2010 LidianeSzerwinskCamargos
2010 LidianeSzerwinskCamargos
2010 LidianeSzerwinskCamargos
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
Brasília
Fevereiro de 2010
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB)
INSTITUTO DE LETRAS (IL)
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS (LIP)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA (PPGL)
Brasília
Fevereiro de 2010
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB)
INSTITUTO DE LETRAS (IL)
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS (LIP)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA (PPGL)
Dissertação de Mestrado
Banca examinadora:
Brasília
Fevereiro de 2010
A Claude Lévi-Strauss, in memoriam, por
sua contribuição ao estudo da cultura Boróro.
i
Agradecimentos
À professora Ana Suelly Arruda Câmara Cabral por ter-me apresentado ao mundo das
línguas indígenas brasileiras e pelo constante estímulo à pesquisa. Agradeço-lhe ainda,
pelas sábias discussões que me fizeram (e me fazem) refletir e amadurecer. Por fim, por
me ensinar que pesquisar uma lìngua indìgena é muito mais que fazer uma „simples‟
descrição linguística.
Aos índios Boróro das aldeias de Merúri e Nabure iau, em especial aos caciques e pais
de coração, Seu Frederico e Dona Santa, que me receberam na aldeia de braços abertos
e com os quais pude aprender um pouco mais da língua e da cultura desse povo.
À FUNAI, nas pessoas de Cláudio Homero e Robson Batista, pela confiança e pelo
apoio à pesquisa junto aos índios Boróro.
Ao CNPq pela bolsa de estudos de mestrado e pelo apoio financeiro dado à pesquisa e
aos trabalhos de campo, por meio de projetos nº 401579/2008-5 e 484727/2006-0.
À Layane Lima pela eterna amizade e por estar comigo em todos os momentos
importantes desta trajetória em Linguística
ii
Agradeço à Maxwell Miranda, por ser muito mais que um companheiro de mestrado,
mas um amigo sempre disposto a dividir comigo minhas dúvidas, descobertas,
questionamentos e inquietações.
Em especial, à minha família, pelo apoio incomensurável. Sobretudo, ao meu pai, José
Maria Camargos, à minha mãe, Sônia Maria Szerwinsk Camargos, ao meu irmão Rafael
Camargos e à minha tia, Nélia Paiva, por acreditarem em meu potencial e pelo estímulo
constante aos meus estudos.
iii
Os Bororo são os maiores e os mais belos indígenas do
Brasil. Sua cabeça redonda, sua face alongada, com traços
regulares e vigorosos, seus ombros de atleta, evocam certos
tipos patagões aos quais talvez se liguem, do ponto de vista
racial.
Claude Lévi-Strauss 1957:227
iv
Resumo
v
Abstract
In this thesis a three-fold objective was attained: (i) the presentation of a survey of the
linguistic publications on the Boróro language, (ii) a review of the literature on the
coding of grammatical relations in this language as well as the presentation of a new
hypothesis, based on original data, showing that the Boróro language has an Ergative-
Absolutive pattern of alignment, and (iii) a discussion concerning the expression of the
categories of Aspect, Mood and Modality in Boróro, as contrasted to the analyses
presented in Crowell (1977), Viana (2003, 2004) and Nonato (2008).
vi
Lista de abreviaturas
vii
Lista de quadros e imagens
viii
Índice
Dedicatória.......................................................................................................................... i
Agradecimentos.................................................................................................................. ii
Epígrafe............................................................................................................................... iv
Resumo................................................................................................................................ v
Abstract............................................................................................................................... vi
Lista de abreviaturas e símbolos....................................................................................... vii
Lista de quadros e figuras................................................................................................. viii
0. Introdução....................................................................................................................... 1
0.1 Objetivos ....................................................................................................................... 1
0.2 Quadro teórico e metodologia........................................................................................ 3
0.3 Trabalho de campo......................................................................................................... 3
0.4 Organização dos capítulos.............................................................................................. 4
Conclusões........................................................................................................................... 85
Referências Bibliográficas................................................................................................. 87
x
INTRODUÇÃO
1
Cf. site do Instituto Socioambiental <www.isa.org.br>.
1
e Venturelli, a tese de doutorado “A grammar of Boróro” (Crowell 1979), um “Pequeno
dicionário Boróro-Português - a serviço da escola bororo” (Ochoa 2001), o trabalho de
qualificação de doutorado intitulado “Morfossintaxe da lìngua Boróro” (Viana 2003), dois
artigos, “Tempo, aspecto e modo em Boróro” (Viana 2004) e “Dissimulação de sonoridade
em Boróro: uma abordagem com base no princìpio do contorno obrigatório” (Viana 2007) e
a dissertação de mestrado “Ainore Boe: um estudo descritivo da lìngua bororo e
consequências para a teoria de caso e concordância” (Nonato 2008). Há ainda vocabulários,
como o “Vocabulário da Lìngua dos Borôros” (Basìlio Magalhães 1919).
0.1 Objetivos
2
0.2 Quadro teórico e metodologia
3
também registrei os cantos do ritual de batismo do clã Ecerae, subclã Paiwo. Na segunda
viagem de campo, coletei dados de orações dependentes e independentes e algumas histórias
contadas pelos velhos durante uma festa.
No primeiro semestre de 2009, Valdir Ecerae Eceba, um índio Boróro, passou no
vestibular da UnB para o curso de agronomia, através do convênio UnB/FUNAI. Valdir
procurou o LALI com interesse em aprender a gramática da sua língua materna. Dessa forma,
pudemos trabalhar em equipe e de forma sistemática no estudo mais aprofundado da
gramática da língua Boróro. Infelizmente os estudos com Valdir foram logo interrompidos por
causa de um acidente de carro que matou nove índios de sua aldeia, o que o levou a suspender
os estudos.
Em dezembro do mesmo ano pude contar com a preciosa ajuda de dois velhos
caciques da aldeia Nabure-iau, Dona Santa e Seu Frederico. Durante os 15 dias em que
estiveram em Brasília, tivemos a oportunidade de coletar e analisar com a ajuda deles os
novos dados.
