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Cultos de Possessão No DF - Marcos Silva Da Silveira

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CULTOS DE POSSESSÃO NO DISTRITO FEDERAL

Marcos Silva da Silveira

Dissertação de Mestrado apresentada


ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia do Instituto de Ciências
Sociais da
Universidade de Brasília em 14.07.1994

2ª versão
-2-

RESUMO

Esta Dissertação tem por objetivo apresentar uma

caracterização de alguns cultos de possessão do

Distrito Federal.

São descritos Centros de Umbanda do Plano Piloto e

Terreiros dos Cultos aos Orixás, além de seus líderes e

membros.

As características desses cultos são comparadas com

as de outras formas de religiosidade já pesquisadas na

atual capital brasileira, servindo de base para uma

reflexão a respeito das relações contemporâneas entre

Religião e Política em Brasília.


-3-

SUMMARY

The purpose of this paper is to give an outline of a

few cults of ecstasy found within the federal district

area.

“Umbanda” centres in Plano Piloto and those “terreiros”

regardes as being the oldest and best-know ones are

described, as well as their leaders and some of their

respective community members.

The features of these particular cults are compared to

those characteristic of other forms of religious

expression already studied in the brazilian capital

today.
-4-

SUMÁRIO

1A. PARTE: O ESPAÇO RELIGIOSO DA CAPITAL FEDERAL


Introdução...................................................................................................06
Pesquisas Preliminares...............................................................................09
Mitos da Moderna Capital.........................................................................13
A Religiosidade popular de Brasília..........................................................19
Cultos de Possessão Afrobrasileiros..........................................................26
Do Projeto à Pesquisa.................................................................................30

2A. PARTE: O “SANTO” na CAPITAL...................................................39


A Umbanda Branca no Plano Piloto..........................................................43
Dois Médiuns de Umbanda.........................................................................59
Três Mães de Santo......................................................................................68
Três Pais de Santo........................................................................................74
Perto do Poder..............................................................................................78

3A. PARTE: A CIDADE dos MUITOS ROSTOS.....................................87


Conclusão......................................................................................................94

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................100
-5-

1ª PARTE:

O ESPAÇO RELIGIOSO

DA CAPITAL FEDERAL
-6-

INTRODUÇÃO

Há quase meio século, o Sociólogo Roger Bastide já percebera, com relação ao


culto aos orixás africanos no Rio de Janeiro, que alguns babalorixás e algumas Mães de Santo
transferiam seus Candomblés da Bahia para lá, atraídos pelos sucesso e pela glória, que o
turismo e o interesse econômico decorrente, injetavam nesses cultos na Capital Federal da
época. As Mães de Santo de Salvador ao visitarem suas filhas de Santo no Rio de Janeiro,
enxergavam as promissoras possibilidades do mercado religioso da Capital Federal. Bastide
(1985) chegou, inclusive, a acompanhar a vinda de um Pai de Santo da Bahia para lá,
transferindo completamente o seu Terreiro, com os seus objetos litúrgicos, instrumentos
musicais e seus velhos ajudantes.
Bastide refletiu sobre estes processos dentro da questão da influência dos processos
migratórios por sobre as religiões afro-brasileiras, questão que é fundamental para esta reflexão. Bastide
situou, propriamente, a vinda de membros dos Cultos aos Orixás da Bahia e de Pernambuco para o Rio de
Janeiro e São Paulo como parte do fluxo migratório maior existente entre o Nordeste do País e as capitais
do Centro-Sul. Bastide assinalava, porém, uma dificuldade litúrgica no sucesso dessa migração religiosa,
uma vez que tais cultos de origem africana são cultos religiosos fixos, ligados por laços rituais a um
determinado território.
O culto, no seu sentido restrito, é um culto privado voltado para as pedras sagradas
que simbolizam os santos, operado pelos sacerdotes dentro do espaço consagrado do
Terreiro. Se um membro de uma Casa não pode participar do culto de uma Casa de Santo
vizinha à sua, na própria cidade de origem, como poderia atualizar esse tipo de culto em
cidades distantes e distintas? No raciocínio de Bastide, as seitas africanas não poderiam ser
bem sucedidas em São Paulo uma vez que se o que atraia, e atrai, os imigrantes nordestinos é
o progresso econômico de São Paulo, essas relações econômicas, e o estilo de vida que elas
impõem, não iriam permitir que o Culto aos Orixás se recriasse naquela metrópole.
Para Bastide, a modernidade de São Paulo permitiria apenas a existência de
formas já modernizadas de cultos de possessão, como o espiritismo Kardecista, a Macumba e
a Umbanda, que chegaram a São Paulo através do Rio de Janeiro. Culto aos Orixás, se tanto,
poderia ser o do modelo da Nação Angola, como o de Joãozinho da Goméia, que freqüentava
Santos e São Paulo, cujo ritual tinha aproximações com a Umbanda. Os valores modernos de
São Paulo seriam antagônicos àqueles do Brasil arcaico do Nordeste, onde as seitas religiosas
africanas serviam de refúgio contra as tensões sociais mais amplas. Nas seitas africanas dos
cultos aos orixás sobreviveria um espírito comunitário, avesso ao individualismo moderno.
Não vale a pena questionar todo este argumento de Bastide, que se têm lá os seus
equívocos, quando vistos no momento presente, tem também sua pertinência e sua coerência.
É importante ter em mente que Bastide não chegou a conhecer evidências etnográficas de
culto aos orixás africanos na metrópole paulistana e que percebera que as Casas Bahianas
que iam para Rio de Janeiro eram atraídas por um mercado que o Rio, enquanto Capital
Federal e “vitrine do Brasil”, oferecia distintamente da cidade de São Paulo.
Mais que isso, hoje é possível afirmar que a expansão dos cultos de possessão
afro-brasileiros têm acompanhado todo o processo de modernização da sociedade brasileira e
é favorecido por ele. Por isso é que as reflexões de Bastide sobre a influência das migrações
internas sobre essa religiosidade são pertinentes, uma vez que a vinda da Capital Federal e de
toda a sua modernidade, seu modernismo e sua modernização para o centro do País, rural,
arcaico e pré-capitalista, implicava, explicitamente, na tentativa de eliminação das diferenças
regionais, às quais Bastide também se referia para pensar a religiosidade brasileira.
Brasília nasceu dentro desta modernidade na qual São Paulo constitui o pólo mais
expressivo dentro do País e é mais do que significativo que a vinda dos cultos umbandistas e
dos Cultos aos orixás para o DF siga os passos da dinâmica que esses cultos desenvolveram
em São Paulo, que Reginaldo Prandi (1991) observou e descreveu, exceto por uma única
diferença radical, a da influência da Política.
Prandi (1992) recoloca as questões desenvolvidas por Bastide ao fazer sua própria
interpretação do Culto aos orixás em São Paulo. Ele retoma o tema das diferenças regionais,
-7-

relembrando que especialmente durante a ditadura militar, enquanto o Estado autoritário


consolidava uma moderna economia de escala no País, atualizava a mesma nação aleijada,
com uma pobreza e um atraso social em determinados setores, tão ou mais pronunciados do
que nos países mais pobres do mundo. Numa sociedade incapaz de resolver os problemas
sociais que a constituem, a população brasileira se vale da multiplicidade religiosa para
encontrar soluções e respostas para os problemas que a afligem.
Sendo assim, o sucesso da religião, em particular dos cultos de possessão, estaria
diretamente relacionado com esse dilema da sociedade brasileira. As soluções que estes
cultos apresentam são mágicas e distantes da vida política em sentido estrito e as pessoas que
buscam essas alternativas terminam por se afastar das instâncias propriamente políticas.
Há uma continuidade entre o argumento de Bastide e Prandi. Enquanto o primeiro
afirmava que o culto dos orixás não poderia existir dentro da modernidade paulistana, o
segundo está afirmando que ele pôde se expandir por dentro da umbanda paulista, porque a
modernidade brasileira não se completou, permitido espaços de sociabilidade como os
oferecidos por esses cultos.
Isso pode ter sido verificado em São Paulo. Brasília, contudo, tem, e inclusive é o
argumento destes dois autores que permite situar bem, uma religiosidade intrínseca à sua
construção e à sua legitimação enquanto Centro de decisões da vida nacional, que resultam
num paralelismo entre o Poder Político institucional e o Poder Religioso.
Tal característica é tão pronunciadamente marcada que todas as pesquisas já
realizadas no Distrito Federal, seja no campo da religião, seja no campo mais propriamente
voltado para a sociabilidade de sua experiência urbana singular, a tem apontado e discutido.
Tal questão permite algumas considerações mais amplas, relevantes para o estudo dos cultos
de possessão em particular.
Tal consideração precisa, primeiramente, ser elaborada a partir da distinção teórica
mais fundamental aos estudos antropológicos em contexto urbano que distingue os estudos na
cidade, dos estudos da cidade. As pesquisas realizadas em Brasília, que nós iremos
considerar, tendem a se situar ente estes dois pólos.
Eunice Durham ( 1980) já mostrara que os estudos pioneiros Na Cidade, dentro
das Ciências Sociais brasileiras, foram os estudos de populações marginais, periféricas, e de
suas diferenças culturais, notadamente religiosas, onde os cultos de possessão sempre se
fizeram notar. Neste sentido, as considerações deste estudo contribuem com uma longa
tradição, que começa, pelo menos segundo Durham, com os estudos de Nina Rodrigues, em
Salvador, na primeira década deste século. Os estudos antropológicos Da Cidade, porém, têm
sido menos comuns e mais específicos, em geral votados para o processo da urbanização
acelerada que vem ocorrendo em larga escala no País nas últimas décadas.
Luíz Tarlei de Aragão (1993) ao considerar os estudos antropológicos feitos em
Brasília dentro desta distinção, situa o espaço urbano como o campo de determinados estudos,
como parentesco, vizinhança, grupos profissionais além dos estudos que se detém em
determinadas categorias sociais parciais, como as minorias. Enquanto campo de estudo, o
espaço urbano aparece como campo descontínuo e pleno ao mesmo tempo, ao invés de surgir
como objeto teoricamente elaborado. O grande perigo destes estudos antropológicos em
contexto urbano está em que essas coisas parciais sejam tomadas com o valor de um Todo,
uma vez que a antropologia clássica dedicou-se a, metodologicamente, conhecer primeiro as
partes de uma sociedade para a partir delas chegar ao seu todo, entendido como um
postulado.
Transpondo este argumento para a distinção inicial, é como se os estudos na
Cidade fossem necessários para uma melhor compreensão do fenômeno da Cidade, o que
implica em subordinar uma abordagem a outra. No caso de Brasília, Aragão define a
construção da nova Capital Federal de Brasil como um fato social global, um evento totalizante
e significativo em si mesmo.
A nação Brasileira, independente e moderna, fundava-se novamente, instaurando-
se definitivamente, construindo num ponto novo e geograficamente central, o espaço
privilegiado de seu futuro. Tal projeto, inteiramente político, num sentido amplo, permite uma
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leitura simbólica totalizante da experiência brasiliense, enquanto realidade complexa que é ,


multifacetada, comportando um vasto imaginário.
Aragão(op.cit) define que o simbólico necessita estar presente em todas as partes
do todo social, como uma ideologia, ou um imaginário, ou simplesmente não estará em lugar
nenhum, e por isso a produção e a circulação desse simbólico fornecem a via para a
compreensão de uma totalidade, no caso do estudo da cidade, dentro da plenitude da
abordagem antropológica.
O imaginário da cidade supõe, assim, um código simbólico geral, comunicável e
presente nas práticas sociais desenvolvidas na cidade. É possível perguntar em que medida o
espaço urbano, em sua especificidade, induz seus habitantes, física e psicologicamente. Qual
é o simbolismo predominante ou totalizante e qual o sentido ou direção sócio-simbólico
da transformação sócio-econômica e cívico-política das populações instaladas nesse
espaço, como caso de Brasília, em particular?
Tal tarefa é desafiadora. Aragão aponta, também, que na prática, as pesquisas já
realizadas em Brasília são tão fragmentárias e dispersas que dificultam uma compreensão
mais completa do objeto que pretendiam compreender. De fato, por serem tão fragmentárias
quanto o seu objeto, aumentam o enigma que ele impõe às pesquisas e ao corpo teórico que
as informa.
Mesmo assim, é possível perceber que é em torno do simbolismo do espaço
urbano específico que Brasília se constitui que tais investigações, embora arbitrárias,
contingentes e parciais, se encontram.
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PESQUISAS PRELIMINARES

Brasília enquanto tema de pesquisa e análise pelas Ciências Sociais em particular,


já foi objeto de alguns estudos, que podem ser divididos nestas duas vertentes básicas,
caracterizadas pelas influências do seu contexto urbano.
De um lado, aparecem estudos de Brasília, cujo tema é o próprio fenômeno urbano
singular, envolvendo o planejamento e a construção da Nova Capital, sua expansão e o atual
processo de consolidação da sua zona metropolitana.
A outra tendência de pesquisa tem seu objeto construído pelos grupos sociais
específicos presentes na cidade, e, em geral, pelos processos de construção de identidades
sociais que estes grupos desenvolvem. Nesta linha de pesquisa encontramos alguns estudos
em Brasília que abordam grupos religiosos, A Cidade Eclética (1974) e o Vale do Amanhecer
(1977), a Catedral da Benção (1984), a Assembléia de Deus (1984) e dois grupos de
ufologistas (1984). Dentro desta divisão básica, é estabelecido um diálogo entre as duas
abordagens, método necessário a tais algumas investigações específicas.
No Guardião do Rito (1991) tese de mestrado a respeito do Bumba-meu-boi de
Sobradinho, Doria dedicou um capítulo inteiro para situar o papel da Cidade enquanto pólo
estratégico deflagrador do desenvolvimento regional e urbano. Enquanto projeto moderno,
Brasília antecipou, simbolicamente, uma modernidade ainda inexistente na época de sua
construção.
No plano cultural, a cidade foi pensada inicialmente, como uma encruzilhada para
as diversas expressões regionais do país, um espaço síntese, onde surgiria uma identidade
nacional para além das regionalidades característica da identidade brasileira até então. Doria
precisou ir às metas norteadas do plano original de Brasília para compreender o lugar e a
importância que o Bumba-meu-boi do “seu Teodoro” veio a ocupar no espaço cultural da
Capital, como manifestação cultural da nação brasileira e não mais como uma expressão
singular da cultura maranhense.
Quando é dito que Brasília surge de uma decisão política, está sendo dito que
Brasília surge para consolidar o país enquanto um estado nacional integrado, ou seja, com um
mercado nacional de fato. Na prática, como definiu primeiramente Cope (1979) esta integração
significou a consolidação das fronteiras estabelecidas pela expansão do parque industrial do
Sudeste e pelas migrações das populações litorâneas para o interior.
Neste artigo, Religião e Política no Distrito Federal, Cope articulou de maneira
sistemática uma perspectiva teórico-metodológica sobre o estudo da religiosidade encontrada
no DF percorrendo tanto as questões da Cidade enquanto espaço social e político, quanto
questões próprias da reprodução de instituições religiosas neste espaço social.
Sua hipótese básica consistia em afirmar “que existem relações causais, e
portanto lógicas, entre a experiência econômica e política dos indivíduos em sociedade
e sua escolha de visão cosmológica e prática ritual.” Cope buscou compreender a
estratificação social dos cultos religiosos de uma cidade observando como estes cultos
estavam distribuídos na estrutura espacial do Distrito Federal, que comporta diversos setores
destinados às associações religiosas.
A partir dessas perspectivas a identidade religiosa de determinados grupos sociais
pode ser vinculada ao processo social mais amplo da implantação e consolidação da estrutura
social e política da nova capital tanto quanto às questões próprias da importância de
referências religiosas para a articulação de visões de mundo específicas e distintas num
ambiente metropolitano.
A dimensão simbólica da religião, as práticas rituais, as crenças , a importante
dimensão da escolha religiosa pelos adeptos, devem ser atualizadas num conjunto de
situações e relações, onde a situação social dos freqüentadores de um culto relaciona-se de
alguma forma com o local e o padrão de ocupação do culto.
É possível indagar a respeito do lugar socialmente determinado deste ou daquele
culto religioso na estrutura sócio-espacial do Distrito Federal, agregando à concepção
urbanística de Espaço uma dimensão antropológica de espaço social, simbolicamente
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percebido e construído pelos agentes empíricos já revelados por diversas pesquisas neste
tema permitindo que seja possível falar no Espaço Religioso da Capital Federal.
O artigo do Profº Cope é um ponto de partida na colocação de parâmetros
necessários a abordagem do tema. Sua hipótese básica, já apresentada, foi trazida para o
campo específico do Distrito Federal na forma de duas perguntas:
“Como cosmologias distintas coexistem num espaço social como Brasília?
Até que ponto cultos religiosos distintos implicam maneiras realmente distintas de ver e
compreender o mundo, num mesmo mundo? Em segundo lugar, se estas visões
distintas coexistem, como expressam padrões sociais e culturais dos adeptos, ou seja,
as divisões da estrutura social na qual eles se inserem e de suas origens culturais?”
A posição das Casas de Culto na estrutura social do Distrito Federal há de ser, tudo
indica, um índice seguro de verificação da posição social de seus membros e seguidores.
Contudo, as diferenças entre cultos, por um lado, e entre as características sociais desses
cultos, podem ser variações significativas até certo ponto, uma vez que a administração
centralizada do Distrito Federal impõe uma homogeneização de opções em alguns planos,
notadamente neste da ocupação do espaço.
Minha primeira incursão nesse campo, na cidade satélite de Ceilândia, forneceu-me
uma primeira compreensão possível das relações existentes entre a religião e o espaço que ela
pode ocupar numa zona metropolitana como a que está em formação dentro do Distrito Federal
e o seu entorno.
Em 1987, já Bacharel em Ciências Sociais, comecei a cursar as disciplinas próprias
à formação em Licenciatura, como forma de complementar uma formação universitária a nível
de graduação. Comecei a conviver no ambiente da Faculdade de Educação e tive minha
atenção despertada por alguns episódios bastante desafortunados que aconteceram em
algumas cidades satélites ao longo daquele ano.
Num local bastante periférico, denominado Expansão do Setor O, localizado entre
as cidades de Taguatinga e Ceilândia, uma professora primária fora assassinada numa escola
da rede oficial, superlotada e insuficiente para atender às necessidades da população local. A
Expansão do Setor O, diferentemente de outros assentamentos populares do DF, era um
lugar desagradável, com ruelas irregulares, apertadas e sombrias, o esgoto correndo por elas,
separando os casebres de papelão, plástico e sobras de madeira. Era certamente um dos
locais mais marginalizados do DF.
O caso não era isolado. Havia, na época, muita tensão nas escolas da rede Oficial
localizadas na periferia de Taguatinga e Ceilândia, principalmente, criando um clima de medo
generalizado no ambiente escolar.
Nos corredores da Faculdade de Educação, contudo, surgiam versões mais
detalhadas desses casos. Segundo várias alunas e professoras, principalmente as que
trabalhavam junto ao Campus avançado da Universidade de Brasília na Ceilândia, esses casos
expressavam dois problemas fundamentais.
Em 1º lugar, a carência de serviços básicos e de infra-estrutura da periferia do DF,
que contrasta com a excelência dos mesmos serviços nas áreas centrais como o Plano Piloto,
Guará e o Centro de Taguatinga.
Em 2º lugar, o abismo cultural existente entre os valores da classe média urbana
dos jovens professores oriundos dessas cidades - Taguatinga, Guará e Plano Piloto -
acostumados com as facilidades da vida urbana e moderna de Brasília, em confronto com a
experiência de miséria urbana dos moradores da periferia, oriundos da zona rural ou das
inúmeras invasões que o Governo do DF sempre se empenhava em remover e reassentar em
locais como a expansão do Setor O.
Esses conflitos tornavam-se particularmente tensos porque essa população de
baixa renda, embora carente economicamente, desenvolvera, ao longo da breve história do DF
uma forte e crescente capacidade reivindicatória.
Na próprio sede da Fundação Educacional do Distrito Federal todos esses
problemas me foram confirmados por uma orientadora educacional que também me brindou
com novas informações .
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A violência nas escolas da periferia tinha realmente um duplo aspecto. Os


professores, recém-concursados pela FEDF eram despejados nas pequenas unidades de
ensino da periferia, onde chegavam inexperientes e com medo dos alunos, tratando-os com
distância e uma animosidade pouco disfarçadas.
A resposta da população a essa discriminação era à altura. Essas escolas eram
transformadas em palco de batalha para todas as reivindicações da população carente frente
as instituições governamentais, como água, luz, asfalto, esgoto, policiamento e lazer.
Em alguns lugares , de fato, as escolas eram invadidas e ocupadas por grupos de
jovens agressivos, as vezes armados. Em outras, porém, haviam pessoas mais espirituosas,
como num grupo escolar, onde, uma turma de rapazes, sem condições de se matricular, subiu
ao telhado do prédio para protestar, “teatralizando” uma aula.
Algumas características dos cultos afro-brasileiros, que eu começava a estudar,
forneciam curiosamente, elementos para uma interpretação desse quadro. Tanto no modelo
umbandista quanto nos Cultos aos Orixás, os ritos são precedidos de oferendas aos Exus,
entidades que tidas como agressivas e perigosas, precisam ser despachadas e apaziguadas,
para que os ritos aconteçam de maneira satisfatória. O perigo dessas entidades é sua
dimensão ambígua, uma vez que são eles que fazem a comunicação com os seres luminosos
e benfazejos, os guias de umbanda e os orixás africanos.
Além disso, como os exus são também os guardiões dos Terreiros e pelo menos no
caso dos cultos umbandistas, onde existem rituais nos quais os médiuns incorporam estas
entidades, eles são procurados para resolver problemas de ordem material, como emprego,
moradia, casamento, e adultério. Seus ritos são situações de intensa negociação, muitas vezes
bastantes tensas e tumultuadas.
A partir desse modelo ritual e místico a violência nas escolas de Ceilândia podia ser
interpretada, já que os bandos de jovens marginalizados e violentos, de alguma maneira,
abriam caminho para que aquela população carente, como um todo, manifestasse e apontasse
todos os problemas a que estavam sujeitas, inclusive na área de segurança pública. Tal
raciocínio, embora tênue e intuitivo levou me a dois pontos chave:
1- Como tal religiosidade, entre outras, poderia ser vivida dentro dos contrastes
sociais específicos do DF, marcado por uma modernização tão desigual e tão dinâmica, ao
mesmo tempo?
2- A religiosidade teria um papel significativo, de fato, na organização da vida
cotidiano e política desses habitantes da periferia e de outras camadas sociais?
O passo seguinte foi chegar ao Campus Avançado da Universidade de Brasília em
Ceilândia, subordinado ao Decanato de Extensão. Embora minhas hipóteses iniciais tivessem
sido muito bem recebidas, rapidamente pude perceber que os fatos não eram exatamente
como eu imaginara de início.
O pessoal responsável pelo Campus Avançado da Ceilândia me informou, numa
primeira conversa, que de fato, a Umbanda estava presente na Ceilândia. “É o que mais têm,”
cheguei a ouvir. Ninguém sabia, porém, me indicar um Centro, um líder religioso, ou pelo
menos um freqüentador do Culto. Se a Umbanda estava em toda a parte, também parecia não
estar em lugar nenhum, pelo menos nas proximidades do Centro de Ceilândia, onde o Campus
funciona em meio a diversas instituições públicas, como a Administração Regional, Hospitais,
Colégios e Bancos.
Por outro lado, o Campus Avançado servia de apoio a várias Associações de
Moradores existentes na Ceilândia desde o seu surgimento, em 1971, responsáveis pelo
caráter combativo e reivindicatório da população daquela cidade satélite. Pude saber, pelo
menos, que o movimento das Associações de Moradores de Ceilândia era altamente
competitivo, havendo às vezes três ou quatro associações num mesmo Setor. Essas
Associações são exclusivamente locais, organizando-se em associações maiores para
reivindicar soluções para os problemas mais amplos, embora se fracionassem internamente em
outras situações, como disputa por novos lotes em novos assentamentos.
Eu acabava de reencontrar o tema de estudo por outra via. Essa última
característica das Associações de moradores é similar ao modelo dos cultos de possessão
afro-brasileiros . Os Centros Espíritas formam um conjunto em termos, pois, na prática, é a
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intensa fragmentação de suas unidades, a competição entre as Casas, as constantes


rivalidades e a ênfase no poder local são as suas características constitutivas.
Complementar a essa tensão crônica, essas Casas, seus líderes, membros e a
imensa clientela, formam uma rede de alianças mais ou menos abrangente, conforme a
situação permite. São alianças temporárias num universo social marcado pelo dinamismo e
pela mudança. Novamente chegava a um ponto onde a vida religiosa e a vida política do
Distrito Federal se aproximam, embora, se de um lado, os centros espíritas “revelavam-se
ocultos” a uma 1ª observação, as Associações de Moradores eram bem visíveis.
As primeiras eleições no DF, para Deputado Federal, em 1986, tinham dado um
maior fôlego às reivindicações dos moradores. Uma antiga administradora de Ceilândia, Maria
de Lourdes Abadia, elegeu-se deputada federal constituinte. Toda sua carreira política fora
desenvolvida em torno de Ceilândia, onde trabalhara desde a época da remoção das invasões
, em 1971. A imagem de “Ceilândia no Congresso”, também era reforçada por outro deputado
federal eleito, Chico Vigilante, e mostrava que , na vida política que se iniciava com a eleição
do Congresso Constituinte, Ceilândia teria um papel de peso considerável dentro do DF.
Eu terminei encontrando uma referência de Centro Espírita na Ceilândia no próprio
Plano Piloto.. Na Flora Pai José, uma casa de artigos religiosos, descobrira um cartão de
apresentação de um jogador de búzios africanos, residente na Ceilândia. Havia também o
cartão de propaganda da Casa de Artigos religiosos localizada naquela satélite, onde o
profissional do oráculo dos búzios atendia.
Na ROSA DOS VENTOS, um próspero estabelecimento comercial dedicado aos
artigos afro-brasileiros, os responsáveis puderam informar que possuíam diversificada clientela,
porém pouco sabiam sobre eles. Endereços, filiações, estilos de culto praticados, era
informações sobre as quais eles não tinham acesso.
A única conclusão segura que pude tirar de toda esta experiência, para o estudo
que me propus realizar era que havia um homologia entre as Associações de Moradores e os
Centros Espíritas, com relação alguns valores básicos.
Ambas são associações civis, voltadas para a realização de alguns objetivos e
marcadas pela fragmentação, atomismo, concorrência entre os segmentos, características de
uma estrutura social marcada por pequenos núcleos de autoridade local, que se aproximam e
se afastam um dos outros, conforme julguem conveniente.
Era possível supor, também, que esses moradores de Ceilândia, podem, no espaço
religioso dos Centros Espíritas, atualizar determinados valores através das práticas rituais ali
desenvolvidas, que terminam por informar as atividades que desenvolvem junto às associações
de moradores, de caráter político comunitário.
A invisibilidade desses Centros, provavelmente localizados nos fundos dos quintais,
talvez possa ser percebida, hipoteticamente, como um indício de que tais associações
religiosas são fundamentalmente domésticas e privadas, em oposição às Associações de
Moradores, visíveis e públicas. Como tais, devem ser espaços sociais cujas funções se
complementam. Já era possível, a partir dessas inferências, visualizar um espaço religioso
articulado com um espaço político, porém, cada um com a sua autonomia específica,
socialmente colocados em planos distintos.
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MITOS DA MODERNA CAPITAL

O estudo mais elaborado e mais bem sucedido a respeito de Brasília, dentro da


perspectiva de uma abordagem global de sua construção e de seu simbolismo, é sem dúvida o
de James Holston (1993), A Cidade Modernista. Houlston encara o desafio de analisar a
paradoxal mitologia que cerca Brasília, para compreende-la. Paradoxal, enquanto mitologia,
uma vez que submeteu todo o modernismo do projeto original que a gerou a outros valores.
Brasília, enquanto idéia, situa-se, primeiramente, dentro do grande ciclo mítico
elaborado em torno de noções como NOVO MUNDO e NOVA ERA. Enquanto a Capital do
Brasil, situada no Planalto Central, contudo, Brasília personificaria o florescimento de uma
grande civilização, que seria por ela criada, estabelecendo a soberania sobre o território
nacional e integrando todas as regiões do País, a partir do centro político que antes de sua
fundação simplesmente não existia.
Tal tipo de objetivo, no plano das idéias, surge como uma mitologia, porque a
renovação do País, a transformação social esperada com a construção da nova capital foi
pensada o tempo todo pelos seus idealizadores como a construção de um novo começo, uma
nova origem. Tão inovador que só pode ser situado além da História, no plano do Mito.
A monumentalidade da idéia de Centro interiorizado foi tão agigantada que fazia
com que a idéia de Nação, ao invés de historicamente construída desde um passado dado,
fosse deslocada para o futuro. A Nação Brasileira, moderna e desenvolvida viria a ser a que
surgiria a partir da construção de Brasília. Tal disposição, implicitamente ignorava, ainda no
plano ideal, o presente e o passado históricos, para efeito de sua concepção.
O Plano Piloto de Lúcio Costa, aprovado para concretizar a idéia da Nova Capital -
e de tudo o que se esperava dela - estava baseado precisamente e exclusivamente nesta idéia:
A expressão da grandeza da vontade nacional em se constituir numa Nação Moderna.
A estrutura social e administrativa que de fato a nova capital precisaria contar para,
também de fato, poder sediar o Poder Político e seu aparato tecnoburocrático, não foram
definidos pelo projeto vencedor. Segundo Houlston, foi como se Brasília tivesse revertido, ou
mesmo pervertido, a idéia modernista, uma vez que enquanto a modernidade se define por um
programa explícito de mudança e administração da sociedade, o plano vencedor omitiu esse
programa.
Do Modernismo propriamente dito, Brasília herdou suas premissas utópicas: sua
concepção e sua organização deveriam transformar a sociedade Brasileira. Brasília, para ser o
berço de uma Sociedade teria que se tornar um antídoto à estratificação social brasileira até
então existente.
Diferentemente da utopia modernista, que se propõe regional e crítica, com um
objetivo explícito da destruição de uma ordem social e urbana anterior, para dar lugar a novas
formas de experiência social, a utopia modernista brasiliense foi elaborada como uma grande
epopéia, que muito mais atualizou suas origens coloniais, com seus temas da Conquista, do
Desbravamento e do Bandeirantismo, ou seja o imaginário social originado como o Novo
Mundo Quinhentista.
Nesse sentido, o projeto de Brasília significou não uma ruptura com o passado,
como se poderia esperar de uma proposta realmente modernista, mas um desenvolvimento
circular de projeto colonial, como Castelo Branco(1987) tão sucintamente definiu.
Este autor vê Brasília como a continuidade do projeto colonial e expansionista
ibérico, transposto para a idéia de destino manifesto do País, a se tornar a grande potência da
América do Sul. A construção de Brasília, nesse nível de idéias, surgia como uma verdadeira
Cruzada, uma salvação desenvolvimentista, contra o subdesenvolvimento, o atraso e a
ameaça do comunismo, inimigos do destino brasileiro.
Infelizmente, esse colonialismo interno contemporâneo, revela, em suas formas
monumentais, toda a injustiça e a desumanidade desse mesmo projeto hegemônico. A
obsessão pela monumentalidade, a concentração autocrática do poder e o despotismo,
marcam a formação social brasileira desde suas origens, que Brasília, enquanto reivindicação
por um Brasil definitivo, cristalizou como um culto a este poder.
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Não se percebe a plenitude do Poder Político no plano das idéias, mas Houlston,
Castelo Branco, Aragão, como Ribeiro(1980) chamam a atenção para o processo de
construção da nova capital. Foi através da NOVACAP, uma autocrática agência estatal
exercendo poderes absolutos, que de fato realizou-se a plenitude do poder político brasileiro
em sua reinstalação no Planalto Central.
A cidade ideal sempre se limitou ao seu centro, o Plano Piloto, coberto de honras e
privilégios, enquanto a periferia sempre esteve caracterizada pela marginalização, em
diferentes níveis.
Tarlei de Aragão (1993) chama a atenção que, apesar de todo o seu humanismo
explícito, Brasília contêm todos os equívocos e as disparidades do País, atualizando e
realizando o nosso passado barroco e a sua utopia do Novo Mundo de forma exemplar, porém
com uma diferença marcante no plano político. Onde o Barroco Português, com sua estética,
instituiu o Poder de Deus, mediado pela Igreja Católica Romana, como estando acima dos
homens, a Nova Capital instituiu o Poder Político acima desses mesmos homens, dentro desse
conjunto de valores que estruturam a Sociedade Brasileira, onde o Poder é mais importante do
que o Homem, o indivíduo cidadão não existe e a ordem ,o progresso e o futuro sacrificam o
Homem que deveriam glorificar.
Como este autor afirmou a diferença modernista está, em primeiro lugar, no plano
espacial. O Eixo monumental, sede do Poder Político tem na Praça dos Três Poderes seu
centro por excelência. A Catedral da Capital, ainda referência religiosa em mãos da Igreja
Católica Romana, está lá presente, porém deslocada, como um ministério a mais, no final de
todo o conjunto de Ministérios Públicos que compõem o Eixo Monumental. Enquanto Poder,
agora está na posição a mais distante do Centro Político ocupado pelo Legislativo, já na
posição de intermediária e mediadora entre a sede do Governo e a Rodoviária de Brasília, por
excelência, o espaço do povo.
Sua administração está a cargo de uma Paróquia e a sua maior celebração é a
Solenidade de Corpus Christi, realizada nos gramados do canteiro central do Eixo Monumental.
Ponto mais turístico do que religioso, a Catedral de Brasília está longe de ser, na vida religiosa
de Brasília, o referencial mais central, embora seja o espaço religioso legítimo do Estado
Brasileiro para suas celebrações oficiais.
É possível perguntarmo-nos, inclusive, a partir de sua posição e de sua função, se
de fato Brasília possui algum Centro Religioso comparável às velhas Igrejas Matrizes das
cidades coloniais brasileiras. Devido à seu planejamento moderno e a simultaneidade de sua
construção, o Distrito Federal conta com diversos templos, católicos, protestantes e espíritas,
que foram se instalando sucessivamente, de tal maneira que suas órbitas de influência são
locais. 1
Voltando à questão do imaginário da Nova Capital, é muito difícil, se não
impossível, não enxergar, a partir da Antropologia, toda essa reflexão crítica sobre a idéia de
Brasília como uma nova versão do Mito de Fundação da Nova Capital e de como é
praticamente impossível querer transcendê-lo. Talvez por isso ninguém ainda tenha podido
escapar dessa mística que cerca Brasília, uma vez que sempre que ela é recolocada e
repensada, termina sendo reafirmada, muito mais do que reduzida a um modelo teórico que
possa compreendê-la para além de sua proposições.
Não temos aqui, por tudo isso, a pretensão de realizar tal tarefa, mas é nosso dever
expor a questão e dialogar com ela. É importante compreender, por exemplo, a noção de Mito
que Houlston utilizou para discutir o Plano Piloto de Brasília, pois estamos trabalhando com
uma noção de Mito ligeiramente distinta.
Houlston, basicamente, toma Mito pela definição que Claude Levi-Strauss discutiu
no artigo intitulado A Estrutura dos Mitos (1975), tanto quanto do antropológico britânico B.
Malinowski. Destes autores, Houlston utiliza a noção de que o Mito transforma a História em
1
Segundo Cope(1979) haviam em 1977, 417 templos cadastrados pela CODEPLAN, dos quais 200 eram protestantes, 98
espíritas e 78 católicos, destes, 36 no Plano pilôto. Dos 94 templos do Plano Pilôto, 1/3 eram católicos, enquanto dos 72 de
Taguatinga, 49 eram protestantes. A maior concentração de Centros Espíritas estava no Gama. Dos seus 65 Templos, 23 eram
espíritas. A adoração à São João Bosco, o padroeiro de Brasília, cuja importância merece ser devidamente registrada e analisada,
é uma exceção a esse padrão, sem dúvida.
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Natureza. Tais autores tomam o Mito pelas suas características de serem ao mesmo tempo
históricos, já que falam de origens, e a-históricos, já que situam essa origem para além da
história, num momento de tempo que têm a característica de ser permanente.
Nesse plano de entendimento, Mito e Mito de Origem, praticamente se confundem.
Quando pensamos Brasília a partir dessas referências, oriundas da análise de mitos tribais,
que realmente possuem uma dimensão a-temporal primordial, surge um certo desnível, já que
a historicidade da construção da capital é por demais auto-evidente.
As reflexões de Edmund Leach, a respeito da realidade etnográfica da Alta
Birmânia, por sua vez, podem servir para avançarmos na compreensão da mitologia específica
de Brasília. Leach encontrou, entre os povos que estudou, uma série de situações, que
poderíamos denominar de históricas, já que acontecidas em tempos datáveis com pessoas
reconhecíveis, dentro de uma linguagem e uma dimensão propriamente mítica, com eventos
sobrenaturais e intervenções de entidades religiosas.
O sentido dessas estórias surgia pelo fato de que a linguagem ritual e mítica, entre
estas populações, funcionava como a única linguagem consensual que articulava diversos
povos e suas diversas divisões lingüisticas e políticas. Sendo assim, qualquer evento
politicamente significativo deveria ser traduzido para aquela linguagem, se os envolvidos
quisessem ser entendidos pelos demais.
Um efeito deste processo, é que, ao final das contas, todos os eventos e suas
interpretações surgem como versões muito elaboradas de determinados mitos fundamentais,
uma vez que aproximá-los desses mitos é uma maneira de reforçar a sua significação.
Nesse sentido, Leach afirma que tanto os mitos primordiais, quanto os mitos
históricos dos povos da Alta Birmânia, variavam sempre para engrandecer o status dos
narradores, o que fazia com que suas versões fossem tão diferentes que chegavam a serem
díspares. Leach concorda com Levi-strauss com respeito a que todo mito se apresenta através
de um conjunto de versões, mas alerta para a inexistência de versões corretas, ou de versões
melhores do que as outras.
Enquanto Levi-Strauss irá procurar nas versões míticas as estruturas invariantes
dos mitos, e a lógica das transformações entre as versões, Leach prefere mostrar que o cerne
dos mitos são um conjunto de signos comuns utilizados como uma linguagem de discussão e
enfrentamento.
Sendo assim, para compreendermos todo o complexo mítico que cerca a idéia de
Brasília, é preciso conhecer as versões e os agentes que as contam, o que as etnografias
já realizadas e por realizar, permitem fazer, uma vez que toda essa ideologização da idéia da
Nova Capital terminou terminou engendrando uma cidade real, habitada por pessoas reais e
que constituem uma sociedade real, que redefine estes ideais.
A reflexão de Holston é valiosa ao mostrar que apesar de toda essa mobilização
ideológica, a passagem do plano da idéias para o plano da realidade foi acompanhado por uma
profunda descontinuidade, ainda no momento da sua construção, nos anos 50.Tal questão
poderia nos desviar para questões propriamente urbanísticas - e não simplesmente urbanas -
tal é sua vastidão.
É importante reter apenas que a fundação da nova capital, construída com a aura
dos símbolos sagrados investidos em Brasília, com suas cruzes e templos, como que
traduzindo através de uma mitologia universalizada de símbolos urbanos, benções divinas para
o novo centro do País, trouxe mais um elemento para este paradoxal modernismo místico.
Ao instituir-se como centro Político numa dimensão simbólica tão elaborada, a Nova
Capital não só instituiu como criou a necessidade de um espaço simbólico a ser devidamente
construído por instituições e agências propriamente religiosas e mágicas, que o legitimassem
simbolicamente, em linguagens e práticas propriamente míticas e devidamente ritualizadas.
Themis Quezedo de Magalhães (1985) em sua Brasília: Mitos e Vivências, fala
de mitos que são, em primeiro lugar, imagens e significados de um discurso sobre o espaço,
antes de serem religiosos. A concepção do espaço de Brasília é fundamental na vida social,
política e cultural da cidade. O mito considerado primeiro é o mito moderno do determinismo
urbanístico. A dominância do discurso urbanista enfatiza o planejamento moderno de um
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espaço edificado com o fundador do modo de vida moderno, que significaria a reconstrução
da sociedade brasileira.
Por outro processo paradoxal, as singularidades e individualidades foram
subordinadas pelas razões e ordens do Poder, numa verdadeira ditadura do Projeto
Urbanístico. A urbanidade que impede a diversidade é na verdade uma ausência de
urbanidade, já que esta é concebida como a possibilidade de um espaço de múltiplas
variâncias.
Essa visão crítica do urbanismo afirma que na prática os espaços de Brasília não
seriam apropriados pela população, e haveria uma ausência de convívio coletivo. Este
discurso erudito é o discurso de jornalistas, arquitetos e outros intelectuais do corpo técnico
administrativo.
Diversamente, Quezado entrevistou vários moradores do Plano Piloto, selecionados
a partir da condição de usuários de um mesmo espaço - uma Unidade de Vizinhança 2 . Sua
constatação é que o que havia de homogêneo entre esses informantes era o individualismo de
seus horizontes e de suas vivências.
As trajetórias individuais, embora bastante distintas e diversificadas, revelam
apropriações específicas do espaço urbano condizentes com a inserção social de cada
informante. O tom homogêneo, o discurso dessa população, está no estilo de vida
individualista. O espaço moderno, urbanizado, é a natureza da cidade, onde tudo está
organizado espacialmente. Este espaço é instrumentalizador dos estilos de vida desses
informantes, é utilizado de fato, e é o cerne de uma sociabilidade. Há toda uma interação social
com o espaço que possui significações sociais distintas.
Essas pessoas assimilaram a lógica racionalista do Projeto em sua eficácia. Brasília
proporciona equipamentos modernos e um estilo de vida moderno porque é o novo centro do
país. De um novo país, moderno, que agora é moderno porque possui um centro próprio.
Já as concepções propriamente religiosas se distinguem deste tipo de concepção,
propriamente urbanista e moderna. Quezado também percebeu como em Brasília o poder
sobrenatural soma-se ao poder político nacional. O campo religioso complementa o campo
político. Brasília é a nova Capital porque foi construída para isso e foi construída porque estava
predestinada a sê-lo.
Sendo assim, por mais que o campo religioso seja marcado pela multiplicidade,
diversidade de igrejas, e seitas, tendências que não são exclusivas do DF, ele também é
perpassado, como um todo, por essa demanda do poder político por uma legitimação através
de mitos e práticas rituais.
O marco de uma nova civilização deve ser também espiritual e a consagração da
cidade precisa ser atendida por esses poderes espirituais. Isto é operacionalizado por um duplo
aspecto. De um lado, pelo fortalecimento político dos grupos religiosos locais. De outro lado, os
grupos religiosos em sua diversidade, servem de canal para as demandas da população dos
diversos segmentos sociais presentes.
Os líderes religiosos estão ligados diretamente a esse processo de intermediação
social, entre os poderes centrais e as comunidades locais. Essa consagração deve ser vista
como um suporte ideológico a altura do alto custo social do plano político de desenvolvimento e
integração nacional, a partir do governo JK.
Gustavo Ribeiro (1980), em O Capital da Esperança , buscou resgatar um pouco da
história das classes subordinadas, no caso os operários da construção civil, excluídos da
História Oficial de Brasília. A nova era instaurada por sua construção, em primeiro lugar, aponta
também este autor, realizaria a nacionalidade brasileira por ser uma construção de todos os
brasileiros. Em segundo lugar, Brasília foi uma Grande Obra de construção civil, numa região
isolada, com o objetivo de interiorizar a população e integrar a região no mercado nacional.
Em terceiro lugar, eis a questão, essa Grande Obra construída em quatro anos
constituiu-se num enclave político sujeito às leis que a empresa responsável pela obra, A

