Cultos de Possessão No DF - Marcos Silva Da Silveira
Cultos de Possessão No DF - Marcos Silva Da Silveira
Cultos de Possessão No DF - Marcos Silva Da Silveira
2ª versão
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RESUMO
Distrito Federal.
membros.
SUMMARY
area.
today.
-4-
SUMÁRIO
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................100
-5-
1ª PARTE:
O ESPAÇO RELIGIOSO
DA CAPITAL FEDERAL
-6-
INTRODUÇÃO
PESQUISAS PRELIMINARES
percebido e construído pelos agentes empíricos já revelados por diversas pesquisas neste
tema permitindo que seja possível falar no Espaço Religioso da Capital Federal.
O artigo do Profº Cope é um ponto de partida na colocação de parâmetros
necessários a abordagem do tema. Sua hipótese básica, já apresentada, foi trazida para o
campo específico do Distrito Federal na forma de duas perguntas:
“Como cosmologias distintas coexistem num espaço social como Brasília?
Até que ponto cultos religiosos distintos implicam maneiras realmente distintas de ver e
compreender o mundo, num mesmo mundo? Em segundo lugar, se estas visões
distintas coexistem, como expressam padrões sociais e culturais dos adeptos, ou seja,
as divisões da estrutura social na qual eles se inserem e de suas origens culturais?”
A posição das Casas de Culto na estrutura social do Distrito Federal há de ser, tudo
indica, um índice seguro de verificação da posição social de seus membros e seguidores.
Contudo, as diferenças entre cultos, por um lado, e entre as características sociais desses
cultos, podem ser variações significativas até certo ponto, uma vez que a administração
centralizada do Distrito Federal impõe uma homogeneização de opções em alguns planos,
notadamente neste da ocupação do espaço.
Minha primeira incursão nesse campo, na cidade satélite de Ceilândia, forneceu-me
uma primeira compreensão possível das relações existentes entre a religião e o espaço que ela
pode ocupar numa zona metropolitana como a que está em formação dentro do Distrito Federal
e o seu entorno.
Em 1987, já Bacharel em Ciências Sociais, comecei a cursar as disciplinas próprias
à formação em Licenciatura, como forma de complementar uma formação universitária a nível
de graduação. Comecei a conviver no ambiente da Faculdade de Educação e tive minha
atenção despertada por alguns episódios bastante desafortunados que aconteceram em
algumas cidades satélites ao longo daquele ano.
Num local bastante periférico, denominado Expansão do Setor O, localizado entre
as cidades de Taguatinga e Ceilândia, uma professora primária fora assassinada numa escola
da rede oficial, superlotada e insuficiente para atender às necessidades da população local. A
Expansão do Setor O, diferentemente de outros assentamentos populares do DF, era um
lugar desagradável, com ruelas irregulares, apertadas e sombrias, o esgoto correndo por elas,
separando os casebres de papelão, plástico e sobras de madeira. Era certamente um dos
locais mais marginalizados do DF.
O caso não era isolado. Havia, na época, muita tensão nas escolas da rede Oficial
localizadas na periferia de Taguatinga e Ceilândia, principalmente, criando um clima de medo
generalizado no ambiente escolar.
Nos corredores da Faculdade de Educação, contudo, surgiam versões mais
detalhadas desses casos. Segundo várias alunas e professoras, principalmente as que
trabalhavam junto ao Campus avançado da Universidade de Brasília na Ceilândia, esses casos
expressavam dois problemas fundamentais.
Em 1º lugar, a carência de serviços básicos e de infra-estrutura da periferia do DF,
que contrasta com a excelência dos mesmos serviços nas áreas centrais como o Plano Piloto,
Guará e o Centro de Taguatinga.
Em 2º lugar, o abismo cultural existente entre os valores da classe média urbana
dos jovens professores oriundos dessas cidades - Taguatinga, Guará e Plano Piloto -
acostumados com as facilidades da vida urbana e moderna de Brasília, em confronto com a
experiência de miséria urbana dos moradores da periferia, oriundos da zona rural ou das
inúmeras invasões que o Governo do DF sempre se empenhava em remover e reassentar em
locais como a expansão do Setor O.
Esses conflitos tornavam-se particularmente tensos porque essa população de
baixa renda, embora carente economicamente, desenvolvera, ao longo da breve história do DF
uma forte e crescente capacidade reivindicatória.
Na próprio sede da Fundação Educacional do Distrito Federal todos esses
problemas me foram confirmados por uma orientadora educacional que também me brindou
com novas informações .
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Não se percebe a plenitude do Poder Político no plano das idéias, mas Houlston,
Castelo Branco, Aragão, como Ribeiro(1980) chamam a atenção para o processo de
construção da nova capital. Foi através da NOVACAP, uma autocrática agência estatal
exercendo poderes absolutos, que de fato realizou-se a plenitude do poder político brasileiro
em sua reinstalação no Planalto Central.
A cidade ideal sempre se limitou ao seu centro, o Plano Piloto, coberto de honras e
privilégios, enquanto a periferia sempre esteve caracterizada pela marginalização, em
diferentes níveis.
Tarlei de Aragão (1993) chama a atenção que, apesar de todo o seu humanismo
explícito, Brasília contêm todos os equívocos e as disparidades do País, atualizando e
realizando o nosso passado barroco e a sua utopia do Novo Mundo de forma exemplar, porém
com uma diferença marcante no plano político. Onde o Barroco Português, com sua estética,
instituiu o Poder de Deus, mediado pela Igreja Católica Romana, como estando acima dos
homens, a Nova Capital instituiu o Poder Político acima desses mesmos homens, dentro desse
conjunto de valores que estruturam a Sociedade Brasileira, onde o Poder é mais importante do
que o Homem, o indivíduo cidadão não existe e a ordem ,o progresso e o futuro sacrificam o
Homem que deveriam glorificar.
Como este autor afirmou a diferença modernista está, em primeiro lugar, no plano
espacial. O Eixo monumental, sede do Poder Político tem na Praça dos Três Poderes seu
centro por excelência. A Catedral da Capital, ainda referência religiosa em mãos da Igreja
Católica Romana, está lá presente, porém deslocada, como um ministério a mais, no final de
todo o conjunto de Ministérios Públicos que compõem o Eixo Monumental. Enquanto Poder,
agora está na posição a mais distante do Centro Político ocupado pelo Legislativo, já na
posição de intermediária e mediadora entre a sede do Governo e a Rodoviária de Brasília, por
excelência, o espaço do povo.
Sua administração está a cargo de uma Paróquia e a sua maior celebração é a
Solenidade de Corpus Christi, realizada nos gramados do canteiro central do Eixo Monumental.
Ponto mais turístico do que religioso, a Catedral de Brasília está longe de ser, na vida religiosa
de Brasília, o referencial mais central, embora seja o espaço religioso legítimo do Estado
Brasileiro para suas celebrações oficiais.
É possível perguntarmo-nos, inclusive, a partir de sua posição e de sua função, se
de fato Brasília possui algum Centro Religioso comparável às velhas Igrejas Matrizes das
cidades coloniais brasileiras. Devido à seu planejamento moderno e a simultaneidade de sua
construção, o Distrito Federal conta com diversos templos, católicos, protestantes e espíritas,
que foram se instalando sucessivamente, de tal maneira que suas órbitas de influência são
locais. 1
Voltando à questão do imaginário da Nova Capital, é muito difícil, se não
impossível, não enxergar, a partir da Antropologia, toda essa reflexão crítica sobre a idéia de
Brasília como uma nova versão do Mito de Fundação da Nova Capital e de como é
praticamente impossível querer transcendê-lo. Talvez por isso ninguém ainda tenha podido
escapar dessa mística que cerca Brasília, uma vez que sempre que ela é recolocada e
repensada, termina sendo reafirmada, muito mais do que reduzida a um modelo teórico que
possa compreendê-la para além de sua proposições.
Não temos aqui, por tudo isso, a pretensão de realizar tal tarefa, mas é nosso dever
expor a questão e dialogar com ela. É importante compreender, por exemplo, a noção de Mito
que Houlston utilizou para discutir o Plano Piloto de Brasília, pois estamos trabalhando com
uma noção de Mito ligeiramente distinta.
Houlston, basicamente, toma Mito pela definição que Claude Levi-Strauss discutiu
no artigo intitulado A Estrutura dos Mitos (1975), tanto quanto do antropológico britânico B.
Malinowski. Destes autores, Houlston utiliza a noção de que o Mito transforma a História em
1
Segundo Cope(1979) haviam em 1977, 417 templos cadastrados pela CODEPLAN, dos quais 200 eram protestantes, 98
espíritas e 78 católicos, destes, 36 no Plano pilôto. Dos 94 templos do Plano Pilôto, 1/3 eram católicos, enquanto dos 72 de
Taguatinga, 49 eram protestantes. A maior concentração de Centros Espíritas estava no Gama. Dos seus 65 Templos, 23 eram
espíritas. A adoração à São João Bosco, o padroeiro de Brasília, cuja importância merece ser devidamente registrada e analisada,
é uma exceção a esse padrão, sem dúvida.
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Natureza. Tais autores tomam o Mito pelas suas características de serem ao mesmo tempo
históricos, já que falam de origens, e a-históricos, já que situam essa origem para além da
história, num momento de tempo que têm a característica de ser permanente.
Nesse plano de entendimento, Mito e Mito de Origem, praticamente se confundem.
Quando pensamos Brasília a partir dessas referências, oriundas da análise de mitos tribais,
que realmente possuem uma dimensão a-temporal primordial, surge um certo desnível, já que
a historicidade da construção da capital é por demais auto-evidente.
As reflexões de Edmund Leach, a respeito da realidade etnográfica da Alta
Birmânia, por sua vez, podem servir para avançarmos na compreensão da mitologia específica
de Brasília. Leach encontrou, entre os povos que estudou, uma série de situações, que
poderíamos denominar de históricas, já que acontecidas em tempos datáveis com pessoas
reconhecíveis, dentro de uma linguagem e uma dimensão propriamente mítica, com eventos
sobrenaturais e intervenções de entidades religiosas.
O sentido dessas estórias surgia pelo fato de que a linguagem ritual e mítica, entre
estas populações, funcionava como a única linguagem consensual que articulava diversos
povos e suas diversas divisões lingüisticas e políticas. Sendo assim, qualquer evento
politicamente significativo deveria ser traduzido para aquela linguagem, se os envolvidos
quisessem ser entendidos pelos demais.
Um efeito deste processo, é que, ao final das contas, todos os eventos e suas
interpretações surgem como versões muito elaboradas de determinados mitos fundamentais,
uma vez que aproximá-los desses mitos é uma maneira de reforçar a sua significação.
Nesse sentido, Leach afirma que tanto os mitos primordiais, quanto os mitos
históricos dos povos da Alta Birmânia, variavam sempre para engrandecer o status dos
narradores, o que fazia com que suas versões fossem tão diferentes que chegavam a serem
díspares. Leach concorda com Levi-strauss com respeito a que todo mito se apresenta através
de um conjunto de versões, mas alerta para a inexistência de versões corretas, ou de versões
melhores do que as outras.
Enquanto Levi-Strauss irá procurar nas versões míticas as estruturas invariantes
dos mitos, e a lógica das transformações entre as versões, Leach prefere mostrar que o cerne
dos mitos são um conjunto de signos comuns utilizados como uma linguagem de discussão e
enfrentamento.
Sendo assim, para compreendermos todo o complexo mítico que cerca a idéia de
Brasília, é preciso conhecer as versões e os agentes que as contam, o que as etnografias
já realizadas e por realizar, permitem fazer, uma vez que toda essa ideologização da idéia da
Nova Capital terminou terminou engendrando uma cidade real, habitada por pessoas reais e
que constituem uma sociedade real, que redefine estes ideais.
A reflexão de Holston é valiosa ao mostrar que apesar de toda essa mobilização
ideológica, a passagem do plano da idéias para o plano da realidade foi acompanhado por uma
profunda descontinuidade, ainda no momento da sua construção, nos anos 50.Tal questão
poderia nos desviar para questões propriamente urbanísticas - e não simplesmente urbanas -
tal é sua vastidão.
É importante reter apenas que a fundação da nova capital, construída com a aura
dos símbolos sagrados investidos em Brasília, com suas cruzes e templos, como que
traduzindo através de uma mitologia universalizada de símbolos urbanos, benções divinas para
o novo centro do País, trouxe mais um elemento para este paradoxal modernismo místico.
Ao instituir-se como centro Político numa dimensão simbólica tão elaborada, a Nova
Capital não só instituiu como criou a necessidade de um espaço simbólico a ser devidamente
construído por instituições e agências propriamente religiosas e mágicas, que o legitimassem
simbolicamente, em linguagens e práticas propriamente míticas e devidamente ritualizadas.
Themis Quezedo de Magalhães (1985) em sua Brasília: Mitos e Vivências, fala
de mitos que são, em primeiro lugar, imagens e significados de um discurso sobre o espaço,
antes de serem religiosos. A concepção do espaço de Brasília é fundamental na vida social,
política e cultural da cidade. O mito considerado primeiro é o mito moderno do determinismo
urbanístico. A dominância do discurso urbanista enfatiza o planejamento moderno de um
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espaço edificado com o fundador do modo de vida moderno, que significaria a reconstrução
da sociedade brasileira.
Por outro processo paradoxal, as singularidades e individualidades foram
subordinadas pelas razões e ordens do Poder, numa verdadeira ditadura do Projeto
Urbanístico. A urbanidade que impede a diversidade é na verdade uma ausência de
urbanidade, já que esta é concebida como a possibilidade de um espaço de múltiplas
variâncias.
Essa visão crítica do urbanismo afirma que na prática os espaços de Brasília não
seriam apropriados pela população, e haveria uma ausência de convívio coletivo. Este
discurso erudito é o discurso de jornalistas, arquitetos e outros intelectuais do corpo técnico
administrativo.
Diversamente, Quezado entrevistou vários moradores do Plano Piloto, selecionados
a partir da condição de usuários de um mesmo espaço - uma Unidade de Vizinhança 2 . Sua
constatação é que o que havia de homogêneo entre esses informantes era o individualismo de
seus horizontes e de suas vivências.
As trajetórias individuais, embora bastante distintas e diversificadas, revelam
apropriações específicas do espaço urbano condizentes com a inserção social de cada
informante. O tom homogêneo, o discurso dessa população, está no estilo de vida
individualista. O espaço moderno, urbanizado, é a natureza da cidade, onde tudo está
organizado espacialmente. Este espaço é instrumentalizador dos estilos de vida desses
informantes, é utilizado de fato, e é o cerne de uma sociabilidade. Há toda uma interação social
com o espaço que possui significações sociais distintas.
Essas pessoas assimilaram a lógica racionalista do Projeto em sua eficácia. Brasília
proporciona equipamentos modernos e um estilo de vida moderno porque é o novo centro do
país. De um novo país, moderno, que agora é moderno porque possui um centro próprio.
Já as concepções propriamente religiosas se distinguem deste tipo de concepção,
propriamente urbanista e moderna. Quezado também percebeu como em Brasília o poder
sobrenatural soma-se ao poder político nacional. O campo religioso complementa o campo
político. Brasília é a nova Capital porque foi construída para isso e foi construída porque estava
predestinada a sê-lo.
Sendo assim, por mais que o campo religioso seja marcado pela multiplicidade,
diversidade de igrejas, e seitas, tendências que não são exclusivas do DF, ele também é
perpassado, como um todo, por essa demanda do poder político por uma legitimação através
de mitos e práticas rituais.
O marco de uma nova civilização deve ser também espiritual e a consagração da
cidade precisa ser atendida por esses poderes espirituais. Isto é operacionalizado por um duplo
aspecto. De um lado, pelo fortalecimento político dos grupos religiosos locais. De outro lado, os
grupos religiosos em sua diversidade, servem de canal para as demandas da população dos
diversos segmentos sociais presentes.
Os líderes religiosos estão ligados diretamente a esse processo de intermediação
social, entre os poderes centrais e as comunidades locais. Essa consagração deve ser vista
como um suporte ideológico a altura do alto custo social do plano político de desenvolvimento e
integração nacional, a partir do governo JK.
Gustavo Ribeiro (1980), em O Capital da Esperança , buscou resgatar um pouco da
história das classes subordinadas, no caso os operários da construção civil, excluídos da
História Oficial de Brasília. A nova era instaurada por sua construção, em primeiro lugar, aponta
também este autor, realizaria a nacionalidade brasileira por ser uma construção de todos os
brasileiros. Em segundo lugar, Brasília foi uma Grande Obra de construção civil, numa região
isolada, com o objetivo de interiorizar a população e integrar a região no mercado nacional.
Em terceiro lugar, eis a questão, essa Grande Obra construída em quatro anos
constituiu-se num enclave político sujeito às leis que a empresa responsável pela obra, A
2
Unidades de Vizinhança, no Plano Urbanístico de Lúcio Costa eram os conjuntos de Super-Quadras atendidas por diversos
serviços urbanos, tais como Igreja, Clube, Biblioteca, Escolas, Comércio local e Delegacia. Na prática, a única que foi
completamente instalada foi a estudada pela autora.
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NOVACAP, definia para a construção. O ritmo da obra, consagrado como o Ritmo Brasília, era
o ritmo de uma intensa exploração de uma mão de obra composta por homens jovens e sem
família, submetidos a jornadas de trabalho de até 24 horas seguidas.
Esses jovens eram atraídos pela ilusão de quanto mais horas trabalhassem maior
seria o salário , sem que houvesse uma legislação trabalhista a protegê-los do desgaste físico
e emocional a que estavam submetidos. A única lei dos canteiros de obras era a lei do
mercado de trabalho.
Essa primeira fase do ritmo de trabalho intenso durou de 1956 a 1958.A partir
desse ano, o fluxo migratório de trabalhadores para os canteiros de Obras foi suspenso e os
acampamentos provisórios começaram a dar lugar aos primeiros assentamentos definitivos que
começavam a surgir a partir do mercado de trabalho informal, que atendia ao mercado da
construção civil.
É com a população que começa a migrar para esses espaços com o objetivo de
ocupar as oportunidades desse novo mercado que surgem as primeiras “invasões” como a Vila
Amaury, Vila Sara Kubitchek, que foram dando origem às primeiras cidades satélites,
inauguradas antes ou logo após Brasília , como Taguatinga em 1958, Sobradinho em 1959 e o
Gama em 1960. O núcleo Bandeirante, ex-cidade Livre, foi regulamentado em 1961.
Dez anos depois, em 1971, o processo continuava com a inauguração de Ceilândia,
para onde foram removidos uma imensa população favelada, principalmente das invasões do
Núcleo Bandeirantes e do Lago Paranoá. Ao todo foram 180.000 pessoas removidas e
assentadas pela CEI - Companhia de Erradicação de Invasões - que deu o nome à nova
Cidade satélite.
Todas esse movimento de reassentamento contou com uma intensa mobilização de
líderanças comunitárias, instituições religiosas e meios de comunicação, intermediadores do
processo.
Em Ceilândia, as entrequadras foram destinadas ao comércios, escolas e Igrejas,
contando inicialmente com 36 lotes para templos religiosos. Segundo Mara Resende(1985)
Ceilândia foi, até o surgimento de Samambaia, que lhe repete a História, marcada pela
insuficiência de equipamentos urbanos, instalações precárias, sublocação e favelização,
contrastantes com os grandes espaços e monumentos do Plano Pilôto.
É relevante destacar as inferências de outro autor, Pilatti(1976) que elaborou
Dissertação em Antropologia Urbana num momento intermediário da História de Brasília, entre
sua fundação e a atualidade, por exemplo, o fato de que em 1975, o DF tinha 760.000
habitantes, o dobro do que possuía em 1965. Em 1985 já eram 1.500.00, dos quais um terço
no Centro Administrativo, Plano Pilôto, Guará, Núcleo Bandeirante e Cruzeiro. Pilatti distinguiu
a realidade dos grupos em processo de adaptação à nova realidade urbana, ou seja, os
migrantes e as transformações sociais a que eles estavam sujeitos, da vida urbana
propriamente dita, tomada como o sistema urbano e a rede de cidades submetida à influência
de seus processos políticos, ideológicos e econômicos.
Nesse sentido, Brasília, enquanto novo centro administrativo do País é desde sua
inauguração, uma nova realidade mediadora entre às metrópoles já existentes no País e seus
problemas e a ausência de metropolidade do interior do País. Inicialmente, Brasília era a
metrópole sem problemas de um interior em modernização.
Essa nova vida urbana, com sua promessa de vida ideal, foi, em primeiro lugar, um
mito tecnológico. A cidade ideal, um não-lugar, teve as desigualdades da estrutura urbana
contidas pelo urbanismo moderno. Já a zona urbana no espaço, o Distrito Federal, foi obra dos
agentes sociais e sujeitos coletivos, o que instaurou de fato as diferenças e desigualdades
sociais neste espaço.
Enquanto mito da vida urbana moderna, o Plano Piloto tem sido espaço da
realização dessa utopia, com uma identidade definida pela monumentalidade das construções
modernistas, manifestação concreta do estado e do poder. Evidentemente os mitos e vivências
da utopia urbana não podem ser exatamente os mesmos dentro da urbanização periférica., que
é o que só a descrição das formas de religiosidade já estudadas permite demonstrar.
