Algumas Notas Históricas Sobre o Processo Penal Canônico

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D I R E I T O C AN Ô N IC O

Fernando Rabello

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ALGUMAS NOTAS HISTÓRICAS SOBRE


O PROCESSO PENAL CANÔNICO
SOME HISTORICAL NOTES ON CRIMINAL CANON LAW
Cláudio Demczuk de Alencar

RESUMO ABSTRACT
Afirma que, se por um lado, o tema do direito penal canônico The author states that, if on one hand, Criminal Canon law
gera perplexidade entre juristas e canonistas, por outro, persiste, causes perplexity among jurists and canonists, on the other,
até hoje, certa confusão entre os termos “delito” e “pecado”. even today, there is some persistent confusion between the
Apresenta os temas do processo penal canônico e da aplicação terms “offense” and “sin”.
das penas, partindo da consolidação do direito canônico, para, He points out some issues connected to criminal canon
ao fim, examinar o direito vigente, constante do Código de Di- procedure and to the application of sanctions, from the
reito Canônico de 1983. consolidation of Canon Law to the assessment, in the end, of
the current law set forth in the 1983 Code of Canon Law.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Penal Canônico; Código de Direito Canônico; delito; pe- PALAVRAS-CHAVE
cado; corpus, codex – iuris canonici; pena canônica. Criminal Canon Law; Code of Canon Law; offense; sin; iuris
canonici – corpus, codex; canonical penalty.

Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 59, p. 51-57, jan./abr. 2013


