Escola e Democracia Saviani

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"Quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrática foi a escola,

e, quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construção de uma
ordem democrática".

Esta é uma das idéias que Dermeval Saviani, professor de Filosofia da Educação da PUC-SP,
desenvolve em seu trabalho sobre Abordagem Política do Funcionamento Interno da Escola de 1º
grau apresentado na I Conferência Brasileira de Educação realizada em abril de 1980 em São Paulo.
Além disso Dermeval faz uma série de críticas à Escola Nova.

Abordagem Política do Funcionamento que se articula com essa, é uma tese que eu cha­

ESCOLA Interno da Escola de 1º grau. Parece-me à pri­ maria pedagógico-metodológica, e a enuncio as­
meira vista, que poderíamos fazê-lo de duas sim: "do caráter científico do método tradicio­
maneiras: abordarmos ou a questão da orga­ nal e do caráter pseudo-científico dos métodos
nização da escola de 1º grau, e aí então colo­ novos". Vejam, então, que eu estou me colo­

E caríamos ênfase nas atividades-meio, focali­


zando o papel do diretor, suas relações com os
técnicos intermediários, orientadores, superviso­
cando diretamente no coração do político. Es­
tou enunciando teses; isso significa posições, e
posições polêmicas. Dessas duas teses eu retiro

DEMOCRACIA res, assim por diante, chegando em seguida ao uma terceira, que, portanto, opera como uma
professor e aos alunos. Neste caso, então, o en­ conclusão das duas primeiras. As duas primei­
foque estaria nas atividades-meios, ou seja, na ras funcionam como premissas para extrair uma
organização. A outra forma de abordar se­ terceira tese conclusiva. Essa é uma tese especi­
ria enfatizar as atividades-fins, e nesse senti­ ficamente política, de política educacional. Eu
do examinar mais propriamente como se de­ a enuncio da seguinte maneira: "de como, quan­
senvolve o ensino, que finalidades ele busca do mais se falou em democracia no interior da
OU atingir, que procedimentos ele adota para atin­ escola, menos democrática foi a escola; e de co­
mo, quando menos se falou em democracia,
A TEORIA DA gir suas finalidades, em que medida existe coe­
rência entre finalidades e procedimentos. Bem, mais a escola esteve articulada com a constru­
é melhor me preocupar com as atividades-fins ção de uma ordem democrática". Bem, essa
CURVATURA DA VARA e deixar à margem a questão da organização terceira tese eu derivo das duas primeiras. Em
seguida examinaremos as conseqüências disso
da escola de 19 grau. Enfatizarei justamen­
te a problemática do ensino que se desenvolve na educação brasileira, e por último farei refe­
no interior da escola de 1º grau, pensando que rência a um apêndice. Neste apêndice farei uma
Dermeval Saviani funções políticas esse ensino desempenha.
Já que a abordagem é política, vou logo me
pequena consideração sobre a "teoria da curva­
tura da vara". Eu não sei se a teoria da curva­
colocar no coração do político. Nesse senti­ tura da vara é conhecida. Ela foi enunciada por
do, farei uma exposição centrada em três Lênin ao ser criticado por assumir posições
teses. Enunciarei para vocês as três teses, que extremistas e radicais. Lênin responde o seguin­
vou apenas comentar rapidamente; em segui­ te: "quando a vara esta torta, ela fica curva de
da, extrairei delas algumas conseqüências um lado e se você quiser endireitá-la, não bas­
para a educação brasileira e complementa­ ta colocá-la na posição correta. É preciso cur­
rei com um apêndice. Para retirar o suspense vá-la para o lado oposto". Com esse teoria da
sobre a forma da minha exposição, eu já ante­ curvatura da vara, completarei o meu artigo.
cipo quais são as teses e também qual é o A impossibilidade de desenvolver to­
apêndice. Vejam bem, todas elas são teses po­ das as teses acima colocadas, faz com que eu
líticas; no entanto, a primeira, por ser mais apenas as enuncie para, em seguida, tirar algu­
geral, eu a considero uma tese filosófico-his- mas conseqüências e, a partir delas provocar um
tórica. Poderíamos enunciá-la da seguinte ma­ debate, e mais do que isso, deixá-las para serem
neira: "do caráter revolucionário da pedago­ exploradas mais profundamente em outros arti­
gia da essência e do caráter reacionário da gos. Entre parênteses, eu acrescentaria apenas
pedagogia da existência". Uma segunda tese, que essas teses derivam de uma reflexão relati- 23
vamente amadurecida, que venho desenvolven­ e a pedagogia que decorria dessa filosofia, por feudal e a gestação do modo de produção capi­
do há algum tempo. Alguma coisa já tenho até sua vez, não implicava problemas políticos mui­ talista. Nós vamos ter, justamente aí, que a bur­
exposto em alguns textos ou palestras. to sérios, na medida em que o homem, o ser guesia, classe em ascensão, vai se manifestar co­
Quanto à primeira tese, "do caráter revo­ humano, era identificado com o homem livre; mo uma classe revolucionária, e, enquanto clas­
lucionário da pedagogia da essência e do caráter o escravo não era ser humano, conseqüente­ se revolucionária, vai advogar a filosofia da es­
reacionário da pedagogia da existência", o que mente a essência humana só era realizada nos sência como um suporte para a defesa da igual­
eu quero dizer com isso é, basicamente, o se­ homens livres. Então, o problema do escravis­ dade dos homens como um todo e é justamente
guinte: nós estamos hoje, no âmbito da política mo, sobre o qual se assentava a produção da a partir daí que ela aciona as críticas à nobreza
