquelas moças sonhadoras sempre ocupadas com devaneios e ingenuidades.
— Acha que todos os rapazes são iguais àqueles personagens?
— O senhor lê romances?
— Nunca os li, apenas ouvi falar. — Coçou a cabeça, tentando se
manter ainda guiando a conversa. — Eu leio livros de Filosofia e dos grandes
líderes, não espero que a senhorita conheça sobre eles.
— Sim, uma dama como eu não deve ler essas coisas, não é mesmo?
Damas como eu não entendem esse tipo de livro. Além do mais, as pessoas
não gostam de ideias liberais.
— Não era o que eu quis dizer. — Sua face acerejou. — Mas acho
que é melhor para as damas lerem contos de fadas, ou romances. Nada que as
preocupem demais.
— Hum. — Concordei com a cabeça e virei o rosto para o outro
lado. Como fui parar naquela praça com um rapaz que achava que mulher só
servia para sonhar com amor?
De súbito, seus dedos alcançaram meu pescoço e passearam para
cima e para baixo. Eu congelei. Meus pelos eriçaram com o toque gelado e
minha respiração parou. O que ele estava fazendo? Com certeza não
conversara com muitas senhoritas para saber que aquilo era errado.
“Se você quiser, podemos começar um romance dos seus livros.”
Sua voz se aproximou da minha orelha e eu senti seu hálito fresco. Virei meu
rosto para ele e sorri de lado, escondendo todo o meu desprezo e tentando
pelo menos dar tempo para ele retirar o que acabara de falar.
Ele poderia ser um bom rapaz, e talvez eu devesse dar mais uma
chance e ver se chegávamos a algum lugar. Afinal, eu teria que me acostumar
com gracejos se quisesse me casar logo e sair de casa. Mas dentro de mim eu
não estava nenhum pouco inclinada a aceitar aquela situação.
O rapaz segurou minha mão entre seus longos dedos e a beijou.
Como percebeu que eu não recuei, beijou-a novamente, mas subindo alguns
centímetros. Eu me mantinha estática, controlando meus pés para não
correrem dali.
— Por que não fala alguma coisa, Mademoiselle Evans?
— Não tenho nada o que falar.
— Então posso resolver esse silêncio com outra coisa. — Ele foi se
aproximando de mim, mas eu recuei antes que seus lábios tocassem os meus.
Quando dei por mim, eu estava em pé, rindo, e ele encharcado dentro da
fonte.
A graça teria continuado, se não fossem as unhas de Heloíse que
agarraram meu braço e me forçaram a me calar. Ela me obrigou a me
desculpar, mesmo a culpa não tendo sido minha, e me levou imediatamente
de volta para casa. O percurso foi tomado por um silêncio pesado e
constrangedor, já que eu tentava não rir com a lembrança da cena sob o olhar
de censura de minha madrasta.
— Não cansa de envergonhar sua família? — Ela indagou raivosa
assim que entramos em casa.
— Não me culpe por algo que não é minha culpa.
— Não me responda!
— Então não me faça perguntas.
Heloíse inalou ruidosamente e cerrou os punhos. Eu me encolhi
esperando meu castigo, mas ele não veio. No lugar, ela apenas me mandou ir
para meu quarto e eu a obedeci sem pestanejar.
Nem papai, nem Heloíse imaginaram o quanto seria difícil arrumar
um noivo para mim. Não que os rapazes não se interessassem quando me
viam, mas eu sempre dava um jeito de desencorajá-los, seja bocejando em
meio às conversas, por falta de interesse em qualquer assunto abordado; seja
lendo qualquer coisa que estivesse a mão, ou que eu levasse escondido dentro
do vestido, e me desligando de tudo; seja não demonstrando interesse nos
gracejos dos homens.
Mas depois de algum tempo, eles já conheciam minhas técnicas e me
avisaram do castigo caso eu repetisse qualquer uma delas. Era para me
comportar como uma moça interessante, bonita, delicada, mesmo nenhum
dos pretendentes me interessando.
Porque não, o comportamento invasivo dos homens não era errôneo,
mas sim meus modos. Eu novamente era o problema.
Os encontros seguintes continuaram com um padrão entediante. Os
rapazes de rostos parecidos entravam em minha vida em um piscar de olhos e
eram apagados da memória com a mesma velocidade. Muitas famílias me
consideravam uma moça sem graça, que se preocupava mais em estudar os
papéis de parede ou ler as lombadas que enfeitavam as estantes, do que
conversar com meu pretendente.
Porém um homem foi mais esperto do que os outros. Chamava-se
Gareth. Seus cabelos ruivos desciam longos pelo pescoço branco e findavam-
se a frente das orelhas em costeletas bem cortadas. Seus olhos faiscavam e
seus lábios raramente se contorciam em um sorriso, mas não se assemelhava
aos homens taciturnos e sisudos com quem eu já conversara. Parecia
interessado em meu desinteresse e inclinado a não desistir de estabelecer
comigo uma conversa que não se resumisse a duas falas.
Encontramo-nos pelo menos três vezes antes de conversarmos. Acho
que papai e Heloíse também notaram o interesse dele e passaram a me levar a
todas reuniões sociais que tinham certeza que o encontrariam. Passaram
também a pedir que eu mostrasse minhas habilidades ao piano, ou que
aceitasse o convite de algum dos nobres para dançar. Apenas para que Gareth
fosse cada vez mais cativado.
Nossa primeira conversa de mais de duas falas foi mais íntima do
que eu desejara. Havia me recolhido sozinha na sacada, para reclamar
livremente do corset que estava mais apertado e da saia que exercia um peso
desnecessário sobre minhas pernas. Ele aproveitou minha solidão, deslizou
pela cortina que escondia a entrada e me observou silenciosamente a
distância.
Eu fingi não notá-lo por alguns segundos, enquanto também o
estudava de canto de olho e me movia buscando uma posição mais
confortável para a vestimenta incomoda.
— Boa noite, Monsieur. — Cumprimentei, virando-me finalmente
para ele e inclinando levemente a cabeça.
— Boa noite, Mademoiselle Evans. — Aproximou-se a passos
vagarosos, como um predador se aproxima de sua presa. — O clima lá dentro
não agrada à senhorita?
— Não me importo com o clima lá dentro. — Retruquei medindo
minhas palavras e tentando não soar tão fria quanto parecia. Ele esboçou um
leve sorriso. — Eu só queria um pouco de ar fresco.
— Entendo. Está uma noite linda para ficar enclausurado em meio
ao rodar de saias. Aqui o ar é mais refrescante.
Concordei com a cabeça e me virei para apoiar no parapeito. Ele me
imitou e se apoiou ao meu lado, a centímetros de mim. Eu conseguia sentir
seu perfume forte e ouvir sua respiração calma, mas não dei sinal de ter
notado, já que mantive meus olhos presos ao jardim a baixo da sacada.