1 DELITO VS. PECADO danifica também o próprio indivíduo estatal, muito embora se tenha reconhe-
Para juristas e canonistas há certo que produz um mal para si mesmo. Do cido em outras épocas um monopólio da
estranhamento inicial com o tema do pecado, o seu autor responde diante de igreja para julgar os membros do clero.
direito penal canônico. Se, para uns, Deus e diante do seu ministro e, portan- Por fim, os delicta mixta ou mixta fori
gera “perplexidade” (ORSI, 2009, p. 13) to, refere-se ao foro interno. Do delito, são aqueles em que concorrem as com-
e, para outros, parece “estapafúrdio” o autor responde perante a sociedade petências secular e canônica.
(SAMPEL, 2001, p. 29) que a igreja católi- a que pertence e, portanto, refere-se ao Quanto às penas canônicas, existe a
ca se ocupe da punição pela violação das foro externo. Daí se conclui que todo de- peculiaridade da pena automática ou la-
leis eclesiásticas, tidas por criminosas, lito é pecado, mas nem todo pecado é tae setentiae na qual se incorre tão logo
certo é que persiste até hoje certa confu- delito. (ORSI, 2009, p. 34) cometido o delito, sem a intervenção de
são entre os termos “crime” e “pecado”. É fato, entretanto, que a distância en- outra autoridade. É o próprio legislador
Nesse contexto não é de se admirar que tre os conceitos de delito e pecado muito quem aplica essa pena, mas para ter efi-
a igreja, mesmo mantendo a pregação variou no curso da história. Se remontan- cácia no foro externo e público, precisa
da caridade e do amor ao próximo, se va- do à querela das investiduras, passando ser declarada (cf. c. 1.331, 2). Em contra-
lha do direito penal para proteger “seus” pela concepção do “utrumque ius” ou posição à pena automática existe a pena
bens jurídicos mais relevantes. direito comum, chegamos ao estado ferendae sententiae que nada mais é do
que a pena aplicada ao cabo de um pro-
A discussão sobre a validade do poder de coação da igreja e, cesso judicial ou administrativo.
consequentemente, sobre a própria existência do direito penal Com isso, vê-se que existem ao me-
nos três caminhos para a aplicação da
canônico, foi considerada quando da reformulação do Código pena canônica: 1) o automático, que de-
de Direito Canônico Pio-Beneditino [...] corre da própria lei; 2) o processo judicial
regular, a ser preferido na maioria dos
A discussão sobre a validade do po- laico de hoje, ainda assim não podemos casos; e 3) o decreto extrajudicial, de-
der de coação da igreja e, consequen- perder de vista que, durante muitos sé- corrente de procedimento administrativo
temente, sobre a própria existência do culos, a igreja católica desempenhou for- instaurado quando presentes causas jus-
direito penal canônico, foi considerada te papel político, muitas vezes até com tas a impedirem a tramitação judicial da
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quando da reformulação do Código de prevalência sobre o poder secular. demanda. Ainda uma quarta via pode ser
Direito Canônico Pio-Beneditino, mas, ao Para corroborar tal assertiva basta aventada e decorreria da repreensão do
fim e ao cabo, reconheceu-se como prin- constatar que, durante o período em que delinquente feita logo no início do pro-
cípio orientador que o poder coativo e o o catolicismo foi a religião oficial de Por- cesso com a aplicação de remédios pe-
seu exercício são necessários na Igreja, tugal e suas colônias, houve verdadeira nais e penitências, no entanto, a doutrina
no serviço de caridade, e para a salva- criminalização estatal do pecado, como canonista não considera esses institutos
ção das almas, bem como que o poder no Livro V das Ordenações Filipinas, propriamente penas porque não privam
coativo seja usado somente em último que principia exatamente tratando dos o réu diretamente de nenhum bem.
caso (VELÁSIO DE PAOLIS APUD ORSI, hereges e apóstatas. Os crimes contra Outra classificação útil diz respeito
2009, p. 13). a religião católica vinham em primeiro à finalidade das penas canônicas. Nes-
Com efeito, a preocupação com o lugar, antes mesmo dos crimes de lesa- se passo, elas podem ser medicinais ou
salus animarum é a nota distintiva de -majestade. expiatórias1. As penas medicinais visam à
todo o direito canônico e não poderia ser Diante disso podemos concluir com conversão ou correção do delinquente
diferente com o direito penal. Ademais, Nilo Batista, ao ver no direito penal canô- e privam os fiéis dos meios da salvação,
também é possível enxergar nas penas nico a mais silenciosa, porém, ao mes- em especial dos sacramentos (cf. c. 1.331
canônicas a relevância que o valor da mo tempo, a mais profunda influência e 1.332). As penas expiatórias visam à
caridade possui, sendo de se destacar o sobre os sistemas penais contemporâ- expiação do delito e tratam da privação
papel das penas chamadas “medicinais”. neos de nossa ‘família’ jurídica (BATISTA, de algum direito ou ofício, sua gravidade
Voltando, contudo, ao que já se clas- 2002, p. 163). é menor, pois os fiéis podem continuar
sificou de “promiscuidade conceitual” a receber os sacramentos (cf. c. 1.336).
entre delito e pecado (BATISTA, 2002, 2 OUTROS CONCEITOS INDISPENSÁVEIS
p. 163), é de se pôr em relevo o esforço A mais corrente das classificações dos 3 RECORTE TEMPORAL
dos canonistas na distinção desses con- crimes canônicos repousa sobre critério Feitas essas considerações iniciais, é
ceitos: O delito é um conceito jurídico puramente processual (BATISTA, 2002, necessário precisamente indicar como
e exige, portanto, a exterioridade. Daí p. 205). Assim, os delicta mere ecclesiati- escopo do presente trabalho a apresen-
surge a distinção entre pecado e delito. ca são os julgados pelo tribunal canônico tação dos temas do processo penal ca-
O pecado é violação de ordem moral, e tratam dos crimes contra a fé, a religião, nônico e da aplicação das penas canôni-
e o delito é violação de ordem jurídica, a autoridade eclesiástica e obrigações es- cas, partindo da consolidação do direito
medida pelo dano ou perigo de dano peciais. Já os delicta saecularia ou delitos canônico com o Corpus iuris canonici no
que essa violação produz na sociedade civis são todos os julgados pelo tribunal século XVI, passando pelo primeiro Co-
e, no nosso caso, na Igreja. Esse dano comum e que constituem o direito penal dex iuris canonici, promulgado pelo Papa

