Sebenta de Direito Penal I
Sebenta de Direito Penal I
Sebenta de Direito Penal I
DE DIREITO
PENAL I
Dá-se o nome de Direito Penal ao conjunto de normas jurídicas que ligam a certos
comportamentos humanos (crimes) determinadas consequências jurídicas privativas deste
ramo do direito. Podemos identificar dois tipos de consequências:
➢ Pena: apenas poderá ser aplicada ao agente do crime que tenha atuado com culpa;
➢ Medida de segurança: não supõem a culpa do agente, mas sim a sua perigosidade.
Ius poenale (Direito Penal objetivo) Ius puniendi (Direito Penal subjetivo)
Conjunto de normas jurídicas que ligam a Poder punitivo do Estado resultante da sua
certos comportamentos humanos soberana competência para considerar como
determinadas consequências jurídicas crimes certos comportamentos humanos e
privativas. ligar-lhe sanções específicas.
➢ Direito penal substantivo: visa a definição dos pressupostos do crime e das suas
concretas formas de aparecimento;
➢ Direito processual penal: regula juridicamente os modos de realização da prática do
poder punitivo estadual, nomeadamente através da investigação e da valoração judicial
do crime indiciado ou acusado;
➢ Direito penal executivo: pertence a regulamentação jurídica da concreta execução da
pena e/ou medida de segurança decretadas na condenação proferida no processo
penal.
➢ Tipos incriminadores
No âmbito da conduta importa distinguir entre tipos cuja consumação pressupõe a produção de
um resultado e tipos em que para a sua consumação é suficiente a mera ação.
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falsidade de depoimento ou declaração, etc.) – são crimes formais (a cuja tipicidade é
indiferente a realização do resultado);
Em relação ao bem jurídico importa ter presente que ele não se confunde com um outro
possível elemento objetivo do tipo de ilícito como é o objeto da ação. Ao nível do tipo objetivo
de ilícito o objeto da ação aparece como manifestação real desta noção abstrata – é a realidade
que se projeta a partir daquela ideia genérica e que é ameaçada ou lesada com a prática da
conduta típica.
▪ Crimes de dano: a realização do tipo incriminador tem como consequência uma lesão
efetiva do bem jurídico (homicídio, violação sexual, injúria);
▪ Crimes de perigo: a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a
mera colocação em perigo do bem jurídico.
✓ Crimes de perigo concreto: o perigo faz parte do tipo, isto é, apenas é
preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo;
✓ Crimes de perigo abstrato: o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente
motivo da proibição. Neste tipo de crimes, são tipificados certos
comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico,
mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há uma
presunção inelidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida
independentemente de ter criado perigo ou não (p.e. condução de um veículo
em estado de embriaguez);
✓ Crimes de perigo abstrato-concreto: não é necessário verificar a colocação em
perigo dos bens jurídicos, mas também não basta que se verifique uma conduta
– a conduta tem de ser apta para criar perigo.
Ainda em relação ao bem jurídico é possível distinguir crimes simples e complexos, conforme o
tipo de ilícito vise a tutela de um ou mais do que um bem jurídico:
A subordinação dos tribunais à lei significa que a solução do caso concreto encontra-se
totalmente vinculada a um modelo legal, ou seja, a uma articulação já feita pelo legislador entre
um determinado caso semelhante ao verificado em concreto e uma solução para ele prevista.
Deste modo, o princípio da legalidade traduz-se na articulação das duas máximas anteriormente
referidas (nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege) com uma outra – nulla poena sine
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crimen. Isto significa que não será possível aplicar uma sanção penal sem que se verifique um
caso para o qual está previamente determinada na lei a aplicação dessa sanção.
Note-se que, perante um caso estabelecido na lei, e um caso real, aquilo que teremos de aferir,
para que seja possível ou não a aplicação da sanção prevista, é se existe uma similitude entre o
caso legal e o caso real recorrendo a raciocínios analógicos. Serão estes raciocínios proibidos
atendendo a um dos corolários do princípio da legalidade – proibição da analogia?
A resposta é negativa. A proibição da analogia deve ser compreendida num sentido mais
profundo do que a proibição de utilização de raciocínios analógicos na operação de decidir. Esta
proibição deve ser interpretada como a proibição de uma assimilação do caso concreto pela lei
sem que determinados argumentos sejam possíveis – p.e. punir como violação qualquer
comportamento sexual violento apenas porque a identificação estrita de um certo tipo de
comportamento o impede. Já no que toca à determinação do conceito “violência” teremos
sempre de recorrer a um raciocínio analógico aberto a incluir novas formas e entendimentos de
violência.
Podemos levantar a questão de saber se o princípio da legalidade apenas tem uma função de
controlo da atividade das instâncias judiciais deixando à mercê a segurança jurídica, ou seja, o
mecanismo de controlo e seleção social da criminalidade.
É verdade que, muitas vezes, perante uma norma que não é suficientemente precisa, o
intérprete segue a sua intuição prescindindo de um raciocínio analógico pelo que o princípio da
legalidade pode criar duas situações extremas:
Assim, devemos concluir que a função de controlo da aplicação da lei desempenhada pelo
princípio da legalidade ultrapassa o conteúdo das proposições tradicionalmente utilizadas na
formulação deste princípio (proibição da retroatividade e proibição da analogia).
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Tipo de ilícito – objeto de uma proibição ou comando cuja realização suscita um juízo de desvalor sobre
uma conduta. Este objeto dos imperativos contidos na lei é constituído quer pela proteção de um bem
jurídico quer pela evitação de determinadas formas de conduta.
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➢ Princípio da culpa
Não é objeto de formulação legal tão nítida como o princípio da legalidade, no entanto,
podemos deduzi-lo através dos arts.1º e 27º da CRP (dignidade da pessoa humana e direito à
liberdade). O Código Penal apenas faz referência ao princípio da culpa como fator de
determinação da pena. A doutrina, contudo, tem-no utilizado como fundamento de outras
consequências:
▪ Fundamento da pena;
▪ Fator da determinação da medida da pena;
▪ Princípio da responsabilidade subjetiva.
A doutrina não é unânime no que toca a considerar o princípio da culpa como fundamento da
pena utilizando como argumento o facto deste princípio pressupor uma ideia de
responsabilidade penal alheia aos fins do Estado de Direito. Segundo este argumento, não será
racional atribuir à culpa (desvalor ético-social derivado da prática de certo comportamento) a
função de legitimar a realização de fins de Estado.
Foi a tese do contrato social que, de um ponto de vista histórico, forneceu as bases filosóficas
do que podemos chamar o direito criminal dos Estados de direito.
Quando Beccaria refere que “as leis são as condições com as quais os homens independentes e
isolados se uniram em sociedade; cansados de viver num contínuo estado de guerra, e de gozar
uma liberdade tornada inútil pela incerteza de conservá-la. Eles sacrificaram uma parte para
gozar a restante com segurança e tranquilidade. A soma de todas as porções de liberdade
sacrificadas ao bem de cada um, forma a soberania…Foi, portanto, a necessidade que
constringe os homens a ceder parte da própria liberdade; por isso é certo que cada um não
quer pôr no público depósito senão a mínima porção possível, só quanto baste para induzir os
outros a defendê-lo. O conjunto destas mínimas porções possíveis forma o direito de punir;
tudo mais é abuso e não justiça; é facto, não já direito” podemos aferir uma confusão: ou o
direito de punir é constituído com as porções mínimas de liberdade sacrificadas no controlo
social ou é delimitado pelas leis positivas. Este pensamento é de melhor compreensão se o
inserirmos no clima espiritual da sua época. Beccaria encontrava-se na confluência de duas
correntes ideológicas:
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Encontramos nesta ideologia uma certa teoria dos fins do Estado: como diria Kant, cabe
ao Estado garantir “a cada um a sua liberdade, por meio de leis”. Deverá haver uma
conceção comum da segurança de que todos têm igual necessidade, mas cada um tem
a sua ideia e vivência individual.
▪ Democrática: Rosseau – No contrato social, opera-se “alienação total de cada
associação com todos os seus direitos à comunidade”, ou seja, o indivíduo troca a sua
liberdade natural por uma liberdade cívica, que é a sua participação e integração no
todo, cuja “vontade geral” é a expressão da liberdade alienada e, portanto, a liberdade
de cada um.
A estas duas correntes filosóficas correspondem dois conceitos diversos de Estado de direito:
▪ Estado de direito em sentido formal: o Estado é limitado pelo direito que cria. O Estado
não é constituído por um hipotético contrato social, mas pelo direito, na medida em
que todas as suas atividades são reguladas pelo direito, em que todas as relações dos
órgãos do Estado entre si e do Estado com os indivíduos são relações jurídicas. O Estado
é, deste modo, uma pessoa jurídica com direitos subjetivos relativamente aos
indivíduos, entre eles o direito de punir.
▪ Estado de direito em sentido material: a subordinação do Estado do direito tem outro
significado mais profundo. O Estado não se encontra apenas limitado pelo direito que
cria, mas está essencialmente vinculado ao direito natural. O conceito de Estado de
direito em sentido material está, na tradição filosófica, essencialmente ligado à ideia de
dignidade da pessoa humana, em que fundam os direitos do homem. Assim, o Estado
está obrigado a servir uma certa tábua material de valores – a validade dos órgãos do
Estado não é, pois, apenas condicionada pela regularidade formal do seu processo de
produção, mas também pela concordância material do seu conteúdo com uma tábua
de valores que lhe é anterior e superior (a determinação destes valores materiais
realiza-se por via democrática, pela hermenêutica da progressiva concretização
histórica dessa dignidade na definição constitucional, legal e judicial dos direitos do
homem e pelo correto funcionamento do pluralismo de expressão e organização
política democráticas).
Deste modo, a história revela que a consagração formal do princípio da legalidade, mesmo
quando ligado ao seu lógico fundamento da dignidade da pessoa humana, não é eficaz senão
for também o princípio democrático, incluindo a separação de poderes.
Por outro lado, também se tem tentando fundamenar o princípio da necessidade da pena –
baseia-se na maldade da pena e, portanto, no carácter absurdo e irracional da repressão penal.
Este princípio traduziu historicamente a ideia de que a utilização pelo Estado de meios penais
deve ser limitada, ou mesmo excecional, só se justificando pela proteção de direitos
fundamentais, ou seja, tratou-se de uma reação contra a utilização discricionária das penas pelo
poder político, ao serviço de quaisquer fins.
Tal como verificamos supra, o princípio da necessidade da pena pretendeu ser um limite
substancial do Direito Penal, relacionado com a ideia de contrato social, segundo a qual só se
justificaria a restrição da liberdade quando, de alguma forma, as “liberdades” estivessem em
causa. Contudo, o conteúdo do contrato social tem-se alterado com a evolução da realidade e
das ideologias políticas da sociedade democrática pelo que, deverá proteger-se não só as
liberdades como também a realização de múltiplos fins sociais.
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O alcance deste princípio revela-se na discussão sobre:
▪ Carência de proteção penal do bem jurídico: esta não se verificará quando se tratar de
um mero valor moral sem expressão num bem jurídico determinado (p.e. vida);
▪ Falta de alternativas à penalização da conduta: não se justifica quando os meios penais
não forem absolutamente indispensáveis, existindo outros meios capazes de evitar
determinados comportamentos;
▪ Eficácia concreta da incriminação: não se verifica quando o Direito Penal não evita a
prática de certas condutas e chega a ter um papel criminógeno.