4
CAPÍTULO I
1. O povo e a língua
1.1 Introdução
5
(b) A pacificação dos Boróro do rio São Lourenço – Os Boróro do rio São Lourenço eram
chamados de Coroados. Após confrontos violentos com os mineradores de ouro, os
Coroados se afastaram para lugares menos acessíveis. Contudo, a caçada aos índios
não diminuía. As perdas eram de ambos os lados, tanto dos mineradores, quanto dos
índios. Sem possibilidades de pacificação, o governador de Mato Grosso resolveu
convencer algumas mulheres Boróro, escravas em Cuiabá , a cooperarem com o
governo. Lideradas por Rosa Bororo, o grupo de mulheres – que tiveram seus filhos
mantidos como reféns em Cuiabá – conseguiu convencer os Boróro a entregarem as
armas em 16 de junho de 1886, após alguns dias de festa. Um ano depois, outro grupo
Boróro resolveu também entregar as armas. Em 1895, os missionários salesianos se
juntaram aos militares, por três anos, na catequese dos índios. Nesse período foram
criadas duas colônias militares indígenas no rio São Lourenço, Tereza Cristina e
Princesa Isabel, contudo, somente a primeira funcionou bem. O uso de aguardente e o
abuso contra as mulheres Boróro fizeram com que muitos índios abandonassem as
colônias. Nesse período quatro grandes áreas foram demarcadas: São João do
Jarudóri, Tadarimana, Tereza Cristina e Perigara. Nas décadas de 1950 e 1960, a
falta de assistência do governo federal, os surtos de epidemias, o alcoolismo, a baixa
taxa de natalidade e as invasões dos não-índios nas reservas indígenas deixou o povo
Boróro à beira da extinção.
(c) A “pacificação” dos Boróro dos rios Garças e Araguaia pelos missionários
salesianos – contrariamente aos Boróro do rio São Lourenço, os Boróro dos rios das
Garças, das Mortes e Alto São Lourenço não se renderam facilmente aos militares e
fazendeiros e continuavam em conflitos sangrentos, que acabavam em mortes.
2
Cf. Enciclopédia dos povos indígenas, disponível em www.isa.org.com.
6
Imagem1: Território ocupado antigamente pelos Bororo e reservas atuais (reproduzido de Colbacchini e Albisetti,
1945)
Sobre a atuação dos missionários salesianos junto aos Boróro, o antropólogo Lévi-
Strauss, na década de 30, ao visitar a hoje extinta aldeia de Kejara, observou que essa aldeia
ainda era juntamente com as outras duas da área do rio Vermelho – Pobori e Jarudori –, umas
das últimas onde a ação dos salesianos não fora decisiva. Lévi-Strauss ainda declarou que
“Pois esses missionários que, com o Serviço de Proteção, conseguiram acabar com
os conflitos entre os índios e colonos, fizeram simultaneamente excelente pesquisas
etnográficas (nossas melhoras fontes sobre os Boróro, depois dos estudos mais
antigos de Karl von den Steinen) e empreenderam o extermínio metódico da cultura
indìgena” (cf. Lévi-Strauss, 1955:203).
A presença dos salesianos ainda é uma realidade na maioria das aldeias Boróro.
Atualmente, talvez como forma de reparar o extermínio cultural de outrora, eles organizam,
em Merúri, um Centro Cultural que desenvolve ações como: (i) organização de uma
biblioteca com todo o acervo publicado sobre a língua Boróro; (ii) re-aprendizagem da
confecção de artefatos antigos; (iii) organização de uma sala de exposição permanente desses
artefatos; (iv) confecção de material didático monolíngue e bilíngue.
7
1.3 Informações etnográficas
8
1.4 Sobre a língua
I Família Jê
a) Jê nordeste
1. Jaikó (sudeste do Piauí)
b) Jê norte
3
O tronco Macro-Jê proposto por Rodrigues é ainda uma hipótese em andamento. A complexidade no
desenvolvimento da hipótese Macro-Jê deve-se, primordialmente, à precariedade e à insuficiência de dados para
os avanços da pesquisa. Segundo Rodrigues (1986),
9
1. Timbíra (incluindo Canela Ramkokamekrã, Canela Apanyekrã, Gavião Piokobjé,
Gavião Parakatejé, Krinkatí, krahô, krenjé; Maranhão, Pará, Tocantins; 2,800)
2. Apinajé (norte de Tocantins: 720)
3. Kayapó (incluindo A‟ukré, Gorotìre, kararaô, kikretum, kokraimôro,
Kubenkrakén, Menkrangnotí, Mentuktíre, Xikrin; Mato Grosso Oriental e sudeste
do Pará: 5,000).
4. Panará (Kren-akarôre (Área Indígena Panará, norte do Mato Grosso e sudeste do
Pará: 160).
5. Suyá (incluindo Tapayuna; Parque Indígena do Xingú no Mato Grosso; 213 S. , 58
T.).
c) Jê Central
1. Xavante (Sudeste de Mato Grosso, formalmente no norte e no oeste de Mato
Grosso; 9,000).
2. Xerente (Tocantins; 1550)
3. Xabriabá (Minas Gerais; 5,700 etnias, provavelmente não falantes).
4. Akroá (Goiás oriental; sul do Maranhão)
d) Jê Sul
1. Kaingáng (incluindo K. de São Paulo, K. do Para: ná, K. central, k. do sudoeste. K.
do sudeste: São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul: 2,000)
