Nivia
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO
NÍVIA GORDO
SÃO PAULO
2010
NÍVIA GORDO
SÃO PAULO
2010
FOLHA DE APROVAÇÃO
Banca examinadora:
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______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
Ao professor José Mário Pires Azanha
In memoriam
Apresento meus agradecimentos aos colegas, amigos e instituições cujo apoio foi
valioso para a realização deste trabalho.
À Profa. Dra. Carlota dos Reis Boto, orientadora e amiga, que me incentivou a fazer
este trabalho.
À Profa. Dra. Mary Júlia Duetzsch e à Profa. Dra. Rosa Fátima de Souza que muito
contribuíram, no exame de qualificação, com uma profícua análise, comentários e
sugestões para revisão e aprofundamento deste estudo.
À Profa. Dra. Arlete Marques da Silva pela leitura crítica dos textos, sugestões e
indicações bibliográficas.
Às professoras Maria Salete Cruz, Maria Luiza Mondin, Elisabeth Camargo Prado,
Lezilda Vigneron, colegas e amigas queridas da Escola de Aplicação, que se dispuseram
a conceder depoimentos importantes, relativos às atividades desenvolvidas nessa escola.
À Profa. Dra. Sumaya Persona de Carvalho e à Profa. Ms. Rosa Maria Jorge Persona,
ambas da UFMT-Cuiabá, que constantemente me incentivaram e prestaram valiosa
colaboração para a realização deste trabalho.
À Profa. Dra. Marinilzes Moradillo Mello pela leitura crítica e revisão técnica deste
trabalho.
A Miquelina Flexa, diretora da Biblioteca da Congregação da FEUSP, que várias vezes
me permitiu acesso a essa biblioteca para fins de pesquisa.
À Profa. Ms. Eliana dos Santos Costa Lana, que muito colaborou com a pesquisa de
textos para a revisão da literatura sobre o tema deste estudo, e também na gravação das
entrevistas coletivas da Escola de Aplicação da FEUSP.
À Profa. Dra. Iomar Barbosa Zaia, por me facilitar acesso aos documentos do Centro de
Memória da FEUSP.
A Instrutora de Informática, Maria das Dores Barbosa, por me ajudar na elaboração dos
quadros curriculares e organogramas.
Foto 1 – Planejamento
Foto2 – Castelo de sucata
Foto 3 – Porta de passagem
Foto 4 – Aranhas tecedoras
Foto 5 – Aranha Caramelo
Foto 6 – Pássaro de luz
Foto 7 – Aranha mãe
Foto 8 – Varal da primavera
Foto 9 – Aranhas-filhotes
Foto 10 – Arco-íris
Foto 11 – O espantalho
Foto 12 – Pássaro “Juim”
Foto 13 – “Flicts”
Foto 14 – Canto “As cores”
Foto 15 – Obras em argila
Foto 16 – Exposição
Foto 17 – “Lua-sol”
Foto 18 – “Grilo da paz”
Foto 19 – Jardim do grilo
Foto 20 – Abelha caramelo
Foto 21 – Cometa da luz
Foto 22 – O girino
Foto 23 – O casulo
Foto 24 – Caixa-casa do casulo
Foto 25 – Borboleta
Foto 26 – Dobradura: borboletas
LISTA DE ORGANOGRAMAS
ABSTRACT
This study aims at describing the history of the Escola de Aplicação (EA), at the School
of Education of the University of São Paulo (USP) during the period of 1976-1986,
when I was both the pedagogical coordinator and the director. During this period,
Professor José Mário Azanha, as a Representative of the School of Education of USP,
headed the organization and functioning activities of the Elementary school, with the
goal that the Escola de Aplicação (EA) could contribute with some ideas for improving
the public school system of the State of São Paulo. This study seeks to reconstruct,
through a historical perspective, both theoretical and practical aspects of the work that
took place during the mentioned period.
Keywords: Escola de Aplicação (EA), José Mário Pires Azanha, theory and practice of
the elementary school, public school.
SUMÁRIO
Capitulo I – Introdução---------------------------------------------------------------------------------- 21
2 .2 Escola de Demonstração-------------------------------------------------------------------------- 45
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
Uma das principais mudanças na educação brasileira consistiu na fusão do ensino primário e
ginasial que passou a ser denominado ensino de 1º grau com duração de oito anos1. Assim, pelo
menos do ponto de vista formal, atendeu-se ao que dispõe a Constituição de 1967 no sentido de
ser implantada uma escola única de educação fundamental.
Apesar de, na época, contar-se com defensores do dispositivo legal de qualificação para o
trabalho, predominaram intensa polêmica e críticas acirradas. Nesta linha de contestação,
Azanha (1987, p.128) assim se pronunciava:
1
De acordo com a Emenda Constitucional nº 53 do MEC, as crianças de 6 anos passaram a integrar o Ensino Fundamental.
Com isso, a Educação Infantil atende a crianzas de 0 a 5 anos e o Ensino Fundamental passou a ter a duração de 9 anos.
22
[...] A última reforma desse grau de ensino (Lei 5.692/71), ao arrepio das tendências
históricas da educação brasileira, pretendeu a profissionalização maciça no ensino
médio, a pretexto de uma necessidade nacional de mão-de-obra nesse nível. [...] Pelo
menos três erros graves foram cometidos nessa reforma: 1) a precoce e injusta
destinação profissional de jovens que ainda estavam a meio de sua formação
intelectual; 2) o abandono do superior objetivo da escola de 2º grau, que é a formação
para a plena cidadania, a partir de uma extravagante concepção tecnocrática a serviço
de interesses imediatistas e mal detectados; 3) a descaracterização do ensino normal
de tão viva tradição em São Paulo, e que foi transformado numa confusa e ineficiente
“habilitação para o magistério.
Para Cunha (2009), a Lei 5.692/71 foi impositiva, respaldada no movimento ditado pela teoria
do capital humano que se coadunava com a profissionalização obrigatória no 2º grau. Segundo
o autor, disso decorreu o fracasso do que era visado pelos articuladores da referida proposição.
Muito pelo contrário, diz Cunha, “houve prejuízos de real monta para a educação, para o ensino
e, principalmente, para a população em idade escolar”. (2009, p.5).
Ocorreram reações contrárias também por parte do pessoal da burocracia do ensino público;
dos diretores de escolas privadas, dos profissionais da área técnico-administrativo e docente das
escolas públicas, de intelectuais ligados à educação. Entretanto, somente em 1982, mediante a
Lei 7.044, o Congresso Nacional aprovaria a eliminação definitiva da profissionalização
compulsória. O ensino de 2º grau foi reestruturado em dois ramos: de escolas técnicas
profissionalizantes e de escolas de educação geral.
Como observa Aranha (2006), além de a reforma da Lei 5.692/71 não se efetivar quanto ao
objetivo da profissionalização, ela ocasionou muitos transtornos devido, entre outros fatores, à
falta de professores especializados e da infra-estrutura necessária aos cursos como oficinas,
material e laboratórios, principalmente nas áreas da indústria e da agricultura. Por este motivo,
foi dada primazia à área terciária que possibilitava instalações menos onerosas. Além disso, a
autora critica o fato de que a inclusão obrigatória do civismo nos currículos decorria de uma
imposição ideológica, reiterada pela eliminação da Filosofia e pela redução da carga horária de
História e Geografia, justamente disciplinas apropriadas para o desenvolvimento da atitude
crítica e da consciência política da realidade social em que se vive. E neste caso, ao se referir à
formação do sujeito crítico, não se pode esquecer, também, do caráter social da escola em que
esse sujeito deve ser preparado para participar da construção de uma sociedade justa e solidária.
Bernard Charlot (2009, p.17) chama de mistificação pedagógica a concepção do indivíduo
considerado como a realidade fundante da vida social:
23
2
Orgão componente do CRPE “Prof. Queiroz Filho”.
24
O diretor da FEUSP na época, Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros, em reunião da
Congregação no início de 1976, decidiu substituir o então Conselho Consultivo3 — responsável
pela Escola de Aplicação junto à FEUSP — por um só representante, no caso pelo Prof. José
Mário Pires Azanha com ampla liberdade para reorganizar a Escola de Aplicação, a fim de
torná-la uma instituição comum, à semelhança de uma escola pública, diferindo apenas no
sentido de que ela deveria oferecer estágio aos alunos e campo de estudos aos professores da
Faculdade. Também, por escolha da Congregação, fomos indicadas para assumir a
responsabilidade pela coordenação técnica. Desta forma, passamos a trabalhar juntamente com
Azanha no período de 1976 até o final de 1984 quando, por divergências com o então chefe do
Departamento de Metodologia, Azanha pediu demissão do cargo de representante junto à EA, e
propôs um debate4 sobre essa escola. Continuamos na coordenação técnica da EA, acumulando
esta função com a de diretora, de 1983 até meados 1985.
3
A Seção I do antigo regimento da Escola de Aplicação dispunha em seu artigo 4º que “O Conselho Consultivo, presidido
pelo Diretor da FEUSP será formado por representantes dos Departamentos da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (FEUSP), na proporção de um por departamento, mediante indicação do respectivo Chefe e homologação da
Congregação da FEUSP”. (In: REGIMENTO DA ESCOLA DE APLICAÇÃO, 1973). Eram atribuições do Conselho Consultivo:
assessorar o diretor da FEUSP nos assuntos referentes à EA; apreciar o plano escolar anual elaborado pela EA; apreciar
relatórios semestrais e anuais de atividades; solicitar o assessoramento dos Departamentos da FEUSP, quando o entender
necessário; manter, pelo seu Presidente, informada a Congregação de todos os problemas referentes a EA”.
4
Ver relato deste debate no Capítulo V.
5
O conceito de viabilidade em pesquisa na área da educação constitui um dos pontos fortes da teoria de Azanha: “(…) também
em educação, as teorias seriam experimentadas, não para se saber se são falsas ou verdadeiras, pois não é o caso, mas para que
se investigue se são viáveis em face de um conjunto de condições”. (AZANHA, 1974, p. 77).
25
Tanto como educador quanto como teórico da educação, Azanha se posicionava, na realidade,
como um pensador singular que só aderia a um pensamento pedagógico se ele correspondesse,
com lógica e clareza, às suas próprias concepções, algumas das quais abordadas no decorrer
deste trabalho.
6
Em seu livro “Educação: alguns escritos”, Azanha cita A. Renault: “O ensino secundário tem por uma de suas finalidades a
preparação para os cursos superiores mas guarda, irrecusavelmente, um sentido autotélico, que é o da formação do espírito ou
do homem como um todo, neutro e indiferente entre as carreiras profissionais”. (RENAULT apud AZANHA, 1987, p.161.).
26
Propusemo-nos a fazer uma investigação de caráter qualitativo que julgamos adequada aos
objetivos propostos. Partimos de uma análise dos princípios teóricos adotados e das atividades
práticas desenvolvidas na EA. Ou seja, o estudo não se voltou para a quantificação ou medida
objetiva de dados da realidade observada. Antes, ele se deteve na compreensão e no registro
dos dados obtidos na pesquisa, mediante procedimentos metodológicos diversos, segundo a
ótica dos sujeitos, nas diferentes situações em que estes se apresentam e se relacionam entre si.
Segundo Kerlinger (1979, p.6) esta é a abordagem metodológica indicada na seguinte situação:
Um dos eixos do estudo incidiu na análise dos documentos principais da Escola de Aplicação,
referentes à sua organização e funcionamento. O eixo subsequente implicou o exame das
atividades desenvolvidas pela coordenação técnica. e o terceiro eixo convergiu para entrevistas
semi-estruturadas com ex-professores, ex- alunos e ex-orientadores da equipe técnica.
Foi feita a revisão da literatura relacionada com o objeto da pesquisa, com vistas ao
embasamento teórico, necessário à análise dos dados levantados no decorrer da investigação.
Na realização desse exame, é possível ter havido a interferência de certa subjetividade, uma vez
que é praticamente difícil manter atitude totalmente objetiva em estudos que impliquem
interpretação, especialmente em nosso caso em que se conta com muitos anos de prática
escolar. Entretanto, este aspecto pode ser atenuado mediante o empenho em manter constante
vigilância da tendência à subjetividade, como propõe Hegenberg em seu livro “Explicações
Científicas” (1978). Também, neste sentido, vale a observação de Burke (1992, p.136):
de organizar e explicar o mundo do passado. Por isso, o principal conflito não está
entre a nova história e a história tradicional, mas antes, no significado da história,
encarada como uma prática interpretativa.
[...] como o conhecimento objetivo nunca está terminado; e como novos objetos
abordam sem cessar temas de conversação no diálogo entre o espírito e as coisas, todo
o ensino científico, quando é vívido, será agitado pelo fluxo e refluxo do empirismo e
do racionalismo. De fato a história do conhecimento científico é uma alternativa que
se renova sem cessar do empirismo e de racionalismo. Esta alternativa é algo mais que
um fato. É uma necessidade do dinamismo psicológico.
Outro aspecto consiste no modo como o relato do cotidiano deve ser escrito, uma vez que se
trata da descrição de fatos numa perspectiva histórica. No caso de escolha de uma linha da
história tradicional, teria sido possível a narrativa dos acontecimentos relativos às teorias
adotadas, às respectivas práticas escolares e resultados alcançados. Entretanto, essa forma de
abordagem poderia deixar, entre parênteses, aspectos miúdos da prática escolar que podem ser
altamente esclarecedores da dinâmica de uma escola e do contexto psicológico e social em que
transcorreu essa prática.
Diante disso, optou-se por uma abordagem histórica do cotidiano, mesmo levando em conta as
dificuldades que ela apresenta. Segundo Burke, um relato circunstanciado de fatos configura-se
7
Trata-se de uma descrição do dia-a-dia escolar que envolve, conforme definição de cultura escolar de autoria de Viñao Frago,
“práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos – a história cotidiana do fazer escolar – objetos materiais – função, uso,
distribuição do espaço, materialidade física, simbologia, introdução, transformação, desaparição…– , e modos de pensar, assim
como significados e ideais compartilhadas (FRAGO apud GONÇALVES e FARIA FILHO, 2005).A descrição cultural
proposta é feita no capítulo IV deste trabalho.
28
como uma micro-narrativa, adequada à nova história, enquanto forma de narrativas que ela
propõe. Diz Burke (1972, p.347):
[...] Estas novas formas incluem a micro-narrativa, a narrativa de frente e para trás e
as histórias que se movimentam para frente e para trás, entre o mundo público e
privado, ou apresentam os mesmos acontecimentos a partir de pontos de vista
múltiplos.
Mas um relato na forma de micro-história parece ser insuficiente para dar conta de uma
interpretação mais global dos fatos relatados, uma vez que ela não propicia conexões entre
acontecimentos pequenos e grandes, conforme esclarece Azanha (1992, p.105):
[...] a questão central no estudo da vida cotidiana é apenas uma visão particular do
amplo e complexo problema teórico – presente em todas as áreas do saber – de
elucidar as relações entre o local e o global; entre o micro e o macro, entre o
particular e o universal, entre a parte e o todo.
Não se pode perder de vista que a compreensão do cotidiano em sua totalidade requer, segundo
Azanha (ob. cit., p.113-122), o atendimento a quatro demarcações conceituais:
1. A vida cotidiana (individual ou social) é uma totalidade de partes que são objetos
interligados.
2. A totalidade da vida cotidiana (individual ou grupal) é um processo histórico e,
portanto, em permanente fluência.
3. O acesso cognitivo à vida cotidiana pressupõe a possibilidade de sua partição, de
tal forma que uma ou mais partes sejam reveladoras da totalidade.
4. A idéia de que a vida cotidiana (individual ou social) pode revelar-se por
intermédio de uma ou mais de suas partes depende, para ser fecunda, da perspicácia
do investigador na elaboração de procedimentos teóricos adequados.
Azanha (ob. cit., p.124) teoriza o tema do cotidiano para dar significado ao estudo metódico de
práticas rotineiras, daquilo que se passa no dia-a-dia da escola. Serão tomadas, como
referencial, demarcações conceituais para esclarecer algumas ideias básicas da reconstituição
proposta:
1. A prática escolar, objeto deste estudo, é marcada por um caráter compósito, dado
que ela se constitui de partes não-separáveis: atitudes e procedimentos dos técnicos e
dos professores, dos alunos, e forma de relacionamento inter-pessoal, mas que
possibilitam a identificação de aspectos relevantes no cotidiano em estudo
2. A esse caráter compósito da prática escolar, subjaz um conceito de totalidade,
circunscrito nos limites do espaço e do tempo em que ocorreu a experiência a ser
relatada. Por outro lado, essa experiência envolve pessoas em ação, sujeitas, portanto,
a transformações. Nessas condições, propõe-se lidar com “totalidades parciais”, posto
que a experiência humana é sempre dinâmica e fluente.
Outro aspecto a ser considerado é o de que um fato narrado assume significação no contexto da
mentalidade em que ele ocorreu. Veyne (1971, p.199) esclarece a importância da norma da
época: “Compreender o passado suporá, portanto, que o historiador reconstroi na sua cabeça a
29
normalidade da época e que sabe torná-la sensível ao leitor. Um acontecimento só é o que é por
relação às normas da época”.
Uma primeira solução já se apresenta na forma como este trabalho foi estruturado, ou seja,
numa delimitação do relato histórico em período.
A propósito, Certeau (1982, p.11) afirma: “O recurso à cronologia reconhece que é o lugar da
produção que autoriza o texto, antes de qualquer outro signo [...]. Ela (a cronologia) é a
condição de possibilidade do recorte em períodos”.
Parece oportuna, também, a distinção que Certeau (1982, p.12) faz entre acontecimento e fato:
[...] O acontecimento é aquele que recorta, para que haja inteligibilidade; o fato
histórico é aquele que preenche para que haja enunciados de sentido. O primeiro
condiciona a organização do discurso, o segundo fornece os significantes, destinados
a formar, de maneira narrativa, uma série de elementos significativos.
Por isso, para cada episódio abordado, propõe-se, como fato central, a interrelação entre
pessoal administrativo, professores, alunos, pais; técnicos e professores, professores e alunos.
Desta forma, parece ser possível detectar como ocorria a dinâmica do ensino e da
aprendizagem, uma vez que, a partir de um processo de interação, os professores ou técnicos
novos ou iniciantes se integravam na dinâmica do dia-a-dia escolar.
30
Constitui um desafio traçar a biografia de José Mário Pires Azanha, seja como educador e
teórico ou homem público da educação. Embora longa, vale a pena reproduzir a notável
descrição de Azanha, como pessoa e professor, feita por Nilson Machado (2004, p.325).
Não era um homem simples. Nada nele era previsível, exceto, talvez, a radicalidade de
seu pensamento, a percuciência de sua argumentação, a intensa paixão na defesa de
seus pontos de vista e a freqüência com que se envolvia em polêmicas, sempre
imbuído, em seu juízo, dos mais altos ideais de justiça, do mais genuíno espírito
público. Notável era sua competência em transformar todas essas circunstâncias em
textos agudos, da melhor qualidade, extremamente bem redigidos. Era um mestre no
uso da palavra, sobretudo da palavra escrita. Sua retórica parecia, às vezes, dura, mas
era sempre muito eficiente, muito esclarecida, muito precisa. Em razão de suas
indiscutíveis qualidades intelectuais, certamente era mais respeitado que temido, mas
era temido, sem dúvida, o era. Não era fácil enfrentá-lo num debate; sua argumentação
era verdadeiramente fulminante. [...] Da educação à filosofia, da política à estética, da
antropologia à culinária, nenhuma dimensão do modo de ser do ser humano lhe era
indiferente. Com ele, todos os temas poderiam constituir-se em objetos de uma
reflexão densa, sempre apaixonada, sempre reveladora. [...] Sua independência
intelectual era admirável. Impossível classificá-lo em qualquer dos “ismos” que
povoam — e, às vezes, infestam o cenário acadêmico: positivismo, marxismo,
construtivismo, estruturalismo, personalismo, evolucionismo, conservadorismo, etc.,
etc., etc. É, ele não era um homem simples, não era simples compreendê-lo, ou mesmo
aceitar alguns de seus pontos de vista mais caros, sempre plenos de uma radicalidade
que somente os espíritos independentes e criativos podem alcançar. Mas era um ser
humano notável, um intelectual fecundo como poucos, um professor, um mestre no
sentido pleno da palavra. Infelizmente, deixou-nos muito cedo. Certamente,
sentiremos muito sua falta.
José Mário Pires Azanha nasceu em Sorocaba, Estado de São Paulo, em 28 de novembro de
1931, mas desde cedo foi com a família morar em Santa Cruz do Rio Pardo onde cursou o
primário e secundário entre 1942 e 1947. Em São Paulo cursou a Escola Normal, concluindo-a
em 1950. Em seguida, fez o curso de Pedagogia na Universidade de São Paulo com término em
1955. Ainda nesta Universidade, formou-se, em nível de pós-graduação em: “Análise Fatorial”,
“Planejamentos de Experimentos” e a “Nova História”.
No decorrer desses estudos, Azanha trabalhou como professor substituto no período de 1949 a
1953. Em seguida, entre 1955 e 1957, atuou como professor universitário de Estatística
Educacional e Psicologia Experimental na FFCL, “Sedes Sapientae”, PUC/SP e, entre 1956 e
1963, como professor de Filosofia no ensino secundário público de São Paulo.
31
[...] Suas lutas mais marcantes no campo educacional, lembradas como polêmicas,
foram: a) a efetiva democratização do acesso à escola de oito anos em São Paulo, que
resultou na extinção do exame de admissão, depois do chamado curso primário, e
instituindo o grupo escolar-ginásio – ou escola de oito anos – que seria oficializada na
lei 5692/71 com o nome de ensino de 1º grau. Ou seja, o professor Azanha é
considerado como a personalidade que praticamente dirigiu essa Reforma do Ensino
em São Paulo, a partir das lutas nessa área desde 1967; b) a defesa da Escola de
Aplicação da FEUSP entre 1981 e 1984; c) a luta pela liberdade do professor e pela
autonomia das escolas presentes em suas falas, documentos, artigos e livros.
Azanha sempre se preocupou com a clareza dos conceitos em seus escritos, fossem de natureza
científica ou pedagógica. Considerando seu propósito de organizar a Escola de Aplicação com
vistas a um ensino de boa qualidade e que fosse viável numa escola pública, procuraremos
esclarecer sua concepção de “melhoria do ensino” e de “viabilidade”.
No que se refere à expressão “melhoria do ensino”, recorremos ao conceito explicitado pelo
próprio Azanha (2006, p.103):
[...] a melhoria do ensino é sempre uma questão institucional e uma instituição social,
como é a escola, é mais do que a simples reunião de professores, diretor e outros
profissionais. A escola, ou melhor, o mundo escolar é uma entidade coletiva, situada
num certo contexto, com práticas, convicções, saberes que se entrelaçam numa
história própria em permanente mudança. Esse mundo é um conjunto de vínculos
sociais, frutos da aceitação ou da rejeição a uma multiplicidade de valores pessoais e
sociais. [...] A idéia de um projeto pedagógico visando à melhoria desse mundo com
relação às suas práticas específicas, será uma ficção burocrática se não for fruto da
consciência e do esforço da coletividade escolar.
Historicamente, é importante esclarecer que algumas das ideias de Azanha que balizaram o
projeto da Escola de Aplicação da FEUSP, a partir de 1976, já tinham anteriormente norteado o
esforço de melhoria da escola pública em 1968 na Administração Ulhoa Cintra, e retomado, em
1974, na Administração Paulo de Tarso.
Como vimos, é conhecida a atuação de José Mário Pires Azanha como homem público,
político, administrador e educador, empenhado na melhoria da escola em seus diversos
aspectos, especialmente no que se refere à democratização do ensino; à cultura e à autonomia
da escola, à formação do professor. Entendemos que, ainda que de forma sumária, essas ideias
deviam ser analisadas logo no início deste estudo, pelo fato de estarem presentes direta ou
indiretamente na proposta de ensino da Escola de Aplicação e constituírem fundamentos
mesmo deste trabalho.
Com relação à ideia de Azanha sobre a democratização do ensino, tomaremos como referência
um artigo de sua autoria “Democratização do ensino: vicissitudes da idéia no ensino paulista”
em que são analisadas, numa perspectiva histórica, várias iniciativas no Estado de São Paulo,
como, por exemplo: a Reforma Sampaio Dória, em 1920; a luta pela escola pública no período
de 1948 a 1961; a expansão da matrícula no ensino ginasial, entre 1967 e 1969; e algumas
tentativas de renovação pedagógica, conforme ocorreu nos Ginásios Vocacionais.
8
No período de 1976 a 1986, José Mário Pires Azanha era adepto de uma relação pedagógica em que o professor deveria
considerar as características pessoais de cada aluno. Posteriormente, com a entrada maciça e diversificada de alunos na escola
pública, Azanha entendeu que essa relação, em seu ver de cunho preceptorial, deveria ser revista. O grande número de alunos
requeria, então, uma convergência do professor para um relacionamento baseado na tolerância e no respeito aos direitos
humanos dos alunos, já que não seria mais possível um ensino individualizado.
34
Ao assumir a diretoria da Instrução Pública do Estado de São Paulo, em 1920, Sampaio Dória
defrontou-se com o sério problema de um ensino primário bastante deficitário quanto ao
insuficiente número de vagas requeridas por excessiva demanda de candidatos. Essa situação
vinha se agravando a cada ano e exigia um considerável aumento de escolas para atender à
população necessitada de escolarização. Entretanto, afigurava-se como bastante difícil a
solução do problema, uma vez que a diretoria não dispunha dos recursos financeiros
necessários à criação das escolas requeridas para atendimento à grande demanda de candidatos.
Sampaio Dória via essa situação como um problema muito sério porque constituía, sobretudo,
um entrave para a concretização dos princípios de uma prática democrática. A propósito, já em
1918, em carta aberta ao ex-diretor da Instrução Pública, conforme cita Azanha, Sampaio Dória
(DÓRIA, 1923 apud AZANHA, 1987, p.39-40), assim se pronuncia:
Sempre que penso na realização prática dos princípios democráticos, uma dúvida,
uma quase descrença, me assalta o espírito, deante do espetáculo doloroso da
ignorância popular. Como organizar-se, por si mesmo, politicamente, um povo que
não sabe ler, não sabe escrever, não sabe contar? Se o povo não souber o que quer,
como há de querer o que deve? Governos populares, sem cultura, viverão morrendo
de sua própria incultura. [...] Eis por que me interessou, sempre, a solução prática do
problema do analphabetismo. A instrução, primária e obrigatória, a todos, por toda
parte, é ideal que me seduz.
Essa situação já fora objeto de reflexão por Sampaio Dória (DÓRIA, 1923 apud AZANHA,
1987, p. 29):
Sabe-se que sem egualdade, não há justiça. A desigualdade com que o Estado, em
matéria de ensino elementar, tem tratado aos seus filhos, é uma injustiça. E como, sem
justiça, não há democracia digna, a sustentação do systema actual seria
antidemocrática.
E Dória (1923 apud AZANHA, 1987 p.91-92) acrescenta mais um argumento a favor de sua
reforma:
35
Dizer que é preferível favorecer, com mais algumas noções, a um terço da população
escolar, e, como conseqüência negar tudo aos outros, é heresia democrática, e
necessidade. O governo estaria prompto a aceitar este ponto de vista, se, primeiro
demonstrassem que é justo, e, depois, que dois anos de escola não valem nada.
Azanha refuta as críticas feitas à Reforma Sampaio Dória e observa que, no caso, o aspecto
relevante a ser considerado nessa iniciativa é o de que não se democratiza uma instituição
pública como a escola sem que ela atenda a todos.
Quanto à expansão do ensino ginasial (1968-1970) na Administração Ulhoa Cintra, José Mário
Pires Azanha, integrante dessa Administração, teve atuação especial no processo de
democratização do ensino, ao unificar a preparação das provas dos “exames de admissão” e
reduzir suas exigências. Esta medida propiciou a concretização de uma política de expansão do
ensino ginasial com uma explosão de matrículas de alunos. Diante disso, muitos professores,
principalmente do ensino secundário, reagiram negativamente com o argumento de que o
grande aumento de alunos respondia pela queda da qualidade do ensino. E, como
consequência, ocorreu uma maciça porcentagem de reprovação dos alunos. Essa atitude
contraditória dos docentes e de outros responsáveis pela educação constituiu alvo de uma
criteriosa análise de Azanha (1983, p.32-33):
Na verdade, ante uma clientela ampla e diversificada, tornou-se difícil para o pessoal técnico-
administrativo e os professores a tarefa de adequar o processo de ensino às características do
36
novo contingente de alunos. E nesta condição, a escola pública continua sendo alvo de críticas
devido ao seu mau desempenho9. Por outro lado, propõem-se, de forma equivocada, projetos
de formação e de capacitação de professores, pautados em metodologias “renovadas” com
vistas à melhoria da qualidade do ensino.