Planaltina, por exemplo, cidade do ciclo da mineração, foi fundada em 1790 por
bandeirantes, com o nome de Mestre D’Armas, na rota entre Pirenopólis, Vila Boa de Goiás e
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A RELIGIOSIDADE DE BRASÍLIA
“carregado” por espíritos obsessores, além de padecer com o consumo elevado de bebidas
alcoólicas. Problemas pessoais de moradores que assistiam ao ritual foram apontados, e
tratados com passes e rezas.
Esse tipo de ritual de “conforto espiritual”, realizado pelos médiuns da Fazenda, na
comunidade dos garimpeiros da vila, é um rito característico da ética da prática da caridade
cristã dos Espíritas Kardecistas. Essa assistência social simbólica, é amplamente generalizada
dentro desse ambiente religioso, personificado, entre outros, na figura do espírito do Médico
Bezerra de Menezes, evocação obrigatória dentro desses cultos.
O lote onde os Trabalhos espirituais são realizados funciona como um ‘hospital
espiritual” sob a direção desse espírito. É um território sacralizado, porém dentro de uma
linguagem moderna, médica.
Outra instituição religiosa dentro deste molde, que já foi alvo de pesquisas 3 , chama-
se Desafio Jovem de Brasília. É um movimento religioso encontrado em vários cidades e
constitui-se numa instituição evangélica voltada para a recuperação de jovens drogados. A
recuperação dos pacientes acontece em territórios especiais que a instituição mantém para o
tratamento.
Os jovens iniciam o tratamento na condição de internos, numa residência
denominada “MANSÃO”, a Casa de Recuperação David Wilkerson, localizada na cidade
satélite do Guará. É uma casa espaçosa, com espaço para hortas, entre outras atividades,
onde os pacientes são submetidos a um doutrinamento religioso.
As moças ficam internadas num outro local, o “Lar das Moças”, localizado em
Sobradinho. Só para os rapazes há uma chácara na zona rural de Taguatinga, voltada para
terapias ocupacionais, numa etapa posterior do doutrinamento subsequente à etapa da
“Mansão”.
A fase final acontece no “Escritório”, localizado até hoje na CLN 406, onde o ex-
viciado será definitivamente reintegrado à vida na sociedade civil.
O Desafio Jovem é uma instituição modelo para os Pentecostais que o mantêm .
Ele pode ser interpretado como um conjunto de espaços religiosos locais, individualizados, no
meio de toda a teia de espaços habitacionais do DF, que ele, enquanto Instituição religiosa,
hierarquiza sob outros princípios.
O Desafio Jovem de Brasília ocupa uma posição privilegiada dentro do
Movimento Evangélico do País. Ele serve de modelo para os demais centros de tratamento de
ex-viciados no resto do País, sendo o mais bem instalado de todos. Vejamos, para situar
melhor, onde e como as Seitas Pentecostais estão instaladas do DF, a partir de dois
movimentos pesquisados por Neuza Rodrigues (1983) e Alexandrina Santos (1979),
respectivamente, a Casa da Benção e a Assembléia de Deus.
O Pentecostalismo vinha sendo, desde a década dos 70, o culto que mais crescia
no DF. É um culto de revitalização cristã, surgido como reação a secularização do
Protestantismo. É utópico, ideológico e aberto ao êxtase pelo Espírito Santo e sua Doutrina.
Dentro de sua mítica utópica, Brasília é a Terra Prometida e os pentecostais, são o
povo eleito. O Planalto Central é um lugar seguro e de futuro, por eleição divina. A construção
de Brasília é vista como um plano de Deus, e o Brasil é considerado o maior país missionário
do mundo.
A missão pentecostal, todavia, diverge radicalmente do ecumenismo da Nova
Capital, já que para eles a diversidade religiosa é coisa do diabo e cabe a eles combatê-la.
Santos (1979) particularmente, discute como em Brasília, Religião e Política
compartilham de uma linguagem comum, de um discurso comum e de um mesmo universo de
representações simbólicas. São representações de esperança, utopia, sonho, centro, céu,
elevação, que levam a razão política do progresso e do desenvolvimento até a dimensão do
Mito e das Profecias.
A construção da cidade, a construção e a interiorização do Centro Político da
Sociedade Brasileira é, através dessa moldura e desse fundo, um acontecimento nacional e
3
Boluarte(1979).
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mundial, uma vez que assinala o início da civilização do 3º milênio, instaurando um tempo
próprio, dentro de uma dimensão universal.
Enquanto Mito, a Capital do 3º milênio serviu como um apelo tanto para a
Presidência Carismática JK, quanto como contraponto para a crise das últimas décadas, já
que, em ambos os casos, o que a religião oferece é sempre uma esperança de um futuro
melhor, que compensa as dificuldades do presente.
O fato de que as instituições religiosas de que trataram estarem situadas na
retaguarda do Poder Político é demonstrado por Santos ao analisar a Assembléia de Deus,
onde expõe relações pessoais que são induzidas pelo espaço religioso e que tem efeitos
políticos, envolvendo trocas de favores e a construção de carreiras de prestígio.
Dentro de uma cidade de migrantes atraídos pela melhoria de condições
econômicas e acesso a serviços sociais, as pessoas buscam as promessas que o
desenvolvimentismo oferece através das transformações sociais que opera. Essa busca passa
pelo espaço religioso e nele encontra em caminho de realização.
A Assembléia de Deus, em particular, parece ser uma religião que perpassa
diversos setores sociais dentro do DF. Este movimento religioso possui, inclusive, uma
Catedral localizada na Avenida W-5 Sul, característica em suas dimensões e por sua
arquitetura imponente.
Segundo o levantamento orientado pelo Profº Cope (1979), seus templos estão
dispersos por todo o DF, numa distribuição pontual, desde o Plano Piloto, passando pelas
cidades satélites mais desenvolvidas como Taguatinga, Guará e Sobradinho, até os setores
mais periféricos, nas satélites de Ceilândia e Gama. Atualmente é difícil encontrar um
assentamento no Entorno do DF que não possua pelo menos em templo desses cultos
protestantes.
É provável que, dentro do movimento pentecostal da Assembléia de Deus, um
verdadeiro campo de articulações sociais esteja estabelecido, percorrendo setores dos mais
centrais aos mais periféricos da zona metropolitana do DF, atualizada pela pequena elite
formada dentro da Igreja pelos pastores mais jovens, pessoas com acesso á educação
superior.
A Casa da Benção, é por sua vez, outra Catedral pentecostal, uma vez que seu
templo sede, localizado em Taguatinga Sul, também é conhecido como Catedral da Benção.
Foi fundada pelo pastor evangélico pentecostal Doriel, que denomina sua seita de Tabernáculo
Evangélico de Jesus (TEJ).
Doriel iniciou a sua vida religiosa em São Paulo na década de 50. Só chegou em
Brasília em 1970, vindo de Belo Horizonte, já na condição de pastor. Seu culto cresceu muito,
assim como o Setor onde está instalado, que foi inteiramente urbanizado na década de 80.
Os fiéis do Culto são divididos em dois grupos distintos, os membros e os
freqüentadores. Este últimos participam das chamadas Reuniões de Libertação, ritos de cura e
exorcismo, além dos demais serviços religiosos, enquanto os Membros participam de todas as
atividades do Grupo, incluindo as atividades internas na Igreja Local e na sede Nacional.
A Igreja local é formada pelo conselho administrativo, que inclui o pastor e seus
representantes. A seguir vem a Diretoria local ou regional, seguida do Supremo Concilio do
TEJ. Estão instâncias são interligadas pelos membros que circulam por elas, acumulando
funções.
A forma burocrática da instituição convive com a presença carismática do Pastor
Doriel que centraliza a administração, através do corpo de pastores imediatos. Eles são um
corpo de especialistas na religião, sempre bem vestidos, de terno e gravata, formando uma
confraria, marcada por laços de solidariedade e lealdade.
A passagem da condição de freqüentador para a condição de membro, ou seja, a
filiação de fato, implica numa mudança social, uma vez que passa a haver um
encaminhamento da vida da pessoa e de seus familiares, por parte dos membros da Igreja. Os
membros identificados pela pesquisadora, eram residentes em Taguatinga e Ceilândia,
enquanto os freqüentadores vinham de toda a parte, principalmente das periferias do Entorno
que começava a se formar, entre o Gama e o município vizinho de Luziânia. Eram, na
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É possível afirmar que estes dois movimentos religiosos foram fundados por dois
migrantes renunciantes 4 cujas trajetórias individuais estavam diretamente relacionadas com
movimentos sociais ligados ao processo de modernização do País. Seus cultos podem ser
vistos como respostas específicas a este processo.
Respostas messiânicas, contudo. Movimentos messiânicos que se tornaram bem
sucedidos, justamente enquanto outros movimentos messiânicos da sociedade brasileira
costumaram ter finais trágicos ou perderam a sua identidade. É possível, por isso mesmo,
perceber a partir destes movimentos as características significativas da experiência social
brasileira atual, desenvolvida a partir da transferência da capital para Brasília.
É mais uma vez na mitologia que cerca a fundação de Brasília que se justificam a
existência destes cultos milenaristas junto à Nova Capital. Brasília será, para ambos, a sede de
uma civilização que surgirá no 3º milênio, após ocorrerem os terríveis episódios descritos no
livro bíblico do Apocalipse. O estilo de vida religiosa que estes cultos praticam é justificado
como um preparação para o advento dessa Nova Era.
Estamos diante de movimentos milenaristas discrepantes, uma vez que a versão
que eles dão para o mito do Apocalipse é singular. Pereira de Queiroz (1965) mostra como o
Catolicismo rústico brasileiro produzia movimentos milenaristas do tipo “paraíso agora”, ou
seja, muito mais preocupados com a prática da instauração de um presente melhor, do que
voltados para a espera de um futuro melhor.
No caso do Vale do Amanhecer e da Cidade Eclética, o que é possível perceber, é
que tanto a prática da Cura espiritual quanto a espera do 3º milênio estão integradas no intenso
e profundo processo de ressocialização a que seus médiuns e membros regulares se
submetem dentro do corpo doutrinário dessas seitas.
A mitologia, contudo, não se resume a ser uma versão local dos mitos bíblicos. Seu
sentido emerge da mitologia que deu origem as expectativas em torno da transferência da
capital, enquanto centro irradiador de decisões, ou seja o centro do Poder Temporal, que
encontrou nestes Centros Religiosos uma contrapartida espiritual. Daí a discrepância desses
movimentos, frente à experiência milenarista e o seu sucesso.
Esta reflexão a respeito dos cultos milenaristas de Brasília serve, também, para
situar outro caminho aberto à investigação. É possível encontrar a gênese da mística em torno
da construção de Brasília na mística da Marcha para o Oeste que acompanhou a idéia de
Interiorização do País. É provável que os fundadores desses cultos tenham sido alvo da
propaganda oficial desses movimentos político-culturais e reelaborado essas ideologias numa
forma religiosa.
É possível perceber, então, que Yokaanam e seus adeptos estivessem fugindo, já
nos anos 40, do processo de crescente politização e cooptação dos grupos espíritas dentro da
Capital Federal da época. A prática da caridade espírita dentro de um contexto urbano é
facilmente articulada à agências político partidárias, como demonstra também a história da
Federação Umbandista do Rio de Janeiro.
Yokaanam teve uma estória de vida bastante atribulada. Na década de 40 era piloto
de aviação comercial e residia na cidade do Rio de Janeiro, onde ingressou numa ordem
religiosa esotérica, A Ordem Mística da Regeneração. Em 1942 tornou-se o diretor espiritual da
Ordem. Neste mesmo ano desligou-se dela pois o Presidente da Ordem desejava manipulá-la
para fins político-partidários. Leva consigo vários membros da ordem e passa a fazer sessões
espíritas no seu próprio apartamento, até 1944, ano em que sofre um acidente áereo. Após
esse acidente largou a aviação e decidiu por se dedicar inteiramente à vida espiritual tornando-
se um peregrino solitário.
Somente em 1946 o grupo de adeptos foi reconstituído ocupando uma sede na
Avenida Getulio Vargas. Em 1947, este grupo inicia uma fase de visitas a bairros e subúrbios
do Estado do Rio e da Capital. Eram peregrinações organizadas que duravam alguns dias em
4
O conceito de Renunciante, desenvolvido por Louis Dumont (1994), (1990), refere-se à individualidade dos
Sanniasins hindus e aplica-se a dos líderes messiânicos característicos de seitas cristãs, como estas.
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cada local. Em 1955 já formavam um culto organizado, promovendo cursos de iniciação formal
e sendo alvo de reportagens em periódicos da época.
Foi nesta época que o grupo resolveu sair do Rio de Janeiro, todavia, por
considerar a Cidade como o império dos valores morais modernos que se opunham aos
preceitos cristãos. A transferência para o Planalto Central teve início no ano seguinte.
Esta pequena história ganha um sentido bem mais preciso quando vista junto a
história do movimento umbandista na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Diana Brown (1985)
a relação da Ditadura Vargas com os cultos espíritas em geral, nos 30 e 40, foi das mais
ambíguas.
Desde 1934 os cultos eram obrigados a se registrar, ao mesmo tempo que
permaneciam ilegais e eram perseguidos. Essa tensão levou os primeiros umbandistas
cariocas a criarem a União Espírita da Umbanda do Brasil e a organizarem o primeiro
Congresso de Umbanda em 1941.
A partir de 1945 com a queda de Vargas e a redemocratização do País, a Umbanda
conhece uma rápida expansão, deixando de ser um culto praticado por um pequeno círculo de
cidadãos do Rio de Janeiro.
A Umbanda começou a difundir-se. Surgiram novos Centros e novas Federações.
O culto, livre de perseguições, penetra nos meios de comunicação de massa, como jornais e
programas de rádio. Este processo de legitimação e expansão foi o tempo todo desenvolvido
dentro do intenso clima de politização da época, com os novos líderes religiosos buscando
apoio de políticos e fornecendo bases eleitorais, principalmente junto às camadas populares.
Em 1958, um líder umbandista, Átila Nunes, era eleito vereador. Em 1960, elegeu-se deputado
estadual.
Com relação ao Vale do Amanhecer e sua fundadora, Galinkin (1977) descreve que
Tia Neiva era natural de Propriá, no Sergipe, onde nasceu em 1925. Casou-se em Ceres,
Goiás, em 1943, cidade fundada durante o ciclo da Marcha para o Oeste, no primeiro governo
Vargas.
Viúva, tornou-se motorista de caminhão, indo trabalhar em Goiânia em 1956, como
motorista de ônibus. Nesta sua opção profissional se expressa a rápida tendência a
urbanização que o interior do Goiás atravessou a partir da construção de Goiânia seguida da
construção de Brasília, criando pólos urbanos de atração de migrantes da zona rural, inclusive
de zonas de ocupação recente, como o Mato Grosso de Goiás, onde Ceres se destaca como
produtora de arroz.
Em 1958, Tia Neiva retornou ao caminhão, vindo trabalhar na construção de
Brasília. Só aí passou a ser vítima de manifestações mediúnicas, quando começou a ver a
imagem de um índio todo vestido de plumas brancas. Somente em 1956 resolveu desenvolver
estas faculdades, procurando em Centro Espírita em Goiânia.
Posteriormente, fundou, já na Cidade Livre, no mesmo ano, a União Espiritualista
Seta Branca. No final desse ano, ainda, foi para um sítio localizado perto de Alexânia, na
estrada que conduz à Anápolis. Lá a União mantinha um orfanato e um centro de atendimento
espiritual. Em 1964 Tia Neiva foi para Taguatinga, onde construiu um Barracão para abrigar o
orfanato e a União. Em 1970 foram para Planaltina.
Nesse momento Tia Neiva casou-se com o Sr. Mário Sassi. Casamento de teor
espiritual e de tradições religiosas, principalmente. O Sr. Mário Sassi, paulista, de ascendência
italiana, trouxe para junto de Tia Neiva toda a referência espírita kardecista, sua ética e
doutrina, principalmente sua utopia com relação ao Brasil, sintetizada na obra “Brasil, Pátria do
EVANGELHO” ,entre outras. A toda essa referência espírita juntou-se o culto propriamente
umbandista de Tia Neiva, com seus caboclos e pretos-velhos, somando a eles os Médicos do
Espaço, característicos das Mesas kardecistas e abrindo o Vale do Amanhecer para um
ecletismo e um universalismo inigualáveis dentro dos Cultos de Possessão.
Com a morte de Tia Neiva em 1985, contudo, o Vale do Amanhecer começou a se
preparar para grandes transformações. Em 1991, o Sr. Mário Sassi abandonou o Vale do
Amanhecer, depois de sofrer um gradual processo de esvaziamento de sua liderança. Passou
a dedicar-se a um novo espaço religioso, num sítio em Planaltina de Goiás, em companhia de
uma nova esposa e de uma filha do seu 1º casamento. Lá continuam o trabalho espiritual no
- 25 -
estilo do Vale do Amanhecer, com atividades de Cura Espiritual e preparação para o advento
da Nova Era, no 3º milênio.
O Vale do Amanhecer, propriamente dito, evolui noutra direção. Os filhos carnais de
Tia Neiva assumiram a direção da instituição e deram início a um processo de ocupação de
suas terras, por moradores urbanos. Em 1993, o Vale do Amanhecer foi reconhecido
oficialmente pelo Governador do Distrito Federal como uma nova cidade satélite. Neste
processo de legalização, a Associação de Moradores do Vale do Amanhecer contou com a
intermediação política do deputado Gilson Araújo, do Partido Progressista.
A nova cidade, nasceu com mil oitocentos e quarenta famílias, distribuídas em mil
setecentos e quatro residências, totalizando 18.000 pessoas. Cidade periférica, nasceu com
todos os problemas dos atuais assentamentos do Distrito Federal, falta de saneamento básico,
de policiamento, embora disponha de luz elétrica e transporte coletivo. Chegou-se temer por
um surto de cólera no local, em 1993.
Diferentemente do restante do DF, é a cidade religiosa construída por Tia Neiva
que ocupa o centro espacial da nova cidade, além de lhe dar o nome, como nas antigas
paróquias do Brasil católico. É provavelmente o único lugar do País onde um culto de
possessão de origem afro-brasileira ocupa o centro de uma zona urbana, e inclusive o centro
de sua vida política, já que a administração da Associação de Moradores, e da nova cidade por
extensão, está a cargo da atual direção do Vale do Amanhecer. Os habitantes não são
necessariamente adeptos do Culto, havendo, inclusive, uma igreja pentecostal instalada em
seus limites.
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5
O Prof.Cope foi meu orientador durante a Graduação em Ciências Sociais, de 1983 a 1985. Seu artigo foi fonte de
inspiração para esta Dissertação.
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como bens, (sejam estes, coisas, pessoas, mitos, ritos, festas e celebrações), circulam entre
indivíduos e grupos que constituem essas sociedades, como os ilhéus Trobriand que
Malinowski estudara. Ambos fazem, a partir do estudo de sociedades tribais e arcaicas uma
crítica à visão econômica do Homem e da Sociedade, característica do pensamento ocidental.
Como, todavia, o Trabalho Espiritual encontra espaço e legitimidade dentro de
uma sociedade como a brasileira, organizada segundo princípios de uma divisão social do
trabalho onde, de fato, as operações simbólicas são, ou parecem ser, senão completamente
alheias, completamente englobadas ao processo produtivo? De que maneira aquela lógica,
aparentemente primitiva, pode estar redefinida dentro de uma sociedade moderna, já que o seu
sucesso é tão evidente?
O estudo dos cultos de possessão presentes na sociedade brasileira são uma
tradição de longa data. Desde Nina Rodrigues (1935) encontra-se nesses estudos a
perspectiva de considerar tais atividades rituais bem como os seus adeptos, atitudes e crenças
como características de grupos sociais atrasados e primitivos, responsáveis, por isso mesmo,
pela sobrevivência de costumes de origem tribal e arcaica.
Os “macumbeiros” se não fossem, segundo esta ótica, pessoas ignorantes, quando
não patológicas e anormais, seriam pelo menos diferentes e exóticas, um arcaísmo folclórico,
fadado à assimilação pelos valores civilizados e modernos, na melhor das hipóteses.
Esse ponto de vista mudou muito, ao longo do século e do desenvolvimento das
pesquisas de campo. De qualquer maneira essas práticas religiosas, os cultos de possessão
afro- brasileiros, nunca deixaram de serem vistos como uma diferença cultural marcante dentro
da sociedade brasileira, principalmente em relação à visão científica, racional, intelectual do
mundo ocidental, da qual a tradição de pesquisa social sempre fez parte.
Embora autores como Roger Bastide fossem, posteriomente, encontrar uma
“refinada filosofia” nos Cultos aos Orixás da Bahia, e ele mesmo se iniciasse a este culto, essa
religiosidade continuou sendo vista como um mundo à parte, por isso mesmo privilegiada pela
descrição e interpretação antropológica, principalmente em seus cânones funcionalistas.
