Diabetes Insípido Pós-Traumático
Diabetes Insípido Pós-Traumático
Diabetes Insípido Pós-Traumático
Carlos Umberto Pereira*, Marta Regina Silva Alcântara**, Egmond Alves Silva Santos***,
Pâmera Cristal Fontes Santos***, Meyline Andrade Lima***
RESUMO
Diabetes insípido é uma síndrome caracterizada por poliúria e polidipsia. Existem várias causas para o
seu desenvolvimento. O traumatismo craniencefálico corresponde à cerca de 3% das causas de diabetes
insípido central. Os autores relatam o caso de um paciente com 27 anos de idade, politraumatizado,
que desenvolveu diabetes insípido dois dias após o trauma. Discutem a fisiopatologia, diagnóstico,
tratamento e fazem uma revisão da literatura médica.
PALAVRAS-CHAVE
Diabetes insípido neurogênico. Trauma craniocerebral, complicações.
ABSTRACT
Post-traumatic diabetes insipidus. Case report and review of the literature
The diabetes insipidus is a syndrome characterized by poliuria and polidipsia. Many causes may develop
the diabetes insipidus. The head injury corresponds to 3% of causes of central diabetes insipidus. The
authors report a case of 27-years-old man that developed diabetes insipidus two days after head injury.
Discuss the physiopathology, diagnosis, treatment and review of the medical literature.
KEY-WORDS
Diabetes insipidus. Craniocerebral trauma, complications.
Os autores relatam um caso de DI central secundário poliúria importante, com volume urinário de 11.150
a TCE grave e fazem uma revisão da literatura médica. ml. Solicitada avaliação da endocrinologia no dia 24
de março (Tabela 1).
Foi feito diagnóstico de diabetes insípido, do tipo
central, pós-TCE. Em 27 de março, prescrito DDAVP
nasal 0,05 ml de 12/12 horas e, em 28 de março, DDAVP
Relato de caso a critério médico, a depender do volume urinário, balanço
hídrico, densidade urinária e sódio sérico. Indicado o uso
AGS, 27 anos, sexo masculino, natural e procedente quando diurese maior que 350 ml/hora (Tabela 2).
de Paulo Afonso, BA, vítima de acidente de trânsito. Em 25 de março, suspensa gentamicina, iniciada
Deu entrada em estado grave no Hospital Governador ceftriaxona (mantido clindamicina). O paciente perma-
João Alves Filho (Aracaju, SE) em 14 de março de necia grave, ECGl = 4, sedado com uso de fentanil e
2003, após seis horas do acidente. Ao exame físico cons- midazolan. O paciente começou a melhorar a partir do
tatou-se: escore na Escala de Coma de Glasgow (ECGl) dia 30, evoluindo para escore ECGl entre 7 e 9. Em 8
= 4 (abertura ocular = 1; resposta verbal = 1; resposta de abril, foi suspensa a ventilação mecânica, permanecia
motora = 2); pupilas mióticas (esquerda > direita) e traqueostomizado. Em 9 de abril, foi drenado hematoma
pouco reagentes à luz; insuficiência respiratória, neces- subdural. Em 11 de março, recebeu alta da UTI. No dia
sitando de intubação orotraqueal e ventilação mecânica; 15, evoluiu com fístula liquórica, febril, com piora do
hematoma na órbita esquerda; hiperemia ocular; fratura nível de consciência, apresentando hipertonia de decorti-
em ossos da face (Le Fort tipo III); ausculta respiratória cação quando estimulado e tendência a desvio conjugado
com roncos difusos; PA = 130 x 70 mmHg e ausculta à direita. TC de crânio nesta data mostrou coleção laminar
cardíaca normal. Tomografia computadorizada: imagem subdural fronto-parietal bilateral e inter-hemisférico.
compatível com lesão axonal difusa. Deu entrada na Tratamento clínico com cefepime e amicacina. Em 21
UTI no dia 15 de março. de abril, readmitido na UTI em sepse, ECGl = 6, febre
Evoluiu com infecção respiratória e febre, sendo alta, leucocitose (34.500 leucócitos), condensação basal
iniciado antibioticoterapia sistêmica (gentamicina e direita ao raio-X de tórax, hipotensão arterial (PA = 80 x
clindamicina). Apresentou aumento da diurese a partir 50 mmHg), sendo iniciado dopamina. Evoluiu com piora
do dia 16 de março de 2003, com volume superior a progressiva do quadro clínico e neurológico, apresentan-
três litros em 24 horas; houve diminuição progressiva do escaras múltiplas com necrose, febre persistente (40º
do volume urinário nos quatros dias subseqüentes, C), hepatite transinfecciosa. Trocado esquema antibiótico
com mínimo no dia 21 de março (1.700 ml). A partir para cefepime, vancomicina e metronidazol, sem êxito.
do dia 22 de março (oitavo dia pós-TCE), apresentou Em 1o de maio, ECGl = 3. No dia 5, óbito.
Tabela 1
Evolução dos níveis de eletrólitos, função renal e balanço hídrico.