[...] Em pedagogia, a moda significa quase sempre... a vontade de mudar para que
tudo fique na mesma! Ora, neste mundo marcado pela velocidade das comunicações e
da disseminação das idéias; neste mundo invadido por uma inflação tecnológica sem
precedentes, é preciso que os professores aprendam a cultivar um cepticismo
saudável, um cepticismo que não é feito de descrença ou de desencanto, mas antes de
uma vigilância crítica em relação a tudo que lhes é sugerido ou proposto. A inovação
só tem sentido se passar por dentro de cada um, se for objeto de um processo de
reflexão e de apropriação pessoal.
É possível afirmar, portanto, que esta escola de outrora tinha um caráter elitista e
conservador, destinando-se prioritariamente às classes sociais privilegiadas. Ou
melhor, o acesso das camadas populares à escola era obstruído pela própria
estruturação escolar da época. O que os dias atuais atestam, no entanto, é que as
estratégias de exclusão, além de continuarem existindo, sofisticaram-se. Se antes a
dificuldade residia no acesso propriamente, hoje o fracasso contínuo encarrega-se de
expurgar aqueles que se aventuram neste trajeto, de certa forma, ainda elitizado e
militarizado.
Os ginásios vocacionais são abordados por Azanha por terem como objetivo a renovação do
ensino, entendida como um meio de formar cidadãos brasileiros aptos para o exercício da
democracia. Esses ginásios foram instituídos a partir de 1962 e funcionaram até 1970, tendo
sido implantados em 6 unidades ginasiais na capital e em cidades do interior. Na opinião de
Azanha, esses ginásios constituíram um dos mais expressivos esforços com vistas à renovação
do ensino público paulista. Dispunham de um estatuto legal próprio que lhes assegurava ampla
autonomia didática, administrativa e financeira. Nestas condições, foi possível um expressivo
desenvolvimento de atividades voltadas para o objetivo de renovação pedagógica, marcadas
por intenções de democratização do ensino. Num relatório de 1968, enviado pelo Serviço de
9
Evidentemente, a melhoria da qualidade do ensino na escola pública requer, também, medidas de ordem administrativa como,
por exemplo, ampliação da quantidade de prédios escolares, de recursos humanos, materiais e didáticos, entre outras.
37
Ensino Vocacional ao Conselho Estadual de Educação de São Paulo, fica claro que os Ginásios
Vocacionais visavam à formação do “Homem Brasileiro” em oposição às tentativas de
“transposição de padrões culturais e modelos estrangeiros estranhos à realidade do país”. O
relatório (1968, p. 10) concluído nos seguintes termos:
O momento histórico brasileiro exige uma democratização da cultura para que o
nosso Homem possa, através da formação da sua consciência crítica, encontrar sua
forma original de fazer o país se desenvolver. È o momento da opção em todos os
níveis. Assim, toda experiência, partindo não da doação de fórmulas prontas, mas da
descoberta comum, é um dado importante para a planificação do povo brasileiro.
Como observa Azanha (1983, p.9-10), essa idéia de democratização estava assentada, do ponto
de vista didático, na liberdade do aluno, considerada como condição de êxito do plano proposto
para os Ginásios Vocacionais:
A experiência vocacional surge com a preocupação de situar o jovem como alguém
atuante e inspirada em alguns princípios da Escola Nova, enfocando principalmente o
problema da liberdade do educando como agente da própria Educação, do seu próprio
desenvolvimento, e do professor como instrumento estimulador e explicitador das
situações educativas.
Outro fato que reforçou a crítica de Azanha aos ginásios vocacionais consistiu na recusa
veemente dessas instituições em participar dos exames unificados e facilitados de admissão ao
ginásio. Diante dessa atitude, Azanha (1987, p. 35-36) comenta:
[...] depreende-se que a democratização do ensino era concebida como algo que
deveria ocorrer intramuros no plano pedagógico e não pela ampliação das
oportunidades educativas. Pode-se alegar que, preliminarmente – antes da expansão
de escolas – pretendiam construir o modelo da escola democrática. É possível; mas
isto não invalida o que foi dito: que a democratização poderia ser adiada até que
houvessem as condições ideais para realizá-la autenticamente. É interessante
observar que esse adiamento reúne a concordância dos democratas de todos os
matizes [...] Nessas condições, não obstante a preocupação com o povo, os Ginásios
Vocacionais conceberam a democratização do ensino como fundada numa prática
pedagógica infelizmente reservada a poucos pelo alto custo em que importava.
Diante desta questão, Azanha (idem, p.28) propõe no mencionado programa de pesquisa de
cultura escolar:
[...] um amplo conjunto de investigações (multi e interdisciplinares) capazes de cobrir
o amplo espectro das manifestações culturais que ocorrem no ambiente escolar e que
se objetivam em determinadas práticas. Esses estudos deveriam não apenas descrever
essas práticas num certo momento como também identificar e deslindar os processos
de sua formação, transformação e permanência. Do conjunto desses estudos cujo
propósito seria um mapeamento cultural da escola, teríamos a possibilidade de chegar
a hipóteses interessantes sobre a crise educacional que não se limitem a referi-la a
esta ou àquela variável, mas que busquem compreendê-la na sua dimensão histórico-
social.
E Azanha conclui que, somente a partir de um conjunto de descrições como essas, será possível
compreender a situação escolar e, a partir dessa compreensão, chegar a um esforço de
explicação e de reformulação da escola. Um mapeamento cultural das escolas, assim proposto,
salienta o equívoco da ideia que vem sendo propalada, desde a década de 90, de que a “crise
escolar” decorre da queda da qualidade do ensino. Como membro do Conselho Estadual da
Educação, Azanha deixou clara a inocuidade dessa relação:
[...] Tanto no que diz respeito à escola como no que se relaciona com a família,
houve mudanças e rupturas institucionais. Descrever esse quadro como sendo de
crise é uma apreciação valorativa que pode ser um descaminho teórico de análise e de
investigações empíricas e, por isso mesmo, conducente a sérios equívocos na fixação
de diretrizes de atuação na esfera pública ou privada. A escola básica de hoje não é
um retrocesso em relação à escola de ontem. É outra escola, principalmente por ser
altamente expandida, e suas alegadas deficiências precisam ser enfrentadas por um
esforço permanente de investigação e busca. (Indicação CEE nº 07/2000, p.24).
Nessa busca, são oportunas, como referência, as ideias de Arendt (1998, p. 238-239),
apresentadas em seu livro “Entre o passado e o futuro”:
[...] a escola é a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo
com o fito de fazer que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o
mundo. Aqui, o comparecimento não é exigido pela família, e sim pelo Estado, isto é,
o mundo público, e assim, em relação à criança, a escola representa em certo sentido
o mundo.
39
Não se pode perder de vista, entretanto, o fato de que a escola tem limites na sua ação
formativa, uma vez que ao lado dela atuam outras agências que interferem na formação da
criança e do adolescente, como igrejas, clubes recreativos, partidos políticos, instituições
culturais, a mídia em geral e outras. Mas o que distingue a escola dessas agências é o fato de
que a escolarização básica deve estar, necessariamente, como diz Azanha (2002, p. 81),
“impregnada pela herança cultural e não por posições parciais de cunho doutrinário, ideológico,
ou voltado para atividades específicas”.
Há muito, Durkeim já defendia o caráter social da escola, o que hoje se ratifica, uma vez que a
instituição escolar está inserida na sociedade e uma das suas finalidades consiste na formação
do jovem para, como cidadão, viver e atuar na sociedade.
Azanha deixa claro que a autonomia da escola consiste, em primeiro lugar, na autonomia do
processo educativo. A escola, assim como ocorre com outras instituições, é um lugar de
convivência e de trabalho, mas o que a distingue e a torna singular é o seu propósito de educar
com base no pressuposto de que o homem pode ser modificado.
Assim posta, a autonomia da escola não pode ser confundida com a proposição de um conjunto
de normas administrativas, com a aquisição de um regimento próprio ou mediante disposições
de um conselho deliberativo, conforme se pleiteia em função de uma presumida autonomia
escolar. Para Azanha (2006, p.144-145):
a autonomia da escola é algo que se põe com relação à liberdade de formular e
executar um projeto educativo. [...] Nesses termos, o projeto educativo de uma escola
é o propósito de transformar a clientela (e a comunidade) tomando em consideração
não as prescrições de uma pedagogia abstrata, mas as condições reais de vida dos
educandos. [...] para além do alcance de todos os constrangimentos políticos,
econômicos, culturais, sociais e pedagógicos, há um espaço de encontro e de convívio
humano que é potencialmente educativo. É pela ocupação desse espaço com um
projeto de educação consciente e crítico que se dará substância efetiva à aspiração de
autonomia da escola.
40
Azanha transpõe essa ideia para a área da educação brasileira e deixa clara, numa perspectiva
histórica, desde 1932 com o “Manifesto dos Pioneiros” até as mais recentes leis de diretrizes e
bases da educação nacional, a escassez do uso da palavra “autonomia”. E quando usada – assim
como ocorre com o emprego de outras palavras e ideias que impregnam a mentalidade da época
– é sempre esvaziada de sua real significação. Afirma Azanha (2006, p.38-39):
Azanha observa que as escolas de uma rede não podem prescindir da responsabilidade da
Administração do sistema de ensino para estabelecer as diretrizes e as metas de uma política
educacional. Mas deve ser preservada a liberdade das escolas para a tomada de decisões
adequadas à sua rotina escolar, às suas ideias e convicções pedagógicas. Respeita-se, desta
forma, a autonomia de quem educa sem o constrangimento da submissão a normas, orientações
e decisões prontas, emanadas da direção e dos inúmeros órgãos técnicos responsáveis pela
condução do trabalho pedagógico. Para Azanha (1992, p.42):
É preciso que as escolas públicas tenham a autonomia que a lei lhes confere. Não
mais é possível que, nesse ponto, as escolas públicas sejam discriminadas das escolas
particulares, cuja autonomia legal é respeitada. Já dizia Bacon que a verdade brotará
mais facilmente do erro do que da confusão. É isso o que esperamos. As escolas
públicas encontrarão o seu verdadeiro caminho, apesar dos eventuais erros, se
eliminarmos a imensa e confusa interferência tecnocrática e administrativa que até
agora vem tolhendo a sua ação e o seu relacionamento com as comunidades a que
pertencem. Cabe à administração, nesse particular, a ação orientadora e não a
emasculação das potencialidades criativas.
41
A nossa idéia de escola tem sido, muitas vezes, excessivamente simplificada. Isso se
revela, por exemplo, na própria noção de crise educacional que circula amplamente.
É comum apontar-se como evidências da crise alguns resultados escolares como a
reprovação e a evasão maciças no 1º grau [...]. Se realmente esses ´fatos´ são
evidências da crise, a nossa concepção da escola é, inegavelmente, fabril, taylorista,
porque apenas leva em conta os resultados da instituição escolar. [...] Ora, [...] esses
resultados não têm a objetividade que se pretende, isto é, eles são simples correlatos
das maneiras como a vida escolar é praticada.
[...] O próprio Arthur LOVEJOY chama a atenção para o fato de que, muitas vezes,
“palavras sagradas” podem dar origem a “confusas associações de ideias” e até
mesmo acabar abrigando significados contrários. É preciso que consideremos esse
risco. Ele não está tão distante se levarmos em conta que a palavra “autonomia”, por
conta de sua associação com valores democráticos, pode reduzir-se a uma busca de
consenso no âmbito das escolas. No entanto, consenso é apenas uma forma de
decisão e nem sempre a mais racional, nem a mais justa. Principalmente quando a
maioria, pelo simples fato de ser maioria, se julgar no direito de suprimir as
divergências, ainda que estas sejam legítimas.
O segundo capítulo apresenta uma descrição detalhada da Escola de Aplicação, desde sua
origem até 1984, quando José Mário Pires Azanha se demitiu do cargo de representante da
Faculdade de Educação junto à EA. Será dada continuidade à descrição até agosto de 1986,
uma vez que nesse período, de 1983 a 1986, continuamos na direção da escola, apesar das
sérias divergências que prejudicaram a continuidade do trabalho pedagógico com a orientação
que vinha sendo dada por esse professor. De acordo com a primeira orientação (até 1984),
serão relatadas as suas proposições, principalmente no que se refere aos objetivos da EA, a
currículo e programas então estabelecidos; à Diretriz da Escola, incluindo as mudanças feitas
nas áreas administrativas e pedagógicas.
No terceiro capítulo, procuramos deixar claro como ocorreram as práticas de ensino com base
na orientação de Azanha, estabelecida para a EA, à proposta pedagógica, ao planejamento de
ensino. Ainda neste capítulo, abordamos o posicionamento teórico de Azanha frente ao
movimento de renovação pedagógica que predominava na época e que era bem aceito pela
maioria dos professores da EA. Finalmente, serão descritos os projetos de estudos e as
atividades culturais, propostos com o objetivo de enriquecer a cultura geral dos alunos,
conforme dispunha a Diretriz que orientava os fins a serem alcançados pela Escola de
Aplicação.
Dada a natureza deste trabalho, entendemos que ele não comporta conclusões. Procuraremos
salientar no sexto capítulo, em nível de revisão, os principais fatos e ideias que ocorreram na
experiência pedagógica posta em ação e que possam comprovar, ou não, nossas hipóteses.
Por fim, cabe informar que as fotos apresentadas neste trabalho registram atividades
desenvolvidas nas salas das classes da 1ª série da Escola de Aplicação da FEUSP no dia 23 de
maio de 1982 e são de autoria da Profª Maria Julia Rangel de Bonnis.
44
45
CAPÍTULO II
ESCOLA DE APLICAÇÃO
A Escola de Aplicação (EA) da Faculdade de Educação/USP tem sido tema de várias pesquisas
e estudos acadêmicos (FAZENDA, 1987; GALVÃO, 2001; TAMBERLINI, 2001; ZAIA, 2003; BISPO, 2005;
ROSA, 2005; LIMA, 2005; PAULINO, 2007). Entretanto, dados os objetivos a que se propõem, a
maior parte desses estudos detém-se, do ponto de vista histórico, a relacionar a origem da EA
com a extinção da Escola de Demonstração que fora vinculada ao ex-Centro Regional de
Pesquisas Educacionais (CRPE) “Prof. Queiróz Filho”, sediado na Universidade de São Paulo,
no prédio em que hoje funciona a atual Faculdade de Educação.
Neste estudo, salienta-se Anísio Teixeira, considerado um filósofo da educação que, embora
tenha atuado principalmente como administrador público em diferentes instâncias da educação
46
brasileira, marcou com suas ideias e decisões de ordem prática o movimento de renovação
educacional, cujas bases centraram-se, inicialmente, no escolanovismo10, surgido no final do
século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Esse movimento tinha por objetivo a substituição
das práticas pedagógicas, tidas como tradicionais, por uma educação que visava à formação do
cidadão e ao aumento das condições de acesso de todos à escola.
Anísio Teixeira foi um entusiasta da nova pedagogia fundamentada na filosofia de John Dewey
e na sociologia de Durkheim. Já nos anos 30, Anísio defendia a reconstrução da escola com
base no conhecimento científico, a fim de que ela constituísse um instrumento de reorganização
social. Segundo Mendonça (1957), Anísio propunha “aplicar o conhecimento em três níveis de
atividades educativas: na organização e gestão dos serviços escolares, na formação dos
professores e, por fim, no interior mesmo da escola” (p.22), introduzindo nesta “o espírito
científico, percebido quase que como sinônimo de espírito experimentalista, de investigação,
de pesquisa”. (idem, ibidem).
10
Para Anita Adas Gallo, o movimento surge no Brasil no cerne da expansão do pensamento liberal, marcado por importantes
mudanças políticas e sociais devido à aceleração do processo de industrialização e urbanização, decorrentes da expansão da
cultura cafeeira. In: http:/www.anped.org.br/24/PO251803934623.rtf. Acesso em: 27 set. 2009.
47
Conforme afirma Bispo (2005), somente com a transferência da Escola de Demonstração para a
FEUSP é que se formulou um regimento interno da escola; até então, não se tem nenhum
registro dessa natureza.
Outro aspecto que requer esclarecimento refere-se à confusão geralmente feita entre a Escola
de Aplicação e o Colégio de Aplicação, ambos sediados na USP12. Conforme descreve
Tamberlini (2001, p.162, grifos da autora).
[...] É importante ainda registrar a experiência dos Colégios de Aplicação, que foram
implementados de forma vinculada às Faculdades de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas das Universidades Públicas. Merecem destaque, sobretudo, o Colégio de
11
In: http: //www.watson.fapesp.br/Ensino/dianags.htm. Acessado em 18/09/2009
12
O Colégio de Aplicação sediado na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo denominava-se “Colégio de
Aplicação Fidelino Figueiredo”.
48
No período de 1976 a 1986, sob a orientação de Azanha, foram feitas várias mudanças na
Escola de Aplicação: na área técnico-administrativa e pedagógica; no corpo docente e discente.
Para melhor compreensão das modificações feitas, descreveremos, inicialmente, as alterações
relativas aos objetivos da EA, ao currículo, às normas regimentais referentes ao sistema de
avaliação do rendimento escolar, e à forma de organização do pessoal, a partir de um quadro
comparativo de como era essa organização em 1976 e em 1986.
Numa posição contrária, Azanha defendeu a necessidade de afirmar o caráter “comum” da EA,
semelhante ao das escolas públicas da rede. Distante, assim, do objetivo de experimentação.
Com base nesta ideia, foram propostos os seguintes objetivos: 1) proporcionar escolaridade em
50
nível de 1º grau, respeitando o que dispõem o artigo 1º da Lei Federal 4.024/61 e os artigos 1º e
17 da Lei Federal 5.692/7113; 2) aplicar e avaliar métodos educacionais previstos no Plano
Escolar Anual; 3) servir de campo de estudo a professores da FEUSP e de estágio a alunos da
FEUSP nas condições previstas no Plano Escolar Anual. (Regimento da Escola de Aplicação:
1978/79)14.
Conforme já mencionamos, Azanha fazia parte dos opositores à Lei 5.692/71, especialmente no
que se referiu ao dispositivo sobre a profissionalização compulsória no ensino do segundo grau.
Talvez este fato explique a inclusão do artigo 1º da Lei 4.024/61, bem como do artigo 17 da lei
5.692/71 nos objetivos enunciados para a Escola de Aplicação. Esta segunda Lei, então em
vigor, devia necessariamente ser seguida. Por outro lado, a Lei 4.024 de 1961 fora mais flexível
e, parece-nos, mais acessível a propostas de formação de caráter humanista. Segundo Souza
(2008, p. 231):
[...] Esta Lei atendeu às reivindicações dos que há muito clamavam pela
descentralização e flexibilidade da educação, conferindo aos Estados competência
para a organização de seus sistemas de ensino. Desse modo, pela primeira vez, a
União abria mão do forte controle que exercera sobre o ensino secundário desde o
Império.
Mesmo assim, Azanha não deixou de criticar um dos dispositivos da lei 4.024/61 (artigo 1º,
alínea d) que propõe como uma das finalidades do ensino “o desenvolvimento integral da
personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum”. Azanha (1987, p. 83),
que já vinha participando da reforma do ensino neste Estado, tomou este dispositivo como
referência para uma revisão da concepção do ensino primário:
[...] pretender, por exemplo, que num contexto urbano-industrial em elevado estágio
de desenvolvimento, a escola primária forme a personalidade integral do educando,
não é, de maneira alguma, valorizar-lhe as funções. É antes uma colocação ingênua e
até certo ponto prejudicial porque, desconsiderando as reais possibilidades de ação da
escola primária, lhe propõe objetivos que, por inatingíveis, não propiciam ao processo
educativo a orientação necessária à sua organização e desenvolvimento.
E Azanha (1987, p.83) deixa clara sua concepção de ensino que visa à formação de crianças nas
séries iniciais do 1º grau:
[...] Uma instituição que retém a criança durante apenas algumas horas do dia, quase
sempre empobrecendo o seu ambiente, não pode, nem deve se propor à formação
integral da personalidade dessa criança porque essa é uma tarefa irrealizável nessas
condições. Mas pode e deve procurar exercer uma influência integradora das
experiências que a criança viva, dentro e fora da escola, com vistas ao
13
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
14
O Regimento Escolar da Escola de Aplicação foi proposto sob a forma de anteprojeto em 1978. Após aprovação pela
Congregação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, o Regimento foi aprovado pelo Conselho Estadual de
Educação através dos Pareceres nº 1.571 de 08/12/1978 e nº 1.782 de 19/12/1979.
51
A partir desta ponderação, Azanha salienta os limites da ação formativa da escola, quando se
leva em consideração a duração dos turnos diários das aulas, a influência da família dos alunos,
dos colegas e amigos; de instituições sociais e dos diversos meios de comunicação e
informação que, no conjunto, constituem, também, agências e situações que exercem grande
influência na formação de crianças e adolescentes.
O caráter prescritivo do currículo estabelecido para 1977 decorreu das ideias que perpassavam
a reforma do ensino no Estado de São Paulo. A propósito observa Souza (2008, p.247):
15
Os autores citados constam in SOUZA, 2008, p.12.
52
Na proposta curricular para o ensino de 1º grau, Azanha atendeu aos dispositivos da Lei
5.692/71 e às demais determinações emanadas dos órgãos responsáveis pela regulamentação do
ensino, mas enfatizou, sobretudo, as disciplinas – Língua Portuguesa, Inglesa e Francesa,
Matemática, Artes (Artes Plásticas e Industriais e Arte Musical), História, Geografia –
atribuindo-lhes a maior carga horária possível. Essa seleção cultural remonta à importância
atribuída a um ensino de formação geral de caráter humanista que não enfatiza, portanto, os
dispositivos de “sondagem de aptidões” ou de especialização para o trabalho. Na verdade,
coexistiram, até certo ponto, as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 4.024 de
1961 e nº 5.692 de 1971, o que propiciava aos organizadores do ensino, na época, certa
autonomia para a elaboração dos currículos16.
16
A organização do currículo proposto atendeu ao que dispõe a Lei nº 5.692/71 e disposições complementares, conforme
seguem: Núcleo Comum: Parecer CFE nº 1/72; Deliberação CEE nº 2/72; matérias de inclusão obrigatória segundo art. 7º
da lei 5.692/71 e Resolução CFE nº 8/71; Educação Física: Decreto Federal nº 69.540/71; Educação Moral e Cívica: Decreto
Lei nº 869/69; Decreto nº 68.065/71; Parecer CFE nº 94/71; Resolução SE nº 15/73. Parecer CFE nº 2.068/72. Aviso
Ministerial nº 205/76; Ensino Religioso: Lei nº 5.692/71, art. 7º, Parágrafo Único. Indicação CEE nº 1/72; Deliberação CEE nº
2/72; Programas de Saúde: Indicação CEE nº 1/72; Deliberação CEE nº 2/72; Educação Artística: Indicação CEE nº 1/72;
Deliberação CEE nº 2/72; Deliberação CEE nº 10/72; Formação Especial: Parecer CFE nº 339/72; Deliberação CEE nº 10/72;
Tratamento Pedagógico: Parecer CFE nº 853/71; Resolução CFE nº 8/71.
53
Matérias
e
Orgniz. Soc. E
da
Educação Moral
Língua Educação Artística
Política do Brasil
Educação Física
Total
Matemática
Geo. Brasil
Geo. Geral
Geral
Hist. Brasil
comerciais
Hist. Geral
Art. Dram.
Português
Programa
Art. Plást.
Ciências
Art. Indt.
Políticas
Francês
e Cívica
Música
Séries
Saúde
Total Semanal 5 Inglês 1 1 1 2 1 4 5 3
1ª
Total Anual 180 35 35 35 70 35 150 180 110 830
Total Semanal 5 1 1 1 2 1 4 5 3
2ª
Total Anual 180 35 35 35 70 35 150 180 110 830
Total Semanal 5 1 1 1 2 1 4 5 3
3ª
Total Anual 180 35 35 35 70 35 150 180 110 830
Total Semanal 5 1 1 1 1 2 1 4 5 3
4ª
Total Anual 180 35 35 35 35 70 35 150 180 110 855
Total Semanal 5 2 2 1 1 1 3 4 4 3
5ª
Total Anual 180 70 70 35 35 35 110 150 150 110 945
Total Semanal 5 2 2 1 1 1 3 4 4 3
6ª
Total Anual 180 110 150 150 110 945
Total Semanal 5 2 2 1 1 1 3 2 3 4 3 2
7ª
Total Anual 180 110 70 110 150 110 70 1.045
Total Semanal 5 2 2 1 1 1 3 2 3
8ª
Total Anual 180 70 70 35 35 35 110 70 110 150 110 70 1.045
Ensino Religioso: Total Anual 35
Quadro 1 – Currículo pleno (1972 a 1976)
Disciplina 2
OSPB Disciplina 2
de Saúde
Matemática Disciplina 5 5 5 5 5 5 5 5
Educação Geral
Educação
Atividade 3 3 3 3 3 3 3 3
Física
Ensino
Atividade 1 1 1 1 1 1 1 1
Religioso
Artes Plásticas e
Deliberação CEE nº 10/72
1 1 1 1
Parecer CFE
Disciplina
Francês
Nº 339/72
2 2 2 2
Diante dessas ocorrências, houve uma expressiva mudança nos recursos didáticos,
especialmente no que se referiu ao material usado para leituras. A importância quase exclusiva
que era dada à indicação de livros da literatura clássica com o objetivo de despertar nos alunos
o interesse pela aprendizagem da língua na norma padrão ou culta passou a centrar-se mais no
emprego de materiais próprios da cultura popular, como histórias em quadrinhos, revistas,
jornais, contos populares e produções do folclore brasileiro. Entretanto, na prática, a partir de
1977, a Escola de Aplicação deu ênfase à leitura de clássicos da literatura infanto-juvenil, como
veremos mais adiante.
Quanto à matéria Estudos Sociais, nas 5ªs e 6ªs séries, foram instituídas aulas de Geografia e
História, como já ocorria nas 7ªs e 8ªs séries. Esta proposta de alteração do currículo fora
encaminhada para exame do Conselho Estadual de Educação do qual obteve aprovação. Assim,
Estudos Sociais foi matéria tratada nas séries iniciais – 1ª e 2ª – na forma de Integração Social.
Nas 3ª, 4ª, 5ª e 6ª séries a História e a Geografia passaram a ser tratadas como área de estudo
com a denominação de Estudos Sociais e na 7ª e 8ª séries, História e Geografia foram tratadas
sob a forma disciplinas- Organização Social e Política - cuja destinação foi a do preparo para o
exercício da cidadania constou, tanto no currículo de 76, quanto no de 1977, como disciplina
com apenas duas aulas semanais nas 8ªs séries.
Educação Moral e Cívica foi proposta nas séries iniciais, de 1ª à 4ª séries, como componente do
programa de Estudos Sociais. A propósito, a orientação (GORDO, 1981, p.24)17 dada foi a de
que essa matéria
[...] estará, igualmente, implícita em todas as atividades escolares que constituem
oportunidades para o desenvolvimento do espírito cívico e a formação moral. Com os
mesmos objetivos, são desenvolvidas atividades pelo Centro Cívico Escolar, conforme
orientação contida em estatuto. Além disso, na 8ª série, em atendimento a disposições
legais, a Educação Moral e Cívica é tratada, em conjunto com Organização Social e
Política do Brasil, sob a forma de disciplina.
17
Esta disposição foi aprovada nos termos do Parecer CFE nº 2086/72 e do Aviso Ministerial nº 205/76.
56
Geometria e poesia. Isto basta. Uma tempera a outra. Mas ambas são necessárias.
Homero e Tales conduzirão o estudante pela mão. A criança tem esta ambição de ser
homem. Não devemos decepcioná-la. E menos ainda deixá-la escolher em meio ao
que ela ignora.
Evidentemente, a limitação do currículo a apenas duas disciplinas é feita com certo tom de
ironia. Mas a concepção do autor não parece estar distanciada do pensamento de Azanha que
sempre defendeu um currículo mínimo para a escola alcançar bons resultados. Entretanto, como
já observamos, esse mínimo curricular tornava-se praticamente inviável diante da prescrição
obrigatória da lei 5.692/71.
18
Alain é o nome como ficou conhecido o educador e pensador Émile Auguste Chartier.
57
Para melhor esclarecimento do currículo vigente até 1976 e do currículo adotado a partir de
1977, segue uma análise comparativa. A matéria Comunicação e Expressão no currículo
anterior (1976) constava de Língua Portuguesa (1ª a 8ª série), Francesa e Inglesa (5ª a 8ª série),
Educação Artística: Música para todas as séries (1ª a 8ª), Arte Dramática da 4ª a 8ª séries, Artes
Plásticas para todas as séries (1ª a 8ª) e Arte Industrial da 1ª a 4ª série, sem que em qualquer
dos casos fosse citado, no quadro curricular, o tratamento pedagógico na forma de atividade,
área de estudo e disciplina. Também o quadro curricular não indica quais disciplinas faziam
parte da Educação Geral – Núcleo Comum – e quais compunham a Formação Especial,
ainda que a própria Lei já fizesse esta distinção. A matéria Estudos Sociais tinha como
componentes: Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política, Geografia Geral,
Geografia do Brasil, História Geral e História do Brasil. No currículo de 1977, os últimos
quatro componentes passaram a constar como Geografia e História. No currículo de 1976, a
matéria Ciências compunha-se de Matemática, Ciências, Programas de Saúde e Práticas
Comerciais, enquanto no currículo de 1977, na mesma matéria, os componentes eram Ciências
Físicas e Biológicas, Programas de Saúde e Matemática.