Em suma, segundo este princípio, em caso alguém pode haver pena sem culpa ou a medida da
pena ultrapassar a medida da culpa. Encontra, deste modo, o seu fundamento no princípio da
inviolabilidade da dignidade pessoal (Estado de Direito democrático). Assim, a culpa é condição
necessária, mas não suficiente, de aplicação da pena – é esta ideia que permite uma correta
incidência da prevenção especial positiva ou de socialização.
A diferenciação entre as penas dos crimes contra as pessoas e dos crimes contra outros bens
jurídicos é também uma manifestação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a
máxima danosidade social se articula com a máxima gravidade ética – a lesão dos bens da
pessoa do outro. Para além das manifestações do princípio da igualdade quando do princípio da
proporcionalidade, a igualdade também justifica a seleção de novos bens jurídico-penais, que
poderíamos designar como bens da igualdade – a proteção em geral dos mais fracos na
estrutura social (p.e. mulheres, idosos e crianças) conduziu à agravação de crimes clássicos
devido à qualidade da vítima (p.e. autonomização dos crimes sexuais cujas vítimas são crianças
e adolescentes) e à criação de novos crimes em função da essencialidade da não discriminação
no Estado de Direito democrático e social.
➢ Princípio da humanidade
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➢ Princípio da socialidade
➢ Perspetiva positivista-legalista
A resposta que foi dada durante todo o período em que na ciência do direito vigoravam as
conceções próprias do positivismo legalista era a de que o crime será tudo aquilo que o
legislador considerar como tal.
Quando nos questionamos acerca do conceito material de crime, devemos, em primeiro lugar,
procurar uma resposta à questão da legitimação material do direito penal, ou seja, a partir de
que fonte é que podemos legitimar uma consideração de certos comportamentos humanos
como crimes e aplicar aos infratores sanções de espécie particular. Ora, pressupondo a plena
capacidade do legislador para dizer o que é ou não crime, continuamos ignorantes no que toca
à questão de saber quais as qualidades que um comportamento deverá revestir para que o
legislador se encontre legitimado a submeter a sua realização a sanções criminais.
Em segundo lugar, tal conceção não permite relacionar a questão do conceito material de crime
com a função e com os limites do direito penal. Assim, o conceito material de crime apenas será
questionado de forma útil e lógica se um tal conceito se encontra fora do direito penal
legislado.
➢ Perspetiva positivista-sociológica
Esta perspetiva tenta encontrar o conceito material de crime baseando-se numa conceção
sociológica pelo que, dentro da multiplicidade das manifestações legais do crime, aquilo que
poderia ser considerado como tal seriam aqueles que, independentemente das circunstâncias e
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exigências duma dada época ou conceção particular, existiriam na sociedade humana. Para
melhor compreendermos esta perspetiva, podemos fazer referência a duas visões:
Em primeiro lugar, devido à sua imprecisão que torna impossível uma determinação concreta
do que é que consiste a danosidade ou ofensividade sociais que constituem a “essência do
crime”. Para além disto, esta conceção acaba por ser demasiado ampla na medida em que,
apesar de todo o crime se traduzir num comportamento determinante de uma danosidade ou
ofensividade social, nem toda a danosidade constitui legitimamente um crime. Assim, a
danosidade social é um elemento constitutivo do conceito material de crime, mas não pode
fazer-se valer por aquele conceito.
➢ Perspetiva moral(ético)-social
Apesar da maioria das pessoas encarar o direito penal como uma tradução, no mundo terreno,
das noções de pecado e castigo vigentes na ordem religiosa ou de imoralidade e censura, tal
consideração não merece aceitação na ordem jurídica estatal. Não é função do direito penal,
seja ela primária, seja ela secundária, tutelar a virtude ou a moral – seja ela imposta
estadualmente, moralmente, etc.
Racional: porque o conceito material de crime resulta da função atribuída ao direito penal de
tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou seja, de bens jurídicos cuja
lesão se revela digna de pena.
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O que é então um bem jurídico?
A noção de bem jurídico não foi e dificilmente será determinada com segurança e nitidez que
permita convertê-la em conceito fechado.
Esta conceção apenas surgiu após uma longa evolução. A divergência teórica que mais se
repercute, ainda hoje, na análise estritamente jurídica do conceito material de crime assenta
em duas perspetivas:
Por outro lado, Binding viria reduzir o bem jurídico aos valores ou condições da vida da
comunidade jurídica, tal como são definidos pelo legislador, numa perspetiva de puro
positivismo legalista. Estas duas visões viveriam em permanente tensão no seio do debate sobre
o conceito material de crime, no entanto, foi a posição inicial de Birnbaum que tornou o
conceito material de crime mais útil e claro.
Von Listz desenvolveu esta mesma perspetiva definindo o bem jurídico como interesse humano
vital, expressão das condições básicas da vida em comunidade. No seu entendimento, o bem
jurídico é um conceito legitimador do Direito Penal, descomprometido com a norma legal. O
conceito de bem jurídico ainda tem um conteúdo individualista liberal, contrapondo-se a esta
perspetiva, uma outra que numa delimitação objetivista do fundamento da infração criminal, a
refere já a bens ou valores supra-individuais.
Esta controvérsia entre diferentes conceções de bem jurídico não é solucionável segundo
critérios estritamente científicos dado que o núcleo da discórdia acentua nas diferentes
conceções de Estado e dos seus fins. Deste modo, apenas num plano jurídico-político será
possível uma decisão acerca de qual das naturezas apresentadas de bem jurídico deve ser
assumida.
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Por este motivo, procura-se situar na estrutura social os critérios que tornam necessária a
incriminação de determinadas condutas e a proteção de certos bens.
Uma conceção teleológico-funcional e racional do bem jurídico (que hoje se impõe para que a
noção se legitime) exige dele que obedeça a uma série mínima, mas irrenunciável de condições.
O conceito deve:
A questão que colocamos é a seguinte: como é que pode o conceito obedecer a todas estas
exigências?
Em suma, a crítica que se deve dirigir a este conjunto, segundo o prof. Figueiredo Dias, não
respeita à sua imprecisão, mas sim à insuficiência para os efeitos práticos da aplicação do
direito.
Deste modo, podemos concluir que um bem jurídico político-criminalmente tutelável existe
onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do
sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento
jurídico-penal pelo que a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal jurídico-penal
encontram-se relacionadas por uma analogia material fundada numa correspondência de
sentido e de fins. É nesta aceção que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem
considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos
direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica – os bens jurídicos
transformam-se, desta forma, em bens jurídicos com dignidade penal.
Não constituindo o bem jurídico um conceito fechado, apesar de toda esta evolução e
progresso verificados, várias questões relativas à sua concreta verificação continuam a ser
discutidas, nomeadamente a de saber se certas incriminações protegem autênticos bens
jurídicos (p.e. homicídio a pedido da vítima, propaganda do suicídio, interrupção voluntária da
gravidez, etc.).
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Apesar de nas incriminações referidas ser possível identificar um bem jurídico-penal, o que está
em causa não é a preexistência ou não de um bem jurídico, mas o grau de antecipação da sua
proteção e, consequentemente, o momento a partir do qual o direito penal deve sentir-se
legitimado para intervir em seu favor.
Perante isto, o Estado só deve tomar de cada pessoa o mínimo dos seus direitos e liberdades
que se revele indispensável ao funcionamento sem entraves da comunidade, conduzindo à
regra do Estado de Direito democrático segundo a qual o Estado só deve intervir nos direitos e
liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindível ao asseguramento dos
direitos e liberdades fundamentais dos outros ou da comunidade enquanto tal – vincula o
Estado a apenas utilizar os seus meios punitivos para tutelar bens de relevante importância da
pessoa e da comunidade e nunca para a instauração ou reforço de ordenações axiológicas de
carácter religioso, moral, político, económico, social e cultural. Assim, o art.18º/2 CRP, ao dispor
que as restrições de direitos, liberdades e garantias devem “limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” pretende limitar a
intervenção do Estado baseando-se em três pressupostos cumulativos – a intervenção do
Estado deve reger-se pelos seguintes subprincípios (decorrentes do princípio da
proporcionalidade):
Assim, será necessário pesar os diversos bens e valores em causa de forma a efetuar uma
ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso concreto, para averiguar se o
sacrifício dos interesses individuais que a ingerência comporta mantém uma relação razoável
ou proporcionada com a importância do interesse estatal que se trata de salvaguardar.
Perante tal conceção que encara como função específica do direito penal a tutela de bens
jurídico-penais, identificamos uma série de consequências importantes, algumas das quais na
esteira de Roxin.
▪ Puras violações morais, não se verificando a lesão de um autêntico bem jurídico, não
podem integrar o conceito material de crime – tem-se verificado uma evolução do
direito penal sexual deixando de lado a punibilidade de práticas sexuais que, à luz dos
sentimentos gerais de moralidade sexual devessem ser consideradas “anormais”,
“viciosas” ou “contra a natureza”.
▪ Imposições de fins meramente ideológicas, como por exemplo, fazer apologia de uma
qualquer doutrina religiosa, moral, etc.
▪ Violação de valores de mera ordenação: trata-se de questões jurídico-administrativas e,
apesar desta categoria tutelar bens jurídicos, não podemos afirmar que correspondem
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a bens jurídico-penais que preexistem à proibição e possuem uma referência
obrigatória à ordenação axiológica jurídico-constitucional.
Em suma, toda a norma incriminatória cuja base não contenha um bem jurídico-penal
claramente definido é nula por ser materialmente inconstitucional.
Uma vez que o direito penal utiliza os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das
pessoas, apenas poderá intervir nos casos em que todos os outros meios da política social se
revelem insuficientes ou inadequados. Quando tal não se verifique, tal intervenção pode e deve
ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade consistindo numa violação do
princípio da proibição do excesso – p.e. determina-se intervenção penal para tutelar bens
jurídicos que podem ser suficientemente tutelados pela intervenção de meios civis.
Perante esta conclusão, passamos ao passo seguinte que consiste na relação material entre o
direito penal e o direito constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos. Anteriormente vimos
que todo o bem jurídico penalmente relevante tem de encontrar uma referência expressa ou
implícita, na ordem constitucional dos direitos e deveres. Contudo, em nome do critério da
subsidiariedade, inversamente, não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de
criminalização, ou seja, perante a não verificação de uma injunção constitucional expressa de
um valor jurídico-constitucionalmente reconhecido como integrante de um direito ou dever
fundamental, não é legítimo deduzir, sem mais, a exigência de criminalização dos
comportamentos que o violam.
Art.132º CPDMM – “É considerado desertor o tripulante que, não havendo motivo justificado,
deixar partir o navio sem embarcar e, bem assim, aquele que sem autorização superior
abandonar o serviço de bordo durante cinco ou mais dias consecutivos”.
J recusou-se a embarcar no navio de marinha mercante em que estava inscrito como pescador.
Foi, deste modo, acusado de deserção, nos termos dos arts.132º e 133º do DL nº 33252 de
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1943. O juiz rejeitou a acusação por entender que os factos “não merecem ser criminalizados” e
que os normativos indicados “ofendem os princípios constitucionais insertos na CRP”.