O funcionalismo, método que consiste em analisar a cultura de um grupo social em
seus próprios termos, como um sistema coerente e coeso, não impediu que temas como o da
Integração Social fosse tratado com relação a esses grupos sociais, notadamente através da
questão da Aculturação, como na obra do pesquisador pernambucano René Ribeiro (1982). O
ponto questionável, contudo, está em que essas manifestações religiosas sempre eram vistas
como parte integrante da identidade cultural de grupos sociais tomados como diferenças
sociais no Brasil, os negros descendentes de africanos e os mestiços de negros e caboclos.
Tais autores se detinham realmente em descrever a integração destas populações à sociedade
nacional em formação no Brasil, processo no qual a religião ocupava um papel de destaque.
O Porquê da Religião, e dos cultos de possessão se prestarem tanto a questões
ligadas à identidade cultural e à formação da sociedade como um todo, ficavam assim restritos
a esses pontos, quando na verdade essas religiões não estão totalmente direcionadas por
esses paramêtros.
Somente autores recentes, como Anaiza Vergolino e Silva (1975), Beatriz Dantas
(1988), Diana Brown (1985),Ivone Maggie (1988), Patrícia Birman (1983), e Peter Fry (1982) é
que foram pesquisar e discutir como que habitantes das cidades brasileiras encontram nesses
cultos (que possuem evidentes origens étnicas mas não se reduzem a elas) espaços e
oportunidades de darem vazão às suas tensões e conflitos, e de encontrarem meios de
tentarem resolvê-los, graças aos trabalhos espirituais.
A mudança de enfoque é sutil. Primeiro, há, nesses estudos recentes, uma enfâse
maior na dimensão individual, sendo que as pessoas e seus problemas passam a ser vistos
como contemporâneos. São indivíduos urbanos submetidos a pressões e conflitos próprios de
uma sociedade moderna. Nesse contexto, diferenças tais quais origem étnica, referências
culturais e posição de classe estão presentes, porém não são os únicos fatores a orientarem,
sozinhos as opções religiosas e as visões de mundo associadas a essa opção.
Os indivíduos urbanos estão sujeitos a situações em alguma medida comuns, que
são, porém, vividas de maneira bastante distintas. A diversidade religiosa de um contexto
urbano é um bom campo para perceber essa dinâmica, já que é sua expressão.
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DO PROJETO À PESQUISA
6
A Umbanda têm se expandido para a Argentina, principalmente em Buenos Aires. Também existem registros de
Casas em Portugal e no Estados Unidos. No Caribe, por sua vez, o modelo do Culto aos Orixás cubano expande-se
através das ilhas, além do Estados Unidos e da Venezuela. Neste último País existem cultos de tipo caboclo, similar
a umbanda brasileira, com a divinização de pessoas históricas, como o próprio Simon Bolivar.
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definição estrita mas sim um complexo de cidades, vilas, sítios, zonas rurais e “invasões”
interligadas que já extravasou, e muito, as fronteiras do quadrilátero original demarcado nos
anos 50.
O trânsito urbano característico de uma zona metropolitana como esta faz com que
pessoas vão e venham com muita freqüência e sem muita pretensão de criar raízes. Graças a
tal trânsito muitas dos pioneiros que eu tentava encontrar simplesmente haviam morado em
Brasília por pouco tempo e se mudado novamente ou nunca residiram permanentemente em
Brasília. Outros simplesmente já haviam morrido.
Algumas das primeiras Casas de Santo haviam sido instaladas em locais que não
mais existiam, como no caso daquelas que funcionaram nas “invasões” localizadas no Núcleo
Bandeirante e que foram transferidas para a Ceilândia em 1971. Outras funcionaram em lotes
situados na periferia das cidades satélites de Taguatinga e Sobradinho, até a década de 70,
em áreas que atualmente não são mais tão periféricas e que não se prestam mais ao
desenvolvimento das atividades rituais desses cultos. Tornaram-se zonas residenciais,
comerciais ou industriais.
Os informantes que pude entrevistar eram, em sua maioria, pioneiros no DF.
Rapidamente começaram a mostrar que nos anos 60 e 70, houve no DF uma grande
disponibilidade de terras, fosse para a instalação de uma Casa de Culto, fosse simplesmente
para a realização de ritos em locais apropriados junto à natureza, que os primeiros praticantes
desses cultos faziam muitas de suas atividades rituais em locais improvisados, sob árvores ou
em córregos. Além disso existiam, como até hoje, pequenos grupos de pessoas que se
reuniam na residência de um líder que dava passes, lia a sorte em cartas ou recebia espíritos.
Face a tal padrão de implantação, a idéia das Tradições religiosas
transplantadas e enraizadas começou a cair por terra. Contrariamente à realidade dos
funcionários públicos federais transferidos para o Plano Piloto de Brasília, onde tudo estava em
seu lugar, graças ao planejamento moderno, inclusive as religiões, as manifestações religiosas
que eu estava pesquisando demostravam obedecer a um padrão que recortava o planejamento
urbano modernista, seguindo a dinâmica própria do rápido crescimento do Distrito Federal.
Quando cheguei a tal constatação, pude perceber que a dissertação deveria tratar
de outro tema que não exatamente a questão das tradições religiosas regionais. O novo tema
iria se definindo ao longo dos contatos com os informantes.
A primeira informante fundamental para o redirecionamento da pesquisa foi Vanda
de Farias, residente no Distrito Federal desde 1960. Chegou acompanhando seu irmão, Aidano
Farias, advogado pioneiro bastante conhecido no DF. Em 1960 chegou defender Mães de
Santo e outros espíritas da Cidade Livre que tinham problemas com a policia no exercício de
suas atividades religiosas.
Vanda de Farias foi uma das primeiras pessoas a me mostrar que reconstituir a
História dos Cultos Afro-brasileiros no Distrito Federal, pelo menos a partir de uma perspectiva
antropológica, era extremamente problemático, uma vez que nem as pessoas e nem os lugares
perduraram, ao longo dos anos 60 e 70.
Ela foi a primeira pessoa a ser iniciada ao Culto dos Orixás da Nação Angola no
Distrito Federal. “Recolhida, raspada e catulada”, como os adeptos metonimizam esse ritual de
iniciação, ao qual ela foi submetida no final da década de sessenta.
O local onde foi realizado a primeira parte de seu processo ritual, localizava-se num
Sítio em Águas Claras, onde atualmente está sendo construída uma nova cidade. A segunda
parte do processo ocorreu numa residência particular em Taguatinga, cedida por um conhecido
e improvisada para os fins religiosos.
O primeiro Pai do Santo que a iniciou não estava capacitado para a execução do
ritual, de tal maneira que ela teve que esperar pela vinda de outros Pais de Santo, de São
Paulo, trazendo pessoal devidamente credenciado para o processo. Nenhum deles se
estabeleceu no DF. Seu Pai de Santo deixou uma Casa aberta, da qual ela terminou por se
afastar, por motivos de incompatibilidade com os demais irmãos de santo.
De qualquer maneira, Vanda havia se iniciado a uma tradição regional, o
Candomblé da Nação Angola, originário do Terreiro Bate-folha, até hoje dirigido por Mãe Bebé,
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que reside em Salvador, onde se localiza esta Casa de Santo tradicional. Mãe Bebé esteve em
Brasília, nos anos 70, segundo recordações não muito claras de Vanda de Farias 7
Esse último dado, referente à tradição regional, embora fosse o objeto do projeto
inicial, mostrou-se pouco significativo. Felizmente Vanda me indicou uma série de pessoas que
estavam estabelecidas no DF desde a década de sessenta e que tinham trajetórias mais bem
sucedidas do que a sua dentro da Religião 8 e com as quais eu poderia saber mais. Eram
pioneiros mais antigos e estavam em atividade até hoje. A maioria dessas pessoas se
conheciam entre si, de tal maneira que pude ter certeza de estar diante de uma rede de
informantes relevante.
Comecei por visitar as pessoas que estavam instaladas no Plano Piloto. Na FLORA
LOGUM EDÉ , casa de artigos religiosos antiga, localizada numa rua comercial da Asa Sul,
pude recolher boas informações com a Sra.Lêda, cunhada da proprietária, a Sra.Wanda, que
mantêm uma rede de casas comerciais no DF especializadas em artigos utilizados nos
trabalhos espirituais, como velas, ervas, defumadores e imagens, entre outros. Nesta mesma
loja, um cunhado de ambas, Nélson de Xangô, joga búzios africanos durante a semana. Ele é
Pai de Santo responsável por um Terreiro do Culto aos orixás localizado num município goiano
próximo à fronteira com o DF.
Pude conhecer um pouco da história do Centro Espírita João Baiano, o primeiro
centro espírita a ser instalado no Plano Piloto e que funcionava no mesmo local, na Avenida W
- 5 Sul. Este centro espírita foi uma casa de santo bastante conhecida e freqüentada nos anos
60 e 70, até a morte de seu fundador, Antônio de Assis Laos, em 1980. O Sr. Laos era
funcionário de um Tribunal Superior, que transferido do Rio de Janeiro para Brasília, instalou o
seu centro de Umbanda Branca na nova capital.
Após a sua morte, que pode ser vista como um marco divisor da fase pioneira para
a fase atual desses cultos de possessão no DF, este centro espírita tornou-se palco de uma
série disputa sucessória, envolvendo a linha de culto a ser mantida na Casa.
Haviam duas facções. A facção que defendia a continuidade da tradição do Sr.
Laos, representada por um casal de filhos de santo, pioneiros como ele no DF. A outra facção,
encabeçada pela viúva do falecido, defendia a mudança da linha ritual. A filha carnal do casal,
também adepta da umbanda e do culto aos orixás, servia de intermediária. O caso foi parar na
Justiça que não havia se decidido definitivamente sobre quem deveria continuar a dirigir o
Centro Espírita, localizado numa área privilegiada do Plano Piloto.
Ao final da pesquisa pude conhecer um dos Pais de Santo mais bem sucedidos de
Brasília, Tito de Omulu, que, na época, mantinha uma pequena sala comercial, na Asa Norte,
para atender sua clientela com o jogo dos búzios africanos.
Segundo ele, os líderes espíritas típicos de Brasília são, pelo menos nos Cultos de
Nação, aqueles que vindo do Rio de Janeiro, são ligados ritualmente às Casas de Santo de
Salvador. Nélson de Xangô, que eu entrevistara no início da pesquisa, afirmara algo
semelhante, dizendo que vínculos muito específicos ligam Salvador, Rio de Janeiro e Brasília,
para os membros do Culto aos Orixás.
Após entrevistar mais de vinte pessoas, pude perceber que dessas, a grande
maioria chegara a Brasília oriunda do Rio de Janeiro, onde haviam começado suas vidas
religiosas. As exceções só faziam confirmar a regra.
Maria do Oxóssi, goiana, natural de Anápolis, desenvolveu sua religiosidade na
fazenda de seu pai, numa época em que Goiânia mal começara a ser construída, durante a
década de 30. Chegara à Cidade Livre em 1960, antes da inauguração oficial de Brasília, vinda
do Rio de Janeiro, onde havia fixado residência temporariamente, depois de viajar por todo o
Brasil, e ido até a África, inclusive. Embora tenha me afirmado ser Mãe de Santo de Nação,
praticando culto aos orixás no rito Jeje e no Kêtu, outros informantes que a conhecem
afirmaram que ela “tocava umbanda”.
7
.. Na dissertação de Serra(1982) é confirmada a passagem de Mãe Bebé por Brasília.
8
A idéia de Religião aqui está sendo tomada como categoria nativa e expressa a opinião que os informantes possuem a respeito
da religiosidade que praticam.
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Fui descobrindo, assim, que as idéias a respeito das tradições religiosas e das
origens regionais variavam muito entre os informantes, segundo critérios que eu desconhecia
inteiramente quando elaborara o projeto de pesquisa.
Jorge, médium umbandista de origem maranhense, nascido no Rio de Janeiro, teve
suas primeiras manifestações mediúnicas em São Luís do Maranhão, onde realizou o
desenvolvimento de seus guias, num centro espírita. Sempre viveu em trânsito entre São Luís,
Rio de Janeiro e Salvador, vindo para Brasília com a família no final dos anos setenta. São Luís
ocupa, na Amazônia, uma posição equivalente a de Salvador no Centro Sul. É a capital da
religião dos terreiros, conhecidos como Tambores ou simplesmente como Mina. No Planalto
Central, Jorge começou suas atividades religiosas na comunidade espírita de Palmelo,
próxima a Goiânia. É uma pequena cidade especializada em curas mediúnicas. Saiu de lá
porque seus guias de umbanda não eram bem aceitos pelas lideranças kardecistas.
Somente os informantes que vieram muito jovens do Rio de Janeiro não chegaram
já iniciados em Brasília. Em compensação, os informantes que vieram de cidades do interior
para o DF, como Vanda de Farias, que veio de Uberaba, se desenvolveram no espiritualismo
em Brasília, embora já conhecessem algumas manifestações dessa natureza em suas cidades
de origem.
Pude perceber que esses cultos de possessão além de serem característicos das
zonas urbanas brasileiras possuem, não só no DF, características próprias do universo
metropolitano do País. Em Brasília estão particularmente relacionados com esferas do Poder
Público, conforme afirmara Nélson de Xangô, “onde está o Poder Político, está o Poder
religioso”.
Compreendi que não estava diante de uma versão candanga dos cultos afro-
brasileiros, ou seja, de guetos culturais bahianos e cariocas instalados no Planalto Central, mas
sim diante de um modelo de religiosidade, o qual denominei de Espaço Religioso da Capital
Federal , tomando Capital Federal no sentido estrito de sede do Poder Político Nacional,
atualmente instalado em Brasília, que foi construída especialmente para abrigá-lo.
Sendo assim é possível afirmar que o estudo da religiosidade brasileira, nesse novo
espaço social que é Brasília, revela elementos da atual vida política do País, expressos em
linguagem religiosa e que estão relacionados com o processo da transferência da capital do
Rio de Janeiro para o Planalto Central.
Outro informante, Sebastião de Souza, alertara-me que o tipo de dados que eu
desejara coletar inicialmente só poderiam ser obtidos com segurança junto a dois Ogãs que
conhecem praticamente todas as Casas de Culto existentes no Distrito Federal.
Como as Nações do Culto aos Orixás africanos se distinguem fundamentalmente,
em termos práticos, pelo ritmo dos tambores, suas formas e a maneira como são tocados, são
os Ogãs responsáveis por esses instrumentos que sabem realmente reconhecer as Nações, as
filiações e as tradições regionais de uma Casa. Como os bons Ogãs são raros, os poucos que
existem estão sempre circulando pelas Casas de Santo. Um levantamento das tradições
regionais no DF seria um trabalho para etnomusicológos, especialidade que eu desconheço
inteiramente.
A outra alternativa de pesquisa que me foi colocada por Sebastião de Souza era
junto ao Sr. Paiva, Pai de Santo muito conhecido e presidente da Federação dos Cultos afro-
brasileiros do Distrito Federal.
A Federação, segundo o próprio Sr. Paiva, possuía em meados de 1992, cerca de
2.150 Casas registradas, que levariam pelo menos cerca de 2 meses, num levantamento
rápido, para serem tabeladas, sem contar o inconveniente da Federação não possuir
autorização dos seus filiados para que os registros pudessem ser consultados.
Além disso, o Sr. Paiva afirmara ser uma pessoa muito atarefada, ainda mais que
estava ocupado, no 2º semestre de 1992, em atividades que seriam desenvolvidas junto ao
Templo da Legião da Boa Vontade, e posteriormente, com as celebrações da passagem do fim
de ano, quando inauguraria uma imagem da Orixá Yemanjá, as margens do Lago Paranoá.
A conversa com Sr. Paiva despertou - me uma série de intuições, que depois pude
confirmar. O Sr. Paiva não só era uma pessoa muito ocupada como também é um líder
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religioso muito influente, íntimo de certas instâncias do Poder político e de alguns de seus
representantes.
Vários informantes se referiam a Federação com a “Federação do Paiva”,
enfatizando o caráter personalista de sua liderança, por sinal muito bem sucedida. Alguns
informantes o criticaram bastante, pelo seu empenho em participar da vida pública e oficial do
Distrito Federal.
Não é só o Sr. Paiva que é um líder espírita tão influente. Diversos líderes religiosos
também o são, de alguma maneira, que inclui boas relações com pessoas ligadas as esferas
do Poder Público institucionalizado. Em dois casos, por exemplo, não consegui entrevistar as
líderes de dois Centros de Umbanda antigos e respeitados, e credito a recusa de ambas ao
fato de não lhes ser conveniente expor suas atividades sociais a um jovem e anônimo
pesquisador.
Enfim, a realidade social dos meus informantes não era a de um grupo social
oprimido para quem uma pesquisa acadêmica pudesse significar a possibilidade de uma
visibilidade social e servir de canal para reivindicações específicas, como é relativamente
comum acontecer.
Os informantes mais idosos e antigos na cidade demonstraram apreciar poder
contar suas estórias para um pesquisador e pelo menos uma Mãe de Santo, D.Marlene Souza
Braga, mostrou-se bastante consciente da necessidade de um registro da vida religiosa do DF.
Ela possui um arquivo bastante completo sobre as sua atividades juntamente com outros
líderes pioneiros de Brasília e é uma pessoa que merece ser mais pesquisada em
profundidade.
Como um todo tive acesso a um conjunto de informantes que são membros da elite
religiosa de Brasília. São muito bem sucedidos, conhecidos e respeitados. Procurei me deter
naqueles que, de alguma forma, estiveram ou estivessem, próximos ao centro social de
Brasilia, particularmente no Plano Piloto.
Nesse ponto surgiu um conjunto de dados de fonte inesperada, através do
processo que culminou no impeachment do Presidente Collor. Dentro das mais variadas
denúncias que o envolviam, chamava a atenção as repetidas acusações de que ele, sua mãe e
sua esposa, faziam “macumbas” com matanças de cachorros, galinhas e bodes, com o intuito
de neutralizar as ações de seus inimigos políticos, sob o comando de uma mãe de santo
alagoana.
Ficava claro, então, que esses cultos de possessão não se limitavam a ser uma
sobrevivência de tradições de origem africana, ou regional. Não seriam tradições mantidas com
muito sacrifício por humildes mães e pais de santo, de origem africana ou mestiça, em pobres,
porém sérios, terreiros nas periferias de grandes cidades, apesar de todas as pressões da
sociedade envolvente em descaracterizá-los. Parte da reflexão etnográfica clássica as vezes
sugere algo assim. Seria muita ingenuidade ver na aliança de líderes religiosos com lideranças
político-partidárias algum processo de descaracterização de uma tradição cultural.
Alertara-me, todavia, outro informante, Nétio Benguela, artista e intelectual do
Movimento Negro Unificado, que de fato, os líderes religiosos negros, mais próximos das raízes
africanas, existem no DF, vivendo em condições difíceis, enquanto que outros líderes, os mais
bem sucedidos financeiramente, mais bem instalados e influentes não possuem tanto
conhecimento, ou pelo menos não estão tão próximos das raízes tradicionais.
São, em maioria, filhos de santo bem sucedidos dos líderes mais tradicionais, como
os dois dirigentes de duas Casas de Santo muito freqüentadas e prestigiadas em Brasília, Tito
de Omulu e Lilico da Oxum, que Nétio freqüentara durante os anos 80.
Tito de Omulu, gaúcho de porto Alegre, iniciou-se ainda menino com um Pai de
Santo de origem africana, do Batuque gaúcho, tendo depois ido para Salvador onde completou
sua formação numa das mais prestigiadas Casas da Nação Alakêtu. De lá foi para o Rio de
Janeiro, onde vivia do comércio de artigos religiosos. Veio para Brasília no final dos anos 60, e
devido ao prestígio adquirido, atualmente vive exclusivamente para os assuntos religiosos,
através das consultas com o jogo dos búzios africanos. Atualmente sua sala de atendimento
localiza-se no Centro Empresarial Brasília, um dos mais modernos conjuntos comerciais, do
Plano Piloto.
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Lilico da Oxum é natural de Pernambuco, onde foi iniciado no Culto aos orixás na
Nação Kêtu. Seu pai de santo morreu quando ele ainda era muito jovem. Ele se mudou para o
Rio de Janeiro onde chegou a freqüentar a Casa de Santo de Joãozinho da Goméia, um dos
pais de Santo mais famosos do Brasil,, também pernambucano, que herdou os assentamentos
do seu pai de santo, com quem se dava. Lilico veio para Brasília em meados dos anos
sessenta e se tornou um dos primeiros e mais jovens pais de santo de Nação atuando no DF.
Deste cedo “vivia pro Santo”, principalmente da prática oracular e de outras atividades
relacionadas.
Lilico é muito querido e conhecido, embora algumas Mães de Santo mais idosas o
tivessem como muito “novo”, para as exigências da vida religiosa. Seu Terreiro esta instalado
numa numa pequena fazenda nos arredores de Sobradinho, que recentemente transformou-se
numa nova zona urbana, Sobradinho II, onde o Terreiro se destaca com seus barracões
espaçosos e suas árvores frondosas.