2
Unidades de Vizinhança, no Plano Urbanístico de Lúcio Costa eram os conjuntos de Super-Quadras atendidas por diversos
serviços urbanos, tais como Igreja, Clube, Biblioteca, Escolas, Comércio local e Delegacia. Na prática, a única que foi
completamente instalada foi a estudada pela autora.
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NOVACAP, definia para a construção. O ritmo da obra, consagrado como o Ritmo Brasília, era
o ritmo de uma intensa exploração de uma mão de obra composta por homens jovens e sem
família, submetidos a jornadas de trabalho de até 24 horas seguidas.
Esses jovens eram atraídos pela ilusão de quanto mais horas trabalhassem maior
seria o salário , sem que houvesse uma legislação trabalhista a protegê-los do desgaste físico
e emocional a que estavam submetidos. A única lei dos canteiros de obras era a lei do
mercado de trabalho.
Essa primeira fase do ritmo de trabalho intenso durou de 1956 a 1958.A partir
desse ano, o fluxo migratório de trabalhadores para os canteiros de Obras foi suspenso e os
acampamentos provisórios começaram a dar lugar aos primeiros assentamentos definitivos que
começavam a surgir a partir do mercado de trabalho informal, que atendia ao mercado da
construção civil.
É com a população que começa a migrar para esses espaços com o objetivo de
ocupar as oportunidades desse novo mercado que surgem as primeiras “invasões” como a Vila
Amaury, Vila Sara Kubitchek, que foram dando origem às primeiras cidades satélites,
inauguradas antes ou logo após Brasília , como Taguatinga em 1958, Sobradinho em 1959 e o
Gama em 1960. O núcleo Bandeirante, ex-cidade Livre, foi regulamentado em 1961.
Dez anos depois, em 1971, o processo continuava com a inauguração de Ceilândia,
para onde foram removidos uma imensa população favelada, principalmente das invasões do
Núcleo Bandeirantes e do Lago Paranoá. Ao todo foram 180.000 pessoas removidas e
assentadas pela CEI - Companhia de Erradicação de Invasões - que deu o nome à nova
Cidade satélite.
Todas esse movimento de reassentamento contou com uma intensa mobilização de
líderanças comunitárias, instituições religiosas e meios de comunicação, intermediadores do
processo.
Em Ceilândia, as entrequadras foram destinadas ao comércios, escolas e Igrejas,
contando inicialmente com 36 lotes para templos religiosos. Segundo Mara Resende(1985)
Ceilândia foi, até o surgimento de Samambaia, que lhe repete a História, marcada pela
insuficiência de equipamentos urbanos, instalações precárias, sublocação e favelização,
contrastantes com os grandes espaços e monumentos do Plano Pilôto.
É relevante destacar as inferências de outro autor, Pilatti(1976) que elaborou
Dissertação em Antropologia Urbana num momento intermediário da História de Brasília, entre
sua fundação e a atualidade, por exemplo, o fato de que em 1975, o DF tinha 760.000
habitantes, o dobro do que possuía em 1965. Em 1985 já eram 1.500.00, dos quais um terço
no Centro Administrativo, Plano Pilôto, Guará, Núcleo Bandeirante e Cruzeiro. Pilatti distinguiu
a realidade dos grupos em processo de adaptação à nova realidade urbana, ou seja, os
migrantes e as transformações sociais a que eles estavam sujeitos, da vida urbana
propriamente dita, tomada como o sistema urbano e a rede de cidades submetida à influência
de seus processos políticos, ideológicos e econômicos.
Nesse sentido, Brasília, enquanto novo centro administrativo do País é desde sua
inauguração, uma nova realidade mediadora entre às metrópoles já existentes no País e seus
problemas e a ausência de metropolidade do interior do País. Inicialmente, Brasília era a
metrópole sem problemas de um interior em modernização.
Essa nova vida urbana, com sua promessa de vida ideal, foi, em primeiro lugar, um
mito tecnológico. A cidade ideal, um não-lugar, teve as desigualdades da estrutura urbana
contidas pelo urbanismo moderno. Já a zona urbana no espaço, o Distrito Federal, foi obra dos
agentes sociais e sujeitos coletivos, o que instaurou de fato as diferenças e desigualdades
sociais neste espaço.
Enquanto mito da vida urbana moderna, o Plano Piloto tem sido espaço da
realização dessa utopia, com uma identidade definida pela monumentalidade das construções
modernistas, manifestação concreta do estado e do poder. Evidentemente os mitos e vivências
da utopia urbana não podem ser exatamente os mesmos dentro da urbanização periférica., que
é o que só a descrição das formas de religiosidade já estudadas permite demonstrar.
Planaltina, por exemplo, cidade do ciclo da mineração, foi fundada em 1790 por
bandeirantes, com o nome de Mestre D’Armas, na rota entre Pirenopólis, Vila Boa de Goiás e
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a zona de mineração da Chapada Diamantina da Bahia. Tornou-se município em 1899 tendo


sido visitada em 1892 pela comissão Cruls que demarcaria o futuro Distrito Federal em 1922.
Sua Pedra Fundamental foi construída pelo Presidente Epitácio Pessoa com uma promessa
de sediar um futuro pólo de desenvolvimento regional, que começou a se concretizar com a
Marcha para o Oeste do Governo Vargas, segundo Zats (1986).
Mesmo assim nunca deixou de ser uma pequena cidade religiosa do interior,
marcada pelo Ciclo da Festa do Divino, entre outras manifestações do catolicismo rústico do
Sertão Brasileiro.
A inauguração de Brasília, em 1960, redefiniu completamente o tempo e o espaço
de Planaltina. O que seria o futuro: a Nova Capital, virou o presente: o que era presente, a
cidade que um dia seria a nova capital, passou a fazer parte do passado. Planaltina viu a
capital ser erguida não onde ela estava, mas ao seu lado, processo que só terminou em 1972,
quando ela foi transformada em cidade satélite da Nova Capital, com novos bairros sendo
agregados ao que veio a ser o Setor Tradicional - a cidade antiga e centenária- para abrigar a
população vinda de fora, principalmente de nordestinos, mineiros e goianos.
Foram nessas novas vilas, Vila Buritis e Vila Vicente, que foram se instalar os
Centros Espíritas, e os pentecostais, tanto quanto o futuro Vale do Amanhecer, próximo da
atual Planaltina. Em 1972 Planaltina renasceu também em sua religiosidade característica,
graças a um novo incremento da Festa do Divino e ao início da Encenação da Paixão de
Cristo. Após Brasília, Planaltina terminou tornando-se a cidade mais religiosa do Distrito
Federal.
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A RELIGIOSIDADE DE BRASÍLIA

Em 1981, José Ferreira Neto pesquisou dois grupos de ufologistas em Brasília,


formados por pessoas que procuravam manter contatos com seres extraterrestres.
Coincidentemente, os ufologistas redefiniam Brasília numa dimensão mítica e milenarista: tanto
o Brasil em geral, quanto Brasília em particular, serão o reduto mundial de uma Nova Era.
Brasília será a sede de uma nova civilização que surgirá no 3º milênio cristão.
Esses ufológos eram espíritas, sendo que os contatos que mantinham com os
extraterrestres, são do tipo mediúnico: sonhos, visões, intuições, mensagens recebidas,
desdobramentos do espírito para fora do corpo, embasadas e codificadas, em primeiro lugar, a
partir da Doutrina de Alan Kardec.
Naquela época, José Ferreira Neto pesquisou o Projeto Alvorada, concebido pelo
arquiteto Luiz Gonzaga Scortesi de Paula. O objetivo do Projeto era o de instalar 12 “estações
celestes” em pontos elevados do território nacional, para receber os aparelhos extraterrestres,
que viriam a manter contatos com a Terra, após um cataclismo mundial, quando inundações e
outras catástrofes destruirão a atual Terra.
O projeto Alvorada possuía um escritório nacional em Brasília, responsável pela
implantação de uma estação celeste em São João da Aliança, município goiano localizado ao
norte do Distrito Federal, numa região elevada. Nesse escritório, na prática, conviviam cerca de
15 pessoas unida em torno de crenças do iminente fim do mundo. Um significativo alinhamento
planetário no final do ano de 1982 traria o início do período crítico.
O original conjunto de crenças que compartilhavam era uma tentativa de síntese
entre Ciência e Religião, trazendo a experiência mística, no caso um elaborado conjunto de
fenômenos de possessão por agentes extra-físicos, para dentro de uma visão de mundo
moderno e modernizada. Os integrantes do Projeto Alvorada possuíam formação universitária e
muita informação a respeito de crenças religiosas e teorias científicas.
O conjunto de crenças, na sua vivência pelo grupo, unia, particularmente, o viajante
disco voador interplanetário com o modelo de um Cidadão Planetário, além das fronteiras
terrenas, como língua, religião, e nacionalidade. Enfim, um indivíduo ambiguamente moderno e
sacralizado, pelo desenvolvimento da capacidade de contato com os seres extraterrenos
superiores. Esse era o ideal do grupo.
Por sua vez, tanto o escritório do Projeto Alvorada, quanto a sua Estação Celeste,
constituíam um território onde a utopia milenarista, associada ao futuro da Nova Capital,
apresentava-se como uma versão resumida da nova cidade, num espaço, num tempo e num
conjunto de indivíduos altamente particularizado.
Para os migrantes que de fato estavam envolvidos no Projeto, vindo em sua maioria
de outras capitais, como Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, tanto o Distrito Federal quanto a
Estação Celeste em São João da Aliança, deviam surgir como a realização da futura terra
prometida, já em tempo presente.
Visto a partir do Projeto Alvorada, o movimento de expansão da fronteira interna
brasileira para as terras do Planalto Central apresentava-se como que numa versão atualizada
da sua mística, pioneira, expansionista e salvacionista. Uma Conquista, do “centro da Terra”,
paradoxalmente moderna e mística, por dentro dos limites do imaginário social .
Na pesquisa de campo que desenvolveu para sua Dissertação de graduação em
Ciências Sociais, Alex Ricardo da Silveira (1997) observou e descreveu uma sessão espírita
realizada numa pequena vila do município goiano de Alto Paraiso, vizinho a São João da
Aliança que também abriga comunidades milenaristas atraídas pela “energia” da região, a mais
elevada do Planalto Central.
O pesquisador pôde assistir a um rito de cura mediúnica operado por membros da
Fazenda Terra dos Anões, uma comunidade espírita situada no Município. Na Vila, a sessão
ocorria num rancho de palha situado num terreno de fundos.

Treze médiuns do “Hospital de Jesus”, formavam a Corrente espiritual que recebia


os espíritos e diagnosticava os males da Vila e de seus moradores. O povoado estaria
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“carregado” por espíritos obsessores, além de padecer com o consumo elevado de bebidas
alcoólicas. Problemas pessoais de moradores que assistiam ao ritual foram apontados, e
tratados com passes e rezas.
Esse tipo de ritual de “conforto espiritual”, realizado pelos médiuns da Fazenda, na
comunidade dos garimpeiros da vila, é um rito característico da ética da prática da caridade
cristã dos Espíritas Kardecistas. Essa assistência social simbólica, é amplamente generalizada
dentro desse ambiente religioso, personificado, entre outros, na figura do espírito do Médico
Bezerra de Menezes, evocação obrigatória dentro desses cultos.
O lote onde os Trabalhos espirituais são realizados funciona como um ‘hospital
espiritual” sob a direção desse espírito. É um território sacralizado, porém dentro de uma
linguagem moderna, médica.
Outra instituição religiosa dentro deste molde, que já foi alvo de pesquisas 3 , chama-
se Desafio Jovem de Brasília. É um movimento religioso encontrado em vários cidades e
constitui-se numa instituição evangélica voltada para a recuperação de jovens drogados. A
recuperação dos pacientes acontece em territórios especiais que a instituição mantém para o
tratamento.
Os jovens iniciam o tratamento na condição de internos, numa residência
denominada “MANSÃO”, a Casa de Recuperação David Wilkerson, localizada na cidade
satélite do Guará. É uma casa espaçosa, com espaço para hortas, entre outras atividades,
onde os pacientes são submetidos a um doutrinamento religioso.
As moças ficam internadas num outro local, o “Lar das Moças”, localizado em
Sobradinho. Só para os rapazes há uma chácara na zona rural de Taguatinga, voltada para
terapias ocupacionais, numa etapa posterior do doutrinamento subsequente à etapa da
“Mansão”.
A fase final acontece no “Escritório”, localizado até hoje na CLN 406, onde o ex-
viciado será definitivamente reintegrado à vida na sociedade civil.
O Desafio Jovem é uma instituição modelo para os Pentecostais que o mantêm .
Ele pode ser interpretado como um conjunto de espaços religiosos locais, individualizados, no
meio de toda a teia de espaços habitacionais do DF, que ele, enquanto Instituição religiosa,
hierarquiza sob outros princípios.
O Desafio Jovem de Brasília ocupa uma posição privilegiada dentro do
Movimento Evangélico do País. Ele serve de modelo para os demais centros de tratamento de
ex-viciados no resto do País, sendo o mais bem instalado de todos. Vejamos, para situar
melhor, onde e como as Seitas Pentecostais estão instaladas do DF, a partir de dois
movimentos pesquisados por Neuza Rodrigues (1983) e Alexandrina Santos (1979),
respectivamente, a Casa da Benção e a Assembléia de Deus.
O Pentecostalismo vinha sendo, desde a década dos 70, o culto que mais crescia
no DF. É um culto de revitalização cristã, surgido como reação a secularização do
Protestantismo. É utópico, ideológico e aberto ao êxtase pelo Espírito Santo e sua Doutrina.
Dentro de sua mítica utópica, Brasília é a Terra Prometida e os pentecostais, são o
povo eleito. O Planalto Central é um lugar seguro e de futuro, por eleição divina. A construção
de Brasília é vista como um plano de Deus, e o Brasil é considerado o maior país missionário
do mundo.
A missão pentecostal, todavia, diverge radicalmente do ecumenismo da Nova
Capital, já que para eles a diversidade religiosa é coisa do diabo e cabe a eles combatê-la.
Santos (1979) particularmente, discute como em Brasília, Religião e Política
compartilham de uma linguagem comum, de um discurso comum e de um mesmo universo de
representações simbólicas. São representações de esperança, utopia, sonho, centro, céu,
elevação, que levam a razão política do progresso e do desenvolvimento até a dimensão do
Mito e das Profecias.
A construção da cidade, a construção e a interiorização do Centro Político da
Sociedade Brasileira é, através dessa moldura e desse fundo, um acontecimento nacional e

3
Boluarte(1979).
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mundial, uma vez que assinala o início da civilização do 3º milênio, instaurando um tempo
próprio, dentro de uma dimensão universal.
Enquanto Mito, a Capital do 3º milênio serviu como um apelo tanto para a
Presidência Carismática JK, quanto como contraponto para a crise das últimas décadas, já
que, em ambos os casos, o que a religião oferece é sempre uma esperança de um futuro
melhor, que compensa as dificuldades do presente.
O fato de que as instituições religiosas de que trataram estarem situadas na
retaguarda do Poder Político é demonstrado por Santos ao analisar a Assembléia de Deus,
onde expõe relações pessoais que são induzidas pelo espaço religioso e que tem efeitos
políticos, envolvendo trocas de favores e a construção de carreiras de prestígio.
Dentro de uma cidade de migrantes atraídos pela melhoria de condições
econômicas e acesso a serviços sociais, as pessoas buscam as promessas que o
desenvolvimentismo oferece através das transformações sociais que opera. Essa busca passa
pelo espaço religioso e nele encontra em caminho de realização.
A Assembléia de Deus, em particular, parece ser uma religião que perpassa
diversos setores sociais dentro do DF. Este movimento religioso possui, inclusive, uma
Catedral localizada na Avenida W-5 Sul, característica em suas dimensões e por sua
arquitetura imponente.
Segundo o levantamento orientado pelo Profº Cope (1979), seus templos estão
dispersos por todo o DF, numa distribuição pontual, desde o Plano Piloto, passando pelas
cidades satélites mais desenvolvidas como Taguatinga, Guará e Sobradinho, até os setores
mais periféricos, nas satélites de Ceilândia e Gama. Atualmente é difícil encontrar um
assentamento no Entorno do DF que não possua pelo menos em templo desses cultos
protestantes.
É provável que, dentro do movimento pentecostal da Assembléia de Deus, um
verdadeiro campo de articulações sociais esteja estabelecido, percorrendo setores dos mais
centrais aos mais periféricos da zona metropolitana do DF, atualizada pela pequena elite
formada dentro da Igreja pelos pastores mais jovens, pessoas com acesso á educação
superior.
A Casa da Benção, é por sua vez, outra Catedral pentecostal, uma vez que seu
templo sede, localizado em Taguatinga Sul, também é conhecido como Catedral da Benção.
Foi fundada pelo pastor evangélico pentecostal Doriel, que denomina sua seita de Tabernáculo
Evangélico de Jesus (TEJ).
Doriel iniciou a sua vida religiosa em São Paulo na década de 50. Só chegou em
Brasília em 1970, vindo de Belo Horizonte, já na condição de pastor. Seu culto cresceu muito,
assim como o Setor onde está instalado, que foi inteiramente urbanizado na década de 80.
Os fiéis do Culto são divididos em dois grupos distintos, os membros e os
freqüentadores. Este últimos participam das chamadas Reuniões de Libertação, ritos de cura e
exorcismo, além dos demais serviços religiosos, enquanto os Membros participam de todas as
atividades do Grupo, incluindo as atividades internas na Igreja Local e na sede Nacional.
A Igreja local é formada pelo conselho administrativo, que inclui o pastor e seus
representantes. A seguir vem a Diretoria local ou regional, seguida do Supremo Concilio do
TEJ. Estão instâncias são interligadas pelos membros que circulam por elas, acumulando
funções.
A forma burocrática da instituição convive com a presença carismática do Pastor
Doriel que centraliza a administração, através do corpo de pastores imediatos. Eles são um
corpo de especialistas na religião, sempre bem vestidos, de terno e gravata, formando uma
confraria, marcada por laços de solidariedade e lealdade.
A passagem da condição de freqüentador para a condição de membro, ou seja, a
filiação de fato, implica numa mudança social, uma vez que passa a haver um
encaminhamento da vida da pessoa e de seus familiares, por parte dos membros da Igreja. Os
membros identificados pela pesquisadora, eram residentes em Taguatinga e Ceilândia,
enquanto os freqüentadores vinham de toda a parte, principalmente das periferias do Entorno
que começava a se formar, entre o Gama e o município vizinho de Luziânia. Eram, na
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totalidade, pessoas pobres e carentes, migrantes nordestinos, mineiros e goianos, atraídos


pelas possibilidades de trabalho e que não chegavam a ser miseráveis.
Os Pastores, por sua vez, não chegam a formar uma elite social de origens distintas
dos demais membros. São uma elite de especialistas religiosos dentro dessas comunidades
periféricas. A distinção fundamental é uma distinção de poderes de origem religiosa.
Os especialistas detém um poder religioso que é monopolizado, uma vez que a
crença fundamental do culto é que o crente é aquele que tem o poder da fé. Quanto mais o
freqüentador ressocializa-se dentro do culto mais irá se aproximar da fonte desse poder,
personificado pelo pastor Doriel e sua equipe, eleito por Deus para a missão evangelizadora da
Casa da Benção.
O êxtase pentecostal da Casa da Benção é mal visto mesmo por outras seitas
protestantes, como os batistas, que os acusam de fanatismo, charlatanismo, enriquecimento
ilícito, entre outras coisas.A Casa da Benção parece ser a seita mais periférica do DF, e a que
apresenta os ritos de exorcismo e de êxtase pelo Espírito Santo mais espetaculares.
Podemos, por fim, demonstrar a propriedade de nosso ponto de vista analisando os
dois cultos de possessão mais característicos do Distrito Federal, pois são os que melhor
permitem equacionar, empiricamente, os parâmetros discutidos até agora.
Os dados citados com relação à Cidade Eclética e ao Vale do Amanhecer são fruto
da pesquisa que Eurípedes Cunha Dias (1974) elaborou junto à primeira, e Ana Lúcia Galinkin
(1977), junto à segunda.
Na prática, a Cidade Eclética e o Vale do Amanhecer são bastante diferentes, mas
possuem algumas características comuns que vale a pena destacar, como o conteúdo
milenarista e messiânico de suas doutrinas e o contraste deste apelo junto à ritualística
umbandista.
A transferência da Fraternidade Eclética para o Planalto Central, pode ser visto
como um movimento de saída de um contexto profano para um contexto sagrado, nos termos
do Grupo, que partiu de uma situação de inserção na sociedade mais ampla para uma situação
de retirada desse mesmo campo. Visto assim o movimento da Cidade Eclética, apesar de suas
singularidades, constitui-se numa resposta a uma situação de mudança social, as mudanças
políticas ocorridas no País a partir da redemocratização de 46.
Os adeptos de Yokaanam não formavam uma comunidade baseada em laços de
parentesco, inicialmente. Todavia, com a transferência do movimento para uma fazenda no
Planalto Central, a Cidade Eclética, surgiu uma pequena comunidade com um número de fieis
que mantém relações estruturadas sob o signo de relações pessoais, como laços de
parentesco. Essas pessoas se distanciaram deliberadamente das relações impessoais próprias
de uma metrópole como o Rio de Janeiro dos anos 50.
A Doutrina do Amanhecer, por sua vez, ocupa um imenso centro ritual onde
médiuns treinados desenvolvem atividades de cura durante alguns períodos semanais
definidos. Essa sede, em Planaltina, nunca foi uma comunidade permanente de fiéis retirados,
ou afastados da sociedade envolvente.
O Vale do Amanhecer, na época em que foi pesquisado, não era uma comunidade
voltada para a auto-suficiência. Moravam no local apenas a família dos líderes e além destes,
funcionava no local um orfanato. Relações sociais extra religiosas não eram intensas e não
tinham espaço no local para se desenvolverem.
Somente em 1970 Tia Neiva, a líder espiritual do movimento, transferiu o culto para
uma ex-fazenda perto de Planaltina, de onde ele nunca mais saiu. O culto do Vale do
Amanhecer surgiu a partir de visões místicas que Tia Neiva começou a ter quando veio
trabalhar como motorista de caminhão na construção de Brasília, desenvolvendo-se
espiritualmente juntamente com a construção do Distrito Federal.
Se a transferência da cidade Eclética para perto da futura capital do País pode ser
explicada em termos históricos e políticos, como uma fuga de uma sociedade em acelerado
processo de modernização, o mesmo não pode ser dito em relação ao surgimento do Vale do
Amanhecer. Por outro lado, tanto a trajetória espiritual de Tia Neiva quanto a do próprio
Yokaanam são muito características dos movimentos migratórios amplos que vem percorrendo
a sociedade brasileira ao longo deste século.
- 23 -

É possível afirmar que estes dois movimentos religiosos foram fundados por dois
migrantes renunciantes 4 cujas trajetórias individuais estavam diretamente relacionadas com
movimentos sociais ligados ao processo de modernização do País. Seus cultos podem ser
vistos como respostas específicas a este processo.
Respostas messiânicas, contudo. Movimentos messiânicos que se tornaram bem
sucedidos, justamente enquanto outros movimentos messiânicos da sociedade brasileira
costumaram ter finais trágicos ou perderam a sua identidade. É possível, por isso mesmo,
perceber a partir destes movimentos as características significativas da experiência social
brasileira atual, desenvolvida a partir da transferência da capital para Brasília.
É mais uma vez na mitologia que cerca a fundação de Brasília que se justificam a
existência destes cultos milenaristas junto à Nova Capital. Brasília será, para ambos, a sede de
uma civilização que surgirá no 3º milênio, após ocorrerem os terríveis episódios descritos no
livro bíblico do Apocalipse. O estilo de vida religiosa que estes cultos praticam é justificado
como um preparação para o advento dessa Nova Era.
Estamos diante de movimentos milenaristas discrepantes, uma vez que a versão
que eles dão para o mito do Apocalipse é singular. Pereira de Queiroz (1965) mostra como o
Catolicismo rústico brasileiro produzia movimentos milenaristas do tipo “paraíso agora”, ou
seja, muito mais preocupados com a prática da instauração de um presente melhor, do que
voltados para a espera de um futuro melhor.
No caso do Vale do Amanhecer e da Cidade Eclética, o que é possível perceber, é
que tanto a prática da Cura espiritual quanto a espera do 3º milênio estão integradas no intenso
e profundo processo de ressocialização a que seus médiuns e membros regulares se
submetem dentro do corpo doutrinário dessas seitas.
A mitologia, contudo, não se resume a ser uma versão local dos mitos bíblicos. Seu
sentido emerge da mitologia que deu origem as expectativas em torno da transferência da
capital, enquanto centro irradiador de decisões, ou seja o centro do Poder Temporal, que
encontrou nestes Centros Religiosos uma contrapartida espiritual. Daí a discrepância desses
movimentos, frente à experiência milenarista e o seu sucesso.
Esta reflexão a respeito dos cultos milenaristas de Brasília serve, também, para
situar outro caminho aberto à investigação. É possível encontrar a gênese da mística em torno
da construção de Brasília na mística da Marcha para o Oeste que acompanhou a idéia de
Interiorização do País. É provável que os fundadores desses cultos tenham sido alvo da
propaganda oficial desses movimentos político-culturais e reelaborado essas ideologias numa
forma religiosa.
É possível perceber, então, que Yokaanam e seus adeptos estivessem fugindo, já
nos anos 40, do processo de crescente politização e cooptação dos grupos espíritas dentro da
Capital Federal da época. A prática da caridade espírita dentro de um contexto urbano é
facilmente articulada à agências político partidárias, como demonstra também a história da
Federação Umbandista do Rio de Janeiro.
Yokaanam teve uma estória de vida bastante atribulada. Na década de 40 era piloto
de aviação comercial e residia na cidade do Rio de Janeiro, onde ingressou numa ordem
religiosa esotérica, A Ordem Mística da Regeneração. Em 1942 tornou-se o diretor espiritual da
Ordem. Neste mesmo ano desligou-se dela pois o Presidente da Ordem desejava manipulá-la
para fins político-partidários. Leva consigo vários membros da ordem e passa a fazer sessões
espíritas no seu próprio apartamento, até 1944, ano em que sofre um acidente áereo. Após
esse acidente largou a aviação e decidiu por se dedicar inteiramente à vida espiritual tornando-
se um peregrino solitário.
Somente em 1946 o grupo de adeptos foi reconstituído ocupando uma sede na
Avenida Getulio Vargas. Em 1947, este grupo inicia uma fase de visitas a bairros e subúrbios
do Estado do Rio e da Capital. Eram peregrinações organizadas que duravam alguns dias em

4
O conceito de Renunciante, desenvolvido por Louis Dumont (1994), (1990), refere-se à individualidade dos
Sanniasins hindus e aplica-se a dos líderes messiânicos característicos de seitas cristãs, como estas.
- 24 -

cada local. Em 1955 já formavam um culto organizado, promovendo cursos de iniciação formal
e sendo alvo de reportagens em periódicos da época.
Foi nesta época que o grupo resolveu sair do Rio de Janeiro, todavia, por
considerar a Cidade como o império dos valores morais modernos que se opunham aos
preceitos cristãos. A transferência para o Planalto Central teve início no ano seguinte.
Esta pequena história ganha um sentido bem mais preciso quando vista junto a
história do movimento umbandista na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Diana Brown (1985)
a relação da Ditadura Vargas com os cultos espíritas em geral, nos 30 e 40, foi das mais
ambíguas.
Desde 1934 os cultos eram obrigados a se registrar, ao mesmo tempo que
permaneciam ilegais e eram perseguidos. Essa tensão levou os primeiros umbandistas
cariocas a criarem a União Espírita da Umbanda do Brasil e a organizarem o primeiro
Congresso de Umbanda em 1941.
A partir de 1945 com a queda de Vargas e a redemocratização do País, a Umbanda
conhece uma rápida expansão, deixando de ser um culto praticado por um pequeno círculo de
cidadãos do Rio de Janeiro.
A Umbanda começou a difundir-se. Surgiram novos Centros e novas Federações.
O culto, livre de perseguições, penetra nos meios de comunicação de massa, como jornais e
programas de rádio. Este processo de legitimação e expansão foi o tempo todo desenvolvido
dentro do intenso clima de politização da época, com os novos líderes religiosos buscando
apoio de políticos e fornecendo bases eleitorais, principalmente junto às camadas populares.
Em 1958, um líder umbandista, Átila Nunes, era eleito vereador. Em 1960, elegeu-se deputado
estadual.
Com relação ao Vale do Amanhecer e sua fundadora, Galinkin (1977) descreve que
Tia Neiva era natural de Propriá, no Sergipe, onde nasceu em 1925. Casou-se em Ceres,
Goiás, em 1943, cidade fundada durante o ciclo da Marcha para o Oeste, no primeiro governo
Vargas.
Viúva, tornou-se motorista de caminhão, indo trabalhar em Goiânia em 1956, como
motorista de ônibus. Nesta sua opção profissional se expressa a rápida tendência a
urbanização que o interior do Goiás atravessou a partir da construção de Goiânia seguida da
construção de Brasília, criando pólos urbanos de atração de migrantes da zona rural, inclusive
de zonas de ocupação recente, como o Mato Grosso de Goiás, onde Ceres se destaca como
produtora de arroz.
Em 1958, Tia Neiva retornou ao caminhão, vindo trabalhar na construção de
Brasília. Só aí passou a ser vítima de manifestações mediúnicas, quando começou a ver a
imagem de um índio todo vestido de plumas brancas. Somente em 1956 resolveu desenvolver
estas faculdades, procurando em Centro Espírita em Goiânia.
Posteriormente, fundou, já na Cidade Livre, no mesmo ano, a União Espiritualista
Seta Branca. No final desse ano, ainda, foi para um sítio localizado perto de Alexânia, na
estrada que conduz à Anápolis. Lá a União mantinha um orfanato e um centro de atendimento
espiritual. Em 1964 Tia Neiva foi para Taguatinga, onde construiu um Barracão para abrigar o
orfanato e a União. Em 1970 foram para Planaltina.
Nesse momento Tia Neiva casou-se com o Sr. Mário Sassi. Casamento de teor
espiritual e de tradições religiosas, principalmente. O Sr. Mário Sassi, paulista, de ascendência
italiana, trouxe para junto de Tia Neiva toda a referência espírita kardecista, sua ética e
doutrina, principalmente sua utopia com relação ao Brasil, sintetizada na obra “Brasil, Pátria do
EVANGELHO” ,entre outras. A toda essa referência espírita juntou-se o culto propriamente
umbandista de Tia Neiva, com seus caboclos e pretos-velhos, somando a eles os Médicos do
Espaço, característicos das Mesas kardecistas e abrindo o Vale do Amanhecer para um
ecletismo e um universalismo inigualáveis dentro dos Cultos de Possessão.
Com a morte de Tia Neiva em 1985, contudo, o Vale do Amanhecer começou a se
preparar para grandes transformações. Em 1991, o Sr. Mário Sassi abandonou o Vale do
Amanhecer, depois de sofrer um gradual processo de esvaziamento de sua liderança. Passou
a dedicar-se a um novo espaço religioso, num sítio em Planaltina de Goiás, em companhia de
uma nova esposa e de uma filha do seu 1º casamento. Lá continuam o trabalho espiritual no
- 25 -

estilo do Vale do Amanhecer, com atividades de Cura Espiritual e preparação para o advento
da Nova Era, no 3º milênio.
O Vale do Amanhecer, propriamente dito, evolui noutra direção. Os filhos carnais de
Tia Neiva assumiram a direção da instituição e deram início a um processo de ocupação de
suas terras, por moradores urbanos. Em 1993, o Vale do Amanhecer foi reconhecido
oficialmente pelo Governador do Distrito Federal como uma nova cidade satélite. Neste
processo de legalização, a Associação de Moradores do Vale do Amanhecer contou com a
intermediação política do deputado Gilson Araújo, do Partido Progressista.
A nova cidade, nasceu com mil oitocentos e quarenta famílias, distribuídas em mil
setecentos e quatro residências, totalizando 18.000 pessoas. Cidade periférica, nasceu com
todos os problemas dos atuais assentamentos do Distrito Federal, falta de saneamento básico,
de policiamento, embora disponha de luz elétrica e transporte coletivo. Chegou-se temer por
um surto de cólera no local, em 1993.
Diferentemente do restante do DF, é a cidade religiosa construída por Tia Neiva
que ocupa o centro espacial da nova cidade, além de lhe dar o nome, como nas antigas
paróquias do Brasil católico. É provavelmente o único lugar do País onde um culto de
possessão de origem afro-brasileira ocupa o centro de uma zona urbana, e inclusive o centro
de sua vida política, já que a administração da Associação de Moradores, e da nova cidade por
extensão, está a cargo da atual direção do Vale do Amanhecer. Os habitantes não são
necessariamente adeptos do Culto, havendo, inclusive, uma igreja pentecostal instalada em
seus limites.
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CULTOS DE POSSESSÃO AFROBRASILEIROS

Nesse conjunto acima exposto, os Cultos de Possessão afrobrasileiros são uma


ausência marcante. Desde que comecei a me interessar por essa temática ficou claro que a
necessidade prioritária era a da realização de um levantamento das Casas de Culto existentes
no Distrito federal, seus líderes, suas histórias de vida, os locais onde estão instalados. Enfim,
suas possíveis características, que depois de analisadas revelariam-se relevantes, ou não,
diante do conjunto de pesquisas, questões e problemas já levantados pelos Ciências Sociais.
Só recentemente surgiu a primeira dissertação de Mestrado nesta área, graças ao
trabalho pioneiro de José Marinho dos Santos (1993), que pesquisou o fenômeno da
Possessão num Centro de Umbanda - O Centro Espírita Assistencial Nossa Senhora da Glória
- e num Terreiro de Culto aos Orixás - A Fazenda Palmares.
As primeiras pesquisas realizadas em Cultos de Possessão, no universo social
surgido a partir da construção da Nova Capital do Brasil foram as realizadas em cultos de
possessão característicos, situados nos limites do Distrito Federal, com um culto dominado por
ritos onde entidades de tipo umbandista, como Caboclos, Pretos Velhos, e Médicos do
Espaço se manifestam.
Entre as pesquisas, que Eurípedes Cunha Dias (1974) e Ana Lúcia Galinkin (1976)
realizaram, respectivamente, junto à Cidade Eclética e ao Vale do Amanhecer há 20 anos, e os
dias de hoje, foi realizado apenas um outro trabalho pioneiro, desenvolvido pelo falecido Profº
Peter S. Cope, à frente de um grupo de alunos graduandos em Ciências Sociais no curso de
Antropologia da Religião, em 1979. Seus alunos realizaram um levantamento piloto junto a
várias instituições religiosas existentes no DF, católicas, protestantes, espíritas e orientais,
observando e descrevendo ritos que serviram de base para uma análise num artigo
denominado Religião e Política no Distrito Federal (1979). 5
Quando optei pelo curso de Antropologia, dentro da Graduação em Ciências
Sociais, só me defini melhor frente a um tema de pesquisa ao cursar a mesma disciplina,
novamente oferecida pelo Profº Cope, em 1981. Escolhi visitar o Vale do Amanhecer, onde
pude assistir a uma cerimônia interna da Corrente Mediúnica que se preparava para realizar
uma operação espiritual num paciente.
Em 1984 retomei os estudos do fenômeno religioso, para a elaboração do trabalho
final da graduação, sob a orientação do Profº Cope. Procurei fazer uma leitura dos teóricos
clássicos frente ao tema, tais como Malinowski, Mauss e Levi-Strauss, a partir de um interesse
em compreender e pesquisar a noção de Trabalho Espiritual dos cultos espíritas afro-
brasileiros.
É corrente que os despachos, as oferendas e a experiência mediúnica em geral,
sejam denominadas, pelos seus praticantes, de Trabalho, Trabalho no Santo, ou de trabalhos
espirituais, o que indica que à categoria econômica corrente - Trabalho - estão alocados outros
significados, de natureza propriamente simbólica.
Malinoswki (1984) em Argonautas do Pacífico Ocidental, discute esse tema,
mostrando através dos povos do Pacíficos Sul que estudara, a associação da noção de
tecnologia, como encontrada no pensamento Ocidental, à noção de Magia. Em Trobriand, uma
série de atividades, como a construção de canoas, preparação de campos de cultivo, coletas e
trocas comerciais, são precedidas por uma série de ritos mágicos, que também são
procedimentos técnicos voltadas para o sucesso de seus empreendimentos.
Sendo assim, esses atos, que nós denominaríamos de simbólicos, estritamente,
para aqueles nativos também são um tipo de trabalho, indissociáveis do conjunto de atividades
produtivas necessárias a reprodução do grupo social como um todo. Malinowski, e
posteriormente, Marcel Mauss(1974), mostraram como essa indissociabilidade - de processos
que distinguimos como simbólicos e tecnológicos - está diretamente relacionada à maneira

5
O Prof.Cope foi meu orientador durante a Graduação em Ciências Sociais, de 1983 a 1985. Seu artigo foi fonte de
inspiração para esta Dissertação.
- 27 -

como bens, (sejam estes, coisas, pessoas, mitos, ritos, festas e celebrações), circulam entre
indivíduos e grupos que constituem essas sociedades, como os ilhéus Trobriand que
Malinowski estudara. Ambos fazem, a partir do estudo de sociedades tribais e arcaicas uma
crítica à visão econômica do Homem e da Sociedade, característica do pensamento ocidental.
Como, todavia, o Trabalho Espiritual encontra espaço e legitimidade dentro de
uma sociedade como a brasileira, organizada segundo princípios de uma divisão social do
trabalho onde, de fato, as operações simbólicas são, ou parecem ser, senão completamente
alheias, completamente englobadas ao processo produtivo? De que maneira aquela lógica,
aparentemente primitiva, pode estar redefinida dentro de uma sociedade moderna, já que o seu
sucesso é tão evidente?
O estudo dos cultos de possessão presentes na sociedade brasileira são uma
tradição de longa data. Desde Nina Rodrigues (1935) encontra-se nesses estudos a
perspectiva de considerar tais atividades rituais bem como os seus adeptos, atitudes e crenças
como características de grupos sociais atrasados e primitivos, responsáveis, por isso mesmo,
pela sobrevivência de costumes de origem tribal e arcaica.
Os “macumbeiros” se não fossem, segundo esta ótica, pessoas ignorantes, quando
não patológicas e anormais, seriam pelo menos diferentes e exóticas, um arcaísmo folclórico,
fadado à assimilação pelos valores civilizados e modernos, na melhor das hipóteses.
Esse ponto de vista mudou muito, ao longo do século e do desenvolvimento das
pesquisas de campo. De qualquer maneira essas práticas religiosas, os cultos de possessão
afro- brasileiros, nunca deixaram de serem vistos como uma diferença cultural marcante dentro
da sociedade brasileira, principalmente em relação à visão científica, racional, intelectual do
mundo ocidental, da qual a tradição de pesquisa social sempre fez parte.
Embora autores como Roger Bastide fossem, posteriomente, encontrar uma
“refinada filosofia” nos Cultos aos Orixás da Bahia, e ele mesmo se iniciasse a este culto, essa
religiosidade continuou sendo vista como um mundo à parte, por isso mesmo privilegiada pela
descrição e interpretação antropológica, principalmente em seus cânones funcionalistas.
O funcionalismo, método que consiste em analisar a cultura de um grupo social em
seus próprios termos, como um sistema coerente e coeso, não impediu que temas como o da
Integração Social fosse tratado com relação a esses grupos sociais, notadamente através da
questão da Aculturação, como na obra do pesquisador pernambucano René Ribeiro (1982). O
ponto questionável, contudo, está em que essas manifestações religiosas sempre eram vistas
como parte integrante da identidade cultural de grupos sociais tomados como diferenças
sociais no Brasil, os negros descendentes de africanos e os mestiços de negros e caboclos.
Tais autores se detinham realmente em descrever a integração destas populações à sociedade
nacional em formação no Brasil, processo no qual a religião ocupava um papel de destaque.
O Porquê da Religião, e dos cultos de possessão se prestarem tanto a questões
ligadas à identidade cultural e à formação da sociedade como um todo, ficavam assim restritos
a esses pontos, quando na verdade essas religiões não estão totalmente direcionadas por
esses paramêtros.
Somente autores recentes, como Anaiza Vergolino e Silva (1975), Beatriz Dantas
(1988), Diana Brown (1985),Ivone Maggie (1988), Patrícia Birman (1983), e Peter Fry (1982) é
que foram pesquisar e discutir como que habitantes das cidades brasileiras encontram nesses
cultos (que possuem evidentes origens étnicas mas não se reduzem a elas) espaços e
oportunidades de darem vazão às suas tensões e conflitos, e de encontrarem meios de
tentarem resolvê-los, graças aos trabalhos espirituais.
A mudança de enfoque é sutil. Primeiro, há, nesses estudos recentes, uma enfâse
maior na dimensão individual, sendo que as pessoas e seus problemas passam a ser vistos
como contemporâneos. São indivíduos urbanos submetidos a pressões e conflitos próprios de
uma sociedade moderna. Nesse contexto, diferenças tais quais origem étnica, referências
culturais e posição de classe estão presentes, porém não são os únicos fatores a orientarem,
sozinhos as opções religiosas e as visões de mundo associadas a essa opção.
Os indivíduos urbanos estão sujeitos a situações em alguma medida comuns, que
são, porém, vividas de maneira bastante distintas. A diversidade religiosa de um contexto
urbano é um bom campo para perceber essa dinâmica, já que é sua expressão.
- 28 -

Vistos assim, os arranjos simbólicos dos cultos de possessão, com os seus


trabalhos espirituais, tão característicos em certos lugares das grandes cidades, como as
encruzilhadas e jardins, periodicamente ocupados por velas acesas e pratos de comida, devem
expressar muitos significados a respeito da vida social brasileira, que merecem ser
desvendados.
Esse novo enfoque, porém não alterou o caráter próprio dos estudos de religião na
sociedade brasileira, num outro sentido. O estudo dos Cultos de Possessão, sejam das Mesas
Espírituais, Tendas Umbandistas e Terreiros de Candomblé, sempre foram estudos de campo
em situação urbana com seus problemas e métodos próprios, incluindo maneiras específicas
de realizar a observação participante tão características da Antropologia.
Esses estudos recentes enfatizaram as questões próprias do contexto urbano
moderno que já estavam presentes desde o início do século. A Sociedade brasileira se
modernizou ao longo do século, o que obrigou a uma revisão e a uma nova postura diante
destes temas.
Desde Nina Rodrigues, entre outros, que a diferença dos estudos antropológicos
das religiões afro-brasileiras se distingue dos estudos clássicos de antropologia em ilhas dos
mares do sul, remotas aldeias africanas e em tribos isoladas da Amazônia. Tal distinção não é
exclusivamente geográfica ou lingüística, um vez que a distância entre o observador e o
observado continuam presentes no contexto urbano.
Gilberto Velho (1980) coordenou uma coletânea inteira sobre este tema, onde
alguns autores apresentam e discutem suas experiências no estudo de cultos de possessão
no Brasil, definindo e trabalhando alguns desses problemas básicos. Para Velho, a questão
básica da pesquisa antropológica em situações urbanas é a noção da Distância Cultural. A
divisão social do trabalho e a diversidade cultural fazem com que as metrópoles modernas
apresentem um padrão de coexistência de tradições culturais nitidamente distintas,
espacialmente próximas, porém, que desenvolvem-se paralelamente umas das outras,
entrecruzando-se na prática, de maneira muito tangencial.
Um dos mais instigantes artigos da coletânea de Velho, o Desafio da Cidade,
intitula-se Gueto Cultural ou a Umbanda como modo de vida : notas sobre uma experiência de
campo na Baixada fluminense, de autoria de Ivonne Maggie e Márcia Contins. Esta
pesquisadora, orientanda da primeira, optou por desenvolver pesquisa dentro do Centro
Espírita de uma Mãe de Santo que tornara-se sua empregada doméstica. Através desta
estratégia, a relação pesquisador-pesquisado passou a desenvolver-se dentro dos limites da
relação Patroa da zona sul x empregada do subúrbio.
Tal relação permitiu, por um lado, que as pesquisadoras convivessem com o
cotidiano do Centro e do bairro onde este estava instalado, não ficando limitadas às cerimônias
religiosas. A pesquisadora chegou a morar três semanas na casa da Mãe de Santo, situação
que ela definiu no artigo como “violentamente marcante”, a ponto de afirmar que a descrição do
Cento Espírita - bastante completa parra o pequeno espaço do artigo - ter ficado muito aquém
de toda a experiência por que passou.
Essa intimidade, que em muito rompe a dimensão pública da relação pesquisador -
pesquisado, dando - lhe uma outra dimensão, doméstica e até íntima, reaparece, por exemplo,
na pesquisa de José Marinho dos Santos em Brasília. Pesquisa longa e aprofundada, com
reflexão criteriosa sobre o tema, foi desenvolvida no Centro Espírita que sua esposa, médium
umbandista, faz parte, e junto ao Pai de Santo do Terreiro de Candomblé que ambos
freqüentam na condição de adeptos.
Se tal intimidade facilita, e muito, o acesso do pesquisador a informantes e a
informações que nem sempre são tão fáceis de obter, contudo, pode resultar numa relação de
campo onde algumas informações, ou pelo menos a maneira como foram transmitidas, tornam-
se obscuras, por permanecerem implícitas. Casos clássicos são o de Roger Bastide e de Juana
H. dos Santos (1976) que apresentam informações a que tiveram acesso na condição de
iniciados e adeptos dos Cultos que estudaram. Tal condição dissolve a fronteira da relação
pesquisador-pesquisado ,o que pode enriquecer a pesquisa, mas complicar a divulgação dos
resultados para um público leigo e não iniciado.
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Uma relação interessante foi a que Ivone Maggie desenvolveu na elaboração de


sua dissertação de mestrado Guerra de Orixá. Ela pode acompanhar o drama da criação de
um Centro de Umbanda do qual um aluno seu no curso de Ciências Sociais tornara-se
presidente. Na condição de professora universitária do Presidente do Centro ela esteve num
plano altamente privilegiado para realizar a pesquisa
Outro caso semelhante foi o da pesquisa desenvolvida por Anaíza Vergolino e Silva
junto à Federação umbandista de Belém do Pará e às prestigiadas - e fechadas - Casas de
Culto dirigidas por Pais de Santo que evitavam essa Federação. Ela teve acesso a ambos, por
ser, em primeiro lugar, aluna e orientada do Profº Arthur Napoleão Figueiredo, intelectual de
muito prestígio social na capital paraense e pesquisador pioneiro dos cultos de possessão do
Pará e de suas populações negras.
Nos dois casos, as duas pesquisadoras tiveram sua presença reinterpretada nos
termos da compreensão religiosa dos pesquisados, tendo o trabalho intelectual do antropólogo
sido considerado uma missão junto a religião. Missão muito bem sucedida, aliás. Guerra de
Orixá foi publicado em vários edições, tornando-se leitura obrigatória dentro da etnografia afro-
brasileira.
No caso da Profª. Anaíza Vergolino e Silva, o Tambor das Flores, o rito central da
Federação Espírita por ela estudada, e que dá nome a sua dissertação de mestrado, passou a
contar com a presença regular da Universidade na sua organização, como a autora cita:
“Todos os anos a disciplina de Etnologia e Etnografia do Brasil programa como
atividade extra-classe do Curso, a observação de um ritual de possessão (no caso, o Tambor
das Flores). Como a atividade é formalizada, utilizamos ônibus da Universidade, além de
levarmos conosco outros alunos e professores da Universidade e esporadicamente, algum
visitante.”
Estes exemplos ilustram o desafio da pesquisa antropológica, que mesmo no
contexto urbano, pelo menos no caso dos Cultos de Possessão, pode trazer ao pesquisador
experiências tão profundas como a que aqueles que se decidem por grupos sociais remotos e
isolados se deparam. É que em ambos os casos o desafio será sempre o de transformar essas
experiências num material inteligível e coerente, capaz de servir à compreensão de fenômenos
sociais mais amplos e gerais.
- 30 -