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Bento XV em 19172, para, ao fim, examinar o direito vigente, vilegium fori ou privilégio de clerezia, a competência antes ex-
constante do Código de Direito Canônico de 1983, editado pelo clusiva se transformou em concorrente e depois desapareceu
Papa João Paulo II. notadamente a partir dos séculos XIX e XX, ressalvada apenas as
Não se repetirão desnecessariamente os institutos comuns matérias disciplinares internas da igreja. De maneira semelhante
ao processo civil e penal canônicos. A exemplo do que ocorre e na mesma época também os delicta mixta fori passaram à
com a legislação estatal, possui o processo civil aplicação sub- competência estatal, embora o crime laico possa redundar em
sidiária ao processo penal também na esfera eclesiástica (cf. c. consequências penais canônicas para os fiéis da igreja católica.
1.959 do CDC-1917, e, c. 1.728, § 1º, do CDC-1983). Quanto ao sistema processual penal, Gilissen anota com
Entre os canonistas é bom frisar que o direito processual concisão que o processo permaneceu durante muito tempo
não goza da mesma estatura que adquiriu no direito secular, dependente de queixa (isto é, acusatório) que se desenrolava
sendo recorrente referir a este ramo do direito canônico como mais ou menos como o processo cível. Nos finais do século XII
uma plêiade de normas ancilares ou secundárias (SAMPEL, apareceu o processo oficioso, por inquirição (inquisitio) orde-
2001, p. 30) ou como verdadeiro direito adjetivo, o que pode nada pelo juiz desde que tivesse conhecimento de uma infrac-
explicar a exiguidade da bibliografia nacional sobre o tema. ção (procedimento inquisitorial). Este processo foi largamente
Outra anotação importante, por se tratar de direito penal e aplicado pelo Santo Ofício na luta contra as heresias; levou à
processual penal, é que, em razão do critério temporal adotado, permissão de ordenar a tortura (quaestio), instituição recebida
acabou ficando de fora do trabalho o período da Inquisição que, do direito romano e aplicada contra os heréticos por uma bula
sem sombra de dúvidas, marcou com significativas repercus- de Inocêncio IV de 1252.”(GILISSEN, 1995, p. 141)
sões todos os sistemas penais que se seguiram. Nilo Batista (2002, p. 232-235) detalha, contudo, que, ao me-
Também pelo mesmo motivo é de ser destacado que os sécu- nos no campo normativo, desde o IV Concílio de Latrão em 1215,
los XII e XIII, marcados por Gilissen (1995, p. 136) como os do apo- três eram os modelos do processo penal canônico: 1) por acusa-
geu do direito canônico sobre direito laico não serão abordados. ção, 2) por denunciação e 3) por inquisição (tribus modis possit
procedi, per accusationem, denunciationem et inquisitionem).
4 O PERÍODO DO CORPUS IURIS CANONICI (SÉC. XVI A XX) O procedimento acusatório era iniciado com a redução a
O Corpus iuris canonici era formado pela consolidação das termo da acusação formulada pelo ofendido, que teria o ônus
seguintes coleções canônicas: o Decreto de Graciano (1140), de provar a imputação sob o risco de responder ele próprio às
as Decretais de Gregório IX (1234), o Sexto de Bonifácio VIII mesmas penas que pretendia ver irrogadas ao réu em caso de