O Sr. Paiva e sua esposa, Inalda, também são pernambucanos. Ambos são filhos
de santo do Terreiro da Água Fria, considerado a Casa de Santo mais tradicional do Recife. O
Sr. Paiva é Sargento da Marinha, já reformado. Veio para Brasília, inicialmente, por
transferência das Forças Armadas, não se demorando muito tempo. Retornou na década de
80, para se dedicar exclusivamente as atividades religiosas, após ter sido reformado. O casal
reside em Luziânia, histórica cidade goiana localizada a 50 km de Brasília, onde instalaram seu
Terreiro. A sede da Federação dirigida pelo Sr. Paiva está localizada em Taguatinga, na QNA
17, um dos setores mais valorizados daquela cidade.
Quanto às relações do Sr. Paiva, narrarei um episódio que denota a abrangência e
a força de sua Corrente espiritual. Chegando a passagem do ano de 1992/93, Pai Paiva, como
se faz conhecer publicamente, inaugurou a estátua de Yemanjá, no Lago Paranoá, na 17ª festa
de ano novo, promovida pela sua Federação.
Havia condução para transportar fiéis da Rodoviária para o Lago Paranoá. A
imprensa local estimou que ao longo da noite umas 10.000 pessoas compareceram ao local,
para prestar suas homenagens à orixá das águas.
O ritual foi coroado pela discreta presença do recém empossado Presidente Itamar
Franco que na madrugada compareceu, vestido de branco, como é recomendado, para
depositar rosas brancas aos pés da imagem de Yemanjá. Foi a melhor imagem da aliança
simbólica do poder religioso com o poder político que poderia ter se dado durante a pesquisa.
O Presidente da República que havia caído sob toda a sorte de acusações,
inclusive de praticar sessões de magia negra, em giras de exu e pomba-gira, fora substituído
pelo seu vice-presidente, celebrava em público a poderosa, maternal e purificadora Yemanjá,
num rito celebrado em todo o País, simultaneamente, quando são renovadas as esperanças da
população de um ano novo melhor do que o que passou.
Os ritos sangrentos aos Exus e pomba-giras, que a família Collor realizaria nos
porões de sua mansão, eram noticiados juntamente ao assassinato de uma jovem atriz de
telenovelas, Daniela Peres, e de ritos de magia negra ocorridos no sul do País, onde crianças
foram sacrificadas a Exu. Nesse último caso, fora uma família de políticos a mandante dos
ritos, desejosa de obter sucesso para a carreira de um prefeito do Paraná.
Houve muita especulação e exploração sensacionalista por parte da impressa
desses episódios. De qualquer maneira, com freqüência, um pai de santo ou uma mãe de
santo apareciam numa entrevista e uma emissora de televisão chegou a dedicar um programa
ao tema.
Pude até acompanhar um informante numa ida ao gabinete de um Deputado
Distrital do DF, no final de 1992. O deputado recebeu seus correligionários e eleitores com uma
leitura da Bíblia e uma oração coletiva, antes de começar o atendimento das reivindicações
destes. Mantinha, no seu Gabinete, um grande quadro representando um Preto-Velho, junto a
um vaso com espadas-de-São-Jorge e outras plantas utilizadas nos cultos afro-brasileiros para
afastar mau-olhado. Quando da nossa visita ao seu gabinete acompanhava-nos outra dirigente
de um Centro Espírita na Cidade Ocidental, em busca de apoio para as suas atividades
assistenciais.
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9
Renato Ortiz (1991) apresenta estatísticas que mostram o rápido crescimento da Umbanda a partir do pós-guerra até os anos 70,
quando se estabiliza. Na época da construção de Brasília tal processo de expansão estava no auge. À estabilização da
umbandização seguiu-se a candomblelização dos cultos de possessão no Centro-sul do País, nítida a partir dos anos 80, conforme
Prandi (1991), descreveu e analisou.
10
Com relação a este tópico, Roger Bastide(1985) apresenta uma interessante reflexão baseada em dados históricos.
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2ª PARTE:
O “SANTO” na CAPITAL
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uma faculdade, uma capacidade - e não um saber. Enquanto Poder, pode ser enigmático para
o próprio possuidor, sem deixar de ser eficaz, como o caso de Quesalid, que questionava e
duvidava da eficácia de seus próprios ritos. É porque é um poder que pode ser, e é ,
continuamente posto à prova, inclusive pelas argumentações científicas. É porque não é um
saber, uma fórmula, que não apresenta, necessariamente, uma compreensão coerente para o
especialista e para a opinião pública.
Sendo assim, o poder está, afinal, nos símbolos que são manipulados ou na pessoa
que os manipula, ou em ambos? O caso de Quesalid, entre outros, aponta para o fato de que
os xamãs manipulam um corpo de conhecimentos e técnicas, que podem ser chamados de
objetivos, mas esse saber está longe de ser o único responsável pela eficácia da cura ou dos
outros objetivos que os ritos desses especialistas se propõem.
Os depoimentos dos informantes pesquisados, a respeito de suas trajetórias
religiosas, fornecerão exemplos significativos desse tipo de questão em torno do simbolismo
religioso e de suas relações com a vida social como um todo.
Todos os informantes, sejam os líderes das Casas ou membros do culto, estão em
contato íntimo com algumas entidades espirituais determinadas. Em algum momento de suas
vidas essas entidades se manifestaram para eles, de alguma forma, ou a pessoa sentiu-se
atraída pelo culto e pela possibilidade de desenvolver esse tipo de relação com o mundo dos
espíritos.
Tais entidades são determinantes não só da vida religiosa do indivíduo como de
seu comportamento cotidiano, caráter, história de vida e até de seus horizontes e perspectivas
mais amplos. O aspecto fundamental a ser levado em consideração é justamente a elaboração
do vínculo que une esses indivíduos às suas entidades.
No caso do culto aos orixás, como no Xangô pernambucano, estudado por Segato
(1989), o ingresso de um novo adepto a uma família de Santo implica em sua filiação a uma
cadeia de líderes religiosos vivos e mortos, definida sempre a partir dos orixás que são
identificados como sendo os específicos de sua “cabeça”. Embora fortemente individualizados,
os Santos e as relações que os adeptos mantêm com eles, só são compreensíveis a partir do
saber mítico onde suas características estão contidas numa série de estórias, que envolvem
relações de parentesco e eventos significativos variados.
Serra ( 1982 ) descrevendo os orixás nas Casas de Santo de Salvador, mostra que
essas entidades são, em primeiro lugar, categorias coletivas e genéricas. Cada Orixá - Ogum,
Oxóssi, Oxum, Yemanjá, por exemplo, define uma família de santos , uma qualidade espiritual
associada a um reino da natureza. Os Santos é que são as entidades, já individualizadas, para
as quais os adeptos são iniciados. São os Santos que são ritualmente assentados e cultuados
nas Casas do Culto aos Orixás.
Nesse caso é possível afirmar que o poder simbólico está personificado no “Santo”,
individualizado e representante por excelência do fenômeno da possessão. Já o saber
religioso, como a mitologia, pertence ao domínio coletivo da tradição, assim como as técnicas
rituais associadas. É onde se situam os orixás e suas lendas, atualmente bastante conhecidas
e folclorizadas em certos meios.
De qualquer forma, as lendas e estórias das Casas de Santo, as técnicas rituais
como as comidas, os gestos, as liturgias e as cores associadas as entidades nada dizem a
respeito de porque determinadas pessoas são eleitos por determinadas entidades , ao invés de
outras, como suporte de suas manifestações. O vínculo que o fenômeno da possessão
estabelece, entre estes dois planos, o mítico e o terreno, é literalmente, um poder misterioso,
mesmo, senão principalmente, dentro do próprio culto.
Os rituais, e o indivíduo em sua vida, compõem o campo empírico onde essas
dimensões se cruzam. Cada Casa de Santo possui uma maneira própria de atualizar esse
cruzamento entre saber e poder, mito e rito, divindade e humanidade, mítico e terreno.
Nos cultos de tipo umbandista, por exemplo, essas relações podem ser ainda mais
complexas do que no culto aos orixás, já que os membros desenvolvem a capacidade de
receber diversos espíritos, não apenas um ou dois principais, como acontece com os orixás.
É através dos ritos de iniciação que esses intermediadores consolidam sua
capacidade para a comunicação com os seres espirituais. Por isso, os informantes ressaltam a
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Dentro do universo pesquisado, três Centros que estão localizados no Plano Piloto
apresentam uma série de características significativas em comum. São três Centros de
Umbanda Branca, originários do Rio de Janeiro.
Os ritos que pude assistir foram os promovidos por estes Centros do Plano Piloto.
Esses ritos tinham finalidades específicas, além da consulta espiritual. No Centro Espírita
Nossa Senhora da Glória, assisti à celebração do 27 º aniversário do Centro, comemorado
junto ao dia consagrado a esta Santa, 15 de agosto de 1992, quando dei início ao trabalho de
campo. A investigação propriamente dita terminou no Centro Espírita Tenda de Oxalá em
janeiro de 1993, quando assisti à abertura das atividades rituais daquele ano e a apresentação
da nova turma de médiuns que começava a trabalhar no Centro. Além deste rito, já havia
assistido a um ritual que este Centro realizara no Ribeirão Saia Velha, em 20 de dezembro de
1987.
Somente no Centro Espírita João Baiano é que assisti a uma sessão regular de
consultas, que eram realizadas todas as quartas-feiras, à noite. Devido às mudanças na
direção do Centro, a partir de 1994, tal tipo de rito não é mais praticado, conferindo um valor
especial a este registro etnográfico. De fato, a descrição do tipo de ritual praticado por cada
uma destas três Casas ilustra não só a presença da Umbanda Branca do Rio de Janeiro no
centro administrativo da Capital Federal, mas as transformações que tal modalidade religiosa
atravessa atualmente, dentro dos seus quase 100 anos de existência.
O Centro Espírita João Baiano é um caso exemplar sob muitos aspectos. Foi o
primeiro Centro Espírita a ser aberto no Plano Piloto, num setor destinado à instituições
religiosas, na 913 Sul e continua em funcionamento até hoje. Sua trajetória serve de base para
situar as várias características que os cultos de possessão afro-brasileiras apresentam no DF.
A vida deste Centro pode ser dividida em duas fases, dividida por uma séria crise.,
A primeira fase, pioneira, foi gloriosa. Compreendeu a formação do Centro, com a
doação do terreno pelo próprio Presidente da República , Juscelino Kubitchek, ainda em 1959,
até a morte fundador , o Sr. Antônio de Assis Laos, em 1980.
A segunda fase, de 1980 até 1993, foi a de uma crise crônica. Dada a ruptura
causada pela morte do fundador, surgiu uma crise em torno da sucessão. A viúva do líder,
Francisca Laos, optou por mudar a linha ritual do Centro, chamando o seu próprio Pai de
Santo, Roberto Miranda, para ser o novo líder da Casa, que passou a desenvolver seus ritos
de Nação, ao invés de permanecer na Umbanda Branca original do João Baiano.
Essa experiência durou apenas os dois anos nos quais ela foi a nova Presidenta do
Centro. Em 1983, chegando o momento da eleição de um novo presidente, houve um impasse
com relação a continuidade do modelo ritual a ser seguido. Surgiu uma polarização entre
D.Francisca de um lado e o corpo dos médiuns de outro. Ela acabou por abandonar o Centro,
que cessou de manter suas atividades regulares.
Uma tentativa de reparação foi posta em prática pela filha carnal do casal, Clélia
Laos, que chamou um casal de filhos de santo do Sr. Laos para reassumirem a direção do
Centro, D. Luzia e o Sr. Carneirino.
Este casal conheceu o Sr. Laos na Cidade Livre, para onde tinham vindo em 1957,
do interior de São Paulo. Começaram a freqüentar a Umbanda do João Baiano tendo sido
iniciados pelos Sr. Laos, com quem sempre trabalharam. Em 1975 fundaram um Centro
Espírita no Gama, onde residiam, dentro da mesma linha ritual do Centro Espírita João Baiano.
Assumiram a direção do Centro na Asa Sul em 1983, permanecendo lá durante 10 anos.
Conseguiram manter a linha original dos ritos de Umbanda Branca, mas a existência de uma
pendência judicial, inclusive paralisando obras, deu ao Centro um ar de situação indefinida e
indeterminada que lhe tirou muito do prestígio original.
Para poder situar o que foram os dias de glória do Centro Espírita João Baiano, sua
longa crise e o porquê de não ter se recuperado plenamente, será preciso descrever as
relações do Sr. Antônio Laos com a sua entidade mítica principal, o Prêto-Velho João Baiano.
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Literalmente, o Sr. Laos foi, ao longo dos vintes anos que esteve a frente do centro,
confundindo sua identidade pública, enquanto adepto da religião, com a indentidade mítica de
seu guia espiritual. Ele se tornara o João Baiano dentro e fora do centro. Essa confusão
chegou a um ponto que todos os informantes se referiam a ele como o “João Baiano”, inclusive
os atuais diretores do centro.
Graças ao seu carisma, o Sr. Laos conseguiu que o centro espírita fosse uma das
casas de santo mais importantes e conhecidas, nas décadas de 60 e 70, dentro do espaço
religioso de Brasília. O centro chegou a ter 150 médiuns registrados e em suas sessões
públicas havia em torno de uns 40 médiuns incorporados atendendo as consultas. Tanto as
sessões de consultas com os guias, relizadas semanalmente, quanto as festas anuais do
centro eram muito concorridas.
Já a sua esposa, Francisca Laos, nunca foi inteiramente ligada ao preceito religioso
do marido. Freqüentava o centro regularmente e auxiliava nos rituais da linha de umbanda.
Era, porém, ligada ao Pai de Santo Roberto Miranda, com quem havia se iniciado no culto aos
orixás.
A divergência do casal com relação ao culto tornou-se profunda a ponto do casal vir
a separar. O Sr. Laos deixou seu apartamento com a ex-esposa e passou a morar no próprio
terreno do centro espírita, num barracão construído nos fundos do centro, o que contribuiu para
a sua identificação completa com o seu guia.
Anos depois, D. Francisca e sua filha venderam o apartamento e também
mudaram-se para o Barracão, que foi dividido em dois. Clélia também era iniciada no culto de
nação por Roberto Miranda. Nesse meio tempo o Sr. Laos casou-se novamente.
Ao longo dessa primeira fase o Sr. Laos desenvolveu uma efetiva liderança entre os
umbandistas do DF. Era no Centro Espírita João Baiano que os membros da Federação
Umbandista se reuniam. Ele promovia festivais de Umbanda com a presença de vários centros,
nos estádios desportivos de Taguatinga e do Gama.
No momento de sua morte, ele teria pedido a Francisca Laos que voltasse para o
João Baiano, pedido que poderia ter sido interpretado de várias maneiras. Ela de fato voltou,
mas não ao preceito original do Prêto-Velho João Baiano, embora antes da morte do marido,
devido ao estado de saúde abalado em que ele se encontrava, fosse ela quem presidisse o
ritual do centro.
D.Luzia, por sua vez, foi única a filha de santo a ir ao enterro do líder vestida com
as roupas rituais do centro. Posteriormente ela interpretou esse fato como uma premonição de
que teria que vir a se tornar a nova líder do centro. Ela e seu marido passaram a residir no
barracão dos fundos do terreno, mantendo o centro em funcionamento. Nenhum deles,
contudo, e nenhum outro médium herdou a entidade principal, o Prêto-Velho João Baiano.
Em geral as entidades, sejam os orixás africanos ou os guias de umbanda são
transferidos para outro médium que assume o lugar do líder falecido. Pelo visto, a identificação
do Sr. Laos com a guia principal do centro foi tão intensa e sua liderança tão personalista, que
essa passagem não ocorreu.
A descrição de um rito de consulta com os médiuns do centro, sob a liderança de
D.Luzia incorporada por sua Prêta-Velha Vó Cambina irá informar melhor a situação crítica do
centro, em 1992.
O Centro Espírita João Baiano tinha um espaço ritual bastante vasto, com uma
grande pintura de fundo, representando uma praia com palmeiras e um belo sol nascente. A
frente desta paisagem estavam diversas imagens de santos católicos que representam os
orixás da umbanda. São Sebastião, São Jorge, Nossa Senhora da Conceição, São Jerônimo,
Santa Bárbara, N.Sra. Aparecida e Jesus Cristo. Eram imagens grandes, ladeadas com vasos
cheios de água. Havia uma grande cacimba de barro bem ao centro, também cheio d’água.
Na lateral esquerda estava o espaço dos atabaques enquanto que bem à frente da
assistência, ainda no espaço ritual, ficavam duas pequenas cabanas de palha e madeira,
respectivamente, onde foram acesas velas, antes do ritual propriamente dito começar. O chão
do espaço ritual do Centro era de areia branca.
A parte da assistência era pequena. Dois conjuntos de cadeiras, bancos e sofás,
bastante gastos, dividida entre homens à esquerda e mulheres à direita .
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levantados e a assistência foi convidada a passar por eles, enquanto os médiuns que ainda
não haviam incorporado o faziam. Todos saudavam Vó Cambina, se ajoelhando aos seus pés
e retornando às colunas no centro do salão. Finalmente essa etapa terminou com os ogãs
entoando o seguinte ponto:
Com todos os médiuns já incorporando os seus guias ao som dos atabaques, teve início
a parte das consultas. Vó Cambina continuava sentada no seu banquinho, fumando um pito,
enquanto os demais médiuns espalhavam-se pelo salão atendendo à assistência. Os
atabaques continuavam o seu ritmo, mas já sem os cânticos. A luz vinha apenas das velas,
iluminando o altar e os médiuns. Na saída, praticamente não haviam carros estacionados à
frente do Centro, sugerindo que a maior parte dos médiuns e dos presentes morava próximo ao
Centro, já que o rito se estenderia para além do horário dos ônibus noturnos.
No início de 1988 D. Luzia conseguiu um novo registro para o Centro, que deixou
de denominar-se Tenda Espírita João Baiano e passou a chamar-se Centro Espírita Vovó
Cambina. Registro e mudança formal, uma vez que o registro só valia por um ano, a
Confederação que o expediu fechou e o presidente da mesma morrera. D.Luzia, por sua vez
me recebera afirmando:
“Aqui é João Baiano. A entidade aqui é João Baiano.”
O Centro estava com 70 sócios, embora nem todos fossem médiuns. D.Luzia
preferiria voltar para o seu Centro no Gama, permanecendo no João Baiano apenas por
vontade dos sócios. Herdou muito da disposição do Sr. Laos, principalmente no que diz
respeito às atividades de assistência social.
O Centro desenvolvia uma série de atividades de amparo a meninos de rua.
Regularmente aos domingos, seus sócios visitavam o Gran Circo Lar, espaço cultural situado
no Eixo Monumental, ligado à Fundação do Serviço Social e à Fundação Cultural do Governo
do Distrito Federal, que desenvolve trabalho com esses menores. Promoviam anualmente uma
grande festa de Cosme e Damião, em finais de setembro. Conseguiam alimentação e
transporte para essas crianças junto a vários empresários do DF. O processo Judicial
embargou as obras de uma creche no terreno do Centro, assim como o convênio com a LBA
que D. Luzia possuía no Gama, onde é mãe crecheira.
D. Luzia não tinha boas recordações da administração de D. Francisca Laos. Na
sua opinião, o interesse dela e de seus seguidores era fazer correr dinheiro dentro do Centro,
com jogo dos búzios e outras atividades típicas do Culto aos Orixás. Tais práticas chocam-se
com a ética de caridade cristã da umbanda branca, que nunca cobram pelas suas consultas.
D. Luzia mostrou-se muito arredia com relação a relatar pormenores da questão
judicial. Parece que devido ao fato da vida religiosa e da vida conjugal do casal Laos ter se
confundido tanto, a questão da herança tornou-se igualmente confusa. Como no plano mítico e
ritual nenhuma entidade assumiu uma nova liderança sobre ambas as partes, o conflito ficou
sem solução.
O Centro é uma sociedade civil sem fins lucrativos, registrada e reconhecida como
de utilidade pública pelo GDF. Pertencia, oficialmente, à corrente mediúnica, que se representa
pelo conjunto dos 70 sócios. A justiça havia dado ganho de causa a Francisca Laos, num
primeiro julgamento, mas a Sociedade dos médiuns recorreu a um novo juízo. Francisca Laos
faleceu em outubro de 1992, deixando o caso mais uma vez sem solução.
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A Justiça deu ganho de causa a facção de D.Francisca Laos pois a partir de 1994 passou a funcionar no local o
Centro Integrado de Desenvolvimento Humano, CEIVA. Em 23.04.93. O Centro Espírita João Bahiano realizara
pela última vez a procissão de Ogum na Avenida W3 Sul. Começara, pois, a terceira e atual fase do Centro.
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Ele começou sua vida religiosa freqüentando pajés na Ilha de Santa Luzia,
localidade situada no delta do Parnaíba, no Piauí, onde nasceu. Sua mãe o levava lá para
tratá-lo de doenças de infância. Estudava no internato católico da cidade de Parnaíba.
Sua mãe sempre disse que ele era um grande médium. Começou a demonstrar
sinais (de manifestação) de possessão ainda criança, recebendo guias espirituais em sessões
de Pajelança maranhense, como os Caboclos encantados e as entidades da linha de Légua
Bogi Buá. No Rio de Janeiro continuou a freqüentar Casas de Santo com a sua mãe.
