TRAVESSIA

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 196

SUMÁRIO

Apresentação
José Carlos A. Pereira

ARTIGOS

Velejando sobre o manto da infância nas poesias africanas de expressão


portuguesa – O menino e o búzio, de Sebastião Alba e Saudade e espanto,
de Mark Dennis Velhinho....................................................................... 09
Edimilson Rodrigues

Lugar para estar: a frequência de pessoas em situação de rua na


biblioteca pública..................................................................................... 25
Luiza Arantes Nasser

A Migração do Sul Global para o Norte Global por estilo de vida:


individualismo, classe social e liberdade em uma cidade de
‘superdiversidade’................................................................................... 45
Daniel Robins

Migração qualificada: profissionais brasileiros qualificados no


Canadá.................................................................................................. 71
Lucia Maria Machado Bógus
Ana Maria Morini

A reprodução da etnicidade teuto-brasileira nas oktoberfest .......... 91


Fernando Diehl

Trocas culturais: universidade e pessoas refugiadas ....................... 105


Rebeca Haddad
Guilherme dal Secco
Silvia Regina Viodres Inoue
Denise Martin

A presença síria na cidade do Rio de Janeiro: uma análise


socioespacial................................................................................... 117
Isabella Ferreira Silva
Alinne Ferreira da Silva
O (não)reconhecimento da migração climática e a possibilidade de
proteção pelos mecanismos do direito das mudanças climáticas..... 135
Jéssica Aline Gomes

Migrar intersubjetivo: um ensaio sobre as diferenças do “eu” e do


“nós” em estudos de caso sobre a mobilidade.................................. 157
Beatriz Castelo Branco Maciel

POEMAS

Tributo a Moïse Mugenyi Kabagambe – todos os migrantes do mundo


Quem me matou foi o Brasil................................................................. 171
Sergio Ricciuto Conte

Eu só queria trabalho e pão.................................................................. 173


Alfredo José Gonçalves, Cs

Tributo aos trabalhadores


A formiguinha urbana e Deus Todo Poderoso.................................. 175
Luiz Kohara
Apresentação

José Carlos A. Pereira

A presente edição da Revista Travessia propõe debates sobre diversos


temas das realidades dos migrantes: há textos que abordam sobre literatura
e migração; memória; biblioteca pública como espaço de leitura, informação,
atividades recreativas e segurança para pessoas em situação de rua,
dentre elas, migrantes; migrações por estilo de vida; imigrantes brasileiros
profissionalmente qualificados no Canadá; etnicidade e festas culturais, com
enfoque nos teuto-brasileiros; o potencial e os desafios de universidades na
contribuição à acolhida e inserção social de pessoas em situação de refúgio; a
visibilidade e a inserção social de sírios na cidade do Rio de Janeiro, a partir de
suas atividades comerciais; as diferenças do “eu” e do “nós” em estudos de caso
sobre mobilidade humana; o (não)reconhecimento da categoria “migrantes
climáticos” e a possibilidade de direitos para pessoas migrantes atingidas pelas
mudanças climáticas; o assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe, imigrante
congolês, como mais uma demonstração do racismo estrutural da sociedade
brasileira que, por sua vez, (re)produz o mito da democracia racial; e a (in)
visibilidade violenta sobre trabalhadores que constroem e sustentam o pulso
frenético da metrópole, sem nela poder gozar ou gozando muito precariamente,
de fato e de direito, o “sétimo dia”.
Essa sumarização nos antecipa que a edição 93 de Travessia não traz um
dossiê com aprofundamento em um tema específico. Contudo, as questões
abordadas dialogam e articulam entre si. E isto não apenas porque a Revista
Travessia seja especializada em migrações. Outrossim porque os textos tomam
como princípio, explícito ou implícito, o direito humano de migrar (o que pode
ser entendido por emigração – previsto na legislação internacional de direitos
humanos –,mas, também, por imigração, sendo este último ausente na referida
legislação) e o direito à acolhida universal já debatidos, mas não esgotados,
por Jürgen Habermas (2004), Seyla Benhabib (2005), Hannah Arendt (2007),
Immanuel Kant (2008) etc.
Os diversos temas, trazidos à baila com um fio condutor na perspectiva
do direito à acolhida – acolhida de modo integral, como proposto pelo Papa
Francisco (2017) a partir da concepção de quatro verbos: “acolher, proteger,
promover e integrar” migrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade
social – contribuem para ilustrar a multiplicidade de situações sociais, teóricas e
metodológicas nas quais tal direito pode e deve ser abordado em vista de melhor
compreensão, difusão e gozo efetivo de suas propostas e significados. E isto,
sobretudo, em contextos políticos e em sociedades estruturadas na violência

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 3


étnico racial, na xenofobia, nas relações assimétricas de gênero, na injustiça
social e no manejo predatório de recursos naturais que sustentam e reproduzem
formas de dominação e violação de direitos que, por sua vez, são fundantes da
produção e reprodução capitalista.
Não obstante seu estreito diálogo com a defesa do direito à acolhida, os temas
dessa edição (literatura, memória, trabalho, estilo de vida, mudanças climáticas,
alteridade/identidade, violência) têm autonomia teórica e metodológica próprias
sem prejuízo para a articulação entre si e com outras perspectivas epistemológicas
como a psicologia, a linguística, a educação, a sociologia da afetividade, as
relações internacionais etc., hoje tão pertinentes para pensar e buscar soluções
para questões práticas de saúde mental, parentalidade na migração, cruzamento
de fronteiras e o “direito a ter direitos” (Arendt, 2007) de migrantes, refugiados
e suas famílias, principalmente no que tange à participação crescente de crianças
e mulheres nos processos migratórios.
É assim que Edimilson Rodrigues, em Velejando sobre o manto da infância
nas poesias africanas de expressão portuguesa – O menino e o búzio, de Sebastião
Alba e Saudade e espanto, de Mark Dennis Velhinho, propõe abordagens sobre
a memória a partir de “questões sobre o mar na literatura africana de expressão
portuguesa”. O autor, em texto de primor literário e sociológico, toma “algumas
das metáforas de tempo e infância como constituintes da memória”. Ao navegar
pelo vai e vem da memória em conchas de búzios disfarçadas de navios, Rodrigues
sugere, nas entrelinhas, uma estreita relação entre as naus lusitanas, a poesia
africana, a imaginação, memória e migração.
Luiza Arantes Nasser, em Lugar para estar: a frequência de pessoas em
situação de rua na biblioteca pública, analisa a frequência de pessoas em
situação de rua, dentre elas migrantes, em bibliotecas públicas de São Paulo,
e possibilidades dessas bibliotecas oferecerem acolhimento àquelas pessoas. O
artigo de Luiza Arantes Nasser torna-se ainda mais relevante em um contexto de
baixa produção de pesquisas acadêmicas, no Brasil, sobre esse tema e, também,
numa quadra histórica dramática em que aumenta a população em situação de
rua, em face do desemprego crescente, despejos de moradias, Covid-19 ao lado
de outras mazelas sociais, já há muito conhecidas, como a violência, o alcoolismo
e uso de drogas ilícitas escamoteadas por setores do poder público e por grupos
sociais conservadores como “coisas de vagabundo”.
Daniel Robins, em “A Migração do Sul Global para o Norte Global por
estilo de vida: individualismo, classe social e liberdade em uma cidade de
‘superdiversidade’”, faz uma análise sobre migrantes brasileiros de classe média
em Londres – na perspectiva conceitual de “migrantes por estilo de vida” – em
relação aos cognominados “migrantes econômicos”. O autor destaca a dicotomia
estabelecida entre o primeiro e o segundo grupo de migrantes, na qual este
último é visto pelo primeiro como o “outro” num processo de construção e
demarcação de alteridades que envolve o pertencimento a uma determinada
classe social, status e estilo de vida.

4 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Lucia Maria Machado Bógus e Ana Maria Morini, em “Migração qualificada:
profissionais brasileiros qualificados no Canadá”, propõem a ampliação do
conceito de migração qualificada como uma modalidade no universo teórico
metodológico da mobilidade humana, a partir da análise da inserção de
migrantes brasileiros, profissionalmente qualificados, no mercado de trabalho
canadense. As pesquisadoras ponderam que a melhor qualidade de vida no
Canadá “compensa os desafios profissionais” que os migrantes precisam
superar para ocupar postos de trabalho compatíveis com a sua formação ou
qualificação profissional.
Fernando Diehl, em “A reprodução da etnicidade teuto-brasileira nas
oktoberfest”, discorre sobre a “reprodução da identidade dos imigrantes em
suas respectivas festas étnicas, com enfoque na população teuto-brasileira e as
Oktoberfest que ocorrem no Brasil”. Ao analisar a oktoberfest, o autor observa
que, ao contrário do que se imagina, a festa étnica não tem uma dimensão
estática. Na verdade, ela é composta por simbologias que, de maneira processual,
produzem signos que demarcam fronteiras de diferenciação étnica.
Rebeca Haddad, Guilherme dal Secco, Silvia Regina Viodres Inoue e Denise
Martin, em “Trocas culturais: universidade e pessoas refugiadas”, buscam
compreender os desafios inerentes ao processo de inserção de pessoas, em
situação de refúgio, em universidades brasileiras. A despeito de conquistas
importantes como a implementação das cátedras Sergio Vieira de Mello, e
“bolsas de estudos”, os autores apontam para obstáculos (proficiência em Língua
Portuguesa, barreiras culturais, condição socioeconômica, lenta integração
à comunidade acadêmica, dependência da internet e computadores da
universidade) que bloqueiam o acesso de refugiados às universidades brasileiras.
Isabella Ferreira Silva e Alinne Ferreira da Silva, em “A presença síria
na cidade do Rio de Janeiro: uma análise socioespacial”, analisam o contexto
histórico e as relações de imigrantes sírios na capital fluminense. As autoras
observam que as barraquinhas de comida árabe são expressão significativa da
presença desses imigrantes em alguns bairros e regiões, “o que permite concluir
que essa população tem um importante papel na constituição sócio-econômico-
espacial na cidade do Rio de Janeiro”.
Beatriz Castelo Branco Maciel em, “Migrar intersubjetivo: um ensaio sobre
as diferenças do “eu” e do “nós” em estudos de caso sobre a mobilidade”, analisa
a “dicotomia entre indivíduo e sociedade através do trabalho de Christina
Toren, João de Pina-Cabral, Udeni Appuhamilage e Maurice Leenhardt, a partir
da perspectiva de migrantes de países da África Subsaariana que moram no
Brasil”. A autora destaca aspectos concretos das experiências dos migrantes,
relacionando-os com o papel da construção de uma consciência individual. Para
isso, utiliza estudos atrelados à intersubjetividade e à sociabilidade.
Jéssica Aline Gomes, em “O (não) reconhecimento da migração climática e a
possibilidade de proteção pelos mecanismos do direito das mudanças climáticas”,
analisa a relação entre clima e migrações, o não reconhecimento da categoria de

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 5


migrantes climáticos e os motivos da ausência de um tratado internacional sobre
o tema. A autora também destaca os instrumentos jurídicos que normatizam os
efeitos sociais das mudanças climáticas, e aponta para a possibilidade de utilizar
mecanismos de adaptação, perdas e danos para regulamentar essas migrações.
Sergio Ricciuto Conte, artista visual e capista de Travessia, em “Quem me
matou foi o Brasil”, homenageia Moïse Mugenyi Kabagambe, refugiado congolês,
espancando até a morte na cidade do Rio de Janeiro, por ter reivindicado o
pagamento por seu trabalho em um trailer fast food.
Alfredo José Gonçalves, missionário scalabriniano e Vice-presidente do
Serviço Pastoral dos Migrantes, em “Eu só queria trabalho e pão”, também
homenageia Moïse Mugenyi Kabagambe.
Na verdade, Sergio Ricciuto e Alfredo Gonçalves, ao prestarem tributo a
Moïse, homenageiam todas as pessoas migrantes, refugiadas, solicitantes de
refúgio, apátridas, deslocadas que procuram romper fronteiras geográficas,
políticas, sociais e culturais em busca de dignidade humana. Cabe ainda destacar,
em suas respectivas homenagens, por um lado, a denúncia do caráter racial e
xenófobo que estrutura a sociedade brasileira e, por outro, a prerrogativa de que
migrantes buscam oportunidades, um novo recomeço para suas vidas e oferecem
possibilidades de maior riqueza e intercâmbio cultural, desenvolvimento
econômico, político e social para sociedades de origem, trânsito, destino e
circularidade das migrações.
Luiz Kohara, engenheiro (FAU/USP), assessor de movimentos de luta por
moradia no Brasil, professor e membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos
Humanos, em “A formiguinha urbana e Deus Todo Poderoso”, nos convida
a refletir sobre as condições de vida e de trabalho das pessoas que cruzam e
recruzam as metrópoles num frenesi laboral permanente mas que, quase
sempre, sofrem a violência do não reconhecimento e da invisibilidade social.
Mesmo assim, esses trabalhadores desafiam o poder e a lógica predatória do
capital, a subserviência de instituições políticas e sociais, a indiferença de grupos
sociais avessos a igualdade jurídica das pessoas, e estão ali como uma resiliência
e uma utopia pelo direito à cidade e à vida.
Umas palavras sobre a arte da capa, de Sergio Ricciuto Conte, para esta edição.
Nela vemos uma cidade – que sugere pluralidade de moradas, de identidades,
de vidas, de pessoas – onde podemos criar, transformar e experimentar relações
sociais, num processo contínuo de tensões, disputas, mas também de afirmação
de alteridades e possiblidades; uma cidade complexa, espelho das nossas
capacidades criativas e onde, ao menos em potência, cabemos todos, migrantes
e autóctones.
A cidade evoca os livros e o tema da literatura como registros das nossas
práticas e reflexões, meios e mediações das nossas memórias, dos territórios
objetivos, subjetivos, metafísicos que construímos, por onde podemos caminhar,
chegar e sermos acolhidos.

6 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A silhueta da árvore, com seu tronco fixo e seus pássaros migrantes, propõe
um contraponto à cristalização de qualquer ideia ou visão unilateral de mundo,
pois também sugerem caminhos para a mobilidade e, através dela, a capacidade
de fazermos novas todas as coisas, inclusive as concepções de humanidade e
modernidade tão desgastadas pela estupidez da xenofobia, do racismo e da
guerra em nosso tempo.
Em síntese, há uma objetividade, mas também uma subjetividade,
amalgamadas entre si, que nos convidam a diferentes interpretações e formas
de reagir ao que foi feito de nós, de sermos e estarmos no mundo da vida com
seus múltiplos sertões e veredas onde, simultaneamente, tudo é e não é. Pois,
não obstante a força estrutural e destrutiva da ideia do outro como estranho e
inimigo, também há uma potência para a concepção do outro como oportunidade
para nós, para a cidade e para o amor universal. Outra modernidade é possível?
Sob que pressupostos e a partir de quais caminhos?

Boa leitura!

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forence Universitária, 2007.

BENHABIB, Seyla. Los derechos de los otros. Barcelona: Gedisa, 2005.

FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco aos participantes no Fórum Internacional


sobre Migração e Paz. Roma, 2017. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/
francesco/pt/speeches/2017/february/documents/papa-francesco_20170221_forum-
migrazioni-pace.html>. Acesso em 10 de fevereiro de 2022.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições
Loyola, 2004.

KANT, Immanuel. A paz perpétua. um projecto filosófico. Trad. Artur Morão. Colecção: Textos
Clássicos de Filosofia. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. Disponível em:
<https://missaonspaz.org/politicas-institucionais/>. Acesso em 14 de fevereiro de 2022.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 7


8 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
Artigos

Velejando sobre o manto da


infância nas poesias africanas de
expressão portuguesa – O menino
e o búzio, de Sebastião Alba e
Saudade e espanto, de Mark Dennis
Velhinho

Edimilson Rodrigues*

É do mar que vêm estas vozes


silabando a linguagem das marés,
gravando na areia estranhas grafias
onde, quem sabe ver, desvenda o rumo
no sobressalto das ondas
Cândido da Velha in Secco (1996, p.49).

1 INTRODUÇÃO

A análise da poética africana de expressão portuguesa versa sobre dois


poetas – Sebastião Alba, moçambicano e Mark Dennis Velhinho, caboverdiano –,
por trazerem a marca das rasuras que a infância, vítima do colonialismo, posterga
no sujeito. E, neste caso, nos sujeitos possuintes da metáfora do mar como
elemento de recuperação da memória que imprime traços do subjetivo perdido:
a ludicidade.
O subjetivo ficou armazenado nos porões da nau-memória, e hoje, dá
lugar ao objetivo conquistado que desvela, ludicamente, a opressão histórica
do período colonial, trazendo o menino como portador de saberes culturais e
tradicionais; mas, acima de tudo, do saber histórico por ele vivenciado e recriado
recriando a linguagem da infância.
A poesia africana de expressão portuguesa surge, pois, nos textos em
análise, como um jogo lúdico, do artífice da palavra que a recompõe na oficina da
criação. Poesia, memória e infância estão umedecidas pelas ondas, e banhadas
pela espuma do mar que, ao mesmo tempo que doa dores do passado colonial,
entrega o prazer das recordações da infância, dilacerada em pelo colonialismo.

* UFMA /AXOLOTL

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 9


Desse modo, a poesia surge como um barco condutor e recuperador de
imaginários, de memórias os quais permitem reviver o que lhes foi proibido – a
liberdade, inclusive, da manifestação da palavra escrita.
Surge, anos depois, o texto mnemônico, com a harmonia estético-literária
infantil como um dos legados da poesia africana aos leitores.
O barco-canto dos autores elencados (O menino e o búzio, de Sebastião Alba
e Saudade e espanto, Mark Dennis Velhinho in Apa 2003) nos proporciona uma
viagem pelas quilhas da história de Cabo Verde e Moçambique, com o fito de
aliviar o peso da carga e com ela partilhar ao leitor, o panorama que se apresenta
desde a metáfora do “barco” nas duas obras aqui selecionadas.
A intertextualidade, nos dois poetas, nos proporciona passagens inusitadas
por portos que ancoram a poesia com o compromisso da aprendizagem fraterna,
com a harmonia da chegada e da partida, através do texto, que os dois países
africanos possibilitam.
Doam os textos, infinitudes de diferenças marítimo-textuais, mas similares
em incursões resultantes da expressividade de sentidos e ideias, pois, “Não
obstante a história nacional registrar suas primeiras linhas à custa de sangue e
desencanto, uma outra expressão artística alçou seu vôo” Campos Almeida in
Patraquim (2011, p.164);
São demonstrações de que, na urgência de recuperar a infância perdida,
através do literário, para que a vida recuperasse seu imaginário coletivo
comprometido com os rituais da ancestralidade, da história e da cultura,
aparecem no mar da criação oral, no qual a presença da criança, está estampada
em trajetórias de construções do sujeito, em processo de formação, ainda e
sempre, com o mar como mensageiro.

2 AINDA E SEMPRE A HERMENÊUTICA DO MAR

É evidente que esse artigo não pretende usar a metáfora do mar para
definir produções literárias complexas, amplas e plurais, como as de Cabo
Verde e Moçambique; mas, demonstrar que elas resultam de convergências
conflitivas ao longo da história, tendo o mar nas obras literárias africanas, como
uma possibilidade de representação natureza/homem que sofreu as mazelas
do sistema colonial e que, também, por isso, possibilitou, aos poetas, a escrita
como uma colcha de retalhos imantada de símbolos marítimos, mitos, memórias
e emblemas da colonização.

Cosmicamente conotado, o mar é fonte de energia


criadora e, por sua ambivalência, é visto, desde remotas
eras, como local enigmático, território de mistérios e
brumas – símbolo do inconsciente coletivo, onde residem,
segundo o filósofo Gaston Bachelard, “sob as imagens
superficiais das águas, imagens profundas, cada vez mais
tenazes” (Secco, 1996, p.09).

10 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


O mar, como emblema mnemônico, surge como a arte de entalhes na
literatura africana. Cada poeta insere um corte diverso na madeira-palavra,
vincando sua marca mais profunda ou mais duradoura, qual as ondas, em
propulsão sinestésica, porque vincadas à dor e às experiências. Pois, no uso da
palavra, quanto mais alta a onda, tanto maior a dor que o signo representa; e,
quanto mais profunda a palavra, mais simbolicamente destrói o colonialismo.
Assim, as ondas estão sempre quebrando na orla do sujeito poeta, que as busca,
constantemente, como motivo de poesia.
A historiografia literária e a crítica rastrearam, através do texto literário,
formas próprias para contar a multiplicidade de imagens que surgem das
produções africanas marcadas pela poética do mar1. Desde análises literárias e
antologias sobre a temática, têm surgido estudiosos que sustentam a existência
de um campo conceitual do mar na literatura africana. Abordam, direta ou
indiretamente, a existência dessa temática como uma categoria que apresenta
alguns elementos diferenciais, desde os textos seminais de Secco (1996, 1999): O
mar como metáfora de evasão, como signo de liberdade, ser que liga extremos;
o mar como instância de produto cultural e econômico, e, ainda, como paradoxo
de progresso, além de funcionar como elemento associativo ao corpo feminino,
nas literaturas africanas.
Essa é uma das abordagens suscitadas pela estudiosa Carmem Lúcia Tindó
Secco, desde os textos seminais, sobre a poética do mar na literatura africana –
Mar, mito e memória na poesia africana do séc. XX: uma abordagem teórica da
questão (1996), As conotações do mar na poética moçambicana (1999). Deles
surgem estudos que discutem metáforas que reduplicam a ideologia colonial,
nas literaturas africanas, tendo o mar como tema.
Confirmando o pressuposto desta metodologia, a percepção de um
fenômeno não se dá imediatamente ao seu observador e que a maneira como
o percebemos é apenas uma das faces com a qual ele se mostra, podemos dizer
que essa é uma das muitas formas de sua existência.
Deste modo, são, basicamente, essas obras (Cadernos de Letras Africanas
I, II e III), organizadas pela pesquisadora Carmem Lúcia Tindó Secco, que nos
norteiam na incursão deste trabalho, em conjunto com teóricos e escritores que
abordam o assunto, pois,

O poetar é a maneira pela qual o homem dá as mãos à


linguagem, arremete-se nas ondas do mar e se afigura
poeta, portanto, habitante da errância de ser com o outro,
na medida em que o outro não é alguém à parte, mas ele
mesmo enquanto faceta ainda velada do que se apresenta
ao mundo, à realidade (PESSANHA, 2013, p.115).

Destarte, após a leitura minuciosa dos textos de Dennis Velhinho e


Sebastião Alba, realizaremos nossas análises consorciadas a outros poetas
que também tangenciam o tema, o que, em alguns momentos, neste texto em
particular, nos auxilia teoricamente.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 11


3 O MAR CONDUTOR DE IMAGINÁRIOS

Os símbolos que remetem à dinâmica do mar, na literatura africana, são


múltiplos. Começamos por um símbolo mínimo, ou seja, o que permite um
transporte razoável de ideias e culturas. Um barco transporta ilhéus, transporta
alimento em percurso e espaço delimitados. No imaginário do eu-poético, o barco
voga entre extremos simples: a infância e o brincar; no imaginário dos poetas, o
barco hiberna nas praias da memória entre história e literatura, sociologia dos
eventos e eventos sociológicos.
O brinquedo como barco, na imagem que o poeta recorta da infância, leva o
imaginário do eu-poético ao extremo da liberdade. Esta flutua no manto sagrada
dos sonhos, e o barco, no manto sagrado do mar que oceaniza as vocações, cerze
de azul o céu das lembranças, na moldura do ilimitado: o texto literário que, no
ensejo de descobertas poético-sociais, traz, ao centro da imagem, o país assolado
pelas grandes naus, pelos navios acompanhados das desolações sócio-históricas.
Os sonhos possibilitam, ao menino, condutor arguto dos desejos, trazer
à margem as querências. O barco, como objeto de construção simples, é o
brinquedo da ludicidade e do aprendizado histórico – navega em imaginários,
aprende a brincar com imagens e palavras.
O lúdico se apodera das invento-criatividades e faz morada no universo da
criação; no longo do manto de invenções onde se concretiza o diálogo entre
palavras e imagens, com as quais, o barco retém a criança, como prisioneiro
insonte da infância e da memória: oh palavra poética – “O mar somos nós todos/
O mundo/ Em água condensado” Antero Abreu in Secco (1996, p.56), pois, são
os poetas unânimes em declarar amor & mar concatenados à imagem matricial
da infância, usemos três exemplos:

a) “Depois da chuva/ os meninos em bando/ largavam a lagoa/ vinham


brincar a navegação./ Do pequeno porto/ saiam então gasolinas dongos/
navios de grande calado até/ feitos uns de bimba/ mafureira/ outros de
tampa/ de cartão” João Maria Vila Nova in Secco (1996, p.55);

b) “Eis-me navegador. Um sonho abarco./ A Vida é Mar, a Vida é toda um


Mar./ E quem tem alma e sabe o que é sonhar/ – há de lançar às águas o
seu barco.” Geraldo Bessa Victor in Secco (1996, p.27);

c) “oh veleiro encarnado/ encarnado em lata de cacau// oh veleiro/


singrando de velas enfunadas/ por/ mares de prata/ oceanos de
saudade” Arlindo Barbeitos in Secco (1996, p.79).

O poeta, assim como a criança, convocado à ventura marítima, é um nauta


de aventuras que incursiona fundo no mar da palavra, vai rente em direção à sua
terra firme, com objetos que lhe são caros. Ainda que estes sejam os desprezados

12 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


pelo consumo dos estrangeiros; o que em suas descobertas, constitui uma
coleção de encantamentos e conquistas, pois, “(...) a vitória será deles/ dos
meninos sujos da Malanga ao Bairro/ que morrem, sofrem,/ durante centenas de
anos/ brincando com coisas sujas/ raras estrangeiras” Fernando Ganhão in Saúte
(2004, p.332) que, no entanto, irão compor, no papel da escrita, a coerência dos
deslumbramentos.
Os barcos são lançados à água, juntamente com símbolos da opressão que
violentam a paisagem e o imaginário social de consumo do menino – “lata de
cacau, tampa de cartão”, os quais estão imantados às recordações dos objetos
úteis à fabricação do lúdico, mas, também, e, principalmente, do estético que,
constituintes dos “oceanos de saudades”, recuperam a infância estilhaçada.
Porque restaurada pela “sensibilidade (...)/ de todos os sentidos presentes”
Maria Eugênia L. Silva in Secco (1996, p.48) propõe reflexões do passado. A
ludicidade, vivida pelo brincar-navegar, constitui os elementos da fábula infantil
que estrutura a ficção do real “Como um feto ligado à placenta pelos canais da
seiva”, com “os meninos indo à conquista do mundo com a mão dada” Glória de
Sant`Ana in Saúte (2004, p131) ao “fio elástico da memória”.
São poucos, os nossos exemplos tomados anteriormente, mas
significativos recortes, sobre o tema do barco, no mar da literatura, pois se
relacionam à infância e se sedimentam, desde há muito, na poesia africana
de expressão portuguesa, versando entre morte e amor, partida e chegada.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 592) “Vem daí que o mar é ao
mesmo tempo a imagem do amor e da morte” e, que, “Entre os místicos, o
mar simboliza o mundo e o coração humano, enquanto lugar das paixões”
Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 593).
Um outro ente simbólico, ao longo do manto de invenções literárias
africanas, é o navio, o qual proporciona uma incursão, no poder criador que faz
da memória, um parceiro da infância que nela navega como um nauta ligado à
toa “com a alma toda com uma convicção comunicativa” Ennes in Saúte e Sopa
(1992, p. 99), de amor e lembranças:

a) “Entre Macúti e Sofala/ Todo o mar é uma lembrança:/ – Cada navio que
chega/ Traz meus sonhos de crianças!” Jorge Villa in Saúte (2004, p.);

b) No dia em que te foste embora,/ longos navios de silêncio/ encheram a


casa,/ tão grande, tão vasta!” Manuela Margarido in Apa (2003, p.270);

c) As ilhas/ por quererem ser navios/ Ficaram naufragadas/ entre mar e


céu” Agnaldo Fonseca in Apa (2003, p.138);

d) “depois vieram os navios,/ e arrastaram-me o teu coração” Sergio Vieira


in Saúte (2004, p.347).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 13


Nos exemplos, os navios, como noutros – barca, nau, naves, caravelas –,
são elementos de agregação de sensibilidades, mas, também, imprimem o
campo simbólico da revolta; pois o mar trouxe o navio para os despojar de suas
liberdades, posto que, ainda paira na imensidão da lembrança, a ideia de que o
Atlântico apagou as marcas das naus do Índico: – “Ai este Atlântico triste/ que
nos deu a nostalgia/ dum mundo que só existe/ no sonho que ele povoou...”
Jorge Barbosa in Apa (2003, p.130).
Os excetos acima servem, ainda que reduzidos, como exemplos nos quais o
imaginário marítimo, tanto adulto como infantil, habita a metáfora dos sonhos da
criança que ainda vive neles, nos poetas. Metáfora que funciona – “Como navios
anasalados pelos portos/ da chegada, para a terna, grande e explosiva canção de
amor” White in Saúte (2004, p.570) infantil à terra africana que, após a infância
colonial, permitiu ao poeta o fantasiar recuperando a fantasia do encontrado no
reino da criação infantil, pois ele certifica “Não me ensinaram a brincar/ e sou
triste sonhador e poeta” Virgílio de Lemos in Saúte (2004, p,210). Isso porque,
os meninos poetas, como as ilhas, ficaram presos entre a história e as letras que
os recuperam através da palavra, , pois, “os olhos de cada menino/ renovam a
esperança” Saúte (2004, p. 204) de mares melhores, ou de marés com a cor,
sabor e cheiro do Índico2.
Na dinâmica dessa investigação metodológica, os elementos simbólicos –
navio, barco, como apresentados – dizem do mar que se assemelha ao mundo
do ser infantil africano; donde os instrumentos da ludicidade, parceiros do
aprendizado social, são transfigurados em elementos visíveis, porque permitem
transpor imagens.
A primeira imagem é a do mar, pois, sendo “Símbolo da dinâmica da vida”,
fermenta a poética infantil, posto que eles estão “deslumbrados,/ deslumbrando-
se/ ao milagre da vida: (na) intacta pureza das crianças” Fernando Couto in Saúte
(2004, p128), frente ao mar que chega a eles como signos de descobertas, para
que, depois, na vida “Duma outra infância, inventada,/ (possam afirmar que
guardam) memórias que são/ Reais reversos do nada/ Que as verdadeiras (...)
dão” Renato Ferreira in Sáute (2004, p.122).
O mar se apresenta assim, como espaço de aprendizagem do viver, cenário
que institui a criação dos personagens para atuarem no palco social, desenhando
na areia, a memória de futuros poetas e contistas dos sonhos infantis, com a
tessitura de búzios, conchas, navios, caracóis, mas também, do lúdico que
formata a constituição do ser social infantil, supostamente, porque – “dentro
deste instante/ o mundo se principia a anunciar” White in Saúte (2004, p. 557).
Concatenados à imagem da pátria, os meninos, como o mar, “simbolizam
um estado transitório entre as possibilidades ainda informes, as realidades
configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de
indecisão” Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 592), ou, aos processos de formação
da criança, pois, deduzimos que há uma similitude entre mar e infância, infância
e pátria nas literaturas em cotejo.

14 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A segunda imagem, e não menos importante, é a dos símbolos do barco
e do navio, relacionados à palavra infantil, que, como a do poeta, está prenhe
de criações e invencionices, pois as palavras gestam uma relação terna entre
objetos criados e a infância, que, segundo o pensador malê Amadou Hampâté
Bâ, “cria um vínculo de vaivém gerador de movimento e rito, consequentemente,
de vida e ação” Hampâté Bâ (1993, p. 16). Isto porque, a literatura, objeto de
criação e de sinergia cultural, espelha culturas diversas e, essas por trazerem
novos elementos simbólicos, estarão albergadas na palavra literária que traduz
a ação do sujeito poético no eu-infantil, como aduz Mia Couto in Saúte (2004, p.
500): “tudo desperta/ a secreta voz da criança”.
Voz que constituirá uma longa história comum feita de imersões e disjunções,
de absorções e rejeições, mas, acima de tudo, de encontros e desencontros entre
novos e velhos imaginários, marítimos ou não. Por isso, aqueles símbolos (navio,
barco) nos permitem pensar que, como figuras inesquecíveis, apresentam-se
como elementos da fecundidade criativa dos miúdos, tatuadas em suas derme-
poesias, na sinestesia dos encantos e desencantos despertados em secretas
vozes. Os símbolos do mar (barco e navio) assumem, no imaginário infantil, um
jogo lógico-simbólico que se adere à história do jogo lógico-semântico da vida
cultural da sociedade africana.
Desse modo, “Restaurando a função mítica das conchas, búzios e oceanos,
símbolos da africanidade dilacerada, o sujeito poético denuncia o colonialismo,
metaforizado pelas caravelas e critica a opressão sofrida” Secco (1996, p.23), eis
o despontar da história dos eventos que se molda à da história social enriquecida
com os da literatura, porque o poeta africano desenvolve a utopia da ficção que
dialoga com o real, que se apresenta como uma forma aberta aprisionando os
elementos da ficcionalidade, mas libertando o ser social, por deixar fluir a vida
em sua redenção e dimensão criadoras – “Perdoa, ó meu país/ às conchas e
aos búzios da praia/ se não souberam anunciar/ o fogo/ a peste/ o chicote”
Marcelino dos Santos in Secco (1996, p.23).
Depois dessas digressões, vejamos o que nos dizem os textos (O menino
e o búzio, de Sebastião Alba e Saudade e espanto, Mark Dennis Velhinho) que
selecionamos para estas análises, cujas imagens e metáforas de conchas, búzios
e mar, nos convocam às reflexões.

4 O MENINO E O BÚZIO – SEBASTIÃO ALBA

Qualquer análise, ainda que profundamente elaborada no edifico da poesia,


diz pouco sobre ela; no entanto, ela mesma diz muito do arquiteto que a erigiu,
através de sua composição, o que a constitui em um poema-entrega: A predileção
pela imagem, seu desenho-tipológico, arrumação dos ambientes arquitetônico-
textuais, a integração do domicílio com o social (intra e extratextuais); e mais,
o arejamento-conectivo dos espaços, a altivez dos pilares/palavras, fazem o

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 15


cimento-tema que a consolida, forma a argamassa-assunto que a estrutura,
proporciona a ventilação das janelas/interpretações que chegam até ela, através
do leitor, e, finalmente, constrói o enigma que a ilumina pelos primeiros portões
de acesso: o título.
O autor elege, neste poema-marítimo – menino e búzio – dois seres
dispares, mas próximos pela imagem que evocam: o menino como ser reside fora
do búzio, contrário ao crustáceo, pelo símile de carne desprovida de proteção;
imantado do anônimo, “o menino”, na ventura da paisagem, autoriza o étimo
a traduzi-lo em meninos da África, sem casa, vulneráveis. Ao igualar, assim,
menino e crustáceo, demonstra o poeta, a fragilidade daquele, enquanto este
vive e tem sua proteção – a carapaça-casa. O menino, sem proteção, sem casa, é
presa frágil no mar-mundo que o deixa à deriva. Diz, pois, o poeta que o menino
está destituído de proteção, de benesses da natureza, mas que se soma ao búzio,
pela falta que faz a casa-proteção. Deste modo, desde o título, o poeta-arquiteto
confirma sua sensatez no albor da palavra poética, como um “imenso barco da
vontade” Muñoz in Saúte (2004, p.610) do dizer social.
Dizer que nos proporciona um relato sobre o arquiteto que erigiu a morada-
texto. Assim, Sebastião Alba3 é, contudo, o poeta moçambicano que se quer
na legítima cidadania das emoções “sentidas”, no plasma da sua “gramática”
perfeitamente nacionalizada pela vivência, nas palavras de José Craveirinha”
Ferreira (1987, p. 192).
Pelo exposto, percebemos que na edificação da palavra-poesia, o autor tem
instrumentos nacionalizados, palavras gramaticalmente comprometidas com “a
cidadania das emoções”, pois, produz o “texto inserido na resistência possível,
(com) um olhar endurecido e sensível percorrido na esperança impacientemente
sofrida... Mas consciente da exigência que o rigor da palavra impõe, a sua poética
furta-se à facilidade da elaboração” Ferreira (1987, p.54).
Desse modo, percebemos que o escolhido não é um principiante na
palavra poética, é, sim, um artífice da estética do texto, traço que o conecta
aos grandes temas da literatura universal, através da vivência da leitura de
outros textos e autores.
Dito isto, vejamos o poema, com o rigor que o poeta Sebastião Alba impõe
à palavra.

O menino e o búzio

É meu o mar
cativo e minucioso
entre os polos do búzio que o dilata
E onde fundado tremula o casco arenoso
da silhueta suspensa dum navio pirata.

16 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


No primeiro verso, logo como marca de identificação ao objeto, o eu-poético
declara ser dele o mar. O possessivo marca o imaginário de apropriação das coisas
pelo olhar da infância. Essa defini o que vê e toca como algo seu, muito particular,
com a delicadeza que a palavra poética permite aos colonizados: “Impugnados
somos/ mas de ternura subversiva” Baptista in Secco (1996, p. 107). A posse pela
apropriação do olhar se transfere pela evocação do texto que o particulariza – “É
meu o mar”. Eis pois, uma temática recorrente à poética de Sebastião Alba que,
usando uma apropriação imagística de Conceição Lima (2012, p. 46), proporciona
“ampliar o eco de sua perpétua infância” para perpétua temática.
O personagem infantil do texto pode ser comparado ao poeta, que se
naturalizou moçambicano, desde os dez anos de idade, então, frente à beleza
do mar de Moçambique, como que numa premonição, o poeta o vislumbrou e
disse – “É meu o mar”, com tudo que o compõe ou, de uma forma mais poética:
“O mar tem influência singular sobre mim” Baticã Ferreira in Secco (1996, p.222),
eis o Ritmo do presságio de quem prevê, através do social, o histórico político de
sua nação por opção.
A pesquisadora da poética africana, Lúcia Tindó Secco (1996, p.26), nos
lembrar que Alba “apresenta poemas onde o mar se encontra associado à
meditação existencial”. Os versos seguintes, “Cativo e minucioso/ Entre os
polos do búzio/ que o dilata”, possibilitam pensá-los com o olhar da meditação
existencial. O elemento marítimo se encontra em íntima relação com a existência
do ser africano. O ser foi cativo do colono pela minúcia do capital que o trouxe
à essas terras pelo manto do mar. Associado a essa condição de cativo, o búzio,
como o africano, está preso a algo. O primeiro, pelo mar que o prende pela
condição de sobrevivência dele próprio; o segundo, cativo do mar pela vocação
de liberdade, solicita que o mar o livre dos piratas do capitalismo que, com a
chegada das caravelas, o prenderam.
Relacionando o mínimo de expressão, no máximo de imagens, no texto de
Alba, deduzimos que, tanto o búzio como o sujeito do texto, fazem parte de um
todo complexo que harmoniza a vida. O búzio faz parte do desenvolvimento e
equilíbrio do ecossistema aquático, doando-se e peneirando vida em forma de
plânctons. O eu-poético, homo Faber, se insere neste dilatar da vida, pois é parte
do seu fazer, transformar a natureza em trabalho; no entanto, no texto, podemos
inseri-lo como homo ludens aquele que participa do jogo da criação dos artefatos
e da estética “que o dilata” a contemplação do belo.
Temos, pois, nesta poética revolucionária e acondicionadora de
metáforas marítimas, os símbolos da imagem do búzio. Como aduz Chevalier e
Gheerbrant (p.15) “O búzio, como todas as conchas, está ligado ao arquétipo:
lua-água, gestação-fertilidade”. Daí dizermos que, no poema, o búzio, lembra
os elementos que compõem o cenário da terra africana. Isto porque, como
os polos do búzio, dilatam-se com a chegada do estrangeiro, absorvendo
nova-água e cultura, internalizando e gerando novos elementos que, como o
símbolo da pérola, intuem “instrumentos da percepção intelectual” Chevalier
e Gheerbrant (1999, p.15).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 17


Na poesia de Sebastião Alba, desdobram-se imagens do mar, caudaloso
e amplo nas suas contradições. O texto flui como um secular compromisso da
argúcia poética que quebram o ditatorial. Linhas do texto e do tecido social
cruzam-se durante a escrita marítima de Alba. Uma linha que objetiva a mudança
combatendo com palavras, e outra, subjetiva, que traduz o percurso do barco-
texto, na marcha de um espírito crítico, oscilando entre história e literatura.
O mar, através da récita da memória – O menino e o búzio – certifica que
a arte modifica o artista, pois, quase sempre, está, na tênue linha entre talento
e criação. Mas, criação, no caso de Alba, condiciona o talento ao canto poético
comprometido com novos paradigmas espelhando talento. Isto porque, poesia é
libertação de talento, estado interior de criação profundo.
Outros elementos significativos, que afloram da poética marítimo de Alba,
estão nos versos seguintes – “E onde fundado tremula/ O casco arenoso da
silhueta/ Suspensa de um navio pirata”.
O demonstrativo “onde” localiza a ação poética. É no mar de Moçambique
que a ficção se funda. Pois fundado, lembra posse que acorda a metáfora do
padrão, que, na ideia de conquista, simbolizava o fundado; o que ostenta
o símbolo da bandeira que a faz tremular. Mais uma vez, algumas imagens
são postas com poucos recursos expressivos: no búzio enterrado na areia do
mar, há muito, o navio imitado; o navio atolado na areia do mar, imita um
búzio; temos, pois, navio sem comandante, e o búzio sem molusco, objetos
destituídos de funcionalidade.
Desterrados para o plano a-funcional, eles se ressignificam pelo olhar do
poeta. A imagem do búzio enterrado na areia traz o símile do navio encalhado.
No entanto, um está em seu natural, o búzio; o outro está, ainda que somente
em imagem, disfuncional, não cumpre a rota das grandes travessias, não esbulha
pátrias e cargas. Assim, ao olhar terno do eu-poético, os navios piratas, tal como
os navios negreiros, estão à deriva, sem rota e destino.
O texto-nave de Alba, simboliza o convite para a viagem da leitura a bordo
do barco da história, condutor arguto de destinos e vidas onde circulam culturas,
ideias, imaginários infantis na imagem liberdade – vogando no mar da poesia –
socialmente reconstruída pelo olhar do poeta.

5 SAUDADE E ESPANTO – MARK DENNIS VELHINHO


Mark Dennis Velhinho é outro poeta que se apresenta como nauta das
grandes travessias literárias, vogando, no mar na poesia africana. Desta vez,
temos um caboverdiano que traz a temática do mar como motivo de canto,
demonstrando que, como aduz Secco (1996), “O eu-lírico dos poemas canta a
solidão, o sofrimento. O oceano aparece como o lugar da interdição, sendo visto
como “agro mar” que separa o sujeito poético dos tempos da infância”, mas
que, como no texto de Velhinho, o contrário também é válido. Pois o “agro mar”
de Campos de Oliveira é o “espanto” de Dennis, o qual aproxima o sujeito da
infância aos temas sociais.

18 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Desde o título, o autor nos provoca, nos incomoda, com imagens de
saudade e espanto. Saudades de um tempo que o espanto provoca, ou
espantos que proporcionam à saudade refletir sobre o que se foi? São questões
profundas, mas não respondidas por nós. Duas palavras que são retiradas da
composição do texto, como um título que se amplia pela dinâmica das imagens
que são retomadas, ao final do texto, por essas palavras como veremos ao
longo da análise.
Saudade é uma palavra forte e expressiva para aquele que esbulhou a língua
portuguesa para dizer do sentimento banzo, após a partida dos entes próximos.
Ou, no caso do tempo, a saudade causadora do espanto, pois o pretérito não
volta mais, mesmo na poesia, claro – “Sempre o mesmo/ desejo de voltar às
praias da infância:/ argúcia dos dedos na areia/alegria dos olhos na espuma...”
Armando Artur in Saúte (2004, p.555).
O poema, de Velhinho, se apresenta para nós, como um texto sinestésico,
aguçando os sentidos do paladar, da visão, e, indubitavelmente, da sensação-
emoção. Na sua eflorescência sugestiva, as palavras umedecem-se em outras
– as espumas se dissolvem, sugestivamente, em mar; a infância em saudade, o
verbo beber, alaga as emoções do contemplar. Assim, o texto induz a isocronia
dos sentidos, lembranças, recordações temporais originadas em uma “sensação
de infância” ao beber, ou seja, contemplar uma imagem marítima – um barco ao
longe, vogando sobre o oceano, capturando tempos idos.
Desse modo, os sentidos da sinestesia – degustação e visão – induzem à
percepção da vida do eu-poético na infância. Criam, pois, no leitor, uma imagem
que, como num quadro, preenche o imenso vazio das recordações; há, pois, um
poema de profunda carga dramática; o instante, agora, evanescente, dissipa
grande agitação de lembranças que são separadas em blocos emotivos – a
primeira linha do texto destrói assertivas, pois quando diz: “Bebo um barco”,
propõe reflexões de um poema feito para ser sugestionado e sentido, devido
a incongruência semântica; no segundo verso há um conectivo que destrói a
coerência e doa coesão ao primeiro e terceiro versos – “inevitavelmente”. O
advérbio conectando os versos um e três, matiza o verbo trazer, pois, ele confirma
algo que é trazido sem que seja possível evitar: algo que, porque passou, hiberna
na memória, e é inevitável – a vida infantil do ser que contemplava o mar.
Na absorção dessas imagens, o eu-poético doa, ao significado das palavras,
outras de sentidos sinonímicos; no entanto, todas relacionadas aos princípios de
criação poética: barco transfere sentidos para leveza, flutuação, água do mar;
e, no mesmo plano, a espuma que contém água marinha armazenada, leveza,
esvoaçante; induzem, assim, os dois últimos étimos, a algo da sinédoque do
evanescente – o barco, as espumas pelo mar; a palavra espanto revela-se em
surpresa, emoção, assombro, pasmo; e, no mesmo sentido, a palavra possibilita
pensar em infância como algo enigmático que causa espanto, que doa emoção às
descobertas, trazendo a surpresa ao desenvolvimento das percepções.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 19


Pois, a infância desvela espantosas sensações coletivos e individuas aos
aprendizados; induzem, pois, a pensar que um contém o outro, na sinédoque
do todo: vida; no subliminar da criação do poeta, surgem as palavras saudade e
coração. Essa última, motor que, como no navio, conduz o corpo, rega de sangue
os demais órgãos, dinamiza e doa flutuações aos líquidos, órgãos e tecidos, e,
claro, no campo da emoção, é sinônimo de paixão, amor-motor conjugal; aquela,
a saudade, está costurada ao ser do coração: sentimento que causa espanto,
que doa recordações, possibilita paixões, sendo, pois, propulsora do desejo
impulsionando viagens inusitadas: morte, vislumbres, sensações, isolamentos,
separações, distanciamentos. Assim, soldando os elementos que separam as
palavras elencadas pelo poeta, temos uma relação de cumplicidade entres elas.
Vejamos o texto em suas partes constituintes:

Saudade e espanto

Bebo um barco que ao longe passa


e traz-me inevitavelmente
uma sensação de infância.

À saudade entrego o meu coração


E às espumas o meu espanto roxo.

Há, no poema, uma tradução intersemiótica, uma pintura com palavras


que apresenta um aspecto da natureza recortada pelo menino e pintada com
palavras, pelo adulto poeta. Vivem eles, espantosos momentos de contemplações
recuperados através das sensações entre mar, infância, saudades, provocadas,
essas, pela imagem do barco que corta as espumas. Assim como as espumas
trazem e contém grande concentração de carbono, elas: infância, saudade, no
sujeito poética, causam grande concentração de lembranças, muitas agitações
de sentimentos, recordações do íntimo de sua emoção, e que se comovem
quando o assunto é o mar.
Provoca, pois, a espuma, associações de ideias, dissipa, no todo do texto,
um aglomerado de sensações, criadas qual agitações da memória. Essas, são
absorvidas como um gole seco, que, ante as surpresas, espasmos, medos,
o sujeito sorve, e, supostamente, o leva, o gole, a reelaborar as sensações de
retorno ao tempo pueril, através da imagem sinestésica – “Bebo um barco que
ao longe passa”, que agora se completa com distintos campos – do gustativo ao
visual, do visual ao auditivo e, deste, ao olfativo, pelas espumas.
O poema, assim, desde o verso acima, funciona com símbolos ocultos que
se revelam, como texto-tese, em experiências da vida infantil proporcionando a
descoberta, os sentidos e sentimentos da vida. Temos, portanto, duas sínteses
e duas teses: a primeira síntese (“Bebo um barco que ao longe passa”) revela
a tese em – “às espumas o meu espanto roxo.”; enquanto a síntese de “uma
sensação de infância” culmina na tese – “à saudade entrego o meu coração”.

20 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Temos, assim, a pulsão dialética relacionada à práxis do autor, porque traduz
teoria e prática social umedecidas na vida e no fazer poesia. Porque o texto, de
Mark Dennis Velhinho, possui alta carga social-imagética.
Indubitavelmente, afirmamos que, num jogo lúdico-didático, o autor
põe em suspensão os primeiros três versos, para serem retomados, depois,
como conclusão de cada uma das pevides poéticas, em pausas melódicas
entre a primeira e a segunda estofes, concatenadas ambas, pelo advérbio,
“inevitavelmente”.
Desse modo, o poeta possibilitou o despertar das sensações no leitor, pois,
após as teses – “saudade e espanto”, novas palavras-chave surgem para outras
reflexões que apontam, deliberadamente, para a ideia de que, após a leitura-
destruição do texto, através da análise, “inevitavelmente”, ele se reconstrói para
espargir luz, alagar outros sentidos, induzir muitas e novas travessias no manto
do mar, com as velas da poesia.

6 CONCLUSÃO

A busca por compreender a temática do mar, na literatura africana de


expressão portuguesa, desde os dois poemas e poetas, foi o nosso objetivo.
Escapando ao lugar comum e circunstancial da análise literária, nos pautamos
num exercício de leituras incursionadas em diálogos com outros poetas que,
também, revelam o que sentem e dizem com a sensibilidade de homens
marcados pelo processo colonial.
Portanto, afirmamos que nossa leitura proporcionou refletir sobre questões
sociais e políticas, através dos arcabouços singelos – O menino e o Búzio e
Saudade e Espanto instrumento que deleita e ensina, como velhas assertivas.
As poesias, portanto, são, para os dois poetas, como para muitos outros poetas
africanos, gênero onde o real e o histórico se encontram, com a centelha do real
iluminando o histórico com fatos obscurecidos pela penumbra do político.
Na nossa seleção buscamos critérios estéticos e sociais que aproximam os
dois autores; pois, usando as palavras de Apa (2003, p.12) dizemos que, “Antes
preferimos reter, obra, enquanto vínculo entre o poeta e uma situação específica,
da qual ele, como ator, sabe transmitir a validade do testemunho de um instante
e de um lugar”.
As elaborações poéticas, aqui selecionadas, bem como os excertos dialógicos,
recepcionam sentidos documentais que renovam os acontecimentos sócio-
históricos, acumulam outros nacos de informações. Porque, deduzimos, a poesia
se constrói no olhar sociológico sobre a arte literária, com a irrupção dos fatos
históricos que reelaboram e atestam o labor da documentação e do monumento
poético. Pois, retomando a epígrafe deste trabalho, “É do mar que vêm estas
vozes/ silabando a linguagem das marés/ gravando na areia estranhas grafias”,
para o colonizador, mas familiar aos que viveram os ditames do colonialismo, os
poetas africanos de expressão portuguesa.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 21


Notas
1
“A triagem dos textos foi orientada no sentido de efetuar um mapeamento da simbologia
marítima, investigando as relações existentes entre o oceano, a memória, a história e os
mitos africanos. Com vistas a atingir esse objetivo, nosso levantamento partiu as seguintes
hipóteses de pesquisa, muitas das quais foram ratificadas ao longo da própria seleção: a
– o mar, nas origens da poesia africana, reduplica, de modo geral, a ideologia colonial das
caravelas e da aventura marítima lusitana; b – apresenta-se como cenário idílico, referência
apenas paisagística, recoberto de conotações reveladoras de um ponto de vista exótico; (...)
c – o mar, na poesia ligada ao projeto de reconstrução nacional, também não é muito presente
em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, pois há uma identificação com a terra e a natureza
africanas quando, entretanto, se mostra imenso reservatório mítico do inconsciente afro
silenciado pela conquista e colonização lusitana; d – em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe,
como são ilhas, o mar é uma constante tanto na poesia colonial, onde funciona como símbolo
reduplicador das ideologias lusíadas, como nas produções poéticas posteriores, nas quais as
conquistas marítimas são novas e se apresentam ligadas à busca da identidade e liberdade;
e – o oceano, na poesia africana da pós-independência, surge como o “mar novo” que
estabelece uma ruptura com o “mar português”; e, na produção poética dos anos 80 e 90,
revela-se, em alguns poetas de Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé, como o espaço
erótico gerador de um novo lirismo possível que vincula a figura da mulher à sensualidade da
linguagem e à ludicidade da própria metapoesia. Secco (1996, 07 e 08).
2
“Literatura e História registram a trajetória de violência vincada no imaginário social de
Moçambique, denunciando que, desde o século XV, quando os portugueses, em 1498,
chegaram à costa oriental africana, comandada por Vasco da Gama, as lembranças se fizeram
atrozes. O oceano Índico passou, assim, a trazer na memória as águas rasuradas pelos
navegadores lusos, cuja quimera das Índias transformou esses mares em caminho para a
realização de suas aventuras marítimas” Secco (1996, pp. 20 e 21).
3
Sebastião Alba (Portugal 1940 – 2000). Pseudônimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves,
escritor, formado em jornalismo. Foi administrador da província da Zambézia. Naturalizou-se
moçambicano. Recebeu, em 1997, com A noite dividida, o grande prêmio de literatura DST (de
Braga). Obras – Poesias (poesias, 1965); O ritmo do presságio (poesia, 1974); A noite dividida
(Poesia, 1982); O limite diáfano (poesia, 1996); Uma pedra ao lado da evidência (poesia, 2001)
tais assertivas estão em Xavier (2017, p. 168).

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Antologia temática da poesia africana. Na noite gravida de punhais.
Lisboa: Sá da Costa, 1975.

APA, Lívia. Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores,
2003.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1999

22 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


CHAVES, Rita; SECCO, Carmen; MACÊDO, Tania. Brasil/África: como se o mar fosse mentira.
Unesp/Caxinde, Luanda, Angola, Chá de Caxinde, 2006.

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008.

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo, Editora Unesp, 2011.

EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. São Paulo: Editora Unesp, 2011

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Editora Ática,
1987.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa – mobilidades


e trânsitos diaspóricos. Belo Horizonte: Nandyala, 2015.

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Palavra africana. O correio da Unesco. Ano 21, n.11. Paris/Rio de
Janeiro, 1993.

KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária (introdução à ciência da


literatura). Coimbra: Editor Arménio Amado, 1968.

PATRAQUIM, Luís Carlos. Antologia poética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

PESSANHA, Fábio Santana. A hermenêutica do mar – um estudo sobre a poética de Virgílio


de Lemos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013.

RICCIARDI, Giovanni. Sociologia da Literatura. Lisboa: Men Martin e Europa América, 1971.

SAID, Edward Wadie. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras,
2003.
SAÚTE. Nelson. Nunca mais é sábado – antologia de poesia moçambicana. Lisboa: Dom
Quixote, 2004.

SCHLAFMAN, Léo. A verdade e a mentira – novos caminhos para a literatura. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1998.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó et al. (Orgs.) Antologia do mar na poesia africana de língua
portuguesa. Volume III Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau. Rio de Janeiro:
Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas – Fac. Letras/UFRJ,
1999.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó. África escritas literárias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Angola
UEA, 2010.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa.
Volume I Angola. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Brasil e África como se o mar fosse mentira. São Paulo: Unesp,
Chá de Caxinde, Luanda Angola, 2006.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 23


SOUZA e SILVA, Manoel de. Do alheio ao próprio: a poesia em Moçambique. São Paulo:
Edusp/UFG, 1996.

VANIA, Resende. O menino na literatura. São Paulo: Perspectiva, 1988.

XAVIER, Lola Geraldes. Literaturas Africanas em português: uma introdução. Macau:


Instituto Politécnico de Macau, 2017.

RESUMO
O Presente trabalho discute questões sobre o mar na literatura africana de expressão
portuguesa. Tomamos algumas as metáforas de tempo e infância como constituintes da
memória, pois, estampam no literário o texto do social. Amparados nas obras de Lúcia Tindó
Secco (1996 e 1999) textos seminais de discursões sobre a temática. E, para tal feito, além das
poesias: O menino e o búzio, de Sebastião Alba e Saudade e espanto, Mark Dennis Velhinho,
incursionamos em alguns excertos de outros poetas africanos que nos iluminam, em breve
pendo ao histórico, às análises dos poemas.