— Se entrássemos, dar-me-ia o direito a uma dança? — Indagou
com os pulmões cheios de ar. Seus olhos estavam fixos a frente, com uma
expressão séria, que tomei como embaraço.
— Essa noite não estou mais com tanta disposição para dançar. Mas
talvez em um próximo encontro.
— Pelo menos temos um motivo para nos encontrar novamente. —
Ainda encarava o horizonte. Então, inalou ruidosamente o ar e se virou para a
saída. — Esperarei nossa dança. Boa noite, Mademoiselle Evans.
— Boa noite.
Eu o segui com o olhar até se retirar. Quando me vi novamente
sozinha, maneei a cabeça para os lados, testando se ainda estava acordada.
Não sabia ao certo o que estava fazendo, mas, entre todos os rapazes aos
quais fui apresentada, Gareth parecia alguém com quem eu mais concordaria
em me casar. Era hora de eu aceitar de vez que aquele era meu destino e
facilitar as coisas.
Precisei de, pelo menos, dois dias para que todo mundo ali se
acostumasse com a minha presença e também para suficientemente conhecer
cada um. Escrevi uma carta para Don no segundo dia, contando todas as
minhas impressões e como todos me tratavam. Meus colegas eram em sua
maioria carinhosos e preocupados, como se instantaneamente tivessem me
inserido na família. Todos me acolheram bem, menos Anneliza, que me
tratava com repulsa e fazia questão de mostrar que não estava satisfeita com a
minha presença.
Já o dono da casa era diferente. Eu encontrava raras vezes com Mr
Luft e ele sempre me ignorava sem nem ao menos piscar. Sentia-me um nada
ao seu lado, mesmo que, no fundo de meu ser, acreditasse que eu não era a
motivação de sua conduta.
Charles era o contrário. Mesmo passando muito tempo juntos, ele
parecia não perder o interesse em mim. Todo dia cedo, esperava-me com os
olhos pregados à porta, como se temesse que em algum dia não fosse eu a
entrar por ela. Como não tive que esperar muito para perceber que algo o
incomodava, também cedi à curiosidade e passei a estudá-lo com extremo
interesse em todos os segundos que estávamos juntos.
Ele parecia se divertir estando ao meu lado, mas era sempre sério
como o pai. Preferi seguir as regras de Mr Luft nos primeiros dias, para testar
o terreno e ver até onde as dificuldades daquele lugar chegavam, não
mudando de imediato o que me inquietava tanto. Charles não era feliz, assim
como Mr Luft não o era, mas, pelo menos no caso do pequeno, eu pensava
saber ajudá-lo.
No terceiro dia, depois de acabarmos as atividades de manhã, peguei
a criança pelo braço e a levei de volta para o quarto. Ele não entendeu o que
estava acontecendo, mas não reclamou.
— Onde você guarda os brinquedos? — Indaguei deixando-o
sentado sobre o tapete.
— Os brinquedos? — Ele apontou uma caixa de madeira
abandonada em um canto. Apressei-me a pegar e derramá-la no chão. Os
brinquedos eram antigos e pareciam não serem usados há muito tempo, mas
fizeram os olhinhos do garoto brilharem. — Por que precisa deles, Miss
Evans?
— Eu estava pensando, nós passamos muito tempo estudando e você
merece um descanso. Então achei que seria divertido brincarmos um pouco.
— Papai não gosta quando brinco. Ele vai brigar.
— Não se preocupe com o seu pai, esse é meu método de ensino. Se
ele reclamar, eu conversarei com ele.
Charles parecia que começaria a chorar a qualquer instante. Não
estava preparado para aquilo, mas ficou imensamente feliz. Sentei-me ao seu
lado e brincamos até a hora de buscar seu almoço.
Deixei Charles continuar sua brincadeira quando ia descer para a
cozinha. Minha surpresa foi imensa ao encontrar Mr Luft no outro lado da
porta com a mão estendida prestes a abri-la. Assustei-me.
— Por que todos aqui fazem isso? — Comentei baixo para mim
mesma. Levei a mão ao peito, eu arfava assustada. Ele estava sério como
sempre, seus olhos me matariam se apenas um olhar conseguisse matar. —
Desculpe, senhor… Boa tarde.
— Eu fui até a sala de aula e não os encontrei lá. Poderia me dizer o
que faziam?
— Eu deixei Charles brincar um pouco antes do almoço, senhor. —
Fechei a porta atrás de mim para o garoto não ouvir. — Ele estava cansado.
— A senhorita me desobedeceu.
— Se o senhor acha que lhe desobedeci porque deixei seu filho feliz,
sim, eu lhe desobedeci. — Ergui a cabeça. Meus olhos chegavam a altura de
sua boca. — E me desculpe por falar isso, mas o senhor não pode fazer nada
agora.
— Você está em minha casa, não tem o direito de me desobedecer
ou de falar desse jeito comigo! — Esbravejou. — Muito menos de me dizer
como cuidar do meu filho.
— Tem razão em dizer que não tenho o direito, mas o senhor me
chamou para educá-lo e cuidar dele, e esse é o meu modo de trabalhar. Sei
que para o senhor parece errado, mas Charles é apenas uma criança e merece
se divertir também.
Ele ergueu as mãos, prestes a me agarrar pelos ombros e despejar
toda a sua fúria, mas se restringiu a fechá-las com força e abaixá-las.
— Vamos, continue o que iria fazer. Sacuda-me, grite, faça o que
quiser. Se acha que não estou acostumada com homens que tratam as
mulheres como brinquedos, está muito enganado. Se quer tanto “me ensinar
uma lição”, que faça isso logo.
— Espero que a senhorita não esteja se esquecendo que posso
mandá-la embora. E não me importo de fazê-lo em sua primeira semana. —
Sua voz enchera-se de ódio.
Senti meus olhos se escancararem. Passou pela minha cabeça a ideia
de voltar para a França e continuar morando com Gareth ou com meu pai.
Aquilo não era uma opção. Joguei todo meu orgulho para os ares e cedi.
— Não, por favor. — Supliquei baixinho. — Eu… não teria para
onde ir…
— Então me obedeça e se comporte como uma adulta.
— Entenda, não consigo ver Charles tão triste, senhor. Não fiz
porque quis lhe desobedecer, mas ele é só uma criança… Ele não devia se
sentir tão triste. — Desci os olhos mecanicamente para o chão e o encarei
com vontade.
— Ele não está triste! Está muito bem, e a senhorita não deveria
interferir. Só faça o seu trabalho.
— O senhor sabe que ele não está… — Ergui timidamente o olhar e
notei que sua expressão ficara ainda mais zangada. Como ele podia ignorar o
estado do filho? Eu não precisaria nem passar meia hora com ele para saber
que havia alguma coisa errada ali. — Dê-me algum tempo, meu senhor. Dê-
me um prazo para eu poder provar que meu método funciona. Se o senhor
não ficar satisfeito, pode me despedir ou fazer o que julgar ser correto. Mas
apenas lhe peço que me dê um tempo.