Em Brasília freqüentava outros círculos além do mundo espírita. Em 1977
trabalhava na Rede Tupi e no Correio Brasiliense, onde era colunista social. Em 1979 publicou
um livro intitulado Palavras de um Rei Nagô, com cantigas e revelações de alguns mistérios
do culto. Publicou posteriormente, Candomblé, Umbanda e suas obrigações; Pablo, el
endiabrado ( almas para Deus) e Mitos e Ritos Nagô: O saber de Ominsulá. Neste último
livro também revela ritos fechados dos Cultos aos Orixás.
Pessoa de trajetória singular, Roberto Miranda em momento algum mencionou
quem são os seus Santos tutelares, e se estes estão assentados e são celebrados
regularmente em seu Terreiro de Sobradinho, como fizeram os demais. Embora se
apresentasse como crítico e distante do mundo dos cultos de possessão de Brasília suas
informações fazem crer que ele conhece muito bem o universo religioso do DF.
moram alguns irmãos carnais e algumas filhas de Santo, o que faz do local uma pequena
comunidade religiosa, de onde Lilico pouco sai, uma vez que sempre está às voltas com as
obrigações de suas entidades e com os ritos de iniciação de novos filhos de santo. Todo o
conjunto do Terreiro é registrado em nome da Associação religiosa, que possui registro civil em
cartório. Legalmente, Lilico é o Presidente mas não é o proprietário, situação social que
enfatizou com veemência.
Em 1992 o Centro Espírita era dirigido pelo Sr. Édson Silva, um dos médiuns mais
antigos. Ele era o Presidente administrativo do Centro , o responsável pela disciplina do corpo
mediúnico e pelo bom funcionamento das sessões.
Chegou em Brasília em 1970, também transferido do Rio de Janeiro. Era
funcionário aposentado do Tribunal de Contas da União. Exercia a função de Coordenador de
Normatização e Orientação técnica do Orçamento da União. Formado em administração de
empresas e bacharel em Direito, deu aulas no sistema de orçamento federal e de Direito
Financeiro no CEUB, uma faculdade particular de Brasília.
A descrição do rito comemorativo do aniversário do Centro, realizado em 15 de
agosto de 1992 quando a Casa fazia 27 anos de fundação, expressa satisfatoriamente a
vitalidade da instituição e o sucesso dessa transmissão de liderança espiritual:
O templo é composto por uma nave grande, todo branco, com janelas amplas,
pintado com frisos azuis. Logo à entrada ficam algumas pequenas salas destinadas à
secretaria, banheiros, e há um quadro de avisos. Dentro do templo o espaço destinado à
assistência é ocupado por bancos corridos de madeira, como de igrejas. O espaço ritual
6
O Centro Espírita João Bahiano não é único existente no Plano Piloto. Existem oito centro espíritas
kardecistas, dos quais cinco na Asa Norte e três na Asa Sul, além dos dois Centros de Umbanda Branca situados na
Asa Norte.
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começaram a dar sinal que iam incorporar suas entidades, rodopiando. D.Jurema dançava no
meio do salão, rodopiando. Amarraram uma faixa verde em sua cintura e lhe deram um charuto
acesso. Sua expressão facial mudou. Os médiuns começam a exclamar: Okê! Okê! enquanto o
Dr. Édson anunciava a incorporação do Caboclo Cobra Coral em D. Jurema Farias.
A maioria dos médiuns ainda não estava incorporado. Dos quartinhos dos fundos
eles começaram a trazer velas azuis que foram distribuídas entre todos eles. As velas foram
acesas aos pés da imagem de Yemanjá. Uma grande bandeira azul-marinho foi trazida para o
salão. Os médiuns formaram uma fila atrás da porta-bandeira, saindo em fila para a parte
externa do Centro. Atrás foram saindo os demais presentes. Alguns já iam carregando velas
azuis e verdes, outros dirigian-se a cantina para adquiri-las. O grupo foi acendendo as velas
entre os bambus, palmeiras e demais árvores do jardim, que rapidamente tornou-se
inteiramente iluminado, sob a luz da lua cheia. Como o espaço é muito grande o grupo
começou a se dispersar por entre as moitas e casinhas onde ficam os assentamentos das
entidades homenageadas.
7
Em 1988, pouco antes de inaugurar este Centro, tive oportunidade de conhecê-la. Shirley decidiu abrir o novo Centro por
orientação de suas entidades espirituais. Costumava promover sessões no seu apartamento, situado numa Superquadra funcional
de suboficiais da Aeronáutica. Seu marido trabalha nesta Força. Haviam passado uma temporada de dois anos em Taubaté, no
Vale do Paraíba. O marido havia conseguido uma transferência, atendendo às suas necessidades em cumprir obrigações rituais
junto ao litoral.
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obras, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, psicografada por Chico Xavier e
Mistérios e Magias do Tibet, de autoria de uma jornalista brasileira, que escreve sob o
pseudônimo de Chiang Sing.
Segundo tais obras, ocorrerá no 3º milênio, a transferência do poder espiritual do
Tibet para a América do Sul, incluindo Brasília, de onde deverá sair uma grande revelação para
o mundo. Brasília foi projetada no Espaço Cósmico para abrigar todas as religiões, que vão
caminhar para um mesmo eixo, um dia.
Embora seja grande o número de Centros Espíritas, Casas de Santo e as mais
diversas associações religiosas presentes em Brasília, atraídas por essas revelações, na
prática, existem no entanto, uma série extensa de desavenças entre elas. Todos são sectários,
inclusive os espíritas, pregadores do ecumenismo. A exceção fica por conta da Umbanda, que
não discrimina nem menospreza ninguém.
Vivenciado no cotidiano religioso do Centro, o Mito revela-se em outra dimensão. O
Centro é muito influenciado pela referência kardecista, mantendo inclusive uma pequena
livraria especializada em Literatura Espírita, onde essas obras podem ser adquiridas. A creche,
por outro lado, tem por objetivo preparar uma nova geração dentro desses valores espirituais.
Para o Dr. Édson 8 uma nova mentalidade religiosa só poderá surgir quando uma geração
criada em Brasília, sob esses valores, amadurecer e educar novas gerações nascidas na nova
capital sob os mesmos princípios.
8
Foi possível registrar a morte do Dr. Édson Silva em 1995. A festa anual do Centro, em 15 de agôsto, fora feita, desta vez, em
sua homenagem. A notícia foi transmitida por José Marinho dos Santos, pesquisador ligado aquela Casa. Ele afirmou que muita
coisa dentro do Centro poderia mudar após a morte do Ogã.
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“O ato de botar uniforme é uma coisa muito séria. Você olhe bem o que
está vestindo. Oxalá é Deus, Cristo. É o emblema de Cristo no coração.
Não tenham trabalho fora, não vão para encruzilhada, não vão para as
matas fazer trabalho. Tem médium que recebe o guia e no dia seguinte
está fazendo trabalho fora. Quem faz coisa errada o castigo vem. Quem
quiser partir para coisa errada o problema é de vocês. Eu coloco vocês
na corrente Superior. Se vocês estiverem fazendo coisa errada eu
saberei.
As pessoas não gostam de ajudar. Ajudar não é dar dinheiro. É ajudar
... lavar o Congá, limpar o terreiro. É preciso ajudar. Fazer o mutirão.
Tenham consciência. Se eu procurar na corrente, cinco filhos que eu
possa contar fielmente eu não completo a conta. Por favor, não façam
críticas aos colegas. Olhem dentro de vocês. Tem que olhar para
dentro, todos tem defeito, ninguém é perfeito. Todos se conscientizem
para evitar erros. A Casa é séria, o trabalho é sério e séria é a
oportunidade de vocês trabalharem aqui. Aqui não é Casa de correção,
Vocês estão aqui para aperfeiçoarem a conduta espiritual de vocês.
Vou fazer seleção até o final do ano, aqueles que não tem vida correta
aqui dentro e lá fora, ou que são relapsos, eu vou ter que indicar a
porta da rua. Tomem seus lugares!
“Papai do céu abençoou vocês,
Ora iê iê oxum, Ora iê iê mamãe oxum”
membros do Tenda de Oxalá, já foram iniciados lá, nos vinte anos de existência do centro,
cerca de 1000 médiuns. A maioria só se reúne na festa anual que o Centro realiza para o orixá
Ogum, seu patrono.
O primeiro grande rito de Umbanda que assisti, foi promovido pelo Centro Espirita
Tenda de Oxalá, para homenagear todas as suas entidades, no final do ano de 1987,
justamente quando as atividades anuais do Centro se encerravam. Este rito anual tinha uma
evidente dimensão cosmológica, apresentando o universo de todas as entidades espirituais
com os quais os médiuns tem contato em suas cerimônias de uma vez só, num local onde os
elementos mais significativos da natureza para o culto, estavam reunidos, a floresta, as águas,
as pedras, o céu. 10
O ritual aconteceu numa floresta, em terreno de propriedade da Marinha, às
margens do Ribeirão Saia Velha, logo acima da pequena represa do Saia Velha, um balneário.
Este local está situado próximo a saída sul de Brasília. Era o segundo ano que o rito acontecia
ali.
Os participantes se encontraram no Centro, havendo um ônibus à disposição dos
que não dispunham de condução própria ou carona. Chegamos ao local por volta das quatro
da tarde. Havia um Ogã com seus atabaques no local, trazido de outro Centro. Todo o corpo
mediúnico do Centro estava presente devidamente uniformizado. Demoraram bastante tempo
preparando o local para os ritos de incorporação, acendendo velas no riacho e arrumando os
diversos objetos usados durante as manifestações de possessão, tais como taças, charutos,
flores e bebidas.
As manifestações de possessão começaram com os médiuns incorporando as
orixás femininas das águas, como Yemanjá, Oxum e Nanã, passando depois para os orixás
masculinos, como Oxalá e Xangô. O último foi Ogum, o orixá patrono do Centro.
Quando os médiuns começavam a incorporar essa entidade surgiu um caminhão
da Marinha, para averiguar o desenrolar do evento. Foram recebidos por membros do culto que
não estavam incorporados. Assistiram um pouco e quando saíram já começava a incorporação
dos guias de umbanda. Os primeiros a se manifestarem foram justamente os marujos, espíritos
de marinheiros. Bebiam muita cachaça, conversavam muito entre si e davam consultas. Em
seguida manifestaram-se entidades afins, os boiadeiros e os ciganos. Nenhuma dessas
entidades se manifesta nos ritos semanais do Tenda de Oxalá.
Após essa fase, bastante conturbada pelo caráter jocoso daquelas entidades, o
ritual adquiriu outro tom, com a incorporação dos Erês. Os médiuns se transfiguraram
completamente, brincando, dando piruetas e chupando balas. Os Erês não deram consultas.
Com o cair da tarde quase houve uma interrupção nas incorporações pois era
chegada a hora da manifestação dos Exus. Como ameaçou chover e os Exus não se
manifestam sob a chuva, a cerimônia ficou temporariamente suspensa. Passada a ameaça da
chuva os Exus começaram a dar consultas, enquanto a tarde ia se findando. Foram as
entidades que mais se demoraram no atendimento dos adeptos. Muitos presentes, que foram
para lá em condução própria se retiraram em seguida, enquanto a noite já se anunciava por
entre as sombras da floresta.
O ritual finalizou com a incorporação dos Preto-Velhos que também não deram
consultas. Limitavam-se a beber vinho e a fumar seus cachinhos, ao som dos atabaques que
acompanhavam toda as transformações das entidades espirituais que se manifestavam. Os
Preto-Velhos deram passes e fizeram defumações nos adeptos que ainda estavam no local,
encerrando o ritual. Ao anoitecer, o ritmo dos atabaques, o cheiro e a fumaça dos defumadores
deram um clima todo especial àquela pequena floresta. A saída dos membros do Centro já se
deu acompanhada de uma forte chuva.
No final de 1993 um novo episódio trouxe o Centro Espírita Tenda de Oxalá à tona
e mostrou a importância do culto praticado por essa Casa de Santo. Em 08.12.93 ISTO É
10
A paisagem natural do DF, situada na região de nascentes do Planalto Central apresenta diversos locais como esse, onde tais
dimensões da natureza encontram-se muito próximas uma das outras. O local do ribeirão Saia Velha atualmente faz parte da
Reserva da Biosfera da UNESCO.
- 57 -
mantinha. Já no Centro João Baiano como o vínculo entre o guia espiritual e o líder do culto se
rompeu a continuidade do rito praticado também acabou sendo perdida. A “tradição” do Centro
é negociada dentro da esfera propriamente simbólica pelas suas lideranças, o que confere a
essa modalidade religiosa esse modelo peculiar de autoridade.
Como os diversos espíritos umbandistas variam conforme o rito particular que os
Centros desenvolvem no seu calendário, mas o médium é capacitado tanto para receber
alguns guias espirituais bastante individualizados, que serão associados a sua pessoa, ele
pode, em ocasiões específicas, receber espíritos diferentes ou novos, mantendo,
simbolicamente, uma possibilidade de alteração qualquer.
Ortiz (1982) demonstra que nestes cultos, o fenômeno da possessão impõe que a
autoridade fundamental seja aquela das divindades. Como os espíritos também são
individualidades, a autoridade, na prática, pertence ao Líder do Centro ou a alguns médiuns,
enquanto intermediários entre o sagrado e o profano.
Essa autoridade jamais pode se descolar do poder simbólico advindo da
capacidade de expressar a força dos espíritos. Embora existam diversas tentativas por parte de
algumas lideranças umbandistas em codificar essas manifestações, tornando-as inteligíveis a
partir de um saber objetivo, uma tradição padronizada, esse saber é sempre muito limitado e
conjectural.
No caso dos cultos umbandistas, os guias espirituais falam, através do médiuns,
diretamente com os pacientes e clientes, articulando um saber sobrenatural prático que estará
sempre estruturalmente contraposto às tentativas codificadoras dos lideres mais
intelectualizados.
Neste sentido, o fato das codificações umbandistas serem feitas sempre com
saberes emprestados é revelador. Os umbandistas interpretam os fenômenos de possessão
que praticam a partir da codificação kardecista, da mitologia dos orixás africanos, e dos textos
sagrados das grandes religiões, como a Bíblia e textos budistas e hindus.
Um médium de umbanda, todavia, é reconhecido como tal pela capacidade dos
seus guias espirituais em curar e até em castigar, graças ao seu poder sobrenatural, e não à
sapiência que possua enquanto conhecedor de assuntos religiosos.
- 59 -
9
O Projeto de pesquisa intitulava-se Umbanda na Ceilândia, tendo sido financiado pelo Decanato de Extensão da Universidade
de Brasília no segundo semestre de 1987, sob a orientação do Profº Luís Tarley de Aragão.
- 60 -
Segundo informações do próprio Médium Jesus, sua intensa vida religiosa tinha
uma explicação em termos míticos. O orixá que preside a sua cabeça, Ogum Xoroquê, é
conhecido como o senhor da Magia, e é muito temido pelo seu poder. Ele ocupa uma posição
simultaneamente intermediária e central no mundo os orixás.
Enquanto Ogum, ele é responsável pela ordem, principalmente junto aos Exus,
notórios desordeiros que obedecem a autoridade de Ogum. Enquanto o senhor da magia,
porém, é mais poderoso que todos os outros Exus e manifesta este seu poder ora como uma
Pomba-Gira, um Exu mulher, no caso dele Maria Padilha, a mais poderosa feiticeira, ora como
um caboclo, entidade masculina, símbolo da ordem, que só mexe com magia para desmanchar
o trabalho pesado das entidades de esquerda. Tal entidade, é determinada miticamente, como
tendo o poder, literalmente, de fazer e desfazer, no campo mágico.
Além disso, tal entidade também situa-se numa posição intermediária entre o Culto
aos orixás africanos e ao culto dos guias de umbanda. O primeiro culto, como mostram Bastide
(1985) e Carneiro (1977) está voltado para estas entidades, orixás, que são qualidades
elementares na natureza, como as águas, as matas, o céu, ou atividades produtivas
personificadas, como a metalurgia, a caça, a medicina. A cada orixá corresponde um conjunto
de qualidades específicas, envolvendo tanto distinções de ordem natural, econômica e etária.
Xoroquê, por exemplo, é uma qualidade de Ogum, mais próxima dos Exus, também sendo
conhecido como o Ogum dos Exus. Existem Oguns da mata, Oguns da praia, e Oguns dos
caminhos, entre outros.
No culto umbandista, por sua vez, os diversos Guias, os espíritos que os médiuns
incorporam, são agrupados por diversas categorias que se entrecruzam. Existem as categorias
diretamente rituais, como os Caboclos, os Preto-Velhos, os Erês, a cada um correspondendo
uma Gira própria. Outras categorias, como mostram Camargo (1961) e Ortiz (1991) são os
orixás, que na Umbanda também aparecem como categorias coletivas, mas que ao invés de
enfeixarem as qualidades dos Santos, como nos cultos de origem africana, enfeixam os Guias
espirituais. Existem, caboclos de Oxóssi, de Ogum etc, assim como exus e pombas-giras
asssociados a cada Orixá.
Como Ogum Xoroquê aparece na Umbanda como um orixá que se desdobra em
dois tipos de guias tão fundamentais, a Pomba-Gira e o Caboclo, ele ocupa, estruturalmente,
uma posição que intersecciona os dois sistemas religiosos. Dessas características derivava sua
trajetória. Começou a incorporar o seu Erê e a sua Pomba-Gira ainda em João Pessoa, quando
era adolescente. Tais manifestações aconteciam espontaneamente.
Em Brasília, iniciou o seu desenvolvimento mediúnico no Centro Espírita Tenda de
Oxalá, onde conheceu os seus guias com suas características. Devido as ligações do seu
Ogum Xoroquê com os orixás é que ele sentia-se melhor no culto da Umbanda Traçada, mais
próximo as tradições africanas. Quanto a possibilidade de se iniciar no Culto aos Orixás,
submetendo-se ao rito formal, por duas vezes tentou fazê-lo mas desistiu.
Na primeira, num Terreiro em Luziânia, seu Caboclo incorporou para dizer que
“ninguém deveria por a mão na cabeça do filho dele”, o que significaria que ele não
deveria ser iniciado. Da segunda vez que se preparou aconteceram-lhe estranhos incidentes.
Se envolveu em brigas de bar e sofreu um acidente de carro muito sério, gastando com
hospital e com mecânicos todo o dinheiro que juntara para a iniciação. Atribuiu o infortúnio a
advertência do Caboclo e desistiu definitivamente.
Segundo nosso amigo comum, a proibição do caboclo a sua feitura no culto dos
orixás deve-se ao fato de que a ascendência do Pai de santo sobre seus filhos ser muito
grande. No seu caso, devido a força do Orixá, o Pai de santo que o iniciasse teria muito poder
sobre ele. Ogum Xoroquê para ser assentado na cabeça do filho de santo necessita de
oferendas rituais realizadas para todos os orixás, uma vez que ele tem influência sobre todos.
Tudo isso faria com que a sua iniciação se tornasse muito cara e arriscada.
Foi o acidente automobilístico que o fez largar a Umbanda e passar a frequentar a
Comunhão Espírita, onde chegou a fazer um exorcismo de suas entidades de Umbanda.
Estava decepcionado com a experiência no Centro Espírita da Ceilândia. Saiu de lá dizendo
coisas tais como:
- 63 -
“Todos os guias trabalham com exu e por isso qualquer um pode lhe
manipular através das entidades. Há muita exploração. Exu atende a quem o
pagar mais”.
Essa fase de descrédito não durou muito. Voltou para a Umbanda, mas num novo
Centro, afirmando que:
“ A Umbanda não me larga e eu não largo a Umbanda”.
Parece ter incorporado alguma coisa da ética kardecista. O novo Centro, é de
Umbanda Traçada, mas dedicado aos ritos de cura espiritual, mantendo inclusive um grupo de
auxílio espiritual às vítimas da AIDS, do qual ele faz parte.
Ao longo do nosso convívio fui constatando que entre ele e nosso amigo comum
havia uma tensão muito grande. O médium Jesus questionava a legitimidade da pesquisa
antropológica frente aos cultos, afirmando que se uma boa parte do fenômeno de possessão é
inconsciente até para ele, como poderíamos realmente entendê-lo?
Nosso amigo, estudante, questionava a eficácia da fenômeno da incorporação
mediúnica e a seriedade das manifestações dos guias . Ele contou-me uma versão diferente
para trajetória religiosa do Médium Jesus.
Nesta outra versão, a mãe do médium Jesus também freqüentava a Umbanda e
recebia um Erê. Em seus contatos o mundo religioso e o mundo político freqüentemente
estavam confundidos num só ambiente, freqüentado por mulheres ligadas à política por laços
de parentesco- esposas, mães, filhas - ou por laços profissionais - secretárias ou mesmo
algumas parlamentares - que tinham uma vida religiosa em comum no Tenda de Oxalá, Centro
muito freqüentado por políticos da Área Federal. 11
Além disso, o Médium Jesus teria freqüentado por uns dois anos, quando
adolescente, um Centro de Quimbanda onde só trabalhavam com Exu e onde ele aprendera
toda a sorte de feitiçarias que praticava.