educacional e no âmbito do interior da escola, sociedade grega, ficava descartado e nem era e ao clero. Em outros termos: a dominação da
na verdade nos digladiando com duas posições um problema do ponto de vista filosófico-pe- nobreza e do clero era uma dominação não-na-
antitéticas e que, via de regra, convencional­ dagógico. tural, não-essencial, mas, social e acidental, por­
mente são traduzidas em termos do novo e do Durante a Idade Média, essa concepção tanto, histórica. Vejam que toda postura revolu­
velho, da pedagogia nova e da pedagogia tradi­ essencialista recebe uma inovação, que diz res­ cionária é uma postura essencialmente histórica,
cional. Essa pedagogia tradicional é uma peda­ peito justamente à articulação da essência hu­ é uma postura que se coloca na direção do de­
gogia que se funda numa concepção filosófica mana com a criação divina; portanto, ao serem senvolvimento da história. Ora, naquele mo­
essencialista, ao passo que a pedagogia nova se criados os homens segundo uma essência pre­ mento, a burguesia se colocava justamente na
funda numa concepção filosófica que privilegia determinada, também já seus destinos eram direção do desenvolvimento da história e seus
a existência sobre a essência. O que isso signi­ definidos previamente; conseqüentemente, a di­ interesses coincidiam com os interesses do no­
fica do ponto de vista histórico-filosófico? ferenciação da sociedade entre senhores e ser­ vo, com os interesses da transformação; e é nes­
vos já estava marcada pela própria concepção se sentido que a filosofia da essência, que vai
O homem livre
que se fazia da essência humana. Então, a essên­ ter depois como conseqüência a pedagogia da
Se nós voltarmos à antigüidade grega, va­ cia humana justificava as diferenças. essência, vai fazer uma defesa intransigente da
mos verificar que, em verdade, a filosofia da Ora, coisa diversa vem a ocorrer na época igualdade essencial dos homens. Sobre essa base
24 essência não implicava maiores problemas lá, moderna, com a ruptura do modo de produção da igualdade dos homens, de todos os homens,
é que se funda então a liberdade, e é sobre, jus­ melhor, essencial dos homens, e se eles são li­ cia burguesa, é óbvio, mas o papel político da
tamente, a liberdade, que se vai postular a refor­ vres, então podem dispor de sua liberdade, e na escola estava aí muito claro. A escola era pro­
ma da sociedade. Lembrem-se, de passagem, de relação com os homens, mediante contrato, fa­ posta como condição para a consolidação da
Rousseau. O que defendia Rousseau? Que tudo zer ou não concessões. É sobre essa base da so­ ordem democrática.
é bom enquanto sai do autor das coisas. Tudo ciedade contratual que as relações de produção
degenera quando passa às mãos dos homens. vão se alterar: o trabalhador servo, vinculado A mudança de interesses
Em outros termos, a natureza é justa, é boa, e à terra, para o trabalhador não mais vinculado
no âmbito natural a igualdade está preservada. à terra, mas livre para vender a sua força de tra­ Ocorre que a história vai evoluindo, e a
As desigualdades (vejam o "discurso sobre a ori­ balho, e ele a vende mediante contrato. Então, participação política das massas entra em con­
gem da desigualdade entre os homens") são ge­ quem possui a propriedade é livre para aceitar tradição com os interesses da própria burguesia.
radas pela sociedade. Ora, esse raciocínio não é ou não a oferta de mão-de-obra, e vice-versa, Na medida em que a burguesia, de classe em
outra coisa senão colocar diante da nobreza e quem possui a força de trabalho é livre de ven­ ascensão, portanto de classe revolucionária, se
do clero a idéia de que as diferenças, os privilé­ dê-la ou não, de vendê-la a este ou aquele, de transforma em classe consolidada no poder, aí
gios de que eles usufruíam não eram naturais e vender, então, a quem quiser. Esse é o funda­ os interesses dela não caminham mais em dire­
muito menos divinos, mas eram sociais. E en­ mento jurídico da sociedade burguesa. Funda­ ção à transformação da sociedade; ao contrá­
quanto diferenças sociais, configuravam injusti­ mento, como veremos, formalista, de uma igual­ rio, os interesses dela coincidem com a perpe­
ça; enquanto injustiça, não poderiam continuar dade formal. No entanto, é sobre essa base de tuação da sociedade. É nesse sentido que ela
existindo. Logo, aquela sociedade fundada em se­ igualdade que vai se estruturar a pedagogia da já não está mais na linha do desenvolvimento
nhores e servos não poderia persistir. Ela teria essência e, assim que a burguesia se torna a clas­ histórico, mas está contra a história. A história
que ser substituída por uma sociedade igualitá­ se dominante, ela vai, em meados do século pas­ é contra os interesses da burguesia. Então, para
ria. É nesse sentido, então, que a burguesia vai sado, estruturar os sistemas nacionais de ensino a burguesia se defender desses interesses, ela
reformar a sociedade, substituindo uma socie­ e vai advogar a escolarização para todos. Escola­ não tem outra saída senão negar a história, pas­
dade com base num suposto direito natural por rizar todos os homens era condição de conver­ sando a reagir contra o movimento da his­
uma sociedade contratual. ter os servos em cidadãos, era condição de que tória. É nesse momento que a escola tradicio­
Vejam então como é que se tece todo o esses cidadãos participassem do processo polí­ nal, a pedagogia da essência já não vai servir e
raciocínio. Os homens são essencialmente livres; tico, e, participando do processo político, eles a burguesia vai propor a pedagogia da existên­
