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Religiões No Brasil Dos Anos 1950: Processos de Modernização e Configurações Da Pluralidade

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Religiões no Brasil dos anos 1950: processos de modernização e

configurações da pluralidade1

Religions in Brazil in the 1950s: modernization processes and plurality


configurations

Emerson Giumbelli

Resumo
O objetivo deste texto é reunir uma série de registros – em geral, resultados de pesquisas
nas áreas da história e das ciências sociais – que permitem esboçar uma topografia do
campo religioso no Brasil nos anos 50 do século XX. Enfatiza-se a consideração da
pluralidade de expressões, tratando-se de seguir as suas reconfigurações na década em
questão. Outra preocupação é apontar as conexões entre o que se passa no campo
religioso e o tema mais geral da modernização, a fim de se assinalar alguma sintonia. Ao
fazê-lo, vislumbra-se assim uma certa importância da questão religiosa dentro do
panorama da época. Além de campo religioso brasileiro, outra noção orientadora é a de
modernidades múltiplas ou alternativas.
Palavras-chave: Campo religioso brasileiro; Modernização; Década de 1950.

Abstract
The aim of this paper is to bring together a series of records – resulting in general from
researches in the areas of History and Social Sciences - which enable the outlining of
Brazilian religious field‟s topography in the 1950s. A consideration of the plurality of
religious expressions is focused on, trying to follow their reconfigurations in that decade.
Another concern is to point out the connections between what goes on in the religious
field and the more general theme of modernization. In doing so, the paper searches to
demonstrate the importance of the religious issue in the panorama of the time. Besides
the Brazilian religious field, another guiding concept is that of multiple/alternative
modernities.
Keywords: Brazilian religious field; Modernization; the 1950s.

O objetivo deste texto é reunir uma série de registros – em geral,


resultados de pesquisas nas áreas da história e das ciências sociais – que
permitem esboçar uma topografia do campo religioso no Brasil nos anos 50 do
século XX, com a preocupação de captar as suas características mais relevantes.
Nessa perspectiva, é essencial a consideração da pluralidade de expressões –
feição que se faz presente desde longa data nas terras tupiniquins – tratando-se

*
Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da UFRGS; Autor de O Cuidados dos Mortos: uma história da condenação e legitimação do
espiritismo (1997). Email: emerson.giumbelli@yahoo.com.br

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de seguir as suas reconfigurações na década em questão. Até onde pude saber,


não temos à disposição um levantamento dessa abrangência. Outra preocupação
é apontar as conexões entre o que se passa no campo religioso e o tema mais
geral da modernização, a fim de se assinalar alguma sintonia. Ao fazê-lo,
vislumbra-se, assim, uma certa importância da questão religiosa dentro do
panorama da época – desde que se considere que a religião não simplesmente
reflete algo que se encontra fora dela, mas participa dessa realidade mais ampla.
Embora algumas menções sejam feitas a acontecimentos internacionais, o foco
predominante é o panorama nacional.

Detenhamo-nos, antes de começar nossa incursão, nos dois principais


temas que a guiam, abordados em uma perspectiva basicamente antropológica.
O primeiro é a noção de “campo religioso”. Minha aproximação é herdeira das
reflexões de Fernandes (1984), na medida em que pensa os polos do erudito e do
popular na forma de uma oposição complementar, que permite considerar tanto
as tensões quanto as complementaridades entre aqueles polos. A existência de
movimentos circulares e a produção de interdependências fazem parte do mesmo
quadro. Minha abordagem também é herdeira das elaborações de Sanchis
(1995), que procuram enfatizar dois pontos: a apreensão da diversidade que
constitui o campo religioso no Brasil e a percepção de conexões que articulam o
que lhe é externo e o que lhe é interno. Para traduzir esse conjunto de
inspirações, utilizo uma metáfora geográfica – pois reconheço que me mantenho
no plano das superfícies.

O outro tema é o da modernização. Nesse caso, vinculo a incursão aqui


apresentada às noções de modernidades múltiplas (Eisensdadt, 2002) e de
modernidades alternativas (Velho, 2007). Ambas as noções, na maneira como as
entendo, estão comprometidas com deslocamentos tanto no plano dos resultados
quanto dos procedimentos da análise. Quanto aos resultados, a conclusão a que
podemos chegar ao final do percurso é a da relevância da religião como parte da
realidade pela qual passa a compreensão do Brasil, no período enfocado. Quanto
aos procedimentos, a consideração da religião tem como efeito a articulação entre
esferas que outras análises, mais tradicionais, evitariam fazer. É o caso dos polos
privado e público. A alternativa ou a multiplicidade consiste exatamente em
encontrar os caminhos por meios dos quais podemos pensar a constituição da
modernidade em contextos historicamente específicos.