Palavras-chave: Poesia, leitura, o mar, literatura africana.

ABSTRACT
The present work discusses questions about the sea in Portuguese-speaking African literature.
We take some of the metaphors of time and childhood as constituents of memory, as they
stamp the social text in literature. Based on the works of Lúcia Tindó Secco (1996 and 1999)
seminal texts of discourses on the subject. And, to this end, in addition to the poems: O
Menino eo Búzio, by Sebastião Alba and Saudade and Astonishment, Mark Dennis Velhinho,
we look into some excerpts from other African poets that enlighten us, in short, to the analysis
of the poems.

Keywords: Poetry, reading, the sea, African literature.

24 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Lugar para estar: a frequência de
pessoas em situação de rua na
biblioteca pública

Luiza Arantes Nasser

1 Introdução

O tema desta pesquisa é a frequência de pessoas em situação de rua na


biblioteca pública, e como esta cumpre o papel de acolher – para além de
apenas receber esses indivíduos em seus espaços –, contribuindo para sua
reinclusão social.
Compreendendo a segunda e terceira leis de Ranganathan1 – para cada leitor
seu livro; cada livro para seu leitor – em seus aspectos fortemente humanistas
e democráticos, e ciente de seus impactos até os dias de hoje sobre a área,
acredita-se que o tema aqui apresentado se insira na Biblioteconomia como
um todo, no que tange ao direito universal ao acesso à informação, e o papel
essencial que a biblioteca pública desempenha nisso.
Como objetivo geral, pretende-se realizar uma análise sobre a frequência das
pessoas em situação de rua na biblioteca pública. E como objetivos específicos,
planeja-se investigar se a biblioteca pública consegue cumprir seu papel social
dentro da comunidade em que está inserida, para além de suas funções
habituais, e de que formas isso se dá; e também, se a biblioteca representa para
estes indivíduos um espaço acolhedor dentro da cidade excludente, na qual há
poucas políticas urbanistas que julguem ou implementem o bem-estar de seus
habitantes, como um fator essencial.
Verifica-se que há pouco material acadêmico produzido no Brasil pela
Biblioteconomia e outras áreas, que aborde o assunto especificamente, ainda
mais se compararmos à quantidade de pesquisas de origem norte-americana
que se pode encontrar a respeito. O presente trabalho procura apresentar um
conjunto de considerações sobre o tema e medidas adotadas em biblioteca
públicas comprovadas como efetivas no Brasil e em outros países, e assim, de
alguma forma, contribuir para a reflexão e debate acerca das mesmas, para
possível implantação, melhoria e proposição de novas. Além disso, motivar
outros estudos na área social da Biblioteconomia, ampliando este campo, e
esperançosamente, impactando positiva e concretamente, as condições das
pessoas em situação de rua.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 25


Como procedimentos metodológicos, nos pautaremos pela pesquisa
bibliográfica nacional e estrangeira na área. Paralelamente, visitaremos duas
bibliotecas públicas referência da cidade de São Paulo, a Biblioteca Mário de
Andrade e a Biblioteca de São Paulo, nas quais se ouve falar que há grande
frequência deste grupo de usuários, efetuando um levantamento de campo
através de entrevistas pontuais com funcionários destes espaços.
Este artigo estrutura-se, de inicio, contextualizando biblioteca pública
e pessoas em situação de rua, e depois apresenta um panorama com base
bibliográfica sobre o tema. Em seguida, expõe as entrevistas, sobre as quais será
feita uma reflexão nas considerações finais, através de ponderações entre o que
se depreendeu delas e toda a pesquisa realizada.

2 Contextualização

2.1 Biblioteca Pública

O surgimento da biblioteca pública pode ser localizado na Inglaterra e


Estados Unidos, no ano de 1850. Os autores divergem quanto aos motivos, uns
atribuindo à necessidade crescente de mão-de-obra especializada na Revolução
Industrial, e outros, às reivindicações do povo inspirado pela Revolução Francesa,
exigindo acesso à educação gratuita. E há os pesquisadores que acreditam na
soma desses fatores.
Pode-se dizer que ela se diferenciava das bibliotecas anteriores, no
que diz respeito a ser mantida integralmente pelo Estado, ter funções
específicas, e atender a toda a sociedade. Presentes inicialmente, e
seguindo até os dias de hoje, a biblioteca pública possui quatro grandes
funções: função educacional, função cultural, função de lazer, e função
informacional. (ALMEIDA JÚNIOR, 2013).
A presente pesquisa pretende verificar também a função social da biblioteca
pública, tanto dentro de sua missão intrínseca, como nas iniciativas inovadoras
que se percebem mais recentemente. Segundo as diretrizes da IFLA2:

Uma biblioteca pública é uma organização criada,


mantida e financiada pela comunidade, quer através da
administração local, regional ou central, e/ou através de
outra forma de organização comunitária. Disponibiliza
acesso ao conhecimento, à informação, à aprendizagem
ao longo da vida e a obras criativas, através de um leque
alargado de recursos e serviços, estando disponível a todos
os membros da comunidade independentemente de raça,
nacionalidade, idade, gênero, religião, língua, deficiência,
condição econômica e laboral e nível de escolaridade
(KOONTZ; GUBBIN, 2013, p.13).

26 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Percebe-se já de inicio a preocupação humanista, democrática e inclusiva
desta instituição. Complementando-se, o Manifesto da Biblioteca Pública da IFLA
em parceria com a UNESCO pontua:
[...] Liberdade, prosperidade e desenvolvimento da
sociedade e dos indivíduos são valores humanos
fundamentais. Eles serão alcançados somente através da
capacidade de cidadãos, bem informados, para exercerem
seus direitos democráticos, e terem papel ativo na
sociedade.
Participação construtiva e desenvolvimento da democracia
dependem tanto de educação adequada, como do livre e
irrestrito acesso ao conhecimento, pensamento, cultura e
informação.
[...] Os serviços fornecidos pela biblioteca pública baseiam-
se na igualdade de acesso para todos, independente
de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou
status social. Serviços e materiais específicos devem ser
fornecidos para usuários por algum motivo inaptos a usar
os serviços e materiais regulares, por exemplo, minorias
lingüísticas, pessoas deficientes ou pessoas em hospitais
ou prisões (IFLA/UNESCO, 1994).

Seria possível destacar ainda, na seção Operação e Administração deste


Manifesto, que os serviços devem ser fisicamente acessíveis a todos os membros
da comunidade, e o prédio da biblioteca ser bem localizado e equipado, com
horário de funcionamento conveniente aos usuários. Deve haver extensão
dos serviços àqueles impossibilitados de frequentar a biblioteca, ofertando
programas educativos a todos.
Com relação ao Brasil, na última atualização realizada pelo Sistema Nacional
de Bibliotecas Públicas (2015), contabilizou-se a existência de 6102 bibliotecas
públicas (municipais, distritais, estaduais e federais), dispondo de 503 na Região
Norte, 1.847 na Região Nordeste, 501 na Região Centro-Oeste, 1958 na Região
Sudeste e 1293 na Região Sul. No Estado de São Paulo, a contagem foi de 842
bibliotecas públicas.
Autores, instituições e profissionais atuantes diariamente em bibliotecas
ao redor do mundo, têm crescentemente apontado a necessidade da área da
Biblioteconomia posicionar-se mais firmemente quanto ao seu importante
papel social, e assim, estabelecer pontes cada vez mais acessíveis entre público
e biblioteca, oferecer serviços específicos quando preciso, e inclusive, adaptar
normas tradicionais frente às necessidades apresentadas pela comunidade:
[...] A biblioteca pública deve ser reflexo e causa das
transformações da sociedade; deve receber influências,
interferir, ser início, meio e fim das alterações sociais, numa
seqüência interminável. Sua origem esteve sustentada por
esse quadro (ALMEIDA JÚNIOR, 1997, p. 22).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 27


2.2 Pessoas em situação de rua

São comumente chamadas de “sem-teto” e “moradores de rua”, e também


por expressões carregadas de preconceito. Adota-se como alternativa, o termo
“pessoas em situação de rua” para referir-se aos indivíduos que utilizam a rua
como moradia por alguma contingência e/ou que se encontram no momento
sem acomodações estáveis (o que abrange os acolhidos em albergues), assim,
não se estabelecendo taxativamente que esta lhes seja uma condição inerente
e/ou permanente. Este também será o termo utilizado nesta pesquisa, além da
variante “populações de rua”, bastante abrangente (WINKELSTEIN; IFLA/LSN
Guidelines Working Group, 2017; FIPE; PMSP/ SMADS, 2015).
Não há dados numéricos oficiais sobre a população em situação de rua
referentes a todo o território brasileiro. O Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) veiculou em seu site uma estimativa com base em informações
colhidas pelo Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas) e a
contagem de pessoas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal (Cadastro Único), além de outras variáveis. Estimaram que havia 101.854
pessoas em situação de rua no Brasil, em 2015, e 221.869, em março de 2020.
Segundo a pesquisa censitária apresentada pela Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas (FIPE), em 2015, a cidade de São Paulo contava com 15.905
pessoas em situação de rua. No perfil socioeconômico levantado no município
de São Paulo pela mesma pesquisa, indicou-se que há diferenças significativas
verificadas entre as pessoas abrigadas nos centros de acolhida (8570 pessoas)
e as que pernoitam nas ruas (7335 pessoas). O relatório foi todo elaborado
traçando-se este paralelo. No quadro 1 é apresentado um panorama dessas
informações.

28 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Quadro 1 – Perfil Censitário da população em situação de rua

Acolhidos Rua
Caracterização 83% são homens; 88% são homens;
Demográfica idade média que varia de 43 idade média que varia de 41
anos; 32% presença de idosos anos; 24% presença de idosos
(50 anos ou mais); (50 anos ou mais);
grande maioria formada por grande maioria formada por
“não brancos”; “não brancos”;
elevada taxa de analfabetos; elevada taxa de analfabetos;
maioria são migrantes – maioria são migrantes –
principalmente vindos do principalmente vindos do
Sudeste, seguido por Nordeste; Sudeste, seguido por Nordeste;
27% são paulistanos; 29% são paulistanos;
24% de presença de migrantes 10% de presença de migrantes
que estão há menos de 1 ano que estão há menos de 1 ano em
em SP; SP;
59% de migrantes que vivem há 74% de migrantes que vivem há
mais de 5 anos em SP; mais de 5 anos em SP;
A pesquisa relata como recente A pesquisa relata como recente
(em 2015) a presença de (em 2015) a presença de
imigrantes entre a população de imigrantes entre a população de
rua, principalmente africanos. rua, principalmente africanos.
Perda de 80% afirmou viver só; menos 69% afirmou viver só; 31%
vínculos de 20% possuem algum vínculo possuem algum vínculo familiar;
familiares familiar; Observaram um aumento de
Fato descrito ao lado ocorre pessoas convivendo com amigos
com menos frequência neste e outras sem parentesco, em
grupo. novos arranjos familiares. Algo
muito ligado à autoproteção.
Trabalho e 26% dos acolhidos não estão Cerca de 4,8 % dos moradores de
Renda trabalhando, 11% trabalham rua são assalariados, sendo 2,2%
como assalariados sem carteira com carteira assinada e 2,6%,
assinada e 7% com carteira informais. Destaca-se a elevada
assinada. A maioria dos participação dos que estão
acolhidos, contudo, consegue trabalhando por “conta própria”
dinheiro desempenhando e “bicos”.
atividades classificadas como Para eles, a catação (42%)
“conta própria” e “bicos”. e a mendicância (30%) são
atividades exercidas em
proporções muito superiores às
verificadas entre os acolhidos.

Saúde 79% são portadores de um ou 77% são portadores de um ou


mais agravos de saúde; mais agravos de saúde;

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 29


Acolhidos Rua
Uso de Álcool e 54% fazem, atualmente, uso de 84% fazem, atualmente, uso de
drogas álcool e/ou drogas; álcool e/ou drogas;
Para 45%, a substância mais Para 70%, a substância mais
utilizada é o álcool utilizada é o álcool

Histórico 54% passou por internação em 64% passou por internação


institucional alguma instituição - as clínicas em alguma instituição - 40%
de recuperação de dependência passaram pelo sistema prisional,
de drogas ou álcool (30%) e o 33% por clínicas de recuperação
sistema prisional (28%), além de dependência de álcool e
de instituições psiquiátricas drogas e 12% na Fundação Casa
(11%) e Fundação Casa (10%).

Posse de 64% possui todos esses 34% possui todos esses


Documentos documentos (RG, CPF, Carteira documentos (RG, CPF, Carteira
Trabalho, Título Eleitoral) Trabalho, Título Eleitoral)

Discriminação 25% já foi impedido de 40% já foi impedido de entrar em


Sofrida entrar em locais como bares, locais como bares, restaurantes,
restaurantes, bancos, órgãos e bancos, órgãos e serviços
serviços públicos públicos
Elaborado com base no censo da FIPE apresentado à Secretaria Municipal de Assistência e
Desenvolvimento Social – SMADS/ SP, 2015.

A partir desses dados, pode-se apreender como as pessoas que pernoitam


diretamente na rua vivem alguns aspectos muito mais extremados que as
acolhidas, o que invariavelmente reflete em um afastamento ainda maior da
dinâmica social da cidade grande, bem como do acesso aos locais mencionados
na última linha do quadro.
Nela, observam-se os termos bastante amplos “órgãos e serviços
públicos”, que embora não se refiram a bibliotecas e outros equipamentos
culturais, levam-nos, por isso mesmo, a observar que o acesso aos mesmos
não é enfocado em nenhum item da pesquisa censitária. Isso parece confirmar,
sintomaticamente, como, em um cenário que apresenta privações dos direitos
mais básicos, a questão do acesso à informação e cultura acaba sendo deixada
para planos mais distantes, e tratada quase como privilégio ou bem supérfluo
– reproduzindo e fortalecendo visões e discursos muito comuns na sociedade
e, conseqüentemente, ampliando os abismos.
Fornecendo dados mais atualizados quanto ao município de São Paulo, a
Prefeitura agora junto à Qualitest realizou um novo censo, apresentado no final
de 2021. Verificaram que a população em situação de rua cresceu extremamente,
passando de 15.905 pessoas recenseadas em 2015, para 31.884 em 2021.

30 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Destas, 19.209 foram recenseadas nas ruas e 12.675 nos centros de
acolhimento. O maior número permanece para indivíduos do sexo masculino
com 83,4% pessoas recenseadas, contra 16,6% do sexo feminino. Com relação
à idade, o maior percentual de pessoas em situação de rua (49,4%) está na faixa
etária entre 31 e 49 anos (QUALITEST; PMSP/SMADS, 2021).
Por ser um dos mais importantes centros econômicos do país, a cidade de
São Paulo sempre foi um dos principais destinos das migrações. Diferentes ondas
migratórias ocorreram ao longo dos anos, influenciadas por diferentes questões
socioeconômicas, tal como a grande onda dos anos 1950/1970, trazendo um
significativo contingente de pessoas do Nordeste, atraídos pela alta demanda
de trabalho nas áreas de serviço e civil. Porém, com o passar do tempo, a
“promessa da cidade grande” tornou-se cada vez mais ilusória e exploratória, e
há muitos anos, constata-se uma grande porcentagem de migrantes compondo
a população de rua paulistana (como exposto na tabela acima). Com a pandemia
pela Covid 19, em 2021 foi observado o crescente aumento de famílias inteiras
nas ruas e albergues - muitas crianças e mulheres -, quando, anteriormente, era
mais comum constatar a presença de homens sozinhos. Os centros de acolhida
da área central da capital estão com grandes restrições de capacidade, para
evitar o contágio, e isso impacta diretamente, o número de pessoas nas ruas.
Segue havendo migrantes oriundos de estados mais distantes, que desiludidos,
procuram voltar, mas sem condições – ou desconhecendo que a Prefeitura
possui um programa que fornece a passagem de volta –, acabam ficando. Nas
ruas do antigo centro paulista, notou-se principalmente, migrantes vindos das
cidades da Grande São Paulo, alguns que até possuem casa, mas perderam seu
emprego e/ou não conseguiram pagar suas contas, e assim vieram na esperança
de haver mais chances de trabalhos e de receber doações. O wi-fi gratuito das
grandes praças, também atraiu muitas famílias com crianças, que procuravam
acompanhar às aulas online das escolas ainda fechadas, ou entreter-se/passar o
tempo – o que apenas reforça a importância de ambientes públicos para se estar,
tendo o acesso à informação (e ao lazer) como direitos básicos.
Os novos migrantes se deparam com os inúmeros prédios desocupados
no local, que poderiam ser sua moradia, mas seguem vazios, devido a grandes
embargos e burocracias, e principalmente, pela falta de interesse do poder
público e setor imobiliário em ceder espaços a essa população. Muitos se sentem
humilhados em precisar dos centros de acolhida, e não sabem que há, ou rejeitam
os albergues com muitas vagas ociosas nos bairros mais afastados, julgando que
neles, não haja as mesmas oportunidades (RODRIGUES; SANTOS, 2021).
Com o agravante e continuado aumento numérico da população de rua, as
perspectivas tornam-se ainda mais alarmantes, cabendo observar que, mesmo
nesta nova pesquisa censitária de 2021, prossegue a ausência de qualquer
enfoque e análise sobre o acesso dessa população às bibliotecas e outras
instituições culturais.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 31


3 Panorama com base bibliográfica

O acesso à informação é garantido como direito fundamental pela Declaração


Universal dos Direitos Humanos (1948) e pela Constituição Brasileira (1988).
A seção Library Services to People with Special Needs (LSN) da IFLA tem
investido em refletir sobre as questões que se apresentam globalmente em
torno do acesso de pessoas em situação de rua à biblioteca, organizado
congressos mundiais anuais para troca de visões e experiências, e para a
elaboração de diretrizes. Estes importantes encontros tiveram inicio em 2012
na Estônia, com o congresso The Homeless and the Libraries - The Right to
Information and Knowledge For All. Reconhecendo algumas limitações da
área, em 2016, o grupo de trabalho foi expandido para membros de fora da
seção, com profissionais das áreas de Psicologia, Assistência social e Direito.
Elaborou-se um questionário on-line, respondido por inúmeros países. Este
conjunto de ações culminou em 2017, na publicação das diretrizes mundiais
para serviços de biblioteca às pessoas em situação de rua (IFLA Guidelines for
Library Services to People Experiencing Homelessness).
O extenso trabalho conta com enfoques muito atentos de problemas
específicos, tais como: o estigma que há em torno desse perfil de usuários, como
dar-lhes assistência em serviços sociais e a reinseri-los no mercado de trabalho;
a questão dos refugiados; da saúde mental; serviços para famílias em situação
de rua e para jovens usuários sem guardiões; como criar um ambiente receptivo
e como treinar a equipe para receber este público, termos ligados à habitação
e outros serviços sociais, etc. Há também avaliações sobre políticas e regras das
bibliotecas, e como estas afetam este grupo de usuários, recomendações, e como
ultrapassar as limitações verificadas no serviço; por exemplo, para a questão da
carteirinha de usuário, listam exemplos ao redor do mundo de alternativas à falta
de apresentação de endereço fixo para realização do cadastro e empréstimos.
As diretrizes citam outra importante instituição modelo para as bibliotecas
em todo o mundo, a American Library Association (ALA), que estabelece políticas
às pessoas em situação de rua nas bibliotecas nos EUA. Em 1990, com reflexos
até hoje, a ALA fez série de recomendações através da Policy 61, como a remoção
de barreiras ao acesso, treinamento melhor das equipes, e conscientização em
torno de medidas excludentes por parte da biblioteca - como o preconceito,
banimentos e até mesmo “políticas de odor”. Em 2011, a ALA elencou as barreiras
mais comuns que dificultam seu acesso: apresentação de endereço permanente
para entrada ou obtenção de carteirinha; multas proibitivas/penalidades; ideia
de que serviços sejam pagos; equipes mal treinadas e/ou com preconceitos
a públicos marginalizados; bibliotecas divulgam pouco os seus serviços em
albergues, centros comunitários, etc.; limitações com transporte ou horários
de funcionamento; falta de programas direcionados aos contextos reais dessas
pessoas (WINKELSTEIN; IFLA/LSN Guidelines Working Group, 2017).

32 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


3.1 Usuários em situação de rua – quebra de estereótipos

Kelleher (2013) contextualiza vários aspectos referentes à presença de


pessoas em situação de rua nas bibliotecas do Michigan (Estado norte americano
que contava com uma população de rua de 94 mil em 2011) e, através da aplicação
de questionário, reúne a maior amostra neste assunto já publicada nos EUA (até
2012). Apoiada em extenso material bibliográfico, o estudo expõe um embate
antigo: para as pessoas em situação de rua, a biblioteca é um local de refúgio; já
para os demais usuários e funcionários, esse grupo de freqüentadores pode, em
muitas ocasiões, ser encarado como um incômodo dentro desse ambiente – tido,
ainda nos dias de hoje, (mesmo que novas correntes rejeitem essa visão limitante)
como local de silêncio e concentração. Isso devido à possibilidade deles serem,
porventura, barulhentos ou violentos, exalarem forte odor, ocuparem cadeiras
para dormir, usarem os banheiros públicos para sua higiene pessoal ou drogas,
etc. A figura típica e estereotipada do “usuário sem-teto problema”, seria a de um
homem solteiro/sem laços que possui algum distúrbio mental ou dependência
química. Porém, o estudo contesta estas visões pré-concebidas, inclusive no que
se refere àqueles que são pais e trazem seus filhos, e só querem passar um dia
tranquilo em um local seguro. A autora aponta que grande parte da literatura
em Biblioteconomia que há a respeito nos EUA foi escrita para “como lidar com
estes problemas”. Mas o foco do trabalho foi o de apresentar outro lado, analisar
a frequência com que as pessoas em situação de rua vão à biblioteca, como elas
veem a instituição, e quais serviços lhes são mais uteis.
Kelleher (2013) teve o cuidado de aplicar seu questionário em albergues
e em feiras de recursos para veteranos de guerra e pessoas em situação de
rua, pois chegou a considerar abordar usuários em situação de rua dentro
das bibliotecas, mas achou que seria difícil determinar quem seria ou não,
e potencialmente ofensivo presumir. Eis alguns dos dados obtidos: dos 121
respondentes, cerca de 58% atestaram frequentar bibliotecas pelo menos uma
vez por semana; 13 pessoas disseram não usar bibliotecas, justificando que não
há materiais que os interessem, ou que não se sentem bem-vindos; a maioria
(58,4%) respondeu que gosta de ir na biblioteca para ler como entretenimento;
“usar a internet para buscar informações”, ficou em 38,1% e “usar a internet
pra se corresponder”, em 33,6%; “Encontrar moradia a longo prazo” lidera
como tópico de suas buscas por informação (57,3%), seguido por “encontrar
um trabalho” (49,5%). Cerca de 30% mostraram-se satisfeitos com a biblioteca,
mas quase 22% gostariam que o horário de funcionamento fosse estendido.
Tópicos especiais - como procura de emprego - foram sugeridos por 18,3%, e
obtensão do cartão de biblioteca, por 16,5%.
A autora observa quão poucos alegaram usar a biblioteca para dormir (2%),
proteger-se do tempo (9%), ou para utilizar os banheiros para se lavar (5%),
mesmo sendo estes os principais “problemas” apontados. Ela reflete se houve
muito embaraço por parte deles para responder a estes tópicos, e percebe o que

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 33


também pode distorcer uma amostra neste perfil: aqueles com doenças mentais
graves ou usuários de drogas não chegaram a seu alcance, pois nem frequentam
os espaços da pesquisa, nem mesmo as bibliotecas.
O estudo cita, ainda, alguns programas inovadores de bibliotecas, nos
quais são empregados usuários em situação de rua para ajudar na manutenção
local; e um assistente social que foi contratado pela biblioteca de São Francisco
para ajudar na inclusão. Menciona também, parcerias bem sucedidas entre
instituições sociais/albergues e bibliotecas, que oferecem serviços específicos
de laser, organização de estantes direcionadas a estes usuários com os serviços
sociais mais necessários, além de facilitarem a obtenção de carteirinhas, algo
que pode proporcionar-lhes um sentimento muito importante de legitimação e
pertencimento. Kelleher (2013) denuncia a diferença de tratamento dirigida às
pessoas em situação de rua sozinhas, e àquelas em família (que representam
grande número dos usuários), e conclui sua pesquisa, afirmando que pessoas
em situação de rua no Michigan utilizam a biblioteca com muita frequência,
estando a maioria satisfeita com os serviços ofertados, e a internet pareceu ser
algo muito importante para elas, contribuindo para seu contato com o mundo e
reinclusão social.

3.2 Visões complementares sobre a biblioteca

A pesquisa de Oliveira (2016) está entre as poucas mais recentes


encontradas de origem nacional que traz pontos temáticos semelhantes. O
enfoque maior está na importância da biblioteca pública enquanto veículo
de difusão da leitura em suas diversas possibilidades, e a leitura, por sua
vez, como meio de inclusão. O trabalho contextualiza todas as bibliotecas
públicas da cidade estudada, Rio Grande (RS), e exemplifica projetos positivos
no Brasil, como, a pesquisa “Leitores de Rua” (2010) e o site Bibliotecas do
Brasil, que divulga iniciativas inspiradoras. De principal interesse, destacam-
se as entrevistas que Oliveira realizou com pessoas em situação de rua no
centro de referência local, e com atendentes e bibliotecários das bibliotecas
enfocadas. Sobre o 1º grupo, a autora constatou que maioria demonstra
interesse pela leitura, tendo preferência por quadrinhos e jornais. Aqueles que
têm por hábito ler tiveram em sua infância algum tipo de incentivo por meio
de família ou escola; mas ao crescerem, deixaram de frequentar bibliotecas,
e nem conhecem as da cidade; porém, manifestaram interesse nas mesmas,
crendo que acrescentariam positivamente em suas vidas. Um dos entrevistados
contou que foi descriminado ao entrar em uma biblioteca, o que o fez perder
interesse, e alguns afirmaram que nunca sequer foram convidados a visitar
uma biblioteca pública. A autora pergunta: “Se a biblioteca escolar, aqui se
apresenta como ponto influenciador na formação destes leitores, porque na
fase adulta eles param de ler? Será que esta realmente concluiu seu papel? E a
biblioteca pública? Qual será seu papel fomentador?” (OLIVEIRA, p. 59).

34 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Sobre o 2º grupo entrevistado, de funcionários, foi constatado que apenas
uma das bibliotecas costumava receber usuários em situação de rua, e sempre
os mesmos, pedindo os mesmos materiais de leitura; as outras bibliotecas nunca
os receberam, e alegam que por falta de procura deles, não propondo nenhuma
ação de convite para reverter este quadro. Dessa forma, nenhuma oferece
serviços voltados para estes usuários ou realiza parcerias com instituições que
os atendem, ainda que todos tenham concordado que são usuários potenciais,
e atestem a importância de atendimento a este público. Um deles levantou a
questão da barreira que pode representar a exigência de endereço e documentos
para ser associado; todos acreditam que a biblioteca possa ser fator de inclusão
social, e um dos entrevistados (anônimo) disse:

[...] é um lugar muito importante para eles virem, é onde


eles se sentem seguros. Ele vai ter o material que ele pede,
porque geralmente eles pedem o material e sempre tem
aqui para eles, eles ficam no salão pesquisando o que
querem a tarde inteira ou a manhã inteira, e a gente vai
aprendendo a lidar com eles [...] (OLIVEIRA, 2016, p.67).

Oliveira acredita que a biblioteca deve cumprir um papel social consciente


das potencialidades da leitura, não devendo ser uma instituição passiva, restrita
a quatro paredes, que se acomode com a ideia de pessoas em situação de rua
sendo mantidas apenas na condição de usuários potenciais.

3.3 Serviços específicos

Muggleton (2013), da University of Strathclyde, na Escócia, posiciona-se


fortemente quanto aos riscos e contradições que bibliotecas públicas possam
cair ao ofertar serviços específicos a usuários em situação de vulnerabilidade,
questionando já de início as visões planificadoras que se possa fazer deles
enquanto um grupo homogêneo, ignorando seus contextos e necessidades
reais, e argumenta como, em inúmeros casos, estas ofertas possam ser uma
perpetuação do preconceito, contribuindo para uma maior diferenciação e
segregação, ao traçar-se essa alteridade (“otherness”) - termo que o autor
referencia ao citar M. Madden (2003) quanto ao exotizado “outro”, atribuição
muito presente nos estudos acadêmicos sobre pessoas em situação de rua.
Para Muggleton (2013), estes equívocos ocorrem principalmente na forma
como se realizam as ofertas, e para evitá-los, sugere que os serviços estejam ao
alcance de todos, sem rótulos sociais ou imposições, para que caiba ao usuário
escolher se aquilo lhe interessa ou não. Também sugere divulgar os serviços
fora da biblioteca, em albergues e espaços frequentados por estes grupos, já
lhes dando autonomia na escolha de dirigir-se à biblioteca, assim evitando
constrangê-los com categorizações.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 35


4 Entrevistas
Escolheu-se para realização do levantamento de campo, as bibliotecas
públicas Biblioteca Mário de Andrade (Circulante)3 e Biblioteca de São Paulo4,
por sua importância e representatividade para a cidade de São Paulo, e por
supor-se que nelas seja muito alta a frequência de pessoas em situação de rua,
devido a seus portes e localizações. Há também o interesse por serem bibliotecas
fundadas em gerações diferentes, e contemplarem dois polos geográficos
distintos da cidade - a BMA no Centro, e a BSP na Zona Norte.
Elaborou-se uma série de perguntas para ser aplicada igualmente a um
funcionário de cada biblioteca, abarcando os seguintes tópicos: como percebem
este grupo de usuários, características, frequência, rotinas, serviços mais
procurados, o papel da biblioteca, normas e ofertas, etc. As pessoas entrevistadas
foram recomendadas por suas colegas de equipe, como sendo aquelas que
fazem um trabalho mais direto de acompanhamento diário de usuários em
situação de rua, ainda que ambas tenham outra formação acadêmica que não
Biblioteconomia. Cada uma trabalha há cinco anos nos respectivos locais.

4.1 Biblioteca Mário de Andrade – Circulante


A pessoa entrevistada é uma das responsáveis pela área de atendimento de
usuários da Seção Circulante da BMA. Será aqui identificada por “E1”.
E1 afirma que a biblioteca recebe aproximadamente 6 pessoas em situação
de rua por dia, e acredita que isso se deva ao fato delas usarem o espaço como
abrigo/refúgio, contando que alguns chegam às 8h e só partem às 22h. Segundo
observa, elas estariam na faixa dos 20 a 50 anos de idade. Ela disse que costumam
vir sempre os mesmos, “alguns já conhecemos pelo nome e sua personalidade”.
Chuva e frio foram apontados por ela como fatores externos que influem na
frequência, estendendo a permanência desses usuários. E1 afirma que eles vêm
tanto da rua, como de albergues - nas imediações da BMA há alguns, mas E1
conta que não há nenhuma parceria entre os albergues e a biblioteca. Existem
ONG’s que os procuram para propor projetos (informais), como a ONG Alimento
para Alma, da qual E1 falou, com o Projeto cartas para você: “A equipe circulante
conseguiu escrever 200 cartas para moradores de rua, em parceria com a ONG;
eles davam a comida (alimento para o corpo), nós da biblioteca mandamos
palavras/poesias/trechos de livros, (alimento para a alma)”.
Sobre se seria possível traçar um perfil do grupo, E1 contesta, afirmando que
este é composto por indivíduos distintos, cada qual com necessidades diferentes
“alguns escolhem material de arte para ler e entendem muito sobre o assunto
[...], são dois casos bem conhecidos aqui, dois jovens viciados em bebidas e
drogas, mas que tinham terminado a faculdade e vinham ler aqui na biblioteca.”
E1 descreve que, enquanto usuárias do espaço, algumas pessoas são calmas, e
outras violentas. Já houve agressões a funcionários. Neste caso, os albergues não
assumem responsabilidade, mas a pessoa pode voltar a frequentar a circulante.

36 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Ela conta que elas não interagem com os funcionários e demais usuários, falando
o menos possível; ainda assim, E1 afirma que se mesclam junto ao restante do
público no local, “no espaço publico não existe separação, recebemos todos da
mesma maneira”. Já sobre os demais usuários conviverem com a presença de
pessoas em situação de rua na biblioteca, E1 responde: “como em qualquer
lugar, alguns gostam e outros não”.
Tratando-se da presença de mulheres entre este grupo de usuários, E1
conta que os homens são maioria, mas já houve períodos com frequência de
mais mulheres (não soube explicar o motivo), todas vindo sozinhas. Quanto à
percepção de distintos graus de alfabetização, E1 explica que àqueles com mais
dificuldades buscam quadrinhos e livros ilustrados para ler, e os com facilidade,
geralmente, livros policiais/de suspense.
Para realizar cadastro, carteirinha de usuário e empréstimos, há como regra
que devem apresentar RG e carta de albergue com assinatura da assistente social,
confirmando sua moradia na instituição. Mas esta carteirinha dura apenas três
meses (renováveis, mediante os mesmos documentos); já o restante das regras
de usuários, são as mesmas. Sobre como fazem àqueles sem RG ou que dormem
diretamente nas ruas, ela respondeu que estes podem frequentar a biblioteca,
mas sem realizar empréstimos.
Segundo E1, os serviços da biblioteca que estes usuários mais buscam são
(ordem aleatória): livros, guarda-volumes, acesso de internet, assistir a filmes no
computador (tudo sempre com RG). Não há serviços direcionados especificamente
às populações de rua, “o espaço é publico e todos podem usar os serviços”.
E1 acredita que eles têm se mostrado satisfeitos com a oferta disponível. Mas
mencionou, sem desenvolver melhor o assunto, que a biblioteca talvez pudesse
promover palestras sociais “com auxilio das secretarias responsáveis”. Porém,
contou que em 2017, a BMA conseguiu promover encontros com refugiados
e imigrantes, “a equipe conseguiu entender melhor como se aproximar deles,
[...] palestras falando de tudo, como podemos receber refugiados, como ajudar,
onde indicar cursos, indicação de retirada de documentos, etc.” A entrevistada
acredita que a biblioteca pública acolhe as pessoas em situação de rua, e que
desempenha um importante papel na vida delas, pois: “esse espaço, para eles
serve como abrigo, [...] esse abrigo eles usam para sair da realidade, com a sua
leitura diária”.

4.2 Biblioteca de São Paulo

A pessoa entrevistada é líder de atendimento na BSP. Será aqui identificada


por “E2”. Ela afirma que as pessoas em situação de rua compõem o maior e
mais assíduo público da biblioteca. Acredita que isso se deva ao fato desta
instituição ter o acolhimento como principio, segundo o conceito que adotam de
Biblioteca Viva, em que é muito importante a pessoa ser protagonista do espaço,

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 37


se sentindo parte do mesmo. Outro motivo seria a localização da biblioteca,
com muitos albergues próximos. A Rua Zaki Narchi seria o principal ponto de
referência, onde fica o “Quarentinha”, maior albergue da região, e também uma
grande comunidade carente.
Quanto à rotina, E2 relatou que desde a hora de abertura da BSP às 9h30
já há uma fila na entrada, constituída, majoritariamente, por pessoas vindas
dos albergues, os quais fecham durante o dia. Mas também costumam chegar
ao longo do expediente. Durante o frio, percebe-se que a frequência deles
aumenta. Em menor número, há também a presença daqueles que dormem
diretamente na rua - fato percebido ao realizarem o cadastro, e não possuírem
endereço para apresentar. E2 frisou em muitos momentos que a biblioteca não
faz diferenciações de seu público, já que tem a política “de portas abertas”, por
isto, seria difícil afirmar proporções de frequência de grupos apenas através
de observação. Há bastante rotatividade, e também o público cativo, o qual
os funcionários conhecem pelo nome, e de certa forma, acompanham suas
vidas. E2 mencionou um rapaz usuário que compartilhou com os funcionários
que havia conseguido seu primeiro emprego, e com isso, um lugar para morar.
Ela comenta a respeito: “Se for pensar em transformação social, a biblioteca
também contribui para isso... o espaço, a cultura contribui”. Para E2, não seria
possível traçar um perfil desses usuários, “não dá para estereotipar assim,
são indivíduos, né? A gente está falando de pessoas. Cada um tem mesmo
uma vontade/necessidade”. Enquanto usuárias do espaço, E2 afirma que
interagem entre elas e  também com os funcionários. O uso dos computadores
seria o principal serviço procurado, pelo acesso à internet, jogos, vídeos, e
a possibilidade de assistir ao acervo de DVD’s. (Há uma parceria recente da
BSP com o MIS – Museu da Imagem e do Som, realizando sessões gratuitas de
cinema no auditório). A segunda grande procura seria por jornais e livros. E2
conta que há pouco tempo atrás foi inaugurada a sala de games, serviço que
talvez estivesse faltando. Sobre faixas etárias, há uma grande frequência de
pessoas com 30 anos para cima, mas voltou a frisar que não se pode generalizar.
Em se tratando da presença na BSP de mulheres em situação de rua, sozinhas
ou junto de famílias, ela confirmou que há, mas em menor número (lembrou-
se de apenas uma família que costuma vir com os filhos).
E2 não acredita que uma ou outra regra possa restringir a frequência
do público focado, pois tudo sempre é resolvido através do diálogo, com
intervenção da área social, se preciso – por exemplo: a regra entendida como
tácita, proibindo-se porventura cochilar. É sabido que os seguranças vêm acordar
quem adormece.
Com relação a distintos graus de alfabetização, ela comentou que há
usuários em situação de rua com boa formação, uns com ensino superior e
que falam outras línguas, algo sabido através das trocas diárias e do grupo
de acolhimento – roda de conversa que realizam a cada quinze dias, junto
das assistentes sociais (há duas na BSP), convidando informalmente todos a

38 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


participar. Nesta roda, são colocados alguns conceitos da biblioteca, para todos
dialogarem a respeito, e mesmo os mais antigos frequentadores participam,
pois o intuito é construir laços. E2 acredita que não se deve ofertar serviços
específicos aos públicos em situação de vulnerabilidade: “O serviço deve ser
direcionado a todos, pensar em inclusão, e com isso dar oportunidade a todos,
cada um com sua especificidade. Podemos até trabalhar com faixa etária, mas
não com estereótipos. É diferente, sabe?”
Nessa biblioteca, todas as pessoas podem se cadastrar, fazer carteirinha e
realizar empréstimos, mesmo àquelas sem endereço algum para apresentar no
ato da inscrição. As regras valem para todos, sem distinção, e a carteirinha tem
a validade de um ano para todos. Para E2, os usuários em situação de rua vão à
biblioteca em busca de “um lugar coberto e aconchegante para passar os dias”,
e a instituição “desempenha um papel de reinserção social para essas pessoas.
Quando participam das atividades educativas [...] e nos acolhimentos que
realizamos a fim de apreender e discutir formas de se relacionar com o espaço,
percebemos por meios dos relatos, que eles frequentam e se reconhecem como
pertencentes desse espaço por se sentirem acolhidos, enxergados  e tratados
com respeito pelos funcionários”.

5 Considerações Finais

Comparando as entrevistas, pode-se ver que, a despeito das características


comuns elencadas por pesquisas socioeconômicas (como a da FIPE), em ambas
há a concordância de que os usuários em situação de rua compõem um grupo
muito heterogêneo, com necessidades distintas, não cabendo se traçar um perfil
– para biblioteca pública, idealmente, isso não se aplica.
Da mesma forma, por essa instituição não promover diferenciações, outro
ponto em comum na fala das pessoas entrevistadas, está em serem contrários à
oferta de serviços específicos a estes usuários. Porém, aqui seria necessário nos
debruçarmos com especial atenção, pois as respostas delas contradizem a maioria
das pesquisas lidas, e aquelas neste artigo referenciadas, sendo contrárias,
inclusive, às diretrizes específicas da IFLA – elaboradas cuidadosamente ao longo
de anos de trocas de experiências e estudos, e baseadas em um questionário
aplicado em inúmeros países.
Estudando as propostas de serviços elencadas por estas diretrizes e os
autores lidos, pode-se afirmar que não se trata de ofertas paternalistas ou que
incentivam a distinção e separação de públicos. Mas sim, das bibliotecas públicas
se posicionando ainda mais firmemente quanto a seu papel social, frente a
tantas demandas da sociedade. Auxílios em como elaborar currículos, ou arranjo
de estantes com informações sobre postos de saúde, locais de acolhimento,
alimentação, etc., não aumentam abismos sociais. Frisa-se relembrar, no
entanto, o importante estudo de Muggleton (2013): a forma como estes

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 39


serviços forem ofertados é que distinguirá entre propagação do preconceito ou
contribuição real para inclusão social - algo muito sutil e delicado, mas que faz
toda a diferença. De resto, como o mesmo autor aponta, o tratamento igualitário
e a provisão de serviços os mais diversos, já estão no próprio cerne conceitual
da biblioteca pública. Prova disso é ter-se observado na visita à BSP, uma estante
bastante central com vários exemplares do popular classificado de empregos “O
Amarelinho”, com muitos retirados para consulta.
As próprias regras gerais da biblioteca são outro exemplo de oferta de
serviços. A BSP se mostra revolucionária e exemplar ao não exigir comprovante
de endereço ou atrelamento a albergues. E reflexo imediato disso está na
frequência majoritária deste grupo no espaço, muitos apropriando-se dele a
vontade, e aparentemente, interagindo entre si e com os funcionários. Já na
BMA, as regras restritivas de acesso acarretam em uma frequência muito menor
deste grupo do que se imaginaria para a área central da cidade, e para seu
potencial; influenciando inclusive, na vinda sempre dos mesmos, sem muitas
novas adesões e interações. Isso seria algo para se atentar e procurar reverter.
Questiona-se, no entanto, a regra da BSP de proibição do cochilo, muito
contraditória ao restante de sua filosofia e das bibliotecas públicas no geral, que
talvez revele como na prática, ainda haja questões a ser repensadas. Muggleton
(2013) tratou um pouco do assunto, sugerindo que regras assim fossem mais
maleáveis, pois as pessoas em situação de rua raramente têm um local seguro
para “baixar a guarda” por uns instantes. O fato delas reconhecerem a biblioteca,
como um local assim, para se estar, em meio à cidade tão excludente, é algo que
não deveria ser relevado, nem reprimido.
Ambas entrevistadas acreditam na importância que a biblioteca tem na vida
das pessoas em situação de rua, acolhendo-as, e enquanto forte representação
de abrigo. Foi possível encontrar pontos em comum entre as referências
bibliográficas estudadas e os conceitos destas duas bibliotecas da cidade de
São Paulo – restaria verificar se todos estes são efetivamente aplicados. Porém,
pode-se confirmar como a biblioteca pública tem um grande papel social dentro
da comunidade, e consequentemente, inúmeras responsabilidades. E também
sempre terá outras potencialidades, frente a demandas.
Por limitações de formato e tempo, o presente estudo não conseguiu
abranger entrevistas com outros funcionários e com os próprios usuários focados.
Quanto aos funcionários, teria sido muito importante captar outras visões, de
modo a evitar possíveis reproduções de discursos institucionais, uma vez que
se soube, por relatos informais, de eventuais práticas profissionais contrárias a
alguns dos aspectos narrados. Com relação aos usuários, ouvir suas impressões
diretas teria sido muito enriquecedor para o enfoque, para apresentar o outro
lado complementar deste quadro sobre bibliotecas públicas. Espera-se ter esta
oportunidade em um futuro próximo, e por ora, contribuir como possível, com a
reflexão sobre o tema.

40 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Notas
1
Ranganathan (Índia, 1892-1972), é considerado por muitos, o maior bibliotecário do século
XX. Reconhecido por abordagens que além de técnicas e teóricas, eram também filosóficas.
Publicou as cinco leis da Biblioteconomia em 1931, dando inicio a uma nova era nesta área,
que passa a ser vista também como produtora de princípios científicos.
2
International  Federation of  Library  Associations and Institutions (IFLA) é a instituição
internacional máxima na representação dos interesses de bibliotecas, serviços informacionais
e seus usuários. Conta com mais de 1400 membros em cerca de 140 países ao redor do mundo.
3
A Biblioteca Mário de Andrade (BMA) foi fundada em 1925, como Biblioteca Municipal de São
Paulo, passando ao presente nome que homenageia o grande modernista apenas em 1960. É
a maior biblioteca pública de São Paulo, e a segunda maior biblioteca pública do país. A Seção
Circulante, de obras de amplo acesso, foi inaugurada em 1944, e possui um acervo composto
por duas coleções: a Coleção Circulante, com mais de 53 mil livros enfocando literatura,
ciências humanas e artes; e a Coleção de Referência, formada por cerca de 3.900 obras de
referência, incluindo artes (BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE, 2018).
4
A Biblioteca de São Paulo (BSP) foi inaugurada em 2010. Conta com acervo de mais de 43 mil
títulos, e em 2017, teve uma frequência de mais de 294 mil pessoas, além de promover 1.058
ações culturais. Sua concepção foi inspirada na Biblioteca de Santiago, no Chile, e adotam o
conceito de Biblioteca Viva, que valoriza a ideia de inclusão social por meio da leitura, e na
qual os usuários são o elemento central. Em 2018, a BSP foi uma das finalistas do prêmio
International Excellence Awards 2018, na categoria Biblioteca do Ano (BIBLIOTECA DE SÃO
PAULO, 2018).

Referências
ALMEIDA JÚNIOR, O. F. de. Biblioteca pública: avaliação de serviços. Londrina: Eduel, 2013.
Disponível em: <http://www.uel.br/editora/portal/pages/arquivos/biblioteca%20
publica_digital.pdf>. Acesso em: 12 maio 2018.

______ . Bibliotecas públicas e bibliotecas alternativas. Londrina: Editora da UEL, 1997.

BIBLIOTECA DE SÃO PAULO. A biblioteca é sua. Disponível em: < https://bsp.org.br/a-bsp/>.


Acesso em 10 jun. 2018.

BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE. História da Biblioteca Mário de Andrade. Disponível em:


<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bma/historico/index.
php?p=7653>. Acesso em 10 jun. 2018.

FIGUEIREDO, N. M. de. A modernidade das cinco leis de Ranganathan. Brasília: Revista IBICT
21(3), p.186-191, set/dez, 1992. Disponível em: < http://revista.ibict.br/ciinf/article/
viewFile/430/430>. Acesso em: 10 jun.2018.

FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS; PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO


/ SECRETARIA DE ASSISTÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Pesquisa censitária da
população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população adulta
em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta
população na cidade de São Paulo. PMSP/SMADS: São Paulo, out. 2015.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 41


IFLA/UNESCO. Public Library Manifesto. Haia: IFLA, 1994. Disponível em: <https://www.ifla.
org/files/assets/public-libraries/publications/PL-manifesto/pl-manifesto-ptbrasil.pdf>.
Acesso em: 14 maio 2018.

KELLEHER, A. Not just a place to sleep: homeless perspectives on libraries in central


Michigan. Library Review, Vol. 62, ed. 1/2, p.19-33, 2013. Disponível em: < https://doi.
org/10.1108/00242531311328122>. Acesso em: 06 abr.2018.

KOONTZ, C.; GUBBIN, B. (Ed). Diretrizes da IFLA sobre os serviços da biblioteca pública. 2.
ed. Lisboa, 2013. Disponível em: <https://goo.gl/HLhn3j>. Acesso em: 26 abr. 2018.

MUGGLETON, T. H. Public libraries and difficulties with targeting the homeless.


Library Review, Vol. 62, ed. 1/2, p.7-18, 2013. Disponível em: <https://doi.
org/10.1108/00242531311328113>. Acesso em: 13 abr.2018.

NATALINO, M. A. C. Nota Técnica Nº 73 – Disoc. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais.


Estimativa da população em situação de rua no Brasil (setembro de 2012 a março de
2020). Ipea: Brasília, jun. 2020. Disponível em:< https://www.ipea.gov.br/portal/images/
stories/PDFs/nota_tecnica/200612_nt_disoc_n_73.pdf>. Acesso em: 11 out.2020.

NATALINO, M. A. C. TD2246 - Estimativa da população em situação de rua no Brasil. Ipea


– texto para discussão: Brasília, out. 2016. Disponível em:< http://www.ipea.gov.br/
portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28819>. Acesso em: 13 maio
2018.

OLIVEIRA, S. da S. de. Inclusão social pela leitura em bibliotecas públicas da cidade do Rio
Grande, RS: as pessoas em situação de rua. Rio Grande: FURG, 2016. Disponível em: <
http://repositorio.furg.br/handle/1/7630>. Acesso em: 10 abr. 2018.

QUALITEST; PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO / SECRETARIA DE ASSISTÊNCIA E


DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Pesquisa censitária da população em situação de rua,
caracterização socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório
temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo –
2021. Produto V – Relatório Completo do Censo. PMSP/SMADS: São Paulo, dez. 2021.
Disponível em: < https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/
assistencia_social/censo_2021/index.php?p=2007 >. Acesso em: 03 mar.2022.

RODRIGUES, A.; SANTOS, B. ‘Migrantes da Pandemia’ se mudam com crianças para as


ruas do centro de São Paulo. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 de julho, 2021.
Caderno Cotidiano / Coronavírus. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/
cotidiano/2021/07/migrantes-da-pandemia-se-mudam-com-criancas-para-ruas-do-
centro-de-sao-paulo.shtml>. Acesso em: 04 mar.2022

WINKELSTEIN, J. A.; IFLA/LSN Guidelines Working Group. IFLA Guidelines for Library Services
to People Experiencing Homelessness. Haia: IFLA, 2017. Disponível em: < https://www.
ifla.org/publications/node/12642>. Acesso em: 30 abr.2018.

42 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Resumo
Considerando a reduzida produção nacional de pesquisas acadêmicas sobre a frequência de
pessoas em situação de rua na biblioteca pública, objetiva-se realizar uma análise sobre a
questão, investigando se essa instituição consegue cumprir seu papel social, e se, além disso,
ela representa para estes indivíduos um espaço acolhedor. Para tanto, procede-se à pesquisa
bibliográfica, com enfoque na produção nacional e estrangeira sobre o tema, acompanhada
por levantamento de campo através de entrevistas pontuais com funcionários de duas
bibliotecas públicas de referência da cidade de São Paulo, a Biblioteca Mário de Andrade e
a Biblioteca de São Paulo. Desse modo, observa-se que há pontos em comum entre o que
foi pesquisado na teoria e apreendido nas entrevistas, que expressam a concordância dos
funcionários com a afirmação de que os usuários em situação de rua compõem um segmento
heterogêneo, com necessidades diferentes, e que são acolhidos pela biblioteca. Outro ponto
em comum foi o de serem contrários à oferta de serviços específicos voltados a esses grupos,
ainda que isso tenha sido questionado. Depreende-se por fim, que a biblioteca pública tem um
papel e responsabilidade sociais muito grandes, sendo de muita importância na vida dessas
pessoas, principalmente, como representação de abrigo.

Palavras-chave: pessoas em situação de rua; biblioteca pública; papel social da biblioteca


pública; acolhimento.

Abstract
Considering scarce Brazilian academic research on the attendance of people experiencing
homelessness in the public library, the objective of this article is to carry out an analysis
on the subject, investigating whether this institution can fulfill its social
role, and also, if it represents a welcoming place to this group of users. In
order to do so, we proceed to the bibliographic research, focusing on the
national and foreign production on the subject, combined with field survey
through punctual interviews with staff members of two public libraries
of reference of the city of São Paulo: Biblioteca Mário de Andrade and Biblioteca de
São Paulo. We observe points in common between what theory says and what we
learned from the interviews and also confluences between the interviews themselves,
as it was agreed that people experiencing homelessness are a heterogeneous group,
with different needs, and that the public library welcomes them. In addition, the
respondents were against the offer of specific services targeting this group of people,
although this was questioned. Lastly, we can comprehend that the public library has
a very significant social role and responsibility, being of great importance in the lives
of these people, mainly as a representation of shelter.

Keywords: people experiencing homelessness; public library; the social role of the public
library; welcoming place.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 43


44 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
A Migração do Sul Global para o
Norte Global por estilo de vida:
individualismo, classe social
e liberdade em uma cidade de
‘superdiversidade’

Daniel Robins

INTRODUÇÃO

Neste artigo, utilizo uma pesquisa qualitativa com brasileiros que moram
em Londres para argumentar que há certos fluxos de migração do Sul Global
para o Norte Global chamados “migração por estilo de vida”. Eu pretendo
desafiar os Estudos que tendem a ver “a migração por motivos de estilo de vida
... como uma característica intrínseca (específica) da migração do Norte Global
[enquanto] a migração do Sul Global ‘ainda é (implicitamente) genericamente
mapeada como dependente de fatores de ‘empurrão’ e ‘puxão’ [minha
tradução]” (Martins Junior, 2017, p. 52). O meu argumento – de que os brasileiros
de classe média que migram para Londres são um exemplo de migração por
estilo de vida – também destaca o ponto, elaborado por pesquisadores como
Gay y Blasco (2010), de que o cosmopolitismo como “uma postura intelectual
e estética de abertura para experiências culturais divergentes, uma busca por
contrastes ao invés de conformidade [minha tradução]” (Hannerz, 1990, p. 239),
não é somente para os cidadãos do Norte Global (Gay y Blasco, 2010). Embora
as motivações econômicas ofusquem, até certo ponto, todas as decisões
de migrar (Clark & Maas, 2015), uma característica compartilhada entre os
migrantes brasileiros, em minha pesquisa, e “migrantes por estilo de vida”,
na literatura, é uma negação explícita de uma motivação econômica para a
decisão de migrar. Além disso, ambos os grupos compartilham uma perspectiva
ideológica individualista. Eles podem negar uma identidade transnacional e,
em vez disso, enquadrar sua migração em termos cosmopolitas como um
exercício de “cidadania global”. Este distanciamento de uma identidade como
um migrante brasileiro transnacional “típico” não deve, porém, ser tomado
como dicotômico, porque a identidade do migrante é muitas vezes discursiva e
multidimensional (Krzyzanowski & Wodak, 2008).
Na verdade, este artigo não pretende ser uma comparação binária direta
entre os migrantes de classe média e migrantes “econômicos” de classe média
baixa, mas, sim, examinar como a dicotomia entre “migrantes econômicos

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 45


transnacionais” e “migrantes por estilo de vida” opera no discurso de meus
entrevistados. Isso é feito não apenas para mostrar que o termo “migrante
por estilo de vida” é aplicável para certos fluxos migratórios do Brasil para
Londres, mas também para examinar o significado de uma identificação com
este termo (e a negação ou distanciamento resultante de outros termos).
Estes posicionamentos levantam questões sobre o significado de identidade
“brasileiro” em si, especialmente em termos de como tal identidade “se
traduz” e é interpretada por outros no contexto do meio social de Londres. Esse
discurso do distanciamento faz parte de um processo pelo qual os migrantes
distinguem suas identidades, como indivíduos, de uma identidade coletiva que
eles associam a seus compatriotas de classe média baixa “transnacional” e que
também moram em Londres. Portanto, este artigo usa a classe social como
uma lente através da qual explora a migração brasileira para Londres como um
tipo de migração por estilo de vida.
A segunda seção explora o significado de classe social no Brasil e como as
diferenças de classe são afetadas por mudanças no status social, após a migração.
Em seguida, examina o conceito de “migração por estilo de vida” e a forma como
ele se relaciona com o individualismo e status de classe que prioriza a “qualidade
de vida” e o custo potencial de perda de “confortos materiais [minha tradução]”
(Benson, 2011, p. 224). A terceira seção analisa algumas das principais literaturas
de migração por estilo de vida com a literatura de migração brasileira. O objetivo
é mostrar como a literatura apresenta as semelhanças nas motivações e no
discurso entre migrantes por estilo de vida e migrantes brasileiros de classe
média. Mostra que, em vez de acumulação financeira, “experiência”, “qualidade
de vida” e, claro, “estilo de vida’’, são temas persistentes no discurso dos dois
grupos. Além disso, esses temas estão ligados a uma perspectiva ideológica
muito individualista. Esta perspectiva é muitas vezes expressada como um desejo
de “Liberdade” como um valor ideológico, um processo de individualização e
uma tendência a se distanciar de uma identidade transnacional. Todas essas
coisas são características definidoras desse tipo de migração. Essa prática de
distanciamento fica mais complicada no contexto brasileiro de migração por
causa da sua intersecção com disparidades raciais e étnicas no Brasil. Isso levanta
a questão de quais aspectos do status social importam no “sucesso” de uma
migração por estilo de vida, do Sul Global para o Norte Global.
A quarta seção usa as pesquisas empíricas para mostrar como temas como
estilo de vida, individualismo, classe e raça aparecem no discurso dos imigrantes
brasileiros que entrevistei. Individualismo e “Liberdade” (que se manifestou
como anonimato e mobilidade) são os valores muitas vezes pelos quais os
migrantes por estilo de vida medem seus sucessos. Por sua vez, a mobilidade
assume muitas interpretações também. Além disso, essas interpretações são
relacionadas a seus status como migrantes por estilo de vida. O objetivo final
não é mostrar que os entrevistados brasileiros são únicos na maneira como
descrevem suas experiências de migração. Pelo contrário, as semelhanças

46 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


entre os discursos deles e os discursos de outros grupos de migrantes de classe
média evidenciam como temos que expandir nossa compreensão da migração
por estilo de vida. Em outras palavras, deveríamos incluir certas instâncias de
fluxos migratórios do Sul Global para o Norte Global na categoria “migração
por estilo de vida”. Devemos considerar a classe social e a nacionalidade como
modos de analisar fluxos migratórios. Essa pesquisa empírica também oferece
uma oportunidade de explorar criticamente como as disparidades da raça,
cultura e classe do Brasil operam no contexto de migração internacional. Contra
o pano de fundo das diferenças de classe no Brasil e a preocupação pública
com os “migrantes econômicos” no Reino Unido, levanta-se a questão de como
podemos interpretar os migrantes brasileiros de classe média se distanciando da
“comunidade” transnacional brasileira (Martins Junior, 2017).