Ponto comun entre os dois currículos foi a atribuição de maior carga horária à Língua
Portuguesa e Matemática. E ainda a inclusão de línguas estrangeiras modernas, as disciplinas
Inglês e Francês. A matéria Organização Social e Política do Brasil foi incluída apenas nas 8ªs
séries, com duas aulas semanais
De modo geral, verificamos que as duas propostas curriculares convergiram mais para o
objetivo de formação geral do aluno do que propriamente para a sondagem de aptidões
(naturalmente já implícita no desenvolvimento do processo pedagógico) e para a iniciação
profissional. Isto se justifica em face das excessivas proposições do Conselho Federal de
Educação, feitas na forma de um rol de matérias sugeridas aos conselhos estaduais para a
composição da parte especial do currículo de ensino de 1º grau. A propósito, Souza (2008,
p.272) descreve algumas dessas indicações:
[...] na área econômica, por exemplo, indicava agricultura, pesca, economia doméstica
rural etc.; na área econômica secundária, organização industrial, mecânica, eletricidade,
construção civil, vestuário etc., e, na área econômica terciária, contabilidade, turismo,
hotelaria, enfermagem, puericultura, datilografia, entre outras.
58
Por volta de 1980 já não restava dúvida quanto à inviabilidade de ser posta em prática a
profissionalização estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases 5.692/71. Em 1982, as escolas
foram dispensadas da profissionalização obrigatória mediante a lei nº 7.044/82. Por outro lado,
foi intensificado o apelo para a reposição da Filosofia no currículo, o que ocorreu no 2º grau,
mas na forma de disciplina optativa.
A respeito de currículo, não podemos deixar de considerar o que observa Aranha (2006) sobre a
crítica de outros autores, inclusive de Morin às propostas curriculares que apresentam as
disciplinas de forma estanque, sem interação entre elas. A autora cita as ideias de Morin (apud
ARANHA, 2006, p.281):
19
In Aranha, M. L. de Arruda. História da Educação e da Pedagogía Geral e do Brasil. 3ª Ed. Ampliada, São Paulo,
Moderna, 2006, p. 281.
59
ARANHA (2006) esclarece esta noção ao salientar que o todo não consiste na soma das partes
cuja singularidade e especificidade modificam-nas quando na sua relação com o todo. Num
exemplo oportuno, a autora cita a música que ao invés de se constituir num amontoado de notas
distintas, consiste numa combinação de sons, baseada no ritmo, na melodia e na harmonia. Da
mesma forma, esclarece a autora (ARANHA, 2006, p. 281), acontece com o sujeito “[...] uma
vez que cada indivíduo tem sua singularidade como, também, suas semelhanças com sua etnia,
sociedade e cultura em que vive [...]”. Portanto, a concepção do ‘eu’ é complexa, porque para
se constituir ele precisa do ‘tu’, assim como ‘nós’ pertencemos ao mundo.
Neste contexto, Morin (apud SOUZA, 2006) refere-se à educação como um importante
processo para mediar, por reflexão, os contrastes que ocorrem em nossa sociedade: o conforto
proporcionado pelo desenvolvimento da ciência e da tecnologia frente ao individualismo,
egocentrismo das pessoas. Como o indivíduo pode tornar-se sujeito ativo, sem se reduzir ao
sistema? E no caso da educação, como os professores poderiam mudar a mentalidade da escola
quando eles próprios estão submetidos ao impacto das incoerências sócio-educativas? São
questões, cuja complexidade pode explicar o apreço de Morin ao conceito de
transdisciplinaridade.
No nosso modesto entendimento, de qualquer forma ainda se requer na escola uma referência
concreta para o trabalho docente, ou seja, uma proposta curricular com indicação de disciplinas
e até mesmo, conforme ocorreu na Escola de Aplicação no período de 1977 a 1986, uma
prescrição programática (de autoria dos próprios professores) com identificação de conteúdos.
Com base nesta referência, os professores, assim nos parece, poderiam planejar em conjunto
programas de ensino a serem postos em prática, até mesmo em nível de interdisciplinaridade ou
de transdisciplinaridade. Evidentemente, não se trata de querer tornar simples conceitos tão
complexos. O que se leva em conta são as condições em geral das escolas: excesso de alunos
que se distinguem por uma pluralidade cultural; condições materiais escolares geralmente
precárias, espaços e tempos de aula na maioria das vezes insuficientes e a questão
preponderante que se refere, em muitos casos, à formação e à motivação dos professores, além
do desempenho de alguns gestores.
60
A propósito da avaliação, Vasconcellos (2009, p.74-75) chama a atenção para os problemas que
devem ser evitados no processo avaliativo da aprendizagem dos alunos. O autor defende a
necessidade de mudanças nesta área a fim de evitar os estragos que vêm ocorrendo no cotidiano
escolar:
[...] Basta lembrar que (os estragos) atingem as mais diferentes esferas: psicológica
(rebaixamento da auto-estima, pedagógica (obstáculo à aprendizagem, por mais
paradoxal que possa parecer, já que deveria promovê-la), política (formação do
pacato cidadão), social (exclusão das oportunidades), econômica (não
desenvolvimento do potencial de criação de trabalho e riqueza), e também ética
(profundas injustiças, bem como, inversão de valores; o valor de troca – nota – torna-
se mais decisivo do que o valor de uso – conhecimento e aprendizagem.
Questões como estas salientam as dificuldades inerentes à avaliação que constitui sempre um
desafio, principalmente para o professor. Tanto assim, que foram constantes, na Escola de
Aplicação, as recorrências aos Conselhos de Classe para a tomada de decisões quanto aos casos
de dúvidas relativas à reprovação ou à aprovação de alunos que se situavam no limite do
rendimento escolar. Por outro lado, em ambos os regimentos (1976 e 1977), era dada
oportunidade ao aluno para ser assistido em aulas de recuperação, além de ser valorizado seu
esforço nos estudos. Mesmo assim, a avaliação da aprendizagem requer sempre do professor
muito discernimento e sensibilidade.
Além disso, Vasconcellos (2009, p.175) alerta para a questão dos modismos na avaliação: “um
dia fazíamos avaliação tradicional, no outro, diagnóstica, depois emancipatória, construtivista,
operatória, mediadora, dialógica, formativa, de 4ª geração, dialética, cidadã, por competência
etc.”. Na verdade, o autor deixa claro o cuidado que se deve ter quanto à escolha de uma
concepção de avaliação que seja adequada aos objetivos estabelecidos para a escola.
No caso de um aluno de 5ª a 8ª série obter, após a prova final, média entre 4,5 e 4,9
em até três disciplinas, área de estudo ou atividade e ter freqüência igual ou superior a
75%, a sua promoção será decidida pelo Conselho de Classe. Nas classes de 1ª a 4ª
série, o Conselho da Escola, convocado por série, ouvido o professor, poderá decidir
sobre a retenção do aluno sem estudos finais de recuperação, quando ele demonstrar
incapacidade para prosseguir os estudos na série subseqüente.
No conjunto, as normas que regiam a verificação do rendimento escolar diferiam das adotadas
na rede oficial de ensino e mesmo na Escola de Aplicação, em 1976, nos seguintes pontos:
adoção de notas ao invés de conceitos; atribuição de pesos às notas das avaliações bimestrais e
finais; e inclusão de exame final após o último período de recuperação. A ideia foi a de que o
emprego de notas constitui uma forma de simplificar a avaliação e, ao mesmo tempo, favorecer
mais objetividade por parte do professor. Por outro lado, a decisão de atribuir pesos às notas e
de incluir uma prova final decorreu do propósito de conferir maior validade às avaliações e de
exigir seriedade e empenho dos alunos em relação aos estudos.
Para melhor entendimento das alterações feitas no quadro de pessoal da Escola em 1976,
apresentamos o quadro, a seguir.
63
1976 1977
Responsável 01 Responsável 01
Professores Orientadores 04 Professores Orientadores 04
Orientador Educacional 01 Orientador Educacional 01
Bibliotecária 02 Bibliotecária 02
Em 1976, como se pode observar no quadro de pessoal, fazia parte do corpo administrativo o
diretor, vice-diretor, assistente da Direção e o Conselho Consultivo, que era constituído de cada
um dos chefes de Departamentos da FEUSP, na época em número de seis. O Conselho
Consultivo, presidido pelo diretor da FEUSP, tinha a função de, na qualidade de representantes
da Faculdade de Educação, participar das decisões consideradas relevantes nos assuntos
relativos à Escola de Aplicação. Também lhes cabia a responsabilidade de apreciar o Plano
Escolar Anual da EA, bem como, os relatórios anuais feitos pela Coordenação Técnica e
apreciados pelo corpo docente e administrativo. Ainda, quando necessário, o Conselho
Consultivo poderia solicitar cooperação de chefes dos Departamentos.
64
Com base nesta organização, pode-se considerar como excessiva a quantidade de pessoas
responsáveis pela direção da Escola de Aplicação, o que poderia, talvez, cercear o grau de
autonomia do diretor e, por conseqüência, da equipe escolar. Entretanto, pelo menos no acervo
documental pesquisado, nada consta neste sentido.
No plano geral da gestão escolar, pondera Vasconcellos (2009, p.153-154) sobre o desempenho
da equipe diretiva, especialmente quando ela é vazada numa linha autoritária:
O exercício do poder talvez seja um dos aspectos mais delicados para a equipe
diretiva. Inicialmente, é preciso reconhecer a existência do poder, não querer negá-lo.
Resgatamos aqui as valiosas contribuições de Foucault (1926-1984): o poder não é
uma coisa que está num determinado lugar, mas algo que flui entre os sujeitos em
relação; esta é uma característica inalienável dos relacionamentos humanos. Assim, a
questão passa a ser não negá-lo, mas discutir sua forma de exercício de que e de
quem se coloca.[...] Entendemos que o educador deve ser uma presença marcante, ser
uma forte referência para a coletividade; não é ser tirano, nem omisso; é ter proposta
e dialogar. E isto vale tanto para a sala de aula (professor), como para a escola como
um todo (equipe).
Ao assumir a Direção da FEUSP, o Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Barros decidiu
substituir o Conselho Consultivo por um único Representante da Faculdade junto à Escola de
Aplicação sendo que, conforme mencionamos, o indicado para esse cargo foi o Prof. José
Mário Pires Azanha, em 1986.
Com relação ao Orientador Educacional, por falta de verbas ele somente foi contratado em
1980. Suas atribuições consistiram de: participação do plano de trabalho da Coordenação
Técnica; acompanhamento e orientação dos estudos dos alunos, inclusive no processo de
recuperação, avaliação e integração escolar; atendimento aos pais, quando solicitado pelo
diretor ou pelo coordenador técnico.
20
Estas informações constam in GORDO, N. Escola de Aplicação da Faculdade de Educação – relatório de atividades,
1981, p. 14-15.
66
Congregação
FEUSP
Diretor Conselho
da FEUSP Consultivo
Representante do
Diretor da
FEUSP
Diretor
da E A
Assistente Associação
do Diretor Escola Lar
Corpo
Manutenção Docente
Conservação e limpeza
Serviço de Serv. Assit. Ao
Supervisão aluno - SAA
Alunos
Conforme dispunha a Lei 5.692/71, foi designado um dos professores da área de Estudos
Sociais, devidamente credenciado, para assumir a orientação do Centro Cívico Escolar, regido
por estatuto próprio com as seguintes finalidades: “programar e realizar solenidades cívicas;
promover atividades de cunho cívico e cultural; estimular a organização e funcionamento de
instituições de classe e extraclasse.” (Artigo 2º do Estatuto do Centro Cívico Escolar, 1981).
69
Congregação da Diretor
FEUSP da FEUSP
Representante
do Diretor Direção da
EA
Conselho
da Escola
Associação
Escola Lar
Auxiliares de
Direção
Secretaria
Orientador Professores Biblioteca
Educacional Orientadores
Corporação
Corpo Docente
Fonte: Gordo, N. (acervo pessoal)
Alunos Cantina Cooperativa
Pais
Quanto à Associação Escola e Lar, dotada de estatuto próprio, contava-se com ampla
participação de pais, inclusive em despesas com reformas da escola, como ocorreu, por
exemplo, com a reconstituição do auditório e dos banheiros dos alunos. Também os pais
participavam da administração da cooperativa da escola e da aquisição de materiais e
merendas para alunos carentes. Ajudavam ainda a diretora no controle da cantina e no
planejamento das festas juninas.
[...] O Conselho não pode ser reduzido a momento de recados, cobranças ou ameaças
(cf. Freire, 1991, p.16), uma reedição das famigeradas “reuniões de pais” do passado.
[...] O Conselho deve ser um espaço de exercício autêntico do diálogo, do poder de
decisão, portanto, de resgate da condição de sujeitos históricos de transformação, na
busca do bem comum no âmbito da escola e de suas relações. A Direção tem, pois,
um duplo papel: em relação a si (superar o fantasma da “perda de poder”) e aos
professores (exorcizar o fantasma da “invasão de privacidade”.
Além disso, a escola não pode mais funcionar isolada da comunidade, intramuros. Ao
contrário, deve abrir-se à comunidade para poder contar com seu apoio necessário e conviver,
de forma compartilhada, com as dificuldades surgidas.
Não diferiu muito o número de classes e de professores nos anos de 1976 e 1977. Entretanto,
entre 1973 e 1975, havia uma superlotação de classes que, em face do tamanho da escola,
exigiu medidas de redução de matrículas.
O quadro, a seguir, indica a distribuição dos professores por disciplinas e respectivas áreas nos
anos de 1976 e 1987.
72
Mesmo com a extinção das escolas normais, ainda hoje prevalece a superioridade do número de
mulheres-professoras. E este predomínio permaneceu na Escola de Aplicação também no curso
de 2º grau, hoje ensino médio, criado em 1985.
Os estudos atuais de Anne-Marie Chartier, historiadora das práticas culturais, vêem o professor
no centro das práticas escolares. A autora observa que com o declínio das chamadas teorias
reprodutivistas, a atual pesquisa na área da educação recolocou o professor no centro das
práticas escolares de que se torna o agente “[...] que as inaugura e funda” (2009, p.37). Ainda
afirma a autora: “Com isso, produziu-se um território propício para a reafirmação
contemporânea do professor como o epicentro das transformações da escola, de uma ‘nova
subjetividade’ emergente.” (ob. cit., p. 38). É o professor que pode vir a ser a alavanca para
uma reforma eficaz com vistas à sua melhoria. Entretanto, as reformas das instituições
escolares são feitas por políticos e administradores que não levam em conta o caráter singular
de cada escola; que desconhecem sua cultura e, principalmente, os saberes dos professores. Daí
a inocuidade das reformas.
No mesmo sentido, Viñao Fraga (apud OLIVEIRA e FARIA LIMA, 2009, p. 47) alerta para o
fato de que os políticos e administradores da educação são responsáveis pela configuração de
um conflito entre duas culturas no âmbito escolar: uma relativa aos professores e outra ao
74
grupo dos políticos e dos professores. Conflito que se torna visível na situação das reformas
das escolas. Para Viñao (OLIVEIRA e FARIA FILHO, 2009, p.47), a reforma da escola
“significaria uma alteração fundamental na organização do sistema educativo e na política
educacional de um dado país”, contudo “os políticos e administradores com frequência
permanecem afastados das necessidades, interesses e possibilidades dos professores”. Para
Viñao (apud OLIVEIRA e FARIA FILHO, 2009, p. 48) as:
São intentos de “reforma pelo alto que não consideram a vida e a experiência dos professores e
a dinâmica das instituições – ou de cada instituição – escolares” (ob. cit., p.48). De fato, as
reformas pelo alto deixam de levar em conta a vida e experiência docente, como também a
dinâmica das instituições escolares. Enquanto isso, malogram-se as reformas porque
desconsideram a cultura da escola.
* * *
Até o final do ano letivo de 1984, a EA mantinha apenas o curso de 1º grau. Considerando a
importância dada à alfabetização e, em especial, à formação do leitor e do autor e ao
desenvolvimento do raciocínio lógico, deu-se especial atenção à Língua Portuguesa e à
Matemática. Por este motivo, e com o objetivo de preparar os alunos de 1ª à 4ª para classes de
5ª à 8ª séries com vários professores, foram atribuídas aulas a duas professoras em cada uma
das classes de 3ª e 4ª séries: uma para Língua Portuguesa e Estudos Sociais e outra para
Matemática e Ciências.
De acordo com o Regimento Escolar (artigo 18) a seleção do corpo docente era de
responsabilidade de uma comissão de que faziam parte o: diretor da escola, o responsável pela
Coordenação Técnica e o professor-orientador da especialidade ou área afim. A seleção
constava de: exame do Curriculum vitae, entrevista, prova escrita e prova didática no caso de
ausência ou insuficiência de experiência docente anterior. A aprovação no processo de seleção
75
não assegurava a contratação, mas apenas credenciava o candidato a essa contratação, uma vez
que ele deveria respeitar a classificação.
21
Livro 8, Ata de 23 de maio de 1979.
76
Nº DE Nº DE ALUNOS
SÉRIES ALUNOS
CLASSES CLASSES
(Sexo (Sexo (Sexo (Sexo
1976 Masculino) Feminino) 1986 Masculino Feminino)
1ª 04 70 50 02 25 35
2ª 04 68 52 02 33 27
3ª 05 80 70 02 29 31
4ª 05 88 62 02 26 34
5ª 04 70 50 02 31 29
6ª 04 67 58 02 28 32
7ª 04 68 52 02 28 32
8ª 04 76 44 02 26 34
Total 34 587 433 16 226 254
Em 1982, a EA contava com 16 classes e cada uma com 30 alunos. Este objetivo foi alcançado,
principalmente com a mudança de critérios para a matrícula, que, até então, eram baseados em
testes de prontidão. Sob orientação de Azanha, o sistema então vigente de matrículas mediante
testes psicológicos foi substituído por sorteio público, conforme consta no Regimento Escolar:
“As vagas para matrícula inicial na 1ª série da EA serão distribuídas por sorteio, pelas
categorias abaixo com as restrições especificadas:
I – um terço das vagas para inscritos que sejam filhos de funcionários docentes ou
administrativos da Faculdade de Educação;
II – um terço das vagas para inscritos que sejam filhos de funcionários, docentes ou
administrativos de outros institutos ou repartições da Universidade de São Paulo;
III – um terço das vagas para inscritos não abrangidos nos incisos “I” e “II”;
§2º – As vagas eventualmente restantes numa das categorias serão primeiramente
oferecidas por sorteio à categoria seguinte.
§ 2º - As vagas restantes de desistências serão novamente oferecidas na categoria em
que ocorrerem;
§3º - O sorteio será publicamente realizado em dia, hora e local a serem fixados pela
direção da Escola..”. .(Regimento Escolar, anexo nº 1).
Com base neste critério, a escola pôde contar com uma clientela variada. Por exemplo, os filhos
dos professores e de funcionários do “campus” eram favorecidos do ponto de vista cultural,
social e econômico. Esses alunos não diferiam muito dos colegas vindos de fora, se bem que
alguns deles, considerados carentes, pertenciam a meios sociais pouco favoráveis, como, por
exemplo, bairros pobres e favelas. Um aspecto importante consistiu na verificação de que,
independentemente do meio de origem, os alunos tiveram desempenho satisfatório nos estudos.
77
Na organização das classes prevaleceu o critério de idade cronológica dos alunos. Outros
critérios adotados como rendimento escolar, atitudes dos alunos não surtiram os resultados
esperados, como, por exemplo, melhoria do aproveitamento e da disciplina dos alunos. Ao
contrário, este critério ocasionou segregação dos alunos em relação aos colegas que
apresentavam menos rendimento. Este fato respondeu por uma atitude de apatia e por vezes, até
mesmo comportamento de rebeldia e de indisciplina.
2.13 ESTÁGIO
Um dos objetivos da Escola de Aplicação foi o de proporcionar estágio aos alunos da FEUSP, o
que foi feito desde que ela assumiu o caráter de aplicação. Em 1976, foram regulamentadas as
condições de estágio para que ele ocorresse de forma sistemática e rotineira com base numa
real integração de esforços da EA e dos professores de Práticas da FEUSP.
Com essa finalidade, foi estabelecido um conjunto de normas que, aprovado pelo diretor e
chefes de Departamentos da FEUSP, passou a orientar as atividades de estágio, desde o seu
planejamento até a sua avaliação.
As normas, tal como foram aprovadas pelos chefes de Departamentos e pela Congregação da
FEUSP, seguem transcritas.
78
Não foi possível atender à totalidade dos estagiários devido a uma série de dificuldades. Muitos
estagiários não tinham condições de estagiar na Escola de Aplicação por falta de tempo, uma
vez que trabalhavam durante o dia e estudavam à noite; alguns não dispunham de horário
compatível com o horário de funcionamento da Escola. Outros estagiários preferiram estagiar
em escolas que exerciam menos controle sobre as atividades. Por outro lado, dado o número
reduzido de classes, não haveria condições para a Escola de Aplicação atender a todos os
estagiários num mesmo período do ano. Por isso, houve a necessidade de redistribuir esse
período entre os candidatos, o que desestimulava alguns deles devido ao receio de não cumpri-
lo em tempo hábil. Mesmo assim, o estágio assumiu um caráter de rotina, podendo ser
considerado razoável em termos de atendimento e das atividades desenvolvidas. Foram
atendidos estagiários tanto do curso de Pedagogia (Metodologia, Prática, Habilitações em
Administração Escolar e Supervisão do Ensino); dos cursos de licenciatura: Educação Física,
Inglês, Francês, Língua Portuguesa, Ciências Sociais, História, Geografia, Ciências e
Matemática. Foram atendidos, também, alunos de outras faculdades do “campus”: Geografia,
História, Matemática, Língua Portuguesa, entre outras.
80
81
CAPÍTULO III
ORIENTAÇÃO PARA AS PRÁTICAS ESCOLARES E
ATIVIDADES EXTRACLASSE
Nas décadas de 70 e 80 do século XX, a pedagogia contemporânea contava com uma extensa
produção de teorias sob a influência das ciências humanas, então preocupadas com a natureza
da criança, com os processos da aprendizagem e métodos de ensino. As concepções inerentes a
essa teorias variavam segundo as tendências evidenciadas – ora centradas no naturalismo ou no
humanismo, especialmente quando se tratava de proposições da psicopedagogia; ora
relacionadas à tendência positivista de Durkeim, à dialética de Marx, à teoria crítica dos
pensadores da Escola de Frankfurt, ao neokantismo, à linha crítico-reprodutivista; às tendências
não-diretivas, entre outras. Diante dessa profusão de teorias e tendências, chama nossa atenção
o posicionamento tomado por Azanha, distante de todas essas linhas teóricas ao estabelecer a
Diretriz e demais orientações a serem seguidas na Escola de Aplicação. Com uma concepção
própria de escola e do papel a ser por ela desempenhado, vamos ver que a atuação desse
educador ficou afastada de todos os “ismos”, fossem o positivismo, o construtivismo, o
progressivismo, o pragmatismo e neo-pragmatismo, o não-autoritarismo. É o que vamos
abordar neste capítulo em que analisaremos os principais documentos da Escola de Aplicação,
todos orientados por Azanha: o Plano Escolar Anual, a Diretriz da escola, que corresponde aos
fins estabelecidos para o processo educativo, orientação para o planejamento e
desenvolvimento das atividades do ensino, inclusive projetos culturais, de ciências e de
alfabetização.
Esse Plano foi instituído em 1977 em caráter definitivo e era flexível o suficiente para permitir
reformulações, quando necessário. Constituiu um instrumento efetivo de orientação das
atividades escolares, especialmente no que se referiu ao item I – Orientação geral e diretriz.
José Mário Pires Azanha escreveu essa linha, em 1977, na forma de uma diretriz a que deu o
título de Orientação Geral da Escola de Aplicação e que sempre constou como a parte inicial
do Plano Escolar de cada ano letivo. Entendemos ser relevante transcrever essa orientação,
ainda que longa, uma vez que ela expressa a concepção de Azanha sobre a escola pública e a
diretriz que lhe conviria seguir. Plano Escolar Anual- 1977, pp. 1 e 2):
a simples originalidade não é algo que tenha um valor intrínseco. É claro que
não se deve incutir um espírito de rebanho, mas é claro também que, muitas,
vezes, a singularidade de um comportamento pode nada ter de criativo e
original, mas deveria até ser motivo de preocupação e de medidas preventivas.
Do mesmo modo, é preciso que a liberdade do educando seja concebida, no
plano individual, como uma complexa exigência interior que deve ser
cultivada e estimulada, e não apenas confundida com a permissão de uma
movimentação física inconseqüente ou inoportuna em face da natureza das
atividades. É preciso que professores e alunos compreendam que disciplina
nem sempre pode ser entendida como uma restrição a qualquer liberdade, mas
apenas como condição indispensável de trabalho individual ou coletivo.
Em seguida, após criticar o movimento de renovação pedagógica, Azanha (1986, p.1 e 2) define
a finalidade da Escola de Aplicação e as condições para seu alcance:
Até 1977, a Escola de Aplicação não dispunha propriamente de uma Diretriz. Os professores,
especialmente das classes de 5ª à 8ª série, vinham trabalhando com uma metodologia bastante
diferente da adotada na educação tradicional. Centrava-se na concepção de que o aluno devia
ser visto como o centro do processo pedagógico, enquanto caberia ao professor propiciar
condições favoráveis à aprendizagem. Sem um posicionamento claramente explicitado, poder-
84
se-ia dizer que a maioria dos professores, consciente ou inconscientemente, manifestava uma
tendência não-diretiva no ensino e que convergia para a rejeição de autoritarismo.
Talvez por este motivo, tenham sido muitos os professores, inclusive alguns orientadores, a
externar divergências da Diretriz, então submetida a leituras e discussões. Não era de estranhar
esta reação, uma vez que Azanha propusera como objetivo da EA “[...] a trivial e
indispensável transmissão de conhecimentos” (GORDO, 1981, p.10, grifos nossos). Isto
numa época em que, ao lado de várias concepções pedagógicas, ainda ganhava expressão a
escola progressiva de Dewey (1859-1952) que, sob a influência do pragmatismo de William
James, identificou sua teoria com a expressão instrumentalismo ou funcionalismo. Autor,
dentre outras obras, de Democracia e educação, Dewey contribuiu de forma notável para a
propagação dos princípios da Escola Nova. Opunha-se totalmente à chamada escola tradicional
que, segundo ele, valorizava o intelectualismo e a memorização. De acordo com Aranha (2006,
p.261-262):
Para a autora (ARANHA, ob. cit., p.262), o professor “não está na escola para impor certas
ideias à criança, ou para formar nela certos hábitos, mas está ali como membro da comunidade
para selecionar as influências que agirão sobre a criança e para ajudá-la a reagir
convenientemente a essas influências”.
De certa forma, a Escola Nova, movimento centrado nos métodos ativos, baseava-se em
princípios consentâneos com as ideias de Dewey, na defesa da individualização e da autonomia
da criança, o que requeria uma escola não-autoritária, apropriada ao educando para aprender
por si mesmo e aprender fazendo.
As críticas à escola tradicional, principalmente por seu caráter livresco e voltado para a
memorização ocorriam em outras teorias, como as de Kerschensteiner e Freinet e, de modo
geral, às teorias de tendências não-diretivas, como a de Carl Rogers (1902-1987) que
culminou, em 1921, com a escola Summerhill, fundada pelo escocês Alexander S. Neill.
85
Parece visível, portanto, o distanciamento das ideias de Azanha em relação aos teóricos da
renovação pedagógica, que, na época, eram amplamente estudados e debatidos entre os
educadores e, principalmente, nos cursos superiores de formação de professores.
Além disso, alguns professores levantaram questões de natureza conceitual: o que é ser crítico?
Qual concepção fundamenta o criticismo? Como se avalia a aprendizagem nessa linha?
Coube à coordenação técnica reunir-se com os professores em reuniões gerais e por áreas para
a discussão desses conceitos. Por orientação de Azanha foram tomadas como referência as
ideias de John Passmore (1981, p. 13)22, que se dedicou ao estudo do criticismo como objetivo
das escolas:
[...] O livre fluxo da imaginação é controlado pela crítica e esta é transformada em
uma nova visão de mundo. Não significa que o livre exercício da imaginação ou a
proposição de objeções sejam, em si, desprezíveis; a primeira pode ser fonte de novas
ideias e a segunda demonstrar a necessidade delas. Mas, por certo, a educação tenta
desenvolver as duas em combinação: “O educador está interessado em encorajar a
discussão crítica, o que é diferente do mero levantamento de objeções. A discussão é
um exercício de imaginação.”.