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1. O imenso catolicismo: movimentações, embates e crises

Uma boa indicação da importância da religião envolvendo a presença do


Brasil em um cenário internacional foi a premiação no Festival de Cinema de
Cannes, no começo da década de 60, concedida ao filme O Pagador de
Promessas. Note-se que embora o filme tenha sido lançado em 1962, baseia-se
em texto de Dias Gomes encenado no teatro pela primeira vez dois anos antes, de
modo que se pode ver nele se expressarem questões já presentes na década de
50. A história tem como pano de fundo as condições da população rural e a sua
migração para as cidades, questões candentes da época. Mas seu tema imediato
é mesmo a questão religiosa. Zé-do-Burro vê seu animal de carga se restabelecer
após um pedido realizado em um terreiro de candomblé no interior da Bahia e
segue, carregando uma cruz, para a capital a fim de pagar a promessa em uma
igreja católica. A recusa do padre em Salvador detona um conflito que traz uma
série de desgraças a Zé-do-Burro, e é só morto que ele consegue entrar na igreja
com sua cruz. O conflito explicita as diferenças de interpretação e de vivência
religiosas entre o trabalhador rural e o padre urbano, ambos envolvidos em um
jogo de poder: o sacerdote fecha a igreja depois de ouvir as “confusões” que Zé-
do-Burro fazia entre catolicismo e candomblé, mas isso não impede que o templo
seja ao final invadido por uma multidão que representa o povo das ruas.2

Narrado dessa forma, o filme aponta para a situação do catolicismo


naquele momento da história brasileira: dominante e ao mesmo tempo
ameaçado. Assim, por um lado, o catolicismo tem assegurada sua posição
hegemônica. Ele começa a década de 50 com o confortável índice de 94% de
adeptos entre a população; dez anos depois, esse percentual pouco mudou.
Outros dados: em 1950, 75% dos estudantes de 2º grau haviam estudado em
escolas católicas; em 1960, a Igreja Católica detinha o controle de 60% das
escolas secundárias e 30% das escolas superiores.3 Sua força social e sua
proximidade com o Estado podem ser sentidas na inauguração da nova capital
nacional. Na missa celebrada na moderna catedral, situada ainda no centro da
cidade, o legado pontifício podia proclamar: “Nasceu cristão o Brasil. Foi em
Porto Seguro o seu batismo (...). E foi com o sinal da redenção do homem, cujo
nome é o mesmo nome do Brasil que Brasília foi levantada. Não afirmou o seu
arrojado planejador que a base da concepção da cidade foi „o próprio sinal da
cruz‟?” (apud Isaia, 2003, p. 250-1). Outra demonstração de prestígio pôde ser
assistida cinco anos antes, quando o Rio de Janeiro ainda era capital federal e ali

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se realizou o 36º Congresso Eucarístico Internacional. Com o apoio de Getúlio


Vargas e doações de empresários, o evento culminou com uma procissão em
homenagem à Nossa Senhora Aparecida, padroeira nacional, seguida de
celebração da qual participaram aproximadamente um milhão de pessoas (Piletti
e Praxedes, 1997).

Força, poder e prestígio, portanto, sustentados pela adesão ao menos


nominal da quase totalidade da população (o que se expressava, por exemplo, no
caráter praticamente obrigatório de rituais como batismo e missa de sétimo dia) e
por discursos que insistiam nas permanências (sobretudo, na continuidade entre
passado e presente). O quadro, porém, não pode levar a desconsiderar suas
dívidas com certas mudanças ocorridas no interior da Igreja Católica e a
variedade das vivências religiosas entre seus fiéis. Entre as mudanças, deve-se
lembrar os investimentos que reforçaram a estrutura institucional da Igreja
desde o final do século XIX, tanto no campo estritamente religioso quanto na
esfera da atuação na sociedade. São essas mudanças que explicam, em parte, as
diferenças entre o que ficou conhecido como catolicismo rústico – de sentido
mais cosmológico, centrado na devoção a santos tradicionais e no calendário de
suas festas, dispensando muitas vezes os representantes eclesiásticos,
predominante nas regiões rurais – e um catolicismo urbano de massas, mais
voltado para a construção de sentido de biografias individuais, que assimilou
novas devoções ao lado das antigas e cujas práticas sacramentais, ainda que
esporádicas, orbitavam em torno das paróquias.4

Além disso, ao lado das demonstrações e dos índices de hegemonia, havia


o sentimento de uma crise. A morte do Cardeal Sebastião Leme, em 1942, foi
sentida fortemente pela Igreja Católica brasileira, com a perda da figura que foi
seu emblema, sobretudo na restauração de uma relação positiva com o Estado e
na afirmação da dominância social de sua religião. Seu substituto, D. Jaime
Câmara, não demonstrou as mesmas qualidades. Em outro plano, a crise se
formulava nos termos do “problema das vocações” que não acenava com
nenhuma solução imediata para o déficit de sacerdotes. Alertava-se ainda para o
crescimento de outros cultos e para a tibieza da devoção entre os próprios
católicos. Mas segundo um analista, a crise de liderança e a crise na base
seriam, na verdade, sintomáticas de um problema mais estrutural. Para ele, o
que a Igreja Católica no Brasil sofria era um certo descompasso entre um
discurso que recusava a secularização e uma sociedade que passava por

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profundas mudanças: “Modernizou as estruturas institucionais, aprofundou sua


influência e trocou sua aliança primordial com os proprietários rurais por uma
aliança com a burguesia urbana e com a classe média, mas sem modificar
realmente seu conteúdo” (Mainwaring, 1989, p. 53).