2 OS SIGNIFICADOS CONTESTADOS DO TERMO “CLASSE MÉDIA”


NO BRASIL

“Classe” e “classe média” têm um número diverso de significados que


dependem do contexto e da perspectiva dos utilizadores destes termos (Gibson‐
Graham & Ruccio, 2001). No contexto da migração para Londres, os migrantes
brasileiros são predominantemente oriundos das classes “B” e “C” (Dias, 2009).
A classe “C” foi nomeada por Neri (2008, 2011) como “a nova classe média.”
Esta é a classe média estatística, daqueles com um nível acima da renda média.
Normalmente eles não conseguem morar em um distrito caro em uma cidade
grande como São Paulo, que tem a infraestrutura e os níveis de segurança no
mesmo patamar de uma cidade no Norte Global. Ainda assim, eles têm níveis de
renda e poder de consumo suficientes para permitir-lhes serem definidos e se
autodefinirem (McCallum, 1996; Neri, 2014) como ‘classe média’. Os membros
da classe “B” são aqueles com renda e níveis de educação e estilos de vida que
estariam mais próximos daqueles da que é considerada classe média, pelos
padrões do Norte Global. Falando estatisticamente, eles são a classe média alta,
mas muitas vezes se referem a si próprios como classe média, porque estão
usando como um ponto de referência os padrões de países como o Reino Unido.
Às vezes, eles são referidos como a “velha classe média” (Klein, Mitchell, & Junge,
2018). No entanto, dividir as categorias de classe por medidas “objetivas”, como
a renda, conta apenas parte da história. Como Olwig (2007, p. 87) nos lembra,
“a classe também é uma categoria cultural que diz respeito aos aspectos sociais,
bem como econômicos, dos meios de subsistência considerados apropriados nas
meias camadas da sociedade [minha tradução].”
Na verdade, com o estreitamento da economia e lacuna educacional
entre esses dois grupos nos anos passados, os marcadores culturais e
comportamentais das diferenças são mais fortemente enfatizados por alguns
membros da classe “B”, a fim de preservar o que eles vêem como uma intrusão

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 47


em seus espaços sociais e econômicos (Klein et al., 2018). Como este artigo
mostra, essa ênfase nas diferenças sociais e culturais assume maior importância
no contexto da migração para Londres. Embora raramente seja explicitada,
a ênfase nas diferenças pode ter conotações raciais também. As divisões de
classe convergem regularmente com as divisões regionais e raciais no Brasil.
Portanto, embora não seja sempre o caso, quando se fala de brasileiros de
“classe média” que moram em Londres, é frequente (embora seja importante
notar, nem sempre) fazer-se referência aos brasileiros das regiões mais ricas do
sul e sudeste do Brasil e que são de ascendência predominantemente europeia.
Os migrantes da classe “B” são normalmente documentados (geralmente via
passaportes ancestrais da União Europeia). O segundo grupo, da “classe C” do
Brasil, são muitas vezes “semidocumentados”. Tipicamente, eles chegam com
vistos de turista ou de estudante e muitas vezes continuam a viver e trabalhar
no país depois que esses vistos expiram. Esta divisão das classes é, muitas vezes,
reforçada por uma divisão regional em que o primeiro grupo (B) geralmente
vem dos estados do sul e do sudeste. O segundo grupo (C) geralmente vem dos
estados centrais e do Nordeste.

3 MIGRAÇÃO POR ESTILO DE VIDA, MIGRAÇÃO PRIVILEGIADA E


INDIVIDUALISMO

Como Della Pergola (1984, p. 312) escreve, “a migração livre tende a


desenhar estratos sociais relativamente pequenos, selecionados e às vezes até
elitistas [minha tradução]”. Embora a maioria dos migrantes internacionais para
países desenvolvidos sejam das classes médias de seus países (Torresan, 2007),
um tema comum é que os migrantes por estilo de vida, quando comparados
com seus pares, tendem a ser ainda mais ricos. Benson e Reilly (2018, p. 609)
definiram a migração por estilo de vida como “indivíduos relativamente ricos de
todas as idades, que se mudam a tempo parcial ou a tempo inteiro para lugares
que, por várias razões, significam, para o migrante, uma melhor qualidade
de vida [minha tradução]”. O trabalho recente de Benson e Reilly (2018), no
Panamá e na Malásia, concentra-se nessa área privilegiada de migrantes por
estilo de vida. Eles revelam como os migrantes por estilo de vida para esses
países reproduzem desigualdades históricas e estruturais, um tema que se
espelha no caso da migração brasileira, mas, como veremos, com diferenças
importantes. Numa linha similar, Kunz (2016) observa que “os expatriados”, um
termo que compartilha alguma sobreposição com “migrante por estilo de vida
“, muitas vezes são aqueles “privilegiados por cidadania, classe ou raça [minha
tradução]” (p. 89). Portanto, ela escreve sobre a necessidade de “transformar
a construção da própria categoria no objeto de análise [tradução]” (p.96). Para
tanto, ela defende tratar o termo “expatriado” como uma categoria histórica da
prática em oposição a uma categoria de análise (p. 89). Ela argumenta que essa

48 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


abordagem nos ajudará a pesquisar o termo, “ao mesmo tempo que resiste a
uma compreensão reificada dele” (Kunz, 2016). Portanto, devemos implementar
uma abordagem semelhante com o termo “migrante por estilo de vida”. Ao invés
de comparar diretamente os “migrantes por estilo de vida” com os “migrantes
econômicos”, seria mais produtivo analisar como uma identificação com o
termo “migrante por estilo de vida” é operacionalizada como uma “categoria
de prática”, por brasileiros de classe média. Isso é especialmente relevante
porque, ao contrário da pesquisa da Kunz sobre expatriados, a necessidade
entre muitos migrantes brasileiros de classe média de distinguir sua situação
da dos “migrantes econômicos”, uma prática que Kunz mostra também ocorrer
com frequência entre expatriados , assume uma dimensão diferente quando,
para um observador externo, as diferenças entre aqueles que se mudaram por
“razões econômicas” e aqueles que o fizeram por razões de “estilo de vida” não
são sempre óbvias. Isso ocorre porque os brasileiros de Londres tendem a vir de
uma seção transversal relativamente estreita da sociedade, com mais frequência
das classes “B” e “C”. No entanto, no Brasil, a divisão entre esses dois grupos está
ficando menor (Klein et al., 2018).
Além disso, como Kearney e Beserra (2004) observam, por causa da migração,
“as fronteiras entre as identidades de classe são tipicamente obscurecidas ou
mesmo inexistentes [minha tradução]” (p. 4). Isso é realçado pela observação
de Margolis de que, embora muitos migrantes brasileiros de classe média
podem se beneficiar de um “privilégio colonial” (Benson & Reilly 2018), este
“privilégio” é temperado pelo fato de que eles são cidadãos de uma ex-colônia;
não são migrantes para uma ex-colônia. Como Margolis (2013) escreve, são
frequentemente tratados assim. Do outro lado, a distância entre os dois grupos
é reduzida mais pela elevação do status social que os membros da classe “C”
podem desfrutar quando migram para Londres. Ela explica:

O fato simples de morar na Inglaterra ... conota um status


de classe média, independentemente do tipo de trabalho
que os brasileiros fazem lá. Então, também, os brasileiros
em Londres da classe média e outras – são vistos como
parte de uma massa indiferenciada dos imigrantes da
América Latina [minha tradução] (MARGOLIS, 2013, p.37).

Londres, portanto, tem o efeito de nivelar as distinções de classe que talvez


sejam mais óbvias no Brasil. Este é especialmente o caso, considerando que os
membros das classes B e C, muitas vezes, no início pelo menos, trabalham lado
a lado nos mesmos empregos. Como Torresan (2007) observa, isso separa os
brasileiros da classe média, que migram para Londres, daqueles que escolheram
Portugal, que, muitas vezes, mantiveram um estilo de vida de classe média no
destino e, portanto, não experimentaram qualquer tipo de queda em termos
de mobilidade sociai. Enquanto os brasileiros em Portugal eram vistos como

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 49


“migrantes qualificados de classe média” (p. 108), aqueles que Torresan pesquisa
em Londres manifestaram sua identidade de classe média quase exclusivamente
através do status anterior no Brasil. Assim, em Portugal, o status dos brasileiros
de classe média “contou com a intensiva troca de percepções e estereótipos
entre a população hospedeira e os imigrantes”. Enquanto, em Londres, o status
de classe média “foi reconhecido apenas por outros brasileiros” e normalmente
isso é “invisível para a maioria dos ingleses”. Uma consequência dessa súbita
confusão das fronteiras de classe em Londres é que os migrantes de uma posição
de classe mais alta, muitas vezes, enfatizam a distinção entre eles e o grupo que
eles veem como migrantes “econômicos” de classe baixa. Como Martins Junior
(2014, p. 15) escreve, “a maior diferenciação ocorre entre os próprios brasileiros
[minha tradução]”.
Pode parecer que os migrantes brasileiros, trabalhando em empregos
idênticos, estão num grupo indiferenciado e homogêneo, mas devemos prestar
atenção para as divisões dentro do que pode parecer de fora como uma unidade
(Martins Junior, 2017). Como Stephens, Markus e Townsend (2007) observam,
“embora para um observador, a ‘mesma’ ação pode parecer idêntica em contextos
diferentes, o significado de uma determinada ação deriva das ideias, práticas e
condições materiais do contexto em que essa ação ocorre [minha tradução]” (p.
827). Embora possa parecer que os migrantes brasileiros são todos motivados
pelas mesmas preocupações econômicas e, muitas vezes, podem parecer iguais ,
em termos de emprego, os valores professados que impulsionam seus desejos de
emprego costumam ser diferentes. Como Olwig (2007) nos lembra, “as narrativas
dos migrantes não devem ser tratadas simplesmente como relatos factuais de
movimentos ... para atingir objetivos bem definidos. Elas também são modos de
contabilizar vidas dentro de estruturas sociais e culturais que dão significado e
propósito às pessoas envolvidas [minha tradução]” (Olwig, 2007, p. 99).

4 MIGRAÇÃO, A IDEOLOGIA E O ESTILO DE VIDA

Hofstede (1980) descobriu que um corolário fundamental do surgimento


de individualismo é afluência, pois ela leva à independência financeira e,
portanto, permite a possibilidade de independência em relação à influência de
grupos. No entanto, como Triandis (1995, p. 30) aponta, é nas classes médias
que o individualismo é mais prevalente. Igarashi e Saito (2014) argumentam
também que o cosmopolitismo individualista é, muitas vezes, ligado ao capital
econômico, capital cultural e capital social. Esta conexão entre individualismo
e o status da classe média tem sido frequentemente observada pelos
pesquisadores da migração do estilo de vida (Eimermann, 2015; Korpela,
2014). A migração por estilo de vida também tem sido associada ao conceito de
“migração ideológica” (Zaban, 2015, 2017). Se o problema é que toda migração
é “ideológica”, então coloca-se a seguinte questão: por qual ideologia ela está

50 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


sendo motivada? O que queremos dizer quando nos referimos a migração
como “econômica” em vez de “por estilo de vida”? Giddens (1991, p. 81) define
“estilo de vida” como “um conjunto de práticas mais ou menos integrado que
um indivíduo adota, não apenas porque tais práticas atendem às necessidades
utilitárias, mas porque fornecem material para uma narrativa particular de
autoidentidade [minha tradução]”. A implicação para estudos de migração,
então, é que as pessoas podem se mudar por sofrerem uma experiência não
apenas de “alienação material” (Portes & DeWind, 2004), mas também de
“alienação social” (Dashefsky & Lazerwitz, 1983).
O papel da globalização para motivar a migração por estilo de vida (Benson &
O’Reilly, 2009) é muito importante. ‘Mediascapes’ (Appadurai, 1996) têm o poder
de não apenas oferecer àqueles no Sul Global imagens idealizadas da vida no Norte
Global em termos materiais, mas idealizações imateriais também. Portanto, não
se trata apenas de imaginar benefícios materiais que podem tornar os destinos de
migração atraentes, mas os aspectos imateriais de “qualidade de vida” também.
Na verdade, para alguns migrantes por estilo de vida, eles podem realizar uma
redução no conforto material em troca de um aumento da “qualidade de vida”
(Benson, 2011; Carling & Jolivet, 2016). É importante esclarecer que, estritamente
em termos de estudos métricos econômicos, muitos dos que entrevistei tinham
uma qualidade de vida material superior no Brasil, mas estavam dispostos a
sacrificar isso pelo “estilo de vida” que experimentam em Londres. Isso se reflete
nos resultados quantitativos de Carling e Jolivet (2016, p. 39) revelando que, em
contraste com as outras nacionalidades que eles pesquisaram, o brasileiro “tendia
a ficar mais satisfeito com o impacto da qualidade de vida da migração do que
com o benefício financeiro [minha tradução].” Halfacree (2004) adverte contra
a criação de um dualismo entre motivadores econômicos e não econômicos
para a migração porque os fatores não econômicos geralmente são considerados
como tendo uma importância secundária. No entanto, dificuldades econômicas
não são uma motivação para os migrantes por estilo de vida. Torkington (2010)
fez uma pesquisa sobre a migração por estilo de vida do norte da Europa para
Portugal. Ela observa que “esse tipo de migração claramente não é motivado
por dificuldades econômicas ou pela procura de trabalho ou alguma forma
de segurança financeira” (Torkington, 2010, p. 102). Existem outras questões,
então, sobre o papel do emprego em projetos de migração por estilo de vida.
Claramente, existem muitos migrantes por estilo de vida que se mudam para
Portugal para a aposentadoria e por isso ocupam um espaço diferente e um
papel menos ativo na economia do país (Benson, 2012). Mas há muitos que se
mudam bem antes da idade de aposentadoria e continuam a trabalhar depois de
migrarem também. O trabalho de Benson menciona muitas empresas no campo
na França que foram criadas e administradas por migrantes britânicos. Torkington
escreve que esses migrantes por estilo de vida usam seus trabalhos como “um
meio para um fim.” De acordo com Benson, o objetivo do projeto de migração

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 51


é frequentemente o de retornar a “uma vida que foi ‘perdida’ na Grã-Bretanha”
(Benson, 2012, p. 1687). O emprego é apenas a forma pela qual eles conseguem
isso. Este tema também é desenvolvido na literatura brasileira sobre migração.
Torresan (2012) aponta que é a forma como o capital financeiro é gasto que revela
as verdadeiras motivações por trás do desejo de ganhá-lo. Tal como uma de suas
entrevistadas aborda essa questão, “quando você me pergunta se eu acho que
sou um imigrante econômico, a ideia da migração econômica está diretamente
relacionada ao meu ideal de vida [minha tradução]” (TORRESAN, 2012, p. 120).
Torresan descreve este “ideal de vida” como uma “ideologia de classe média que
inclui noções de individualismo, cidadania, modernidade e democracia audazes
[minha tradução]” (TORRESAN, 2012, p. 117). Uma diferença fundamental, no
caso da migração brasileira para Londres, é que está mais perto de um ideal de
vida “imaginado” do que de um ideal de “vida perdida”.

5 Individualismo: liberdade e anonimato

Um dos aspectos mais salientes da migração por estilo de vida é caracterizado,


portanto, por uma ideologia muito individualista. Este individualismo
frequentemente se manifesta como uma ênfase na liberdade individual. O’Reilly
(2014) identifica os imaginários que moldam a migração por estilo de vida, como
a busca por autorrealização, por fuga e liberdade dos problemas anteriores
(O’REILLY, 2014, p. 220). Porém, há uma forma fundamental que distingue os
migrantes brasileiros de classe média daqueles da literatura sobre migração
por estilo de vida. Ao contrário da maioria das formas de migração por estilo de
vida, que tendem a ser do meio urbano para o rural (Benson & O’Reilly, 2009), a
deles é do urbano para o urbano. Embora o ideal de liberdade seja pertinente,
o caminho que eles vislumbram relaciona-se com a liberdade particular que
a migração para uma “cidade global” (Sassen, 1991) pode fornecer, o que os
torna mais semelhantes aos migrantes mencionados no trabalho elaborado por
Griffiths e Maile (2014) sobre os migrantes britânicos por estilo de vida para
Berlim. Eles explicam que um entrevistado, ‘Andy’, sentiu que “A história de
Berlim e a reputação de uma cidade ‘rebelde’ representavam a liberdade e a
capacidade de ‘ser quem você é [minha tradução]” (GRIFFITHS; MAILE, 2014,
p. 150). Mas, talvez a investigação mais completa sobre o conceito de liberdade
como um valor ideológico entre os migrantes por estilo de vida venha do estudo
de Korpela (2014) sobre os ocidentais que moram na Índia. Korpela descobriu
que muitos dos seus entrevistados articularam os seus projetos de migração
sob uma perspectiva radicalmente individualista, centrada nas noções de
“autorrealização” e “na liberdade de escolha”, sendo “o objetivo da migração
por estilo de vida a felicidade e satisfação individual” (KORPELA, 2014, p.
41), e “melhorar o desempenho de cada vida pessoal, e não as condições na
sociedade em geral [minha tradução]” (KORPELA, 2014, p. 34). Relacionada com

52 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


a liberdade encontra-se a experiência do anonimato, ou melhor, a liberdade no
anonimato. Como Conradson e Latham (2007) observam nas suas pesquisas
sobre migração por estilo de vida da Nova Zelândia para Londres, “misturando-
se”, o anonimato em Londres faz parte da maneira como os entrevistados
articularam as “possibilidades afetivas” de liberdade que Londres oferece. Este
não é um fenômeno novo. Florida (2012) escreve que, já na década de 1920,
Carolyn Ware havia observado que os residentes de Greenwich Village de Nova
York vinham porque “ procuravam escapar da sua comunidade, das suas famílias
ou de si mesmos [minha tradução].” Eles eram “intensamente individualistas
em suas relações sociais e quanto ao ponto de vista deles.” Eles tinham desdém
pelo “hábito de se juntar” e, em vez disso, aproveitavam “todas as vantagens
da seletividade e do anonimato que a cidade oferece.” Em vez de uma vida
tradicional, “eles mantiveram relações individuais com amigos espalhados por
toda a cidade” (WARE, 1935, pp. 5, 37, visto em Florida, 2012, p. 200).
Florida descreve esta dependência de laços individuais fracos, em vez de uma
rede social forte e interdependente, como a liberdade do anonimato, e afirma
que muitos viram isso como um motivador para migrar para cidades grandes.
Florida imaginou isso como uma característica do que ele chamou de “classe
criativa”. O que torna os migrantes por estilo de vida notáveis é que eles exibem
valores semelhantes, apesar de não terem nenhum envolvimento necessário
com trabalhos criativos. No caso de muitos migrantes brasileiros em Londres,
embora eles normalmente trabalhem em empregos do setor de serviços (pelo
menos no início), os fatores que influenciam a sua decisão de migrar encontram-
se muitas vezes mais próximos daqueles da “classe criativa” de Florida. É como
se os valores da “classe criativa” fossem agora internalizados de uma forma mais
ampla. Seguindo as observações de Ware (1935), o desejo de liberdade também
pode ser lido como liberdade da identidade coletiva, o desejo de mobilidade da
identidade através da individualização. Para muitos migrantes por estilo de vida,
este pode fazer parte de uma estratégia de se distinguir da situação dos seus
compatriotas. O trabalho de Benson sobre migrantes por estilo de vida britânicos
na França fornece um bom exemplo de individualização no trabalho, dentro do
discurso dos migrantes. Ela escreve que os seus entrevistados “expressaram
tentativas de distingui-los dos outros, enfatizando que suas novas vidas foram
significativamente diferentes dos compatriotas deles [minha tradução]”
(BENSON, 2009, p. 122). Um dos seus entrevistados explica:

Aqui, todos gostamos de fingir que somos as únicas


pessoas inglesas; todos nós gostamos de dizer: “Espero
que a invasão britânica pare em breve. Eu certamente não
gostaria de viver nas áreas que ouvi falar na Dordonha,
por exemplo ... é como uma colônia britânica” [minha
tradução] (BENSON, 2009, p. 121).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 53


Para muitos migrantes britânicos na França, são os migrantes britânicos na
Espanha que servem como o “Outro” de quem distinguem a sua própria situação
e práticas como migrantes. Benson explica que há um elemento de elitismo de
classe na maneira como os migrantes britânicos na França se referem aos seus
homólogos espanhóis: “Muitos dos migrantes também enfatizam como foi fácil
migrar para Espanha e quão pouco esforço foi feito para os recém-chegados para
estabelecer suas vidas ali” (Benson, 2012, p. 124).
De forma mais geral, os migrantes por estilo de vida muitas vezes desejam
distanciar-se dos “turistas” (Benson & O’Reilly, 2009). E aqui também podemos
encontrar paralelos na literatura mais ampla sobre os migrantes brasileiros,
muitos dos quais desejam distinguir-se “daqueles outros brasileiros” que não se
misturam com a sociedade “anfitriã” (Horst, Pereira e Sheringham, 2016 p.102).
Muitos dos entrevistados de Horst et al. (2016) enfatizaram o papel que suas
classes sociais desempenhou em seus projetos de migração e viram uma divisão
de classe entre eles e seus colegas. Assim, no caso de ambos os grupos, procuram
distinguir-se dos “outros brasileiros” ou dos “outros ingleses expatriados”, os
quais, insistem, não têm nenhuma relação com sua atitude em seu projeto
migratório e em suas práticas e experiências como migrantes.

6 IDENTIFICAÇÃO COM ‘CIDADANIA GLOBAL’ E UMA DISTÂNCIA


DO OUTRO ‘TRANSNACIONAL’

Korpela (2014, p. 34) observa que “os migrantes por estilo de vida parecem
ser um perfeito exemplo empírico sobre os quais os sociólogos que estudam
o individualismo têm teorizado”. Não é surpreendente que a “cidadania
global” (Heater, 2004) apareça no discurso dos migrantes por estilo de vida,
desenraizados como estão, literalmente e em termos de autoidentificação, da
cultura em que nasceram. Na verdade, Williams, Jephcote, Janta e Li (2018)
encontraram evidências de que aqueles que se identificam como um “cidadão
global” têm mais probabilidade de migrar do que seus compatriotas. O que
desejo extrair é como uma identidade de “cidadão global” é frequentemente
usada por migrantes por estilo de vida para contrastar sua situação com
a de uma “identidade transnacional”. Aqui, “cidadania global” pode ser
vinculada a uma postura individualista e cosmopolita em relação a formas de
identidade coletiva com base na nacionalidade. Bookchin conecta o conceito
a habitantes da Cosmópolis (a antiga “cidade global”) e o contrasta com
os cidadãos da Pólis (a cidade-estado tradicional; Bookchin, 1982, p. 157).
Ainda assim, como Igarashi e Saito (2014) nos lembram, o cosmopolitanismo
é muitas vezes vinculado à possessão de capital econômico, bem como de
tipos específicos de capitais culturais e sociais. Ao contrário dos migrantes
brasileiros semidocumentados (Dias, 2009), o privilégio de possuir um
passaporte da UE, por exemplo, permite que muitos brasileiros criem uma
identidade cosmopolita em termos de “cidadania global”, de uma forma

54 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


que não está disponível para aqueles que não a possuem. Isso se alinha
com a observação anterior de Kunz (2016) de que “cidadania” pode ser um
capacitador importante de formas privilegiadas de migração.

7 BRASILEIROS EM LONDRES

Em termos de lacunas de pesquisa, como observado, tem havido uma falta


de atenção aos fluxos migratórios privilegiados do Sul Global para o Norte Global.
Além disso, dentro desses fluxos, o trabalho que o “migrante por estilo de vida”
faz como uma “categoria de prática” (Kunz, 2016) também foi negligenciado.
Faltou pesquisar, especialmente, como a adoção de determinados termoss (e
sua identificação com eles), por parte do migrante, reflete várias formas de
desigualdade social, racial e regional no Brasil, e como essas desigualdades são
reinterpretadas fora do país. Para isso, esta seção baseia-se em meu trabalho
empírico qualitativo com migrantes brasileiros de classe média para argumentar
que muitos deles deveriam ser classificados como um exemplo de migração
por estilo de vida “do Sul para o Norte”. Por sua vez, é uma oportunidade para
explorar as questões subjacentes de raça e identidade que cercam a migração
por estilo de vida no contexto das identidades de região, raça e classe. A seção
examina como, em comum com os migrantes por estilo de vida, conforme
caracterizado na literatura, a liberdade por meio de anonimato (Conradson &
Latham, 2007; Florida, 2012) e mobilidade (Benson, 2011) são valores centrais.
Como a evidência quantitativa também sugere (Carling & Jolivet, 2016; Evans
et al., 2011; Evans et al., 2015), há um número considerável de migrantes
brasileiros, no Reino Unido, que não retratam suas motivações para migrar em
termos econômicos (ver também Martins Junior & Dias, 2013). Na verdade,
muitos dos meus entrevistados vieram de camadas econômicas privilegiadas,
no Brasil. Seus desejos de migrar para Londres não eram, eles afirmaram,
motivados por melhores perspectivas de emprego e, da mesma forma, pelo
trabalho que realizaram, especialmente nos primeiros anos de seu projeto de
migração, que sempre foi visto como um “meio para um fim”, o fim geralmente
sendo experimentar o estilo de vida que Londres tinha a oferecer, em vez de
ganhar dinheiro. Quando inquiridos sobre as motivações para suas migrações,
atração por Londres, e o desejo de morar e trabalhar lá, o tema mais saliente
que emergiu do seu discurso foi um desejo de liberdade, que eles interpretaram
de duas maneiras principais. O primeiro foi a liberdade como a sensação de
anonimato que a vida numa nova cidade pode gerar (Conradson & Latham,
2007; Flórida, 2012). O segundo foi a liberdade como mobilidade: tanto como
liberdade de movimento quanto como liberdade ou mobilidade da identidade
coletiva (Benson, 2011; Ware, 1935). No entanto, ao mesmo tempo, embora haja
diferenças de classe, “deve-se ter cuidado para não exagerar essas diferenças e
dar a impressão de que existem dois tipos totalmente diferentes de migrantes
[minha tradução]” (OLWIG, 2007, p.89).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 55


A ênfase na diferença no discurso dos entrevistados pode ser lida como, em
parte, uma reação ao fato de que muitos podem ocupar uma posição precária
entre as duas categorias de migrantes, “por estilo de vida” e “econômicos”. Em
vez de tentar dividi-los em categorias simples dos migrantes econômicos e não
econômicos, pode ser mais produtivo investigar o espaço liminar entre estas
duas categorias e questionar o que se entende por “econômico” e “por estilo de
vida” e como essas categorias são operacionalizadas pelos entrevistados, a fim
de preservar e recriar a separação das classes.

8 METODOLOGIA

Meus dados são retirados de um total de 33 entrevistas qualitativas em


profundidade, realizadas em Londres e conduzidas em inglês ou português,
entre abril e setembro de 2017. Algumas pessoas participantes da pesquisa
foram entrevistadas por duas vezes. Usei a segunda entrevista para fornecer
feedback e coletar mais detalhes sobre suas respostas na primeira entrevista.
Embora os números exatos sejam difíceis de obter, a população brasileira no
Reino Unido é estimada em 250.000, com a maioria residindo em Londres
(Evans et al., 2015). Este foi o motivo para escolher Londres como o local da
pesquisa. As idades variaram de 24 a 59 anos, com uma média de 37 anos.
Os entrevistados são oriundos, principalmente, do sul e sudeste do Brasil. São
Paulo é o estado mais comum de origem, e a maioria era de classe média (Classe
B) no Brasil, considerando que pelo menos um dos pais teve uma profissão
qualificada e a maioria cursou a universidade. Apesar de a maioria dos meus
entrevistados serem de famílias relativamente privilegiadas, alguns podem
ser considerados da classe “C” (Neri, 2014) (embora apenas um, “Bernardo”,
apareça nesta seção empírica). Mais uma vez, este artigo não se destina
a comparar diretamente esses dois grupos como um tipo de dicotomia. Na
verdade, como muitas dicotomias, há casos que não se encaixam facilmente, e a
realidade é sempre mais complexa. Em vez disso, este artigo usa essa dicotomia,
já que aparece no discurso dos entrevistados, para examinar questões com
uma dimensão social mais ampla. Os entrevistados trabalharam numa ampla
variedade de ocupações de não qualificados (faxineiro) a qualificados (dentista).
As ocupações mais comuns estavam em setores como eventos. Muitos eram
residentes de longa data em Londres e haviam subido na escala em termos
de status de emprego. Outros eram recém-chegados que haviam conseguido
se transferir horizontalmente de seus trabalhos no Brasil para um emprego
equivalente em Londres ou que começaram num trabalho não qualificado
antes de progredir. Também havia entrevistados que residiam há mais tempo
na cidade e que não conseguiram progredir no emprego e ainda trabalhavam
em empregos não qualificados ou semiqualificados. Os entrevistados foram
recrutados por meio de amostragem “bola de neve” (Margolis, 2009): um
método que se apoia em pessoas já entrevistadas para recomendar outras a

56 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


participarem da pesquisa. Os primeiros entrevistados foram recrutados por
meio de mídia social, redes sociais e “recrutamento no local” (Krueger & Casey,
2008) em uma escola de línguas no centro de Londres. A escola de línguas
provou ser um local útil para encontrar recém-chegados porque aprender
inglês é frequentemente priorizado e usado como principal motivação para a
migração (Evans et al., 2015). No total, três recém-chegados da escola foram
entrevistados, e mais três pessoas foram encontradas através deles. A maioria
dos entrevistados viveram em Londres no longo prazo. Muito poucos foram
receptivos à ideia de um dia voltarem a morar no Brasil, independentemente
de quanto tempo eles tinham passado em Londres.

9 INDIVIDUALISMO, LIBERDADE E ANONIMATO

A liberdade individualista como anonimato foi motivada pelo fato de


que eles foram literalmente removidos espacial e psicologicamente de laços
e responsabilidades associadas com sua família no Brasil. Pode haver efeitos
restritivos em viver como um conhecido e pessoa interdependente conectada
dentro de uma comunidade estabelecida (Prado, 1995). Este tema de liberdade
como fuga da restrição é aquele que figurou no discurso de muitos entrevistados.
Veja “Ariana”, professora de ioga, da Bahia. “Ariana” veio de uma família de classe
média e, no momento de sua decisão de migrar, ela também era bastante rica
devido ao seu trabalho anterior no Brasil como promotora de música:

Entrevistador: O que você gostou em Londres que te fez decidir ficar?

Ariana: “Em primeiro lugar eu estava mais ou menos sozinha ... estava sem família
pela primeira vez, então isso foi ótimo, a sensação de liberdade. Eu gosto de me
sentir livre... eu senti que estava mais livre por me sentir como independente”.

Um outro entrevistado, “Alessandro”, de Mato Grosso do Sul, descreveu a


sensação de liberdade por meio do anonimato, assim:

“Eu acho que tudo é permitido e isso é a coisa boa sobre Londres, você é meio
invisível, sabe? Isso não importa com qual roupa você veste, não importa se você
tem dinheiro ou um carro. Realmente não é importante”.

“Vitor”, do Rio Grande do Sul, não só ilustra a importância da liberdade no


discurso dos entrevistados, mas também é um bom exemplo de quantos
entrevistados experimentaram uma redução no nível da qualidade de vida em
termos materiais, em troca da “liberdade” como eles a imaginavam. No Brasil,
Vitor foi nomeado diretor de uma regional de negócios da sua família. Apesar da
riqueza e independência de que gozava como resultado, ele decidiu se mudar
para Londres “como uma espécie de aventura” e passou os anos seguintes

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 57


trabalhando como um garçom de bar. Seus motivos para querer morar em
Londres foram exclusivamente vinculados a valores individualistas baseados em
liberdade e anonimato. Ele resumiu sua atitude assim: “Eu amo Londres ... É
uma cultura completamente diferente do Brasil. Como as pessoas realmente não
se importam com o que você tem. Esse é o meu sentimento. Talvez eu esteja
errado, mas eu sinto que aqui, as pessoas não se preocupam com quem você é.
No Brasil, se você tem um bom carro, uma casa ou roupas caras, faz uma grande
diferença em como eles vão tratá-lo, mas eu não sinto isso aqui. De brincadeira,
já que apostei com meu amigo, vou ir trabalhar de pijama. E eu o fiz. E ninguém
se importou! Eu estava no metrô de pijama e ele estava filmando “oh olha, Vitor
está de pijama indo para o seu trabalho” e eu fiz isso intencionalmente para
provar que ninguém se importa. E isso para mim ... eu estava procurando minha
liberdade quando me mudei de Porto Alegre para São Paulo. Bem, eu tenho que
dizer que encontrei a liberdade aqui”.

Vale ressaltar que essa ideia de não ser julgado como pessoa conhecida,
mas, sim, tratado como um indivíduo livre (DaMatta, 1991) é em grande parte
imaginada no sentido de que é dependente da perspectiva subjetiva de migrante
por estilo de vida e sua falta de laços sociais (ou uso de “laços fracos”, como a
Florida os chama). Um discurso semelhante pode ser encontrado na literatura de
migração por estilo de vida. Por exemplo, Oliver (2007) descreve como muitos
dos seus entrevistados, migrantes britânicos na Espanha, expressaram um
sentimento semelhante. Um migrante explica suas razões para deixar a Inglaterra:
“Eu me cansei da rotina ... todas as pessoas falavam sobre o quanto eles tinham,
que carros eles dirigem. Considerando que aqui ninguém se importa. Ninguém
dá a mínima para quem você é ... Você pode ter cinquenta milhões de pesetas ou
nada” (Oliver, 2007, p. 132).

Na verdade, é difícil dizer que Londres ou Espanha sejam menos materialistas


ou superficiais do que os locais de origem desses migrantes. Em vez disso, o que
parece ter mudado é a relação imaginária do migrante com o espaço em que
agora vivem.

10 ANONIMATO INTERROMPIDO

Embora uma sensação (imaginária) de anonimato (e uma sensação de


integração) tenha sido frequentemente citada como uma atração principal para
morar em Londres, houve momentos em que isso seria interrompido por outras
pessoas que os percebiam como “brasileiros”. Às vezes, isso foi transmitido de
forma negativa. Ariana, observou: “Mas também tínhamos vida antes de vir para
cá, tínhamos formação universitária, boa educação, não somos da selva, e as
pessoas nos tratam como se tivéssemos saído de uma favela”.

58 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Uma entrevistada, Tara, 28, de São Paulo, que estava desempregada,
sentiu que sua condição de “imigrante” a impedia de encontrar um trabalho
equivalente ao da sua profissão anterior: “Enviei meu currículo para tantos
lugares. Apenas uma resposta ... eu estou começando a ter a sensação de que
nunca vou conseguir um emprego adequado aqui. Sou vista como uma imigrante
que só pode trabalhar em um café ou recepção. Eu não sou boa o suficiente para
fazer nada mais”.
Outros relataram encontros em que estereótipos de um outro “exótico”
seriam projetados sobre eles. Júlia, 30, de São Paulo, que tinha sido uma das
poucas pessoas que afirmaram ter migrado por motivos econômicos, e que
trabalhou como garçonete em um restaurante na City de Londres, descreveu
como os clientes costumavam reagir a ela:
Eles costumam perguntar de onde eu sou e toda vez que eu digo a eles que
eu sou brasileira eles costumam dançar um pouco com suas mãos e dizer, “oooh
Brasil!” É tão bobo.
Outro entrevistado, Fred, de Minas Gerais, que trabalhou como consultor
de pesquisa, descreveu os encontros dele: “a primeira reação de muitas pessoas
é algo ao longo das linhas de “Uau, eu nunca teria imaginado. Seu inglês é tão
bom.” Muitas vezes eles têm essa reação. Quer dizer, inicialmente, eu costumava
interpretar isso como, “Sério? Eu não posso ser brasileiro porque falo inglês
bem?” Neste ponto, não me importa, porque eu entendo o que eles querem
dizer ... eles ficam tipo, “Oh, uau. Isso é tão exótico. Isso é tão legal. Você é tão
diferente e tal”.

Entrevistador: Portanto, geralmente é bastante positivo?

Fred: “Não, sim. É positivo. Como posso dizer? Isso é tipo como eles me tratam
como uma figura exótica, mas não é tanto em um sentido negativo. Há muito
mais uma espécie de curiosidade por trás disso. Não é como, “Meu Deus, você é
diferente de mim. Vai embora.” Tem mais a ver com: “Nossa, você é diferente de
mim. Me diga mais.”.

Os comentários de Fred mostram que este processo do “outro” pode


funcionar de muitas formas e, de fato, foram relatadas muitas experiências
positivas. Margolis (1994) observou que os brasileiros geralmente têm uma
boa reputação no exterior e, em Londres, isso não é exceção. Bernardo, 38, um
personal trainer mineiro, afirmou: “Eu nunca tive problemas com eles por eu ser
brasileiro. Na verdade, quando eles percebiam que eu era brasileiro eles ficavam
felizes em dizer “oh legal, você é brasileiro!”
Independentemente de saber se os estereótipos que os brasileiros encontram
em Londres são considerados positivos ou negativos, estes persistem e podem
assim interromper a sensação de anonimato que Londres pode criar. Esses tipos
de encontros talvez ajudem a revelar por que tantos brasileiros acham que é

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 59


importante diferenciar suas motivações e experiências daquelas do “migrante
brasileiro típico”. Como as citações acima revelam, muitas vezes se deparam
com um estereótipo do Brasil como um lugar “exótico” e subdesenvolvido.
Considerando esses tipos de estereótipos, talvez seja compreensível porque
tantos usam um discurso de mobilidade de identidade, que os diferencia do
“típico transnacional” brasileiro como “o outro”.

11 I N D I V I D U A L I S M O , L I B E R D A D E E M O B I L I D A D E :
INDIVIDUALIZAÇÃO E A ‘CIDADANIA GLOBAL’

Esta seção irá discutir a importância da mobilidade, particularmente a


mobilidade de identidade e as formas como ela é articulada. Para os migrantes
entrevistados, mobilidade ou liberdade de movimento é realizada como um valor
ideológico. Este tipo de mobilidade é muitas vezes articulado, em termos pós-
nacionalistas, como “cidadania global”. Muitas vezes, é dependente da classe
social e, mais especificamente, do capital educacional, financeiro e simbólico, e
construído através de um processo de individualização. Os migrantes descrevem
suas experiências em termos da descoberta e autorrealização. De acordo com a
observação de Korpela (2014), muitos dos seus entrevistados se descreveriam
como “cidadãos do mundo” ou “cidadãos globais”, uma característica que
parece ser comum entre muitos jovens de classe média, independentemente da
nacionalidade. “Tissi”, 36, de São Paulo que trabalhou como gerente de catering
e foi residente de longa data em Londres, descreveu sua motivação para migrar
assim: “Mas o mais importante para mim em termos de liberdade é apenas ser
independente e não depender dos pais ou do marido, ou chefe porque também
sou autônoma, mas também sou uma cidadã do mundo… Como imigrante, a
liberdade é a mais importante para mim e sempre tento conquistar meu espaço
no mundo porque eu quero ser uma cidadã do mundo. Eu quero estar em
qualquer lugar. Onde eu quiser”.
Talvez isso seja mais bem expresso por “Franco”, um cozinheiro-chefe
mineiro, que também era residente de longa duração. Ele declarou: “Nunca
me senti como se fosse brasileiro. Não sou de lugar nenhum, sou um nômade.”
Outro entrevistado, “Caio”, que havia saído do Brasil pela primeira vez havia
mais de 20 anos, descreve a relação do seu parentesco com sua identidade
brasileira: “Acho que o meu sangue, na verdade, é muito europeu. Eu não tenho
sangue brasileiro. Minha família é italiana de um lado, e do outro lado é meio
portuguesa... Misturado um pouco com brasileiro e... Minha tataravó... Para lá
da tataravó... Era índia”.

Entrevistador: Então você não se sente brasileiro?

Caio: perdido, eu fico fora de casa... Não me adapto muito à cultura brasileira.

60 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Aqui, a mobilidade assume dois sentidos. Primeiro, é a mobilidade de quem
está habilitado por acesso ao capital econômico, social e cultural. Por exemplo,
eles são capazes de obter um passaporte ancestral da UE e, portanto, cruzar
fronteiras com muito mais facilidade do que os brasileiros que devem primeiro
obter vistos. A posse de passaporte europeu ajuda Caio a se identificar como
“europeu”, capaz de cruzar as fronteiras nacionais e construir uma identidade
mais cosmopolita. Em segundo lugar, está o conceito de que esta liberdade de
movimento está ligada a – e talvez até permita – uma maior mobilidade em
termos de uma relação com a identidade nacional, o que poderia explicar por
que é importante para Caio se sentir “europeu” em oposição a “brasileiro”.
Como vimos, muitos brasileiros enfrentam uma tensão entre uma identidade
individual e uma identidade coletiva como “migrante brasileiro”. O fato de um
alinhamento com uma visão ideológica individualista ter o potencial de ser
interrompido por estereótipos projetados de “migrantes brasileiros “que são
tipicamente imaginados pela corrente dominante como “exóticos”, torna ainda
mais importante criar uma identidade como um indivíduo, como um “cidadão
global” livre que, nas palavras de Franco, não vem de “lugar nenhum”.
Talvez não seja nenhuma surpresa então que a forma-chave como
essa identidade individualista e cosmopolita é articulada seja por meio de
comparações, normalmente desfavoráveis, com aqueles “outros brasileiros”
que, afirmam, haviam se mudado para Londres somente em busca de dinheiro
e só usaram redes brasileiras transnacionais para trabalho, habitação e lazer.
Essa divisão enfatizada entre essas duas classes de brasileiros migrantes é similar
à observação de Cohen, Duncan e Thulemark (2015, p. 157) de que “questões
de exclusão social e classe ainda têm poder” no tópico da migração por estilo
de vida porque um diferenciador é que esses migrantes de classe média baixa
normalmente não têm o privilégio de serem capazes de obter um passaporte
ancestral da UE e, muitas vezes, viverão e trabalharão sem documentos ou
“semidocumentados” em vez disso. Meus entrevistados frequentemente se
esforçavam para sublinhar que eles não se enquadravam nesta categoria. Por
exemplo, “Leandro,” de quarenta anos, de São Paulo. Quando ele chegou,
trabalhou em um café, mas rapidamente progrediu na escala social e, no
momento da entrevista, havia se mudado recentemente para a Suíça, onde
trabalhou como analista. Ele falou assim:

Entrevistador: Por que você escolheu Londres?

Leandro: “Só para diferenciar o tipo de imigração. A maioria das pessoas que
conheci no início ... percebi que as razões pelas quais elas partiram foram
basicamente as mesmas, razões econômicas. As minhas não eram puramente
econômicas, eu estava farto de estar no mesmo lugar, nada a ver com dinheiro
...A maioria das pessoas que conheci quando cheguei queriam trabalhar em
Londres, economizar dinheiro e voltar. Eu não tive essa intenção. Meu objetivo
não era ganhar dinheiro, mas talvez aprender”.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 61


Muitos entrevistados estavam depreciando esses “outros brasileiros”. Como
diz o paulista “Gilberto”: “Quero dizer, todos são livres para fazer o que quiserem,
mas em minha opinião, você sente muita falta. Se você ficar apenas fechado em
sua pequena comunidade, você não aprende, você não interage e perde muitas
oportunidades… não é o ideal, é? ... eu não vejo isso com bons olhos para ser
honesto. Essa coisa”.
Meus entrevistados viram esses aspectos “superdiversos” de Londres como
motivadores para migrar em vez de uma ameaça ou obstáculo. Em vez de recuar
para uma identidade transnacional, eles exibiram uma atitude mais cosmopolita
em seu desejo de “desconhecidos encontros culturais” (Ley, 2004). Existem boas
evidências para sugerir que muitos migrantes brasileiros se sentem assim em
relação à migração para um centro cultural da “superdiversidade” (Vertovec,
2007). Os achados quantitativos de Evans et al. (2015) demonstram que existem
números consideráveis para os quais é necessário um enquadramento mais
individualista de suas experiências de migração. Embora as redes sociais possam,
muitas vezes, ajudar os migrantes que encontram um emprego inicial (Evans et
al., 2015, p. 29), muitos entrevistados em sua pesquisa afirmaram que não era
importante para eles relacionar-se com os brasileiros (46%), e que muitos evitam
relacionar-se com brasileiros (34%). Da mesma forma, quando questionados
sobre seu lazer e atividades, a maioria escolheu locais não brasileiros e consumiu
mídia não brasileira. Como um dos meus entrevistados explicou, quando
questionado sobre sua atitude em relação à cultura transnacional brasileira
que existia em Londres: “Pra ser honesto, todos os brasileiros que eu conheço
mudaram-se para Londres para fugir da cultura brasileira!”

12 RAÇA E SIGNIFICADOS CONTESTADOS DE IDENTIDADE


BRASILEIRA

Vale a pena voltar aos comentários de Caio sobre não “se sentir” brasileiro.
Qual é a “cultura brasileira” com a qual Caio não se identifica? Muitas vezes
os brasileiros do Sul não são considerados como brasileiros “reais”. Schommer
(2012) escreve:

Nos arredores rurais de Caxias do Sul, ou mesmo ainda


na cidade, os descendentes de imigrantes italianos
autodenominam-se e são denominados pelos não ítalo-
descendentes como “gringos”, ou simplesmente “italianos”
Para marcar a alteridade, chamam os luso-descendentes
de “brasileiros”. Ali perto, em Santa Cruz do Sul, o teuto-
descendente, aparentemente em maioria, é identificado
rotineiramente como “alemão”. O outro é “pelo-duro”,
expressão vista como depreciativa por ambos os grupos
étnicos, ou também “brasileiro” (SHOMMER, 2012, p.110).

62 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Em Londres, presenciei uma conversa entre um baiano e um curitibano.
O curitibano argumentava que, em muitos aspectos, o Brasil é melhor que
Londres. O baiano o interrogou e falou: “Mas você é de Curitiba! Isso não é o
Brasil!”. Considere a descrição de Caio da cidade em que ele cresceu: “Londrina
é uma cidade europeia… As pessoas são todas europeias ... italiano, espanhol
... Você sabe, a cultura é diferente. Se você vai para o Nordeste, a cultura é
muito diferente”.
Existem, então, claras conotações raciais no discurso de alguns dos
migrantes, mesmo que não necessariamente explicitadas. O mais perto que
meus entrevistados chegaram de falar sobre essa divisão social em termos de
raça veio de Laura, 30 anos, que comentou que ela raramente ia a clubes ou festas
brasileiras. Quando eu perguntei por que não, ela respondeu: “Eu não gosto, vou
parecer um pouco racista, não racista, mas muitos dos brasileiros aqui não são
realmente o meu tipo de brasileiro… se você vai para uma festa brasileira, por
exemplo, é como gente que vem aqui sem documentos, sem coisas e eles vêm
para tentar apoiar a família, então é uma realidade diferente da minha”.
Parece, então, que o discurso em torno do distanciamento muitas vezes tem
um elemento racial. Assim, para alguns, negar uma identidade brasileira torna-se
uma forma de se distanciar de uma ideia radicalizada do migrante brasileiro típico
como pobre, sem documentos e subalterno. Certamente, há alguns brasileiros
brancos que negam sua identidade brasileira para “passar” por europeus. Em
mais de uma ocasião, os entrevistados me informaram que eles usariam seus
passaportes da UE como um meio de “esconder” o fato de que eram brasileiros
na hora de se candidatar a empregos ou em determinados encontros sociais.
Isto pode ser porque alguns brasileiros acham que sua nacionalidade pode ser
uma barreira para alcançar um status social mais elevado em Londres, como foi
relatado por Tara. Pesquisadores de estilo de vida, como Lundström (2017, p.84),
escreveram sobre o conceito de “capital branco” no contexto da migração, mas
vale a pena notar que ela afirma que os sul-americanos brancos não se beneficiam
como resultado disso. Ademais, embora haja um estereótipo de que a classe
B são “Brancos” e a classe C “não brancos”, conforme Caldeira (2000) aponta,
esses estereótipos, muitas vezes, não se refletem na realidade. A pesquisa dela
sobre o crime em São Paulo mostrou que, embora seus entrevistados fossem
rápidos em associar pessoas do Norte com morenos esfolados, pobres e sujeitos
à criminalidade, muitos deles relataram que, muitas vezes, foram vítimas de
crimes cometidos por brancos. Parece, então, que a razão para esta ênfase no
social (e por implicação, racial e regional) reside no fato de que, frequentemente,
as divisões de status tornam-se confusas em Londres. Muitos brasileiros,
independente de raça ou região, muitas vezes, acabam trabalhando lado a lado
em setores de empregos não qualificados e, conforme observado anteriormente
por Margolis (2013), são frequentemente vistos por outros como uma “massa
indiferenciada”. Caio ocupa um espaço liminar neste sentido. Embora ele tenha
enfatizado as razões culturais para sua migração, é importante notar que ele

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 63


não era proficiente o suficiente para conduzir a entrevista em inglês e trabalhou
em uma ocupação não qualificada de faxineiro (ao lado de brasileiros de outros
estados) apesar de vir de uma origem de classe média no Brasil. É talvez por
causa desses fatores que Caio fez questão de enfatizar a diferença entre sua
própria perspectiva e motivações para migrar e as do migrante brasileiro “típico”.
Além disso, a ocupação de Laura, uma estilista de moda, não requeria um alto
nível de proficiência em inglês e não exigia quaisquer qualificações formais, o
que significa que ela foi capaz de manter sua carreira e, assim, preservar de
forma mais eficaz o status social original com menos problemas que Caio. No
entanto, também é importante notar que há uma outra entrevistada, Catarina,
33, profissional de marketing digital, que relatou sempre se sentir alienada da
cultura brasileira. Ela era de São Paulo e de ascendência mestiça. Ao contrário
de Caio, mas como a Laura, não houve uma “mudança para baixo” em seu status
social, tendo conseguido garantir um emprego equivalente no mesmo campo em
que ela tinha trabalhado em São Paulo. Foi sua habilidade preexistente na língua
inglesa que talvez tenha garantido isso.

13 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo defendeu a migração da classe média brasileira para Londres


como um exemplo de migração por estilo de vida de “Sul para Norte”, um dos
fluxos migratórios que foram negligenciados na literatura de migração por estilo
de vida. É importante expandir a categoria de migração por estilo de vida para
incluir casos do Norte para o Sul. O surgimento de uma divisão de classe global se
estende além das fronteiras, e o status e motivações de migração da classe média
dos países do Sul Global requerem uma compreensão de suas mobilidades, o
que não restringe a classificação de seu movimento com base exclusivamente
no status de seu país original. Há uma tendência de se enquadrar todas as
migrações voluntárias do Sul Global para o Norte Global como motivadas por
razões econômicas. Em vez disso, este artigo propôs que a classe social, e não a
origem nacional, poderia ser um determinante de maior peso contribuindo para
incluí-lo na categoria de “migrante por estilo de vida”. O artigo argumentou que
alguns migrantes brasileiros de classe média devem ser considerados “migrantes
por estilo de vida”, tal como este termo é usado na literatura. Isso com base
em características compartilhadas como as motivações para migrar, identidade
como migrante e perspectiva ideológica. Especificamente, uma ideologia de
individualismo é muitas vezes enfatizada na literatura sobre migração por estilo
de vida. Isso é importante porque descobrimos que uma perspectiva ideológica
individualista também existe no discurso de muitos migrantes brasileiros de
classe média para Londres. Além disso, o artigo explorou os temas subjacentes
que ajudam a iluminar como a categoria de “migrante por estilo de vida” como
“prática” (Kunz, 2016) é usada por brasileiros que moram em Londres. No
processo da pesquisa, revelou-se como a situação difere dos migrantes por estilo

64 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


de vida do Norte Global. O discurso em torno do termo “migrante econômico”,
associado com imagens negativas, combinado com a presença dos migrantes
brasileiros que podem ter migrado por razões econômicas mais tangíveis, significa
que aqueles brasileiros que se consideram migrantes por estilo de vida buscam
diferenciar-se desses estereótipos negativos. Buscou-se explorar a ideia de que
um desejo individualista de “quase-anonimato” e “mobilidade”, em termos não
apenas de liberdade de movimento, mas também de mobilidade de identidade,
era, muitas vezes, confrontado com estereótipos exotizados de alteridade pela
via de encontros com outros habitantes da cidade. Portanto, há a negação de
uma identidade coletiva em favor de uma identidade mais cosmopolita. Esse
individualismo é mobilizado por muitos migrantes brasileiros de classe média
para distinguir suas situações das de seus compatriotas “transnacionais”.
Isso pode ser interpretado como um meio pelo qual muitos procuram
se distanciar, a partir de identificações mais amplas, do “típico migrante
econômico” e, portanto, subalterno. Dentro da realidade social percebida pelos
migrantes brasileiros de classe média, ou seja, na realidade de seus discursos,
eles contrastam sua atitude cosmopolita nas suas experiências de migração
com o que eles enquadram como o Brasil “transnacional” de classe baixa. Uma
vez em Londres, não é necessariamente possível distinguir as diferenças por
ocupação, porque muitos trabalharão lado a lado, pelo menos no começo.
Assim, gostos e práticas culturais aparecem em destaque no discurso de muitos
migrantes brasileiros por estilo de vida. Este é especialmente o caso daqueles
que ocupam uma posição liminar em termos de como seu status social pode
ser visto por outros em Londres.
Como vimos, um discurso de alteridade pode ser racializado.
Demograficamente, há uma correlação clara entre classe social e raça no Brasil.
No entanto, também não é tão fácil defender claramente a migração de estilo de
vida como ambígua em relaçaõ à migração “branca”. Na verdade, devemos ter
cuidado para não associar muito a migração por estilo de vida com “brancura”.
Caso contrário, nos deparamos com uma conclusão desconfortável de que
qualquer migração privilegiada de classe média dos outros países do “Sul Global”
não seria migração por estilo de vida. Martes (2011) afirma que a classe social
é mais importante do que a origem nacional quando se trata de questões de
identidade, motivações para a migração e comportamento do imigrante. Parece
que ela pode ter razão porque a característica mais notável dos vários grupos
de migrantes discutidos neste artigo não é se eles são de países desenvolvidos
ou em desenvolvimento, mas, sim, que todos eles são membros de uma classe
socioeconômica amplamente global. Isso se refere a um conceito de globalização,
criando uma divisão de classes que se estende além das fronteiras nacionais, de
um interior e exterior para Capital que é limitado por classe.
Finalmente, é importante reconhecer a posição de investigador. É possível
que as respostas de alguns entrevistados sejam afetadas pelo fato de estarem
sendo entrevistados por um pesquisador britânico. Isso pode ter levado alguns a

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 65


enfatizarem demais seu distanciamento em relação à comunidade transnacional
de brasileiros em Londres. Ao contrário, procuraram se situar mais perto daquilo
que eles percebem como sendo a posição do pesquisador dentro da estrutura
social de Londres. Na verdade, isso está relacionado ao fato de que a posição
deles como migrantes por estilo de vida em Londres os distingue de outros
tipos de migrantes por estilo de vida. conforme aparecem na literatura. Para
voltar a Benson e ao trabalho de Reilly (2018) em migrantes por estilo de vida
no Panamá e na Malásia, os pesquisadores enfatizam que é o status de seus
entrevistados como beneficiários ocidentais de um passado colonial que adotam
uma lógica neoliberal para experimentar sua identidade e trajetória migratória
como fortemente individualizada. Essa história colonial afeta a forma como
são percebidos pelos membros dos países de destino. Esse fato liga a migração
brasileira com a dos entrevistados de Benson e O Reilly e, simultaneamente,
a diferencia. Historicamente, as desigualdades estruturais do Brasil são
reproduzidas por meio de suas migrações para Londres, mas a diferença é que
são as desigualdades estruturais do país de origem dos migrantes. Isso contrasta
com as desigualdades exploradas por Benson e O’Reilly entre os países que
colonizaram e aqueles que foram colonizados.