2. Xokléng (Santa Catarina: 1,650)
3. Ingaín (nordeste da Argentina, sudeste do Paraguai).
II Família Kamakã
1. Kamakã (sudeste da Bahia, nordeste do Espírito Santo)
2. Mongoyó (sudeste da Bahia)
3. Menién (sudeste da Bahia)
4. Kotoxó (sudeste da Bahia)
5. Masakará (nordeste da Bahia)
10
2. Kapoxó (incluindo Kumanaxó e Panháme; Nordeste de Minas Gerais e sudeste da
Bahia)
3. Monoxó (nordeste de Minas Gerais e sudeste da Bahia)
4. Makoní (nordeste de Minas Gerais)
5. Malilí (nordeste de Minas Gerais)
6. Pataxó (incluindo Hãhãhãe; sudeste da Bahia: 4,600 etnias)
IV Família Krenák
1. Krenák (formalmente chamados de Botocudos, incluindo Nakrehé, Nakpié,
Naknyanúk, Nyepnyep, Etwet, Minyãyirún, Yiporók, Pojitxá, Potén, Krekmún,
Bakuén, Aranã; nordeste de Minas Gerais e norte e centro do Espírito Santo,
formalmente também no sudeste da Bahia; algumas família agora também no
centro de São Paulo; 100 etnias; cerca de 10 falantes)
2. Guerén (sudeste da Bahia)
V Família Purí
1. Purí (Espírito Santo, Rio de Janeiro, nordeste de São Paulo, sudeste de Minas
Gerais)
2. Koropó (Espírito Santo)
3. Coroado (Espírito Santo)
VI Família Karirí
1. Kipeá (também conhecido como Kirirí; nordeste da Bahia e Sergipe; 1830 etnias)
2. Dzubukuá (sobre uma ilha no rio São Francisco, no norte da Bahia)
3. Sabuyá ou Sapoyá (centro da Bahia)
4. Kamurú ou Pedra Branca (leste da Bahia)
11
1. Karajá (incluindo K. do sul, K. do norte, Javaé e Xambiwá; leste Mato Grosso e oeste
de Tocantins; 2,900)
IX Família Ofayé
1. Ofayé (incluindo Ivinheima O. e Vacaria O.; também conhecido como Opayé e Ofayé-
Xavante; leste de Mato Grosso do Sul; 87 etnias, cerca de 25 falantes)
X Família Boróro
1. Boróro oriental (sul de Mato Grosso; 1,072 etnias, algumas das quais não falam
Boróro)
2. Boróro ocidental (oeste de Mato Grosso)
3. Umutína (oeste de Mato Grosso; 100 etnias; 1 falante4)
4. Otúke (incluindo Kovare(ka) e Kurumina(ka); leste da Bolívia)
XI Guató
1. Guató (sudoeste de Mato Grosso; 380 etnias, somente cerca de 5 falantes)
4
O último falante da língua Umutína faleceu em 2003.
12
1.5 Considerações finais
13
CAPÍTULO II
2.1 Introdução
14
Missão Salesiana
Antonio Colbacchini
Ricardo Tonelli
“Alcune osservazioni sulla sintassi della lingua degl'indi Bororo-Orari del Matto
Grosso (Brasile)”, em Atti del XXII Congresso Internazionale degli Americanisti, II, Roma,
1928, p. 569-585, vertido para o Português em Colbacchini e Albisetti 1942, p. 308-321.
15
“Il nome dei vivi e dei defunti (aroe) presso gl‟Indi Orari (Bororo orientali) del
Matto Grosso”, em Festschrift P. W. Schmidt, Viena, 1928 p. 734-739. Infelizmente ainda não
tivemos acesso a esse trabalho.
16
Cesar Albisetti
Gonçalo Ochoa
Dos trabalhos análogos, creio ser o meu o mais completo [...] Tenho a grande
satisfação em confessar que o coronel Rondon, benemerito apostolo dos sertões e,
dentre os brasileiros vivos, o que melhor conhece a língua borôro, leu e
benevolamente apreciou o presente estudo (pág. 9/10). [[sic]]
18
2.3.2 Candido Mariano da Silva Rondon e João Barbosa de Faria
19
proporção de pouco menos de 50% (32: vegetais; 13: aspectos diversos da cultura;
45: fontes diversas)” ;
Por fim, “embora não tivesse sido escopo principal do nosso
trabalho tratar do nexo linguístico bororo-umutina, os poucos elementos aqui
apresentados nos permitem reafirmar o parentesco entre os dois grupos, num grau
de conexão mais estreito do que até agora tem sido apontado”.
20
O trabalho de 1986 é um livro de referência para o conhecimento das línguas
indígenas brasileiras. Segundo palavras do próprio autor a “intenção deste livro é divulgar, de
forma mais sistemática, conhecimentos sobre a existência de línguas indígenas no Brasil e
sobre as relações que se vão descobrindo entre elas”.
No trabalho de 1993, Rodrigues propos uma hipótese sobre a flexão de pessoa em
Boróro. O autor levanta evidências de antigos prefixos relacionais na língua e compara-os
com dados da língua Timbíra (Família Jê, tronco Macro-Jê).
O trabalho de Rodrigues (1999) consiste em um amplo estudo histórico-
comparativo das línguas do tronco Macro-Jê. O autor reuniu informações sobre a fonologia,
morfologia e sintaxe de algumas línguas do tronco Macro-Jê, relacionando-as em uma
perspectiva histórico-comparativa.
21
A gramática é essencialmente de base estruturalista e voltada a um público
externo, isto é, às pessoas que não falam a língua Bororo e desejam aprendê-la.
22
gramática de linha gerativa foi usada somente em alguns pontos que ela permitia apresentar
de forma mais elegante e precisa” (2008:4).
Há outro estudo feito por Rafael Nonato em parceria com Filomena Sândalo,
intitulado “Uma comparação gramatical, fonológica e lexical entre as famìlias Guaikurú,
Mataco e Bororo: um caso de difusão areal?” (2008). Neste estudo, os autores examinam
possíveis relações entre a família Boróro e as famílias Guaikurú e Mataco, concluindo que as
semelhanças identificadas por eles são mais provavelmente oriundas de difusão areal.
23
CAPÍTULO III
3.1 Introdução
Uma investigação dos dados disponíveis sobre o Boróro mostra que, nessa língua,
nomes e verbos têm estrutura interna pouco complexa, tendendo a língua para o tipo isolante.
Há pouquíssimos morfemas derivacionais e não muitos flexionais.
Os linguistas que escreveram sobre aspectos gramaticais da língua Boróro –
Crowell (1977), Rodrigues (1993), Viana (2003, 2004) – observaram que essa língua possui
um único paradigma de pessoa que codificam o determinante de um nome, o sujeito e o objeto
direto dos verbos e o complemento das posposições.
Neste capítulo apresentamos fortes indicações de que a língua Boróro, embora
com um único conjunto de marcas pessoais, faz uso de estratégias morfossintáticas bem
definidas para distinguir o agente de um verbo transitivo dos demais argumentos verbais. O
presente estudo se pauta no tratamento do fenômeno da ergatividade desenvolvido por Comrie
(1973) e por Dixon (1994) e considera as manifestações desse fenômeno descritas por
Rodrigues (1999) com respeito ao Maxakalí, por Dourado (2001) com respeito ao Panará, por
Reis (2003) com respeito ao Mebengokré, por Rodrigues (2003) com respeito ao Karirí, e por
Rodrigues, Cabral e Costa com respeito ao Mebengokré (2004).
24
com A (como em uma língua acusativa) ou S com O (como em uma língua ergativa). As
línguas que manifestam um padrão dessa natureza são, segundo o mesmo autor, línguas de
sistema cindido.