Ele pensou um pouco. Eu sentia seus olhos grudados em mim e
ouvia sua respiração alterada. Ele me vasculhava como quando nos
conhecemos. Envolvi meu busto com os braços e voltei a encarar o chão,
agora com mais vontade.
— A senhorita tem duas semanas apenas.
— Obrigada, senhor.
— Agora volte ao trabalho. Não a contratei para ficar parada
encarando o chão.
Concordei com a cabeça.
Deixei Charles almoçando com o pai. Era pouco antes do meio dia e
o sol iluminava o caminho que encontrava a porta dos fundos. O pomar era
grande, tomava ambas as margens do estreito caminho e as árvores formavam
dosséis sobre minha cabeça. O lugar era muito bonito sob aquela luz. Sua cor
verde reluzia criando mosaicos de luz nas pedras do chão. Segui a vereda e
fui andando, sentindo o cheiro das frutas e flores. Era de se estranhar eu não
ter conhecido aquele lugar antes.
Não andei muito até me deparar com a casinha pequena. As vozes de
meus colegas de trabalho chegaram até mim, deveriam estar todos lá.
Bati à porta timidamente, mas Constance veio me receber de
imediato. Ela parecia ainda mais alegre e com um ar jovial, estava realmente
feliz e aquilo me animou.
— Entre, entre. — Ela me puxou para dentro. — Agora podemos
almoçar.
A sala de jantar era na entrada. A mesa estava posta, mas ninguém se
sentava ao redor dela. Estavam todos na saleta de estar, conversando
alegremente e rindo alto. Liza falava sobre cavalos com Janet e Thomás.
Richard e Serafine se esconderam em um canto, os dois muito próximos um
do outro, trocando sorrisos apaixonados e carinhos. Eles pararam quando me
viram entrar. Sorri para todos e todos devolveram o sorriso para mim.
— Hora de almoçar. — Connie ordenou com as mãos na cintura. Os
outros reclamaram baixinho, mas se arrastaram até a mesa.
Era surpreendente o gosto da comida de Constance, tão boa, senão
melhor, do que a de Janet. Fiquei pensando porque não era ela que cozinhava,
mas não mencionei nada, Janet poderia ficar chateada.
Conversamos a refeição toda e depois dela também. Quando
voltamos para a salinha, meus colegas me encararam com olhos curiosos e
Liza foi a primeira a juntar coragem e perguntar:
— A senhorita vai ficar, não é? — Sua voz era eufórica e esperava
uma resposta positiva. Dei de ombros, não tinha certeza e não poderia dizer
nada até o final do dia.
— A senhorita tem que ficar. — Constance me censurou com os
olhos. — Você não sabe há quanto tempo Charles e Mr Luft sorriram pela
última vez.
— Eu sei que está tudo mudado desde o dia que cheguei. — Declarei
de cabeça baixa. Fechei meus olhos por segundos. — Mas eles seguiriam a
vida sem mim, além do mais, foi pouco mais de duas semanas. Não pode ter
causado tantas mudanças em algo que durou anos.
— Você sabe o quanto mudou. — Serafine bateu de leve em minha
cabeça. — E imagine isso a longo prazo? Estaria tudo novamente perfeito…
Os outros começaram uma discussão caótica de qual deveria ser
minha resposta. Nenhuma daquelas propostas via meu lado da situação.
Pensavam apenas em quanto as coisas para eles seriam melhor dali para
frente e como eu seria egoísta de partir.
— Por que não pensam em mim também? Vocês só falam em Mr
Luft, mas a vítima aqui sou eu. Ele me agrediu. Fui humilhada e ainda
querem que eu fique? — Falei já alterada.
Eles se calaram, olhando-me assustados. No fundo, todos nós
sabíamos que eu queria ficar, mas eu ainda precisava pensar muito sobre o
assunto. Por fim, Connie se levantou, acariciou meus cabelos e saiu.
— Nós temos esperança em você. — Liza comentou em tom de
segredo. — E depois, irá ser bom até para você, Sam… Espero que esteja
pensando com cuidado.
— Estou. — Sorri envergonhada pelo meu ataque. — Irei voltar e
meditar sobre o assunto. Logo comunicarei David e vocês sobre minha
decisão.
— Esperarei. — Ela sorriu largo.
Depois de me vestir, e bem mais acordada, fui direto falar com Janet.
A princípio ela riu, mas prometeu arrumar tudo até a hora do almoço.
— Mas você está tão animada e o encontro nem é seu. — Ela
comentou sorrindo para mim.
— Eu gosto de ver a felicidade dos outros. — Respondi também
sorrindo. — Já que parece que irá demorar para eu ter uma como essa.
— Não diga isso. — Ela colocou a mãozona em meu ombro. —
Logo, logo a senhorita arranjará alguém. Não se preocupe se tudo parece
muito difícil agora, as coisas se arrumarão em breve. Basta esperar mais um
pouco.
— Espero que esteja certa. — Concordei alegremente com a cabeça.
Enquanto esse dia não chega, só me basta sonhar.
Era sábado, passaria o dia com o pequeno Charles, esperando chegar
segunda-feira para retomarmos aos estudos. Eu sabia que teria que me
dedicar muito ao pequeno, para não dar chance de minha mente ser tomada
pela curiosidade do desfecho do pedido.
Levei o desejum para a criança como de costume. Ficamos
conversando por muito tempo e percebi que ele estava menos chateado
comigo depois de não ter achado graça do tombo de Miss Ellis. Passamos boa
parte da manhã colorindo e fazendo cócegas um no outro.
Quando sentei para ler sua história favorita, fiquei pensando no
quanto era bom estar com Charles. Ele me deixava feliz. Sentia uma ligação
tão forte com o pequeno que a tomei pelo sentimento de uma mãe por um
filho. Era tão intenso que eu sabia que não me cansaria nunca de ficar ao seu
lado e fazê-lo rir.
E teria ficado, se Serafine não tivesse entrado no quarto anunciando
que levaria Charles para tirar as medidas para as roupas novas.
— Vão ter terminado até a hora do almoço? — Perguntei mordendo
o lábio.
— Provavelmente. — Ela revirou os olhos pensativamente. — Por
quê?
— Curiosidade. — Sorri largo. Serafine me mandou um olhar
desconfiado e enxotou o garoto para fora.
— Sozinha… — Sussurrei para o chão.
Saí do quarto e entrei na porta ao lado. Sentei-me ao piano. Eu
poderia ter subido até o sótão, mas não tinha permissão de Mr Luft para tocar
o instrumento de sua esposa, então me contentei com o da sala de aula.