Volume urinário (ml) Na+ (mEq/l) K+ (mEq/l) Uréia (mg/dl) Creatinina (mg/dl) Balanço hídrico
22/03/03 11.150 129 4,2 40 0,84 - 5.370
23/03/03 10.700 164 4,1 20 0,94 - 3.110
24/03/03 4.850 - - - - 3.683
25/03/03 5.350 156 4,3 23 0,83 - 1.425
26/03/03 5.350 - - - - 2.490
Discussão
Tabela 2
Uso de DDAVP e volume urinário.
Volume urinário (ml)Uso de DDAVP
Provavelmente, a principal causa de DI é a deficiên-
27/03/03 3.254 0,05 ml 12/12 h cia primária de secreção de AVP, conhecida como DI
28/03/03 1.800 - central5,14,17. Nos humanos, é quase sempre causada pela
31/03/03 2.970 0,05 ml 8:20 h destruição irreversível de mais de 80% dos neurônios
02/04/03 3.550 0,05 ml 11 h produtores de AVP17. Em metade dos pacientes, essa des-
03/04/03 4.700 0,05 ml 12 h truição neuronal pode ter causas congênitas, adquiridas
ou genéticas (Quadro 1). Benvenga e col.1, fazendo uma deve ser maior que 50 ml/kg/dia. A densidade urinária
revisão da literatura, identificaram o TCE como causa de deve ser menor que 300 mosmol/kg. O teste de priva-
hipopituitarismo em 118 casos, dos quais 30,6% apre- ção hídrica é indicado no caso de diferenciação entre
sentaram DI. Entretanto, Maghnie e col.10, estudando 79 os diversos tipos de DI. Os exames de neuroimagem
pacientes (crianças e adultos jovens), em quatro centros de também podem ser usados para o diagnóstico de DI
referência, durante o período entre 1970 e 1996, identifi- central13. O mais usado é a ressonância magnética (RM).
caram o TCE como causa de DI em apenas 3% dos casos. As imagens em T1 demonstram sinal hiperintenso na
Os dados da literatura não são muito precisos quanto à região da neuro-hipófise, em pessoas sadias. Em cerca
participação do TCE na etiopatogenia do DI. de 80% a 90% dos pacientes com DI central há perda
A diminuição da produção de AVP em quantidades desse sinal hiperintenso em T15,14,17,19. A presença de
inferiores a 80% dos níveis basais acarreta o aumento sinal hiperintenso em T1, praticamente descarta a pos-
no débito urinário com diminuição (1% a 2%) da água sibilidade de DI central. A tomografia computadorizada
corporal total e elevação da osmolalidade e do sódio também pode ser útil no diagnóstico de DI central
plasmáticos, provocando sede e estimulando a ingestão quando mostra isquemia na região hipotalâmica.
hídrica10,17,20. Devido a isso, a não ser que a ingesta de O tratamento consiste em reposição volêmica es-
água seja inadequada, não surgirão sinais e sintomas pontânea, por via oral, se paciente for capaz 2,4,11,14,16,20.
de desidratação10,17. Em pacientes em UTI, deve-se utilizar reposição pa-
O DI pode apresentar-se em três padrões diferentes renteral com água e glicose2,4,11,14,16,20. Os fármacos mais
após o TCE21. No primeiro padrão, a poliúria tem início usados no tratamento do DI central são a DDAVP e a
em até 24 horas e resolução em até cinco dias (50% clorpropamida2,14,17,20. O DDAVP é um análogo da AVP
dos casos). No segundo padrão, o é DI permanente, que age seletivamente nos receptores V2 aumentando
verificando-se em lesões do hipotálamo ou da haste a concentração urinária e diminuindo o fluxo uriná-
hipofisária (30% dos casos). O terceiro padrão, menos rio2,5,11,14,17. Pode ser administrada por injeção intraveno-
comum, tem evolução trifásica: (1) início agudo de sa ou subcutânea, instilação nasal ou comprimido oral.
poliúria; (2) diminuição da poliúria; (3) retorno intenso O início de ação é rápido, cerca de 15 minutos para a
da poliúria. forma injetável e 60 minutos para o comprimido oral. É,
Quando se suspeita de um caso de DI, deve-se ve- atualmente, a droga mais efetiva e mais usada para o tra-
rificar o volume urinário de 24 horas, a osmolalidade tamento do DI. O mecanismo de ação da clorpropamida
plasmática e a creatinina sérica17. O débito urinário ainda é incerto, mas parece envolver a potencialização
do efeito da AVP ou a ativação do receptor V2. Efeitos 10. MAGHNIE M, COSI G, GENOVESE E et al.: Central diabe-
tes insipidus in children and young adults. New Eng J Med
colaterais como hipoglicemia e reações semelhantes ao
343:998-1007, 2000.
dissulfiram podem ocorrer. 11. MIZOBATA Y, YOKOTA J, MATSUOKA T, HORIKAWA H,
NAKAI K, FUKUDA A: Volume supplementation with iso-
sodium solution prevents hypernatremia after head injury.
J Trauma 50:871-7, 2001.
12. MOOTHA SL, BARKOVICH AJ, GRUMBACH MM, ED-