[...] À medida, pois, que a escola enfatiza, segundo as grandes tradições, a prática da
habilidade, em vez de aprendizagem mecânica – o uso da inteligência em lugar do
desenvolvimento de hábitos – ela, de certa forma, prepara o caminho para o pensamento
crítico-criativo. Parte substancial depende de como é ensinada a habilidade. O princípio
crucial parece ser: sempre e tão cedo quanto possível, substituir os exercícios por
22
John Passmore, filósofo australiano, professor de Filosofia da Escola de Pesquisa em Ciências Sociais e do Instituto de
Estudo Avançado em Canberra, Austrália. Dedicou-se à filosofia analítica tendo em vista o estudo de conceitos na área
educacional, inclusive o conceito de “ser crítico”. Seu livro mais famoso denomina-se A perfectibilidade do homem.
87
problemas. Por problema eu entendo uma situação onde o estudante não pode, de
imediato, decidir que regra aplicar ou como aplicá-la. Por exercício, uma situação na
qual isto é imediato, é óbvia. [...] A discussão crítica de regras aceitas pode começar
bem cedo na vida da criança; o que acontece mais tarde, conforme ela começa a se
iniciar nas grandes tradições, é que a área de discussão se amplia e a diferença entre os
tipos de discussão emerge mais claramente. Tal discussão crítica pode ser embaraçosa
para o professor; ele pode não estar convencido de que a regra seja razoável ou pode
também nunca ter se questionado como ela poderia ser justificada. Qualquer um que se
propõe a ensinar aos seus alunos como ser crítico, deve esperar constantemente ficar em
situação embaraçosa. Pode também esperar ser molestado por sua classe, por seu chefe
e pelos pais. Se ele desistir da idéia de ensinar os seus alunos a serem críticos e, para
aliviar sua consciência, treiná-los em habilidades, isto não será surpreendente. Mas ele
deve, pelo menos, deixar claro o que está fazendo e, ainda mais importante: o que não
está fazendo.
inviável, segundo Azanha (Indicação CEE-SP, 2000, p.7), a concepção da atividade de ensino
fundada na relação pedagógica professor-aluno:
[...] Na escola contemporânea, seja ela pública ou privada, o professor individual que
ensina e o aluno individual que aprende são ficções; seres tão imaginários quanto
aqueles a que se referem expressões como “homo oeconomicus”, “aluno médio”,
“sujeito epistêmico” e outras semelhantes. Não se trata de discutir a necessidade
teórica ou prática de conceitos gerais abstratos, mas a utilidade que eles possam ter
para fundamentar e orientar práticas docentes que devem ocorrer em situações
escolares concretas muito diferentes entre si. No atual quadro histórico – de ascensão
das massas a uma educação cada vez mais ampliada – não há lugar para essa visão
elitista e petrificada da relação pedagógica.
Em face dessa concepção, a coordenação técnica decidiu, conforme foi mencionado, organizar
uma programação de seminários e reuniões de estudo, com vistas à orientação dos professores,
adequada à Diretriz da EA e ao desenvolvimento das práticas escolares, de acordo com o
objetivo proposto. Essa programação foi incluída na Proposta Pedagógica.
89
O projeto pedagógico da escola é apenas uma oportunidade para que algumas coisas
aconteçam e dentre elas o seguinte: tomada de consciência dos principais problemas
da escola, das possibilidades de solução e definição das responsabilidades coletivas e
pessoais para eliminar ou atenuar as falhas detectadas. Nada mais, porém isso é
muito, e muito difícil. [..] A idéia de um projeto pedagógico, visando á melhoria da
escola com relação às suas práticas específicas, será uma ficção burocrática se não
for fruto da consciência e do esforço da coletividade escolar. Por isso, é ela, a escola,
que precisa ser assistida e orientada sistematicamente, e seus membros temporários,
os professores, não devem ser aperfeiçoados abstratamente para o ensino da sua
disciplina, mas para a tarefa coletiva do projeto escolar.
23
A expressão Proposta Pedagógica é também conhecida e usada como Projeto Pedagógico ou Projeto-Político-Pedagógico.
Independentemente da diferença dos nomes, o significado é o mesmo.
90
restava apenas uma hora para as aulas de Português e Matemática. No geral, a carga horária
ficou bastante fragmentada, uma vez que as aulas das outras disciplinas citadas tinham uma
duração de 40 minutos. Descontados, entretanto, 10 minutos para a locomoção dos alunos,
cinco minutos para a organização do material, cada aula durava, de fato, 25 minutos.
Com relação às classes de 5ª à 8ª série, os problemas identificados eram semelhantes aos das
classes de 1ª à 4ª série como, por exemplo: certa indisciplina e barulho nas aulas de alguns
professores cuja concepção era a de que somente com muita liberdade os alunos teriam
condições de serem iniciados na compreensão da democracia e no desenvolvimento da
criatividade.
Outro aspecto referiu-se ao tratamento dado à organização dos programas de ensino. Ao invés
de ser enfatizada a definição dos conteúdos mínimos em cada disciplina, havia preocupação
maior com a formulação dos objetivos operacionalizados em termos comportamentais,
conforme as ideias de Bloom (taxonomia dos objetivos educacionais) que estavam em vigor na
época.
Também foi analisada a desorganização relativa às aulas de Educação Física. Essas aulas eram
ministradas à tarde, em três dias da semana, portanto, fora da carga horária. Apesar de as aulas
estarem, legalmente, sob a responsabilidade dos professores da EA, elas eram dadas, de fato,
pelos estagiários da Faculdade de Educação Física24. Este fato implicava retorno dos alunos à
escola durante três dias da semana com prejuízo dos alunos, dos pais, da disciplina e da ordem
na escola. Também dificultava o controle administrativo e técnico da programação das aulas,
uma vez que se contava com 90 estagiários.
Os técnicos que compunham o setor de orientação pedagógica, como era denominado antes da
reformulação do Regimento Escolar, ficavam impedidos de orientar os professores por falta de
horário comum a todos; havia também a dificuldade de elaborar um plano eficaz de atuação
que permitisse acompanhamento e controle do processo educativo.
24
Embora esse estágio tenha sido planejado de modo que os estagiários trabalhassem sob a supervisão dos professores da EA e
do coordenador de Prática de Educação Física, tal fato não ocorreu. Os estagiários, cerca de 90, assumiram inteiramente as
aulas como se fossem professores substitutos, sem orientação e com planos próprios, desarticulados do plano da escola.
(Proposta Pedagógica, 1977, p.3, acervo pessoal da autora).
91
Após a análise desses problemas, além de outros, eram indicadas na Proposta Pedagógica as
providências necessárias, tomadas em conjunto pelo pessoal coletivo da escola. Por exemplo,
como foi esclarecido, o processo de redução do número de alunos e, consequentemente, de
classes, a fim de que se chegasse a apenas duas classes por série com, no máximo, 30 alunos
cada uma. Essa redução se justificava porque o grande número de alunos tendia a aumentar
cada vez mais devido a uma crescente demanda de matrículas. Além de contrariar as normas
regimentais, então vigentes, o crescente aumento de alunos respondia por dificuldades de
natureza pedagógica e administrativa, sendo que a EA já estava usando salas da Faculdade de
Educação para as aulas. Além disso, o número excessivo de alunos constituía obstáculo à EA
para assumir seu caráter efetivo de uma escola de aplicação.
Na forma descrita, o Projeto Pedagógico era alvo de constantes análises e revisões, tendo-se
sempre em vista uma contínua melhoria da escola, especialmente nos aspectos pedagógicos.
Anual
- Sessão de
Reunião-palestra estudos
Esse trabalho conjunto, realizado pela primeira vez no início do ano de 1977, contou com
certas dificuldades à vista da resistência de alguns grupos de professores que não se
conformavam com a idéia de iniciar a elaboração dos programas a partir da definição de
conteúdos mínimos e não, como costumavam fazer, definir primeiramente os objetivos para
depois traduzi-los em termos comportamentais. Os professores só desistiram desta idéia após
muita discussão e releituras da Diretriz.
A resistência, aliás, já era prevista a partir das divergências iniciais, como já descritas. A
propósito, Vasconcellos (2009, p.149) faz referências bastante pertinentes a situações como
esta:
[..].Alguns elementos a serem considerados no processo de construção dos programas
de ensino: ter clareza de que o Projeto Pedagógico é a grande referência para todos os
demais projetos da escola, inclusive o projeto de ensino-aprendizagem. A disciplina
que o professor ministra não é seu “feudo” ou “propriedade particular.” O educador
deve ter autonomia, mas esta deve estar integrada na perspectiva geral do trabalho
da área, do curso da escola.
Ainda, Vasconcellos (ob. cit., p.151) faz referência à forma de contribuição da coordenação
técnica:
Seria muito positivo que o professor pudesse sentir a coordenação pedagógica como
autêntica aliada nesta tentativa de alterar sua prática e não como elemento de controle
e fiscalização. A equipe de coordenação escolar tem por função articular todo o
trabalho em torno da proposta geral da escola e não ser elemento de controle formal e
burocrático. É interessante refletir sobre a diferença entre acompanhar – que é uma
necessidade- e fiscalizar- que é colocar-se fora e acima do processo.
Após a definição dos conteúdos mínimos, no sentido horizontal e horizontal, por séries, por
classes e por disciplinas, o importante na semana de planejamento consistia numa troca de
informações entre técnicos e professores a respeito de vários assuntos, como a situação da
aprendizagem dos alunos em cada classe e série; o que foi possível desenvolver da
programação de cada disciplina, quais as dificuldades encontradas e o que deveria ser
melhorado; aspectos positivos e negativos da orientação dada pelos orientadores das áreas; o
que deveria ser mudado com relação aos recursos didáticos, se o objetivo da escola estava
sendo alcançado e assim por diante:
94
Vimos que, na década de 70, quando Azanha assumiu a Representação da FEUSP junto à
Escola de Aplicação (1976), predominavam várias teorias de ensino, principalmente as do
progressivismo. Tinham como fundamento a concepção do aluno como centro do ensino-
aprendizagem de modo que o professor seria um auxiliar dedicado à organização das condições
favoráveis à aprendizagem. Assim, nessa concepção eram defendidas ideias como a liberdade
do aluno, a experiência, a pesquisa e o trabalho em grupo como atividades adequadas ao
desenvolvimento do aprendizado autônomo. Faria (1987) discorre sobre as ideias de Rogers
(1971, p.136, grifos do autor) a respeito da técnica do ensino-não diretivo:
É comum a divisão dos alunos em pequenos grupos, que aprendem por sua própria
iniciativa e responsabilidade. [...] (O) método de investigação de Suchman (consiste)
na orientação de pesquisa para alunos que se interessam na descoberta do
conhecimento científico. O professor estabelece o quadro da pesquisa mediante a
colocação de problema; propicia um ambiente receptivo e fornece assistência ao ato
de investigar para que os estudantes se tornem “cientistas por si mesmos”, num nível
natural, provocando respostas a problemas reais.
Além dessa concepção, salientava-se, também, a técnica da aprendizagem por descoberta, cuja
origem está, geralmente, ligada a nomes como Rousseau, Maria Montessori e John Dewey.
Como observa Faria (1987, p.57):
A propósito, por exemplo, do uso da técnica da pesquisa como atividade escolar, Azanha
afirma que só um grave equívoco sobre a natureza da ciência poderia associar a idéia de
pesquisa à busca desorientada de dados. No entanto, raramente, a pesquisa como trabalho
escolar ultrapassa esse estágio: ao aluno dá-se um tema ou problema e o mais é por conta dele,
fazendo pesquisa. Azanha (1977, p.5) afirma que há nisso um jogo verbal travestido de
95
inovação pedagógica, que poderia ser tolerado como inconseqüente se não houvesse
inconvenientes:
E Azanha acrescenta que o único modo pelo qual a pesquisa escolar poderá assemelhar-se ao
autêntico trabalho de pesquisa consiste na proposição, aos alunos, de problemas bem
delimitados e da indispensável indicação de possíveis linhas de trabalho para sua solução. Fora
disso, a pesquisa escolar é uma contrafação da pesquisa científica.
Quanto à técnica de trabalho em grupo, parece que ela conta com mais defensores do que
opositores. Rogers (1971 apud FARIA, 1987, p.13), por exemplo, afirma “[...] ser comum a
divisão dos alunos em pequenos grupos, que aprendem por sua própria iniciativa e
responsabilidade”. Para Azanha, entretanto, não convém o uso desta técnica:
Um dos problemas sempre levantados pelos professores referia-se a: quais disciplinas seriam
relevantes para um ensino que visa ao desenvolvimento do espírito crítico. Dizíamos que todas,
desde que ensinadas nos termos em que a EA propõe a instrução. Excepcionalmente, a Língua
Portuguesa assume especial relevância pelo fato de ser um dos meios por excelência de
comunicação. Seja qual for a disciplina, deve haver uma preocupação constante do professor
em relação à língua, considerando que o ensino se consubstancia, fundamentalmente, na
96
Observa-se na criança, desde cedo, uma crescente avidez de palavras, de nomes, que
é sua maneira de apropriar-se do mundo (a maneira como a menina Hellen Keller,
surda, muda e cega, adquiriu o dom da palavra, o atesta dramaticamente). Não há
nessa avidez um fundamento para todo o desenvolvimento do espírito? Minha
opinião é que para formar as cabeças, a escola não deve ensinar nunca gramática,
senão a língua. Muita, muitíssima leitura; leitura oral, leitura comentada pelo
professor, leitura explicada pelo aluno; leitura em classe, leitura em casa, leitura de
contos (há que alimentar a imaginação da criança); leitura de lendas, biografias,
fábulas, anedotas, episódios históricos, discursos, leitura de pequenos trechos e de
livros completos. E muita escrita, cópia, redação, composição (sobre temas lidos ou
assinalados), cartas de toda espécie, resumos de qualquer tema, conversão em prosa
de trechos poéticos, e escrever em classe, e escrever em casa.E junto com a leitura e a
escrita, habituar o aluno a falar bem, a expressar-se com correção, a pronunciar bem,
a enriquecer sua língua. Tudo o que se faça nesse triplo sentido é pouco.
Porque através da língua, e como complemento dela, pode-se ensinar história,
geografia e ciências naturais. Em rigor, pode-se ensinar tudo, exceto matemáticas. E
mesmo em matemática a experiência mostra que muitos alunos fracassam por não
saber ler bem o enunciado dos problemas.
Outra questão frequentemente discutida pelos professores referia-se ao como ensinar, a qual
metodologia a ser adotada para o alcance dos objetivos da EA, conforme estavam propostos na
Diretriz. Aliás, os professores em geral sempre demonstram interesse por métodos e técnicas de
ensino, sem levar muito em conta as diversas variáveis que interferem na aprendizagem dos
alunos como, por exemplo: conhecimentos prévios do educando a respeito dos assuntos
estudados, a forma de comunicação usada pelo professor, o nível de linguagem dos alunos, e,
na medida do possível, a interação do professor com os alunos e desses entre si. Na verdade, a
metodologia de ensino é um assunto bastante discutível, assim como o é o próprio conceito de
Didática. A propósito, Azanha é autor de um artigo sobre Didática em que ele assume uma
atitude crítica a respeito da impropriedade ou mesmo da inoperância da polêmica sobre
métodos de ensino com vistas à melhoria do ensino ou ao êxito na aprendizagem.
Para chegar a essa conclusão, Azanha começa pelo estudo de métodos que, no caso do ensino,
implica o uso de certas regras que nos remetem a uma questão mais geral: a das relações entre
regras e atividades. Com vistas a esclarecer este assunto, Azanha distingue três casos: jogar
25
Angel Rosenblat é lingüista e pesquisador do ensino da língua nas escolas dos países latino-americanos. É natural de
Caracas, Venezuela, e autor da obra “La gramática y el idioma” em que defende o ensino da língua (falada e escrita) nas
escolas e critica o ensino formal da gramática nas séries iniciais do ensino fundamental.
97
xadrez requer, necessariamente, o conhecimento das regras do jogo. Trata-se, aqui do verbo
saber no sentido de saber que. No segundo caso, é citada como exemplo a ação de nadar que
difere do jogo de xadrez porque é uma atividade que não requer regras: trata-se de saber como.
No terceiro caso, são citados como exemplos: contar piadas com graça, pensar criticamente e
argumentar, que são atividades para as quais não existem regras. Como explica Azanha (1986,
p.75, grifos do autor):
Trata-se de atividades que revelam um saber como, um saber fazer e não um saber
que. Como diz Ryle, se perguntássemos a um humorista a quais regras ele obedece
para contar piadas com graça, provavelmente nada obteríamos. Aqui, segundo o autor
citado, a “prática eficiente precede a teoria”, isto é, o conhecimento de certas regras.
Não há um método para contar piadas, argumentar, pensar criticamente, porque essas
atividades são essencialmente criativas e não há método para inventar”.
Na sequência da sua explanação, Azanha conclui que a atividade de ensinar assemelha-se mais
ao ato de pensar criticamente, de contar piadas com graça, do que ao ato de jogar xadrez ou
nadar. Ensinar é uma atividade que se relaciona com o saber como da atividade de nadar e não
ao saber que próprio da atividade de jogar xadrez. Se alguém disser que uma pessoa sabe
ensinar, o que se pode deduzir disso é apenas que ela teve êxito na sua atividade de ensinar e só
eventualmente será possível dizer que ela segue alguma regra. Diante deste fato, Azanha (1986,
p. 77) conclui:
Essas e outras questões foram objeto de vários estudos e discussões que ocorreram nas reuniões
semanais da coordenação técnica com os professores. Não foram reuniões tranquilas. Como era
de se esperar, houve sempre divergências, especialmente por parte dos professores adeptos dos
métodos ativos e até mesmo do ensino não-diretivo. Entretanto, entendemos que,
principalmente em relação a questões do ensino, as divergências são esperadas e devem ser
vistas como meio de enriquecimento de ideias, uma vez que na área da educação pode haver
esforço para a busca da verdade, mas ela continua sendo apenas um ideal.
98
Vimos que a Diretriz da EA, conforme consta no Plano Escolar Anual, define como objetivo da
escola a formação de alunos com capacidade de crítica, o que requer, necessariamente, uma
cultura geral. Como afirma Vinão (1909, p.46-47):
[...] mais que transmitir determinados códigos necessários para a inserção no mundo
do trabalho dos jovens, a escola teria como finalidade última a formação das novas
gerações, e isso se dá pela transmissão do que de melhor foi produzido pela
humanidade. Os códigos linguüísticos, os feitos da ciência, as habilidades
desenvolvidas pela matemática, além da arte, da história e das práticas de educação
corporal sobre a qual os professores poderão almejar o desenvolvimento pleno das
crianças e dos adolescentes. Não se trata de treinar habilidades e competências, mas
de propiciar o acesso à cultura que poderia, em tese, permitir a edificação de uma
sociedade que supere o preconceito, a violência e a desigualdade. Esse projeto,
segundo a sua ênfase, só pode ter alguma possibilidade de sucesso no âmbito de uma
escola pública, com grande qualidade acadêmica, que tenha professores qualificados
e motivados e sobretudo, que seja laica.
Das peças teatrais apresentadas, salientaram-se “O guriatã” e a “Ceia dos Cardeais” de autoria
de Júlio Dantas, sob orientação do professor de Artes, José Joaquim Marques, e da Profª Drª
Hercilia Tavares de Miranda, professora da FEUSP. Outra peça teatral que merece realce foi
“Roteiro de Viagem”, escrita e organizada por alunos da 4ª série, sob orientação dos
professores mencionados e da professora da classe Maria Salete Cruz. Aliás, esta professora
continua até hoje dando aulas de canto de músicas brasileiras populares, principalmente aos
99
alunos da 1ª à 4ª série. Também eram apresentados corais, declamações e peças teatrais nas
línguas francesa e inglesa, preparados pelas professoras dos “clubinhos” de francês e de inglês,
conforme são descritos mais adiante.
DEPOIMENTO
Cheguei à Escola de Aplicação em 1980 no exato momento da
Semana Cultural que era realizada todos os anos. Fiquei
impressionada com a qualidade dos trabalhos apresentados pelos
alunos; de alto nível, o que refletia a qualidade dos professores
que tínhamos. Encantei-me com a Feira de Livros. O evento
estava sendo realizado no Auditório e a Feira ocupava um espaço
enorme e era de um cuidado apurado, tanto no que se referia aos
títulos apresentados, quanto à forma de montagem. Nunca vi
nada igual em escolas.
* * *
As disciplinas Francês e Inglês eram ministradas nas classes de 5ª à 8ª série. Com o objetivo de
enriquecer a cultura dos alunos, foram organizadas duas salas para serem usadas como
“clubinhos” em horário alternado ao das aulas. Eram desenvolvidas atividades diversas:
conversação, canto e audição musical, redação de textos a partir da leitura de livros da literatura
inglesa, norte-americana e francesa. Essas atividades, iniciadas de forma assistemática em
1980, foram desenvolvidas sistematicamente em 1981, com a programação acrescida de
projeção de filmes, de “slides”, de leituras de revistas e jornais, principalmente da França e dos
Estados Unidos. Além disso, foram apresentadas peças teatrais adaptadas de autores da
literatura francesa, inglesa e norte-americana; canto, declamação de poemas. Segue uma
descrição de parte dessas atividades.
Os clubinhos funcionaram de 1980 a 1984 quando, com o início do ensino médio, as duas salas
passaram a funcionar como salas de aulas, uma vez que não se dispunha de outros locais. Mais
esclarecimentos são apresentados num depoimento da professora de francês, Regina Teresa dos
Santos Machado, a seguir.
DEPOIMENTO
Com o mesmo objetivo de ampliar a cultura geral dos alunos, eram desenvolvidos alguns
projetos de estudo nas diversas áreas de ensino, o que ocorreu principalmente na área de
ciências e da alfabetização No primeiro caso, tratava-se de, num prazo determinado, dar
oportunidade para grupos de alunos interessados em aprofundar o estudo de um tema. Quanto à
alfabetização, optamos por desenvolvê-la também na forma de projeto de estudo para termos a
oportunidade de verificar o grau de eficácia do método adotado, a partir dos registros das
dificuldades verificadas no decorrer do processo de ensino. Desta forma, podíamos testar,
constantemente, a linha de alfabetização adotada com base nos critérios de duração do
processo, eficiência e facilidade na aprendizagem, levando sempre em conta, evidentemente, o
ritmo de aprendizagem dos alunos.
No decorrer das aulas de ciências foram levantadas questões que despertaram o interesse dos
alunos para um estudo mais detido do meio ambiente: o que é meio ambiente? Quais as
relações entre biosfera, tecnosfera e a sociosfera? Quais medidas de intervenção são necessárias
para a reconquista do equilíbrio do meio ambiente?
Evidentemente, não existem respostas conclusivas para a última questão. Mesmo assim,
decidimos formalizar um projeto de estudo do meio ambiente mediante, num primeiro
momento, leituras intensivas sobre o assunto. Os primeiros textos estudados já eram, na época,
compatíveis com as concepções atuais, descritas por Mello (2007, p. 41):
[...] o homem vive numa complexa teia de relações e interações que podemos esboçar
em três subsistemas básicos: a biosfera, a tecnosfera e a sociosfera. Os dois primeiros
compreendem as estruturas energéticas e materiais, e o terceiro, a institucional. A
biosfera inclui os horizontes da atmosfera, litosfera e hidrosfera, onde existe vida. Já a
tecnosfera abrange as estruturas constituídas pelo trabalho humano no espaço da
biosfera. [...] A humanidade vive e interage na relação desses subsistemas que dão o
limite para a existência da vida humana na terra.
Assim, embora as questões de educação ambiental sejam uma preocupação que permeia todo o
desenvolvimento do Programa de Ciências Físicas e Biológicas, em face do agravamento da
deterioração do meio ambiente, decidimos delimitar, primeiramente, o estudo com um projeto
específico, cujo tema foi a água, com vistas a sensibilizar os alunos com relação aos cuidados
que se deve ter com a natureza e o meio que nos cerca.
Diante desse contexto, nosso projeto bem modesto de estudo versou sobre o estudo da água e
sua interrelação biofísica no meio ambiente com base nas noções de ecossistema, cadeia
alimentar e da água na constituição dos seres vivos. Numa convergência para essas noções,
seguiu-se o estudo do ciclo da água na natureza, sujeita à poluição, aos esgotos industriais e
domésticos, problemas que podem ser atenuados mediante esgotos industriais e domésticos e
higiene e saúde a partir de tratamento da água para alimentação.
Também na área de Ciências, foram desenvolvidos pelos alunos, com orientação da diretora e
da professora-orientadora, projetos de mais longa duração: jardinagem da área central da
escola, horticultura com predominância de plantas medicinais; cultivo de plantas frutíferas e
um grande aquário com criação de diversas espécies de peixes.
O objetivo desse projeto foi o de testar na prática a ideia de que a alfabetização, mais que uma
questão de método, requer um plano de alfabetização coerente com a estrutura da língua a ser
ensinada. Se considerada correta essa ideia, o projeto poderia contribuir para o ensino da leitura
e escrita em diversos aspectos, a saber: nos cursos de treinamento de alfabetizadores dever-se-
ia dar mais informações relativas à Língua Portuguesa do que a métodos e técnicas de ensino; o
planejamento da alfabetização seria mais produtivo se se limitasse à organização de uma
estrutura vocabular que apresentasse, numa sequência lógica, as características e as
dificuldades da língua, principalmente as de natureza fonética e fonológica; o acompanhamento
e o controle do processo de alfabetização deveriam ter como referência essa estrutura
vocabular. Ao mesmo tempo, ter-se-ia nessa própria estrutura a base para avaliar o
aproveitamento do aluno e ajudá-lo a superar suas dificuldades. Seguem os fundamentos e
conceitos da proposta de alfabetização.
O estudo da linguagem, assim conceituada, compete à Semiótica, teoria dos signos, cujo
principal precursor foi Peirce. A dimensão dessa teoria é descrita por Santaella (1984, p.14-15):
O projeto de alfabetização desenvolvido na EA foi marcado por uma ênfase dada, no início do
processo, nas características da língua, com fundamentos na Linguística, especialmente no que
se refere à Fonética e à Fonologia. Neste sentido, ao invés da adoção de cartilhas, foram
elaborados roteiros de alfabetização compostos de palavras substantivas familiares aos alunos,
dispostas numa sequência gradativa de dificuldades: das 7 vogais orais às 19 consoantes, em
posição intervocálica que, no total, dão conta de todo o repertório de um falante nativo da nossa
língua.
À medida que os alunos expandem sua competência Linguística mediante leitura e escrita de
frases, palavras, sílabas, eles são incentivados, também, a interpretar textos curtos com sentido,
ilustrados, que possibilitam contatos com atividades no nível amplo da linguagem: leitura,
escrita, desenho, música, pintura, colagem, inspirados na temática em estudos do dia a dia.
Dessa forma, o processo da alfabetização fica centrado, também, no nível da linguagem e não
só no dos signos verbais. Essa ideia fica clara mediante a concepção de signo apresentada,
respectivamente, por Saussure e Peirce.
Por outro lado, Peirce conceitua os signos em geral, dando-lhes um caráter de tríade:
significado, significante, interpretante, conforme explicação de Santaella (1984, p.79):
[...] A partir da relação de representação que o signo mantém com seu objeto,
produz-se na mente interpretadora outro signo que traduz o significado do primeiro (é
o interpretante). Portanto, um signo pode ser traduzido por outro signo num processo
de semiose (processo de geração de signos de que participam um signo, seu objeto e
seu interpretante).
Em face dos conceitos descritos, a elaboração de um roteiro de alfabetização, tal como ocorreu
na Escola de Aplicação, defrontou-se com um problema: o de viabilizar a aprendizagem da
leitura e da escrita a partir de um vocabulário básico estruturado em palavras-chave que
mantivessem sempre significado para o aluno. A solução consistiu na seleção de um conjunto
de palavras-chave, substantivas, que propiciassem, simultaneamente, o estudo dos constituintes
dos signos linguísticos e a formação de novos signos (semiose) em nível de textos.
A necessidade do estudo (leitura e escrita) dos constituintes dos signos linguísticos decorre das
características da nossa língua, descritas conforme segue. Nossa língua constitui um sistema de
signos que, segundo Martinet (1968) “[...] articula-se no nível do enunciado (1ª articulação) e
dos fonemas (2ª articulação)”. Por exemplo, na emissão do enunciado “A menina joga bola”, a
língua cumpre sua primeira articulação. Ao desdobrar este enunciado em seus constituintes
fonêmicos – /a/, /m/, /e/, /n/, /i/, /a/, /j/, /o/, /g/, /a/, /a/, /b/, /o/ /l/, /a/ – realiza-se a língua em
sua segunda articulação.
DEPOIMENTO
Eu, Rosa Maria Jorge Persona, professora da Universidade Federal
de Mato Grosso (UFMT), e técnica em assuntos educacionais da
Secretaria de Educação de Estado – SEDUC, apresento um depoimento
sobre fatos que considero relevantes, após o estágio realizado na
Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP, em São Paulo,
numa classe de primeira série, na participação do planejamento de
curso de treinamento de alfabetizadores e na revisão do documento
desta Secretaria da Educação “currículo compactado” (1ª e 2ª séries),
no período de 25 a 27 de novembro de 1976 (Anexo 1).