Toquei uma tecla aleatória e deixei a melodia fluir pelos meus poros.
Não ousei cantar, mas recitava algumas palavras em tom baixo, para mim
mesma:
David subiu comigo direto para meu quarto. Não havia falado nada
na volta para casa, estava tão sério que sentia seu olhar me queimar a pele. Eu
tentava comedir meu pranto. O choro agora era inaudível, eu engolia
qualquer soluço e apenas deixava as lágrimas escorrendo. Não queria que ele
se virasse para mim. Não queria ter que enfrentar toda a fúria de seu olhar.
Quando entramos no quarto, caí de joelhos erguendo as mãos sobre a
cabeça para me defender. As lembranças tomaram meu corpo e eu me vi
novamente a frente de Gareth, sendo morta aos poucos por aquele olhar
colérico e obsessivo.
— Eu não fiz nada. — O desespero mesclava-se a minha voz e eu
me sentia como uma criança desamparada. Esperei meu castigo, mas ele não
veio. Apenas senti o toque delicado das mãos macias de David me
envolvendo pelos braços e me erguendo.
Sentou-me na cama e abraçou meu rosto com seus dedos. Tomei
coragem e abri os olhos. Não foram os olhos raivosos de meu ex-noivo que
encontrei, mas sim o olhar triste e azulado de meu amo.
— Eu não fiz nada. — Repeti, tentando acalmar meu peito. — Não
sou uma vadia, meu senhor.
— Eu sei que não fez nada. — Seus lábios tremiam, mas sua voz
saiu firme. Ele me segurava com tanto cuidado que me senti como a maior
das preciosidades em suas mãos.
— Por que está zangado comigo?
— Não estou zangado com a senhorita. Longe disto. Estou
preocupado.
Ele tentou sorrir para mostrar que dizia a verdade. Senti uma mistura
de tristeza e felicidade tomar meu corpo e, por impulso, abracei-o com força.
Ele não me repeliu como era esperado, abraçou-me com carinho pela cintura,
mantendo meu corpo ainda mais perto do seu. Eu me permiti chorar em seu
peito.
David se sentou ao meu lado. Alguém bateu à porta e entrou, mas
meu patrão não se moveu. Constance deixou a bandeja com uma garrafa e
duas taças que trazia ao nosso lado e se retirou quase no mesmo minuto.
Mr Luft ainda me abraçou por algum tempo, até se afastar e pegar a
garrafa e uma das taças da bandeja. “Beba um pouco” estendeu-me, cheia até
a metade.
Eu não hesitei, tomei o recipiente de seus dedos e bebi como se fosse
água. Estava atordoada, cansada, triste. A bebida desceu queimando, mas não
reclamei. Esperei David se servir também para lhe estender novamente a taça,
pedindo mais. Ele a encheu novamente.
Os olhos de David me devoravam. Sua curiosidade me puxava para
mais perto e me repelia ao mesmo tempo.
— O senhor também sabe? — Indaguei depois de alguns segundos
em silêncio. Minha cabeça parecia rodar, mas eu sentia meu corpo parado,
como se aterrado.
— Sei o quê?
— Minha história na França.
— Eu… Me contaram sim.
— Então aquela conversa no sótão… O senhor já sabia de tudo? E
ainda mentiu?
— Eu não acredito no que falam. Queria que a senhorita se sentisse
livre para conversar comigo. Nunca iria julgá-la pela fofoca de pessoas que
não têm o que fazer. Além do mais, a senhorita deve ter tido um bom motivo
para sair daquele lugar.
— Me dá mais? — Pedi. Ele me serviu novamente.
O silêncio voltou a se instaurar. Só trouxemos de volta o assunto
quando já tínhamos esvaziado a garrafa e nos encontrávamos bem alterados.
Conversamos sobre muitas coisas, sobre o cotidiano, sobre o
passado. A primeira vez que nos abríamos de todo coração estávamos
bêbados e gargalhando de qualquer mísera palavra.
— Sabe. — Comentei com o dedo em riste, movendo a mão sem
muito controle. — Eu estava muito animada de me mudar para cá. Mas tudo
desapareceu quando conheci o senhor.
— E por quê? — Ele falava também engraçado.
— Porque o senhor era uma pessoa horrível. Muito mau. E quando
eu cheguei aqui, pensei em voltar. Só porque o senhor era muito mau. Toda
vez que eu sentia seus olhos sobre mim, minhas forças acabavam e eu me via
desprotegida.
Ele fez menção de falar algo, mas eu continuei rapidamente.
— Mas depois de uns dias, percebi que tinha alguma coisa estranha.
Por mais que eu quisesse, não conseguia odiá-lo. Eu não sei o que era, mas
alguma coisa cresceu dentro de mim. Cresceu tanto que parecia um monstro
que me deixava idiota a sua frente. E o senhor era tão mau. Mas tão bom.
Muito confuso. Tudo. Me entende?
— Entendo. — Ele encarou meus olhos tão profundamente que eu
sentia a sua alma tocar a minha. — Quando a senhorita chegou eu senti a
mesma coisa. Você me lembrava tanto a minha esposa, mas era tão diferente
ao mesmo tempo. Eu não sabia se gostava disso ou não. Ou se queria apenas
fingir que nada havia acontecido. Eu estava confuso e sentia que a senhorita
queria me controlar, me levar para tudo o que eu evitava. Não, não gostava
nada disso. Eu me sentia desprotegido por conta de alguém que queria me
proteger. Desarmado.
— Compreendo. — Sorri bobamente. Examinei-o por alguns
segundos e falei sem pensar. — Eu percebi que gosto muito do senhor. Muito
mesmo, mais do que já gostei de qualquer outro homem em minha vida.
Ele apenas sorriu e pergunto aonde eu ia, já que me levantei no
mesmo instante.
— Vou me arrumar para dormir. — Falei rindo, como se ele tivesse
acabado de fazer uma piada.
— Vai cair andando desse jeito.
— Não vou… — Colidi com a parede perto do armário. — Quem
foi que colocou essa parede aqui?
— Eu avisei.
— Não se preocupe. Eu estou bem. Pode ir dormir, já está tarde.
David se levantou. Ele deveria já estar perto da porta quando viu que
eu lutava com os cordões do corset que faziam questão de fugir de meus
dedos (ou eram os meus dedos que tentavam agarrar o ar). Minha cabeça
estava encostada na parede e eu fazia um esforço sobre humano para achar os
cordões. Mr Luft veio até mim e me ajudou a desatar o laço. Puxou o cordão
até a roupa se abrir.
— Este vestido — Ele passou a mão em minha cintura e a desceu
pela saia. — era o vestido que minha esposa usaria em seu último aniversário.
Pena que não foi um dia muito feliz.
— Sinto muito. — Comentei ainda com a testa na parede. — Se eu
soubesse, não teria usado este.