essa liberdade se funda na igualdade natural, ou consolidariam a ordem democrática, democra­ cia. Ora, vejam vocês: o que é a pedagogia da 25
existência, senão diferentemente da pedagogia da gogia da existência contra a pedagogia da essên­ dievais. Daí a razão do método novo proclamar-
essência, que é uma pedagogia que se fundava cia, pintando essa última como algo tipicamen­ se científico, proclamar-se um instrumento de
no igualitarismo, uma pedagogia da legitimação te medieval. Nesse sentido, ela deixa de assumir introdução da ciência na atividade educativa e,
das desigualdades? Com base neste tipo de pe­ a pedagogia da essência como uma construção em conseqüência, colocar a educação à altura
dagogia, considera-se que os homens não dela própria. Veremos agora, em relação ao mé­ do século, à altura da época. No entanto, esse
são essencialmente iguais; os homens são essen­ todo, como essa questão se coloca de modo ensino dito tradicional se estruturou através de
cialmente diferentes, e nós temos que respeitar também bastante claro. Eu vou especificar um um método pedagógico, que é o método expo-
as diferenças entre os homens. Então, há aque­ pouco mais a questão do método, porque diz sitivo, que todos conhecem, todos passaram por
les que têm mais capacidade e aqueles que têm respeito justamente ao modo como a gente ele, e muitos estão passando ainda, cuja matriz
menos capacidade; há aqueles que aprendem trabalha no interior da própria escola, no in­ teórica pode ser identificada nos cinco passos
mais devagar; há aqueles que se interessam por terior da sala de aula. E aqui nós poderíamos formais de Herbart. Esses passos, que são o pas­
isso e os que se interessam por aquilo. nos lembrar, já diretamente, do movimento so da preparação, o passo da apresentação, da
Eis, em síntese, o que eu quis dizer com a da Escola Nova, que pintou justamente o mé­ comparação e assimilação, da generalização e,
minha primeira tese, tese filosófica-histórica, todo tradicional como um método pré-cientí- por último, da aplicação, correspondem ao es­
"do caráter revolucionário da pedagogia da es­ fico, como um método dogmático e como um quema do método científico indutivo, tal como
sência, e do caráter reacionário da pedagogia método medieval. Basta nós nos lembrarmos, fora formulado por Bacon, método que pode­
da existência". Com efeito, a pedagogia da exis­ por exemplo, de Kilpatrick, Educação para uma mos esquematizar em três momentos funda­
tência vai ter esse caráter reacionário, isto é, civilização em mudança, onde ele vai justamen­ mentais: a observação, a generalização e a con­
vai contrapor-se ao movimento de libertação da te caracterizar a civilização que foi-se construin­ firmação. Trata-se, portanto, daquele mesmo
humanidade em seu conjunto, vai legitimar as do com base no surgimento da ciência moderna método formulado no interior do movimento
desigualdades, legitimar a dominação, legitimar a partir do Renascimento como sendo a civili­ filosófico do empirismo, que foi a base do de­
a sujeição, legitimar os privilégios. Nesse con­ zação em mudança. Nesse sentido, os métodos senvolvimento da ciência moderna. Eu acho
texto a pedagogia da essência não deixa de ter tradicionais são remetidos para a Idade Média, que esse ponto precisa ser explicitado um pou­
um papel revolucionário, pois, ao defender a e, portanto, para um caráter pré-científico, e co melhor.
igualdade essencial entre os homens continua mesmo anticientífico, ou seja, dogmático. Ora, No ensino herbartiano, o passo da prepa­
sendo uma bandeira que caminha na direção no entanto, essa crença que a Escola Nova pro­ ração significa basicamente a recordação da lição
da eliminação daqueles privilégios que impe­ paga é uma crença totalmente falsa. Com efeito, anterior, logo, do já conhecido; através do pas­
dem a realização de parcela considerável dos o chamado ensino tradicional não é pré-cientí­ so da apresentação, é colocado diante do aluno
homens. Entretanto, neste momento, não é a fico e muito menos medieval. Esse ensino tra­ um novo conhecimento que lhe cabe assimilar;
burguesia que assume o papel revolucionário, dicional que ainda predomina hoje nas escolas a assimilação, portanto o terceiro passo, ocorre
como assumira no início dos tempos modernos. se constituiu após a revolução industrial e se por comparação, daí por que eu o denominei
Nesse momento, a classe revolucionária é outra: implantou nos chamados sistemas nacionais de assimilação-comparação — a assimilação ocorre
não é mais a burguesia, é exatamente aquela ensino, configurando amplas redes oficiais, por comparação do novo com o velho; o novo
classe que a burguesia explora. criadas a partir de meados do século passado, é assimilado, pois, a partir do velho. Esses três
no momento em que, consolidado o poder bur­ passos correspondem, no método científico in­
A falsa crença da Escola Nova guês, aciona-se a escola redentora da humani­ dutivo, ao momento da observação. Trata-se
dade, universal, gratuita e obrigatória como de identificar e destacar o diferente entre os
A segunda tese eu enunciei da seguinte um instrumento de consolidação da ordem de­ elementos já conhecidos. O passo seguinte, o
forma: "do caráter científico do método tra­ mocrática. da generalização, significa que, se o aluno já
dicional, e do caráter pseudocientífico dos mé­ O que estou querendo enfatizar com isto assimilou o novo conhecimento, ele é capaz de
todos novos". Vejam que no fundo as minhas é que justamente esse método tradicional foi identificar todos os fenômenos corresponden­