Uma avaliação importante do trabalho realizado pela Escola de Aplicação consta no ofício
endereçado ao Reitor da Universidade de São Paulo pelo diretor da Faculdade de Educação,
Prof. Dr. Heládio César Gonçalves, afirmando o nível de importância da Escola de Aplicação a
justificar sua manutenção. Num rol de justificativas, inclusive a respeito da alfabetização, o
diretor da FEUSP assim se manifesta (Ata da Congregação, 1984, Livro 12, p. 656-57):
O projeto foi descrito na nossa dissertação de mestrado. Dada à natureza desse trabalho,
decidimos retomar parte do projeto, uma vez que a alfabetização constitui uma tarefa
complexa, alvo contínuo de pesquisas, estudos e proposições.
A língua é um sistema de signos que exprimem ideias, e, por isso, é confrontável com
a escrita, com o alfabeto dos surdos-mudos, os ritos simbólicos, as fórmulas de
cortesia, os sinais militares etc. Ela é simplesmente o mais importante de tais
sistemas. Pode-se, assim, conceber uma ciência que estude a vida dos signos e, em
conseqüência, da psicologia geral, chamá-la-emos semiologia (do grego signo).
Neste sentido, Peirce (1977, p.44) propõe a Semiótica como uma teoria geral dos signos: “Uma
doutrina da natureza essencial e das variedades fundamentais de cada semiose possível”.
Linguagem
Características Características
• Verbal e não- verbal integrados, repertório • Ênfase no verbal, repertório programado, alta
programável (alta informação) previsibilidade (baixa informação)
• Linguagem centrada na função poética • Linguagem centrada na função referencial
• Incentivo no processo da semiose: geração de • Ênfase na estrutura da língua
signos verbais a partir de signos não verbais
• Receptor ativo; interpretante em processo contínuo • Receptor passivo: usuário de signos pré-
de semiose; tentativa de recuperação do poético a selecionados
partir do cotidiano
• Metodologia da descoberta (heurística) assume o • Metodologia condicionadora, ênfase na
erro; insere o provável automatização
• Emissor e receptor: aluno e professor • Emissor: professor; aluno receptor
Os professores das classes da 2ª série ficaram encarregados de, juntamente com seus alunos,
receber os alunos das 1ªs séries. O programa da recepção foi planejado pela equipe responsável
pelo Projeto: o professor de Artes Plásticas, Kim, a professora Hercília Tavares de Miranda da
FEUSP, as professoras da 1ª série Maria Júlia De Bonnis, Maria Aparecida Bicudo. A parte
inicial constou de uma recepção aos alunos da 1ª série pelos alunos da 2ª série.
Estes alunos escolheram os locais da escola para onde eles levariam os colegas: sala de Artes,
biblioteca, jardim, horta, auditório e quadra de esportes. Quanto às atividades, a escolha dos
alunos constou de jogos recreativos, pinturas, desenhos, colagens, dobraduras, canto. Assim, o
112
objetivo foi plenamente alcançado: os alunos recém-chegados logo se integraram entre si e com
os colegas das 2ªs séries.
Ficou decidido que nenhum roteiro prévio de alfabetização seria preparado. O vocabulário
básico da alfabetização seria formado no decorrer das atividades programadas, conforme foi
descrito acima. Desta forma, foi substituído o programado pelo programável, no nível do
provável, o que implicava, também, assumir o erro.
O “Castelo”, tão bem aceito pelos alunos da 1ª série, deu margem a inúmeras atividades em
nível de comunicação e expressão: narração de histórias, criação de poemas e de músicas,
dramatizações, audição de histórias; desenhos, ilustrações, construção de castelos com papelão
e papéis coloridos, também mediante dobraduras; informações sobre as mais diversas formas
de moradia, desde as cavernas até edifícios de apartamentos; iglus, casas de barro e de pau-a-
pique, mansões modernas. Também foram lembradas muitas histórias infantis de reis,
príncipes, princesas.
Ao visitarem, certo dia, a sala de Artes, os alunos ficaram encantados com uma bela porta que
foi feita juntamente com alunos da 5ª à 8ª série para servir de cenário numa peça teatral. O
professor Kim e a professora Hercília aproveitaram o interesse das crianças para discutir o que
poderia significar essa porta. As ideias foram muitas: passagem para um jardim, para um
castelo, uma linda festa. Também foi lembrado que o ato de abrir e fechar uma porta lembrava
o pulsar do coração: a entrada de tudo o que tem vida! No dia seguinte, o professor Kim levou,
bem antes das aulas, a porta para uma das salas de aula da 1ª série.
Quando os alunos chegaram e viram a porta, bateram palmas com muita alegria. Kim e a
professora Hercília aproveitaram o momento para discutir com os alunos o que a porta
113
representaria para eles. Todos queriam falar ao mesmo tempo e a professora pediu a cada um
que fizesse uma sugestão. No final, foi escolhida uma das sugestões e todos concordaram: a
porta serviria de “passagem” para todas as personagens que seriam construídas pelos próprios
alunos (Foto 3.). Depois, como se tratava de duas classes, Kim e os alunos fizeram uma porta
muito bonita para a outra sala de aulas. Aliás, nas duas classes eram desenvolvidas as mesmas
atividades.
Num dia em que todos estavam cuidando do jardim da escola, houve um grande alvoroço
quando um aluno mostrou aos colegas uma grande aranha. Kim aproveitou o interesse e propôs
que todos, em grupos, fizessem, na sala de Artes, umas aranhas com dobraduras, linha,
lantejoulas e fios de lã. Os alunos escolheram duas aranhas maiores para ficarem, em cada sala,
numa teia. Essas aranhas foram colocada numa ala da sala, onde já havia algumas flores feitas
com papel crepon. E os alunos deram ao local o nome de “Jardim Mágico” Todas as
personagens que eram construídas ficariam morando no “Jardim Mágico”. As aranhas foram
tecendo seus fios e “produzindo” outras aranhas que ficaram no alto das salas, (Fotos 4, 5, 6 e
7.).
Ao chegar a primavera, o jardim da escola ficou todo florido numa variedade de cores. Diante
do encantamento das crianças, Kim e a professora Hercília, juntamente com as professoras das
1ªs séries desenvolveram várias atividades com base no tema “A primavera”: poemas, pintura
de flores, plantio de mudas de outras flores trazidas pelas crianças, organização de paineis com
as pétalas que naturalmente caíam no chão. Depois, em homenagem à primavera, os alunos
construíram diversos varais com fitas das mais variadas cores. Os varais foram expostos no
saguão da escola e nas salas de aula. (Foto 8.).
As professoras escreviam, em fichas de cartolina, legendas com os nomes das personagens que
eram feitas pelos alunos. Colocavam legenda em cada um dos objetos. Desta forma, em leitura
incidental, os alunos iam se familiarizando com a escrita. Eram, também, incentivados a copiar
as palavras das legendas: castelo, porta, aranha, “Jardim Mágico”, primavera, flores.
Estas e outras legendas eram lidas espontaneamente pelos alunos. E à medida que liam, eram
solicitados a copiá-las num caderno a que foi dado o nome de “Diário de Vida”. Depois, com
base nesse diário, foi possível organizar um vocabulário básico para a sistematização da
alfabetização.
114
Num outro canto das salas, próximo à janela de vidro, os alunos decidiram “plantar” uma
bananeira que foi feita, sob a orientação do Kim, usando-se para isso papéis coloridos,
recortados no formato de folhas de bananeira, assentadas num tronco feito com pedaços de pau,
forrados com papel verde de seda. Segundo a idéia dos alunos, a bananeira ali plantada deveria
dar sombra às aranhas-filhotes. (Foto 9.).
Dos varais da primavera, surgiu a idéia de desenhar e pintar um grande arco-íris que, colocado
acima do quadro-negro, daria luz ao “Jardim Mágico.” (Foto 10.).
Para evitar, entretanto, uma atitude de rejeição aos pássaros, a professora Ângela explicou aos
alunos que, apesar do acontecido, os pássaros também deviam ser amados: graças a eles, eram
espalhadas sementes de todas as espécies de plantas que cresciam na forma de flores, de
árvores frutíferas e comuns, de ornamentação e até mesmo de plantas medicinais. Os alunos
entenderam a importância dos pássaros e perguntaram ao Kim se não poderiam pôr alguns
pássaros nas salas de aula. O professor mostrou-lhes que isto não era recomendável porque as
aves ficariam presas e elas gostavam de voar em liberdade. No entanto, ele sugeriu aos alunos
que desenhassem vários pássaros e, depois, poderiam escolher os que fossem do agrado de
todos. Depois de ser escolhido o desenho, Kim deu-lhes papelão, cola, tesouras, papéis
coloridos e transparentes para que fizessem um pássaro igual ao do desenho. Desta forma, foi
criado o pássaro “Juím” e o prenderam com um fio bem fino perto da janela, dando a idéia de
que estava voando. (Foto 12.).
Outra atividade que foi bastante agradável e produtiva consistiu na leitura, pelas professoras, do
livro “Flicts”. Os alunos gostaram muito do livro e aceitaram a sugestão de fazer um painel
115
inspirado na história. (Foto 13.). Depois, com a orientação da professora de música, Cristina
Gatti, foi criada uma música “As cores”, inspirada no “Flicts”. (Foto 14.).
Por sugestão do professor Kim, os alunos tiveram a oportunidade de trabalhar com argila. A
aprendizagem consistiu no preparo da massa de argila e em moldá-la com formas diversas:
objetos utilitários como cuias, pratos, vasos, pires. A professora de música aproveitou a
oportunidade para orientar a confecção de instrumentos musicais. (Foto 15.).
Nessas atividades de modelagem, sugeri às professoras das classes que orientassem os alunos
para a formação de letras do alfabeto. Tive a oportunidade de constatar que no decorrer da
modelagem das letras, os alunos se aperfeiçoavam rapidamente na execução de movimentos de
coordenação motora fina, necessária à aprendizagem da escrita. Desta forma, as alfabetizadoras
e eu elaboramos um plano de aulas de modelagem. Com auxílio da diretora e da “Associação
Escola e Lar”, foi contratado o professor Jean, especialista em arte cerâmica, para dar aulas de
acordo com o plano durante três meses.
Tanto os objetos criados, quanto as várias letras modeladas ficaram expostos até o final do ano
letivo no “jardim Mágico” de cada classe. (Foto 16.).
As atividades e as produções dos alunos foram semelhantes nas duas classes, portanto, com
contextos iguais: o cantinho das “aranhas-filhotes”, a “Abelha Caramelo”, a “Lua-Sol”. Ocorria
muito barulho nas classes devido à natureza dos trabalhos. O professor Kim e a professora
Hercília se reuniram com as duas classes e disseram aos alunos que precisavam resolver o
problema do barulho. Perguntaram aos alunos como poderiam solucionar o problema. Depois
de várias discussões, todos aceitaram a sugestão de um deles: fazer um grilo grande de papelão
e que seria chamado o “Grilo da Paz”. Quando as professoras colocassem o grilo entre as flores
do “Jardim”, todos deveriam ficar em completo silêncio. Foi um grilo para cada classe. Quando
as professoras punham o grilo no jardim, a classe ficava em silêncio e, dessa forma, foi
resolvido o problema. (Fotos 17, 18, 19, 20.).
longas caudas de luz. Na parede de cada classe foi posto o “Cometa da Luz” que teria a
companhia de todos. (Foto 21).
A horta serviu, também, de fonte de inspiração para muitas atividades, principalmente a partir
de aulas dadas pela professora Ângela, orientadora da área de Ciências. Um dia, ela discorreu
sobre os animais úteis às plantas, como, por exemplo, os sapos que já tinham sido vistos pelos
alunos. Eles demonstraram interesse para acompanhar as fases de crescimento dos sapos. Um
dia, um aluno apareceu com um girino numa vasilha com água e pediu à professora para ele ser
criado na sala de aula. (Foto 22). Assim, a professora Ângela, juntamente com os alunos,
construiu um terrário.
Um pai de alunos deu à classe uma caixa de casulos e descreveu as fases de desenvolvimento
das borboletas. Inicialmente, os alunos quiseram guardar os casulos numa caixa enfeitada com
papel celofane, mas depois decidiram com as professoras que eles ficariam num dos armários
do laboratório de Ciências. Depois de algum tempo, as professoras contaram a grande
novidade: as borboletas estavam saindo dos casulos. Todos correram para soltá-las no jardim e,
então, assistiram aos vôos das pequenas borboletas coloridas. As crianças acenavam para elas e
batiam palmas. (Fotos 23, 24 e 25).
Depois o professor Kim ensinou aos alunos como fazer borboletas com papeis coloridos. Em
homenagem às borboletas que se foram e, como lembrança, as borboletas feitas foram coladas
numa das janelas de cada sala de aula. (Foto 26.).
Todas as situações descritas, objetos e desenhos figurativos feitos pelos alunos constituíram um
contexto que tinha muito significado para eles. Esse contexto, portanto, facilitou bastante o
processo da alfabetização.
Inicialmente, verificamos os “Diários de Vida” dos alunos para identificar as palavras que eles
já sabiam ler e escrever mediante leitura incidental das legendas e cartazes. Foram identificadas
muitas palavras e expressões: “aranha”, “jardim mágico”, “porta”, “passagem”, “cometa”,
“rosas”, “primavera”, “espantalho”, “grilo da paz”, “Flicts”, “borboleta”, “varal de fitas”,
“girino”, “sapo”, “abelha caramelo”, “pássaro Juím”, “casulo”, “bananeira”, entre outras.
117
Em vista desse vocabulário e da forma como ele foi “construído”, procuramos fugir do
processo silábico, a partir de análise fonética, caso contrário seria perdido todo o contexto
significativo que fora criado. Assim, para evitar a “dissecação” desse contexto e compatibilizá-
lo com a alfabetização, pusemos em prática o seguinte plano:
Na primeira etapa, esse vocabulário foi revisto pelos alunos com vistas à reconstrução dos
eventos que a ele se referiam. Em seguida, substituímos a “silabação” e a análise fonética por
exercícios de leitura sob a forma de paranomásias (anagramas). Por exemplo:
Palavras
Aranha fio sala magia
Ara fia sal mar
Arara fira sara marola
Ar fiar safira mala
118
Frases
A aranha tece fios de teia na sala.
Os fios no ar parecem marolas do mar.
Entretanto, esse processo era demorado e não conseguíamos ter muito claro um vocabulário
básico da alfabetização que contemplasse todas as ocorrências da língua. No início do mês de
outubro, decidimos aproveitar o recurso das paranomásias e sistematizar o processo da
alfabetização mediante atividades de análise e síntese do vocabulário estabelecido.
Transcrevemos as palavras em fichas que, após serem lidas pelos alunos, eram recortadas em
sílabas. Em seguida, as sílabas eram reagrupadas, formando palavras novas. Por exemplo:
Mantivemos preocupação de usar textos na função poética tanto em atividades de leitura, como
de escrita. Posteriormente, foram trabalhados textos nos demais gêneros.
No final do ano letivo, as duas classes liam com certa desenvoltura textos sob a forma de
poemas e de prosa. Também escreviam textos quase sempre voltados para as situações criadas,
conforme descrição feita. Além disso, os alunos escreviam sobre fatos das suas experiências.
Por exemplo, um aluno escreveu sobre seu gato que havia sumido de sua casa e do qual sentia
muita saudade. Uma aluna que chorou muito por ver seu cartaz rasgado por um colega do
período da manhã (aluno de 5ª série), escreveu sobre a sua tristeza. Outros alunos escreviam
textos imaginados sobre nuvens, cometas, jardins mágicos. Outros preferiam escrever fatos
reais relacionados com objetos ou animais que faziam parte do contexto criado nas salas de
aula.
Para conhecimento do nível dessas redações, seguem algumas cópias dos textos originais
escritos pelos alunos.
119
Na primeira fase das atividades do Projeto, pode-se dizer que a prática correspondeu à
construção artística dos alunos na linha do “ready-made”, conforme denominação de Marcel
Duchamp. Por convenção, objetos utilitários, reais são declarados obra de arte pelo artista, sem
qualquer alteração em sua aparência externa. Foi o que ocorreu com a porta, os casulos, as
borboletas, os girinos, as lagartas etc. Conforme expõe Duchamp, no “ready-made”
aproximam-se arte e realidade de forma que o objeto se auto-representa e se configura como
imitação de si mesmo.
Para Duchamp, citado por Karin Thomaz, o objeto descontextualizado liberta-se da sua
finalidade unidimensional e consumista, ganhando uma aparência pura. Arte e objetos de
situação se identificam: a “coisa” da vida declarada arte, chama a atenção para a própria vida.
Esse processo de construção da realidade pode também ser interpretado do ponto de vista
artístico visual. Referimo-nos a dois conceitos: o de “happening” de Allan Kaprow e o de
“action” de Karin Thomaz. O “happening” visa transformar espectador em ator. O cotidiano da
vida torna-se insólito ganhando um novo sentido. O espectador ator desperta-se da letargia do
comportamento habitual e frui o prazer da descoberta de sua própria vida num outro nível de
pensamento e de sentimento. Afrouxam-se seus “óculos sociais”, devolvendo-lhe, até certo
ponto, o “olhar inocente”, perdido na infância.
Na nossa experiência, o “happening” ocorria diariamente e com facilidade uma vez que a
criança é naturalmente predisposta ao jogo da imitação. Evidentemente, não se poderia perder
de vista o objetivo principal do trabalho: alfabetizar. Construídos os referentes, era necessário
empregá-los num processo sistemático de leitura e escrita. O que implicou, num certo
momento, a interrupção dos eventos de improvisação do “happening” e o emprego de
estratégias previamente planejadas para ações determinadas e conscientes de aprendizagem da
língua. Também na arte, ainda na descrição de K. Thomaz, a Ação marca-se pela intenção
deliberada de distanciar espectador e artista. É o momento em que cabe ao ator apresentar
interpretações alternativas da realidade, isto é, das condições da atividade humana no tempo e
no espaço.
120
A alfabetização não dispensa técnicas. Mas também não a arte. Mas como mantê-la (a arte)
uma vez que a língua, enquanto objeto de aprendizagem, “amarra” a percepção/cognição em
quadros mentais já estereotipados pela práxis?
Blikstein (1985, p.86) vê a solução no cultivo da função poética da linguagem:
Em relação ao ensino, é à metáfora de Ortega Y Gasset (1987, p.303) que recorremos para
fundamentar a experiência de alfabetização, marcada de uma simbologia “afetiva” e de
estímulos à criatividade:
[...] Uma pedagogia de “secreção interna”, pelo contrário, fomenta as funções vitais
do educando. Nas funções psíquicas importam os sentimentos. A alegria, a tristeza, a
esperança, a melancolia, a compaixão, a ambição, o rancor, a simpatia, e outras
inúmeras forças do sentimento constituem alavancas de crescimento, de tendência à
ascensão.
É preciso preservar o “olhar inocente” da criança e seu modo próprio de ver o
mundo. Nesse mundo em que tudo pode vir a ser, a autêntica varinha de virtudes é a
própria alma da criança.
Ortega Y Gasset (PALMER apud ORTEGA Y GASSET, 2005, p.295, grifo do autor)
evidencia assim sua concepção radicalmente humana da pedagogia, sendo que suas ideias
devem ser entendidas no plano de sua própria vida, uma vez que para ele, como para
PALMER, a vida é como “ [...] uma unidade de dramático dinamismo entre o mundo e a
pessoa, e é necessário que a pessoa a concretize”.
Em face do que relatamos e diante dos resultados obtidos, o conjunto das atividades
desenvolvidas parece comprovar a eficiência das orientações dadas por Azanha. Conforme ele
sempre dizia – “é de forma comum e com recursos simples que se leva a termo a
aprendizagem”. Mesmo os conflitos surgidos em face da resistência e das divergências de
alguns professores e orientadores constituíram situações favoráveis para o enriquecimento do
trabalho pedagógico, o que ratifica o pensamento de Azanha: nem sempre o consenso deve
preponderar num grupo de trabalho: muitas vezes é das divergências que surgem oportunidades
mais ricas e criativas para o processo educativo.
Outro fato que merece atenção consiste num certo afastamento, que é necessário, de
proposições relativas ao que se denomina “renovação pedagógica”. Muitas das vezes, são
proposições distanciadas da realidade cultural da escola e, por isso mesmo, inócuas ou de
resultados escassos.
121
122
CAPÍTULO IV
ESCOLA DE APLICAÇÃO:
RELATO DO COTIDIANO E AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM
A descrição cultural da Escola de Aplicação, ou seja, do seu dia a dia, refere-se a mentalidades,
discursos, atitudes, hábitos, conflitos, procedimentos, resultados escolares, regulamentações
etc. Tomamos como base a proposição de Azanha (1992, p.4) ao discorrer a respeito de um
“Programa de pesquisas sobre a cultura escolar brasileira” em que ele esclarece como devem
ser feitas as descrições das práticas escolares:
Para a autora, além de heterogênea, a vida cotidiana é também hierárquica. Nos tempos pré-
históricos, por exemplo, o trabalho ocupava um lugar primordial na hierarquia; já, para a
população livre da Ática do século V antes de nossa era, o lugar central da vida cotidiana
consistia na atividade social, no divertimento em que predominava o cultivo dos aspectos
físicos e mentais; na contemplação. Hoje, entretanto, parece ser difícil identificar a atividade
central da hierarquia na vida cotidiana devido à complexidade da nossa sociedade e até mesmo
da vida individual. Considerando o dia a dia na escola e conforme vimos com Azanha, no
123
Conforme já vimos, no início de 1976 a EA entrou num processo de reorganização porque, até
então, ela continuava com os mesmos objetivos e organização de Escola de Demonstração,
vinculada ao Centro de Pesquisas Regionais “Prof. Queiroz Filho” que fora extinto e, no seu
prédio, instalara-se a atual Faculdade de Educação. Como já foi esclarecido, para essa
reorganização da Escola de Demonstração e com o objetivo de atribuir-lhe o caráter de uma
escola de aplicação, o diretor da FEUSP designou o professor José Mário Pires Azanha para ser
o representante da Faculdade junto à EA.
Além de termos sido aluna e orientanda desse professor, já vínhamos trabalhando desde 1963
sob sua coordenação, no Programa de Assistência Técnica em Educação, junto às secretarias de
Educação dos Estados do Norte e do Nordeste (1963 a 1968) e, depois, como orientadora no
Setor de Orientação Técnica, instituído por ele na Secretaria de Estado da Educação de São
Paulo. Acreditamos que, devido a essa longa convivência, o Professor José Mário Pires Azanha
tenha nos convidado para coordenar a Escola de Aplicação. Evidentemente, foi bastante
significativo o convite, mas ao mesmo tempo, havia o constrangimento de assumir uma função
que até então havia sido exercida pela Profª Adla Neme. Conversamos sobre a situação e ela
esclareceu que seu interesse consistia tão-somente em continuar como orientadora de
Matemática o que, de fato, aconteceu.
Entretanto, essa mudança não transcorreu de forma pacífica devido a vários motivos: a
professora Adla fazia parte do corpo docente da FEUSP, já vinha atuando há tempo como
supervisora da Orientação Pedagógica na Escola de Aplicação, desde quando ela era Escola de
124
Sabe-se que a estrutura social de uma escola assemelha-se a um conjunto de ilhas por mais
harmoniosa que seja a interação entre as pessoas. Há vários grupos: dos professores da 1ª à 4ª
série, dos professores da 5ª à 8ª série, dos colegas de classes de uma mesma série; dos que
lecionam uma mesma disciplina; dos orientadores, dos auxiliares e dos diversos agrupamentos
dos alunos, segundo inúmeros critérios, como sexo, idade, atividades esportivas e até mesmo
classe econômica e social. Evidentemente, esses aspectos muitas vezes impedem um
relacionamento harmonioso constante, isento de conflitos.
Outra característica da escola é a de que ela é dinâmica e sujeita a constantes mudanças. Pode-
se dizer que nenhum dia escolar é semelhante a outro: sempre surgem fatos novos, situações
imprevistas, adesão a ideias, valores, conflitos; conciliações e desentendimentos, inovações e
resistências; convergências e divergências. Portanto, o cotidiano da Escola de Aplicação, como
o de qualquer outra instituição escolar, deve ser analisado nesta ótica.
Predominava um ambiente de “família” que se firmou mais ainda com a entrada da diretora,
comunicativa, alegre, simpática e, ao mesmo tempo, competente como profissional. Mantinha
tudo em dia e em ordem, desde a limpeza geral da escola até os serviços de documentação e as
125
Do mesmo modo, Dona Ondina e a orientadora da área de Ciências, Professora Ângela Valim
da Silveira, desenvolveram com todos os alunos um projeto de jardinagem na área central da
escola e sua manutenção era feita pelos próprios alunos: para cada dia da semana, uma classe
do período da manhã e da tarde, ficou encarregada de “afofar” a terra, tirar as ervas
daninhas e regar as plantas. Constantemente, Dona Ondina dizia: “O jardim é dos alunos.
Todos precisam pôr as mãos na terra.”. Também foram afixadas placas em cada árvore com
identificação de seu nome científico. Ainda, no fundo do terreno foram plantadas árvores
frutíferas e, ao lado da escola, fez-se, com os alunos, uma horta com plantas medicinais. Sob a
orientação da professora Ângela, os alunos temperavam garrafas de vinagre com essas plantas
e as vendiam na “Semana Cultural de Outubro” e nas festas juninas. A manutenção dos dois
projetos ficou também sob a responsabilidade dos alunos.
126
DEPOIMENTO
Depois, por sugestão de Azanha, foi assentado um banco sob uma das árvores e nele foi
gravado um dos versos de Cecília Meireles: “Saudade é um banco vazio de jardim.” Também
por sugestão dele foi feito um arco contornado com flores da planta “Primavera” na entrada da
rampa que dava acesso ao 1º andar. No alto do arco foi colocada uma placa em que estava
escrito “Aqui se estuda com prazer!”.
Passado pouco tempo após o incidente, a diretora fez um projeto com alunos e pais para uma
reforma total do auditório. A verba foi obtida após uma série de atividades: festa junina com
barracas, venda de sorvetes, bingos, sorteios de prêmios, além de doações de vários pais e
auxílio financeiro da Associação Escola-Lar que sempre batalhou pela melhoria da escola. O
Auditório ficou impecável e passou a ser usado para apresentação das atividades programadas
para a “Semana Cultural de Outubro”: peças teatrais, Coral da USP, encontros dos alunos com
autores de livros lidos, “Feira de Livros”, além de várias reuniões. Constantemente o auditório
era cedido aos professores da FEUSP para realização de Encontros, Debates, Palestras,
Seminários.
Outra boa qualidade da Diretora consistia na facilidade com que ela conseguira um bom
entrosamento do pessoal da escola. Participava sempre de um animado “café do recreio” com
os professores e técnicos. Às vezes, ela levava bolo e biscoitos. Ria-se muito com os casos que
ela contava. Além disso, no final de cada semestre, ela organizava um almoço para todos na
própria escola, o que criava um clima alegre e descontraído.
Mas Dona Ondina era severa quando se tratava do cumprimento da legislação e das normas
estabelecidas no Regimento. Cumpria e fazia cumprir tudo à risca, desde horários de trabalho
até atendimento ao calendário e aos documentos escolares em geral. Devido a este
comportamento, não era raro surgirem conflitos, principalmente com professores que, por
chegarem à escola com atraso, eram impedidos de assinar o ponto no horário que
corresponderia à aula a ser dada. Outro fato gerador de conflitos ocorria nos horários após o
recreio. Ao sinal de término, se algum professor permanecesse na sala do café, a diretora
mandava chamá-lo e pedia a um dos auxiliares que entrasse imediatamente com a classe. Isso
129
criava certo mal-estar entre os professores que criticavam a “excessiva rigidez” da Dona
Ondina. Na verdade, ela não aceitava um mínimo deslize no cumprimento das normas, fosse
por parte dos professores, dos técnicos, do pessoal administrativo ou dos alunos.
Como já foi esclarecido, tivemos dificuldade para sermos aceitas como coordenadora
pedagógica. Por isso, no início limitamo-nos a um relacionamento bastante informal e
amistoso, principalmente com os professores, sem, no entanto, deixarmos de desenvolver as
atividades que, segundo as normas, estavam sob nossa responsabilidade.
O trabalho inicial que nos foi solicitado pelo professor José Mário consistiu na elaboração da
primeira Proposta Pedagógica para a Escola. Com certo constrangimento, dissemo-lhe que
nunca havíamos feito este tipo de documento. Então, ele nos pediu que fizéssemos, por escrito,
um levantamento de todos os aspectos negativos da escola e frisou que os aspectos positivos
não requeriam, evidentemente, qualquer observação. Anotamos as deficiências conforme já
descrevemos no tópico “Proposta Pedagógica”: currículo sobrecarregado para as classes de 1ª à
8ª série, excesso de excursões, de trabalhos em grupo e de pesquisas a partir de temas dados;
número excessivo de estagiários encarregados das aulas de Educação Física.
A partir dessas questões, o Professor José Mário solicitou, para cada uma delas, indicação das
providências que deveriam ser tomadas para solucioná-las. E assim foi feito. Após tomar
conhecimento dessas proposições, o professor esclareceu que estava praticamente pronta a
Proposta Pedagógica; requeria apenas uma introdução na forma de Diretriz ou Orientação Geral
e perguntou se queríamos escrevê-la ou se preferíamos que ele a escrevesse. Prontamente,
passamo-lhe a incumbência.