Segundo Comrie (1978:329) o termo ergatividade é usado na descrição tradicional
da linguística tipológica para referir-se ao sistema de marcação de casos nominais em que o
sujeito de verbo intransitivo tem a mesma marca morfológica do objeto direto e uma marca
morfológica diferente para o sujeito de um verbo transitivo. A definição de Comrie é
representada no esquema abaixo, em que A representa o agente, S o sujeito de intransitivas e
P o paciente.
S V
A
P V
Ergatividade entendida
A nesse sentido, como manifestação de relações gramaticais
entre núcleos de predicados e os argumentos destes, foi identificada em algumas línguas do
tronco Macro-Jê, como Karirí, Panará, Mebengokré e Maxakalí.
Rodrigues (2003:75) identificou em Karirí morfologia e sintaxe ergativas. Como
mostrou Rodrigues, nas orações com núcleo verbal transitivo, a preposição no (e seus
alomorfes presos -na ~ -ña em conjunto com marcas de pessoa) expressa caso ergativo,
enquanto que o sintagma nominal correspondente ao objeto desse verbo, assim como o
sintagma nominal que codifica o sujeito de predicados com núcleo intransitivo são não
marcados, são absolutivos. Ainda segundo Rodrigues (ibidem), os verbos são flexionados
somente para a pessoa absolutiva (experimentador) e a concordância se faz exclusivamente
com ela. Alguns exemplos extraídos de Rodrigues que ilustram manifestações de ergatividade
em Karirí são os seguintes:
25
(2) sõ hietsã no wo
morder me erg cobra
„uma cobra me mordeu (Rodrigues, 2003, p. 73)
Quadro 1 dos marcadores pessoais do Mebengokré descritos por Rodrigues, Cabral e Costa, 2004.
26
Alguns dos exemplos fornecidos por esses autores que ilustram manifestações de
ergatividade em Mebengokré são os seguintes:
Costa (2003:69) mostra que em Mebengokré as orações que têm status gramatical
de nome têm predicados nominais e manifestam um padrão ergativo-asbsolutivo e que as
demais orações, com predicados verbais, manifestam um padrão nominativo-absolutivo. Nos
exemplos 10 e 11 tem-se a partícula ket modificando os predicados transitivos e acionando
um padrão ergativo-absolutivo.
27
(12) kamrã =kari =kyẽ =sõ-ri kan ĩkyẽ mã
28
3.3 Língua Boróro
29
(adj) (suj) agrS.VINAC.TNM (adj)
(adj) (suj) (agrS).TNM (adj) (obj) agrO.VTRANS (adj)
(adj) (suj) (agrS).TNM (adj) agrS.VINERG (adj)
O Boróro possui dois conjuntos de marcas pessoais (cf. quadro nº. 2), uma série
de pronomes pessoais independentes (cf. ex. 19 e 20), com função mais enfática, e uma série
de pronomes pessoais dependentes que, como observou Rodrigues (1993), codificam o
determinante de um nome, o sujeito e o objeto direto dos verbos e o complemento das
posposições (cf. ex. 21 a 43). 5
5
Crowell (1977) classifica esses pronomes como pronomes livres e pronomes presos. Tanto os pronomes livres
quanto os pronomes presos podem funcionar como marcas de tópicos, sujeitos de orações identificacionais e
sujeitos e complementos de equativas. Os pronomes presos ocorrem como objeto direto, sujeitos de alguns tipos
de oração, exceto identificacionais e equativas, objeto de posposição, prefixos possessivos e prefixo de nomes
possuídos inalienavelmente.
De acordo com a análise proposta por Nonato (2008), a língua Boróro apresenta um paradigma de pronomes
pessoais que “tem um efeito de ênfase ou foco contrastivo” (p. 65). A série analisada por nós como pronomes
pessoais dependentes é considerada por Nonato como marcadores de concordância.
30
Marcas pessoais
31
Pronomes pessoais dependentes na função de determinante de um nome
6
Rodrigues (1993) propõe uma hipótese sobre a flexão de pessoa em Boróro. De acordo com Rodrigues, os
marcadores de pessoas são prefixados diretamente a todos os temas iniciados por consoante e a parte dos temas
começados por vogal.
Outros temas iniciados por vogal possuem uma consoante intercalada entre o prefixo e o tema, exceto para
3sg. Essa consoante poderá ser:
k – (i) diante de temas iniciados por vogal anterior; (ii) diante de temas iniciados por vogal posterior, a
consoante é k só quando o marcador de pessoa terminar com vogal posterior.
t- quando a vogal do marcador é anterior.
k e t – dão lugar as sonoras g e d quando o marcador de pessoa começa por consoante
Há um subconjunto de temas começados por vogal posterior que em vez de t/d recebem n após
marcador com vogal anterior.
O Boróro apresenta dois temas começados com o. O tema o „dente‟, intercala a consoante t, assim, i-t-o,
„meu dente‟ e o tema o „posse alienável‟ intercala a consoante n.
A hipótese de Rodrigues é reforçada pela comparação com a língua Timbíra (Jê). Segundo o autor, o „posse
alienável, em Boróro‟ é cognato de õ do Timbìra (ex. Boróro i-n-o; Timbíra i y-õ [iñõ]).
“Entre as mudanças fonológicas que deram ao B. sua feição atual, terão ocorrido as seguintes: (a) y evoluiu
para k (provavelmente através de w e kw ) diante de vogal anterior e também diante de vogal posterior; (b) y
evoluiu para t ou n entre vogal anterior e vogal posterior, segundo fosse a segunda vogal originalmente oral ou
nasal; (c) todas as vogais nasais se desnasalizaram” .
32
(36) a mana „seu irmão mais velho‟
(37) u mana „irmão mais velho dele‟
(38) pa- mana „irmão mais velho de mim e de você‟
(39 xe mana „irmão mais velho de mim e dele(s)
(40) ta mana „irmão mais velho de vocês‟
(41) e mana „irmão mais velho deles‟
(42) i kuri re
1sg grande IND
„eu sou grande‟
(43) a pagodu re
2sg medo IND
„você é medroso‟
(44) a to
2sg para
„para você‟
(45) i rekodadi
1sg depois
„depois de mim‟
33
3.3.2 Predicados
A língua Boróro possui dois tipos de predicados, a série transitiva e a série intransitiva.
Incluem-se na classe dos predicados intransitivos os predicados com núcleos nominais
(processuais, essivos, identificacionais), predicados com verbos psicológicos e posicionais.