teses estão indo contra a tendência corrente, constituído após a revolução industrial, contra­ tes ao conhecimento adquirido. Ora, no méto­
contra a tendência dominante. E por que isso? riamente, portanto, ao argumenta que os esco­ do indutivo, o momento da generalização não
Porque, vejam bem, tanto na primeira tese, co­ lanovistas comumente levantam de que a revo­ é outra coisa senão á subfunção, sob uma lei
mo veremos agora na segunda, o que em verda­ lução industrial transformou a sociedade, de­ extraída dos elementos observados, pertencen­
de a burguesia faz, ao defender a posição que terminou uma sociedade não mais estática, em tes a determinada classe de fenômenos, de to­
corresponde aos seus interesses, é contrapô-la mudança contínua, que essa revolução indus­ dos os elementos (observados ou não), que in­
ao momento anterior. Assim, no caso da peda­ trial, que tem seu fundamento na ciência, não tegram a mesma classe de fenômenos. O passo
gogia da existência e da essência, a burguesia teve sua contrapartida na educação, que conti­ da aplicação, que é o quinto passo do método
26 constrói os argumentos que defendem a peda­ nuou sendo pré-científica, seguindo lemas me­ herbartiano, coincide, via de regra, com as
"lições para casa". Fazendo os exercícios, o
aluno vai demonstrar se ele aprendeu, se assi­
milou ou não o conhecimento. Trata-se de ve­
rificar através de exemplos novos, não mani­
pulados ainda pelo aluno, se ele efetivamente
assimilou o que foi ensinado. Corresponde,
pois, ao momento da confirmação, no caso do
método científico, uma vez que, se o aluno apli­
cou corretamente os conhecimentos adquiridos,
se ele acertou os exercícios, a assimilação está
confirmada. Pode-se afirmar que ao ensino cor­
respondeu uma aprendizagem. Por isso, a pre­
paração da lição seguinte começa com a recapi­
tulação da anterior, o que é feito normalmente
mediante a correção da lição de casa. Eis, pois,
a estrutura do método tradicional; na lição se­
guinte começa-se corrigindo os exercícios, por­
que essa correção é o passo da preparação. Se
os alunos fizeram corretamente os exercícios,
eles assimilaram o conhecimento anterior, en­
tão eu posso passar para o novo. Se eles não fi­
zeram corretamente, então eu preciso dar novos
exercícios, é preciso que a aprendizagem se pro­
longue um pouco mais, que o ensino atente pa­
ra as razões dessa demora, de tal modo que, fi­
nalmente, aquele conhecimento anterior seja
de fato assimilado, o que será a condição para
se passar para um novo conhecimento.
Cabe aqui perguntar: por que o movi­
mento da Escola Nova tendeu a classificar co­
mo pré-científico, e até mesmo como anti-cien­
tífico, dogmático, o método aqui citado? Acre­
dito que demonstrei a sua cientificidade. Mas
vamos tentar agora responder a essa pergunta.
A Escola Nova deve ter suas razões.

Ensino não é pesquisa

Na verdade, o que o movimento da Es­


cola Nova fez foi tentar articular o ensino com
o processo de desenvolvimento da ciência, ao
passo que o chamado método tradicional o
articulava com o produto da ciência. Em outros
termos, a Escola Nova buscou considerar o en­
sino como um processo de pesquisa; daí por
que ela se assenta no pressuposto de que os
assuntos de que trata o ensino são problemas,
isto é, são assuntos desconhecidos não apenas
pelo aluno, como também pelo professor. Nes­
se sentido, o ensino seria o desenvolvimento de 27
uma espécie de projeto de pesquisa, quer dizer
uma atividade — vamos aos cinco passos do en­
sino novo que se contrapõem simetricamente
aos passos do ensino tradicional: então, o en­
sino seria uma atividade (1º passo) que, susci­
tando determinado problema (2º passo), pro­
vocaria o levantamento dos dados, (3º passo) a
partir dos quais seriam formuladas as hipóteses
(4º passo) explicativas do problema em ques­
tão, empreendendo alunos e professores, con­
juntamente, a experimentação (5º passo), que
permitiria confirmar ou rejeitar as hipóteses
formuladas.
Vê-se, pois, que o ensino novo basica­
mente se funda nessa estrutura: ele começa por
uma atividade; na medida em que a atividade
não pode prosseguir por algum obstáculo, al­
guma dificuldade, algum problema que surgiu,
é preciso resolver esse problema. Como se vai
resolver esse problema? Então, todos, alunos
e professores, saem à cata de dados, dados dos
mais diferentes tipos, dados documentais, atra­
vés dos textos, ou dados de campo. Esses dados,
uma vez levantados, permitirão acionar uma ou
mais hipóteses explicativas do problema. For­
mulada a hipótese, é preciso passar à experi­
mentação, é preciso testar essa hipótese. São
esses os cinco passos do método novo. Diferen­
temente disso, o ensino tradicional se propunha
a transmitir os conhecimentos obtidos pela ciên­
cia, portanto, já compendiados, sistematiza­
dos e incorporados ao acervo cultural da hu­
manidade. Eis por que esse tipo de ensino, o
ensino tradicional, se centra no professor, nos
conteúdos e no aspecto lógico, isto é, se centra
no professor, o adulto, que domina os conteú­
dos logicamente estruturados, organizados, en­
quanto que os métodos novos se centram no
aluno (nas crianças), nos procedimentos e no
aspecto psicológico, isto é, se centra nas moti­
vações e interesses da criança em desenvolver
os procedimentos que a conduzam à posse dos
conhecimentos capazes de responder às suas
dúvidas e indagações. Em suma, aqui, nos mé­
todos novos, se privilegiam os processos de ob­
tenção dos conhecimentos, enquanto que lá,
nos métodos tradicionais, se privilegiam os mé­
todos de transmissão dos conhecimentos já
obtidos.