REFERÊNCIAS

APPADURAI, A. Modernity at large: cultural dimensions of globalization. Minneapolis:


University of Minnesota Press, 1996.

BENSON, M. A desire for difference: British lifestyle migration to southwest France. In M.


BENSON, M & K O’REILLY, K. eds. Lifestyle migration: expectations, aspirations, and
experiences. Farnham: Ashgate, 2009. pp. 121-35.

Benson, M. The British in rural France: lifestyle migration and the ongoing quest for a
better way of life. Manchester: Manchester University Press, 2012.

Benson, M. The movement beyond (lifestyle) migration: mobile practices and the
constitution of a better way of life. Mobilities, 6(2), 2011, pp.221-35.

Benson, M. & O’Reilly, K. Migration and the search for a better way of life: a critical
exploration of lifestyle migration. Sociological Review, 57(4), 2009, pp.608-25.

Benson, M. & Reilly, K.O. Lifestyle migration and colonial traces in Malaysia and Panama.
London: Palgrave Macmillan, 2018.
Bookchin, M. The ecology of freedom: the emergence and dissolution of hierarchy, AK
Press, 1982.
Caldeira, T. City of walls: crime, segregation, and citizenship in São Paulo. University of
Oakland: California Press, 2000.
Carling, J. & Jolivet, D. Exploring 12 migration corridors: rationale, methodology and
overview. In. O. Bakewell et al., eds. Beyond networks: feedback in international
migration. London: Palgrave Macmillan, 2016, pp. 18-46.

66 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Clark, W.A. V. & Maas, R. Interpreting migration through the prism of reasons for moves.
Population, Space and Place, 21(1), 2015, pp.54-67.
Cohen, S.A. et al. Lifestyle mobilities: the crossroads of travel, leisure, and migration.
Mobilities, 10(1), 2015, pp.155-72.
Conradson, D. & Latham, A. The affective possibilities of London: antipodean
transnationals and the overseas experience. Mobilities, 2(2), 2007, pp.231-54.
Da Matta, R. Carnivals, rogues, and heroes: interpretations of the Brazilian dilemma.
L’institution Notre Dame (IND), USA: University of Notre Dame Press, 1991.
Dashefsky, A. & Lazerwitz, B. The role of religious identification in North American
migration to Israel. Journal of Scientific Study of Religion, 22(3), 1983, pp.263-75.
Della Pergola, S. On the differential frequency of western migration to Israel. Studies in
Contemporary Jewry, 1, 1984, pp.292-315.
Dias, G.T. O processo de fixação do migrante brasileiro em Londres: a importância das
práticas cotidianas na elaboração de sua identidade. Ponto Urbe, 2009, pp.1-15.
Dumont, L. Homo hierarchicus: the caste system and its implications. Chicago, IL: The
University of Chicago Press, 1970.
Eimermann, M. Lifestyle migration to the North: Dutch families and the decision to move
to rural Sweden. Population, Space and Place, 21(1), 2015, pp.68-85.
Evans, Y. et al. Diversidade de oportunidades: brasileiras no Reino Unido, 2013-2014.
London, 2015. Grupo de Estudos Sobre Brasileiros no Reino Unido
Evans, Y. et al. For a better life: Brazilians in London, 2010. London, 2011. Grupo de Estudos
Brasileiros no Reino Unido
Florida, R. The rise of the creative class revisited: 10th anniversary edition - revised and
expanded. New York: Basic Books, 2012.
Freyre, G. Interpretação do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1945.
Freyre, G. The mansions and the shanties: the making of modern Brazil. London: Alfred
Knopf, 1968.
Gay y Blasco, P. The fragility of cosmopolitanism: a biographical approach. Social
Anthropology, 18(4), 2010 a, pp.403-9.
Giddens, A. Modernity and self-identity: self and society in the late modern age. Oxford,
UK: Polity Press, 1991.

Halfacree, K. A utopian imagination in migration’s terra incognita? Acknowledging the


non-economic worlds of migration decision-making. Population, Space and Place, 10(3),
2004, pp.239-53.

Heater, D.B. World citizenship: cosmopolitan thinking and its opponents. New York:
Continuum, 2004.

Hofstede, G. Culture’s consequences: comparing values, behaviors, institutions and


organizations across nations. Beverly Hills, CA: SAGE, 1980.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 67


Horst, C. et al. The impact of class on feedback mechanisms: Brazilian migration to Norway,
Portugal and the United Kingdom. In O. Bakewell et al., eds. Beyond networks: feedback
in international migration. London: Palgrave Macmillan, 2016.

Igarashi, H. & Saito, H. Cosmopolitanism as cultural capital: exploring the intersection of


globalization, education and stratification. Cultural Sociology, 8(3), 2014, pp.222-39.

Kamakura, W. & Mazzon, J. Estratificação socioeconômica e consumo no Brasil. São


Paulo: Blucher, 2017.

Kearney, M. & Beserra, B. Introduction: migration and identities, a class-based approach.


Latin American Perspectives, 31(5), 2004, pp.3-14.

Klein, C.H. et al. Naming Brazil’s previously poor: “new middle class” as an economic,
political, and experiential category. Economic Anthropology, 5(1), 2018, pp.83-95.

Korpela, M. Lifestyle of freedom? Individualism and lifestyle migration. In. MICHAELA, B.


& Osbaldiston, N. eds. Understanding lifestyle migration: theoretical approaches to
migration and the quest for a better way of life. London, UK: Palgrave Macmillan, 2014,
pp. 27-46.

Krzyzanowski, M. & Wodak, R. Multiple identities, migration and belonging: ’voices


of migrants’. In C. R. Caldas-Coulthard & R. Iedema, eds. Identity troubles. London:
Palgrave Macmillan,2008, pp. 95-119.

Kunz, S. Privileged mobilities: locating the expatriate in migration scholarship. Geography


Compass, 10(3), 2016, pp.89-101.

Ley, D. Transnational spaces and everyday lives. Transactions of the Institute of British
Geographers, 29(2),2004, pp.151-64.

Lundström, C. The white side of migration: reflections on race, citizenship and belonging
in Sweden. Nordic Journal of Migration Research, 7(2), 2017, pp.79-88.

Margolis, M. Goodbye Brazil: émigrés from the land of soccer and samba. Madison, WI:
University of Wisconsin Press, 2013.

Martes, A. New immigrants, new land: a study of Brazilians in Massachusetts. Gainesville,


FL: University of Florida Press, 2011.

Martins Junior, A. Lives in motion: notebooks of an immigrant in London. Helsinge:


Whyte Tracks, 2014.

Martins Junior, A. The production and negotiation of difference in a world on the move:
Brazilian migration to London. Goldsmiths University, 2017.

Martins Junior, A. & Dias, G. Imigração brasileira contemporânea: discursos e práticas de


imigrantes brasileiros em Londres. Análise Social, 48(209), 2013, pp.810-32.

McCallum, C. Resisting Brazil: perspectives on local nationalisms in Salvador da Bahia.


Ethnos, 61(3–4), 1996, pp.207-29.

Neri, M.C. Brazil’s middle classes. Rio de Janeiro, 2014.

68 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Oliver, C. Imagined communitas: older migrants and aspirational mobility. In V. Amit,
ed. Going first class? new approaches to privileged travel and movement. New York:
Berghahn Books, 2007.

Olwig, K.F.Privileged travelers? migration narratives in families of middle-class Caribbean


background. In V. Amit, ed. Going first class? new approaches to privileged travel and
movement. New York: Berghahn Books, 2007.

Portes, A. & DeWind, J. A cross-Atlantic dialogue: the progress of research and theory
in the study of international migration. International Migration Review, 2004, 38(3),
pp.828-51.

Prado, R. Small town, Brazil: heaven and hell of personalism. In D. Hess & R. Da Matta,
eds. The Brazilian puzzle: culture on the borderlands of the western world. New York:
Columbia University Press, 1995, pp. 59-84.

Sassen, S. The global city: New York, London, Tokyo. Princeton. NJ: Princeton University
Press, 1991.

Schommer, A. História do Brasil vira-lata: as razões históricas da tradição autodepreciativa


brasileira. Anajé: Casarão do Verbo, 2012.

Stephens, N.M. et al. Choice as an act of meaning: the case of social class. Journal of
Personality and Social Psychology, 93(5), 2007, pp.814-30.

Torkington, K. Defining lifestyle migration. Dos Algarves - Revista da ESGHT/UAlg, (19),


2010, pp.99-111.

Torresan, A. A middle class besieged: Brazilians’ motives to migrate. Journal of Latin


American and Caribbean Anthropology, 17(1), 2012, pp.110-30.

Torresan, A. How privileged are they? Middle-Class class Brazilian immigrants in Lisbon. In
V. Amit, ed. Going first class? new approaches to privileged travel and movement. New
York, NY: Berghahn Books, 2007.

Triandis, H. Individualism & collectivism. Boulder, CO: Westview Press, 1995.

Vertovec, S. Super-diversity and its implications. Ethnic and Racial Studies, 30(6), 2007.

Ware, C. Greenwich Village, 1920-1930. Berkeley: University of California Press, 1935.

Werbner, P. Global pathways: working class cosmopolitans and the creation of


transnational ethnic worlds. Social Anthropology, 7(1), 1999, pp.17-35.

Williams, A.M. et al. The migration intentions of young adults in Europe: a comparative,
multi-level analysis. Population, Space and Place, 24(1), 2018, p.e2123.

Wimmer, A. & Schiller, N.G. Methodological nationalism, the social sciences, and the
study of migration: an essay in historical epistemology. International Migration Review,
37(3), 2003, pp.576-610. >.

Zaban, H. City of go(l)d: spatial and cultural effects of high‐status Jewish immigration from
western countries on the Baka neighbourhood of Jerusalem. Urban Studies, 54(7), 2017.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 69


Zaban, H. Living in a bubble: enclaves of transnational Jewish immigrants from western
countries in Jerusalem. Journal of International Migration and Integration, 16(4), 2015,
pp.1003-1021.

Resumo
Tradicionalmente, o estudo sobre a migração por estilo de vida concentrou-se na migração
“do Norte para o Norte” ou “do Norte para o Sul”. Este artigo analisa a migração da classe
média brasileira para Londres para argumentar que existem instâncias de movimento do Sul
Global ao Norte Global, que devem ser classificadas como migração por estilo de vida. Isto é
importante porque há uma tendência, nos estudos de migração, de classificar implicitamente
toda migração voluntária do Sul para o Norte como “migração econômica”. O artigo compara
as pesquisas sobre “os migrantes por estilo de vida” com os migrantes brasileiros da classe
média em Londres. Analisa ainda a dicotomia entre os migrantes por estilo de vida e migrantes
econômicos, operacionalizada no discurso dos migrantes brasileiros da classe média para
demarcar sua situação em relação à de seus compatriotas “transnacionais” que, muitas vezes,
eles tratam como “os outros”.

Palavras-chave: Brasil; classe; estilo de vida; Londres; migração

Resumen
Tradicionalmente, la investigación sobre la migración del estilo de vida se ha centrado en la
migración de “Norte a Norte” o de “Norte a Sur”. Este artículo analiza la migración de la clase
media brasileña a Londres, para argumentar que existen instancias de movimiento desde el
Sur Global hacia el Norte Global, lo que debería ser clasificado como migración de estilo de
vida. Esto es importante porque existe una tendencia en los estudios de migración a clasificar
implícitamente toda la migración voluntaria del Sur al Norte como “migración económica”. El
artículo compara la investigación sobre “migrantes de estilo de vida” con migrantes brasileños
de clase media en Londres. El artículo continúa con el análisis de la dicotomía entre migrantes
de estilo de vida y migrantes económicos operacionalizada en el discurso de los migrantes
brasileños de clase media para demarcar su situación en relación a la de sus compatriotas
“transnacionales” a quienes a menudo tratan como “los otros”.

Palabras-clave: Brasil; clase; estilo de vida; Londres; migración

70 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Migração qualificada: profissionais
brasileiros qualificados no Canadá

Lucia Maria Machado Bógus*


Ana Maria Morini**

1 INTRODUÇÃO

O sistema de “acumulação flexível” adotado a partir da globalização


trouxe, como consequência, mudanças nas formas de produção, nos processos
laborais e no mercado de trabalho, além de aumento excessivo nos índices de
desemprego (HARVEY, 2008). Os movimentos migratórios são impactados por
essas mudanças, uma vez que muitos trabalhadores cruzam fronteiras em busca
de empregos que não encontram em seus países. Não apenas profissionais de
baixa ou média escolaridade emigram em busca de oportunidades profissionais,
mas muitos indivíduos qualificados, ou seja, com formação acadêmica ou
experiência em determinadas especializações, têm mudado de país, atrás de
colocações profissionais condizentes com sua formação.
Os estudos desenvolvidos sobre a imigração qualificada revelam que muitos
países desenvolvidos têm apresentado escassez de mão de obra qualificada em
diversos setores de sua economia e recorrem aos imigrantes para superar essa
carência. No entanto, os mesmos estudos demonstram que muitas barreiras
são colocadas para que os imigrantes sejam inseridos no mercado de trabalho,
principalmente dentro da área de suas especializações, precisando ocupar
posições abaixo de seu nível de qualificação e fazendo parte de uma força de
trabalho disponível, barata e provisória, podendo ser dispensados facilmente
(LEVEL, SILVA E MAGALHÃES, 2020).
Alguns países com histórico de serem receptores de imigrantes, como é o
caso dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão, têm traçado suas políticas
imigratórias no sentido de atrair profissionais qualificados que atendam às suas
demandas (PELLEGRINO, 2001). O envelhecimento da população nesses países,
segundo a autora, é apontado como um dos responsáveis pela carência desta
força de trabalho nos setores altamente especializados.

*
Socióloga, Professora Titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.
lubogus@uol.com.br
Psicóloga, Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
**

Brasil. anamorini@gmail.com

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 71


O Canadá costuma realizar palestras de divulgação de vagas para mão de
obra qualificada nos países que são ricos em oferta desse tipo de profissionais
e o Brasil é um deles, sendo que muitos brasileiros têm participado e tomado a
decisão de emigrar após participar desses programas.
A proposta deste trabalho é enriquecer o debate sobre o fenômeno
migratório através da análise da trajetória de 15 emigrantes brasileiros
qualificados que vivem e trabalham no Canadá, com o objetivo de analisar relatos
de rebaixamento profissional ou mudança de atividade, diante de dificuldades
para conseguirem empregos compatíveis com suas especializações.

2 A IMIGRAÇÃO QUALIFICADA

Quando estudamos o fenômeno migratório a partir das motivações que


lhe deram origem, chamamos de migrações forçadas aquelas resultantes de
violências ou repressões políticas, enquanto as migrações impulsionadas pela
busca de melhores condições econômicas e oportunidades profissionais são
conhecidas como migrações econômicas ou trabalhistas. Estas últimas são
o objeto de estudo deste trabalho e podem ser denominadas migrações de
trabalho ou de carreira, de acordo com os autores que as estudam e, dentro desta
classificação, focaremos a imigração qualificada, composta por profissionais com
formação acadêmica.
Para Charles Tilly (1976), a migração de carreira é aquela em que pessoas
ou famílias mudam de países, mais ou menos de forma definitiva, atrás de
oportunidade de mudança de posição dentro ou entre grandes organizações, na
perspectiva de trabalhar numa grande estrutura, onde ele cita, como exemplos,
o caso de cientistas, técnicos, militares, padres e burocratas. O autor deixa claro
que esse tipo de migração não se baseia em laços sociais da pessoa, ou seja, as
pessoas que emigram não o fazem com o objetivo de se aproximar de parentes
ou amigos mas, sim, para atender as necessidades de seus empregadores.
Sabemos que a globalização provocou intensas transformações econômicas,
sociais, políticas, demográficas e culturais, a partir dos anos 1980 (PATARRA,
2005), e, como resultado destas, a autora cita a reestruturação produtiva que
demanda novas modalidades de deslocamento do capital e de pessoas. Dessa
maneira, observamos um expressivo aumento dos movimentos migratórios
internacionais para países do norte, geralmente os mais desenvolvidos, como
para países em desenvolvimento, em decorrência da presença de empresas
transnacionais nos países periféricos (MOMO e BÓGUS, 2014).
O crescimento da imigração qualificada tem demandado estudos específicos;
dentre eles, a criação do “Manual Canberra”1, que recomenda que, para um
profissional ser classificado como qualificado, precisa possuir formação superior
na área da Ciência e Tecnologia ou exercer ocupações nessas áreas, mesmo sem
a formação superior (DOMENICONI e BAENINGER, 2017).

72 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


O crescimento desta modalidade de migração também levou à criação do
Acordo Geral de Comércio de Serviços, vinculado à Organização Mundial do
Comércio – OMC (PIZARRO, 2005) que regulamentou, em 1995, a formação de
um “mercado global de recursos humanos qualificados” (VÉRAS e VILLEN, 2020).
Podemos dizer que o aumento do fenômeno migratório também ocorre
devido à globalização e aos avanços tecnológicos que promoveram as facilidades
de mobilidade e comunicação (LEVEL, SILVA e MAGALHÃES, 2020), o que justifica
a necessidade de ampliação e aprofundamento dos estudos a respeito do tema.
Os movimentos migratórios seguem os rumos das transformações do capital
e trazem novas modalidades de deslocamento, novas motivações e novas
características (BAENINGER, 2013).
Os recursos humanos qualificados, em um mundo globalizado, têm
papel de destaque para o enfrentamento dos avanços tecnológicos,
para o desenvolvimento da inovação e de pesquisas científicas, para o
compartilhamento de conhecimentos e processamento de informações e
atingir vantagens competitivas no mercado global, conforme demonstram
Pellegrino e Pizarro (2001).
Nem sempre os países em desenvolvimento – que investem na formação
desses profissionais – conseguem absorver eficazmente essa mão de obra,
fazendo com que uma parcela desta busque, em países desenvolvidos,
oportunidades de atuação profissional compatíveis com suas qualificações.
Por outro lado, a incorporação laboral dos imigrantes qualificados, pelos países
desenvolvidos, muitas vezes, é realizada, colocando-os em posições inferiores
ao seu grau de qualificação (CAVALCANTE, 2015). Esta constatação comprova a
afirmação de Sayad (2001) de que o imigrante, mesmo tendo formação técnica,
será considerado socialmente como um profissional sem qualificação, no país
receptor, pois, para este, o imigrante só passa a existir quando pisa em suas terras,
não sendo reconhecidas suas bagagens culturais e experiências profissionais
acumuladas no país de origem.
Os primeiros estudos acadêmicos sobre a imigração qualificada datam do
período após o final da Segunda Guerra Mundial, por volta de 1950 e 1960,
mesma época em que ocorria também a descolonização da África, Ásia e Caribe,
e retratavam a preocupação com a perda de profissionais qualificados para a
emigração (PELLEGRINO, 2001). Esta perda, denominada brain drain, ou seja,
fuga de cérebros, mobilizou não apenas a comunidade acadêmica, mas também
algumas organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas e
a Organização Internacional para as Migrações, no sentido de traçarem políticas
para minimizar os impactos causados pela emigração qualificada.
Na América Latina, o debate sobre a fuga de cérebros, também chamada
de êxodo intelectual, começa a tomar corpo na década de 1960, após os
registros dos primeiros sinais de migração qualificada extrarregional em seus
países (PIZARRO, 2001). A predominância de fluxos dirigidos para os países do
Norte demonstrava que os países em desenvolvimento estavam subsidiando os

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 73


países desenvolvidos, ao oferecer seus profissionais qualificados, e que seria
necessário estudar as consequências que este tipo de mobilidade poderia
trazer aos países que investiram na formação dessa mão de obra e que não
iriam se beneficiar de suas atuações.
Castles (2010) lembra que a globalização neoliberal, a partir dos anos 1970,
produziu desigualdade econômica e centralização da riqueza e do poder nas mãos
dos países desenvolvidos do Norte, e, como consequência, fluxos migratórios
históricos foram invertidos, ou seja, brasileiros migraram para Portugal, EUA e
Japão, argentinos e equatorianos, para Espanha e Itália. Da mesma maneira,
trabalhadores qualificados latino-americanos engrossaram a chamada fuga de
cérebros Sul-Norte, e aqueles não qualificados emigraram em condições de
irregularidade, insegurança e exploração, segundo o autor.
O desenvolvimento dos países que perdem seus profissionais qualificados
pode ficar comprometido e torna-se necessário elaborar estratégias que
estimulem a circulação e trocas cerebrais (PELLEGRINO, 2001) em substituição
à fuga de cérebros. Uma sugestão apontada pela autora, para minimizar essa
perda, seria fazer com que os migrantes fossem elos entre redes locais e redes
globais de desenvolvimento científico e tecnológico, mediando trocas de novos
conhecimentos e tecnologias, formando o que se denomina brain circulation,
onde o país de origem também é beneficiado.
Guedes et al. (2018) também apontam que a economia dos países de
origem pode ser beneficiada pela emigração qualificada através das remessas
enviadas por esses emigrantes, além da aplicação, nos seus países de origem,
do conhecimento adquirido no exterior, num possível retorno no futuro.
Nesta situação, ocorre o que a literatura chama de brain gain, ou seja, ganho
de cérebros, em que a migração causa efeitos positivos para os dois países, de
origem e de destino.
Quando o conhecimento técnico ou teórico do imigrante qualificado não
pode ser aplicado no país de destino, ocorre um brain waste, ou seja, um
desperdício de cérebros. Como vimos anteriormente, essa situação costuma
ocorrer frequentemente, pois os países de destino, embora precisem da mão de
obra qualificada dos imigrantes, impõem muitas restrições para que eles ocupem
cargos condizentes com suas qualificações.
As tecnologias de comunicação permitem a realização de trabalhos on-line,
reuniões a distância e inúmeras atividades sem a necessidade do deslocamento
físico das pessoas, possibilidades amplamente utilizadas por conta da
pandemia da Covid-19. Pellegrino e Pizarro (2001) apontam que os países em
desenvolvimento poderiam reter sua força de trabalho qualificada se tivessem
acesso a banco de dados internacionais e a especialistas de outros países para
troca de conhecimentos. Nestas condições, estaria ocorrendo o brain exchange
(WILLIAMS, 2000, apud PELLEGRINO e PIZARRO, 2001), com a migração apenas
das competências, e não das pessoas, não previstas como sendo uma modalidade
migratória, uma vez que a migração envolve deslocamento de pessoas no espaço
físico, conforme já advertiu Sayad (1998).

74 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Muitas vezes os imigrantes qualificados são contratados por períodos
curtos, apenas para atender às demandas sazonais de empresas transnacionais
que possuem setores distribuídos em diversos países (PELLEGRINO e PIZARRO,
2001). Nesses casos, alguns profissionais precisam se deslocar continuamente
e costumam ter vistos específicos para essas finalidades, mantendo relações
flexíveis de trabalho que podem ser usadas para burlar legislações trabalhistas
e prejudicar especialistas locais, naquilo que pode ser enquadrado como
concorrência desleal. Os autores comentam que a globalização formou um
mercado global de trabalhadores qualificados, impactando nos salários e
desempregos nos países em desenvolvimento.
Os países desenvolvidos procuram atrair mão de obra qualificada
internacional de acordo com estimativas de suas necessidades e disponibilidades
futuras (PELLEGRINO e PIZARRO, 2001), considerando aspectos demográficos
e culturais e a demanda tecnológica. Os aspectos demográficos se relacionam
com o fato de os imigrantes ocuparem vagas de trabalho não preenchidas pelos
nacionais, em consequência do envelhecimento da população. Os aspectos
culturais se revelam pelo desinteresse da população jovem do país por carreiras
que demandam altas especializações, pois não oferecem vantagens significativas,
se comparadas com carreiras menos qualificadas. A alta demanda tecnológica,
presente nos países desenvolvidos, depende diretamente de profissionais
especializados em computação e na área científica, qualificados, portanto.
Por outro lado, vimos que os profissionais qualificados, oriundos dos países
em desenvolvimento, nem sempre conseguem ocupações compatíveis com sua
especialização em seus países, devido a uma série de fatores, como dificuldades
econômicas, culturais e instabilidades políticas (PELLEGRINO e PIZARRO, 2001) e
buscam, nos países desenvolvidos, melhores oportunidades.
No entanto, muitas são as dificuldades a serem enfrentadas pelos imigrantes
qualificados, tanto em termos de exigências burocráticas, como para conseguirem
trabalhar dentro de suas qualificações profissionais. Apesar disto, ainda se
encontram em vantagem em relação aos imigrantes não qualificados e aos
refugiados, pois o deslocamento foi resultado de uma escolha por acreditarem
que terão melhores condições de trabalho e de vida, e não de uma fuga forçada
por sobrevivência ou garantir liberdade de direitos (BÓGUS e FABIANO, 2015).

3 POR QUE OS BRASILEIROS EMIGRAM?

O Brasil tem um histórico de ser um país receptor de imigrantes devido à


colonização pelos portugueses, à vinda dos escravos africanos em uma imigração
forçada, seguidos pelos italianos, japoneses, até que, a partir dos anos 1980,
inicia-se um movimento de emigração para países desenvolvidos da América,
Europa e Japão (PATARRA, 2005). Essas emigrações eram motivadas por questões
econômicas e não políticas, como as ocorridas durante o período do regime

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 75


militar, no final da década de 1960 e nos anos da década de 1970, em que muitos
professores universitários, políticos, músicos e artistas se exilaram em outros
países (MARGOLIS, 2013).
Podemos perceber que a maioria desses exilados eram profissionais
qualificados que deixaram o Brasil por não concordarem com o governo que se
instalou no país. Esse fato também foi observado em outros países da América
Latina, onde muitos integrantes da elite cultural saíram dos países governados
por regimes militares autoritários, por se oporem a eles (PELLEGRINO e PIZARRO,
2001). Os autores apontam que os motivos que levaram esses acadêmicos a
abandonarem seus países não eram relacionados apenas aos salários, mas
também pela falta de reconhecimento do valor da atividade de pesquisa e
desenvolvimento, tanto por parte do governo, como pela própria população.
Os Estados Unidos eram o destino de 40% dos brasileiros que emigraram
no período de 1996 a 2003, em sua maioria jovens, da classe média e que lá
viviam de maneira ilegal, executando trabalhos não qualificados, porém, com
remuneração melhor do que tinham no Brasil (PATARRA, 2005). A Europa também
foi destino de brasileiros, principalmente Portugal, na última década do século
XX até o final da primeira década do século XXI (PATARRA e FERNANDES, 2011).
A estagnação econômica e a hiperinflação, que diminuíam a capacidade de
compra das classes média e média-baixa, são apontados por Margolis (2013)
como os principais motivos que levaram os brasileiros a procurar melhores
condições de vida fora do país, a partir da década de 1980. As desilusões com
a classe política, após o período do regime militar, e a falta de perspectivas de
melhora na economia também foram apontadas pela autora como motivos para
esses fluxos de brasileiros para fora do país.

4 POR QUE O CANADÁ?

Como sugestão para derrubar os entraves burocráticos que dificultam a


entrada de imigrantes em países que precisam de sua mão de obra, Martine
(2005) valoriza a sensibilização dos governantes e das populações desses países
sobre a importância e a necessidade de se juntar esforços para a facilitação e
recepção adequada dessa valorosa força de trabalho. O Canadá está presenciando
o envelhecimento de sua população, o que, por sua vez, está impactando os
custos com a previdência e a oferta de mão de obra, e a solução para esses
problemas está na atração de imigrantes jovens.
O Canadá tem um histórico de receber imigrantes para reforçar seu
crescimento econômico e demográfico, razão pela qual suas políticas de imigração
apresentaram mudanças significativas e constantes no decorrer dos tempos
(FRAGA e BÓGUS, 2014). Atualmente o país utiliza um sistema de pontuação
para a admissão de imigrantes, que se iniciou em 1967, quando era realizada
uma avaliação em que o candidato deveria atingir um mínimo de 50, de um

76 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


total de 100 pontos, considerando aspectos como nível educacional, habilidades
profissionais, possibilidade de emprego, idade, proficiência em inglês ou francês,
além de algumas características pessoais (BIZZO, 2019).
A partir de 1971, o governo canadense inicia uma política multiculturalista,
promovida pelo primeiro-ministro Pierre Trudeau, em que se visava manter a
liberdade cultural e valorizar as contribuições culturais das diferentes etnias,
dando suporte aos imigrantes na superação das barreiras discriminatórias,
estimulando trocas interculturais e oferecendo apoio no ensino do idioma
francês e inglês (BIZZO, 2019).
Essa política multiculturalista, implantada no Canadá, permitiu ao Quebec
estabelecer um programa de imigração no lado francófono, de acordo com suas
demandas (FRAGA, 2013), assim como, no lado anglófono, praticar um processo
de seletividade de imigrantes, visando a estabilização e permanência no país dos
imigrantes aprovados (SEGA, 2013). Essa seletividade visa atender aos interesses
do Estado de atrair e absorver uma força de trabalho internacional qualificada,
de acordo com as necessidades do país.
O sistema de pontuação das habilidades profissionais usa como referência
a NOC – National Occupational Classification (Classificação Ocupacional
Nacional), que é uma tabela elaborada pelo governo canadense para classificar
as qualificações profissionais (SEGA, 2013). Os principais pontos da NOC, como é
conhecida, inclusive pelos imigrantes, podem ser conferidos a seguir:

Resumidamente, independente da profissão, os níveis de


habilidade vão de “0” (zero) e “A” até nível “D”, ou seja, são
classificados em quatro níveis. Esses níveis de habilidade,
ou qualificação (skill level), são determinados pela duração
e tipo da educação e treinamento necessário para realizar
determinada ocupação. É levada em consideração, também,
a experiência necessária mínima para exercer a profissão,
assim como a complexibilidade e responsabilidades dessas
profissões em relação às outras (SEGA, 2013, p. 68).

Esse sistema sofreu modificações em 2015 com o Entry Express, que


estabeleceu uma pontuação máxima de 1.200 pontos, e a pontuação mínima
vai depender da demanda na época da emigração, podendo variar de 400 a 450
pontos (SEGA, 2020). Casais jovens são muito bem-vindos, com filhos ou com
interesse em formar uma família e se estabelecer no país, e o processo imigratório
é feito somando-se as pontuações do casal. Desta maneira, um membro do casal
preenche o cadastro on-line e é considerado o aplicante2 principal. A pontuação
será definida de acordo com a formação acadêmica, títulos acadêmicos, e o
desempenho nos testes de proficiência. A pontuação costuma ser melhor para
candidatos que possuam entre 29 e 35 anos, mas pode variar de acordo com a
província e as necessidades da época.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 77


Quando o casal imigra junto, caso de muitos brasileiros, um pode se
matricular em um college3 ou em uma faculdade e obter um visto de estudante,
que lhe dá o direito de trabalhar por, no máximo, 20 horas semanais, e o outro
ganha o visto de trabalho, com permissão para trabalhar 40 horas semanais.
Após a conclusão do curso, o casal adquire o direito de trabalhar 40 horas
semanais durante o mesmo período que levou para concluir seu curso, após o
qual ingressam com o pedido de residência permanente – PR. O PR garante ao
imigrante todos os direitos de cidadão canadense, exceto o de votar e ser votado,
e é o último antes da cidadania, que pode ser solicitada após o cumprimento de
algumas exigências, como tempo de moradia no país, realização de alguns testes,
podendo variar de acordo com a província em que vivem (SEGA, 2013).
Desta maneira, a política imigratória adotada pelo governo canadense tem
atraído muitos imigrantes do Brasil, conforme podemos conferir na Tabela 1 que
mostra o número de concessão de visto de residente permanente pelo governo
canadense para brasileiros, entre os anos de 2000 e 2020. Lembrando que esse
visto é obtido, na maioria das vezes, após o período de permanência no país
com o visto de estudante ou de trabalho, ou mesmo como indocumentado.
Desta forma, esses dados não representam os números de brasileiros que
entraram no país durante o período reportado e nem abrangem a totalidade
de brasileiros que moram no Canadá, mas demonstram o crescente número de
brasileiros que pretendem permanecer no país. Percebemos uma queda em
2020, provavelmente por causa da pandemia da Covid-19, mas, de janeiro a
março de 2021, foram concedidos 2075 vistos de residente permanente para
cidadãos brasileiros.
Marcélia, biomédica de Aracaju, decidiu, junto com o marido, tentar uma
nova vida no Canadá, ao perceber que a carreira dos dois já tinha atingido o
ponto mais alto, e não estavam satisfeitos com a qualidade de vida que tinham
no Brasil. Os dois tinham mestrado e doutorado e precisavam trabalhar em
vários empregos para sustentar a família. Conheceram o programa do Canadá e
se entusiasmaram, conforme ela declara abaixo:

A gente saia de Aracaju, ia para São Paulo para conhecer.


O consulado (do Canadá) estava dando umas palestras
e, naquela época, em 2013, o governo daqui, do Canadá,
era um governo muito conservador. Então, tinha fechado
a imigração, então, meu amigo tinha emigrado, mas
tinha fechado. Você só conseguiria vir para cá através de
estudos, entendeu? E daí, eu disse: vai ser esse caminho.
Meu marido, eu disse: você estuda, porque ele tinha mais
inglês que eu até... então você estuda e a gente vai.

78 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Tabela 1 - Concessão de Visto Residente Permanente pelo Canadá para imigrantes
brasileiros, entre 2000 e 2020

Visto de Residente
ANO
Permanente
2000 844
2001 847
2002 745
2003 839
2004 917
2005 969
2006 1181
2007 1745
2008 2137
2009 2510
2010 2598
2011 1508
2012 1641
2013 1712
2014 1916
2015 1730
2016 1730
2017 2760
2018 3950
2019 5290
2020 3695
Fonte: elaborada pelas autoras a partir de dados do site Open Canadá4

Antes de tomar a decisão de emigrar, os profissionais qualificados buscam


colher o máximo de informações sobre o país, as políticas imigratórias e as
oportunidades de trabalho. Para facilitar esse processo, as redes desempenham
um importante papel na migração qualificada pois, de acordo com Pellegrino e
Pizarro (2001), possibilitam a cooperação entre migrantes e residentes nos países
de origem e permitem a sobrevivência e manutenção dos fluxos migratórios,
reduzem custos e alimentam os vínculos com o país de origem.
As facilidades proporcionadas pela internet são fundamentais nos tempos
atuais, tanto para a divulgação de informações como para o estabelecimento
de networking entre emigrantes e residentes no país de origem. Muitos blogs,

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 79


vídeos informativos, perfis e grupos formados nas redes sociais funcionam como
importantes meios de troca de informações sobre o processo de emigração,
características do país, possibilidades de trabalho, de moradia, entre outras.

4.1 Relatos de brasileiros qualificados que emigraram para o Canadá

Entrevistamos 15 emigrantes brasileiros qualificados que vivem e trabalham


no Canadá, com a finalidade de conhecer o perfil desses indivíduos, os fatores
que os motivaram a realizar esse deslocamento e como foi a inserção deles no
mercado de trabalho, principalmente se conseguiram uma colocação profissional
compatível com suas qualificações acadêmicas e experiências laborais. Como
critérios para participar da pesquisa, os entrevistados deveriam possuir
graduação completa e estar, no mínimo, há dois anos no Canadá.
Na Tabela 2, apresentamos o perfil dos entrevistados. Podemos conferir
que a grande maioria é formada por mulheres casadas e com filhos, com idades
predominantemente na faixa dos 31 aos 50 anos.

Tabela 2 - Perfil dos entrevistados


Nome Ano da Emigração Sexo Idade Estado Civil Filhos
Claudio 2008 M 66 Casado 1
Paula 2008 F 39 União Est. 2
Sílvia 2008 F 47 Casada 2
Marcelia 2013 F 44 Casada 2
Daniele 2015 F 45 Casada 2
João 2015 M 42 Casado 2
Danielle 2015 F 38 Casada 2
Heloísa 2017 F 41 Casada 2
Eduardo 2017 M 44 Casado 2
Rachel 2017 F 42 Casada 2
Luciana 2017 F 47 Casada 2
Ariadne 2017 F 35 Casada 1
Carla 2018 F 46 Casada 2
Fernanda 2018 F 29 União Est. 0
Erica 2018 F 43 Casada 2
Fonte: elaborada pelas pesquisadoras, a partir dos dados das entrevistas.

A estratégia de emigrar utilizando a pontuação do casal, ou seja, quando


um imigra com visto de estudante e o outro com visto de trabalho, foi adotada
por grande maioria de nossos entrevistados. A Daniele, publicitária carioca, nos
mostra porque decidiram emigrar dessa forma:

80 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Qual é o caminho que a maioria dos brasileiros toma
para emigrar para o Canadá? É o estudo... o pessoal vem
estudando, quando você adquire um diploma canadense,
você ganha uma quantidade extra de pontos para você
pontuar nesse processo seletivo, nesse processo de
residente permanente, mas você ainda perde na pontuação
da idade, por exemplo, então, enfim tem outros aspectos
da imigração que ajudariam a ganhar ponto, mas o principal
caminho para imigração, para pessoas, principalmente que
já tenham acima dos 40 anos, 35-40 anos, é estudando.

A Fernanda, formada em Relações Internacionais, nos mostra, porém, que


existem outras formas de emigração. Como ela trabalhava em uma empresa
francesa no Brasil, era fluente no idioma, pesquisou o mercado e conseguiu ser
contratada por uma empresa quebequense, emigrando sozinha com visto de
trabalho. Trabalhar em uma empresa canadense, ser fluente no idioma (inglês
ou francês) e idade (ela tinha 29 anos na época da emigração), são fatores que
favorecem muito na pontuação para a imigração.
Para conhecermos as motivações que levaram os entrevistados a emigrar,
solicitamos que relatassem os principais fatores que consideravam importantes
para terem tomado essa decisão. De acordo com as narrações deles, identificamos
sete fatores que mais apareceram nas entrevistas, e que podem ser conferidos
no Gráfico 1.

Gráfico 1 – Motivação para a emigração

Fonte: elaborado pelas pesquisadoras a partir das respostas nas entrevistas.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 81


O Gráfico 1 nos mostra que o desejo de morar fora foi relacionado pela
maioria das pessoas entrevistadas, ou seja, nove (60% do total); frequentemente,
esse desejo é despertado nas pessoas que tiveram a oportunidade de viajar para
países mais desenvolvidos e conheceram outras culturas e realidades diferentes
daquelas a que estão acostumadas. A instabilidade econômica também
pesou bastante na decisão dos nossos entrevistados, pois gera sentimento de
insegurança, de saber se continuarão empregados ou poderão ser demitidos, e
foi citada por oito pessoas (53,33%). Outro fator bastante importante, relatado
por 46,66% das pessoas foi a segurança, que envolve o medo de sair às ruas e ser
assaltado, o medo de os filhos serem agredidos.
A publicitária carioca Daniele explicou como o problema de segurança pesou
na decisão de mudar para o Canadá:

[...] a segurança no Rio já era uma coisa que incomodava


muito. A gente começou a perceber que a gente estava
se fechando em uma bolha, a gente não queria mais sair
do bairro, porque tinha que cruzar um túnel, tinha que
atravessar uma... a linha amarela. Então, assim, a segurança
foi uma coisa que falou muito alto, e as oportunidades,
não é? A oportunidade de dar para nossos filhos uma vida
mais tranquila, uma vida melhor, com mais acesso e, mais
qualidade de vida.

Quatro pessoas, 26,66%, relataram que decidiram mudar para o Canadá


por acreditar que teriam uma melhor qualidade de vida, o que inclui a sensação
de segurança para sair às ruas, principalmente os filhos adolescentes, ter várias
opções de lazer sem precisar gastar muito, como parques bem tratados e
seguros, não precisar trabalhar muitas horas por dia e poder ficar mais tempo
com a família. O reconhecimento profissional, incluindo melhores salários, foi
relatado por duas pessoas, 13,33% do total, que consideram que, no Brasil, os
baixos salários fazem com que precisem trabalhar muito para arcar com os altos
custos como escolas, transporte escolar, saúde etc. Uma pessoa citou o fator
melhorar o idioma, e outra, a corrupção, ou seja, 6,6% do total, como decisivos
para terem escolhido o Canadá para morar.
Ao serem convidados para relatar a experiência profissional que tiveram
no Canadá, podemos observar que encontraram muitas dificuldades para
conseguir empregos compatíveis com suas qualificações profissionais,
principalmente nas primeiras atividades ocupacionais, que, geralmente, não
eram qualificadas. Os imigrantes costumam iniciar sua experiência profissional
no Canadá, realizando trabalhos não qualificados para acumular experiência e,
assim, conseguir referências para concorrerem a cargos mais qualificados. Como
falamos anteriormente, a experiência profissional, adquirida no país de origem,
geralmente não é considerada quando os imigrantes qualificados buscam
empregos em países desenvolvidos, e isso também ocorre no Canadá.

82 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A paulista Luciana, profissional de TI, descreve claramente a realidade do
imigrante qualificado, com relação à atividade profissional:

Vida de imigrante é difícil? É difícil, porque você larga tudo


para trás, não é? Aqui eu tive que começar tudo do zero.
Então, se você vai trabalhar em uma empresa, você tem
que se provar de novo.

A não fluência no idioma costuma ser uma barreira para trabalhar em


empregos qualificados e alguns entrevistados relataram que ainda têm
dificuldades em se expressar da maneira como gostariam, apesar de já terem
emigrado com domínio do idioma. Os entrevistados, em sua grande maioria,
mostraram que já sabiam desses desafios que a condição de imigrantes lhes
impunha, mas alguns relataram desapontamento ao terem que se submeter a
trabalhos que estavam muito aquém de suas qualificações.
Para exercer atividades profissionais qualificadas, o Canadá exige que
os imigrantes realizem cursos específicos e se registrem em uma “Ordem” da
categoria profissional. Para validar um diploma de curso superior que não foi
realizado no país, são exigidos cursos e estágios, mesmo que o profissional já
tenha imigrado com vasta experiência, comprovando as palavras de Sayad
(2001) de que, para o país receptor, a bagagem cultural e profissional, levada
pelo imigrante, não é reconhecida e ele é considerado socialmente como um
profissional sem qualificação.
A fisioterapeuta gaúcha Carla, com várias especializações e mestrado, vasta
experiência clínica e docência no Brasil, teve que fazer curso de massoterapeuta
e personal em Pilates, para poder atuar em algo mais próximo à sua formação,
enquanto não valida seu diploma. O relato dela mostra a estratégia utilizada até
o momento, no Canadá:

Então, aqui eu trabalho com Pilates, Personal e


Massoterapia. A validação do diploma (Fisioterapia) é um
pouco demorada, um pouco sistemático, mas, como o meu
marido veio com esse visto de estudante e eu com visto
de trabalho, a gente começou a aplicar para residência,
eu não posso mudar de status nesse momento e, para eu
poder estudar para fisioterapia, eu teria que ter um visto
de estudo e o meu status aqui é visto de trabalho. Então
eu tenho que esperar minha residência primeiro, para
que daí eu possa começar o meu processo de validação da
fisioterapia, que é o que eu pretendo fazer.

Alguns profissionais, que estavam descontentes com suas profissões


no Brasil, e outros, diante das barreiras em terem seus diplomas e títulos
acadêmicos reconhecidos no Canadá, encontraram oportunidades de
desenvolver novas carreiras, e esses fatores foram considerados motivos
de alegria, por acreditarem que não encontrariam tais oportunidades de
recomeço no Brasil, na idade em que estavam.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 83


A nutricionista paulista Danielle é uma das que relataram descontentamento
com sua profissão no Brasil, por não ter o reconhecimento que achava que
merecia. Ela não tem interesse em atuar como nutricionista e atualmente
trabalha como auxiliar em uma clínica dentária e está realizando alguns cursos
que permitem desenvolver atividades mais qualificadas no futuro. Seu relato é
um exemplo de transição de carreira no Canadá:
Quando eu era mais nova, quando fui entrar na faculdade,
eu fiquei em dúvida, e as minhas duas opções eram
Odontologia ou Nutrição, já era uma coisa que eu gostava,
mas eu acabei indo para Nutrição. Estou muito feliz...
assim. Eu nunca tive o reconhecimento que eu tenho
hoje, no meu trabalho, até na faculdade, como eu nunca
tive no Brasil.

Com relação às atividades exercidas por nossos entrevistados, seis declararam


estar atuando dentro de sua área de qualificação, mas em posição abaixo daquela
que tinham no Brasil, tanto em termos de complexidade e responsabilidade, o
que representa 40% do total. Alguns apontaram que os empregos que tinham
em São Paulo, por exemplo, eram em empresas de grande porte e que, na cidade
em que vivem no Canadá, como Vancouver, só havia empresas bem menores.
A paulista Luciana, profissional de TI, explica que atuou em grandes
empresas, com muita responsabilidade por equipes de pessoas e resultados, e
o quanto essa situação causava estresse. No momento, atua dentro de sua área,
em posição parecida com as exercidas anteriormente, porém, como a empresa
é pequena, a responsabilidade é bem menor e está muito satisfeita por isso. Seu
relato explica melhor sua experiência:

Eu estou amando! Eu voltei a fazer uma coisa que eu


sempre gostei, que era decodificar, porque, quando eu
comecei ir para essa vertente mais gerencial, você sai um
pouco, não é? Desse dia a dia. E, então eu voltei a fazer isso.
Eu tinha um propósito de não ser mais gerente, embora
o meu último cargo, antes deste, era de gerente, mas eu
não queria mais aquele estresse... você ficar lidando com
expectativa de diretores, de pessoas que não pensam
mesmo como você... isso me consumia muito...
No Brasil, meu último cargo foi como gerente de
desenvolvimento e era uma multinacional... a
responsabilidade que eu tinha era infinitamente
maior (comparando com o emprego no Canadá), além
de eu ser responsável por um time, eu também era
responsável por resultados da empresa, porque a área
de TI é uma prestadora de serviços para a empresa
inteira... toda semana eu tinha que prestar contas para
o diretor da empresa...

84 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Cinco pessoas declararam que estavam, no momento, trabalhando em uma
área diferente da sua formação profissional e em um nível diferente de suas
qualificações, o que representa 33,33% do total de entrevistados. Duas pessoas
consideram que o atual trabalho, mesmo com diferenças em relação àquele
exercido no Brasil, está dentro de sua qualificação e em posições equiparadas às
que tinham nos empregos brasileiros, representando 13,33% dos profissionais
entrevistados.
Uma entrevistada que emigrou sabendo que sua formação em Geografia
não tinha demanda no Canadá, desenvolveu uma carreira que considera estar
em um nível equivalente ao que possuía no Brasil e está realizando cursos para
se qualificar na atividade, que é voltada para a área social de acolhimento de
imigrantes e refugiados. É uma das que está há mais tempo no Canadá, 13 anos,
e está muito animada com as perspectivas de crescimento profissional.
De todos os entrevistados, apenas uma relatou estar trabalhando, após
cinco anos morando no Canadá, em uma posição acima do último cargo que teve
no Brasil. Ela começou exercendo funções não qualificadas, mas foi acumulando
experiências, e, através de networks, foi conseguindo colocações melhores até
chegar ao emprego atual, no consulado britânico de Vancouver.
Elaboramos um gráfico para oferecer uma visão geral dos dados revelados
na entrevista, com relação às áreas em que os entrevistados estão atuando no
momento. Assim sendo, o Gráfico 2 nos mostra que nove entrevistados (60%
do total) relataram estar atuando dentro de sua área de formação, incluindo as
colocações profissionais que estão abaixo, equivalentes ou acima da qualificação
das atividades que exerciam no Brasil. Seis entrevistados declararam estar
trabalhando em atividades diferentes da área de sua formação profissional.

Gráfico 2 – Trabalho dos entrevistados no Canadá, em relação à sua qualificação


profissional

Fonte: elaborado pelas autoras, a partir de dados levantados nas entrevistas.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 85


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho pode comprovar o que a literatura aponta sobre a dificuldade


que imigrantes qualificados encontram em relação à inserção no mercado de
trabalho. Assim como nos mostrou Sayad (2000), toda a bagagem técnica e de
experiência que o imigrante leva consigo, quando entra em um país receptor,
não é reconhecida para que ele seja contratado em um emprego compatível com
suas qualificações. Os entrevistados deste trabalho nos mostraram que tiveram
que começar “do zero” no Canadá, referindo-se ao fato de executarem trabalhos
inferiores à sua capacidade e conhecimento, como também de precisarem fazer
cursos e estágios para validar seus diplomas; destacam ainda a necessidade
de se ganhar experiência, atuando em empresas canadenses que fornecerão
referencias para se candidatarem a ocupações mais qualificadas, no futuro.
A maioria dos brasileiros qualificados, que entrevistamos, decidiram viver e
trabalhar no Canadá, mesmo possuindo bons empregos no Brasil, para realizarem
o desejo de morar em um país mais desenvolvido, onde acreditam que teriam
uma qualidade de vida melhor, principalmente em relação à falta de segurança,
à instabilidade econômica e política brasileira, entre outros fatores. As vantagens
que relataram em morar em terras canadenses superam os desafios de trabalhar
em ocupações abaixo de suas qualificações, tanto é que não relataram intenção
de retornar ao Brasil.

Notas
1
Esse manual foi desenvolvido com a colaboração da Organization for Economic Co-operation
and Development (OCDE), da EUROSTAT, da Organização das Nações Unidas para Educação,
Ciência e Cultura (UNESCO) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
2
Aplicante é uma derivação da palavra inglesa applicant e tem relação com aquele(a) que se
candidata ou aplica para se tornar um(a) imigrante qualificado(a) (SEGA, 2020).
3
Equivalente a um curso técnico, que prepara para alguma profissão.
4
<https://open.canada.ca/>. Acesso em 06 junho 2021.

REFERÊNCIAS

BAENINGER, R. Notas acerca das migrações internacionais no século 21. In: BAENINGER,
R. (org.). Por dentro do Estado de São Paulo. v. 9, Migração internacional. Campinas:
Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp, 2013. p. 9-22.

BIZZO, F. A política multicultural de imigração no Quebec: os desafios de integração e de


identidade. 2019. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências
Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

86 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


BÓGUS, L. M. M.; FABIANO, M. L. A. O Brasil como destino das migrações internacionais
recentes: novas relações, possibilidades e desafios. Ponto e Vírgula, PUC-SP, n. 18, p.
126-145, 2015.

CASTLES, S. Entendendo a migração global: uma perspectiva desde a transformação social.


Revista Internacional de Mobilidade Humana, Brasília, ano XVIII, n. 35, p. 11-43, jul./
dez., 2010.

CAVALCANTI, L. Imigração e mercado de trabalho no Brasil: características e tendências. In:


CAVALCANTI, L.; OLIVEIRA, A. T.; TONHATI, T. (Orgs.) A inserção dos imigrantes no mercado
de trabalho brasileiro. Cadernos OBMigra, Ed. Especial, Brasília, 2015, p. 35-47.

DOMENICONI, J.O.S; BAENINGER, R. A dinâmica da migração internacional qualificada para


o Estado de São Paulo no século XXI: os espaços da migração dos “trabalhadores do
conhecimento”. Cadernos Metrópole, vol. 19, n. 40, p. 749-775, set./dez. 2017.

FRAGA, M. V. O Canadá na rota das migrações internacionais: brasileiros em Quebec. 2013.


Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.

FRAGA, M. V.; BÓGUS, L. M. M. A política de imigração de Quebec e a atração de


trabalhadores qualificados. In: VIII Congresso Português de Sociologia: 40 anos de
democracia(s): progressos, contradições e prospectivas, Évora, 2014.

GUEDES, A. L.; ACCIOLY, T. A.; DUARTE, P. C.; SANCHES, D.; CALIL, L.; RUEDIGER, T.; OLIVEIRA,
W. Migrações internacionais: impactos dos novos fluxos migratórios no Brasil em
perspectiva multidisciplinar. In: 42º Encontro Anual da ANPOCS, 2018.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 17.
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

LEVEL, B. P. L.; SILVA, J. C. J.; MAGALHÃES, L. F. A. Migração, trabalho e Estado: três aspectos
da contemporaneidade do pensamento de Sayad. In: DIAS, G.; BÓGUS, L. M. M.;
PEREIRA, J. C. A.; BAPTISTA, D. (orgs.). A contemporaneidade do pensamento de
Abdelmalek Sayad. São Paulo: EDUC, 2020. p. 115-132.

MARGOLIS, M. L. Goodbye Brazil: emigrantes brasileiros no mundo. Tradução: Aurora M. S.


Neiva. São Paulo: Contexto, 2013.

MARTINE, G. A globalização inacabada - migrações internacionais e pobreza no século 21.


São Paulo em Perspectiva, v. 19, n.3, 2005.

MOMO, G. A. C.; BÓGUS, L. M. M. Fluxos migratórios qualificados da Europa para o Brasil:


quem são os novos imigrantes. Revista Ponto e Vírgula, v. 15, p. 58-73, 2014.

PATARRA, N. L. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo – volumes, fluxos,


significados e políticas. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3, p. 23-33, 2005.

PATARRA, N. L.; FERNANDES, D. Brasil: país de imigração? Revista Internacional em Língua


Portuguesa. v.3, n. 24, p. 65-94, 2011.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 87


PELLEGRINO, A. Éxodo, movilidad y circulación: nuevas modalidades de la migración
calificada. Notas de Población. Año XXVIII, nº 73, p. 129-162. Santiago de Chile, sep.,
2001.

PELLEGRINO, A.; PIZARRO, J. M. Una aproximación al diseño de políticas sobre la migración


internacional calificada en América Latina. Santiago do Chile: Comisión Económica para
América Latina - CEPAL – SERIE Población y desarrollo, n. 23, dez. 2001.

PIZARRO, J. M. Globalizados, pero restringidos: una visión latinoamericana del mercado


mundial de recursos humanos calificados. CELADE: Santiago, 2005.

SAYAD, A. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998.

SAYAD, A. O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante. Travessia – Revista do


Migrante, ano XIII (número especial), 2000, p. 7-32.

SEGA, R. F. Projeto Canadá: seletividades e redes de imigrantes brasileiros qualificados em


Toronto. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, 2013.

SEGA, R. F. Produções ciborgues: imigrantes brasileiras & mídias sociais no Canadá. Tese
(Doutorado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2020.

TILLY, C. Migration in Modern European History. Center for Research on Social Organization.
University of Michigan, Michigan,1976.

88 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Resumo
Este trabalho pretende ampliar o conhecimento sobre a migração qualificada, que é uma
modalidade do fenômeno migratório. O objetivo principal é analisar a inserção, no mercado
de trabalho canadense, de emigrantes brasileiros qualificados. A literatura nos mostra que
os países costumam colocar diversas barreiras no caminho dos imigrantes qualificados que
buscam ocupar cargos compatíveis com suas especializações. A hipótese deste trabalho é a
de que emigrantes brasileiros qualificados encontram dificuldades, no Canadá, para conseguir
trabalhos compatíveis com sua qualificação; no entanto, a melhor qualidade de vida canadense
compensa os desafios profissionais que precisam superar. Foram realizadas entrevistas com
15 brasileiros qualificados, que moram e trabalham no Canadá, em que se buscou levantar
dados básicos de seu perfil, como sexo, idade, formação acadêmica, as suas experiências
profissionais no Brasil e no Canadá, as motivações e procedimentos feitos para a emigração.
A análise dos dados obtidos nas entrevistas comprovou a hipótese levantada, ou seja, a de
que os emigrantes brasileiros qualificados encontram, no Canadá, dificuldades para conseguir
trabalho compatível com sua qualificação; porém, as vantagens de viver no país compensam
essas dificuldades.

Palavras-chave: Imigração qualificada; Migração internacional; Brasileiros no Canadá.

Abstract
This work intends to expand the knowledge about qualified migration, which is a type of
migratory phenomenon. The main objective is to analyze the insertion in the Canadian labor
market of qualified Brazilian emigrants. The literature shows us that countries usually place
several barriers in the way of qualified immigrants who seek to occupy positions compatible
with their qualification. The hypothesis of this work is that qualified Brazilian emigrants find
it difficult in Canada to get jobs compatible with their qualifications; however, the better
Canadian quality of life compensates for the professional challenges they need to overcome.
Interviews were conducted with 15 qualified Brazilians who live and work in Canada, in order
to raise basic profile data, such as gender, age, academic background, their professional
experiences in Brazil and Canada, the motivations and procedures used for emigration. The
analysis of the data obtained in the interviews confirmed the raised hypothesis, that is,
that qualified Brazilian emigrants in Canada find it difficult to get a job compatible with
their qualification, however, the advantages of living in the country outweigh the difficulties
encountered in the work.