Ele não respondeu. Encostou a boca em meu ombro nu. Fechei os
olhos e senti seu toque. No momento, aquilo foi para mim a coisa mais
normal que ele poderia fazer. David foi descendo os lábios, chupando minha
pele e despindo o vestido de meu corpo.
— O que estamos fazendo? — Perguntei anestesiada com seu toque.
— Não sei. — Ele me virou de frente para ele. — Mas eu venho
querendo fazer isso há muito tempo.
Nossos lábios se encontraram. Mr Luft me envolveu em um beijo tão
intenso que me entreguei totalmente a seus braços, puxando-o para mais
perto. Suas mãos desceram pela minha saia e retiraram por completo o
vestido.
Aquele toque. Nunca em minha vida pensei que algum dia um
homem iria me tocar daquele jeito. David era tão carinhoso, suas mãos
quentes se moviam rápidas, mas suavemente, adentrando minha roupa de
baixo e afagando minha pele. Sua boca descera agora pelo meu pescoço e o
sorvia com vontade. Eu fechei os olhos e me deixei sentir o toque quente e
úmido. Ficamos daquele jeito por algum tempo.
Sua boca voltou a enlaçar a minha. Seus dedos também subiram,
vasculhando meu corpo sem nenhum pudor, e eu deixava que o fizessem.
Dirigiu-me para a cama, embaladoramente, puxando-me quase como numa
dança.
Deitei-me ainda envolvida pelo seu beijo. Ele se afastou um pouco
para se despir. Ouvi o som de suas roupas sendo retiradas e jogadas ao chão.
David se sentou ao meu lado. Estava escuro, mas eu conseguia ver seus olhos
brilhando pela noite. O azul me envolveu, consumindo meu ser.
Sorri envergonhada, pedindo que me tocasse novamente. Que não
parasse. Que continuasse sendo maravilhoso.
“Como é linda.” Sussurrou em minha orelha. Deitou os dedos em
minhas costas, passeando-os sobre minha pele. Contornaram a curva de
minha cintura e alcançaram minha barriga, puxando minha roupa íntima.
Quando dei por mim, já estava toda nua.
Seu toque fazia meus pelos se eriçarem. Era tão quente e delicado,
tão excitante. Ele se deitou sobre mim. Envolvi seu corpo com meus braços e
o puxei para mais perto. Ele passou os lábios em meu mamilo hirto. Seus
olhos estavam fechados, com a mesma expressão que fizera quando escutou
eu tocar piano. Deveria sentir a mesma sensação, como se estivéssemos
prontos a compor uma melodia. Eu e ele.
Assim como quando tocava, entreguei-me totalmente a ele, mas
dessa vez não era eu que guiava, e sim era guiada. Eu era o instrumento de
David. Movíamos com uma velocidade lasciva e a mesma intensidade
fanática.
Meu corpo se mesclava ao seu, tornamo-nos uma única coisa, um
único ser. Nossos narizes se tocavam, mas nossos lábios se mantinham
distantes, como que querendo ouvir os gemidos que escapavam dos a sua
frente.
Meu quadril dançava sob sua melodia inebriante, roçando em seu
corpo, subindo e descendo em um ritmo que nunca tive contato, mas parecia
que conhecia muito bem.
A sinfonia das nossas peles, dos nossos lábios, do nosso movimento,
tomava-me por completo. Não era mais o álcool que me embriagava, era
aquela sensação quente e acolhedora. Meu lugar era ali, envolta pelo corpo de
meu amado, seguindo nosso compasso.
Nossas notas demoravam-se às vezes, aproveitando cada parcela de
nosso ser uno. Mas então, aceleravam e todas as minhas células
correspondiam.
Não falamos nada no tempo que nosso ato durou. Eu não queria
estragar aquele momento com palavras vagas, e ele também achou que não
era uma boa hora para conversa. Não precisávamos falar, nossos corpos já
diziam por nós.
Eu poderia ficar ali para sempre, poderia me entregar a suas mãos e
deixar que me tocasse como a um piano, e derramar sobre ele qualquer oitava
que quisesse.
Então, nosso dueto acelerou gradativamente. Suas mãos estavam em
meus seios e elas os apertava com extremo carinho. Ele me segurou com
força pela cintura, permanecendo dentro de mim. Senti meu corpo
queimando. Nosso grande final.
David só me largou quando seu corpo cansado caiu ao meu lado na
cama. Ele me puxou para perto com o braço direito e caminhou com os dedos
da mão esquerda sobre meus lábios convulsos.
— Eu também gosto tanto da senhorita. — Colou a boca na minha e
me envolveu em mais um beijo estonteante.
Deitei a cabeça em seu peito e o abracei com carinho.
— Boa noite, senhor.
— Boa noite, Sam.
Capítulo 13
David ainda caminhava pelo quintal quando eu voltei para casa. Ele
andava devagar, os olhos atentos em tudo. Veio até mim quando notou minha
presença.
— Onde estava? Por que demorou tanto?
— Eu me perdi na cidade. Não tenho o costume de caminhar por lá.
— Sorri, constrangida com aquele comportamento repentino. — Estava me
esperando?
Ele ficou sério e negou com a cabeça.
— Comprei o pão doce. — Continuei. — Vou levar logo para
Charles, já que estou atrasada.
— Obrigado, Miss Evans.
O gatinho se aninhou junto de meus pés. Peguei-o no colo e o ergui a
altura dos olhos de David.
— Posso dá-lo a Charles?
— Onde a senhorita arranjou um gato?
— Uma senhora… Na cidade.
David pegou o animal. Segurava ele de modo que sua cabeça estava
a mesma altura da do gatinho. O gato miou baixinho.
— Bem… é ela. — Comentou depois de muito examiná-lo.
— Senhor?
— É uma gata e não um gato. Gatos com três cores costumam ser
fêmeas e não machos. Li em algum lugar que só elas são assim.
— Ah, então desculpe ter o chamado de amiguinho. — Falei para o
animal. David pareceu querer rir, mas nada fez.
— Pode presentear Charles com ela. Mas a senhorita tem que ajudá-
lo a cuidar.
— Eu prometo, senhor.
Ele me entregou a gatinha. Antes de voltar ao que estava fazendo,
passou os dedos carinhosamente pela minha clavícula. Prendi a respiração e
só soltei quando notei que ele estava estudando o colar. Então, retirou a mão
de mim e se virou como se nada tivesse acontecido. Eu o acompanhei, um
pouco afastada, tentando não atrapalhar seus pensamentos.
A gatinha aninhava-se em meu colo. Ela acariciava meu braço com
sua cabeça e me fazia sorrir.
— Você é muito bonitinha. — Falei para o animalzinho. Ela lambeu
minha mão como se tivesse entendido.
— Acho que a senhorita não está muito bem. — David me encarou
de esguelha. — Fica conversando com animais.