Uma perspetiva meramente formal do conceito de crime, na linha de uma visão decisionista do
direito, seria aquela que considerasse crime tudo o que a lei definisse como tal, sem
necessidade de ulterior fundamentação. Esta ideia foi, desde cedo, contrariada pela ideia de
que ao conceito de crime há de corresponder um determinado conteúdo, configurado e
delimitado por critérios materiais. Apenas esta segunda posição permite uma abordagem crítica
do direito penal vigente, cujo elenco de “crimes” deverá ser cotejado com os parâmetros
definidores aceites e poderá ser alvo de um juízo de legitimidade.
Logo no séc. XIX, Feuerbach elabora uma primeira tentativa de atribuir um conteúdo material
ao conceito de crime – para este autor, o crime deveria reconduzir-se aos casos de violação de
um direito subjetivo, visando o direito penal a preservação do livre exercício dos direitos na
sociedade, numa perspetiva fortemente ligada às teorias do contrato social e,
simultaneamente, dentro do paradigma do individualismo liberal.
Mas ainda no séc. XIX aflorou uma outra conceção, com repercussões até à atualidade: coloca
no cerne do conceito material de crime a noção de bem jurídico. Introduzida por Birnbaum na
primeira metade do século passado, cuja lesão determinaria a atuação do poder sancionatório
do Estado, alterando radicalmente o posicionamento do direito penal que, em vez de se centrar
nas relações entre sujeitos, passa a proteger bens objetiváveis, projetados na sociedade – o
crime passa a corresponder a uma ação danosa com projeção no mundo exterior, e já não
essencialmente a uma ofensa intersubjetiva.
Apesar desta noção ainda se encontrar presente nos dias de hoje, a sua delimitação respeitante
aos bens jurídicos dignos de tutela penal tem sofrido várias alterações. Ora, a partir do
momento em que o conceito de crime se desloca do plano intersubjetivo para se projetar no
plano social, a questão da definição do que são “bens jurídicos” passa a estar intimamente
ligada ao problema dos fins do Estado.
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▪ Jakobs – o direito penal visa a manutenção da ordem social, é legitimado pela
danosidade do comportamento, entendida esta como perturbação de uma estabilidade
que se quer reposta (funcional);
Vejamos agora como perfilha este problema no ordenamento jurídico português. No Código
Penal não encontramos qualquer definição de crime, ao contrário do que sucedia no código
anterior em que dispunha que “crime ou delito é o facto voluntário declarado punível pela lei
penal”.
“Só pode ser punido criminalmente o facto descrido e declarado passível de pena por lei anterior
ART.1º/1 CP
ao momento da sua prática”
Este artigo apenas implica a previsão de um crime, não pressupõe que a lei possa declarar
passível de sanção criminal qualquer facto desde que o legislador assim o entenda. A nossa
Constituição consagra um conceito material de crime, que deve subjazer à classificação de dada
conduta como passível de aplicação de uma pena,
ART.18º/2 CRP “(…) devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos.”
Ora, aqui chegados, é de fácil compreensão o facto de o TC ter procurado identificar qual o bem
jurídico protegido no art.132º do DL e, posteriormente, equacionar a sua importância relativa
face à gravidade da sanção prevista, se não, desde logo, simplesmente a atividade punitiva.
O MP refere que “o trabalho de bordo, pelas suas características específicas, deve ter um
regime específico”, nomeadamente tratando-se de atividade marinha mercante enquanto esta
tem “natureza de serviço público”. O TC entende como interesses juridicamente protegidos “a
navegabilidade da embarcação” e “o regular desenvolvimento da atividade de pesca de longo
curso”, contudo afirma que a conduta do arguido não colocou em perigo esses interesses pelo
que não se justifica uma reação com carácter penal.
Questão relevante:
Fora da esfera dos valores com indiscutível dignidade penal, há uma relativa manobra do
legislador que deve atender a certos parâmetros. Desde logo, o legislador deve ponderar se a
intervenção do ius puniendi é necessária, ou seja, se a conduta censurada requer uma resposta
tão gravosa. Num segundo momento, deve o legislador ponderar se o bem jurídico em causa
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pode ser eficazmente defendido por outro modo – se tal for possível, e de acordo com o
princípio da intervenção mínima do direito penal, deve abster-se de recorrer ao direito penal
atendendo à sua natureza subsidiária.
Por último, há bens jurídicos que pela sua natureza pertencem à esfera de outros ramos do
direito que compreendem a via adequada para garantir a sua defesa. Nestes casos, remetê-los
para o âmbito do direito penal seria um ato arbitrário e abusivo por parte do legislador, sendo
incompatível com os preceitos constitucionais que regem o direito penal. Foi nesta ótica que o
TC entendeu inconstitucional o normativo do art.132º, elaborado à luz de um outro quadro
constitucional e em flagrante oposição ao quadro vigente. O direito laboral dá respostas às
condutas como a de J. que aí deverão ser integradas, não havendo qualquer justificação da
intervenção do direito penal em casos como este.
A função do direito penal no sistema de meios de controle social e na ordem jurídica total
haverá de apreender-se não só através da natureza do seu objeto (o crime) como também da
especificidade das consequências jurídicas que àquele se ligam – as penas e as medidas de
segurança.
O problema dos fins das penas é tão antigo quanto o direito penal e tem sido discutido
vivamente e sem soluções de continuidade. A razão de um tal interesse e da sua subsistência ao
longo dos tempos reside no facto de no cerne dos fins das penas se encontrar toda a teoria do
direito penal nas quais se discute a legitimação, fundamentação e função da intervenção penal
estatal.
A pena tem uma conotação que lhe foi conferida pelo processo histórico e que ainda hoje
persiste, revelando-se sempre como uma imposição de um mal para a pessoa do criminoso e
para a sua honra.
Três grandes conceções disputaram entre si neste domínio: a retribuição, a prevenção geral e a
prevenção especial. As teorias retributivas foram, nas suas primeiras formulações, teorias
absolutas por justificarem a pena pela compensação do mal do crime, independentemente de
qualquer fim pragmático.
As respostas dadas ao longo dos séculos podem ser organizadas em duas teorias fundamentais:
No entanto, segundo estas teorias, a pena revela-se como a justa paga do mal que com o crime
de realizou pelo que a medida concreta da pena com que deve ser punido um certo agente por
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um determinado facto não pode ser encontrada em função de outros pontos de vista (por mais
que eles se revelem valiosos e relevantes).
A discussão no âmbito destas teorias centrou-se durante muito tempo sobre a forma como
deveria ser determinada a “igualação” a operar entre o “mal do crime” e o “mal da pena”.
Acabou por reconhecer-se que a igualação não podia ser fáctica, mas tinha de ser normativa.
Apesar de se ter chegado a esta conclusão, ainda restavam dúvidas acerca do carácter da
retribuição: assume o carácter de uma reparação do dano real, do dano ideal ou de qualquer
outra grandeza? A retribuição ocorria em função do desvalor do facto ou antes da culpa do
agente?
Contrariamente às teorias absolutas, as teorias relativas consideram a pena como um mal para
quem a sofre – sendo a pena um instrumento a atuar no mundo, justifica-se a utilização deste
mal para alcançar a prevenção ou a profilaxia criminal. Nas teorias preventivas (ou relativas) é
necessário distingui-las tanto historicamente como o sentido entre as doutrinas de prevenção
geral e de prevenção especial.
O denominador comum das doutrinas de prevenção geral radica na conceção da pena como
instrumento político-criminal destinado a atuar sobre a generalidade dos membros da
comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da
realidade da sua aplicação e da efetividade da sua execução.
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O ponto de partida destas doutrinas é louvável dado que, contrariamente às teorias absolutas,
este se relaciona diretamente com a função do direito penal de tutela subsidiária de bens
jurídicos. Atendendo a esta função do direito penal é perfeitamente compreensível que se exija
da pena uma atuação preventiva sobre a generalidade dos membros da comunidade seja no
momento da sua ameaça abstrata seja no momento da sua concreta aplicação e execução.
Contudo, não podemos deixar de apresentar algumas críticas a estas teorias:
Nota: considerando apenas o cariz positivo destas teorias, já não padeceriam de fragilidade. Se
a prevenção geral se perspetivar na sua vertente positiva, é possível que se encontre uma pena
que, em princípio, se revelará uma pena justa e adequada à culpa do delinquente e teria como
limite inultrapassável a culpa.
Estas doutrinas têm como denominador comum a ideia de que a pena é um instrumento de
atuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que futuramente cometa
novos crimes. Neste sentido, podemos afirmar que estas teorias têm como base a ideia de
prevenção da reincidência.
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Note-se que estas teorias divergem no que toca à forma como deve a pena cumprir esta
finalidade:
Assim, apenas o conteúdo mínimo da socialização é que merece a nossa aceitação. Note-se, no
entanto, que a prevenção especial positiva depara-se com dificuldades nos casos em que uma
socialização se mostra desnecessária, ou seja, quando o criminoso não revela carência de
socialização. Concluímos, desta forma, que a prevenção especial positiva não pode, só por si,
apresentar-se como solução integral do problema dos fins da pena.
Porque é que a prevenção especial não poderá ser um fim exclusivo das penas? A prof.
Fernanda Palma refere que:
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Nenhuma das teorias apresentadas logra, como vimos, dar uma resposta satisfatória ao
problema da legitimidade da pena. As teorias sobre os fins das penas de que os pensamentos
filosóficos e jurídicos se ocuparam pretendem resolver um problema mal colocado – o dos fins
“ideais” das penas.
Assim, tal como a prof. Fernanda Palma refere, o nosso ponto de partida deverá ser a “realidade
da pena” e não aquilo que era idealmente deveria ser.
Refere-se hoje, cada vez com maior insistência, como uma autónoma e nova finalidade da pena
o propósito de com ela se operar a possível concertação entre o agente e a vítima, através da
reparação dos danos pelo crime – não apenas patrimoniais, mas também morais.
▪ Roxin: surge como um dos autores que tanto do ponto de vista político-criminal, como
dogmático preconiza mais veemente um novo estatuto para esta ideia – tenta erigir um
sistema tripartido de sanções penais. A discussão, nestes planos, centra-se sobretudo
em determinar o exato relevo do tema para a teoria dos fins das penas, a concreta
conformação que devem assumir as medidas concertação e a delimitação precisa do
seu âmbito de aplicação – se devem ser aplicadas só a crimes contra bens jurídicos
individuais ou também contra bens jurídicos supra-individuais.
Penas
Sanções penais
Medidas de segurança
Reparação de danos
O Direito Penal português confere a todo este pensamento político-criminal, por diversas
formas, um relevo muito particular: seja considerando a reparação do dano como condição de
legitimidade de aplicação de certas penas de “substituição” ou como condição da “dispensa de
pena”. A ideia da reparação de danos tem, por isso, presença inegável no nosso direito penal,
contudo, não pode ser considerada como uma finalidade geral da pena, precisamente porque
apenas vale para certos tipos de crimes e a reparação dos danos poderia conduzir a que o
sancionamento penal ficasse numa larga e inadmissível disponibilidade de aceitação da vítima
e/ou do próprio agente.