(1298), as Clementinas de Clemente V (1314) e as Extravagantes acusação frustrada. A citação do acusado era indispensável para 53
de João XXII (1319)3. As primeiras edições privadas do Corpus a tramitação do processo e, quando não lograsse êxito, deveria
são do início do século XVI, mas a versão oficial é de 1582 e ser repetida pelo menos duas vezes. O ofendido-acusador po-
vigorou até 1917, com complementos do ius novissimum. dia desistir da ação.
As disposições penais estão esparsas pelo Decretum Gratia-
ni e parecem concentradas no livro V do Decretalium Gregorii As penas expiatórias visam à expiação do
Papae IX (ou simplesmente Liber extra), que formam o eixo
delito e tratam da privação de algum direito
do direito canônico da época. Neles estavam previstos delitos
contra a religião, crimes comuns contra as pessoas e contra a ou ofício, sua gravidade é menor, pois os fiéis
propriedade, além de crimes próprios dos clérigos. podem continuar a receber os sacramentos
Nas demais coleções (Liber sextus, Constitutiones clemen-
tinae e Extravagantes), também se ocupava penalmente da (cf. c. 1.336).
tutela da religião, da disciplina eclesiástica e de alguns delitos
comuns. Ainda assim, aponta Gilissen (1995, p. 148) que as Já o dito procedimento denunciatório era mais propriamen-
coleções por último citadas são quantitativa e mesmo quali- te uma forma específica de se iniciar o procedimento inquisitó-
tativamente muito mais importantes que as duas precedentes. rio sem o perigo de ver o “tiro sair pela culatra”. Nele o fato de-
Para o direito processual canônico, entretanto, é indispen- lituoso era levado ao conhecimento do juiz sem o risco da acu-
sável anotar o grande desenvolvimento havido com as decretais sação frustrada nem a obrigação de comprovar o alegado para
dos papas-juristas que uniformizaram o procedimento, ainda o ofendido. A conversão de acusadores em meros denunciantes
que gradualmente, em todo o mundo católico e constaram do era até incentivada pelos inquisidores. Antes de prosseguir com
Liber extra. (BATISTA, 2002, p. 192) a instrução do processo, o juiz deveria tentar uma espécie de
Com a laicização do Estado, havida a partir do século XVI, a advertência correcional chamada caritativa admonitio, que, se
competência penal dos tribunais canônicos retorna ao espectro bem sucedida, dava fim à investigação.
anterior à Idade Média recaindo sobre as infrações puramente O procedimento inquisitório, antes reservado aos casos
religiosas ou espirituais, os delicta ecclesiastica, que compreen- mais graves, acabou consagrado como procedimento-padrão.
diam os crimes contra a fé católica, contra o Estado pontifício Poderia ser inquisitio generalis quando calcada em rumores de
e a administração da igreja, ainda que a concepção da época um crime indeterminado ou inquitio specialis, quando perqui-
fosse muito mais larga que a moderna com relação à matéria risse um determinado delito ou determinado suspeito. Sempre
chamada a clavibus (de chaves da igreja), chegando a recair que o juiz tivesse notícia de crime deveria iniciar sua apuração,
sobre certos crimes sexuais por exemplo. ainda que apenas com base no clamor público ou fama (per
Com relação ao julgamento dos clérigos, em razão do pri- clamorem et famam ad aures superiores pervenerit). A carac-