— Mas isso é bem normal. — Fiz um muxoxo. — Animais nos
entendem também, senhor. Eles sentem o que sentimos e nos deixam felizes
quando tudo dá errado. — Acelerei o passo e o alcancei.
— Se você diz. — Ele parecia um pouco triste, sua voz continuava
firme, mas seus olhos temiam alguma coisa.
— O senhor nunca teve um animal de estimação?
— Não. Meus pais achavam que era perda de tempo se apegar a
animais insignificantes.
— Mas nunca quis ter um, senhor?
Ele fitou meus olhos e sorriu. “O que queremos e o que podemos ter
são coisas diferentes. Às vezes é melhor desistir antes de tentar.”
— Mas… — Virei os olhos para o animalzinho e acariciei sua
cabeça. O que acabara de comentar referia-se a nosso relacionamento? Ergui
a cabeça confiante e o olhei séria. — Não concordo com o senhor.
— E por que não concorda?
— Desistir é um ato de covardia, ainda mais sem nunca tentar. Por
mais que seja difícil, fracassar é melhor do que sentir que não conseguiu por
nem ter tentado.
— Interessante seu pensamento. Às vezes me pergunto se realmente
é uma mulher.
Como eu odiava quando algum homem achava que mulheres eram
seres inferiores. Mas David continuou antes que eu pudesse objetivar.
— Engraçado pensar isso, não é? É estranho viver com uma mulher
e não ser capaz de ver o quão inteligente ela é. Um pensamento equivocado
achar que elas só nascem para servir aos homens.
— Se meu pai e meu noivo pensassem assim, eu provavelmente não
estaria aqui.
— Então eu deveria está feliz por eles não pensarem assim. —
Comentou sério, mas com a voz fluindo como em uma conversa cotidiana.
Um tênue sorriso se formou em meus lábios. — Acho melhor se apressar
para levar o pão doce.
Concordei com a cabeça. David se afastou em direção à casa. Eu
parei de caminhar por um momento. Alarguei o sorriso para mim mesma e
abracei os embrulhos e a gatinha com mais força.
A casa ficou bem mais alegre depois que Lillian partiu. Nós
sabíamos que era por um curto período, mas aquilo não iria estragar nossos
momentos livres dela.
Era manhã e nós estávamos no jardim. Charles corria atrás da
senhorita Mel enquanto a gatinha explorava alegremente o lugar. Eu
caminhava um pouco afastada dele, sentindo o cheiro adocicado e me
alegrando com as cores.
Olhava por entre as árvores um pouco distantes, depois da casa de
Constance, quando avistei Serafine e Richard em pé em meio ao arvoredo.
Richard a abraçava pelas costas, a cabeça colada ao pescoço da moça
e os olhos fechados. As mãos de Serafine enlaçavam as dele. Mesmo com a
distância, era possível ver o brilho das alianças nos dedos do casal. Tinham se
casado há uma semana e estavam muito contentes com tudo e todos. Eles
dançavam lentamente, sentindo um ao outro.
O amor deles era uma das coisas que me alegrava, era algo tão
verdadeiro que não conseguia ser menos do que encantador. Eu ficava feliz
pelos dois, mas será que um dia eu teria a mesma felicidade deles?
Estava tão entregue a meus pensamentos que só voltei a mim quando
senhorita Mel começou a puxar meu vestido. Olhei assustada para frente e
peguei Charles olhando na direção do casal. Ele se virou para mim e sorriu,
agarrou minhas mãos e começou a dançar de um lado para o outro como em
uma valsa infantil.
— Você dança bem, querido. — Acompanhei seus passinhos.
Charles riu e me soltou.
— Obrigado. — Fez uma mesura exagerada como quando um
homem se despede de uma mulher em uma dança. Eu o agradeci com outra.
Ficamos nos encarando e rindo. Eu teria continuado ali rindo com
ele, senão fosse o enjoo que se apoderou de meu corpo. Dei um passo para
trás e levei as mãos até a boca.
— Sam — Charles fez menção de se aproximar, mas eu me afastei
mais rápido. — Está tudo bem?
Concordei com a cabeça e saí apressada dali. Não consegui me
segurar por muito tempo, na verdade dei uns míseros passos antes de cair de
joelho, apoiar o corpo com os braços e vomitar meu café da manhã. Eu não
estava nenhum pouco bem.
Charles veio correndo atrás de mim.
— Sam! — Ele se desesperou. — Precisa ir até papai. Ele vai cuidar
de você.
— Não meu amor. — Sequei a boca com a manga. — Eu não vou
incomodar seu pai com um enjoo sem importância.
— Mas Sam… — Ele parecia realmente preocupado. Falava tão alto
que chamou a atenção de Janet que passava para a casa de Connie.
Eu me levantei antes que ela passasse por nós, queria que tivesse
seguido em frente, mas Charles a puxou pela mão e a trouxe até mim.
— O que foi, minha querida? — Ela colocou a mão em minha testa,
sentindo a temperatura. — Está enjoada?
— Não é nada. — Sorri de lado.
— É sim. — Charles me censurou com o olhar do mesmo jeito que o
pai fazia.
— Comeu algo diferente? — Janet segurava minhas mãos.
— Eu — Virei o rosto para Charles. — Querido, pegue a senhorita
Mel e vá para seu quarto, sim? Logo subo.
Ele não queria subir, mas acho que meu olhar o convenceu. Ele
recolheu a gatinha e entrou em casa.
— Eu não sei o que está acontecendo comigo. — Encarei Janet nos
olhos. — Não estou me sentindo muito bem desde… desde…
— Desde…?
— Acho que desde quando eu e… — Fiquei vermelha. — Desde o
baile.
Janet ficou pálida. Colocou a mão em minha barriga, na altura de
meu ventre. Afastou a mão e sorriu de leve.
— O que foi? — Eu a encarei assustada. — É muito ruim?
— A senhorita terá um bebê.
— Como disse?
— Está grávida.
Por mais que parecesse óbvio, eu não queria aceitar a verdade.
Sentei-me em um banco próximo e fiquei encarando o ar, atônica.
— Como sabe disso? — Virei meu olhar novamente para ela.
— Eu tive cinco filhos. — Ela riu. — Depois do segundo a mulher
entende sobre gravidez.
Eu abaixei a cabeça. Encarava o chão agora. As lágrimas começaram
a descer, a princípio, timidamente, depois se intensificaram. Janet se sentou
ao meu lado e me abraçou. “Vai fica tudo bem.” Ela dizia calmamente.
O que eu iria fazer com um filho? Eu não era casada. Não tinha uma
família para me apoiar. Não tinha nem como sustentar uma criança.
— Tem certeza? — Encarei-a novamente.
— Posso estar errada. — Sua sobrancelha se ergueu em tom de
dúvida. — Mas você precisa ir a um médico. Talvez Mr Luft…
— Não! — Eu me assustei com a ideia. — Ele não pode saber que
estou grávida.