Deste modo, a concertação agente-vítima apenas pode ter o sentido de contributo para o
restabelecimento da confiança e da paz.
➢ Teorias mistas
Em primeiro lugar, o prof. Figueiredo Dias começa por reiterar que as doutrinas absolutas e
relativas são irremediavelmente diversas e, por isto, as conceções unificadoras/mistas revelam
uma oscilação inadmissível em convicções fundamentais.
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✓ Teorias da prevenção integral: a combinação das finalidades da pena apenas
pode ocorrer a nível da prevenção geral e especial, com exclusão de qualquer
vertente retributiva ou compensatória. O prof. Figueiredo Dias recusa esta
conceção pois negam o princípio da culpa como limite do problema – para este
prof. a culpa é pressuposto da pena e limite inultrapassável da sua medida.
➢ Finalidades e limite das penas criminais à luz do Código Penal português e das
conceções doutrinárias portuguesas
Nota: esta conceção não permite dissociar a prevenção especial da prevenção geral – estas
devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possível.
De acordo com esta orientação, a finalidade visada pela pena corresponde à tutela necessária
dos bens jurídico-penais no caso concreto, tutela esta com um significado prospetivo traduzido
na necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da
vigência da norma violada. Assim é imperativo restabelecer a paz jurídica comunitária abalada
pelo crime e mostrar que as normas são efetivas (prevenção geral positiva como finalidade
primária (art.40º/1 CP). É a prevenção geral positiva que dá conteúdo ao princípio da
necessidade da pena (art.18º/2 CRP).
Tendo em conta estas considerações, podemos invocar a existência de uma medida ótima de
tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena deve alcançar – esta
medida não pode ser excedida por considerações de qualquer tipo, nomeadamente por
exigências acrescidas de prevenção especial.
Atenção: esta medida ótima não fornece ao juiz um quantum exato da pena. Abaixo do ponto
ótimo ideal existiram outros em que a tutela ainda e efetiva e consistente e onde a pena
concreta aplicada anda se situa sem perder a sua função primordial de tutela de bens jurídicos,
até se alcançar um limiar mínimo – o chamado “defesa do ordenamento jurídico” – abaixo do
qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr em causa a tutela dos
bens jurídicos.
Em suma, a prevenção geral positiva fornece uma moldura de prevenção (cujo limite máximo
diz respeito à medida ótima e o limite mínimo à defesa do ordenamento) e dentro da moldura
devem atuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial determinando,
em última instância, a medida da pena. Deste modo, o prof. Figueiredo Dias considera que,
contrariamente ao que a maioria da doutrina defende, a culpa não fornece uma “moldura de
culpa”. Afere então que a culpa no sistema tem como função a proibição do excesso, isto é,
constitui o pressuposto necessário e o limite inultrapassável da pena, não constituindo o
fundamento da pena.
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FD
Medida ótima
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Contrariamente ao que o prof. Figueiredo Dias considera, encontramos a opinião da prof. Maria
Fernanda Palma Fernanda Palma. A prof. começa por identificar que o próprio código penal, no art.70º CP
estabelece que a culpa do agente é o critério fundamental da medida da pena, justificando a
sua variação entre o máximo e o mínimo pelo que o art.40º CP corresponde a uma norma
orientadora do tribunal.
Questiona então se, perante uma situação em que a culpabilidade do agente seja mínima,
justifica-se a pena de forma a evitar a perda de confiança no Direito e o enfraquecimento das
expectativas da eficácia do sistema.
A resposta vai no sentido negativo. Refere que na seleção legislativa dos comportamentos
puníveis não pode caber apenas uma perspetiva de satisfação do interesse geral, dos
sentimentos da comunidade, mas caberá também a consideração de um certo nível de desvalor
da ação e de uma exigibilidade média de um outro comportamento a quem viola a norma.
Assim, a culpabilidade estabelece um limite inultrapassável e determina a moldura penal dentro
desse limite. Isto quer dizer que a prevenção especial e geral podem determinar uma pena, mas
nunca poderá ultrapassar esse limite. E, contrariamente ao prof. Figueiredo Dias, não poderá
ser aplicada uma pena se a culpabilidade do agente foi excessivamente baixa ou exígua.
MFP
Limite máximo: culpa
do agente
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Este prof. considera, em primeiro lugar, que o objetivo da pena, enquanto meio de proteção de
Taipa de bens jurídicos, é a prevenção especial (positiva e negativa), sendo este o critério orientador
Carvalho tanto do legislador como do tribunal.
Assim, o legislador deve apresentar molduras penais suficientemente amplas e uma ampla
gama de espécies de penas. Já o juiz deve seguir-se pelo critério estabelecido no art.40º/1, 2ª
parte CP e, por conseguinte, a determinação da medida da pena e a escolha da espécie da pena
reger-se-á pelo critério da prevenção especial: recuperação do infrator (este fim tem como
limite mínimo a eventual dissuasão do infrator da prática de futuros crimes).
TAIPA DE CARVALHO
Limite máximo: culpa
do agente
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Já foram expostos os limites, de acordo com as várias perspetivas, dentro dos quais podem ser
considerados os concretos fatores de medida da pena. Decisivo será o elenco contido no
art.71º/2 CP.
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Entende-se a “execução do facto” num sentido global e complexivo, capaz de abranger “o grau
de ilicitude do facto, o modo de execução bem como o grau de violação dos deveres impostos
ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência” e ainda “os sentimentos manifestados na
preparação do crime ou os fins ou motivos que o determinaram”.
Nos fatores relativos à execução do facto entram, por outro lado, todas as circunstâncias que
respeitem à reparação do dano pelo ou agente, ou mesmo só aos esforços por ele
desenvolvidos neste sentido ou no de uma composição com o lesado. Várias circunstâncias
ainda atinentes à execução do facto servem para caracterizar a medida da censurabilidade e
dizem por isso respeito ao juízo e ao tipo-de-culpa. Assim, desde logo, os sentimentos, motivos
e fins do agente manifestados no facto. É necessário, no entanto, quando estamos a averiguar
os sentimentos e motivos do agente, não só temos de ter em conta as circunstâncias de
motivação interior (ódio, intenção lucrativa, medo), como também estímulos exteriores
(necessidade económica, coação, pressão política, etc.). Tanto os sentimentos como os motivos
e fins devem ser investigados pelo juiz quanto à medida da pressão que exerceram sobre o
agente quanto à sua essência de valor jurídico-penal.
Por último, devemos refletir sobre o grau de violação dos deveres impostos ao agente.
A personalidade do agente (não no seu todo, mas aquela que é manifestada no facto) é um
fator da mais elevada relevância para a medida da pena e que para ela releva tanto pela via da
culpa como pela vida prevenção.
O art.72º/e) dá relevo para a medida da pena “a conduta anterior ao facto e a posterior a este,
especialmente quando esteja seja destinada a reparar as consequências do crime. Com isto,
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alarga de modo significativo o âmbito das circunstâncias de que o juiz pode e deve lançar mão
para encontrar o quantum de pena adequado à culpa e à prevenção.
✓ A conduta anterior ao facto: esta deve possuir valor atenuante máxime, sob
pontos de vista preventivos, mas também, em certos casos, sob o ponto de
vista de culpa (sempre que permita concluir que o facto surge como um
episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida fiel ao direito – mas esta
circunstância não pode retirar-se, sem mais, da circunstância de o agente não
ter sido anteriormente condenado;
✓ A conduta posterior ao facto: deve o juiz ser, se possível, ainda mais exigente e
cuidadoso no que toca ao seu relacionamento com a medida da culpa e as
exigências de prevenção. Podemos mesmo afirmar que a conduta posterior
apenas relevará unicamente pela prevenção.
O princípio do Estado de Direito conduz a que a proteção dos direitos, liberdades e garantias
seja levada a cabo não apenas através do direito penal, mas também perante o direito penal.
Uma eficaz prevenção do crime, que o direito penal visa em último termo atingir, só pode
pretender êxito se à intervenção estadual forem levantados limites estritos perante a
possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária e excessiva. A esta possibilidade, submete-
se a intervenção penal a um rigoroso princípio da legalidade cujo conteúdo essencial se traduz
em não poder haver crime, nem pena que não resultem de uma lei:
▪ Escrita;
▪ Estrita;
▪ Certa;
▪ Prévia.
A norma contida no art.29º/2 CRP confere jurisdição aos tribunais portugueses para
conhecerem certos crimes contra o direito internacional, mesmo que as condutas visadas não
sejam puníveis à luz da lei positiva interna. É, contudo, necessário que se trate de crimes à luz
dos “princípios gerais de direito internacional commumente reconhecidos” e a punição só pode
ter lugar nos “limites da lei interna” que define os termos do processo e das sanções aplicáveis.
Esta ideia de que o direito internacional pode impor diretamente deveres de natureza penal aos
indivíduos consolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e Tóquio, onde as potências
aliadas condenaram membros das forças do Eixo por violações graves do direito internacional
que não eram punidas pela lei interna desses países. Assim, o art.29º/2 CRP adotou uma
conceção segundo a qual a responsabilidade por crimes contra o direito internacional não se
encontra sujeita ao princípio da legalidade previsto no art.29º/1, válido apenas para a lei
estadual.
O princípio da legalidade da intervenção penal possui uma pluralidade de fundamentos, uns
externos (ligados à conceção de Estado) e outros internos (de natureza jurídico-penal).
Fundamentos externos:
▪ Princípio democrático;
▪ Separação de poderes.
De acordo com os princípios democrático e da separação de poderes, só se encontra legitimada
para a intervenção penal a instância que represente o povo como titular do ius puniendi –
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exigência de lei formal emanada do Parlamento ou por ele competentemente autorizada
(art.165º/c CRP).
Fundamentos internos (segundo prof. Figueiredo Dias e Roxin)
▪ Prevenção geral;
▪ Princípio da culpa.
Não podemos esperar que a norma cumpra a sua motivação motivadora do comportamento da
generalidade dos cidadãos se aqueles não puderem saber, mediante lei anterior, estrita e certa,
por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente puníveis ou não.
Não seria também legítimo dirigir a alguém a censura por ter atuado de certa forma se uma lei
com aquelas características não considerasse o comportamento como crime.
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✓ Se a circunstância eximente afetar expectativas gerais e diminuir a liberdade e
segurança dos cidadãos – requer-se a reserva de lei;
✓ Se a circunstância resultar de uma ideia geral, de um princípio geral da ordem
jurídica – não se requer a reserva de lei dado que o legislador apenas está a
corporizar direitos latentes no ordenamento jurídico.
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Tal como aferimos, a remissão para outra norma não é em si mesma um obstáculo ao respeito
da legalidade, mas sim o grau de esvaziamento de conteúdo e a atribuição da competência para
definir o comportamento proibido a leis hierarquicamente inferiores.
Dentro deste âmbito, podemos verificar duas situações:
▪ O núcleo do comportamento proibido pela norma depende totalmente da norma para
a qual se remete;
▪ A remissão é puramente para um critério técnico, não estando o objeto da norma
remissiva (interesse fundamental protegido) dependente do conteúdo concreto deste
critério.