28 Bem, acho que, isto posto, um e outro
método, uma e outra pedagogia, estão indica­ efetivamente contribuam para o enriquecimen­ clara de que para se aprender é preciso discipli­
das também as razões de cientificidade de uma to cultural da humanidade. na e, em função disso, eles exigem mesmo dos
e de outra. Mas, que conseqüências isso tem? Creio que está demonstrada a minha se­ professores disciplina. É comum a gente encon­
Vejam que com essa maneira de inter­ gunda tese, isto é, o caráter científico do mé­ trar esta reação nos pais das crianças das classes
pretar a educação, a Escola Nova acabou por todo tradicional e o caráter pseudo-científico trabalhadoras: se o meu filho não quer apren­
dissolver a diferença entre pesquisa e ensino, dos métodos novos. der, vocês têm que fazer com que ele queira.
sem se dar conta de que, assim fazendo, ao mes­ E o papel do professor é de justamente garan­
mo tempo que o ensino era empobrecido, se in­ A Escola Nova não é democrática tir que o conhecimento seja adquirido, às vezes
viabilizava também a pesquisa. O ensino não é mesmo contra a vontade da criança, que espon­
um processo de pesquisa. Querer transformá-lo Destas duas teses, eu vou, então, extrair taneamente não tem condições de enveredar
num processo de pesquisa é artificializá-lo. a terceira, que é aquela conclusão segundo a para a realização dos esforços necessários à
Daí o meu prefixo pseudo ao científico dos qual quando mais se falou em democracia no aquisição dos conteúdos mais ricos e sem os
métodos novos. Eu vou tentar explicar um pou­ interior da escola, menos democrática foi a es­ quais ela não terá vez, não terá chance de par­
quinho ainda isso. Por que é que o ensino era cola; e, quando menos se falou em democracia, ticipar da sociedade.
empobrecido e ao mesmo tempo se inviabiliza­ mais a escola esteve articulada com a constru­ É nesse sentido que digo que quando mais
va a pesquisa? ção de uma ordem democrática. Parece-me que, se falou em democracia no interior da escola,
Vejam bem que, se a pesquisa é incursão como diziam os escolásticos, "conclusio patet", menos democrática ela foi, e quando menos se
no desconhecido, e por isso ela não pode estar isto é, essa tese é evidente depois do que foi ex­ falou em democracia, mais ela esteve articulada
atrelada a esquemas rigidamente lógicos e pre­ plicitado em relação às duas primeiras, porque, com a construção de uma ordem democrática.
concebidos, também é verdade que: primeiro obviamente, nós sabemos que, em relação à pe­ Ora, na explicação da minha primeira tese, eu
— o desconhecido só se define por confronto dagogia nova, um dos elementos que está muito tinha indicado justamente que a burguesia, ao
com o conhecido, isto é, se não se domina o já presente nela é a proclamação democrática, a formular a pedagogia da essência, ao criar os
conhecido, não é possível detectar o ainda não proclamação da democracia. Aliás, inclusive, o sistemas nacionais de ensino, justamente co­
conhecido, a fim de incorporá-lo, mediante a próprio tratamento diferencial, portanto, o locou a escolarização como uma das condi­
pesquisa, ao domínio do já conhecido. Aí me abandono da busca de igualdade é justificado ções para a consolidação da ordem demo­
parece que está uma das grandes fraquezas dos em nome da democracia, e é nesse sentido tam­ crática. Conseqüentemente, a própria mon­
métodos novos. Sem o domínio do conhecido, bém que se introduzem no interior da escola tagem do aparelho escolar estava aí a serviço
não é possível incursionar no desconhecido. É procedimentos ditos democráticos. E hoje nós da participação democrática, embora no inte­
aí que está também a grande força do ensino sabemos, com uma certa tranqüilidade já, a rior da escola não se falasse muito em demo­
tradicional: a incursão no desconhecido se fa­ quem serviu essa democracia e quem se bene­ cracia, embora no interior da escola nós tivés­
zia sempre através do conhecido, e isso é um ficiou dela, quem vivenciou estes procedimen­ semos aqueles professores que assumiam, não
negócio muito simples; qualquer aprendiz de tos democráticos e essa vivência democrática abdicavam, não abriam mão da sua autoridade,
pesquisador passou por isso, ou está passando, no interior das escolas novas. Não foi o povo, e usavam essa autoridade para fazer com que
e qualquer pesquisador sabe muito bem que não foram os operários, não foi o proletariado. os alunos ascendessem a um nível elevado de
ninguém chega a ser pesquisador, a ser cientista, Essas experiências ficaram restritas a pequenos assimilação da cultura da humanidade.
se ele não domina os conhecimentos já exis­ grupos, e nesse sentido elas se constituíram, via
tentes na área em que ele se propõe a ser in­ de regra, em privilégios para os já privilegiados, Escola Nova: a hegemonia da
vestigador, a ser cientista. Em segundo lugar, legitimando as diferenças. Agora, os homens classe dominante
o desconhecido não pode ser definido em ter­ do povo (o povão, como se costuma dizer)
mos individuais, mas em termos sociais, isto é, continuaram a ser educados basicamente segun­ Passemos, enfim, às conseqüências para
trata-se daquilo que a sociedade e, no limite, a do o método tradicional, e, mais do que isso, a situação educacional brasileira.