Keywords: Skilled immigration; International migration; Brazilians in Canada.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 89


90 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
A reprodução da etnicidade
teuto-brasileira nas oktoberfest

Fernando Diehl*

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é proveniente de notas de uma pesquisa que visa discorrer acerca
da reprodução da identidade dos descendentes de imigrantes alemães em suas
respectivas festas étnicas, no caso, enfatizamos as Oktoberfest que ocorrem no
Brasil. Como metodologia, utilizamos a observação sistemática e entrevistas
semiestruturadas. Buscamos analisar a representação que os teuto-brasileiros
fazem de sua etnicidade por intermédio dos símbolos de linguagem que os
indivíduos utilizam em suas vidas cotidianas, pois esta “apresenta-se como uma
realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para
eles na medida em que forma um mundo coerente” (BERGER; LUCKMANN, 2013,
p. 35). Isto significa que é na interação cotidiana que o mundo real é construído a
partir dos símbolos que surgem nos processos da linguagem, e estes preenchem
a vida, dando-lhe significado. Por símbolos, entenda-se, “alguns signos que
transmitem informação social podem ser acessíveis de forma frequente e regular,
e buscados e recebidos habitualmente; esses signos podem ser chamados de
símbolos” (GOFFMAN, 2013, p. 53). Já os signos respectivamente, para este
artigo, compreendem-se como “objetos ou ocorrências perceptíveis por visão,
audição, tato e olfato, como luzes de diferentes cores, elementos de vestimenta,
letreiros, declarações orais, tons de voz, gestos, expressões faciais, perfumes e
assim por diante” (BAUMAN; MAY, 2010, p. 207). Portanto, determinados signos
são significados cotidianamente tornando-se símbolos. Estes são signos que
transmitem informações sociais relevantes.
Consequentemente, símbolos que são traços, objetos e percepções,
geram sentidos e significados para os diversos grupos existentes, podem variar
conforme o contexto específico. Neste sentido, os grupos sociais constroem
socialmente os seus símbolos que dotam o mundo de sentido. Porém, isso não
significa a construção de uma interpretação pessoal isolada das demais, pois
as significações sempre são processuais, isto é, são construídas em interação
entre indivíduos e grupos sociais. Ao longo da História, alguns símbolos foram
constituindo um significado estruturante, isto quer dizer que a repetição dos
significados de tais símbolos construiu uma compreensão objetiva para uma

*
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 91


grande parte da população. Portanto, deve-se compreender que a experiência
proveniente de um determinado símbolo “pode ser compartilhada por outra
pessoa que não a vive” (FANON, 2008, p. 86), logo, mesmo não vivenciado pelo
indivíduo, os símbolos já foram elaborados por outros. Isto quer dizer que, no
seu processo de interação, ele irá utilizar-se de tais símbolos pré-existentes. Por
conseguinte, os símbolos existem para significar e dar sentido do mundo para os
indivíduos. Esta é uma compreensão processual de como os símbolos, mesmo
que não tendo sido vivenciados pelos indivíduos, constituem fronteiras sociais
que diferenciam pessoas, grupos, objetos materiais ou imateriais. Os símbolos
apresentam-se de forma cotidiana. Após esse panorama inicial, abordaremos, a
seguir, conceitos de grupo étnico, etnicidade e, posteriormente, o de cultura, para
então entrarmos na questão da identidade e das festas étnicas dos descendentes
de imigrantes, tendo como foco os teuto-brasileiros e as Oktoberfest.

2 GRUPOS ÉTNICOS E ETNICIDADE

Quando nos referimos a grupos étnicos, estamos querendo dizer, na


verdade, que são indivíduos que alegam possuir uma origem em comum
(WEBER, 2009), esta manifestada nos costumes do grupo a que pertencem. Tal
grupo também possui a crença na existência de uma comunidade fundada em tal
origem comum cujos símbolos são externalizados em costumes e lembranças da
imigração e colonização, como por exemplo, as festas étnicas que serão descritas
posteriormente. Deve-se salientar que

A pertença étnica determina, assim, um tipo particular de


grau social que se alimenta de características distintivas
e de oposições de estilos de vida, utilizadas para avaliar a
honra e o prestígio segundo um sistema de divisões sociais
verticais. Mas essas características distintivas só têm
eficácia na formação dos grupos étnicos quando induzem
a crer que existe, entre os grupos que as exibem, um
parentesco ou uma estranheza de origem (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 2011, p. 38).

Os grupos étnicos são, portanto, “categorias de atribuição e identificação


realizadas pelos próprios atores e, assim, têm a característica de organizar
a interação entre as pessoas” (BARTH, 2011, p. 189). Neste sentido, deve-
se compreender que o grupo étnico, para Max Weber e outros que seguiram
sua linha epistemológica, é uma construção social cuja existência é sempre
problemática (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 40). Portanto, questões
culturais como a língua e a religião desempenham um papel importante,
pois conotam junto ao grupo étnico a compreensão de que seus membros
compartilham um código linguístico e cultural em comum que regulamenta as

92 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


suas vidas. Consequentemente, da mesma forma, as festas étnicas apresentam-se
como um espaço de compartilhamento e ressignificação dos códigos e símbolos
identitários de fronteira. Portanto, “um grupo étnico é então ‘simplesmente’
uma categoria descritiva e objetiva, discernível pelo observador” (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 2011, p. 45).

A coisa importante a enfatizar é que grupos étnicos, de fato


todos os grupos são instituições, padrões de prática social
identificando pessoas que se tornaram estabelecidas sobre
o tempo de como as coisas são feitas em um contexto
particular local, sendo que as pessoas neste local estão
conscientes disso (JENKINS, 1997, p. 61, tradução nossa).

Todavia, deve-se destacar que, embora haja símbolos que denotam os


traços de diferenciação entre os grupos étnicos, e que tais traços definem os
grupos étnicos, nem sempre aqueles foram os mesmos, ou seja, eles variam
conforme o contexto (MONSMA, 2016). Isto significa que os traços definidores
são construídos processualmente, logo, até mesmo um símbolo “estruturado”
pode vir a perder seu sentido e ser ressignificado em determinados contextos
diferentes. Consequentemente, as identidades étnico-culturais são processos
(HALL, 2006) construídos por intermédio da manutenção e reformulação de
símbolos. Isto significa que uma mesma característica, que diferencia um
determinado grupo étnico, pode mudar ou perder sua significação no decorrer
da história desse grupo. Portanto, os traços étnicos que identificam um grupo
são (re)significados conforme determinados contextos. Poutignat e Streiff-Fenart
colocam que a principal problemática, em estudos de etnicidade, é verificar as
mudanças sociais, políticas e culturais da história de um determinado grupo
étnico, isto quer dizer colocar a própria existência dos grupos étnicos como uma
problemática. Portanto, cabe ao cientista social verificar como os grupos de
imigrantes, há muito instalados em um determinado local, continuam a se atribuir
a sua identidade étnica (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011). Com isso, cabe aos
pesquisadores verificar como a manifestação da identidade étnica dos imigrantes
são tradicional e cotidianamente evocadas no discurso dos descendentes de
imigrantes, e em que medida essa identidade é mantida e alterada, visto que, “na
medida em que os atores usam identidades étnicas para categorizar a si mesmos
e outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido
organizacional” (BARTH, 2011, p. 194). Na sequência, abordaremos acerca da
identidade étnica dos imigrantes, especificamente a assim chamada imigração
europeia “histórica”, ou seja, aquela para o Brasil, ao longo do século XIX.
Deve-se compreender que uma das consequências da imigração histórica
europeia para o Brasil, ao longo do século XIX e início do XX, foi a construção de
novas identidades étnicas e raciais no processo de interação com brasileiros e
com outros grupos de imigrantes (MONSMA, 2007). Em cidades brasileiras, como

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 93


nas regiões de colonização alemã e italiana no Rio Grande do Sul, esta identidade
de ser imigrante europeu ainda é celebrada como algo a ser valorizado entre os
moradores, que são descendentes de imigrantes, e a mesma é vivenciada no
cotidiano, sendo as festas étnicas o momento de manifestação mais presente
desse ideal de “ser” imigrante1. Por conseguinte, os indivíduos reproduzem
coletivamente os símbolos que denotam o pertencimento de sua identidade
étnica; por isso,

As identidades étnicas não são definidas em termos


individuais nem nacionais. Pelo contrário, é uma
identidade que se define em termos de grupo, de
diferença e por um caráter altamente dinâmico já que as
fronteiras que se estabelecem como divisores dependem
muito do contexto, tempo e espaço, e são fronteiras
sociais (ALLOATI, 2015, p. 214).

As identidades étnicas, etnicidade, são sempre processuais, são construídas


socialmente porque são realizadas por intermédio de representações e de
símbolos adotados. Estes são ressignificados no cotidiano pelos sujeitos que
interagem nos espaços sociais; por conseguinte, a identidade é reproduzida na
ação social dos indivíduos do próprio grupo. Destarte, é na vida diária que o
sentido dessa identidade étnica torna-se presente, sendo fortalecida nos laços
comunitários dos indivíduos pertencentes ao grupo étnico. Cabe salientar que tais
símbolos cotidianos e naturalizados são apresentados de forma essencializada,
e muitas vezes exagerada, nas festas e tradições étnicas. No entanto, é preciso
compreender que a identidade étnico-cultural precisa necessariamente da
existência de um outro como referência; este outro pode ser um grupo étnico ou
uma representação simbólica da imagem de um Outro que se diferencia deles,
o outro generalizado de Mead (1967). É na interação social cotidiana que se
constroem critérios que definem o pertencimento a um grupo específico e não
a outro. Após tratar deste aspecto e para uma melhor compreensão do conceito
de etnicidade, abordaremos o que este artigo está definindo para o conceito
de cultura, salientando que o referido conceito está sendo abordado para a
compreensão da identidade étnica, portanto, não será feito um levantamento
histórico e uma definição mais filosófica do que é cultura.

3 CULTURA E IDENTIDADE

Para compreender a identidade de grupos de imigrantes, seja os


recentemente chegados a um país de destino, ou de descendentes de imigrantes
já estabelecidos há mais tempo, devemos inicialmente conceituar o que estamos
tratando por “cultura” e, mais especificamente, o que constitui a identidade
étnico-cultural desses grupos de imigrantes. O conceito de cultura é algo muito

94 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


complexo para ser brevemente explanado, portanto, para este artigo, partiremos
da ideia de cultura presente em Fredrik Barth (2000). Segundo este autor,
primeiramente, é preciso eliminar do conceito de cultura várias conotações
consideradas inadequadas. Para Fredrik Barth (2000), a cultura não é algo pronto
e estático, mas um significado que é constituído de forma processual e que se
constitui a partir da relação entre o observador e o signo. Ou seja, é preciso fazer
uma ligação de um determinado fragmento de cultura com um ator específico
para, então, o observador poder compreender as experiências, conhecimentos e
ações desse ator. Neste sentido, a cultura é compartilhada por alguns e não por
outros. Por isso que

Precisamos incorporar ao nosso modelo de produção da


cultura uma visão dinâmica da experiência como resultado
da interpretação de eventos por indivíduos, bem como
uma visão dinâmica da criatividade como resultado da luta
dos atores para vencer a resistência do mundo (BARTH,
2000, p. 129).

Neste sentido, é importante compreender o aspecto relacional do ator


social junto com elementos do que está sendo considerado como cultura. Por
consequência, é feita uma análise processual para compreender este fenômeno.
Autores como Alban Bensá (1996) e Guillaume Boccara (1999) também não
concordam com uma concepção de cultura como algo fixo e imutável. Para
estes autores, o que existe é uma projeção da tradição manifestada em uma
cena pública, isto quer dizer, uma “construção de um símbolo, cujo referencial
seria a sua ‘cultura’, no sentido quase publicitário do termo” (BENSÁ, 1996, p.
79), ou seja, esta manifestação pública apresentada é como uma cópia de sua
cultura. Para Bensá, é preciso superar os argumentos que fazem da cultura uma
instância imaginada e objetivada (BENSÁ, 1996), e, sim, compreender a cultura
como algo vivenciado e transformado cotidianamente. Já Boccara busca verificar
a transformação dos mecanismos de definição identitária. Nesse sentido, as
etnias se estruturam não como algo pronto e essencializado, mas como um
processo construído historicamente (BOCCARA, 1999). Portanto, o autor verifica
a etnogênese de um grupo étnico, isto quer dizer como são criados os grupos
étnicos. Dessa forma, é preciso substituir uma concepção estática da cultura, ou
seja, pensar a cultura em termos menos essencialistas, assim como substituir as
visões tradicionais de homogeneidade cultural por uma perspectiva construtivista
e dinâmica (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 30). Consequentemente,
substituir a visão tradicional da identidade étnica como algo estático por uma
concepção dinâmica significa que determinadas características consideradas
inerentes a um grupo étnico podem mudar ou perder sua significação no
decorrer da história do grupo. O que corrobora para o fim de visões essencialistas

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 95


nas quais grupos étnicos eram racializados e, por conseguinte, detentores de
determinadas características que seriam biologicamente inerentes a todos os
indivíduos desse grupo étnico.
Cultura e identidade são dois conceitos bastante articulados e variam
conforme a concepção epistemológica utilizada. Como foi dito anteriormente,
partimos da concepção de Barth para se compreender esta questão. Barth tem
como enfoque realizar uma análise a partir de níveis analíticos, o autor parte do
pressuposto – descrito anteriormente - de Max Weber (2009) acerca dos grupos
étnicos, ou seja, buscar analisar o que faz com que os sujeitos se percebam como
um grupo. Estes grupos não são estáticos no tempo, por isso é preciso analisar
os processos históricos que constituem os grupos étnicos, buscando, com isso,
analisar os símbolos e o processo de construção de sentido e pertencimento
étnico para os indivíduos. Abordaremos agora o conceito de etnicidade proposto
por Fredrik Barth.

4 ETNICIDADE

A concepção de etnicidade é utilizada para “descrever os processos de


organização das relações sociais e formas de atribuir categorias entre grupos
étnicos a partir de diferenças culturais presumidas como essenciais” (PUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 2011, p. 17), isto quer dizer, os símbolos culturais que
diferenciam os grupos étnicos. Portanto, a etnicidade é um elemento cultural
que surge por intermédio de significados compartilhados. Por conseguinte, ela é
produzida e ressignificada na interação social (JENKINS, 1997). O pesquisador que
aborda a etnicidade deve analisar como, por meio das mudanças sociais, políticas
e culturais de sua história, os grupos étnicos conseguem manter as fronteiras
que os distinguem dos outros. Portanto, a questão específica da etnicidade é
compreender os símbolos identitários que fundam a crença em uma origem
em comum de um grupo étnico, grupo este que compartilha um sentimento
de pertencimento. Consideramos etnicidade como os processos de “atribuição
categorial e de organização das relações sociais a partir de diferenças culturais
presumidas essenciais” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 17). O cerne do
pensamento barthiano é verificar a persistência dos grupos étnicos. Assim, neste
sentido, é pertinente compreender que “as fronteiras persistem apesar do fluxo
de pessoas que as atravessam” (BARTH, 2011, p. 188). Por conseguinte, não deve
ser pesquisada a diferença cultural entre os grupos por si, mas sim as fronteiras
existentes entre os grupos étnicos.
Para Barth a manutenção das fronteiras étnicas necessita da existência de
trocas entre grupos, isto significa que um grupo manter-se isolado não é o que vai
fazer com que seja mantida a identidade étnica, pois “as distinções étnicas não
dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao

96 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


contrário, frequentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados
os sistemas sociais englobantes” (BARTH, 2011, p. 188). Logo, diferenças
culturais podem permanecer apesar da existência de contatos interétnicos. Na
verdade, é justamente a existência da fronteira que vai fomentar a manutenção
e ressignificação das diferenciações étnicas e, com isso, articular símbolos que
evocam a etnicidade. Consequentemente, ao longo do tempo, as fronteiras
étnicas podem manter-se, reforçar-se ou desaparecer, visto que “a força de uma
fronteira étnica pode continuar constante através dos tempos, apesar de – e às
vezes mediante – transformações culturais internas ou mudanças na natureza
exata da própria fronteira” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011). Neste sentido,
a etnicidade é um processo construído a partir da interação entre grupos étnicos,
podendo inclusive a mesma desaparecer conforme o passar do tempo. Deste
modo, as etnicidades são construídas, não são inerentes aos grupos étnicos.
Neste sentido, a etnicidade também é um forte mecanismo de reconhecimento
coletivo e, ao mesmo tempo, um importante instrumento político utilizado para
buscar interesses, sejam dos indivíduos do grupo étnico, como também dos ditos
representantes dos mesmos.
Ao verificar a etnicidade de um grupo, deve-se compreender que alguns
traços culturais são utilizados pelos atores sociais como sinais e emblemas de
diferenças, outros são ignorados. Diante disso, não podemos prever, a partir de
princípios considerados pelos próprios pesquisadores como evidentes, quais
traços serão realçados e considerados relevantes, no que tange à sua identidade
étnica, pelos atores. Portanto, conforme o contexto histórico específico,
determinados traços vão ser importantes para a demarcação de fronteira étnica
e, em outros contextos, estes mesmos traços serão desconsiderados.
Barth apresentou pela primeira vez a sua interpretação do conceito de
etnicidade em seu trabalho de 1969 intitulado Ethnic Groups and Boundaries:
The Social Organization of Cultural Difference (BARTH, 2011). Posteriormente,
o autor revisitou o conceito (BARTH, 2003), acrescentando-lhe novos aspectos,
quando vier a ser utilizado numa pesquisa. Talvez o principal aspecto a ser
considerado é que, se em 1969 pensar a cultura como algo não fixo, mas sim
dinâmico, pudesse ser visto com desconfiança, atualmente, no debate das
ciências sociais, principalmente com o advento da virada linguística e ontológica,
teorias como a do construtivismo social fizeram com que a ideia da cultura como
algo não fixo, e sim uma construção social, fosse aceita e presente em trabalhos
nas ciências sociais. Neste sentido,

Em qualquer população que decidamos observar,


descobriremos que esta se encontra num fluxo, sendo
contraditória e incoerente, e que se encontra distribuída
de forma diferente por várias pessoas posicionadas de
diversas formas. Tais características advêm do modo como
a própria cultura é reproduzida (BARTH, 2003, p. 22).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 97


Assim sendo, Barth enfatiza que é necessário perguntar qual será a
diferença cultural que a etnicidade organiza, pois “quando observamos de perto
este fluxo da cultura nas pessoas, elas parecem divergir e misturar-se em vez
de reproduzirem as distinções necessárias para tornar permanentes identidades
contrastantes” (BARTH, 2003, p. 24). Como a cultura não é algo estático,
determinados elementos dela devem ser elencados e observados em um ator
social para poder verificar o funcionamento da cultura. Acerca disso, deve-se
salientar que Barth enfatiza que o foco da pesquisa da etnicidade deve ser na
fronteira e não no conteúdo cultural por si. Trata-se de

analisar processos de fronteira e não de enumerar a soma


dos conteúdos, como nas antiquadas listas de traços
característicos, pois localizar as bases destes processos
de fronteira não é identificar os limites de um grupo
e observar os seus marcadores e a perda de membros
(BARTH, 2003, p. 27).

Portanto Barth visa categorizar de forma analítica o conceito de etnicidade.


Neste sentido, o autor recomenda que seja organizada, para fins analíticos, a
abordagem sobre etnicidade separadamente em três níveis: micro, médio e
macro. Distinguindo-os apenas para que possam ser melhor compreendidas as
suas inter-relações, visto que essa divisão é meramente analítica e que as três
esferas encontram-se em interdependência.
O nível micro visa modelar os processos subjetivos que produzem a
experiência e a formação de identidades, aplicando-se este sobre as pessoas
e suas interações. O assim chamado nível micro busca verificar as experiências
resultantes da autovalorização e a aceitação ou rejeição de símbolos e relações
sociais, utilizando-se dos símbolos que formam a consciência que a pessoa tem
de sua identidade étnica. O nível médio visa termos uma ideia dos processos que
criam a comunidade e que mobilizam grupos para diversos propósitos através
de vários meios. Nesta esfera é que se desenvolve a articulação dos indivíduos
para com o coletivo do grupo étnico; no nível médio é que se pode perceber o
movimento dos grupos étnicos e suas fronteiras em ação.

Cada colectividade terá a sua dinâmica particular que surge


dos seus requisitos para a reprodução de grupos, para a
liderança e ideologia. Neste nível, os processos intervêm
para forçar e constranger a expressão e actividade das
pessoas no nível micro; são impostos pacotes negociais
ou escolhas binárias, e são formados muitos aspectos
das fronteiras e dicotomias da etnicidade. Muitas das
análises fazem apenas referências ad hoc a este nível
de contextos e constrangimentos, em vez de os modelar
sistematicamente, tendendo, portanto, a obscurecer os

98 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


pressupostos acerca da agência e da estrutura nos quais
essas análises e interpretações se baseiam (BARTH,
2003, p. 31).

Por fim, há o nível macro que visa compreender as políticas estatais, ou seja,
leis e burocracias que distribuem direitos e proibições de acordo com critérios
formais, mas também o uso da força do Estado. É no nível macro que devem
ser analisados os aspectos do nacionalismo e confronto com minorias étnicas
que “não são assimiladas”, visto que muitas vezes as ideias de nacionalismo
subjugam sutilmente algumas das etnicidades presentes em grupos imigrantes.
Há, neste nível, o interesse em analisar o processo de controle e a manipulação
da informação e do discurso públicos por parte dos Estados, assim como também
discursos globais de muitas organizações transnacionais como ONGs (BARTH,
2003). Feito esse panorama geral acerca do conceito de etnicidade, abordaremos
em seguida, mais especificamente, a Oktoberfest e como demarca fronteiras de
etnicidade teuto-brasileira.

5 OKTOBERFEST: DEMARCAÇÃO DE FRONTEIRAS ÉTNICAS

Ao analisar as festas étnicas, neste caso, as festas teuto-brasileiras chamadas


de Oktoberfest, pode-se verificar como a etnicidade se constrói de forma
processual e é manifestada a partir de uma concepção cultural turística que
privilegia determinados símbolos que visam apresentar os hábitos alimentares
e a sociabilidade festeira associada à tradição alemã local. A própria Oktoberfest
é uma manifestação da etnicidade nos três níveis descritos por Barth. Macro
é a articulação frente ao Estado nacional enquanto espaço de representação
de sua identidade, de forma essencializada; médio é a organização do grupo
étnico e a ressignificação de quais símbolos denotam a ideia de ser “imigrante”;
e micro, a própria articulação e subjetividade dos atores sociais. Usemos como
exemplo a primeira Oktoberfest de Blumenau que ocorreu em 1984, logo após
duas enchentes do rio Itajaí-açu (SEYFERTH, 2012). Acerca disso, foi produzido
o folheto Blumenau 150 anos: você faz parte desta história, divulgado em 2000,

No folheto é dito que o objetivo era criar uma nova opção de


lazer e reativar o turismo, mas, ao mesmo tempo, destaca
a atuação das bandas de música, dos grupos folclóricos
e outros itens que apelam à origem alemã da festa. Não
interessam as motivações da criação do Oktoberfest e os
lucros trazidos por seu sucesso. Ela tem sido objeto de
dissenso porque associa os descendentes de alemães à
“cultura do chope”, coisa censurada por algumas pessoas
preocupadas com o uso do consumo de cerveja como
marca identitária (SEYFERTH, 2012, p. 29).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 99


É interessante destacar a preocupação com a cultura do chope, visto que
é recorrente a constatação do peculiar costume de beber cerveja dos alemães.
Para Norbert Elias (1997), aquela cultura teve início no século XVII. O costume
de beber cerveja excessivamente seria decorrente de um elevado grau de
infelicidade decorrente dos constantes conflitos na região que viria a ser a
Alemanha. Outro fator importante era que o século XVII foi, para muitas regiões
da Europa, um período de grande desenvolvimento, mas não para (o que viria
a ser) a Alemanha, o que aumentava o nível de infelicidade. Portanto, entre os
itens identitários buscados para construir socialmente uma memória do passado
local, foi destacada e acentuada a existência das pequenas fábricas artesanais de
cerveja, que proliferaram até meados do século XX. As mesmas eram consideradas
como sendo algo inerente à etnia germânica, portanto deveriam ser exaltadas.
E, seguindo uma tendência mais geral, inclusive as fábricas artesanais de cerveja
existentes nas metrópoles (SEYFERTH, 2012) como marca de pertencimento da
etnicidade teuto-brasileira.
Neste sentido, deve-se considerar que a festa étnica, muitas vezes, busca
essencializar uma certa identidade do imigrante e seu descendente, embora a
mesma constitua-se como um instrumento de manutenção da cotidianidade da
etnicidade teuto-brasileira. Diante disso, os elementos que vão ser utilizados
para rememorar a festa étnica são construídos por agentes dos grupos. Podemos
ilustrar, como exemplo, as roupas típicas da Bavária, embora nem todos os teuto-
brasileiros, descendentes de imigrantes dessa região da Alemanha, utilizem a
roupa nas Oktoberfests. Essa vestimenta consiste, para os homens, na calça
knicker, isto é, uma espécie de bermuda com suspensórios juntos, normalmente
nas cores marrom, verde ou preto e uma camisa normalmente xadrez, meia longa,
sapato, além de um chapéu típico preto ou verde. Para as mulheres, vestidos –
longos ou curtos – com saias rodadas em cores fortes, meias longas, corpetes
e sapatos. Outros elementos, como as danças típicas, “bandinhas” alemãs e
esportes alemães como Eisstocksport, ganham bastante destaque. Estes traços
são tipificações da constituição de uma identidade étnica teuto-brasileira e com
isso, formulam o imaginário do que é ser descendente de imigrante alemão, em
uma forma unificada, desconsiderando diferenças regionais.
Portanto, certas características que denotam uma fronteira étnica, conforme
um determinado contexto histórico, são utilizadas para construir a etnicidade
dos grupos étnicos, os símbolos variando conforme o contexto. A festa étnica
é o momento de apresentar – de forma exagerada – quais são os símbolos que
estão sendo resgatados para demonstrar a fronteira da diferenciação de ser
teuto-brasileiro com a identidade essencializada do “brasileiro”, e que fazem
com que os teuto-brasileiros sejam diferentes da população geral. As festas
étnicas tornam-se uma manifestação de sua tradição expressa, muitas vezes
essencializada, para reimaginar, de forma épica, como era a sua vida cotidiana
no início do processo de colonização.

100 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A etnicidade teuto-brasileira, manifestada nas festas Oktoberfest, não
representa toda a germanidade. Na verdade, conforme a teoria de Barth visa
demonstrar, foram determinadas características que são utilizadas para demarcar
uma fronteira de diferenciação com a cultura nacional brasileira para, com isso,
caracterizar o que é ser (descendente de) imigrante alemão no Brasil.
Por conseguinte, as festas étnicas dos descendentes de imigrantes, como
neste caso a dos alemães nas Oktoberfest, são ressignificações do início da
colonização, reimaginadas em um contexto histórico específico, e isto constitui
fronteiras étnicas. Um exemplo desta questão está presente no caso que
destacamos anteriormente acerca das vestimentas “típicas” da Oktoberfest: há,
nestas representações, um estereótipo dos bávaros, mais especificamente as
roupas “típicas” da Bavária. Deve ser lembrado que

certas qualificações de natureza étnica são impostas de


fora, pelos outros, no contexto das relações interétnicas e,
nesse caso, hábitos alimentares servem para diferenciar.
A figura simbólica da Oktoberfest – o casal vestido com
roupas bávaras que circula durante os festejos – e todo o
conjunto de danças e brincadeiras articuladas ao consumo
de cerveja, contribuem para criar uma imagem de gente
divertida (SEYFERTH, 2012, p. 29).

Isto é, até mesmo descendentes de imigrantes alemães, que não vieram


da Bavária, utilizam tais roupas, mesmo que elas não representem os seus
descendentes. Por fim, similares festas Oktoberfest foram surgindo, inicialmente
no Sul do país, nas regiões de colônias e depois nas metrópoles, e se espalharam
para outras regiões do país; tais festas étnicas dizem alguma coisa sobre a tradição
construída e ressignificada pelos imigrantes alemães e seus descendentes
(SEYFERTH, 2012).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo visou discutir a reprodução da etnicidade teuto-brasileira nas
festas Oktoberfest. Para isso, fez um levantamento inicial acerca dos conceitos
de grupos étnicos e, com isso, apresentar uma visão da cultura como algo não
fixo e estático, mas em um fluxo de movimento sendo ressignificada conforme
um contexto específico. Neste sentido, relatamos que as identidades dos grupos
étnicos não são elementos dados e acabados, mas, sim, que são construções
históricas e que podem vir a desaparecer. Certos símbolos são utilizados pelos
indivíduos de um grupo étnico para demarcar as fronteiras de diferenciações
com outros grupos.
Utilizamos o conceito de etnicidade formulado por Fredrik Barth com o
propósito de descrever a questão proposta no artigo. O autor enfatiza que
se deve dar uma ênfase maior no aspecto das fronteiras. Neste sentido,

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 101


buscamos demonstrar que uma festa étnica, embora à primeira vista possa
se pensar que seja uma representação estática e essencialista da tradição
dos imigrantes, contém símbolos que visam, de forma processual, construir
quais elementos serão demarcadores de fronteira e serão utilizados para
classificar e ressignificar o que é ser teuto-brasileiro. Neste caso, o consumo
e produção de cerveja em pequenas cervejarias e o uso de roupas bávaras
como representantes da germanidade teuto-brasileira. De igual modo,
o hábito de festas, cerveja, alegria e o trabalho árduo, seriam símbolos
caracterizadores que denotam o que é – supostamente – ser (descendente
de) imigrante alemão no Brasil. Estes símbolos de pertencimento do que é
ser teuto-brasileiro se diferenciam – da visão essencializada – do que é a
figura do outro, neste caso, a imagem dos “brasileiros”.

Notas
1
Mesmo sem jamais ter emigrado.

Referências

ALLOATI, M. N. Configuração da identidade(s) brasileira(s). Disputa e negociações nos


processos de identificação de imigrantes brasileiros na cidade de Los Angeles, EUA.
Cadernos OBMigra, Brasília, v.1, n.3, p. 202-224, 2015.

BARTH, Fredrik. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, P. e STREIFF-FENART, J.


Teorias da etnicidade. São Paulo, Unesp, 2011.

______. Temáticas permanentes e emergentes na análise da etnicidade. IN: Org.


VERMEULEN, H.; GOVERS, C. (Orgs.) Antropologia da etnicidade. Para além de “Ethnic
Groups and Boundaries”. Lisboa: Fim de século, 2003.

______. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro, Contracapa,


2000.

BAUMAN, Z.; MAY, T. Aprendendo a pensar com a Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 2010.

BENSÁ, A. Resistências e Inovações Culturais Kanak: A Área Costumeira do Centro Cultural


Tjibaou (Nova Caledônia). Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 12, 1996. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg12-4.pdBrah>. Acesso em
26/12/2017.

BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 2013.

BOCCARA, G. Etnogénesis mapuche: resistencia y restructuración entre los indígenas


del centro-sur de Chile (siglos XVI-XVIII). Hispanic American Historical Review,
Durham, v.79, 1999. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/article/12303>. Acesso em
26/12/2017.

102 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro, Zahar, 1997.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro,


LTC, 2013.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2006.

JENKINS, R. Rethinking ethnicity: arguments and explorations. Londres, Sage Publications,


1997.

MEAD, G. H. Mind, Self & Society: from the Standpoint of a Social Behaviorist. Chicago,
University of Chicago Press, 1967.

MONSMA, K. M. A reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes no oeste


paulista, 1880-1914. São Carlos, EDUFSCar, 2016.

______. Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município do


interior paulista, 1888-1914. Notas de pesquisa. História Unisinos, São Leopoldo, v. 11,
n.1, p. 111-116, 2007.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo, Unesp, 2011.

SEYFERTH, G. Memória coletiva, identidade e colonização: representações da diferença


cultural no Sul do Brasil. MÉTIS: história & cultura. v.11, n.22, p. 13-39, jul-dez, 2012.

______. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.53, p.
117-149, mar-mai, 2002.

WEBER, M. Economia e sociedade: Volume 1. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2009.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 103


RESUMO
Este artigo visa descrever a reprodução da identidade dos imigrantes em suas respectivas
festas étnicas, enfatizando a população teuto-brasileira e as Oktoberfest que ocorrem no
Brasil. A pesquisa foi realizada a partir do uso das metodologias de observação sistemática e
entrevistas semiestruturadas, dialogamos com os conceitos de grupos étnicos, proposto por
Max Weber, e etnicidade, segundo Fredrik Barth, para compreender o caso das festas alemãs.
Como resultados, analisamos que uma festa étnica, à primeira vista, possa se pensar que seja
uma representação estática e essencialista da tradição dos imigrantes, na verdade, contém
símbolos que visam, de forma processual, construir quais elementos serão demarcadores de
fronteira de diferenciação étnica e que serão utilizados para classificar e ressignificar o que é
ser teuto-brasileiro.

Palavras-chave: Etnicidade; Teuto-brasileiros; Oktoberfest.

ABSTRACT
This paper aims to describe about the reproduction of the immigrants’ identity in their
respective ethnic festivals, in the case of this essay, we emphasize the German-Brazilians and
the Oktoberfest that take place in South of Brazil. The research methodologies were systematic
observation and semi-structured interviews, we discuss with the concepts of ethnic groups,
writing by Max Weber, and ethnicity, by Fredrik Barth, to understand the German immigrants
in Brazil case. As results we analyze that in an ethnic party, at first sight it can be thought that
it is a static and essentialist representation of the immigrant tradition, but in fact it contains
symbols that aim, in a procedural way, to construct which elements will be demarcating the
border of ethnic differentiation and will be used to classify and reframe what it means to be
German-Brazilian.

Keywords: Ethnicity; German-Brazilians; Oktoberfest.

104 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Trocas culturais: universidade e
pessoas refugiadas

Rebeca Haddad
Guilherme dal Secco
Silvia Regina Viodres Inoue
Denise Martin

Este texto se inspira no desejo de compreender como é a inserção de


pessoas refugiadas em universidades brasileiras. Considerando que a vida
acadêmica dos estudantes não se limita ao acesso aos conteúdos disciplinares
da profissão escolhida, buscamos nos aproximar do que acontece no ambiente
universitário. O espaço físico, os professores, os colegas de classe, os
funcionários, a cantina, entre outros, apresentam possibilidades de inserção
ou não de pessoas refugiadas.
O governo brasileiro reconheceu, até o início de 2020, 43 mil pessoas
refugiadas, 88% de nacionalidade venezuelana (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E
SEGURANÇA PÚBLICA, 2020). O país ocupa atualmente a sexta posição global e
a terceira nas Américas em solicitações de refúgio (DELFIM, 2020). Uma forma
de integração dessas pessoas, no Brasil, se dá por meio da inserção universitária.
As Políticas de Ações Afirmativas (PAA) têm um papel importante na
democratização do acesso ao ensino superior (MOEHLECKE, 2002). A ideia
central de uma PAA é a extensão da igualdade de oportunidades a todos, bem
como de ações voltadas à neutralização da discriminação em relação às minorias
étnicas, raciais e de gênero (LUZ et al. 2019). Um exemplo é a Lei de Cotas (Lei
12.711/2012) e a instituição do Programa Universidade para Todos (PROUNI – Lei
11.096/2005) que também viabilizam o acesso.
À vista disso, as propostas de ações que valorizam a diversidade cultural
e buscam reduzir a desigualdade, que atinge certos grupos, são fundamentais
para a prevenção de visões preconceituosas e práticas discriminatórias
(MOEHLECKE, 2002).
O acesso de pessoas refugiadas às Instituições de Ensino Superior (IES) no
Brasil se tornou possível a partir da implementação da Cátedra Sérgio Vieira de
Mello (CSVM) que, além de garantir a existência de vagas para pessoas refugiadas,
difunde a iniciativa de promover educação, pesquisa e extensão dentro dessa
temática e contribui com a formação acadêmica e capacitação de professores e
estudantes. No território nacional, até agosto de 2020, integravam a rede 23 IES,
visando a garantia de direitos e a permanência dessa população no ambiente
acadêmico (ACNUR, 2020).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 105


Dentre as atividades realizadas pelas IES dessa rede, destaca-se a
expansão no número de iniciativas voltadas à inclusão de pessoas refugiadas
e solicitantes de refúgio nos ambientes universitários (CSVM, Relatório Anual,
2020). Além do vestibular diferenciado (com especificações próprias a cada
IES), há implementação de políticas de ingresso e permanência nas Instituições
de Ensino Superior, desde bolsas de estudos a auxílio financeiro, atividades de
ensino da Língua Portuguesa, serviços de assistência jurídica e saúde (CSVM,
Relatório Anual, 2020).
Há poucos estudos nacionais que priorizam o tema de pessoas refugiadas
em universidades. Na base Scielo, quatro pertencem à área do Direito, nos
quais são abordadas questões referentes à relevância da pesquisa acadêmica
na área do refúgio e o papel da CSVM nesse contexto (FRIEDRICH, HIROSE,
CRUZ, 2019; BERNARTT, PASSOS, 2020; OLIVEIRA, BRASIL, 2021), bem como
aspectos relacionados ao direito internacional e status jurídico de estudantes
em situação de refúgio (FRIEDRICH, GEDIEL, 2014). Outros dois pertencem à
área de Letras: abordam a relação do acolhimento linguístico e hospitalidade
com a permanência de pessoas refugiadas na universidade (DA ROSA, 2018;
RODRIGUES, 2021). Por fim, o último se refere à área de Relações Internacionais
cujo conteúdo aborda dispositivos legais, jurídicos e culturais para a abertura das
universidades brasileiras a pessoas refugiadas (GÓMEZ, 2019).
Além desses estudos, a Universidade Federal do Paraná publicou um livro,
em parceria com o ACNUR, no qual são evidenciadas práticas que contribuem
para a permanência dos estudantes imigrantes da universidade, bem como
destacam a importância de a universidade consolidar uma política institucional
transversal ao pensar sobre as ações com esta população (GEDIEL, FRIEDRICH;
2021). É também importante estudar como ocorre a inserção desses estudantes
no contexto universitário.
O presente relato de experiência apresenta um projeto desenvolvido em
uma universidade comunitária1 conveniada à Cátedra Sérgio Vieira de Mello,
localizada na região Sudeste do Brasil. A Instituição oferece anualmente um
vestibular específico para pessoas em situação de refúgio2. Os candidatos
podem escolher a língua em que desejam fazer a prova e são oferecidas três
bolsas de estudo integrais. No período de 2012 a 2020, foram aprovados
52 alunos no vestibular, 16 ingressaram na universidade e, em 2020, dois
estudantes estavam matriculados. Ainda que tenham ocorrido interesse e
acesso de pessoas refugiadas à universidade, a sua permanência tem sido
um desafio. Houve seis desistências ao longo desse processo. Observamos
que, apesar da garantia da bolsa de estudos, havia dificuldades com o grau de
proficiência da Língua Portuguesa, barreiras culturais, de ordem econômica,
dificuldade de integração com a comunidade acadêmica, de adaptação à
organização da universidade e dificuldades estruturais como depender da
internet e computadores da universidade3.

106 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Neste contexto, buscamos refletir não só sobre os problemas já observados,
mas também sobre os desafios, oportunidades e estratégias da inserção de
pessoas refugiadas em uma universidade. Nosso questionamento principal era:
como se dá a relação de estudantes em situação de refúgio e a comunidade
acadêmica? A equipe do projeto é composta por dois estudantes de Psicologia4 e
supervisionada por duas professoras, uma com formação em Psicologia, e outra,
em Antropologia.
O objetivo do Projeto “Trocas Culturais: Universidade e pessoas refugiadas”
é aprender e trocar experiências sobre o Brasil e o país de origem do estudante.
Desta forma, procuramos compreender a inserção acadêmica e aprofundar
o conhecimento sobre nossos discentes em situação de refúgio através do
processo de “trocas culturais”. Segundo Brito e Dantas (2017), uma das formas
de se compreender um indivíduo é de se embasar no grupo cultural ao qual
ele pertence. A proposta de trocas culturais nos permite esse contato, além
de favorecer uma forma de integrar a sua cultura nesse novo contexto (BRITO,
DANTAS, 2017, p. 269). 
Consideramos que, na experiência das trocas, todos os envolvidos
precisavam aprender algo. Estudantes brasileiros precisavam aprender
sobre estudantes em situação de refúgio e vice-versa. O processo envolvia
necessariamente ensinar e aprender.
Para uma aproximação com os estudantes com status de refugiados na
universidade, foi realizado um treinamento anterior dos discentes de IC (Iniciação
Científica) sobre o tema do refúgio. Foi realizada uma revisão de literatura nas
áreas de Direito, Relações Internacionais, Psicologia e Saúde Coletiva. Buscamos
também uma aproximação com os demais membros da instituição. Foram
realizadas conversas com coordenadores de curso, diretores, professores e
pessoal administrativo. Constatamos que, para parte desses contatados, havia
desconhecimento sobre alunos em situação de refúgio5. Alguns professores e
funcionários não sabiam da existência destes alunos ou mesmo do vestibular
específico para eles. As especificidades desses estudantes eram mais conhecidas
nos cursos com alunos ingressantes via vestibular para refugiados.
O Projeto Trocas Culturais incluiu atividades, dentro e fora do âmbito
universitário, entre os participantes (estudantes de iniciação científica e
estudantes em situação de refúgio). Os primeiros contatos com alunos
refugiados, realizados pelos alunos de IC, ocorreram no início de 2018.
Uma primeira abordagem foi realizada com um egresso, de nacionalidade
colombiana, com idade entre 20 e 30 anos6, que havia chegado ao Brasil
em 2013. O egresso relatou uma experiência positiva na graduação na
universidade, trabalhava à noite e estava empregado na área em que havia
concluído a graduação. Chamou-nos a atenção o seu desconhecimento dos
serviços de extensão oferecidos pela instituição (psicologia, enfermagem,
farmácia, direito, entre outros). Além disso, ressaltou as diferenças entre os
refugiados, muitas vezes invisibilizadas pelo status legal:

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 107


“é muito fácil as pessoas enxergarem refugiados como
iguais, mas que as diferenças culturais determinam o quão
difícil será essa adaptação e que cada refugiado enfrenta
um desafio único” (ex-aluno).

Esta colocação provocou a equipe sobre a incapacidade que algumas


pessoas têm de compreender o mundo do outro e os seus significados. Pensar
na pessoa protegida como uma vítima, alguém sem espaço e sem voz ou incapaz
de realizar qualquer mudança sozinho, nos fez refletir sobre os estereótipos
relacionados a estas pessoas. Segundo Martin, Goldberg e Silveira (2018), a
cultura, definida geralmente de uma maneira superficial e estereotipada, é
imediatamente implicada nas explicações, justificativas e sentimentos em
relação a essas pessoas. 
As trocas foram realizadas no período de 2018 a 2021 e envolveram dois
alunos: um, de um curso de Ciências Sociais Aplicadas, e outra do curso da área
de Saúde. Foram três encontros formais7 com o discente Paulo (nome fictício,
República Democrática do Congo, residente no Brasil desde 2015). Ele era uma
pessoa bastante ativa na Universidade e havia participado de alguns projetos
promovidos pela Cátedra. Paulo ressaltava que muitas instituições de apoio às
pessoas em situação de refúgio possuem uma visão e abordagem assistencialista
ou de “caridade”. Relatou, assim como o ex-aluno, a dificuldade de ser tratado
como um indivíduo com demandas específicas.  
Pussetti (2017) chama a atenção para o fato de que é preciso olhar para o
contexto migratório, a história do migrante e as condições sociais e políticas a que
estão submetidos no país de acolhida. Para esta autora, a leitura patologizante
dos processos migratórios despolitiza as pessoas, conformando-as como vítimas,
em lugar de reconhecê-las como sujeitos ativos e de direitos civis.    
O primeiro encontro com Paulo ocorreu na Universidade, com a proposta
de apresentar o projeto e conhecer as expectativas dos estudantes, os de
nacionalidade brasileira e aqueles em situação de refúgio. O segundo, proposto
pelos alunos de IC, foi realizado no Serviço Social do Comércio (SESC), quando
visitamos a exposição “PretAtitude”, com o objetivo de discutir a influência da
cultura africana no Brasil e assuntos relacionados, como o racismo. O terceiro
e último encontro ocorreu em São Paulo, promovido por Paulo. O objetivo foi
conhecer o local onde vivia o estudante, a gastronomia congolesa e os locais
frequentados por migrantes no centro de São Paulo. Estes encontros promoveram,
por parte dos alunos de IC, uma aproximação sobre as dificuldades cotidianas
vividas, seja pelo deslocamento diário de São Paulo à universidade, localizada
em outro município8 ou pela identificação do racismo no Brasil, já relatados em
estudos (HAYDU et al, 2018, BRANCO, 2018).
A possibilidade de conhecer o centro de São Paulo, no olhar de um congolês,
foi uma experiência rica e diversa. O convite de Paulo incluiu uma visita ao
apartamento em que reside, onde ele ofereceu café e comida, uma visita à

108 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Missão Paz9, almoço em um restaurante congolês (acompanhado de trocas
culinárias e conversas com Mama Jolie, dona do restaurante), visita à região
central, ao comércio, aos cabeleireiros, visita a um restaurante senegalês, à Praça
da República e à Biblioteca Mário de Andrade. Enfim, foram apresentados locais
que muitos migrantes frequentam.
Com o início da pandemia em 2020, apesar de repetidas tentativas, não
conseguimos mais contato com Paulo; a coordenação do curso também buscou
contatá-lo, sem obter êxito. Paulo havia relatado não dispor de computador
pessoal e, no final de 2020, apesar de não ter frequentado as aulas no primeiro
e segundo semestres, entrou em contato com a Universidade e sua matrícula foi
efetuada para retomar os estudos em 2021.
Com a adesão de Heloísa a esta pesquisa, em 2020, iniciamos um novo
momento de trocas culturais. A aluna, de origem ganense, com idade entre 35
e 45 anos, vive em Guarulhos com seu marido, enquanto seus filhos continuam
em Gana. Está matriculada em um curso da área de saúde e, além da língua local
ganense, comunica-se bem em Inglês. O contato com essa estudante se deu por
meio do relato de um de seus professores, o qual mencionou a dificuldade que
a aluna apresentava em se comunicar em Português, resultando em prejuízo na
compreensão do conteúdo abordado nas aulas.
Dessa forma, a aluna de IC entrou em contato com Heloísa e dois encontros
ocorreram no laboratório de informática da universidade, com a proposta de
que a discente a auxiliasse com o Português e que Heloísa a auxiliasse com o
Inglês. Os encontros presenciais foram interrompidos com o início da pandemia
da COVID-19, quando as aulas foram transferidas para o ensino remoto.
Durante o período em que a pandemia impôs o distanciamento social, a
acadêmica de IC continuou a se comunicar com Heloísa, o que permitiu auxiliá-
la a compreender o sistema virtual da universidade (Moodle) para acesso às
aulas e demais atividades on-line. Heloísa tinha acesso ao portal da Universidade
apenas pelo aparelho celular. Após alguns meses, Heloísa conseguiu um
notebook emprestado para realizar as aulas e, assim, houve um avanço na
melhor qualidade de seu aprendizado. Além do desafio material, Heloísa colocou
constantemente a dificuldade em traduzir os trabalhos para o Português; alguns
de seus professores aceitavam recebê-los em Inglês e outros não. Para ela, a
maior dificuldade está no domínio da Língua Portuguesa, confirmando o que diz
a literatura disponível sobre o assunto (MARTINS, 2020; BULIK, COLUCCI, 2019;
MEDEIROS, COURY, 2019).
Com a mediação da coordenadora do curso de Tradução e de Letras da
universidade, foi possível iniciar a realização de encontros com Heloísa para
ensino do Português. Mesmo com as dificuldades do ensino remoto, três alunos
(dois do curso de Letras e um do curso de Tradução) se dispuseram a auxiliá-
la. Antes do início dos encontros para o ensino do idioma, eles receberam um
treinamento com conteúdo sobre refúgio e a relevância da integração cultural

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 109


e saberes. Assim, os alunos voluntários formularam aulas de Língua Portuguesa,
as quais foram apresentadas aos acadêmicos de IC e passaram a ocorrer
semanalmente desde abril de 2021.
A aluna ainda relata dificuldades na comunicação com professores: embora
as aulas ocorram em Português, alguns tiveram a iniciativa de conversar em
Inglês com a aluna, enquanto outros não. A realização das provas também é
um desafio, devido ao acesso aos conteúdos: traduzir era difícil para os alunos
que realizavam as trocas, pois não dominavam o conteúdo específico do curso.
A integração com os colegas de classe se tornou um obstáculo adicional, pois
as aulas presenciais por cerca de um mês não oportunizaram a convivência
necessária para isso, devido ao isolamento imposto pela pandemia.
A constituição desse grupo de ensino do idioma deixou Heloisa muito feliz
e ansiosa para iniciar as atividades, pois mencionou estar pensando em desistir
do curso devido às dificuldades enfrentadas. Durante os encontros, além da
gramática, os alunos de tradução e letras abordaram temáticas solicitadas por
Heloísa, como história da saúde no Brasil, pandemia e atuação dos profissionais
da saúde. A cada encontro, Heloísa se desafiava a falar em Português e comentava
diferenças culturais entre Gana e o Brasil. Os encontros também oportunizaram
aos alunos o conhecimento sobre outro país e formas de organização de
diferentes instituições, como universidades.
A educação é um campo importante para o processo de integração. Durante
os encontros com os estudantes em situação de refúgio, constatamos a barreira
linguística e o desconhecimento dos serviços de extensão da universidade e
dificuldade em integrar-se com os colegas de classe. A literatura evidencia que
estas dificuldades, relatadas pelos alunos participantes desta pesquisa, são
recorrentes. Silva-Ferreira et al. (2019) mostram que a ausência de informações
reais sobre o contexto institucional, cultural e social do país de acolhida pode
ser fator intensificador do choque cultural sofrido pelo estudante, o que, em
consequência, torna-se mais uma barreira para o processo de integração.
As propostas de ir até os estudantes inscritos do vestibular para refugiados e
a realização dos encontros para o estudo da Língua Portuguesa são ferramentas
que podem auxiliar durante o processo de inserção na comunidade acadêmica
(SILVA, 2019; FRIEDRICH, GEDIEL, 2021).
Outro aspecto evidenciado é o protagonismo dos estudantes refugiados.
Desde o início, o intuito desses encontros seria aprender e ensinar
mutuamente. É possível perceber que os alunos em situação de refúgio
podem enriquecer as discussões nos espaços acadêmicos ao trazerem novas
perspectivas sobre a área do conhecimento em que estudam (BERTOLDO,
2019) e sobre a própria migração.
Para a universidade ser um ambiente favorável à inserção de pessoas
refugiadas, é importante que as ações realizadas contribuam para a elaboração de
uma política institucional transversal, visando alcançar a visibilidade dos membros

110 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


da comunidade acadêmica (docentes, discentes e demais funcionários). Durante
os encontros, surgiram demandas que nos fizeram dialogar com a comunidade
acadêmica: necessidade de ensino do Português e busca por serviços de extensão
da universidade. Nesse momento, foi possível perceber o desconhecimento dos
docentes em relação à presença de estudantes refugiados na universidade e a
falta de familiaridade com a temática do refúgio. Assim, pode-se compreender
que as trocas com a instituição de ensino e estratégias de institucionalizar as
práticas desenvolvidas neste projeto contribuirão com o desenvolvimento da
integração no ambiente universitário.
Em relação à equipe, a experiência de trocas proporcionou o aprofundamento
dos conceitos e teorias estudadas, bem como a interlocução com as situações
vivenciadas nas trocas, como interculturalidade, crítica à razão humanitária,
estereótipos sobre pessoas refugiadas, sofrimentos diversos, associação com
sujeitos vulneráveis, vitimizados e passivos, entre outras (MENÉNDEZ,2016,
FASSIN, 2012, HAYDU et al., 2020).
As trocas de experiências e cosmovisões, ocorridas durante os encontros
com Paulo e Heloísa, permitiram o exercício do relativismo cultural. De acordo
com Duarte (2003), relativizar o olhar em relação a diferentes culturas permite
“nos dar conta, de um modo respeitoso, da existência de outras fórmulas, das
outras alternativas, que se antepõem aos nossos passos de intervenção neste
mundo.” Assim, vivenciar e ouvir especificidades de uma cultura diferente foi
uma oportunidade para desconstruir o olhar etnocêntrico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os problemas identificados neste projeto, na inserção de pessoas refugiadas


na universidade, em parte são semelhantes aos de estudantes cotistas em
universidades brasileiras. Basso Poleto et al. (2020), em revisão de literatura,
mostram os obstáculos em relação à permanência, falta de condições materiais
para acompanhar um curso acadêmico, transporte, entre outros. Segundo os
autores, as ações afirmativas no ensino superior precisam ser pensadas em
termos de acesso, oportunidades, acompanhamentos e resultados.
Com base nas experiências relatadas, destacamos alguns desafios que
permeiam a relação dos estudantes em situação de refúgio com a comunidade
acadêmica, como a barreira linguística, adaptação ao sistema educacional
da universidade e a falta de políticas institucionais transversais. As trocas de
experiências e diálogos permitiram a construção de novos saberes, a inserção e
integração dos alunos.
A pesquisa também nos trouxe a reflexão sobre políticas e ações que
podem ser implementadas na Universidade de modo que acolham as
necessidades desses alunos.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 111


Esta experiência favoreceu o exercício do pensamento crítico com relação
às ações da universidade e com a desconstrução de estereótipos em relação às
pessoas refugiadas. Esperamos contribuir para que estas experiências inspirem
práticas criativas e inovadoras para a inserção dessas pessoas no ambiente
universitário e formação no ensino superior.

Notas
1
Universidades comunitárias são instituições públicas não estatais, prestadoras de serviços
públicos, de interesse coletivo, sem fins lucrativos. <https://www.abruc.org.br/view/assets/
uploads/artigos/abruc/12.pdf acesso em 10/09/2021>.
2
O vestibular é regulamentado por edital e realiza uma seleção diferenciada com isenção do
pagamento de taxa de inscrição, possibilidade de ter a escolaridade atestada pelo CONARE,
vinculado ao Ministério da Justiça ou pelo ACNUR, prova contendo questões objetivas e
redação.
3
Estas observações são resultado do trabalho com docentes e discentes no âmbito das
atividades da CSVM. Além disso, a universidade tem buscado responder com ações
envolvendo diferentes âmbitos institucionais.
4
Bolsistas de Iniciação Científica – PIBIC – períodos: 2018 – 2021
5
A CSVM fez 2 eventos no Dia do Refugiado, focando principalmente o público interno da
universidade. Nos vestibulares de 2019 e 2020, a equipe esteve presente, no dia do vestibular
e no da matrícula, para receber os estudantes, dar orientações gerais e iniciar contatos.
6
Optou-se por utilizar a idade aproximada para proteger as pessoas em situação de refúgio de
eventuais identificações.
7
A equipe das trocas encontrava o aluno em outras oportunidades, nos espaços da
universidade.
8
Os dois estudantes que participaram das trocas moram em São Paulo.
9
A Missão Paz é uma organização gerida por religiosos scalabrinianos, na região central de São
Paulo, que oferece moradia provisória coletiva e serviços a migrantes e imigrantes. <http://
www.missaonspaz.org/conteudo/historia>.

REFERÊNCIAS

ACNUR E CSVM. Relatório Anual Cátedra Sérgio Vieira de Mello. 2020. Disponível em:
https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2020/11/Relatorio-ANUAL-
CSVM-2020-V2.pdf. Acesso em: 20 de junho de 2021.

ACNUR. Perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil: subsídios para elaboração


de políticas. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/
uploads/2019/05/Resumo-Executivo-Versa%CC%83o-Online.pdf>. Acesso em: 20 de
junho de 2021.