Assim, podemos concluir que a distinção entre as normas remissivas que violam a reserva de lei
e, consequentemente, inconstitucionais e as que são compatíveis com a reserva, depende de
saber se a função da norma penal é estabelecer direta e materialmente a fronteira entre o
proibido e o permitido ou apenas sinalizar que um efeito material depende da obediência à
regulação legal devido à natureza ou grau de risco da atividade é o conteúdo fundamental da
proibição.
Acórdão 427/95 TC - https://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/TQB_MA_26472.pdf
Concluiu que a norma incriminadora que, definindo o núcleo do ilícito como a inclusão de
aditivos num produto alimental (que desvirtuem a qualidade do alimento) e que remetia para
uma outra norma que fixava quais os aditivos permitidos não violava a reserva de lei porque a
proibição estava contida na primeira norma e a segunda meramente excluía certas substâncias
do âmbito da proibição.
Em suma, ao aferirmos a constitucionalidade de uma norma teremos de aferir a existência do
“critério autónomo de ilicitude” que concluímos que sim quando estão presentes na norma
penal os seguintes requisitos:
▪ Identificação de forma clara qual é o bem jurídico que se pretende tutelar;
▪ Previsão do desvalor da ação na norma penal – “desvalor da ação” – o desvalor que
está associado à ação – temos de perceber qual é o comportamento desvalioso;
▪ Identificação do desvalor do resultado também tem de estar identificado – temos de
perceber de forma clara o que se pretende evitar.
Assim, se a norma penal apresentar qual o critério autónomo da ilicitude, esta não será
inconstitucional.
Art.1º/3 CP “Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado
de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhe corresponde.”
O fundamento desta proibição reside na exclusividade da competência do Parlamento (ou do
Governo com autorização legislativa) na formulação de normas incriminadoras. Pensando bem:
se os tribunais pudessem utilizar a analogia, formulariam normas incriminadoras que deixariam
de ser objeto de controlo democrático. Por outro lado, o carácter fragmentário do Direito Penal
impede que comportamentos análogos aos que estão previstos, tenham o mesmo
merecimento penal – não se verifica a mesma necessidade político-criminal de incriminação
(não podemos inferir a dignidade punitiva dos comportamentos que não estão previstos).
É necessário clarificar que aquilo que o código penal proíbe é o recurso à analogia e não o
recurso a raciocínios analógicos na aplicação da lei penal.
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Analogia – verificamos uma lacuna e o caso real é meramente semelhante aos casos
considerados pela lei, no entanto, o legislador não pensou no “caso real”.
Interpretação extensiva – não verificamos uma lacuna e estamos perante a possibilidade de
referir um certo caso não expressamente considerado pela letra da lei ao seu pensamento. A
letra da lei abrange menos do que o pensamento do legislador possibilita.
Não é complexo distinguir estas duas figuras de uma forma teórica, contudo, na sua aplicação
prática, torna-se muito complexo distingui-las (têm fronteiras muito ténues), até mesmo
porque a própria interpretação extensiva recorre a raciocínios analógicos.
A prof. Fernanda Palma começa por questionar se, a ultrapassagem da dificuldade entre a
distinção da analogia e da interpretação extensiva, obtém-se pela proibição da interpretação
extensiva.
O art.1º/3 CP não proíbe expressamente tal interpretação. Por outro lado, não podemos
também inferir da proibição in malam partem da analogia uma permissão da interpretação
extensiva – tal raciocínio implicaria a analogia in bonam partem. Recorrendo aos critérios
tradicionais de interpretação jurídica, a proibição da interpretação extensiva só poderia ser
inferida por analogia com a proibição da própria analogia. Ora, a norma que proíbe a analogia
no Direito Penal circunscreve excecionalmente a atividade interpretativa: a analogia só é
proibida, em geral, quanto às normas excecionais podendo estas ser objeto de interpretação
extensiva. Assim, não poderíamos considerar proibida toda e qualquer interpretação extensiva
só porque é difícil delimitá-la da analogia à luz dos critérios tradicionais de interpretação.
Concluímos então que a interpretação extensiva não é nem deixa de ser proibida, tudo
dependendo da enunciação de outros critérios.
A prof. Fernanda Palma, perante esta dificuldade de delimitação das fronteiras da analogia e da
interpretação extensiva, refere que a solução mais viável é de facto conduzir o nosso
pensamento jurídico para uma fronteira entre a interpretação proibida e permitida.
Podemos, contudo, fazer ainda referência a outros modos de abordagem ao problema:
▪ Pensamento antipositivista: desvincula totalmente a interpretação permitida do tipo
legal, orientando e controlando a interpretação jurídica por critérios extraliterais
reveladores do significado fundamental da norma (Heidegger);
▪ Pensamento positivista: os limites da interpretação permitida são controlados
fundamentalmente por critérios de significação da índole linguística – o limite do
princípio da legalidade é o “sentido possível das palavras”.
O que se discute essencialmente entre estes dois modo de abordagem, é se o princípio da
legalidade pode ser cumprido sem uma pré-determinação da norma por limites linguísticos
extrajurídicos definidos em abstrato e vinculativos da concretização do Direito no caso:
▪ Pensamento antipositivista: relativiza de tal forma essa pré-determinação que defende
que o texto jurídico deixou de ser objeto da interpretação para, em seu lugar, colocar a
norma (por definir) do caso concreto, cuja descoberta só é pré-determinada por um
jogo de condições de validade (legal, sistemática, dogmática e institucional) tal como
defende Castanheira Neves.
Castanheira Neves
Refere, em primeiro lugar, que o critério de distinção deve satisfazer duas exigências
fundamentais:
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1. O critério deverá ter uma índole de topo mediador: topo entre a lei e o juízo concreto
de forma a ser possível cumprir por essa mediação a função de controlo do juízo
decisório;
2. O critério terá de conciliar o carácter normativamente constitutivo da interpretação-
concretização com o prévio enquadramento dos seus eventuais resultados.
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▪ O sentido possível do texto é o sentido comunicacional percetível do mesmo e não
qualquer sentido lógico não sustentável pela linguagem social;
▪ O sentido possível do texto delimita-se ainda pela adequação do texto à essência do
proibido de acordo com as valorações do sistema que a noma diretamente exprime ou
pretende exprimir.
Em suma, o texto jurídico cujo significado seja determinável pela linguagem comum, torna-se a
condição essencialmente pré-determinante da interpretação permitida em Direito Penal.
De qualquer modo, a interpretação secundum legem e a interpretação contra legem é muito
difícil nalguns casos, no entanto, o TC no acórdão 205/99 entendeu que a fronteira entre a
interpretação proibida e permitida passaria por saber se o resultado da interpretação se
equipararia a uma opção normativa entre outras concebíveis, em face do sistema legal – o
critério depende da possibilidade de uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas pelo
intérprete, com implicação na configuração das consequências do crime, que compete ao
legislador tomar e não ao intérprete. Assim:
▪ Se a interpretação adquire uma função tipicamente legislativa – estamos perante uma
norma indevidamente criada pelo juiz;
▪ No caso contrário, permanecemos ainda no âmbito da interpretação permitida.
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Fundamentos internos:
➢ Prevenção geral: se a finalidade da pena é prevenir o crime, por via da intimidação,
naturalmente que a lei que define o crime e estabelece a respetiva sanção tem de ser
clara, precisa e anterior ao facto que a comunidade quer impedir que aconteça.
➢ Princípio da culpa: apenas poderemos fazer um juízo de censura relativamente a uma
conduta de alguém com base na lei que se encontrava em vigor no momento da prática
do facto (MPF) dado que foi essa lei que orientou o comportamento do agente.
Note-se que o princípio da legalidade não cobre toda a matéria penal, mas apenas a que se
traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente – se funcionasse em relação
à exclusão ou atenuação da responsabilidade, estaria a ir contra a sua própria teleologia:
proteção dos direitos.
➢ Proibição de retroatividade – validade temporal da lei penal
Decorrente do princípio da legalidade, encontramos o corolário nullum crimen, nulla poena sine
lege praevia que corresponde à exigência de lei prévia para que haja um crime.
Ora, segundo o art.29º/4 CRP, ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves
do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos
pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao
agente.
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Esta norma estabelece o princípio da não retroatividade das normas penais que criem ou
agravem a responsabilidade penal. Esta proibição tem essencialmente dois fundamentos:
▪ Princípio da culpa;
▪ Segurança jurídica.
Acompanhando o princípio da não retroatividade da lei menos favorável, encontramos o
princípio da aplicação da lei mais favorável ao agente – art.2º/2 e 4 CP. Este princípio tem como
fundamento a prevenção geral e/ou especial. Se o legislador entende que o facto não deve
continuar a ser considerado crime ou que, embora considere que deve continuar a ser de forma
a satisfazer as necessidades de prevenção especial e geral, mas considerando uma pena menos
grave, então deixa de ser justificável a aplicação da lei antiga – retroatividade da lei nova mais
favorável. Este fundamento de prevenção encontra-se fortalecido essencialmente com o
princípio constitucional da restrição mínima dos direitos fundamentais das pessoas –
necessidade da pena (art.18º CRP).
A funcionalidade destes princípios encontra-se dependente da determinação do tempus dilicti,
ou seja, da fixação do momento em que se considere cometido o crime dado que a lei penal
desfavorável não se pode aplicar a factos praticados antes da sua entrada em vigor. Os factos
previstos na lei criminal são realidades complexas dado que o tipo legal em sentido estrito se
decompõe em:
▪ Conduta;
▪ Resultado.
Sabemos, também, que entre a conduta e o resultado podemos verificar uma grande dilação
temporal sendo possível que, no tempo intermédio, entre em vigor uma lei que criminalize o
facto ou que agrave a responsabilidade do agente. Exatamente por esta razão é que se torna
necessário determinar o elemento do crime a considerar decisivo na relação temporal.
Segundo o art.3º CP, o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no
caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado
típico se tenha produzido. Quer isto dizer que a violação da norma se concretiza na conduta e
não no resultado que por sua vez é incontrolável pelo agente.
Esta norma é de fácil aplicação no caso dos crimes de execução instantânea, ou seja, aqueles
em que se consumam num só ato. O que levanta mais questões é as situações em que, se
estivermos perante um caso de crime de execução duradoura, crimes habituais ou crimes
continuados.
Crimes de consumação duradoura Crimes habituais Crimes continuados
Iniciam a consumação a partir do início Deve também seguir- Nos termos do art.30º/2 e
da ação e a consumação perdura até ao se o critério de 79º CP, existe uma
último ato – enquanto a consumação referência do tempo unificação de ações
não se esgotou terá de ser aplicada a da comissão do delito idênticas suportadas por
todo o comportamento punível a lei a todo o período da uma intenção criminosa
nova pois o agente manteve a realização consumação da ação continuada justificando a
do comportamento após a entrada em (p.e. violência aplicação da última lei,
vigor da LN – abrange sempre o doméstica). ainda que mais gravosa, a
comportamento cuja consumação se todo o período da
iniciou anteriormente mas ainda continuação criminosa.
persista no momento de entrada em
vigor da lei nova.
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A lei que iremos considerar será então a L5, mesmo que esta seja mais gravosa.