DO PROJETO À PESQUISA

Em junho de 1992 defendi o projeto de pesquisa intitulado As Religiões Espíritas


Afro-brasileiras no Distrito Federal, sob orientação da Professora Rita Laura Segato de
Carvalho, pesquisadora interessada em conhecer o processo de implantação dos cultos afro-
brasileiros no Distrito Federal.
Partimos de uma perspectiva que continua válida, grosso modo. O objeto explícito
do projeto era conseguir dados que possibilitassem reconstituir a chegada e a fixação dos
cultos espíritas afro-brasileiros na Nova Capital do Brasil. Tal reconstituição poderia ser
abordada e sua relevância justificada por uma série de parâmetros.
A mais urgente era a ausência de maiores informações sobre a história dos
diversos grupos sociais que de fato compõem a população do Distrito Federal, e a maneira
como toda essa diversidade sociológica está expressa no plano cultural, onde a religião é
sempre referência relevante.
Dentro desse horizonte, os Cultos espíritas afro-brasileiros apresentam uma
diversidade regional relativamente conhecida, manifestada em diversas matrizes tradicionais
tais como a Pajelança, Catimbó, Jurema, Toré, Candomblé de Caboclo, Candomblé de
Nação,Tambor de Mina, Xangô, Batuque, Umbanda Branca e Umbanda Preta, sem falar nas
combinações possíveis entre estas tradições, que alguns líderes realizam.
Considerando a população de Brasília como composta por segmentos de todo o
País, com um trânsito constante pelas sua regiões de origem, graças a laços de parentesco,
profissionais e mesmo turísticos, é de se imaginar que várias dessas tradições possuam
representantes no DF, formando um conjunto original de instituições religiosas.
Outra característica desses Cultos que foi levada em consideração é o alto trânsito
que é verificado entre os freqüentadores das Casas de Culto, o que resulta num intercâmbio de
informações e até de influências mútuas no plano das crenças e das práticas rituais. Alguns
Centros reagem a essa tendência buscando um ecletismo como o ideal para os cultos que
praticam, enquanto outros procuram manter uma fidelidade às suas origens tradicionais,
evitando influências de fora. No Distrito Federal é lícito inferir que esse trânsito deve apresentar
características significativas, que podem ajudar a compreender o processo de expansão
desses Cultos dentro do País e mesmo fora dele. 6
Tomavamos, pois, como dada a diversidade e as diferenças verificáveis entre esses
cultos afro-brasileiros como o objeto da investigação, que teria como objetivo, encontrar, dentro
do DF, os representantes das tradições regionais. Estavam sendo buscadas no espaço
religioso equacionamentos para questões sociais mais específicas como os valores atribuídos
à regionalidade, à nacionalidade e as reinterpretações locais destes temas realizadas dentro
desses cultos pelos seus representantes.
Nesse sentido, tracei uma estratégia inicial que consistia em buscar as Casas de
Culto e os líderes religiosos mais antigos e estabelecer suas origens regionais no plano
religioso, primeiramente, para depois estabelecer suas relações desenvolvidas dentro do
Distrito Federal.
O ponto fraco do projeto fora, desde o início, a ausência de limites claros com
relação à extensão do universo a ser investigado. A noção de Tradições Transplantadas
implícita ao longo de todo o argumento do projeto trazia uma série de inconsistências.
A primeira era a idéia de que as tradições regionais possuiriam “embaixadores” na
Capital do País. Esses “embaixadores” estariam enraizados aqui, como se fossem meio
invisíveis e ao mesmo tempo possuíssem uma estabilidade que, numa sociedade tão recente
quanto Brasília, eles não teriam condições de apresentar.
Existem outros aspectos instáveis na dinâmica dessas religiões que a vida
metropolitana favorece. O Distrito Federal dos anos 90 não é uma cidade dentro de uma

6
A Umbanda têm se expandido para a Argentina, principalmente em Buenos Aires. Também existem registros de
Casas em Portugal e no Estados Unidos. No Caribe, por sua vez, o modelo do Culto aos Orixás cubano expande-se
através das ilhas, além do Estados Unidos e da Venezuela. Neste último País existem cultos de tipo caboclo, similar
a umbanda brasileira, com a divinização de pessoas históricas, como o próprio Simon Bolivar.
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definição estrita mas sim um complexo de cidades, vilas, sítios, zonas rurais e “invasões”
interligadas que já extravasou, e muito, as fronteiras do quadrilátero original demarcado nos
anos 50.
O trânsito urbano característico de uma zona metropolitana como esta faz com que
pessoas vão e venham com muita freqüência e sem muita pretensão de criar raízes. Graças a
tal trânsito muitas dos pioneiros que eu tentava encontrar simplesmente haviam morado em
Brasília por pouco tempo e se mudado novamente ou nunca residiram permanentemente em
Brasília. Outros simplesmente já haviam morrido.
Algumas das primeiras Casas de Santo haviam sido instaladas em locais que não
mais existiam, como no caso daquelas que funcionaram nas “invasões” localizadas no Núcleo
Bandeirante e que foram transferidas para a Ceilândia em 1971. Outras funcionaram em lotes
situados na periferia das cidades satélites de Taguatinga e Sobradinho, até a década de 70,
em áreas que atualmente não são mais tão periféricas e que não se prestam mais ao
desenvolvimento das atividades rituais desses cultos. Tornaram-se zonas residenciais,
comerciais ou industriais.
Os informantes que pude entrevistar eram, em sua maioria, pioneiros no DF.
Rapidamente começaram a mostrar que nos anos 60 e 70, houve no DF uma grande
disponibilidade de terras, fosse para a instalação de uma Casa de Culto, fosse simplesmente
para a realização de ritos em locais apropriados junto à natureza, que os primeiros praticantes
desses cultos faziam muitas de suas atividades rituais em locais improvisados, sob árvores ou
em córregos. Além disso existiam, como até hoje, pequenos grupos de pessoas que se
reuniam na residência de um líder que dava passes, lia a sorte em cartas ou recebia espíritos.
Face a tal padrão de implantação, a idéia das Tradições religiosas
transplantadas e enraizadas começou a cair por terra. Contrariamente à realidade dos
funcionários públicos federais transferidos para o Plano Piloto de Brasília, onde tudo estava em
seu lugar, graças ao planejamento moderno, inclusive as religiões, as manifestações religiosas
que eu estava pesquisando demostravam obedecer a um padrão que recortava o planejamento
urbano modernista, seguindo a dinâmica própria do rápido crescimento do Distrito Federal.
Quando cheguei a tal constatação, pude perceber que a dissertação deveria tratar
de outro tema que não exatamente a questão das tradições religiosas regionais. O novo tema
iria se definindo ao longo dos contatos com os informantes.
A primeira informante fundamental para o redirecionamento da pesquisa foi Vanda
de Farias, residente no Distrito Federal desde 1960. Chegou acompanhando seu irmão, Aidano
Farias, advogado pioneiro bastante conhecido no DF. Em 1960 chegou defender Mães de
Santo e outros espíritas da Cidade Livre que tinham problemas com a policia no exercício de
suas atividades religiosas.
Vanda de Farias foi uma das primeiras pessoas a me mostrar que reconstituir a
História dos Cultos Afro-brasileiros no Distrito Federal, pelo menos a partir de uma perspectiva
antropológica, era extremamente problemático, uma vez que nem as pessoas e nem os lugares
perduraram, ao longo dos anos 60 e 70.
Ela foi a primeira pessoa a ser iniciada ao Culto dos Orixás da Nação Angola no
Distrito Federal. “Recolhida, raspada e catulada”, como os adeptos metonimizam esse ritual de
iniciação, ao qual ela foi submetida no final da década de sessenta.
O local onde foi realizado a primeira parte de seu processo ritual, localizava-se num
Sítio em Águas Claras, onde atualmente está sendo construída uma nova cidade. A segunda
parte do processo ocorreu numa residência particular em Taguatinga, cedida por um conhecido
e improvisada para os fins religiosos.
O primeiro Pai do Santo que a iniciou não estava capacitado para a execução do
ritual, de tal maneira que ela teve que esperar pela vinda de outros Pais de Santo, de São
Paulo, trazendo pessoal devidamente credenciado para o processo. Nenhum deles se
estabeleceu no DF. Seu Pai de Santo deixou uma Casa aberta, da qual ela terminou por se
afastar, por motivos de incompatibilidade com os demais irmãos de santo.
De qualquer maneira, Vanda havia se iniciado a uma tradição regional, o
Candomblé da Nação Angola, originário do Terreiro Bate-folha, até hoje dirigido por Mãe Bebé,
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que reside em Salvador, onde se localiza esta Casa de Santo tradicional. Mãe Bebé esteve em
Brasília, nos anos 70, segundo recordações não muito claras de Vanda de Farias 7
Esse último dado, referente à tradição regional, embora fosse o objeto do projeto
inicial, mostrou-se pouco significativo. Felizmente Vanda me indicou uma série de pessoas que
estavam estabelecidas no DF desde a década de sessenta e que tinham trajetórias mais bem
sucedidas do que a sua dentro da Religião 8 e com as quais eu poderia saber mais. Eram
pioneiros mais antigos e estavam em atividade até hoje. A maioria dessas pessoas se
conheciam entre si, de tal maneira que pude ter certeza de estar diante de uma rede de
informantes relevante.
Comecei por visitar as pessoas que estavam instaladas no Plano Piloto. Na FLORA
LOGUM EDÉ , casa de artigos religiosos antiga, localizada numa rua comercial da Asa Sul,
pude recolher boas informações com a Sra.Lêda, cunhada da proprietária, a Sra.Wanda, que
mantêm uma rede de casas comerciais no DF especializadas em artigos utilizados nos
trabalhos espirituais, como velas, ervas, defumadores e imagens, entre outros. Nesta mesma
loja, um cunhado de ambas, Nélson de Xangô, joga búzios africanos durante a semana. Ele é
Pai de Santo responsável por um Terreiro do Culto aos orixás localizado num município goiano
próximo à fronteira com o DF.
Pude conhecer um pouco da história do Centro Espírita João Baiano, o primeiro
centro espírita a ser instalado no Plano Piloto e que funcionava no mesmo local, na Avenida W
- 5 Sul. Este centro espírita foi uma casa de santo bastante conhecida e freqüentada nos anos
60 e 70, até a morte de seu fundador, Antônio de Assis Laos, em 1980. O Sr. Laos era
funcionário de um Tribunal Superior, que transferido do Rio de Janeiro para Brasília, instalou o
seu centro de Umbanda Branca na nova capital.
Após a sua morte, que pode ser vista como um marco divisor da fase pioneira para
a fase atual desses cultos de possessão no DF, este centro espírita tornou-se palco de uma
série disputa sucessória, envolvendo a linha de culto a ser mantida na Casa.
Haviam duas facções. A facção que defendia a continuidade da tradição do Sr.
Laos, representada por um casal de filhos de santo, pioneiros como ele no DF. A outra facção,
encabeçada pela viúva do falecido, defendia a mudança da linha ritual. A filha carnal do casal,
também adepta da umbanda e do culto aos orixás, servia de intermediária. O caso foi parar na
Justiça que não havia se decidido definitivamente sobre quem deveria continuar a dirigir o
Centro Espírita, localizado numa área privilegiada do Plano Piloto.
Ao final da pesquisa pude conhecer um dos Pais de Santo mais bem sucedidos de
Brasília, Tito de Omulu, que, na época, mantinha uma pequena sala comercial, na Asa Norte,
para atender sua clientela com o jogo dos búzios africanos.
Segundo ele, os líderes espíritas típicos de Brasília são, pelo menos nos Cultos de
Nação, aqueles que vindo do Rio de Janeiro, são ligados ritualmente às Casas de Santo de
Salvador. Nélson de Xangô, que eu entrevistara no início da pesquisa, afirmara algo
semelhante, dizendo que vínculos muito específicos ligam Salvador, Rio de Janeiro e Brasília,
para os membros do Culto aos Orixás.
Após entrevistar mais de vinte pessoas, pude perceber que dessas, a grande
maioria chegara a Brasília oriunda do Rio de Janeiro, onde haviam começado suas vidas
religiosas. As exceções só faziam confirmar a regra.
Maria do Oxóssi, goiana, natural de Anápolis, desenvolveu sua religiosidade na
fazenda de seu pai, numa época em que Goiânia mal começara a ser construída, durante a
década de 30. Chegara à Cidade Livre em 1960, antes da inauguração oficial de Brasília, vinda
do Rio de Janeiro, onde havia fixado residência temporariamente, depois de viajar por todo o
Brasil, e ido até a África, inclusive. Embora tenha me afirmado ser Mãe de Santo de Nação,
praticando culto aos orixás no rito Jeje e no Kêtu, outros informantes que a conhecem
afirmaram que ela “tocava umbanda”.

7
.. Na dissertação de Serra(1982) é confirmada a passagem de Mãe Bebé por Brasília.
8
A idéia de Religião aqui está sendo tomada como categoria nativa e expressa a opinião que os informantes possuem a respeito
da religiosidade que praticam.
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Fui descobrindo, assim, que as idéias a respeito das tradições religiosas e das
origens regionais variavam muito entre os informantes, segundo critérios que eu desconhecia
inteiramente quando elaborara o projeto de pesquisa.
Jorge, médium umbandista de origem maranhense, nascido no Rio de Janeiro, teve
suas primeiras manifestações mediúnicas em São Luís do Maranhão, onde realizou o
desenvolvimento de seus guias, num centro espírita. Sempre viveu em trânsito entre São Luís,
Rio de Janeiro e Salvador, vindo para Brasília com a família no final dos anos setenta. São Luís
ocupa, na Amazônia, uma posição equivalente a de Salvador no Centro Sul. É a capital da
religião dos terreiros, conhecidos como Tambores ou simplesmente como Mina. No Planalto
Central, Jorge começou suas atividades religiosas na comunidade espírita de Palmelo,
próxima a Goiânia. É uma pequena cidade especializada em curas mediúnicas. Saiu de lá
porque seus guias de umbanda não eram bem aceitos pelas lideranças kardecistas.
Somente os informantes que vieram muito jovens do Rio de Janeiro não chegaram
já iniciados em Brasília. Em compensação, os informantes que vieram de cidades do interior
para o DF, como Vanda de Farias, que veio de Uberaba, se desenvolveram no espiritualismo
em Brasília, embora já conhecessem algumas manifestações dessa natureza em suas cidades
de origem.
Pude perceber que esses cultos de possessão além de serem característicos das
zonas urbanas brasileiras possuem, não só no DF, características próprias do universo
metropolitano do País. Em Brasília estão particularmente relacionados com esferas do Poder
Público, conforme afirmara Nélson de Xangô, “onde está o Poder Político, está o Poder
religioso”.
Compreendi que não estava diante de uma versão candanga dos cultos afro-
brasileiros, ou seja, de guetos culturais bahianos e cariocas instalados no Planalto Central, mas
sim diante de um modelo de religiosidade, o qual denominei de Espaço Religioso da Capital
Federal , tomando Capital Federal no sentido estrito de sede do Poder Político Nacional,
atualmente instalado em Brasília, que foi construída especialmente para abrigá-lo.
Sendo assim é possível afirmar que o estudo da religiosidade brasileira, nesse novo
espaço social que é Brasília, revela elementos da atual vida política do País, expressos em
linguagem religiosa e que estão relacionados com o processo da transferência da capital do
Rio de Janeiro para o Planalto Central.
Outro informante, Sebastião de Souza, alertara-me que o tipo de dados que eu
desejara coletar inicialmente só poderiam ser obtidos com segurança junto a dois Ogãs que
conhecem praticamente todas as Casas de Culto existentes no Distrito Federal.
Como as Nações do Culto aos Orixás africanos se distinguem fundamentalmente,
em termos práticos, pelo ritmo dos tambores, suas formas e a maneira como são tocados, são
os Ogãs responsáveis por esses instrumentos que sabem realmente reconhecer as Nações, as
filiações e as tradições regionais de uma Casa. Como os bons Ogãs são raros, os poucos que
existem estão sempre circulando pelas Casas de Santo. Um levantamento das tradições
regionais no DF seria um trabalho para etnomusicológos, especialidade que eu desconheço
inteiramente.
A outra alternativa de pesquisa que me foi colocada por Sebastião de Souza era
junto ao Sr. Paiva, Pai de Santo muito conhecido e presidente da Federação dos Cultos afro-
brasileiros do Distrito Federal.
A Federação, segundo o próprio Sr. Paiva, possuía em meados de 1992, cerca de
2.150 Casas registradas, que levariam pelo menos cerca de 2 meses, num levantamento
rápido, para serem tabeladas, sem contar o inconveniente da Federação não possuir
autorização dos seus filiados para que os registros pudessem ser consultados.
Além disso, o Sr. Paiva afirmara ser uma pessoa muito atarefada, ainda mais que
estava ocupado, no 2º semestre de 1992, em atividades que seriam desenvolvidas junto ao
Templo da Legião da Boa Vontade, e posteriormente, com as celebrações da passagem do fim
de ano, quando inauguraria uma imagem da Orixá Yemanjá, as margens do Lago Paranoá.
A conversa com Sr. Paiva despertou - me uma série de intuições, que depois pude
confirmar. O Sr. Paiva não só era uma pessoa muito ocupada como também é um líder
- 34 -

religioso muito influente, íntimo de certas instâncias do Poder político e de alguns de seus
representantes.
Vários informantes se referiam a Federação com a “Federação do Paiva”,
enfatizando o caráter personalista de sua liderança, por sinal muito bem sucedida. Alguns
informantes o criticaram bastante, pelo seu empenho em participar da vida pública e oficial do
Distrito Federal.
Não é só o Sr. Paiva que é um líder espírita tão influente. Diversos líderes religiosos
também o são, de alguma maneira, que inclui boas relações com pessoas ligadas as esferas
do Poder Público institucionalizado. Em dois casos, por exemplo, não consegui entrevistar as
líderes de dois Centros de Umbanda antigos e respeitados, e credito a recusa de ambas ao
fato de não lhes ser conveniente expor suas atividades sociais a um jovem e anônimo
pesquisador.
Enfim, a realidade social dos meus informantes não era a de um grupo social
oprimido para quem uma pesquisa acadêmica pudesse significar a possibilidade de uma
visibilidade social e servir de canal para reivindicações específicas, como é relativamente
comum acontecer.
Os informantes mais idosos e antigos na cidade demonstraram apreciar poder
contar suas estórias para um pesquisador e pelo menos uma Mãe de Santo, D.Marlene Souza
Braga, mostrou-se bastante consciente da necessidade de um registro da vida religiosa do DF.
Ela possui um arquivo bastante completo sobre as sua atividades juntamente com outros
líderes pioneiros de Brasília e é uma pessoa que merece ser mais pesquisada em
profundidade.
Como um todo tive acesso a um conjunto de informantes que são membros da elite
religiosa de Brasília. São muito bem sucedidos, conhecidos e respeitados. Procurei me deter
naqueles que, de alguma forma, estiveram ou estivessem, próximos ao centro social de
Brasilia, particularmente no Plano Piloto.
Nesse ponto surgiu um conjunto de dados de fonte inesperada, através do
processo que culminou no impeachment do Presidente Collor. Dentro das mais variadas
denúncias que o envolviam, chamava a atenção as repetidas acusações de que ele, sua mãe e
sua esposa, faziam “macumbas” com matanças de cachorros, galinhas e bodes, com o intuito
de neutralizar as ações de seus inimigos políticos, sob o comando de uma mãe de santo
alagoana.
Ficava claro, então, que esses cultos de possessão não se limitavam a ser uma
sobrevivência de tradições de origem africana, ou regional. Não seriam tradições mantidas com
muito sacrifício por humildes mães e pais de santo, de origem africana ou mestiça, em pobres,
porém sérios, terreiros nas periferias de grandes cidades, apesar de todas as pressões da
sociedade envolvente em descaracterizá-los. Parte da reflexão etnográfica clássica as vezes
sugere algo assim. Seria muita ingenuidade ver na aliança de líderes religiosos com lideranças
político-partidárias algum processo de descaracterização de uma tradição cultural.
Alertara-me, todavia, outro informante, Nétio Benguela, artista e intelectual do
Movimento Negro Unificado, que de fato, os líderes religiosos negros, mais próximos das raízes
africanas, existem no DF, vivendo em condições difíceis, enquanto que outros líderes, os mais
bem sucedidos financeiramente, mais bem instalados e influentes não possuem tanto
conhecimento, ou pelo menos não estão tão próximos das raízes tradicionais.
São, em maioria, filhos de santo bem sucedidos dos líderes mais tradicionais, como
os dois dirigentes de duas Casas de Santo muito freqüentadas e prestigiadas em Brasília, Tito
de Omulu e Lilico da Oxum, que Nétio freqüentara durante os anos 80.
Tito de Omulu, gaúcho de porto Alegre, iniciou-se ainda menino com um Pai de
Santo de origem africana, do Batuque gaúcho, tendo depois ido para Salvador onde completou
sua formação numa das mais prestigiadas Casas da Nação Alakêtu. De lá foi para o Rio de
Janeiro, onde vivia do comércio de artigos religiosos. Veio para Brasília no final dos anos 60, e
devido ao prestígio adquirido, atualmente vive exclusivamente para os assuntos religiosos,
através das consultas com o jogo dos búzios africanos. Atualmente sua sala de atendimento
localiza-se no Centro Empresarial Brasília, um dos mais modernos conjuntos comerciais, do
Plano Piloto.
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Lilico da Oxum é natural de Pernambuco, onde foi iniciado no Culto aos orixás na
Nação Kêtu. Seu pai de santo morreu quando ele ainda era muito jovem. Ele se mudou para o
Rio de Janeiro onde chegou a freqüentar a Casa de Santo de Joãozinho da Goméia, um dos
pais de Santo mais famosos do Brasil,, também pernambucano, que herdou os assentamentos
do seu pai de santo, com quem se dava. Lilico veio para Brasília em meados dos anos
sessenta e se tornou um dos primeiros e mais jovens pais de santo de Nação atuando no DF.
Deste cedo “vivia pro Santo”, principalmente da prática oracular e de outras atividades
relacionadas.
Lilico é muito querido e conhecido, embora algumas Mães de Santo mais idosas o
tivessem como muito “novo”, para as exigências da vida religiosa. Seu Terreiro esta instalado
numa numa pequena fazenda nos arredores de Sobradinho, que recentemente transformou-se
numa nova zona urbana, Sobradinho II, onde o Terreiro se destaca com seus barracões
espaçosos e suas árvores frondosas.
O Sr. Paiva e sua esposa, Inalda, também são pernambucanos. Ambos são filhos
de santo do Terreiro da Água Fria, considerado a Casa de Santo mais tradicional do Recife. O
Sr. Paiva é Sargento da Marinha, já reformado. Veio para Brasília, inicialmente, por
transferência das Forças Armadas, não se demorando muito tempo. Retornou na década de
80, para se dedicar exclusivamente as atividades religiosas, após ter sido reformado. O casal
reside em Luziânia, histórica cidade goiana localizada a 50 km de Brasília, onde instalaram seu
Terreiro. A sede da Federação dirigida pelo Sr. Paiva está localizada em Taguatinga, na QNA
17, um dos setores mais valorizados daquela cidade.
Quanto às relações do Sr. Paiva, narrarei um episódio que denota a abrangência e
a força de sua Corrente espiritual. Chegando a passagem do ano de 1992/93, Pai Paiva, como
se faz conhecer publicamente, inaugurou a estátua de Yemanjá, no Lago Paranoá, na 17ª festa
de ano novo, promovida pela sua Federação.
Havia condução para transportar fiéis da Rodoviária para o Lago Paranoá. A
imprensa local estimou que ao longo da noite umas 10.000 pessoas compareceram ao local,
para prestar suas homenagens à orixá das águas.
O ritual foi coroado pela discreta presença do recém empossado Presidente Itamar
Franco que na madrugada compareceu, vestido de branco, como é recomendado, para
depositar rosas brancas aos pés da imagem de Yemanjá. Foi a melhor imagem da aliança
simbólica do poder religioso com o poder político que poderia ter se dado durante a pesquisa.
O Presidente da República que havia caído sob toda a sorte de acusações,
inclusive de praticar sessões de magia negra, em giras de exu e pomba-gira, fora substituído
pelo seu vice-presidente, celebrava em público a poderosa, maternal e purificadora Yemanjá,
num rito celebrado em todo o País, simultaneamente, quando são renovadas as esperanças da
população de um ano novo melhor do que o que passou.
Os ritos sangrentos aos Exus e pomba-giras, que a família Collor realizaria nos
porões de sua mansão, eram noticiados juntamente ao assassinato de uma jovem atriz de
telenovelas, Daniela Peres, e de ritos de magia negra ocorridos no sul do País, onde crianças
foram sacrificadas a Exu. Nesse último caso, fora uma família de políticos a mandante dos
ritos, desejosa de obter sucesso para a carreira de um prefeito do Paraná.
Houve muita especulação e exploração sensacionalista por parte da impressa
desses episódios. De qualquer maneira, com freqüência, um pai de santo ou uma mãe de
santo apareciam numa entrevista e uma emissora de televisão chegou a dedicar um programa
ao tema.
Pude até acompanhar um informante numa ida ao gabinete de um Deputado
Distrital do DF, no final de 1992. O deputado recebeu seus correligionários e eleitores com uma
leitura da Bíblia e uma oração coletiva, antes de começar o atendimento das reivindicações
destes. Mantinha, no seu Gabinete, um grande quadro representando um Preto-Velho, junto a
um vaso com espadas-de-São-Jorge e outras plantas utilizadas nos cultos afro-brasileiros para
afastar mau-olhado. Quando da nossa visita ao seu gabinete acompanhava-nos outra dirigente
de um Centro Espírita na Cidade Ocidental, em busca de apoio para as suas atividades
assistenciais.
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Tais episódios expressavam a influência que esses cultos de possessão tem no


cenário nacional, o que poderia trazer problemas para a pesquisa, se quisessemos dar conta
de todos os elementos que apareciam, principalmente nos meios de comunicação.
Por outro lado, os informantes estavam longe de falar apenas desse tipo de vínculo.
O melhor seria dizer quer todos tinham alguma coisa a afirmar a respeito, embora nenhum
deles tenha dito que esse vínculo fosse o mais relevante ou o mais significativo dentro da
existência de seus Cultos no DF.
Felizmente, nesse ponto da reflexão, já possuía material de campo suficiente para a
elaboração de uma etnografia que levasse a uma análise consistente, do fenômeno
Religião/Poder Político, embora boa parte dos parâmetros de análise necessitassem ser
modificados para encarar o desafio de construir este novo objeto que ainda não havia discutido
claramente, as relações entre os cultos de possessão e as instituições do poder público,
enfatizando a dimensão das relações políticas dentro da experiência religiosa.
Com essa meta em vista, passei à orientação acadêmica do Profº Luís Tarlei de
Aragão, especialista tanto na teoria antropológica da Religião, quanto de questões próprias à
antropologia urbana e política, além de um profundo conhecedor da vida social e política do
Distrito Federal, com vários artigos publicados nestes temas.
Luís Tarley de Aragão(1990) retomara um velho tema da Cultura Brasileira, o tema
da tristeza do colonizador português no Brasil, transposta para a relação de nossas elites
frente ao País. Estas elites, “ostentatórias, presunçosas, desconfiadas e macambúzias”, em
oposição a um povo criativamente lúdico, não se situam completamente no conjunto da cultura
brasileira, senão que de uma forma inteiramente dividida, por exemplo, num comportamento
sexual que distingue casamento e sexo, compromisso social de prazer juntamente com
esposas( brancas, de elite), de amantes(de cor, do povo).
Tal divisão perpassa a percepção corpórea dos membros dessa elite quanto à
sociedade brasileira como um todo, cuja indefinição e permanente crise social não são de uma
natureza puramente política ou estritamente econômica. Aqui se encontra o cerne de nossa
profunda singularidade social, o ethos, o sentido que as relações entre as categorias sociais
presentes no Brasil realizam, do ponto de vista do pensamento social das elites do País.
Além disso, a ideologia desenvolvimentista que domina o Brasil nestas últimas
décadas, implantada definitivamente a partir da construção de Brasília, é que tem produzido,
entre outros efeitos, a debandada de membros da aristocracia e das altas classes médias em
direção às religiões afro-brasileiras, em busca de novas soluções mágicas e maravilhosas para
os seus problemas e do País, como a mística da Capital do Terceiro Milênio , de Brasília,
revela. Para Aragão (op.cit):

“Esses segmentos sociais, tributários que são de uma afetividade difusa, de


uma emocionalidade, se pudessemos dizer, sincrética (amálgama de diversas fontes),
portadores de um corpo dividido, vão optar por essas religiões na medida em que elas
trabalham o político, o afetivo, e a própria dimensão de uma sensualidade difusa, dentro
de uma temática da construção da pessoa, colocando em cena uma ambientação mítica
onde os orixás comandam as ações como os santos, outrora, somente que agora a
partir de “dentro” dos próprios sujeitos. Eles optam, portanto, por uma irracionalidade
(ou racionalidade, como se queira) de tipo antigo, onde a afetividade e a “participação”
atuam invariavelmente como elementos de fundo, se bem que agora evocando a si um
espaço maior de definição da individualidade.”
Tal atitude social encontra na Antropologia Social um referencial teórico e etnográfico
bastante significativo, que apontam para o problema mais amplo dos sistemas simbólicos nas
sociedades socialmente diferenciadas, que nós costumamos chamar de “Complexas”, em
oposição a simplicidade dos povos tribais. Tal distinção pouco distingue , mas não é, em
hipótese alguma, um sinônimo da noção de moderno oposto a tradicional.
As sociedades tribais possuem um discurso simbólico eficaz no tratamento de suas
ambigüidades, oriundas das imperfeições sociais próprias às suas relações sociais,
simbólicas e efetivas de seu cotidiano, que são resolvidas, temporariamente, na esfera dos
seus rituais. Embora as Sociedades modernas possuam uma auto-imagem de serem resultado
- 37 -

de um processo de “evolução” e “aperfeiçoamento” da espécie humana, elas deixam,


justamente, enquanto sociedades “Complexas”, de possuírem esse poderoso, coerente e
unificado sistema simbólico eficaz no tratamento de suas permanentes contradições sociais.
Crises permanentes de valores, como encontradas na sociedade brasileira contemporânea,
são expressões desse problema sociológico.
Numa perspectiva propriamente moderna, tendemos a opor, aos valores do mundo
individualista e racional próprio da Civilização Ocidental, tudo o mais, principalmente as
especificidades culturais e a vida simbólica em geral, dentro da noção de Tradições, como as
características dos povos tribais. As Civilizações Ocidentais são um tipo de sociedades
diferenciadas em Classes Sociais, mas existem, historicamente, diversas sociedades
socialmente diferenciadas, em diversos graus de complexidade, sejam nas sociedades
metropolitanas da Índia e da China contemporânea, seja em certas regiões da África e da
Indochina. Tais sociedades possuem distintas tradições, das categorias sociais que as
compõem, coexistindo, antes e após o contato com a expansão da Modernização Ocidental.
No caso brasileiro,o processo colonial engendrou uma sociedade baseada em
rígidas distinções de origem econômica, mas sem uma complementação no plano religioso e
cultural. Por sob o manto do “pan-culturalismo”, da miscigenação e do sincretismo o que se
verifica são categorias sociais dramaticamente distanciadas pela prática econômica vigente
mas aproximadas por uma licenciosidade afetiva e sexual, dentro de padrões de linguagem
que se fizeram comuns. É esta singular “participação” inter-classes, com toda sua mística e
simbolismo que encontramos nas ideologias da “Democracia Racial”, do “País das três raças”,
da “Civilização da cordialidade” e da “morenidade”.
Aragão denomina este ethos de álibi sexual, que o Desenvolvimentismo de
Brasília e o pós 1964 vem desnudando, ao reordenar este arranjo social, inclusive no plano
religioso. A vida religiosa do Distrito Federal pode ser compreendida a partir destas
considerações. Os Cultos espíritas afrobrasileiros no DF, fez-me ver o Prof. Luís Tarley de
Aragão, exercem um bem sucedido papel de intermediadores sociais graças a seu atualizado e
potente aparato simbólico em espaços e situações sociais intermediadoras ou liminares,
características da estrutura social presente no Brasil e evidentes em sua nova Capital Federal.
Enquanto sede do Poder Político, são exercidos em Brasília uma série de
mediações sociais nas quais os líderes de tais cultos, embora não somente eles, também
atuam, viabilizando, em seus termos, o funcionamento do social em suas dimensões mais
contraditórias e estruturalmente tensas.
É possível sugerir que ao contrário do processo ocorrido com as matrizes históricas
dessas formas religiosas, marcadas pela perseguição até meados deste século e por um longo
processo de legitimação, a construção da Nova Capital já ocorreu num momento da expansão
desses cultos. Tal expansão pode ser remetida à Constituição de 1946, quando os cultos
espíritas afrobrasileiros foram definitivamente reconhecidos como religiões no Brasil, e pelo
ethos religioso ecumênico que pôde ser elaborado a partir desta data, o qual veio a caracterizar
Brasília. 9
Dentro dessa nova dimensão religiosa, num novo tempo e num novo espaço
social, Brasília permitiu o surgimento deste um novo espaço religioso, com as características
não da religiosidade sertaneja do interior do País, mas com características que podem ser
associadas a própria razão de ser da Capital Federal, a sede do Poder político Nacional.
A referência quase obrigatória à cidade do Rio de Janeiro, por onde a maioria dos
informantes passou, pode ser vista como expressão dessa dimensão da vida religiosa da
Capital do País. O Rio de Janeiro, para os Cultos aos Orixás africanos sempre foi um espaço
onde bem sucedidas filiais das matrizes nordestinas se haviam instalado. O surgimento da
Umbanda, por sua vez, foi possível devido ao intercâmbio de influências religiosas as mais
diversas, propiciado pelo poder aglutinador da Capital Federal. 10

9
Renato Ortiz (1991) apresenta estatísticas que mostram o rápido crescimento da Umbanda a partir do pós-guerra até os anos 70,
quando se estabiliza. Na época da construção de Brasília tal processo de expansão estava no auge. À estabilização da
umbandização seguiu-se a candomblelização dos cultos de possessão no Centro-sul do País, nítida a partir dos anos 80, conforme
Prandi (1991), descreveu e analisou.
10
Com relação a este tópico, Roger Bastide(1985) apresenta uma interessante reflexão baseada em dados históricos.
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As demandas próprias da vida social desenvolvida em torno de um centro político, tais


como o jogo de influências, oportunidades, concorrências, alianças, pactos, inimizades,
intrigas, incertezas e ansiedades, dada a impossibilidade de controle de processos
eminentemente políticos, constituem um campo excelente para os serviços desses cultos.
Estes são especializados, entre outras coisas, em descobrir e neutralizar “influências ocultas”,
revelar segredos, “abrir caminhos”, favorecer alianças, para uma clientela cada dia maior.
Iremos demonstrar que as relações que envolvem representantes do poder político com
os líderes religiosos dos cultos de possessão afrobrasileiros são fundamentais e precisam ser
levadas em consideração para a compreensão da maneira como esses cultos estão
estabelecidos no Distrito Federal.
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2ª PARTE:

O “SANTO” na CAPITAL
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Os informantes apresentados a seguir, e suas atividades religiosas, podem ser


caracterizados pelas manifestações que envolvem a possessão por entidades espirituais
diversas. Os Cultos por eles praticados são modalidades religiosas que vem a ser
denominadas, genericamente, de Cultos de Possessão. Uma definição, ao mesmo tempo
precisa e abrangente, dessas formas de vida religiosa é aquela desenvolvida por Ioan Lewis
(1977), que as define como:

“A reivindicação única de conhecimento experimental direto do divino, e


quando isso é reconhecido por outros, a autoridade para agir como
privilegiado canal de comunicação entre o homem e o sobrenatural.”

Tal definição enfatiza dois aspectos fundamentais destas manifestações, que


chegam a ser contraditórias. O primeiro aspecto consiste em que, se a comunicação do
possuído com o divino é direta, sem intermediação social, esse indivíduo torna-se em seguida,
na medida em que é socialmente reconhecido, um intermediário entre esse divino e o mundo
dos homens. Esse segundo aspecto é puramente social. Tal ambigüidade é fonte de uma
autoridade religiosa bastante peculiar, característica desses cultos.
Lewis também caracteriza os diversos tipos de manifestação que podem ser
considerados formas de possessão, como os sonhos, visões, e as capacidades variadas de
comunicação com entidades espirituais, como ouvir e transcrever mensagens; além do transe e
das reivindicações de posse corporal por um ser de natureza divina.
Essa capacidade de comunicação com plano sobrenaturais é sempre poderosa, no
sentido de que o indivíduo pode resolver ou causar problemas para aqueles que reconhecem a
eficácia dessas faculdades. Embora não exclusivamente, esses tipos de manifestações são em
geral canalizadas socialmente para práticas terapêuticas. Pessoas que se comunicam com o
sobrenatural curam doenças, fazem milagres, resolvem problemas psicológicos e aliviam
dores, por exemplo.
Nesse sentido, Claude Lévi-Strauss (1975) desenvolveu, no artigo O Feiticeiro e
sua Magia uma importante reflexão a respeito das relações estabelecidas entre esses
especialistas, seus pacientes e o seu público.
A cura é fruto de prática terapêuticas que estão embasadas por um conjunto de
crenças. Tanto o especialista que cura quanto o paciente, assim como a comunidade da qual
fazem parte, precisam crer na eficácia dessas práticas para que a cura aconteça.
A relação não se estabelece apenas entre o especialista e o seu cliente. Mesmo
que as práticas terapêuticas, muitas vezes ritos bastante espetaculares, variem conforme a
situação em questão, tem que haver um corpo de crenças em torno da eficácia do poder
simbólico perpassando todo o processo.
Levis-Strauss analisou o caso de um xamã indígena da América do Norte, que
tornou-se famoso pelo eficácia de seus ritos, mesmo sendo cético com relação ao poder que
conquistou e que lhe era atribuído. Levi-Strauss conclui que:
“ Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava, ele curava os seus
doentes porque tinha se tornado um grande feiticeiro”.
Tal afirmativa, fascinante, por situar a origem social do poder sobrenatural e refletir
sobre ele em termos de uma função simbólica, contêm, porém, um problema teórico implícito e
de difícil solução.
Grosso modo, Levi-Strauss define o pensamento mágico como um sistema de
referência onde dados contraditórios podem ser integrados. Ele permite que o grupo, o doente
e o feiticeiro, traduzam fenômenos cuja natureza profunda é imperceptível para dentro de uma
linguagem compreensível. A cura, nessa forma de pensamento, pode ser analisada e vista
como um processo de reorganização de um universo desordenado. Este processo tem origens
numa natureza profundamente intelectual expresso numa forma que é principalmente afetiva.
Carvalho (1990) argumenta, com respeito ao exemplo do ceticismo de Quesalid,
que Levi-Strauss termina por transferir a questão do Poder do feiticeiro - uma faculdade
individual sui generis - para a dimensão dos símbolos, na tentativa de explicar a eficácia deste
poder, sem discutir completamente que esse tipo de poder, é , em primeiro lugar um poder -
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uma faculdade, uma capacidade - e não um saber. Enquanto Poder, pode ser enigmático para
o próprio possuidor, sem deixar de ser eficaz, como o caso de Quesalid, que questionava e
duvidava da eficácia de seus próprios ritos. É porque é um poder que pode ser, e é ,
continuamente posto à prova, inclusive pelas argumentações científicas. É porque não é um
saber, uma fórmula, que não apresenta, necessariamente, uma compreensão coerente para o
especialista e para a opinião pública.
Sendo assim, o poder está, afinal, nos símbolos que são manipulados ou na pessoa
que os manipula, ou em ambos? O caso de Quesalid, entre outros, aponta para o fato de que
os xamãs manipulam um corpo de conhecimentos e técnicas, que podem ser chamados de
objetivos, mas esse saber está longe de ser o único responsável pela eficácia da cura ou dos
outros objetivos que os ritos desses especialistas se propõem.
Os depoimentos dos informantes pesquisados, a respeito de suas trajetórias
religiosas, fornecerão exemplos significativos desse tipo de questão em torno do simbolismo
religioso e de suas relações com a vida social como um todo.
Todos os informantes, sejam os líderes das Casas ou membros do culto, estão em
contato íntimo com algumas entidades espirituais determinadas. Em algum momento de suas
vidas essas entidades se manifestaram para eles, de alguma forma, ou a pessoa sentiu-se
atraída pelo culto e pela possibilidade de desenvolver esse tipo de relação com o mundo dos
espíritos.
Tais entidades são determinantes não só da vida religiosa do indivíduo como de
seu comportamento cotidiano, caráter, história de vida e até de seus horizontes e perspectivas
mais amplos. O aspecto fundamental a ser levado em consideração é justamente a elaboração
do vínculo que une esses indivíduos às suas entidades.
No caso do culto aos orixás, como no Xangô pernambucano, estudado por Segato
(1989), o ingresso de um novo adepto a uma família de Santo implica em sua filiação a uma
cadeia de líderes religiosos vivos e mortos, definida sempre a partir dos orixás que são
identificados como sendo os específicos de sua “cabeça”. Embora fortemente individualizados,
os Santos e as relações que os adeptos mantêm com eles, só são compreensíveis a partir do
saber mítico onde suas características estão contidas numa série de estórias, que envolvem
relações de parentesco e eventos significativos variados.
Serra ( 1982 ) descrevendo os orixás nas Casas de Santo de Salvador, mostra que
essas entidades são, em primeiro lugar, categorias coletivas e genéricas. Cada Orixá - Ogum,
Oxóssi, Oxum, Yemanjá, por exemplo, define uma família de santos , uma qualidade espiritual
associada a um reino da natureza. Os Santos é que são as entidades, já individualizadas, para
as quais os adeptos são iniciados. São os Santos que são ritualmente assentados e cultuados
nas Casas do Culto aos Orixás.
Nesse caso é possível afirmar que o poder simbólico está personificado no “Santo”,
individualizado e representante por excelência do fenômeno da possessão. Já o saber
religioso, como a mitologia, pertence ao domínio coletivo da tradição, assim como as técnicas
rituais associadas. É onde se situam os orixás e suas lendas, atualmente bastante conhecidas
e folclorizadas em certos meios.
De qualquer forma, as lendas e estórias das Casas de Santo, as técnicas rituais
como as comidas, os gestos, as liturgias e as cores associadas as entidades nada dizem a
respeito de porque determinadas pessoas são eleitos por determinadas entidades , ao invés de
outras, como suporte de suas manifestações. O vínculo que o fenômeno da possessão
estabelece, entre estes dois planos, o mítico e o terreno, é literalmente, um poder misterioso,
mesmo, senão principalmente, dentro do próprio culto.
Os rituais, e o indivíduo em sua vida, compõem o campo empírico onde essas
dimensões se cruzam. Cada Casa de Santo possui uma maneira própria de atualizar esse
cruzamento entre saber e poder, mito e rito, divindade e humanidade, mítico e terreno.
Nos cultos de tipo umbandista, por exemplo, essas relações podem ser ainda mais
complexas do que no culto aos orixás, já que os membros desenvolvem a capacidade de
receber diversos espíritos, não apenas um ou dois principais, como acontece com os orixás.
É através dos ritos de iniciação que esses intermediadores consolidam sua
capacidade para a comunicação com os seres espirituais. Por isso, os informantes ressaltam a
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importância de suas iniciações, fornecendo um eixo para a compreensão de suas vivências


espirituais.
Sejam guias, ou orixás, nos Cultos de Nação, cada líder e cada membro desses
cultos estará associado às suas respectivas entidades, e assim será reconhecido
publicamente. É durante o processo de iniciação que tais entidades são diagnosticadas e se
dão a conhecer. As peculiaridades de cada um, as maneiras específicas como cada líder e
cada membro se situam no universo religioso, a autonomia que dispõe na condução de suas
modalidades de culto, passam sempre pela relação direta com as suas entidades, por um lado,
e pela relação que a partir delas , desenvolvem com suas comunidades religiosas, por outro
lado. É dentro deste eixo que as práticas religiosas realmente se constituem numa totalidade,
na qual as influências culturais que denominaríamos “tradicionais”, realmente são atualizadas.
Há sempre uma tensão, que pode ser devidamente compreendida através de uma
ênfase na diferença entre clientela, os pacientes, e a opinião pública, a comunidade religiosa
em sentido amplo. Tal tensão também se manifesta entre os poderes advindos do processo
iniciático, a capacidade de comunicação com o sobrenatural, e o conjunto de técnicas e
informações que orientam a condução desses poderes, sejam as tradições do culto aos orixás
africanos, sejam os códigos racionalizados, das elocubrações kardecistas e umbandistas.
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A UMBANDA BRANCA no PLANO PILOTO

Dentro do universo pesquisado, três Centros que estão localizados no Plano Piloto
apresentam uma série de características significativas em comum. São três Centros de
Umbanda Branca, originários do Rio de Janeiro.
Os ritos que pude assistir foram os promovidos por estes Centros do Plano Piloto.
Esses ritos tinham finalidades específicas, além da consulta espiritual. No Centro Espírita
Nossa Senhora da Glória, assisti à celebração do 27 º aniversário do Centro, comemorado
junto ao dia consagrado a esta Santa, 15 de agosto de 1992, quando dei início ao trabalho de
campo. A investigação propriamente dita terminou no Centro Espírita Tenda de Oxalá em
janeiro de 1993, quando assisti à abertura das atividades rituais daquele ano e a apresentação
da nova turma de médiuns que começava a trabalhar no Centro. Além deste rito, já havia
assistido a um ritual que este Centro realizara no Ribeirão Saia Velha, em 20 de dezembro de
1987.
Somente no Centro Espírita João Baiano é que assisti a uma sessão regular de
consultas, que eram realizadas todas as quartas-feiras, à noite. Devido às mudanças na
direção do Centro, a partir de 1994, tal tipo de rito não é mais praticado, conferindo um valor
especial a este registro etnográfico. De fato, a descrição do tipo de ritual praticado por cada
uma destas três Casas ilustra não só a presença da Umbanda Branca do Rio de Janeiro no
centro administrativo da Capital Federal, mas as transformações que tal modalidade religiosa
atravessa atualmente, dentro dos seus quase 100 anos de existência.