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terística mais marcante do procedimento inquisitivo é a con- os delitos que tenham atingido o foro externo.
centração dos poderes de juiz e de acusador nas mãos de uma As penitências, os remédios penais, a excomunhão, a sus-
mesma pessoa, sendo que daí nasceram todos os seus conhe- pensão, a interdição e o interdito podem ser aplicados adminis-
cidos e contestados arbítrios na busca da inatingível “verdade trativamente quando o delito for certo, muito embora não exis-
real” e levados ao paroxismo durante o período da Inquisição. ta um detalhamento desse procedimento fora do juízo formal.
O direito canônico nessa época estava de tal modo per- Diferentemente do período anterior não há mais a possibi-
meado pelo princípio inquisitivo que surgiu até um instituto lidade de a acusação ser exercida pelo próprio ofendido. Surge
como o da liberação rebus sic stantibus, aplicada aos casos a figura do promotor de justiça para exercer o monopólio da
em que não se atingiu certeza nem para condenar tampouco ação acusatória, representando a sociedade no juízo criminal (c.
para absolver o acusado, ficando o processo suspenso até que 1.934). Miguelez-Alonso-Cabreros (1954, p. 720) sustentam que
surjam novos dados (ou boatos) e o acusado sujeito a inde- ação acusatória não seria sinônimo da ação penal mencionada
terminado período de prova. pelo cânone 2.210 em oposição à ação civil. Para esses autores,
a ação criminal compreende os direitos assegurados ao deman-
Com a laicização do Estado, havida a partir do dante no juízo contencioso civil, a saber: a) apresentar ao tribunal
a acusação por escrito; b) oferecer e propor provas; c) opor exce-
século XVI, a competência penal dos tribunais ções; d) apresentar alegações; e e) impugnar a sentença.
canônicos retorna ao espectro anterior à Idade Persiste, entretanto, um procedimento denunciatório segundo
o qual qualquer fiel pode sempre denunciar o delito de outrem
Média recaindo sobre as infrações puramente
enquanto ofendido com o intuito de ser ressarcido em seus danos
religiosas ou espirituais [...] ou pelo simples sentimento de “amor à justiça” (c. 1.936), devendo
facilitar ao promotor os meios para provar o crime (c. 1.937).
Também decorre da adoção do sistema inquisitório o pres- A mais interessante previsão do Código de Direito Canônico
tígio emprestado ao regime das provas legais e que no sistema de 1917, em matéria de processo penal, vinha a seguir: o insti-
do Corpus iuris canonici recebeu peculiar inovação: o notorium. tuto da inquisição, espécie de antecedente do brasileiríssimo
A conhecida construção romana das provas plenas (probatio- inquérito policial. O cânone 1.939 estabelecia que se o delito
nes plenae), provas semiplenas (probationes semiplenae) e in- não é nem notório nem completamente certo, mas há notícia
dícios (indicia) e seus critérios de valoração recebeu do direito de sua ocorrência por rumores e voz pública, denúncia ou qual-
54 canônico, a partir do século XIII, nova formulação para ocupar o quer outro meio, antes da citação de alguém para responder
topo da hierarquia das provas, pois o que é notório nem sequer pelo delito, deve haver previamente uma inquisição especial 4
precisa ser provado. para verificar se a imputação se apoia em algum fundamento
No regime em que a admissibilidade e o valor de cada pro- e qual seja este.
va eram pormenorizadamente regulamentados, sem que o juiz Para os canonistas Miguelez-Alonso-Cabreros (1954,
tivesse espaço para uma apreciação pessoal do conjunto proba- p. 722): Inquisição é sinônimo de ‘indagação’ ou ‘investiga-
tório, três eram as espécies do notorium: 1) os notorium facti ção’ e tem por objeto, em matéria criminal, conhecer o delito
são fatos os percebidos diretamente pelo juiz ou cujo aconteci- e averiguar quem o tenha cometido. Suas características se-
mento foi claramente percebido e relatado ao juiz de modo a riam as seguintes: a) objetiva preparar o juízo criminal contra o
impregnar seus próprios sentidos, como o flagrante delito; 2) os delinquente, b) tem por finalidade adquirir um conhecimento
notorium ius remetem à autoridade da coisa julgada e ao valor completo do ato delitivo e recolher provas sobre o autor do
da confissão judicial, que dispensa outras provas; e 3) os noto- mesmo, c) as provas devem ser colhidas com atenção às nor-
rium praesumptionis, que se confundem com as presunções mas judiciais (por notário, por escrito, etc.), d) as provas devem
iuris et de iure, que não admitem a prova em contrário. levar a Cúria ao convencimento de que o suposto delinquente
Aqui, mais uma vez, embora não seja escopo do tra- é realmente o autor do delito.
balho, esbarramos no tema da tortura. É que, na disciplina O inquisidor tinha as mesmas obrigações dos juízes, mas
acima citada, a tortura era apenas o meio pelo qual se bus- não as mesmas prerrogativas, podendo se aconselhar com o
cava a confissão judicial, já que é essa que constituía um promotor (c. 1.945). A inquisição era sempre secreta e condu-
notorium iuris e, portanto, dispensava a prova propriamente zida com cautela para não difundir o clamor do delito nem pôr
dita. Além disso, John Gilissen registra que a confessio pro em perigo o bom nome de ninguém (c. 1.943).
judicatu tinha a repercussão processual de tornar o recurso Ao fim dos trabalhos o inquisidor passava ao ordinário um
contra a condenação impossível. relatório com seu voto (c. 1.946). O ordinário, então, tinha três
alternativas: 1º. Se a denúncia parecesse desprovida de funda-
5 O CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO DE 1917 mento sólido, os autos eram remetidos ao arquivo secreto da
As disposições processuais penais do Código Pio-Benediti- Cúria; 2º. Se havia alguns indícios, porém insuficientes para ini-
no encontram-se no Título XIX, da Seção II, do Livro IV e contam ciar a ação, os autos eram remetidos ao mesmo arquivo, mas se
com 27 cânones. devia vigiar a conduta do suspeito que poderia ser admoestado,
O cânone 1.933 previa que os delitos públicos devam ser a exemplo da já citada caritativa admonitio; 3º. Se existissem
processados pelo juízo criminal. Delitos públicos, em oposição provas certas ou pelo menos prováveis e suficientes para ini-
aos notórios ou ocultos, são aqueles já divulgados ou cometi- ciar a ação, o réu deveria ser citado para o processo.
dos de tal modo que acabarão divulgados (c. 2.197, § 1º), isto é, Antes de passar ao processo propriamente dito, devem ser