— Samantha. — Ela falou calmamente. — Uma gravidez não é uma
coisa fácil de se esconder. Além do mais, ele é o pai e deveria saber.
— Não. — Falei baixinho. — Ele não precisa saber. Ninguém
precisa.
— Mas como a senhorita irá esconder?
— Eu darei um jeito. — Forcei um sorriso. Levantei-me apressada.
— Vou ver Charles. Obrigada, senhora.
— Deveria ir a um médico.
— Não se preocupe. Se tiver uma criança aqui ela irá aparecer mais
cedo ou mais tarde. — O que eu temia na verdade era criar uma onda de
histórias sobre minha gravidez pela cidade. Nada daquilo podia chegar aos
ouvidos de Mr Luft, sendo verdade ou mentira.
Subi apressada para o quarto do pequeno.
— Está tudo bem? — Ele pulou em minha direção assim que abri a
porta.
— Está sim. — Alarguei o sorriso. — Não se preocupe, só foi um
mal-estar.
Charles sorriu e pediu para que tocássemos algo no piano. Saímos
para o quarto ao lado. Sentei-me ao piano e toquei uma música escolhida por
Charles. Era triste e me deprimiu, mas eu não deixei as lágrimas voltarem a
descer.
Capítulo 17
Não estava muito feliz em viajar. Não que eu não quisesse viajar
com David e Charles, aquilo me interessava bastante, mas o que Lillian
planejava me preocupava. Além do mais, era a primeira vez que saía de casa
depois do que havia acontecido com Gareth e o que me esperava ainda era
um mistério.
Charles estava tão feliz quanto eu. Ele ficou com a cara emburrada a
manhã de segunda inteira quando soube que íamos viajar a tarde.
— Pelo menos a senhorita vai. — Ele sorriu para mim. — Pena que
vou ter que deixar a Senhorita Mel.
— Vão ser só três dias. Ficará tudo bem com ela e conseguiremos
sobreviver à Lillian. — Eu tinha esperança que tudo ocorresse bem, mas algo
me dizia que não seria como eu planejava.
— Eu queria ficar em casa. — Fez um muxoxo. — Aí eu não teria
que ficar vendo papai beijar Miss Ellis. Eu não gosto nenhum pouco disso.
— Querido — Ajoelhei-me a sua frente. — Você já deveria ter se
acostumado com o fato de que eles vão se casar.
— Eu nunca vou me acostumar com isso. — Ele deu a volta em
mim. Obriguei-me a levantar e me virar para continuar olhando-o.
— Já estão com as suas coisas prontas? — Serafine entrou no quarto.
Ela sorriu para o garoto e se virou para mim. — Richard já está esperando
para levá-los.
— Sim. — Concordei com a cabeça. Peguei a pequena mala de
Charles que estava em cima da cama. — Eu preciso subir para pegar a minha.
— Eu levo a de Charles para a carruagem então.
Concordei com a cabeça e deixei os dois. Subi apressada para o meu
quarto. Minha bagagem estava sobre o baú, era pequena e estava leve. Eu não
precisava de muita coisa para três dias. Desci tão rápido quanto subi e
encontrei Serafine ainda na carruagem. Richard arrumava as malas.
— Tome cuidado. — Serafine deu um beijo demorado no esposo.
Charles os observava com um ar curioso e triste.
— Quanto tempo de viagem? — Indaguei quando o casal se separou.
— Acho que devemos chegar lá a noite, se não tiver nenhum
problema pelo caminho. — Ele arrumou minha mala junto com as outras.
Sorri. Peguei Charles pela mão e entrei com ele.
— Fique pelo menos um pouquinho alegre. — Tentei fazê-lo
também sorrir, mas ele não estava querendo se animar. — Eu vou estar com
você, vai ficar tudo bem. E será divertido.
Ele me abraçou com força. Só o soltei quando David colocou a
cabeça para dentro do carro.
— Já estão aqui? — Comentou com bastante animação. Recuou um
pouco e deixou Lillian entrar.
Miss Ellis se sentou a minha frente, suas pernas encostando nas
minhas e nossas saias roçando. David se sentou ao lado de sua noiva.
— Podemos ir! — Lillian gritou impaciente para Richard que ainda
estava conversando com Serafine. Ele se sobressaltou, deu um último beijo
na esposa e subiu.
Os cavalos começaram a trotar.
A carta foi entregue assim que acordei. Queria que ela chegasse o
quanto antes para meu amigo, então, despertei Liza cedo e fomos nós duas
levá-la.
A resposta demorou quase sete dias e me aliviou bastante, já que não
estava aguentando ficar me encontrando com Lillian pelos corredores. Não só
Lillian me chateava, mas David também. Ele ainda acreditava que o que eu
havia dito a dias atrás fora uma mentira para incriminar sua noiva, e estava
me tratando pior do que quando nos conhecemos – o que eu achava não ser
possível.
Eu estava no sótão com Anneliza quando abri o envelope. Ela
colocou a cabeça em meus joelhos e ficou esperando eu ler a resposta em voz
alta.
“Querida Samantha,
Fiquei muito feliz quando recebi sua carta mas me assustou
demasiadamente seus relatos.
Nunca pensei que uma mulher pudesse ser tão má quanto essa
Mademoiselle Ellis. E tudo por causa de ciúmes do doutor Luft? Quanta
loucura. Espero que a senhorita, sua criança e Charles estejam bem – nunca
se sabe quando uma louca agirá.
Eu voltarei para a Inglaterra dentro de cinco dias. Tenho uma amiga,
a mãe de um colega para falar a verdade, que é dona de uma estalagem na
cidade. Já entrei em contato e ela está animada para hospedá-la. Tive que
mencionar o caso da gravidez e das aulas de Charles, sinto não ter lhe
contatado antes disso.
Se possível, arrume seus pertences dentro desse período e eu irei
buscá-la. Não se preocupe com mais nada, eu cuidarei de tudo.
Carinhosamente,
Don”
— A carta é de três dias atrás. — Comentei ao terminar de ler.
— Não acredito que vai embora. — Ela se sentou no chão e ficou me
encarando tristemente. — Mas essa é a melhor opção para a saúde de seu
filho. Só espero que esse seu amigo cuide de tudo mesmo.
— Ele cuidará. Sempre foi um rapaz muito responsável e, se
tratando de mim, acho que ficaria mais ainda.
Ela franziu o cenho, mas logo voltou a seu olhar triste. Pegou a carta
entre minhas mãos e tentou relê-la. “Quando vai contar a Charles… e a
David?”
— Para Charles irei contar amanhã mesmo. Quero que ele já se
acostume com a ideia de me ter longe. Mas não pretendo contar para David.
— Mas ele tem que permite que Charles vá ter aula com você todos
os dias. Precisa falar com ele, ainda mais se vocês têm um acordo.