Alguns acontecimentos importantes que ocorrem na década de 50 podem


ser vistos como resposta a esse sentimento de crise. Do lado eclesiástico, tem-se
a criação em 1952 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, destinada a
cumprir formalmente o papel que o Cardeal Leme desempenhara na prática até
sua morte. A CNBB tinha então como tarefas mobilizar especialistas que
auxiliassem os bispos na discussão de problemas, animar as pastorais que
atuavam na sociedade e ser instância de relação com o Estado. Voltada para os
leigos, tem-se o fortalecimento da Ação Católica, um movimento que já existia e
que foi reorganizado em 1947 de modo a dividir a sua atuação em três esferas: a
estudantil, a operária e a agrária. Dessa movimentação, que se consolida ao
longo da década de 50, se destacam a Juventude Universitária Católica (JUC) e a
Juventude Operária Católica (JOC), cujas trajetórias serão marcadas pela
incorporação de preocupações sociais e pelo distanciamento em relação às
instâncias eclesiásticas. JUC e JOC se tornarão, assim, um berço importante de
formação de militantes politicamente progressistas. Já em relação à questão
agrária, vai ocorrer uma colaboração entre Igreja Católica, sindicatos rurais e
Estado para a promoção de reformas de base.

Tanto a CNBB quanto os movimentos leigos são o palco para uma disputa
que se colocou no interior da Igreja Católica entre duas concepções distintas de
relação entre religião e sociedade. De um lado, havia aqueles que propunham
inovações para insistir no combate à secularização, defendendo que a sociedade
deveria estar orientada pelos princípios cristãos. Nessa chave, a prioridade da
Igreja deveria ser o aprimoramento espiritual dos indivíduos pela missa, pelos
sacramentos e a defesa da moral católica na vida familiar e social. Os
movimentos leigos deveriam funcionar como uma extensão da hierarquia. De
outro lado, havia aqueles que propunham inovações por reconhecerem que a
Igreja seria parte do mundo; sua responsabilidade nesse mundo seria lutar por
uma ordem social justa em termos não apenas religiosos. Admitiam ainda maior
autonomia do leigo para realizar a missão social da Igreja. Tal disputa prefigura e
anuncia a oposição entre “conservadores” e “progressistas” que mais tarde
caracterizaria os embates internos à CNBB e mesmo ao clero brasileiro em geral.

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É importante não exagerar a cisão sugerida por essa disputa. D. Eugenio


Sales, conhecido por suas posturas “conservadoras”, projetou-se inicialmente por
conta de uma iniciativa em Natal, no final da década de 40, que inspiraria, em
1961, o Movimento de Educação de Base. Um acordo entre a CNBB e o governo
federal multiplicou um sistema de ensino através do rádio que se tornou
instrumento para alfabetização e estimulou a formação de sindicatos na zona
rural. Quanto aos posicionamentos “progressistas”, note-se que sempre
enfatizaram a colaboração com o Estado – e não o conflito – e que estiveram
sintonizados com a ideologia predominante do desenvolvimentismo. Observe-se
ainda que um dos principais incentivos para a atuação social engajada era a
competição com as iniciativas inspiradas no comunismo, visto pelos eclesiásticos
como um grande perigo. Lembremos, por fim, que a existência de posturas
“progressistas” não foi suficiente para afastar desde o início a Igreja Católica do
regime inaugurado em 1964 e nem para mantê-la na sustentação aos
movimentos leigos que optaram por uma maior politização.

Se há um personagem individual do universo católico que merece ser


destacado no panorama dos anos 50, ele é sem dúvida D. Hélder Câmara.
Hélder, que se tornaria referência fundamental do progressismo, participa em
Fortaleza, onde se dá sua formação eclesiástica, do movimento integralista local.
Chega ao Rio de Janeiro em 1936, com trinta anos e ainda com laços com o
integralismo, de que se afasta sob a influência de pensadores franceses que
propunham um catolicismo renovado e democrático. A década de 50 marca sua
ascensão definitiva: em 1952 é sagrado bispo e três anos depois torna-se
arcebispo auxiliar da Arquidiocese carioca. No Rio, organizou a Cruzada de São
Sebastião (1956) e o Banco da Providência (1959), duas iniciativas com fins
assistenciais. Mas teve também importância mais ampla: foi um dos principais
articuladores da CNBB e foi seu secretário-geral desde a data da fundação até
1964. Esteve à frente da organização do Congresso Eucarístico Internacional em
1955. Por vários anos, desde 1953, ocupou assento no Conselho Federal de
Educação. Organizou as conferências dos bispos do Nordeste (1956 e 1959),
marcantes por seus posicionamentos na questão agrária e pela participação de
JK, de quem, aliás, D. Hélder era conselheiro informal. Vale ainda notar que D.
Hélder cultivou a relação com os meios de comunicação de massa, mantendo
programas na TV e no rádio.5