(48) ta re e wido
2pl IND 3pl matar
„vocês os mataram‟
34
(49) u re bola marigo
3sg IND bola jogar
„ele jogou a bola‟
(50) i re a wije
1sg IND 2sg avisar
„eu avisei você‟
i re i kdaw tg i i
7
As tabelas de dados com quatro linhas são dados oriundos de Crowell (1977) e reinterpretados por nós (2ª
linha). O clítico re, Crowell, define como „neutro‟ e o mode ~ mëdë com „hipotético + neutro.
35
(54) u re tiginegi di
3 sg IND 3 sg beliscar 3 sg REL
„ele o beliscou‟
36
(57) te reru re
1pl (excl) dançar IND
„nós (excl.) dançamos‟
(58) pa nodu re
1pl (incl) dormir IND
„nós dormimos‟
(61) pa rogo re
1pl incl. arrotar IND
„nós arrotamos‟
(62) i ordiwa ka re
1sg saber NEG IND
„eu não sei‟.
37
(62) e- mago- ru- mëde
e mago- ru mëde
3pl falar incerteza hipotético+ neutro
„eles falarão provavelmente‟ (Crowell, 1977, p. 99)
(63) i ke boj ka re
1sg comida fome NEG IND
„ eu não estou com fome‟.
(65) i raga re
1sg forte IND
„eu sou forte
38
(68) imed pega-re
imed pega re
homem mau-neutro
„o homem é mau‟ (Crowell, 1977, p. 98)
(70) i padu ka re
1sg estar deitada NEG IND
„eu não estou deitada‟
(71) i megi re
1sg estar torto IND
„eu estou de lado‟
(72) i ragoje re
1sg estar de pé IND
„eu estou de pé‟
39
Predicados essivos
imed re imi
homem neutro 1sg=livre=pronome
„eu sou homem‟ (Crowell, 1977, p. 38)
40
Predicados com verbos intransitivos da classe 2b
(80) e rugod- re pa -j
42
Predicados intransitivos com núcleos não-verbais
(90) jorubo- re i- i
jorubo re i i
doença neutro 1sg referente
„eu tenho frio‟(literalmente„existe doença com respeito a mim) (Crowell, 1977, p. 184)
43
(94) kowaru u-re t-wre-to imed-di
kowaru u re t wre to imed di
cavalo 3sg-neutro correferencial-pé-bater homem-referente
„o cavalo deu um coice no homem‟ (Crowell, 1977, p. 187)
(96) i re a k-ajmo
1sg IND 2sg R-banhar
„eu banhei você‟
44
Verifica-se que tanto os sujeitos de predicados intransitivos quanto os objetos de
predicados transitivos antecedem imediatamente os temas verbais, enquanto que em
predicados transitivos os sujeitos são seguidos pelo clítico re. Essa distribuição de argumentos
evidencia, por um lado, o padrão de alinhamento ergativo-absolutivo em construções
transitivas, mas, além disso, a própria distribuição do clítico re distingue predicados
transitivos de predicados intransitivos.
Dessa forma, embora o Boróro não apresente uma marca morfológica específica
para o caso ergativo-absolutivo, nem tampouco marcas pronominais associadas a caso,
evidencia-se na língua um padrão claramente ergativo-absolutivo. Quando os sujeitos de
predicados intransitivos e os objetos de predicados transitivos ocupam a posição pré-verbal,
tem-se um padrão absolutivo. Quando os sujeitos de predicados transitivos vêm seguidos do
clítico re, tem-se um padrão ergativo.
Predicados ergativos
45
(100) [u mode] P. ERG karo ko
[3sg PROJ + IND] peixe comer
„ele vai comer peixe
Predicados absolutivos
46
(106) [a vud] P. ABS mode
[2sg cair] PROJ + IND
„você vai cair‟
Objeto de transitiva
48
CAPÍTULO V
4.1. Introdução
49
4.2 Algumas visões sobre as categorias de tempo, aspecto, modo e modalidade
4.2.1 Tempo
É fato bem conhecido que a categoria “tempo” não é expressa por meio de flexão
em todas as línguas. Tradicionalmente essa categoria tem sido referida como aquela que
8
localiza os eventos de fala na linha temporal. Comrie (1976:4) define tempo linguístico
como algo que “... relaciona o tempo da situação referida a algum outro tempo, normalmente
o momento da fala”. Para Chung e Timberlake (1985:203) tempo linguìstico “... situa o
evento no tempo, comparando a posição das bordas em relação ao tempo locus.” As
definições da categoria tempo linguístico naturalmente concebem uma linha temporal e dois
tempos, um tempo locus e um tempo relativo. O tempo locus varia de acordo com a
experiência que cada cultura desenvolve na sua realidade, da mesma forma que variam os
tempos relativos. Para algumas culturas a distinção é binária, mas há culturas que dividem a
linha temporal em vários tempos em que ocorrem os eventos e os processos.
Tanto aspecto como tempo têm sido associados ao verbo, de forma que é comum
falar-se de tempo e de aspecto verbal. Por outro lado, há autores que estendem a noção de
aspecto também a predicados mais nominais. Aspecto relaciona-se com a estrutura interna dos
eventos e processos, mas também pode relacionar-se a um estado ou a uma situação estática.
Há línguas em que nomes predicam, como as línguas Tupí-Guaraní (cf. Rodrigues 1996). Em
línguas como essas, pode-se dizer „comecei a (ficar) branca‟, em que o tema para branco pode
combinar-se com o sufixo inceptivo p.
Considerando a existência de línguas em que as noções passaram historicamente a
ter uma relação íntima com os temas verbais núcleos de predicados, situações em que
passaram a ser obrigatórios, vários linguistas propuseram a distinção entre aspecto e
8
Minha tradução.
50
aktionsart (ou modalidade de ação). Aspecto então fica restrito a algo mais verbal, enquanto
que aktionsart ou modo de ação corresponde à expressão aspectual mais leve, ainda percebida
pelos falantes de uma língua como algo mais lexical.
A noção de aspecto é vista, geralmente, segundo duas tradições distintas, a eslava
e a ocidental. Para a tradição eslava, o aspecto relaciona-se à oposição entre perfectivo e
imperfectivo, bem arraigada nas línguas eslavas. Já para a tradição ocidental, essa noção
relaciona-se às categorias que marcam as diferenças entre os eventos verbais.