O Centro Espírita João Baiano é um caso exemplar sob muitos aspectos. Foi o
primeiro Centro Espírita a ser aberto no Plano Piloto, num setor destinado à instituições
religiosas, na 913 Sul e continua em funcionamento até hoje. Sua trajetória serve de base para
situar as várias características que os cultos de possessão afro-brasileiras apresentam no DF.
A vida deste Centro pode ser dividida em duas fases, dividida por uma séria crise.,
A primeira fase, pioneira, foi gloriosa. Compreendeu a formação do Centro, com a
doação do terreno pelo próprio Presidente da República , Juscelino Kubitchek, ainda em 1959,
até a morte fundador , o Sr. Antônio de Assis Laos, em 1980.
A segunda fase, de 1980 até 1993, foi a de uma crise crônica. Dada a ruptura
causada pela morte do fundador, surgiu uma crise em torno da sucessão. A viúva do líder,
Francisca Laos, optou por mudar a linha ritual do Centro, chamando o seu próprio Pai de
Santo, Roberto Miranda, para ser o novo líder da Casa, que passou a desenvolver seus ritos
de Nação, ao invés de permanecer na Umbanda Branca original do João Baiano.
Essa experiência durou apenas os dois anos nos quais ela foi a nova Presidenta do
Centro. Em 1983, chegando o momento da eleição de um novo presidente, houve um impasse
com relação a continuidade do modelo ritual a ser seguido. Surgiu uma polarização entre
D.Francisca de um lado e o corpo dos médiuns de outro. Ela acabou por abandonar o Centro,
que cessou de manter suas atividades regulares.
Uma tentativa de reparação foi posta em prática pela filha carnal do casal, Clélia
Laos, que chamou um casal de filhos de santo do Sr. Laos para reassumirem a direção do
Centro, D. Luzia e o Sr. Carneirino.
Este casal conheceu o Sr. Laos na Cidade Livre, para onde tinham vindo em 1957,
do interior de São Paulo. Começaram a freqüentar a Umbanda do João Baiano tendo sido
iniciados pelos Sr. Laos, com quem sempre trabalharam. Em 1975 fundaram um Centro
Espírita no Gama, onde residiam, dentro da mesma linha ritual do Centro Espírita João Baiano.
Assumiram a direção do Centro na Asa Sul em 1983, permanecendo lá durante 10 anos.
Conseguiram manter a linha original dos ritos de Umbanda Branca, mas a existência de uma
pendência judicial, inclusive paralisando obras, deu ao Centro um ar de situação indefinida e
indeterminada que lhe tirou muito do prestígio original.
Para poder situar o que foram os dias de glória do Centro Espírita João Baiano, sua
longa crise e o porquê de não ter se recuperado plenamente, será preciso descrever as
relações do Sr. Antônio Laos com a sua entidade mítica principal, o Prêto-Velho João Baiano.
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Literalmente, o Sr. Laos foi, ao longo dos vintes anos que esteve a frente do centro,
confundindo sua identidade pública, enquanto adepto da religião, com a indentidade mítica de
seu guia espiritual. Ele se tornara o João Baiano dentro e fora do centro. Essa confusão
chegou a um ponto que todos os informantes se referiam a ele como o “João Baiano”, inclusive
os atuais diretores do centro.
Graças ao seu carisma, o Sr. Laos conseguiu que o centro espírita fosse uma das
casas de santo mais importantes e conhecidas, nas décadas de 60 e 70, dentro do espaço
religioso de Brasília. O centro chegou a ter 150 médiuns registrados e em suas sessões
públicas havia em torno de uns 40 médiuns incorporados atendendo as consultas. Tanto as
sessões de consultas com os guias, relizadas semanalmente, quanto as festas anuais do
centro eram muito concorridas.
Já a sua esposa, Francisca Laos, nunca foi inteiramente ligada ao preceito religioso
do marido. Freqüentava o centro regularmente e auxiliava nos rituais da linha de umbanda.
Era, porém, ligada ao Pai de Santo Roberto Miranda, com quem havia se iniciado no culto aos
orixás.
A divergência do casal com relação ao culto tornou-se profunda a ponto do casal vir
a separar. O Sr. Laos deixou seu apartamento com a ex-esposa e passou a morar no próprio
terreno do centro espírita, num barracão construído nos fundos do centro, o que contribuiu para
a sua identificação completa com o seu guia.
Anos depois, D. Francisca e sua filha venderam o apartamento e também
mudaram-se para o Barracão, que foi dividido em dois. Clélia também era iniciada no culto de
nação por Roberto Miranda. Nesse meio tempo o Sr. Laos casou-se novamente.
Ao longo dessa primeira fase o Sr. Laos desenvolveu uma efetiva liderança entre os
umbandistas do DF. Era no Centro Espírita João Baiano que os membros da Federação
Umbandista se reuniam. Ele promovia festivais de Umbanda com a presença de vários centros,
nos estádios desportivos de Taguatinga e do Gama.
No momento de sua morte, ele teria pedido a Francisca Laos que voltasse para o
João Baiano, pedido que poderia ter sido interpretado de várias maneiras. Ela de fato voltou,
mas não ao preceito original do Prêto-Velho João Baiano, embora antes da morte do marido,
devido ao estado de saúde abalado em que ele se encontrava, fosse ela quem presidisse o
ritual do centro.
D.Luzia, por sua vez, foi única a filha de santo a ir ao enterro do líder vestida com
as roupas rituais do centro. Posteriormente ela interpretou esse fato como uma premonição de
que teria que vir a se tornar a nova líder do centro. Ela e seu marido passaram a residir no
barracão dos fundos do terreno, mantendo o centro em funcionamento. Nenhum deles,
contudo, e nenhum outro médium herdou a entidade principal, o Prêto-Velho João Baiano.
Em geral as entidades, sejam os orixás africanos ou os guias de umbanda são
transferidos para outro médium que assume o lugar do líder falecido. Pelo visto, a identificação
do Sr. Laos com a guia principal do centro foi tão intensa e sua liderança tão personalista, que
essa passagem não ocorreu.
A descrição de um rito de consulta com os médiuns do centro, sob a liderança de
D.Luzia incorporada por sua Prêta-Velha Vó Cambina irá informar melhor a situação crítica do
centro, em 1992.
O Centro Espírita João Baiano tinha um espaço ritual bastante vasto, com uma
grande pintura de fundo, representando uma praia com palmeiras e um belo sol nascente. A
frente desta paisagem estavam diversas imagens de santos católicos que representam os
orixás da umbanda. São Sebastião, São Jorge, Nossa Senhora da Conceição, São Jerônimo,
Santa Bárbara, N.Sra. Aparecida e Jesus Cristo. Eram imagens grandes, ladeadas com vasos
cheios de água. Havia uma grande cacimba de barro bem ao centro, também cheio d’água.
Na lateral esquerda estava o espaço dos atabaques enquanto que bem à frente da
assistência, ainda no espaço ritual, ficavam duas pequenas cabanas de palha e madeira,
respectivamente, onde foram acesas velas, antes do ritual propriamente dito começar. O chão
do espaço ritual do Centro era de areia branca.
A parte da assistência era pequena. Dois conjuntos de cadeiras, bancos e sofás,
bastante gastos, dividida entre homens à esquerda e mulheres à direita .
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No início do culto haviam cerca de 30 pessoas na assistência. Em média três


mulheres para cada homem. Muitas famílias. O número de assistentes foi aumentando ao
longo da sessão, mantendo-se a proporção entre homens e mulheres.
O rito começou com uma grande defumação, realizada por D. Luzia, que vestia
uma grande saia rodada, toda bordada, em tons de azul. Os demais médiuns, pelo contrário,
vestiam uniformes brancos. Calças para os homens e saias para as mulheres. Na corrente
mediúnica estavam presentes doze mulheres e cinco homens.

O ritual começou com uma defumação do espaço consagrado, onde já estavam os


médiuns, que entoavam um cântico:
“Defuma com as ervas da jurema, defuma com arruda e guiné,
Benjoim, alecrim e alfazema,vamos defumar filhos de fé.”
Ao som do mesmo cântico foram defumados os médiuns e depois a assistência,
começando pelas mulheres, situadas no lado direito do Centro. Os presentes se levantaram
para receber a defumação em torno da cabeça e nas palmas das mãos. Esta abertura terminou
com os médiuns fazendo um círculo, de mãos dadas em torno do altar e entoando:
Louvado seja o Nosso Senhor, Ave Maria.
Em seguida D. Luiza dirigiu-se ao meio do Centro para conversar com os presentes
a respeito das contas do Centro. Ela começou avisando que o Centro estava sem água e sem
luz porque as contas estavam atrasadas:
“Quem é espírita tem que enfrentar esta barra!Na hora do sofrimento
tem todo mundo que socorrer. Eu peço a assistência que quem
quiser contribuir com a mensalidade como os médiuns, já é uma
ajuda para gente. A gente para viver neste mundo tem que ser
lutando, para alcançar a caridade tem que lutar também. Quem
quiser ser sério, ajudando aqui dentro... todo mundo ajudando um
pouquinho, todo mês... Os crentes vivem bem, mas lá tem o
dízimo...Que Deus abençõe a todos os que me ajudarem....”
Os cânticos rituais reiniciaram, quebrando o suspense deixado pelo apelo de D. Luzia:

“Salve ogum! salve Xangô!


Salve o povo da Mata! salve o povo da Cachoeira!
“Segurança de ogum, não deixa a demanda entrar,
É hora, é hora, é hora Ogum, é hora de trabalhar!”
“Caboclo forte sou eu, mas esta força que eu tenho
foi deus do céu que me deu”
“Cambina, mamãe, Cambina, mamãe,
Salve o povo de Cambina, todos sabem trabalhar
Se não fosse a Mãe Cambina, eu não sabia trabalhar”
“Cambina de Mina, Mina, olhai seus filhos
olhai eu...,olhai eu...”

Ao som destes últimos cânticos a entidade Vó Cambina incorporou em D.Luzia,


rodopiando rapidamente no salão. Ela sentou-se num pequeno banco, junto ao altar e
enquanto os demais médiuns se ajoelhavam com o rosto entre as mãos, tocando o chão,
cantou:
“Oxalá meu pai, tem pena de nós tem dó
A volta do mundo é grande, seu poder ainda é maior”

Os médiuns começaram a incorporação, dando pequenos rodopios. Os primeiros foram


os homens, que se dirigiam a Vó Cambina para com ela conversar. Três ogãs começaram a
tocar os atabaques, entoando pontos cantados ao orixá Ogum e às suas diversas qualidades.
As médiuns foram incorporando também. Todas os médiuns fizeram um túnel com os braços
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levantados e a assistência foi convidada a passar por eles, enquanto os médiuns que ainda
não haviam incorporado o faziam. Todos saudavam Vó Cambina, se ajoelhando aos seus pés
e retornando às colunas no centro do salão. Finalmente essa etapa terminou com os ogãs
entoando o seguinte ponto:

“Selei selei, meu cavalo selei


Seu ogum já vai embora, meu cavalo chegou
Seu ogum já foi embora, meu cavalo selou”

Com todos os médiuns já incorporando os seus guias ao som dos atabaques, teve início
a parte das consultas. Vó Cambina continuava sentada no seu banquinho, fumando um pito,
enquanto os demais médiuns espalhavam-se pelo salão atendendo à assistência. Os
atabaques continuavam o seu ritmo, mas já sem os cânticos. A luz vinha apenas das velas,
iluminando o altar e os médiuns. Na saída, praticamente não haviam carros estacionados à
frente do Centro, sugerindo que a maior parte dos médiuns e dos presentes morava próximo ao
Centro, já que o rito se estenderia para além do horário dos ônibus noturnos.

No início de 1988 D. Luzia conseguiu um novo registro para o Centro, que deixou
de denominar-se Tenda Espírita João Baiano e passou a chamar-se Centro Espírita Vovó
Cambina. Registro e mudança formal, uma vez que o registro só valia por um ano, a
Confederação que o expediu fechou e o presidente da mesma morrera. D.Luzia, por sua vez
me recebera afirmando:
“Aqui é João Baiano. A entidade aqui é João Baiano.”
O Centro estava com 70 sócios, embora nem todos fossem médiuns. D.Luzia
preferiria voltar para o seu Centro no Gama, permanecendo no João Baiano apenas por
vontade dos sócios. Herdou muito da disposição do Sr. Laos, principalmente no que diz
respeito às atividades de assistência social.
O Centro desenvolvia uma série de atividades de amparo a meninos de rua.
Regularmente aos domingos, seus sócios visitavam o Gran Circo Lar, espaço cultural situado
no Eixo Monumental, ligado à Fundação do Serviço Social e à Fundação Cultural do Governo
do Distrito Federal, que desenvolve trabalho com esses menores. Promoviam anualmente uma
grande festa de Cosme e Damião, em finais de setembro. Conseguiam alimentação e
transporte para essas crianças junto a vários empresários do DF. O processo Judicial
embargou as obras de uma creche no terreno do Centro, assim como o convênio com a LBA
que D. Luzia possuía no Gama, onde é mãe crecheira.
D. Luzia não tinha boas recordações da administração de D. Francisca Laos. Na
sua opinião, o interesse dela e de seus seguidores era fazer correr dinheiro dentro do Centro,
com jogo dos búzios e outras atividades típicas do Culto aos Orixás. Tais práticas chocam-se
com a ética de caridade cristã da umbanda branca, que nunca cobram pelas suas consultas.
D. Luzia mostrou-se muito arredia com relação a relatar pormenores da questão
judicial. Parece que devido ao fato da vida religiosa e da vida conjugal do casal Laos ter se
confundido tanto, a questão da herança tornou-se igualmente confusa. Como no plano mítico e
ritual nenhuma entidade assumiu uma nova liderança sobre ambas as partes, o conflito ficou
sem solução.
O Centro é uma sociedade civil sem fins lucrativos, registrada e reconhecida como
de utilidade pública pelo GDF. Pertencia, oficialmente, à corrente mediúnica, que se representa
pelo conjunto dos 70 sócios. A justiça havia dado ganho de causa a Francisca Laos, num
primeiro julgamento, mas a Sociedade dos médiuns recorreu a um novo juízo. Francisca Laos
faleceu em outubro de 1992, deixando o caso mais uma vez sem solução.
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As várias informações dadas pelos outros entrevistados pouco serviram para


entender a dramática sucessão do Centro 5 embora situem melhor o que foi o Centro sob a
direção do Sr. Laos.
Segundo dois outros líderes o Sr. Laos era uma pessoa muito boa e muito
dinâmica. Era um modesto funcionário de um Tribunal Superior e desde sua chegada ao DF
relacionava-se com as instâncias públicas. Muito de seu prestígio vinha daí, de sua capacidade
de organizar festividades, como as procissões de São Jorge, no dia 23 de abril pela Avenida
W3 Sul, e os festivais de Umbanda.
Tais atividades exigiam um bom trânsito junto ao governo do Distrito Federal, pois
implicam em alteração no trânsito das avenidas, marcação de datas nos estádios, além dos
contatos junto à imprensa e ao empresariado, que financiam tais eventos. O fato dele ter sido
funcionário público federal e presidente de Centro Espírita permitiu-lhe desempenhar um papel
de mediador entre estas duas instâncias com muito sucesso.
Segundo o Sr. Marco Silva, Pai de Santo que freqüentou o Centro Espírita no final
dos anos 60, quando ainda era adolescente, pessoas de várias tendências espirituais
freqüentavam o João Baiano. Tal convivência entre os diversos líderes e seus adeptos
caracterizava-o na sua fase áurea.
Outro informante recordou um casamento realizado dentro do Centro. Os dois
cônjuges eram médiuns e a cerimônia foi realizada com os dois incorporados. Quem se casou
afinal, os médiuns ou as entidades? E quem realizara o casamento, o Sr. Laos, presidente do
Centro Espírita João Baiano, ou o Prêto-Velho João Baiano incorporado no Sr. Laos?
Tal tipo de confusão, onde as personalidades dos médiuns e dos guias tornara-se
tão intensa, se fora desejada pelo Sr.Laos, talvez como uma evidência de seu Poder Espiritual,
foi muito criticada por outros informantes que atribuíram a decadência do Centro a tal tipo de
conduta personalista.

Roberto dos Santos Miranda, natural do Piauí, veio para


Brasília adolescente, junto com a mãe, funcionária pública federal, transferida do Rio de
Janeiro em finais de 1963. Residindo na Asa Norte, conheceu um outro jovem filho de santo,
Lilico da Oxum, que era iniciado na mesma Nação do culto aos Orixás que ele freqüentara no
Rio de Janeiro, o Terreiro Kêtu de Vicente Gouveia Bankolê.
Juntos resolveram abrir uma Casa de Santo. Conseguiram, em 1968, comprar um
ágio de uma chácara em Águas Claras, ao lado da residência oficial do governador do Distrito
Federal. Davam consultas, e mantinham-se graças ao jogo dos búzios africanos, leitura de
mãos e cartas.
Em 1975 mudaram a Casa de Santo para Sobradinho, perto da garagem da
VIPLAN, empresa de transportes urbanos. Ficaram lá até 1979. Iniciaram muitos filhos de santo
nessa época. Em 1979 Lilico da Oxum mudou seu terreno para uma pequena fazenda, na zona
rural de Sobradinho. Roberto não o acompanhou.Embora possua uma residência em
Sobradinho, com um pequeno Terreiro aos fundos, não o mantém em funcionamento regular.
Em 1980 passou a dirigir o Centro Espírita João Baiano, a convite de Francisca
Laos. Ela foi uma das primeiras filhas de santo de Roberto. Era a sua Mãe-pequena,
importante ajudante ritual, segunda pessoa do líder do Culto. Sempre o acompanhou,
trabalhando com ele até 1991, um ano antes de morrer. Francisca faleceu na residência de
Roberto, no Núcleo Bandeirante.
Em 1990 ele resolveu fazer filosofia e teologia no Seminário Diocesano da
Associação Cristã de Fé, ligado à Igreja Católica Apostólica Brasileira, onde terminou ordenado
padre. Não exerce a função sacerdotal em paróquia. Sua especialidade é rezar missas
católicas em centros espíritas, dentro do calendário ritual dessas Casas. Essas missas são
tradição de muitos Terreiros e Centros, costumando ser celebradas por padres da ICAB,
historicamente ligada aos cultos de possessão afrobrasileiros.

5
A Justiça deu ganho de causa a facção de D.Francisca Laos pois a partir de 1994 passou a funcionar no local o
Centro Integrado de Desenvolvimento Humano, CEIVA. Em 23.04.93. O Centro Espírita João Bahiano realizara
pela última vez a procissão de Ogum na Avenida W3 Sul. Começara, pois, a terceira e atual fase do Centro.
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Ele começou sua vida religiosa freqüentando pajés na Ilha de Santa Luzia,
localidade situada no delta do Parnaíba, no Piauí, onde nasceu. Sua mãe o levava lá para
tratá-lo de doenças de infância. Estudava no internato católico da cidade de Parnaíba.
Sua mãe sempre disse que ele era um grande médium. Começou a demonstrar
sinais (de manifestação) de possessão ainda criança, recebendo guias espirituais em sessões
de Pajelança maranhense, como os Caboclos encantados e as entidades da linha de Légua
Bogi Buá. No Rio de Janeiro continuou a freqüentar Casas de Santo com a sua mãe.
Em Brasília freqüentava outros círculos além do mundo espírita. Em 1977
trabalhava na Rede Tupi e no Correio Brasiliense, onde era colunista social. Em 1979 publicou
um livro intitulado Palavras de um Rei Nagô, com cantigas e revelações de alguns mistérios
do culto. Publicou posteriormente, Candomblé, Umbanda e suas obrigações; Pablo, el
endiabrado ( almas para Deus) e Mitos e Ritos Nagô: O saber de Ominsulá. Neste último
livro também revela ritos fechados dos Cultos aos Orixás.
Pessoa de trajetória singular, Roberto Miranda em momento algum mencionou
quem são os seus Santos tutelares, e se estes estão assentados e são celebrados
regularmente em seu Terreiro de Sobradinho, como fizeram os demais. Embora se
apresentasse como crítico e distante do mundo dos cultos de possessão de Brasília suas
informações fazem crer que ele conhece muito bem o universo religioso do DF.

Lilico da Oxum é um dos Pais de santo mais conhecidos


do Distrito Federal. É pernambucano, tendo chegado a Brasília vindo do Rio de Janeiro.
Iniciou-se no Culto no Recife, na Casa de Santo de Alandiru Bankulê. Esta Casa, de origem
africana, já não existe mais. Com a morte do líder o terreno foi vendido por um filha de santo
para outro Pai de santo, Justiniano de Ogum. Lilico morou no Rio de Janeiro até a morte de
seu pai carnal, nos anos sessenta, quando veio para Brasília, em 1966, com 13 anos de idade,
residindo com sua mãe, na Asa Norte.
Em 1971 levantou o primeiro Terreiro de Culto aos orixás de alvenaria do DF, com
apenas 18 anos, no sítio de Águas Claras. Graça as boas relações com o Governador do DF,
seu vizinho, conseguiu que a luz elétrica fosse instalada em todo o conjunto de sítios. As
cerimônias do Terreiro às vezes chegavam a acontecer ao mesmo tempo que as recepções
oficiais do governo, sem maiores problemas.
Já nos anos 90, no seu Terreiro definitivo no assentamento FERCAL, em
Sobradinho, passou a ter problemas com vizinhança. Devido à política de construção de novos
assentamentos do Governador Roriz a região foi loteada, sendo transformada numa nova
cidade, Sobradinho II. Houve invasões de áreas não destinadas à residências, inclusive dentro
dos limites do Terreiro.
Lilico fez queixas à NOVACAP, usando a sua influência e de seus filhos de santo
para remover as invasões. Somente no final de 1993 é que a situação foi contornada com a
regularização definitiva do assentamento. Passou também a ter alguns problemas com as
Igrejas evangélicas instaladas no novo assentamento.
Oxum é o orixá para o qual o seu Terreiro está levantado, o Ilê Axé Dewi. É uma
grande construção em alvenaria, tendo aos fundos banheiro, cozinha e outras dependências
acessórias, necessários ao culto. Além do Terreiro de Oxum a fazenda possui um Centro só
para o Caboclo de Lilico, o Caboclo João Chapéu de Couro, entidade responsável por uma boa
parte de seu prestígio.
Este Caboclo é uma entidade característica das Casas de santo do Nordeste,
sendo diferente dos Caboclos de Umbanda. A festa anual do Caboclo de Lilico, que acontece
em 2, 3 e 4 de setembro, atrai um grande número de adeptos. Esta entidade é tão popular que
quando Lilico chegou a tocar atabaques em sua homenagem no apartamento de sua mãe, na
Asa Norte, atraiu, já naquela época, muitos simpatizantes. O sucesso do Caboclo tem também
razões práticas. Suas consultas são gratuitas. Segundo Lilico, este Caboclo é como um
psicólogo, que cura as pessoas: “Ele as põe bem, de um jeito que é só dele. Não cobra e nem
passa obrigações”.
Além da grande clientela de suas entidades, Lilico conta com muitos filhos de
Santo. Possui filiais de sua Casa de Santo até em São Paulo. No terreno de sua fazenda
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moram alguns irmãos carnais e algumas filhas de Santo, o que faz do local uma pequena
comunidade religiosa, de onde Lilico pouco sai, uma vez que sempre está às voltas com as
obrigações de suas entidades e com os ritos de iniciação de novos filhos de santo. Todo o
conjunto do Terreiro é registrado em nome da Associação religiosa, que possui registro civil em
cartório. Legalmente, Lilico é o Presidente mas não é o proprietário, situação social que
enfatizou com veemência.

O Centro Espírita Assistencial Nossa


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Senhora da Glória é o Centro de Umbanda mais antigo em funcionamento ininterrupto num
mesmo lugar. Foi fundado em 1965, num lote do setor religioso da Avenida W-5 Norte,
superquadra 712/912. Já em 1966 o Centro conseguia o registro oficial de instituição de
caridade. É registrado no Cartório do 1º ofício de pessoas jurídicas. O terreno pertence à
Instituição e foi comprado à TERRACAP.
Desenvolviam atividades de caridade pública com crianças da Invasão do CEUB ,
localizada atrás dos módulos religiosos, ao longo da avenida W-5 norte, da qual ainda
restavam alguns barracos em 1992, mesmo depois das últimas remoções. Foi uma grande
invasão, com mais de 1000 famílias. Todos os domingos realizavam uma cerimônia para
crianças necessitadas, com passes e rezas. Depois havia uma distribuição de sopa. Há uma
creche sendo contruída nos fundos do terreno.
O Centro Espírita funciona num grande conjunto de construções de alvenaria, que
levou 14 anos para ser erguido. O templo é semelhante, por dentro e por fora, a uma igreja.
Além dele há uma cantina, com muitos bancos corridos, e uma série de jardins, com grandes
árvores, onde ficam os vários assentamentos dos guias e dos orixás. São locais consagrados,
onde acendem-se velas e depositam-se oferendas rituais.
O modelo do culto desenvolvido pelo Centro veio do Rio de Janeiro, trazido pelo
seu fundador, Jorge da Costa Faria, falecido em 1982. Ele era enfermeiro do Superior Tribunal
Eleitoral e veio transferido para Brasília em 1961.
Após a morte do Sr. Jorge Farias, a direção espiritual do Centro passou a sua
esposa, Jurema Farias e ao filho mais novo do casal , Celso Farias, sem os problemas
verificados na sucessão do Centro Espírita João Baiano.
Ao contrário, essa passagem bem sucedida encontra-se devidamente presente no
plano mítico e ritual. As entidades principais do Centro, as mesmas do Sr. Jorge, passaram
para sua espôsa e para o seu filho, que continuam a recebê-las no lugar do falecido líder.

Em 1992 o Centro Espírita era dirigido pelo Sr. Édson Silva, um dos médiuns mais
antigos. Ele era o Presidente administrativo do Centro , o responsável pela disciplina do corpo
mediúnico e pelo bom funcionamento das sessões.
Chegou em Brasília em 1970, também transferido do Rio de Janeiro. Era
funcionário aposentado do Tribunal de Contas da União. Exercia a função de Coordenador de
Normatização e Orientação técnica do Orçamento da União. Formado em administração de
empresas e bacharel em Direito, deu aulas no sistema de orçamento federal e de Direito
Financeiro no CEUB, uma faculdade particular de Brasília.
A descrição do rito comemorativo do aniversário do Centro, realizado em 15 de
agosto de 1992 quando a Casa fazia 27 anos de fundação, expressa satisfatoriamente a
vitalidade da instituição e o sucesso dessa transmissão de liderança espiritual:
O templo é composto por uma nave grande, todo branco, com janelas amplas,
pintado com frisos azuis. Logo à entrada ficam algumas pequenas salas destinadas à
secretaria, banheiros, e há um quadro de avisos. Dentro do templo o espaço destinado à
assistência é ocupado por bancos corridos de madeira, como de igrejas. O espaço ritual

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O Centro Espírita João Bahiano não é único existente no Plano Piloto. Existem oito centro espíritas
kardecistas, dos quais cinco na Asa Norte e três na Asa Sul, além dos dois Centros de Umbanda Branca situados na
Asa Norte.
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propriamente dito é separado da assistência por um pequeno muro de alvenaria , também


pintado de branco.
Ao fundo encontra-se uma grande imagem de Yemanjá, com um longo vestido azul
mar, cabelos negros e olhos azuis, pele branca . Aos pés da imagem encontra-se uma mesa
coberta com toalhas azuis e flores brancas. Aos pés da mesa, havia um vaso com grandes
crisântemos e palmas brancas. Atrás da imagem há uma pedreira triangular, que se eleva para
o teto, de onde cai água, como uma cachoeira. Serve de suporte para uma imagem de Jesus,
todo de branco, com os braços abertos. Está encimada por um pombo branco.
Existem nichos com flores para algumas entidades. Ao lado direito, São Miguel
Arcanjo, no lado esquerdo, o Caboclo Cobra Coral. Atrás do altar ficam pequenas quartos
destinados aos médiuns, que lá se reúnem antes da cerimônia, para trocar de roupa.
Tanto dentro do espaço ritual quanto na assistência as mulheres sentam à
esquerda e os homens à direita. Os médiuns vestem blusas brancas, as mulheres saias, os
homens calças, ambas azuis. A luz do Centro é branca, graças às l6 lâmpadas fluorescentes
do teto. Na assistência, o número de mulheres era mais ou menos o dobro do número de
homens.
A cerimônia teve início com os médiuns ainda sentados nos bancos laterais do
templo. O Dr. Edson Silva veio ao centro do salão para dar início ao ritual, defumando o local.
Os médiuns se levantaram para receber a defumação. Depois os defumadores foram para a
assistência. Já em bloco, os médiuns se voltavam para as portas do templo, saudando os exus.
Duas médiuns foram para as portas externas, por trás da assistência, acender velas

“Salve a Pomba Gira Rosa vermelha das almas!


Salve Exu Tranca Ruas das almas!
Compreensão, paciência, defesa, luta,
Exus, Pombas, maravilhosos príncipes e princesas!...
...Ninguém faz corrente de umbanda sem
Exu e Pomba! Senão é fantasia!”
Na medida que o Dr. Edson ia puxando as saudações o corpo mediúnico respondia:
“Salve, salve!”.
O Dr. Édson iniciou um pequeno discurso pela passagem da data:
“Neste dia, 15 de agosto, Nossa Senhora atingiu o ponto mais alto da
esfera espiritual! Yemanjá, nossa mãe é a mãe maior da cabeça de todos
os filhos, inclusive na cabeça dos filhos de Oxum, Yansã e Nanã. Nossa
Senhora, Nossa Senhora da Glória, Yemanjá na nossa Umbanda!...
... Há exatamente 27 anos, neste mesmo dia, 15 de agosto, de 1965, foi
fundado o Centro Espírita Nossa Senhora da Glória. Os primeiros
dirigentes já estão no plano espiritual. O Sr. Jorge da Costa Faria, nosso
presidente eterno, in memoriam hoje representado pela sua esposa,
Jurema... É a chama da tradição e das raízes! O Centro não tem dono.
Não pode ser alienado, pertence à Cúpula espiritual da Casa: Pai
Joaquim das almas, Vovó Maria Conga, Caboclo Pena Branca. Quantos
já não saíram daqui para formar seus centros e grupos! Esta Casa já é
uma escola!...
Hoje nós estamos aqui para cantar, dançar, bater palmas para o santo...
é sessão de festa, não é de consulta, Vamos agradecer aos Caboclos,
aos preto velhos aos exus, pombas e às crianças do astral. Há 27 anos
é assim, nada vai mudar, mais 27 anos igual para a casa continuar
crescendo...
Desculpem a memória, doutrinar é repetir...
Os médiuns retomaram a cantoria saudando as entidades que o Dr. Édson
enumerara. Cantando e batendo palmas, amarravam um pano branco na cintura. Alguns
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começaram a dar sinal que iam incorporar suas entidades, rodopiando. D.Jurema dançava no
meio do salão, rodopiando. Amarraram uma faixa verde em sua cintura e lhe deram um charuto
acesso. Sua expressão facial mudou. Os médiuns começam a exclamar: Okê! Okê! enquanto o
Dr. Édson anunciava a incorporação do Caboclo Cobra Coral em D. Jurema Farias.
A maioria dos médiuns ainda não estava incorporado. Dos quartinhos dos fundos
eles começaram a trazer velas azuis que foram distribuídas entre todos eles. As velas foram
acesas aos pés da imagem de Yemanjá. Uma grande bandeira azul-marinho foi trazida para o
salão. Os médiuns formaram uma fila atrás da porta-bandeira, saindo em fila para a parte
externa do Centro. Atrás foram saindo os demais presentes. Alguns já iam carregando velas
azuis e verdes, outros dirigian-se a cantina para adquiri-las. O grupo foi acendendo as velas
entre os bambus, palmeiras e demais árvores do jardim, que rapidamente tornou-se
inteiramente iluminado, sob a luz da lua cheia. Como o espaço é muito grande o grupo
começou a se dispersar por entre as moitas e casinhas onde ficam os assentamentos das
entidades homenageadas.

Posteriormente, o Dr. Édson Silva explicou as referências míticas das entidades do


Centro que estavam sendo homenageadas neste ritual comemorativo.
Além das entidades que formam a sua cúpula espiritual, o Caboclo Pena Branca, o
Preto-Velho Pai Joaquim das Almas e a Preta-Velha Vovó Maria Conga, o Centro é
consagrado aos orixás Yemanjá, Oxalá e Ogum Canjira.
Oxalá está representado pela imagem de Jesus no altar enquanto a imagem de
Yemanjá ali presente não é de nenhuma santa católica, como a Nossa Senhora da Glória. É
uma imagem vinda do Rio de Janeiro, onde um médium, pintor vidente, pintava visões que
tinha de todos os orixás. Sua Yemanjá consagrou-se entre os umbandistas cariocas e foi
trazida para Brasília. Mesmo assim, a Nossa Senhora da Glória homenageada é a padroeira do
Rio de Janeiro, cuja Igreja está situada no Outeiro da Glória.
No Rio de Janeiro O Dr. Édson freqüentava outro Centro, A Tenda Espírita São
Miguel Arcanjo, no Méier. Os trabalhos espirituais eram iguais aos do Centro Nossa Senhora
da Glória de Brasília. O Caboclo Pena Branca também era o guia principal da Tenda. Era a
mesma entidade, no Rio de Janeiro e em Brasília. Mudavam somente os médiuns e as
reuniões. As saudações, o comportamento ritual das entidades eram os mesmos.
Foi o Caboclo Pena Branca quem ditou o regimento interno do Centro e é ele a
entidade quem nomeia os dirigentes do Centro. Nessa linha de Umbanda, todo Centro tem um
Caboclo Pena Branca e um Caboclo Cobra Coral, que são as entidades principais. Todo
Centro possui também a entidade São Miguel Arcanjo, que é o guardião das almas.
Para além dessa continuidade com aquela estrutura simbólica consagrada O Dr.
Édson também apresentou as características brasilienses do Centro Espírita, tais como o alto
nível dos membros e da clientela do Centro, formada por médicos, engenheiros, militares e
funcionários públicos entre outros e da disciplina ritual exercida por ele, muito rigorosa e
responsável pelo sucesso do Centro.
O corpo mediúnico teria sofrido uma grande renovação após a morte do Sr. Jorge
Farias. A maioria dos médiuns é bastante jovem. O processo de renovação definiu melhor a
linha ritual e o estilo do Culto. Os que não se harmonizavam com o padrão foram gradualmente
saindo do Centro.
Duas filhas de santo do Centro chegaram a abrir filiais dentro de Brasília.
Inicialmente elas promoviam sessões em suas próprias residências. A mais jovem, Shirley,
chegou a abrir um novo Centro em Sobradinho, mas não por muito tempo, por ser muito jovem
e não ter suportado a responsabilidade 7 .
O Dr. Édson também teceu considerações sobre a vida religiosa da Capital Federal
como um todo. Segundo ele, a crença da vocação mística de Brasília está apoiada em duas

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Em 1988, pouco antes de inaugurar este Centro, tive oportunidade de conhecê-la. Shirley decidiu abrir o novo Centro por
orientação de suas entidades espirituais. Costumava promover sessões no seu apartamento, situado numa Superquadra funcional
de suboficiais da Aeronáutica. Seu marido trabalha nesta Força. Haviam passado uma temporada de dois anos em Taubaté, no
Vale do Paraíba. O marido havia conseguido uma transferência, atendendo às suas necessidades em cumprir obrigações rituais
junto ao litoral.
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obras, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, psicografada por Chico Xavier e
Mistérios e Magias do Tibet, de autoria de uma jornalista brasileira, que escreve sob o
pseudônimo de Chiang Sing.
Segundo tais obras, ocorrerá no 3º milênio, a transferência do poder espiritual do
Tibet para a América do Sul, incluindo Brasília, de onde deverá sair uma grande revelação para
o mundo. Brasília foi projetada no Espaço Cósmico para abrigar todas as religiões, que vão
caminhar para um mesmo eixo, um dia.
Embora seja grande o número de Centros Espíritas, Casas de Santo e as mais
diversas associações religiosas presentes em Brasília, atraídas por essas revelações, na
prática, existem no entanto, uma série extensa de desavenças entre elas. Todos são sectários,
inclusive os espíritas, pregadores do ecumenismo. A exceção fica por conta da Umbanda, que
não discrimina nem menospreza ninguém.
Vivenciado no cotidiano religioso do Centro, o Mito revela-se em outra dimensão. O
Centro é muito influenciado pela referência kardecista, mantendo inclusive uma pequena
livraria especializada em Literatura Espírita, onde essas obras podem ser adquiridas. A creche,
por outro lado, tem por objetivo preparar uma nova geração dentro desses valores espirituais.
Para o Dr. Édson 8 uma nova mentalidade religiosa só poderá surgir quando uma geração
criada em Brasília, sob esses valores, amadurecer e educar novas gerações nascidas na nova
capital sob os mesmos princípios.

O outro Centro de Umbanda da Asa Norte é o Centro


Espírita Tenda de Oxalá, situado no início da Avenida L-2 Norte. Seguem a linha da Umbanda
Branca, havendo afinidades com o trabalho espiritual do Centro Nossa Senhora da Glória. Este
Centro foi fundado no início dos anos 70, tendo mais de 20 anos. Sua Presidente e líder,
D.Irani, acumula a direção do Centro com a do Lar dos Velhinhos Cecília de Andrade.
D.Irani recomendou-me que assistisse ao ritual de abertura do calendário anual de
atividades do Centro em 31.01.93. Este ritual, revelou-se bastante ilustrativo a respeito das
características da Umbanda Branca praticada em Brasília.
O Centro Espírita Tenda de Oxalá funcionava num amplo barracão de madeira,
semelhante às edificações dos acampamentos da construção de Brasília. Atualmente, o velho
barracão encontra-se fechado, e aos fundos dele ergue-se o Centro, uma construção de
alvenaria e telhas de barro.
O templo, propriamente dito, é menor do que o antigo barracão. É muito ventilado,
devido às amplas janelas e portas. Do seu lado esquerdo ficam um conjunto de pequenas
salas, onde está instalada a secretaria do Centro, arquivos, banheiros, uma cozinha e um
pequeno depósito. Também existem quartos para os médiuns trocarem de roupas e uma sala
especial para curas espirituais.
O espaço ritual do templo foi simplificado. No barracão havia uma parede, aos
fundos, decorada com arcos e flechas e laços de couro, caracteristicos dos caboclos. Do lado
esquerdo, uma pequena pedreira de onde brotava água, e pequenas muretas no chão que
serviam de suporte para velas. Havia também uma pequena mesa central sempre coberta com
toalhas brancas. A assistência ficava separada do espaço ritual por uma pequena cerca de
madeira e uma cortina branca.
No espaço ritual atual a pedreira foi substituída por uma parede de pedra, ao fundo,
sem a cachoeira. Ao alto um vitrô colorido em forma de estrela de Salomão permite a
passagem de uma luminosidade difusa. Há uma grande cruz ao centro, de madeiras, e um
pequeno altar elevado por três pequenos degraus. Lembra um púlpito. Tanto o altar quanto
duas pequenas mesas laterais estão cobertos com toalhas brancas. Junto as paredes do
espaço ritual foram colocados pequenos cestas de lixo e cinzeiros. Entre este espaço e
assistência há uma primeira porta, por onde os médiuns entram quando o ritual começa. Na
assistência existem bancos de igreja e cadeiras de plástico para o caso de lotação dos bancos.