130
Terminada a Proposta, o professor José Mário esclareceu que ela só teria validade se fosse lida
e discutida, criticada, ou não, e aprovada por todo o pessoal da escola, pois, um Projeto
Pedagógico deve, necessariamente, ser fruto de um esforço coletivo, caso contrário, não passa
de uma mera imposição sem conseqüência. Assim, demos cópias à diretora e a todos seus
funcionários, com inteira liberdade para acrescentar ou modificar o que julgassem necessário.
Da mesma forma, demos cópias a cada um dos integrantes da coordenação técnica, inclusive à
orientadora educacional e à bibliotecária. Marcamos uma reunião a fim de tomar ciência do
parecer de cada técnico.
Na verdade, foram necessárias várias reuniões, pois, havia muitos pontos de discordância,
especialmente no que se referia à eliminação das técnicas de “trabalho em grupo”, de
“pesquisas pelos alunos a partir de temas dados pelos professores” e das excursões. Mas o
ponto mais alto das divergências centrava-se na Diretriz em que o professor José Mário propôs
como objetivo da escola “a mera e indispensável transmissão de conhecimentos”. Solicitamos
que relessem e que comentássemos a Diretriz por inteiro, o que nos pareceu que, até certo
ponto, minimizou as discordâncias. Solicitamos, então, a cada professor-orientador que
discutisse a Proposta Pedagógica com os professores de suas áreas. Esclarecemos que eles
teriam toda a liberdade para fazer críticas e alterações, desde que as justificassem e
reescrevessem os itens que fossem alvo de divergência.
Adotamos o mesmo procedimento em reuniões com todo o pessoal da escola. Foram reuniões
demoradas e difíceis, mas no final, a Proposta foi aprovada com algumas modificações, como,
por exemplo, a manutenção das excursões e de algumas pesquisas que já estavam planejadas.
Sob a orientação de Azanha, coube à coordenação técnica, à professora Neuza Rocha Goyano,
e a alguns professores da Faculdade a elaboração de um novo Regimento para a escola. Este
131
deveria incluir o escalonamento das disciplinas curriculares, de acordo com a LDB, com
atribuição de carga horária maior à Língua Portuguesa e à Matemática a fim de enfatizar a
formação geral dos alunos.
Após certo tempo, as professoras disseram que a proposta das leituras estava dando certo. Os
alunos liam muito e o problema é que escolhiam livros diferentes, além dos indicados. E todos
queriam comentar o que tinham lido. Desta forma, as professoras precisavam ler muito também
e não tinham tempo para mais nada nas aulas de Português! A sorte é que contavam com a
ajuda da Bibliotecária. Então, sugerimos que incentivassem os alunos a escrever sobre o que
quisessem com base no que liam. O que deu bom resultado na produção escrita dos alunos. Ao
mesmo tempo, o professor de Artes Plásticas, José Joaquim Marques, integrava as leituras com
produções artísticas: desenhos, pinturas, ilustrações, cartazes. E algumas professoras cantavam
com as crianças os poemas musicados em livros infantis como, por exemplo, “A arca de Noé”,
de autoria de Vinícius de Moraes e “Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles.
Como sempre ocorre, as classes não eram homogêneas. Havia alunos que apresentavam
lentidão na aprendizagem e requeriam assistência especial em aulas de reforço. Outros alunos
não demonstravam o mesmo interesse dos colegas pelas atividades de leitura e de escrita. Havia
mesmo grupos de alunos que “em segredo” faziam rodízio para as leituras que depois eram
compartilhadas por todos. Assim, cada aluno lia apenas um livro, mas “comentava” todos os
livros indicados como se os tivesse lido. Os alunos da 1ª série começavam a ler e a escrever
somente a partir do segundo semestre.
132
Não se podia perder de vista que a capacidade de crítica requer uma cultura geral, o que exige
uma contínua aquisição de conhecimentos das diversas áreas: História, Geografia, Literatura,
Artes em geral, Ciências, Matemática e, de modo especial, a Língua Portuguesa.
Para atender melhor a esse requisito, a coordenação técnica e os professores propuseram, como
objetivo primordial, a formação do aluno como leitor e autor, já a partir das séries iniciais.
Assim, da 1ª à 8ª série, os alunos e professores passaram a ler livros de bons autores da
literatura infanto-juvenil. Neste caso, prevaleceu a escolha de autores clássicos que, entre
outras vantagens, abordam temas universais que se perpetuam no tempo e no espaço, sempre
sujeitos às mais diversas interpretações. Não são, portanto, objetos de consumo que se esgotam
no término da leitura. Em seu livro “Por que ler os clássicos”, Ítalo Calvino (1985, p.11-12)
define livros clássicos: “livros que, quanto mais conhecemos por ouvir dizer, quando são lidos
de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. [...] “Um clássico é um livro que nunca
terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.
Com atuação conjunta dos professores e da bibliotecária, a maioria dos alunos lia muito. Para
se ter uma idéia, apresentamos relação de livros lidos em cada série durante um ano letivo.
1ª Série:
1) s/a, A história da ratinha (conto popular), EBAL, RJ, 1979.
2) s/a, Ali-Babá e os 40 ladrões (conto popular, EBAL, RJ, 1979.
3) Barrie, James, Os meninos voadores (Peter Pan), EBAL, RJ, 1979.
4) Collodi, Pinóquio, EBAL, RJ, 1979.
5) Grimm (Irmãos), A bela Adormecida, EBAL, RJ, 1979.
6) Grimm (Irmãos), O patinho encantado, EBAL, RJ, 1979.
7) Grimm (Irmãos), Os sete cabritinhos e o lobo, EBAL, RJ, 1979.
8) Helô, Cocorocó, a galinha esperta, EBAL, RJ, 1979.
9) Helô, Manchinha, a bezerra ingênua, EBAL, Rj, 1979.
10) Helô, Os dois valentes, EBAL, RJ, 1979.
11) Helô, Pim-Pim, o ursinho travesso, EBAL, RJ, 1977.
133
12) Penteado, Maria Heloisa, Lúcia-já-vou-indo, 3ª ed., Ática, São Paulo, 1979.
13) Perrault, O gato de botas, EBAL, RJ, 1979.
14) Salloutti, Elza César, A árvore zoológica da Lalico Pimentão, Ática, SP, 1980.
15) Sébille, Colette, O patinho e a pena, 2ª ed. Ática, SP, 197
2ª série
1) Almeida, Fernanda Lopes de, A fada que tinha ideias, 2ª ed. Ática, SP, 1979.
2) Andersen, H. C, Contos de Andersen, 9ª ed., Brasiliense, SP, 1978.
3) Carvalho David de, As aventuras dos três Joãozinhos, Pioneira, SP, 1979.
4) Grimm (Irmãos), Contos de Grimm, 8ª ed. Brasilense, SP, 1978.
5) José, Guaymédes, A galinha Nanduca em São Paulo, Pioneira (Série Pinju), SP, 1979.
6) Leornardos, Stella, O geniozinho faz de conta, Pioneira, SP, 1979.
7) Machado, Maria Clara, Clarinha na ilha, José Oympio, RJ, 1979.
8) Machado, Maria Clara, Pluft, o fantasminha, CEDIBRA, RJ, 1970.
9) Moraes, Vinícius de, A arca de Noé, poemas infantis, José Olympio, RJ, 1980.
10) Penteado, Maria Heloisa, A menina que o vento roubou, 2ª ed., Pioneira, SP, 1979.
11) Penteado, Maria Heloisa, Trinca de reis, Pioneira/MEC, SP, 1979.
12) Prado, Maria Dinorah Luz, Felpudo e Olhogrande, Globo, Série Paradidática, Porto
Alegre, 1979.
13) Rocha, Ruth, O reizinho mandão, 2ª ed. Pioneira, SP, 1979.
14) Veríssimo, Érico, A vida do elefante Basílio, Globo, Porto Alegre, 1979.,
15) Veríssimo, Érico, As aventuras do avião vermelho, 10ª ed., Globo, Porto Alegre, 1980.
16) Veríssimo, Érico, O urso com música na barriga, Globo, Porto Alegre, 1975.
17) Veríssimo, Érico, Rosa Maria no castelo encantado, Globo, Porto Alegre, 1975.
3ª série
1) Almeida, Lúcia Machado de, Estórias do fundo do mar, 5ª ed., Melhoramentos, SP, 1980.
2) Andrade, Carlos Drummond de e outros, Para gostar de ler, vol. V, Ática, SP, 1979/80.
3) Cascudo, Câmara, Lendas Brasileiras, Ed. Ouro, RJ, s/d.
4) Defoe, Daniel, Robinson Crusoé, Ed. Ouro, RJ, s/d.
5) Druon, Maurice, O menino do dedo verde, 21ª ed., José Olympio, RJ, 1979.
6) Dupré, Maria José, A ilha perdida, 7ª ed., Ática, SP, 1975.
7) Kipling, Rudyard, Estórias bem assim, Ed. Ouro, RJ, s/d.
8) Lessa, Orígenes, Memórias de um cabo de vassoura, Ed. Ouro, RJ, s/d.
9) Lobato, J. B. Monteiro, Peter Pan, 22ª ed., Brasiliense, SP, 1979.
10) Lobato, J. B. Monteiro, O sítio do Pica-Pau Amarelo, 19ª ed. Brasiliense, SP, 1977.
134
2) Bulfinch, Thomas, O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, Ed. Ouro, RJ,
s/d.
3) Cascudo, Câmara, lendas brasileiras, ed. Ouro, RJ. s/d.
4) Picchia, Menotti Del, Juca mulato, Ed. Ouro, RJ., s/d.
5) Ramos, Graciliano, Contos e lendas brasileiras, Ed. Ouro, RJ., s/d.
6) Veríssimo, Érico, Música ao longe, 27ª ed., Globo, Porto Alegre, 1979.
Obs.: Nesta série, foram ainda lidas diversas obras à escolha dos alunos.
7ª série
1) Amado, Jorge, A morte e a morte de Quincas Berro D`Água, Record, RJ, s/d.
2) Amado, Jorge, Capitães de areia, Record, RJ., s/d.
3) Forsyth, Frederick, O pastor, Record, RJ, s/d.
4) Hess, Hermann, Contos, Civilização Brasileira, SP., s/d.
5) Huxley, Aldous, O admirável mundo novo, Círculo do livro, SP, s/d.
6) Picchia, menotti Del, Juca mulato, Ed. Ouro, RJ, s/d..
7) Veríssimo, Érico, Contos, 5ª ed., Globo, Porto Alegre, 1980.
8ª série
1) Amado, Jorge, Capitães de areia, Record, RJ, s/d.
2) Bach, Richard, Ilusões, Record, RJ, s/d.
3) Hess, Hermann, Demian, 16ª ed., Civilização Brasileira, RJ, 1979.
4) Picchia, Menotti Del, Juca mulato, Ed. Ouro, RJ, s/d.
Diariamente, passávamos nas classes de 1ª à 4ª série e dizíamos aos alunos: “Como é? Estão
lendo bastante? Precisam ler mais!”. Devido a esta atitude, aconteceu um fato engraçado que
ilustra bem o envolvimento dos alunos com leitura. Chegamos perto de uma aluna da 2ª série
junto ao bebedouro e ela disse: “Ô, Nívia, estou adorando a “Vivi Pimenta.”! Ante um olhar de
interrogação, ela interpelou: “Não vai me dizer que não leu!”. E acrescentou, gesticulando com
o dedo: “Precisa ler mais, hein?”
DEPOIMENTO
O bom do trabalho na Escola de Aplicação era a liberdade que
as crianças tinham para escolher e ler os livros de que gostassem.
Certa vez, uma aluna quis levar para casa o livro que contava a vida
do Hitler. Ela pegou o livro e ninguém contestou, mas a linguagem era
muito difícil. No dia seguinte ela veio devolver, pois não tinha
conseguido ler. Não precisou ninguém dizer, ela mesma descobriu que
não dava para ler.
Numa outra ocasião, um dos alunos leu O fantasma de Chaterville,
ele gostou tanto do livro que chegou à sala de aula e não parava de
falar sobre o livro. O resultado foi que todos os alunos leram, ou seja,
a tal propaganda de boca em boca. Além disso, o aluno fez o resumo
do livro com as passagens de que ele mais havia gostado. O melhor de
tudo é que eles liam por prazer, porque não havia prova, nem nota;
eles gostavam de ler e pronto. As crianças são curiosas e é possível
trabalhar isso com os livros. Da Odisséia de Homero, por exemplo,
eles começaram a trabalhar com mitologia. Acontece que eu quis
situar Homero nesse contexto, e comecei a falar de Sócrates. Expliquei
a eles que mesmo os discípulos desse mestre, por vezes discordavam
deles. Os alunos queriam saber porque Sócrates era revolucionário e
porque ele teve que tomar cicuta e queriam saber porque ele teve que
se retratar. Eu expliquei que mesmo na Antiguidade quando alguém
contrariava o Estado e a Igreja, era condenado, principalmente na
época de Sócrates. Então eles me perguntaram: e se ele não quisesse
beber? E eu lhes disse que por motivos éticos Sócrates resolveu não
fugir.
Houve uma discussão dos alunos de 4ª série, logo que surgiu na
China a lei que obrigava as famílias a terem um único filho. As
crianças discutiam o que seria feito diante da possibilidade de
nascerem gêmeos ou trigêmeos. O pensamento deles gerava discussão
e tinha conteúdo.
Voltando ao assunto da época da Escola de Aplicação, Monteiro
Lobato foi um sucesso, mas ninguém ganhava da Ágatha Christie.
Certa vez, um dos alunos, de descendência japonesa, queria ler o
livro da Ágatha Christie, mas a mãe não queria porque acreditava
que a obra da autora só tratava de crimes e de violência. Mas o
menino gostava muito e mais tarde a mãe descobriu que o texto da
autora não era sanguinário, mas de suspense, que era a trama que
prendia a atenção do filho. Ele leu toda a coleção da biblioteca e o
pai teve que comprar os demais livros da autora que a escola não
137
tinha. Quanto à Escola de Aplicação posso dizer que nunca tive tanta
oportunidade de exercitar minha criatividade quanto no tempo em
que trabalhei lá e nesse projeto que acabamos de relatar. “Tinha
criança que fazia lição na carteira e ficava com um livro no colo.
Muitos autores visitaram a Escola de Aplicação nessa época:
Ziraldo, Hamilton Ribeiro, Eliardo França e sua esposa Eliana, Ruth
Rocha, Tatiana Belink, Toni Brandão e outros.
Maria Salete Cruz, 2009
DEPOIMENTO
Na ocasião eu falei com a Dona Ondina e com você também Nívia. Disse-
lhes que eu não estava satisfeita com o andamento da participação dos alunos
na biblioteca. Então vocês me propuseram montar um projeto, ou um
programa nesse sentido. Propus então que além do empréstimo dos livros,
fizéssemos uma orientação de leitura de modo que os alunos passassem a se
interessar, de fato, pela leitura e a escrita, baseadas no que foi lido.
Fiz um plano e apresentei para a Nívia que achou ótimo, e gostou tanto que
levou a proposta para todas as professoras da Escola de Aplicação.
Propusemos que a leitura não ficasse solta, e para tanto fiz uma lista dos
livros selecionados de acordo com a série e a faixa etária de cada aluno,
Entreguei uma lista para os professores de cada série para que eles decidissem
sobre a melhor forma de trabalhar.
Eu lia todos os livros antes de colocá-los na prateleira da biblioteca, e dava
o meu parecer sobre o texto, sobre a linguagem etc. A biblioteca passou a ser
chamada de sala de leitura. Essa nomenclatura foi fundamental porque não é
preciso ter uma bibliotecária, mas alguém que auxilie as crianças na hora da
leitura (a Nívia brigou por isso também).
Lezilda Vigneron, 2009
Outro depoimento que julgamos importante é feito por uma ex-aluna, Emi Koide, que estudou
nos cursos fundamental e médio da Escola de Aplicação. Emi, que exerce a função de
pesquisadora, tem uma longa e exitosa trajetória acadêmica. Mestre em Ciências da
138
Comunicação pela ECA/USP, Emi graduou-se em Artes Plásticas pela Unicamp e hoje é
graduanda em Filosofia e Doutoranda em Psicologia na USP. Segue seu depoimento.
DEPOIMENTO
A professora Adla Neme, orientadora de Matemática, trabalhava mais à parte, pois esta matéria
não propicia integração explícita com as outras disciplinas a não ser com Português, no que se
refere à leitura de enunciados de problemas e com as disciplinas que visam ao desenvolvimento
do raciocínio lógico e a estudos com dados estatísticos.
Esse relatório geralmente ocasionava uma série de conflitos. Como eram apontados os acertos e
os desacertos da escola, alguns professores e até mesmo orientadores discordavam, muitas
vezes com veemência, das críticas apresentadas. As reuniões se transformavam em calorosos
debates. Quanto a nós, entendíamos que numa escola em que se propunha como objetivo o
desenvolvimento da atitude crítica, era preciso “saber conviver com as divergências”. Portanto,
mantínhamos um diálogo mediante argumentos que justificassem as críticas feitas no relatório.
Algumas vezes, as revíamos diante dos contra-argumentos que julgávamos procedentes. Assim,
houve reuniões gerais que tiveram duração de até quatro horas quando o previsto era de, no
máximo, duas horas. Um fato desagradável consistiu na reação de alguns professores e mesmo
orientadores que, ao invés de se posicionarem no plano da divergência de ideias, viam as
críticas como ofensa pessoal e passavam a manter uma atitude antagônica em relação à nossa
pessoa. Instaurava-se, assim, um clima de desarmonia e, o que era pior, de um antagonismo
pessoal disfarçado. Neste sentido, podemos dizer que desde o início de 1977, a equipe de
professores se dividia em um grupo que era favorável à orientação e à Diretriz da escola e outro
contrário não só a esta linha, quanto à coordenadora e ao professor José Mário que passou a ser
rotulado como positivista. Vamos ver que mais tarde, em 1984, esta situação já constituía o
embrião da “rachadura”, que iria eclodir quando a Escola de Aplicação entrou em crise,
conforme será relatado mais adiante.
A área de Comunicação e Expressão que estava sob nossa responsabilidade era a mais extensa.
Era integrada por professores de Português, Artes Plásticas, Arte Musical, Francês, Inglês e
Educação Física. Também faziam parte do grupo a orientadora educacional e a bibliotecária.
Com o objetivo de integrar os professores e também as atividades de cada disciplina, várias
vezes pedíamos a um desses professores que desse “aulas” para o grupo. Essa atividade dava
bons resultados, tanto no nível de interação dos professores entre si quanto no nível das
disciplinas. O professor de Educação Física dava uma aula, por exemplo, de alongamento e
esclarecia sua importância para cada parte do corpo, principalmente das crianças que estavam
em processo de crescimento. A professora de música explicava como ensinava música e nos
convidava a cantar uma música previamente selecionada. O professor de Artes dava aulas de
expressão corporal, imitando, por exemplo, uma ave, um animal. Foi assim que descobrimos o
que havia acontecido numa aula de Matemática na 5ª série. A professora escrevera na lousa
para a classe: “Seja o número 8”. De repente, ela ouviu um barulho de carteiras, virou-se e viu
os alunos se contorcendo em gestos de expressão corporal para “serem um 8”, conforme faziam
em atividades de expressão corporal nas aulas de Artes!
141
O professor José Mário não ia diariamente à Escola de Aplicação, mas estava sempre a par de
tudo, orientava e sugeria procedimentos para solução de problemas surgidos mediante contato
frequente com a diretora e a coordenadora. Algumas vezes, participava de reuniões com os
demais orientadores da Coordenação Técnica e com a bibliotecária para sugerir títulos de livros
da literatura infanto-juvenil e biografias de grandes cientistas e artistas.
integral com os alunos. Além disso, como não eram especialistas, tinham mais condições de
trocar experiências sobre procedimentos, conhecimentos, técnicas de trabalho. O grupo era
muito alegre, bem humorado o que propiciava um clima de harmonia e de amizade dos
professores entre si e com os alunos.
manter o prazer e o interesse pela leitura e para a expansão da competência Linguística dos
alunos, especialmente na comunicação oral e escrita. Também era feito um constante trabalho
com a bibliotecária, encarregada de desenvolver um plano de leitura em todas as séries,
conforme já foi descrito. Desta forma, interagíamos com os professores de 5ª à 8ª nas reuniões
semanais.
Com o processo de redução de classes e de alunos, a escola passou a ter duas classes por série e
30 alunos por classe, num total de 480 no Ensino Fundamental, o que facilitava muito o
acompanhamento dos alunos em todos os sentidos: avaliação da aprendizagem, recuperação,
frequência e disciplina. Mesmo assim, como acontece em todas as escolas, havia grupos que
eram mais irrequietos e requeriam atenção maior por motivo de brigas, de transgressão das
normas da escola. Nestes casos, os alunos constituíam alvo da atenção da diretora, da
144
orientadora educacional e dos próprios professores. Em situações mais graves, os pais eram
chamados para tomar ciência das ocorrências e assumir os procedimentos cabíveis. O artigo 20
do Regimento Escolar apresenta normas relativas aos alunos:
Apenas um aluno foi cogitado de suspensão por escrever em letras grandes na parede da escola
“Cecília gosta de homem”. Isto gerou um tumulto por parte dos pais da menina e do pessoal da
escola. Convocado pelo Conselho de Classe, o aluno foi interpelado a respeito do que fizera.
Sua explicação pegou todo mundo de surpresa: “Eu não quis fazer nenhum mal a Cecília. É
que quando lhe falei em namoro ela me disse que não queria porque eu sou muito criança.
Então achei que ela queria namorar um homem”. Diante disso, o caso foi encerrado com uma
advertência ao aluno por haver “pichado” a parede da escola e fazer citação pessoal da aluna.
Entre os meninos havia certa divisão: o grupo que estudava pouco porque preferia esportes e
jogos esportivos e o grupo que preferia o contrário, estudava muito e não gostava de esportes.
Isso gerava provocações, apelidos, o que exigia intervenção constante dos professores e da
orientadora educacional.
De qualquer forma, é preciso reconhecer que os adolescentes têm características próprias que
os dispõem a protestos e a contrariar o que é tido como norma. Como o objetivo da escola era o
de desenvolver atitude crítica e a criatividade, os alunos eram incentivados a expor suas
divergências, mas também, a justificá-las mediante argumentos lógicos. De modo geral, os
alunos apresentavam bom rendimento escolar, principalmente porque queriam ficar livres do
exame final.
145
Os auxiliares eram professores que tinham mais contato com todo o pessoal da escola. Alguns
ficavam nos corredores das classes para atender, quando necessário, a professores e alunos.
Outros ficavam na cozinha para o café e para aquecer as marmitas dos funcionários que
levavam suas refeições como acontecia com os próprios Auxiliares. Aliás, a cozinha era o
recanto predileto de todos para um “bate-papo” alegre e descontraído e onde sempre se tomava
um cafezinho. Era na cozinha que, como se diz na prática, ficava-se a par de todas as “fofocas”,
pois os funcionários “sabiam de tudo”. As auxiliares também observavam os recreios,
controlavam a limpeza das salas de aulas, da sala dos professores, da Direção, do pessoal da
Secretaria e da Biblioteca. Além disso, faziam outros serviços solicitados pela Direção. Eram
queridos por todos e participavam sempre dos eventos da escola.
Além dos auxiliares, a EA contava com a ajuda de um vigia, Senhor Enéias que, juntamente
com sua esposa, Dona Antônia residiam numa das dependências da escola sob manutenção da
Associação Escola e lar. Eram pessoas ótimas e bastante prestativas. Muitas vezes, alguns pais
chegavam tarde para pegar os filhos. O casal levava as crianças para sua casa e, com carinho,
serviam-lhes um lanche ou até mesmo um jantar. Alguns professores almoçavam na casa deles
mediante uma quantia previamente estabelecida. Dona Tonica estava sempre pronta para
oferecer um cafezinho e pão ou bolo às pessoas da escola que gostavam muito de fazer-lhe uma
visita. O casal era querido por todo o pessoal, inclusive pelos alunos, e participava de todos os
eventos da escola.
A maioria dos pais fazia parte da “Associação Escola-Lar” e dava importante ajuda à escola,
que não dispunha de verba suficiente para atender a várias necessidades: material escolar,
merenda e uniforme para os alunos carentes, consertos do prédio, material para as aulas de
Educação Física e de esportes e, conforme já foi descrito, verba e materiais para a reconstrução
do auditório que foi alvo de incêndio. A diretora era muito ligada à Associação e, no final de
várias reuniões, eram tomadas providências para resolver as mais diversas dificuldades.
Um evento que contava com inteira participação dos Associados e de outros pais era a Festa
Junina que propiciava vultosa arrecadação de dinheiro para a manutenção da Escola. Uns
146
meses antes eram iniciados os preparativos para a festa: professores ensaiavam as quadrilhas
com os alunos; pais e comerciantes doavam prendas para as inúmeras barracas e leilões; eram
adquiridos balcões de sorvetes, refrigerantes e água a serem vendidos pelos professores. Todos
participavam dos preparativos: professores, auxiliares, direção, pessoal da Secretaria, alunos,
pais e mães. Dona Ondina escalava os professores para, em rodízio, responderem por serviços:
cuidar de barracas; vender sorvetes e bolos feitos pelas mães; vender cartões para sorteios de
prendas diversas. Pode-se dizer que a festa junina era o evento por excelência de integração do
pessoal da escola e dos pais. E também era a maior fonte de renda da escola.
Outro evento importante que não dava rendimentos em dinheiro, mas que movimentava todo o
pessoal da escola e os pais era o da “Semana Cultural de Outubro”, a que já fizemos referência.
No auditório eram apresentados todos os dias peças teatrais, coral, encontros com autores lidos
pelos alunos. Nas salas de aulas, havia exposições artísticas de trabalhos feitos pelos alunos; era
apresentada a “Cerimônia do Chá”, uma feira de livros, uma sala em que as mães japonesas
expunham “ikebanas”, “dobraduras”; em outra sala os alunos davam explicações, sob a
orientação da professora Ângela, a respeito de como fazer chás com plantas medicinais
apropriadas para tratamento de saúde. Assim, a semana era muito movimentada e propiciava
muita interação do pessoal da escola e dos pais.
A Direção cedeu um espaço para funcionamento do Centro Cívico Escolar a que os alunos
deram o nome de “Nosso Território”. Sob a orientação da professora Heloísa Ghisi, os alunos
desenvolviam diversas atividades: planejamento das festas de comemoração cívica, festivais
musicais, campeonatos esportivos, reuniões para discussão de problemas apresentados pelos
colegas, seminários e debates. Certa vez, os alunos tiveram o consentimento da diretora para
leitura e discussão das normas regimentais da escola. Por outro lado, na época de planejamento
da Festa unina e da Semana Cultural de Outubro, todos os membros do Centro Cívico
auxiliavam bastante a Direção, tanto na forma de sugestões quanto na participação das
atividades.
147
De acordo com as normas de estágio, no início do ano letivo professores da FEUSP deviam
fazer, juntamente com a coordenação técnica, planos de estágio para os alunos da Pedagogia
que se interessavam, principalmente pela área administrativa, orientação educacional e técnica.
O relacionamento com esses alunos era muito bom e nunca houve qualquer problema quanto ao
cumprimento das normas e do estágio em si.
Também eram recebidos alunos da licenciatura que preferiam estagiar nas salas de aula para
um contato mais próximo com as disciplinas de seu interesse. Alguns deles se dispunham a
participar das aulas de recuperação e das atividades da bibliotecária, principalmente junto às
classes da 1ª à 4ª série. Muitos deles se interessavam pelas aulas de alfabetização e
colaboravam com os professores dando assistência aos alunos que apresentavam dificuldades
de aprendizagem.
Conforme as normas, no final do estágio, cada aluno entregava um relatório das atividades
desenvolvidas, incluindo-se um comentário a respeito dos aspectos positivos e negativos do
estágio e da escola. As observações feitas eram bastante pertinentes e nos ajudavam a rever
aspectos que, de fato, requeriam alterações
Feita em homenagem ao professor José Mário, a peça foi apresentada durante uma semana e
contou com a presença dos pais, pessoal da escola e diversos convidados: professores da
FEUSP, do “campus”, da PUC e de outras instituições. Todas as apresentações contaram com o
auditório lotado. A propósito da peça, um dos Cardeais, Renato Modesto de Souza, é hoje um
grande ator de teatro.
4.10 COMENTÁRIOS
A definição claramente estabelecida de uma diretriz para a escola constituiu uma referência
sólida para assegurar, gradativamente, a coerência do trabalho pedagógico em todos os níveis
do ensino de 1ª à 8ª série. Essa coerência, por sua vez, tornou consistente o trabalho integrado
dos professores-orientadores, da orientadora educacional e da bibliotecária que se empenharam
149
junto aos professores e alunos, com vistas a um bom rendimento escolar. Evidentemente, não
se tratou de uma convivência tranquila, como foi relatado. Aliás, ocorreram muitos conflitos no
plano das ideias e, como não deveria acontecer, muitos deles foram levados para o plano
pessoal, o que dificultou a integração desejada. Quanto à aprendizagem, houve a questão da
diferença de ritmo de aprendizagem o que justificou a proposição de aulas de reforço e de
recuperação durante todos os anos letivos aos alunos que requeriam assistência.