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destacadas duas peculiaridades adotadas Com esse benefício, o confesso assentia está mais no último livro do código que
pelo Código para minorar as consequên- cumprir penas mais leves e benignas do passou a ser ocupado pelo livro De Pro-
cias da adoção do sistema inquisitório. A que as que poderiam ser irrogadas por cessibus (Dos Processos), pois o direito
principal delas findava a confusão entre sentença condenatória sem que o pro- processual pressupõe o direito substan-
juiz e inquisidor, uma vez que se estabe- cesso precisasse se desenrolar. Não se tivo que deve aplicar.
leceu que o inquisidor não poderia atuar concedia a repreensão a um mesmo réu As disposições processuais penais
como juiz na mesma causa (c. 1.941, § 3º), pela terceira vez (c. 1.949) e, se houvesse do Código promulgado por João Paulo
essa causa de impedimento é muito simi- uma querela de danos em razão do deli- II encontram-se na Parte IV do Livro VII,
lar a que se pretende instituir pelo projeto to, esta deveria ser resolvida com base na que conta apenas 15 cânones.
do novo Código de Processo Penal com a equidade (c. 1.951). A inquisição passou a se chamar
figura do “juiz das garantias”. Quanto ao regime de valoração das “investigação prévia” e está regulada em
A outra também possui atualidade provas, embora os comentadores do Có- termos muito mais moderados. Terá lu-
diante da recente reformulação do art. 155 digo Canônico de 1917 já referissem ao gar quando houver notícia pelo menos
do CPP vigente e vem a ser a proibição critério da certeza moral, é fácil enxergar verossímil de um delito, devendo o or-
da valoração da prova colhida na inquisi- nele ainda grande carga de sistema das dinário indagar cautelosamente sobre os
ção pela sentença do juízo criminal. Mais provas tarifadas com a previsão minu- fatos e circunstâncias, sem por em perigo
uma vez recorremos aos ensinamentos dente de critérios para a sua considera- o bom nome de alguém, a não ser que
dos professores da Pontifícia Universidade ção contida em termos como notório, a investigação lhe pareça inteiramente
Eclesiástica de Salamanca em 1954: [...] es- certa, completamente certa, provável, supérflua. Manteve-se o impedimento
tas provas [da inquisição] devem ser tais suficiente, indícios e etc. do responsável pela investigação prévia
que levem ao ânimo da Cúria o conven-
cimento de que o suposto delinquente é Antes de prosseguir com a instrução do processo, o juiz
realmente o autor do delito. Isto, sem em- deveria tentar uma espécie de advertência correcional
bargo, não quer dizer que hão de ser su-
ficientes para condenar, sem mais, o réu, chamada caritativa admonitio, que, se bem sucedida, dava fim
nem que estas não possam ser depois à investigação.
impugnadas e até desvirtuadas, uma vez
que se dê ao réu seu conhecimento em Por fim, o cânone 1.959 determina- para funcionar como juiz no mesmo caso 55
juízo. Em uma palavra: as provas reco- va que se seguisse com as demais dis- (c. 1.717).
lhidas na inquisição têm valor somente posições constantes da Seção Primeira As garantias do acusado foram man-
para informação da Cúria, podem e, de do mesmo Livro IV, referentes ao juízo tidas, como a indispensabilidade do
ordinário, devem ser levadas ao juízo contencioso (c. 1.552-1.924), com as advogado (c. 1.723), e até ampliadas,
formal; mas não têm força para decidir seguintes especificidades: a) o réu de- pois se lhe assegurou expressamente a
a causa, enquanto não se aportem em via ter advogado (c. 1.655, §1); b) du- prerrogativa de escrever ou falar em úl-
juízo e sejam perante ele legitimadas rante o interrogatório o réu não estava timo lugar (c. 1.725) e, principalmente,
mediante repetição e confrontação de obrigado a dizer a verdade (c. 1.743, § alterou-se a disciplina da confissão, con-
testemunhos, e se houver lugar, nova exi- 1), nem poderá ser submetido a jura- signando que o acusado não é obrigado
bição de documentos, etc. [...] As provas mento para tal (c. 1.744); c) como se a confessar o delito nem se pode impor
em que hão de se fundamentar a senten- tratava de bens públicos, o juiz poderia a ele um juramento (c. 1.728, §2), bem
ça devem ser juntadas aos autos dentro suprir de ofício as provas não propos- como que a confissão judicial pode ter
do juízo criminal e, por conseguinte, não tas pelas partes; d) as provas em que força de prova, a ser ponderada pelo juiz
podem fundamentar a sentença as ações se fundamentasse a sentença deviam juntamente com as demais circunstân-
praticadas na inquisição especial ou su- ser produzidas em juízo; e) a confissão cias da causa, mas não se pode atribuir
mária, se não são juntadas aos autos em judicial não dispensava o promotor de a ela força probatória plena, nas causas
juízo e se não se concede ao réu ampla apresentar provas (c. 1.752); f) a con- que afetem o bem público, a não ser que
faculdade para que possa impugna-las 5 . fissão feita durante a inquisição podia haja outros elementos que a corroborem
(Tradução do autor) ser retratada em juízo (c. 1.753); e g) plenamente (c. 1.536, § 2).
Antes de se passarem os autos ao quando das alegações orais considera- Outra inovação relevante foi estabe-
promotor de justiça para a redação do va-se conveniente que o réu fosse o úl- lecer um procedimento administrativo, a
“escrito de acusação” (c. 1.955), e, ten- timo a falar, mesmo não existindo essa resguardar o direito do contraditório e da
do em mente a especial importância da previsão expressamente no Código. ampla defesa do acusado, mesmo para
confissão para a religião católica6, se o as condenações por decreto extrajudicial
réu, ao ser interrogado, confessasse o 6 O CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO DE 1983 (c. 1.720). Ainda assim, conforme anota
delito, devia ter lugar a repreensão do O novo direito penal está no Código Tlaga (2003, p.17), o processo judicial é
delinquente (c. 1.947) acompanhada de 1983, no Livro VI, dos cânones 1.311 preferível ao administrativo, tendo em
de saudáveis advertências, alguns re- a 1.399, sob um novo título: De Sanctio- vista a sua transparência e as franquias
médios oportunos ou a imposição de nibus in Ecclesia (Das Sanções na Igreja). concedidas à defesa.
penitências ou obras piedosas (c. 1.952). De maneira coerente, o direito penal não Passado o prestígio das provas le-