112 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


BASSO-POLETTO, D., EFROM, C., RODRIGUES, M.B., 2020. Ações Afirmativas no Ensino
Superior: revisão quantitativa e qualitativa de literatura. Revista Electrónica Educare 24,
1–24.. doi:10.15359/ree.24-1.16

BERNARTT, M. L.; PASSOS, A. A. Direitos Humanos, Refúgio e Universidade: Uma análise da


Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM). Revista Atos de Pesquisa em Educação - FURB,
v.15, n.2, p.366-383, junho. 2020. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.7867/1809-
0354.2020v15n2p366-383>. Acesso em: 20 de junho 2021

BRANCO, P. A.  O refúgio do trauma. Notas etnográficas sobre trauma, racismo e


temporalidades do sofrimento em um serviço de saúde mental para refugiados.
REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, 2018; 26(53), 79-97.

BRITO, C., DANTAS, S. Narrativas e identidades que se cruzam: Haitianos e brasileiros em


São Paulo. In: CARMEN, L. Migrações internacionais: abordagens de direitos humanos.
Brasília: CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios, 2017, p. 267 - 288.

DA ROSA, M. Seleção e ingresso de estudantes refugiados no ensino superior brasileiro: a


inserção linguística como condição de hospitalidade. Trabalhos em linguística aplicada,
Campinas, SP, v. 57, n. 3, p. 1534–1551, 2018. Disponível em: <https://periodicos.sbu.
unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8651687>. Acesso em: 20 jun. 2021.

DELFIM, R. B. Relatório do ACNUR evidencia situação de limbo internacional da Venezuela


quanto a refúgio. 2020. Disponível em: <https://migramundo.com/relatorio-do-acnur-
evidencia-situacao-de-limbo-internacional-da-venezuela-quanto-a-refugio/>. Acesso em
26 de maio de 2021.

FASSIN. D. O sentido da saúde: antropologia das políticas da vida. In: Saillant, F., Genest, S.
Antropologia médica: ancoragens locais, desafios globais. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2012.

FRIEDRICH, T. S.; HIROSE, C. T.; CRUZ, T. V. Programa de política migratória e universidade


brasileira: A hospitalidade e o encontro com o outro para a integração e permanência
por meio da extensão universitária. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/
handle/123456789/199229>. Acesso em: 20 de junho 2021

GEDIEL, J. A. P.; FRIEDRICH, T. S. Movimentos, memórias e refúgio: Ensaios sobre as boas


práticas da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ACNUR) na Universidade Federal do Paraná.
Curitiba: In. Verso, 310 p. 2020

GEDIEL, J. A. P.; FRIEDRICH, T. S. Refúgio, Migrações e Hospitalidade: Lições jurídicas e


experiência em projeto de pesquisa e extensão na Universidade Federal do Paraná.
Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, volume especial, p. 229-244. 2014.
Disponível em:. Acesso em: 20 de junho 2021

GÓMEZ, M. V. Ações da Universidade Brasileira para abrir a educação a pessoas em situação


de refúgio. Cadernos CERU, v. 30, n. 1, junho. 2019. Disponível em: https://www.
revistas.usp.br/ceru/article/view/158706/153705 Acesso em: 20 de junho 2021.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 113


HAYDU, M.; INOUE, S. V.; SILVEIRA, C.; MARTIN, D. Therapeutic itineraries of Congolese
refugees in the city of São Paulo. Global Public Health, v. 15, n. 6, p. 840-851, 2019.

MENÉNDEZ, E. L. Salud intercultural: propuestas, acciones y fracasos. Ciênc. saúde coletiva


2016;   21(1): 109-118.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. 43 mil pessoas vivem no Brasil


reconhecidas como refugiadas. Publicado em 09/06/2020. Disponível em <https://
www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/43-mil-pessoas-vivem-no-brasil-reconhecidas-
como-refugiadas>. Acesso em 26 de maio de 2021.

MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e Debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa,


n. 117, p. 197-217, novembro, 2002. Disponível em: <http://publicacoes.fcc.org.br/
index.php/cp/article/view/550/551>. Acesso em: agosto 2021

OLIVEIRA, W. C. C. A.; BRASIL, D. R. O papel da Academia na integração social dos refugiados


venezuelanos: uma proposta de articulação para a Universidade de Itaúna-MG. Revista
Argumentum, Marília, v. 22, n . 135-161. 2021. Disponível em: <http://201.62.80.75/
index.php/revistaargumentum/article/view/1389>. Acesso em: 20 de junho 2021.

RODRIGUES, C. V. “Sou um corpo estranho no conjunto”: Narrativas de um estudante negro


migrante em uma universidade brasileira. Trabalhos em linguística aplicada , 2021, v.
60, n. 1, pp. 114-125. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/01031813825511220201
031>. Acesso em 20 de junho de 2021.

SILVA, Alisson Vinicius. Imigração e saúde mental: Narrativas de Estudantes Latino-


Americanos em uma Universidade Intercultural. Dissertação (mestrado), Universidade
Federal de Santa Catarina. Programa de pós-graduação em Psicologia. 203 P. 2019.
Disponível em: <https://portal.unila.edu.br/prae/arquivos/Imigraoesademental_
narrativasdeestudanteslatinoamericanosemumauniversidadeintercultural1.pdf> . Acesso
em: set 2021

114 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


RESUMO
Este texto se inspira no desejo de compreender como é a inserção de pessoas refugiadas em
universidades brasileiras. Considerando que a vida acadêmica dos estudantes não se limita
ao acesso aos conteúdos disciplinares da profissão escolhida, buscamos nos aproximar do
que acontece no ambiente universitário. O espaço físico, os professores, os colegas de classe,
os funcionários, a cantina, entre outros, apresentam possibilidades de inserção ou não de
pessoas refugiadas. O presente relato de experiência apresenta um projeto desenvolvido
em uma universidade comunitária conveniada à Cátedra Sérgio Vieira de Mello, localizada
na região Sudeste do Brasil. A Instituição oferece anualmente um vestibular específico para
pessoas em situação de refúgio. Os candidatos podem escolher a língua em que desejam fazer
a prova e são oferecidas três bolsas de estudo integrais. No período de 2012 a 2020, foram
aprovados 52 alunos no vestibular, 16 ingressaram na universidade e, em 2020, dois estudantes
estavam matriculados. Ainda que tenham ocorrido interesse e acesso de pessoas refugiadas à
universidade, a sua permanência tem sido um desafio. Houve seis desistências ao longo desse
processo. Observamos que, apesar da garantia da bolsa de estudos, havia dificuldades com o
grau de proficiência da Língua Portuguesa, barreiras culturais, de ordem econômica, dificuldade
de integração com a comunidade acadêmica, de adaptação à organização da universidade e
dificuldades estruturais como depender da internet e computadores da universidade.

Palavras-chave: refugiados; universidades brasileiras; integração

ABSTRACT
This text is inspired by the desire to understand the insertion of refugees in Brazilian
universities. Considering that the academic life of students is not limited to access to the
disciplinary content of the chosen profession, we seek to get closer to what happens in the
university environment. The physical space, the teachers, the classmates, the employees, the
canteen, among others, present possibilities of insertion or not of refugees. This experience
report presents a project developed at a community university affiliated to the Sérgio Vieira
de Mello Chair, located in the Southeast region of Brazil. The Institution annually offers a
specific entrance exam for people in refugee situations. Candidates can choose the language
in which they wish to take the test and three full scholarships are offered. From 2012 to 2020,
52 students passed the entrance exam, 16 entered the university and, in 2020, two students
were enrolled. Although there has been interest and access by refugees to the university, their
permanence has been a challenge. There were six dropouts during this process. We observed
that, despite the guarantee of the scholarship, there were difficulties with the degree of
proficiency in the Portuguese language, cultural barriers, of an economic nature, difficulty in
integrating with the academic community, in adapting to the organization of the university and
structural difficulties such as depending on the internet. and university computers.

Keywords: Refugees; Brazilian universities; Integration

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 115


116 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
A presença síria na cidade do
Rio de Janeiro: uma análise
socioespacial

Isabella Ferreira Silva*


Alinne Ferreira da Silva**

1 Introdução
Este artigo é derivado de uma linha de pesquisa que busca compreender a
imigração síria para o Brasil e suas implicações no Rio de Janeiro. Desde então
foi possível construir uma série histórica dessa imigração, analisar o papel das
instituições de acolhimento e, de forma rasa, identificar as relações de gênero
existentes. Com isto, a pesquisa seguiu seu caminho para a análise da Sociedade
de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega (SAARA), que é um centro
comercial formado principalmente por imigrantes árabes, incluindo os sírios, dos
séculos XIX e XX, e o mapeamento das barraquinhas de comida árabe que são as
atuais e mais significativas expressões do mercado de trabalho sírio.
Ao identificar a localização das barraquinhas de comida árabe no Rio de
Janeiro, é perceptível como a paisagem da cidade adotou uma configuração
diferente por conta dos imigrantes sírios. Diversos autores como Santiago e
Luca (2007), Manfio (2012), Reinheimer, Araújo e Santos (2019), Seyferth (2011)
trazem contribuições para pensar como os imigrantes atuam na construção de
uma paisagem cultural. Para este artigo, entende-se que a paisagem pode ser
analisada enquanto forma adquirida, em um determinado momento, de uma
porção do espaço (MUFFIN, 2012, p. 35), ou seja, que pode se reconstruir a
partir das dinâmicas sociais. Manfio complementa dizendo que as relações do
homem com a natureza criam paisagens culturais as quais estão associadas “à
vivência e dinâmicas que convivem neste espaço ou habitaram-no” (MUFFIN,
2012, p. 35) e, quando se pensa em migração, é interessante pensar que “os
mundos são feitos e refeitos através do movimento” (REINHEIMER, ARAÚJO E
SANTOS, 2019, p. 11).
A imigração síria para o Brasil é um tema bastante estudado, sobre o qual há
diversos artigos, teses e livros; entretanto, esta pesquisa preenche uma lacuna
ao estudar a importância das barraquinhas de comida árabe na imigração síria

*
Graduanda em geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e
bolsista de iniciação científica pelo CNPq.
**
Graduada em ciências sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 117


contemporânea e a mudança que causa na paisagem do Rio de Janeiro. Dessa
forma, o presente trabalho ganhou destaque ao buscar compreender a relação
dos imigrantes sírios com a cidade carioca; para isso, averiguou-se a diferença
entre imigrantes e refugiados, analisou-se o contexto histórico da imigração síria
para o Brasil e Rio de Janeiro e buscou explicar como ocorreu a instalação desses
imigrantes na capital fluminense.
Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental e bibliográfica no Google
Acadêmico, Portal de periódicos da CAPES e Biblioteca do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Migratórios (NIEM), que abrangesse os temas relacionados ao conceito
de imigração e refúgio, imigração síria e paisagem. Também foram realizadas
entrevistas com atuais imigrantes, descendentes de imigrantes e representantes
de diferentes instituições de acolhimento, em conjunto com um trabalho de
campo que identificava a localização das barraquinhas na cidade do Rio de
Janeiro e a paisagem da SAARA (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da
Alfândega). Por último, fez-se a elaboração de tabelas com os dados coletados
e confecção de mapas, através do Google Earth1 e Qgis2, que representam a
localização das barraquinhas de comida árabe nos diversos bairros da cidade do
Rio de Janeiro.

2 Diferenciando imigrantes de refugiados


Para atingir o objetivo desta pesquisa, neste tópico faz-se necessário
conceituar e salientar a diferença entre imigrantes e refugiados. A começar com o
conceito de “migração”; para Nolasco (2016), a migração é um fenômeno espacial
e temporal pois, segundo as Nações Unidas (2011), para ser definido como
migração é preciso que ocorra uma mudança de espaço político-administrativo
por um determinado tempo.
Dessa forma, entende-se “migração” como o processo de deslocamento,
de entrada (imigração) e saída (emigração) de uma região ou país para outra
(SANTOS, 2019). Uma definição mais completa de “imigrante” é entendê-lo
como “o indivíduo que, deslocando-se de onde residia, ingressou em outra
região, cidade ou país diferente do de sua nacionalidade, ali estabelecendo sua
residência habitual, em definitivo ou por período relativamente longo” (IMDH,
2014, s/p).
Enquanto “refugiado” refere-se a qualquer pessoa que

receando com razão ser perseguido em virtude de sua


raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social
ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do seu país
de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude
daquele receio, não queira pedir a proteção daquele
país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do
país no qual tinha a sua residência habitual, após aqueles
acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a
12 ele não queira voltar (ACNUR, 2000, p. 61).

118 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


No Brasil, adota-se uma concepção mais abrangente a partir de 1997.
Considera-se “refugiado” aquele que sofre “generalizada violação de direitos
humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio
em outro país” (BRASIL, 1997, s/p). Em suma, é importante frisar que tanto os
imigrantes quanto os refugiados estão dentro do contexto de migração e que
todo refugiado é imigrante, mas que o contrário não é verdadeiro.

3 Imigração síria para o Brasil e Rio de Janeiro

Os laços históricos dos sírios com o Brasil remetem ao final do século


XIX onde, dominados pelo Império Otomano, sofreram com a interferência
imperialista europeia, ação missionária, centralização política, industrialização e
a Primeira Guerra Mundial (PINTO, 2010, p. 27), e viram a imigração como uma
alternativa. Quando chegam ao Brasil, sua distribuição geográfica é “sobretudo
nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, e no Distrito Federal”
(FRANCISCO, 2005, p. 21) que era, na época, a Guanabara (cidade do Rio de
Janeiro). Mott (2014, p. 185) complementa, dizendo que “o grosso da imigração
se dirigiu para São Paulo e Rio de Janeiro, localizando-se núcleos menores em
Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia [...] sendo que o estado de São Paulo
recebeu 40% do total”. A Tabela 1 mostra os principais estados brasileiros pelos
quais os imigrantes sírios se distribuíram.

Tabela 1- Distribuição Sírio-Libanesa nos Principais Estados Receptores

DISTRIBUIÇÃO SÍRIO-LIBANESA NOS PRINCIPAIS ESTADOS RECEPTORES


ESTADOS 1920 % 1940 %
São Paulo 19.285 38,4 23.948 49,2
Minas Gerais 8.684 17,3 5.902 12,1

Distrito Federal (Cidade do Rio de Janeiro) 6.121 12,2 6.510 13,4

Rio de Janeiro (Estado) 3200 6,4 2.541 5,2


Rio Grande do Sul 2565 5,1 1.903 4
Paraná 1625 3,2 1.576 3,2
Pará 1.460 2,9 848 1,7
Mato Grosso 1.232 2,5 1.066 2,2
Bahia 1.206 2,4 947 2
Amazonas 811 1,6 461 1
Fonte: Silva (2019) e Pinto (2010 p. 59).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 119


A imigração começa de uma forma tímida, atingindo 156 entradas até
1900, apresentando um ápice entre os anos de 1908 e 1915 (SILVA, 2019, p. 5),
voltando a ganhar intensidade nos anos 1920, 1930 e 1950 (PINTO, 2010 p. 50).
Apesar de pouco numerosa, a imigração sírio-libanesa teve um importante papel
nos setores comerciais e industriais nas principais cidades do país (AB’SABER,
2001, p. 29). As regiões que receberam a maior quantidade de pessoas têm,
em comum, o fato de serem as mais importantes economicamente, no país,
naquele período.
No final do século XIX e início do século XX, a economia brasileira, baseada
no setor agrário, pode ser descrita, de maneira resumida, da seguinte forma: a)
economia do açúcar e do algodão, do Maranhão até Sergipe, em crise (FURTADO,
2005 p. 90-93); b) uma economia de subsistência do sul do país voltada para o
mercado interno, nos atuais estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina
e Mato Grosso (FURTADO, 2005 p. 146); c) economia cafeeira no Rio de Janeiro,
Minas Gerais e São Paulo (FURTADO, 2005 p. 142); d) produção de cacau e fumo,
na Bahia (FURTADO, 2005 p. 148); e) produção de borracha, na Amazônia, na
fase áurea (FURTADO, 2005 p. 149).
Com essa perspectiva, o país caminhou para uma industrialização iniciada
por São Paulo e Rio de Janeiro, principais produtores de café (FURTADO, 2005,
p. 142). Não obstante, se compararmos a situação econômica brasileira com o
quadro de distribuição dos imigrantes árabes, constatamos que estes preferem
os locais com uma considerável importância econômica.
Os imigrantes que chegavam ao Brasil e à cidade do Rio eram principalmente
homens, jovens, solteiros, agricultores e cristãos (KNOWLTON, 1961, p. 33-64),
que tinham a pretensão de juntar dinheiro e voltar para a Síria, o que demonstrava
uma migração com motivações econômicas, e sentiam-se atraídos por regiões
com possibilidade de trabalho além da agricultura, pois buscavam “atividades
econômicas que pudessem lhes dar um retorno financeiro rápido e transferível
para o Oriente Médio” (PINTO, 2010, p. 70). Ainda segundo Pinto (2010, esse
objetivo só seria possível em atividades comerciais, por isso, os imigrantes sírios
passam a se localizar em centros urbanos e viver da mascateação.

Embora a maioria dos sírios e libaneses que chegou


ao Brasil fosse formada por agricultores, a estrutura
fundiária do país, baseada nas grandes propriedades
e na monocultura, a carência de terras disponíveis a
baixos preços e os parcos recursos financeiros trazidos
por eles inviabilizaram sua fixação no meio rural. Como
eles também não se enquadraram na categoria de
operários urbanos, ficaram à margem do perfil idealizado
pela política imigratória brasileira. Esses imigrantes
concentraram-se, assim, nos centros urbanos, mas neles
desenvolveram atividades relacionadas ao comércio, seja
primeiro como ambulantes (mascates), ou mais tarde
em negócios regularmente estabelecidos. Contudo, a

120 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


sua atuação profissional não estava restrita somente às
cidades, uma vez que a população rural representava
um importante contingente de consumidores a serem
atendidos. (FRANCISCO, 2005, p. 22).

Truzzi (2005) complementa, dizendo que os sírios (e libaneses) procuraram


“se instalar em zonas centrais da cidade, frequentemente próximas a estações
ferroviárias ou mercados municipais, para que pudessem tirar proveito do
movimento como comerciantes” (TRUZZI, 2005, p. 23).
De acordo com Truzzi (2001, p. 113), um dos fatores essenciais para a
integração desses imigrantes no país foi a própria mascateação e, apesar de
ser uma migração de cunho econômico, o que se viu ocorrer foi uma imigração
contínua e em rede, principalmente familiar. Aqueles que eram casados traziam
as suas esposas, os filhos e, também, primos, tios e avós, após terem uma
condição de vida estável (TRUZZI, 2005, p. 44).
Apesar de ter um fluxo contínuo, segundo Silva (2019), o registro da
imigração síria diminuiu, inviabilizando, assim, a utilização de fontes estatísticas
anuais, depois da década de 1960. Passamos, então, a contar apenas com o
censo demográfico, o qual registra o total da população de nacionalidade síria
no Brasil. Como podemos ver na Tabela 2, abaixo, essa população decresce no
decorrer das décadas.

Tabela 2- Censo demográfico de sírios e libaneses por gênero.

Censo demográfico – sírios e libaneses


DÉCADA LIBANESES SÍRIOS TOTAL
40 45793* 45793
50 40177 40177
Censo demográfico – sírios
DÉCADA HOMENS MULHERES TOTAL
60 10402 7002 17404
70 6236 4761 10997
80 2873 2467 5340
Fonte: Silva (2019), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (1950,1956,1960, 1970 e 1983)
Nota: *Síria, Líbano, Palestina, Iraque e Arábia Saudita

Além do número decrescente de imigrantes sírios nos censos demográficos


brasileiros, é possível perceber que o número de mulheres é inferior ao de
homens em todas as décadas registradas. Tal fato indica um alto índice de
masculinidade, que é a porcentagem de homens a cada 100 mulheres. O autor
Knowlton (1961, p. 50) identifica o mesmo fenômeno em sua pesquisa e diz que

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 121


compreender as relações de gênero é importante pois influencia em diversos
índices demográficos, nas relações sociais e econômicas; na Tabela 3, abaixo, é
possível compreender melhor o índice de masculinidade.

Tabela 3 - Índice de Masculinidade dos imigrantes sírios.

PORTO DE SANTOS, 1908 - 1941 BRASIL, 2011 - 2016


HOMENS 11535 HOMENS 1482
MULHERES 6071 MULHERES 783
ÍNDICE DE 190 ÍNDICE DE 189,2
MASCULINIDADE MASCULINIDADE
Fonte: Elaborado pelas Autoras com base nos dados de Silva (2019) Knowlton (1961, p. 52) e
Brasil (2017).

A estagnação da imigração síria para o Brasil muda a partir de 2011 quando,


em diversos países do Oriente Médio, incluindo a Síria, ocorre uma “série de
revoltas populares com a intenção de destronar estadistas que estavam no poder
há décadas, de forma tirânica e não democrática” (CHEREM, 2020), chamada
Primavera Árabe. Desde então, o Brasil volta a ser o destino de imigrantes sírios,
mas agora buscando o status de refugiados.
Desde 2011, os sírios são a maioria dentre as nacionalidades com status
de refugiados reconhecidos no Brasil. Segundo o relatório do Ministério da
Justiça e Segurança Pública (Refúgio em números) de 2019, em dezembro de
2018, contabilizavam 11,231 mil refugiados reconhecidos pelo Estado brasileiro;
desses, 36% (4,043) são de nacionalidade síria.
Em entrevista para esta pesquisa, em junho de 2018, Fabrício Toledo3, disse
que a maioria dos sírios estão em São Paulo, mas ainda assim eles têm presença
significativa no Rio de Janeiro. E a maneira mais fácil de encontrá-los é visitando
as barraquinhas de comida árabe e em feiras de gastronomia. Além, claro, de
contatar diversas instituições de acolhimento que dão suporte a migrantes,
forçados ou não, como a Caritas-RJ, Casa Rui Barbosa, Serviço Pastoral do
Migrante (SPM), Centro de Atendimento aos Refugiados e Imigrantes (CEPRI),
entre outros.
Esses imigrantes, de acordo com Silva (2018), enfrentam diversas
dificuldades quando se estabelecem no país, relativas a “moradia, alimentação,
documentação, idioma e integração” (SILVA, 2018, p. 4) e, muitas vezes, elas
implicam umas nas outras. Segundo o Padre Mário Geremia4, em entrevista em
abril de 2018, a entrada deles no mercado de trabalho formal é dificultada por
não terem um domicílio fixo, especialmente para quem está alojado. O emprego
formal torna-se possível só depois que estiverem de posse dos documentos
e carteira de trabalho. Refletindo sobre as implicações dessas dificuldades,
podemos pensar que uma pode interferir na outra; por exemplo, a falta de um
trabalho com carteira assinada significa também a instabilidade quanto a poder
manter um aluguel e quanto a garantir sua segurança alimentar.

122 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Para entendermos melhor a situação desses refugiados, nos gráficos
abaixo, podemos ver o número de carteiras de trabalhos emitidas e o número
de reconhecimento do status de refúgio. Com isto, ao cruzar essas informações,
vemos que o número de carteiras de trabalho emitidas é menor que o número
de reconhecimento de refugiados, portanto é possível afirmar que a tendência é
de que haja uma grande necessidade desses imigrantes de recorrer ao mercado
informal; um trabalho sem carteira assinada significa também a instabilidade de
manter um aluguel e sua segurança alimentar.

Gráfico 1- Número de refugiados sírios reconhecidos por ano no Brasil

Fonte: Autor; Ministério da Justiça e Segurança Pública (2016, 2017, 2018 e 2019).

Gráfico 2- Número de carteiras de trabalho e previdência social emitidas para


solicitantes de refúgio e refugiados sírios no Brasil entre 2010 e 2018.

Fonte: Autor; Cavalcanti, , L; Oliveira,, T; Macêdo, M.; Pereda, L. (2019).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 123


Entre os refugiados entrevistados, é recorrente a fala sobre a dificuldade de
conseguir um trabalho estável, apesar da ajuda das instituições de acolhimento,
e a ida para o mercado informal de trabalho que, na maioria das vezes, é a
barraquinha de comida árabe.

4 A instalação desses imigrantes no Rio de Janeiro

Segundo Pinto (2010), os imigrantes árabes se espalharam pelo Rio de Janeiro


como um todo, mas especialmente na região da Rua da Alfândega e adjacências.
Ainda segundo Pinto (2010), esta região foi palco tanto de moradias, quanto de
estabelecimentos comerciais, sendo caracterizada como a ‘pequena Turquia’ e
“apesar da dispersão relativa dos imigrantes na área metropolitana do Rio de
Janeiro, a região da Rua da Alfândega funcionava como o centro econômico e
cultural dos árabes na cidade” (PINTO, 2010, p. 65).
As informações relativas ao papel central da Rua da Alfândega, no início da
imigração síria e libanesa, encontram apoio nas narrativas dos descendentes
de imigrantes como Regina, uma descendente de sírios que foi entrevistada
para esta pesquisa. Ela diz que seu avô veio para o Rio de Janeiro e, quando
ele chegou, estabeleceu-se, junto com o irmão, num pequeno sobrado, na
rua da Alfândega. Na parte de baixo do edifício, funcionava um armarinho
onde se vendiam tecidos e linhas, aviamentos e vários outros materiais e
peças de tecidos. Ela complementa que o comércio era embaixo e a casa
era na parte de cima, sendo o homem, principalmente o filho mais velho,
responsável por ajudar no comércio enquanto as meninas ficavam em casa,
não ajudavam nem no balcão.

Os imigrantes (sírio-libaneses) ocuparam a região de


uma forma ‘intuitiva e espontânea’ e ali produziram um
espaço de moradia e trabalho próprios de seus países de
origem. Criaram uma ‘organização espacial’ de natureza
étnica manifestada na forma de comercializar, na estética
e na própria seleção dos bens oferecidos. Os restaurantes
árabes, os cafés onde os imigrantes se reuniam, jogavam
gamão, fumavam o narguilé e tocavam o alaúde, as lojas
de especiarias com os nomes escritos em caracteres
árabes, da direita para a esquerda, imprimiam ao local suas
marcas étnicas. Sob uma ‘forte vontade de preservação
da sua identidade’, os imigrantes fizeram ‘do espaço do
SAARA uma verdadeira ilha árabe em pleno centro do Rio’
(RIBEIRO, 1997, p. 207).

No fragmento acima, é possível identificar que essa região, com a progressiva


chegada de novas levas de imigrantes, imprimiu, nessa área do centro do Rio de
Janeiro uma forte marca árabe. Na década de 1960, as adjacências da Rua da

124 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Alfândega, Senhor dos Passos e Buenos Aires (TRUZZI, 2005, p. 21) passaram a
se chamar SAARA (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega),
sociedade fundada por diferentes etnias árabes e outras nacionalidades que
também estavam presentes ali, como portugueses, chineses e coreanos (TRUZZI,
2005, p. 22). A área, segundo Pinto (2010, p. 149), portanto, tem caráter
multicultural e é apelidada de ‘pequena ONU’.
O SAARA é composto por diversas nacionalidades, com diversos tipos de
produtos e lojas, mas a identificação étnica árabe com essa região se deve “à
predominância dos imigrantes de fala e cultura árabe e seus descendentes
no comércio da região e na própria criação do SAARA” (PINTO, 2010, p. 149).
A identidade árabe, e consequentemente síria, na paisagem do SAARA, é
atualmente verificada pela presença de comércios como restaurantes, lojas e
casas de especiarias que remetem à cultura árabe (RIBEIRO, 2000, p. 27), como é
possível identificar nas imagens abaixo:

Imagem 1: Restaurantes e lanchonetes árabes

Fotos: Autoras.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 125


Imagem 2: Casa de especiarias de origem árabe

Foto: Autoras

Portanto, apesar da variedade de produtos e serviços, há a “definição do


SAARA como um espaço urbano dotado de uma dimensão étnica” (PINTO, 2010,
p. 149), e essa dimensão étnica é homenageada e eternizada pela praça e estátua
do mascate. Segundo Pontim (2011),

Há outro elemento, na SAARA, nos últimos anos vem


adquirindo importância simbólica e se consolidando como
o coração da SAARA: a Praça do Mascate, cujo nome se deve
justamente à escultura do Mascate aí localizada. A escultura
foi uma homenagem prestada pela Confederação Nacional
do Comércio em 1991 à S.A.A.R.A., como reconhecimento
da figura do mascate como “desbravador do interior” e da
contribuição deste para o desenvolvimento do país. Desde
então parece estar se convertendo no ponto de encontro
para as festividades da SAARA (PONTIM, 2011 p.12).

A SAARA é palco da integração síria durante a imigração tradicional,


enquanto as barraquinhas de comida árabe, presentes em diversos pontos da
cidade do Rio de Janeiro, assumem o papel de destaque na integração síria
durante a imigração recente.
Segundo o padre Mário Geremia, em entrevista, os migrantes sírios
encontraram no ramo da alimentação uma forma de sobreviver, pois o migrante
não tem muita opção de escolha e o fato de trabalhar já é importante. Ele diz que

126 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


a grande maioria são jovens e homens à frente dessas barraquinhas que estão
‘por todos os lados’, algo que não se via no Rio de Janeiro. Ainda segundo ele, os
sírios se destacam no ramo de alimentação frente a outras nacionalidades que se
adaptaram a outras formas de trabalho5.
Essas barraquinhas, veja a imagem 3, estão presentes em bairros que
compõem a zona sul da cidade do Rio de Janeiro como Catete, Botafogo,
Flamengo, Laranjeiras, Copacabana, Ipanema, Glória, o Centro e, também da
Zona Norte, como Tijuca e Maracanã. A partir da localização dessas barraquinhas,
e marcando-as no Google Earth, é possível fazer análise espacial, constatando
que a maioria delas se encontram próximas a áreas com grande movimentação
de pessoas. Inclusive, algumas dessas barraquinhas só funcionam de segunda a
sexta-feira, que são os dias com maior circulação de pessoas, de acordo com os
próprios comerciantes.

Imagem 3: Barraquinha de comida árabe

Foto: Autoras.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 127


Durante o período de mapeamento, janeiro/2019 a janeiro/2020, foi
possível notar que a localização das barraquinhas é mutável, ou seja, é possível
se deparar com uma barraquinha e, depois de um tempo, voltar ao mesmo
local e não a encontrar lá. O mesmo fenômeno ocorre de forma oposta, lugares
que não tinham uma barraquinha passam a tê-la, o que torna o mapeamento
algo dinâmico.
As imagens abaixo são um projeto de mapeamento das barraquinhas de
comida árabe presentes na cidade do Rio de Janeiro. Projeto porque não há
como ter dados precisos sobre quantas barraquinhas de comida síria são e
onde estão, já que, em pesquisa de campo, realizada na Prefeitura do Rio,
constatou-se que, seja pela Secretaria Municipal de Fazenda, com o controle
do comércio ambulante, ou pela Subsecretaria de Vigilância, Fiscalização
Sanitária e Controle de Zoonoses, não há marcação por categoria étnica ou
tipo de comida, como esfirra e quibes. A informação obtida pela prefeitura é
de que a classificação é feita por “salgados” e, portanto, é muito ampla e não
se encaixaria nessa pesquisa.

Imagem 4- Bairros onde há a presença de barraquinhas de comida árabe.

Fonte: Produzido pelas autoras.

128 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Imagem 5 - Distribuição das barraquinhas de comida árabe e estações de metrô
no Rio de Janeiro

Fonte: Produzido pelas autoras.

Nos mapas acima, podemos ver a delimitação por bairros onde há a presença
de barraquinhas de comida síria e o mapeamento dessas barraquinhas em
conjunto com o mapeamento de estações de metrô que acreditamos influenciar
na localização dessas barraquinhas.
As localizações das barraquinhas são similares, estando não só em locais
com grande circulação de pessoas e próximas a metrôs, mas também em locais
que dispõem de uma ampla rede de serviço e comércio, como restaurantes,
farmácias, lojas, supermercados, universidades, escolas, hospitais e clínicas.

5 Considerações finais

A disposição dos imigrantes sírios pelo Rio de Janeiro, no período que


compreende janeiro/2019 a janeiro/2020, nos faz refletir sobre a relação deles
com essa cidade. Os novos imigrantes de origem árabe não mais se localizam em
uma região central, como nos séculos XIX e XX, mas ocupam diferentes espaços
dentro da cidade.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 129


Se Truzzi (2001) disse que a mascateação foi essencial para a integração
dos migrantes sírios no século XX, as barraquinhas, hoje, exercem essa função.
O que percebemos é que o perfil desse estrangeiro se manteve estável, sendo
composto por homens jovens, mas que agora migram de forma involuntária,
devido à guerra civil no país de origem, recebendo, assim, o status de
refugiados. Além disso, eles se estabelecem na cidade carioca com dificuldade
de se inserirem no mercado de trabalho formal. Com isto, conclui-se que
este trabalho atingiu seu objetivo que era o de compreender a relação dos
imigrantes sírios com o Rio de Janeiro.
Apesar de ser um trabalho de cunho exploratório e que deve prosseguir
aprofundando a pesquisa e exploração de dados, podemos concluir que as
barraquinhas de comida funcionaram como um primeiro elemento de integração.
A quantidade delas aumenta na medida em que se mostram como um caminho
possível para a sobrevivência e inserção na sociedade brasileira.

NOTAS
1
Google Earth: trata-se de um programa de computador desenvolvido pela empresa Google.
Este programa apresenta imagens aéreas tridimensionais do Planeta Terra. Através desse
programa pode-se identificar lugares, construções, cidades, paisagens etc. (Nota do Editor).

2
QGIS: trata-se de um software livre com sistema de informação geográfica (SIG). Este software
possibilita a visualização, edição e análise de dados georreferenciados (Nota do Editor).

3
Representante da Caritas-RJ, entidade da sociedade civil responsável pelo acolhimento a
refugiados.

4
Missionário Scalabriniano e ex-coordenador da Pastoral da Migração na Arquidiocese do Rio
de Janeiro.

5
A popularidade da culinária árabe no Brasil e a existência da SAARA no centro do Rio de
Janeiro fazem com que a atividade de venda de salgados árabes seja facilitada, fornecendo aos
imigrantes sírios uma espécie de capital cultural, mas também simbólico, no sentido proposto
por Bourdieu (1989).

Agradecimentos

Ao CNPq pelo financiamento à pesquisa. À Prefeitura do Rio de Janeiro, à


Secretaria Municipal de Fazenda e à Subsecretaria de Vigilância, Fiscalização
Sanitária e Controle de Zoonoses, por disporem tempo e dados para essa
pesquisa. Aos entrevistados e à Miriam Santos, nossa orientadora, que tem sido
uma grande incentivadora; e a todos que, de alguma forma, contribuíram para a
realização da pesquisa.

130 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Referências
AB’SABER, A. N. Desenvolvimento das relações árabes-brasileiras. In: FUNAG. Relações entre
o Brasil e o mundo árabe: construções e perspectivas. Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2001. 412p. p 27- 54.

ACNUR – AGÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS; CPIDH – COMMISSION


PERMANENTE INDÉPENDANTE DES DROITS DE L’HOMME; IMDH – INSTITUTO DE
MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS. Lei 9474/1997 e Coletânea de instrumentos de
proteção internacional dos refugiados. 2000. Disponível em: <https://goo.gl/sIdVfV>.
Acesso em: 10 de novembro de 2020.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BRASIL, E. N. Migração síria contemporânea: Da partida a (Re)Inserção. Trabalho de


conclusão de curso (bacharel em sociologia) - Universidade de Brasília, Brasília.
2017. 84p.

BRASIL. Lei nº 9.474/97. de 22 de julho de 1997. Lei Nº 9.474, de 22 de Julho de 1997.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm>. Acesso em: 29
de abril de 2021.

CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T; MACÊDO, M; PEREDA, L. Resumo Executivo. imigração e refúgio


no Brasil. a inserção do imigrante, solicitante de refúgio e refugiado no mercado de
trabalho formal. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e
Segurança pública/Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração
Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2019.

CHEREM, H. M. Irã: tudo o que você precisa saber. 2020. Disponível em:
<https://www.politize.com.br/ira-seculo-xx-aos-protestos/>. Acesso em: 15 jan. 2020.

FRANCISCO, J. C. B. Sírios e libaneses no Rio de Janeiro: memória coletiva e escolhas


individuais. Dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2005.

FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 32º ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
2005. 238p.

IDMH- Instituto Migrações e Direitos Humanos. Glossário. 2014. Disponível em:< https://
www.migrante.org.br/imdh/glossario/#:~:text=Por%20emigrante%20entende%2Dse%20
a,pa%C3%ADses%20de%20expuls%C3%A3o%20de%20migrantes.>. Acesso em: 22 de
março de 2021.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 1940: População e


habitação. Rio de Janeiro: IBGE, v.2. 1950. 209p.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 1950: Brasil. Rio


de Janeiro: IBGE, v,1. 1956. 354p.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 131


INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 1960: Brasil. Rio
de Janeiro: IBGE, v,1. 1960. 177p.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 1970: Brasil. Rio


de Janeiro: IBGE, v,1. 1970. 331p.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 1980: Brasil. Rio


de Janeiro: IBGE, v,1. 1983. 267p.

KNOWLTON, C. S. Sírios e libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo, Anhambi, 1960.
198p.

LIMA, J. et al. Refúgio no Brasil: caracterização dos perfis sociodemográficos dos refugiados
(1998-2014). Brasília: Ipea, 2017. 234p.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Refúgio em números. 1º ed. 2016.


Disponível em: < https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/anexos/1o-edicao-
sistema_de_refugio_brasileiro_-_refugio_em_numeros_-_05_05_2016.pdf>. Acesso em:
17/02/2020.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Refúgio em números. 2º ed. 2017.


Disponível em:< https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/anexos/2deg-edicao-
refugio-em-numeros-2010-2016-v-5-0-final.pdf>. Acesso em: 17/02/2020.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Refúgio em números. 3º ed. 2018.


Disponível em:< https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/anexos/refasgio-em-
nasmeros_1104.pdf>. Acesso em: 17/02/2020.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Refúgio em números. 4º ed. 2019.


Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/07/
Refugio-em-nu%CC%81meros_versa%CC%83o-23-de-julho-002.pdf>. Acesso em:
17/02/2020.

MANFIO, V. A quarta colônia de imigração italiana: uma paisagem cultural na região central
do Rio Grande do Sul. Geografia Ensino e Pesquisa, v1. 16, n. 2, p.31-45. 2012.

MOTT, M. L. Imigração Árabe: um certo oriente no Brasil. In: IBGE. Brasil: 500 anos de
povoamento. Rio de Janeiro: IBGE, 2007. 232p.

PINTO, P. G. H. da R. Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Organização da série


MV Serra. Rio de Janeiro: Editora Cidade Viva, 2010. 200p.

PONTIM, M. SAARA: caleidoscópio étnico no Rio de Janeiro. Anais do XXVI Simpósio Nacional
de História - ANPUH. São Paulo, 2011

REINHEIMER, P. ARAÚJO, N. SANTOS, M. Imigração e cultura material: coisas e pessoas em


movimento. São Leopoldo:Oikos, 2019. 332p.

132 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


RIBEIRO, P. Multiplicidade étnica no Rio de Janeiro: um estudo sobre o ´Saara´. Acervo -
Revista do Arquivo Nacional, v. 10, n. 2, p. 199-212, 1997. Disponível em: <http://hdl.
handle.net/20.500.11959/brapci/44139>. Acesso em: 30 jan. 2020.

SANTIAGO, A. LUCA, V. Paisagem natural e construída da região de imigração do sul do


estado de Santa Catarina. Paisagem ambiente: ensaios, São Paulo, n. 24, p.209-
216.2007.

SILVA, A.F. da. O acolhimento de migrantes sírios pela igreja católica no Rio de Janeiro.
Espaços revista de Teologia e cultura, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 325-332. 2018.

SILVA, I. F. Os números da imigração síria nos censos brasileiros. In: Reunião de Antropologia
do Mercosul, XII, 2019, Porto Alegre. Anais XII RAM. Porto Alegre: UFRGS, 2019. p. 1-17.

SILVEIRA, E L. D. Paisagem: um conceito-chave na geografia. Disponível em:<http://


observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal12/Teoriaymetodo/Conceptuales/23.
pdf>. Acesso em: 03 de junho de 2021.

TRUZZI, O. Sírios e libaneses: narrativas de história e cultura. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2005. 103 p.

TRUZZI, O. O lugar certo na época certa: sírios e libaneses no Brasil e nos EUA enfoque
comparativo. in Estudos Históricos, n. 27, 2001, pp. 110-140.

SEYFERTH, G. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 26,


n.77, p. 48-61. 2011.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 133


Resumo
Considerando que é de suma importância a análise da imigração síria e suas implicações para
a cidade do Rio de Janeiro, este trabalho busca compreender a relação dos sírios com a cidade
carioca, analisando o contexto histórico dessa imigração e a instalação desses imigrantes
na mesma. Para tanto, foi necessário realizar entrevistas com imigrantes, descendentes e
representantes de instituições de acolhimento; fazer uma revisão documental e bibliográfica;
analisar os dados recolhidos; mapear, no Google Earth, as barraquinhas de comida árabe,
presentes na cidade do Rio de Janeiro, e os bairros em que estão localizadas, no qgis. Com
isso, foi possível observar que os imigrantes sírios têm uma ampla distribuição e enraizamento
na cidade do Rio; as barraquinhas de comida árabe são a atual expressão da presença
desses imigrantes na capital fluminense, o que permite concluir que essa população tem um
importante papel na constituição sócio-econômico-espacial na cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Imigração; Síria; Barraquinhas; Mapeamento; Rio de Janeiro.

ABSTRACT 
Considering that it is important to analyze the syrian immigration and their implications to
Rio de Janeiro’ city, this paper aims to comprehend the syrian relation with the carioca city,
analyzing the historical context of this immigration and the syrian fixation in it. Therefore, it
was necessary do interviews with immigrants, descendants e representatives of welcoming
institutions; do a documental and bibliographic revision; analyze collected dates; map, at
Google Earth,  arab food stalls present in Rio de Janeiro’s city and the neighborhoods they are, 
at qgis. With this, it was possible to observe that syrian immigrants have a large distribution
and fixation at Rio, the arab food stalls are a current expression of this immigrants in the city,
what allows  us to conclude that this population has an the a important paper in the socio-
economic-spatial constitution in the Rio de Janeiro’s city.

Keywords: Immigration; Syrian; Stalls; Mapping; Rio de Janeiro.

134 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


O (não)reconhecimento
da migração climática e a
possibilidade de proteção pelos
mecanismos do direito das
mudanças climáticas

Jéssica Aline Gomes*

1 INTRODUÇÃO

As mudanças climáticas1 se incluem na classe de objetos especiais que


o filósofo inglês Timothy Morton (2010) denomina “hiper-objeto”, um fato
conceitual tão grande e complexo que nunca será plenamente compreendido,
assim como a internet. Elas desafiam a percepção humana do tempo e do
espaço porque estão distribuídas de tal maneira pela Terra que não podem ser
apreendidas diretamente pelos seres humanos, além de produzirem efeitos cuja
duração extravasa enormemente a escala da vida humana conhecida e que, num
ato reflexo, não consideramos que possam ser reais.
Na primeira avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC)2, a preocupação era com os futuros impactos nos ecossistemas
causados pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) (IPCC, 1990).
Já o relatório mais recente (Sexto Relatório de Avaliação, do Grupo de Trabalho
I) concluiu enfaticamente ser inequívoca a influência humana no aquecimento
da atmosfera, do oceano e da superfície terrestre e que as mudanças no sistema
climático são rápidas, disseminadas e estão acontecendo (IPCC, 2021).
Dentre as alterações nos ecossistemas, o IPCC (2021) destaca os aumentos na
frequência e na intensidade de extremos de calor, de ondas de calor marinhas, de
fortes precipitações e de ciclones tropicais. Também contribui para a ampliação
de secas agrícolas (afetando a segurança alimentar) e ecológicas (afetando a
fauna e a flora de algumas regiões), o derretimento de geleiras e mantos de gelo
(causando o aumento do nível médio do mar em 20 centímetros no último século)

*
Jéssica Aline Gomes. Mestranda em Direito Internacional Público pela Universidade de São
Paulo - Faculdade de Direito (FD/USP). Graduada em Direito (2014) pela Universidade de São
Paulo - Faculdade de Direito (FD/USP). Pós-graduada “lato sensu” em nível de especialização
(2018) em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público de São
Paulo (ESMP/SP). Analista Jurídica do Ministério Público do Estado de São Paulo. E-mail:
jessicagomes.jag@gmail.com.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 135


e da temperatura global. As regiões no mundo serão afetadas de modo distinto:
no Brasil, projeta-se a redução drástica das precipitações, particularmente no
Nordeste e no Brasil central, com impactos sobre a produtividade agrícola e o
setor energético, além do aumento do nível do mar, afetando cidades litorâneas.
Como consequência, os desastres3 causados por fatores climáticos se
apresentam cada vez mais frequentes e intensos e gerarão situações irreversíveis,
ainda mais se não houver a redução drástica das emissões de GEE. A Estratégia
Internacional de Redução de Desastres da ONU (United Nations Office for Disaster
Risk Reduction – UNDRR), em 2015, estimou que 90% dos desastres das últimas
duas décadas são relacionados ao clima, como as inundações, tempestades,
ondas de calor e secas, ceifando 606.000 vidas e com mais 4,1 bilhões de pessoas
feridas, desabrigadas ou desassistidas (UNDRR, 2015).
Muito embora os efeitos das mudanças climáticas sejam significativos e
sabidos – inclusive para a mobilidade humana – a ligação entre tais impactos
e o deslocamento de pessoas nem sempre é direta e de simples compreensão
e a isto se somam outras dificuldades que serão abordadas adiante. O Direito
Internacional, até o momento, não apresentou resposta suficiente para a situação
jurídica nova daqueles que migram induzidos pelo clima, aqui denominados
“migrantes climáticos”, cujo fenômeno migratório é definido como:

O movimento de pessoas ou grupo de pessoas que, por


razões predominantemente de mudanças progressivas ou
súbitas do meio ambiente devido às mudanças climáticas,
são forçadas a deixar seus lugares de residência habitual,
ou escolhem fazê-lo, temporária ou permanentemente,
dentro ou fora de fronteiras do país de residência habitual
(Organização Internacional para as Migrações – OIM, 2019,
tradução nossa)4.

Em paralelo, a partir da década de 1980 desenvolveu-se o Direito das


Mudanças Climáticas, com o escopo inicial de regular as emissões de GEE e,
assim, evitar o aquecimento global crítico. Contudo, uma vez que no século
anterior as emissões já provocaram um aquecimento inevitável da temperatura
e que os esforços não se demonstraram suficientes para reverter a situação,
ganharam importância as medidas de adaptação aos impactos das mudanças
climáticas, com o escopo de reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais e
humanos – o que inclui a discussão sobre mobilidade humana no contexto do
Direito das Mudanças Climáticas.
Feito esse panorama, o presente artigo tem como escopo avaliar a lacuna
jurídica que existe no reconhecimento da categoria dos migrantes climáticos bem
como as possibilidades “convencionais” de tratamento do tema. Em seguida, se
investigará se os mecanismos de adaptação e de perdas e danos, criados pelo
Direito das Mudanças Climáticas, podem ser utilizados para regulamentar as
migrações induzidas pelo clima e, especialmente, proteger os direitos humanos
daqueles migrantes climáticos.

136 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, bibliográfica e
documental, com uma análise por meio de doutrina, documentos de organizações
internacionais, institutos de pesquisa e ONGs e fontes jurídicas internacionais. O
método de abordagem será o dedutivo, partindo de conceitos gerais, buscando-
se sua particularização.

2 A (DES)PROTEÇÃO DOS MIGRANTES CLIMÁTICOS


O tema das migrações ambientais (e, posteriormente, climáticas) se
popularizou a partir da década de 1980, com publicações de ambientalistas5. Em
seu primeiro relatório, em 1990, o IPCC alertava aos tomadores de decisão que
“os impactos mais graves da mudança do clima podem ser aqueles nas migrações
humanas, pois milhões serão deslocados pela erosão costeira, inundações
costeiras e secas severas” (IPCC, 1990, p. 103, tradução nossa).
Apesar da evolução no estudo sobre a relação entre meio ambiente
e mobilidade humana, a ligação entre os impactos negativos do clima e o
deslocamento de pessoas é de difícil assimilação, pois a mobilidade humana é,
em regra, multicausal. De acordo com o relatório final do projeto “Foresight:
Migration and Global Environmental Change”, produzido pelo Escritório de
Ciência do Governo do Reino Unido (REINO UNIDO, 2011) para compreender as
migrações motivadas por alterações ambientais, a mobilidade é explicada por
cinco fatores macro principais (econômicos, sociais, políticos, demográficos e
ambientais) que interagem com fatores médios (como os custos de viagem, as
relações sociais, a burocracia estatal e os meios de comunicação) e micros (como
as características pessoais – idade, gênero, educação – e familiares – composição
familiar, religião, cultura).
Analisar a mobilidade humana influenciada por questões de alteração
climática demanda esforços em separar os motivos ambientais, o que nem
sempre é evidente porque a mudança climática não é, em regra, o motivo
imediato das migrações. No lugar, o fenômeno tem um impacto incremental,
aumentando a frequência de ameaças e agravando as vulnerabilidades das
sociedades, conforme concluiu a relatoria da OIM:

Foi apontado que as mudanças climáticas


provavelmente não são a causa direta do deslocamento
de populações, mas podem agravar a vulnerabilidade
existente em determinados segmentos sociais
(CONFERÊNCIA SUL-AMERICANA SOBRE MIGRAÇÕES,
2016, p. 4, tradução nossa).

A mudança climática interfere em diferentes ecossistemas, de diversos


modos, debilitando-os e os tornando cada vez mais inóspitos para os seres
humanos, além de reforçar vulnerabilidades existentes em comunidades, como
o aumento de doenças, a redução de proventos relacionados com agricultura,

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 137


pecuária e pesca e a destruição de infraestrutura sanitária, de transportes e
energia. Neste contexto, o risco climático de uma comunidade ou indivíduo pode
ser entendido como uma interação entre a sua vulnerabilidade6 e a probabilidade
de exposição à ameaça climática (ADRIÁN, MARTÍNEZ, 2021).
Assim, a porção da população mais negativamente atingida pelas mudanças
climáticas e que precisa se deslocar é, em geral, quem já sofre com padrões
discriminatórios e outras vulnerabilidades socioambientais, como pobreza,
pouca educação, habitação precária e falta de acesso aos serviços de saúde,
como afirmou o Conselho de Direitos Humanos da ONU (A/HCR/RES/35/20).
E, considerando a responsabilidade histórica pelas emissões de GEE atribuída
àqueles com melhores condições socioeconômicas – segundo relatório da OXFAM
(2020), 10% das pessoas mais ricas (630 milhões) são responsáveis por 52% das
emissões de carbono acumuladas, enquanto 50% da população mais pobre
(3,1 bilhões de pessoas) são responsáveis por 7% das emissões acumuladas – o
fenômeno das migrações climáticas evidencia um aspecto da injustiça climática.
Não obstante a complexidade das relações entre vulnerabilidade, exposição e
ameaça climática, existem tentativas de sistematizar como os impactos climáticos
afetam as migrações. O ex-representante do Secretário-Geral das Nações Unidas
sobre os direitos humanos das pessoas deslocadas internamente, Walter Kälin
(2010), apontou cinco situações que podem originar o deslocamento de pessoas
por mudanças climáticas: (i) desastres de início repentino, como as inundações;
(ii) degradação ambiental de início lento, como as elevações dos níveis do mar, as
secas e as desertificações; (iii) o caso dos chamados “pequenos países insulares”,
como Kiribati e Tuvalu; (iv) a classificação das áreas como “zonas de alto risco
para habitação humana” pelo governo e (v) a perturbação da ordem pública, a
violência ou o conflito armado pela crescente escassez de recursos.
Com este panorama sobre a complexidade das migrações induzidas pelas
mudanças climáticas, parte-se para a revisão de como a sociedade internacional
reconhece o fenômeno e propõe soluções jurídicas para resguardar os direitos
daquelas pessoas que migram.

2.1 Reconhecimento internacional dos migrantes climáticos

Ainda que décadas tenham se passado desde as primeiras discussões


sobre o tema, não há consenso no Direito Internacional sobre a existência
e reconhecimento de uma categoria autônoma de migrantes climáticos que
merecem proteção jurídica específica. Há incertezas sobre as estimativas e
previsões de quantidade de migrantes7, a denominação adequada8 e, sobretudo,
a definição de quem pode ser incluído na categoria. Autores como Andrea Maria
Pacheco Pacífico (2012) indicam que, além da dificuldade técnica em classificar a
categoria de pessoas que saem de seus locais de origem devido, primordialmente,
ao aquecimento global, a inexistência de um tratado internacional abrangente
sobre o tema é um empecilho para a definição pacífica dos migrantes.

138 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A relevância na conceituação dos migrantes por motivos climáticos vai
além da solução de uma dúvida acadêmica genuína. Segundo a OIM (LACZKO;
AGHAZARM, 2009), as definições são cruciais por dois motivos: para orientar as
políticas públicas dos governos e organizações internacionais com relação aos
migrantes e para realizar estatísticas sobre esse tipo de mobilidade, possibilitando
a criação dos programas, ações e atividades.
Com relação à denominação, não obstante a existência de inúmeros
termos, “refugiado ambiental” é uma expressão bastante difundida entre os
pesquisadores que se dedicam ao estudo da mobilidade humana induzida
por questões ambientais (incluídas as questões climáticas). Segundo o
entendimento de Cournil e Mayer (2014), a utilização do vocábulo “refugiado”
não é neutra, mas um ato militante que sugere uma analogia entre as migrações
ambientais e os refugiados. Para Essam El-Hinnawi, a resposta que se dá à
pergunta “qual a denominação de tais migrantes” determina o grau de apoio
e de proteção que os indivíduos receberão, incluindo a solução de longo prazo
para sua condição. Em publicação de 1985 para o Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA), o autor denomina esta categoria “refugiados
ambientais” e os define como:

[...] para o propósito deste livro, refugiados ambientais são


definidos como aquelas pessoas que foram forçadas a deixar
seu habitat tradicional, temporária ou permanentemente,
por causa de uma perturbação ambiental acentuada
(natural e/ou desencadeada por pessoas) que colocou em
risco suas existências e/ou afetou seriamente a qualidade
de suas vidas. (EL-HINNAWI, 1985, p. 3, tradução nossa).

Para Carolina de Abreu Batista Claro (2018), os “refugiados climáticos”


(ou ambientais) são refugiados não convencionais, uma vez que não têm
proteção garantida pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951
(“Convenção de 1951”).
Isso porque, segundo dispõe o artigo 1º da Convenção de 1951, um dos
requisitos para obtenção do status de refugiado é a fundada perseguição por
motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Como
apontam Valle e Saliba (2017), considerando que o fenômeno das migrações
climáticas é complexo, com diferentes características e múltiplos fatores, não é
possível sepultar que, na maior parte dos casos, houve perseguição. Ainda assim,
reconhece-se que, em alguns episódios específicos, é possível utilizar o regime
de proteção da Convenção dos Refugiados9.
François Gemenne (2015), por outro lado, sustenta que a simples
omissão dos Estados em garantir boas condições ambientais em determinada
região, fazendo com que os indivíduos saiam de seus países, é uma forma de
perseguição, logo, seria possível garantir proteção convencional a tal grupo de

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 139


pessoas. Contudo, há que se considerar que a maior parte dos países emissores
de deslocados ambientais sofrem de deficiência generalizada de estrutura e de
recursos em relação a toda população, não a um grupo específico de pessoas
com base em raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas,
o que torna difícil comprovar o liame entre negligência deliberada do Estado
baseada nos critérios da Convenção de 1951 e o deslocamento de pessoas (VALLE;
SALIBA, 2017). Ademais, segundo Jane Mc Adam (2009), o migrante climático
se desloca primordialmente para escapar de uma situação de calamidade do
meio ambiente que expõe sua vida e segurança em risco e não de um governo
específico – afastando, assim, o elemento essencial da perseguição.
Alguns sistemas regionais buscaram oferecer soluções próprias para
o tratamento de tais indivíduos. No âmbito da União Africana, o conceito de
refugiado foi ampliado pela Convenção que Rege os Aspectos Específicos dos
Problemas dos Refugiados na África (1969) para “qualquer pessoa que, devido
a (...) acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública (...) seja
obrigada a deixar o lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro
lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade.”.
No contexto americano, os migrantes climáticos poderiam ser enquadrados
no conceito ampliado de refugiados estabelecidos pela Declaração de Cartagena
sobre Refugiados (1984), que garante o status para quem foge de seu país
devido a “grave e generalizada violação de direitos humanos”. Contudo, como
o instrumento não tem força vinculante, a Declaração tem sua aplicação
condicionada à decisão dos Estados, que vêm demonstrando sua opinio juris
no sentido de que desastres e degradações ambientais não são considerados
“graves violações de direitos humanos” e que o elemento perseguição deve
estar presente para o status de “refugiado”10. Este posicionamento subsidia a
tentativa de afastar a responsabilidade dos Estados de destino, como apontam
Valle e Saliba (2017), uma vez que a condição de refugiado implica na garantia
de direitos, como o non-refoulement11, na facilitação de sua permanência e na
garantia de reunião familiar e acesso aos direitos sociais.
Pelo não enquadramento dos migrantes climáticos no escopo da proteção
de tais convenções sobre refugiados, parte da doutrina – como Jane McAdam
e Stephan Castles, chamados de autores minimalistas12 e – de Organizações
Internacionais – como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR) e a OIM), entende que não é possível denominar “refugiadas” as pessoas
que migram por questões climáticas, opinião adotada neste artigo. Mais além,
posiciona-se o ACNUR no sentido de que o uso da terminologia “refugiado” para
os migrantes climáticos pode enfraquecer o regime legal de proteção daqueles
refugiados convencionais, que já sofrem com políticas de restrição de ingresso
de solicitantes de refúgio em países do Norte Global13.
Outro elemento essencial para a proteção convencional é o cruzamento
de fronteiras e, como concluíram Boano, Zetter e Morris (2008), os refugiados
climáticos são, em geral, internos. Com relação às pessoas que se deslocam dentro

140 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


dos limites de seu Estado devido a questões climáticas, conforme os Princípios
Orientadores Relativos aos Deslocados Internos (1998), essas poderiam ser
entendidas como “deslocados internos”, definidos como:

[...]pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas


a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de
residência habituais, particularmente em consequência
de, ou com vista a evitar, (...), violações dos direitos
humanos ou calamidades humanas ou naturais, e que não
tenham atravessado uma fronteira internacionalmente
reconhecida de um Estado.