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Foi possível registrar a morte do Dr. Édson Silva em 1995. A festa anual do Centro, em 15 de agôsto, fora feita, desta vez, em
sua homenagem. A notícia foi transmitida por José Marinho dos Santos, pesquisador ligado aquela Casa. Ele afirmou que muita
coisa dentro do Centro poderia mudar após a morte do Ogã.
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O aspecto geral do novo Centro evoca a assepsia e a simplicidade de algumas igrejas


protestantes.
Antes do início da cerimônia tocava uma música ambiente, transmitindo uma
atmosfera de paz. O pequeno degrau circundando a parede do espaço ritual foi mantido no
novo salão e estava tomado por uma série de velas de 7 dias, a maioria já quase por apagar.
D. Irani já uniformizada, toda de branco, retirou-as de lá e depois trouxe um vaso branco com
rosas brancas, cor de rosa e palmas amarelas.
Neste momento, que anunciava informalmente o início do ritual, a assistência
começou a ocupar as cadeiras e bancos. A divisão por sexos que havia no barracão, onde os
homens sentavam à esquerda e as mulheres à direita, acabou. No barracão, haviam bancos de
tábuas corrida separados por um corredor central. O novo templo dispõe as cadeiras e bancos
num único conjunto, sendo o acesso feito pelas laterais. A assistência é predominantemente
feminina. Havia muitas crianças presentes, já que haveria rito para os Erês, as entidades
espirituais infantis.
Os médiuns foram entrando para o início do ritual, colocando-se em círculo,
acompanhando o pequeno degrau das velas. À esquerda, os homens, à direita, as mulheres.
Estavam presentes 32 médiuns, 24 mulheres e 08 homens, Todos vestiam uniformes brancos,
sendo que as mulheres usavam vestidos enquanto os homens usavam calças e camisas de
manga curta.
D. Irani iniciou a cerimônia trazendo um grande defumador. Começou a entoar um
cântico, no que foi acompanhada pelos médiuns mais velhos:
“Nossa Senhora defumou seu bento filho,
para dele o mal retirar,
Eu incenso a minha aldeia de caboclos,
pro mal sair e o bem entrar”
Em seguida D. Irani fez uma pausa e realmente abriu a sessão com um pequeno discurso,
avisando que o Centro voltava a funcionar às 2ªs, 4ªs e 6ªs, fechando para o Carnaval. Pediu
uma salva de palmas para todos os médiuns.
“Abrindo a nossa gira, pedimos de
coração
Ao nosso Pai Oxalá,
para cumprir nossa missão”
Este ponto foi sendo entoado lentamente enquanto a música ambiente foi substituída por outra,
onde sob um fundo musical era recitada um trecho da oração de São Francisco de Assis:
“Senhor, fazei de mim,
um instrumento de vossa paz...”
A oração foi interrompida, um tanto bruscamente, por mais uma saudação de D. Irani, às
entidades espirituais:
“Salve Exu! Salve Caboclo Tubinambá!
Tubinambá quando vem de Aruanda
ele vem para Saravá!
na mão direita traz a pomba de Oxalá
na mão esquerda a guia de mãe yemanjá
Tupinambá já chegou de Aruanda
trazendo pemba para firmar filho de fé
Na sua banda ele vai firmar seu ponto
e na Aruanda já firmou a sua fé.”
Todos estas saudações e cânticos são repetidos pelos médiuns, após o chamado de D. Irani,
que incorpora o Caboclo Tupinambá, a entidade líder do Centro:
“Oxalá meu pai tem pena de nós tem dó
Se a volta do mundo é grande
Seu poder é bem maior.”
Os médiuns permaneciam ajoelhados. Nenhum deles dava sinal de incorporação pelos guias:
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“A lua clareou o terreiro de oxalá,


A lua clareou a cachoeira
clareou a pedreira do meu pai xangô
A lua clareou a cachoeira
clareou a pedreira de meu pai xangô”
“Com esta rosa eu vou, eu vou ofertar a meu pai
a meu pai oxalá, dono deste Congá”
“Salve Ogum megê, Ogum rompe-mato, ogum beira mar
Cheguei na areia cheguei, Salve ogum beira mar”
“segurança de Ogum, não deixa a demanda entrar
É hora, é hora, é hora, é hora de trabalhar
Ogum não deixa a demanda entrar”
Após esses cânticos, os médiuns começaram a desenhar símbolos no chão, com o giz de
pemba. Trouxeram também velas brancas que foram acesas junto a copos d’água, colocados
em pequenos quadrados brancos no chão, bem em frente da assistência. Em seguida,
começaram as incorporações, com os médiuns batendo palmas e cantando. Eles davam
pequenos rodopios, com uma mão nas costas e outra à frente da cabeça. girando como se
atingidos por um pequeno empurrão. O conjunto dos médiuns continuava cantando pontos,
enquanto cada um incorporava a seu tempo:
“Ogum clareou Ogum clareou Ogum clareou
Santo Antônio de pemba, Ogum clareou”
“Se meu pai é Ogum, Vencedor de demanda
ele vem de Aruanda para salvar filho de umbanda
representando general de umbanda
Ogum vence demanda em qualquer lugar”
“Avante meus filhos avante, ele é ogum matinata
vencedor de demanda nos campos de Humaitá”
“Ogum de malê não me deixe sofrer assim
quando eu morrer e passar por Aruanda
vou pedir a meu pai Ogum para saldar filhos de umbanda”
“Ê campeão, sela sua cavalaria, meu ogum vai embora, campeão
sela sua cavalaria, campeão, ê campeão, selou seu cavalo, campeão
Meu Ogum foi embora, selou seu cavalo
D. Irani, que não estava mais incorporada, iniciou um novo discurso:

“Começamos um ano de muito trabalho. Cresce a necessidade do


irmão de fora de uma palavra de conforto.O mundo está cada vez
mais conturbado. As pessoas estão necessitando muito deste
amparo espiritual. Os médiuns precisam trabalhar sério, com
respeito. Façam uma projeção de suas vidas. Vejam os dias que
podem vir. Quando uma pessoa confia num médium ele adquire
confiança na naquela médium e nas suas entidades. Não deixam
que essas pessoas venham e não encontrem o médium. Não
existe médium melhor que o outro. Todos são maravilhosos. Mas
existem médiuns mais responsáveis. Quanto mais responsável o
médium, melhor o Guia trabalha. Não poder vir um mês, por
trabalho, não há problema, mas não vir para ir pro barzinho, para a
festa, é lamentável. Quando mais se dá, mais se recebe. As
conseqüências são para vocês. Cada um tem de acordo com o seu
merecimento.”
Os médiuns permanecem ajoelhados, ouvindo. D. Irani retomou os pontos cantados:
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“Oxalá meu pai tem pena de nós tem dó


Se a volta do mundo é grande seu poder é bem maior”.
“Salve os Caboclos!”
Enquanto D. Irani começava a cantar os pontos dos caboclos os médiuns começaram a
acender charutos nas velas acesas, ainda de joelhos e soltavam pequenos gritos. D.Irani
retomou a defumação. Os presentes foram convidados a passarem pelo meio das filas que os
médiuns, já incorporados, formavam. Os médiuns deram passes nos presentes enquanto os
defumavam. As filas obedecem a divisão de sexos, homens pela esquerda, mulheres pela
direita. Após o retorno da assistência às cadeiras teve início outra fase do ritual, com os
médiuns rodopiando e formando uma grande roda.
“Salve yemanjá, salve Nanã, salve o povo d’água”
Algumas médiuns ajoelharam, simulando com os braços gestos que evocavam as ondas do
mar.
“Tomai conta destes filhos, oh minha mãe pelo amor de Deus!”
D.Irani retomou a apresentação dos novos médiuns na corrente espiritual da Tenda de Oxalá,
um rapaz e cinco mulheres:

“O ato de botar uniforme é uma coisa muito séria. Você olhe bem o que
está vestindo. Oxalá é Deus, Cristo. É o emblema de Cristo no coração.
Não tenham trabalho fora, não vão para encruzilhada, não vão para as
matas fazer trabalho. Tem médium que recebe o guia e no dia seguinte
está fazendo trabalho fora. Quem faz coisa errada o castigo vem. Quem
quiser partir para coisa errada o problema é de vocês. Eu coloco vocês
na corrente Superior. Se vocês estiverem fazendo coisa errada eu
saberei.
As pessoas não gostam de ajudar. Ajudar não é dar dinheiro. É ajudar
... lavar o Congá, limpar o terreiro. É preciso ajudar. Fazer o mutirão.
Tenham consciência. Se eu procurar na corrente, cinco filhos que eu
possa contar fielmente eu não completo a conta. Por favor, não façam
críticas aos colegas. Olhem dentro de vocês. Tem que olhar para
dentro, todos tem defeito, ninguém é perfeito. Todos se conscientizem
para evitar erros. A Casa é séria, o trabalho é sério e séria é a
oportunidade de vocês trabalharem aqui. Aqui não é Casa de correção,
Vocês estão aqui para aperfeiçoarem a conduta espiritual de vocês.
Vou fazer seleção até o final do ano, aqueles que não tem vida correta
aqui dentro e lá fora, ou que são relapsos, eu vou ter que indicar a
porta da rua. Tomem seus lugares!
“Papai do céu abençoou vocês,
Ora iê iê oxum, Ora iê iê mamãe oxum”

Com esse cântico recomeçaram as incorporações. Alguns médiuns deitavam no chão e


chorando, anunciavam a incorporação dos Erês, as entidades infantis que seriam celebrados
no restante do ritual. A maioria dos médiuns, já incorporada fazia uma zoeira característica de
crianças, que tomou conta do Centro.
- Silêncio! O médium que não está autorizado a dar consulta pelo preto-
velho não pode dar consulta em nenhum linha. Só autorizado pode dar consulta
para as crianças, senão terão punição.”
Com essa última advertência D. Irani terminou a apresentação dos novos médiuns,
convidando as crianças da assistência para se consultarem com os Erês no espaço ritual.
Este ritual, bastante extenso e denso, situa a força da disciplina que uma casa de
Umbanda bem sucedida exige e que é motivo de uma forte tensão entre a pessoa do líder e os
membros da corrente Mediúnica. A rotatividade dos médiuns é muito alta. Segundo alguns
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membros do Tenda de Oxalá, já foram iniciados lá, nos vinte anos de existência do centro,
cerca de 1000 médiuns. A maioria só se reúne na festa anual que o Centro realiza para o orixá
Ogum, seu patrono.
O primeiro grande rito de Umbanda que assisti, foi promovido pelo Centro Espirita
Tenda de Oxalá, para homenagear todas as suas entidades, no final do ano de 1987,
justamente quando as atividades anuais do Centro se encerravam. Este rito anual tinha uma
evidente dimensão cosmológica, apresentando o universo de todas as entidades espirituais
com os quais os médiuns tem contato em suas cerimônias de uma vez só, num local onde os
elementos mais significativos da natureza para o culto, estavam reunidos, a floresta, as águas,
as pedras, o céu. 10
O ritual aconteceu numa floresta, em terreno de propriedade da Marinha, às
margens do Ribeirão Saia Velha, logo acima da pequena represa do Saia Velha, um balneário.
Este local está situado próximo a saída sul de Brasília. Era o segundo ano que o rito acontecia
ali.
Os participantes se encontraram no Centro, havendo um ônibus à disposição dos
que não dispunham de condução própria ou carona. Chegamos ao local por volta das quatro
da tarde. Havia um Ogã com seus atabaques no local, trazido de outro Centro. Todo o corpo
mediúnico do Centro estava presente devidamente uniformizado. Demoraram bastante tempo
preparando o local para os ritos de incorporação, acendendo velas no riacho e arrumando os
diversos objetos usados durante as manifestações de possessão, tais como taças, charutos,
flores e bebidas.
As manifestações de possessão começaram com os médiuns incorporando as
orixás femininas das águas, como Yemanjá, Oxum e Nanã, passando depois para os orixás
masculinos, como Oxalá e Xangô. O último foi Ogum, o orixá patrono do Centro.
Quando os médiuns começavam a incorporar essa entidade surgiu um caminhão
da Marinha, para averiguar o desenrolar do evento. Foram recebidos por membros do culto que
não estavam incorporados. Assistiram um pouco e quando saíram já começava a incorporação
dos guias de umbanda. Os primeiros a se manifestarem foram justamente os marujos, espíritos
de marinheiros. Bebiam muita cachaça, conversavam muito entre si e davam consultas. Em
seguida manifestaram-se entidades afins, os boiadeiros e os ciganos. Nenhuma dessas
entidades se manifesta nos ritos semanais do Tenda de Oxalá.
Após essa fase, bastante conturbada pelo caráter jocoso daquelas entidades, o
ritual adquiriu outro tom, com a incorporação dos Erês. Os médiuns se transfiguraram
completamente, brincando, dando piruetas e chupando balas. Os Erês não deram consultas.
Com o cair da tarde quase houve uma interrupção nas incorporações pois era
chegada a hora da manifestação dos Exus. Como ameaçou chover e os Exus não se
manifestam sob a chuva, a cerimônia ficou temporariamente suspensa. Passada a ameaça da
chuva os Exus começaram a dar consultas, enquanto a tarde ia se findando. Foram as
entidades que mais se demoraram no atendimento dos adeptos. Muitos presentes, que foram
para lá em condução própria se retiraram em seguida, enquanto a noite já se anunciava por
entre as sombras da floresta.
O ritual finalizou com a incorporação dos Preto-Velhos que também não deram
consultas. Limitavam-se a beber vinho e a fumar seus cachinhos, ao som dos atabaques que
acompanhavam toda as transformações das entidades espirituais que se manifestavam. Os
Preto-Velhos deram passes e fizeram defumações nos adeptos que ainda estavam no local,
encerrando o ritual. Ao anoitecer, o ritmo dos atabaques, o cheiro e a fumaça dos defumadores
deram um clima todo especial àquela pequena floresta. A saída dos membros do Centro já se
deu acompanhada de uma forte chuva.
No final de 1993 um novo episódio trouxe o Centro Espírita Tenda de Oxalá à tona
e mostrou a importância do culto praticado por essa Casa de Santo. Em 08.12.93 ISTO É

10
A paisagem natural do DF, situada na região de nascentes do Planalto Central apresenta diversos locais como esse, onde tais
dimensões da natureza encontram-se muito próximas uma das outras. O local do ribeirão Saia Velha atualmente faz parte da
Reserva da Biosfera da UNESCO.
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publicou uma reportagem denominada ESCANDOMBLÉ, voltada para as relações de políticos


com Centros de Umbanda e Candomblé.
Numa foto um Deputado aparecia como cliente deste Centro Espírita, enquanto em
outra, D.Irani ,a líder da Casa, incorporada pelo Exú João Caveira, acendia um charuto, numa
das velas acesas colocadas dentro de um ponto riscado à giz de pemba no chão do novo
Terreiro. No meio do Ponto riscado, um alguidar com farofa, jarras e copos contendo uísque. O
texto afirmava que o charuto era cubano e o uísque, escocês. Artigos sofisticados,
característicos dos Exus Maiorais, os líderes dessas entidades.
O objetivo do rito reportado pelo semanário era descobrir o paradeiro de uma
mulher desaparecida, Ana Lofrano dos Santos, cujo marido estava envolvido no escândalo da
Corrupção do Orçamento Federal. O exu afirmou que ela estava morta e enterrada, como foi
confirmado logo em seguida pela Polícia, que encontrou o corpo. A reportagem também
confirmava a presença frequente de políticos e seus parentes nas sessões do Centro espírita
Tenda de Oxalá.
Tal relação, que tudo indica é realmente muito estreita, no caso deste Centro em
particular, apresenta uma contrapartida no plano mítico e ritual. Como foi possível observar,
este Centro espírita dedica uma boa parte do seu ritual de abertura de sessão ao Orixá Ogum,
padroeiro da Casa e representado como o Guerreiro vencedor de muitas batalhas e demandas,
estas, em geral, representadas pelas aflições dos clientes do Centro, que cabe aos guias
espirituais aliviar.
Um dos seus Pontos Cantados, particularmente, refere-se à Batalha de Humaitá,
onde, segundo conta lenda corrente entre os umbandistas, Ogum teria se manifestado durante
a Guerra do Paraguai, para trazer a vitória decisiva ao Exército Brasileiro e às suas tropas,
majoritariamente composta por soldados negros.
O cântico, no caso, evoca ritualmente, uma situação histórica recuperada
miticamente. No caso daquele ritual anual do Centro realizado às margens do Riacho Saia
Velha, de propriedade da Marinha, é como se tal relação, entre Mito e História, fosse
ritualmente atualizada.
Novamente Ogum, o vencedor das demandas, se manifestava diante da Marinha
Brasileira, representada pelos seus militares, para celebrarem sua vitória comum. O Orixá
aparecia representado em vários níveis, sintetizados pelo ritual. Estava presente, enquanto
mediador simbólico, nas forças armadas, guardiãs do Estado, da Nação e do local, tanto
quanto nas forças espirituais da Umbanda, guardiãs do bem estar espiritual da população que
a ela recorre, assim como pelos médiuns e pelos soldados que por lá passsaram.
Visto assim, a preferência dos políticos da Capital Federal da República pelo Centro
Espírita Tenda de Oxalá apresenta um suporte mítico atualizado ritualmente. Considerando
que a Guerra do Paraguai foi um momento crucial para a formação da Sociedade Brasileira, a
relação entre o Político e o Religioso, pelo menos dentro dos limites do Tenda de Oxalá, está
longe de ser algo fortuito ou pitoresco. Ao contrário, está simbolicamente constituída em níveis
que necessitam ser devidamente explicitados e analisados.
Quanto as mudanças do espaço ritual, com a construção do novo terreiro, teriam
sido conduzidas pelos Exu João Caveira, entidade principal do Centro nesta linha, que
procurou simplificar as atividades rituais. Tanto o barracão, quanto os elaborados ritos
envolvendo as pembas, pólvora, e outros artifícios rituais, estariam sendo vistos como já
desnecessários à eficácia dos ritos da nova fase do Centro, mais voltado para os trabalhos de
cura espiritual, utilizando técnicas alternativas, com a cromoterapia e os cristais. O barracão
não foi desativado, continuando como espaço para aquelas que necessitam dos velhos ritos.
Estas modificações não são exclusividade do Centro Espírita Tenda de Oxalá.
Correspondem a uma vertente da Umbanda denominada genericamente de Umbanda
Esotérica ou Umbanda Oriental, voltada para a prática da cura espiritual. O Vale do
Amanhecer, desde sua instalação em Planaltina, em 1970, dedica-se a esse tipo de rito, sendo
até hoje o seu representante mais característico no Distrito Federal.
O que é significativo destacar nestes Centros de Umbanda é que as mudanças
rituais são atribuídas à vontade das entidades espirituais. No caso do Centro Nossa Senhora
da Glória era justamente pela vontade dos guias espirituais que a tradição do culto carioca se
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mantinha. Já no Centro João Baiano como o vínculo entre o guia espiritual e o líder do culto se
rompeu a continuidade do rito praticado também acabou sendo perdida. A “tradição” do Centro
é negociada dentro da esfera propriamente simbólica pelas suas lideranças, o que confere a
essa modalidade religiosa esse modelo peculiar de autoridade.
Como os diversos espíritos umbandistas variam conforme o rito particular que os
Centros desenvolvem no seu calendário, mas o médium é capacitado tanto para receber
alguns guias espirituais bastante individualizados, que serão associados a sua pessoa, ele
pode, em ocasiões específicas, receber espíritos diferentes ou novos, mantendo,
simbolicamente, uma possibilidade de alteração qualquer.
Ortiz (1982) demonstra que nestes cultos, o fenômeno da possessão impõe que a
autoridade fundamental seja aquela das divindades. Como os espíritos também são
individualidades, a autoridade, na prática, pertence ao Líder do Centro ou a alguns médiuns,
enquanto intermediários entre o sagrado e o profano.
Essa autoridade jamais pode se descolar do poder simbólico advindo da
capacidade de expressar a força dos espíritos. Embora existam diversas tentativas por parte de
algumas lideranças umbandistas em codificar essas manifestações, tornando-as inteligíveis a
partir de um saber objetivo, uma tradição padronizada, esse saber é sempre muito limitado e
conjectural.
No caso dos cultos umbandistas, os guias espirituais falam, através do médiuns,
diretamente com os pacientes e clientes, articulando um saber sobrenatural prático que estará
sempre estruturalmente contraposto às tentativas codificadoras dos lideres mais
intelectualizados.
Neste sentido, o fato das codificações umbandistas serem feitas sempre com
saberes emprestados é revelador. Os umbandistas interpretam os fenômenos de possessão
que praticam a partir da codificação kardecista, da mitologia dos orixás africanos, e dos textos
sagrados das grandes religiões, como a Bíblia e textos budistas e hindus.
Um médium de umbanda, todavia, é reconhecido como tal pela capacidade dos
seus guias espirituais em curar e até em castigar, graças ao seu poder sobrenatural, e não à
sapiência que possua enquanto conhecedor de assuntos religiosos.
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DOIS MÉDIUNS DE UMBANDA

A seguir serão apresentadas situações vividas numa pesquisa preliminar sobre o


tema, desenvolvida em 1987. 9 A pesquisa que seria executada na Ceilândia, cidade satélite do
DF, acabou desviada para o acompanhamento de momentos da vida religiosa deste médium
umbandista do Plano Piloto.
Este médium me foi apresentado por um colega do curso de Ciências Sociais,
conterrâneo do Médium Jesus e umbandista como ele, na época. Na companhia dos dois
assisti a alguns rituais de Umbanda, entre o final de 1987 e meados de 1989, antes de
ingressar no Mestrado em Antropologia. Encontrávamo-nos esporadicamente e sempre
conversávamos a respeito de assuntos religiosos.
Aos poucos fui descobrindo que o Médium Jesus era bastante conhecido em certos
circuitos de Brasília, tangenciais ao religioso. Trabalhava na Câmara dos Deputados, como
assessor de um parlamentar de seu estado de origem. Circulava por ambientes de moda,
trabalhando durante algumas horas como vendedor numa das mais sofisticadas lojas de
artigos masculinos de Brasília. Freqüentava muito a vida noturna, sendo conhecido em bares e
outras casas noturnas muito freqüentadas. Era conhecido, e fazia-se respeitar, por uma fama
de temível feiticeiro, capaz dos piores trabalhos espirituais em Magia Negra.
Jesus residia na Asa Norte do Plano Piloto, com seus pais. Seu pai é um líder da
Comunhão Carismática na Asa Norte. Foi graças a sua mãe, através da esposa de um
parlamentar, amiga de D.Irani, que ele chegou ao Centro Espírita Tenda de Oxalá.
Em 1988, com 21 anos, o Médium Jesus mudou-se para outro Centro de Umbanda,
localizado num lote destinado a instituições religiosas na Ceilândia. O presidente do novo
Centro era Diretor de uma escola em Taguatinga, onde também reside. A mudança de Centro
correspondia a uma mudança de linha ritual. Enquanto o Tenda de Oxalá pratica a Umbanda
Branca, com um ritual de nítida influência kardecista, com ênfase no desenvolvimento
mediúnico e ausência de ritos e ritmos africanos, o novo Centro praticava a Umbanda Traçada
onde os médiuns fazem iniciação para os orixás e as sessões mediúnicas são conduzidas por
atabaques com seus toques característicos. Praticam rituais de alimentação das entidades
espirituais, com matança de animais, ausentes na Umbanda Branca. Nesse época Jesus
chegou a afirmar que a sua Umbanda era aquela, e não a outra.
Em 1989 ele começou a se preparar para fazer iniciação ao culto dos orixás,
embora quando eu o conheci, em 1987, havia me dito que jamais “faria” o seu orixá, por
recomendação de seu Caboclo. No ano seguinte, ele resolveu abandonar a Umbanda de uma
vez, sem ter feito a iniciação ao culto dos Orixás. Passou a freqüentar a Comunhão Espírita de
Brasília, um grande Centro Espírita kardecista situado na Avenida L-2 Sul.
Em 1993 já havia retornado à Umbanda. Freqüentava um novo Centro de
Umbanda Traçada, numa residência do Lago Sul. Nesse Centro existem tanto as “matanças
rituais” do culto aos orixás como desenvolvimento mediúnico e outras práticas kardecistas.
A convite do Médium Jesus assisti a alguns ritos, também do universo umbandista,
muito diferentes das sessões de consulta já descritas.
Em 1989 o Médium Jesus me levou a festa anual que o Centro que ele freqüentava
na Ceilândia oferecia para o Exu principal da Casa, João Caveira, incorporado no Pai de
Santo proprietário do Centro.
O Centro era muito grande. Seu espaço principal lembrava uma igreja pequena,
com bancos corridos e um grande altar, separados por uma pequena cerca. Atrás do espaço
do altar e nas laterais da nave, todavia, encontram-se espaçosas salas onde ficam as imagens
e os assentamentos das e entidades do Centro. A esses locais só os médiuns devidamente
vestidos para o ritual tinham acesso.

9
O Projeto de pesquisa intitulava-se Umbanda na Ceilândia, tendo sido financiado pelo Decanato de Extensão da Universidade
de Brasília no segundo semestre de 1987, sob a orientação do Profº Luís Tarley de Aragão.
- 60 -

Ao contrário do Tenda de Oxalá os médiuns desse Centro não usavam uniforme


branco. Cada entidade espiritual possui uma roupa apropriada. Para a celebração ao Exu os
médiuns vestiam calças ou saias pretas e blusas vermelhas.
Fomos acompanhados por um jovem casal de médiuns que tinha sido o
responsável pela mudança de Centro que o Médium Jesus realizara. Eles também eram
funcionários do Poder Legislativo.
Passamos na casa deles para irmos juntos ao Centro. Na sala de estar, em meio a
samambaias, begônias, araras e tucanos de feltro, destacava-se uma foto do casal,
acompanhando o então Presidente da República, Sr. José Sarney e sua esposa, D. Marly, em
trajes de gala. A foto não muito grande, estava colocada ao lado de um vaso pintado em
vermelho, com detalhes em preto, que pude confirmar depois, era consagrado aos Exus!
A celebração ao Exu do Centro não começara naquele sábado, 13 de junho. Na
quinta-feira à noite houvera a matança ritual de um boi, que era objeto de um churrasco,
servido na frente do Centro, entre mesinhas e uma barraca de chopp. Havia muita gente e o
ambiente era animado e ordeiro. Basicamente, eram as famílias dos membros do Centro que
ali se reuniam.
O ritual era muito elaborado. Um médium paramentado com as insígnias do Orixá
Ogum, o comandante dos Exus, abriu o ritual, rodopiando pelo salão e enfatizando a ordem
religiosa na qual os Exus devem se manifestar. O Exu homenageado, vestindo longa capa
preta e vermelha, estava sentado numa pesada cadeira de madeira, quase um trono. Aos seus
pés, diversas garrafas de bebida, principalmente champanha, cidra e vinho.
Ele ordenou que só as Pomba Giras dessem consultas e organizou uma fila para
essa atividade. Poucos médiuns incorporaram Exu para auxiliá-lo na organização do rito,
inclusive o médium Jesus. Os atabaques que tocavam desde a manifestação de Ogum,
silenciaram para o Exu dar um discurso de agradecimento às homenagens que recebia.
O discurso do Exu consistia numa condenação ao uso das drogas, visto como fator
de desagregação familiar. Aquela entidade falava para as famílias ali presentes, enfatizando a
necessidade da união, apesar das desavenças. Pude perceber que o objetivo da festa estava
em favorecer um reforço de solidariedade familiares, num ambiente marcado tanto pela
presença do consumo de drogas entre os jovens, como por outros fatores de desagregação,
como o desemprego e o alcoolismo.
Ao fim do discurso, as consultas foram ocupando o espaço ritual para em seguida
irem perdendo importância diante do churrasco que crescia com a farta distribuição de pratos e
“chopp” entre os presentes.
Enquanto retornavam ao Plano Pilôto o Médium comentou com seus amigos as
características da festa anual da Pomba Gira do Centro, que era o oposto daquela. A festa
dessa outra entidade, a Pomba-Gira Soberana, era fechada ao público. Ela, também
incorporada no Pai de Santo, recebia 7 casais de convidados, para um jantar a luz de velas,
servindo à francesa com garçons. Os homens deviam ir de Smoking e as mulheres em
elegantes trajes noturnos. O casal que nos acompanhava havia participado da cerimônia do
ano anterior. Falavam com muito orgulho de sua participação, enfatizando que as pessoas
convidadas eram importantes, muito distintas dos moradores da Ceilândia que estavam
reunidos naquele churrasco.
De alguma maneira, a foto do Casal presidencial se aproximava da imagem do
jantar da Pomba-Gira soberana. Estórias sobre as relações do Casal Sarney com os cultos
afro-brasileiros do Maranhão eram correntes, e segundo informantes, estimuladas pelo próprio
casal.
O outro rito que o Médium Jesus me levara para assistir tinha um caráter
totalmente diferente. Não foi realizado em nenhum Centro ou Terreiro, mas na residência da
cliente que encomendara o rito.
O ritual começaria as 18h, num dia de semana. Estávamos numa mansão do Lago
Sul, situada numa das quadras mais valorizadas do local, embora sua arquitetura fosse
modesta para o padrão da vizinhança. O rito seria realizado no quintal, tendo sido montada
uma mesa no jardim, mas com o começo de uma chuva fina ela teve que ser desmanchada às
pressas. Fomos transferidos para a sala de estar, de maneira improvisada.
- 61 -

O médium ainda chegou a receber seu Caboclo no jardim, que manifestou-se


rapidamente para, enquanto representante da Lei de Umbanda, autorizar a realização do rito,
que seria na linha de esquerda. A entidade invocada, a Pomba-Gira Maria Padilha, a mais
poderosa dessas entidades femininas, se manifesta no Médium Jesus com muita força e seus
trabalhos espirituais eram muito requisitados.
A cliente estava só. Natural do Maranhão, já passara dos 40 anos feitos. Seu
objetivo era conseguir de Maria Padilha uma vingança ritual contra o seu amante, que a havia
abandonado. Para isso buscava o apoio da Quimbanda, a linha de esquerda da Umbanda,
célebre por suas entidades especializadas em trabalhos “pesados”.
O sucesso da realização de seu desejo passava por uma série de detalhes que ela
tinha dificuldade em compreender. Em primeiro lugar, o médium teria que receber a
incorporação do Exu da vítima, que teria que ser convencido a permitir que a influência do
trabalho a ser realizado o atingisse.
Um agressivo Exu-Mangueira, entidade tão poderosa quanto a Maria Padilha do
médium, manifestou-se. Afirmou que seu “filho” era uma pessoa de mal caráter que precisava
de um castigo para se emendar. Ele autorizava, por isso mesmo, o trabalho espiritual contra a
vítima.
O objetivo da cliente era simples. Ela queria que o amante retornasse para ela
apaixonado, assim ela poderia desprezá-lo e humilhá-lo. A Pomba-Gira tentava mostrar à
cliente que isso não era tão fácil, como ela pensava. Quando o homem voltasse, ela, mulher,
facilmente se apaixonaria novamente por ele e no fim de tudo ele provavelmente a desprezaria
e a humilharia mais uma vez. O feitiço poderia se voltar, não contra o feiticeiro, mas contra a
contratante.
Para que a cliente compreendesse melhor, a Pomba-Gira levantou-se, abriu os
braços e exclamou:
“Veja bem! amor e justiça são assim, opostos, nunca os confunda! Se
você quer uma coisa, não pode ter a outra, entendeu?”
O verdadeiro ritual de quimbanda não iria acontecer ali naquele momento. Numa
outra semana, num local retirado, onde só a cliente estaria com o médium, o nome da vítima
seria amarrado 7 vezes nas pontas de uma saia da cliente, animais seriam mortos, a pomba-
gira beberia o sangue deles e então o trabalho espiritual estaria terminado.
Após todo o processo de esclarecimento da cliente a respeito das condições do
trabalho espiritual, a pomba-gira abandonou o médium, dando lugar a outras entidades, que
vieram purificar os presentes. O Erê do médium fez severas críticas àquela pomba-gira, devido
às suas práticas de quimbanda, enquanto o Preto-Velho, que se manifestou em seguida, fez
questão de afirmar que não tinha nada a ver com aquele tipo de rito que estava acontecendo
ali.
Permanecemos na Mansão até a meia-noite, quando teríamos que acender velas
para os Exus na encruzilhada da rua onde estávamos. Passamos, em seguida numa outra
Mansão, em outra quadra do Lago Sul, onde outra médium, pernambucana, amiga do Médium
Jesus, tinha ido assentar um peji, um altar para alguém cultuar seus orixás.
A dona da casa veio trazê-la até a porta. Era uma senhora, também na faixa dos 40
anos. Simples e elegante. No carro a médium reclamava muito da cliente, afirmando que ela,
como outros:
“ Só quer receber, mas não quer dar. Pede muito e não dá nada em troca.”
Embora todas essas situações que o Médium Jesus se envolvia, e me convidava a
acompanhá-lo, envolvesse ritos, pessoas e lugares muito diferentes, elas obedeciam a uma
lógica, que pude conectar a partir das dimensões míticas que o orientavam em sua vida
religiosa.
Nosso amigo comum costumava afirmar que não confiava na pomba gira do
Médium Jesus, porque ela dizia sempre a mesma coisa para todo mundo. Pelo que pude
presenciar a razão do discurso recorrente da entidade se devia ao fato que suas clientes
estavam sempre pedindo uma única coisa à pomba-gira, solução para problemas amorosos.
Além disso tais entidades atuam justamente através de um discurso padrão, provavelmente
introjetado durante o desenvolvimento mediúnico.
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Segundo informações do próprio Médium Jesus, sua intensa vida religiosa tinha
uma explicação em termos míticos. O orixá que preside a sua cabeça, Ogum Xoroquê, é
conhecido como o senhor da Magia, e é muito temido pelo seu poder. Ele ocupa uma posição
simultaneamente intermediária e central no mundo os orixás.
Enquanto Ogum, ele é responsável pela ordem, principalmente junto aos Exus,
notórios desordeiros que obedecem a autoridade de Ogum. Enquanto o senhor da magia,
porém, é mais poderoso que todos os outros Exus e manifesta este seu poder ora como uma
Pomba-Gira, um Exu mulher, no caso dele Maria Padilha, a mais poderosa feiticeira, ora como
um caboclo, entidade masculina, símbolo da ordem, que só mexe com magia para desmanchar
o trabalho pesado das entidades de esquerda. Tal entidade, é determinada miticamente, como
tendo o poder, literalmente, de fazer e desfazer, no campo mágico.
Além disso, tal entidade também situa-se numa posição intermediária entre o Culto
aos orixás africanos e ao culto dos guias de umbanda. O primeiro culto, como mostram Bastide
(1985) e Carneiro (1977) está voltado para estas entidades, orixás, que são qualidades
elementares na natureza, como as águas, as matas, o céu, ou atividades produtivas
personificadas, como a metalurgia, a caça, a medicina. A cada orixá corresponde um conjunto
de qualidades específicas, envolvendo tanto distinções de ordem natural, econômica e etária.
Xoroquê, por exemplo, é uma qualidade de Ogum, mais próxima dos Exus, também sendo
conhecido como o Ogum dos Exus. Existem Oguns da mata, Oguns da praia, e Oguns dos
caminhos, entre outros.
No culto umbandista, por sua vez, os diversos Guias, os espíritos que os médiuns
incorporam, são agrupados por diversas categorias que se entrecruzam. Existem as categorias
diretamente rituais, como os Caboclos, os Preto-Velhos, os Erês, a cada um correspondendo
uma Gira própria. Outras categorias, como mostram Camargo (1961) e Ortiz (1991) são os
orixás, que na Umbanda também aparecem como categorias coletivas, mas que ao invés de
enfeixarem as qualidades dos Santos, como nos cultos de origem africana, enfeixam os Guias
espirituais. Existem, caboclos de Oxóssi, de Ogum etc, assim como exus e pombas-giras
asssociados a cada Orixá.
Como Ogum Xoroquê aparece na Umbanda como um orixá que se desdobra em
dois tipos de guias tão fundamentais, a Pomba-Gira e o Caboclo, ele ocupa, estruturalmente,
uma posição que intersecciona os dois sistemas religiosos. Dessas características derivava sua
trajetória. Começou a incorporar o seu Erê e a sua Pomba-Gira ainda em João Pessoa, quando
era adolescente. Tais manifestações aconteciam espontaneamente.
Em Brasília, iniciou o seu desenvolvimento mediúnico no Centro Espírita Tenda de
Oxalá, onde conheceu os seus guias com suas características. Devido as ligações do seu
Ogum Xoroquê com os orixás é que ele sentia-se melhor no culto da Umbanda Traçada, mais
próximo as tradições africanas. Quanto a possibilidade de se iniciar no Culto aos Orixás,
submetendo-se ao rito formal, por duas vezes tentou fazê-lo mas desistiu.
Na primeira, num Terreiro em Luziânia, seu Caboclo incorporou para dizer que
“ninguém deveria por a mão na cabeça do filho dele”, o que significaria que ele não
deveria ser iniciado. Da segunda vez que se preparou aconteceram-lhe estranhos incidentes.
Se envolveu em brigas de bar e sofreu um acidente de carro muito sério, gastando com
hospital e com mecânicos todo o dinheiro que juntara para a iniciação. Atribuiu o infortúnio a
advertência do Caboclo e desistiu definitivamente.
Segundo nosso amigo comum, a proibição do caboclo a sua feitura no culto dos
orixás deve-se ao fato de que a ascendência do Pai de santo sobre seus filhos ser muito
grande. No seu caso, devido a força do Orixá, o Pai de santo que o iniciasse teria muito poder
sobre ele. Ogum Xoroquê para ser assentado na cabeça do filho de santo necessita de
oferendas rituais realizadas para todos os orixás, uma vez que ele tem influência sobre todos.
Tudo isso faria com que a sua iniciação se tornasse muito cara e arriscada.
Foi o acidente automobilístico que o fez largar a Umbanda e passar a frequentar a
Comunhão Espírita, onde chegou a fazer um exorcismo de suas entidades de Umbanda.
Estava decepcionado com a experiência no Centro Espírita da Ceilândia. Saiu de lá dizendo
coisas tais como:
- 63 -

“Todos os guias trabalham com exu e por isso qualquer um pode lhe
manipular através das entidades. Há muita exploração. Exu atende a quem o
pagar mais”.
Essa fase de descrédito não durou muito. Voltou para a Umbanda, mas num novo
Centro, afirmando que:
“ A Umbanda não me larga e eu não largo a Umbanda”.
Parece ter incorporado alguma coisa da ética kardecista. O novo Centro, é de
Umbanda Traçada, mas dedicado aos ritos de cura espiritual, mantendo inclusive um grupo de
auxílio espiritual às vítimas da AIDS, do qual ele faz parte.
Ao longo do nosso convívio fui constatando que entre ele e nosso amigo comum
havia uma tensão muito grande. O médium Jesus questionava a legitimidade da pesquisa
antropológica frente aos cultos, afirmando que se uma boa parte do fenômeno de possessão é
inconsciente até para ele, como poderíamos realmente entendê-lo?
Nosso amigo, estudante, questionava a eficácia da fenômeno da incorporação
mediúnica e a seriedade das manifestações dos guias . Ele contou-me uma versão diferente
para trajetória religiosa do Médium Jesus.
Nesta outra versão, a mãe do médium Jesus também freqüentava a Umbanda e
recebia um Erê. Em seus contatos o mundo religioso e o mundo político freqüentemente
estavam confundidos num só ambiente, freqüentado por mulheres ligadas à política por laços
de parentesco- esposas, mães, filhas - ou por laços profissionais - secretárias ou mesmo
algumas parlamentares - que tinham uma vida religiosa em comum no Tenda de Oxalá, Centro
muito freqüentado por políticos da Área Federal. 11
Além disso, o Médium Jesus teria freqüentado por uns dois anos, quando
adolescente, um Centro de Quimbanda onde só trabalhavam com Exu e onde ele aprendera
toda a sorte de feitiçarias que praticava.
No Centro Espírita Tenda de Oxalá, o médium Jesus era muito requisitado devido a
força de seus guias. O seu Exu, por exemplo, João Caveira, era o mesmo do Centro e da sua
presidente, D. Irani. Por isso ele podia auxiliá-la nos ritos ligados a essa entidade. D. Irani
também trabalhava com ele em sacrifícios secretos ao Orixá Ogum, o patrono do Centro,
quando eram sacrificados cachorros, animal atribuído a este Orixá. Esse tipo de rito é
característico do culto aos orixás africanos.
Um outro conhecido do Médium Jesus, revelou outros detalhes a respeito de tão
controvertida pessoa. Na Ceilândia, ele teria se dedicado a incríveis trabalhos de magia negra,
como um no qual um feto humano, adquirido junto a uma clínica clandestina de abortos, fora
costurado na barriga de uma cabrita e deixado numa encruzilhada. O trabalho fora
encomendado por “gente de dinheiro”. O médium Jesus teria se envolvido em muita “barra
pesada” na Ceilândia, principalmente no clima de intrigas e fofocas que existia entre os
membros do Centro. Por isso sua crise com a Umbanda.
Acompanhei o Médium Jesus com certa frequencia até o final de 1992 participando
ainda de mais um breve rito em sua companhia.
Uma funcionária de uma Autarquia governamental, mulher de seus 40 anos, pedira
a ele que ajudasse numa oferenda a sua Pomba-Gira. Ele a apanhou de carro no Setor
Bancário Norte, próximo ao meio dia, e de lá nos dirigimos até um balão 12 próximo à Vila
Planalto, onde foram depositadas 7 rosas vermelhas e uma garrafa de cidra. A funcionária
afirmou ao entregar-nos as oferendas: “Tenho que fazer alguma coisa por ela para que
ela possa fazer por mim”.
As características da vida religiosa do Médium Jesus podem ser tomadas como
ilustrativas da maneira como os cultos espíritas afrobrasileiros são vivenciados no centro
político do País, já que não se revelaram exclusivas a este médium.