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gais7, os fatos da causa deduzidos pelas partes devem ser pro- do direito; b) reconhece um sistema de recursos; c) adquiriu
vados por meios próprios e racionais, disciplinados no Título uma natureza inquisitorial mais do que adversarial; d) impôs a
IV da II Parte do Livro VII do Código vigente, que possibilitem escrita sobre a oralidade; e e) contribuiu para o fim das provas
ao juiz o livre conhecimento da verdade e, consequentemente, irracionais, como as ordálias.
da certeza moral. O ônus da prova incumbe a quem afirma e
no processo penal, portanto, ao promotor de justiça (c. 1.526).
A maior inovação do direito penal e processual penal canô- NOTAS
nico de 1983 reside, a nosso sentir, no que Jesús Hortal (2011, 1 O Código de 1917 falava em penas vindicativas como sinônimo das atuais
expiatórias. A expressa remissão à vingança foi abandonada pelo Código
p. 595) nominou ser um dos princípios fundamentais do novo de 1983.
direito penal canônico: o de esgotar todos os outros meios an- 2 O 1º Código Canônico também é chamado de “Pio-Beneditino” porque,
tes de recorrer à imposição de penas. embora formalmente promulgado pelo Papa Bento XV, muito de sua ela-
boração se deveu ao Papa Pio X.
Com efeito, dispõe o cânone 1.341 do Código de Direito 3 Existe alguma controvérsia sobre as datas exatas, em especial quanto às
Canônico: Extravagantes que alguns autores subdividem em Extravagantes de João
Título V XXI (1324 ou 1325) e Extravagantes Comuns (1484). (Gilissen, 1995,
p. 147; Batista, 2002, p. 193).
Da Aplicação das penas 4 O termo “inquisição especial” tem aqui o sentido antes registrado em
Cân. 1341 – O ordinário só se decida a promover a pro- contraposição a inquisição geral.
cedimento judicial ou administrativo para inflingir ou declarar 5 Texto original : [...] estas pruebas [da la inquisición] deben ser tales
que lleven al ánimo de la Curia el convencimento de que el presunto
penas, quando vir que nem a correção fraterna, nem com a delincuente es realmente autor del delito. Esto, sin embargo, no quiere
repreensão, nem por outras vias de solicitude pastoral, se pode decir que hayan de ser suficientes para condenar, sin más, al reo, ni qui
reparar suficientemente o escândalo, restabelecer a justiça e éste no pueda después impugnarlas y hasta desvirtuarlas, una vez que
se le dé conocimiento de ellas en el juicio. Em una palavra: las pruebas
corrigir o réu.
recogidas en la inquisición tienen valor solamente para información de
Assim, para Orsi (2009, p. 67), o ordinário, isto é, o superior la Curia; pueden y, de ordinário, deben llevarse al juicio formal; pero no
com poder de regime, no foro externo, competente para im- tienen fuerza para decidir la causa, en tanto no se aporten al juicio y sean
por e declarar penas, antes de instaurar o processo, judicial ou en él legitimadas mediante la repetición y confrotación de testigos, si hay
lugar a ella; exhibición nueva de documentos, etc. [...] Las pruebas em las
administrativo, deve certificar-se da estrita necessidade de ins- que haya de fundamentarse la sentencia deben ser aportadas a los autos
tauração de um procedimento judicial. O processo não será ne- dentro del juicio criminal; por conseguiente, no puede fundamentarse
cessário se os fins das penas já foram suficientemente atingidos. la sentencia em las actuaciones practicadas em la inquisición especial
o sumario, si no se aportan a los autos del juicio y se le concede al reo
56 Acrescenta ainda o citado canonista que as penas medici- facultad amplia para que pueda impugnarlas. (DOMÍNGUEZ et al., 1954,
nais visam à correção do réu, enquanto as penas expiatórias p. 722; 727)
almejam a reparação do escândalo e o restabelecimento da 6 Para Nilo Batista : A confissão foi o grande veículo cultural que difundiu
por todo o ocidente cristão a equação penal, tal como formulada pelo
justiça. Desse modo, em se tratando das medicinais, estas atin- pensamento jurídico canônico, impregnada até os ossos pela idéia da