Finda a análise da lei a considerar quanto ao momento da prática do facto, teremos de aferir se
há ou não uma verdadeira sucessão de leis. Podemos distinguir sucessão de leis penais em
sentido amplo e em sentido estrito:
▪ Sentido amplo: a designação “sucessão de leis penais” tanto abrange uma sequência de
duas ou mais leis penais como uma sequência de uma lei contraordenacional e uma lei
penal ou vice-versa;
▪ Sentido estrito: a designação “sucessão de leis penais” implica que todas as leis que se
sucederam eram leis penais.
➢ Eficácia temporal da lei que converte uma conduta de contraordenação em crime ou de
crime em contraordenação
A delimitação da verdadeira sucessão de leis é um pressuposto essencial da resolução dos
problemas de substituição da punição de certos factos no âmbito penal pelo seu
sancionamento através do Direito de Mera Ordenação Social. O problema que se coloca é saber
se:
▪ Houve uma alteração do regime punitivo nos termos do art.2º/4 CP (quando houver
uma alteração das disposições penais vigentes no momento da prática do facto, aplica-
se aquela que for mais favorável) ou;
▪ Se houve um fenómeno de desincriminação com as consequências normas do art.2º/2
CP – “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se
uma lei nova o eliminar do número de infrações”.
Fernanda Palma:
A prof. Mª Fernanda Palma afirma que é um problema que apela a uma compreensão valorativa
da substituição de regimes, não tendo uma solução meramente lógica.
Numa lógica aparente e estrita, poderíamos concluir que a diferença qualitativa do ilícito penal
relativamente ao de mera ordenação impede uma verdadeira sucessão de leis no tempo dado
que os critérios valorativos de um ilícito de outra natureza suscitariam um facto jurídico novo e
diferente. Contudo, tal conclusão desconheceria que o sentido do apelo à autonomia qualitativa
do ilícito é apenas de evitar a plena utilização de cursos e vantagens dos critérios de
responsabilização penal e o respetivo processo introduzindo critérios de aferição de
responsabilidade justificados dos objetivos sociais mais instrumentais. Assim, é incorreto
defender que se verifica uma extinção total da responsabilidade jurídica nestes casos quando
não haja uma explícita e coerente vontade de legislativa.
Refere ainda que, nestas situações, o objeto da proibição é um comportamento humano
essencialmente idêntico na previsão das diferentes normas, o que assegura a unidade do facto
e a continuidade normativa, não havendo qualquer afetação da previsibilidade pela punição do
direito mais favorável – há, desta forma, uma sucessão de leis.
Taipa de Carvalho
Afirma que nestes casos não estamos perante uma verdadeira sucessão de leis penais dado que
correspondem a duas leis de natureza diferente: uma lei penal e uma lei contraordenacional.
Assim, não funciona o princípio da aplicação da lei mais favorável dispensando a ponderação da
gravidade objetiva das sanções contraordenacionais e das sanções penais.
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➢ Lei nova que converte contraordenação em crime
Tal como os art.29º/1 e 3 CRP e o art.1º/1 e 2º/1 CP referem, a lei criminalizadora só pode ser
aplicada aos factos praticados depois da sua entrada em vigor;
➢ Lei nova que converte crime em contraordenação
Sendo uma lei descriminalizadora, todos os factos praticados durante a sua vigência, deixam de
ser puníveis penalmente por força da imposição retroativa despenalizadora (art.29º/4 CRP e
art.2º/2 CP) – se não se iniciou procedimento criminal, jamais se poderá iniciar. Se já entrou em
curso, extinguir-se-á, com a entrada em vigor da nova lei.
O art.2º/3 CP estabelece que “quando a lei valer para um determinado período de tempo,
continua a ser punível o facto praticado durante esse período”.
O conteúdo normativo deste preceito não pretende referir-se a uma sucessão de leis penais em
sentido próprio, mas sim a uma lei posterior que descriminaliza a conduta (ou que lhe atribui
uma pena menos grave) que não inclui entre os seus elementos típicos a situação de crise ou
excecional, havendo uma alteração essencial no ilícito típico entre duas leis temporalmente
sucessivas, mas não sucessivas segundo critérios jurídicos.
Podemos questionar se as leis penais temporárias não colocam problemas de compatibilização
com o princípio da retroatividade da lei mais favorável. A resposta é afirmativa, no entanto,
teremos de proceder com o máximo de ordem e rigor possível.
▪ Figueiredo Dias: considera este preceito uma exceção ao princípio da não
retroatividade da lei menos favorável referindo que o afastamento da aplicação deste
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princípio tem como fundamento o facto de a modificação legal não ter como base
conceções legislativas, mas sim uma alteração das circunstâncias fácticas que deram
base à lei.
▪ Taipa de Carvalho: afirma que se a aplicação da lei temporária consistisse numa
exceção ao princípio da proibição da retroatividade da lei menos favorável, tal exceção
seria inconstitucional por violação do art.29º/4 CRP. Refere, então, que se trata de uma
situação especial que cai fora das situações subjacentes ao disposto do art.29º CRP e,
consequentemente, não é inconstitucional.
▪ Fernanda Palma: considera também que se trata de uma exceção.
Assim, não havendo uma sucessão jurídica de leis no tempo, mas sim uma sucessão temporal,
aplicamos a lei temporária de forma ultra-ativa dado que, a não aplicação da mesma em nome
do princípio da aplicação da lei mais favorável ao agente seria retirar o uso e objetivo útil da
norma.
Nota: também é possível existir sucessão de leis temporárias pelo verificamos duas situações:
▪ A L2 assenta numa realidade normativo-típica distinta: não há uma verdadeira sucessão
de leis – aplica-se a lei do MPF;
▪ A L2 assenta na mesma realidade normativo-típica, no entanto, verifica-se uma
alteração da valoração político-criminal - há sucessão de leis – aplica-se a mais
favorável. (p.e. o legislador apercebe-se que a pena consagrada na L1 era demasiado
dura e decide reduzir o limite máximo).
Mas podemos legitimamente questionar, como é que podemos aferir se estamos ou não
perante uma verdadeira sucessão de leis no tempo quando verificamos uma alteração dos
elementos do tipo legal.
➢ Alteração dos elementos do tipo legal
A situação em análise respeita às situações em que a LN altera a estrutura do tipo legal de
crime, acrescentando, subtraindo ou substituindo alguns elementos que constavam da LA, ou
seja, do tempus delicti.
Exemplo para uma melhor compreensão:
A LN suprime o elemento típico “que constituam perigo para a saúde” que constava da LA que
descrevia o seguinte preceito “a venda de bens impróprios para consumo, que constituam
perigo para a saúde” é punida (…). Tendo A praticado o facto previsto na lei antiga e na sua
vigência, perguntamos: o facto de A continua a ser punível após a entrada em vigor da LN, ou
seja, haverá uma verdadeira sucessão de leis penais?
O critério seguido para conseguirmos aferir se há ou não uma sucessão de leis será:
▪ Critério do facto concreto – o facto praticado na vigência da LA continua a ser punível
pela LN se tal facto for formalmente subsumível a ambas as leias, ou seja, se o facto
fosse praticado na vigência da LN fosse considerado crime, então deveria continuar a
ser tratado como crime – aplicar-se ia a lei mais favorável dado que estaríamos perante
uma verdadeira sucessão de leis.
Esta teoria foi abandonada pela maioria da doutrina dando o prof. Taipa de Carvalho
argumentos contra este critério:
1. Esta teoria permite que determinadas condutas sejam valoradas como tipicamente
agravantes que na LA apenas poderiam ser consideradas como agravantes gerais (p.e.
num caso de roubo qualificado, a LA referir “na via pública” e a LN substituir por “estar
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armado” - segundo a teoria do facto concreto o agente responderia por furto
qualificado);
2. Menospreza a função de orientação e de previsibilidade que cabe à lei penal.
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que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra
pessoa com relacionada;
▪ Acusação particular: trata-se dos casos em que desta depende o prosseguimento do
processo, a acusação deduzida pelo queixoso, findo o inquérito e disso notificado
aquele, independentemente do MP e da posição que este venha a tomar sobre a
matéria.
Crime público Crime semipúblico Crime particular
Abre-se processo criminal sem Abre-se processo criminal com Abre-se processo criminal
queixa nem acusação a verificação de uma queixa no com a verificação de uma
particular (p.e homicídio). prazo de 6 meses acusação particular.
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será mais favorável - o agente não poderá ser punido na medida em que o processo
terá de ser arquivado por desistência/ausência da queixa;
• Se entendermos que o direito de queixa será exercido (ou que não seria exercida a
desistência segundo a linha de pensamento de TC) a lei que despubliciza seria menos
favorável não se aplicando retroativamente.
➢ Determinação da lei penal mais favorável
Verificando que há uma sucessão de leis penais, há que determinar qual delas é mais favorável
ao agente. Levantam-se assim dois problemas:
▪ Ponderação abstrata ou concreta?
▪ Ponderação unitária ou diferenciada?
Ponderação abstrata ou concreta
O prof. Taipa de Carvalho considera que deveremos recorrer a uma ponderação concreta -
pressupõe ao tribunal que realize todo o processo de determinação da pena concreta (art.71º
CP), segundo cada uma das leis, a não ser que seja evidente (numa ponderação abstrata) que
uma das leis é claramente favorável - p.e se a LA estabelecia uma pena de 8 a 16 anos e a LN
altera a pena para 5 a 12 anos – a LN claramente que é mais favorável.
Ponderação unitária ou diferenciada?
▪ Unitária: a lei deve ser aplicada na totalidade das suas disposições sobre a pena
principal, sobre a pena acessória e sobre os pressupostos processuais;
▪ Diferenciada: deve proceder-se ao confronto de cada uma das disposições das leis em
causa, devendo aplicar-se as disposições contidas nas duas leis, que sejam mais
favoráveis.
A maioria da doutrina considera que devemos fazer uma ponderação unitária, no entanto, o
prof. Taipa de Carvalho considera que deveremos realizar uma ponderação diferenciada.
▪ Pena principal: determinada pelo legislador principalmente em função da gravidade do
crime;
▪ Pena acessória: relacionada com a personalidade e atividade do agente;
▪ Pressupostos processuais: fundamentam-se nos eventuais interesses da vítima.
Com isto, refere ainda que, em nome do princípio da mínima restrição possível dos direitos e
liberdades fundamentais e da autonomia teleológico-material das disposições normativas sobre
a pena principal, as penas acessórias e os pressupostos processuais, mesmo quando incluídas
no mesmo texto legal, devem ser aplicadas as disposições mais favoráveis ao arguido, mesmo
que constem de leis diferentes.
➢ O caso julgado e aplicação retroativa da lei penal mais favorável
Art.371º A Código Processo penal distingue duas situações:
▪ Permite a reabertura do processo para que lhe seja aplicado o novo regime - quando o
arguido (p.e.) é condenado a 3 anos (moldura penal de 0 a 5 anos) e entra em vigor
uma nova lei cuja moldura penal é de 0 a 2 – faz-se o mesmo raciocínio no que toca à
moldura penal concreta para determinar quanto mais tempo terá de ficar preso;
▪ Quando o arguido já cumpriu a pena prevista da nova lei, é libertado.
➢ Lei penal inconstitucional e o problema da sucessão de leis no tempo
Outra questão bastante relevante sobre a aplicação da lei penal no tempo é a sucessão de leis
em que a lei mais favorável venha a ser declarada inconstitucional. O problema é o seguinte:
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podemos aplicar uma lei inconstitucional pode ser mais favorável de acordo com o art.29º/4
CRP?