humanidade em seu conjunto desconhece. Só não só continuaram a ser educados, à revelia dos Vou tomar dois momentos para ilustrar:
assim seria possível encontrar-se um critério métodos novos, como também jamais reivindi­ o primeiro momento seria aí em torno da dé­
aceitável para distinguir as pesquisas relevantes caram tais procedimentos. Os pais das crianças cada de 30 e o segundo seria a década de 70,
das que não o são, isto é, para se distinguir a pobres têm uma consciência muito clara de que mais exatamente uma referência à reforma do
pesquisa da pseudopesquisa, da pesquisa de a aprendizagem implica a aquisição de conteú­ ensino instituída pela Lei nº 5.692, para veri­
"mentirinha", da pesquisa de brincadeira, que, dos mais ricos, têm uma consciência muito cla­ ficar justamente como é que ela se enquadra
em boa parte, me parece, constitui o manancial ra de que a aquisição desses conteúdos não se nesse esquema mais amplo de compreensão e
dos processos novos de ensino. Em suma, só dá sem esforço, não se dá de modo espontâneo; como é que ela interferiu no interior da escola
assim será possível encetar investigações que conseqüentemente, têm uma consciência muito do ponto de vista político, determinando que, 29
interiormente, as escolas cumprissem certas O que eu queria destacar em relação ao mos que a década de 20 foi uma década de
funções políticas. momento 1930 é, basicamente, o seguinte: o grande tensão, de grande agitação, de crise de
Em relação ao momento de 30, eu o to­ contraste entre o "entusiasmo pela educação" hegemonia das oligarquias até então dominan­
mo justamente porque o movimento da Esco­ e o "otimismo pedagógico”. J. Nagle analisa tes. Essa crise de hegemonia foi de certo modo
la Nova toma força no Brasil exatamente a isso com razoável detalhe na sua tese de livre- aguçada pela organização dos trabalhadores;
partir daí. A Associação Brasileira de Educa­ docência que versou sobre a década de 20, e várias greves operárias surgiram nesse período
ção, ABE, foi fundada em 1924 e, num certo foi publicada sob o título Educação e socieda­ e vários movimentos organizacionais também
sentido, aglutinou os educadores novos, os pio­ de na 1ª República. Ali, Nagle faz referência se deram. Com o escolanovismo, o que ocorreu
neiros da educação nova, que vão depois lançar a duas categorias, uma que ele chama "o entu­ foi que a preocupação política em relação à
seu manifesto, em 1932, e vão travar em segui­ siasmo pela educação", que foi uma marca ca­ escola refluiu. De uma preocupação em articu­
da uma polêmica com os católicos, em torno do racterística do início do século e também da lar a escola como um instrumento de partici­
capítulo da educação, da Constituição de 34. década de 20 que, no entanto, entra em reflu­ pação política, de participação democrática,
Esse momento, 1924, com a criação da ABE, xo no final dessa década, cedendo lugar àquilo passou-se para o plano técnico-pedagógico
1927, com a I Conferência Nacional de Edu­ que ele chama "otimismo pedagógico" que é Daí essa expressão de Jorge Nagle "otimismo
cação, 1932, com o lançamento do manifesto uma característica do escolanovismo. Ora, o pedagógico". Passou-se do "entusiasmo pela
dos pioneiros, é marco da ascendência esco­ importante do ponto de vista político a sa­ educação", quando se acreditava que a educa­
lanovista no Brasil, movimento este que atingiu lientar aqui é que nessa fase do entusiasmo ção poderia ser um instrumento de participação
o seu auge por volta de 1960, quando, em se­ pela educação se pensava a escola como ins­ das massas no processo político, para o "oti­
guida, entra em refluxo, em função de uma no­ trumento de participação política, isto é, se mismo pedagógico", em que se acredita que as
va tendência da política educacional, que a gen­ pensava a escola com uma função explicita­ coisas vão bem e se resolvem nesse plano inter­
te poderia chamar de “os meios de comunica­ mente política; a primeira década desse século, no das técnicas pedagógicas. Num outro texto1,
ção de massa" e "as tecnologias de ensino". Eu a segunda, a década de 10, e a terceira, a déca­ faço referência justamente à Escola Nova como
não vou poder entrar nesse detalhe. Já tratei da de 20, foram muito ricas em movimentos desempenhando a função de recompor os me­
disso em algumas palestras que estão publicadas populares que reivindicavam uma participação canismos de hegemonia da classe dominante.
no livro Educação: do senso comum à consciên­ maior na sociedade, e faziam reivindicações Com efeito, se na fase do "entusiasmo pela edu­
cia filosófica. também do ponto de vista escolar. Nós sabe­ cação” o lema era "Escola para todos", essa

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era a bandeira de luta, agora a Escola Nova vem gundo a perspectiva das camadas dominantes, rebaixamento do nível de ensino destinado às
transferir a preocupação dos objetivos e dos quer dizer, não escolhiam os melhores; a bur­ camadas populares. É nesse sentido que a he­
conteúdos para os métodos e da quantidade guesia acreditava que o povo instruído iria esco­ gemonia pôde ser recomposta. Sobre isso, ha­
para a qualidade. Ora, vocês não sabem o que lher os melhores governantes. Mas o povo ins­ veria coisas interessantíssimas para a gente
existe de significado político por detrás dessa truído não estava escolhendo os melhores. Ob­ discutir, em relação ao que está ocorrendo no
metamorfose! Em verdade, o significado polí­ serve-se que não escolhiam os melhores do pon­ Brasil, hoje; a contradição da política educa­
tico, basicamente, é o seguinte: é que quando to de vista dominante. Ocorre que os melhores cional atual, em que a proposta de base, refe­
a burguesia acenava com a escola para todos (é do ponto de vista dominante, não eram os me­ rente ao ensino fundamental, é, em meu modo
por isso que era instrumento de hegemonia), lhores do ponto de vista dominado. Na verdade, de ver, populista, e a proposta de cúpula, em
ela estava num período capaz de expressar o povo escolhia os menos piores, porque é cla­ relação à pós-graduação, é elitista.