— Eu sei. — Suspirei. Encarei a janela embaçada pela chuva. — Só
não quero que ele me faça ficar.
— E você sabe que ele irá fazer se não der um bom motivo para ir…
— Não vou contar sobre a gravidez se é isso que está sugerindo. —
Lancei-lhe um olhar oblíquo. Ela sorriu de lado.
— Tudo estaria bem se ele soubesse sobre o filho de vocês.
— Você não entende…
— Que você está sendo egoísta? — Ela sussurrou.
— Não. — Virei-me totalmente para ela. — Eu quero alguém que
me ame. Que me ame por ser quem eu sou. Que não queira casar comigo por
causa de uma droga de noite que estávamos bêbados. Que não queira se casar
comigo porque me deu um filho e se sente culpado por causa disso. Eu quero
alguém que se sinta feliz ao meu lado e que me faça feliz. Não quero me
casar porque a sociedade manda que assim seja feito.
— Eu entendo… Mas como sabe que ele não a ama?
— Se ele me amasse não me trataria como está tratando agora. Mas
não me importo nenhum pouco com o que ele sente, ou se vai casar com
Lillian ou com qualquer outra. No momento só quero que Charles e meu filho
fiquem bem. E a distância é a melhor opção.
— Não acha que, se for embora, Lillian atormentará Charles.
— Não, ela não fará nada enquanto não se casar. Lillian é
inteligente, ela não implicará com o pequeno porque sabe que David mudaria
de ideia sobre o casamento no mesmo instante.
— Talvez tenha razão.
— Mas quero que cuide dele quando ela estiver aqui. — Sorri
suplicante. Ela concordou com a cabeça e colocou a língua para fora.
Ficamos conversando um pouco mais até voltarmos para nossos
quartos.
Era o dia que Don iria me buscar. O meu quarto já estava vazio e
minhas malas, sobre a cama esperando para descer. O diário de Mrs Luft
havia voltado para o sótão, arrumado na mesma gaveta que encontrara o
vestido. Retirei o colar que a senhora da cidade havia me presenteado no dia
do aniversário de Charles. “Ele irá ajudá-la a achar o homem de sua vida e
também lhe trará felicidade.” Como alguém poderia acreditar naquilo? E por
que eu o usara todos os dias na esperança de algo novo acontecer? Deitei o
pingente sobre a cama. Ele só me trouxera azar aquele tempo todo.
— Não quero lembrar da pessoa que pensei em todos os segundos
enquanto o usava. — Falei para a pedra esverdeada.
— Seu amigo já está aqui. — Liza abriu a porta.
— Obrigada. — Sorri. Peguei o baú, mas Liza o tirou de minhas
mãos. “Você ainda está grávida.” foi o que ela disse. Então desceu com
minha bagagem até a carruagem.
Antes de sair, fui me despedir de Charles. Ele estava sentado na
cama, encarando a janela. Dei um beijo estralado em sua bochecha.
— Nos vemos amanhã, não é? — Perguntou tentando esconder as
lágrimas.
— Nos vemos sim. Liza irá levá-lo até onde eu morarei. Não se
esqueça de levar seus livros para que eu possa continuar a matéria.
— Certo.
Senhorita Mel veio pulando em minha direção. Acariciei sua cabeça
e me despedi dela também.
Infelizmente aquele era o momento que deveria falar com David.
Não podia simplesmente ir embora e ainda pedir para ver Charles todos os
dias sem uma explicação. Ele estava sentado na sala, escrevendo algo em seu
bloco.
— Senhor… — Falei baixo. Ele não levantou os olhos do que estava
fazendo. — Não quero atrapalhá-lo, já que o que está fazendo parece muito
importante, mas devo comunicar que estou indo embora.
Então ele deixou o bloquinho de lado. Encarou-me, branco. “Como
disse?”.
— Não quero mais atrapalhar sua vida, senhor. Mas não precisa se
preocupar com Charles, eu estarei morando ainda na cidade e quero continuar
dando aula para ele. Liza disse que pode levá-lo todos os dias.
— Não permito que vá.
— Desculpe, senhor. Minha decisão já está tomada e a carruagem
me esperando. Não tenho como voltar atrás e nada irá me fazer mudar de
ideia.
— Nós temos um acordo.
— Temos, senhor. E eu peço desculpas por quebrar minha promessa,
mas eu continuarei dando aula para o pequeno, só não aqui.
Ele se levantou e caminhou até minha direção.
— É por causa daquela história ridícula sobre Lillian que colocou
em sua cabeça? — Ele continuava se aproximando.
— Não tem nada a ver com a sua noiva. — A raiva me tomava
sorrateiramente, mas eu me esforçava para manter a postura. — Não tem
nada a ver com o senhor ou com ela. Ou com os dois juntos. O motivo está
além de seu entendimento, senhor.
— Além de meu entendimento? — Ele riu resignado. — Sabe o que
eu vejo? Uma criança falando coisas sem sentido.
— Está errado. — Ergui ainda mais a cabeça. Meu olhar agora era
de ódio. — Não está vendo uma criança porque nunca me senti tão adulta em
toda a minha vida. Essa foi a melhor decisão que tomei até agora. E nada,
nem o senhor, irá me fazer voltar atrás.
— Não permito que vá!
— Não sei se lembra, mas eu lhe devo um pedido. E peço que me
deixe ir, mas que eu possa continuar lecionando a Charles.
— Então… — Ele já tinha feito eu recuar até a parede, então voltou
para a poltrona. — Vá embora. Não quero mais vê-la também.
— Não preciso que queira me ver. — Sorri incrédula. — Meu único
propósito nessa casa foi Charles e só Charles. Passar bem.
Retirei-me antes que ele falasse mais alguma coisa. Liza e Don me
esperavam perto da porta da frente. Eles não se olhavam e Liza estava com os
braços cruzados. “Ela ainda odeia franceses.” Pensei. Tinha me esquecido
que não era uma boa ideia juntar os dois, mas já haviam se conhecido, então
era tarde demais.
— Podemos ir. — Tentei sorrir, mas minha raiva era tanta que
ambos perceberam.
— A conversa não foi muito boa. — Falaram em uníssono, cada um
em sua língua. Entreolharam-se e Liza se virou novamente com os braços
cruzados e uma expressão infantil no rosto.
— Não, mas vamos embora logo. — Subi apressada na pequena
carruagem. Liza sentou-se ao meu lado e Don com os cavalos.
— Tem sorte que sou sua amiga. — Liza comentou baixinho. —
Porque eu odeio esses franceses.
Mesmo no estado em que me encontrava, ri.
— Don não é qualquer francês. Ele é muito gentil e um verdadeiro
amigo. Deveria conhecê-lo, iria gostar.
— Não quero conhecê-lo. — Torceu o nariz.
— Então está bem…