No Centro Espírita Tenda de Oxalá, o médium Jesus era muito requisitado devido a
força de seus guias. O seu Exu, por exemplo, João Caveira, era o mesmo do Centro e da sua
presidente, D. Irani. Por isso ele podia auxiliá-la nos ritos ligados a essa entidade. D. Irani
também trabalhava com ele em sacrifícios secretos ao Orixá Ogum, o patrono do Centro,
quando eram sacrificados cachorros, animal atribuído a este Orixá. Esse tipo de rito é
característico do culto aos orixás africanos.
Um outro conhecido do Médium Jesus, revelou outros detalhes a respeito de tão
controvertida pessoa. Na Ceilândia, ele teria se dedicado a incríveis trabalhos de magia negra,
como um no qual um feto humano, adquirido junto a uma clínica clandestina de abortos, fora
costurado na barriga de uma cabrita e deixado numa encruzilhada. O trabalho fora
encomendado por “gente de dinheiro”. O médium Jesus teria se envolvido em muita “barra
pesada” na Ceilândia, principalmente no clima de intrigas e fofocas que existia entre os
membros do Centro. Por isso sua crise com a Umbanda.
Acompanhei o Médium Jesus com certa frequencia até o final de 1992 participando
ainda de mais um breve rito em sua companhia.
Uma funcionária de uma Autarquia governamental, mulher de seus 40 anos, pedira
a ele que ajudasse numa oferenda a sua Pomba-Gira. Ele a apanhou de carro no Setor
Bancário Norte, próximo ao meio dia, e de lá nos dirigimos até um balão 12 próximo à Vila
Planalto, onde foram depositadas 7 rosas vermelhas e uma garrafa de cidra. A funcionária
afirmou ao entregar-nos as oferendas: “Tenho que fazer alguma coisa por ela para que
ela possa fazer por mim”.
As características da vida religiosa do Médium Jesus podem ser tomadas como
ilustrativas da maneira como os cultos espíritas afrobrasileiros são vivenciados no centro
político do País, já que não se revelaram exclusivas a este médium.
11
Não exclusivamente, todavia. A clientela do Tenda de Oxalá era visivelmente heterôgenea com relação às suas origens sociais.
12
Os balões projetados por Lúcio Costa para substituir os cruzamentos em Brasília são muito procurados para
“despachos”, já que estão bem no meio de encruzilhadas. Visto por este ângulo, o Plano Pilôto de Brasília evoca
uma gigantesca encruzilhada formada pelos dois Eixos que se cruzam na Estação rodoviária.
- 64 -
na cidade satélite do Guará. É um Centro de Umbanda Oriental, linha ritual do qual seus guias
fazem parte.
O Médium Jorge ilustra muito bem como as relações de um médium e o Centro em
que trabalha terminam por ser extremamente elaboradas e delicadas. Na condição de canal
privilegiado entre a força simbólica das entidades espirituais e os clientes que as procuram,
eles são os verdadeiros responsáveis pela realização dos ritos, mas o fato de terem que
freqüentar um Centro que não lhes pertence os obriga a obedecer o estilo da Casa e a
autoridade do Líder:
“Fui para Palmelo porque estava perturbado por algumas entidades
brabas. Cheguei lá e pude controlar . Trabalhei na linha do transporte.
Incorporação e transporte. Tiro o espírito do paciente... boto em mim, e
encaminho, transporto. Isso é transporte. Mas não fico me batendo, me
jogando. Quando não há um controle, o médium fica se batendo e
acaba todo arranhado e esfolado. O médium às vezes fica perturbado.
Precisamos procurar um Pai de Santo que tem um trabalho mais firme”.
“Não se pode trabalhar em duas ou três linhas. Dá cruzamento de linha,
Só tenho permissão para trabalhar na linha oriental, se não, tenho que
pedir permissão, se quiser trabalhar em outra. As entidades que recebo
são da minha Coroa, a aura espiritual. Onde eu for, eu recebo elas.
Todo terreiro que eu boto o pé quer que eu trabalhe ali. O que atrapalha
a pessoa é esse cruzamento de linhas, pois cada lugar trabalha de uma
forma. Tem um ritual. Eu trabalho nessa. Vou a outro de fora e continuo
com o pé aqui. Desanda.”
Esses limites vão até o ponto onde o médium pode pretender tornar-se um Pai de Santo
autônomo, com o seu próprio estilo de culto predominando:
“Me considero preparado. Mas não sei de tudo não. Já aprendi muita
coisa. Com 30 anos de espiritismo posso me considerar Pai de Santo.
Todo Pai de Santo tem seu Congá. Eu tinha ponto de Exu em minha
casa. Mas puxa muita energia. Se a gente bebe, ele vem beber. Estão
todos no Terreiro. Agora, só tenho as entidades de luz em casa.
Não relaxo o Santo nem a firmeza. Mas o material está caro. Só de vela
é uma fortuna! imagine o resto. E se eu der alguma coisa para um guia
tenho que dar para todos. Se eu for embora daqui tenho que levar meus
Santos. É como se fosse um casamento com os guias. Se eu monto o
meu Congá, quando for inaugurar, eu tenho que pedir permissão”.
Esses limites também chegam ao ponto das relações com as entidades espirituais, no plano
mítico:
“A linha oriental de umbanda é a das entidades que governam os meus
guias. São sábios do Oriente. Orientam os espíritos inferiores na
hierarquia espiritual. Sempre tem um mentor do Oriente
supervisionando o trabalho. É diferente da linha africana, o candomblé.
A umbanda mistura o candomblé com o catolicismo. Têm a Umbanda
mais a Quimbanda. Não acho que a Quimbanda seja a banda do mal. A
quimbanda é o trabalho pesado. Na Umbanda, Caboclo e Preto-Velho
não são dados a magia negra. Caboclo cura, mas pode lhe dar um
castigo se você merecer. As entidades de esquerda são os Exus. São
muito boas quando usadas para fazer o bem. São de muita força. Não
aconselho a usar para fazer o mal porque tem o retorno. O mal só
atrasa a gente. No bem você evolui, cresce.
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Uma vez uma pessoa me magoou muito e eu “ripei” com ela. Só que o
espírito que fez não ajudou a desmanchar depois. Foi preciso uma
entidade de luz vir me ajudar. Nunca matei ninguém. Só dei castigo
para gente que merecia. Quem é mal para os outros eu faço castigo.
Não separo casal, para tirar um homem e botar na mão de outra mulher.
Se fizer, desanda! Cai a vítima, o autor, o mandante, o executor e até a
entidade. Terminam todos punidos!”.
Como a posição dos médiuns diante dos Centros de Umbanda é estruturalmente ambígua, eles
tanto contribuem para o prestígio do Centro onde atuam como recebem parte do prestígio que
a Casa possui. Tal posição só pode implicar numa tensão estrutural que precisa ser muito bem
administrada. As relações do Médium Jesus com os Centros que freqüentou também
mostraram tais ambigüidades.
Nesse sentido, sua modalidade de culto posta em prática, acaba sendo a mediação
possível entre sua síntese particular, diante de todo o universo simbólico a sua disposição, com
a estrutura simbólica ritualmente atualizada no Centro em que atua.
Há uma consciência, expressa em termos simbólicos nas considerações do
médium, da subordinação evidente enquanto médium, diante da estrutura organizativa própria
aos Centros de Umbanda. Tal tensão entre o médium e o Centro, se resolve na própria
mediunidade, a capacidade de intermediar a ação simbólica dos guias espirituais, nos
momentos rituais.
A esta individualidade singular, advinda do “desenvolvimento” da capacidade de
encarnar e representar a ação simbólica dos guias espirituais, a Umbanda corresponderia
como uma totalidade caleidoscópica, fundamentada não numa pluralidade de sub-tradições,
mas numa segmentação de possibilidades descontínuas de arranjos simbólicos, próximos entre
si. Enquanto manifestação religiosa tal fenômeno social deve ser visto muito mais como um
amplo complexo cultural, permanentemente reinterpretando imagens, signos e valores culturais
através das mediações rituais propiciadas pelo “trabalho”de seus “guias”.
Nos termos utilizados por Levi-Strauss (1975), é possível situar tais entidades
enquanto representações personificadas dos diversos poderes simbólicos que os médiuns
utilizam em suas práticas rituais, como curar e desmanchar o mal. As pessoas situadas em
posições privilegiadas da estrutura social vigente relacionam-se com esse poder na condição
de clientes. A opinião pública é a responsável pelas relações de oferta e procura desse tipos de
serviços religiosos, onde demandas propriamente políticas acabam sendo levadas para o plano
religioso.
Embora toda a ideologia umbandista gire em torno da prática da caridade cristã,
orientando a diversidade e a autonomia de tais práticas rituais, como já frisara Ortiz (1991), o
Médium Jorge permite situar com clareza como tanto esses ritos, como a ideologia que os
acompanha, atuam sobre tensões sociais. Essa atmosfera de tensão social, todavia, não se
restringe à esfera dos rituais. É possível afirmar o contrário, paradoxalmente, que são as
tensões sociais que “carregam” a esfera ritual institucionalizada destes cultos. Um último
exemplo dos trabalhos espirituais deste médium ilustra esta mediação:
Segundo ela, foi o ambiente social que ela encontrou em Brasília que lhe permitiu
transformar sua formação tão variada num todo coerente e eficaz, graças ao seu cuidado de
não misturar os ritos de tradições diferentes numa só sessão. Sua explicação, para esse
ambiente, por sua vez, é feita em torno da mística de Brasília:
“Brasília tem um clima especial que ajuda os buscadores da luz. A
força dos guias e dos orixás é maior aqui. Eu gostava de trabalhar na Ermida de
Dom Bosco, é um lugar muito energético. O trânsito entre as pessoas que vão e
voltam também contribui muito.”
Ao contrário de outros informantes, D. Violeta não atribuiu a eficácia de sua força
espiritual às suas entidades, sejam guias ou orixás, em primeiro lugar, ou a uma outra
predeterminação pessoal. É a força espiritual da nova capital, sua mística, que responde pela
sua força e seu sucesso.
Na década de 50, ainda no Rio, usava seus poderes mediúnicos para ajudar a
polícia na identificação de criminosos. Seus guias apontavam os culpados entre os suspeitos.
Tal atividade trouxe-lhe tanto notoriedade quanto inimizades. Começou a tornar-se uma pessoa
“marcada”.
Foram os seus guias também que lhe mandaram vir para Brasília, segundo eles,
terra da espiritualidade, da luz e da verdade, que irá sobreviver ao fim do mundo.
Foi o seu Caboclo, o Caboclo Urucuçu da Cobra Coral, quem escolheu o local
onde está instalado o centro. Incorporada pela entidade espiritual, D. Marlene saiu de carro,
juntamente com o marido e a mãe. Tomaram o rumo da estrada que contorna o Lago Paranoá.
Era tudo de terra, na época, maio de 1961. O Caboclo mandou parar em determinado lugar.
Saltaram e foram andando a pé. Andaram 9km até que eles encontraram um local, em meio à
mata fechada, junto a uma pequena cachoeira. O Caboclo disse:
“É aqui que eu quero a minha Terra”!
Esta estória da transferência e da fundação do centro em Brasília, de caráter
lendário, está inserida dentro de todo um processo de negociação do espaço religioso junto às
autoridades públicas, bastante elaborado.
Não haviam terrenos disponíveis para comprar junto à Prefeitura, que se adaptasse
as necessidades rituais exigidas. D.Marlene chegou a arranjar uma carta com um advogado
solicitando um lote para fins religiosos. O funcionário governamental responsável pela
recepção desse tipo de solicitação era crente e vetou o pedido. Por isso, sob a inspiração do
Guia, partiram para a invasão.
No local foi erguido, inicialmente, um barracão de madeira e construída uma
passarela levando até a cachoeira, no barranco do riacho. O Centro foi inaugurado no dia 08
de dezembro de 1961, dia de Nossa Senhora da Conceição. Dois anos depois a NOVACAP foi
tomar a terra. Contudo, o terreno possuía a medida certa do módulo rural válido para aquela
região de tal maneira que eles não puderam tomar. Posteriormente, a TERRACAP também
tentou tomar o lote, mas D. Marlene entrou na Justiça e ganhou a posse em regime de
comodato, que é o único registro que ela tem até hoje.
Durante esse primeiro período da luta pela terra D. Marlene montou a primeira
escola primária da região para alunos da Vila do Paranoá, ainda em 1961. A escola funcionou
até o final de 1963, graças ao apoio da Prefeitura. 13
A primeira cerimônia de ano novo dedicada a Yemanjá foi realizada por D.Marlene,
em 1962, no Lago Paranoá. Teve o apoio do Corpo de Bombeiros e da Compahia de
Transportes Coletivos de Brasília - TCB - para realizá-la. A TCB forneceu ônibus para o Centro
regulamente, durante 5 anos. Antes, os membros tinham que ir a pé, do final da Asa Norte até
lá, vencendo o trajeto de 10km. Depois o cento adquiriu um ônibus de segunda mão para fazer
esse transporte. O ônibus saia da Rodoviária do Plano Pilôto.
A primeira Federação de Cultos afro-brasileiros foi fundada por ela. Em 1963,
inauguraram, no dia 15 de novembro, a filial da Confederação Espírita Nacional dos Cultos
Afros, no comércio da Superquadra 109 Sul. A Federação inaugurou oficialmente a Praia de
Yemanjá, no Lago Norte, em 1970. Em 1971, promoveram uma procissão em homenagem a
São Jorge, no dia a ele consagrado, 23 de abril. Saiam da Praça 21 de Abril, localizada na
EQS 708/709, até o Hotel das Nações, no início da Avenida W-3 Sul.
Em 1972, a Federação mudou-se para a 504 Sul. No ano seguinte, D. Marlene
deixou a direção da Federação. Até esta data costumava participar de concursos de folclore
promovidos pela Universidade de Brasília, onde apresentava aspectos dos rituais umbandistas.
Em 1973, D. Marlene retornou ao Rio de Janeiro, para fazer sua iniciação ao culto
dos orixás. Ela não gostava dos cultos de nação, porque os identificava com a prática da magia
negra. Por influência de sua mãe, que já havia se iniciado, terminou por se iniciar também. Foi
iniciada na Nação Angola, pelo Pai de Santo Anísio Nazário, em 08.06.73, para a Santa Cinda
da cobra coral, associada à orixá Yansã.
13
Em 1964 foi inaugurada a primeira escola da Vila do Paranoá. Por isso D.Marlene fechopu a escola do Centro e devolveu o
equipamento escolar à prefeitura.
- 71 -
Seu Pai de Santo, já falecido, também era ligado a Joãozinho da Goméia, que D.
Marlene também chegou a conhecer. Em Brasília D. Marlene freqüenta, por razões rituais, o
Pai de Santo Rui de Oxalá, que ela considera o melhor Pai de Santo do Candomblé de Angola
do Distrito Federal. Seu Terreiro está localizado na Ceilândia.
O ambiente social do seu centro é selecionado. Na sua clientela estão médicos,
advogados e altos funcionários públicos. Os novos adeptos devem ser recomendados pelos
antigos. Os tempos em que os adeptos iam a pé para o Centro ficaram para trás. Para os
novos membros providencia trabalhos espirituais visando a harmonia familiar, em primeiro
lugar, e o sucesso material em segundo. Nesse sentido, D.Marlene chegou a afirmar:
“Como alguém pode vir aqui sem carro? Eu logo abro os caminhos da
pessoa para que ela possa comprar um.!”
D. Marlene aproveita uma parte dos ritos de nação que aprendeu para enriquecer e
complementar sua Umbanda, resultando num conjunto original que ela mesmo denomina,
informalmente, de “Umbandomblé”. Tal tipo de arranjo, todavia, vem sendo praticado por
diversos líderes umbandistas, não só em Brasília. 13
As reservas de D.Marlene com relação às práticas rituais do Culto aos orixás se
aplicam também aos seus adeptos. Acredita que há muita gente praticando maldades nesses
cultos e muita gente “escrachada”. Embora respeite muito seu atual Pai de Santo, Rui de
Oxalá, considera desagradável a companhia dos homens e das mulheres muito “à vontade”
que o cercam. Evita que eles apareçam no seu Centro.
13
Vide Prandi(1993) que tratou deste tema em particular, a respeito da candomblelização da Umbanda em São
Paulo.
14
GEB: Guarda Especial de Brasília. Era a polícia da NOVACAP, na época da construção de Brasília, durante o governo JK.
Ficou famosa pela sua truculência. Ver Ribeiro(1980).
- 72 -
lhe um Centro montado em suas terras. O Santo porém não consentiu. Só podia sair para uma
Casa de sua propriedade. Foi exigência do Exu João Caveira:
“Ele é um santo grande e bom. Ele traz uma provação. Andou pelas
favelas, curando gente, ajudando os bons e os maus. Esta é a minha provação.”
Montou a sua Casa de Santo graças a um bilhete de loteria. Teve o seguinte sonho:
“Via minha mãe na fazenda e eu trazia duas crianças comigo. Vinha
uma onça na nossa direção. As crianças disseram: - Tem uma
cachoeira ali, a onça não vai lá. A gente pulou na cachoeira. Depois
apareceram os índios. Atiraram uma flecha. Um deles exclamou: - Você
veio pegar o meu ouro! Vinha um velho passando que disse: - Tire a
mão da minha filha! Ela não rouba, ela é rica!”
Seu Pai de Santo lhe disse que sonhando com onça era para jogar no cachorro, e
que naquela semana ela compraria a sua casa. Ela comprou um bilhete de loteria inteiro.
Ganhou o 1º prêmio. Saiu até na rádio de Anapólis. “Maria do Oxóssi está milionária”.
Surgiram conflitos com o seu pai carnal. Ele deu parte no Juiz, acusando-a de ter fugido de
casa para ir morar em casa de benzeção. O dinheiro teve que ser depositado em juízo. O pai
de Santo tornou-se seu tutor legal, até que fizesse 18 anos. Ela pode comprar casa em
Anapólis, onde instalou seu centro. Levou para lá o seu pai de santo, a esposa e a filha carnal
dele. Já era bastante conhecida dos fazendeiros da região. Ganhava muita coisa de presente.
Quanto se tornou maior de idade resolveu conhecer o Brasil. Viajou depois para o exterior,
chegando até a África. Quando retornou foi morar no Rio de Janeiro , de onde veio para
Brasília.
Toda esta trajetória, heróica e mítica, fazem parte do passado de D.Maria do
Oxóssi. Suas preocupações atuais, bastante pertinentes, expressam muito dos problemas que
os cultos de possessão enfrentam, problemas que são causados pela própria expansão que
esses cultos conheceram nas últimas décadas:
“Hoje no Gama, o desemprego é grande. O que vai ser destes
meninos? Tem que ter emprego. Aqui não tem onde fazer um curso. O Gama não
era para ter tanta gente como tem. Hoje todo mundo tem o seu lote. A juventude
anda muito deprimida. Procuram o Centro Espírita porque tem muita dança. Para
eles é diversão. Vou ficando aqui. Deixo uma geração preparada. Tenho até hoje
a minha casa em Anapólis. No fim da vida eu vou voltar para lá”.
“A atual Federação Espírita, de Taguatinga, não nos dá o devido apoio,
apesar do Governador 15 apoiar a Federação. Podiam ter um Cartório. Os
zeladores podem pegar muita doença. Nós corremos muitos riscos. Queremos
uma Federação com um ou dois médicos. Como usamos muito as ervas, uma
farmácia homeopática própria para a classe e horas de consultas médicas
gratuitas. Remédio de espírito precisa de médico. De advogado, de psicólogo, de
analista. Hoje a vida está difícil.”
D.Maria do Oxóssi ressaltou que enquanto os Centros de Umbanda são instituições
de caridade, os Terreiros de Nação são pequenas comunidades. Seu Terreiro é um bom
exemplo. Está instalado numa casa vizinha à sua residência ocupando todo um lote. Recebe
cliente o dia todo e a abriga uma pequena comunidade de pessoas que a ajudam e que ela
encaminha profissionalmente, a maioria jovens.
15
O Governador da época era Joaquim Roriz, em seu segundo mandato. Ele prometera um setor para Centros Espíritas em sua
campanha eleitoral. Político de Luziânia, tem boas relações com o Pai Paiva.
- 74 -
A Casa foi fundada por três sacerdotisas africanas, Iyá Detá, Iyá Talí e Iyá Nassô,
por volta de 1830, logo após a independência do Brasil, que na Bahia aconteceu em 1823.
Essas três sacerdotisas atravessaram o Atlântico na condição de mulheres livres, com o
objetivo de abrir a primeira Casa de Santo do Brasil dedicada ao Orixá Xangô. Iyá Nassô era
filha de uma africana que fora escrava na Bahia, mas tornando-se livre, retornara à Nigéria. Iyá
Nassô veio acompanhada por uma filha de santo, Marcelina, que após uma breve temporada
na Bahia, retornou à Nigéria, para continuar seu desenvolvimento no culto. Marcelina só
retornou ao Brasil para suceder Iyá Nassô a frente da direção da Casa Branca, quando de sua
morte.