os seus interesses abarcando também os in­ ro que os melhores eles não podiam escolher Em suma, o momento de 30, no Brasil,
teresses das demais classes. Nesse sentido, uma vez que o esquema partidário não permi­ através da ascensão do escolanovismo, corres­
advogar escola para todos correspondia ao inte­ tia que seus representantes autênticos se candi­ pondeu a um refluxo e até a um desaparecimen­
resse da burguesia, porque era importante uma datassem. Então ele tinha que escolher, entre to daqueles movimentos populares que advoga­
ordem democrática consolidada e correspon­ as facções em luta no próprio campo burguês, vam uma escola mais adequada aos seus interes­
dia também ao interesse do operariado, do pro­ as opções menos piores; só que as menos piores, ses. E por que isso? A partir de 30, ser progres­
letariado, porque para eles era importante par­ do ponto de vista dos interesses dos domina sista passou a significar ser escolanovista. E
ticipar do processo político, participar das de­ dos, eram as piores do ponto de vista dominan­ aqueles movimentos sociais, de origem, por
cisões. Ocorre que, na medida em que eles co­ te. "Ora, então essa escola não está funcionan­ exemplo, anarquista, socialista, marxista,
meçam a participar, as contradições de interes­ do bem", foi o raciocínio das elites, das camadas
ses que estavam submersas sob aquele objetivo dominantes; e se essa escola não está funcio­
comum vêm à tona e fazem submergir o co­ nando bem, é preciso reformar a escola. Não
mum; o que sobressai, agora, é a contradição de basta a quantidade, não adianta dar escola para
interesses, ou seja, o proletariado, o operariado, todo mundo desse jeito. E surgiu a Escola Nova, I SAVIANI, Dermeval. A filosofia da educação e o
as camadas dominadas, na medida em que par­ que tornou possível, ao mesmo tempo, o apri­ problema da inovação em educação. In: Garcia,
ticipavam das eleições, não votavam bem, se­ moramento do ensino destinado às elites e o W. E. org. Inovação educacional no Brasil.

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que conclamavam o povo a se organizar e reivin­ aptidão, e se encaminha para o mercado de tra­ tes dominam é condição de libertação.
dicar a criação de escolas para os trabalhado­ balho. Ora, vejam vocês como está aqui de Nesse sentido, eu posso ser profundamen­
res, perderam a vez, e todos os progressistas modo bem caracterizado aquilo que eu chamo te político na minha ação pedagógica, mesmo
em educação tenderam a endossar o credo esco­ o aligeiramento do ensino destinado às cama­ sem falar diretamente de política, porque, mes­
lanovista. Bem, eu poderia me estender, puxar das populares. Dessa maneira, o ensino das ca­ mo veiculando a própria cultura burguesa, e
o fio da história, de 30 até agora, mas vamos madas populares pode ser aligeirado até o nada, instrumentalizando os elementos das camadas
fazer um corte, e vou tomar a reforma de 1971 até se desfazer em mera formalidade. populares no sentido da assimilação desses con­
como uma outra indicação prática dessa tese Outro ponto apenas, e eu já passo para a teúdos, aí eles ganham um instrumento para
que enunciei. teoria da curvatura da vara, porque acho que es­ fazer valer os seus interesses, e é nesse sentido,
O que fez a Lei nº 5.692? Tomemos, por tão todos curiosos em relação a ela. Então, uma então, que politicamente se fortalecem. Não
exemplo, o princípio de flexibilidade, que é a observação só, sobre a reformulação curricular. adianta nada eu ficar sempre repetindo o refrão
chave da lei, que é a grande descoberta dessa Uma outra "descoberta" da Lei nº 5.692 foi a de que a sociedade é dividida em duas classes
lei, a sua grande inovação. Ela é tão flexível reformulação curricular através de atividades, fundamentais, burguesia e proletariado, que a
que pode até não ser implantada. E mais ainda: áreas de estudos e disciplinas, determinando burguesia explora o proletariado e que quem é
é tão flexível que pode até ser revogada sem que o ensino, nas primeiras oito séries, se desen­ proletário está sendo explorado, que a burgue­
ser revogada; e eu não estou inventando, não. volvesse predominantemente sob a forma de sia está explorando, se o que está sendo explo­
Peguem o Parecer nº 45/72, da profissionaliza­ atividades e áreas de estudo. Ora, essas ativi­ rado não assimila os instrumentos através dos
ção, em confronto com o Parecer nº 76/75, dades e áreas de estudos são outra maneira de quais ele possa se organizar para se libertar des­
também da profissionalização. O primeiro pa­ diluir o conteúdo da aprendizagem das cama­ sa exploração. Associada a essa prioridade de
recer regulamentou o artigo 5º da lei; o segun­ das populares; e todos sabem que isso efetiva­ conteúdo, que eu já antecipei, me parece fun­
do revogou o primeiro e, com ele, revogou tam­ mente ocorreu e vem ocorrendo. damental que se esteja atento para a importân­
bém o artigo 5º da lei; só que, mediante o prin­ Vou dispensar outras ilustrações vincu­ cia da disciplina, quer dizer, sem disciplina
cípio da flexibilidade, ele não revogou, ele re- ladas à Lei nº 5.692; apenas eu gostaria de esses conteúdos relevantes não são assimilados.