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Para encerrar o comentário sobre o catolicismo, volto a me referir à relação


com outros cultos. O ecumenismo ainda não era postura predominante – algo
que só vai mudar com o Concílio Vaticano II na década de 60 – e essa relação
assumia a postura do combate. Isso valia para os protestantes, associados aos
Estados Unidos, de onde a própria Igreja Católica vai trazer missionários e
recursos para fortalecer a sua oposição. Um intelectual católico assim explicava o
apelo protestante: “curiosidade supersticiosa, o sentimentalismo doentio de
nossa gente, a necessidade de buscar meios de cura mais baratos, e mais
garantidos” (Kloppenburg, apud Mainwaring, 1989, p. 54). Mas o ataque era bem
mais enfático em direção aos cultos mediúnicos, cujos frequentadores em geral
se misturavam aos adeptos do catolicismo. Em 1953, a CNBB anuncia a
“Campanha Nacional contra a Heresia Espírita”, mesmo ano em que se cria a
Seção Anti-Espírita do Secretariado Nacional de Defesa da Fé e da Moral.
Vejamos o que o diretor dessa seção pergunta no artigo “O alarmante
crescimento do baixo espiritismo”, também de 1953: “Mas porque a polícia
continua a registrar e legalizar estes antros de superstições, intoxicação e
mistificação que levam tanta gente às praticas bárbaras de verdadeira idolatria e
paganismo, e também ao manicômio?” (apud Ortiz, 1978). E vejamos ainda um
trecho da pastoral do arcebispo de Salvador divulgada em 1950, que protesta
contra os candomblés locais, pedindo restrições “em nome de nossa
Constituição, em nome da higiene moral e da sanidade mental de nossa gente;
(...) pela Bahia branca e altiva, como Nosso Senhor a fez, e não por uma Bahia
negra e politeísta como procuram apresentá-la nos terreiros de candomblé, irmão
gêmeo da escravidão africana” (apud Isaia, 2003, p. 245). Em São Paulo, há
indícios que apontam a interferência do arcebispo local dificultando o registro de
terreiros de umbanda nos cartórios civis (Negrão, 1996, p. 82). Percebe-se aí,
com a solicitação de restrições legais, a dificuldade dos eclesiásticos católicos em
reconhecerem a convivência com outros cultos, caracterizados de maneira
amplamente pejorativa e ao mesmo tempo vistos como ameaçadores.

2. Os protestantes, sobretudo pentecostais: transformações e inovações

Mas então, sob outro olhar, o que dizer das dimensões e como caracterizar
esse universo que a Igreja Católica via como ameaçador? Primeiramente, uma
observação sobre as estatísticas existentes. Nos censos oficiais, há uma lacuna

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com a ausência de dados sobre adesão religiosa nos anos 1910, 1920 e 1930. Os
dados referentes aos anos 1940, 1950, 1960 e 1970 utilizam as categorias
(mencionarei aquelas cujos percentuais são maiores que 1%): católicos,
protestantes e espíritas. Não se tinha, portanto, informações mais específicas
sobre as variedades dos cultos protestantes e a denominação “espírita” cobria
boa parte das práticas mediúnicas. Outras estatísticas oficiais contavam com as
informações fornecidas pelos templos nesses três universos, mas não tiveram
continuidade para além das décadas de 50 e 60. Mesmo com muitas limitações,
os dados apontavam um aumento do universo não católico. Era possível, por
exemplo, afirmar que entre 1950 e 60, os protestantes cresciam 62%, enquanto a
população em geral crescera 35%. Estatísticas mais circunscritas davam maior
razão aos alertas católicos, como dados sobre favelas cariocas de 1958,
apontando 83,5% de católicos, 8,1% de protestantes, 6% de espíritas e 2,4% sem
religião (Camargo, 1973). Mesmo um recorte dos dados censitários já produzia
impressão semelhante: enquanto os espíritas eram 1,6% da população brasileira,
chegavam a 3,25% da população paulistana e 5,2% da população carioca. As
pesquisas de Negrão (1996) junto a registros de cartórios mostram um
movimento impressionante de criação de templos de umbanda nas décadas de
50, 60 e 70.

Adentremos então esses universos que não estavam cobertos pelo


catolicismo. Em relação ao protestantismo, pode-se destacar o dinamismo e as
inovações que percorrem a vertente pentecostal, marcada pela afirmação da
atualidade da ação do Espírito Santo, o que resultava em cultos mais emotivos e
espontâneos e em ênfase sobre a ocorrência de milagres. O pentecostalismo está
presente no Brasil desde a segunda década do século XX, com a criação das
primeiras Assembleias de Deus e da Congregação Cristã do Brasil. Vários dados
confirmam a força dessa vertente no protestantismo brasileiro de meados do
século. Entre 1956 e 61, enquanto as denominações protestantes pentecostais
crescem entre 50 e 70%, esse índice entre as denominações protestantes não
pentecostais fica entre 10 e 20%. Um pesquisador estima que em 1964 65,2%
dos protestantes seriam pentecostais (55% em 1958, segundo outro
pesquisador); em 1930, eles seriam apenas 9,5%.6 Veremos em seguida duas
denominações pentecostais criadas na década de 50, mas, vale registrar, o
pentecostalismo demonstraria novamente sua força na década seguinte com a

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produção de cisões entre igrejas protestantes de origem não pentecostal, caso


dos batistas, dos presbiterianos e dos metodistas.