As idas e vindas das sacerdotisas entre Lagos e Salvador eram favorecidas pelo
comércio próspero existente entre os dois portos, que continuou inclusive após a suspensão do
tráfico negreiro e a posterior libertação dos escravos. Tal comércio sempre trouxe da África
para o Brasil um série de objetos do culto e de seus rituais, como as conchas, as nozes de obi,
os panos e as ferramentas.
O fato de que as ferramentas de Xangô e de seu Exu tenham vindo diretamente do
Oyó, a capital do culto do Orixá Xangô, para o Terreiro de Nélson, e que ele mesmo se coloque
na posição de um “enviado de Xangô, se aproxima desta origem, mais histórica do que
propriamente mítica.
Nélson de Xangô não entrou em maiores considerações sobre suas relações com a
política partidária no Rio de Janeiro e em Brasília. Apenas afirmou que o poder religioso
acompanha o poder político, por isso as casas de santo do Rio de Janeiro estão vindo para
Brasília, como foi o seu caso.
Na passagem de 1992 para 1993 foi entrevistado pela imprensa local, fazendo
previsões que tocavam na vida política do País, através de seus búzios africanos.
Vale ressaltar que a proeminência destes dois Pais de Santo na Nação Alaketu,
dentro do DF, parece também discrepante com relação às Tradições baianas. Édson Carneiro
(1977) que pesquisou essas Nações na 2ª metade da década de 40, não encontrou Pais de
Santo no Alaketu, apenas Babalaôs e Ogãns. Haviam, todavia, muitos sacerdotes homens
dirigindo Casas de Santo nas Nações Jeje, Congo e Angola. Mais significativo ainda, um não
reconhece o outro como um Pai de Santo do mesmo nível. De qualquer forma, ambos se
legitimam através de relações míticas com a própria África, dentro do atual padrão de relações
religiosas entre o Brasil e a Nigéria.
Dentro desta Nação existem mais duas Mães de Santo no Distrito
Federal. Raílda de Oxum, filha de santo do Terreiro Axé Opô Afonjá, tem Casa aberta num sítio
localizado próximo a cidade do Valparaíso, no município de Luziânia. É uma Mãe de Santo
muito conhecida. Vive permanentemente no seu terreiro, o que dificulta o acesso até ela. Está
instalada nesse sítio há 20 anos, tendo sido uma das primeiras Mães de Santo a virem da
Bahia para o Planalto Central. Sua outra irmã de Santo chama-se Moema de Omulu e reside
em Taguatinga. Seu terreiro também está instalado em um sítio na zona rural.
dessa Nação há uma linha de Umbanda, conhecida como Umbanda Omolokô, que também
presta culto aos orixás e é muito difundida no sul do país.
O Sr. Marco tem observado que em Brasília, apesar de toda a idéia da união e
intercâmbio das diversas tradições religiosas, o Culto Omolokô não conseguiu se implantar de
forma expressiva, apesar de toda a sua origem sincrética. Em Brasília predomina o culto de
Nação Kêtu .
Tal consideração reforça a inferência de que nesse novo contexto social o sucesso
destas modalidades religiosas pode ser compreendido a partir das relações que seus líderes
estabelecem, mais do que à sua possível fidelidade às suas origens.
Através do Sr. Eurico, o Sr.Marco e sua espôsa, D.Iracy, que também é iniciada,
foram apresentados ao Culto desta Nação, junto ao Pai de Santo Gérson de Gelû, na casa de
santo Tenda dos Humildes, em Madureira.
As raízes desta Casa de Santo remontam a um século, tendo sido fundada pelo
Pai de Santo Obakaiodé, africano de origem Nagô, filho do Orixá Xangô, no Rio de Janeiro.
Ele foi sucedido por Maria Obataió, também africana e Nagô, que por sua vez iniciou três filhas
de Santo já brasileiras, Henriqueta, Lili e Roxinha. O Paí Gérson, também conhecido como
Fujeko de Xangô, era filho de santo de Mãe Roxinha. Ele iniciou as atuais Mães de Santo do
Omolokô no Rio de Janeiro, Mãe Palu, Mãe Jandira e Mãe Hilda, dirigente da Tenda do
Caboclo Ventania.
Brasília já teve duas casas abertas da Nação Omolokô. A de D.Rute, já falecida e a
de D. Regina, que se mudou do DF. O Sr. Eurico não tem casa de santo aberta. Em 1992 o Sr.
Marco e sua esposa possuíam um barracão, instalado numa chácara, onde reuniam um
pequeno grupo de adeptos dessa nação.
Sua casa de santo só foi inteiramente inaugurada, em 30 de setembro de 1995,
quando o Orixá Xangô foi festejado oficialmente pela primeira vez. A casa de santo chama-se
Casa de Omolokô Obanungá. As líderes do Rio de Janeiro, sucessoras do Pai Gérson, já
falecido, vieram para a cerimônia. O Sr.Marco Silva fez o Santo em dezembro de 1992, na
Tenda de Mãe Hilda. Embora os assentamentos do Orixá já estivessem na Chácara desde
1993, o Terreiro, com 500m2 de área construída, só ficou pronto no início de 1995.
O Sr. Marco é engenheiro da Eletronorte, com formação superior também em
matemática. A casa de artigos religiosos , por sua vez, está a cargo de sua esposa, D.Iraci. A
Flora Pai José pertencia a um outro casal, Marli e Trindade, que a venderam para o Sr. Marco
apenas em 1972, quando ela já tinha 10 anos de existência. Mudaram de lugar duas vezes,
tendo sido instalada no seu atual endereço, na CLS 103, desde 1982.
Seu nome sempre foi o mesmo, desde sua fundação em 1962 e evoca o Preto-
Velho Pai José, cuja imagem está colocada à entrada da loja. Esta imagem acompanha a loja
desde o tempo dos primeiros proprietários. Fazendo par com o preto-velho, está a imagem de
uma pomba gira Maria Padilha, de tamanho menor que a do Pai José. Ambas recebem
oferendas. São entidades de Umbanda. O preto-velho representa as Almas e a pomba-gira, os
exus.
São heranças do tempo em que a Umbanda predominava no DF. Segundo o Sr.
Marco, somente a partir dos anos 80 começou a consolidação das casas do culto aos orixás no
DF, devido ao fato de que um filho de Santo, nesse culto, só pode abrir sua própria casa após
sete anos de sua iniciação. Como os pais de santo da Bahia começaram a fazer seus filhos de
Santo, com mais freqüência, a partir da década de 70, no início dos anos 80 o DF estava como
o culto aos orixás em franca expansão, consolidando a influência bahiana nos cultos de
possessão afro-brasileiros de Brasília.
As casas de nação possuem gastos bastante diversificados e específicos,
estabelecendo um mercado de artigos religiosos sofisticado, diferentemente das casas de
Umbanda, cujo consumo ritual é bem mais simples, constituído principalmente por velas e
defumadores. A Flora Pai José , atualmente, dispõe de uma gama de artigos diversos, como
defumadores, incensos, banhos, cerâmicas de barro e louça, literatura religiosa e discos de
pontos-cantados, imagens de entidades e indumentárias de orixás, além de artigos importados
da África e ingredientes para comidas de santo, tais como feijões, farinhas, camarão seco e
azeite de dendê.
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PERTO DO PODER
“O banquete de exu será regado a uisque e champanha, pois como explica Pai
Edu, o santo deve ser tratado com muito cuidado, como um diplomata ou um
intelectual, temos que agradá-lo de todas as formas para que faça o bem. Para o
Banquete, Pai Edu convidou políticos de todos os partidos, autoridades e o povo em
geral. Ele espera receber cerca de cinco mil pessoas, porque o banquete será de
portas abertas. Depois do jantar, 500 filhas de santo, todas vestidas de vermelho,
dançarão a noite inteira ao som dos atabaques.”
3. Uma reportagem do Semanário VEJA de 13.01.93, lembrava que o Pai Paiva
teria profetizado, em 1988, que Leonel Brizola seria eleito Presidente da República em 1989, o
que não ocorreu. Porém, em finais de 1993, outro Pai de Santo , Raul de Xangô, em entrevista
a um jornal local, afirmava novamente, ser Leonel Brizola o candidato ideal para governar o
País, uma vez que ele poderia se legitimar inclusive frente aos setores mais marginais e mais
informais da sociedade, como os bandidos, os traficantes e os contraventores.
Ele não declarou estar baseado em prognósticos dos búzios africanos, como fizera Pai
Paiva em 1988, nem tampouco em nenhuma outra manifestação de possessão, como
mensagens espirituais, sonhos ou vidência. Evocava, todavia, referências simbólicas
diretamente relacionadas às figuras dos Orixás africanos, principalmente à relação de
subordinação que tais entidades tem com os seus exus, figuras que são representadas no culto
aos orixás como criados dos santos. Os exus são liminares, marginais, e perigosos mas
subordinados e controlados, principalmente pelo popular orixá ogum, que é miticamente, o
senhor dos exus.
Essa reflexão da política, em termos da linguagem ritual dos cultos de possessão não
apresenta um conteúdo aleatório. Tal afirmação estaria situada no pólo dos valores éticos do
culto diretamente projetadas à Política, mas sem passar pela legitimação que o poder simbólico
da possessão confere a esse tipo de elocubração. Não seria apenas campanha Brizolista em
linguagem religiosa porque expunha uma ética do culto, para a qual Leonel Brizola, enquanto o
herdeiro do trabalhismo de Vargas, se encaixava melhor, na opinião do Pai de Santo.
O Sr. Paiva e sua esposa, Inalda, são pernambucanos. Ambos são filhos de
santo do Terreiro da Água Fria, considerado a Casa de Santo mais tradicional do Recife. O
Sr. Paiva é Sargento da Marinha, já reformado. Veio para Brasília, inicialmente, por
transferência das Forças Armadas, não se demorando muito tempo. Retornou na década de
80, para se dedicar exclusivamente as atividades religiosas, após ter sido reformado. O casal
reside em Luziânia, histórica cidade goiana localizada a 50 km de Brasília, onde instalaram seu
Terreiro. A sede da Federação dirigida pelo Sr. Paiva está localizada em Taguatinga, na QNA
17, um dos setores mais valorizados daquela cidade.
Foi possível conversar com D.Inalda Paiva, na época em que seu espôso havia
concorrido às eleições para a Câmara dos Vereadores de Luziânia, onde existem muitos
terreiros e centros espíritas instalados nos sítios do município. Segundo ela, o “Santo” não quis
que ele fosse eleito. Quando conversei sobre este episódio com outro pai de santo, conhecido
do casal, ele sorriu e disse:
“O Santo não quis? Porque então o Santo não disse que não queria ele na
política antes da candidatura? Se ele tivesse ganhado a eleição, tinha sido o
santo que quis, como perdeu, foi o santo que não quis. Ora, o santo não
tinha nada a ver com isso!”
Segundo ainda o amigo do Sr. Paiva, o controvertido líder é também um
Babalôssanha, um especialista em ervas rituais e medicinais, especialidade muito prestigiada e
requisitada pelos adeptos dos cultos afro-brasileiros. Dentro de suas especialidades com as
ervas, ele é iniciado ao Culto da Jurema. A jurema é tanto uma planta com usos rituais, quanto
o culto de caboclo que a utiliza, disseminado no nordeste, principalmente em Pernambuco.
Segundo Carvalho (1988) há no Recife uma forte polarização entre o Xangô, o
cultos aos orixás que tem seu expoente máximo no Sítio da Água Fria e o culto da jurema, tido
como rito degradado. Embora muitos membros dos cultos de possessão em Pernambuco
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conheçam e pratiquem os dois preceitos, no Sítio da Água Fria a jurema é mal vista e seus
membros não se iniciam neste rito.
Como os valores a respeito das Tradições Religiosas e das Origens Regionais variam
entre os adeptos dos Cultos, foi possível inferir que as origens religiosas, as tradições
regionais, funcionam como elementos utilizados na construção de estratégias de consolidação
de carreiras de prestígio.
No caso da Jurema, este é um culto ambíguo, em suas regiões de origem. Numa
sociedade marcada pelo ecletismo religioso, como Brasília, o Pai Paiva soube explorar o seu
melhor lado, o uso ritual das ervas curativas, muito procurado e consagrado tanto pela
população de origem nordestina como pela atual referência naturista e ecológica, deixando de
lado o aspecto “pesado” do culto. O Sr. Paiva desenvolve uma produção comercial de ervas
medicinais e possui uma fábrica de chás, garrafadas e banhos de ervas no seu sítio em
Luziânia.
As relações do Pai Paiva com a vida pública do Distrito Federal, à frente de sua
Federação dos Cultos afrobrasileiros do DF, reforçam essa inferência, devido a maneira como
ele vem marcando presença na vida religiosa da capital federal, graças a sua ativa liderança
espiritual. José Aparecido de Oliveira, quando Ministro da Cultura, o frequentava publicamente
e sua ascenção na vida religiosa da capital federal foi fartamente veiculada pela imprensa.
“Além do Boi de Xangô e dos bichos para outros orixás, haverá um churrasco de
confraternização com o objetivo de pedir paz, fraternidade e fartura para o Brasil, na
tentativa de quebrar as barreiras que estão dificultando o desenvolvimento do País.”
processos rituais, que se fizeram legítimos, por sua vez, diante dos líderes máximos do Poder
político.
Simbolicamente, dentro da lógica destes ritos, foi como se a Mãe Yemanjá pudesse
purificar o seu filho Itamar e o Egun Lobojô, por sua vez , avalisar o Governo Sarney, através
do Pai Paiva, por ser, ela , Mãe e ele, um ancestral da nação brasileira.
Tal tipo de celebração, reafirma nossa tese de que a sociedade brasileira, em
seu novo centro político, incorpora dimensões simbólicas originadas nas diversas expressões
de religiosidade presentes no País, para a sua realização no plano ideológico. Tal processo
social leva, por sua vez, a uma redefinição do papel e da posição de tais cultos no cenário
social da nova capital federal.
Escrevendo nos anos 70, À Morte Branca do Feiticeiro Negro, Renato Ortiz
terminou por especular, em suas conclusões, a respeito das relações entre o Poder político e o
Poder religioso dentro do processo de legitimação da religião umbandista.
Para Ortiz (1991) as relações da Umbanda com o Estado estavam situadas na nova
configuração da forças religiosas no País. A ascensão da ideologia umbandista, com o
reconhecimento oficial das Federações espíritas e sua articulação político partidária, através do
apoio a alguns parlamentares, talvez pudesse abrir uma possibilidade de exploração de novas
forças políticas dentro de um determinado tipo de dominação, na medida em que, por exemplo,
a orientação da CNBB estava em conflito com a ideologia dominante. A ideologia umbandista
poderia ser um elemento alternativo na inculcação de valores de submissão à ordem
estabelecida.
Tal suposição, questionável , foi posteriormente revista pelo próprio Ortiz (1982)
que refletiu sobre o fato de que a Umbanda e suas Federações não possuem um discurso
hegemonicamente definido e unificado, como o da Igreja Católica Romana. O fato de que
alguns codificadores umbandistas tenham pretensões ideológicas e políticas, e atuem nesses
níveis, não caracteriza o culto como um todo, principalmente com relação ao atendimento ritual
com os guias espirituais que é o fundamento do culto. Nesses ritos, cada categoria de
entidades possui um discurso específico, que os médiuns atualizam à sua maneira, conforme a
orientação do Centro.
Prandi (1992), referindo-se aos cultos de possessão afro-brasileiros em São Paulo,
numa reflexão a respeito da procura por serviços mágico-religiosos pela população, deixou
outras perguntas a respeito das relações entre os cultos de possessão e a política no País. Ele
finaliza com a seguinte indagação:
“... As classes altas e médias, sobremaneira escolarizadas, enquanto
representantes do mundo desencantado, ainda que eventualmente possam
fazer uso da magia como um serviço de utilidade tópica, constituem um
limite social à propagação da religião não racionalizada além de um
determinado ponto, cujo lugar, a rigor, está ainda por ser desvendado.
Conhecer esse limite pode significar, também, a compreensão da força
política dessas religiões”.
Prandi faz essas indagações a partir de uma série de observações. Nos anos 90 já
era possível perceber um refluxo no movimento das Comunidades Eclesiais de Base, enquanto
a força da Renovação Carismática se expandia no interior do catolicismo, cujos fiéis se
afastavam novamente da política.
Prandi também percebeu o grande trânsito que caracteriza a vida religiosa de
muitos destes fiéis, entre o catolicismo, o protestantismo, a Umbanda e o culto aos Orixás.
Todas essas modalidades de cultos de possessão, inclusive os pentecostais, estavam em
expansão, antes, durante e depois do movimento de politização da Igreja Católica Apostólica
Romana.
Grosso modo, tanto as reflexões de Ortiz quanto as de Prandi podem ser discutidas
a partir de dois níveis. O primeiro, á que a relação entre os cultos de possessão afro-brasileiros
com a esfera política passa por uma distinção criteriosa entre a relação das hierarquias
religiosas, ou seja, as lideranças e os membros mais próximos delas, com as instituições do
Poder; das eventuais relações que a clientela desses cultos, de maneira geral, venha a ter com
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a religião e com a política. Os representantes do Poder Político fazem parte da clientela dos
cultos, como foi exposto ao longo do capítulo anterior. Fazem parte de um segmento social que
procura os serviços desses cultos. Isso não impede que muitos freqüentadores de tais religiões
estejam atraídos por estas religiões porque estejam desiludidos com os efeitos das decisões
políticas em suas vidas particulares.
Tais considerações apontam para o 2º nível da questão. De que maneira é possível
isolarmos uma ou outra modalidade religiosa frente à dimensão da vida política da sociedade
brasileira? Cada uma dessas modalidades religiosas, Umbanda, Culto aos Orixás, Catolicismo
e Protestantismo, são, de fato, imensos universos de seitas, facções, correntes e tendências,
unidos por alguns pontos fundamentais em comum, que os distinguem uma das outras.
Qualquer reflexão nesse campo só é possível graças a cortes metodológicos que dificilmente
deixam de ter um alto grau de arbitrariedade.
Tais preocupações são recentes nas Ciências Sociais. Gilberto Velho (1994), por
exemplo, discute a coexistência de diferentes sistemas cognitivos numa sociedade moderna
como a Brasileira tomando os cultos de possessão como reflexão.
Velho parte do fato de que noções básicas como Transe, possessão e
mediunidade, são características de sistemas religiosos que podem abranger até a metade da
população brasileira sem que haja qualquer religião genérica de transe no País, ou tentativas
nesse sentido.
Os antropólogos tem, por isso, um objeto de estudo relevante nesse campo, junto
as diferentes formas de definir, classificar, representar e identificar as relações com o mundo
dos espíritos, guias, santos e orixás, pois é aqui que estes grupos estabelecem entre si suas
fronteiras cognitivas. Relacionar essas fronteiras com aspectos da estrutura social envolvente,
como no caso das relações com a Política, constitui-se , mais ainda, num outro momento de
reflexão.
Como ficou demonstrado ao longo da exposição dos informantes, os referenciais
míticos são a chave da compreensão das suas informações mas, os informantes mais
interessados em expor suas trajetórias religiosas e seus conhecimentos a respeito da religião,
foram aqueles que se consideravam os mais bem sucedidos na implantação dos Cultos de
Possessão no DF.
Eles fizeram de suas narrativas longas crônicas de seus sucessos e da importância
que possuem no universo religioso de Brasília. Nesse sentido é importante frisar que aqueles
que teceram comentários a respeito da mitologia do Distrito Federal, e não apenas de suas
mitologias individuais, foram novamente, aqueles que demonstraram ser os pioneiros mais
bem sucedidos entre todos, dentro do espaço religioso próprio da nova capital do País, Maria
do Oxóssi, Tito de Omulu, Marlene Souza Braga, D.Violeta e Édson Silva. Exceto D.Violeta, os
outros afirmaram que vieram para o DF por razões religiosas, a pedido de suas entidades, as
quais estão subordinados ritualmente, porque aqui realizariam sua missão espiritual.
Vários deles afirmaram que foram o primeiro pai ou mãe de santo do DF, ou o
primeiro a abrir um terreiro ou a jogar búzios africanos. Tais afirmações são reivindicações de
prestígio e de autoridade.
É a partir desta perspectiva que podemos retornar a questão das tradições regionais
dos cultos espíritas afrobrasileiros com seus valores característicos. Um informante afirmou
que é comum pessoas “encherem a boca para afirmar que são filhas do Gantuá de Mãe
Menininha de Oxum ou do Axé Apô Afonjá de Mãe Estela de Oxóssi, em Salvador”, afirmando
valores distintivos do povo do santo, característicos da hierarquia de prestígio das casas de
santo matrizes de Salvador.
Os valores de prestígio atribuídos à essas Casas de Santo do litoral nordestino
hierarquizam os cultos espíritos afrobrasileiros, a partir do valor de pureza ritual atribuído a esta
africanidade 14 . Quando pensamos, todavia, nas informações a respeito de D.Railda de Oxum,
esses valores podem estar expressando realmente uma outra situação social. Todos os
informantes contatados a reconheceram como a mais legítima representante da tradição
yorubá, oriunda de Salvador. Ao mesmo tempo a maioria a aponta como uma pessoa isolada
14
Ver , a este respeito, “Vovó Nagô e Papai Branco”, de Beatriz Góis Dantas(1988).