interpretou. Reinterpretou, e o artigo 5º per­ enfatizar isso: que contra essa tendência de Então, eu acho que nós conseguiríamos fazer
manece nela. aligeiramento do ensino destinado às cama­ uma profunda reforma na escola, a partir de
Através dessa flexibilidade, se instituiu, das populares nós precisaríamos defender seu interior, se passássemos a atuar segundo
por exemplo, aquela diferenciação entre termi- o aprimoramento exatamente do ensino esses pressupostos e mantivéssemos uma preo­
nalidade real e terminalidade legal ou ideal. Ora, destinado às camadas populares. Essa defesa im­ cupação constante com o conteúdo e desenvol­
o que é a terminalidade real senão admitir que plica na prioridade de conteúdo. Os conteúdos vêssemos aquelas fórmulas disciplinares, aque­
quem tem pouco continua tendo menos ainda? são fundamentais e, sem conteúdos relevantes, les procedimentos que garantissem que esses
Às vezes eu digo, brincando, que nesse sentido conteúdos significativos, a aprendizagem deixa conteúdos fossem realmente assimilados. Por
o capitalismo é bem evangélico. Ele aplica ao pé de existir, ela se transforma num arremedo, ela exemplo, o problema dos elementos das cama­
da letra a máxima evangélica enunciada na pará­ se transforma numa farsa. Parece-me, pois, fun­ das populares nas salas de aula implica redobra­
bola dos talentos: "ao que tem se lhe dará; e ao damental que se entenda isso e que, no interior dos esforços por parte dos responsáveis pelo en­
que não tem, até o pouco que tem lhe será tira­ da escola, nós atuemos segundo essa máxima: a sino, por parte dos professores, mais diretamen­
do". Em relação a essa diferenciação entre ter­ prioridade de conteúdos, que é a única forma te. O que ocorre, via de regra, é que, dadas as
minalidade ideal e terminalidade real, se diz co- de lutar contra a farsa do ensino. Por que esses condições de trabalho, e dado o próprio modelo
mumente o seguinte: todo o conteúdo de apren­ conteúdos são prioritários? Justamente porque que impregna a atividade de ensino e traz, en­
dizagem do 1º grau será dado em oito anos; eis o o domínio da cultura constitui instrumento in­ tão, exigências e expectativas para professores
legal, ou seja, o ideal. Mas, naqueles lugares em dispensável para a participação política das e alunos, tudo isso faz com que o próprio pro­
que não há condições de se ter escola de oito massas. Se os membros das camadas populares fessor tenda a cuidar mais daqueles que têm
anos, então que se organize esse conteúdo para não dominam os conteúdos culturais, eles não mais facilidade, deixando à margem aqueles que
seis anos, em outros para quatro ou para dois, e podem fazer valer os seus interesses, porque têm mais dificuldade. E é assim que nós acaba­
assim por diante; e, numa mesma região, a escola ficam desarmados contra os dominadores, que mos, como professores, no interior da sala de
que não tem condição de dar oito, que dê se servem exatamente desses conteúdos cultu­ aula, reforçando a discriminação e sendo poli­
6, e assim por diante; e, numa mesma classe, rais para legitimar e consolidar a sua domina­ ticamente reacionários.
para aqueles alunos que não têm condições ção. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da se­ Quanto ao apêndice, relativo à "teoria
de chegar lá no oitavo, você dá uma forma­ guinte forma: o dominado não se liberta se ele da curvatura da vara", eu faço apenas um co­
ção geral em quatro anos, que é quase só o que não vier a dominar aquilo que os dominantes mentário rápido e encerro. Na verdade, introdu­
32 eles vão ter mesmo; em seguida, sondagem de dominam. Então, dominar o que os dominan­ zi esse apêndice simplesmente pelo seguinte:
a ênfase que dei, invertendo a tendência corren­
te, decorre da consideração de que, na tendên­
cia corrente, a vara está torta; está torta para o
lado da pedagogia da existência, para o lado dos
movimentos da Escola Nova e assim por diante.
E é nesse sentido que o raciocínio habitual ten­
de a ser o seguinte: as pedagogias novas são por­
tadoras de todas as virtudes, enquanto que a pe­
dagogia tradicional é portadora de todos os de­
feitos e de nenhuma virtude. O que se evidencia
através de minhas teses é justamente o inverso.
Creio ter conseguido fazer curvar a vara para o
outro lado. A minha expectativa é justamente
que com essa inflexão a vara atinja o seu pon­
to correto, vejam bem, ponto correto esse que
não está também na pedagogia tradicional, mas
está justamente na valorização dos conteúdos
que apontam para uma pedagogia revolucioná­
ria; pedagogia revolucionária esta que identifi­
ca as propostas burguesas como elementos de
recomposição de mecanismos hegemônicos e se
dispõe a lutar concretamente contra a recom­
posição desses mecanismos de hegemonia, no
sentido de abrir espaço para as forças emergen­
tes da sociedade, para as forças populares, para
que a escola se insira no processo mais amplo
de construção de uma nova sociedade.

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