Fiquemos, porém, nos anos 50, quando podemos acompanhar o


surgimento de denominações que introduzem inovações em relação ao próprio
estilo de pentecostalismo que predominava anteriormente.7 Na origem dessas
inovações esteve a Cruzada Nacional de Evangelização, iniciativa de um
missionário americano, H. Williams, que chegara ao Brasil em 1946 e em 1953
percorre o estado de São Paulo, juntamente com um parceiro guitarrista e que
também havia sido ator em filmes de faroeste. Os cultos eram itinerantes,
ocorrendo em uma estrutura coberta por uma lona, dando-lhe a aparência de um
circo. A proposta não era denominacional, mas acabou dando origem a uma filial
brasileira da Igreja do Evangelho Quadrangular, à qual estava ligado Williams. A
ênfase da Igreja do Evangelho Quadrangular era sobre a cura religiosa inspirada
pelo Espírito Santo, o que já era uma inovação, pois nas versões anteriores de
pentecostalismo a preferência recaía sobre a glossolalia. A Quadrangular ainda
se destacou pelos cultos em lugares públicos (e não apenas em templos), pelo
abrandamento de alguns tabus comportamentais (característicos dos
pentecostais) e pela apresentação visual dos pastores (e pastoras, como era o
caso da própria fundadora da Igreja) mais moderna e urbana (em contraste com
o estilo rural das denominações anteriores).

Maior vulto teria a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo,


criada logo após, em 1955. Seu fundador, Manoel de Mello, era migrante
pernambucano, que se estabeleceu em São Paulo nos anos 40, onde trabalhou
como operário. Passou pela Assembleia de Deus e juntou-se à Cruzada Nacional
de Evangelização. Pouco depois, Mello, segundo ele mesmo em busca de “um
movimento com raízes exclusivamente brasileiras” (apud Freston, 1994, p. 118),
fundou a Brasil para Cristo em sintonia com o espírito nacionalista e populista
que predominava no período, “construindo um império religioso autônomo jamais
visto até então” no país (Freston, p. 117). Uma referência jornalística mostra que
Mello seguia à risca as inovações da Cruzada, parecendo um “santo de
cabeleiras, com ares de galã de cinema mexicano e o mais vulgar estilo
radiofônico, de programa de auditório” (Freston, p. 117-8). A Igreja alugava
espaços seculares como cinemas, ginásios e estádios, onde se promoviam curas;
em 1958, encheu o Estádio do Pacaembu. Em 1962, iniciou a construção de um
grande templo na capital paulistana, inaugurado só em 1979. Investiu muito em

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programas de rádio e seus líderes compareciam em programas de auditório na


TV. Ainda na década de 60, buscou envolvimento na política partidária com
discurso de crítica social.

Embora a trajetória da Brasil para Cristo não tenha confirmado o início


promissor, a sua criação era indício significativo da relevância que a religiosidade
pentecostal já tinha no país. Disputando espaço com o catolicismo nos estratos
populares, essa religiosidade não deixava de dialogar com ele para oferecer um
outro conjunto de referências, que privilegiava a Bíblia em uma linguagem
popular e contornava a Virgem e os santos para chegar à Trindade cristã. A
década de 50 marca a urbanização e a modernização desse pentecostalismo,
como pudemos notar pelas características cultivadas pelas igrejas que se criaram
naquela época. Primeira igreja pentecostal a ter fundador brasileiro, a Brasil para
Cristo sinalizava que não se tratava mais de religiosidade importada, abrindo
caminho para outras importantes denominações, também locais, nos anos 60,
como a Deus é Amor, e nos anos 70, como a Igreja Universal do Reino de Deus.
Ainda sobre a Brasil para Cristo, vale reiterar a ênfase nacionalista que lhe foi
conferida por seu principal líder: “Roma deu ao mundo a idolatria; a Rússia, os
terrores do comunismo; os Estados Unidos, o demônio do capitalismo; nós
brasileiros, nação pobre, daremos ao mundo o Evangelho” (apud Freston, 1994,
p. 118).

3. As vibrantes religiões mediúnicas: entre o espetáculo e as margens

A ideia de “Brasil, pátria do evangelho” já aparecera anteriormente no


título de um livro, da década de 30, que um médium espírita teria psicografado.
Seu nome: Francisco Cândido Xavier. De fato, o mineiro Chico Xavier, que em
2006 chegou a ser eleito por leitores de uma revista semanal como “o maior
brasileiro de todos os tempos”, começa a se tornar conhecido nos anos 30,
quando, mesmo com pouca escolaridade, publica seus primeiros livros
psicografados, entre eles Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. À essa
altura, o espiritismo de inspiração kardecista, importado da França desde o
século XIX, já fincara firmes raízes em solo brasileiro. Seu êxito associava-se à
articulação que promovia entre a atitude científica, proclamando-se como “fé
raciocinada”, que conquistaria adeptos e propagandistas nos setores
escolarizados, e as práticas terapêuticas, movidas pelo ideal da “caridade”, com

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apelo popular, o que lhe renderia frequentadores entre os menos favorecidos.


Isso não significava legitimidade plena, uma vez que o espiritismo, para muitos,
seguia sendo assunto de polícia ou de medicina. Outro ponto importante era sua
conexão reivindicada com o cristianismo, o que tornava sua relação com o
catolicismo algo difusa, oscilando entre a crítica aberta e a convivência desejada.