Ainda, o fato de a escola funcionar mediante uma diretriz possibilitou a identificação de acertos
e de desacertos, o que propiciava tanto a manutenção quanto o redirecionamento do trabalho
pedagógico. Outro aspecto que não pode ser desconsiderado é o de que a rotina de uma escola é
sempre dinâmica, estando sujeita a divergências, a conflitos internos. No caso da Escola de
Aplicação, esta situação requeria muito diálogo sem qualquer intento de persuasão mas, pelo
contrário, dando-se primazia aos argumentos lógicos. Conforme orientação do professor José
Mário, as divergências, ao contrário das convergências, podem constituir excelentes
oportunidades de crescimento pessoal e intelectual, e mesmo de melhoria do que, até então,
fosse considerado bom e correto.
Devido ao empenho de todos na aprendizagem dos alunos e dos resultados obtidos, a escola foi
ganhando um bom conceito. Tanto que os pais não mediram esforços para a implantação do
ensino médio, então, ensino de 2º grau.
150
CAPÍTULO V
ESCOLA DE APLICAÇÃO: 1983-1986
Entretanto, o reitor da USP, Professor Doutor Antonio Helio Guerra Vieira já havia enviado um
ofício ao diretor da FEUSP, conforme segue:
São Paulo, 12 de julho de 1984. Senhor Diretor [...] Consulto Vossa Excelência e os
órgãos próprios da Faculdade de Educação sobre o interesse da Faculdade em manter
a Escola de Aplicação, para suas atividades de ensino e pesquisa, como também
sobre as atividades dessa natureza, baseadas na Escola, que tenham sido
desenvolvidas até esta data. Consulto também sobre a alternativa dessas mesmas
atividades serem desenvolvidas em escola pública de rede estadual, mediante
convênio com a Secretaria da Educação. Valho-me do ensejo para renovar-lhe
protestos de elevada estima e distinta consideração.
151
O assunto era realmente bastante discutível, uma vez que este objetivo não vinha sendo
alcançado de forma plena, o que indicava a necessidade de melhor entrosamento entre as duas
instituições, apesar de que as normas de estágio tenham sido aprovadas pela Congregação da
FEUSP, após consultas ao corpo docente e aos chefes dos Departamentos da Faculdade. Por
outro lado, como vimos, o reitor da Universidade enviara ofício ao Diretor da FEUSP em que
questionava a manutenção e mesmo a existência da Escola de Aplicação, uma vez que lhe
parecia não se justificar uma escola primária na Universidade, principalmente porque ela não
propiciava pesquisas e estudos científicos e gostaria que a Direção da FEUSP ratificasse ou não
esse parecer. O reitor esclareceu que estava apenas emitindo seu ponto de vista, portanto
aguardaria o parecer da Congregação da FEUSP.
uma transcrição dos objetivos da Escola em que fica esclarecido que, dentre os
objetivos da aplicação e avaliação de métodos educacionais, está o de servir de
campo de estudo a professores e de estágio a alunos da FEUSP. Há uma referência a
como esses objetivos têm sido alcançados nos últimos anos, mostrando a sua
vinculação com outras instituições, inclusive com a Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo. Trata-se de uma Escola de Aplicação, que ao mesmo tempo é
uma escola aberta a pesquisa e a estágio, não é em si própria uma escola
experimental, estando mais próxima a uma escola comum da rede pública do Estado.
Tem prestado certo tipo de colaboração, poderia prestar um tipo mais amplo.
O professor Nélio Parra afirmou que os méritos da Escola de Aplicação eram suficientemente
comprovados, mas ele acreditava que, em parte, a reação do reitor se devia ao relacionamento
da Escola de Aplicação com a Faculdade de Educação, sendo que, em seu ver, esse
relacionamento era bem fraco e que alguma coisa devia ser feita para que ele se estreitasse.
Acrescentou ser necessário estudar formas de relacionamento maior, de tal maneira que a
Faculdade pudesse aproveitar mais de todos os benefícios que a escola poderia oferecer e
aproveitar mais os serviços da Faculdade.
A propósito deste parecer, o professor José Mário Pires Azanha (Ata da Congregação, Livro
14, vol 3, 1984, p. 769) fez o seguinte comentário:
Após descrever o projeto das reformas relativas às dependências da FEUSP, o professor Celso
Rui Beisiegel demonstrou que seria possível instalar o 2º grau na Escola de Aplicação, já a
partir de 1985. A professora Roseli Fischmann observou que seria necessário operacionalizar
os seguintes pontos: 1º) a implantação do 2º grau; 2º) a criação de um grupo de trabalho para a
elaboração de um anteprojeto de aprimoramento das funções de docência e pesquisa na Escola
de Aplicação, especialmente junto ao 2º grau e 3º) a designação de um grupo de trabalho para a
elaboração de outro anteprojeto a ser apresentado à Congregação para a realização da
interligação da Faculdade de Educação com as escolas da rede oficial de ensino. Neste último
154
caso, como mencionado, o professor José Mário Pires Azanha já iniciara a redação deste
anteprojeto.
Em face do que foi lido nas atas das reuniões, inclusive das atividades desenvolvidas pela
Congregação, especialmente no decorrer do ano de 1984, pudemos constatar uma série de
aspectos. Em primeiro lugar, salientam-se o esforço e a dedicação dos membros da
Congregação, sob a presidência do diretor da FEUSP, no sentido de manter a Escola de
Aplicação que já funcionava em nível de 1º grau (ensino fundamental) e de implantar, a partir
de 1985, o curso de 2º grau (ensino médio). Também se destaca a valiosa participação da
Comissão de Pais e do professor José Mário Pires Azanha que se dispuseram a assumir
compromissos e a escrever os documentos necessários em prol da Escola de Aplicação. Deve-
se, ainda, ao professor Azanha a elaboração do Projeto de 2º grau que, segundo o Conselho
Estadual de Educação, serviria de modelo para todas as escolas do Estado de São Paulo. Ainda
no que se refere à Escola de Aplicação, salienta-se o profícuo trabalho da Comissão,
especialmente do Professor Doutor Celso Rui Biesegiel, encarregado de acompanhar as
reformas necessárias na FEUSP, sem perder de vista a solução para o funcionamento do curso
de 2º grau. A propósito, este professor assim se manifesta num relatório:
Magnífico Reitor:
Na sequência do ofício, o diretor faz uma explanação a respeito do segundo objetivo que deixa
de ser aqui transcrita porque já foi apresentada neste trabalho, no item Projeto de Alfabetização.
O diretor faz menção ao estágio e a pesquisas na Escola de Aplicação que, de fato, constituíram
a causa principal das divergências entre um dos congregantes, professor Nélio Parra, e Azanha
por ocasião da justificativa da permanência da E.A. junto ao reitor. A propósito deste assunto o
diretor (ob. cit., p.658) argumenta:
156
[...] Não tenho dúvida de que a execução de um projeto dessa natureza pode
beneficiar amplamente a Universidade e a região que a circunda, além de que poderia
também oferecer um campo novo para organização dos cursos de licenciatura em
novas bases. [...] Nessas condições, não apenas seria possível ampliar o alcance da
experiência da E.A. como também criar uma dimensão integradora do trabalho dos
Departamentos desta Faculdade e de outros institutos interessados. [...] Nesse sentido,
tomo a liberdade de sugerir a Vossa Magnificência a continuidade e a consolidação
dos projetos de (1º) manutenção e desenvolvimento da Escola de Aplicação de 1º
grau; (2º) e de implantação do 2º grau no início de 1985. Ao mesmo tempo, peço a
Vossa Magnificência sua especial atenção à sugestão vinda da própria Escola de
Aplicação – e por mim encampada – de instituição da Assessoria Técnica em
Educação.
* * *
Vimos, no decorrer do relato da situação da Escola de Aplicação, que ela correu o risco de até
mesmo ser extinta, conforme se manifestou o o reitor da USP. Diante deste fato, o diretor da
Faculdade realizou uma série de reuniões da Congregação para discutir tanto a continuidade do
ensino fundamental quanto a implantação do ensino médio na Escola de Aplicação. Na
primeira reunião da Congregação a respeito do assunto, o diretor da FEUSP deixou claro que a
157
necessidade dessa reunião decorria, entre outros fatores, de divergências de ponto de vista. Na
verdade, essas divergências referiam-se a sérios desentendimentos entre os professores Nélio
Parra e José Mário Pires Azanha. Este fato, aliás, constituiu o verdadeiro motivo do pedido de
demissão do professor José Mário Pires Azanha da representação junto à Escola de Aplicação
e, mais ainda, da sugestão deste professor para pôr a EA em debate. Embora extensas,
entendemos ser importante transcrever as cartas trocadas entre esses dois professores, que as
encaminharam à Congregação para serem lidas em suas reuniões, conforme consta na Ata da
Congregação de 1984, no Livro 14, volume 3, à página 767-806. Veja a seguir.
Carta do professor José Mário enviada ao Diretor da FEUSP para ser lida
na reunião da Congregação:
São Paulo, 17 de outubro de 1984. Senhor Diretor. Desde 1976 venho
colaborando, com exceção de um ano, com a Escola de Aplicação na condição
de representante da Direção da FEUSP. Ao longo desse tempo, tive a satisfação
e o orgulho de participar, ainda que em grau menor, do excepcional esforço da
Direção e dos professores da EA no sentido de fazer de uma escola, que se dizia
então falida, uma instituição educacional respeitada por todos pelo alto padrão
de ensino. Creio ser esta a condição essencial justificadora da existência de uma
escola de aplicação. Neste momento, porém, a EA e a FEUSP enfrentam um
novo desafio, pois, a propósito da implantação do curso de 2º grau, o próprio
Reitor levanta dúvidas não só a respeito da necessidade do novo curso como
também sobre a conveniência de manter o atual curso de 1º grau. Em face dessa
situação e para examiná-la, V.Exa.. houve por bem convocar reunião da
Congregação, realizada em 16 p. p., a que compareci na qualidade de
convidado. No transcorrer dessa reunião, quando se discutia proposta de
solicitação de uma audiência do Senhor Reitor para os Membros da
Congregação, o Professor Nélio Parra (Chefe do Departamento de Didática)
manifestou-se afirmando não ter condições pessoais de defender a escola de
aplicação por discordar do relacionamento dessa instituição com a FEUSP.
Ora, esse relacionamento é disciplinado basicamente por dois documentos, a
saber, o Regimento da EA e as Normas de Estágios, ambos aprovados pela
própria Congregação e reformáveis a qualquer tempo em face de propostas
mais interessantes. Até hoje, não obstante comentários esparsos, às vezes
depreciativos, e apresentados até mesmo em salas de aula, nenhuma proposta de
alteração foi formulada, nem mesmo quando houve solicitação formal sobre o
assunto por ocasião dos estudos sobre o 2º grau. Apesar da surpresa com que
ouvi a declaração do Professor Nélio Parra, sabedor do que acima está dito,
abstive-me no momento de iniciar polêmica em respeito ao Colegiado de cuja
reunião de que participava como simples convidado. Neste momento, contudo,
158
Ainda na mesma reunião em que foi lida a carta de Azanha, o Professor Nélio Parra pediu a
palavra para assim se manifestar:
159
[...] não queria trazer esse assunto, porque pensei que ficaria no aspecto pessoal, mas
no dia seguinte à última Congregação, por volta das 11:00 horas fui interpelado no
saguão da Faculdade, no meio de alunos da pós-graduação, orientandos meus – pelo
Professor José Mário Pires Azanha, que sem qualquer preliminar, num estado de
nervos impressionante, usou os piores nomes de baixo calão, num tom exacerbado.
Insisti com ele para irmos à sua sala, querendo explicar o que houve, qual foi a razão,
mas não tive chance nenhuma e esta carta vem demonstrar as dificuldades que temos
na Faculdade para que ideias divergentes possam ser discutidas num ambiente
acadêmico. Não é uma posição minha que deve provocar esse tipo de reação. Eu ser
ofendido moralmente, em altos brados no saguão da Faculdade, na presença de
diversos alunos? É muito simples e normal, em colegiados, a discordância e
argumentações. Isso é mais uma evidência de que diversas vezes tentei conversar
sobre o relacionamento da Escola de Aplicação e Faculdade de Educação e tive esse
tipo de reação. Uma reação fechada, como se fosse um assunto indiscutível. Acho
que é minha opinião e, não a opinião da Congregação; estávamos conversando aqui,
foi uma opinião lançada, uma impressão que tenho no momento, que de maneira
alguma merecia esse tipo de reação. Mas é a dificuldade que temos nessa Faculdade,
por parte de alguns professores, em dialogar. Alguns perderam o costume de ouvir
opiniões divergentes. Eu sinto muito ter sido também sem qualquer intenção de
ampliar mais as discussões. Simplesmente estávamos conversando abertamente,
trocando opiniões. Mas foi um fato lamentável e presenciado por muita gente.
A carta do Professor Nélio Parra deu ensejo à nova resposta do Professor José Mário. Segue o
ofício (In: Ata da Congregação, 1984, Livro 14, vol. 3, p.740-43) transcrito.
163
* * *
Como decorrência das divergências descritas e, mais ainda, da solicitação do professor José
Mário Pires Azanha a fim de que se realizasse o debate sobre a Escola de Aplicação, o diretor
da Faculdade constituiu uma comissão para isso. Entretanto, devido a vários fatos –
concordância do reitor para a manutenção da E.A., a implantação do 2º grau e a substituição da
Direção da Faculdade – a comissão se dissolveu e o debate só se concretizou em 1985.
167
Uma nova comissão de representantes da Faculdade junto à E.A. interessou-se pela realização
do debate. Azanha esclareceu quais eram suas expectativas, adiantando que se elas fossem
frustradas, também seria frustrado o próprio debate “transformando-o em mera tertúlia
acadêmica”.
Ao explanar sobre sua concepção de escola de Aplicação, Azanha deixa claro que suas ideias a
respeito tinham como referência a Escola de Aplicação da FEUSP, uma vez que sua atuação
nessa escola contou com uma participação marcante no período de 1976 a 1984. Por isso ele
disse se sentir disponível para receber críticas, pois não tinha a pretensão de que seu
desempenho estivesse isento de erros. Assim, ele esclareceu que se sentia à vontade para fazer
considerações sobre a idéia de escola de aplicação, embora tivesse sempre em vista a Escola de
Aplicação da FEUSP.
A autonomia da escola constitui, para Azanha, uma idéia essencial ao processo educativo: sem
ela uma escola pode ter um mero doutrinador e não, um educador. A autonomia do professor
decorre de um esforço coletivo que tem em vista pôr em prática um projeto educativo da
escola, elaborado pela própria escola e com vistas a um objetivo comum. Neste sentido, não
168
seria possível conceber uma escola de aplicação diferenciada das escolas públicas, o que
constituiria um desvirtuamento de sua real finalidade. Diz Azanha (1986, p.169).
Na sequência da sua explanação, Azanha afirma que uma escola pública de aplicação deve,
necessariamente, ser gerida por responsáveis que tenham consciência política de seu
desempenho, o que implica uma contínua revisão conceitual que os preserve do
“corporativismo funcional” ou pedagógico. Numa exemplificação: não é possível que a
reprovação de um aluno não seja um reflexo do trabalho do professor. Falhas de aprendizagem
não devem ser vistas apenas como falhas do aluno, mas também do ensino. E isto deve ser um
entendimento essencial numa escola de aplicação, dada a sua natureza exemplar para a rede
pública. Se a escola, enquanto instituição autônoma deve ter seu próprio projeto pedagógico,
não se justifica enviar-lhe pacotes preparados em instância superior. Porque é necessário
respeitar a cultura própria de cada escola que, por si só, é sempre diferente de qualquer outra
escola. Para Azanha (ob. cit., p.170):
[...] Nessas condições, cada escola pública deve formular o seu próprio plano de
melhoria a partir da análise honesta de suas próprias deficiências. Sem este esforço, o
trabalho escolar acaba sendo fragmentário, contraditório e ineficiente, pois, diretrizes
e orientações gerais não são capazes de organizar as rotinas do cotidiano e é nesse
cotidiano que o trabalho educativo se desenvolve. Por exemplo, não basta preconizar
como orientação geral o desenvolvimento do espírito crítico e ministrar, na prática,
um ensino que não solicite a compreensão do aluno, mas apenas a devolução, por
este, da lição recebida. Não basta preconizar a excelência da convivência
democrática, cujo fundamento é a tolerância com a divergência, e instituir padrões
disciplinares inteiramente desacompanhados do esforço do diálogo e de
convencimento.
Por isso, se em face da extensão da rede de escolas, toda esperança de melhoria do
ensino depende de um esforço próprio, de cada escola na elaboração e na execução
de seus planos específicos, não se concebe que uma escola de aplicação tenha suas
diretrizes e orientações gerais apenas como componentes de relatórios, sem nenhuma
conseqüência na organização de suas rotinas, sem nenhuma conseqüência na
organização de suas rotinas cotidianas de ensino e de convivência social.
O debate sobre a Escola de Aplicação foi realizado nos dias 27, 28 e 29 de agosto de 1985.
Nesta época, o quadro de pessoal da USP, da Faculdade de Educação e da Escola de Aplicação
era o que segue.
169
Reitor da USP:
Prof. Dr. Antonio Hélio Guerra Vieira
Vice-Reitor da USP:
Prof. Dr. Antonio Guimarães Ferri.
Diretor da FEUSP:
Prof. Dr. Antonio Carlos Coelho Campino
Vice-Diretor da FEUSP:
Prof. Dr. Alexandre Augusto Martins Rodrigues
Diretora da Escola de Aplicação:
Profa. Nívia Gordo
Representante do diretor da FEUSP junto à Escola de Aplicação:
Profa. Cecília Sanches Teixeira
Comissão Organizadora:
Profa. Angelina Teixeira Peralva, Profa. Elisabete Mokrejs, Profa. Cecília Sanches Teixeira
O programa do debate constou de abertura pelo então diretor da FEUSP, Prof. Dr. Antonio
Carlos Coelho Campino. Após salientar a importância do debate, o diretor fez o seguinte
pronunciamento (FEUSP, 1985, p.12-13):
[...] Entendo que muito já se fez na Escola de Aplicação no sentido de permitir que
contribuamos positivamente nesse debate e justifiquemos a existência de uma escola
de 1º e 2º graus dentro da Universidade de São Paulo. Entretanto, muito há ainda, que
fazer. Entre estas tarefas, identifico como premente a de dar à Escola de Aplicação
uma estrutura administrativa ágil e dinâmica que possibilite melhores condições de
trabalho e permita uma melhor integração entre a Escola e a Faculdade de Educação.
Aliás, cabe lembrar que a Comissão que estruturou este debate explicitou como seu
objetivo fundamental o de repensar as relações entre a FEUSP e a Escola de
Aplicação.
Outra tarefa fundamental é a de identificar e desenvolver lideranças que possam
auxiliar na formulação e implantação do projeto da nova Escola de Aplicação. Assim,
espera-se deste debate a formulação das diretrizes gerais para uma nova fase da
Escola de Aplicação, a sugestão de formas organizacionais e administrativas que
permitam implementar e desenvolver este projeto e o surgimento de lideranças ao
nível do corpo docente, que nos possam auxiliar na transformação dessa ótima escola
que ela é hoje em uma verdadeira Escola de Aplicação.
Seguiu-se uma Mesa Redonda em que foi abordado o tema “Diferentes Experiências e
Concepções de Escolas de Aplicação, Experimentais e de Demonstração”. Contou-se com a
participação dos professores: Olga Molina (coordenadora), Luci Maria Brandão (representante
do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Juiz de Fora), Bernadete Gatti
(representante da Fundação Carlos Chagas) e José Mário Pires Azanha (professor da FEUSP).
170
Após um intervalo, houve debate sobre a “A Escola de Aplicação da FEUSP”, coordenado por
Dirceu da Silva, tendo como expositora Maria do Carmo Ferraz Tedesco, ambos professores
da Escola de Aplicação. Foram debatedoras as professoras da FEUSP: Lisete Regina Gomes
Arelaro, Olga Bechara e Anna Maria Pessoa de Carvalho.
No terceiro dia, contou-se com a participação de três grupos de trabalho, coordenados por professores
da FEUSP:
Grupo 1 – “O Regimento da Escola de Aplicação”. Coordenação: Maria do Rosário Silveira Porto;
Grupo 2 – “Normas de Estágio”. Coordenação: Moacyr Ribeiro do Valle;
Grupo 3 – “Expansão da Escola de Aplicação: Curso noturno, Pré-Escola, Educação Especial”.
Coordenação: Marília P. Spósito.
No decorrer das exposições e dos debates ocorridos nos três dias houve muitas sugestões com
vistas a mudanças na Escola de Aplicação como, por exemplo, eleições do coordenador (por
áreas de ensino) entre os pares, instituição de um plano de carreira para os professores com
base em diversos critérios: bom desempenho, especialização em cursos e pesquisas na FEUSP,
avaliação pelos próprios colegas. Outros aspectos foram também objeto de discussão, como
alterações no Regimento da E.A: remuneração por horas de planejamento; aumento de
responsabilidades para a direção e para o conselho da escola, eliminação do registro das
disciplinas que compõem o currículo, uma vez que elas já estão estabelecidas por lei, entre
outras.
Também foram feitas diversas sugestões para melhorar a integração da Escola de Aplicação
com a Faculdade de Educação: participação do Diretor da E.A. na Congregação como membro
nato mesmo sem direito a voto; trabalho conjunto do coordenador pedagógico e da orientadora
educacional, respectivamente, com uma professora da FEUSP e uma da EA. Da mesma forma,
171
Enquanto Escola de Aplicação, seus objetivos devem ser propostos com vistas a uma
integração efetiva dos professores da FEUSP e EA, capaz de garantir oportunidades
de observação, pesquisa, reflexão e progresso do conhecimento sobre a educação aos
professores e alunos da FEUSP, bem como, aos docentes da EA.” (Relatório da
Comissão Paritária.
Quanto à autonomia da EA, dispõe-se que ela é assegurada mediante sua liberdade de formular
seu próprio projeto pedagógico, contendo objetivos gerais, recursos metodológicos, currículo,
forma de avaliação, sendo que esse projeto fica sujeito a reformulações e revisões constantes.
172
A estrutura técnico-administrativa da EA deve ser tal que permita a instituição de canais que
facilitem e estimulem a colaboração da EA junto à FEUSP.
Com relação ao Regimento da EA, a Comissão (ob. cit., p.3) faz a seguinte observação:
No que se refere à instituição de uma carreira para os professores da EA, a Comissão propõe
que sejam assegurados, na proposta de estatutos, os princípios mais gerais que devam orientar a
estruturação dessa carreira.
A Comissão entende que a reformulação básica sugerida propiciará atividades de pesquisa nas
diversas áreas da educação, formação de professores e especialistas em educação, além da
instituição de um centro irradiador de projetos pedagógicos.
Finalmente, são apresentados alguns esclarecimentos a respeito das consultas feitas à Comissão
(idem, p.40):
Em relação ao primeiro tópico – aumento do número de vagas para funcionários da
USP – a Comissão propõe alteração no Regimento da EA no sentido de atender a este
justo pedido, embora sem estabelecer distinção entre funcionários docentes ou
administrativos, por entender que todos são, igualmente, servidores da USP.
Quanto à ampliação da EA, a Comissão sugere, tendo em vista esclarecimentos
prestados por docentes da EA, que se aumente uma classe para cada série do 1º grau,
a partir de 1987. Desta maneira, no próximo ano a EA ofereceria 90 (noventa) vagas
a 1ª série do 1º grau. No tocante ao 2º grau, o aumento das trinta vagas, na 1ª série, a
partir de 1988, tendo em vista a conclusão dos estudos da primeira turma.
Quanto à solicitação de que “as crianças matriculadas na Creche da USP tenham
direito ao acesso direto na Escola de aplicação” que lhe são dirigidos, a Comissão
entende que esta não seria uma medida justa. A Creche não pode atender a todos os
pedidos que lhe são dirigidos e, conseqüentemente, algumas crianças, filhas de
funcionários docentes ou administrativos, seriam duplamente penalizadas, uma vez
que, ao serem rejeitadas pela Creche, estariam automaticamente excluídas da EA.
No tocante à sugestão de que seja instalado “um curso de 1º grau noturno que atenda
a funcionários”, entende a Comissão ser esta uma idéia interessante, sem dúvida, de
grande alcance social, mas que deveria ser objeto de estudos mais aprofundados pelas
características diferenciadoras que um curso desta natureza apresentaria em relação
aos desenvolvidos pela EA.
Esse Conselho seria composto de treze membros, a saber: diretor da FEUSP, um docente de
cada Departamento da FEUSP, o diretor da EA, três docentes da EA, um representante dos
funcionários administrativos da EA, escolhido entre seus pares, dois pais de alunos, um de 1º e
outro de 2º grau; dois alunos: um do 1º e outro do 2º grau.
O Conselho Diretor teria amplas atribuições, estando subordinado apenas ao diretor da FEUSP
ou, na ausência dele, ao seu vice-diretor.
No período de 1985 a 1987, foram concretizadas algumas das proposições feitas no debate.
Modificou-se o regimento da escola que dispôs, por exemplo, sobre a instituição de um
conselho diretor, um conselho da escola; a eleição, entre os pares, do diretor e de responsáveis
pela orientação pedagógica, a carreira profissional dos professores, entre outras disposições.
Assim, foi modificado o plano técnico-administrativo e pedagógico da Escola de Aplicação,
orientado por Azanha e que fora posto em prática desde o ano de 1976.
Apesar dessas alterações, salienta-se o fato de que não foram atendidas as proposições
inicialmente feitas por Azanha, ou seja, definição de uma concepção de escola de aplicação; a
identificação das possíveis falhas que até então a escola vinha apresentando, nem os
argumentos que justificassem essas críticas. Além disso, no decorrer do funcionamento da EA,
não foram estabelecidas, pelo menos até 1986, uma diretriz e demais orientações, conforme
ocorreu no período em que o professor José Mário Pires Azanha atuou como representante da
FEUSP junto à EA. Em 1985, foi implantado e posto em funcionamento o ensino de 2º grau,
atual ensino médio, cujo projeto é de autoria deste professor.
Para ilustrar o sentido de educação humanista, proposto para o Ensino Médio, Azanha
apresenta uma epígrafe relativa ao pensamento de Rousseau (1987, p. 153):
Que se destine meu aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco me importa.
Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe
quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado,
nem padre; será primeiramente um homem.
174
Entretanto, Azanha entende que seria possível essa ação integradora desde que, num prazo mais
longo, fosse instituído um plano amplo pela Secretaria de Estado da Educação e a Universidade
de São Paulo. O plano de ensino de 2º grau, elaborado para a Escola de Aplicação, se
estenderia ao maior número possível de escolas públicas da rede oficial de ensino. Tratar-se-ia,
então, de desenvolver o 2º grau com três anos de formação geral. Depois, os alunos que assim o
quisessem poderiam optar por um curso profissionalizante de um ano em escolas técnicas
especiais, em empresas ou na Universidade. Desta forma, o aluno teria uma formação geral e
comum que lhe permitiria o exercício da sua cidadania, aliada a um bom desempenho como
profissional.
Entretanto, o plano integrador tinha limites, uma vez que ele dependia de acordos de médio ou
até mesmo de longo prazo e era necessário definir, no momento, o objetivo do Ensino Médio
com certa rapidez, uma vez que o curso seria iniciado já no ano de 1985. Afirma Azanha(ob.
cit., p.155):
175
No momento, por força desses limites, não é viável que no curso de 2º grau a instalar-
se na E.A. destinado a uma clientela reduzida, sejam aproveitadas todas as
possibilidades que a Lei 7.044 oferece para a integração da tradição humanista da
formação geral com as exigências específicas de uma formação técnica diferenciada.
Por isso, optou-se por aquela, na convicção de que a preparação para o trabalho se
funda numa sólida formação geral.
Azanha deixa claro que o objetivo fundamental do ensino de 2º grau é o de contribuir para o
exercício consciente da cidadania Mas ele levanta a questão da dificuldade de explicitar a
noção de cidadania. Um dos meios para isso consiste na tentativa de identificar as
características da formação para a cidadania, sendo que a principal delas é a de que essa
formação “interessa à sociedade como um todo e não especificamente a qualquer grupo ou
segmento social em particular”. Portanto, a cidadania não comporta distinção de classes, nem
particularização. Sendo assim, o ensino de 2º grau deve ser necessariamente, geral e comum.
Afirma então Azanha (1986, p.156):
Esta situação fica melhor esclarecida quando notamos que no antigo ensino médio
não apenas o ensino secundário era um “ensino de classe ou montado para uma
classe”, como também o eram os ramos técnicos daquele ensino. O que variava eram
as classes sociais a que se destinavam um e outros. Mas, todos distinguiam e
diferenciavam. A idéia que defendemos aqui é a de que o ensino simplesmente
formativo, despojado do caráter ornamental e distintivo que teve, presta-se, pela sua
própria natureza, a ser um ensino geral e comum, enquanto que o ensino técnico, não.