Art.282º/1 CRP – a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória
geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e
determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.
▪ Jorge Miranda: considera que não podemos interpretar rigidamente o art.282º em
conjugação com outros critérios constitucionais tais como o do art.29º/4 ou o do
princípio do Estado de Direito. Distingue duas situações:
✓ A lei penal inconstitucional é descriminalizadora: neste caso não
poderemos aplicar a lei inconstitucional, mas também não podemos
aplicar a lei antiga, dado que a declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral implicaria a repristinação da lei antiga, norma
essa que seria incriminadora;
✓ A lei posterior à declarada inconstitucional não é descriminalizadora,
mas mais favorável ao agente: neste caso não se aplicaria a lei
inconstitucional, repristinar-se-ia a lei antiga no limite da estatuição da
lei inconstitucional.
Defende assim que nunca se aplica uma norma inconstitucional, ela só é tida em conta
negativamente.
A prof. Fernanda Palma critica esta posição apresentando duas críticas essenciais:
1. O JM admite desde logo que a repristinação da lei incriminadora menos favorável gere
retroatividade no caso de inconstitucionalidade da lei descriminalizadora e não mantém
o mesmo juízo quando a lei repristinada é menos favorável;
2. Não interpreta de acordo com o sentido constitucional o conceito de repristinar, pois
resulta do art.282º que, sendo inválida a revogação da lei menos favorável pela lei
inconstitucional, a lei menos favorável sempre se manteria em vigor.
▪ Rui Pereira: não concorda com esta posição do prof. Jorge Miranda dado que viola de
forma direta a Constituição e refere que o legislador pensou nas leis criminais
consagrando o 282º/3 fazendo referência ao erro sobre a ilicitude, ou seja,
contrariamente àquilo que temos aprendido ao longo do curso, no que toca ao direito
criminal, o desconhecimento da lei por produzir efeitos favoráveis ao agente. Assim, o
erro sobre a ilicitude pode originar dois efeitos conforme o caso concreto:
✓ Atenuação da pena do agente;
✓ Desresponsabilização do agente.
Assim, refere que, tendo o legislador pensado sobre as normas criminais, e tendo a norma sido
declarada inconstitucional com força obrigatória geral, a lei não poderá produzir efeitos alguns.
A prof. Fernanda Palma encontra-se mais inclinada a apoiar esta perspetiva do prof. Rui
Pereira.
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A partir do final da II Guerra Mundial, mais concretamente a partir dos anos 60/70 do Séc. XX,
os povos e os seus respetivos Estados começaram a ter consciência de que era indispensável
uma cooperação entre eles nos mais variados domínios, desde o económico ao da luta contra
certas formas de criminalidade grave, complexa e, sobretudo, transnacional. A conformação do
sistema estadual de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos princípios e num
certo modelo da sua combinação. Note-se, todavia, que estes princípios não assumem todos
igual hierarquia, existindo antes um princípio-base e princípios acessórios e complementares.
Anteriormente discutia-se sobre qual o princípio que, nesta matéria de aplicação da lei penal no
espaço, devia ser considerado como princípio geral: o da nacionalidade (ativa) ou o da
territorialidade.
Ora, apesar de poder haver algumas razões em favor da elevação do princípio da nacionalidade
a princípio geral, a generalidade dos Estados optou pelo princípio da territorialidade como
princípio fundamental. Porquê?
“Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável aos
factos praticados:
Art.4º CP
A) Em território português, seja qual foi a nacionalidade do agente; ou
A aplicação da lei penal portuguesa por força da territorialidade depende do que se entenda
por território português e do que se considere praticar um facto em território português.
Território português é o espaço definido pela Constituição, mais concretamente no seu art.5º/1
e 2 da CRP (“território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos
Açores e da Madeira) incluindo o espaço terrestre, marítimo e aéreo. São ainda território
português os navios e as aeronaves portuguesas.
Tendo em conta que o crime é uma realidade complexa onde se destacam os elementos
estruturais conduta e resultado, há que determinar se ambos ou só um deles devem ser
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considerados decisivos para a fixação do locus delicti, isto é, do Estado onde o crime deve ser
considerado praticado, para este efeito do princípio da territorialidade.
É este o critério que o art.7º/1 CP consagra, ao estabelecer que o facto considera-se praticado:
Atenção!!
A lei portuguesa não poderá ser aplicada apesar de se ter produzido um resultado típico em
território português, quando, por força do critério de aplicação no tempo, o facto não seja
punível por não estar previsto em lei anterior à realização da ação em território
estrangeiro.
Assim, a aplicabilidade da lei penal portuguesa nos termos do art.4º e 7º do CP não dispensa a
observância de todos os princípios a que a mesma se subordina (aplicação no tempo, proibição
da analogia, etc.).
É importante também apontar que o art.7º é preenchido com a tentativa inacabada, mas não
com a prática de atos preparatórios não puníveis (art.21º e 22º CP).
O art.7º/2 CP estabelece que “no caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado
no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter
produzido” – são também considerados cometidos em Portugal os crimes tentados cuja ação,
apesar de praticada no estrangeiro, visasse produzir o resultado em Portugal.
2
Evento espacio-temporalmente contraponível ou imputável ao ato praticado.
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Questão que ainda subsiste é a de saber se a mera ocorrência do dano (lesão do bem jurídico)
sem que o resultado típico se verifique em Portugal permite considerar praticado o facto em
território português. P.e. alguém profere no estrangeiro difamação perante terceiros contra
pessoas que vivem em Portugal. Podemos afirmar que o facto foi praticado em Portugal,
considerando que apenas a lesão da honra se conexiona com uma pessoa que vive em território
português e o resultado típico verificou-se no estrangeiro?
O art.5º CP consagra vários princípios que tornam a lei penal portuguesa aplicável a crimes
cometidos no estrangeiro. O conjunto destes princípios pode englobar-se na designação
comum de “princípios complementares ou subsidiários”.
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▪ Interesses do Estado na confiança da circulação fiduciária – arts.262º - 271º - p.e.
crimes de contrafação de moeda;
▪ Interesses da independência e integridade nacionais – arts.308º a 321º - crimes de
traição à pátria;
▪ Interesses da segurança das comunicações – art.221º - crime de burla informática e nas
comunicações.
Ora, tendo em conta a relevância nacional e estatal dos bens jurídicos em causa, compreende-
se que a aplicação deste princípio não dependa da presença do agente em Portugal, tal como é
razoável que, nestes casos, seja sempre aplicada a lei penal portuguesa mesmo que:
Base legal: art.6º/3 CP – “o regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos nas
alíneas a) e b)”.
O prof. Taipa de Carvalho refere que, apesar de se aplicar em regra a lei penal portuguesa, há
que distinguir duas situações:
Defende, desta forma, que temos de fazer uma interpretação teleológica restritiva do art.5º/a)
e do art.6º/3 CP – faz sentido dado que não teria qualquer sentido aplicar a lei penal
portuguesa a quem, no estrangeiro, falsificou moeda estrangeira, se no país onde for praticado
tal crime, a respetiva lei penal estabelecer uma pena mais leve que a prevista na lei portuguesa.
Este princípio assenta no critério da nacionalidade portuguesa, quer do agente quer da vítima
(ambos terão de ser portugueses para que um dos pressupostos desta alínea se verifique).
3
Dupla incriminação: um facto praticado no estrangeiro só pode ser julgado e punido em Portugal se tal
facto também for considerado crime pela lei do país onde foi praticado.
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Atualmente, o disposto no art.6º/3 CP abrange duas situações:
▪ Situações em que o facto não seja considerado crime no país em que foi praticado;
▪ Situações em que a lei do país onde o facto foi praticado seja mais favorável.
O disposto no artigo não exige uma “inexistência de dupla incriminação”, contudo, tem como
ratio evitar a “fraude” à lei portuguesa, ou seja, evitar que um português se desloque ao
estrangeiro para aí praticar, contra outro português, um facto que, sendo crime segundo a lei
portuguesa não o é segundo a lei estrangeira ou que, sendo aí também considerado crime, é
punido menos severamente.
A lei não expressa a necessidade de uma “fraude” à lei portuguesa. Trata-se, portanto, de um
pressuposto implícito. O que o legislador pretende evitar é a impunidade ou menor punição do
português que, para fugir à aplicação da lei penal nacional, de desloca propositadamente ao
estrangeiro para aí praticar o facto.
Daqui resulta que, tal como indica o prof. Taipa de Carvalho, não cai no âmbito deste princípio
os casos em que o agente, p.e. reside habitualmente em Portugal, decide passar umas férias no
estrangeiro e pratica um facto que é punível na lei portuguesa, mas não o é pela lei do Estado.
Este princípio também pode ser denominado como o da proteção dos bens jurídicos
considerados como valores comuns a toda a humanidade. Relativamente a este princípio, a
nacionalidade do infrator é irrelevante.
Ora, a alínea c) apresenta uma enumeração taxativa dos crimes que o legislador português
considerou porem em causa os valores fundamentais da comunidade internacional.
Nota: o objeto principal deste princípio são os chamados “crimes contra a paz e humanidade”. A
razão de a alínea c) não se referir a estes crimes está no facto de Portugal ter aderido ao
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Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional cuja competência é precisamente o
julgamento deste tipo de crimes.
A Revisão Penal de 2007 acrescentou à lista de princípios complementares uma nova disposição
que refere que quando constituírem os crimes previstos nos arts.144º,163º e 164º, sendo a
vítima menor, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou
entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado português, a lei penal
portuguesa é aplicável.
O critério que este princípio segue é o da nacionalidade portuguesa do infrator. Este princípio
justifica-se pelo vínculo dos cidadãos portugueses à soberania punitiva do seu próprio Estado e
pelo dever de o Estado conceder proteção aos bens jurídicos de que os cidadãos portugueses
sejam titulares, ainda que no estrangeiro. Contudo, mais concretamente, este princípio dá
expressão ao princípio da não extradição de nacionais, consagrado no art.33º/1 CRP. A
contrapartida desta proibição corresponde ao dever de o Estado português assegurar a
perseguição penal ou o julgamento dos factos criminosos praticados pelos cidadãos
portugueses no estrangeiro. São três os pressupostos para a aplicação deste princípio:
Estes requisitos limitam o âmbito de influência do poder punitivo do Estado português com um
duplo fundamento. Em primeiro lugar, a aplicação da lei portuguesa pressupõe um mínimo de
respeito pelas expectativas dos agentes envolvidos e pelo sentido de desvalor das suas
condutas no estrangeiro bem como pela igualdade entre aqueles agentes e os estrangeiros que
a lei penal portuguesa não possa abranger – os agentes terão de ser puníveis pela legislação do
lugar em que os factos foram praticados.
Em segundo, os agentes terão de ser encontrados em território português e não poderão ser
extraditados ou entregues a outro título incluindo os casos em que essa situação dependa de
uma decisão do Estado português. Segundo esta última condição, deve estar-se perante uma
situação em que o Estado português possa punir aqueles agentes por razões jurídico-
constitucionais.