Chico Xavier contribui para conferir maior respeitabilidade ao espiritismo,


e nesse ponto a década de 50 pode ser vista como um marco em sua trajetória.
Segundo Stoll (2003), com sua fama de escritor já consolidada (mesmo assim,
entre 1947 e 1958, Xavier publicou em média três livros por ano), é nessa época
que se constroi sua faceta de médium carismático. A primeira biografia de Chico
Xavier é publicada em 1954. Nela, predomina o ideal cristão da santidade para
caracterizar a vida do médium, com ênfase sobre os temas do sofrimento, da
missão, do perdão e do afastamento do mundo. Referências católicas, sobretudo
São Francisco de Assis e Maria, estão fortemente presentes. O ano de 1958, além
disso, é quando Chico Xavier se estabelece em Uberaba, onde passaria o resto de
sua vida. Lá, dedicou-se a práticas de assistência social e a um tipo de
atendimento mediúnico que mobilizou caravanas de visitantes. O médium se
notabilizou por prestar consolo a pessoas que procuravam um contato com
parentes falecidos. Comunicava-se em linguagem popular e fervorosa,
destacando a importância da caridade e a concessão de graças divinas. Ao
mesmo tempo, publicou, em conjunto com o médico Waldo Vieira, dois livros em
1959 que utilizavam linguagem erudita – mantendo a articulação entre religião e
ciência, tão cara ao espiritismo.

Chico Xavier contornou em sua trajetória a dimensão mais polêmica do


espiritismo, a das práticas terapêuticas. Apesar disso, a década de 50 registra o
aparecimento – ou ao menos o amplo conhecimento – de uma nova modalidade
de cura. Trata-se das cirurgias espíritas, que consistem em incisões ou
manipulações operadas em um indivíduo por outro incorporado pela “entidade”
de um médico. Em meados da década, José Pedro de Freitas, mais conhecido por
Zé Arigó, modesto funcionário público de Congonhas, cidade mineira, começa a
atrair atenção pelas curas atribuídas ao espírito do “Dr. Fritz”. Zé Arigó foi então
processado e condenado pelo crime de curandeirismo, mas livrou-se da pena em
1956 graças a um indulto providenciado por JK, então presidente da República.
Continuou assim atendendo a doentes que afluíam a Congonhas em busca de
suas operações, até ser novamente condenado em 1964. Posteriormente, “Dr.

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Fritz” se serviria de outros médiuns para perpetrar novas aparições (Greenfield,


1992). O que interessa destacar dessa modalidade de cura é que ela ao mesmo
tempo propõe uma alternativa à medicina cirúrgica (pois o médium não precisa
ser um profissional e não há necessidade de um ambiente correspondente) e se
apresenta como uma reprodução do procedimento médico (em si e pela garantia
que presta a “entidade” incorporada) – ou seja, trata-se também de outra forma
de conciliar religião e ciência, tradição e modernidade.

A mesma conciliação estará presente em um núcleo religioso que se radica


nas proximidades da nova capital federal em 1970 e toma de Brasília inclusive
sua inspiração arquitetônica: a Ordem Espiritualista Cristã, mais conhecida pelo
nome do lugar que ocupa, o Vale do Amanhecer. Cultiva-se lá um sistema que
confere a seus adeptos vestimentas características que correspondem a funções e
graus dentro de uma sociabilidade espiritual. No plano das entidades que
ocupam um panteão repleto de divisões e de personagens, as figuras de destaque
são “pretos-velhos” e “caboclos” – que remetem para a cosmologia umbandista –,
mas também “médicos do espaço” – que lembra o que acabamos de ver no
universo do espiritismo kardecista. A duplicidade também se estabelece no par
formado pelo casal que respondia então pela liderança do grupo: de um lado, Tia
Neiva e suas visões místicas; de outro, Mário Sassi, que as registrava e as
organizava cumprindo a função de intelectual. É essa Tia Neiva que está nas
origens do novo culto, o que nos leva exatamente aos anos 50, quando ela,
migrante nordestina, caminhoneira, começou a ter visões de um índio que foi
identificado como Pai Seta Branca. Em homenagem a ele, Tia Neiva fundou em
1959 a União Espiritualista Seta Branca, sediada no Núcleo Bandeirante,
primeira cidade-satélite de Brasília, onde residiam os pioneiros que construíram
a nova capital (Galinkin, 1992). E assim se entrecruzavam os caminhos de uma
modalidade de espiritualismo e os da história nacional.

Mas certamente a modalidade de espiritualismo que mais se destaca nessa


década de 50 é a umbanda, com sua expansão acompanhando a explosão das
grandes cidades. Os dados mais expressivos são oferecidos por Negrão (1996) a
partir dos registros da criação de templos nos cartórios da cidade de São Paulo.
Considerando-se três períodos da série elaborada pelo pesquisador, percebe-se
claramente o crescimento da religião: entre 1945 e 52, a média anual de criação
de centros umbandista é de 10,6; entre 1953 e 59, ela salta para 136,5 e ainda
se elevaria mais, para 245,5, entre 1960 e 63. Esse crescimento era acusado em

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um editorial do jornal O Estado de São Paulo, que em 1958 pedia que “os 1500
centros de exploração da fraqueza humana instalados na Capital Bandeirante
devem ser impiedosamente eliminados em nome da civilização” (apud Ortiz,
1978). A situação era também promissora no Rio de Janeiro, e nesse caso o
melhor indício vem do acompanhamento da carreira de Átila Nunes. Jornalista e
bacharel em Direito, Nunes protagoniza o primeiro programa umbandista em
uma rádio em 1947, o qual se mantém pela década seguinte. Em 1958, é eleito
vereador; dois anos depois, torna-se deputado no estado da Guanabara.
Umbandistas já haviam tentado se eleger, sem sucesso, entre 1950 e 54. O êxito
de Nunes animará cogitações sobre a formação de um partido político
espiritualista no final da década.8