11
Não exclusivamente, todavia. A clientela do Tenda de Oxalá era visivelmente heterôgenea com relação às suas origens sociais.
12
Os balões projetados por Lúcio Costa para substituir os cruzamentos em Brasília são muito procurados para
“despachos”, já que estão bem no meio de encruzilhadas. Visto por este ângulo, o Plano Pilôto de Brasília evoca
uma gigantesca encruzilhada formada pelos dois Eixos que se cruzam na Estação rodoviária.
- 64 -

Similar ao Médium Jesus, outro médium, o Médium Jorge, ao comentar situações


em que esteve envolvido por conta dos seus trabalhos espirituais, demonstra como o poder
simbólico das entidades é procurado por pessoas, interessadas em negociar posições sociais,
inclusive pessoas ligadas às esferas do poder público.
Quando fui à residência do Médium Jorge para conversar com ele a respeito de sua
trajetória no mundo do espiritismo, coincidentemente ou não, ele começou a entrevista
contando uma situação desagradável que passara junto a uma jornalista que o havia procurado
não havia muito tempo, em busca de informações a respeito da vida religiosa de pessoas
ligadas à política em Brasília.
Ávida por um escândalo, a jornalista o teria envolvido em situações
constrangedoras, que culminaram em discussão verbal. Não satisfeita, a jornalista procurou a
polícia para registrar uma queixa, onde acusava-o de ameaças explícitas de morte, com o uso
de um revólver. Intimado a depor, o Médium Jorge respondeu ao delegado:
“Quem me faltou ao respeito foi ela, que afirmou coisas que eu nunca
disse. Nunca tive um revólver, não ando armado. Eu sou um Pai de
Santo. Minha arma é a magia”
A repórter estava interessada, principalmente, em levantar informações sobre suas
relações com o clã político dos Sarney. Seu pai, advogado respeitado, em São Luís e em
Brasília conhece o ex-presidente José Sarney. Sua família é grande e tem representantes na
área da política e da cultura no Maranhão. O Médium Jorge chegou a ser motorista do então
Deputado José Sarney Filho, embora não por muito tempo. Graças ao notório envolvimento
dos Sarney com o Tambor de Mina Maranhense, a repórter conseguiu refazer essas relações
até chegar ao Médium Jorge, em busca de uma boa reportagem.
O Médium Jorge entrou para o culto de uma forma bastante característica. No
início de sua adolescência, em São Luís do Maranhão, começou a apresentar alguns
problemas motores, caindo no chão sem nenhuma razão aparente. Surgiram suspeitas de
epilepsia ou de algum tipo de histeria. Uma costureira de sua mãe, ao presenciar um desses
seus acidentes, afirmou que era uma entidade que causava tudo aquilo e que ele era médium.
Jorge foi encaminhado a um Centro Espírita Kardecista para desenvolver suas
faculdades, cessando os seus problemas. Com 15 anos de idade mudou de Centro, passando
a freqüentar um Centro Umbandista, onde continuou o seu processo de desenvolvimento
mediúnico.
Sua vida religiosa sofreu uma interrupção aos 19 anos, quando foi para o Rio de
Janeiro servir ao Exército. Ficou lá por dois anos e não praticou o espiritismo nesse período.
Quando retornou ao Maranhão é que começou a sua vida espiritual, já trabalhando
regularmente como Médium desenvolvido.
Nessa nova etapa, chegou a se iniciar na vertente da Quimbanda, numa cidade do
interior do Estado, Codó, famosa pela importância de seus cultos de possessão,
genericamente conhecidos como Tambores da Mata.
Iniciou-se com o Pai de Santo Bita do Barão, muito conhecido pela prática da
magia negra. Bita do Barão era poderoso e rico, tinha fazendas, dinheiro, tudo ganho em troca
de seus trabalhos de magia. Ia para Paris, Alemanha, Holanda, Inglaterra, com tudo pago, para
matar na magia negra, encomendado por gente importante. Se envolvia com pistoleiros e
grileiros e nesses seus excessos acabou perdendo a força de suas entidades. Quando
descobriu essas relações do Pai de Santo, o Médium Jorge o abandonou.
No Maranhão, ainda freqüentou como simpatizante, a Casa das Minas, importante
Centro da Nação Jeje existente em São Luís. Levado pela curiosidade, chegou a residir
durante dois anos em Salvador, onde pode conhecer os famosos Candomblés do Gantois e
das Amoreiras, este na ilha de Itaparica, também como freqüentador.
Ele começou a sua vida religiosa no Planalto Central, na pequena cidade de
Palmelo, uma comunidade espírita dedicada às Curas Espirituais. Não ficou lá por muito tempo,
porque como as suas entidades de Umbanda se manifestavam com muita freqüência, não se
adaptou à linha Kardecista que predomina na Corrente Espiritual de lá.
Em Brasília, também começou a trabalhar no Kardecismo, freqüentando a
Comunhão Espírita. Atualmente só freqüenta o Centro Espírita Mensageiros da Paz, localizado
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na cidade satélite do Guará. É um Centro de Umbanda Oriental, linha ritual do qual seus guias
fazem parte.
O Médium Jorge ilustra muito bem como as relações de um médium e o Centro em
que trabalha terminam por ser extremamente elaboradas e delicadas. Na condição de canal
privilegiado entre a força simbólica das entidades espirituais e os clientes que as procuram,
eles são os verdadeiros responsáveis pela realização dos ritos, mas o fato de terem que
freqüentar um Centro que não lhes pertence os obriga a obedecer o estilo da Casa e a
autoridade do Líder:
“Fui para Palmelo porque estava perturbado por algumas entidades
brabas. Cheguei lá e pude controlar . Trabalhei na linha do transporte.
Incorporação e transporte. Tiro o espírito do paciente... boto em mim, e
encaminho, transporto. Isso é transporte. Mas não fico me batendo, me
jogando. Quando não há um controle, o médium fica se batendo e
acaba todo arranhado e esfolado. O médium às vezes fica perturbado.
Precisamos procurar um Pai de Santo que tem um trabalho mais firme”.
“Não se pode trabalhar em duas ou três linhas. Dá cruzamento de linha,
Só tenho permissão para trabalhar na linha oriental, se não, tenho que
pedir permissão, se quiser trabalhar em outra. As entidades que recebo
são da minha Coroa, a aura espiritual. Onde eu for, eu recebo elas.
Todo terreiro que eu boto o pé quer que eu trabalhe ali. O que atrapalha
a pessoa é esse cruzamento de linhas, pois cada lugar trabalha de uma
forma. Tem um ritual. Eu trabalho nessa. Vou a outro de fora e continuo
com o pé aqui. Desanda.”
Esses limites vão até o ponto onde o médium pode pretender tornar-se um Pai de Santo
autônomo, com o seu próprio estilo de culto predominando:
“Me considero preparado. Mas não sei de tudo não. Já aprendi muita
coisa. Com 30 anos de espiritismo posso me considerar Pai de Santo.
Todo Pai de Santo tem seu Congá. Eu tinha ponto de Exu em minha
casa. Mas puxa muita energia. Se a gente bebe, ele vem beber. Estão
todos no Terreiro. Agora, só tenho as entidades de luz em casa.
Não relaxo o Santo nem a firmeza. Mas o material está caro. Só de vela
é uma fortuna! imagine o resto. E se eu der alguma coisa para um guia
tenho que dar para todos. Se eu for embora daqui tenho que levar meus
Santos. É como se fosse um casamento com os guias. Se eu monto o
meu Congá, quando for inaugurar, eu tenho que pedir permissão”.

Esses limites também chegam ao ponto das relações com as entidades espirituais, no plano
mítico:
“A linha oriental de umbanda é a das entidades que governam os meus
guias. São sábios do Oriente. Orientam os espíritos inferiores na
hierarquia espiritual. Sempre tem um mentor do Oriente
supervisionando o trabalho. É diferente da linha africana, o candomblé.
A umbanda mistura o candomblé com o catolicismo. Têm a Umbanda
mais a Quimbanda. Não acho que a Quimbanda seja a banda do mal. A
quimbanda é o trabalho pesado. Na Umbanda, Caboclo e Preto-Velho
não são dados a magia negra. Caboclo cura, mas pode lhe dar um
castigo se você merecer. As entidades de esquerda são os Exus. São
muito boas quando usadas para fazer o bem. São de muita força. Não
aconselho a usar para fazer o mal porque tem o retorno. O mal só
atrasa a gente. No bem você evolui, cresce.
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Uma vez uma pessoa me magoou muito e eu “ripei” com ela. Só que o
espírito que fez não ajudou a desmanchar depois. Foi preciso uma
entidade de luz vir me ajudar. Nunca matei ninguém. Só dei castigo
para gente que merecia. Quem é mal para os outros eu faço castigo.
Não separo casal, para tirar um homem e botar na mão de outra mulher.
Se fizer, desanda! Cai a vítima, o autor, o mandante, o executor e até a
entidade. Terminam todos punidos!”.

Como a posição dos médiuns diante dos Centros de Umbanda é estruturalmente ambígua, eles
tanto contribuem para o prestígio do Centro onde atuam como recebem parte do prestígio que
a Casa possui. Tal posição só pode implicar numa tensão estrutural que precisa ser muito bem
administrada. As relações do Médium Jesus com os Centros que freqüentou também
mostraram tais ambigüidades.
Nesse sentido, sua modalidade de culto posta em prática, acaba sendo a mediação
possível entre sua síntese particular, diante de todo o universo simbólico a sua disposição, com
a estrutura simbólica ritualmente atualizada no Centro em que atua.
Há uma consciência, expressa em termos simbólicos nas considerações do
médium, da subordinação evidente enquanto médium, diante da estrutura organizativa própria
aos Centros de Umbanda. Tal tensão entre o médium e o Centro, se resolve na própria
mediunidade, a capacidade de intermediar a ação simbólica dos guias espirituais, nos
momentos rituais.
A esta individualidade singular, advinda do “desenvolvimento” da capacidade de
encarnar e representar a ação simbólica dos guias espirituais, a Umbanda corresponderia
como uma totalidade caleidoscópica, fundamentada não numa pluralidade de sub-tradições,
mas numa segmentação de possibilidades descontínuas de arranjos simbólicos, próximos entre
si. Enquanto manifestação religiosa tal fenômeno social deve ser visto muito mais como um
amplo complexo cultural, permanentemente reinterpretando imagens, signos e valores culturais
através das mediações rituais propiciadas pelo “trabalho”de seus “guias”.
Nos termos utilizados por Levi-Strauss (1975), é possível situar tais entidades
enquanto representações personificadas dos diversos poderes simbólicos que os médiuns
utilizam em suas práticas rituais, como curar e desmanchar o mal. As pessoas situadas em
posições privilegiadas da estrutura social vigente relacionam-se com esse poder na condição
de clientes. A opinião pública é a responsável pelas relações de oferta e procura desse tipos de
serviços religiosos, onde demandas propriamente políticas acabam sendo levadas para o plano
religioso.
Embora toda a ideologia umbandista gire em torno da prática da caridade cristã,
orientando a diversidade e a autonomia de tais práticas rituais, como já frisara Ortiz (1991), o
Médium Jorge permite situar com clareza como tanto esses ritos, como a ideologia que os
acompanha, atuam sobre tensões sociais. Essa atmosfera de tensão social, todavia, não se
restringe à esfera dos rituais. É possível afirmar o contrário, paradoxalmente, que são as
tensões sociais que “carregam” a esfera ritual institucionalizada destes cultos. Um último
exemplo dos trabalhos espirituais deste médium ilustra esta mediação:

“...Aconteceu em Belo Horizonte. Os concorrentes de um industrial


bem sucedido encomendaram um grande trabalho de magia negra para
“derrubar” o rival. O trabalho teve sucesso na medida que atingiu não
aos negócios do industrial mas a saúde de sua filha, uma jovem
bailarina. A menina ficou entrevada na cama, não conseguia se mexer.
Eu acompanhei um grupo de médiuns que foi até Belo Horizonte para
tentar resolver a situação. Ficamos duas semanas na casa do
industrial, nos pés da cama da menina. Tivemos que trabalhar só no
“pesado”, para combater o “pesado”. Senão não dava em nada. Foi
preciso segurar a barra dos exus mandados para fazer o mal, que não
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são de brincadeira! Eles vem para arrebentar a vida da vítima. Não se


resolve na violência não. Tem que receber a entidade e ver o que ela
quer, depois ou se coloca um Exu mais forte para segurar a situação
ou se trabalha com um Caboclo, que desmancha o mal e prende os
Exus”..
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TRÊS MÃES DE SANTO

D. Violeta é funcionária aposentada da Câmara dos


Deputados. Transferiu-se para Brasília em junho de 1960, na primeira leva de funcionários que
vieram do Rio de Janeiro. Era muito conhecida entre os ministros e deputados dos primeiros
anos da nova capital, costumando pegar carona com eles do trabalho para casa. Era muito
conhecida pelas consultas e sessões espirituais que dava em sua residência, desde os anos
sessenta.
D. Violeta veio só para Brasília, trazendo a família aos poucos. Na solidão dos
primeiros tempos da nova capital reunia conhecidos em sua casa e essas reuniões terminavam
transformando-se em sessões espíritas, onde os primeiros habitantes da cidade podiam dar
vazão às suas angústias e necessidades espirituais. A partir daí começou a estabelecer um
calendário semanal de sessões e a desenvolver médiuns. Para os casos mais sérios fazia
consultas individuais.
Suas sessões foram muito freqüentadas por militares, a ponto de eles mesmos
afirmarem que ela promovia reuniões do EMFA na sua casa. Chegou a ter 200 pessoas em
algumas sessões, assistência grande mesmo para um Centro Espírita de porte e muito grande
para uma residência na Avenida W-3 Sul,, onde mora até hoje.
Nunca chegou a abrir um centro espírita. Somente depois do infarte que teve em
1976 é que parou com o atendimento espiritual em sua residência. Em seguida transferiu os
assentamentos do Culto aos orixás para a chácara de um filho de santo, localizada na Cidade
Ocidental município de Luziânia.
A formação religiosa de D. Violeta situa, em parte, o sucesso e a freqüência de
suas sessões. Desenvolveu-se espiritualmente no Rio de Janeiro, onde freqüentou e se iniciou
em diversas linhas de culto de possessão, Umbanda Branca, Umbanda Mista, Umbanda de
Caboclo, Mesa Kardecista e ao Culto dos Orixás. Posteriormente, em Brasília, tornou-se
membro da Ordem Rosacruz e passou a praticar yoga.
Define-se como eclética e espiritualista. Seu ecletismo sempre permitiu-lhe atender
as diversas aflições daqueles que a procuram de diversas maneiras, o que garante seu
prestígio enquanto líder religiosa. Ela tanto pode, por exemplo, efetuar uma operação espiritual
na linha dos mantos amarelos, espíritos orientais que se manifestam em algumas correntes
umbandistas, como iniciar um filho de santo no seu fundamento do culto aos orixás.
D. Violeta , entretanto, relaciona as características de suas práticas religiosas com
o ambiente espiritual de Brasília:
“Há mais liberdade espiritual. As pessoas pensam melhor e interferem
menos na vida dos outros. Vão seguindo sem se aprisionar. No rio de Janeiro é
assim também. É um processo para o bem. Faz parte da evolução. Sem mal e
com amor. Há uma atração de pessoas mais sofisticadas por energias, passes. É
uma modernização. Há uma tendência à matança de animais ser transformada em
obrigações mais suaves, como a oferenda de flores. É uma passagem do
material para o espiritual, mental. O candomblé tem atraído muito pela beleza do
seu ritual, do folclore, mas os despachos estão sendo transformados.”
Tal definição de mudança religiosa expressa tanto as características de sua
religiosidadade quanto as da sua clientela. É relevante o fato de que as casas de santo onde
ela foi iniciada nos cultos de possessão, no Rio de Janeiro, não traziam a marca do ecletismo,
mas da tradicionalidade.
Freqüentou Umbanda Branca no Centro Espírita Oriental em Botafogo, um Centro
de Umbanda bastante antigo do Rio de Janeiro. Chegou a conhecer Zélio de Moraes, tido
como o primeiro médium a incorporar as entidades umbandistas, em Niterói, no começo do
século. Iniciou-se no culto aos orixás com Mãe Senhorazinha de Xangô, bahiana, filha da
Casa Branca do Engenho Velho da Federação, o Candomblé mais antigo de Salvador. Sua
Mãe de Santo era amiga de Joãozinho da Goméia, que como ela tinha seu Terreiro em Caxias,
no Grande Rio. D. Violeta freqüentava a ambos.
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Segundo ela, foi o ambiente social que ela encontrou em Brasília que lhe permitiu
transformar sua formação tão variada num todo coerente e eficaz, graças ao seu cuidado de
não misturar os ritos de tradições diferentes numa só sessão. Sua explicação, para esse
ambiente, por sua vez, é feita em torno da mística de Brasília:
“Brasília tem um clima especial que ajuda os buscadores da luz. A
força dos guias e dos orixás é maior aqui. Eu gostava de trabalhar na Ermida de
Dom Bosco, é um lugar muito energético. O trânsito entre as pessoas que vão e
voltam também contribui muito.”
Ao contrário de outros informantes, D. Violeta não atribuiu a eficácia de sua força
espiritual às suas entidades, sejam guias ou orixás, em primeiro lugar, ou a uma outra
predeterminação pessoal. É a força espiritual da nova capital, sua mística, que responde pela
sua força e seu sucesso.

D. Marlene Souza Braga veio para Brasília em 1961,


acompanhando o marido, o procurador Geral da República Carlos da Cunha Braga, por
ocasião da transferência dos órgãos da administração federal, do Rio de Janeiro para Brasília.
Ela já era mãe de santo no Rio de Janeiro e trouxe seu centro de Umbanda pronto,
reinstalando-se em Brasília, num terreno as margens do Córrego do Urubu, nas Mansões do
Lago Norte, onde está até hoje. O centro chama-se Centro Espírita Nossa Senhora da
Conceição.
Sua mãe carnal, D. Alzira de Souza Portugal, também mãe de Santo de Umbanda,
acompanhou-a na mudança para Brasília. Ela reabriu seu próprio centro somente em 1972, na
Vila Buritis, bairro que surgiu na histórica cidade de Planaltina, depois da inauguração de
Brasília. Mudou-se, anos depois, para um sítio no Km 18 da Saída Sul do DF, onde hoje está
localizada a cidade de Valparaízo, em Luziânia.
Toda a trajetória de D. Marlene e de sua mãe, no universo umbandista, é
entremeada por uma série de referências míticas e rituais, onde as manifestações de
possessão são muito intensas. Além disso, elas acompanharam muito de perto o surgimento
da Umbanda Branca dentro do Rio de Janeiro.
D. Marlene nasceu em 1921. Casou-se aos 16 anos. Era crente. Chegou a expulsar
sua mãe de casa, porque ela era Mãe de Santo. Quando estava para completar 20 anos, foi
acometida de estranha doença. Ficou inchada e presa à cama, como uma morta. Quando ia
tomar banho, ligava o gás e desmaiava no chuveiro. seus parentes pensaram que era tentativa
de suicídio. Aconteceu cinco vezes. Ficou três anos nessa situação. Só não perdia a
consciência, mas foi definhando fisicamente.
Tinha visões. Via um príncipe branco, sem cor, estatura mediana, olhos vermelhos
e capa preta, com um horrível cheiro de enxofre. Achava que era o diabo. Acabaram por
chamar sua mãe novamente, para ver se podia trazer um auxílio `a filha.
Sua mãe disse que ela tinha missão a cumprir como Mãe de Santo, era seu
“karma”. Sua mãe colocou a guia, seu colar de contas, que trazia no seu pescoço, no pescoço
de sua filha. Tal gesto trouxe-lhe conforto. D. Marlene disse para si mesma:
“ Caboclo Curiacá, se o senhor me salvar serei espírita o resto da vida
e darei de graça o que recebi, a minha vida!”
Abriu os olhos e acordou. Levantou e pediu a mãe que a levasse ao seu centro,
presidido pelo Caboclo Curiacá, a entidade para quem a guia de sua Mãe era consagrada. Daí
passou a freqüentar uma das primeiras Fedarações de Umbanda do Rio de Janeiro, nos anos
40, dirigida pelo Pai Armito, onde entrou no fundamento do culto. Tornou mãe de santo e abriu
o seu próprio centro.
A Federação funcionava na Rua Farias de Brito. Foi diplomada como professora de
Umbanda por W.W. Matta, conhecido líder umbandista, autor de diversos livros a respeito da
Umbanda. Seu centro no Rio de Janeiro estava localizado na Muda, zona norte. Celebrava
apenas a Umbanda Branca, que não desenvolve os ritos com atabaques, que eram proibidos
naquele bairro.
- 70 -

Na década de 50, ainda no Rio, usava seus poderes mediúnicos para ajudar a
polícia na identificação de criminosos. Seus guias apontavam os culpados entre os suspeitos.
Tal atividade trouxe-lhe tanto notoriedade quanto inimizades. Começou a tornar-se uma pessoa
“marcada”.
Foram os seus guias também que lhe mandaram vir para Brasília, segundo eles,
terra da espiritualidade, da luz e da verdade, que irá sobreviver ao fim do mundo.
Foi o seu Caboclo, o Caboclo Urucuçu da Cobra Coral, quem escolheu o local
onde está instalado o centro. Incorporada pela entidade espiritual, D. Marlene saiu de carro,
juntamente com o marido e a mãe. Tomaram o rumo da estrada que contorna o Lago Paranoá.
Era tudo de terra, na época, maio de 1961. O Caboclo mandou parar em determinado lugar.
Saltaram e foram andando a pé. Andaram 9km até que eles encontraram um local, em meio à
mata fechada, junto a uma pequena cachoeira. O Caboclo disse:
“É aqui que eu quero a minha Terra”!
Esta estória da transferência e da fundação do centro em Brasília, de caráter
lendário, está inserida dentro de todo um processo de negociação do espaço religioso junto às
autoridades públicas, bastante elaborado.
Não haviam terrenos disponíveis para comprar junto à Prefeitura, que se adaptasse
as necessidades rituais exigidas. D.Marlene chegou a arranjar uma carta com um advogado
solicitando um lote para fins religiosos. O funcionário governamental responsável pela
recepção desse tipo de solicitação era crente e vetou o pedido. Por isso, sob a inspiração do
Guia, partiram para a invasão.
No local foi erguido, inicialmente, um barracão de madeira e construída uma
passarela levando até a cachoeira, no barranco do riacho. O Centro foi inaugurado no dia 08
de dezembro de 1961, dia de Nossa Senhora da Conceição. Dois anos depois a NOVACAP foi
tomar a terra. Contudo, o terreno possuía a medida certa do módulo rural válido para aquela
região de tal maneira que eles não puderam tomar. Posteriormente, a TERRACAP também
tentou tomar o lote, mas D. Marlene entrou na Justiça e ganhou a posse em regime de
comodato, que é o único registro que ela tem até hoje.
Durante esse primeiro período da luta pela terra D. Marlene montou a primeira
escola primária da região para alunos da Vila do Paranoá, ainda em 1961. A escola funcionou
até o final de 1963, graças ao apoio da Prefeitura. 13
A primeira cerimônia de ano novo dedicada a Yemanjá foi realizada por D.Marlene,
em 1962, no Lago Paranoá. Teve o apoio do Corpo de Bombeiros e da Compahia de
Transportes Coletivos de Brasília - TCB - para realizá-la. A TCB forneceu ônibus para o Centro
regulamente, durante 5 anos. Antes, os membros tinham que ir a pé, do final da Asa Norte até
lá, vencendo o trajeto de 10km. Depois o cento adquiriu um ônibus de segunda mão para fazer
esse transporte. O ônibus saia da Rodoviária do Plano Pilôto.
A primeira Federação de Cultos afro-brasileiros foi fundada por ela. Em 1963,
inauguraram, no dia 15 de novembro, a filial da Confederação Espírita Nacional dos Cultos
Afros, no comércio da Superquadra 109 Sul. A Federação inaugurou oficialmente a Praia de
Yemanjá, no Lago Norte, em 1970. Em 1971, promoveram uma procissão em homenagem a
São Jorge, no dia a ele consagrado, 23 de abril. Saiam da Praça 21 de Abril, localizada na
EQS 708/709, até o Hotel das Nações, no início da Avenida W-3 Sul.
Em 1972, a Federação mudou-se para a 504 Sul. No ano seguinte, D. Marlene
deixou a direção da Federação. Até esta data costumava participar de concursos de folclore
promovidos pela Universidade de Brasília, onde apresentava aspectos dos rituais umbandistas.
Em 1973, D. Marlene retornou ao Rio de Janeiro, para fazer sua iniciação ao culto
dos orixás. Ela não gostava dos cultos de nação, porque os identificava com a prática da magia
negra. Por influência de sua mãe, que já havia se iniciado, terminou por se iniciar também. Foi
iniciada na Nação Angola, pelo Pai de Santo Anísio Nazário, em 08.06.73, para a Santa Cinda
da cobra coral, associada à orixá Yansã.

13
Em 1964 foi inaugurada a primeira escola da Vila do Paranoá. Por isso D.Marlene fechopu a escola do Centro e devolveu o
equipamento escolar à prefeitura.
- 71 -

Seu Pai de Santo, já falecido, também era ligado a Joãozinho da Goméia, que D.
Marlene também chegou a conhecer. Em Brasília D. Marlene freqüenta, por razões rituais, o
Pai de Santo Rui de Oxalá, que ela considera o melhor Pai de Santo do Candomblé de Angola
do Distrito Federal. Seu Terreiro está localizado na Ceilândia.
O ambiente social do seu centro é selecionado. Na sua clientela estão médicos,
advogados e altos funcionários públicos. Os novos adeptos devem ser recomendados pelos
antigos. Os tempos em que os adeptos iam a pé para o Centro ficaram para trás. Para os
novos membros providencia trabalhos espirituais visando a harmonia familiar, em primeiro
lugar, e o sucesso material em segundo. Nesse sentido, D.Marlene chegou a afirmar:
“Como alguém pode vir aqui sem carro? Eu logo abro os caminhos da
pessoa para que ela possa comprar um.!”
D. Marlene aproveita uma parte dos ritos de nação que aprendeu para enriquecer e
complementar sua Umbanda, resultando num conjunto original que ela mesmo denomina,
informalmente, de “Umbandomblé”. Tal tipo de arranjo, todavia, vem sendo praticado por
diversos líderes umbandistas, não só em Brasília. 13
As reservas de D.Marlene com relação às práticas rituais do Culto aos orixás se
aplicam também aos seus adeptos. Acredita que há muita gente praticando maldades nesses
cultos e muita gente “escrachada”. Embora respeite muito seu atual Pai de Santo, Rui de
Oxalá, considera desagradável a companhia dos homens e das mulheres muito “à vontade”
que o cercam. Evita que eles apareçam no seu Centro.

Maria do Oxóssi é natural de Anapólis, próspera cidade


goiana, situada entre Goiânia e Brasília. Nasceu em 1928, na zona rural, na fazenda de seu
pai. Chegou na Cidade Livre em 1960, antes da inauguração de Brasília, tendo se mudado
para o Gama em 1962, assim que esta cidade satélite foi inaugurada. Reside lá até hoje, no
Gama Leste, e ao longo desses 30 anos tornou-se pessoa conhecida, não só lá, mas em todo
o Distrito Federal.
Veio para Brasília sob recomendação de um dos seus orixás, Obaluaiê, Santo
muito caridoso, segundo ela, que lhe mandou que se mudasse para a nova capital:
“Será a última capital que vai ter o Brasil. Capital que vai sustentar o Brasil. Terra
difícil, muita morte, muito sangue, muita demanda. Precisa de muita luz.”
D. Maria do Oxóssi havia instalado um serviço de fornecimento de marmitas para
os “candangos”. Sua primeira casa, na Cidade Livre, foi projetada pela equipe do Engenheiro
Bernardo Sayão, o construtor da Belém Brasília. Atendia a um clientela que buscava seus
serviços espirituais, nos fundos de casa, jogando cartas e búzios. A Cidade Livre tinha poucas
mulheres e elas não podiam andar livremente. Atendia a muitas pessoas e por isso tinha
problemas com a Polícia:
“Sofri muito. Brasília era terra de injustiça. Terra de ninguém. Os
pobres e os humildes sofriam demais. O núcleo Bandeirante era cidade
de pau de arara. Muito trapaceiro, muita tenda de cigano, comerciantes
vendendo tachos de cobre e correntes de ouro falso. Só haviam
buracos. O nordeste estava aqui em peso. Do Rio de Janeiro e de Belo
Horizonte só haviam funcionários. Havia muita gente de Goiás. A GEB 14
fuzilava por qualquer coisa. A GEB me proibiu de bater tambor. Era
uma lei do cangaço. Quem sabia atirar eles contratavm. Eles me
ameaçavam, se eu batesse tambor eles quebravam. Se batesse era a
guerra. Eu ameaçava: -Quebra nada! Vocês também são do Canjerê
que eu sei! Eu mato vocês com a Pemba! Juscelino Kubitchek andava
no meio dos candangos. Todo mundo acreditava nele, era como um

13
Vide Prandi(1993) que tratou deste tema em particular, a respeito da candomblelização da Umbanda em São
Paulo.
14
GEB: Guarda Especial de Brasília. Era a polícia da NOVACAP, na época da construção de Brasília, durante o governo JK.
Ficou famosa pela sua truculência. Ver Ribeiro(1980).
- 72 -

Deus para nós. JK fundou Brasília por missão espiritualista. Foi um


espírito guerreiro que destruiu uma cidade e encarnou no JK para
construir uma capital. Dívida do passado. Sua morte trágica foi porque
Ogum levou. JK era filho de Ogum”.
A mudança do Núcleo Bandeirante para o Gama também ocorreu por razões
míticas. Novamente foi o Santo que pediu ela mudasse de cidade:
“O santo não aceitou Taguatinga. não morava no sul, só no leste. Daí a
mudança para o Gama Leste. O santo gosta do Gama. Aqui não tinha
nada. Tinha trabalho, era melhor do que é hoje. O povo era humilde.
Não tinha vagabundo, não tinha maconha. O protetor do Gama é São
Sebastião. Ele é um Oxóssi. É um caçador. Reúne toda a sua família. Há
uma concentração de Centros Espíritas no Gama por isso.”
Suas origens religiosas confundem-se com sua história de vida desde a infância.
Seus avós foram escravos e trabalhavam numa fazenda no Triângulo Mineiro, no século
passado. Tiveram um filho, que foi criado como menino da casa pelos donos da fazenda.
Estudou, tornou-se um capataz, um guarda costas. Conquistou uma das filhas da casa, casou-
se e tornou-se gerente da fazenda, homem de confiança dos patrões. Com a herança que
recebeu, após a morte dos sogros, tornou-se fazendeiro, na região de Anápolis, no ínicio deste
século. A fazenda chamava-se São Sebastião. D. Maria do Oxóssi era a filha caçula de três
irmãos. Sua família era muito católica.
Nasceu com um defeito físico, tendo de andar de muletas dos cinco aos sete anos
de idade. Havia na fazenda de seu pai um benzedor, homem de origem portuguesa. Morava a
2km da sede da fazenda, numa cabana. Era o responsável pelo alambique da fazenda,
produtora da “Caninha São Sebastião”. Era homem de muita habilidade. Pintava quadros,
canhecia solos, cultivos e as plantas. Era babalaô , mas tinha os santos bem escondidos.
Este caseiro foi chamado para tratar D. Maria do Oxóssi e diagnosticou a presença
de um espírito como o responsável pela deformação da perna e pela mania que ela tinha de ir
beber cachaça escondida no alambique. Ela levava um canequinho, e bebia a cachaça fingindo
que era um cafezinho. Era o Exu João Caveira.
Quando ela fez 7 anos esse caseiro deu uma festa em sua cabana, em
homenagem à terra. Ele ia abençoar as coisas da natureza. D. Maria fugiu de sua casa para ir
assistir. O caseiro disse a ela que lá ia ser a sua nova morada, que o pai dela jamais aceitaria
uma filha rezadeira. Ela só voltou para a sua casa, dias depois, porque sua mãe adoecera.
Tinha uma ferida que não curava. Foi o momento crucial da sua opção religiosa:
-”Eu disse a mim mesma, eu tenho espírito? Então vou trabalhar.
Apanhei o mato, e disse que ia deixar a minha mãe boa. Dei um banho
na minha mãe e fiz um emplastro. Dei ordem para não tirarem. Foi
quando disse pela primeira vez, Eu sou Maria do Oxóssi!
Quando meu pai chegou, perguntou o que era aquilo.
É benzeção, eu respondi. Meu pai fez um escândalo:
- A filha de Pedro Lino é curadeira? Botou todo mundo para fora e
partiu cima de mim. Eu derrubei meu pai no chão:
-Eu vou domar essa fera. Você é uma fera Só levanta quando eu quiser.
Eu disse para ele. Aquela doença que estava comigo, na perna, passou
para ele. Ele me mandou embora. Fui trabalhar na cabana”.
No ano seguinte, como oito anos de idade, D. Maria do Oxóssi foi iniciada nos ritos da Nação
Kêtu, para o orixá Oxóssi, seu Santo guerreiro e no rito da Nação Jeje para o orixá Obaluaiê,
seu santo curador. Foi preparada para ser mãe de santo. Aos 10 anos de idade seu Pai de
santo fez a primeira festa para o seu Orixá. Ela quiz, então, montar sua própria Casa de Santo,
o que também obteve com a ajuda dos seus Santos.
D. Maria do Oxóssi era, tal qual seu pai de santo, publicamente uma benzedeira.
Curou o filho de um fazendeiro, que era viciado em bebida. O fazendeiro agradecido, ofereceu-
- 73 -

lhe um Centro montado em suas terras. O Santo porém não consentiu. Só podia sair para uma
Casa de sua propriedade. Foi exigência do Exu João Caveira:
“Ele é um santo grande e bom. Ele traz uma provação. Andou pelas
favelas, curando gente, ajudando os bons e os maus. Esta é a minha provação.”
Montou a sua Casa de Santo graças a um bilhete de loteria. Teve o seguinte sonho:
“Via minha mãe na fazenda e eu trazia duas crianças comigo. Vinha
uma onça na nossa direção. As crianças disseram: - Tem uma
cachoeira ali, a onça não vai lá. A gente pulou na cachoeira. Depois
apareceram os índios. Atiraram uma flecha. Um deles exclamou: - Você
veio pegar o meu ouro! Vinha um velho passando que disse: - Tire a
mão da minha filha! Ela não rouba, ela é rica!”
Seu Pai de Santo lhe disse que sonhando com onça era para jogar no cachorro, e
que naquela semana ela compraria a sua casa. Ela comprou um bilhete de loteria inteiro.
Ganhou o 1º prêmio. Saiu até na rádio de Anapólis. “Maria do Oxóssi está milionária”.
Surgiram conflitos com o seu pai carnal. Ele deu parte no Juiz, acusando-a de ter fugido de
casa para ir morar em casa de benzeção. O dinheiro teve que ser depositado em juízo. O pai
de Santo tornou-se seu tutor legal, até que fizesse 18 anos. Ela pode comprar casa em
Anapólis, onde instalou seu centro. Levou para lá o seu pai de santo, a esposa e a filha carnal
dele. Já era bastante conhecida dos fazendeiros da região. Ganhava muita coisa de presente.
Quanto se tornou maior de idade resolveu conhecer o Brasil. Viajou depois para o exterior,
chegando até a África. Quando retornou foi morar no Rio de Janeiro , de onde veio para
Brasília.
Toda esta trajetória, heróica e mítica, fazem parte do passado de D.Maria do
Oxóssi. Suas preocupações atuais, bastante pertinentes, expressam muito dos problemas que
os cultos de possessão enfrentam, problemas que são causados pela própria expansão que
esses cultos conheceram nas últimas décadas:
“Hoje no Gama, o desemprego é grande. O que vai ser destes
meninos? Tem que ter emprego. Aqui não tem onde fazer um curso. O Gama não
era para ter tanta gente como tem. Hoje todo mundo tem o seu lote. A juventude
anda muito deprimida. Procuram o Centro Espírita porque tem muita dança. Para
eles é diversão. Vou ficando aqui. Deixo uma geração preparada. Tenho até hoje
a minha casa em Anapólis. No fim da vida eu vou voltar para lá”.
“A atual Federação Espírita, de Taguatinga, não nos dá o devido apoio,
apesar do Governador 15 apoiar a Federação. Podiam ter um Cartório. Os
zeladores podem pegar muita doença. Nós corremos muitos riscos. Queremos
uma Federação com um ou dois médicos. Como usamos muito as ervas, uma
farmácia homeopática própria para a classe e horas de consultas médicas
gratuitas. Remédio de espírito precisa de médico. De advogado, de psicólogo, de
analista. Hoje a vida está difícil.”
D.Maria do Oxóssi ressaltou que enquanto os Centros de Umbanda são instituições
de caridade, os Terreiros de Nação são pequenas comunidades. Seu Terreiro é um bom
exemplo. Está instalado numa casa vizinha à sua residência ocupando todo um lote. Recebe
cliente o dia todo e a abriga uma pequena comunidade de pessoas que a ajudam e que ela
encaminha profissionalmente, a maioria jovens.

15
O Governador da época era Joaquim Roriz, em seu segundo mandato. Ele prometera um setor para Centros Espíritas em sua
campanha eleitoral. Político de Luziânia, tem boas relações com o Pai Paiva.
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TRÊS PAIS DE SANTO.

Tito de Omulu é gaúcho, nascido em 1942. Aos oito anos


de idade foi iniciado ao culto dos orixás da Nação Ijexá, dentro do Batuque gaúcho, nome
genérico pelo qual são conhecidos os cultos de origem africana no Rio Grande do Sul. Seu Pai
de Santo era filho de africanos originários de Ibadan, na Nigéria. Aos 10 anos de idade seus
pais carnais se mudaram para Salvador levando-o com eles. Seu pai faleceu naquela cidade.
Em Salvador, Tito começou a freqüentar o Axé Apô Ofonjá, onde terminou sua
iniciação com Mãe Senhora, filha de Santo de Mãe Aninha. Já adulto, mudou para o Rio de
Janeiro, onde ganhava a vida com o comércio de artigos religiosos para os cultos afro-
brasileiros. Estudou, tendo se formado em Administração de Empresas. Seu terreiro estava
instalado em Jacarepaguá.
Em 1960 um filho de santo seu convidou-o a conhecer Brasília. Era um jornalista,
que tinha vindo para a inauguração da Capital e lhe informara que surgira uma oportunidade
profissional interessante. Quando chegou aqui não havia oportunidade nenhuma.
Hospedado na residência do rapaz, teve outra surpresa ao ver a esposa dele
passar por manifestações de possessão por orixá, apesar dela não gostar do culto, a princípio.
Devido a urgência do caso, teve que permanecer em Brasília para preparar a iniciação dela.
Concluíram que tudo não passara de uma situação provocada por Exu que indicava
a vontade do Orixá de Tito de se mudar para Brasília. Voltando ao Rio de Janeiro ele começou
a se mobilizar para efetuar a transferência. Seus santos haviam vindo de Salvador para o Rio e
seria preciso transferi-los novamente. Em 1962 conseguiu abrir um primeiro terreiro, em
Sobradinho, só completando inteiramente a transferência em 1965. Nesse meio tempo, vivia
entre as duas cidades.
Não permaneceu muito tempo em Sobradinho, tendo mudado para o Cruzeiro
Velho, onde ficou até 1970. Em 1972 mudou-se para Taguatinga e em 1978, pela última vez,
instalou o Terreiro definitivamente em Santo Antônio do Descoberto, uma pequena cidade
goiana localizada junto à fronteira do Distrito Federal.
Nesta cidade, o terreiro está localizado no Setor de Mansões Bitencourt, sendo o
maior terreiro em área construída da região do DF, ocupando uma área de 5.000m2 numa área
total de 20.000m2. Originalmente, as Mansões Bintencourt eram um setor de chácaras próximo
à cidade. Com a expansão de Santo Antônio do Descoberto, atualmente já faz parte da zona
urbana. A cidade tem atraído terreiros. Já existem vinte e oito, número significativo numa
pequena cidade.
Ao longo de sua vida religiosa, Tito de Omulu iniciou mais de trezentos filhos de
santo, no Rio de Janeiro e em Brasília. Todos os filhos de santo residentes no DF freqüentam o
seu terreiro, denominado Ilê Iwon Omo Omulu.
Tito é muito conhecido por jogar búzios africanos profissionalmente. Afirmou ter
sido o primeiro Pai de Santo a fazê-lo, ainda nos anos sessenta. Possui registros de todos os
jogos que executou, totalizando 24 mil fichas de seus clientes.
Jogou os búzios durante quinze anos numa loja comercial na CLS 310. Em 1992
atendia a seus clientes numa pequena loja na CLN 204 e logo depois mudou-se para o Centro
Empresarial Brasília, onde está até hoje.
É o coordenador da Sociedade Internacional de Ifá em Brasília, Associação da qual
faz parte desde 1976. Pertence também ao Conselho Sacerdotal da associação , cuja sede
internacional fica na Nigéria. A Associação congrega os sacerdotes adivinhos do culto aos
Orixás no mundo todo. Enquanto autoridade internacional no jogo dos búzios africanos Tito de
Omulu fez a seguinte afirmação, a respeito das características religiosas de Brasília:
“Brasília é mágica. Predestinada a ser o berço de novas idéias e
religiões. Acredito nisso pelo ODU que a gerou, o ODU de Odi Meji, que
é o aspecto da adivinhação oracular responsável pela magia. Sempre
que o assunto de consulta é Brasília, o ODU que rege o diagnóstico é o
Odu Odi Meji. Pessoas que consultaram o oráculo fora de Brasília
também me confirmaram este aspecto. Salvador, por sua vez, é regida
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pelo ODU dos ancestrais. Salvador é a mãe do Brasil, lá estão todas as


origens do culto. O Rio de Janeiro é regido pelo ODU de Oxóxxi, o Odu
da nutrição, da fartura e da abundância.”
Tais afirmações de origem mítica e ritual tem sua contrapartida nas características que
Tito de Omulu apontou para esse triângulo de capitais, em relação ao Culto dos orixás.
Salvador é a Capital da Tradição, onde estão situadas as Casas matrizes, os antepassados,
para onde todos os líderes e membros do Culto vão em busca de legitimidade para as suas
atividades. O Rio de Janeiro é a Capital onde a maioria dos informantes estava radicado, antes
de vir para Brasília e onde existem as bem sucedidas filiais das Casas Bahianas. Lá os Líderes
ganhavam muito dinheiro e prestígio ao conduzirem bem o culto. Já Brasília é a incógnita.
Mágica, mística, mítica, projetada para o futuro e recomendada pelas entidades espirituais para
o estabelecimento de seus filhos.

Nélson de Xangô foi outro Pai de Santo da Nação


Alaketu contatado. Ele veio para o Planalto Central em 1980, instalando-se primeiramente em
Pirenópolis, Goiás, perto do Distrito Federal, onde montou um restaurante, mantendo seus
Santos nos fundos. Tinha contatos em Brasília, e alguns parentes. Sua cunhada, Wanda Alves,
Mãe de Santo da Nação Efã, possui uma rede de casas de artigos religiosos no DF.
Nélson de Xangô não ficou muito tempo em Pirenópolis. Vendeu o restaurante,
onde também morava e comprou uma fazenda, no município de Cocalzinho, situado entre
Pirenópolis e o Distrito Federal, Nessa fazenda instalou seu terreiro definitivo, a Casa
Palmares. Inicialmente morou no mato mesmo, num casebre, que na parte de cima abrigava os
Santos.
Sua vinda para Brasília também está diretamente relacionada a acontecimentos
políticos. Veio por conta do processo de redemocratização do País, iniciado em 1979, tendo
ajudado a fundar os diretórios do PDT e do PTB no DF e em Goiás. Nem por isso sua
transferência para o Distrito Federal deixou de ter uma dimensão mítica norteadora.
Em meados de 1980 Nélson de Xangô recebeu um aviso de seu orixá Xangô de
que deveria vir para o interior do País. O aviso veio de Salvador, onde estão as raízes de sua
Nação na Casa Branca do Engenho Velho da Federação. Xangô precisava ser sedimentado
junto ao Planalto Central. Seu axé representa o Poder de Xangô. Xangô, o rei dos Orixás é o
orixá do Poder, por excelência. Poder herdado das mães de santo africanas, que fundaram a
Casa Branca.
Esse poder está personificado pelo Axé de Exu - uma ferramenta - e pelo machado
de Xangô, do seu terreiro, que vieram diretamente da Nigéria e possuem, comprovadamente,
280 anos.
A história que Nélson de Xangô contou de sua vida é uma história de dedicação ao
culto. Foi apresentado à religião com um mês de idade, nos braços do pai, filho de ogum, que o
levou a uma cerimônia. Seu pai morreu quanto ele tinha 11 anos. Sua mãe, por outro lado, era
uma economista do alto escalão da Fundação Getúlio Vargas. Não se envolvia pessoalmente
com o culto. Nélson voltou a freqüentar o culto na adolescência, através de um irmão de sua
mãe.
Resolveu dar obrigações para o seu orixá, tendo pedido dinheiro para o tio. Teve a
idéia de comprar um bilhete de loteria, ganhando um prêmio que lhe permitiu “fazer o santo”.
Suas obrigações foram feitas no Rio de Janeiro, numa casa de santo filial da Casa Branca de
Salvador, da mãe de santo Paula de Logum Edé. Tinha então 18 anos de idade.
A trajetória de Nélson de Xangô é importante porque, em primeiro lugar, ele chegou
ao Planalto Central numa época em que as casas de culto aos orixás africanos começavam a
se fazer presentes no DF de maneira sistemática. De tal maneira, a idéia da “sedimentação” do
orixá encontra eco num momento em que o culto realmente começava a ganhar contornos
próprios em Brasília.
Além disso, essa reivindicação de caráter mítico, evoca, em parte, as raízes e o
surgimento desta Nação em Salvador. Tanto Bastide (1985) quanto Carneiro (1977) contam a
história da fundação da Casa Branca do Engenho Velho da Federação, matriz da Nação , à
qual Nélson está ligado e representa no DF.
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A Casa foi fundada por três sacerdotisas africanas, Iyá Detá, Iyá Talí e Iyá Nassô,
por volta de 1830, logo após a independência do Brasil, que na Bahia aconteceu em 1823.
Essas três sacerdotisas atravessaram o Atlântico na condição de mulheres livres, com o
objetivo de abrir a primeira Casa de Santo do Brasil dedicada ao Orixá Xangô. Iyá Nassô era
filha de uma africana que fora escrava na Bahia, mas tornando-se livre, retornara à Nigéria. Iyá
Nassô veio acompanhada por uma filha de santo, Marcelina, que após uma breve temporada
na Bahia, retornou à Nigéria, para continuar seu desenvolvimento no culto. Marcelina só
retornou ao Brasil para suceder Iyá Nassô a frente da direção da Casa Branca, quando de sua
morte.
As idas e vindas das sacerdotisas entre Lagos e Salvador eram favorecidas pelo
comércio próspero existente entre os dois portos, que continuou inclusive após a suspensão do
tráfico negreiro e a posterior libertação dos escravos. Tal comércio sempre trouxe da África
para o Brasil um série de objetos do culto e de seus rituais, como as conchas, as nozes de obi,
os panos e as ferramentas.
O fato de que as ferramentas de Xangô e de seu Exu tenham vindo diretamente do
Oyó, a capital do culto do Orixá Xangô, para o Terreiro de Nélson, e que ele mesmo se coloque
na posição de um “enviado de Xangô, se aproxima desta origem, mais histórica do que
propriamente mítica.
Nélson de Xangô não entrou em maiores considerações sobre suas relações com a
política partidária no Rio de Janeiro e em Brasília. Apenas afirmou que o poder religioso
acompanha o poder político, por isso as casas de santo do Rio de Janeiro estão vindo para
Brasília, como foi o seu caso.
Na passagem de 1992 para 1993 foi entrevistado pela imprensa local, fazendo
previsões que tocavam na vida política do País, através de seus búzios africanos.
Vale ressaltar que a proeminência destes dois Pais de Santo na Nação Alaketu,
dentro do DF, parece também discrepante com relação às Tradições baianas. Édson Carneiro
(1977) que pesquisou essas Nações na 2ª metade da década de 40, não encontrou Pais de
Santo no Alaketu, apenas Babalaôs e Ogãns. Haviam, todavia, muitos sacerdotes homens
dirigindo Casas de Santo nas Nações Jeje, Congo e Angola. Mais significativo ainda, um não
reconhece o outro como um Pai de Santo do mesmo nível. De qualquer forma, ambos se
legitimam através de relações míticas com a própria África, dentro do atual padrão de relações
religiosas entre o Brasil e a Nigéria.
Dentro desta Nação existem mais duas Mães de Santo no Distrito
Federal. Raílda de Oxum, filha de santo do Terreiro Axé Opô Afonjá, tem Casa aberta num sítio
localizado próximo a cidade do Valparaíso, no município de Luziânia. É uma Mãe de Santo
muito conhecida. Vive permanentemente no seu terreiro, o que dificulta o acesso até ela. Está
instalada nesse sítio há 20 anos, tendo sido uma das primeiras Mães de Santo a virem da
Bahia para o Planalto Central. Sua outra irmã de Santo chama-se Moema de Omulu e reside
em Taguatinga. Seu terreiro também está instalado em um sítio na zona rural.