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Este princípio foi introduzido no Código Penal de 1982 e tem como finalidade a proteção de
interesses dos portugueses relativamente a crimes cometidos por estrangeiros, no estrangeiro,
contra portugueses.
Para além destes dois pressupostos, a aplicabilidade da lei penal portuguesa depende dos
mesmos pressupostos do princípio da nacionalidade ativa:
Questão: o que é que devemos entender como “punível pela lei do Estado onde foi
praticado”?
A prof. Mª Fernanda Palma refere que devemos responder a esta questão atendendo à
ratio legis e com o próprio teor do princípio da nacionalidade. Assim, a melhor
interpretação impõe que, para que se possa aplicar a lei penal portuguesa, o facto deve
ser punível em concreto.
Com este princípio, o legislador português procura evitar a impunidade em situações não
abrangidas por nenhum dos anteriores princípios complementares, impunidade que seria
profundamente criticável.
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O prof. Taipa de Carvalho defende que não parece ser razoável a exigência de um pedido de
extradição ou entrega nos casos de crimes tão graves como o homicídio, p.e.
Este artigo veio estender o princípio da nacionalidade, ativa e passiva, às pessoas coletivas com
sede em território português. Note-se, no entanto, que esta norma deve ser articulada com o
art.11º CP que estabelece os casos e os pressupostos da responsabilidade penal das pessoas
coletivas.
➢ Restrições à aplicação da lei penal portuguesa por força da aplicação mais favorável do
direito estrangeiro (art.6º/2 CP)
O art.6º/2 CP consagra uma restrição à aplicação da lei penal portuguesa menos favorável, nos
casos em que ela seja aplicável por força dos princípios da universalidade e da nacionalidade
sempre que o agente seja encontrado em território nacional e “não tiver sido julgado no país da
prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial de condenação”, não
sendo esta restrição aplicável quando estejam em causa os princípios da territorialidade e da
defesa dos interesses nacionais (art.6º/3 CP).
Esta restrição consiste na exigência de ser aplicada, nestes casos, a lei do país em que o facto
tiver sido praticado sempre que aquela for concretamente4 mais favorável ao agente. A razão
de ser desta restrição relaciona-se com a conjugação da subsidiariedade do exercício do poder
punitivo do Estado Português nesses casos com o princípio da culpa, da igualdade, da
necessidade da pena e da segurança jurídica.
Nestas situações, o Estado Português pune porque outro Estado não pôde punir, no entanto,
não deixa de conceber a punição de acordo com os seus princípios constitucionais. A ratio do
princípio da aplicação da lei estrangeira mais favorável não abrange as alíneas a) e b) do
art.5º/1, na medida em que aí o poder punitivo do Estado português não é de modo algum
subsidiário.
O art.29º/5 CRP dá dignidade constitucional ao princípio non bis in idem. Comporta duas
dimensões:
▪ Direito subjetivo fundamental: garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do
que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se
defender contra atos estaduais violadores deste direito;
▪ Princípio constitucional objetivo: obriga fundamentalmente o legislador à conformação
do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a
existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
4
Punição em concreto – punibilidade efetiva do facto, considerando todas as circunstâncias da sua
ocorrência e até mesmo os aspetos relacionados com a culpa do autor.
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O art.6º/2 CP prevê, nos casos em que haja efetivamente lugar à aplicação da lei penal
portuguesa, que a lei penal estrangeira mais favorável em concreto se imponha, sendo a pena
aplicável convertida numa pena correspondente no sistema penal português ou, se a
correspondência não for possível, na pena que estiver prevista no facto. A referida conversão
decorre de três princípios:
Assim, tanto a repetição do julgamento pelo mesmo crime, de que se foi absolvido ou
condenado a certa pena, como a repetição da punição do agente já condenado e punido
constituem claras negações do valor geral do processo penal e do direito do arguido a que o
Estado se vincule ao desfecho do processo penal que desencadeou.
A cooperação judiciária internacional coloca vários problemas relevantes quanto aos limites de
aplicação da lei penal no espaço.
Há, deste modo, dois tipos de situações que interferem com a aplicação da lei penal portuguesa
a factos praticados por estrangeiros ou fora do território nacional por estrangeiros e por
portugueses no estrangeiro:
5
Princípio da especialidade (art.16º Lei 144/99) – pretende limitar os factos pelos quais o extraditando
será julgado, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram a sua entrega.
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O primeiro princípio é o da não extradição de nacionais. A regra geral é da proibição da
extradição de nacionais, no entanto, tal como nos indica o art.33º/3 CRP, esta é possível desde
que seja em condições de reciprocidade6 estabelecidas em convenções internacionais, nos
casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica
do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo. Sublinhe-se que
não é suficiente a mera existência de reciprocidade (que pode verificar-se mesmo na falta de
tratado ou acordo internacional), sendo necessário que essa específica reciprocidade esteja
estabelecida em convenção internacionais, pelo que, sempre que falte tal convenção,
continuam a valor as proibições de extradição de cidadãos portugueses do território nacional e
de extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou
medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração
indefinida.
Note-se que a configuração concreta de um processo justo e equitativo não tem de ser
moldada à imagem e semelhança da Constituição portuguesa, mas têm de estar asseguradas as
garantias essenciais de um processo penal de Estado de Direito como resultam das fontes
internacionais tais como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (essencialmente os
arts.5º/6º e 7º).
O segundo princípio é o da não extradição ou entrega a qualquer título por motivos políticos
(art.33º/6 CRP) e art.7º/1, al.a) da LCJMP, abrangendo-se não só crimes de natureza política
como também infrações conexas segundo “as conceções do direito português”.
Nota:
O art.33º/6 da CRP faz referência à “não extradição a qualquer título por motivos políticos”
enquanto que a lei refere “crimes de natureza política”. Ora, verificamos que não existe
uma total correspondência entre estes artigos. Assim, tal como indica a prof. Fernanda
Palma, a melhor forma de interpretarmos o art.7º da lei 144/99 é no sentido de a natureza
política ser considerada como um indício objetivo impeditivo de uma excessiva subjetivação
da qualificação da motivação política, mas não se restringe o critério a um certo tipo de
crimes.
O terceiro princípio é o da não extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do
Estado requisitante pena de morte ou outra que resulte lesão irreversível da integridade física
(art.33º/6 CRP). Este princípio não admite qualquer flexibilidade na sua interpretação – não
basta que haja uma garantia política concreta de que tais penas não se aplicarão. Ora, apesar
do art.6º/2, al.a) referir que a cooperação é admissível quando o “Estado que formula o pedido,
por ato irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a
execução da pena, tiver previamente comutado a pena de morte ou outra de que possa resultar
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Princípio da reciprocidade (art.4º Lei 144/99) – estabelece a regra de que uma extradição não é lícita
senão quando o Estado requerido obtém do Estado requerente a garantia de que este lhe entregará um
fugitivo perseguido pelos mesmos factos e com as mesmas qualidades pessoais que o perseguido cuja
extradição se solicita. Como refere Bueno Arus, o princípio da reciprocidade funciona de forma diferente
consoante haja ou não convenção ou tratado de extradição entre os Estados requerente e requerido: se
existe tratado, a reciprocidade é-lhe inerente, na medida em que por ele ambos os Estados adquirem a
obrigação recíproca de entregarem os fugitivos que reúnam cerdas condições. Se a extradição é apenas
regulada pela lei interna, será nesta que se preverá a aceitação de pedidos de extradição de outros
Estados em função de um compromisso de reciprocidade a prestar pelos Estados requerentes para cada
pedido concreto, podendo essa reciprocidade manifestar-se por um ato unilateral do Estado requerente
ou por um ato bilateral que tenha por sujeitos ambos os Estados.
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lesão irreversível da pessoa”, segundo a interpretação seguida pelo Tribunal Constitucional, a
interpretação consistente com a CRP é a de que esta garantia corresponde a uma alteração da
ordem jurídica do Estado requerente em concreto, vinculativa em termos jurídicos dos tribunais
e do próprio poder político, uma vinculação jurídica no sentido essencial do Estado de Direito e
da correspondente separação de poderes.
Um outro princípio é o da não extradição por crimes que corresponda “segundo o direito do
Estado requisitante pena ou medida de segurança restritiva da liberdade com carácter perpétuo
ou de duração indefinida” – art.33º/4 CRP e art.6º/1, alínea f).
Desde 1997, tornou-se claro que em matéria de infrações a que corresponda a pena de prisão
perpétua no Direito do Estado requisitante, a Constituição flexibilizou a exigência de garantias
do Estado que requeira a extradição, não exigindo tal como na pena de morte, uma autêntica
alteração da ordem jurídica em concreto, mas apenas uma vinculação convencional no plano do
Direito Internacional do Estado requisitante. https://dre.pt/home/-
/dre/1696349/details/maximized (ACÓRDAO GARANTIAS)
Não se trata, portanto, de uma mera garantia diplomática ad hoc, mas de uma vinculação com
juridicidade, embora apenas no plano internacional. Sobretudo após 2004, tornou-se claro que
as garantias estão associadas a uma convenção internacional e não serão apenas um plus
relativamente a uma convenção em matéria de extradição. Assim, o sentido do texto
corresponde a uma exigência de um acordo entre o Estado português e
o outro Estado em matéria de extradição, podendo ser multilateral, que contemple como
condição as garantias constitucionais e não aplicação da prisão perpétua.
A sua aplicação não está isenta de dificuldades e, por exemplo, o Tribunal Constitucional alemão
já a julgou inconstitucional por mais de uma vez por violação dos princípios de proteção dos
nacionais e da legalidade.
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Questão que se coloca é: o que se deve entender por crimes no exercício das suas funções?
➢ Imunidades diplomáticas
Constituem um tema diverso das imunidades políticas, com razões históricas na defesa da
soberania dos Estados e na proteção da representação dos Estados fora do seu território, na
proteção das relações diplomáticas necessária à boa articulação entre Estados soberanos nas
suas relações internacionais. De um modo mais absoluto, está em causa a proteção da
soberania do Estado e a perspetiva de que um Estado não poderá exercer jurisdição sobre outro
nem pôr em causa o exercício das funções próprias de um outro Estado.
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Nota: esta imunidade não é absoluta – o Estado acreditante pode renunciar à imunidade de
jurisdição dos seus representantes e outros beneficiários da imunidade. Por outro lado, os
familiares e membros, do pessoal técnico administrativo não gozarão da inviolabilidade e da
imunidade penal se forem portugueses ou tiverem residência permanente em Portugal
(art.37º/2). Também se os próprios agentes diplomáticos tiverem nacionalidade portuguesa ou
residência permanente no território português o art.38º apenas prevê a imunidade relativa
estritamente aos atos oficiais praticados no exercício da sua missão.
Assim, as imunidades diplomáticas são em geral ratione personae7, mas quando esteja em
causa este último tipo de casos tornam-se ratione materiae.
Nada impede, porém, o Estado acreditante de julgar aqueles agentes, no caso de não pretender
renunciar à imunidade. A única solução para o Estado acreditador perante a responsabilidade
criminal de uma pessoa abrangida pela imunidade diplomática será proceder à expulsão dos
referidos agentes, declarando-os persona non grata.
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Ratione personae: a imunidade deve cessar quando as funções em causa deixem de ser
desempenhadas.
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