Quando a umbanda se institucionaliza no início dos anos 40, no Rio de


Janeiro, em torno do culto a caboclos e pretos-velhos, suas lideranças e
ideólogos preferiram apresentá-lo como uma modalidade de espiritismo (de
referência kardecista), indo procurar suas origens remotas na Índia ou no Egito
antigos. Em relação a isso, a década de 50 traz duas novidades. Primeiro, a
consolidação da reivindicação de ser a umbanda a única grande religião
autenticamente nacional. Tal argumento pode ser encontrado nos debates
ocorridos no II Congresso de Umbanda, realizado no ginásio do Maracanãzinho
em 1961, e também no título de um livro publicado em 1960, de José Álvares
Pessoa – Umbanda, Religião do Brasil. A outra novidade é o surgimento de uma
vertente de umbandistas que vão defender para sua religião uma orientação
africana. De um total de sete federações umbandistas que existiam no Rio de
Janeiro nos anos 50, três delas se formam em torno dessa defesa. Seu principal
propagador foi Tancredo da Silva Pinto, que escrevia regularmente no jornal O
Dia e publicou com Byron Torres de Freitas em 1956 o livro Fundamentos da
Umbanda. Para essa vertente, tratava-se de reconhecer as origens e elementos
africanos na umbanda e de estreitar relações com o candomblé e seu culto dos
orixás.

Quanto ao candomblé, o reconhecimento que havia adquirido em certos


lugares, sobretudo a Bahia, não podia ser generalizado para o país. Designado
muitas vezes com o termo pejorativo “macumba” (estendido frequentemente à
umbanda), não eram poucos os que viam nele uma incompatibilidade com a
civilização. Não espanta assim a polêmica causada pelas primorosas fotos
publicadas pela revista O Cruzeiro em 1951 que retratavam as cerimônias de

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iniciação em um terreiro baiano, incluindo o sacrifício animal. 9 Enquanto muitos


leitores viram nelas a comprovação dos aspectos bárbaros da religião, vários
adeptos criticaram a exposição de dimensões secretas do seu ritual. Mas havia
também sinais de mudança nessa relação entre candomblé e sociedade, como
anunciava a própria publicação das fotos, uma delas permitindo ver, atrás do
iniciando com o corpo pintado com as feições de seu orixá, um calendário com a
marca da Coca-Cola. Para captar algumas dessas mudanças, comento
brevemente a vida de um pai-de-santo, conhecido como Joãozinho da Goméia,
baiano que se radicou na Baixada Fluminense e que se transformou, nos anos
50 e 60, em uma figura pública.10

Dois aspectos merecem ser destacados a propósito de Joãozinho da


Goméia. Primeiro, ele foi ao mesmo tempo uma figura polêmica e um ponto de
referência dentro do candomblé. É impossível contar a história do candomblé no
sudeste brasileiro sem passar por sua presença. Por outro lado, muitos
questionavam a sua iniciação ainda na Bahia. O fato é que Joãozinho estava
ligado a uma modalidade de candomblé então considerada menos tradicional em
Salvador. Ela lhe permitia, por exemplo, manter o culto, além dos orixás, a um
caboclo. Ou seja, no mesmo momento em que umbandistas pretendiam se
aproximar do candomblé, vemos um pai-de-santo reconhecendo a importância de
elementos nativistas em seu culto africano. O outro aspecto interessante da vida
de Joãozinho era a relação cultivada com o mundo do espetáculo. O pai-de-santo
se apresentou publicamente, com danças e adereços que remetiam à sua religião,
em diversas ocasiões e espaços, inclusive boates e teatros. Chegou a ser
coreógrafo do Cassino da Urca. Em 1952, foi aclamado como “O maior bailarino
típico do país”. Manteve forte relação com a escola de samba Império Serrano,
onde desfilava. Em se tratando de carnaval, há um relato do ano de 1956, sobre
a presença de Joãozinho fantasiado de vedete em um baile. A homossexualidade,
aliás, era algo que o pai-de-santo não se preocupava em esconder.

Joãozinho da Goméia, portanto, trazia mudanças para o candomblé e ao


mesmo tempo obrigava a sociedade a reconhecer a sua existência. Por fim, vale
transcrever o relato de uma de suas filhas-de-santo, também pesquisadora, pois
ele sugere a existência de conexões entre uma religião marginalizada e os centros
do poder, colocando em cena, mais uma vez, personagens ilustres da história
brasileira:

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Havia em seu terreiro uma espécie de tribuna, destinada às


pessoas importantes, militares, prefeitos. E as recebia com toda a
pompa (...). Ele foi amigo do presidente Getúlio Vargas, que
perseguiu o candomblé. Oficialmente odeiam o candomblé e, por
trás, querem que o candomblé trabalhe a seu favor. O presidente
Kubitschek mandou chamar Joãozinho ao palácio presidencial (...)
Kubitschek sabia que a visita ao palácio de um mulato, um
homossexual afeminado, um pai-de-santo do candomblé daria o
que falar. Os gestos de Kubitschek tinham sempre um longo
alcance. Ele precisava de Joãozinho. Visava, com isso, à simpatia
da população negra do Brasil (apud Lody e Silva, 2002, p. 171).