Vendler (1967:143) propôs um esquema de classificação verbal em quatro classes,
defendendo que distinções verbais tais como processos, estados, disposições, ocorrências,
tarefas, achievements, entre outras, não podem ser feitas somente em termos de tempo,
embora o tempo seja uma categoria crucial. Outros fatores, segundo o autor, devem ser
considerados, como a presença ou ausência de um objeto, condições, estado da arte das
coisas.
Em sua classificação, Vendler (1967:149) distingue estado, atividade,
accomplishments e achievements.
(...) the concept of activities calls for periods of time that are not unique or definite.
Accomplishements, on the other hand, imply the notion of unique and definite time
periods. In an analogous way, while achievements involve unique and definite time
instants, states involve time instants in an indefinite and nonunique sense.
Comrie (1976:9) considera o aspecto como uma categoria gramatical que pode ser
expressa por meio da morfologia flexional ou por meio de perífrases. Contudo, em uma nota
de rodapé, esse autor estabelece duas distinções para as noções de Aktionsart (modalidade de
ação) e de aspecto, segundo os autores que as utilizam como categorias distintas.
51
Distinction between aspect and aktionsart is drawn in at least the following two
quite different ways. The first distinction is between aspect as grammaticalisation of
the relevant semantic distinctions, while aktionsart represents lexicalisation of the
distinctions, irrespective of how these distinctions are lexicalized; this use of
aktionsart is similar to the notion of inherent meaning (…). The second distinction,
which is that used by most Slavists, and often by scholars in Slavonic countries
writing on other languages, is between aspect as grammaticalisation of the semantic
distinction, and aktionsart as lexicalization of the distinction provided that the
lexicalization is by means of derivational morphology.
O modo é visto de uma maneira geral como uma categoria que expressa
distinções sintáticas e semânticas associadas aos paradigmas verbais, enquanto as
modalidades são consideradas como de caráter mais subjetivo e com a função de indicar
contrastes em verbos e categorias associadas a eles (Crystal 1988:174).
Veremos agora algumas definições propostas para essas categorias.
Chung e Timberlake (1985:241) definem modo como caracterizador da atualidade
(isto é, da realidade).
(…) Mood characterizes the actuality of an event by comparing the event world(s) to
a reference world, termed the actual world. An event can simply be actual (more
52
precisely, the event world is identical to the actual world); an event can be
hypothetically possible (the event world may be imposed by the speaker on the
addressee; and so on). Whereas there is basically one way for an event to be actual,
there are numerous ways that an event can be less than completely actual.
53
1. Contendo um elemento de vontade:
Jussive : go (command)
Compulsive: he has to go
Obligative: he out to go/ we should go
Advisory: you should go
Precative: go
Hortative: let us go
Permissive: You may go if you like
Promissive: I will go / it shall be done
Optative (realizable): may he be still alive!
Desiderative (unrealizable): would he were still alive
Intentional: in order that he may go
2. Não contendo um elemento vontade:
Apodictive: twice two must be (is necessarily) four.
Necessitative: he must be rich (or he could not spend so much).
Presumptive: he is probably rich; he would will know.
Dubitative: he may be (is perhaps) rich).
Conditional: if he is rich
Hypothetical: if he were rich
Potential: he can speak
Concessional : though he is rich
Quadro 3: Jespersen (1924:320)
Segundo Crowell (1977, p. 86), a língua Boróro exprime tempo, modo e aspecto.
Essas noções, porém, não são bem claras para Crowell, de modo que ele preferiu referir-se a
54
todas elas sob o nome aspecto: “This does not mean that tense and mode are any less involved than
aspect, but just that I am using aspect to cover all three.”
Para esse autor (ibidem) as noções aspectuais são realizadas por meio de sufixos,
todos os quais ocorrem seguindo o sujeito agentivo em orações que têm agentes e seguindo o
verbo em orações sem agentes. A língua Boróro apresentaria, assim, os seguintes aspectos nas
orações independentes: recentee, incerto, neutro, hipotético, estativo e iterativo.
Recente
O aspecto recente aponta, segundo Crowell (1977:87), para uma ação ou estado
do verbo no tempo presente ou no passado recente, mas sem realização morfológica. A não
escolha do aspecto recente não indica, contudo, que a ação ou o estado não aconteceram no
presente ou no passado recente, mas, pelo contrário, indica que nada pode ser afirmado na
oração sobre se essa ação ou esse estado são recentes ou não.
Incerto
55
(3) e-mago- ru- nre
(5) e-mago-rau-re
3pl-falar-incerteza-neutro
„eles podem ter falado‟ (Crowell, 1977, p. 88)
Neutro
O aspecto neutro é marcado pelo morfema -re .Quando nem imperativo, nem
recente é selecionado, deve haver uma escolha entre neutro e estativo (Crowell 1977:88).
Toda vez que neutro é escolhido, hipotético também poderá sê-lo. Se neutro é
escolhido, mas não hipotético, a sentença fica no presente ou no passado, e a distinção é feita
pelo contexto ou por sintagmas temporais. Ainda, para o autor, “como o próprio nome
56
implica, este aspecto traz poucas informações em si, exceto em contraste com outros
aspectos” (Crowell 1977:89).
Hipotético
O aspecto hipotético é realizado por mod, que precede o neutro. Se nada ocorrer
entre o hipotético mod e o neutro -re, resulta a forma -mëde. Crowell observa que o
hipotético não é mutuamente exclusivo com outros aspectos, mas que o neutro -re pode co-
ocorrer com eles (Crowell 1977:90).
(8) u-tu-mëde
3sg-ir-hipotético+neutro
„ele foi provavelmente (Crowell, 1977, p. 90)
Se, contudo, a sua realização se dá por meio ou de ambos ou de dois traços que
podem intervir entre o hipotético e o neutro a forma permanece -mede –re, ou –ie , se
infinitivo é selecionado. As características que podem ocorrer entre hipotético e neutro são
indireto e negativo (Crowell 1977:90).
57
Como função, o hipotético indica a falta de efetividade ou de realidade. É usado
em expressões do tempo futuro, declarações de possibilidade ou de falta de certeza e em
advertências.
Estativo
Se o neutro não for escolhido, o estativo -nre poderá sê-lo. As declarações com o
aspecto estativo vão além de uma declaração evidente da existência de uma ação ou estado
para descrever ou uma situação geral na qual uma única ação representa ou uma parte, ou a
qualidade essencial de alguma coisa. Com verbos contendo uma qualidade durativa inerente,
tal como „pescar‟ e „chover‟, o estativo denota um estado contemporâneo, enquanto o neutro
denota o evento apenas como evento, sem qualidades de estado (Crowell 1977:95).