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e distante, o que foi posteriormente confirmado por algumas pessoas que freqüentam sua Casa
de Santo.
Embora reconhecidamente autêntica em sua Pureza ritual, o que a coloca num
patamar distinto da maioria dos espíritas locais, talvez D.Railda de Oxum não possa
hierarquizar um universo social já marcado por um igualitarismo de tipo moderno desde suas
origens, para além dos seus filhos de santo e freqüentadores de sua Casa.
É necessário descobrir de que maneira sua autoridade é atualizada dentro de que
conjunto de relações significativas e se ela não teve sua Pureza redefinida em termos de uma
ortodoxia. Ela representaria o pólo ortodoxo de um universo social já claramente marcado pelo
trânsito religioso.
É relevante que Pai Paiva tenha se legitimado enquanto Oluwô , uma autoridade ritual
africana, após ter se apresentado primeiro como um Mestre da Jurema, operando uma
mediação frente à Pureza ritual dos Cultos de origem nigeriana e os cultos de caboclo,
sintetizando-os num “Caboclo Candomblezeiro”, que pode ser visto como a personificação
do Traçado, dos Candomblés africanos com o brasileiro culto aos caboclos.
Nesse sentido, ele realmente está operando uma síntese original dentro do mundo
espírita afrobrasileiro, “O Povo do Santo”, enquanto expressão da cultura brasileira, dentro de
seu atual centro político. Ele está como que representando simbolicamente um novo momento
do pacto social da República brasileira, dentro já do espaço brasiliense.
Ele demonstra não se limitar a respaudar sua autoridade no contato com as
entidades espirituais africanas e caboclas, como os demais líderes dessas religiões, mas
resgata símbolos de poder, situados primeiramente naquela dimensão extra-física e extra
mundana, propriamente espiritual, que ele pode intermediar diante dos representantes do
Estado Nacional, em sua sede.
É possível comparar D.Railda de Oxum, enquanto autenticamente Nagô, com a
importância de Mãe Menininha de Oxum na cultura brasileira recente. O Pai Paiva, porém, não
se limita ao modelo dessas pessoas célebres da cultura afrobrasileira, como um
correspondente brasiliense, embora se veja como um sucessor de Joãozinho da Gómeia. Além
disso, traz correspondências rituais diretamente da Nigéria, frente ao qual se apresenta como o
seu representante na moderna capital brasileira.
Sua capacidade de mediar dimensões tão globais com as dimensões propriamente
locais de sua Federação precisam ser devidamente checadas, principalmente com relação as
situações nas quais ele tem realmente construído sua legitimidade enquanto representante
máximo do Povo do Santo dentro e fora do Distrito Federal.
O que está em jogo, colocado por sua presença carismática é que não se trata
simplesmente de constatar que os Cultos espíritas afrobrasileiros formam uma dimensão
singular do universo religioso brasileiro e do imaginário nacional. Eles demonstram dramatizar,
dentro de sua singularidade, dimensões significativas da vida social brasileira, que precisam
ser devidamente esclarecidas.
No Caso dos informantes descritos, que apresentaram suas versões pessoais de
todo esse complexo mítico que cerca a fundação de Brasília, iremos encontrar, basicamente,
tanto a reafirmação de uma importância futura da atual capital brasileira quanto o chamado
espiritual para fazer parte da construção desse futuro centro político- religioso de importância
mundial.
No caso dos pais de Santo da nação Africana Alaketu, todavia, o tom das
afirmações míticas sobre Brasília e sua importância é um tanto distinto, o que vale ressaltar.
Ao invés de uma profecia, Tito de Omulu refere-se diretamente a um ODU, , um
signo oracular, um elemento atemporal referindo-se ao presente de Brasília ao invés de uma
evocação ao seu futuro.
As afirmações de Nélson de Xangô, com relação à necessidade da sedimentação
do Orixá Xangô no Planalto Central, também segue esta característica. Sua referência, embora
relacionada diretamente à entidade mística, não está voltada para um horizonte futuro, mas
para um processo que se desenrola no presente.
Xangô não irá ser sedimentado num futuro qualquer, ele está sendo sedimentado.
Para tanto, Nélson de Xangô mudou-se para o Distrito Federal, cumprindo sua obrigação com
- 85 -
15
Tais utopias podem ser relacionadas com o espírito da época, a partir do pós-guerra, quando o
Brasil apresentava-se como um País a ser construído. Brasília foi construída nesse espírito, que talvez tenha
perdurado nela até 1985, quando a morte de Tia Neiva, de Tancredo Neves e a posse de José Sarney inauguraram
um novo período na sua História.
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festiva, entre outros elementos, que durante 250 anos regularam a vida social dos sertões do
Planalto Central.
Lia Zanota Machado (1990), por sua vez, encontrou em pesquisa realizada na
cidade satélite do Gama, junto a uma população de origem nordestina, códigos culturais
tradicionais entrecruzados com valores modernos e seculares, onde a noção de fim de mundo
era enfaticamente elaborada.
Num contexto social onde tal população, consegue, de alguma maneira, reproduzir
valores como a Honra Familiar, através de redes extensas de parentesco, regidas pelo código
da reciprocidade e da hierarquia , circunscrevendo inclusive a nova rede de vizinhança e de
amizades, a mesma cidade é vista como um lugar, por excelência, fora de ordem.
A ausência de regra pessoais de honra que a domina para além das redes de
parentesco e vizinhança, assim como a ausência de relação políticas e jurídicas que definem a
cidadania e a igualdade do cidadão, são interpretadas como o fim do Mundo. Sua
desumanidade, seus crimes impunes, surgem como os sinais dos tempos que anunciam o
Apocalipse.
O resultado final é uma visão ambígua da vida no DF. Brasília é boa porque oferece
alguns serviços urbanos modernos, como saúde e educação. É ruim porque seus benefícios,
como um todo, pertencem a poucos. Para a pobreza urbana resta uma situação anti-natural de
não cidadãos marginalizados, que não são ninguém fora de seus círculos mais imediatos de
convivência doméstica.
É provável que seja para essa realidade social que o Culto dos Orixás possa
oferecer, seja no DF ou seja em São Paulo, oportunidades de elaboração de identidades
pessoais e comunitárias alternativas. É provável também que, nesses assentamentos urbanos
periféricos, que compõe a atual zona metropolitana do DF, onde laços políticos e comunitários
de fato não tiveram tempo e condições sociais de se consolidar, em escala mais ampla, a
eficácia de suas entidades também termine comprometida por razões similares, como veremos
no capítulo seguinte.
Os orixás e seu culto possuem uma forte dimensão doméstica, circunscritas a
pequenos círculos marcados por uma intensa sociabilidade, mas os santos que realmente tem
prestígio e força, assim como suas Casas, são aqueles que conseguem atrair um verdadeiro
público, para além de seu pequeno círculo de iniciados 16 A passagem de uma situação para
outra, requer tempo, dedicação, vivência.
Outra inferência que pode ser estabelecida, não só com relação à questão do Culto
aos orixás na Nova Capital Federal, está relacionada a que, no contexto social encontrado em
Brasília, a simbólica do Desenvolvimento foi transposta até à dimensão do Mito e da profecia, a
ponto da noção de Desenvolvimento Social se aproximar e até se confundir com a noção de
Desenvolvimento Espiritual, enquanto aspectos complementares de uma única noção de
Desenvolvimento, que é a articulada pelas agências religiosas 17 .
16
Num artigo denominado Como o Homem cria Deus na África Ocidental(1989), Karin Barber mostra
como essa característica é fundamental na religião yorubana. Um Orixá de prestígio e força tem que ter um grande
público que frequenta suas cerimônias.
17
Ortiz(1984), já havia percebido esta relação dentro do culto umbandista, em particular.
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3ª PARTE:
Existe uma questão relevante no fato de alguma dessas obras, dentro da etnografia
religiosa afro-brasileira terem se tornado, dentro dos cultos aos orixás, um tipo de fonte de
legitimidade, transformando assim informações etnográficas em estatutos validados pela
comunidade acadêmica. Tais obras passaram a ganhar um valor litúrgico dentro de
comunidades originalmente marcadas por uma tradição oral. Uma liturgia valorizada pelo
reconhecimento acadêmico.
O modelo etnográfico destes autores não construiu apenas um visão acadêmica do
Culto aos Orixás mas buscou ser uma descrição isenta dos candomblés bahianos vistos como
uma efetiva permanência do universo cultural africano na América, em particular nos cultos
nagô.
Esses autores incorreram naquele problema já discutido aqui de explicarem a vida
cultural do grupo estudado pelas próprias categorias do discurso do grupo, sem trazer tais
categorias à reflexão conceitual propriamente científica e transmutando as categorias nativas
em conceitos. Assim a idéia da “Pureza do Culto” e da “fidelidade a África”, passaram a servir
de eixos de análise para a pesquisa etnográfica, quando deveriam ter sido compreendidas
enquanto dimensões do universo social pesquisado, como tentamos fazer com a noção de
Nova Era.
Tais etnografias, segundo Silva “...realizadas nos terreiros mais “afamados”,
contribuem assim, para a generalização e valorização da tradição religiosa neles
encontrada, ao mesmo tempo que em que autovalorizam-se por registrar parcelas
significativas dessa liturgia, que passam a ser buscadas como fonte do sagrado.”
Este autor conclui que se tais textos etnográficos podem ter uma apropriação
sacralizante é porque eles foram escritos já dentro deste espírito, ou seja, de forma ambígua.
Aqui o acadêmico legitima o religioso que, por sua vez, sacraliza o texto. Tal relação é
comparável às relações recíprocas de legitimidade entre as instituições religiosas e políticas
em Brasília.
A idéia da “Pureza Nagô”, todavia, e sua capacidade de hierarquizar o universo das
religiões afro-brasileiras, inclusive pela via da legitimação acadêmica, é um tema bem mais
abrangente. Dantas(1988), num levantamento histórico demonstra como tal idéia foi
constituindo progressivamente uma africanidade, uma regionalidade, até vir a constituir um
referencial obrigatório para a nacionalidade.
Duramente perseguidos durante a República Velha, por serem vistos como uma
ameaça negra ao progresso da nova ordem republicana, os Candomblés nordestinos foram
defendidos por intelectuais como Nina Rodrigues, que graças a suas pesquisas em Salvador,
constatou a distinção dos Terreiros de origem Yorubá com sua africanidade evidente diante da
miscelânea sincrética dos terreiros bantus e caboclos.
Tal africanidade, durante a década de 30, foi sendo construída em eventos como o
Congreso Afrobrasileiro da Bahia , organizado em 1937 por Édson Carneiro, para dentro do
espaço cultural aberto pela necessidade de se constituir a ‘Cultura Nacional’ , durante o
período da Era Vargas. A africanidade Nagô, opera, assim, uma mediação fundamental,
enquanto autêntica “raiz africana do Brasil’, distinguindo tal modelo de culto da cidade de
Salvador enquanto símbolo do País a partir de sua regionalidade nordestina.
Dantas argumenta que, contrariamente, com o processo de umbandização dos Cultos
de Possessão no Rio de Janeiro, também durante a Era Vargas, ao invés da exaltação de uma
África distintiva surge um processo de negação da Äfrica em nome de uma exaltação ao Brasil.
A africanidade carioca, vista como macumba maléfica, abrasileirada através do filtro kardecista,
produziu uma síntese na Umbanda Branca, expressão simbólica da síntese cultural da nação
brasileira.
Pereira de Queiroz(1988) também se deteve nesta dimensão de síntese da Cultura
brasileira que a Umbanda reivindica traçando um paralelo entre a Umbanda Carioca e o
Movimento Modernista da São Paulo dos anos 20. Inicialmente locais e metropolitanos, ambos
os movimentos conheceram uma forte expansão no pós-guerra, tornando-se referenciais da
Tradição brasileira que surgia então. Ambos codificaram uma concepção de um “Ser
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Santa, enquanto Rainha do Brasil. O povo continua, por sua vez, celebrando-a como a Mãe de
Jesus e de todos os homens, inclusive dentro dos cultos afrobrasileiros sincretizada com as
Orixás Oxum, principalmente, mas também com Yemanjá, ambas orixás maternais, por
excelência.
Do mesmo modo, Figueroa(1989:56) também apresenta como que Nª Sra do Carmo,
padroeira do Recife é cultuada da mesma maneira, num ciclo de festas e cerimônias, que
podem ser distinguidos em cinco eventos simultâneos. Há a celebração eclesiástica dos
carmelitas, a procissão da elite pernambucana, a festa popular, o comércio religioso e o culto
afrobrasileiro para Mamãe Oxum, com quem esta santa está sincretizada.
A “Rainha Coroada do Recife”, “Senhora de muitos rostos” emerge como uma síntese
de um complexo de significados sociais, marcada por configurações simbólicas distintas para
as diversas categorias sociais que a vivenciam.
Também em Belém do Pará, segundo informações pessoais de Anaíza Vergolino e
Silva, Nª Sra de Nazaré é sincretizada com Oxum, a maternal Orixá das águas doces e da
riqueza. Também nesta capital amazônica a tensão entre o controle eclesiástico e as
manifestações populares, na adoração à Santa, é muito forte.
É possível perceber que nessas Mães Divinas, estão, de alguma forma, atualizadas
idéias-valores de uma totalidade social, como num círculo de divindades que são uma e várias
ao mesmo tempo. Fernandes não parece ter percebido que a ausência de um centro
geográfico catalizador de uma religiosidade nacional está, justamente, preenchido pela figura
mítica da Nossa Senhora, que se situa num plano transcendente a qualquer nacionalidade e
regionalidade.
Aragão(1991), discute o processo de santificação do feminino na figura da Mãe,
característico do mundo mediterrânico. A matriarca virtuosa, mãe de bons filhos, constitui-se na
figura central de uma matrifocalidade doméstica, e de uma moral feminina e familiar. A esta
configuração, o universo de valores sociais brasileiros não constitui a esfera pública enquanto
um pólo autônomo a este universo familiar. Nessa outra esfera predomina um anonimato
selvagem submetido ao tradicional autoritarismo patriarcal, enquanto o complemento desse
familiar englobante por sobre o público.
Tal ethos tende para uma irreversibilidade do social, atualizando a dependência
estrutural dos subalternos aos seus superiores, num modelo doméstico expandido. Ao mesmo
tempo, o sistema social brasileiro necessita, e produz, mediadores capazes de integrar os
processos modernizadores a esse fundo cultural inconsciente.
O que foi encontrado em Brasília não foi uma nova Santa revelada ou uma nova
modalidade religiosa aglutinadora, mas uma Igreja Católica Romana discreta diante do ethos
ecumênico da nova capital, muito mais bem representado pelo Templo da Legião da Boa
Vontade e seu “Parlamento Mundial”, do que pela Catedral ou pela Igreja de Dom Bosco.
Brasília é tão repleta de Igrejas e Centros, Santos e entidades espirituais que somente
um ethos ecumênico pode incorporá-los numa unidade celebrável. É como se a mística de
Brasília ocupe, simbolicamente, o papel síntese da “Mãe divina”, enquanto um plano de
mediação transcendente possível no interior da estrutura social brasileira contemporânea..
Como numa paradoxal confirmação dos questionamentos de Emile Durkheim (1989), a
respeito da transcendência do social, a sociedade brasileira estaria representada,
hipostasiadamente, na Nova Capital e em seu Projeto Modernizador, como James Houston
chegou a perceber. É Brasília, em seu projeto e em seu futuro que acolhe e acolherá a todos,
católicos, protestantes, espíritas e orientalistas, assim como a todos os seus santos, guias e
entidades espirituais, realizando-se como uma Cidade de muitos rostos.
É importante refletir, todavia, a respeito das dimensões da diversidade religiosa do DF.
Tanto a solenidade do Corpus Christi quanto à homenagem a Yemanjá no Ano Novo atraem
em média 10.000 pessoas todos os anos enquanto Diana Brown(1979:270) assistiu a uma
celebração à Yemanjá na entrada do ano de 1979, na Praia de Santos com a presença de
300.000 pessoas. Número equivalente se faria presente em Porto Alegre e no Rio de Janeiro,
onde já nos anos 60 haveriam em torno de 20.000 Centros de Umbanda. Sendo assim, é
provável que, de fato, nenhuma modalidade religiosa possa pretender uma hegemonia dentro
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Segato de Carvalho(1991) sita, para Buenos Aires, um número de Centros de Umbanda, cerca de 2.000, próximo ao citado
pelo Presidente da Federação dos Cultos afro brasileiros, em 1992, para Brasília. Num contexto social segmentado em evidentes
descontinuidades, a Umbanda vai se expandindo por valorizar distinções, reetnificando individualidades dispersas nas zonas
metropolitanas da América do Sul, tanto em Brasília quanto em Buenos Aires.
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CONCLUSÃO
Dumont afirma, contudo, que devido as suas singularidades, mesmo nas sociedades
modernas mais avançadas os valores individualistas convivem no plano ideológico com alguma
coisa que nada tem a ver com o que é definido como Moderno, resíduos, para usar sua
terminologia, que são necessários a própria manutenção da vida social, sob os princípios
individualistas universais.
O mundo ideológico contemporâneo é fruto de uma interação de culturas que já dura
200 anos, caracterizadas, muito mais, por ações e reações do individualismo e de seus
contrários. Toda Sociedade moderna seria, como define Dumont um Híbrido moderno, inclusive
a sociedade brasileira e suas casas de santo.
É por que se situam exatamente nessa dimensão híbrida, ambígua e contraditória, que
as casas de santo se expandem junto com a Modernização do País e não apesar dela ou em
função de seu fracasso. Estamos diante de dimensões da vida social que o processo histórico
da modernização brasileira tentou negar mas terminou por reincorporar dentro de sua dinâmica
própria.
Quando afirma-se que essas lideranças religiosas são poderosos e eficazes
intermediadores sociais isto significa reconhecer que eles aproximam, unem e separam planos
e pessoas distintas, negociando simbolicamente, situações sociais contraditórias. Os membros
de suas casas e seus clientes estão constantemente se submetendo as provas dessa eficácia
tanto quanto pondo-a à prova, nesses processos rituais que operam expressões de
ambigüidades sociais, cuja manipulação é própria aos especialistas religiosos.
Tal vida ritual é uma atualização simbólica de estruturas sociais e é decisiva para a
compreensão da vida social. Autores como Turner(1976) e Douglas(1976) discutiram que os
processos rituais procuram superar conflitos sociais estruturais, que são as expressões das
ambigüidades próprias à estrutura social, que sempre irrompem na vida coletiva de qualquer
lugar. Tal capacidade, inerente ao universo religioso, que opera as ambigüidades e indefinições
sociais, não deixa de fazer sentido perante as demandas da vida individualista moderna.
Quando estamos tratando desse tipo de fenômeno, que são os processos rituais, a
própria compreensão do conceito de Cultura como um processo social faz-se necessária. Para
Radclife-Brown(1973) a Cultura é fundamentalmente um Processo. Os processos culturais
são aqueles pelos quais a conduta social estabelecida é transmitida. São meios culturais de
reprodução, atualização e mudança dos valores que estruturam a vida social.
Por Processo Social Radclife-Brown compreendia o modo de vida de um local num
determinado tempo, composto pelas regularidades encontradas no seio de sua diversidade
cotidiana, os seus aspectos gerais significativos. Tais regularidades são verificáveis nas
relações sociais em questão. As relações sociais são padronizadas, controladas por normas
regras e padrões. Leis, Moral e Religiões são maneiras de controlar a conduta humana, através
do estabelecimento de sanções, suplementares e combinadas de modos diferentes em cada
sociedade específica.
É preciso voltarmos a Emile Durkheim(1989) e às suas referencias a respeito das
relações entre Religião e Sociedade para podermos situar definitivamente a questão da
eficácia simbólica da vida ritual de tais modalidades religiosas presentes num contexto social
modernizado. O que a Religião constrói, segundo ele, são imagens da sociedade em todos os
seus aspectos. Ela é sempre um ideal sobreposto ao real. A manutenção da sociedade exige
que alguma coisa de ideal sirva de referencia a criação e recriação da vida social. O ideal
social faz parte da sociedade real e é atualizado ritualmente.
Isto não significa que a Religião, ou suas manifestações, seja a Sociedade ou suas
relações num outro plano. Durkheim explicitou a distância considerável que há entre as coisas
sagradas que representam a sociedade e a sociedade como ela é objetivamente. Sendo assim,
idéias-valor como ‘A força mística de Brasília”, podem ser compreendidas como a
representação, por excelência, de uma sociedade brasileira ideal, distinta da existente de fato,
com todas as suas incoerências, imperfeições, injustiças e contradições.
Por estarmos diante de uma sociedade moderna e histórica, tal sociedade ideal só pode
fazer sentido projetada para o futuro, enquanto uma construção social, uma realização de um
destino ideal através do planejamento moderno. Enquanto resultado de um projeto ideológico
de construção de um centro político, ao mesmo tempo síntese e cerne da sociedade, resultante
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