Restaria saber se essas ligações são admitidas nas biografias das


personalidades acima citadas.

4. Considerações finais

A topografia aqui esboçada do campo religioso no Brasil de meados do


século XX começou e terminou com as duas referências que polarizam o embate
apresentado por O Pagador de Promessas – a Igreja Católica e o candomblé. O
que se procurou fazer foi acrescentar outros elementos ao quadro, a fim de
evidenciar a diversidade e a complexidade que o compunham. Ao mesmo tempo,
despontaram algumas conexões entre esses vários elementos. Considerou-se,
porém, mais importante sinalizar para os vínculos entre o campo religioso e
certos temas e acontecimentos que percorrem a história mais geral do país.
Percebeu-se, assim, como o nacionalismo é algo que marca presença em várias
expressões religiosas. E ficou sugerido que os diferentes segmentos religiosos
passam, de diferentes maneiras e com distintos resultados, por processos de
modernização. Nesse sentido, é possível afirmar que a ideia de modernização
aplica-se não apenas ao momento histórico geral pelo qual passa o Brasil, mas
também a vários movimentos no campo religioso, mesmo nos seus segmentos ou
aspectos mais tradicionais.

Vale detalhar esse argumento no que se refere à modernização. Ela se


aplica, no catolicismo, a formas devocionais, a invenções institucionais, a
clivagens políticas. Como procurei mostrar em outra ocasião (Giumbelli, 2008), a
ideia de um catolicismo modernizado faz sentido também para um momento
anterior, em torno da concepção e construção do monumento ao Cristo Redentor.
Neo-cristandade e modernidade não são noções que necessariamente se opõem.
No caso dos protestantes pentecostais, ocorre uma urbanização de estilos de

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religiosidade e comportamento, o que pode estar em sintonia com as levas


migratórias do campo para a cidade. Finalmente, em se tratando das religiões
mediúnicas, novas formas de presença na sociedade brasileira são
experimentadas, novas sínteses culturais são elaboradas, que permitem a tais
religiões frequentarem tanto as margens quanto os espetáculos. Talvez a imagem
que sirva de síntese à modernidade alternativa que vemos aí se forjar seja,
novamente para juntar início e fim, a construção conjunta, em diferentes regiões
da nova capital federal, da Catedral católica e do Vale do Amanhecer.

Quanto ao outro conceito, adotar a noção de campo religioso para se


referir aos anos 50 constitui uma possibilidade de utilizar o presente para
compreender o passado. Na sociedade brasileira da época, não havia conquistado
qualquer evidência a visão que admitia a justaposição de diversos universos
religiosos a fim de formarem um campo único. O catolicismo era claramente
hegemônico e a consideração de outros segmentos serve para vislumbrar brechas
que apontam para outros quadros possíveis. Mesmo intelectualmente, a noção de
um campo religioso formado de católicos, protestantes e mediúnicos é elaboração
posterior, como procurei apontar em outro texto (Giumbelli, 2006). Se é possível
empreender a história da ideia de campo religioso brasileiro, o que procurei fazer
neste trabalho foi me valer desta ideia como um conceito que nos possibilita fazer
novas perguntas ao passado. De todo modo, espera-se que a topografia aqui
delineada permita vislumbrar algo das experiências religiosas vividas naquela
época, em suas possíveis conexões com o passado e o futuro. Nesse aspecto,
deixemos a última palavra a Guimarães Rosa, que em 1956 publicou um livro,
Grande Sertão Veredas, no qual fez um de seus personagens dizer: “Muita
religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo
água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”.

Referências

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1 Este texto origina-se da apresentação em um dos módulos do curso de extensão “Os anos
eufóricos: de Vargas a JK. O Brasil e o mundo nos anos 50”, oferecido pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro em 2006. Agradeço aos pareceristas anônimos de Plura, cujas sugestões
contribuíram para a realização de várias alterações no texto original.
2 O Pagador de Promessas, direção de Anselmo Duarte, 1962, 95 minutos.
3 Fonte dos dados: Mainwaring (1989) e Della Cava (1975). Das mesmas referências vieram as
informações e análises que informam o quadro que ofereço sobre a Igreja Católica nos anos 50.
4 Sobre as mudanças na Igreja Católica, ver Mainwaring (1989) e Della Cava (1975); sobre o
catolicismo urbano, ver Oliveira (1997).
5 Sobre D. Hélder Câmara, baseio-me, sobretudo, na biografia de Piletti e Praxedes (1997).
6 Dados apresentados por Camargo (1973).
7 A base para meus comentários é o trabalho de Freston (1994).
8Os dados sobre Átila são apresentados por Brown (1985), em quem me baseio para comentar a
umbanda.
9 As fotos foram reproduzidas no livro editado por Kaz (2005/06).
10 Sobre Joãozinho da Goméia, utilizei o texto de Lody e Silva (2002).

Recebido em 09/08/2011, revisado em 17/05/2012, aceito para publicação em


19/07/2012.

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