58
(14) bbt-re
chuva-neutro
„está chovendo (ou choveu)‟ (Crowell, 1977, p.95).
Com o estativo -nre, a oração descreve um estado geral envolvido; isto é, diz que
está ou esteve chuvoso. O estativo pressupõe um eventual fim para a ação, enquanto o neutro
não (Crowell, 1977:96).
Com verbos “pontuais”, como „ir‟ e „atirar‟, o estativo pode demonstrar um estado
contemporâneo (cf. ex.17) ou um estado resultante (cf. ex .18).
A mesma sentença pode ser interpretada como “O homem está (ou estava) indo
para Cuiabá”. O estativo tem o sentido de estado contemporâneo.
59
Sobre o aspecto iterativo
O aspecto iterativo difere dos outros aspectos pelo fato de poder ser selecionado
tanto em orações imperativas, quanto nas não-imperativas. Pode também ser selecionado em
orações transitivas ou intransitivas. É realizado pela duplicação da raiz verbal e do pronome
ligado a ela (Crowell 1977:102).
Crowell argumenta que não fará a distinção das categorias de tempo, modo e
aspecto, contudo, ele faz a distinção entre modo nas orações independentes e dependentes,
uma vez que aqui se trata realmente de modos imperativo e hortatório, como veremos adiante.
Imperativo
60
transitivo, agentivo e segunda pessoa devem ser selecionados da rede de transitividade. Nas
orações imperativas a característica + agentivo a segunda pessoa e também o imperativo são
realizados somente quando o negativo também é selecionado (Crowell 1977:64).
(22) a-pega-ka-ba!
2sg-mau-negativo-imperativo
„não seja mau‟ (Crowell, 1977, p. 72)
Hortatório
61
(22) marigu pa-du-wë
agora 1pl=incl.-ir-propósito
„vamos agora‟ (Crowell, 1977, p. 74)
Declarativo
Interrogativa
(23) a-tu-re-na?
2sg-ir-neutro-explícito
„Você foi? (Crowel, 1977, p. 75 )
62
Propósito
Não-finito
Finito
63
4.3.2 Análise proposta por Viana
Modo Aspecto
Imperativo =ba (1) crença do falante (2) telicidade
Exortativo = wëë Hipotético =medi Télico =re
Interrogativo =ba Não hipotético (neutro)
Declarativo Atélico =nre
Realis (estativo
Irrealis/Incerteza =ru
64
Tempo
Modo
Modo assertivo
65
Modo reportativo
...é empregado sobretudo em orações subordinadas com verbos quotativos (cf. 217),
mesmo quando se trata se uma afirmação do próprio falante (cf. 218) mas também
pode ser empregado numa oração livre, ficando subentendido que trata-se de uma
asserção de alguma pessoa (cf. 219).” (Nonato, p. 113).
Modo desiderativo
66
(29) (i aidu re) i kigurudu wo
Modo infinitivo
Aspecto
Nonato (2008) reconhece quatro marcas aspectuais na língua Boróro: (i) aspecto
progressivo –nu (cf. exemplo 32 ); (ii) aspecto habitual kigodu (cf. exemplo 33); (iii) aspecto
incoativo gödu (cf. exemplo 34) e (iv) aspecto iterativo tratado mais especificamente abaixo.
67
(32) i tu ka du nu re
68
a língua consenso na interpretação dos morfemas que carregam essas noções aspectuais e
modais. Nessa seção, pretendemos apresentar uma nova interpretação para esses morfemas
com base em dados coletados em Crowell (1977) e por Camargos e Rodrigues em trabalhos
de campo.
4.4.1 Tempo
A língua Boróro, assim como a maioria das línguas do tronco Macro-Jê, não
apresenta a categoria de tempo marcada morfologicamente. Uma sentença como i tu re pode
ser interpretada tanto como „eu fui‟ quanto „eu vou‟. Nesse caso, a distinção entre passado e
presente é identificada pelo contexto pragmático.
Comrie (1976:9) ressalta que muitas línguas não possuem uma categoria temporal
gramaticalizada, mas, provavelmente, todas elas possuem uma referência temporal
lexicalizada, isto é, adjuntos adverbiais que localizam a situação no tempo. Este é o caso da
língua Boróro.
69
(40) aino i n-ogwage pemega re
agora 1sg R-comer bem IND
„ agora eu estou como bem‟
4.4.2 Modo
A análise que propomos para o Boróro identifica dois modos (i) o indicativo e (ii)
o imperativo. O modo indicativo é marcado pelo morfema re. Este morfema apresenta
distribuição bastante ampla na língua, ocorrendo em predicados transitivos, intransitivos e
interrogativos, tanto na afirmação quanto na negação. Os exemplos abaixo apresentam dados
em orações afirmativas e em orações negativas.
(41) i re ta wiado
1sg IND 2pl esconder
„eu me escondi de você‟
(42) i ka re ta wiado
1sg NEG IND 2pl esconder
„eu não me escondi de você‟
70
(44) i kuru god ka re pobo di
Com interrogativas:
(46) a ka re awagu bi to
2sg NEG IND cobra morrer CAUS
„Você não matou a cobra
71
O Boróro possui um padrão acentual em que o acento primário recai sempre na
penúltima sílaba da palavra. Viana (2003) ressalta que o acento recai não somente na
penúltima sílaba da palavra, mas categoricamente na penúltima sílaba da palavra fonológica:
“(...) o acento é culminante, ou seja, cada palavra ou sintagma tem uma única sìlaba
comportando o acento principal e que o acento é ritmicamente distribuído, ocorrendo em
intervalos regulares (de duas em duas sílabas a partir da penúltima)” (Viana 2003:131). Dessa
forma, verifica-se que o padrão formado pelos dois morfemas mod e re ocasionaria um
padrão acentual não permitido na lìngua [„modre]. Vale ressaltar que o morfema re
comporta-se como clítico, ou seja, desprovido de acento próprio. Como estratégia para manter
o padrão da língua, tem–se um processo fonológico em que a vogal central e a consonante r,
que compartilha o traço de + soante com as vogais, sofrem um processo de queda. Assim, o
resultado dessa fusão é a forma mode.