O Sr. Marco Silva é o atual proprietário da casa de artigos


religiosos mais antiga de Brasília, a Flora Pai José. Veio para o Distrito Federal em 1958, com
seus pais. Seu pai era engenheiro e veio para trabalhar na construção de Brasília. Moravam na
Vila Planalto, um acampamento de engenheiros. Seu pai era kardecista e reunia amigos em
casa, para fazerem preces e leituras do evangelho. Não faziam sessões de incorporação nem
freqüentavam pessoas que as promovessem.
Na época, muito jovem, Marco Silva resolveu aprofundar seu conhecimento a
respeito dos Cultos de Possessão. Com um grupo de amigos saía para conhecer as casas de
culto que já existiam no DF nos anos sessenta. Eram todas de Umbanda, como a Tenda do
Caboclo Peri, no Núcleo Bandeirante e o Centro do Caboclo Tamandaré, em Taguatinga. A
maioria fora aberta por pessoas vindas do Rio de Janeiro.
Freqüentava o Centro Espírita João Baiano, onde pôde conhecer o Sr. Eurico de
Omolokô, filho de santo da Nação Omolokô. Essa Nação, foi formada a partir da união de
várias tradições de culto aos orixás, que estavam em dispersão, no Rio de Janeiro. Derivada
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dessa Nação há uma linha de Umbanda, conhecida como Umbanda Omolokô, que também
presta culto aos orixás e é muito difundida no sul do país.
O Sr. Marco tem observado que em Brasília, apesar de toda a idéia da união e
intercâmbio das diversas tradições religiosas, o Culto Omolokô não conseguiu se implantar de
forma expressiva, apesar de toda a sua origem sincrética. Em Brasília predomina o culto de
Nação Kêtu .
Tal consideração reforça a inferência de que nesse novo contexto social o sucesso
destas modalidades religiosas pode ser compreendido a partir das relações que seus líderes
estabelecem, mais do que à sua possível fidelidade às suas origens.
Através do Sr. Eurico, o Sr.Marco e sua espôsa, D.Iracy, que também é iniciada,
foram apresentados ao Culto desta Nação, junto ao Pai de Santo Gérson de Gelû, na casa de
santo Tenda dos Humildes, em Madureira.
As raízes desta Casa de Santo remontam a um século, tendo sido fundada pelo
Pai de Santo Obakaiodé, africano de origem Nagô, filho do Orixá Xangô, no Rio de Janeiro.
Ele foi sucedido por Maria Obataió, também africana e Nagô, que por sua vez iniciou três filhas
de Santo já brasileiras, Henriqueta, Lili e Roxinha. O Paí Gérson, também conhecido como
Fujeko de Xangô, era filho de santo de Mãe Roxinha. Ele iniciou as atuais Mães de Santo do
Omolokô no Rio de Janeiro, Mãe Palu, Mãe Jandira e Mãe Hilda, dirigente da Tenda do
Caboclo Ventania.
Brasília já teve duas casas abertas da Nação Omolokô. A de D.Rute, já falecida e a
de D. Regina, que se mudou do DF. O Sr. Eurico não tem casa de santo aberta. Em 1992 o Sr.
Marco e sua esposa possuíam um barracão, instalado numa chácara, onde reuniam um
pequeno grupo de adeptos dessa nação.
Sua casa de santo só foi inteiramente inaugurada, em 30 de setembro de 1995,
quando o Orixá Xangô foi festejado oficialmente pela primeira vez. A casa de santo chama-se
Casa de Omolokô Obanungá. As líderes do Rio de Janeiro, sucessoras do Pai Gérson, já
falecido, vieram para a cerimônia. O Sr.Marco Silva fez o Santo em dezembro de 1992, na
Tenda de Mãe Hilda. Embora os assentamentos do Orixá já estivessem na Chácara desde
1993, o Terreiro, com 500m2 de área construída, só ficou pronto no início de 1995.
O Sr. Marco é engenheiro da Eletronorte, com formação superior também em
matemática. A casa de artigos religiosos , por sua vez, está a cargo de sua esposa, D.Iraci. A
Flora Pai José pertencia a um outro casal, Marli e Trindade, que a venderam para o Sr. Marco
apenas em 1972, quando ela já tinha 10 anos de existência. Mudaram de lugar duas vezes,
tendo sido instalada no seu atual endereço, na CLS 103, desde 1982.
Seu nome sempre foi o mesmo, desde sua fundação em 1962 e evoca o Preto-
Velho Pai José, cuja imagem está colocada à entrada da loja. Esta imagem acompanha a loja
desde o tempo dos primeiros proprietários. Fazendo par com o preto-velho, está a imagem de
uma pomba gira Maria Padilha, de tamanho menor que a do Pai José. Ambas recebem
oferendas. São entidades de Umbanda. O preto-velho representa as Almas e a pomba-gira, os
exus.
São heranças do tempo em que a Umbanda predominava no DF. Segundo o Sr.
Marco, somente a partir dos anos 80 começou a consolidação das casas do culto aos orixás no
DF, devido ao fato de que um filho de Santo, nesse culto, só pode abrir sua própria casa após
sete anos de sua iniciação. Como os pais de santo da Bahia começaram a fazer seus filhos de
Santo, com mais freqüência, a partir da década de 70, no início dos anos 80 o DF estava como
o culto aos orixás em franca expansão, consolidando a influência bahiana nos cultos de
possessão afro-brasileiros de Brasília.
As casas de nação possuem gastos bastante diversificados e específicos,
estabelecendo um mercado de artigos religiosos sofisticado, diferentemente das casas de
Umbanda, cujo consumo ritual é bem mais simples, constituído principalmente por velas e
defumadores. A Flora Pai José , atualmente, dispõe de uma gama de artigos diversos, como
defumadores, incensos, banhos, cerâmicas de barro e louça, literatura religiosa e discos de
pontos-cantados, imagens de entidades e indumentárias de orixás, além de artigos importados
da África e ingredientes para comidas de santo, tais como feijões, farinhas, camarão seco e
azeite de dendê.
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PERTO DO PODER

Existe outro centro de Umbanda muito antigo em Brasília,


o Centro Espírita Vovó Sabina. Esse centro foi fundado nos anos sessenta e estava
localizado num lote situado ao lado do Centro Espírita Nossa Senhora da Glória, na Asa Norte,
de onde se mudou, posteriormente, para o terreno de uma mansão no Lago Norte, onde foi
reconstruído no espaço da garagem. Atualmente, o centro realiza ritos de Umbanda e do culto
aos orixás. Sempre foi muito conhecido dentro do meio espírita de Brasília, apresentando uma
clientela muito grande, composta, também, por pessoas ligadas ao Poder Público. Sua
fundadora e líder, D. Vitória, já está muito idosa e devido a alguns problemas de saúde não
pôde ser entrevistada.
Só foi possível manter, por telefone, contatos com sua filha carnal, Rosa, que atua
como uma espécie de secretária, relações públicas e arquivo vivo do centro. Criada desde
pequena no ambiente religioso de Brasília, recorda-se dos primeiros momentos da vida
religiosa do DF, como as procissões de São Jorge, organizadas pelo Sr. Laos e as festas de
Yemanjá de D.Marlene de Souza Braga. D.Vitória, juntamente com o Sr. Jorge Farias, o Sr.
Laos e D.Marlene, formavam o quarteto dos líderes pioneiros que trouxeram a Umbanda
branca do Rio de Janeiro para Brasília, e que têm as casas que fundaram funcionando até
hoje, embora seus cultos tenham sofrido alterações ao longo desses 30 anos.
Rosa, em momento algum, chegou a marcar uma entrevista embora fosse muito
atenciosa. Muito parecida, nesse sentido foi D. Irani, do Centro Espírita Tenda de Oxalá, assim
como sua filha carnal, que recomendou-me pesquisar o Centro Espírita Nossa Senhora da
Glória, porque sua mãe era muito ocupada. Tive a impressão, nos dois casos, que a gentil
recusa de uma entrevista trazia implícita a certeza de que, ao exporem a história da fundação
de seus Centros e as características dos ritos que desenvolvem, estas líderes, ou suas filhas,
iriam ter de fazer referências a determinadas características de suas clientelas no mundo
político da Capital Federal. Se pude conversar abertamente e até certo ponto, com o Médium
Jorge, foi porque o conheço desde que chegou em Brasília, graças a amigos e vizinhos em
comum.
Todas essas lideranças religiosas devem saber muito bem que as “fraquezas” e
aflições de seus clientes do mundo político podem ser informações valiosas para terceiros e
devem manter uma atitude de resguardo contra eventuais curiosos. Como terapeutas, o sigilo a
respeito de seus clientes é parte da ética e da eficácia do sucesso de suas práticas.
É significativo que parte dessas relações entre lideranças políticas e lideranças
religiosas sejam alvo de farta divulgação pela imprensa, fornecendo um material complementar
aos dados de campo que vale a pena ser descrito. A partir do Governo José Sarney, entre
1985 e 1989, algumas reportagens jornalísticas deram um destaque especial a algumas figuras
do universo religioso afrobrasileiro e aos seus contatos com o Poder Político Federal.

1. Em outubro de 1985 o jornalista Gilberto Dimenstein foi enviado


especialmente à São Luís, pela Folha de São Paulo, onde entrevistou o Babalaô Jorge de
Oliveira, 45 anos, Presidente da Federação dos Cultos africanos e Diretor do Museu do Negro,
em São Luís. Este Pai de Santo fizera um trabalho espiritual para neutralizar um “despacho”
maléfico contra o Presidente José Sarney. Segundo a reportagem, Sarney não frequentaria
terreiros, mas recebia em sua Casa importantes Pais de Santo como o Babalaô Jorge e
Sebastião do Coroadinho. Ambos teriam visto nos búzios a morte de Tancredo Neves e
estiveram sendo acusados de terem feito “trabalho” para beneficiar Sarney. Na época, Jorge de
Oliveira afirmou que Roseana Sarney estava predestinada a ser Governadora do Maranhão.
2. Em 24 de agôsto de 1986, dois terreiros de Umbanda, O Palácio de
Yemanjá, em Olinda, e o Reino de Yemanjá, em Porto Alegre, homenagearam o
32ºaniversário da morte de Getúlio Vargas. O babalâo Edwin Barbosa, Pai EDU, Presidente do
primeiro terreiro, afirmou ter tido numa clarividência a inspiração para a celebração do rito, por
isso convidara um Terreiro gaúcho, da terra de Vargas. Ambos ofereceram em sua
homenagem um Banquete de Exu. Sobre o banquete, a reportagem afirmou:
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“O banquete de exu será regado a uisque e champanha, pois como explica Pai
Edu, o santo deve ser tratado com muito cuidado, como um diplomata ou um
intelectual, temos que agradá-lo de todas as formas para que faça o bem. Para o
Banquete, Pai Edu convidou políticos de todos os partidos, autoridades e o povo em
geral. Ele espera receber cerca de cinco mil pessoas, porque o banquete será de
portas abertas. Depois do jantar, 500 filhas de santo, todas vestidas de vermelho,
dançarão a noite inteira ao som dos atabaques.”
3. Uma reportagem do Semanário VEJA de 13.01.93, lembrava que o Pai Paiva
teria profetizado, em 1988, que Leonel Brizola seria eleito Presidente da República em 1989, o
que não ocorreu. Porém, em finais de 1993, outro Pai de Santo , Raul de Xangô, em entrevista
a um jornal local, afirmava novamente, ser Leonel Brizola o candidato ideal para governar o
País, uma vez que ele poderia se legitimar inclusive frente aos setores mais marginais e mais
informais da sociedade, como os bandidos, os traficantes e os contraventores.
Ele não declarou estar baseado em prognósticos dos búzios africanos, como fizera Pai
Paiva em 1988, nem tampouco em nenhuma outra manifestação de possessão, como
mensagens espirituais, sonhos ou vidência. Evocava, todavia, referências simbólicas
diretamente relacionadas às figuras dos Orixás africanos, principalmente à relação de
subordinação que tais entidades tem com os seus exus, figuras que são representadas no culto
aos orixás como criados dos santos. Os exus são liminares, marginais, e perigosos mas
subordinados e controlados, principalmente pelo popular orixá ogum, que é miticamente, o
senhor dos exus.
Essa reflexão da política, em termos da linguagem ritual dos cultos de possessão não
apresenta um conteúdo aleatório. Tal afirmação estaria situada no pólo dos valores éticos do
culto diretamente projetadas à Política, mas sem passar pela legitimação que o poder simbólico
da possessão confere a esse tipo de elocubração. Não seria apenas campanha Brizolista em
linguagem religiosa porque expunha uma ética do culto, para a qual Leonel Brizola, enquanto o
herdeiro do trabalhismo de Vargas, se encaixava melhor, na opinião do Pai de Santo.

O Sr. Paiva e sua esposa, Inalda, são pernambucanos. Ambos são filhos de
santo do Terreiro da Água Fria, considerado a Casa de Santo mais tradicional do Recife. O
Sr. Paiva é Sargento da Marinha, já reformado. Veio para Brasília, inicialmente, por
transferência das Forças Armadas, não se demorando muito tempo. Retornou na década de
80, para se dedicar exclusivamente as atividades religiosas, após ter sido reformado. O casal
reside em Luziânia, histórica cidade goiana localizada a 50 km de Brasília, onde instalaram seu
Terreiro. A sede da Federação dirigida pelo Sr. Paiva está localizada em Taguatinga, na QNA
17, um dos setores mais valorizados daquela cidade.
Foi possível conversar com D.Inalda Paiva, na época em que seu espôso havia
concorrido às eleições para a Câmara dos Vereadores de Luziânia, onde existem muitos
terreiros e centros espíritas instalados nos sítios do município. Segundo ela, o “Santo” não quis
que ele fosse eleito. Quando conversei sobre este episódio com outro pai de santo, conhecido
do casal, ele sorriu e disse:
“O Santo não quis? Porque então o Santo não disse que não queria ele na
política antes da candidatura? Se ele tivesse ganhado a eleição, tinha sido o
santo que quis, como perdeu, foi o santo que não quis. Ora, o santo não
tinha nada a ver com isso!”
Segundo ainda o amigo do Sr. Paiva, o controvertido líder é também um
Babalôssanha, um especialista em ervas rituais e medicinais, especialidade muito prestigiada e
requisitada pelos adeptos dos cultos afro-brasileiros. Dentro de suas especialidades com as
ervas, ele é iniciado ao Culto da Jurema. A jurema é tanto uma planta com usos rituais, quanto
o culto de caboclo que a utiliza, disseminado no nordeste, principalmente em Pernambuco.
Segundo Carvalho (1988) há no Recife uma forte polarização entre o Xangô, o
cultos aos orixás que tem seu expoente máximo no Sítio da Água Fria e o culto da jurema, tido
como rito degradado. Embora muitos membros dos cultos de possessão em Pernambuco
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conheçam e pratiquem os dois preceitos, no Sítio da Água Fria a jurema é mal vista e seus
membros não se iniciam neste rito.
Como os valores a respeito das Tradições Religiosas e das Origens Regionais variam
entre os adeptos dos Cultos, foi possível inferir que as origens religiosas, as tradições
regionais, funcionam como elementos utilizados na construção de estratégias de consolidação
de carreiras de prestígio.
No caso da Jurema, este é um culto ambíguo, em suas regiões de origem. Numa
sociedade marcada pelo ecletismo religioso, como Brasília, o Pai Paiva soube explorar o seu
melhor lado, o uso ritual das ervas curativas, muito procurado e consagrado tanto pela
população de origem nordestina como pela atual referência naturista e ecológica, deixando de
lado o aspecto “pesado” do culto. O Sr. Paiva desenvolve uma produção comercial de ervas
medicinais e possui uma fábrica de chás, garrafadas e banhos de ervas no seu sítio em
Luziânia.
As relações do Pai Paiva com a vida pública do Distrito Federal, à frente de sua
Federação dos Cultos afrobrasileiros do DF, reforçam essa inferência, devido a maneira como
ele vem marcando presença na vida religiosa da capital federal, graças a sua ativa liderança
espiritual. José Aparecido de Oliveira, quando Ministro da Cultura, o frequentava publicamente
e sua ascenção na vida religiosa da capital federal foi fartamente veiculada pela imprensa.

1. Ele foi assunto de uma reportagem a respeito de sua produção do Elixir da


Vitalidade, que estava sendo exportado para Portugal e Espanha e seria comercializado
também com países africanos. Em seu Terreiro em Luziânia ele tem mais de 2000 árvores e
plantas medicinais, todas da tradição nordestina dos mestres curandeiros da Jurema. A
reportagem deu grande destaque a Jurema Preta que Pai Paiva trouxe de Alhambra, na
Paraíba e que fora ritualmente consagrada. Também dizia que:
“... entre os frequentadores do seu terreiro de candomblé enumera ministros de Estado,
políticos de expressão nacional, grande parte dos diplomatas africanos e empresários
de pêso em Brasília. Ele prefere não falar sobre os seus clientes famosos brasileiros
por uma questão de ética.”
2. Em abril de 1988, O Jornal de Brasília dedicou a primeira página de seu
Caderno 2 a uma cerimônia realizada por Pai Paiva em seu Terreiro:
“Axé Brasil: Os representantes da alta hierarquia da Umbanda e do Candomblé
reúnem-se em Brasília para iluminar o País e oferecer um boi a Xangô. Brasília será a
capital dos cultos afrobrasileiros por 48 horas, esta semana, quando as mais
importantes figuras da Umbanda e do Candomblé estiverem reunidas na cerimônia que
homenageará Xangô, ofertando-lhe um boi - o quarto no Brasil e o segundo em
Brasília.”
Apresentado como Babalâo e terceiro alabá do Brasil, na sua linha de sucessão,
somente ele poderia cortar o boi para Xangô. Nesta festa Pai Paiva iria assegurar sua
candidatura ao cargo de woluô no Brasil. A cerimônia ocorreria por indicação do Yfá da Nação
Nagô Obá Keruat, na Nigéria. O Woluô da Nigéria, o mais alto dirigente do Culto Xangô
escolhera a capital brasileira porque o País estaria atravessando uma das piores fases na
História da América do Sul. Outro motivo da oferenda seria preparar a Quinta Conferência
Internacional sobre cultos africanos a ser realizada no Haiti, assim como oferecer uma
celebração ao Centenário da Abolição e um pedido de valorização para a população negra em
todos os níveis. O próprio Pai Paiva explicou suas atribuições:
“ O alabá tem poderes de falar com os eguns(mortos) e fazer previsões. Além de
efetuar transformações no campo político - muitos políticos o procuram - culltural e
social, evitando derramamentos de sangue e golpes de estado... Xangô é o orixá da
justiça, rei da África, Nigéria e Brasil, o único capaz de realizar qualquer
transformação.” A reportagem finalizava:
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“Além do Boi de Xangô e dos bichos para outros orixás, haverá um churrasco de
confraternização com o objetivo de pedir paz, fraternidade e fartura para o Brasil, na
tentativa de quebrar as barreiras que estão dificultando o desenvolvimento do País.”

3. Pai Paiva inaugurou a estátua de Yemanjá na entrada do ano de 1993. Desde


então todo ano as celebrações que promove na Véspera do Ano novo para a Orixá são
assunto de destaque na imprensa local. A imagem, obra do escultor Jorge Eschriqui, medindo
dois metros de altura e pesando 700 kilos, foi instalada dentro de um espelho d’água na Praça
de Yemanjá, a popular Prainha, no Lago Paranoá. O DMTU colocou uma linha de ônibus
especial saindo da Rodoviária entre as 18 do dia 31 até as 5h do dia 1.1.93. A festa foi
coordenada pelo Departamento de Turismo do GDF.
Pai Paiva foi extremamente bem sucedido no seu esforço e naquele momento tão
dramático da vida política nacional ele terminou, com seus orixás, sua Federação com seus
mais de 2.000 Centros filiados, representando, através da autoridade do poder simbólico de
Yemanjá, a sociedade diante do estado que a controla politicamente.
4. Em setembro de 1994 Pai Paiva foi consagrado Woluô do Brasil. Em
reportagem publicada no Correio Brasiliense lia-se:
“Habemus Woluô. Depois de quase 50 anos, as diversas Nações do Candomblé
no Brasil conhecerão seu sumo sacerdote. Pai Paiva será coroado Woluô, cargo que
na Igreja Católica é ocupado pelo Papa... No plano terreno, o Woluô tem importante
papel político nas relações com os governantes., conforme garante Pai Paiva. E no
plano espiritual será ele o porta-voz junto aos orixás, dos babalâos, balalorixás,
Ialorixás, alabás, ojés e milhares de filhos de santo brasileiros. A unção do Pai de
Santo ao mais alto posto do Candomblé mereceu a apreciação a aprovação de 54
federações dos cultos afrobrasileiros existentes no Brasil e de países como Nigéria,
Gabão e Angola. Todos estarão representados no toque ritualístico de entronização de
Pai Paiva.”
“...Pai Paiva afirma que possui a maior Casa de Candomblé do Brasil e que fez
mais de oito mil filhos de santo durante o seu sacerdócio. Ele enumera mais de 123
Casas Abertas em todo o mundo e cita Argentina, França, Portugal, Itália e Uruguai só
para ilustrar a extensão de seu império. Em Luziânia, apesar das dimensões do
barracão onde está o templo Ilê Axé Oiá Bamilá, os toques ritualísticos aontecem
somente três vezes por ano. Uma em Abril, em homenagem aos mestres e caboclos;
outra em setembro, aniversário da Casa e a última em Dezembro, na passagem do
ano.”
5. No dia 2 de outubro de 1995 o Correio Brasiliense, na primeira página de seu
segundo caderno noticiava a cerimônia que Pai Paiva havia realizado para homenagear os 300
anos de Zumbi dos Palmares. Foram quatro dias de festa nos quais mais de mil pessoas teriam
passado pelo terreiro de Luziânia. A Celebração em homenagem ao egum de Zumbi dos
Palmares contou com uma cerimônia para a orixá Yansã Oyá Bamilá, Senhora do Terreiro e
para o Egun Lobojô, o primeiro babalaô a morrer no Brasil, há 350 anos, com quem o próprio
Zumbi dos Palmares manteria contatos mediúnicos. A reportagem finalizava afirmando:
“A importância de Lobojô para os vivos pode ser medida por um trabalho que ele
foi convocado a fazer: garantir os cinco anos do mandato para o ex-presidente Sarney.
Lobojô aceitou a árdua tarefa, pediu, e recebeu, em oferenda, um boi, quatro carneiros
e oito galinhas d’angola. Lobojô avisou: “o quinto ano de mandato será de muito
sofrimento para Sarney, com greves, dissidências, traições e inflação nas alturas.”
Sarney quiz assim mesmo. E lobojô atendeu”.
Os Presidentes da República legitimavam-se, enquanto representantes máximos do
poder político, diante do poder reparador dos Orixás, reconhecendo a autoridade de seu
representante, Pai Paiva, futuro representante máximo do povo do Santo, e a eficácia de seus
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processos rituais, que se fizeram legítimos, por sua vez, diante dos líderes máximos do Poder
político.
Simbolicamente, dentro da lógica destes ritos, foi como se a Mãe Yemanjá pudesse
purificar o seu filho Itamar e o Egun Lobojô, por sua vez , avalisar o Governo Sarney, através
do Pai Paiva, por ser, ela , Mãe e ele, um ancestral da nação brasileira.
Tal tipo de celebração, reafirma nossa tese de que a sociedade brasileira, em
seu novo centro político, incorpora dimensões simbólicas originadas nas diversas expressões
de religiosidade presentes no País, para a sua realização no plano ideológico. Tal processo
social leva, por sua vez, a uma redefinição do papel e da posição de tais cultos no cenário
social da nova capital federal.
Escrevendo nos anos 70, À Morte Branca do Feiticeiro Negro, Renato Ortiz
terminou por especular, em suas conclusões, a respeito das relações entre o Poder político e o
Poder religioso dentro do processo de legitimação da religião umbandista.
Para Ortiz (1991) as relações da Umbanda com o Estado estavam situadas na nova
configuração da forças religiosas no País. A ascensão da ideologia umbandista, com o
reconhecimento oficial das Federações espíritas e sua articulação político partidária, através do
apoio a alguns parlamentares, talvez pudesse abrir uma possibilidade de exploração de novas
forças políticas dentro de um determinado tipo de dominação, na medida em que, por exemplo,
a orientação da CNBB estava em conflito com a ideologia dominante. A ideologia umbandista
poderia ser um elemento alternativo na inculcação de valores de submissão à ordem
estabelecida.
Tal suposição, questionável , foi posteriormente revista pelo próprio Ortiz (1982)
que refletiu sobre o fato de que a Umbanda e suas Federações não possuem um discurso
hegemonicamente definido e unificado, como o da Igreja Católica Romana. O fato de que
alguns codificadores umbandistas tenham pretensões ideológicas e políticas, e atuem nesses
níveis, não caracteriza o culto como um todo, principalmente com relação ao atendimento ritual
com os guias espirituais que é o fundamento do culto. Nesses ritos, cada categoria de
entidades possui um discurso específico, que os médiuns atualizam à sua maneira, conforme a
orientação do Centro.
Prandi (1992), referindo-se aos cultos de possessão afro-brasileiros em São Paulo,
numa reflexão a respeito da procura por serviços mágico-religiosos pela população, deixou
outras perguntas a respeito das relações entre os cultos de possessão e a política no País. Ele
finaliza com a seguinte indagação:
“... As classes altas e médias, sobremaneira escolarizadas, enquanto
representantes do mundo desencantado, ainda que eventualmente possam
fazer uso da magia como um serviço de utilidade tópica, constituem um
limite social à propagação da religião não racionalizada além de um
determinado ponto, cujo lugar, a rigor, está ainda por ser desvendado.
Conhecer esse limite pode significar, também, a compreensão da força
política dessas religiões”.
Prandi faz essas indagações a partir de uma série de observações. Nos anos 90 já
era possível perceber um refluxo no movimento das Comunidades Eclesiais de Base, enquanto
a força da Renovação Carismática se expandia no interior do catolicismo, cujos fiéis se
afastavam novamente da política.
Prandi também percebeu o grande trânsito que caracteriza a vida religiosa de
muitos destes fiéis, entre o catolicismo, o protestantismo, a Umbanda e o culto aos Orixás.
Todas essas modalidades de cultos de possessão, inclusive os pentecostais, estavam em
expansão, antes, durante e depois do movimento de politização da Igreja Católica Apostólica
Romana.
Grosso modo, tanto as reflexões de Ortiz quanto as de Prandi podem ser discutidas
a partir de dois níveis. O primeiro, á que a relação entre os cultos de possessão afro-brasileiros
com a esfera política passa por uma distinção criteriosa entre a relação das hierarquias
religiosas, ou seja, as lideranças e os membros mais próximos delas, com as instituições do
Poder; das eventuais relações que a clientela desses cultos, de maneira geral, venha a ter com
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a religião e com a política. Os representantes do Poder Político fazem parte da clientela dos
cultos, como foi exposto ao longo do capítulo anterior. Fazem parte de um segmento social que
procura os serviços desses cultos. Isso não impede que muitos freqüentadores de tais religiões
estejam atraídos por estas religiões porque estejam desiludidos com os efeitos das decisões
políticas em suas vidas particulares.
Tais considerações apontam para o 2º nível da questão. De que maneira é possível
isolarmos uma ou outra modalidade religiosa frente à dimensão da vida política da sociedade
brasileira? Cada uma dessas modalidades religiosas, Umbanda, Culto aos Orixás, Catolicismo
e Protestantismo, são, de fato, imensos universos de seitas, facções, correntes e tendências,
unidos por alguns pontos fundamentais em comum, que os distinguem uma das outras.
Qualquer reflexão nesse campo só é possível graças a cortes metodológicos que dificilmente
deixam de ter um alto grau de arbitrariedade.
Tais preocupações são recentes nas Ciências Sociais. Gilberto Velho (1994), por
exemplo, discute a coexistência de diferentes sistemas cognitivos numa sociedade moderna
como a Brasileira tomando os cultos de possessão como reflexão.
Velho parte do fato de que noções básicas como Transe, possessão e
mediunidade, são características de sistemas religiosos que podem abranger até a metade da
população brasileira sem que haja qualquer religião genérica de transe no País, ou tentativas
nesse sentido.
Os antropólogos tem, por isso, um objeto de estudo relevante nesse campo, junto
as diferentes formas de definir, classificar, representar e identificar as relações com o mundo
dos espíritos, guias, santos e orixás, pois é aqui que estes grupos estabelecem entre si suas
fronteiras cognitivas. Relacionar essas fronteiras com aspectos da estrutura social envolvente,
como no caso das relações com a Política, constitui-se , mais ainda, num outro momento de
reflexão.
Como ficou demonstrado ao longo da exposição dos informantes, os referenciais
míticos são a chave da compreensão das suas informações mas, os informantes mais
interessados em expor suas trajetórias religiosas e seus conhecimentos a respeito da religião,
foram aqueles que se consideravam os mais bem sucedidos na implantação dos Cultos de
Possessão no DF.
Eles fizeram de suas narrativas longas crônicas de seus sucessos e da importância
que possuem no universo religioso de Brasília. Nesse sentido é importante frisar que aqueles
que teceram comentários a respeito da mitologia do Distrito Federal, e não apenas de suas
mitologias individuais, foram novamente, aqueles que demonstraram ser os pioneiros mais
bem sucedidos entre todos, dentro do espaço religioso próprio da nova capital do País, Maria
do Oxóssi, Tito de Omulu, Marlene Souza Braga, D.Violeta e Édson Silva. Exceto D.Violeta, os
outros afirmaram que vieram para o DF por razões religiosas, a pedido de suas entidades, as
quais estão subordinados ritualmente, porque aqui realizariam sua missão espiritual.
Vários deles afirmaram que foram o primeiro pai ou mãe de santo do DF, ou o
primeiro a abrir um terreiro ou a jogar búzios africanos. Tais afirmações são reivindicações de
prestígio e de autoridade.
É a partir desta perspectiva que podemos retornar a questão das tradições regionais
dos cultos espíritas afrobrasileiros com seus valores característicos. Um informante afirmou
que é comum pessoas “encherem a boca para afirmar que são filhas do Gantuá de Mãe
Menininha de Oxum ou do Axé Apô Afonjá de Mãe Estela de Oxóssi, em Salvador”, afirmando
valores distintivos do povo do santo, característicos da hierarquia de prestígio das casas de
santo matrizes de Salvador.
Os valores de prestígio atribuídos à essas Casas de Santo do litoral nordestino
hierarquizam os cultos espíritos afrobrasileiros, a partir do valor de pureza ritual atribuído a esta
africanidade 14 . Quando pensamos, todavia, nas informações a respeito de D.Railda de Oxum,
esses valores podem estar expressando realmente uma outra situação social. Todos os
informantes contatados a reconheceram como a mais legítima representante da tradição
yorubá, oriunda de Salvador. Ao mesmo tempo a maioria a aponta como uma pessoa isolada

14
Ver , a este respeito, “Vovó Nagô e Papai Branco”, de Beatriz Góis Dantas(1988).
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e distante, o que foi posteriormente confirmado por algumas pessoas que freqüentam sua Casa
de Santo.
Embora reconhecidamente autêntica em sua Pureza ritual, o que a coloca num
patamar distinto da maioria dos espíritas locais, talvez D.Railda de Oxum não possa
hierarquizar um universo social já marcado por um igualitarismo de tipo moderno desde suas
origens, para além dos seus filhos de santo e freqüentadores de sua Casa.
É necessário descobrir de que maneira sua autoridade é atualizada dentro de que
conjunto de relações significativas e se ela não teve sua Pureza redefinida em termos de uma
ortodoxia. Ela representaria o pólo ortodoxo de um universo social já claramente marcado pelo
trânsito religioso.
É relevante que Pai Paiva tenha se legitimado enquanto Oluwô , uma autoridade ritual
africana, após ter se apresentado primeiro como um Mestre da Jurema, operando uma
mediação frente à Pureza ritual dos Cultos de origem nigeriana e os cultos de caboclo,
sintetizando-os num “Caboclo Candomblezeiro”, que pode ser visto como a personificação
do Traçado, dos Candomblés africanos com o brasileiro culto aos caboclos.
Nesse sentido, ele realmente está operando uma síntese original dentro do mundo
espírita afrobrasileiro, “O Povo do Santo”, enquanto expressão da cultura brasileira, dentro de
seu atual centro político. Ele está como que representando simbolicamente um novo momento
do pacto social da República brasileira, dentro já do espaço brasiliense.
Ele demonstra não se limitar a respaudar sua autoridade no contato com as
entidades espirituais africanas e caboclas, como os demais líderes dessas religiões, mas
resgata símbolos de poder, situados primeiramente naquela dimensão extra-física e extra
mundana, propriamente espiritual, que ele pode intermediar diante dos representantes do
Estado Nacional, em sua sede.
É possível comparar D.Railda de Oxum, enquanto autenticamente Nagô, com a
importância de Mãe Menininha de Oxum na cultura brasileira recente. O Pai Paiva, porém, não
se limita ao modelo dessas pessoas célebres da cultura afrobrasileira, como um
correspondente brasiliense, embora se veja como um sucessor de Joãozinho da Gómeia. Além
disso, traz correspondências rituais diretamente da Nigéria, frente ao qual se apresenta como o
seu representante na moderna capital brasileira.
Sua capacidade de mediar dimensões tão globais com as dimensões propriamente
locais de sua Federação precisam ser devidamente checadas, principalmente com relação as
situações nas quais ele tem realmente construído sua legitimidade enquanto representante
máximo do Povo do Santo dentro e fora do Distrito Federal.
O que está em jogo, colocado por sua presença carismática é que não se trata
simplesmente de constatar que os Cultos espíritas afrobrasileiros formam uma dimensão
singular do universo religioso brasileiro e do imaginário nacional. Eles demonstram dramatizar,
dentro de sua singularidade, dimensões significativas da vida social brasileira, que precisam
ser devidamente esclarecidas.
No Caso dos informantes descritos, que apresentaram suas versões pessoais de
todo esse complexo mítico que cerca a fundação de Brasília, iremos encontrar, basicamente,
tanto a reafirmação de uma importância futura da atual capital brasileira quanto o chamado
espiritual para fazer parte da construção desse futuro centro político- religioso de importância
mundial.
No caso dos pais de Santo da nação Africana Alaketu, todavia, o tom das
afirmações míticas sobre Brasília e sua importância é um tanto distinto, o que vale ressaltar.
Ao invés de uma profecia, Tito de Omulu refere-se diretamente a um ODU, , um
signo oracular, um elemento atemporal referindo-se ao presente de Brasília ao invés de uma
evocação ao seu futuro.
As afirmações de Nélson de Xangô, com relação à necessidade da sedimentação
do Orixá Xangô no Planalto Central, também segue esta característica. Sua referência, embora
relacionada diretamente à entidade mística, não está voltada para um horizonte futuro, mas
para um processo que se desenrola no presente.
Xangô não irá ser sedimentado num futuro qualquer, ele está sendo sedimentado.
Para tanto, Nélson de Xangô mudou-se para o Distrito Federal, cumprindo sua obrigação com
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o Orixá, implantando um terreiro completamente auto-suficiente, numa fazenda próxima à


Brasília, onde os orixás podem viver como viveriam na África.
Tal diferença pode ser percebida melhor a partir de algumas considerações sobre o
Culto aos Orixás desenvolvida por Segato (1989) a partir de sua pesquisa na cidade do Recife.
Ela mostra que a Tradição afro-brasileira do Xangô traz uma distinção básica com relação a
tradição cristã, na medida em que esta última é fundamentalmente utópica. A concepção cristã
de Deus traz uma direção moral a seus féis, uma vez que propõe um mundo além do mundo
vivido pelos homens. O mundo humano é, por sua vez, o mundo marcado pelo signo da queda,
da expulsão do paraíso.
A tradição dos orixás, ao contrário, é descritiva. Os orixás não estão num além
para onde os fiés devem ir, mas num além de onde eles vem para influenciar a vida de seus
adoradores. O culto aos orixás não possui uma ética sagrada, embora tenha um horizonte ético
próprio. Seus mitos falam de um mundo já separado de um unidade primordial, já carente,
descrevendo uma atualidade, através de seus deuses humanizados pelas paixões, similares às
humanas. Os orixás, seus mitos, ritos e signos oraculares esclarecem como o mundo funciona,
mas não se propõe a modificá-lo como um todo. Sendo assim, os orixás africanos, ao contrário
das entidades brasileiras, do culto umbandista, não teriam o que dizer sobre as utopias
relativas ao futuro da Capital Federal. 15
Talvez a partir desta distinção seja possível equacionar o sucesso da expansão dos
cultos aos orixás, tanto quanto os problemas da legitimação da sua eficácia, dentro de Brasília.
Segato encontrou no Xangô pernambucano, no início dos anos 80, uma religião já
universalizada e expansionista, construída em torno de um humanismo para além de limites de
etnia, parentesco e gênero. Se a herança africana é assumida como um patrimônio universal,
parecia-lhe conviver mal com a política brasileira, com a qual seus informantes não se
envolviam, a exemplo dos informantes paulistanos de Reginaldo Prandi.
Porém, quando comparados com os informantes brasilienses, ninguém pareceria
mais distanciado desses informantes do Recife e de São Paulo que o Pai Paiva, que é
originário da Casa de Santo que Segato pesquisou, o Sítio da Água Fria, Casa de Santo
tradicional localizada na Grande Recife, Pernambuco.
O objetivo desta dissertação foi mostrar que é a Capital Federal que politiza os
cultos religiosos, e não o contrário. A melhor prova dessa evidência está, pois que até o culto
dos orixás, em Brasília, embora não apareça numa versão original e distinta de suas origens
regionais, apresenta-se numa versão politizada, com líderes religiosos que circulam pelo
mundo político e que o influenciam a partir de suas referências religiosas próprias.
A ênfase dessa modalidade religiosa na dimensão do presente, por sua vez,
permite situar sua expansão contemporânea, já que podemos pensar que passados 30 anos
de sua fundação, Brasília já não oferece só uma utopia de futuro para os seus habitantes, a
qual as utopias religiosas, como do Vale do Amanhecer, da Cidade Eclética, dos pentecostais e
dos ufologistas, vinham a reforçar.
Diante de uma zona urbana metropolitana, com uma estrutura social presentemente
constituída, reunindo todos os problemas e características da sociedade brasileira
contemporânea, os orixás, seus mitos e seus ritos, encontram o espaço social por excelência
no qual este culto realizou o seu sentido. Um mundo que é modernizado mas que não é
inteiramente moderno.
Esse ponto de vista pode ser reforçado por outra tradição religiosa, que traz para o
presente do Distrito Federal a referência mitológica do Apocalipse não como futuro mas como
presente.
Luís Tarley de Aragão (1990) encontrou, junto a famílias tradicionais da região onde
Brasília foi construída, uma representação da instalação da nova capital federal como um fim
do mundo, um apocalipse, significando o fim da antiga ordem tradicional e de sua religiosidade

15
Tais utopias podem ser relacionadas com o espírito da época, a partir do pós-guerra, quando o
Brasil apresentava-se como um País a ser construído. Brasília foi construída nesse espírito, que talvez tenha
perdurado nela até 1985, quando a morte de Tia Neiva, de Tancredo Neves e a posse de José Sarney inauguraram
um novo período na sua História.
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festiva, entre outros elementos, que durante 250 anos regularam a vida social dos sertões do
Planalto Central.
Lia Zanota Machado (1990), por sua vez, encontrou em pesquisa realizada na
cidade satélite do Gama, junto a uma população de origem nordestina, códigos culturais
tradicionais entrecruzados com valores modernos e seculares, onde a noção de fim de mundo
era enfaticamente elaborada.
Num contexto social onde tal população, consegue, de alguma maneira, reproduzir
valores como a Honra Familiar, através de redes extensas de parentesco, regidas pelo código
da reciprocidade e da hierarquia , circunscrevendo inclusive a nova rede de vizinhança e de
amizades, a mesma cidade é vista como um lugar, por excelência, fora de ordem.
A ausência de regra pessoais de honra que a domina para além das redes de
parentesco e vizinhança, assim como a ausência de relação políticas e jurídicas que definem a
cidadania e a igualdade do cidadão, são interpretadas como o fim do Mundo. Sua
desumanidade, seus crimes impunes, surgem como os sinais dos tempos que anunciam o
Apocalipse.
O resultado final é uma visão ambígua da vida no DF. Brasília é boa porque oferece
alguns serviços urbanos modernos, como saúde e educação. É ruim porque seus benefícios,
como um todo, pertencem a poucos. Para a pobreza urbana resta uma situação anti-natural de
não cidadãos marginalizados, que não são ninguém fora de seus círculos mais imediatos de
convivência doméstica.
É provável que seja para essa realidade social que o Culto dos Orixás possa
oferecer, seja no DF ou seja em São Paulo, oportunidades de elaboração de identidades
pessoais e comunitárias alternativas. É provável também que, nesses assentamentos urbanos
periféricos, que compõe a atual zona metropolitana do DF, onde laços políticos e comunitários
de fato não tiveram tempo e condições sociais de se consolidar, em escala mais ampla, a
eficácia de suas entidades também termine comprometida por razões similares, como veremos
no capítulo seguinte.
Os orixás e seu culto possuem uma forte dimensão doméstica, circunscritas a
pequenos círculos marcados por uma intensa sociabilidade, mas os santos que realmente tem
prestígio e força, assim como suas Casas, são aqueles que conseguem atrair um verdadeiro
público, para além de seu pequeno círculo de iniciados 16 A passagem de uma situação para
outra, requer tempo, dedicação, vivência.
Outra inferência que pode ser estabelecida, não só com relação à questão do Culto
aos orixás na Nova Capital Federal, está relacionada a que, no contexto social encontrado em
Brasília, a simbólica do Desenvolvimento foi transposta até à dimensão do Mito e da profecia, a
ponto da noção de Desenvolvimento Social se aproximar e até se confundir com a noção de
Desenvolvimento Espiritual, enquanto aspectos complementares de uma única noção de
Desenvolvimento, que é a articulada pelas agências religiosas 17 .