A despeito de apresentarem um robusto corpo de direitos dos deslocados


e deveres do Estado – como, por exemplo, a proteção e assistência humanitária,
a proteção contra o deslocamento arbitrário e o direito a um padrão adequado
de vida – a sua força jurídica ainda é questionável14, dificultando a incorporação
automática no ordenamento jurídico doméstico e a responsabilização dos
governos pelo descumprimento. Como observa Érika Ramos (2011), apenas
em situações excepcionais o ACNUR presta assistência a deslocados internos
em situações de risco não compreendidos na Convenção de 1951, como as
catástrofes – cita-se, como exemplo, o tsunami no Oceano Índico, em 2004, o
terremoto que ocorreu no Paquistão, em 2005, o furacão que atingiu o Haiti, em
2010, e o ciclone em Moçambique, em 2019.
Em resumo, apesar de avanços políticos – alguns recentes instrumentos
soft law15 visam regulamentar a temática, ainda que de modo não vinculante16 e
parcial – e das evidências empíricas cada vez maiores, ainda não há um acordo
entre os Estados capaz de definir, de forma explícita e/ou suficiente, a situação
dos que se deslocam por motivos climáticos, nem proporcionam mecanismos
eficazes para sua proteção.

2.2 O tratado internacional como uma solução aos migrantes


climáticos
A concepção de um tratado internacional (portanto, vinculante) definindo o
fenômeno das migrações climáticas, regulamentando as atribuições dos Estados
e outros sujeitos e, especialmente, garantindo a proteção dos direitos humanos
dos migrantes é, sem dúvida, o cenário ideal, mas quase utópico. Alguns autores
e organizações propuseram interessantes meios de normalizar o tema por fontes
internacionais, como tratados, protocolos e soft law. Carolina de Abreu Batista
Claro (2015) assim classificou as propostas existentes:

a) Propostas de ampliação da Convenção de 1951: tais propostas


pretendem ampliar o escopo de proteção do tratado existente para
abranger também aqueles que se deslocam forçadamente por questões

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 141


ambientais/climáticas. Também existem propostas para celebração de
um protocolo à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças
do Clima (United Nations Framework Convention on Climate Change,
UNFCCC) para incluir, além das medidas de mitigação e adaptação, a
proteção daqueles que migram induzidos por questões climáticas;

b) Propostas de tratados específicos: Claro (2015) destaca a proposta da


Universidade de Limoges (França) para criação de uma “Convenção
Relativa ao Estatuto Internacional dos Deslocados Ambientais”, que trata
de deslocamento humano forçado e voluntário e se baseia em princípios
do Direito Internacional, como da solidariedade, do non-refoulement e
das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, garantindo seus
direitos humanos;

c) Propostas de proteção por meio da soft law: Claro (2015, p. 138)


ressalta a ideia aventada por Benoît Mayer de elaboração de uma
resolução da Assembleia Geral da ONU para criar uma “estrutura global
que seria implementada por meio de negociações bilaterais e regionais
e por cooperação e fundos da comunidade internacional através de
uma agência da ONU”. Contudo, tal proposta ainda esbarra na falta
de vontade política de Estados (especialmente aqueles que recebem
os migrantes) de implementá-la e, por não ter força vinculante, pode
nascer fadada ao insucesso.

Não obstante os esforços para elaborar um documento jurídico, muitos


daqueles que militam pela causa dos migrantes climáticos abandonaram o foco
em conceber um novo documento devido aos obstáculos que o tornam inviável,
ao menos em curto e médio prazo.
Jane McAdam (2011) apresenta três argumentos do porquê o tratado não
é uma resposta. O primeiro é referente às evidências empíricas coletadas sobre
a relação entre mudanças climáticas e migração indicando que o movimento
é predominantemente interno e que o processo de degradação ambiental é
gradual. Logo, boa parte da migração climática é escalonada e interna, escapando
do escopo das propostas internacionais melhor desenvolvidas, que pressupõem
o cruzamento de fronteiras e/ou a ocorrência de um evento danoso súbito.
O segundo argumento é quanto à causalidade da migração. McAdam
afirma que “é conceitualmente problemático e empiricamente falho, na maioria
dos casos, sugerir que a mudança climática por si só causa migração” (2011, p.
12, tradução nossa). Como exposto, a relação entre o aquecimento global e a
migração não é, em regra, direta, pois a alteração climática age exacerbando
as vulnerabilidades existentes em certas comunidades e a motivação migratória
muitas vezes tem componentes familiares, culturais, religiosos e individuais. Desse
modo, a autora conclui que seria praticamente impossível e conceitualmente
arbitrário diferenciar quem merece proteção por ter sofrido os efeitos negativos

142 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


diretos das mudanças climáticas daqueles que são “somente” vítimas de
dificuldades econômicas ou ambientais. A proposta de proteção dos “migrantes
da sobrevivência” (survivor migrants), de Alexander Betts (2010), supriria este
impasse, pois não distinguiria a causa específica do movimento forçado.
Por fim, McAdam (2011) expõe os embaraços políticos na celebração de
um tratado, sintetizados na falta de vontade dos Estados em oferecer proteção
a outra categoria de pessoas e criar responsabilidades e encargos financeiros.
Ainda que um pacto seja firmado para proteger os interesses dos migrantes
climáticos, sua ratificação, implementação, enforcement e monitoramento não
seriam fáceis, como se observa nas atuais limitações de recepção dos refugiados
“convencionais” no Norte Global. É, portanto, improvável que haja um tratado
internacional multilateral reconhecendo expressamente o fenômeno da
migração climática a curto e médio prazo, sendo uma possibilidade aventada
por McAdam focar na elaboração de instrumentos bilaterais e regionais para
abordar a temática.
Claro (2018) observa que, se não há proteção internacional, os Estados
tampouco costumam oferecer, em suas legislações domésticas, tratamento
jurídico distinto daquele aplicável aos migrantes econômicos comuns, sujeito aos
controversos e situacionistas conceitos de soberania, nacionalidade e território,
uma vez que o estrangeiro (ou imigrante) é o “não nacional” do país onde
pretende ingressar, prevalecendo “a discricionariedade estatal na sua admissão
e retirada dos limites territoriais do Estado, ressalvadas as exceções consagradas
no Direito Internacional” (CLARO, 2018, p. 83).
Desse modo, salvo poucos países que possuem proteção específica, não é
adotada uma política que ofereça uma solução duradoura e compatível com a
lógica dos direitos humanos e do meio ambiente para tais pessoas vulnerabilizadas
pela injustiça climática17, seja essa saída de permanência e integração na região
que as recebeu ou de possibilitar seu regresso ao local de origem – ou, ainda,
de realocação planejada fora das áreas de alta exposição de ameaças climáticas,
respeitados os direitos de informação e transparência dos afetados.
Katrina Wyman (2013) conclui que a falta do instrumento vinculante (“legal
gap”) cria outro “gap” que deve ser superado para haver mecanismos eficazes
para lidar com as migrações climáticas: o “funding gap”, que consiste na ausência
de uma fonte internacional de financiamento para auxiliar e compensar os
custos da migração climática, especialmente nos países em desenvolvimento e
nos Pequenos Estados Insulares. Dessa maneira, é oportuno o estudo de outros
sistemas jurídicos que possam evoluir no tratamento dos migrantes climáticos,
como o Direito das Mudanças Climáticas, que será abordado a seguir.

3 O DIREITO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E AS MIGRAÇÕES


Até a década de 1980, a temática das mudanças climáticas estava restrita
à comunidade científica. Contudo, a partir de relatórios científicos mais
palatáveis para o público, que apontaram as possíveis consequências nefastas

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 143


do denominado “efeito estufa”, empreenderam-se esforços para criar uma
estrutura legal capaz de estabelecer obrigações e instrumentos para os Estados
enfrentarem o problema. Nesse contexto, em 1992 foi assinada a UNFCCC
(Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança no Clima), visando
estabilizar as concentrações atmosféricas dos GEE para evitar que atividades
antrópicas levem a uma interferência perigosa no clima da Terra.
Utilizando o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”,
a UNFCCC estabeleceu compromissos gerais para todos os signatários (como, por
exemplo, elaborar inventários nacionais de emissões de GEE) e compromissos
específicos para as nações desenvolvidas (Anexo-I), notadamente a adoção de
medidas nacionais para reduzir as emissões de GEE, que foram delineadas no
Protocolo de Quioto (1997)18. Para efetivação da UNFCCC, foi criada a Conferência
das Partes (COP) como órgão supremo para a discussão e atualização dos temas
em reuniões anuais.
Após o fracasso com os resultados do Protocolo de Quioto nas emissões
globais de GEE – pelo contrário, as emissões aumentaram em cerca de 38% – e
nas negociações durante a COP-15 (Copenhague, Dinamarca) para a celebração
de um tratado internacional com metas ambiciosas, em novembro de 2016,
entrou em vigor o Acordo de Paris (elaborado durante a COP-21, em 2015), um
tratado internacional que visa conter o aumento da temperatura global “bem
abaixo de 2ºC [...], e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura
a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais”, promover medidas de adaptação e
resiliência às mudanças do clima e proporcionar fluxos financeiros consistentes.
Um dos seus principais instrumentos é a cooperação voluntária dos
países para reduzir as emissões de GEE e adaptar-se aos impactos negativos
– as Contribuições Nacionalmente Determinadas (Nationally Determined
Contributions - NDC)19. Assim, difere dos demais acordos climáticos de duas
maneiras: a primeira, por estabelecer que todas as partes (e não apenas os países
desenvolvidos) devem estabelecer metas de redução, na medida do possível.
Em segundo, o acordo combinou abordagens que derivam de políticas internas
de cada país (bottom-up) e elementos centralizados de supervisão, orientação e
coordenação (top-down). Anju Sharma expõe que este sistema híbrido de força
jurídica apresenta fragilidades:

Como resultado, o Acordo de Paris inclui apenas obrigações


de conduta para alcançar resultados, mas está faltando
uma obrigação juridicamente vinculante de implementar
Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). As
(mais vinculantes) disposições “devem” do Artigo 4.2 [no
inglês, shall] aplicam-se apenas à preparação, comunicação
e manutenção de sucessivos NDCs e à busca de medidas de
mitigação domésticas com o objetivo de alcançar os NDCs.
O caráter legal das disposições no Acordo de Paris varia,

144 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


desde disposições obrigatórias para partes individuais
em uma extremidade, disposições obrigatórias que são
qualificadas de alguma forma (por exemplo, pela inclusão
de “conforme apropriado”) no meio, a disposições que
encorajam, recomendar ou definir metas ambiciosas na
outra extremidade (SHARMA, 2020, p. 22, tradução nossa).

O Acordo de Paris abordou as principais respostas políticas às mudanças


climáticas: a mitigação e a adaptação. A mitigação refere-se às ações de redução
ou limitação da quantidade de GEE na atmosfera. Tais medidas são necessárias
para evitar o aumento do efeito estufa no longo prazo e os impactos negativos
para os sistemas humanos e, assim, têm relação mediata com o fenômeno das
migrações climáticas – os quais ocorrem na atualidade.
Por sua vez, a adaptação é, em sistemas humanos, “o processo de ajuste
ao clima real ou esperado e seus efeitos, a fim de moderar os danos ou explorar
oportunidades benéficas”. (IPCC, 2021, p. 3886, tradução nossa). As medidas de
adaptação pretendem reduzir a vulnerabilidade das comunidades e aumentar
sua resiliência aos efeitos adversos das mudanças climáticas, uma vez que os
riscos decorrentes das mudanças climáticas atuais e de médio prazo devem ser
gerenciados, pois não podem ser totalmente evitados.
As migrações climáticas podem ser respostas adaptativas às mudanças do
clima, quando reduzem os riscos dos danos que podem ser sofridos por um
indivíduo/família/comunidade e, ainda, aproveitam as oportunidades geradas
pelo cenário de alteração climática. Adrián e Martínez (2021) exemplificam duas
medidas migratórias adaptativas: (i) diversificação de renda, quando a migração
de um ou mais indivíduos da família/comunidade é utilizada para reduzir a
pressão do lugar de origem em tempos de estresse climático, por meio do envio
de remessas e da diminuição da pressão humana; e (ii) realocação planejada,
quando há uma resposta institucional para mover as comunidades inteiras de
um local de alta exposição a perigos climáticos para um lugar mais seguro.
A evolução das ciências das mudanças climáticas permitiu constatar
que as medidas de mitigação não serão suficientes para evitar os prejuízos
relacionados com os impactos das mudanças climáticas e que as ações de
adaptação têm restrições (de suporte adequado aos vulnerabilizados) e limites
(de impossibilidade técnica) para sua eficácia e relevância. Surgiu no debate no
âmbito da UNFCCC a inclusão de ações para enfrentar os prejuízos negativos
imediatos e de evolução lenta das mudanças climáticas, em particular, sobre os
países em desenvolvimento, compreendidos pelo termo “perdas e danos”20.
Neste sentido, as migrações climáticas também podem ser uma manifestação
da adaptação que “falhou”, quando as pessoas são forçadas a deixar seus lugares
de residência habitual, com impactos negativos econômicos (habitação, fonte
de renda) e não econômicos (cultura, educação, laços familiares). Não obstante,
Adrián e Martínez notam que:

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 145


[...] a mobilidade no contexto das mudanças climáticas
não é tão “preto no branco”, pois a imobilidade também
faz parte dessa relação. Existe um espaço cinzento onde
dialogam os fatores contextuais, as dimensões temporais
e espaciais, bem como a vontade e a capacidade individual
de decisão sobre o movimento ou permanência.” (ADRIÁN;
MARTÍNEZ, 2021, p. 22, tradução nossa).

Sendo a migração climática uma medida de adaptação ou um exemplo


de “perdas e danos”, propõe-se verificar como esses dois institutos do
Direito Internacional das Mudanças Climáticas apresentam soluções para a
regulamentação do fenômeno.

3.1 A adaptação e a preocupação com a mobilidade humana

A pauta da migração climática foi inicialmente incorporada no sistema da


UNFCCC sob um viés da adaptação. Somente na COP-16, realizada em Cancun
(México) é que se reconheceu formalmente – ou seja, incorporado aos outcomes
– que a mobilidade induzida pelo aquecimento global é um problema de
cooperação técnica internacional.
A decisão final (Decisão 1/CP.2016) estabeleceu o Quadro de Adaptação
de Cancun (Cancun Adaptation Framework - CAF) para intensificar a ação de
adaptação e, conectando o tema da adaptação com o da migração, convidou as
partes a intensificar as ações tomando medidas para “melhorar a compreensão,
coordenação e cooperação com relação ao deslocamento induzido pelas
mudanças climáticas, migração e relocação planejada, quando apropriado, nos
níveis nacional, regional e internacional” (Decisão 1/CP.2016 - 14(f)).
Em geral, as abordagens de adaptação variam entre aquelas que tratam de
perigos climáticos específicos (como, por exemplo, elevação do nível do mar e
desertificação) e aquelas que lidam com fatores mais amplos da vulnerabilidade,
como a pobreza, a desigualdade socioeconômica e a insegurança alimentar,
como observam Kuhl, Van Maanen e Scyphers (2020). Ambas são importantes
para reduzir as migrações climáticas forçadas, pois diminuem a exposição à
ameaça climática e aumentam a resiliência das populações, tornando-as menos
susceptíveis aos desastres climáticos e, assim, aos deslocamentos indesejados.
Além disso, algumas abordagens incluem a promoção da migração como uma
forma de adaptação aos impactos do clima, seja essa por iniciativa individual/
familiar ou institucional ou pela realocação planejada de comunidades de áreas
de maior risco para locais seguros.
Dentre os principais instrumentos do sistema de adaptação do Direito
Climático, temos os Planos Nacionais de Adaptação (National Adaptation
Plans – NAPs), estabelecidos pelo CAF, as comunicações sobre adaptação e as

146 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


NDCs, previstas no Acordo de Paris, os fundos de financiamento de projetos
de adaptação e os meios de cooperação. Os três primeiros são mecanismos
elaborados e implementados internamente pelos Estados, partindo da ideia de
que a adaptação é sobretudo uma questão local. Já os últimos são meios de
cooperação internacional para possibilitar aos Estados vulneráveis atingirem
seus planos de adaptar-se à mudança do clima.
Segundo o mapeamento feito pela OIM (2018) acerca das NAPs,
comunicações de adaptação e INDCs submetidas pelos Estados, o tema
da mobilidade humana (migração, deslocamento forçado ou realocação
planejada) é mencionado na maior parte das NAPs (81% do total de 37
submissões analisadas) e das comunicações sobre adaptação (70% do total
de 143 submissões analisadas) de países fora do Anexo I21, mas está pouco
presente nas INDCs apresentadas à época da celebração do Acordo de Paris
(20% do total de 165 submissões analisadas).
O exame revelou que a maior parte dos países reconhece a alteração
climática como um driver migratório22 e que alguns Estados particularmente
vulneráveis ao clima têm a migração como estratégia de adaptação, seja pela
realocação planejada de comunidades – como as propostas do Canadá, de
Malta, de Fiji, de Cuba e de Ruanda – ou pela migração laboral para diversificar a
renda – como as propostas da Etiópia e de Fiji. Outras temáticas frequentes nos
documentos nacionais são: a potencial insegurança da ordem pública provocada
pelas migrações climáticas; a necessidade de estabelecer medidas de evacuação
prévia aos desastres climáticos; e o inchaço das cidades causado pelas migrações
rural-urbana.
Apesar da inclusão significativa da pauta da mobilidade nas ações de
adaptação analisadas, a OIM (2018) notou sua limitada implementação e a falta
de coerência e coordenação das políticas entre os diversos atores governamentais
envolvidos (autoridades de meio ambiente, de economia e trabalho e de
migrações) e de legislação especializada tanto nas áreas de mudanças climáticas
quanto na de mobilidade humana. Ademais, a diminuta abordagem do tema
nas INDCs demonstra a falta de comprometimento dos Estados em assumir
obrigações quanto às medidas de adaptação – ao menos obrigações de reporte
e de revisão – como prevê o Acordo de Paris.
Outro gargalo é o financiamento. Em 2009, durante a COP-15, os Estados
desenvolvidos acordaram em providenciar, até 2020, U$100 bilhões por ano para
auxiliar os países em desenvolvimento em medidas de mitigação e adaptação.
No entanto, o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE, 2021), Climate Finance Provided and Mobilised by Developed
Countries, revelou que, em 2019, o financiamento chegou a U$80 bilhões, sendo
somente 25% destinados a ações de adaptação.
A decisão da COP-26 (Glasgow Climate Pact) reconheceu esta falha e instou
os países desenvolvidos a aumentar a provisão de financiamento até 2025,
além de considerarem dobrar a quantia referente às medidas de adaptação,

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 147


para que se tenha um balanço entre mitigação e adaptação. Um montante
recorde – U$232 milhões – foi compromissado ao Fundo de Adaptação
(Adaptation Fund) e mais de U$450 milhões foram mobilizados para iniciativas
locais de adaptação23. Ainda assim, um dos principais pleitos dos países em
desenvolvimento, referente à inclusão de taxas nos mercados de carbono
para financiar ações de adaptação, apareceu timidamente nos acordos finais
– apenas o mercado voluntário de carbono (estabelecido pelo artigo 6.4 do
Acordo de Paris) será taxado em 5% para tal fim.

3.2 As perdas e danos e a preocupação com a mobilidade humana

Desde 1991, nos preparativos para a concepção da UNFCCC, os países que


integram a Aliança dos Pequenos Estados Insulares (Alliance of Small Island
States – AOSIS) demonstravam a preocupação com as perdas e danos. Contudo,
foi somente em 2007, durante a COP-13 (Bali), que o tema ganhou atenção
de todos os países, quando foi assinado o Plano de Ação de Bali tratando das
perdas e danos ainda dentro do guarda-chuva das medidas de adaptação. Em
2013, na COP-19 (Varsóvia), as perdas e danos foram institucionalizadas dentro
do regime internacional da UNFCCC, com a criação do Mecanismo Internacional
de Varsóvia para Perdas e Danos (Warsaw International Mechanism for Loss and
Damage associated with Climate Change Impacts - WIM) e seu Comitê Executivo
(WIM ExCom).
Ian Fry (2016) sustenta que o trabalho inicial do WIM estava especialmente
focado em aprimorar o conhecimento e a compreensão sobre os riscos climáticos
e estreitar o diálogo entre os países e pouco havia sobre ações práticas de
facilitação aos países vulneráveis a lidar com as perdas e danos. Maxine Burkett
(2014) considera o mecanismo uma abordagem “conservadora” do tema,
agradando à classe dos países desenvolvidos que querem eximir-se de eventual
responsabilização jurídica e financeira.
Apesar do embate entre os países e as dificuldades em definir um conteúdo
que contentasse a todos, o Acordo de Paris trouxe o tratamento autônomo das
perdas e danos, ao lado das medidas de mitigação e adaptação, em seu artigo 8º,
acolhendo o pleito da AOSIS. A Decisão 1/CP21, tomada durante a COP-21 (Paris)
e que adotou o Acordo de Paris, estabeleceu que o WIM, até então com mandato
limitado, fosse vinculado ao Acordo, com atuação permanente na UNFCCC. A
Decisão previu também que o WIM ExCom deveria estabelecer (i) uma câmara
de compensação para a transferência de risco e, como abordado acima, (ii)
uma força-tarefa para desenvolver recomendações de abordagens integradas
para prevenir, minimizar e abordar o deslocamento relacionado aos impactos
adversos da mudança do clima.
A primeira tarefa do WIM ExCom foi apresentada durante a COP-23 (Bonn),
onde foi oficialmente lançada a plataforma Fiji Clearing House for Risk Transfer,
com um repertório de informações sobre seguros e transferência de risco.

148 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Apesar das expectativas sobre a plataforma, Pandit Chhetri, Schaefer e Watson
(2021) observaram que essa tem sido utilizada, até o momento, como um
fórum de compartilhamento de experiências sobre a transferência de risco, ao
invés de agir para melhorar o apoio aos países em desenvolvimento. A segunda
missão foi apresentada na COP-24 (Katowice), quando o grupo de trabalho sobre
mobilidade humana incluiu suas recomendações no relatório anual da WIM
ExCom, convidando as partes a, dentre outras medidas, coletar dados sobre
mobilidade humana climática, elaborar leis e políticas neste sentido e facilitar
a migração segura e ordenada, e recebeu uma função consultiva nos próximos
anos junto à WIM ExCom.
Não obstante os esforços em criar mecanismos e recomendações
multilaterais para lidar com as perdas e danos, dois pontos essenciais e
controvertidos ainda aparecem sem resposta suficiente – o financiamento e a
compensação (ou responsabilidade) – incluindo, para o propósito deste artigo,
os migrantes climáticos.
O Acordo de Paris não criou qualquer referência direta ao suporte financeiro
às medidas de perdas e danos e, até a COP-26 (Glasgow), as partes ainda não
se acertaram sobre a criação de um mecanismo específico de financiamento,
deixando para as próximas COPs a difícil tarefa de guiar instituições, como o
Green Climate Fund e o Standing Committee on Finance ou criar uma instituição,
para assegurar que as ações de perdas e danos serão devidamente suportadas.
Antes mesmo da COP-21, Burkett (2014) já apontava que as medidas de
transferência de risco não eram suficientes para resolver todas as perdas e danos,
pois existem perdas derivadas de riscos previsíveis a longo prazo ou de riscos
residuais, tais como aumento do nível do mar e desertificação, que exigirão um
acúmulo grandioso de recursos, com a combinação de abordagens institucionais
e de governança, gerenciamento e ferramentas financeiras. Fry (2016) assevera,
ainda, que será necessário um pensamento inovador acerca da temática – de
acordo com o conceito do poluidor pagador – uma vez que os custos de perdas e
danos devido às mudanças climáticas são substanciais e continuarão a aumentar.
Com relação ao outro “calcanhar de Aquiles” das perdas e danos,
a responsabilização, Burkett observou (2014) que muitos países em
desenvolvimento vulneráveis clamam por um mecanismo de compensação ou
reabilitação que colete e distribua fundos para tratar dos riscos residuais. Tais
países posicionam-se em consenso no sentido de que o mundo desenvolvido,
em particular, tem a obrigação legal e moral de ajudar a reabilitar e compensar
as comunidades vulneráveis, por se tratar de uma questão de justiça climática.
Quanto ao tema, a Decisão 1/CP21 foi um verdadeiro “banho de água fria” para
aqueles que acreditavam na criação de mecanismos para a responsabilização
jurídica dos países que mais poluem, pois prevê expressamente, em seu parágrafo
50, que a COP “concorda que o Artigo 8 do Acordo não envolve ou fornece uma
base para qualquer responsabilidade ou compensação”.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 149


Uma boa iniciativa para garantir suporte às medidas de perdas e danos é a
Rede de Santiago (Santiago Network) criada pela COP-25 (Madrid) para prover
assistência técnica de organizações aos países em desenvolvimento, como, por
exemplo, auxiliar os países sobre como planejar a realocação de comunidades
ameaçadas pelas mudanças climáticas. A COP-26 teve o importante papel de
definir as funções da rede, que inclui a catalisação de assistência técnica orientada
para as demandas dos países que necessitam, conectando aqueles que buscam
auxílio técnico com o sujeito (organização, rede, especialista) que pode provê-lo.
Também inclui a facilitação do acesso a ação e apoio (financiamento, tecnologia e
capacitação), sob e fora da Convenção e do Acordo de Paris para evitar, minimizar
e abordar perdas e danos. No entanto, ficou para a próxima COP (a ser realizada
em Sharm El-Sheikh, no Egito) a incumbência de estruturar e operacionalizar
a Rede de Santiago – incluindo a busca por fontes de financiamento, o que é
sempre uma pauta de discordância entre os países.
Portanto, para os atuais e previstos impactos climáticos, ainda que o
tratamento das perdas e danos associados à mudança do clima, incluindo as
migrações climáticas forçadas, tenha evidentemente evoluído no âmbito da
UNFCCC, o regime de resposta, ainda sem previsão direta de financiamento e
compensação, é deveras programático e informativo e pouco convertido em
ações práticas para minimizar as perdas daqueles que, neste momento, estão
sofrendo prejuízos decorrentes da injustiça climática. O que se verifica na
atualidade é que os países vulneráveis dependem de solicitações ad hoc para
auxílio a desastres quando ocorre um evento devastador e recebem, quando
possível, resposta lenta e insuficiente para lidar com a complexa temática das
migrações climáticas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A migração climática é uma realidade cada vez mais perceptível pela


academia e organizações especializadas, mas continua sendo negligenciada pelo
Direito Internacional. Apesar de serem comumente denominados “refugiados
climáticos”, o sistema convencional de proteção aos refugiados ainda não
apresentou uma solução abrangente e integral para proteger os direitos humanos
das pessoas que migram por questões ambientais e/ou climáticas – como
resultado, aqueles que são uma manifestação da injustiça climática carecem de
assistência técnica e financeira previsível e suficiente.
Diante da ausência de reconhecimento, é preciso pensar em alternativas
que possam oferecer amparo aos migrantes climáticos em curto e médio prazo.
O Direito das Mudanças Climáticas, que inicialmente estava focado em ações de
mitigação das emissões de GEE, vem apresentando ferramentas para lidar com
o tema, especialmente após o Acordo de Paris, que deu um primeiro passo para
reconhecer o problema das mudanças climáticas como também antropocêntrica.

150 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Os mecanismos de adaptação, assim como de perdas e danos, estão evoluindo
para incluir as migrações como uma forma de adaptação das comunidades aos
efeitos adversos do clima (e evitar novos deslocamentos) ou para abordar e
mitigar as perdas e danos dos deslocamentos forçados.
No entanto, os Estados que historicamente mais se beneficiaram com as
atividades que emitem GEE são aqueles que travam as discussões migratórias e
climáticas, especialmente quanto ao financiamento e a compensação, e evitam
criar novas responsabilidades para si. O que se percebe é que as COPs não são,
em sua essência, fóruns de discussão de direitos humanos: apesar da crescente
preocupação com a pauta, notadamente com a participação cada vez maior
dos ativistas jovens, pretos, indígenas e periféricos, o conteúdo das decisões e
acordos que resultam dos encontros ainda não apresentou soluções duradouras
e completas aos mais vulnerabilizados pelo clima, incluindo os migrantes
climáticos.
Um caminho que se abre é o da litigância climática. A recente decisão AG-
ONU sobre o direito ao meio ambiente saudável ser um direito humano e a
criação de uma relatoria especial de clima e direitos humanos pode proporcionar
experiências positivas para aqueles que litigam. Resta saber se as respostas
das Cortes serão condizentes com a sua urgência e gravidade, considerando
alternativas compatíveis com a justiça climática.

NOTAS
1
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas define ‘mudança climática’ como
“uma mudança no estado do clima que pode ser identificada (por exemplo, usando testes
estatísticos) por mudanças na média e/ou na variabilidade de suas propriedades e que persiste
por um período prolongado, geralmente décadas ou mais. As mudanças climáticas podem ser
devidas a processos internos naturais ou forças externas, como modulações dos ciclos solares,
erupções vulcânicas e mudanças antropogênicas persistentes na composição da atmosfera ou
no uso do solo.”. (IPCC, 2021, p. 3895, tradução nossa).

2
O IPCC é um órgão com apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) para aconselhamento
científico. Foi constituído em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa
Ambiental das Nações Unidas.

3
A Assembleia Geral da ONU (2016, p. 13, tradução nossa) concordou com a seguinte definição
de desastre: “Uma grave perturbação do funcionamento de uma comunidade ou sociedade,
em qualquer escala, devido a eventos perigosos interagindo com condições de exposição,
vulnerabilidade e capacidade, levando a um ou mais dos seguintes perdas e impactos:
humanos, materiais, econômicos e ambientais”.

4
A definição adotada no presente artigo foi escolhida por ter sido estabelecida pela Organização
Internacional para as Migrações (OIM), principal organização que atua no enfrentamento dos
desafios relacionados às migrações, e por ser ampla e baseada no termo “migrante”, que
abrange tanto categorias legalmente definidas, como aquelas pessoas cujo movimento e
status legal não têm definição pela legislação internacional.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 151


5
Alguns dos primeiros autores sobre migrações ambientais/climáticas são: Essam El-Hinnawi
(1985), Gaim Kibreab (1997), Richard Black (1998), JoAnn McGregor (1993), Astri Suhrke
(1993), Diane C. Bates (2002).
6
A AG-ONU (2016, p. 24, tradução nossa) concordou com a seguinte definição de vulnerabilidade:
“As condições determinadas por fatores ou processos físicos, sociais, econômicos e ambientais
que aumentam a suscetibilidade de um indivíduo, uma comunidade, ativos ou sistemas aos
impactos dos perigos.”.
7
Norman Myers foi um dos primeiros ambientalistas a prever quantos “refugiados ambientais”
existirão no mundo (em 1993, afirmou que existirão 212 milhões de refugiados ambientais em
2050), mas apresentou números e metodologias controversas.
8
Carolina de Abreu Batista Claro (2015) destaca nomenclaturas como “refugiados ambientais/
climáticos”, “pessoas ambientalmente deslocadas”, “migrantes ambientalmente forçados”,
“eco refugiados”, “eco migrantes”, “eco evacuados”, “eco vítimas”.
9
Bruno Biazatti (2016) argumenta que a perseguição poderia ser caracterizada quando o
governo intencionalmente promove a degradação ambiental para lesionar um determinado
grupo de pessoas ou se nega propositalmente a dar assistência para um determinado grupo
que sofreu alguma degradação ou desastre ambiental.
10
No Brasil, foi negado o status de refugiado para os migrantes haitianos vindos após o
terremoto que atingiu Porto Príncipe em 2010. O Comitê Nacional para os Refugiados
(CONARE) analisou os pedidos e conclui que o status não poderia ser conferido aos haitianos,
pois não fora comprovado o elemento de “perseguição”. A opção do Governo brasileiro foi
de conceder o visto humanitário, previsto na Resolução Normativa 97 do Conselho Nacional
de Imigração (CNIg), que permitia a residência temporária por 5 anos (prorrogados) de 100
pessoas por mês, se cumpridos diversos requisitos (documentação, pagamento de taxa e sem
antecedentes criminais).
11
Proibição dos países em expulsar uma pessoa para um território onde possa estar exposta
à perseguição.
12
Em contraposição, existem os autores chamados de “maximalistas”, como Thomas F. Homer-
Dixon, Norman Myers e Erika Pires Ramos, que entendem que a melhor denominação seria
“refugiados climáticos/ambientais”, e tendem a isolar os fatores ambientais como a grande
força motriz do movimento migratório.
13
Catherine Wihtol de Wenden (2016) analisa que, na Europa, os índices de aceitação dos
solicitantes de refúgio são cada vez menores, uma vez que o contexto político e o perfil dos
novos refugiados são significantemente distintos daqueles para os quais a Convenção de 1951
foi criada.
14
Alguns autores argumentam que o instrumento pode ser considerado costume internacional,
uma vez que reiteradamente utilizados pelos Estados como padrão de atuação. No entanto,
este entendimento não é pacífico.
15
Dentre eles, citam-se o Marco para Redução de Riscos e Desastres 2015-2030 (Sendai, 2015);
a Agenda Nansen (Genebra, 2015); a Agenda pela Humanidade, proposta pela Cúpula Mundial
Humanitária (Istambul, 2016); a Declaração de Nova York para os Refugiados e Migrantes e a
Agenda.
16
Como explicam Souza e Leister (2015, p. 771), um conceito de soft law utilizado é o de
“normas que não são juridicamente obrigatórias, mas não são desprovidas de força legal.
Assim, soft law refere-se às normas do direito internacional que não são obrigatórias, de per
si, mas que desempenham um papel interpretativo importante na construção e interpretação
dos princípios e normas do direito internacional ambiental formal.”.

152 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


17
Anton e Shelton (2011) relatam que, de forma semelhante aos refugiados e deslocados de
conflitos armados, os migrantes climáticos/ambientais se encontram em situação de extrema
vulnerabilidade, estando sujeitos ao acesso desigual à assistência; à discriminação na prestação
de ajuda; à relocação forçada; à violência sexual e de gênero; à perda de documentação; ao
recrutamento de crianças para forças de combate; ao retorno inseguro ou involuntário; e às
questões de restituição de propriedade.
18
O Protocolo de Quioto (1997) à UNFCCC estabeleceu obrigações de redução de emissões
de gases de efeito estufa para os países industrializados a serem cumpridas no período entre
2008 e 2012 (primeiro período de comprometimento, prorrogado até 2020 na COP-18, em
Doha). Para auxiliá-los, foi estabelecida uma série de mecanismos flexíveis, como o comércio
de emissões, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e a implementação conjunta,
por meio dos quais os países puderam, por exemplo, cumprir suas obrigações mediante a
aquisição de créditos de redução excedentes de outros países. Importante notar que grandes
países emissores não participaram (ou ratificaram) o protocolo, como os EUA, a China, o
Canadá e a Rússia.
19
Até antes da celebração do Acordo de Paris, os Estados propuseram suas Intended Nationally
Determined Contributions (INDCs), que eram as propostas dos compromissos voluntários.
Após a ratificação do Acordo, as INDCs apresentadas passaram a ser NDCs.
20
Não há uma definição oficial do termo “perdas e danos”, mas a Doutrina comumente conceitua
como a “the actual and/or potential manifestation of impacts associated with climate change
in developing countries that negatively affect human and natural systems” (FCCC/SBI/2012/
INF.14 - Subsidiary Body for Implementation Thirty-seventh session Doha, 26 November to 1
December 2012). Maxine Burkett (2014) diferencia os termos “perdas” e “danos”, sendo as
“perdas” os impactos do aquecimento global cuja recuperação não é possível, combinação
de um evento danoso ao meio ambiente (como a destruição da infraestrutura litorânea pela
elevação do nível do mar) e a inabilidade da comunidade em restaurar ou reparar o local.
As perdas podem ser tanto econômicas como não econômicas, sendo as últimas as mais
convincentes e complexas do ponto de vista jurídico e socioeconômico. Já os “danos” referem-
se a impactos negativos para os quais o reparo ou a reconstrução é viável – como, por exemplo,
danos a um manguezal devido a tempestades intensas.
21
As partes fora do Anexo I da UNFCCC são principalmente países em desenvolvimento e mais
susceptíveis aos riscos climáticos. Para mais informações, ver <https://unfccc.int/parties-
observers>.
22
Drivers migratórios são definidos pela OIM (2019, p.56) como um conjunto complexo de
fatores (pessoais, sociais, estruturais, ambientais, entre outros) interligados que influenciam
as decisões de um indivíduo, família ou grupo de pessoas em relação à migração, incluindo o
deslocamento forçado. Os drivers migratórios compreendem tanto fatores positivos – como
a busca por novas oportunidades de vida e a reunião familiar - como negativos – como as
pressões causadas pela pobreza, pelo mercado de trabalho saturado e pela degradação
ambiental – que influenciam o movimento humano.
23
Conforme anunciado pela presidência da COP-26 em <https://unfccc.int/news/new-
announcements-relating-to-adaptation-made-at-cop26> Acesso em 24 nov 21.

REFERÊNCIAS
ADRIÁN, M.; GUTIERREZ, H. Fundación Heinrich Böll - Oficina Para Centroamérica
(ed.). Movilidad humana: derechos humanos y justicia climática. San Salvador: Ediciones
Böll, 2021. 118 p. Disponível em: <https://sv.boell.org/es/2021/04/05/movilidad-
humana-derechos-humanos-y-justicia-climatica>. Acesso em: 28 out. 2021.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 153


ASSEMBLEIA GERAL DA ONU – AG-ONU. Report of the open-ended intergovernmental
expert working group on indicators and terminology 49 relating to disaster risk
reduction. ONU-AG: A/71/644, 2016.

BETTS, A. Survival migration: a new protection framework. Global Governance, vol. 16, no. 3,
2010, pp. 361–382. JSTOR, <www.jstor.org/stable/29764952>. Acesso em: 19 jun 2020.

BIAZATTI, B. de O. A proteção internacional dos migrantes ambientais à luz do Direito


Internacional dos Refugiados e da proteção complementar. Revista Eletrônica de Direito
Internacional – Centro de Direito Internacional (CEDIN), v.17, jan/jun 2016. pp. 50-80.

BOANO, C.; ZETTER, R; MORRIS, T. Environmentally displaced people: Understanding the


linkages between environmental change, livelihoods and forced migration. Refugee
Studies Centre – Oxford Department of International Development. University of Oxford,
Nov. 2008. 45 p.

BURKETT, M., Loss and damage, Climate Law, v. 4, 2014, pp. 119-130.

CLARO, C. de A. B. A Proteção dos “Refugiados Ambientais” no Direito Internacional. 2015 -


Tese de Doutorado na Universidade de São Paulo – Faculdade de Direito, sob orientação
da Profa. Elizabeth de Almeida Meirelles.

CLARO, C. de A. B. O Conceito de “Refugiado Ambiental”. In: JUBILUT, Liliana Lyra et al.


Refugiados Ambientais. Boa Vista: Editora da UFRR, 2018. pp. 69-100.

CONFERÊNCIA SUL-AMERICANA SOBRE MIGRAÇÕES, 16., 2016, Assunção. Migración,


medio ambiente y cambio climático: agenda 2030, buenas prácticas y desafíos para
la región suramericana. Assunção: Resama - Red Sudamericana Para Las Migraciones
Ambientales, 2016. 32 p.

COURNIL, C.; MAYER, B. Les migrations environnementales: enjeux et governance. Paris:


Presses de Sciences Po, 2014.

EL-HINNAWI, E. Environmental refugees. Nairobi: UNEP, 1985.

FRANÇOIS G. One good reason to speak of “climate refugees”. Forced Migration Review,
Oxford: Oxford University Press, 2015, ed.49 p.70.

FRY, I. Moving forward on loss and damage: Post Paris. Singapura, 27 abr. 2016.

KÄLIN, W. Conceptualizing climate-induced displacement. In McAdam, J. Ed. Climate change


and displacement: Multidisciplinary perspectives 81, 85-86 (2010).

KUHL, L.; VAN MAANEN, K; SCYPHERS, S. An analysis of UNFCCC-financed coastal


adaptation projects: assessing patterns of project design and contributions to adaptive
capacity. World Development, [S.L.], v. 127, p. 104748, mar. 2020. Elsevier BV. <http://
dx.doi.org/10.1016/j.worlddev.2019.104748>.

LACZKO, F.; AGHAZARM, C. (Ed.) Migration, environment and climate change: Assessing the


Evidence. Genebra: Organização Internacional Pela Migração, 2009. 448 p.

154 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


MC ADAM, J. From economic refugees to climate refugees? review of international
refugee law and socio-economic rights: refuge from deprivation. Melborn Journal of
International Law, v. 31, 2009, p. 579.

MCADAM, J. Swimming against the tide: why a climate change displacement treaty is not the
answer. International Journal of Refugee Law, [S.L.], v. 23, n. 1, p. 2-27, 10 jan. 2011.
Oxford University Press (OUP).

MORTON, T. The ecological thought. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press,


2010.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PELA MIGRAÇÃO – OIM. Glossary on migration. 34. ed.


Genebra: OIM, 2019. p. 63.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PELA MIGRAÇÃO – OIM. Mapping human mobility and


climate change in relevant national policies and institutional frameworks. Genebra:
OIM, 2018.

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Climate


finance provided and mobilised by developed countries: aggregate trends updated
with 2019 data, climate finance and the USD 100 billion goal. Paris: OECD Publishing,
2021.

OXFAM. Confronting carbon inequality: putting climate justice at the heart of the COVID-19
recovery (Issue September). 2020.

PACÍFICO, A. M. P. A necessidade de criação de um regime ambiental internacional: o caso


dos deslocados ambientais. Boletim Meridiano 47, Brasília, v. 13, n. 133, p.3-9, set.
2012.

PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS - IPCC. Climate change


2021: the physical science basis. contribution of Working Group I to the sixth assessment
report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge
University Press. 2021. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-
report-working-group-i/>. Acesso em: 29 nov. 2021.

PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS - IPCC. Policymakers’


summary of the potential impacts of climate change. Report from Working Group
II to IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change. Commonwealth of Australia,
1990. Disponível em: <https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/05/ipcc_90_92_
assessments_far_wg_II_spm.pdf> Acesso em: 29 nov. 2021.

PANDIT CHHETRI, R.; SCHAEFER, L.; WATSON, C. Exploring loss and damage finance and its
place in the Global Stocktake. In ‘Financing Climate Action: iGST Discussion Series’.
2021.

RAMOS, É. P. Refugiados ambientais: em busca de reconhecimento pelo Direito


Internacional. 2011 - Tese de Doutorado na Universidade de São Paulo – Faculdade de
Direito, sob orientação do Prof. Alberto do Amaral Junior.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 155


REINO UNIDO. Foresight: migration and global environmental change (Final Project Report),
The Government Office for Science, London, 234 p., 2011.

SALIBA, A. T.; VALLE, M. F. V. do. A proteção internacional dos migrantes ambientais. Revista
de Informações Legislativas, Brasília, a. 54, n. 213, p.13-37, mar. 2017. Trimestral.

SHARMA, A. Guide to the Paris agreement. Oxford Climate Policy/ECBI. 2020.

SOUZA, L. da R. de S.; LEISTER, M. A.. A influência da soft law na formação do direito


ambiental. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, 2015 p. 767-784.

UNITED NATIONS OFFICE FOR DISASTER RISK REDUCTION – UNDRR. The human cost of
weather-related disasters 1995-2015. Genebra: Cred/Undrr, 2015. 30 p.

WENDEN, C. W. de. As novas migrações. SUR, v. 23, 2016.

WYMAN, K. M. Responses to climate migration. Harvard. Environmental Law Review, v.37,


Rev. 167. 2013.

Resumo
Este artigo analisa o fenômeno da migração climática e a proteção jurídica do Direito
Internacional. Utiliza o método dedutivo e, por meio da pesquisa exploratória e descritiva,
analisa a relação entre clima e migrações, o não reconhecimento da categoria de migrantes
climáticos e os motivos da ausência de um tratado internacional sobre o tema. Examina os
instrumentos jurídicos do Direito das Mudanças Climáticas, para verificar se é possível utilizar
os mecanismos de adaptação e perdas e danos para regulamentar as migrações. Conclui que
as dificuldades de financiamento e responsabilização são um obstáculo para a proteção dos
migrantes climáticos.

Palavras-chave: Migrações climáticas; Direito da Mudança Climática; Adaptação; Perdas e


Danos.

Abstract
This article analyzes the climate migration and the legal protection of International Law. It
uses the deductive method and, through exploratory and descriptive research, analyzes the
relationship between climate and migration, the non-recognition of the climate migrants’
category and the reasons why an international treaty on the subject is missing. It examines
the legal instruments of the Climate Change Law, to analyze whether it is possible to use
the mechanisms of adaptation and damages to regulate migration. It concludes that poorly
funding and accountability are obstacles to protecting climate migrants.

Keywords: Climate migrations; Climate Change Law; Adaptation; Loss and Damage.

156 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Migrar intersubjetivo: um ensaio
sobre as diferenças do “eu” e do
“nós” em estudos de caso sobre a
mobilidade
Beatriz Castelo Branco Maciel*

1 INTRODUÇÃO
Os estudos sobre migrações não tinham significativa relevância na virada
do século XIX para o século XX. Autores clássicos como Marx, Malthus, Weber
e Durkheim analisavam o processo migratório enquanto consequência do
desenvolvimento capitalista, junto ao processo de urbanização e industrialização.
Malthus explicava o fenômeno migratório enquanto decorrência da
superpopulação e da fuga da miséria; já Marx se atentava às mudanças econômicas
e políticas em países do Reino Unido e na França, enquanto exerciam coerção
militar em camponeses e pequenos proprietários; Durkheim percebia os fluxos
de pessoas enquanto um processo retilíneo de quebra com as solidariedades
mecânicas; e Weber se concentrava no resultado da industrialização e do
crescimento capitalista, aliado à importância da religião (MACIEL, 2020, p. 19).
A partir do século XX, começam os estudos sobre migração nas ciências
sociais, principalmente porque cidadãos europeus estavam indo para países do
Novo Mundo, como os Estados Unidos. Nesse momento, o fenômeno migratório
assume importância acadêmica materializada num “problema” de cunho social
(JARDIM, 2017). A Escola de Chicago observa os novos fluxos migratórios,
realizando diversas análises pautadas no estudo pioneiro de Thomas e Znaniecki
(1918) sobre a onda de imigração polonesa para o continente americano, no final
do século XIX. Assim, surge o termo melting pot: uma designação do processo de
assimilação de imigrantes em terras norte americanas, não implicando num total
abandono de seus valores e modos de vida originais. O melting pot se cristalizaria
a partir da criação de grupos cada vez mais amplos e inclusivos, considerando
que uma terceira cultura, ou um novo tipo de assimilação cultural, aconteceria
a partir dos processos migratórios. Entretanto, a Escola de Chicago sofreu
críticas relacionadas ao termo, uma vez que este não abarcava a complexidade
dos processos de colonialismo e imperialismo. O que pôde ser comprovado
posteriormente foi a transformação dessas comunidades migrantes, enquanto
grupos étnicos. Os pressupostos assimilacionistas, portanto, não se concretizaram
naquele momento (SASAKI, ASSIS, 2000).

*
Doutoranda em Antropologia na Universidade de Lisboa (DANT.ULisboa). Mestre em
Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal
Fluminense (UFF).

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 157


Depois da discussão do melting pot e das expectativas acerca dos fluxos
migratórios no século XX, novos movimentos aconteceram e pesquisadores
passaram a se dedicar mais ao estudo das migrações. Novas análises da década
de 1980 observaram que as decisões migratórias são tomadas por grupos
relacionados, como famílias, no intuito de maximizar a renda compartilhada
(STARK & BLOOM, 1985). Essas novas contribuições trazem um elemento essencial
para a análise do processo migratório enquanto um movimento coletivo, ao
invés de individual, como pensavam estudos anteriores. A consciência de que
uma comunidade estava por detrás de uma história migrante abre espaço para
reflexões acerca de trajetórias individuais – aparentemente – que, quando
analisadas a fundo, se percebem enquanto parte de uma malha de relações,
afetos e dinâmicas que cruzam fronteiras, culturas, espaços e burocracias.
Pensando a partir destas novas perspectivas, é possível notar que a dicotomia
entre indivíduo e coletivo está sempre presente na investigação dos estudos
migratórios. Para Pina-Cabral (2018), diferentes autores da Sociologia analisaram
as categorias sociedade, unidade, sujeito e participação, nas últimas décadas.
Pensar nesses conceitos pode ajudar na compreensão do que é a identidade e a
autopercepção para os migrantes em mobilidade.
A definição de participação pode ser analisada em duas tradições de uso:
a individual, a partir das ideias de Simmel e Goffman, e a dividual, a partir das
ideias de Lévy-Bruhl e Durkheim.
Para Appuhamilage – citando os trabalhos de Dumont (1970) e Strathern
(1988) –, a percepção de uma pessoa enquanto um indivíduo singular foi entendida
na antropologia como fruto de concepções ocidentais, não contemplando as
estruturas pensadas a partir de outras sociedades (APPUHAMILAGE, 2017, p. 4).
No entanto, a autora entende que existem modalidades e aspectos dividuais e
individuais em diferentes sociedades, citando especificamente os trabalhos de
Lipuma e McHugh1 sobre modernidade e a pessoa melanésia e a pessoa gurung.
Para tal, ela cita:

McHugh (1989) também argumenta contra uma


demarcação clara de uma personalidade ocidental e não
ocidental e individual e coletiva. Com base em seu trabalho
entre os Gurungs do Nepal, a autora afirma como um “alto
valor no inter-relacionamento não impede um conceito
bem definido de indivíduo”. Em sua conclusão, McHugh
convence o leitor de que os modelos sul-asiáticos e
ocidentais de pessoa expressam uma tensão entre o desejo
de autonomia e a necessidade de pertencer. Ambos os
modelos se relacionam a questões de agência e imersão,
embora cada um envolva um conjunto de ideias e imagens
em que diferentes aspectos da experiência humana da
personalidade são enfatizados2 (APPUHAMILAGE, 2017, p.
5, em tradução livre).

158 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Neste sentido, a dividualidade pode ser entendida como componentes
“particionáveis” (APPUHAMILAGE, 2017, p. 4) onde um self está em
transformação constante, absorvendo e modificando relações interpessoais
e a sociedade em si. A importância de se pensar em termos de indivíduo e
comunidade repousa no entendimento de que “as pessoas se tornam ‘nós’ ao
mesmo tempo que se tornam ‘eu’, o que significa que as pessoas sempre serão
‘eu’ e ‘nós’ ambivalentemente” (PINA-CABRAL, 2018). Esse processo também
pode ser percebido no contexto migratório: uma pessoa precisa se entender
novamente enquanto parte da sociedade em que agora se insere, de forma que
passa novamente pelo entendimento de quem é, a partir de novos estímulos,
relações e simbolismos da sociedade que o recebe. Como pesquisadora, pude
vivenciar algumas dessas novas percepções identitárias com migrantes e
refugiados no Rio de Janeiro, às vezes materializadas em conversas corriqueiras
comparando culturas.
Numa dessas conversas, em 2019, com um amigo senegalês que conheci
através de uma das ONGs onde trabalhei, sentamos em um bar e começamos
a falar sobre amenidades e sua ambientação no Brasil, especificamente no
Rio, e de quais tinham sido suas surpresas quando começou a compreender o
cotidiano do carioca3. Logo passamos a tratar de violência, um tema de extrema
urgência e latência, e ele me contou como o comportamento dos senegaleses
frente a armas, nma situação de violência, era diferenciado. Fiquei curiosa e ele
me deu o seguinte exemplo: caso uma pessoa tentasse assaltar outra, todos os
que presenciassem o assalto interpelariam o assaltante, protegendo a vítima,
independentemente de saberem se aquele assaltante teria uma faca ou algo do
gênero. Depois, conversando sobre comunidade LGBTQI+, ele me disse ter ficado
surpreso com a quantidade de casais homoafetivos que encontrou no Brasil e
que, no Senegal, é inconcebível que essas pessoas andem de mãos dadas nas
ruas, dizendo, inclusive, que a violência contra casais do mesmo sexo é aceita com
naturalidade. Por fim, conversamos sobre relações amorosas e ele me contou
algumas situações que vivenciou com mulheres no Brasil. Eu lhe perguntei se ele
estaria tendo esta conversa sobre relacionamento com uma mulher, no Senegal,
tal qual a que estava tendo comigo, e ele me disse que “não, nunca”.
Essas comparações são frequentes nas conversas com migrantes e as
diferenças culturais são nítidas quando uma pessoa sai de um país para o outro.
Porém, até onde isso pode interferir em um novo entendimento enquanto
indivíduo e na forma na qual um migrante pode vir a se enxergar depois da
mudança de país? Estando no Rio de Janeiro, ele não mais interpelaria um
assaltante ou um casal do mesmo sexo e agora estava conversando sobre
relacionamentos amorosos com uma mulher, algo que talvez nunca faria no seu
país natal. Todas essas diferenças passam a moldar um novo sujeito inserido em
uma nova sociedade, onde o que antes era aceitável agora não é mais.
O entendimento de uma nova identidade passa não só pelas diferenças
culturais, estruturais e simbólicas, mas também por como um determinado
corpo é entendido nesses espaços. Talvez, no Senegal, um corpo masculino

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 159


seja entendido de uma determinada maneira na qual seja mais interessante
se portar de um determinado jeito. A relação entre homem e mulher carrega
simbolismos diferentes entre os países, o que faz com que, mesmo que os
brasileiros reconheçam em um senegalês o mesmo corpo, os simbolismos
que aquele mesmo corpo carrega são distintos. É interessante a abordagem
de Leenhardt nesse sentido, em uma análise corporal da estrutura da pessoa
na Melanésia, quando observa que seus corpos podem ser entendidos como
um tipo de fantasia4, o qual é chamado de kamo (sua forma humana). O autor
descreve a pessoa melanésia enquanto alguém que conhece a si mesma a partir
da relação que trava com os outros (LEENHARDT, 1947, p. 153) e que a noção
de personalidade só dura enquanto seu nome é proferido (Ibid:157). Essas
observações podem revelar pistas sobre como o sentido de identidade pode
ser pensado nos dias atuais, principalmente pensando a partir de práticas de
mobilidade, onde a cada momento o corpo é exposto a diferentes julgamentos e
as relações têm a capacidade de modificar não só como uma pessoa entende a si
própria, mas também como entende seu corpo.
Para Christina Toren, é na intersubjetividade que são construídas noções
de existência social e histórica, que se estrutura de forma contínua através da
assimilação de símbolos, hábitos e experiências, e que se manifesta nas ideias,
práticas e percepções dos indivíduos (TOREN, 2012, p. 64). Entretanto, Toren faz
uma crítica a pressupostos ocidentais que são muito facilmente generalizados
e utilizados amplamente nos estudos de outras sociedades. Pensar em uma
história coletiva implica pensar em como estas podem ser analisadas, através
de perspectivas nacionalistas, coloniais, originárias ou a partir de tantos outros
recortes possíveis – algo que ela chama de autopoiese humana (autocriação,
auto-organização e autorregulação) (Ibid:66).
Esse movimento dialético já era pensado por Simmel enquanto reflexividade,
e capacidade de diálogo do indivíduo consigo mesmo, analisando partes
“internas” e “externas”, como as influências de terceiros em suas decisões ou
opiniões. Para Pina-Cabral, Erving Goffman é o autor que usufruiu, de forma mais
prolongada, da contribuição de Simmel, a partir da analogia de que uma pessoa
veste uma máscara (que talvez possamos entender como o kamo, na perspectiva
melanésia) que esconde a verdadeira essência individual (PINA-CABRAL, 2018, p.
448). Na verdade, os indivíduos não seriam a pessoa em sua forma integral e, sim,
apenas uma fantasia desta, uma fantasia do que se é esperado em determinada
situação e/ou espaço.
E como é possível então fazer ciência a partir de conceitos tão complexos
quanto “indivíduo” e “sociedade”, já que não há um parâmetro que possa
ser aplicado a todas as circunstâncias? Toren entende que só é possível
compreender uma formação constituída ao longo do tempo a partir das falas
e compartilhamentos de pessoas diferentes. É preciso também estar atento à
categoria analítica de sociabilidade enquanto inato à biologia humana e, por
isso, a autora entende que, quando Bourdieu estabelece a ideia de habitus,

160 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


ele pretende abranger exatamente essa lacuna não instintiva e variável, que
faz parte das vivências humanas. Entretanto, o conceito bourdiano ainda
lhe parece limitado, uma vez que foi derivado de uma teoria behaviorista
(TOREN, 2012, p. 71).
Toren entende que há um processo individual que ocorre a partir das
experiências de trajetórias particulares, que se somam a toda uma gama de
construções, aprendizados e simbolismos adquiridos em sociedade. Ela escreve:

Cheguei a pensar que se pode prescindir do habitus,


tendo chegado a uma formulação mais simples: com o
tempo, cada um de nós cria sentido para si mesmo (ou
seja, autonomamente) a partir de significados que outros
fizeram e estão criando; este processo inerentemente
social se manifesta como um processo de transformação no
qual reside a continuidade. Ou, dito de outra forma, fazer
sentido é a forma fundamental da sociabilidade humana,
porque não podemos fazer sentido independente das
relações sociais cuja história transformamos em virtude
de vivê-la. Por esses meios, chegamos ao ponto onde na
própria base de nossa pesquisa é o entendimento de que,
se todas as nossas ideias de mundo e de ser humano são
historicamente constituídas, é o processo histórico que se
manifesta em cada ser humano que clama por pesquisa e
explicação5 (TOREN, 2012, p. 72, em tradução literal).