Como adiantamos anteriormente, a forma mod é encontrada apenas na negação,
uma vez que o morfema re fica separado de mod pelo morfema ka (negação). Note-se que,
em posição final, o morfema re tende a cair na fala de algumas pessoas.
Segundo Palmer (1986:26) muitas línguas, se não todas, têm uma maneira clara de
indicar que o falante está marcando uma afirmação que ele acredita ser verdadeira. É o
sistema que Palmer chama de declarativo.
Dentro desse sistema declarativo é possível distinguir sistemas modais, tais como
indicativo, subjuntivo e imperativo. Esses modos são, ainda segundo o autor, marcados por
uma morfologia verbal.
72
O modo indicativo indica tipicamente uma declarativa. Há uma tendência na
linguística e na filosofia de tratar as declarativas como gramaticalmente ou logicamente
simples, enquanto todas as outras são vistas como mais complexas e derivadas dela. (Palmer
1986:27)
Em nossa análise sobre a língua Boróro, utilizamos o conceito de modo indicativo
como um modo que indica uma declaração que não necessariamente tem ligação com os
valores de verdade, daí porque excluímos a possibilidade de chamá-lo de assertivo, termo
fortemente marcado por valor de verdade. A noção de declaração relaciona-se simplesmente
ao “ato ou efeito de declarar”. Dessa forma, sentenças como 50, 51 e 52 são classificadas
como declarações.
Um dos fatos que contam positivamente para a nossa análise é a de que o modo
Indicativo é marcado sempre nas orações principais, enquanto as construções equivalentes a
orações subordinadas não se verifica a presença dessa marca modal, já que são meras
nominalizações, como mostram os exemplos abaixo.
73
(53) i tu mode [i n-ogwage wo]
1sg ir PROJ + IND 1sg R-comer NLZ
„eu vou almoçar‟ [eu vou para comer]
(56) a reru do
2sg dançar IMP
„dança!‟
(59) a kudu
2sg beber IMP
„beba!‟
(60) a rago
2sg cantar IMP
„canta!‟
(61) a ru kuride
2sg subir rápido IMP
„suba logo‟
(62) a k-ajmo
2sg R-banhar IMP
„você pode banhar‟
(63) a erodo
2sg esperto IMP
„você tem que ficar mais esperto!‟
75
morfema ba com ka. De acordo com o “Dicionário Boróro-Português” (Ochoa 2005) kaba é
uma variação da forma negativa ka e é usada para formar o imperativo negativo dos verbos.
4.4.3 Modalidade
O termo modalidade é considerado aqui como uma categoria que expressa ideias
nocionais cuja aplicação depende da escolha própria do falante.
Modalidade projetiva
76
Em Boróro toda ideia e/ou pensamento que se projeta para o momento posterior
ao ato de fala, seja em oração afirmativa seja em oração negativa, é marcado pelo morfema
mod. Como já falamos anteriormente, a forma mode é resultado da combinação de mod e re.
1sg acreditar amanhã 3sg chegar PROJ + IND sol partido com
„amanhã eu tenho certeza que ele vai chegar tarde‟
Modalidade reportativa
77
(74) i tu mod ie
(75) i vud n re
78
(77) meartoru reru n re
(78) e vi god n re
(80) i t-aregod n re
79
(83) rakitaru god re
80
Morfema maj god „terminativo-recente
Para Crowell e Viana o morfema mod, marca o aspecto hipotético, enquanto que
Nonato o interpreta como um marcador temporal de futuro (em oposição a „não-futuro‟).
Crowell, como vimos, não faz distinção entre tempo, modo e aspecto, enquanto que Viana faz
distinção entre modo e aspecto e, neste último caso, distingue entre crença do falante e
telicidade, incluindo no primeiro caso o hipotético mod (em oposição a „não hipotético‟).
81
Com respeito ao morfema re, Crowell o vê como uma marca aspectual, que ele
rotula de “neutro” (em oposição a „recentee‟, „incerteza‟, „hipotético‟ e „estativo‟). Viana, por
sua vez, além de tratá-lo também como marca aspectual e denominá-lo de „neutro‟, considera-
o télico (em oposição a nre „estativo‟ e „atélico‟). Já Nonato, diferentemente dos demais,
considera re um marcador de modo „assertivo‟ (em oposição ao „reportativo‟, „desiderativo‟ e
„infinitivo‟).
Note-se que o morfema ie, que Nonato interpreta como marcador de modo
„reportativo‟, é identificado por Crowell como a contraparte de re em construções de discurso
indireto, conforme exemplos abaixo.
(92) u tu ka re
3 sg ir neg neutro
„ele não foi‟ (Crowell, p. 90-91)
(93) u tu ka ie
3 sg Ir neg Indireto
(„dizem que‟) „ele não foi‟ (Crowell, p. 90-91)
82
ASPECTO MODO MODALIDADE
CROWELL Recentee Oração dependentes
Incerto –ru
Neutro -re, Imperativo -ba,
Hipotético mod Hortatório –wëe,
Estativo nre Declarativo com
ligado a ela.
Orações
independentes
Propósito bogai
Não-finito –i
Finitas -d.
Terminativo-recente maj
god
Quadro 5: comparação das análises de Crowell (1977), Viana (2003), Nonato (2008) e Camargos (2010) sobre as
categorias de modo, modalidade e aspecto
83
Algumas Conclusões
84
Capítulo V - Conclusões
85
contexto real de fala, visto que com dados elicitados, geralmente, não conseguimos identificar
as nuanças de significados.
Há ainda muitas lacunas no estudo dessas categorias modais e aspectuais em
Boróro. Para uma análise mais aprofundada das mesmas faz-se necessária a coleta e a
interpretação de novos dados.
Por fim, com este estudo pudemos trazer uma nova interpretação, fudamentada
em fatos da língua, tanto para o alinhamento em Boróro, quanto para o entendimento das
expressões de modo, modalidade e aspecto na mesma.
Há ainda muitas dúvidas e hipóteses que ficarão para estudos futuros tais como,
“Por que no modo imperativo uma classe de verbos recebe marca de modo e a outra classe
não a recebe?” Será que o Boróro teria dois morfemas re e sincronicamente identificados
somente um? Como explicar a distribuição desse mesmo morfema, ora com sujeitos
agentivos, ora com núcleos de predicados?
Também sobre o alinhamento, ainda há muitos questionamentos para
respondermos, como: “Há um padrão de alinhamento nas orações dependentes?”, “Quais as
estratégias da lìngua Boróro para diferenciar S, A e O?”.
86
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