16
Num artigo denominado Como o Homem cria Deus na África Ocidental(1989), Karin Barber mostra
como essa característica é fundamental na religião yorubana. Um Orixá de prestígio e força tem que ter um grande
público que frequenta suas cerimônias.
17
Ortiz(1984), já havia percebido esta relação dentro do culto umbandista, em particular.
- 87 -

3ª PARTE:

A CIDADE DOS MUITOS ROSTOS


- 88 -

Em Brasília, a ênfase em criar um espaço social inovador, em termos simbólicos,


resultando numa metrópole caracterizada por uma experiência urbana não tão perfeita quanto
teriam desejado seus primeiros idealizadores, suscita uma retomada de velhas questões.
O que afinal constitui a sociedade brasileira? Somente o projeto colonizador Ibérico,
continuamente reatualizado pelos seus “bandeirantes modernos”, como os de JK? As demais
referências culturais do País e seus agentes sociais, são apenas contribuições a esse projeto?
É esse realmente o projeto da nacionalidade? Como é possível falar realmente da sociedade,
como um todo, neste caso?
Quando buscamos respostas para esse tipo de indagação na dimensão que a
religiosidade brasileira elabora a respeito da vida social do país, torna-se possível perceber
que, nos casos aqui considerados, as agências religiosas têm permitido aos seus adeptos uma
reelaboracão de suas trajetórias pessoais. Tais processos ocorrem dentro de um espaço
simbolicamente construído para esse fim, através de situações altamente significativas que
intensificam o sentido deste valor tão caro ao imaginário de Brasília, a Nova Era de um Novo
Mundo.
Ao resolverem seus problemas mais urgentes, ao terem acesso a um novo código
de referências simbólicas, onde acabam por ressocializarem-se, os migrantes encontram nas
associações religiosas um espaço a partir do qual podem recriar suas vidas, num plano
apropriado a essa operação.
Através das diversas situações disponíveis no Distrito Federal, seja numa Igreja
Pentecostal, num Centro Espírita, seja no caso do umbandista que se inicia no culto aos orixás
ou até mesmo num grupo ufológico no início dos anos 80, foram as mudanças religiosas
operadas na vida desses indivíduos, dentro do DF, que atualizaram a mudança fundamental
que todos têm em comum, a mudança para a Nova Capital do País.
A atração das novas possibilidades de existência que Brasília trouxe para os
habitantes do Brasil é fruto de seus propósitos políticos, sem dúvida, mas a atração exercida
pela religiosidade dentro desse espaço urbano, todavia, não pode ser explicada apenas a partir
destes propósitos, uma vez que está inteiramente permeada por uma dimensão simbólica que
perpassa inclusive as razões políticas.
No caso dos líderes religiosos e dos membros de suas Casas que foram
pesquisados, podemos compreender que não é só uma mudança de opção religiosa que
permite enxergar tal processo. Todos eles tornaram-se líderes de prestígio porque optaram por
esse novo espaço social, que inicialmente só lhes oferecia uma esperança, uma promessa,
uma missão e mesmo uma obrigação de aqui se estabelecerem.
Esses cultos, ligados às raízes africanas de Salvador, ou às origens brasileiras da
Umbanda Carioca, nasceram sob o signo da perseguição policial, da discriminação e do
preconceito, sendo que o processo de sua legitimação é um dos mais interessantes capítulos
da história da República Brasileira. A transferência desses cultos para o atual Distrito Federal
foi um novo capítulo desta história. De fato, uma Nova Era.
Os centros de Umbanda, assim como os kardecistas, consolidaram as atividades
de caridade e assistência social, característicos da ética desses cultos, graças ao apoio oficial,
conseguidos seja pela doação de lotes, seja pelo reconhecimento do caráter de utilidade
pública dessas instituições religiosas.
O culto aos orixás também reaparece em Brasília como legítimo representante da
cultura brasileira, não mais como uma incômoda diferença, como foi visto na primeira metade
do século em Salvador, Recife e no Rio de Janeiro. Os primeiros líderes que vieram da Bahia
para cá perceberam essa característica de Brasília a ponto dos informantes pioneiros
descreverem o processo de sua chegada em Brasília como a “invasão dos Bahianos”,
tamanho era o ímpeto de suas investidas na nova capital.
Os símbolos da Nova Era, da Capital do 3º milênio, do País do Futuro, surgem como
idéias poderosas que diversas grupos sociais reelaboram ao seu modo, para expressar seus
próprios interesses e posições. Neste sentido, embora as diversas pesquisas já produzidas em
torno do DF, mesmo tomando a experiência urbana de Brasília mais como um campo do que
como um objeto, acabam se tornando investigações não só a respeito da cidade, mas também
- 89 -

a respeito da política, já que expõem a dimensão política da experiência urbana, a partir de


situações sociais particulares e específicas.
Três anos depois da pesquisa de campo, voltei a procurar minha primeira informante,
Vanda de Farias. Tive problemas com ela ao lhe passar uma cópia do primeiro capítulo. Ela
queria ver que estórias do Santo no DF eu teria conseguido reunir. Me fez algumas correções
muito utéis, por um lado, mas manifestou sua desaprovação com relação a uma série de
depoimentos dela mesma e a algumas informações de outros informantes. Desagradou-lhe,
como um todo, o tom do texto, que pareceu-lhe expor demais tensões do Culto,
comprometendo-a.
Procurei argumentar que tais questões foram postas por ela e por vários outros
informantes, sem que eu tivesse deliberadamente forçado o assunto e que tais pontos são
importantes para a reflexão antropológica. Assuntos como as relações dos líderes do culto com
a clientela do mundo da política não são exclusivos dos cultos espíritas afrobrasileiros e têm
acompanhado a transferência da Capital Federal do Rio para Brasília, tendo assumido
contornos próprios dentro do imaginário modernista da interiorização da Capital.
Ela não deu muita importância as questões acadêmicas. Estava preocupada com um
possível “escândalo”. Argumentei que naqueles depoimentos não havia nada de
comprometedor para ninguém. Eram casos de situações aflitivas de pessoas que procuraram
os serviços espirituais dos Centros e Terreiros. Foi então que ela passou a identificar alguns
clientes daquelas casas de Santo, dentro do cenário social e político de Brasília.
Argumentei finalmente que este tipo de informação nunca me interessou e que
levaria o caso à banca de avaliação do Departamento de Antropologia da UNB. Os professores
ficaram surpresos com o ocorrido e afirmaram que não há de fato ninguém identificável nos
depoimentos, mas que, se por acaso alguns dos envolvidos se auto-identificar numa eventual
leitura não haveria problema algum.
Resolvi procurar a informante novamente, já que ela aventara a possibilidade de me
contar outros casos antigos da vida religiosa afrobrasileira do DF. O tom de sua apreensão
continuara mas ela passou a tocar em um ponto novo. Eu poderia arrumar muitas amizades
neste meio religioso se contasse, por exemplo, as estórias de vida dos religiosos pioneiros,
suas lutas e seu sofrimento deixando de lado esses problemas internos e as relações com o
mundo político. Tais pessoas seriam, se amigas, muito boas e utéis a minha carreira. Ela
mesmo poderia me contar muitas estórias. Eram argumentos de uma pessoa com desenvoltura
política, sem dúvida, que apontavam para como deveria ser a relação ideal, de seu ponto de
vista, entre um pesquisador e o mundo ao qual eu tivera acesso através dela.
Felizmente eu entrara em contato também com o Sr. Marco Silva e sua esposa, que
haviam manifestado o mesmo interesse por terem acesso aos dados que eu pudera coletar.
Eles também me fizeram valiosas correções mas nada viram de reprovável no material como
um todo. Alertaram-me, porém, que a trajetória narrada por um Pai-de-Santo não correspondia
à versão que eles conheciam, narrada por uma irmã de santo dele. Argumentei que isso era
um problema do informante, mas que a todos eu havia afirmado que o material coletado
poderia vir a ser publicado, caso a Banca examinadora demonstrasse interesse.
De qualquer maneira chamara-me a atenção, durante a pesquisa, o fato de que tanto o
Sr.Marco Silva quanto Tito de Omulu, os pais de santo mais letrados que eu entrevistara,
fizessem comparações desta pesquisa com o trabalho de Pierre Verger, que, segundo o
primeiro, “começou pesquisando, acabou se iniciando”, já que eu particularmente nunca
manifestei tal interesse.
A obra de Verger tem tanto um caráter etnográfico quanto um caráter histórico. Foi
ficando claro que, se realmente o mundo dos cultos espíritas afrobrasileiros é fértil em estórias
interessantes e significativas, de uma perspectiva antropológica é tão importante nos atermos
às raízes de tal singularidade quanto às estórias específicas das Casas de Santo.
Vagner Gonçalves da Silva(1991), pesquisando o culto dos Orixás em São Paulo
discutiu os “modelos por demais idealizados que propõem para análise do material religioso
afrobrasileiro” tanto Pierre Verger quanto Roger Bastide e Juana Elbein dos Santos. Ele chama
a atenção para a ambigüidade destes pesquisadores iniciados que legitimam um discurso
acadêmico através de fontes oriundas do processo de iniciação aos mistérios do Culto.
- 90 -

Existe uma questão relevante no fato de alguma dessas obras, dentro da etnografia
religiosa afro-brasileira terem se tornado, dentro dos cultos aos orixás, um tipo de fonte de
legitimidade, transformando assim informações etnográficas em estatutos validados pela
comunidade acadêmica. Tais obras passaram a ganhar um valor litúrgico dentro de
comunidades originalmente marcadas por uma tradição oral. Uma liturgia valorizada pelo
reconhecimento acadêmico.
O modelo etnográfico destes autores não construiu apenas um visão acadêmica do
Culto aos Orixás mas buscou ser uma descrição isenta dos candomblés bahianos vistos como
uma efetiva permanência do universo cultural africano na América, em particular nos cultos
nagô.
Esses autores incorreram naquele problema já discutido aqui de explicarem a vida
cultural do grupo estudado pelas próprias categorias do discurso do grupo, sem trazer tais
categorias à reflexão conceitual propriamente científica e transmutando as categorias nativas
em conceitos. Assim a idéia da “Pureza do Culto” e da “fidelidade a África”, passaram a servir
de eixos de análise para a pesquisa etnográfica, quando deveriam ter sido compreendidas
enquanto dimensões do universo social pesquisado, como tentamos fazer com a noção de
Nova Era.
Tais etnografias, segundo Silva “...realizadas nos terreiros mais “afamados”,
contribuem assim, para a generalização e valorização da tradição religiosa neles
encontrada, ao mesmo tempo que em que autovalorizam-se por registrar parcelas
significativas dessa liturgia, que passam a ser buscadas como fonte do sagrado.”
Este autor conclui que se tais textos etnográficos podem ter uma apropriação
sacralizante é porque eles foram escritos já dentro deste espírito, ou seja, de forma ambígua.
Aqui o acadêmico legitima o religioso que, por sua vez, sacraliza o texto. Tal relação é
comparável às relações recíprocas de legitimidade entre as instituições religiosas e políticas
em Brasília.
A idéia da “Pureza Nagô”, todavia, e sua capacidade de hierarquizar o universo das
religiões afro-brasileiras, inclusive pela via da legitimação acadêmica, é um tema bem mais
abrangente. Dantas(1988), num levantamento histórico demonstra como tal idéia foi
constituindo progressivamente uma africanidade, uma regionalidade, até vir a constituir um
referencial obrigatório para a nacionalidade.
Duramente perseguidos durante a República Velha, por serem vistos como uma
ameaça negra ao progresso da nova ordem republicana, os Candomblés nordestinos foram
defendidos por intelectuais como Nina Rodrigues, que graças a suas pesquisas em Salvador,
constatou a distinção dos Terreiros de origem Yorubá com sua africanidade evidente diante da
miscelânea sincrética dos terreiros bantus e caboclos.
Tal africanidade, durante a década de 30, foi sendo construída em eventos como o
Congreso Afrobrasileiro da Bahia , organizado em 1937 por Édson Carneiro, para dentro do
espaço cultural aberto pela necessidade de se constituir a ‘Cultura Nacional’ , durante o
período da Era Vargas. A africanidade Nagô, opera, assim, uma mediação fundamental,
enquanto autêntica “raiz africana do Brasil’, distinguindo tal modelo de culto da cidade de
Salvador enquanto símbolo do País a partir de sua regionalidade nordestina.
Dantas argumenta que, contrariamente, com o processo de umbandização dos Cultos
de Possessão no Rio de Janeiro, também durante a Era Vargas, ao invés da exaltação de uma
África distintiva surge um processo de negação da Äfrica em nome de uma exaltação ao Brasil.
A africanidade carioca, vista como macumba maléfica, abrasileirada através do filtro kardecista,
produziu uma síntese na Umbanda Branca, expressão simbólica da síntese cultural da nação
brasileira.
Pereira de Queiroz(1988) também se deteve nesta dimensão de síntese da Cultura
brasileira que a Umbanda reivindica traçando um paralelo entre a Umbanda Carioca e o
Movimento Modernista da São Paulo dos anos 20. Inicialmente locais e metropolitanos, ambos
os movimentos conheceram uma forte expansão no pós-guerra, tornando-se referenciais da
Tradição brasileira que surgia então. Ambos codificaram uma concepção de um “Ser
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Brasileiro” constituído em torno da valorização da integração das diversas tradições regionais


presentes no território nacional.
O mais importante em seu ensaio surge quando a autora discute como a diversidade
cultural brasileira fora primeiro condenada pela elite brasileira durante a República Velha. As
diversas manifestações locais do Brasil, tal qual os diversos cultos aos “santos”, eram vistas
como as evidências do atraso do País e as raízes da ausência de patriotismo do povo.
A partir dos anos 30, porém, tal diversidade passou a constituir um dos fundamentos da
Identidade nacional, definida a partir de conceitos como Sincretismo e miscigenação,
defendidos tanto pelo Regionalismo de Gilberto Freire como pelo Modernismo paulistano.
Nesse sentido, Ortiz(1980), partindo de evidências históricas que apontam para a
origem e o caráter republicano dos cultos de Umbanda, discute o que realmente tem sido
chamado de Sincretismo e até que ponto tais cultos se encaixam neste modelo.
Ortiz definiu Sincretismo como o processo pelo qual no contato entre duas tradições,
uma, hegemônica irá fornecer o sistema de significação que ordena os elementos da outra
tradição, fornecendo um outro sistema coerente e integrado. É muito difícil perceber na
Umbanda a presença da memória coletiva negra como a tradição dominante e ordenadora
desses cultos sincréticos.
Mais que isso, os líderes do espiritismo de Umbanda que a consideram a religião
nacional do Brasil, com aspirações à religião oficial do País são, em geral, membros de uma
classe média muito mais luso brasileira do que afrobrasileira. São pessoas instruídas que
buscam uma síntese coerente das religiões do Brasil através de um sincretismo refletido.
Se tais dirigentes ambicionam construir a religião oficial de uma Brasilidade, ou seja,
uma identidade cultural a partir de uma perspectiva religiosa, tal construção passa
necessariamente por uma legitimação frente aos grupos dominantes que realmente definem a
legitimidade das manifestações que compõem a Cultura Brasileira. Tal negociação é um
processo social em aberto, do qual nós fazemos parte, inclusive.
Vergolino e Silva(1987:65) num excelente artigo sobre o sincretismo da Semana Santa
nos cultos umbandistas de Belém, ilustra com clareza e profundidade como tais processos são
realizados por tais lideranças. A partir do calendário litúrgico católico, com seus tempos
próprios e seus dias santificados e consagrados a diversos santos, eles constroem seu próprio
calendário acrescentando outras série significativas, como as mudanças da lua e os dias da
semana consagrados aos rituais. Há uma referência ordenadora básica, que é católica,
mediada pelo culto brasileiro aos “Santos”.
Rubem César Fernandes(1988:85) chama a atenção para as características do
catolicismo brasileiro centrado no culto aos seus Santos. Desde o século XVIII que o
catolicismo brasileiro caracteriza-se pelas irmandades e paróquias geridas pelos próprios fiéis,
afastados do controle eclesiástico romano, e voltado para as festas, romarias e devoções aos
santos padroeiros, protetores de seus fiéis. Frente a essa religiosidade popular a Igreja de
Roma e seus missionários estrangeiros, já durante a República, passaram a exercer um
controle contraditório, já que na prática observa-se a coexistência de duas modalidades de
catolicismo, mediadas simbolicamente pelos mesmos Santos.
Fernandes analisa a devoção a Nª.Sra. Aparecida, em Aparecida do Norte. A Devoção
à Santa encontrada no Rio Paraíba do Sul existe desde o século XVIII e é a principal entre os
católicos do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, o centro econômico e político do País.
Em 1931, contudo, a Igreja de Roma consagrou o Brasil à Nª Sra Aparecida, e em 1980,
durante a visita do Patriarca de Roma, o Governo Federal determinou que o dia 12 de outubro
seria feriado nacional em homenagem à Santa Padroeira, embora Aparecida do Norte nunca
tenha se tornado a capital religiosa do Brasil.
Do ponto de vista popular, porém, tal devoção continua regional, equivalente à devoção
à Nª Sra. de Nazaré na Amazônia e ao Padre Cícero no Nordeste, além das devoções da
Bahia, do Recife e do Sul do País. Fernandes observa a ausência de um centro
simbolicamente unificado neste panorama religioso, de fato centrado na pluralidade de seus
Santos.
Tal problema é um problema eclesiástico, uma vez que é a Igreja Romana que busca
apresentar-se como a representação simbólica da sociedade, graças a mediação simbólica da
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Santa, enquanto Rainha do Brasil. O povo continua, por sua vez, celebrando-a como a Mãe de
Jesus e de todos os homens, inclusive dentro dos cultos afrobrasileiros sincretizada com as
Orixás Oxum, principalmente, mas também com Yemanjá, ambas orixás maternais, por
excelência.
Do mesmo modo, Figueroa(1989:56) também apresenta como que Nª Sra do Carmo,
padroeira do Recife é cultuada da mesma maneira, num ciclo de festas e cerimônias, que
podem ser distinguidos em cinco eventos simultâneos. Há a celebração eclesiástica dos
carmelitas, a procissão da elite pernambucana, a festa popular, o comércio religioso e o culto
afrobrasileiro para Mamãe Oxum, com quem esta santa está sincretizada.
A “Rainha Coroada do Recife”, “Senhora de muitos rostos” emerge como uma síntese
de um complexo de significados sociais, marcada por configurações simbólicas distintas para
as diversas categorias sociais que a vivenciam.
Também em Belém do Pará, segundo informações pessoais de Anaíza Vergolino e
Silva, Nª Sra de Nazaré é sincretizada com Oxum, a maternal Orixá das águas doces e da
riqueza. Também nesta capital amazônica a tensão entre o controle eclesiástico e as
manifestações populares, na adoração à Santa, é muito forte.
É possível perceber que nessas Mães Divinas, estão, de alguma forma, atualizadas
idéias-valores de uma totalidade social, como num círculo de divindades que são uma e várias
ao mesmo tempo. Fernandes não parece ter percebido que a ausência de um centro
geográfico catalizador de uma religiosidade nacional está, justamente, preenchido pela figura
mítica da Nossa Senhora, que se situa num plano transcendente a qualquer nacionalidade e
regionalidade.
Aragão(1991), discute o processo de santificação do feminino na figura da Mãe,
característico do mundo mediterrânico. A matriarca virtuosa, mãe de bons filhos, constitui-se na
figura central de uma matrifocalidade doméstica, e de uma moral feminina e familiar. A esta
configuração, o universo de valores sociais brasileiros não constitui a esfera pública enquanto
um pólo autônomo a este universo familiar. Nessa outra esfera predomina um anonimato
selvagem submetido ao tradicional autoritarismo patriarcal, enquanto o complemento desse
familiar englobante por sobre o público.
Tal ethos tende para uma irreversibilidade do social, atualizando a dependência
estrutural dos subalternos aos seus superiores, num modelo doméstico expandido. Ao mesmo
tempo, o sistema social brasileiro necessita, e produz, mediadores capazes de integrar os
processos modernizadores a esse fundo cultural inconsciente.
O que foi encontrado em Brasília não foi uma nova Santa revelada ou uma nova
modalidade religiosa aglutinadora, mas uma Igreja Católica Romana discreta diante do ethos
ecumênico da nova capital, muito mais bem representado pelo Templo da Legião da Boa
Vontade e seu “Parlamento Mundial”, do que pela Catedral ou pela Igreja de Dom Bosco.
Brasília é tão repleta de Igrejas e Centros, Santos e entidades espirituais que somente
um ethos ecumênico pode incorporá-los numa unidade celebrável. É como se a mística de
Brasília ocupe, simbolicamente, o papel síntese da “Mãe divina”, enquanto um plano de
mediação transcendente possível no interior da estrutura social brasileira contemporânea..
Como numa paradoxal confirmação dos questionamentos de Emile Durkheim (1989), a
respeito da transcendência do social, a sociedade brasileira estaria representada,
hipostasiadamente, na Nova Capital e em seu Projeto Modernizador, como James Houston
chegou a perceber. É Brasília, em seu projeto e em seu futuro que acolhe e acolherá a todos,
católicos, protestantes, espíritas e orientalistas, assim como a todos os seus santos, guias e
entidades espirituais, realizando-se como uma Cidade de muitos rostos.
É importante refletir, todavia, a respeito das dimensões da diversidade religiosa do DF.
Tanto a solenidade do Corpus Christi quanto à homenagem a Yemanjá no Ano Novo atraem
em média 10.000 pessoas todos os anos enquanto Diana Brown(1979:270) assistiu a uma
celebração à Yemanjá na entrada do ano de 1979, na Praia de Santos com a presença de
300.000 pessoas. Número equivalente se faria presente em Porto Alegre e no Rio de Janeiro,
onde já nos anos 60 haveriam em torno de 20.000 Centros de Umbanda. Sendo assim, é
provável que, de fato, nenhuma modalidade religiosa possa pretender uma hegemonia dentro
- 93 -

do DF, embora apresentem diversas estratégias de visibilidade e reconhecimento social, que


vale a pena pesquisar em profundidade 18

18
Segato de Carvalho(1991) sita, para Buenos Aires, um número de Centros de Umbanda, cerca de 2.000, próximo ao citado
pelo Presidente da Federação dos Cultos afro brasileiros, em 1992, para Brasília. Num contexto social segmentado em evidentes
descontinuidades, a Umbanda vai se expandindo por valorizar distinções, reetnificando individualidades dispersas nas zonas
metropolitanas da América do Sul, tanto em Brasília quanto em Buenos Aires.
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CONCLUSÃO

As Casas de Santo podem ser vistas, segundo os conceitos de Turner(1976), como


um tipo de “Sociedades Especiais”. Estas precisam de muito empenho para manter uma
situação ritual de liminariedade necessária à manifestação da força simbólica de suas
entidades espirituais individualizadas em seus membros. Convivem permanentemente com o
risco de caírem numa liminariedade social ineficaz e mal vista, ou numa reprodução pura e
simples do jogo social convencional, com os mesmos valores em jogo.
Em Sociedades que diferenciaram-se internamente a ponto de formarem
civilizações, graças a uma divisão social de trabalho elaborada, instituições rituais temporárias
dão lugar a instituições permanentes, com atributos similares, que recriam em tempos e
espaços especiais, momentos de liminariedade, onde às estruturas simbólicas necessárias às
passagens dos ciclos sociais e às reparações das tensões podem se manifestar em sua
eficácia.
Devido a sua institucionalização permanente, contudo, tais Sociedades Especiais, que
são as sociedades e comunidades religiosas, muitas vezes terminam por se estruturarem tanto
que ao reproduzirem a estrutura social que as envolve perdem a possibilidade de operarem de
modo eficaz tais processos rituais.
Lewis(1977), por sua vez, afirmou que ao longo do surgimento das grandes
civilizações e das grandes religiões, o êxtase, a manifestação direta das forças espirituais,
características dos cultos primitivos, tende a ser substituído pelo ritualismo vazio das grandes
cerimônias.
A força simbólica do êxtase, todavia, reaparece continuamente, na maioria das
vezes em grupos sociais periféricos, subalternos ou minoritários, embora em outras situações,
como a verificada em Brasília, os cultos de possessão consigam ocupar um espaço social
legitimado.
Segundo Gilberto Velho (1994), atualmente pelo menos metade da população
brasileira é informada por culto religiosos onde o fenômeno de possessão é corrente, sejam os
carismáticos, os pentecostais, os kadercistas ou cultos afro-brasileiros. Tais cultos expressam
uma força simbólica ausente no cerimonial oficial da Igreja Católica Romana e a expansão de
tais cultos frente a retração evidente da autoridade eclesiástica romana é uma das
caracteristícas mais marcantes da vida religiosa brasileira contemporânea.
Velho(1994:11), observou que nas Sociedades Complexas o reconhecimento das
diferenças sociais é condição indispensável para a realização do social. A vida social se
manifesta na produção, vivência e reconhecimento de interesses e valores diferentes. As
relações com os espíritos, sejam antepassados ou guias espirituais, permite a construção de
identidades sociais num nível mais profundo e mais amplo do social, transcendendo a idéia de
identidade nacional, a tradição brasileira, para um nível propriamente extrafísico e
extramundano, como numa autêntica tradição subterrânea.
Velho deparou, em 1978, ao ver se formar uma fila de consulentes diante de um
Preto-Velho incorporado num anônimo senhor, numa rua de Copacabana, com uma singular
interação. Os médiuns, já que o Sr. incorporado fora assistido por três filhos de santo presentes
na multidão, e os clientes propriamente ditos, nivelados naquela fila, composta de membros de
origens e grupos sociais nitidamente diversos.
Foi uma sessão de consulta umbandista inédita que ocorreu de forma espontânea,
onde indivíduos modernos entraram em comunicação com àquela dimensão extrafísica que a
mediunidade opera. A partir dessa situação Velho pode perceber mecanismos e características
fundamentais da sociedade brasileira através de um quadro conceitual próprio de uma teoria
geral das sociedades complexas.
A partir da análise desse processo social Velho constatou que o individualismo
moderno metropolitano permite e sustenta novas possibilidades de trânsito e circulação
entre dimensões e esferas simbólicas. A crença em espíritos pode ser vista como uma
provincia de significados que estabelece uma possibilidade permanente de trânsito e de
transições através de um código viável para a comunicação entre planos e nivéis de realidade
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socialmente distintos. A própria existência social está condicionada a essas múltiplas


realidades, de tal forma que o processo de construção social da realidade incorpora totalmente
o indivíduo que está permanentemente se reconstruindo por entre essas passagens.
Paula Montero(1994:72) abordou o problema do hibridismo moderno e suas
contradições dentro da questão da crise da modernidade. Ela parte da constatação de que:
“A modernidade que se esboçou no País embora não tenha sido capaz de
constituir a Nação como um todo, já se mostra demasiadamente frágil enquanto utopia
para vir a construir uma sociedade à imagem das promessas que veiculava.”
Retomando o estudo das fronteiras religiosas no debate brasileiro numa
antropologia dos dilemas da modernidade, toma o estudo das representações religiosas como
campo de análise. Ela reconhece a armadilha da oposição generalizada entre a Razão
Ocidental e a irracionalidade da Magia, em termos de uma distinção entre Pensamento
Moderno e Pensamento arcaico. Perceber o crescimento das Religiões mágicas no Brasil como
sintoma do fracasso da modernidade expressa em primeiro lugar uma visão de mundo que
opõe a Razão Ocidental à tudo o mais, enquanto mágico, religioso, arcaico, tradicional,
irracional, pré-moderno.
Historicamente, a persistência de uma mentalidade mágica no povo brasileiro tem
sido vista como um obstáculo ao florescimento da modernidade e um entrave à emergência de
uma cidadania política verdadeiramente democrática. O moderno e o arcaico, de fato, mantêm
relações contraditórias e complementares na sociedade brasileira como em qualquer outra, já
que a modernização realiza-se na tensão dialética entre tradições modernizadas, com a
persistência de valores do passado tradicional.
O problema causado pela evidência etnográfica que parte da população brasileira
busca solucionar seus problemas através de um instrumental mágico, a partir de intervenções
tecnológicas de natureza simbólica eficaz, está, segundo Montero, em como a ação e a
mudança social no mundo moderno podem ser operadas por meio desta mesma noção.
O pensamento mágico e sua irracionalidade são apenas uma categoria analítica,
apresentando-se, etnograficamente, de diversas formas, perpassadas por valores e categorias
modernas. Concomitantemente a suposta crise da modernidade brasileira tem sido verificado
processos de racionalização dos processos mágicos, sugerindo a existência de uma
complementariedade entre ambas as tendências.
Ortiz(1991) já discutira como a Umbanda e a umbandização das práticas rituais
afrobrasileiras são um processo de racionalização, fruto da relação do kardecismo diante do
fenômeno da possessão por espíritos. Trabalhos recentes também tem demonstrado que
implícito na reafricanização dos candomblés há um processo de racionalização, assim como
uma democratização alternativa das lideranças rituais, na medida em que os cultos aos orixás
tornam-se uma religiosidade universalizada, não mais étnica e tão tradicional,
antropologicamente falando.
De acordo com essas evidências, Paula Montero também conclui que a ênfase das
preocupações sociológicas deve se voltar para como o pluralismo religoso é vivido no trânsito
dos fiéis, que realmente impõe um diálogo entre os diversos pólos tradicionais do campo
religioso brasileiro, levando-os a uma atitude relativizadora, por elaborar passagens e fronteiras
transitórias entre esses processos sociais.
A necessidade de relativização da Modernidade, por sua vez, e do projeto
modernizador é que tem exposto os fundamentos da percepção moderna da Magia e as
contradições próprias ao projeto moderno, estimulando uma reatualização dos valores pré-
modernos. Como explica Louis Dumont( 1985), em sua Antropologia da Modernidade, a
modernização realiza-se, no plano cultural, através de uma complementação de origem
tradicional, que permite a emergência das “variâncias nacionais”.
O que Paula Montero aponta com precisão é como o campo religioso brasileiro
apresenta-se com o palco de uma luta política particular. A um Deus universal e transcendente
a qualquer crença particular há o reconhecimento amplo de diversos interlocutores que o
operam a partir de uma lógica concorrencial comum a todos. Há um relacionamento social
intenso e contraditório, com o estabelecimento de redes de solidariedade, competição ,
alianças e disputas entre conjuntos de crenças, reflexões e vivências rituais, que estabelecem
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um espaço religioso democratizado frente a hierarquização tradicional da Igreja Católica


Romana.
Tal espaço religioso democratizado, que Brown, Montero e Velho apontaram e
discutem, a partir de suas reflexões sobre o universo umbandista, corresponde ao que
denominei do Espaço religioso da Capital Federal, sintetizado no ecumenismo espiritualista
da Legião da Boa Vontade e das diversas instituições religiosas que caracterizam a vida
mística de Brasília.
Tal proximidade comprova o quanto o campo religioso da nova capital do Brasil é
uma dimensão social privilegiada para a compreensão dessa questão da vida moderna e como
os informantes contactados são mediadores privilegiados entre planos hierarquizantes/holistas
e igualitários/individualizantes da sociedade brasileira contemporânea.
Velho(1995) discute que a Modernidade leva a um limite a característica das
Sociedades Complexas com relação a sua constituição a partir da multiplicidade e
fragmentação de papéis e domínios sociais. Tal situação impõe o trânsito social entre
contextos destas duas ordens de valores, ao longo da rotina cotidiana da vida metropolitana.
Os líderes religiosos dos cultos espíritas e suas instituições religiosas, são, certamente,
especialistas no bom funcionamento desses trânsitos.
O problema central que nos debruçamos nesta reflexão veio a ser o debate em torno de
que a modernização da sociedade brasileira iria, de alguma forma, comprometer a existência
desses cultos espíritas afrobrasileiros, como vimos com Camargo(1961) e Bastide(1985).
Mesmo Reginaldo Prandi(1991, 1992), ao estudar a expansão dos Candomblés em São Paulo,
também interpretou o sucesso de tais cultos como expressão do insucesso da sociedade
brasileira em se constituir enquanto uma sociedade moderna, nunca como expressão e
característica singular desse processo de modernização.
Que a eficácia simbólica destas tradições religiosas seja influenciada pela pressão
modernizante da existência de um mercado religioso no Brasil, parece ser uma questão que
acompanha o desenvolvimento destas formas religiosas sem ser uma ameaça à sua
reprodução e existência. A história de tais cultos no Brasil é uma prova de sua convivência com
a modernização.
Epistemologicamente, enfatiza Louis Dumont(1985) a alteridade fundamental dentro do
pensamento antropológico, enquanto especialidade da Ciência Ocidental, está diretamente
relacionada a dicotomia Moderno:não-moderno ou Moderno:tradicional. Uma antropologia da
Modernidade toma esta relação como o seu objeto central. Tais alteridades são noções que
também revelam que a pesquisa antropológica e seus pesquisadores estão num dos pólos da
alteridade, buscando compreender o outro, como é o caso do estudo dos cultos espíritas
afrobrasileiros
A idéia de Tradição cultural brasileira relaciona-se à idéia de Identidade Cultural,
segundo os valores modernos que fundamentam tais noções, conforme Louis Dumont(op.cit)
as discutiu. A noção analítica do social enquanto totalidade, tal qual definida por Durkheim e
Mauss em seus conceitos e utilizada também com referência à Cultura, não corresponde à
idéia moderna de Nação e Cultura Nacional.
Louis Dumont discutiu a dialética existente entre Nacionalismo e Individualismo na
Modernidade. Definiu a Civilização Moderna enquanto uma experiência social singular em seus
valores individualistas essenciais, já que se baseia na Noção do Indivíduo como o valor
supremo. Dumont afirma que a noção de Totalidade contida na idéia de Nação é a de um
indivíduo coletivo ao invés de um todo não individualizável, fundado sob um sistema de
relações sociais.
Tal quais os indivíduos, as Nações deveriam ter um caráter próprio, que as distinguisse
das demais, não só no plano econômico, o plano mais caracteristicamente moderno,
inteiramente construído sob os princípios individualistas, mas também no plano cultural. Tal
individualidade cultural seria a Tradição Nacional, por excelência.
Compreender esta questão, como as diversas instituições religiosas estão articuladas a
essa totalidade social que queremos imaginar, enquanto a Sociedade Brasileira e sua Cultura é
o tipo de desafio que a antropologia contemporânea tem enfrentado.
- 97 -

Dumont afirma, contudo, que devido as suas singularidades, mesmo nas sociedades
modernas mais avançadas os valores individualistas convivem no plano ideológico com alguma
coisa que nada tem a ver com o que é definido como Moderno, resíduos, para usar sua
terminologia, que são necessários a própria manutenção da vida social, sob os princípios
individualistas universais.
O mundo ideológico contemporâneo é fruto de uma interação de culturas que já dura
200 anos, caracterizadas, muito mais, por ações e reações do individualismo e de seus
contrários. Toda Sociedade moderna seria, como define Dumont um Híbrido moderno, inclusive
a sociedade brasileira e suas casas de santo.
É por que se situam exatamente nessa dimensão híbrida, ambígua e contraditória, que
as casas de santo se expandem junto com a Modernização do País e não apesar dela ou em
função de seu fracasso. Estamos diante de dimensões da vida social que o processo histórico
da modernização brasileira tentou negar mas terminou por reincorporar dentro de sua dinâmica
própria.
Quando afirma-se que essas lideranças religiosas são poderosos e eficazes
intermediadores sociais isto significa reconhecer que eles aproximam, unem e separam planos
e pessoas distintas, negociando simbolicamente, situações sociais contraditórias. Os membros
de suas casas e seus clientes estão constantemente se submetendo as provas dessa eficácia
tanto quanto pondo-a à prova, nesses processos rituais que operam expressões de
ambigüidades sociais, cuja manipulação é própria aos especialistas religiosos.
Tal vida ritual é uma atualização simbólica de estruturas sociais e é decisiva para a
compreensão da vida social. Autores como Turner(1976) e Douglas(1976) discutiram que os
processos rituais procuram superar conflitos sociais estruturais, que são as expressões das
ambigüidades próprias à estrutura social, que sempre irrompem na vida coletiva de qualquer
lugar. Tal capacidade, inerente ao universo religioso, que opera as ambigüidades e indefinições
sociais, não deixa de fazer sentido perante as demandas da vida individualista moderna.
Quando estamos tratando desse tipo de fenômeno, que são os processos rituais, a
própria compreensão do conceito de Cultura como um processo social faz-se necessária. Para
Radclife-Brown(1973) a Cultura é fundamentalmente um Processo. Os processos culturais
são aqueles pelos quais a conduta social estabelecida é transmitida. São meios culturais de
reprodução, atualização e mudança dos valores que estruturam a vida social.
Por Processo Social Radclife-Brown compreendia o modo de vida de um local num
determinado tempo, composto pelas regularidades encontradas no seio de sua diversidade
cotidiana, os seus aspectos gerais significativos. Tais regularidades são verificáveis nas
relações sociais em questão. As relações sociais são padronizadas, controladas por normas
regras e padrões. Leis, Moral e Religiões são maneiras de controlar a conduta humana, através
do estabelecimento de sanções, suplementares e combinadas de modos diferentes em cada
sociedade específica.
É preciso voltarmos a Emile Durkheim(1989) e às suas referencias a respeito das
relações entre Religião e Sociedade para podermos situar definitivamente a questão da
eficácia simbólica da vida ritual de tais modalidades religiosas presentes num contexto social
modernizado. O que a Religião constrói, segundo ele, são imagens da sociedade em todos os
seus aspectos. Ela é sempre um ideal sobreposto ao real. A manutenção da sociedade exige
que alguma coisa de ideal sirva de referencia a criação e recriação da vida social. O ideal
social faz parte da sociedade real e é atualizado ritualmente.
Isto não significa que a Religião, ou suas manifestações, seja a Sociedade ou suas
relações num outro plano. Durkheim explicitou a distância considerável que há entre as coisas
sagradas que representam a sociedade e a sociedade como ela é objetivamente. Sendo assim,
idéias-valor como ‘A força mística de Brasília”, podem ser compreendidas como a
representação, por excelência, de uma sociedade brasileira ideal, distinta da existente de fato,
com todas as suas incoerências, imperfeições, injustiças e contradições.
Por estarmos diante de uma sociedade moderna e histórica, tal sociedade ideal só pode
fazer sentido projetada para o futuro, enquanto uma construção social, uma realização de um
destino ideal através do planejamento moderno. Enquanto resultado de um projeto ideológico
de construção de um centro político, ao mesmo tempo síntese e cerne da sociedade, resultante
- 98 -

e origem de uma nação a ser rigorosamente consolidada no futuro, a mística de Brasília


encarna e representa a força simbólica do social frente a realidade construída objetivamente.
Como tal, este projeto só pode se manter, simbolicamente, através de crenças e
práticas propriamente religiosas, que interagem com os processos políticos que o realizam. Por
isso é possível afirmar que a idéia-valor da Nova Era aproxima, metonimicamente, o futuro
ideal do presente real, através de práticas propriamente religiosas.
É possível concluir, diante desta mística da nova capital, que há em Brasília a
construção de uma visão de sociedade que é propriamente religiosa, enquanto aquelas
questões propriamente culturais, como o sincretismo, parecem estar sendo mantidas
subordinadas às questões propriamente políticas de sua vida social.
É preciso trazer esta discussão para planos mais gerais. Gerard Lenclud(1986) e Luís
Tarley de Aragão(1981) discutem a pretensão do pensamento antropológico em compreender
a unidade do gênero humano nas suas determinações sociais. Em sua ambição última, a
Antropologia viria a ser não uma ciência social, distinta da Sociologia e da Política, mas a
Ciência Social por excelência, capaz de compreender fenômenos sociais gerais a partir de
qualquer realidade particular, por mais específica e singular que esta venha a ser.
Toda Teoria Antropológica vem sendo construída numa perspectiva onde dois tipos
contrastivos de sociedade se distinguem. Sejam Selvagens:civilizados; Primitivos:civilizados;
Sociedades Tradicionais:sociedades modernas ou Sociedades Simples: Sociedades
complexas, que não traduzem conteúdos analítico-cognitivos coincidentes, vale frisar, é esta
pretensão que está fundamentando tais estudos e não simplesmente o desaparecimento das
sociedades selvagens e isoladas.
O que é preciso considerar é que a diversidade das sociedades humanas não pode ser
reduzida a tipos e classes tanto quanto o domínio da Antropologia não pode ser reduzido a um
tipo de sociedade, ou a um tipo de objeto, com limites precisos e rigorosamente definidos. A
divisão básica entre sociedades é um instrumento conceitual e não uma discriminação de
realidades sociais. São tipos idealizados utéis ao raciocínio, e não uma classificação de
sociedades concretas, o que o significado desses conceitos estabelece.
É necessário, por isso mesmo, que se mantenha uma atitude de evitamento de
excessos frente a essas classificações dicotômicas, como Centro:periferia e
Tradicional:moderno, e de privilegiar as passagens e mediações que existem entre os
diferentes tipos sociais variáveis, a partir do exemplo de agentes sociais como os considerados
aqui.
O objeto que analisamos, diferentes associações religiosas possuindo pontos
comuns muito gerais, que distinguem-se umas das outras e sob diversas formas
relacionam-se com a vida política da capital federal, dentro de um horizonte simbólico
intercambiável, exige tal posicionamento metodológico.
Embora a oposição entre a idéia de civilização ocidental oposta aos povos tribais tenha
sido uma alteridade facilmente definível, nossa análise volta-se para um conjunto de
alteridades que envolvem grupos sociais que se distinguem dentro de algum universo social
comum, no caso a sociedade brasileira atualizada em Brasília Essas alteridades intra-sociais
estão inseridas na constituição desses conjuntos complexos de grupos e papéis sociais
diferenciados e integrados num sistema social mais abrangente que as contém.
As questões principais do conceito de Sociedade Complexa estão diretamente ligadas
ao desafio de como poder falar, de fenômenos sociais modernos, como urbanização,
metropolização, individualismo, a partir de categorias analíticas criadas no contexto de
pesquisa junto à sociedades tribais, como, Parentesco, Grupo doméstico, filiação, Rito, Mito e
Estrutura simbólica, por exemplo. Analisando estes conceitos, Aragão(1981) demonstrou que o
princípio organizativo em questão está fundado em fenômenos essencialmente morfológicos ou
relacionais, sob os fatos sociais, ou seja referem-se a organização da vida social.
Não é tanto o tamanho da sociedade que determina sua distinção mas os tipos e
números de papéis sociais com suas características e distinções intrassociais, que definem a
passagem de um universo morfológico a outro. O que irá caracterizar a passagem de um tipo
de sociedade a outro vem a ser, então, a possibilidade de uma multiplicidade de papéis e
relações sociais à disposição de um agente social particular.
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O campo de relações amplia-se com a crescente autonomização dos atores sociais.


Essa passagem é que se associa fundamentalmente aos movimentos históricos ligados ao
surgimento do Estado, a Urbanização, as Classes Sociais, ao Desenvolvimento Tecnológico e
da conseqüente evanescência do sistema de parentesco como categoria definidora das
relações sociais e estruturadora do social. Essa é a Complexidade traduzida pelo conceito das
Sociedades Complexas , uma estrutura social formada por um complexo de papéis sociais
disponíveis a um conjunto de pessoas, em diferentes contextos históricos particulares.
Mary Douglas(op.cit) discute que no caso das sociedades complexas, Progresso e
Modernização significam fundamentalmente diferenciação. Por isso temos também
diferenciação na esfera ritual, com o surgimento de todas essas comunidades permanentes e
institucionalizadas. A maior distinção entre primitivos e modernos, senão o abismo, que
Douglas expõe é que, nesse campo específico, as sociedades mais simples, por serem pouco
diferenciadas, trabalham com um campo de ação simbólica que é unificado, o que faz com que
o universo total de experiências ordenado seja simbolicamente congruente.
Na Sociedade Moderna o que o avanço tecnológico produz historicamente é uma
crescente diferenciação em todas as esferas. Essa diferenciação atinge a constituição dos
processos rituais. A experiência social fragmenta-se apresentando-se sob vários conjuntos de
ritos, em muitos pequenos submundos, não imediatamente relacionados que impedem a
existência de um só poderoso conjunto de símbolos em operação.
Sendo assim, para que seja possível a compreensão de um complexo sistema
social como o em operação atualmente em Brasília é necessário reconhecer que suas relações
significativas terminam sendo expressas numa diversidade de dramatizações rituais, de tal
maneira que se faz necessário mencionar os “muitos rostos” da nova capital brasileira, para
uma aproximação possível de sua totalidade.
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