A importância das experiências de pessoas que migram está exatamente


nessas particularidades adquiridas através de uma trajetória constituída na
perspectiva individual, atravessando e cortando culturas, fronteiras e essa
“história coletiva”, uma vez que as manifestações e simbolismos coletivos passam
por entendimentos próprios da pessoa, que carrega com ela formas autônomas
de compreender o(s) mundo(s). Toren entende que nós, humanos, fazemos usos
de vários aspectos do mundo para compreendê-lo e que um aspecto crucial é a
consciência humana baseada na história, que circuncisa nossas características
inerentes (Ibid:74).
Pensar em parâmetros científicos não significa ter somente que enquadrar
certos grupos em uma pré-delimitação, pautada em conhecimentos ocidentais ou
generalistas. Para Toren, a grande importância do trabalho do antropólogo é a de
perceber a essência das trajetórias dos indivíduos acopladas às suas percepções
de mundo. Adquirir esse olhar, segundo a autora, pode ser mais benéfico do que
tentar enquadrar vivências pessoais. A autora escreve, ainda:

A ideia da pessoa como um indivíduo clama por um estudo


etnográfico de sua ontogenia que possa mostrar como as
pessoas ficam tão encantadas por essa ideia que passam
a considerá-la óbvia como evidente, dada na natureza das
coisas. E já faz um bom tempo que os antropólogos se

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 161


conscientizam de que, onde tomamos como garantidos
e projetamos nos outros nossas próprias ideias de
pessoalidade e relacionalidade, temos poucas chances de
compreender e explicar formas historicamente divergentes
de sociabilidade6 (TOREN, 2012, p. 75, em tradução livre).

A partir das reflexões da autora, penso que a forma como os migrantes


se percebem nas sociedades em que transitam diz muito não só sobre suas
trajetórias individuais, mas também do acesso a uma história coletiva absorvida
em seus percursos. Toren entende que as pessoas operam num “modo-eu” e
“modo-nós” que é inevitavelmente transformado no próprio processo de sua
constituição ao longo do tempo, de forma contínua (Ibid:76). Existe, portanto,
um entrelaçamento destas esferas. E como analisar as infinitas esferas de uma
pessoa que migra não só de um país A para um país B, mas que entre eles passa
por uma quantidade significativa de localidades, onde apreende costumes,
visões, ideias e linguagens?
Parte constitutiva da noção de “eu” dos migrantes com quem tive a
oportunidade de conversar e entrevistar nos últimos quatro anos me fez perceber
o quanto as experiências de trânsito não são só histórias a serem contadas, mas
fazem parte dos saberes das pessoas que estão em mobilidade. Durante uma
jornada migratória, onde geralmente há um objetivo, ou vários objetivos, o
percurso também é valorizado nas experiências, nas frustrações, nos medos e no
desbravamento. Como a maioria das pessoas com quem conversei eram homens
jovens, muitas vezes filhos primogênitos ou até mesmo pais, tornou-se evidente
que o enfrentamento das situações fazia parte dos seus valores e desejos.
Certa vez estive com Pedro, equato-guineense, que vivia no Brasil
há menos de um ano. Conhecemo-nos numa confraternização da Caritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro, no dia do Refugiado (20 de junho), e logo
depois nos encontramos em uma contratação em massa de outra ONG em
que eu trabalhava. Pedro passou pelo processo seletivo para trabalhar com
máquinas de prensagem em um supermercado e eu fui sorteada para auxiliá-lo
no seu primeiro dia de trabalho.
Cheguei às 7 horas da manhã e ele já estava lá. Enquanto recebíamos as
instruções por um aplicativo de mensagens, ficávamos conversando sobre as
diferenças culturais entre Brasil e Guiné Equatorial. Pedro tinha uma trajetória
muito interessante e já havia passado por muitos países. Me disse como eram as
relações dos países vizinhos com a Guiné-Equatorial, as histórias que conhecia
sobre o Mali, Níger e Nigéria.
Em determinado momento, perguntei se ele já havia feito um trabalho
como esse, de prensagem de materiais recicláveis com máquinas, e ele me disse:

“No meu país eu só trabalhei na frente de um computador.


Nunca trabalharia em um lugar como esse lá. As pessoas no
meu país nunca imaginariam que eu estaria fazendo algo

162 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


dessa natureza, mas quando migramos temos que agarrar
as oportunidades, faz parte da vida. Às vezes precisamos
fazer o que é preciso para alcançarmos nossos sonhos”.

No caso de Pedro, seu sonho era ir para os Estados Unidos e, depois de


minimamente estruturado, levar seus irmãos para morarem com ele. Completou
dizendo que sua responsabilidade como primogênito e que não descansaria
enquanto não ajudasse sua família. De alguma forma, por mais que ele falasse
com um certo desprezo do trabalho que estava desempenhando, ele dizia se
sentir muito orgulhoso de sua trajetória. Migrar é, então, não só uma aventura,
mas também parte constituinte do que ele estaria se tornando. Na verdade, era
não só seu desejo, mas também sua missão a de promover uma “vida melhor”7
para sua família.
Ao chegar ao Brasil, diversos migrantes relatavam embates entre os valores
que traziam de seus países e as diferenças culturais que vivenciavam. O termo
que usávamos nas ONGs para esse movimento era “adaptação” ou até “inserção”
– quando falávamos do Brasil, o termo era muitas vezes “país de acolhimento”.
Ora, pensando através da análise de Toren, há de se levar em consideração,
conforme análise etnográfica, que essas pessoas estão, na verdade, num processo
contínuo de formação e estruturação do seu “eu” a partir de modos coletivos e
individuais, históricos e dialéticos, memorizados e apreendidos. O decurso dessa
vivência talvez não possa ser identificado tão somente nas palavras “adaptação”,
“inserção” ou “acolhimento”, porque transcendem essas categorias.
Pina-Cabral entende que é possível tanto ser “um entre muitos” e “fundir-se
com outros” quando analisa as participações dividuais e individuais, uma vez que
estes movimentos se sobrepõem continuamente. O autor diz que:

Como pessoas, somos sempre quase-um (divisíveis) e um


pouco mais de um (dividual). A evidência antropológica,
psicológica (ver Trevarthen, 1980, 1998) e filosófica (ver
Hutto e Myin, 2013, ou Chemero, 2009) de que as pessoas
são divisíveis e dividuais e que a personalidade não é um
resultado automático (natural) da humanidade biológica.
Ela é opressora desde antes dos dias de Lévy-Bruhl8 (PINA-
CABRAL, 2018, p. 451, em tradução livre).
E completa:

Seres vivos são propriedades emergentes no processo de


vida; eles são constituídos processualmente e nunca podem
ser dissociados do dinamismo da vida; suas mentes são
uma função de sua corporificação (ver Thompson, 1997).
A socialidade, portanto, não é uma força que se sobrepõe
à vida, como Durkheim a descreveu. Em vez disso, a
sociabilidade – a capacidade de abordar o mundo com um
propósito a fim de sobreviver como espécie – é a condição

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 163


básica da vida (como Bateson defendeu há muito tempo
(1972)). A complexa sociabilidade de golfinhos e primatas
é uma propriedade emergente dentro da sociabilidade
de forma mais geral (ver Hattiangadi, 2005), assim como
a pessoalidade, uma condição que apenas humanos
encarnados que participam ativamente do mundo com
outros humanos podem cumprir9 (PINA-CABRAL, 2018,
p.451, em tradução livre).

2 CORPO, HISTÓRIA E ESPAÇO


Uma pauta perceptível presente entre os migrantes africanos com quem
convivi é a do racismo brasileiro. Alguns deles me relataram só terem se entendidos
negros quando mudaram de país e constantemente me perguntavam sobre
como lidar com situações racistas. Talvez esses corpos negros, na perspectiva
melanésia retratada por Leenhardt, fossem uma fantasia não muito agradável
aos olhos da sociedade brasileira, fazendo com que as relações interpessoais
precisassem passar por tais corpos e desenvolver uma nova percepção do ‘eu’.
Para os melanésios, corpo e espírito não estão fundados em uma unicidade
indivisível. Leenhardt descreve uma conversa na qual pergunta se os melanésios
agora conhecem o espírito e tem como resposta que, sim, eles sempre tiveram
o espírito, a novidade agora era o corpo10. Antes o corpo era visto apenas como
um suporte, um canal de passagem para que as coisas acontecessem, e nem
mesmo tinha um nome para designá-lo. Para o autor, essa divisão entre corpo e
espírito resultaria em discriminação e uma nova visão do mundo, extinguindo a
noção de “duas pessoas em uma”, que então se tornariam apenas duas pessoas
(LEENHARDT, 1947, p.164).
Incontáveis vezes discuti racismo nas aulas de português que ministrava
na Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Não porque eu escolhia conversar
sobre esse tema, mas porque os alunos traziam suas experiências com muita
naturalidade. Conversar sobre temas raciais passou a me parecer urgente na
pesquisa com migrantes africanos e, quanto mais conversava sobre isso com eles
e com minhas colegas docentes, mais entendia que eu precisava de outras fontes
para acurar a percepção do corpo preto, tanto no Brasil quanto em outros países.
A começar pelo fato de que a constituição de uma pessoa negra africana,
principalmente oriunda dos países dos meus alunos e interlocutores (Serra
Leoa, Uganda, República Democrática do Congo e Nigéria), nada tinha a ver
com a constituição da pessoa negra no Brasil. Certa vez, conversando sobre
desigualdades sociais com um aluno nigeriano, ele me disse que em seu país
havia muita discriminação com pessoas mais pobres, mas não com a cor da pele
das pessoas – na verdade ele só havia identificado algum tipo de diferença no
trato entre pretos e brancos quando chegou ao Brasil. Genuinamente ele me
perguntava como se portar em situações de racismo e eu, evidentemente (por ser
branca), não dispunha das respostas, nem das explicações sobre esse fenômeno.

164 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Em 2017, quando ainda não era docente do curso de português, frequentei
as aulas de diferentes professoras e percebi que algumas delas falavam da história
dos africanos e seus descendentes no Brasil se referindo sempre a palavras como
“escravo” e “escravidão”. De alguma forma (e na época não investiguei o porquê
disto), não me sentia bem com aqueles termos sendo repetidos exaustivamente
para se referir a pessoas negras. No ano seguinte, tornei-me professora para os
migrantes falantes de inglês e, com a evolução das nossas discussões, compreendi
o mal-estar que sentia naqueles momentos.
As aulas de português eram ministradas na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), pioneira na política de inclusão de cotas raciais no país. Até
hoje a UERJ é uma universidade muito plural, com alunos de todas as cores
e camadas sociais, além de ser um polo efervescente de movimentos sociais,
contando com coletivos do movimento negro. Nas reuniões com os docentes
do curso, falávamos muito sobre convidar pessoas do movimento negro para
discorrer sobre o racismo no Brasil, assunto sempre tão recorrente nas salas com
migrantes de diferentes países.
Lembro-me de uma reunião de professores em que a docente contou como
foi um desses encontros do movimento negro na universidade e um aluno
cabo-verdiano levantou-se para protestar sobre como a África era retratada nas
falas das pessoas que estavam presentes. No relato da docente, o aluno teria
achado um “absurdo”11 que as pessoas que estavam estudando história e cultura
africana falassem de África como se fosse um país, sem levar em consideração
a pluralidade de manifestações culturais dos países que formavam o continente.
Uma pauta comum entre migrantes da África Subsaariana era sobre a falta de
informação de brasileiros relacionada aos países que compõem o continente,
desconhecendo que o termo “africano” engloba uma infinidade de culturas,
línguas e tradições ali existentes. Diversas vezes pude ouvir de meus interlocutores
reclamações a partir do fato de brasileiros acharem que a África era um país, o
que fazia ser necessária sempre uma grande explicação de que existem mais de
50 países africanos, que cada um tem suas particularidades, centenas de línguas
tradicionais e muita história. O incansável movimento de ter que sempre explicar
para os brasileiros de onde vêm faz com que a indignação acerca de um resgate
tradicional “unificado” (ou, pelo menos, mais generalista) não faça sentido. Esse
desconforto se “choca” com as demandas do movimento negro protagonizado
por brasileiros porque se desconhece a proveniência dos africanos que foram
sequestrados e levados para o Brasil. A intenção de retorno às raízes africanas se
mescla com a pluralidade de culturas e tradições que existem e existiram nesse
continente, fazendo com que algumas demandas de identidade sejam diferentes
das reivindicadas por serra- leonenses, ugandenses, nigerianos, congoleses e
senegaleses que estão migrando em pleno século XXI.
Entretanto, por mais que a consciência histórica de negros africanos
e negros brasileiros encontre divergências neste ponto, há diversas outras
semelhanças que convergem: o racismo estrutural brasileiro (ALMEIDA, 2018). O

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 165


corpo negro brasileiro e o corpo negro nigeriano, por exemplo, são reconhecidos
pela sociedade brasileira da mesma forma, porque há padrões de discriminação
racial que vão além de uma situação interpessoal e passam por impressões
governamentais, institucionais e até burocráticas. Um reflexo nítido disso é a
quantidade de pessoas negras em presídios comparada à quantidade de pessoas
brancas em cursos de graduação ou de pós-graduação12.
Dada esta problemática, como entender o processo de compreensão
corporal que os migrantes africanos vivenciam no Brasil? Conversando com uma
interlocutora gambiana, ela me disse: “eu respeito o movimento negro no Brasil,
compartilho com muitas coisas dos meus irmãos negros que nasceram aqui, mas
eu sou africana, eu sou uma mulher negra africana e tenho ideias diferentes das
ideias deles. Eu me orgulho do meu país, da minha cultura, da minha língua”.
Essas diferenças, mais uma vez, refletem o processo reflexivo de pensar o “eu”
e o “nós” de forma contínua, que configura a potencialidade de constituição da
pessoa a partir de história(s) coletiva(s) (principalmente no meio dos estudos
migratórios) e também de como esses processos se dão de forma consciente.
Aqui está a agência atrelada aos impactos coletivos e sociais de estruturas
constituídas histórica e temporalmente, sintetizadas em uma ambiguidade ao
mesmo tempo individual e dividual, como destacou Appuhamilage (2017, p.13).
O processo de reflexão acerca da constituição da identidade migrante
permeia tanto o aprendizado de novos costumes e hábitos do local de
residência e/ou passagem, quanto a revisão dos aprendizados da terra natal.
Mesmo fora do contexto migratório, esse processo é constantemente mutável,
dialogando não só com a intersubjetividade, como destacou Toren (2012)),
como também com as vivências experienciadas e conscientes de cada pessoa
em seu amadurecimento na vida.
Para Francis L. K. Hsu (1999)13, viver o limiar psicológico entre duas culturas
é o que faz um homem marginal. Ele utiliza este termo porque entende que,
quando uma pessoa tem a formação em mais de uma cultura, pode ficar ao
longo de suas margens, ora pertencendo a uma, ora pertencendo a outra –
ou talvez mesmo não pertencendo a nenhuma simultaneamente. Abdelmalek
Sayad (1994) vê os imigrantes em um estado nem provisório nem permanente,
ou ora provisório, ora permanente, e reitera que sua presença é apenas tolerada.
A condição de imigrante, portanto, assume um caráter passageiro por definição,
uma provação que comporta em si mesma sua própria resolução (MACIEL, 2020).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca por significado da constituição do indivíduo na(s) sociedade(s) vem,


através das décadas, demonstrando a importância do trabalho antropológico nas
múltiplas formas de entender as trajetórias pessoais enquanto reflexos de certos
cenários materiais e subjetivos, constituídas a partir de aspectos históricos,
sociais, temporais e circunstanciais. De certa forma, poder-se-ia dizer que os

166 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


indivíduos estão englobados em uma seleção finita de simbolismos carregados
através da cultura, onde escolhem algumas das múltiplas opções possíveis de
ideias e formas de pensar para formular este “eu” único – mas também coletivo.
Analisar as mudanças nas percepções das pessoas em mobilidade é ter a
possibilidade de notar claramente o processo de elaboração de identificação (às
vezes uma identificação marginal, como formulada por Francis L. K. Hsu (1999))
a partir não só da esfera privada e individual, como também de identificação
em sociedade. O fato de meus interlocutores mudarem seu pensamento e seu
comportamento em situações de violência, por exemplo, significa que estão se
adaptando a novas impressões e necessidades que lhes são exigidas na sociedade
brasileira. Isso se aplica a toda questão da cor, do gênero, da sexualidade e
de tantas outras formas de se relacionarem, mas também de se perceberem
enquanto pessoas integradas neste contexto.
Mostrei, neste ensaio, que a valorização de certos costumes e práticas pode
ser relativizada a partir das necessidades de cada pessoa. Meus interlocutores,
quando chegaram ao Brasil, tomaram muito mais cuidado em observar primeiro
para depois agirem e, nesse sentido, as aulas de português que ministrava e meu
papel como organizadora em uma ONG me tornavam, muitas vezes, um ponto
de confiança para o entendimento dos hábitos brasileiros. Muitos interlocutores
me perguntavam sobre os rituais de namoro, os processos de entrevista de
emprego, o significado das palavras de forma subjetiva ou as formas de agir em
determinadas situações extraordinárias – ou, pelo menos, extraordinárias para
os padrões de seu país de origem. A partir da observação e, posteriormente,
do questionamento a uma pessoa de confiança (uma vez que estabelecemos
relações fortes durante todo o período de pesquisa e trabalho voluntário) é que
analisavam seus comportamentos, agiam e, muitas vezes, me contavam como
havia sido o desfecho das situações.
Isto nada mais é do que o processo de elaboração que uma criança também
faz quando está aprendendo a se socializar no mundo: às vezes, a partir de
tentativa e erro; às vezes, com uma represália adulta, ou uma comemoração
coletiva. Formula-se assim uma hipótese de como pode ser entendida certa
situação e, a partir daí, tenta-se decifrar o enigma da esfinge – ou o enigma da
nova cultura. Este é o processo que todos nós sabemos que se vivencia ao mudar
de um país para o outro, mas o quanto isto não impacta na formulação do “eu” a
partir de um “nós” diferenciado?
A intersubjetividade tem um papel significativo nesse processo, porque não
é uma escolha – ela simplesmente acontece atrelada à subjetividade formadora
do ser, indivisível do “ser” humano. A partir dela se constrói a percepção do “eu”
e do “nós”, principalmente através da linguagem, seja ela verbal ou não verbal.
Aqui, podemos retomar ao susto que os melanésios tiveram ao se depararem
com o corpo: o corpo, enquanto noção de “casa” da alma, nada mais é que a
materialização do objeto de nós mesmos, a partir da constituição subjetiva que
fazemos sob o corpo através de histórias, hábitos, nomes, espaços e afetos.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 167


O processo de percepção da individualidade é, portanto, a cristalização da
vida social atrelada às vivências pessoais. Esta cristalização pode ser entendida
como uma máscara (ou uma fantasia, como para os melanésios) que “esconde”
marcas profundas e subjetivas das culturas pelas quais um migrante passou. O
movimento de migrar de país e perceber novas formas de enxergar a própria
experiência no mundo pode retirar o véu que cobre essas percepções subjetivas
e dar margem para a consciência de marcas identitárias, fruto da fusão de todas
as histórias, experiências, encontros, culturas, línguas e trocas que podem estar
contidas na trajetória de um migrante.

NOTAS
1
LIPUMA, E. 1998. “Modernity and Forms of Personhood in Melanesia.” In Bodies and Persons:
Comparative Perspectives From Africa and Melanesia, edited by M. Lambek, and A. Strathern,
53–79. New York: Cambridge University Press; MCHUGH, E. L. 1989. “Concepts of the Person
among the Gurungs of Nepal.” American Ethnologist 16 (1): 75–86.
2
“McHugh (1989) also argues against a clear demarcation of a Western and non-Western
and individual and collective personhood. Based on her work among the Gurungs of Nepal,
she asserts how a ‘high value on interrelationship does not preclude a well-defined concept
of the individual’. In her conclusion, McHugh convinces the reader how both South Asian
and Western models of the person express a tension between the desire for autonomy and
the need for belonging. Both models relate to issues of agency and embeddedness, though
each involves a set of ideas and images in which different aspects of the human experience of
personhood are stressed” (APPUHAMILAGE, 2017, p. 5).
3
Carioca é a pessoa nascida na cidade do Rio de Janeiro.
4
“The kamo’s body appears as the costume of a personage” (LEENHARDT, 1947, p. 153).
5
“I came to think that one can do without the habitus, having arrived at a simpler formulation:
over time every one of us makes meaning for ourselves (i.e., autonomously) out of meanings
that others have made and are making; this inherently social process manifests itself as a
transformational process in which continuity resides. Or to put it another way, making meaning
is the fundamental form of human sociality because we cannot make meaning independent
of social relations whose history we transform by virtue of living it. By these means we arrive
at the point where at the very base of our research is the understanding that, if all our ideas
of the world and human being are historically constituted, it is the historical process that is
manifest in each and every human being that cries out for research and explanation” (TOREN,
2012, p. 72).
6
“The idea of the person as an individual cries out for an ethnographic study of its ontogeny
that can show how people come to be so enchanted by this idea that they come to take it
for granted as self-evident, given in the nature of things. And it has been a good while now
that anthropologists have been made aware that where we take for granted and project onto
others our own ideas of personhood and relationality we have little chance of understanding
and explaining historically divergent forms of sociality” (TOREN, 2012, p. 75).
7
Nos termos de Pedro, um dos interlocutores da pesquisa.
8
“As persons, we are always almost-one (partible) and slightly more than one (dividual). The
anthropological, psychological (see Trevarthen, 1980, 1998) and philosophical evidence (see

168 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Hutto and Myin, 2013, or Chemero, 2009) that persons are both partible and dividual and that
personhood is not an automatic (natural) result of biological humanity is overwhelming since
before the days of Lévy-Bruhl” (PINA-CABRAL, 2018, p. 451).
9
“Live beings are emergent properties in the process of life; they are processually constituted
and cannot ever be dissociated from life’s dynamism; their minds are a function of their
embodiment (see Thompson, 1997). Sociality, therefore, is not a force that is super- imposed
on life, as Durkheim depicted it. Rather, sociality – the capacity to address the world with a
purpose in order to survive as a species – is the basic condition of life (as Bateson defended a
long time ago (1972)). The complex sociality of dolphins and primates is an emergent property
within sociality more generally (see Hattiangadi, 2005), and so is personhood, a condition that
only embodied humans who actively participate in the world with other humans can fulfil”
(PINA-CABRAL, 2018, p. 451).
10
“Spirit? Bah! You didn’t bring us the spirit. We already knew the spirit existed. We have
Always acted in accord with the spirit. What you’re brought us is the body” ((LEENHARDT,
1947, p. 164).
11
Termo utilizado pela interlocutora.
12
Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) afirmam que 63,7% da população
carcerária era formada por negros, em 2017, enquanto dados da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad) afirmam que negros correspondiam a 28,9% dos alunos de mestrado e
doutorado no Brasil, em 2015. Fontes: <https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-
diz-especialista/> e <https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-05/negros-
representam-289-dos-alunos-da-pos-graduacao>, respectivamente. Acesso em 6 de setembro
de 2021.
13
“I am a marginal man. I was born and raised in a culture - once wholly steadfast and where
life for majority was almost fully predictable - from which I have been uprooted. I live and
work in a culture where change is desired because it is equated with progress, and where
neither the physical nor the human scene is constant. That human being in whom two such
contrasting cultures meet, moves, as it were, along the margin of each. He paces the border
where they confront each other within himself, and he can reach out to touch them both. In
that sense, this book is the report of a marginal man’s life experience and his reflections upon
it.”. Retirado das aulas de Pessoa e Socialidade do professor João de Pina-Cabral.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, S.L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

APPUHAMILAGE, U. M. H. A Fluid Ambiguity: Individual, Dividual and Personhood. Asia


Pacific Journal of Anthropology - 18 (1): 1–17, 2017.

HSU, F. L. K. My life as a marginal man: autobiographical discussions with Francis Lk Hsu.


Interviewed and Recorded by Glt Hsu and Flk Hsu’s Family. Taipei, Taiwan: National
Institute for Compilation and Translation/SMC, 1999.

JARDIM, D.F. Imigrantes ou refugiados? Tecnologias de controle e as fronteiras. Jundiaí, Paco


Editorial, 2017.

LEENHARDT, M. The structure of the person in the Melanesian World. In: _______ . Do
Kamo: Person and Myth in the Melanesian World. Chicago: University of Chicago Press,
1979. cap. 11, p. 153-169.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 169


MACIEL, B. C. B. Redes de refúgio: a organização Mawon e os mecanismos de integração de
imigrantes no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense,
2020. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/handle/1/13296>. Acesso em: 23 de ago.
2021.

PINA-CABRAL, J. Modes of participation. Anthropological Theory, vol.18, no.4, p.435-455,


dez. 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1177/1463499617751315>. Acesso em:
23 de ago. 2021.

SASAKI, E.; ASSIS, G. Teorias das migrações internacionais. In: Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, 12, 2020. Proceedings... Caxambu, Minas Gerais.

SAYAD, A. A imigração: ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, EDUSP, 1998.

STARK, O.; BLOOM, D. The new economics of labour migration. In: American Economic
Review, vol. 75, 1985.

THOMAS, W. I.; ZNANIECKI, F. The polish peasant in Europe and America. Volume I. Primary
group organization. Boston: Richard G. Badger. The Gorham Press, 1918.

TOREN, C. Imagining the world that warrants our imagination— the revelation of ontogeny.
In: Cambridge Anthropology, vol.30 (1), p.64– 79, 2012.

RESUMO
Este trabalho pretende analisar a dicotomia entre indivíduo e sociedade através do trabalho
de Christina Toren, João de Pina-Cabral, Udeni Appuhamilage e Maurice Leenhardt a partir
da perspectiva de migrantes de países da África Subsaariana que moram no Brasil. Procuro
enfatizar aspectos concretos das experiências dos migrantes, relacionando com o papel da
construção de uma consciência individual, utilizando os estudos atrelados à intersubjetividade
e à sociabilidade.

Palavras-chaves: intersubjetividade, identidade, sociedade, migração, África.

ABSTRACT
This work intends to analyze the dichotomy between individual and society through the
work of Christina Toren, João de Pina-Cabral, Udeni Appuhamilage and Maurice Leenhardt
from the perspective of migrants from sub-Saharan African countries who live in Brazil. I try
to emphasize concrete aspects of the experiences of migrants, relating them to the role of
building an individual conscience using studies linked to intersubjectivity and sociability.

Keywords: intersubjectivity, identity, society, migration, Africa.

170 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Poemas

Quem me matou foi o Brasil

Sergio Ricciuto Conte

- Quem te matou?
- Quem me matou foi o Brasil.
- Como assim?
- Somos migrantes; fugimos. Mas, na fuga, tentamos buscar vida.
No começo foi difícil, mas depois consegui um emprego, simples, mas parecia
bom.
A morte me aguardava. No solo que eu considerava amigo, a morte me aguardava.
Fui espancado até à morte num quiosque, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Há muita violência. Muita agressividade contra migrantes, especialmente se
somos negros; se somos africanos, então...
Meu cadáver foi agredido, roubaram meus órgãos no hospital.
- Como se explica esse ódio todo?
- Não fui morto por dois ou três.
Quem me matou foi o Brasil; seu ar contaminado de ódio.
O horror que rasteja nas ruas, o racismo nas veias do sistema, a fúria da discórdia
e das mentiras de um desgoverno que só aumenta a violência e a morte.
Quem me matou foi o Brasil.
Que cego não viu que eu só queria meu ganha-pão?
Busquei realizar meu sonho, mas me jogaram numa guerra entre pobres.
Fui cobrar os meus direitos, espancaram-me até à morte.
Morri porque fiz questão de sobreviver.
Quem me tirou a vida foi uma sociedade cínica voltada ao enriquecimento dos
ricos, ao consumo desenfreado, ao lucro, custe o que custar.
Quem me matou foi a exclusão social, minha e dos meus assassinos.
Eu não queria muito...
...mas já que me mataram quero participar da salvação dos outros migrantes,
negros, pobres. Que minha morte possa ser um grito de denúncia....
Fui embora do Congo, minha pátria. Fui obrigado pela violência a buscar
outro lugar.
Minha esperança achou o Brasil.
Queria ganhar meu pão, para minha família viver em paz.
Morri, porque tentei sobreviver.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 171


Sou migrante, artista visual, ilustrador e capista da Revista Travessia.
Quero gritar o grito de Moïse Kabagambe, 24 anos, migrante
refugiado assassinado, em 24 de janeiro/2022, em um quiosque, na
Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, pela crueldade brasileira. Meu grito é:
JUSTIÇA, VIDA, DIREITOS PARA MOÏSE, PARA TODAS e TODOS.

172 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Eu só queria trabalho e pão

Alfredo José Gonçalves, Cs

Nasci na República Democrática do Congo, continente africano. Meu nome era


Moïse Mugenyi Kabagambe, tinha 24 anos, morava com minha mãe e minha
irmã na cidade do Rio de Janeiro. Estamos neste país, Brasil, porque uma mistura
de pobreza e violência nos expulsou de nossa pátria, República Democrática do
Congo, onde permanecem enterrados os ossos de nossos queridos antepassados.

Fugi do Congo e vim em busca do grande Brasil, afamado por seu coração
acolhedor. Esperava encontrar a paz, o trabalho e o pão para mim e toda a minha
família. Procurei transformar a fuga em nova busca, superando feridas, mágoas
e cicatrizes. Sonhava com uma nova terra, na qual eu pudesse encontrar um solo
amigo e pátrio.

Aqui, após tantas penas, aflições e dificuldades, encontrei algo para fazer.
Comecei a trabalhar, precariamente, sim, entretanto não estava de braços
cruzados. Mas a violência e a morte me esperavam na esquina, ou melhor, no
quiosque à beira da praia, na Barra da Tijuca, na “cidade maravilhosa” do Rio de
Janeiro, no fatídico 24 de janeiro de 2022.

De onde vem tanto ódio e agressividade contra os congoleses, contra os imigrantes,


contra os estrangeiros, contra os que falam outras línguas e sobretudo os que
têm a pele negra? De onde vem o racismo, o preconceito e a discriminação? Por
que nos olham com olhos enviesados, e nos atiram palavras cheias de veneno?

Não, não foram apenas alguns rapazes que me tiraram a vida. Há muito vemos
que o ódio e a violência contaminam o ar. Respira-se um clima pesado de divisão
e intolerância – um “nós” contra “eles” – que toma conta de todos, a começar
pelas mentiras de um desgoverno que, em lugar de proteção e acolhida, semeia
discórdia e ataques. Depois a mídia, as redes sociais e muita gente enfurecida
parecem se abater sobre nós, negros e estrangeiros.

Da fúria do Congo, passei a conhecer a fúria de uma nação dividida, polarizada,


fragmentada. Por toda parte, escombros, ruínas e cinzas. E, ainda por cima,
marcadas pela pandemia, com seu rastro macabro de mortes, horrores e
enlutados. Por isso me mataram, senhores e senhoras, morri porque lutei para
viver. Morri porque busquei sonhos, com fé e esperança. Morri para que outros
migrantes possam ter vida e direitos, com justiça e paz.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 173


Que a luta por trabalho e casa, saúde e pão não seja tão amarga para outros
congoleses, sírios, bolivianos, angolanos, venezuelanos, haitianos, afegãos,
e tantos outros migrantes, provenientes de distintos países. Foi o ódio cego
e irresponsável que tiraram a minha vida. Foi uma sociedade indiferente e
desgovernada que me tirou a vida. Foi a lei das milícias que caiu como um raio
sobre minha cabeça. Mas os migrantes, pouco a pouco, passo a passo, haverão
de mostrar que não querem outra coisa senão trabalho, moradia, saúde, pão,
paz e justiça para si e suas famílias.

E para todos os países, sejam eles de origem, de trânsito ou de destino de


migrantes. Nomes, rostos, línguas e histórias diferentes haverão de mostrar que
as diferenças, longe de nos dividir e nos empobrecer, só podem nos enriquecer.
Em nome dos migrantes de todo mundo, lutamos por uma cidadania que esteja
acima de qualquer fronteira. O mundo é a pátria de cada pessoa humana, pois é
ele que nos dá o pão e a paz.

Não condeno apenas as mãos que me golpearam até a morte. Condeno os que
jogam os pobres e migrantes contra os próprios pobres e migrantes, com suas
leis de segurança nacional, com sua economia voltada para lucro, consumo,
acumulação e exclusão social. Condeno milícias e milicianos. Toda pessoa humana
tem direito a migrar, a trabalhar e a lutar por seu sonho de melhor futuro. Vida
em primeiro lugar!

Alfredo José Gonçalves, cs


vice-presidente do SPM
São Paulo, 1º de fevereiro de 2022

174 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A formiguinha urbana e Deus Todo
Poderoso
Luiz Kohara

Na minha corrida semanal,


A cada tempo tenho discordâncias com o Deus Todo -poderoso
Hoje, domingo, acordei sem saber das horas, leve e sem pressas
Concordando como Deus foi magnífico,
Ao anunciar, depois de criar todas as coisas, que no sétimo dia era preciso
descansar.

Imagina o que seria deste mundo para os trabalhadores


se Você não anunciasse que descansou no sétimo dia.

Ia perguntar o que fez no dia do seu descanso


mas não é dia de perguntas.
Deixa pra lá, hoje só vou descansar.

Espreguicei, estiquei o corpo relaxado, após respiros profundos, levantei.


Fui para a cozinha tomar o cafezinho puro
Um ânimo diário às células avisando que o dia vai começar
É bom não ter pressa, sentado à mesa saboreei o delicioso amargo do café.

Pela porta de vidro pude observar os diferentes verdes das plantas do quintal
Ainda mais bonitas com as gotículas do chuvisco que caía
E com os coloridos de algumas flores.

A tranquilidade interior me trazia percepções que não aconteciam no dia a dia.


Domingar me fazia bem, Deus, o Criador, tem sua razão
Nisto tenho que concordar.

Enquanto o olhar experimentava uma paz interior, num ímpeto natural


Minha mão direita foi sobre a mesa para esmagar uma formiguinha
Minúscula, que só a vi porque minha miopia melhorou com a idade.
Também, num impulso a mão se conteve.

Depois desta contenção, passei a observar a formiguinha


Que corria rápido de um lado a outro, amedrontada
Não sabia para onde ir, circulava, circulava perdida.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 175


Porque eu ia matá-la?
Tão frágil, tão perdida, sem nada e desarmada
De dentro uma voz segura,
Não sei se era minha ou uma gravação embutida, responde:
Ela é ladra, ela é suja, traz más companhias, a existência dela é perigosa,
nem a higienização da cidade conseguiu tirá-la da mesa de jantar e destruí-la.
Neste momento, pude perceber que na serenidade e na paz muitos
assassinatos acontecem, silenciosamente, naturalmente silenciados e
consentidos aos errantes ou marcados no nascimento.
A cada segundo elas morrem assassinadas.

O domingo pede mais do que não matar.


É o dia de o Criador olhar e sentir a criação na sua totalidade.
É o tempo do tempo de desvelar os consensos,
Que são arbitrados sobre a vida e a morte.

Fiquei observando a formiguinha


Percebi que tinha seis patinhas e apenas uma antena.
Talvez, fosse a falta de uma antena
O motivo para estar circulando e desorientada.

Já com olhos mais antenados


A pouca distância da formiguinha perdida
Na mesa, vi uma fileira bem organizada de formiguinhas.
Que iam e vinham, umas carregavam grãos de açúcar e outras migalhas de pão.

Tinha muitas perguntas para as formiguinhas


Para ter as respostas segui o longo caminho que elas percorriam.
Caminho longo, cheio de barreiras e bem distante dos alimentos.
Neste caminho, um grupo de dez formiguinhas carregava uma migalha maior de
pão.
Neste mesmo caminho, uma formiguinha carregava outra machucada.

As que vinham em busca dos alimentos


E as que voltavam trocavam afagos com um beijo.
Entravam com os alimentos no formigueiro
E saiam rápido em busca de mais alimentos.

A minha visão foi se ampliando


Assim percebi que trabalhavam como estivadoras
Percorriam várias maratonas por dia para assegurar alimentos a todos,
Sem distinção no formigueiro, antes que o inverno chegasse
E as novas formiguinhas nascessem.

176 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


A minha concordância é que eu precisava caminhar
Nos caminhos das formiguinhas para descobrir a essencialidade da criação.

O árduo trabalho solidário entre as formiguinhas não lhes dava o direito de


viver
Ainda mais aquelas que ousavam frequentar a sala de jantar dos urbanizados,
A ultrapassar os limites estabelecidos na cidade.

O árduo trabalho solidário é do mundo das formiguinhas


Imaginário pra nós, porque no nosso mundo real
As formiguinhas, por decreto, são ladras, insignificantes e indesejáveis,
É melhor que sejam invisíveis nas distantes periferias.

Outra voz que vem das formiguinhas pergunta


A quem pertencem as migalhas?
Onde vive quem produziu o açúcar e o pão?
Como vive quem construiu a sala de jantar e a cidade?
Quantos foram assassinados no higienismo urbano?
Por que a solidariedade conjunta de todas para todas é um crime?

Sentindo-me ofegante e sem ar com as perguntas ingênuas e simples,


Nada simples, em uma cidade estruturada e construída pelos poderosos
criadores.

As perguntas tiraram a minha racionalidade da fé


E trouxeram as dúvidas se o Deus era todo-poderoso e criador.
A crença melhor seria para o Deus Estivador que carrega a comida
E Deus Maratonista que percorre a imensidão da cidade.

Amanhã é segunda-feira.
Eu preciso encontrar o Deus Todo-poderoso Criador.
As vozes das formiguinhas precisam ecoar!
É essencial domingar!

Luiz Kohara
Engenheiro civil, assessor do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos,
militante de movimentos sociais de luta e direito por moradia

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 177


178 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
TRAVESSIA agora também ONLINE

Um acervo sem data de vencimento


Já são mais de 80 edições lançadas, com conteúdos para estudo,
informação e pesquisa que jamais perdem sua validade. Para
aquisição de números anteriores, o valor unitário baixa de acordo
com a quantidade solicitada. Aproveite a promoção e pague
praticamente a valor da postagem. Entre diretamente
em contato conosco.

Valor da assinatura
(3 números por ano)
Nacional
- por 1 ano...................R$ 20,00
- por 2 anos..................R$ 35,00
- por 3 anos..................R$ 45,00

Exterior
- por 1 ano...................U$ 20,00
- por 2 anos..................U$ 35,00

Forma de pagamento
Depósito nominal à: Pia Soc. dos Miss. de S. Carlos
Banco Bradesco; Agência 515-0; c/c 23083-9
Após efetuar o depósito, informe por e-mail o valor, a data do
depósito, finalidade do mesmo, seu endereço atualizado, sua
profissão e/ou área de atuação.

Entre em contato conosco através do e-mail


cem@missaonspaz.org ou através
do novo portal acesse os últimos números
da revista TRAVESSIA
www.revistatravessia.com.br
Acesse também o nosso Facebook:
Revista Travessia - Revista do Migrante

www.missaonspaz.org
TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 179
NORMAS DE PUBLICAÇÃO NA REVISTA TRAVESSIA

A Revista Travessia publica: dossiês, artigos originais, notas de pesquisa,


entrevistas, resenhas, relatos, poemas, contos. Os textos podem ser em:
português, espanhol, inglês, francês, etc.

ARTIGOS - Até 20 páginas, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço
entre linhas - 1,5, margens: esquerda e direita – 2,5, cabeçalho e rodapé
– 2,5

NOTAS DE PESQUISA – Até 10 páginas, fonte Times New Roman, tamanho


12, espaço entre linhas- 1,5, margens: esquerda e direita – 2,5, cabeçalho
e rodapé – 2,5

RELATOS – Até 7 páginas, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço
entre linhas - 1,5, margens: esquerda e direita – 2,5, cabeçalho e rodapé
– 2,5

ENTREVISTAS - Até 10 páginas, fonte Times New Roman, tamanho 12,


espaço entre linhas- 1,5, margens: esquerda e direita – 2,5, cabeçalho e
rodapé – 2,5

RESENHAS – Até 5 páginas, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço
entre linhas - 1,5, margens: esquerda e direita – 2,5, cabeçalho e rodapé
– 2,5

CONTOS – Ate 5 páginas, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço
entre linhas – 1,2, margens: esquerda e direita – 2,5, cabeçalho e rodapé
– 2,5

Obs. Os textos podem conter imagens, preferencialmente em alta reso-


lução

REFERÊNCIAS
A Revista Travessia adota a NBR 6023/2002 da ABNT como norma para
referência de documentos em textos acadêmicos. Procurando facilitar o
trabalho dos autores de Travessia, apresentamos, abaixo, uma síntese da
NBR 6023/2002 tomando como base o seu documento original e ainda
o compêndio elaborado por Luciana Pizzani e Rosemary Cristina da Silva
(2016). A síntese que se segue não dispensa consulta ao documento (NBR
6023/2002) original e integral da ABNT.

180 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


Existem vários meios de informação que podem ser referenciados:
Livros, Dissertações e Teses, Folhetos, Revistas ou Periódicos, Relatórios,
Manuais, Eventos, Multimeios, Documentos eletrônicos, Discos e Fitas,
Filmes, Fotografias etc.
ALINHAMENTO - A lista final deve ser alinhada à margem esquerda do
texto

NOTAS DE RODAPÉ - Em formato numérico, ao final do texto

HAVENDO DUAS OU MAIS REFERÊNCIAS DE UMA MESMA AU-


TORIA, OBSERVE-SE: a) um só autor: PIZZANI, L.
b) mesmo autor e outro: PIZZANI, L.; SILVA, R.C.
c) mesmo autor e outros: PIZZANI, L. et al.

REFERÊNCIA DE LIVROS/OBRA TRADUZIDA/SÉRIE


Autor, título, subtítulo (se houver), edição, local, editora e data de publi-
cação.

AUGÉ, M. Não lugares. Campinas: Papirus, 2006.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Tradução Vera da


Costa e Silva.
3.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1990.

BRANDÃO, C.R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1987. 116p.


(Coleção primeiros passos, 20).

CAPÍTULO DE LIVRO
Autor, título da parte, subtítulo (se houver), seguidos da expressão “In:”
e da referência completa da publicação, número de páginas ou volume.

ROMANO, G. Imagens da juventude na era moderna. In: LEVI, G.; SCHMIDT,


J. (Orgs.). História dos jovens 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
p.7-16.

AUTOR DO CAPÍTULO É O MESMO AUTOR DO LIVRO


SANTOS, R.F. A colonização da terra do Tucujús. In: ______ . História do
Amapá, 1º grau.
2.ed. Macapá: Valcan, 1994. cap.3, p.15-24.

LIVRO DISPONÍVEL NA INTERNET


JUNQUEIRA, L.C.U. Histologia básica. 10.ed. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2004. Disponível em: <http://www.>. Acesso em: 30 set. 2007.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 181


ARTIGO DE PERIÓDICO – revista, boletim etc. Autor, título do artigo, subtí-
tulo (se houver), título da publicação, local da publicação, numeração cor-
respondente ao volume e/ou ano, número ou fascículo, paginação inicial
e final do artigo, informações de período, ano de publicação. Exemplos:
DORNELAS, S.M. Entre a Igreja do Brasil e da França: Uma experiência
com os portugueses em Paris. Travessia – revista do Migrante, São Paulo,
ano XXII, n. 65, p. 13-32, set-dez. 2009.

ARTIGO EM PERIÓDICO – revista, boletim etc. disponível em meio ele-


trônico Autor, título do artigo, subtítulo (se houver), título da publicação,
local da publicação, numeração correspondente ao volume e/ou ano, nú-
mero ou fascículo, paginação inicial e final do artigo, informações de pe-
ríodo, ano de publicação, informações pertinentes ao suporte eletrônico.

BASSO, N.A.S. et al. Insulinoterapia, controle glicêmico materno e prog-


nóstico perinatal: diferença entre o diabetes gestacional e clínico. Rev.
Bras. Ginecol. Obstet., v.29, n.5, p.253259, maio 2007. Disponível em:
<http: //www.____>. Acesso em: 16 jan. 2004.

ARTIGO DE JORNAL: Autor, título do artigo, subtítulo (se houver), título do


jornal, local de publicação, data de publicação, seção, caderno ou parte
do jornal e a paginação correspondente.

NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de São Paulo, São
Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p.13.

ARTIGO DE JORNAL disponível em meio eletrônico


NAVES, P. Lagos andinos dão banho de beleza. Folha de São Paulo, São
Paulo, 28 jun. 1999. Folha Turismo, Caderno 8, p.13. Disponível em:
<http://www.________>. Acesso em: 20 fev. 2004.

MONOGRAFIAS, DISSERTAÇÕES, TESES


SILVA, C. F. da. Das calçadas às galerias: mercados populares do centro de
São Paulo. 2014. 176p. Originalmente apresentado como tese de douto-
rado em Sociologia. São Paulo: USP, 2014.

MONOGRAFIAS, DISSERTAÇÕES, TESES disponíveis em meio eletrônico RO-


DRIGUES, M.A.Q. Bandagem ajustável do tronco pulmonar: comparação
de dois métodos de hipertrofia aguda do ventrículo subpulmonar. 2006.
85p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Pau-
lo, São Paulo, 2006. Disponível em:<http://www.teses.usp.br/teses/ dis-
poníveis/5/5156/tde-06112006-130715/>. Acesso em: 20 dez. 2007.

182 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


EVENTO CIENTÍFICO: Autor, título do trabalho apresentado, subtítulo (se
houver), seguido da expressão “In:”, nome do evento, numeração (se hou-
ver), ano e local de realização, título da publicação, subtítulo (se houver),
local de publicação, editora, data de publicação, página inicial e final da
parte referenciada, elementos pertinentes a parte referenciada.

– Quando disponível em meio eletrônico, acrescentar: “Disponível em....


, como no exemplo abaixo.
BENGTSSON, S.; SOLLEIM, B.G. Enforcement of data protection, privacy
and security in medical informatics. In: WORLD CONGRESS ON MEDICAL
INFORMATICS, 7., 1992, Geneva.
Proceedings... Amsterdam: North Holland, 1992. p.1561-1565. Disponí-
vel em: <http://www._______>. Acesso em: 21 jan. 2004.

DOCUMENTO JURÍDICO
Jurisdição (ou cabeçalho da entidade, no caso de se tratar de normas),
título, numeração, data e dados da publicação. No caso de Constituições
e suas emendas, entre o nome da jurisdição e o título, acrescenta-se a
palavra Constituição, seguida do ano de promulgação entre parênteses.

BRASIL. Medida provisória nº 1.569-9, de 11 de dezembro de 1997. Diário


Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF,
14 dez. 1997. Seção 1, p.29514.

BRASIL. Código Civil. 46.ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

BRASIL. Constituição (1988). Emenda constitucional nº 9, de 9 de novem-


bro de 1995. Lex: legislação federal e marginália, São Paulo, v.59, p.1966,
out./dez. 1995.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria do Meio Ambiente. Diretrizes para a polí-


tica ambiental do Estado de São Paulo. São Paulo, 1993. 35p.

BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório de atividades. Brasília, DF, 1993.


28p.

IMAGEM EM MOVIMENTO - Inclui filmes, videocassetes, DVD, entre ou-


tros
Título, diretor, produtor, local, produtora, data e especificação do suporte
em unidades físicas.

ADEUS, Lenin! Dir. Wolfgang Becker. Alemanha: Prod. X Filme Creative


Pool; WDR (Cologne); Arte France Cinéma, 2003. 1 DVD

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 183


DOCUMENTO ICONOGRÁFICO -
Inclui pintura, gravura, ilustração, fotografia, desenho técnico, diapositi-
vo, diafilme, material estereográfico, transparência, cartaz, entre outros.
Autor, título, data e especificação do suporte.
KOBAYASHI, K. Doença dos xavantes. 1980. 1 fotografia.
O QUE acreditar em relação à maconha. São Paulo: CERAVI, 1985. 22
transparências.

MATTOS, M.D. Paisagem-Quatro Barras. 1987. 1 original de arte, óleo so-


bre tela, 40cm x 50cm. Coleção particular.

DOCUMENTO CARTOGRÁFICO - Inclui atlas, mapa, globo, fotografia aérea


etc.
Autor(es), título, local, editora, data de publicação, designação específica
e escala.

ATLAS Mirador Internacional. Rio de Janeiro: Enciclopédia Britânica do


Brasil, 1981. 1 atlas. Escalas variam.

BRASIL e parte da América do Sul: mapa político, escolar, rodoviário, tu-


rístico e regional. São Paulo: Michalany, 1981. 1 mapa, color., 79 cm x 95
cm. Escala 1:600.000

BÍBLIAS
BÍBLIA. Língua. Título da obra. Tradução ou versão. Local: Editora, Data de
publicação. Total de páginas.

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de


Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980. Edição Ecu-
mênica.

PARTES DA BÍBLIA: Quando se tratar de partes da Bíblia, inclui-se o título


da parte antes da indicação do idioma e menciona-se a localização da
parte (capítulo ou versículo) no final.

BÍBLIA, N.T. João. Português. Bíblia sagrada. Versão de Antonio Pereira


de Figueiredo. São Paulo: Ed. Das Américas, 1950. cap.12, vers.11.

CITAÇÃO DIRETA - TRECHO CITADO MENOR OU IGUAL A 3 LINHAS


As citações diretas, menores ou iguais ao limite de 3 linhas devem ser
feitas de acordo com as seguintes especificações: “Sendo necessário
citar trecho de obra, sem ultrapassar o limite de três linhas, deve-se
fazer a citação no corpo do próprio texto, mantendo o espaçamento

184 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


adotado, o tamanho de fonte 12, sem itálico, iniciando e terminando
com aspas” (SOUZA, 2005, p. 18). Esta regra também confere com a
ABNT 6023/2002.

CITAÇÃO DIRETA - TRECHO CITADO MAIOR QUE 3 LINHAS


As citações maiores devem ser feitas seguindo as seguintes especifi-
cações:
Sendo necessário citar trecho de obra ou transcrever
a opinião de determinado autor ou ainda acórdão,
ementa, lei, ultrapassando três linhas, deve-se recuar
4 centímetros à direita com os seguintes cuidados:
espaço simples, fonte 10, sem itálico, iniciando e
terminando sem aspas. Após, entre parênteses, constar
a fonte, com o sobrenome do autor em maiúsculas, o
ano de publicação da obra e a página. (SOBRENOME,
2003, p. 10).

O sobrenome do autor, quando colocado entre parênteses, deve ser


grafado em maiúsculas.

PARA REFERÊNCIA DE OUTROS DOCUMENTOS NÃO PRESENTES NES-


SA SÍNTESE, confira: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS.
NBR 6023: informação e documentação – referências – elaboração.
Rio de Janeiro, 2002. 24p.
Disponível também em: <https://www.ict.unesp.br/Home/biblioteca/
6023refernciaeelaborao.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2018.

PIZZANI, L.; SILVA, R. C. ABNT 6023 Elaboração de Referências. 87p.


Botucatu-SP: UNESP, 2016. Disponível em:
<http://www.biblioteca.btu.unesp.br/Home/Referencias/LuA-
BNT_6023.pdf>.
Acesso em: 02 mar. 2018.

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 185


186 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
REMHU
v. 29 n. 63 (2021):
Migrants, refugees, and displaced persons in the Middle East and North Africa

SUMÁRIO

DOSSIÊ
Pessoas migrantes, refugiadas e deslocadas no Oriente Médio e norte da África -
visibilidade e direitos
Roberto Marinucci

Migrants; Refugees; and Displaced in the Middle East and North Africa: An approach
from the Global South - Uma abordagem desde o Sul Global
Maria do Carmo dos Santos Gonçalves, Luciano Zaccara

Imigração e revolução no Irã - Política de asilo e consolidação do Estado


Amin Moghadam, Safinaz Jadali

Deslocamentos forçados no Oriente Médio e o ciclo de vida do refúgio na Turquia e Líba-


no - Da cobertura factual ao jornalismo humanitário
Cilene Victor, Lilian Sanches, Rodrigo Borges Delfim

Sem ter para onde ir? O caso de pessoas deslocadas nos estados do Magreb durante a
pandemia de COVID-19
Johnatan Santos

Sobre as etnocracias das ajudas humanitárias no Líbano


Estella Carpi

ARTIGOS
Uma missão eminentemente humanitária? Operação Acolhida e a gestão militarizada nos
abrigos para migrantes venezuelanos/as em Boa Vista- RR
Iana dos Santos Vasconcelos, Igor José de Reno Machado

O êxodo venezuelano como fenômeno da migração Sul-Sul


João Carlos Jarochisnki Silva, Rosana Baeninger

Recomeço: O sofrimento psíquico na imigração involuntária e a política de inclusão nas


universidades brasileiras
Alisson Vinicius Silva Ferreira, Mariá Boeira Lodetti, Lucienne Martins Borges

Entre Ulises y Penélope - Integrar la perspectiva de género en los estudios sobre la salud
mental de las mujeres migrantes
Itzel Eguiluz

Direitos de cidadania dos imigrantes em Portugal


Geisa Oliveira Daré

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 187


Xeno-racismo ou xenofobia racializada? Problematizando a hospitalidade seletiva aos es-
trangeiros no Brasil
Deivison Faustino, Leila Maria De Oliveira

El patrocinio de refugiados - una revisión sistemática descriptiva


Ana Irene Rovetta Cortés

Relatos e reflexões

A dor se transforma em solidariedade - A pastoral do migrante em Roraima


Teresinha Lucia Santin

Resenhas

Migração e Intolerânciamigrações em conjuntura de regressão de direitos


Juliane Sant’Ana Bento, Renata Ferreira da Silva

188 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022


LIVROS QUE VOCÊ PODERÁ BAIXAR GRATUITAMENTE OU ENCONTRAR NA
BIBLIOTECA DO CEM – CENTRO DE ESTUDOS MIGRATÓRIOS

TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 189


190 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022
TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022 191
192 TRAVESSIA - Revista do Migrante - Ano XXXV, Nº 93 - Janeiro - Abril/2022

Você também pode gostar