girão os seus fins quando o réu abandonou a contumácia, isto intervenção moral. De ouvido em ouvido, a sottovoce, a alma ocidental
é, quando houve a suficiente reparação ou, pelo menos, a pro- aprendia uma correlação mística: a penitência (pena) é consequência
inexorável do pecado (delito) que cumprida pelo confitente (réu) contrito
messa de reparar o escândalo e de recompor a justiça. Já nas o redime perante Deus (a ordem jurídica). A própria confissão viria a
expiatórias não é suficiente a correção com a promessa, mas reinar como prova central e decisiva de uma nova dramatização recons-
exigem-se uma verdadeira e objetiva reparação do escândalo trutiva do crime, conduzida precisamente por quem dispunha do poder
de absolver – ou de condenar –, e cuja curiosidade insvestigatória apenas
e o restabelecimento da justiça (ORSI, 2009, p. 67). Destaque- se saciava com a voz do suspeito. Podemos falar perfeitamente de uma
-se, por oportuno, que o cânone 1.341 pode ser aplicado ao matriz do reinado da confissão. (Batista, 2002, p. 204)
final da praevia investigatio, em expresso juízo de conveniência 7 Cruz e Tucci e Azevedo (2001, p. 121) apontam, na regra do testis unius,
testis nullius constante do cânone 1.573, um resquício do sistema da prova
(c. 1.718, § 1, 2º).
tarifada.
Por derradeiro, vale mencionar a regra geral contida no câ-
none 1.728, que manda aplicar ao juízo penal as disposições
sobre os juízos em geral e sobre o juízo contencioso ordinário
REFERÊNCIAS
(c. 1.400-1.655). BARROS, José Francisco Falcão de. Delitos e crimes na Igreja Católica. Apare-
cida: Santuário, 2006.
7 CONCLUSÃO BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro – I. Rio de Janeiro:
Revan, 2. ed., 2002.
Como assevera Lopes (2000, p. 83), é fortíssima a CRUZ E TUCCI, José Rogério; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de processo civil
influên­cia do direito canônico sobre o direito processual canônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
porque o processo do direito comum é essencialmente ela- DOMÍNGUEZ, Lorenzo Miguélez; MORÁN, Sabino Alonso; DE ANTA, Marcelino
Cabreros. Código de derecho canónico y legislacion complementaria. Madrid
boração dos canonistas. (Espanha): Biblioteca de Autores Cristianos, 1954.
Na área do processo penal chamam à atenção as similitu- FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do direito penal: crime natural
des encontradas entre o inquérito e a inquisitio. De fato, não e crime de plástico. São Paulo: Malheiros, 2005.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 2. ed. Lisboa (Portugal): Ca-
só não há espaço para o exercício do contraditório durante o
louste Gulbenkian, 1995.
inquérito, como na figura do delegado se pode enxergar a con- HORTAL, Jesús. Código de direito canônico. (Tradução da Conferência Nacional
fusão entre acusador e juiz. dos Bispos do Brasil), 20. ed., São Paulo: Loyola, 2011.
Como principais contribuições do processo canônico para LIMA, Maurílio Cesar de. Introdução à história do direito canônico. São Paulo:
Loyola, 1999.
o direito processual em geral podemos anotar (SAMPEL, 2001, LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. São Paulo: Max Limonad, 2000.
p. 64): a) trata-se de um processo conduzido por profissionais ORSI, João Carlos. Direito penal canônico. São Paulo: LTr, 2009.

Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 59, p. 51-57, jan./abr. 2013


PIRANGELLI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legis-
lativas. Bauru: Jalovi, 1983.
SAMPEL, Edson Luiz. Introdução ao direito canônico. São Paulo: LTr, 2001.
TLAGA, Mieczyslaw. Aplicação de penas canônicas: justiça com caridade. São
Paulo: LTr, 2003.
UCLA Digital Library Program. Corpus Juris Canonici (1582). Disponível em:
<http://digital.library.ucla.edu/canonlaw>. Acesso em: 20 maio 2012.

Artigo recebido em 29/5/2012.


Artigo aprovado em 24/9/2012.

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Cláudio Demczuk de Alencar é advogado e consultor legis-


lativo do Senado Federal.

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