Porque “a cultura geral representa aquilo que aproxima e une os homens ao passo que
a profissão, muitas vezes, aquilo que os separa. [...] Num Estado democrático onde
todo trabalhador é cidadão, é indispensável que a especialização não seja um
obstáculo à compreensão dos mais vastos problemas e que uma ampla e sólida
cultura geral libere o homem das estreitas limitações do técnico.
Após definir o caráter do ensino de 2º grau, foi preciso tomar decisão com relação ao conteúdo
da formação geral e comum. Para Azanha, esta atividade está vinculada a uma orientação
político-filosófica em face da cultura e constitui o critério para selecionar e ordenar os
elementos culturais, adequados à formação geral, proposta para o ensino de 2º grau.
O que foi dito a respeito da unidade na formação do cidadão leva à dedução de que também se
requer um só plano de estudos para todos os alunos, ainda que a Psicologia defenda a idéia de
que é preciso respeitar as diferenças individuais. Sem deixar de lado essa importante variável,
não se pode perder de vista o significado político do ato educativo que tende mais para a
unidade das proposições curriculares a fim de evitar um currículo muito extenso que acarreta a
176
ampliação das opções curriculares e compromete a unidade do plano de estudos, além de tornar
o plano inviável do ponto de vista econômico.
Num outro item, Azanha aborda a dificuldade que apresenta a seleção do conteúdo do plano de
estudos que é um assunto, de certa forma, polêmico. Há os que defendem os valores de uma
cultura tradicional sob a alegação de que ela asseguraria o caráter desinteressado da formação
geral. Por outro lado, estão os defensores de uma “visão jornalística da realidade”, atendo-se ao
que ocorre no contemporâneo em oposição a um saber clássico. Em face dessas posições,
Azanha (ob. cit., p.159) dá o seu parecer:
Para nós, seria fastidioso, além de desnecessário, o exame das distorções, dos sofismas
e das simulações ideológicas que cercam essas posições radicais. Mesmo porque, no
plano curricular, essas posições se definem mais como uma questão de ênfase.
Nenhuma delas contesta a importância da Ciência, da Arte ou da Literatura num
processo de formação geral. A disputa ocorre em termos dos elementos dessas áreas
culturais que seriam relevantes nesse processo. Com isso, o problema reduz-se, na
verdade, à questão mais específica da programação de cada matéria. E, realmente, o
ponto fundamental é este, porque o conteúdo de uma formação geral não é nem pode
ser estático. A aquisição de uma cultura geral não é apenas uma questão de
ajuntamento de certos ingredientes culturais, mas um processo de desenvolvimento
pessoal que pode ser buscado por diferentes meios, todos eles adequados, se
convenientemente programados.
Para Azanha, dois critérios devem determinar o conteúdo programático de cada disciplina:
coerência dos diferentes ensinos com o objetivo do curso e o caráter autotélico do ensino de 2º
grau.
Com relação ao primeiro critério, Azanha afirma que um dos problemas que dificulta a
coerência entre os programas de ensino decorre do professor de 2º grau, uma vez que, na
maioria das vezes, esse professor enfatiza a sua disciplina numa visão particular, perdendo de
vista que, exceto a língua nacional, todas as disciplinas devem convergir para o objetivo do
curso, sem que se perca a indispensável visão de conjunto. Neste sentido, Azanha cita Gusdorf
(apud AZANHA, 1967, p.89-90):
Azanha acrescenta que a consciência dessa responsabilidade pelo professor é a única garantia
de que ele não perca de vista [...] “o valor essencialmente relativo de qualquer área do saber
num processo de formação geral.”
Azanha observa que uma possível fonte de distorção da concepção do ensino de 2º grau
consiste na sua proximidade temporal com o ensino superior, o que pode ser a causa de se
atribuir ao ensino de 2º grau um caráter propedêutico. Isso explica a preocupação de
professores, pais e alunos com um ensino que prepare os alunos para que tenham êxito nos
exames vestibulares. Em síntese, tem-se a idéia errônea de que o ensino de 2º grau constitui
uma “ponte” para o ensino superior. Azanha esclarece esse engano com o esclarecimento de
que um ensino que tem como objetivo a formação geral não pode ser transformado num
simples curso de treinamento. Trata-se de um ensino que tem uma finalidade em si mesmo.
Sendo assim, o ensino de 2º grau assume uma finalidade bem mais ampla porque prepara o
aluno tanto para uma formação superior, quanto para o trabalho sem que, no entanto, tenha
qualquer vínculo com a idéia de profissionalização.
A propósito, Azanha cita A. Renault (apud AZANHA, 1982, p. 46) que faz uma explanação
sobre o ensino secundário:
(o ensino secundário) tem por uma de suas finalidades a preparação para os cursos
superiores mas guarda, irrecusavelmente, um sentido autotélico, que é o da formação
do espírito ou do homem como um todo, neutro e indiferente entre as carreiras
profissionais.
Azanha (1987, p.157) esclarece que o título das disciplinas que integram um quadro curricular
pode ser suficiente para justificar sua inclusão num processo de formação geral. Entretanto, ele
julga conveniente explicitar as proposições de algumas disciplinas, especialmente aquelas
178
relacionadas com a parte diversificada, preservando-a da destinação que lhe era dada,
principalmente, por força de Lei 5.692/71
Na transição da Lei 5.692/71 para a Lei 7.044, pelo menos no âmbito do ensino de 2º grau,
atual ensino médio, a situação foi reparada, se bem que foi mantida uma situação de
duplicidade, ou seja, foi mantido, de forma paralela, um ensino voltado para a formação geral e
um ensino de caráter profissionalizante. Essa decisão foi alvo de críticas de Azanha (1987,
p.154):
Ainda que essa situação devesse ser superada porque socialmente injusta e destinada
a perpetuar essa injustiça, a Lei 5.692 sem eliminar esse problema tumultuou a
questão e retardou a busca de soluções pela imposição a todo o ensino de 2º grau de
um modelo falsamente profissionalizante.
É sabido que principalmente nos dias atuais, a crescente evolução tecnológica vem alterando,
cada vez mais, os objetivos dos cursos profissionalizantes, mesmo em nível de ensino médio.
Ao invés de uma mera especialização são requeridos cursos formativos numa linha de cultura
geral com vistas à criatividade e à atitude crítica. Afirma Azanha (1987, p.155):
[...] Numa tal organização do 2º:grau, evitar-se-ia a diluição improfícua dos escassos
recursos humanos e materiais profissionalizantes e não se sacrificaria o essencial:: a
formação geral e comum para o exercício da cidadania.
Série
4 4 3 4
Comunicação Literatura Brasileira Estudo
e Expressão Inglês Disciplina 2 2 2 2
Educação Artística Disciplina 2 - - -
História Disciplina 2 - 2
7º da Lei 5.692/72 e 7.044/82
Geografia Disciplina 2 2 - -
Estudos
Educação Moral e
Sociais Disciplina - 2 - -
Cívica
OSPB Disciplina - - 2 2
Matemática Disciplina 4 4 5 3
Física Disciplina 2 2 4 2
Ciências Química Disciplina 2 2 4 2
Biologia e Programa Área de
3 2 4 2
De Saúde Estudo
Educação
Atividade 3 3 3 3
Física
Lógica Disciplina - 2 - -
Total
30 30 30 30
PARTE
Geral
Ensino Religioso 1 1 1 1
Dias Letivos: 180 Duração total do Curso: 3.240 horas-aulas (1080 cada série)
Semanas: 36 Duração hora-aula: 50 minutos
Quadro 8 - Quadro Curricular 2ª Grau
Fonte: Gordo, N, 1981.
Azanha apresenta uma justificativa das disciplinas incluídas na parte diversificada: Literatura
Geral, Filosofia, Lógica e Geografia Econômica.
A inclusão da Literatura Geral no currículo propicia oportunidade de contato dos alunos com
obras importantes da Literatura Universal que abordam problemas permanentes da
humanidade. Para Azanha (1986, p.163):
A familiaridade com esses problemas pode, muitas vezes, ser muito mais interessante
do ponto de vista educativo quando proporcionada por meio de obras literárias do que
por pretensos e discutíveis estudos científicos. Considerem-se, por exemplo, assuntos
como o mundo do trabalho, da guerra, das paixões humanas e outros semelhantes,
180
A Filosofia, quando isenta de um caráter doutrinário e que não seja posto como verdade, o que
consiste apenas na sua busca, constitui uma disciplina de suma importância quanto ao seu valor
formativo. A valorização do seu ensino no que se refere à sua própria vocação histórica é
suficiente para a formação do aluno na iniciação filosófica.
Azanha (1986, p.163-164) esclarece a distinção a ser feita entre o ensino da Filosofia e o da
Lógica:
Quanto à Lógica, Azanha esclarece que seus notáveis recursos técnicos atuais permitem análise
das mais diversas formas de argumentação, tendo um notável papel no aprendizado crítico das
várias áreas do saber. Portanto, a familiaridade dos alunos com os recursos da Lógica, propicia
o desenvolvimento de um pensamento crítico.
[...] A crise pela qual a EA passou nessa época foi muito mais de natureza interna: a
escola “rachou”, houve uma guerra entre dois grupos de concepções políticas, que
não apenas se distinguiam quanto à filosofia da escola, mas também refletiam o clima
da política do Brasil. Havia um grupo de professores “petistas” que tentou assumir o
comando da escola e mudar sua filosofia teórico-metodológica. [...] esse grupo de
professores da EA contou com a conivência da Profª Maria Cecília Sanches Teixeira,
que recebia, na FEUSP, “embaixada” desses professores, dando-lhes cobertura e
orientação, numa atitude, senão antiética, no mínimo, incorreta.
Esta situação de “crise interna” na Escola de Aplicação criou, no segundo semestre de 1984,
um clima bastante tenso entre os professores, a direção e a coordenação técnica. A situação não
se modificou mesmo com a designação de uma nova diretora para a EA, que nos substituiu no
início de 1985, a professora Magda Falco de Brito. Alvo de forte pressão, ela permaneceu no
cargo apenas seis meses. Foi substituída pela professora Neuza Rocha Goyano na condição de
diretora “pro-tempore”. Posteriormente, a direção da escola foi assumida por uma diretora
concursada e designada pela Direção da FEUSP, mas a situação só se normalizou na gestão do
professor João Theodoro D´Olim Marote, a quem foi concedida ampla liberdade para
solucionar os problemas da escola, inclusive por meio de demissões.
Evidentemente, a situação aqui descrita correspondeu a uma fase. Temos conhecimento de que
no decorrer do tempo a Escola de Aplicação passou a ser conduzida com tranquilidade e de
forma eficiente.
Principalmente a partir do ano letivo de 1977, a Escola de Aplicação passou a apresentar bons
resultados especialmente no que se referia à aprendizagem dos alunos. Conforme já
esclarecemos, todo o esforço da equipe escolar convergia para a aprendizagem dos alunos. Os
que no final das avaliações bimestrais apresentavam médias abaixo do esperado eram
imediatamente encaminhados para aulas de reforço ou recuperação, oferecidas durante todo o
ano letivo. Também no final de cada prova bimestral, o Conselho de Classe se reunia para
discutir a situação dos alunos que apresentavam nota abaixo da média e identificar as causas
dessa ocorrência para a tomada das providências necessárias. Com esses procedimentos,
praticamente não havia reprovações. Aliás, a reprovação de alunos requeria uma análise
exaustiva e ponderada do Conselho de Classes. Por exemplo, houve um caso incomum em que
uma professora de Matemática insistia em reprovar um aluno que havia obtido a média 4,9. Nas
demais disciplinas, ele fora aprovado. Depois de muita discussão entre a professora e os
colegas que compunham o Conselho de Classe, a professora de Matemática reconheceu que
não devia reprovar um aluno por causa de um décimo.
Na semana de planejamento do ano letivo, como já foi esclarecido, os professores de uma série
reuniam-se com os colegas da série subsequente, da 1ª à 8ª série, para troca de ideias e de
183
A entrevista, a seguir, ocorreu com as ex-professoras Maria Luiza Mondin, Lezilda Vigneron e
Maria Salete Cruz. Gentilmente, elas se dispuseram a participar de uma reunião (2009) em que
deram depoimentos, a seguir transcritos.
Pergunta: vocês devem se lembrar que, em 1976, o Prof. José Mário Pires
Azanha assumiu a Representação da FEUSP junto à Escola de Aplicação. O que
acham da orientação que ele estabeleceu para a EA?
Profa. Maria Luiza: Lembro que no começo, o objetivo de transmissão de
conhecimentos causou arrepios nos adeptos da renovação pedagógica. Mas deu
muito certo na linha que trabalhamos.
Profa. Maria Salete Cruz: Essa transmissão de conhecimentos tinha a
finalidade de formar o aluno crítico-criativo. E isto foi alcançado. Sei disso
porque mantive contato com nossos ex-alunos e eles vêm tendo êxito como
profissionais: juízes de direito, nutricionistas, pesquisadores, engenheiros,
dentistas, atores de teatro e assim por diante. Temos até um grande músico que
hoje faz parte da orquestra sinfônica da Rússia.
Profa. Maria Luiza: Uma vez eu pedi vinte livros, e cada aluno comprou vinte
livros, que foram lidos durante um semestre. Depois reduzimos para dez, pois
começou a pesar no bolso dos pais. Semanalmente, tínhamos uma aula na
biblioteca. A Professora Lezilda esperava os alunos e juntos passavam uma hora
na biblioteca. Na semana seguinte havia uma discussão das leituras feitas, na
forma de uma conversa, e era interessante porque quando um aluno gostava do
livro ele entusiasmava os outros. Os melhores resultados foram dos professores
de 1ª à 4ª séries, porque a partir da 5ª série os alunos tinham que, a cada
disciplina, sair de uma sala para outra, e as professoras de português não tinham
o hábito de levar os alunos para a biblioteca. Mas os alunos já haviam adquirido
o hábito de ler e continuavam lendo bastante.
Profa. Maria Luiza: minha filha estudou na Escola de Aplicação desde a
primeira série até o ensino médio. Tornou-se uma leitora inveterada. Hoje,
quando eu pergunto o que ela quer de presente, ela faz uma lista de livros e diz:-
qualquer um da lista serve. Seu pedido de presente de aniversario é uma lista de
livros. Certa vez, os alunos de 4ª série da escola de Aplicação encenaram um
texto de Graciliano Ramos, de uma história de um homem que quando ia calçar
as botas eram cobras (alguma coisa assim), era como se o texto estivesse ali na
nossa frente, e todos os alunos leram o livro. Hoje, se perguntarmos a um aluno
quem é Graciliano Ramos, eles não sabem quem é.
A nova maneira de tratar os alunos é a da chamada renovação pedagógica, e
continua a renovação, e continua a confusão. Não se transmite nada, não se
transmite o conhecimento, nem uma coisa e nem outra, porque quer tanta coisa ao
mesmo tempo, que não se chega a lugar nenhum.
185
* * *
Milton Sacco é funcionário que vem trabalhando na FEUSP desde que nesse prédio funcionava
o Centro de Pesquisas “Prof. Queiroz Filho”, então vinculado ao Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (INEP) com sede no Rio de Janeiro. Seu filho cursou o ensino fundamental e
Médio na Escola de Aplicação. Numa entrevista com o pai, ele afirmou que o ensino da EA foi
muito bom, tanto que seu filho já está cursando pós-graduação na Faculdade de Educação da
USP.
* * *
186
A ex-aluna Paula Lopes Gomes estudou, na Escola de Aplicação, da 1ª série do 1º grau até a
3ª série do Ensino Médio. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Hoje é Juíza de Direito no Estado de São Paulo. Segue seu depoimento (2009).
* * *
187
Primeiras memórias logo nas primeiras e segundas séries são o Prof. Kim -
artes- e a Cris de música.
Ricardo Fabrinni (filosofia) - porque me ensinou a pensar na lógica do texto e
na importância da coesão e coerência; Rosana Nubia (história) - porque
mostrou que a verdadeira história não é a contada nos livros didáticos e
porque forneceu elementos valiosos para ampliar a percepção do
mundo Victoriano. Física: apesar da dificuldade na matéria em si, o professor
era tão apaixonado pela física que me fez gostar da matéria. Yara (português) -
foi ela quem trabalhou os livros clássicos de uma maneira leve; ampliando a
paixão pela literatura.
As leituras
Lembro das idas semanais à biblioteca e tenho a certeza de ter lido todos os
livros infantis na época do primário. As bibliotecárias: Lezilda e Wanda sempre
nos auxiliavam. Em relação aos livros informativos, com o passar do tempo e
com a necessidade de livros mais específicos, o material disponível na
biblioteca ficou obsoleto.
As atividades de leitura aconteceram mais durante a época do primário e
fazíamos um breve resumo para os colegas do livrinho que havíamos lido
naquela semana. Lembro de gostar muito desses momentos. Acho que são
importantes para a formação. Como me formei na Aplicação em 1995, não
recordo nomes dos autores dos livros.
A respeito do objetivo de escrever, ler e das aulas de Artes:
Sempre fomos incentivados a pensar e a nos expressar, inclusive escrevendo.
Acho que esse objetivo foi cumprido ao longo de todos os anos, em algumas
épocas e em outras menos, mas sempre escrevemos.
Artes
Minha primeira memória da EA sobre Arte é a de uma peça encenada pelos
alunos do Prof. Kim. Peças em francês também eram apresentadas e me lembro
de gostar muito. Quanto à música, aconteceram alguns festivais de músicas e,
quando participei do grêmio, fizemos questão de organizar um grande festival
de música e cultura.
Como encerrou o depoimento
Percebo que o principal diferencial da minha formação em relação aos meus
amigos que não foram da EA, é que sempre fui estimulada a pensar; sempre li
livros que hoje sei que nunca fizeram parte do "currículo oficial".
188
Além disso, minha turma foi privilegiada, por fazer - todos os anos- viagens de
estudo de meio que, em minha opinião, são o melhor aprendizado.
No terceiro colegial fomos até Carajás, passando por Brasília, Belém, Goiânia,
entre outros locais. O espaço da EA também era diferenciado; lembro de comer
as amoras que colhia no pé, durante as aulas. O CEPEUSP também faz parte da
nossa formação diferenciada, pois sempre tivemos espaço e recursos para
desenvolver este lado.
Carolina Mondin, 2009
* * *
189
CAPÍTULO VI
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos deixar claro, no início deste trabalho, que um dos nossos objetivos seria o de
reconstituir a história da Escola de Aplicação no transcorrer do período de 1976 a 1986. Isto
porque queríamos relatar o modo pelo qual Azanha pôs em prática as ideias que há muito vinha
defendendo em prol da melhoria da escola pública. Neste caso, poder-se-ia questionar o fato de
que há certa distância, em termos comparativos, entre a Escola de Aplicação e escolas da rede
oficial de ensino deste Estado. Prevendo este questionamento, Azanha procurou dar um
formato à EA que a tornasse exemplar para a escola pública, ou seja, que tivesse uma forma de
organização e de funcionamento simples, à semelhança de qualquer outra escola
A Diretriz estabelecida para a EA propiciou bons resultados ao servir como referência para o
projeto de ensino posto em prática tal como foi descrito. É nesta ótica que, segundo um dos
objetivos deste trabalho, são evocadas algumas ideias que talvez possam ser viáveis na escola
pública.
[...] Foi finalmente sancionada uma nova Lei (nº 9.394), que revogou não apenas a
Lei 4.024, mas também algumas outras que versavam sobre a temática das diretrizes
e bases da educação nacional. Não se pretende aqui um estudo comparativo entre a
nova lei e as anteriores, mas apenas assinalar que pelo menos em alguns pontos o que
se conseguiu não foi uma “meia vitória”, porém um grande avanço. (p.65/66).
Pela primeira vez na legislação brasileira focalizaram-se as questões da autonomia da
escola e de sua proposta pedagógica. O artigo 12, inciso I, estabelece como
incumbência principal da escola a elaboração e a execução de sua proposta
pedagógica e o artigo 13, inciso I, e o artigo 14, incisos I e II, estabelecem que essa
proposta é uma tarefa coletiva da qual devem participar professores, outros
profissionais da educação e as comunidades escolar e local.
A relevância dessa abertura legal é maior para a escola pública que, a não ser em
raríssimas exceções, integra uma rede cuja administração centralizada tem uma
vocação intervencionista que, continuamente, trata como homogêneas situações
escolares substantivamente heterogêneas. E pretende eliminar diferenças por
ordenações regulamentadoras burocráticas que, arrogantemente, confundem poder
administrativo com discernimento pedagógico. Tendo em vista quadro semelhante,
Anísio Teixeira, já em 1962, alertava: “ É por isto mesmo que tais pequenas vitórias
precisam ser consolidadas na sua execução. Não se julgue que isto seja automático.
Se não houver visão e vigilância no cumprimento da lei, a máquina administrativa
poderá vir a burlá-la completamente”.
191
Quanto ao currículo e à carga horária, Azanha entende que, sem deixar de atender ao que
dispõe a legislação, deve-se propor um mínimo possível de disciplinas, atribuindo maior carga
horária à Língua Portuguesa e à Matemática, uma vez que se visa à formação geral e comum do
aluno. Também é importante que se inclua no currículo de 5ª à 8ª série uma ou mais línguas
estrangeiras modernas que contribuem muito para ampliar a cultura dos alunos.
que prevaleça a disciplina do aluno num ambiente de ensino com muito diálogo sobre o assunto
em estudo.
Alain (apud AZANHA, 1978, p.4), citado por Azanha, defende a importância do “desafio” para
o aluno:
[...] Não direi apenas que tudo o que é fácil é mau; direi mesmo que o que julgamos
fácil é mau. Por exemplo, a atenção fácil não é de modo algum a atenção; ou, senão,
poderemos dizer que o cão que espera o açúcar presta atenção. Igualmente, não quero
vestígio de açúcar; e a velha história do cálice amargo cujas bordas são untadas de
mel parece-me ridícula. Preferia tornar amargas as bordas de um cálice de mel,
todavia isso não é necessário; os verdadeiros problemas são inicialmente amargos de
gosto; o prazer virá para aqueles que vencerem o amargor. Não prometerei, portanto,
o prazer, mas darei como finalidade a dificuldade vencida. Esse é o atrativo que
convém ao homem; somente assim é que conseguirá pensar em vez de experimentar.
Outro aspecto que entendemos ser importante refere-se à alfabetização que constitui sempre
uma tarefa difícil em todas as escolas e, talvez por isso, ela seja alvo de inúmeras proposições
de natureza metodológica e mesmo teórica. Independentemente dessa situação, conforme já
mencionamos, parece-nos ser importante o fato de que nossa língua é alfabética e bastante
econômica. Desta forma, acreditamos que esta característica deveria ser levada em conta nos
planos de alfabetização. Estamos defendendo aqui o método rotulado como “tradicional”, que é
objeto de inúmeras críticas, principalmente nos dias de hoje em que há uma grande tendência
para valorizar a alfabetização numa linha construtivista. Evidentemente, o processo da
alfabetização em seu sentido amplo requer tempo para que se dê conta de todas as ocorrências
da língua, principalmente na escrita em que contamos com a dificuldade da ortografia. É certo
que alguns alunos apresentam lentidão ou dificuldades na aprendizagem, o que é possível
contornar mediante assistência especial dada em aulas de reforço e de recuperação. Há também
o fato de que, dada a complexidade da nossa língua escrita, a alfabetização se inicia na primeira
série, mas requer continuidade na segunda série, sendo aperfeiçoada nas demais séries e,
podemos dizer, ao longo da vida.
Esse aperfeiçoamento da alfabetização requer, entre outras atividades, uma ênfase especial na
leitura intensiva de livros da literatura infanto-juvenil, desde a 1ª série, conforme descrevemos
193
no decorrer deste trabalho. Sabemos que a maioria das escolas não tem recursos financeiros
para a formação de uma boa biblioteca. Neste caso, a equipe escolar poderia recorrer a outros
meios, como, por exemplo, organizar os livros paradidáticos fornecidos pelo Ministério da
Educação, fazer campanhas para a formação de acervo de livros doados pelas editoras, pelos
próprios alunos e pais; junto a instituições, empresas. Neste sentido, é oportuno lembrar a
importância de um bom relacionamento da escola com a comunidade familiar e com as
entidades da cidade, estabelecendo com elas um bom relacionamento até mesmo em nível de
parcerias, conforme vem ocorrendo com diversas escolas.
Uma dificuldade com que nos defrontamos referiu-se à diversidade dos alunos em vários
aspectos: étnico, social, econômico, gênero, nível de linguagem. Não é possível deixar de
abordar essa situação, uma vez que, principalmente nos dias de hoje, tem-se debatido bastante
sobre a necessidade de as escolas tomarem todas as medidas possíveis em prol da inclusão dos
alunos, eliminando-se, da melhor forma possível, as discriminações, os preconceitos não só
entre os próprios alunos como até mesmo entre alguns professores e funcionários das escolas. É
visível o preconceito, principalmente no que se refere à linguagem ou ao modo de falar de
alguns alunos. Trata-se de um preconceito equivocado, uma vez que na fala não existe
fundamento para o “falar certo ou errado”. Evidentemente, é preciso valorizar o domínio da
língua na norma-padrão. Trata-se de uma aprendizagem gradativa que ocorre ao longo do
curso, especialmente nas atividades de redação e em situações formais de comunicação oral.
Sabemos que não é fácil combater atitudes de discriminação e de preconceitos, uma vez que
elas são adquiridas pelas pessoas, principalmente, no meio em que nascem, crescem e vivem.
* * *
Quanto à primeira hipótese levantada no início deste trabalho, acreditamos que a orientação de
Azanha surtiu bons resultados. Foi possível organizar e pôr em prática, tanto para o curso
Fundamental, como para o Ensino Médio, um currículo de vocação humanista, ou de cunho
autotélico, voltado para uma formação geral e comum, sem deixar de atender ao disposto na
Lei 5692/71, vigente na época, conforme descrevemos no decorrer do primeiro capítulo. O
processo pedagógico desenvolveu-se numa linha que poderia ser denominada triádica:
formação geral – ampliação da cultura – desenvolvimento da capacidade de crítica. Neste
sentido, tomamos como referência o depoimento de uma ex-aluna que permaneceu na Escola
194
DEPOIMENTO
Eu me lembro de todos os meus professores. Lembranças agradáveis eu
tenho da maioria deles. Mas me marcaram a professora Luciana Barone de
Estudos Sociais (1986 e 1987) porque era muito doce e didática; a professora
Samira de francês, porque os ensinamentos continuam em minha mente até
hoje, mesmo sem ter cursado francês fora. Do professor Ricardo de filosofia e
Victoriano de física, que despertaram o “pensar” em mim. Gostei muito das
disciplinas de francês pela curiosidade pela língua e de português, pela
essencialidade.
Não vejo ninguém da minha turma com medo e/ou preguiça de abrir um
livro e buscar seu conteúdo. Isto foi um choque para mim principalmente
quando entrei para a faculdade, quando me deparei com outras pessoas,
outras cabeças, outro jeito de pensar e encarar os estudos.
Lembro-me como se fosse hoje das nossas aulas semanais na biblioteca e
das interpretações que fazíamos dos livros. Lembro do livro “Clarinha na
Ilha”, mas não me lembro do autor. Da “Bolsa Amarela da Lygia Bojunga
Nunes. Do “Zero, zero alpiste” da Mirna Pinsky e de outros mais.
As atividades de artes eram bem variadas e incentivavam os alunos a
criarem. Esse era o maior ponto. Isso sem falar na infinidade de músicas
brasileiras que sei até hoje e meu gosto musical mais apurado que desenvolvi
desde essa época. Duvido que tenha algum aluno do meu tempo que não se
lembre ao menos de uma das músicas que cantávamos com a professora
Salete de português ou com a Claudia, de música. Para mim o mais
importante foi a formação de cidadãos críticos, pensantes e atuantes.
A explanação até aqui feita vem ratificar nossa segunda hipótese. Apesar das críticas feitas ao
que se costuma denominar ensino tradicional, parece-nos irrefutável a ideia de que a formação
da criança, do jovem e do adolescente requer, necessariamente, além de outros aspectos, a
aquisição de conhecimentos, ou, como propõe Azanha: A mera e trivial transmissão de
conhecimentos. Evidentemente, não se trata aqui da exaltação das aulas essencialmente
expositivas, mas, sim, de uma forma de ensino em que, centrada em informações, o professor
195
Nestas condições, parece-nos ser viável a proposição feita, desde que a equipe escolar da escola
pública se proponha ao desenvolvimento de uma formação geral, voltada para a formação de
indivíduos críticos.
Conforme mencionamos, este trabalho não comportaria uma conclusão porque apenas relata
uma forma de ensino que poderia ser traduzida como um plano de ação. Nestas condições,
mesmo acreditando que uma possível concretização desse plano em escolas públicas possa dar
bons resultados, teríamos a dizer, como sempre se manifestava o professor José Mário em
situações semelhantes: “Quanto aos bons resultados de um plano de ação posto em prática,
cabe somente à história dizer...”.
196
197
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